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2 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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A ATUALIDADE DAS IDEIAS DE PAULO FREIRE

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Nadir Castilho Delizoicov Geovana Mulinari Stuani

Suzi Laura da Cunha (Organizadoras)

Autores: Elison Antonio Paim; Deise Imara Schilke; Eloísa Acires C. Rocha;

Geovana Mulinari Stuani; Iône Inês Pinsson Slongo; Isabel Spingolon Azambuja; Ivanete Fátima Solivo Pavan; Jane Suzete Valter; Leoni Inês Balzan Schneider; Leusa Possamai; Marinilse Netto; Maristella Müller Drews; Nadir Castilho Delizoicov; Sônia Maria Serena; Suzi Laura da

Cunha; Sylvia Regina Pedrosa Maestrelli

A ATUALIDADE DAS IDEIAS DE PAULO FREIRE

Primeira Edição E-book

Toledo - PR

2018

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6 A atualidade das ideias de Paulo Freire

Copyright 2018 by Organizadoras EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. Daniel Eduardo dos Santos – UNICESUMAR Dr. José Dias - UNIOESTE

Dr. Reginaldo Aliçandro Bordin – PUCPR REVISÃO FINAL:

Prof.ª Ana Karine Braggio CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Junior Cunha. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados às Organizadoras. Todos os textos aqui publicados são de total e exclusiva

responsabilidade de seus respectivos autores. Editora Vivens, Conhecer é Poder!

Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596

http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

PREFÁCIO..................................................................... 9

PARTE I – O LEGADO FREIREANO ...................... 13

I PROPOSTAS EDUCACIONAIS DE INSPIRAÇÃO FREIREANA: MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS VIVIDAS NA REDE ESCOLAR PÚBLICA MUNICIPAL DE CHAPECÓ – SC (1997-2004) ............... 15

II APREENDER E ENSINAR A REALIDADE PARA TRANSFORMÁ-LA: A PRÁTICA PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO POPULAR DE CHAPECÓ (SC) ....... 47

III A POLÍTICA EDUCACIONAL COMO POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL .. 79

PARTE II – FORMAÇÃO DE PROFESSORES ....... 111

I A PARTICIPAÇÃO DOCENTE E AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM TEMÁTICA FREIREANA PARA A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS ...................................113

II A CONCEPÇÃO FREIREANA COMO APORTE PARA A FORMAÇÃO PERMANENTE DE PROFESSORES DE EJA ............................................. 147

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8 A atualidade das ideias de Paulo Freire

PARTE III – EXPERIÊNCIA FREIREANA NOS DIVERSOS NÍVEIS DE ENSINO ........................... 175

I O MOVIMENTO DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR VIA TEMA GERADOR: UM NOVO OLHAR PARA EDUCAÇÃO INFANTIL ....................... 177

II AS EXPERIÊNCIAS DAS ESCOLAS DO CAMPO NO CONTEXTO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POPULAR NO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ/SC (1997-2004) ................................................. 211

III O “OUTRO” NA ESCOLA: A BUSCA POR UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA INCLUSIVA ..................... 259

PARTE IV – O TEMA GERADOR NO CURRÍCULO ESCOLAR ................................... 301

I A PESQUISA-AÇÃO COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA PARA OS TEMAS GERADORES NOS PRESSUPOSTOS FREIREANO .............................. 303

II O TEMA GERADOR NO ENSINO DE HISTÓRIA ....................................................................... 335

PARTE V – EDUCAÇÃO, ARTE E CULTURA ...... 365

I CENTROS ARTÍSTICOS DE CULTURA POPULAR: AS INTER-RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA NO GOVERNO DA FRENTE POPULAR EM CHAPECÓ (1997-2004) ................................................ 367

II O ENSINO DA ARTE NA PERSPECTIVA CRÍTICA E A POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO DOS SUJEITOS ................................................................................ 405

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PREFÁCIO Foi com grande alegria que recebi o convite para

prefaciar essa obra, afinal permite-me retomar o diálogo com companheiros educadores com quem tive o prazer de trabalhar durante anos, o que me traz um sentimento de orgulho e de gratidão. Buscar construir um que-fazer pedagógico comprometido com uma educação emancipatória foi o mote que nos uniu e continua nos aproximando.

Na Educação já se tornou lugar comum o conceito de práxis. O educador refletir sobre seus fazeres e recriar sua prática tornaram-se recomendações recorrentes em obras que procuram analisar os limites da prática pedagógica contemporânea, tanto à luz dos limites da aprendizagem quanto em relação ao processo formativo dos educadores. Mas, ao mesmo tempo em que o currículo da práxis parece ser um consenso nas abordagens críticas, a dinâmica pedagógica é vista como impossível de ser realizada.

Este livro é uma evidência cabal de que é possível, sim, o educador assumir-se como sujeito de seu fazer pedagógico, honrando o compromisso de reorientar seu próprio fazer a partir de um debate crítico e coletivo sobre o processo de ensino-aprendizagem. São os educadores da escola pública os protagonistas dessa transformação. O inédito viável freireano torna-se concreto ao longo das experiências e reflexões apresentadas pelos diferentes autores dos capítulos deste livro.

Organizada em cinco partes, a obra conta, ao longo de onze capítulos, a experiência pedagógica vivenciada entre 1997 e 2004 pela rede municipal de educação de Chapecó. Articulando o desenvolvimento da construção de uma proposta curricular fundamentada nos princípios da

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pedagogia freireana e o processo de formação permanente dos educadores envolvidos, evidencia a superação de limites recorrentes no contexto escolar da educação básica contemporânea e nos traz a possibilidade real de se efetivar uma educação humanizadora nas diferentes áreas do conhecimento científico.

A parte 1 da obra apresenta os fundamentos da pedagogia freireana no desenvolvimento do projeto político-pedagógico da Secretaria Municipal de Chapecó durante a gestão da administração popular de 1997 a 2004. Com as contribuições dos pesquisadores Paim e Slongo podemos resgatar as vozes dos sujeitos envolvidos no processo de reorientação curricular. Por seu turno, Schneider traz luz à participação dos movimentos sociais na implementação da educação popular no Município, explicitando como o processo foi inovador na formação dos educadores. Ainda na primeira parte da obra, Schilke desenvolve uma consistente articulação entre a implementação de uma política educacional democrática e o processo de construção curricular fundamentado em uma pedagogia libertadora.

Na parte 2 a ênfase está no processo de formação dos educadores. Refletindo sobre a indissociabilidade entre construção da prática pedagógica e formação profissional, Stuani, Maestrelli e Delizoicov apresentam categorias críticas para a análise do currículo fundamentado na abordagem temática freireana implementado no período, evidenciando, a partir das vozes de educadores, como um processo curricular praxiológico propicia uma mudança qualitativa na formação dos educadores. Cunha e Delizoicov, assumindo como objeto de estudo a prática pedagógica da Educação de Jovens e Adultos desenvolvidas durante a gestão, apresentam o resultado de uma pesquisa que evidencia que o trabalho coletivo, a dialogicidade e o protagonismo dos sujeitos são exigência para desencadear um processo de formação permanente dos educadores.

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A parte 3 da obra dedica-se a explicitar experiências curriculares freireanas em diferentes níveis de ensino. As práticas pedagógicas vivenciadas na Educação Infantil, apresentadas por Azambuja e Rocha, na Educação do Campo em diferentes modalidades, mostradas por Valter e no âmbito de uma escola inclusiva, discutida por Pavan, são apresentadas de forma consistente e ilustrativa, demonstrando uma maneira diferente e inovadora de um fazer pedagógico transformador.

O compromisso ético-crítico com uma abordagem curricular fundamentada na epistemologia dialógica e emancipatória de Freire, a partir da assunção de temas geradores como objetos de estudo, é desenvolvido na parte 4. Nessa perspectiva, Possamai destaca a importância da metodologia da pesquisa-ação para a práxis curricular freireana e Drews apresenta os limites e as possibilidades de se organizar o ensino de História a partir de contradições presentes na realidade local.

E por último, mas não menos importante, a parte 5 aborda aspectos relacionados à arte e cultura, em que Netto analisa as articulações entre políticas de educação popular e os centros artísticos de cultura de Chapecó no período da gestão popular. Em consonância com a temática, a partir da análise de documentos publicados pela gestão educacional democrática do Município, Serena contribui com reflexões sobre a relevância do ensino da arte para o desenvolvimento de um posicionamento crítico comprometido com a emancipação dos educandos.

Merece destaque a presença da universidade durante o processo de reorientação curricular e na sistematização da obra. A participação de docentes do ensino superior de vários programas de pós-graduação trouxe inestimáveis contribuições para o resgate histórico da experiência curricular inovadora e radical vivenciada pelas escolas da

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rede municipal. A transversalidade da práxis permeia os relatos ao longo de todos os capítulos.

Como não reiterar meus agradecimentos pelo convite dos que, mais que colegas de profissão, são companheiros educadores, militantes pedagógicos contumazes da construção de uma sociedade ética, comprometida com a superação das desigualdades socioculturais tão arraigadas na organização de nosso país? Assim, nominalmente, obrigado Sonia, Leusa, Deise, Isabel, Geovana, Maristella, Leoni, Jairo, Cristian, Liane, Margarete, Edione, Luciane, Lizeu, entre tantos parceiros da rede municipal de Chapecó, pelos diálogos sinceros e profundos tão responsáveis pela minha formação, por me mostrarem uma nova forma de educar, concretizando no protagonismo docente a construção de uma educação dedicada à emancipação social dos desfavorecidos.

Convido o leitor a compartilhar comigo a esperança de uma educação ético-crítica que se materializa nas vozes dos autores. Apreciem essa história curricular sem moderação e aceitem o desafio de recriá-la.

Antonio Fernando Gouvêa da Silva

São Paulo, dezembro de 2017

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Prefácio 13

PARTE I – O LEGADO FREIREANO

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I

PROPOSTAS EDUCACIONAIS DE INSPIRAÇÃO FREIREANA: MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS

VIVIDAS NA REDE ESCOLAR PÚBLICA MUNICIPAL DE CHAPECÓ – SC (1997-2004)

Elison Antonio Paim

Iône Inês Pinsson Slongo

Minha sensibilidade machucada me deixa triste quando sei o número de meninos e meninas populares em idade escolar, no Brasil que são ‘proibidos’ de entrar na escola; quando sei que, entre os que conseguem entrar, a maioria é expulsa da escola. Minha sensibilidade açoitada me deixa horrorizado quando sei que o analfabetismo de jovens e adultos vem crescendo nestes últimos anos, quando percebo o descaso a que a escola pública foi relegada [...]. Mas, junto ao horror que uma realidade assim me provoca, a raiva necessária e indispensável indignação me dão alento na luta democrática pela superação desse escândalo e dessa ofensa.

(FREIRE, 1991, p. 58)

Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (Profhistória-UFSC) da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Educação pela Unicamp e mestre em História pela PUC-SP. Membro dos grupos de pesquisa Pameduc (UFSC), Rastros (USF) e Kairós (UNICAMP). E-mail: [email protected]. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do grupo de pesquisa Educação, Formação Docente e Processos Educativos. E-mail: <[email protected]>.

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Considerando a indignação do nosso velho e inspirador mestre Paulo Freire é que escrevemos o presente capítulo, fruto de pesquisa desenvolvida no município de Chapecó, estado de Santa Catarina. A pesquisa em pauta integrou outro trabalho mais amplo, coordenado, em âmbito nacional, pela professora Dra. Ana Maria Saul (PUC-SP) e, em âmbito regional Sul, pelo professor Dr. Demétrio Delizoicov (UFSC). A problemática norteadora da pesquisa procurou compreender: De que modo professores e gestores educacionais que participaram do movimento de reorientação curricular da Secretaria Municipal de Educação em Chapecó analisam a política de formação continuada de professores implementada durante a gestão da frente popular?

O estudo buscou apreender a práxis curricular coletiva, tendo como princípio a legitimidade dos discursos, a racionalidade problematizadora, a organização dialógica e participativa das práticas construtoras de conhecimentos, sentidos e significados, capazes de fundamentar movimentos político-educacionais de resistência às diferentes modalidades de dominação vigentes – compromisso assumido pelo projeto político-pedagógico freireano.

Como questões de pesquisa para esse recorte do projeto elencamos: Que princípios nortearam a formação continuada de professores? Que práticas formativas foram implementadas? Que implicações essa política gerou no cotidiano escolar? Quais foram os avanços e as dificuldades percebidas pelo grupo de gestores e educadores?

O objetivo geral do projeto pautou-se em: Identificar e analisar a influência do pensamento de Paulo Freire nos sistemas públicos de educação a fim de contribuir para a construção de um banco de dados sobre as diferentes gestões das redes públicas de ensino brasileiras sob a influência do pensamento de Paulo Freire.

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O município de Chapecó, entre os anos de 1997 a 2004, implementou uma proposta educacional cuja orientação teórica e metodológica foi baseada no Movimento de Reorientação Curricular ocorrido no município de São Paulo, no período de 1989-1992. Esse Movimento fundamentou-se em pressupostos contidos na concepção de educação de Paulo Freire, tendo sido este educador o Secretário de Educação da capital paulista durante dois anos e meio. As ideias de Paulo Freire, desde os anos de 1980, subsidiam trabalhos acadêmicos em forma de teses e dissertações. Pode-se citar, ainda, Delizoicov (1982) e Angotti (1982), autores que descrevem e analisam a organização e implementação de um projeto de ensino de Ciências Naturais pautado nas ideias de Freire, desenvolvido na Guiné Bissau, na África, sobre formação de professores de Ciências para atuarem na escola formal daquele país. Atualmente podem ser citados os trabalhos de Silva (2004), que discute em sua tese de doutorado a concepção de currículo numa perspectiva popular crítica, e Stuani (2010), que em sua dissertação de mestrado aborda a construção curricular popular crítica, focando o movimento de reorientação curricular da rede municipal de Chapecó.

Particularmente, sobre a experiência vivenciada por cerca de oito anos consecutivos pelos atores da rede municipal de educação de Chapecó, alguns trabalhos acadêmicos foram desenvolvidos em Programas de Pós-Graduação em Educação stricto sensu localizados na região Sul do Brasil, tais como Santos (2006), Drews (2006), Torres (2010), entre outros. Esses trabalhos registraram e analisaram importantes aspectos sobre o Movimento de Reorientação Curricular, o qual balizou a formação e as ações de gestores, funcionários, educadores, educandos e demais membros da comunidade escolar chapecoense.

O estudo em pauta caracterizou-se como pesquisa qualitativa. Partimos do pressuposto que o ato de conhecer,

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de investigar, é sempre concebido como uma prática dialógica. Para tanto, foi ao encontro de procedimentos epistemológicos que, dialeticamente, valorizassem tanto os conhecimentos e métodos que permearam as políticas educacionais já construídas nas práticas de gestão, quanto aqueles que, problematizando com os sujeitos dessas práticas, procuraram explicitar os limites explicativos e as contradições a elas imanentes, possibilitando um movimento crítico da consciência coletiva sobre pressupostos educacionais presentes nos fazeres pedagógicos hegemônicos, levando à construção de políticas educacionais que atendessem às necessidades, dificuldades e interesses da gestão democrática.

A pesquisa realizada no município de Chapecó dialogou diretamente com sujeitos que de alguma forma estiveram envolvidos com educação na rede municipal de ensino, quer seja atuando diretamente na elaboração das políticas pela Secretaria Municipal de Educação, quer seja, indiretamente, como professores vinculados às escolas, à formação de Jovens e Adultos (EJA) ou Centros de Educação Infantil Municipal (CEIM). Assim, nesse momento, priorizamos as entrevistas realizadas com gestores educacionais que participaram do movimento de reorientação curricular junto à Secretaria Municipal de Educação do município de Chapecó, no período de 1997 a 2004, atuando nas seguintes funções: coordenadores pedagógicos, coordenadores de área e professores das diferentes áreas do conhecimento, atuantes no ensino fundamental. Visando preservar a identidade das gestoras educacionais que participaram desta pesquisa, estas foram denominadas de GE 1, GE 2 e GE 3.

Para a análise dos dados foram levantadas categorias do pensamento freireano, orientadoras das decisões sobre políticas públicas relacionadas à democratização do acesso e permanência, à gestão democrática da educação, à

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reorientação das práticas pedagógicas e curriculares, à avaliação interna e externa das políticas educacionais de gestão, à avaliação do processo de ensino-aprendizagem, às políticas de formação permanente de educadores, entre outras. Nesse capítulo, o foco central será a formação permanente de professores, ou seja, como os gestores foram fazendo-se (PAIM, 2012) junto com os professores das escolas e os assessores externos ao grupo.

Trabalhamos com algumas questões semiestruturadas e as demais foram surgindo no decorrer das entrevistas.

Metodologicamente construímos este capítulo nos pautando em alguns conceitos-chave como memória e experiência, pois entendemos que eles contribuem para explicitação do que e como foi vivido por aqueles que participaram do processo. Trazemos de maneira breve como Thompson (1981) e Walter Benjamin (1985) definem experiências e como elas contribuem para problematizar as memórias afloradas em um processo de entrevista.

Para o historiador Edward Palmer Thompson (1981, p. 182),

[...] homens e mulheres experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco e reciprocidades.

Dessa forma, para escrevermos a história,

precisamos considerar as múltiplas experiências em suas singularidades, nos pormenores de cada professor entrevistado, de cada lembrança e/ou esquecimento. É a busca no sujeito real, numa forma de compreensão do seu ato de fazer-se professor e que precisará ser desvelada de forma mais ampla, conforme indicado por Paim (2006, p. 109):

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Para compreensão do que, efetivamente, acontece na escola, faz-se necessário perceber as marcas culturais da experiência, do vivido, do enraizamento, para compreender o trabalho de um profissional, a história mais ampla precisa ser desvelada. Marcas culturais, nas quais os sujeitos, atores e autores da cultura docente possam expressar o fazer e saber ser professor, de forma a relacioná-lo com outros saberes e fazeres, visualizando com mais nitidez as experiências, tanto especificamente, como nas suas relações ampliadoras.

O filósofo Walter Benjamin (2012), no ensaio

“Experiência e Pobreza”, ao teorizar sobre a perda da experiência com o advento da modernidade capitalista, nos instiga a reafirmarmos o valor da experiência vivida para nossa produção de conhecimento. Para o filósofo, somente com a retomada e valorização das narrativas das experiências vividas conseguiremos nos construir enquanto sujeitos mais inteiros numa perspectiva de um futuro diferente do momento presente. Ou ainda, ao trabalharmos academicamente com as narrativas do vivido, construiremos ferramentas que poderão pautar nossas lutas por outros futuros possíveis.

Nos rastros do pensamento benjaminiano trabalhamos também com a categoria memória e o processo de rememoração como sendo o momento em que mergulhamos no passado em busca de respostas para os nossos agoras. Nesse sentido, Galzerani (2004, p. 294) corrobora com nosso pensamento ao explicitar que para Benjamin o ato de rememorar,

Possibilita a recuperação de dimensões pessoais, perdidas, ou, no mínimo, ameaçadas perante o avanço do sistema capitalista. Dimensões psíquicas e sociais do ser humano que rememora. Ou seja, a memória surge aqui tecida por uma pessoa mais inteira, que se percebe portadora de sensibilidades, de incompletudes, de esquecimentos, de

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atos voluntários e conscientes, ao lado de atitudes involuntárias e inconscientes. Apresenta-se ao mesmo tempo como afirmação de sua própria singularidade, sabendo-a constituída na relação, muitas vezes conflituosa, com ‘outras’ pessoas. Ou, ainda, permite o reconhecimento de que a (re)constituição temporal de sua vida só adquire sentido na articulação de uma memória coletiva.

Em diálogo com o pensamento desses autores é que

trabalhamos na perspectiva da construção de rememorações do vivido no processo de construção e implementação da concepção de educação freireana na administração da frente popular em Chapecó, na perspectiva da formação continuada de professores. Privilegiamos em nossos fragmentos as falas originais com pequenos cortes ou ajustes de redação. Dessa forma, muitas vezes, as narrativas ficaram com extensão para além do convencionado academicamente segundo as normas da ABNT, isto é, com até vinte linhas.

Metodologicamente, procuramos trazer as narrativas numa perspectiva em que elas se construam e se apresentem como imagens monadológicas, ou seja, que cada ideia contenha a imagem do mundo cuja representação se imponha como descrição abreviada do mundo (BENJAMIN, 2007; GALZERANI, 2013a; FRANÇA, 2015).

Inicialmente, perguntamos para cada uma das pessoas que se envolveram mais diretamente na organização e estruturação da proposta de educação a ser construída na rede municipal de educação: De que forma a ideia de uma educação popular começou a ser discutida? Segundo as professoras, como perceberemos nas narrativas apresentadas a seguir, o processo de construção de uma proposta curricular freireana foi desencadeado a partir da coordenadoria de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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Tinha que fazer uma política de educação de jovens e adultos

Chegando à secretaria da educação era começar. Uma coisa que eu tinha claro, que eu aprendi em toda a minha história que qualquer instituição que diga ter um compromisso com os mais excluídos ela tem que organizar como norte na sua atuação definir isso como linha para ser seguida. Lembro que a gente passou um ano debatendo e discutindo e eu insistindo de que a nossa linha de trabalho tinha que ser a linha da educação popular. Num primeiro momento eu era uma voz mais isolada. Fomos consolidando esse debate nesse primeiro ano. Então ok. Nosso foco, nossa linha de trabalho vai ser a educação popular, foi o primeiro trabalho do ano. Eu, como era responsável pela Educação de Jovens e Adultos, tinha que fazer uma política de EJA, aí começamos um trabalho. Primeiro como não tinha turmas, o que eu comecei a fazer? Eu comecei indo para as comunidades, igrejas, movimentos sociais, centros comunitários, clubes de serviços, nas pastorais. Eu ia disseminar a ideia. Depois de um culto na Igreja católica, na Igreja evangélica ia falar com o pastor, lá na associação de moradores. Ia lá numa reunião da associação de moradores disseminar a ideia de que era possível os adultos voltarem para a escola; quem não estava alfabetizado se alfabetizar, e quem já estava alfabetizado concluir pelo menos o ensino fundamental. E paralelo a isso, a gente foi trabalhando com professores contratados temporariamente porque não tinha um quadro de professores. Paralelo a isso a gente conseguiu, era aí pelo meio do ano de 97 mais ou menos, já com várias turmas organizadas, o estudo de primeira à quarta série. A gente elaborou uma proposta prévia, aonde a gente discutia currículo, metodologia de ensino, estrutura escolar, carga horária das unidades curriculares, processo de avaliação, como é a avaliação, o todo da escola. A gente tinha pessoas das escolas também. A gente tinha representantes das escolas. A gente trabalhava em

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conjunto. A gente distribuía as atividades, um grupo pega avaliação, um grupo pegava estrutura, um grupo. Nós tínhamos diretores, especialistas na época, supervisores, orientadores e a gente tinha professores e também alunos do ensino regular noturno que nos auxiliavam. Então, a gente elaborou os documentos, sempre tendo assim que escola a gente tem, que escola a gente quer. Que currículo a gente tem, que currículo a gente quer. Que avaliação a gente tem, que avaliação a gente quer. Como são os horários, a estrutura escolar. Como é que a gente tem, como é que a gente quer. E, nisso, a gente fazia problematização e buscava recortes do conhecimento para subsidiar. Definimos que seria educação popular para toda secretaria, mas cada um foi se virar como a educação infantil, o ensino fundamental... E nós fomos fazendo esse movimento na educação de jovens e adultos e nas quatro escolas de ensino regular noturno (GE 1).

Dialogar com princípios de trabalho coletivo, cidadania, democracia e autonomia

No Ensino Fundamental também a repetência e a evasão estavam estrangulando, a gente começava com cinco quintas séries e terminava com uma oitava série, às vezes, com vinte alunos, a indisciplina era muito grande e os professores queriam mudanças, eles queriam algo novo que desse conta da demanda. A maioria atendeu o chamado, mesmo sendo férias em janeiro, para ter essa formação porque queria fazer o diferencial. E eram quatro escolas que tinham ensino noturno. O pessoal se dispôs a participar, só que o pessoal não sabia muito como fazer. Porque trabalhar com fala significativa nunca ninguém tinha visto falar. Então, era muito desafiador para o pessoal a princípio. Como trabalhava muito a questão da criticidade, da realidade, do cotidiano do aluno, da participação do aluno nas aulas a gente acreditava que para um público do ensino noturno era uma proposta deste tipo que a gente estava esperando [...]. Então, na

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realidade quando a proposta foi implementada na EJA ela não foi implementada pela Secretaria da Educação por si só, ela teve toda participação dos professores junto no pensar a proposta também, no fazer, no contribuir. A gente tinha representantes de professores, diretores e coordenadores, esse grupo de estudos foi organizando o projeto político-pedagógico. Definiu-se os princípios que organizariam a educação procurando dialogar com princípios de trabalho coletivo, cidadania, democracia e autonomia. Qual era então a percepção metodológica para a sala de aula que poderia fazer esses princípios se tornar prática na sala de aula. Foi que se chegou ao processo do Tema Gerador e aí ele começa com a EJA. Em função de Porto Alegre já ter uma experiência parecida com a nossa, então, o grupo da EJA vai visitar Porto Alegre, percebe que o processo da investigação temática ele condizia com os princípios de educação popular que o Projeto Político-Pedagógico tinha organizado junto com o coletivo da rede, e as outras áreas então começaram a perceber que era possível expandir para outros níveis de ensino. E daí vem então o Ensino Fundamental, e por último então a Educação Infantil (GE 2).

Compreender teoricamente como fazer pesquisa

E desencadeou esse movimento de reorientação curricular com pesquisa. A partir da pesquisa, análise das falas, identificar os limites explicativos na fala que é a pesquisa, os temas geradores, o contratema que é a visão do educador, organizar a rede temática. O que é a rede temática? O momento que você organiza a programação do conteúdo, então, ali é o momento da interdisciplinaridade. Desencadeamos esse movimento em toda a Secretaria Municipal da Educação. O que a gente fazia? A gente ia em cada escola, em cada turno. A gente chamava de oficina de metodologia. Só que para não se tornar uma coisa que agora essa é a proposta, a gente reuniu todos os diretores e vice-diretores e coordenadores

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da educação infantil num seminário. Oficinas que, em resumo, era o seguinte, em 20 horas, 40 horas trabalhar com aqueles professores da escola como era para dar uma visão da totalidade da proposta. Tem várias etapas do processo. Ali já era um momento não que a gente repassava. Mas, já era um momento que a gente ia trabalhando com eles e apontando uma leitura de sociedade. Nós fizemos o processo de compreender teoricamente como fazer pesquisa, de organizar roteiro de pesquisa junto com os professores de modo geral e coordenadores do Centro de Educação Infantil Municipal de participar também, de ir junto à comunidade ouvir, vivenciar aquele processo de pesquisa junto com as professoras, isso eu fiz. Isso eu... todas nós fizemos (GE 1).

Depois que qualificou a pesquisa, o segundo trabalho era qualificar o fazer pedagógico

Incluía investigação temática, os cinco passos da investigação temática começando pela pesquisa antropológica que nunca ninguém tinha ouvido falar. E chegando, então, à preparação das atividades para a sala de aula. Então, a gente ia discutindo textos, aprofundando a teoria e indo referenciar na prática. E sem falar que a gente fez todo esse movimento de investigação temática com a pesquisa do próprio bairro. Eu e a diretora da escola a gente foi uns dois dias antes, na comunidade entrevistar os moradores. A gente nunca tinha feito isso. A gente estava meio sem saber se estava fazendo certo ou não. Entrevistar os moradores e coletar as falas dos moradores sobre os principais problemas que existiam no bairro e como é que eles explicavam esses problemas. Foi a partir desta entrevista, então, dessa pesquisa que as falas foram sendo selecionadas, e a gente fez o exercício do Tema Gerador com esse grupo de professores que envolveram as quatro escolas com ensino noturno. Bom! A gente teve que trabalhar muito, a questão da pesquisa.

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O porquê da pesquisa, o como fazer a pesquisa, e reelaborar o roteiro de um jeito, do outro. Para os pequenininhos era um roteiro. Para os grandes era outro. Para a EJA era outro roteiro. Então, o primeiro momento foi mesmo a questão da pesquisa, como fazer a pesquisa se tornar algo necessário. Porque, até então, parecia que dava pra... Para pegar qualquer problema para trabalhar, mas tinha que ser um problema que viesse do outro, um problema que fosse significativo para o aluno, para a criança. Então, teve que se fazer todo um trabalho de se olhar para o aluno como sujeito. Inclusive, de estudar o nível de desenvolvimento desse aluno. Então, a gente teve estudos para estudar o nível de desenvolvimento das crianças pequenas, o nível de desenvolvimento das crianças de quinta a oitava e o nível de desenvolvimento da EJA. A gente usou Wallon, Piaget, Vygotsky e Freire. A gente fez um estudo cruzando esses quatro teóricos para caracterizar a infância, a adolescência e a juventude. A partir disso ajudar lá na escola, qualificar o olhar do professor na coleta da fala, na organização da pesquisa, para saber que, o que é problema para a criança, não é problema para o adulto, não é problema para o adolescente. Porque no início tinha um Tema Gerador só para a escola inteira, e com o tempo isso foi causando problema, porque, às vezes, aquele problema não era problema para a criança pequena, era problema lá só para o adolescente. Dependendo do tema que você escolhia, na medida em que o pessoal foi trabalhando e se dando conta, que trabalhar com Tema Gerador é trabalhar a partir do outro. Então se começou a escolher vários temas, daí a gente já tinha um tema para os pequenos, um tema para os maiores e um tema pra EJA. Aqui, pouco a pouco dentro dos pequenos já tinha os subtemas, de acordo com a faixa etária, entende? Então, o primeiro trabalho foi qualificar a pesquisa, depois que qualificou a pesquisa, o segundo trabalho era qualificar o fazer pedagógico da sala de aula, era fazer e olhar a área na pesquisa, qual a

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contribuição da área dentro do problema para não ficar geral e conseguir ser específico (GE 2).

Tinha que ser alguma coisa um pouquinho mais específica em função da necessidade da criança

Lá nas creches foi a primeira oficina que a gente fez com a educação infantil e depois a gente multiplicou, fez oficinas com a educação infantil, com ensino fundamental, EJA; um pouco mesclada, depois separamos a Educação Infantil. Depois de ter amadurecido a ideia, de ter percebido que tinha que ser alguma coisa um pouquinho mais específica, em função da necessidade da criança. A oficina num Tema Gerador ela partiu da necessidade da gente inicia-la com uma pesquisa, então primeiro a gente fez todo um processo de formação com os educadores de o que seria uma pesquisa. Como buscar na realidade, como compreender a realidade da criança, para isso nós tínhamos que trabalhar em oficinas, organizando pesquisa com todos os educadores da rede (GE 2).

As narrativas apresentadas evidenciam que a

elaboração e construção da proposta contou com a ajuda de muitos técnicos da Secretaria Municipal de Educação, dos diretores de escolas, dos professores oriundos de diferentes áreas de conhecimento. Inferimos, a partir do explicitado nas narrativas, que houve grande participação de vários segmentos da comunidade escolar. Destacamos também que o processo foi construído coletivamente, como podemos perceber em vários momentos de todas as narrativas quando mencionam várias vezes a expressão “a gente”, o que nos possibilita interpretá-la como sinônimo de trabalho de um grupo, que, por sua vez, em muitos momentos estava no mesmo patamar de compreensão e construção. Portanto, não foram apenas as professoras que compunham a equipe dirigente da Secretaria Municipal de Educação ou os

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assessores externos que definiram o que e como construir a proposta.

Segundo as narradoras, percebeu-se a necessidade de estudos pela própria equipe que comporia a Secretaria Municipal de Educação de Chapecó. Nesse sentido, elas rememoraram e narraram que foram realizados cursos de formação, grupos de estudos entre a equipe dirigente e entre os professores nas escolas e creches. A construção pautou-se numa metodologia de estudos que foi desencadeadora e condutora do processo. Perceba como suas narrativas procuram demarcar constantemente o papel desses momentos de estudo.

Ao longo das rememorações, fomos percebendo que, mesmo para a equipe da Secretaria de Educação, não havia maior clareza do que e como fazer. As entrevistadas foram narrando sua participação no processo, portanto, não havia aquelas que sabiam e outras que não sabiam. Essa perspectiva está evidenciada na fala de GE 1, ao afirmar que “[...] todo mundo estava se formando nesse processo nós, a equipe pedagógica, o pessoal da escola, era um movimento de formação de todos né, do secretário ao vigia da escola [...]”. Ou quando GE 3 afirma que

[...] foi uma aprendizagem no contexto também, a nossa formação se deu junto com a rede municipal. Minha formação política e educacional dentro dessa proposta foi se dando nesse momento. A maioria do grupo tinha sim seus contextos sua formação, mas não com profundidade.

Portanto, a organização e a formação da equipe

gestora foram acontecendo de forma simultânea conforme rememoraram.

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Bom, a gente foi empolgada achando que aquilo tudo que a gente acreditava ia se concretizar

A Secretaria montou três equipes. Uma para Educação Infantil, uma para o Ensino Fundamental e uma para a Educação de Jovens e Adultos. Então, fui eu e mais, se eu não me engano, quatro pessoas. É interessante que o trabalho na Secretaria era um trabalho coletivo, a gente tinha muitos momentos de estudo de planejamento juntos. A gente preparava junto às intervenções para ir para as escolas. Quando a gente ia para as escolas trabalhar com os professores era sempre numa perspectiva de envolver os professores a partir daquilo que era problema para eles. Então, discutir a formação a partir daquilo que era problema para os professores lá no fazer pedagógico olhando, então, para o mirante da educação popular e para o processo de investigação temática. Então, a gente tinha muitos momentos de discussão, de organizar pautas coletivas, de um olhar a pauta do outro, quando a gente trazia os problemas das escolas a gente fazia estudos coletivos sobre os problemas das escolas juntos. Bom, a gente tinha a diretora do departamento que sempre organizava os momentos de formação, mas a gente também tinha assessoria que vinha de fora. Então, a gente tinha a assessoria específica que pensava a educação de jovens e adultos em si e tinha a assessoria mais geral que era o professor Antônio Fernando Gouveia. Então, a gente tinha duas formações acontecendo ao mesmo tempo, a formação permanente que acontecia nas escolas oferecidas por nós e a nossa formação permanente que era feita pelas assessorias. A assessoria quando vinha ela fazia a gente avançar naquele problema, ver outras alternativas, outras formas de solução porque era um olhar diferenciado. Aquilo que o Freire coloca: se distanciar do objeto de estudo para analisar. Para mim foi um momento de crescimento muito grande. Eu sou outra pessoa depois que eu passei pelo processo de Tema Gerador, e acho que muitas pessoas também falam a

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mesma coisa. Não é só uma metodologia diferente que você aprende, não, é uma concepção de mundo que você incorpora e isso muda tua vida, teu jeito de olhar para as coisas, para as pessoas, para a sociedade (GE 2).

A formação continuada acontecia também para os

professores, coordenadores e equipe pedagógica da rede. Como nos narraram, houve preocupação em garantir que as atividades formativas acontecessem em diferentes espaços, momentos e em diferentes níveis na perspectiva de envolver a todos os sujeitos educacionais.

A formação visava sempre subsidiar as dificuldades que eles tinham na sala de aula

Às vezes, a gente não conseguia. Porque eu creio que nós, da Secretaria estávamos num nível de elaboração muito além do que os professores estavam na escola, até pela formação que a gente tinha que vinha de fora pelas leituras, e o tempo maior que a gente tinha disponível para ler. Então, muitas vezes, a gente cobrava dos professores em sala de aula alguns retornos. Às vezes, eu avalio que a gente era até meio imediatista demais, com as coisas. Porque a sala de aula ela tem um ritmo que é diferente de um ritmo de uma Secretaria de Educação que pensa e que elabora. O fazer lá com o aluno, às vezes, ele é mais lento, pela própria situação do ensino, condições da sala de aula. Então, a gente pensava a formação a partir daquilo que vinha como demanda da sala de aula. A gente tinha também o acompanhamento sistemático nas escolas. Então, ia até a escola, lá acompanhava ajudava a pensar o momento de formação, ajudava a olhar para as aulas das diversas disciplinas. Algumas demandas também se colocavam para as escolas como forma de avançar no processo e o objetivo maior era que, na medida em que o processo fosse avançando as escolas ganhassem uma certa autonomia no fazer também, uma certa emancipação. De

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poderem propor também alternativas, não só esperar que a gente propusesse algumas alternativas, mas que eles também se sentissem sujeitos de propor, e algumas escolas já conseguiam pensar propostas de superação das dificuldades (GE 3).

De cada cinco turmas tinha um professor a mais

A gente fazia uma coisa que manteve algum tempo, num dia da semana os alunos eram dispensados os dois últimos períodos da manhã ou da tarde para os professores fazerem o estudo e o Planejamento, sempre com uma pessoa da Secretaria da Educação. Toda semana a gente acompanhava a formação. A gente preparava as pautas na Secretaria da Educação, nós as diretoras, com a equipe. Como é que a gente fazia para fazer momentos que não dispensassem as aulas? Aquele professor que fazia o coringa ele liberava sempre dois pelo menos estavam sentados para planejar. Sempre dois professores, três, porque depende o número de turmas tinha um, dois, três. De cada cinco turmas tinha um professor a mais. A gente também fazia formação dos diretores, dos vice-diretores e dos especialistas para serem os multiplicadores lá na escola. Então, assim, nós não temos uma equipe para estar toda hora lá sentado com dois, três, mas como você também é formado, preparado você dá essa sustentação. A gente fazia aquele momento que era com o grupo todo daí na semana, que na Educação de Jovens e Adultos era à noite, e no Ensino Fundamental era na dispensa daqueles dois últimos períodos na dispensa. Além disso, tinha uma vez por mês encontro de áreas que a gente coordenava nós da secretaria, depois com o tempo fomos desenvolvendo professores da escola (GE 1).

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Não se podia dispensar muito as crianças, mas tinha no calendário uma previsão

A formação dos professores dependia duma organização mais da secretaria mesmo. Na Educação Infantil com o grupo de coordenadores na época surgiu o seguinte: vamos organizar um grupo de apoio pedagógico. Esse grupo de apoio pedagógico vai entrar nos CEIMs e vai assumir o grupo de crianças e os professores vão sair para planejar. Além desse tempo, tinha também o tempo de dispensa da criança. Não se podia dispensar muito as crianças, mas tinha no calendário uma previsão. Então, tinha horário da Educação Física também principalmente na pré-escola e se ampliou para o berçário e maternal. Naquele período, então, uma professora de Educação Física entrava no berçário, no maternal, na pré-escola que era um tempo que o professor podia planejar. Tinha a estagiária que acompanhava a professora dentro da sala também que, em alguns momentos junto com a coordenadora, o professor saia, às vezes, ela fazia o planejamento dela com outra ou comigo, por exemplo. Ou com outro colega da rede, mas o grupo de apoio era um grupo de dezessete alunas ou da Pedagogia, ou do Magistério, das áreas mais humanas mesmo (GE 3).

No decorrer tu vai ganhar mais um, outro que vai despertar

A partir do momento em que a gente propõe uma outra metodologia, outra concepção, um outro paradigma de trabalho, currículo e reorientação curricular, você de certa forma, você desestabiliza o que era normal. Que a gente, como educador trabalha numa perspectiva tradicional também, e, muitas vezes, a gente trabalha porque é o único jeito que a gente sabe trabalhar. Um grande número de educadores da rede municipal mesmo, nós a própria academia ajudou a formar numa perspectiva tradicional; não teve, não conseguiu optar por uma outra concepção

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porque havia uma única e historicamente. Então, era até difícil. Nós tínhamos que fazer provocações, fazer o desequilíbrio. As provocações para criar necessidade de aprofundar e compreender uma outra perspectiva de mundo, uma outra perspectiva de sociedade. E com o passar dos anos foi se tornando mais claro. A gente foi tendo um grupo que aderiu e vestiu a camisa, mais militante da educação. Quem está coordenando tem que ter conhecimento, tem que ter capacidade de argumentação, de desestruturar, de fazer as provocações para a coisa não empacar. Todos nós conseguíamos? Não. Tinha momentos que a gente empacava. E aí parou para o trabalho, empacou, pulou daqui do micro foi lá para o macro, nem tem meso ali. Nem passou pelo meio do caminho, vamos lá para o macro. Porque? Eu também não sei. Ninguém sabe, ninguém dá conta. Outra, porque depende muito também do outro, entende? Assim, você pode ter uma leitura de mundo, pode ter subsídio, você pode saber fazer as problematizações, provocações, mas se não flui morreu. Você não tem como dizer para o outro: “olha o caminho é esse... Esse e esse”. Você vai organizar depois no decorrer do ano nos momentos de formação que naquele ano não deu conta, aquela rede temática não deu conta e no decorrer tu vai ganhar mais um, outro que vai despertar para aquele item, para aquela questão. Outro tu não vais ganhar. Uma coisa que é lenta (GE 3).

As narradoras, ao serem interrogadas, também

explicitaram as muitas formas de resistências que os professores apresentaram nas escolas, nos diferentes níveis de organização das atividades. Destacaram que a maior resistência era devido a uma relativa segurança que as pessoas sentiam ao realizar o trabalho. Da mesma forma, as resistências, segundo as narradoras, aconteciam devido ao modo como estavam estruturadas as escolas ou formas arraigadas de trabalhar sem maior possibilidade de

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questionamento. Ou, ainda, aconteciam nas coisas mais simples e cotidianas como a forma de avaliação; por não conseguir relacionar os problemas levantados pelos alunos com os conteúdos tradicionalmente considerados como válidos e necessários no currículo formal por conta de uma avaliação com atribuição de notas, com medição do que os estudantes haviam apreendido ou não. Por outro lado, a proposta gerava certa instabilidade e provocava medo nos professores pela possível perda do controle, por não conseguir responder àqueles estudantes que se tornavam sujeitos perguntadores.

Então, era uma resistência política também, entendeu?

Nós tínhamos maior resistência era com professores efetivos e com os mais antigos no município. Não todos. Porque já vinham duma formação onde, ao longo dos anos, trabalhavam daquele jeito, com aquele tipo de planejamento. Então, havia assim, tinha gente que sabia a gente não forçava nesse sentido. Mas, a gente sabia que conosco era uma pauta e dentro da sala de aula era outra. Isso a gente tinha consciência, só que a gente também não tinha o direito de tirar deles uma coisa que o professor sabia fazer, e fazia bem. Não tinha como a gente pegar e dizer, você está errado, porque não existia um errado e um certo. Primeira coisa que nós olhávamos era se a criança ou aluno daquela turma, daquele professor que não... Que não... Vamos dizer assim, que não fazia como a gente gostaria que fosse, estudasse com as crianças, mas tinha um resultado, tinha um respeito com a criança. Porque, o que nós queríamos mesmo era a criança também, que aquele professor respeitasse aquela criança dentro daquele espaço. Então, havia esse respeito também, entende? Não era só, agora sempre que se podia a gente fazia a formação mais específica com aqueles educadores, até para entender porque que ele não queria. Então, era uma resistência política também, entendeu?

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Não era só uma resistência pedagógica. Na atitude do professor que a gente percebia que a resistência se dava. Fomos ganhando muita gente nesse sentido, na proposta, fomos aprofundando cada vez mais. Dificuldade era muito mais política no sentido da rede estar preparada num tempo anterior a esse para não aceitar essa proposta porque era do PT que, Tema Gerador era do PT. Então, havia falas assim que, nós íamos revolucionar. E, daí tinha um grupo que não queria Tema Gerador. Diziam: não dá certo. Então, isso era... Era muito difícil para gente, essa era uma dificuldade muito grande para nós, sabe? De dar continuidade. Lógico foi interrompido todo um processo nós poderíamos ter feito muito mais, iríamos aprender muito mais, né? Se tivesse continuado esse processo então tinha muita dificuldade nesse sentido, nós tínhamos dificuldades também de algumas respostas para o grupo (GE 3).

A resistência a ter que pensar sobre o que faz

A resistência dos professores, dos educadores, a resistência à nova proposta. A resistência a ter que pensar sobre o que faz. A resistência a não abrir o livro didático, que se lia de cabo a rabo, sem se perguntar: porque? Para que? Para quem? O que se tem que planejar? Em função do que? A resistência em se colocar em movimento, entende? Em ter que você se abrir. Você dar tua aula, mas a aula ela não é uma coisa só tua ela é coletiva, não é tua. Não a tua aula... Como é que você parte do Tema Gerador? Da pesquisa do Tema Gerador você define os conhecimentos a serem trabalhados a partir disso (GE 1).

Os professores diziam e o vestibular?

A nota foi um entrave, porque o povo resistente dizia que tinha que ter a nota e o conteúdo do currículo. Os professores diziam e o vestibular? Trabalhar com a fala não garante os conteúdos do currículo. Porque eles

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tinham dificuldade em ver os conteúdos do currículo, esse era o problema. Então, a demanda nossa era, conseguir perceber que o currículo preestabelecido estava na fala também, às vezes, com uma outra roupagem, um pouco mais aprofundado, mas ele aparecia. Então, a questão do currículo, que nem todos os conteúdos apareciam, e os professores cobravam que tinha que aparecer todos os conteúdos. A questão da nota. Como é que eu vou saber se o aluno sabe ou não sabe sem ter a nota como parâmetro para eles? Alguns diziam que a avaliação descritiva não dava conta. Eram essas as principais resistências que vinham; a questão do vestibular era a fala principal, e a questão da avaliação e da nota. Tinha a dificuldade também das pessoas que diziam: eu não sei trabalhar desse jeito, eu não sei fazer. Não era uma resistência, era uma resistência no sentido do não saber fazer. Eu não sei trabalhar com a fala, eu não consigo enxergar ciência na fala, a matemática na fala, eu vou dar minhas quatro operações, os números inteiros, e negativos e raiz quadrada, eu não sei trabalhar isso na fala, eu não sei trabalhar com os três momentos pedagógicos. Então diziam abertamente que não sabiam. Às vezes, não é que não queriam. Eles diziam que não sabiam e da dificuldade que eles tinham. Daí a formação permanente estava sempre voltada para essas questões. A gente estava sempre voltando à formação, aprofundando o olhar para a docência, olhando para essas questões e olhando para área também. Muitos também não sabiam lidar com as perguntas que vinham dos alunos, porque instigava os alunos a participar, perguntar e isso também dava uma certa instabilidade para muitos professores lidar com tanta pergunta. Se dava mais voz para os alunos também, daí mais vez. E isso também para alguns causava certo temor. Será que eu vou conseguir controlar a turma agora com tantos direitos que os alunos têm? O controle era importante, alguns se sentiam ameaçados. Eu acredito assim, que quem dominava a área eram os que menos tinham dificuldade de dar conta desse processo. O

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professor que dominava a área, que entendia a área na sua profundidade, era o que mais conseguia trabalhar com Tema Gerador. Assim, até dizia que tinha dificuldade, mas o que menos era resistente, aquele pessoal mais tradicional ou digamos mais agarrado ao currículo e que não tinha tanto trânsito no geral da área eram os mais resistentes e os que mais tinham dificuldade em trabalhar e ver a área na fala ou os conteúdos na fala. Se você tem um pouco esse olhar, você se desprende um pouco das amarras e consegue transitar melhor por esse processo. A gente percebia que os professores que conseguiam fazer isso nas falas deles os alunos também retribuíam nesse sentido, de dizer como eles tinham aprendido com aquela aula, como aquela aula fazia diferença na vida deles (GE 2).

Para os professores narradores, apesar de todos os

problemas, as resistências, conflitos e posterior perda das eleições municipais e, consequentemente, perda da direção da Secretaria Municipal de Educação, aconteceram avanços significativos com a implementação da proposta educativa pautada nos princípios do pensamento de Paulo Freire. Para elas, após os oito anos de uma educação popular eram visíveis as mudanças efetivadas.

Pessoas que ergueram a cabeça

Eram pessoas, eram outros seres humanos. Se tornaram pessoas críticas, pessoas que ergueram a cabeça. Geralmente, a condição da gente como trabalhador filho de trabalhador desde criança é estar sempre de joelhos diante da autoridade. As pessoas passaram a se apropriar do conhecimento e fazer debates, ser provocativas, ser propositivas. Um grande número de pessoas se tornou lideranças nas comunidades, né? Se tornaram lideranças sindicais (GE 1).

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Nosso grande ganho foi levar os professores para a comunidade, desvelar a realidade

Que realidade era essa? Que você entra dentro de uma sala de aula, faz a matrícula das crianças, matrícula, olha a fichinha deles, recebe eles ali. No portão de entrada, dá um bom dia, uma boa tarde para a mãe, pega a sacolinha, guarda, se o bebê gostou, se ele não gostou, azar, a sacola vai ficar pendurada ali. Esta relação nós queríamos acabar com ela. Os brinquedos não tinham acesso, eram todas as prateleiras altas, a criança não tinha muito acesso. Quer dizer, vamos discutir essa criança, entende? Então, nós não chegamos assim, vamos trabalhar! Isso é Tema Gerador. Isso é olhar para a realidade. Isso é a pesquisa interna da sala de aula. Nós temos que mudar esse espaço, de compreensão, de organização dela, mas compreender quem é essa criança lá fora. Teve vários espaços que a gente sentia que faltava um pouquinho de ânimo, vontade, compromisso também. Mas nós tínhamos alguns espaços que fazia com que a gente olhasse para as professoras, e dissesse: poxa! Essa professora sim, ela está inteira dentro do trabalho, ela consegue ouvir a criança do berçário (GE 3).

Contribuiu muito para nossa formação

Bom! A gente diz que a nossa formação dava no mínimo um doutorado e um mestrado para cada uma de tanta coisa que a gente leu, que a gente estudou, que a gente discutiu, que a gente escreveu, e que a gente organizou enquanto processo, encaminhamento. Hoje isso dá um moral para a equipe. Eu digo a equipe como um todo a gente sai qualificado, a gente sai qualificado para tocar questões pedagógicas que até então a equipe não tinha. Eu mesma hoje aqui como professora da universidade procuro trabalhar as minhas aulas nos três momentos pedagógicos não sei mais não ser assim. Não sei mais trabalhar sem dialogar com o aluno, sem perceber onde

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ele está, o que ele percebe o que ele não percebe, sem relacionar aquilo com o cotidiano com a prática. Não sei mais não fazer isso. Isso já incorporou em mim. Eu não sei mais discutir uma questão sem olhar para a questão sociológica, filosófica, psicológica, entender da questão. Então, a equipe ela ganhou uma bagagem de fundamentação com isso também e que a gente traz para a vida profissional. Os colegas nas outras áreas que eles estão, a gente na área que a gente está (GE 2).

Ficou esse olhar mais pedagógico, mais inclusivo, mais democrático na escola

Da secretaria e da escola, um dos grandes avanços da escola e que hoje a maioria cobra dessa administração é o trabalho coletivo. Inclusive, apareceu numa pesquisa do Senac, encomendada pela educação, o quanto os professores têm saudades dos momentos de estudo e planejamento coletivo e o quanto a troca entre os pares faz falta, então acho que isso foi um avanço. A questão da interdisciplinaridade, não que seja uma interdisciplinaridade total, mas fragmentária de poder dialogar com dois ou três colegas, mas já é um avanço. Isso a rede coloca como uma falta a questão do trabalho coletivo, a importância do estudo e planejamento coletivo a rede coloca como uma falta. Hoje, os professores do município eles têm mais fundamentação para discutir as coisas, mais bagagem, mais argumentação. O pessoal falava: os professores do município discutem eles falam, eles argumentam, o olhar para a criança está diferente. Têm-se um olhar mais pedagógico. No trabalho, hoje dificilmente um professor pega o livro didático e segue o livro didático de cabo a rabo na sala de aula. Você não vê mais isso. Não se têm mais o Tema Gerador, mas o pessoal tenta trabalhar alguma temática, agora a partir dos projetos, fazer alguma atividade diferente. Claro que sempre tem os que ainda... Mas, a maioria não consegue mais ficar isolada olhando só para o livro didático sem

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pensar um diferencial, a importância da inclusão dos alunos, do olhar diferenciado para os alunos. Até na questão dos avanços e repetências, a gente sempre tem todo um critério na hora de ver se o aluno de fato no final do ano fica ou não fica. Porque a gente olha tudo, e durante o ano a gente procura olhar o todo do aluno, isso ficou, esse olhar mais pedagógico, mais inclusivo, mais democrático na escola apesar dos espaços terem sido abortados, né?, mas ainda ficou para a grande maioria dos professores. Isso é um avanço, que eu creio que, não é nem um avanço da administração que passou é um avanço para a classe. O grande sonho, a grande meta é que esses processos democráticos consigam implementar nos professores essa... Essa esperança que a gente possa ser um dia, ser livres para resistir às imposições que venham de fora e construir os princípios que a gente acredita. Muita coisa ficou. Na rede hoje, as pessoas não aceitam as coisas assim tão facilmente. As pessoas acabam discutindo, e a Secretaria tem uma certa dificuldade, às vezes, para colocar as coisas porque as pessoas discutem, cobram, argumentam, justificam. Querem saber o porquê? Qual é o objetivo? Qual é a validade de tal mudança? Isso para mim é um avanço! (GE 2).

Pelas entrevistas que realizamos com gestores que

coordenaram a Secretaria Municipal de Educação de Chapecó de 1997 a 2004, pudemos perceber que muitos dos princípios educacionais preconizados por Paulo Freire foram implementados ou aconteceram tentativas de sua implementação. Nesse sentido, buscou-se nessa experiência de gestão educacional: o caráter político da prática educacional; a participação ativa da comunidade escolar na gestão pedagógica e administrativa da escola pública para o fortalecimento de sua autonomia; a organização de projetos político-pedagógicos; a construção de propostas curriculares interdisciplinares que privilegiassem a dialogicidade e a práxis educacional (FREIRE, 1991).

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Propostas educacionais... 41

Propostas de gestão democrática baseadas na pedagogia freireana tornaram-se referências, ganhando a dimensão de políticas educacionais fazendo o enfrentamento às propostas pedagógicas hegemônicas.

Embora tenham ocorrido mudanças significativas na organização e prática da educação no município de Chapecó, as disputas pelas diferentes propostas continuaram presentes durante toda a administração da Frente Popular, disputas essas que se acirraram nas eleições de 2004, quando todo o projeto educativo foi sendo aos poucos desorganizado, desestabilizado pelo antigo grupo político que voltou a administrar o município.

Apesar de todos os esforços contrários, a proposta educacional pautada no pensamento freireano implementada no município de Chapecó, acreditamos, como a GE 2 que

[...] o grande sonho, a grande meta é que esses processos democráticos eles consigam implementar nos professores essa... Essa esperança que a gente possa ser um dia, seres livres para resistir às imposições que venham de fora e construir os princípios que a gente acredita. Muita coisa ficou.

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44 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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NARRATIVA ORAL de Luiz Carlos Sordi. Chapecó, 6 de dezembro de 2011.

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Propostas educacionais... 45

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II

APREENDER E ENSINAR A REALIDADE PARA

TRANSFORMÁ-LA: A PRÁTICA PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO POPULAR DE CHAPECÓ (SC)

Leoni Inês Balzan Schneider O presente capítulo tem especial significado, pois

como pedagoga – orientadora educacional – atuante na rede estadual, e alfabetizadora no ensino fundamental do município de Chapecó (SC), no percurso de mais de três décadas de trabalho com a educação pública, tenho convivência com os conflitos acerca dos movimentos e efeitos das práticas pedagógicas escolares. Em especial, a partir da convivência com a resistência de muitos colegas atuantes na rede estadual de ensino, quanto à participação dos pais, mães e educandos nas tomadas de decisões cotidianas da escola. O que também foi evidenciado, por intermédio de pesquisa realizada na pós-graduação (especialização), intitulada: “A participação da família na escola”. Situação semelhante também percebida na implementação de estratégias que permitiam maior participação dos educandos na construção do conhecimento, resultado de projetos político-pedagógicos construídos pelos próprios educadores. Diante de tais resistências, passei a questionar as causas da minha crença na participação dos

Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste (UNIJUÍ) de Ijuí /RS. Atuou como alfabetizadora na rede municipal de ensino do município de Chapecó e na rede estadual, como professora orientadora coordenou o Ensino Médio Inovador em escola da rede estadual de ensino Escola Básica Professor Nelson Horostecki.

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educandos na vida escolar. Encontrei indicativos na minha participação sindical e nos estudos da pós-graduação.

Ao trabalhar na proposta de educação com participação popular na rede municipal de educação, caracterizada por princípios anteriormente defendidos nas lutas pela qualidade na educação pública, e perceber, novamente, a presença de “certa resistência” quanto à participação da comunidade escolar, é que se tornou pertinente investigar sobre as inovações pedagógicas, no trato com os diferentes saberes, incorporadas pelos educadores e educadoras nas suas práticas pedagógicas escolares, a partir da vigência da proposta de Educação Popular na rede municipal de Chapecó (SC), no período de 1997 a 2004.

Buscou-se descrever e analisar a Proposta Teórico-Prática de Educação Popular do município de Chapecó e o conjunto de elementos que possibilitaram sua construção e pela sistematização das visões de duas comunidades escolares – pais, mães, educadores – a verificação de quais inovações1 que foram introduzidas nas práticas pedagógicas, e como se deu a participação das comunidades no processo educativo que propiciou tais inovações. Ante as

1 Os estudos de Cunha (2006, p. 10) que tratam da inovação na prática pedagógica universitária, informam que “[...] as inovações que adivinhamos próximas se materializam pelo reconhecimento de formas alternativas de saberes e experiências, nas quais imbricam objetividade e subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática, cultura e natureza, anulando dicotomias e procurando gerar novos conhecimentos mediante novas práticas”. Trazendo suas discussões para a escola pública de ensino fundamental como da proposta de educação popular em estudo, entendemos que a partir da implementação da própria proposta de educação popular constituída pela pesquisa participante, Tema Gerador e avaliação processual, como uma introdução a inovação. Porém, desse contexto definimos que a inovação na prática pedagógica é possibilitada pela discussão, estudo, troca de experiências e reflexões coletivas, intermediadas pela teoria, sobre a prática educativa.

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características do texto2 que ora se apresenta, priorizamos tratar de três pontos dos acima citados, sendo: o conjunto de elementos que possibilitaram a eleição de uma administração com participação popular, a construção da proposta de educação e as inovações pedagógicas percebidas pelas educadoras da amostra pesquisada.

As técnicas utilizadas para busca de informações foram de forma qualitativa e por meio de: pesquisa documental e bibliográfica; entrevistas, mediante roteiro semiestruturado com membros da Secretaria Municipal de Educação, lideranças dos sindicatos de oposição, pais, mães, educadores (gravadas e transcritas); observação sistemática e vivências da pesquisadora, isto é, participação em encontros, cursos e planejamentos coletivos no período de vigência da proposta em estudo, na forma de diário de campo. Como campo empírico de referência, tornaram-se campo de estudo – a Escola Básica Municipal André Antônio Marafon e a Escola Básica Municipal Diogo Alves da Silva. A maioria das comunidades escolares atendidas pela Rede Municipal de ensino Fundamental são formadas por posseiros, pequenos agricultores, desempregados e trabalhadores autônomos desprovidos de bens físicos e sem perspectivas de participação sócio-política.

A análise da pesquisa é fundamentada nas produções de Ilse Scherer-Warren, Paulo Freire, Antonio Gramsci e Lev Vigotski e também de estudiosos que fizeram de Chapecó e região seu objeto de estudo, como Odilon Luiz Poli e Pedro Francisco Uczai.

2 A pesquisa na íntegra intitulada “Apreender e ensinar a realidade para transformá-la: A prática pedagógica na educação popular de Chapecó – SC”, disponíveis na UNIJUÍ e na Unochapecó.

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A CONSTITUIÇÃO DE UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POPULAR EM CHAPECÓ

Para compreender como um conjunto de forças sociais foi modificando o equilíbrio das relações de poder a ponto de vencer as forças políticas que dirigiram o município de Chapecó, em seus oitenta anos de história, torna-se oportuno evidenciar as ações e os discursos que influenciaram, desafiaram e aglutinaram pessoas, construindo uma “vontade coletiva” (GRAMSCI, 1974, p. 252-253) desencadeando os Movimentos Sociais de Chapecó e região e elegendo uma administração pública municipal aberta à participação popular. Tomamos como ponto de referência os Movimentos Sociais ocorridos no oeste catarinense, no período de 1978-1987, que assumiram na sua estruturação uma lógica de Educação Popular, lógica esta que demanda explicitação, pois, segundo Pinto e Duque-Arrazola (1984, p. 87-88),

[...] não existe nem pode existir um significado universal para a expressão “educação popular”, sua significação deverá ser precisada a partir de suas implicações e determinações políticas.

De acordo com estudos de Poli (1995) e de Uczai

(2002), compreende-se que a Educação Popular dos Movimentos Sociais do Oeste Catarinense contribuiu no desenvolvimento da vontade coletiva, uma vez que estes Movimentos são caracterizados como “novos movimentos sociais”3, constituindo-se

3 Ao nos referirmos a “novos movimentos sociais” (NMS), que doravante mencionaremos neste estudo, o faremos referenciando-se especialmente nos escritos de Scherer-Warren, Redes de movimentos sociais (1993). Para a autora, é significativo estudar o poder transformador destes Movimentos, embora tenham surgido no país e fora dele, em pequeno número. Os NMS apresentam “suas especificidades

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[...] a partir do presente, pelo redimensionamento das experiências cotidianas, além de uma ligação com um movimento cultural mais amplo que busca romper com todas as formas de autoritarismo e opressão [...] (POLI, 1995, p. 94-95).

E pela adesão a discursos que apelam ao

“compromisso político e ao objetivo de transformação social” (TORRES, 1988, p. 12).

Esta é uma educação que tem como característica ser uma prática social que se propõe a contribuir para que a sociedade se construa, por meio do princípio da coletividade, caracterizado pela participação e trabalho com os diferentes saberes de um ponto de vista dialético, pois,

[...] ao mesmo tempo que contribui ao fortalecimento de estratégias organizativas, também serve para questioná-

dependendo das situações estruturais e conjunturais onde se organizam” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 51). Estes Movimentos têm como utopia a corrosão das práticas autoritárias ocorrentes tanto no Estado quanto na sociedade civil. Ainda, segundo a autora, os cientistas sociais, estudiosos dos NMS, dizem que estes “compartilham da ideologia do antiautorismo e são pela descentralização do poder” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 51). Os NMS têm como parte de sua ideologia (projeto) que a “[...] ação transformadora da sociedade civil sobre si mesma é pelo menos tão fundamental quanto aquelas empreendidas a partir do aparelho do Estado [...]” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 53), o que indicaria o processo de criação de um novo modelo cultural. Nesse sentido, lutam pela redefinição da cidadania, e apontam para novas formas de relações societárias, definidas como: “[...] reapropriação política do sentido das relações comunitárias. Estes movimentos crêem no poder da força comunitária para a constituição histórica do grupo”. (SCHERER-WARREN, 1993, p. 55). Porém, Scherer-Warren (1993, p. 60) avalia que a redefinição da cidadania, num sentido amplo, envolve: “[...] a deslegitimação de decisões tomadas autoritariamente pelo Estado, o fortalecimento das relações comunitárias em seu sentido político, a forma de agir pela resistência ativa não-violenta, a tentativa de democratização das práticas cotidianas e a busca de autonomias relativas”.

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los, enriquecê-los, realimentar-se em um processo muito dinâmico (PONTUAL, 2002, p. 1).

O município de Chapecó tem sua economia centrada

na agroindústria, situa-se na região oeste de Santa Catarina, Sul do Brasil, e tem sua história política/econômica/social marcada pela atuação de vários Movimentos Sociais. Dentre eles, destacam-se quatro (que se constituíram como tais, no período de 1978 a 1987): o Movimento dos Sem-terra (MST), Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) 4 , Movimento dos Atingidos pelas Barragens do Rio Uruguai (MAB), e Movimento de Oposições Sindicais. De acordo com Poli (1995, p. 2), algumas características chamam atenção no processo de surgimento e estruturação destes Movimentos:

O fato de surgirem quase simultaneamente, num espaço muito curto de tempo, envolvendo a mesma base social: pequenos produtores rurais 5 , cujo modo de vida e de produção guardava muitas características (recriadas) do modelo original camponês. Também chama atenção, a sua grande capacidade de organização interna e de articulação com outros segmentos da sociedade abrangente.

4 Porém, desde marco de 2004, o movimento denomina-se: Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). A deliberação da nova nomenclatura ocorreu a partir do entendimento de unificar as lutas das mulheres trabalhadoras, além das agricultoras, também, as arrendatárias, meeiras, pescadoras artesanais e catadoras de coco. A mudança ocorreu após intenso processo de estudo com dirigentes e grupos de base de 19 estados brasileiros efetivada no congresso nacional de Consolidação do Movimento de Mulheres Camponesas, realizado em Brasília. 5 Expressão utilizada pelo autor. Para expressar os mesmos atores, no decorrer deste estudo, utilizamos a expressão “agricultura familiar de pequena propriedade”, uma vez que a produção familiar assumiu características próprias de Sul a Norte do país.

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Extrapolando os limites da realidade local, os Movimentos difundiam sua influência por meio de lideranças projetadas para outros estados, inclusive em nível nacional. A maioria dos estudos dedicados à compreensão destes Movimentos (POLI, 1995; UCZAI, 1992; ALONSO, 1994) reconhece existir associações entre sua origem e a crise provocada na produção agrícola tradicional da região pelo processo de modernização da agricultura 6 , bem como ao trabalho desenvolvido pelos setores da Igreja Católica Progressista, especialmente pela Diocese de Chapecó, iniciado na década de 1970.

Na intenção de evidenciar as forças que desarticularam a política vigente no início da década de 1980, torna-se oportuno registrar a atuação do líder religioso Dom José Gomes, Bispo Diocesano, que assumiu a Diocese de Chapecó num momento histórico marcado por um profundo sentimento de renovação da Igreja, no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência de Medellín (1968). A partir da Conferência de Medellín, houve um avanço das ideias de renovação do Concílio Vaticano II, no sentido da Igreja Latino-americana assumir um compromisso em dar voz e vez aos oprimidos, configurando o que ficou conhecido na América Latina como Teologia da Libertação, cuja inserção junto às classes populares passou a

6 A modernização da agricultura proposta pela agroindústria implicou abertura de linhas de crédito bancário tornadas acessíveis a agricultura familiar de pequena propriedade, uso mais intensivo de sementes selecionadas, utilização de insumos de origem industrial, mecanização agrícola e instalações de novos e modernos equipamentos. Bem como na exigência de qualidade dos produtos e das expectativas de produtividade, inviabilizando a continuidade das formas tradicionais de produção. Com o aumento dos custos da produção via industrialização, ao mesmo tempo que os preços da venda dos suínos experimentavam uma tendência de queda, na lógica da modernização, diminuía os ganhos unitários do produto, que deveriam ser compensados pelos ganhos de produtividade maior, segundo as agroindústrias.

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estimular a organização e também a difundir uma visão de mundo calcada no igualitarismo comunitário e na ênfase à participação popular. Adotou uma metodologia que tinha como princípio básico a formação de lideranças, desburocratizar e desierarquizar a igreja. A tônica da formação centra-se na organização de pequenos grupos, em que a paróquia “[...] deixa de ser uma comunidade para se transformar em uma confederação de comunidades. A Igreja reconheceu a importância da mulher e dos leigos na comunidade” (UCZAI; BRUGNERA; MARCON, 2002, p. 148).

Ações desta natureza “semeadas” entre os “simples” para usar expressões gramscianas é que podem ter contribuído decisivamente para a construção de uma hegemonia que, segundo este autor, corresponde à direção “intelectual e moral”, no caso estudado, dos Movimentos em construção. Do entendimento que se tem do pensamento de Gramsci, as lideranças pastorais da Igreja Católica atuaram tanto para dar direção, quanto para viabilizar aos Movimentos Sociais a sua organização, para tornarem-se, eles próprios (coletivos sociais), os intelectuais orgânicos dos setores “subordinados” da população. O trabalho destes intelectuais é “alargado” quando passam a construir a própria hegemonia política, quando criam uma frente popular e chegam ao governo de um município. Nesta condição, além de dar direção aos processos sociais locais, propõem-se a contribuir para um possível progresso intelectual e político do povo e não apenas dos coletivos integrantes da frente popular.

Acreditamos, também, que a atitude de Dom José, de estar presente entre o povo, como um bom ouvinte de seus problemas cotidianos, bem como nas orações rotineiras em conciliar evangelho com uma visão crítica da vida do povo, além de despertar para seus valores, provocou as comunidades para que assumissem as situações concretas e

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procurassem os meios de resolvê-las. A metodologia educativa do educador brasileiro Paulo Freire, que mais tarde passou a fundamentar a Proposta de Educação Popular do município de Chapecó, segundo Mercedes Blanquer 7 a Zimmer e Tedesco (2002, p. 86), é percebida na orientação dos trabalhos pastorais da Diocese de Chapecó:

É em cima das experiências que a gente aprende. Então essa metodologia de Paulo Freire que dizia que o saber vai se construindo com a prática, olhando a prática é que a gente vai avançando. Então o nosso objetivo era isso: troca de experiências. Em cima de troca de experiências, aí se avaliava o que era positivo, o que tinha sido falho. E, aí, em cima disso, se construíam novas teorias pra poder avançar no processo de educação popular.

Mas esta nova metodologia, que propunha superar a

dicotomia entre rezar e agir dos fiéis cristãos, não passou despercebida pelos participantes dos grupos de reflexão nem à sociedade em geral, não habituados a juntar fé e ação.

No caso em estudo, o pastorado não é conivente com o Estado, faz frente às suas políticas quando “reúne e conduz” o povo por meio das Comunidades Eclesiais de Base para resolver problemas, quando mostra sua preocupação com a autonomia do “rebanho”. Em Chapecó, este pastorado foi acolhido e encontrou condições para expandir-se principalmente na área rural.

7 Professora universitária no campo da teologia e da Bíblia, atuante na região episcopal do Ipiranga (SP). Trabalhou na Rede Bíblica Latino Americana e Caribenha por 11 anos, foi agente de pastoral na Diocese de Chapecó para trabalhar nos grupos de reflexão, no período vigente. Fontes orais, disponíveis em Uczai (2002, p. 122).

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PASTORAIS E MOVIMENTO COMUNITÁRIO URBANO EM CHAPECÓ

Segundo Planos de Pastorais constantes no Arquivo

do Secretariado Diocesano de Chapecó, por nós consultados, o primeiro deles é datado de 1967, apresenta estratégias diferentes de planejamento em relação às pastorais anteriores. Passaram a ser planejados a partir do resultado das assembleias das pequenas comunidades das paróquias da Diocese8 e muda sua orientação, passando do assistencialismo para a promoção humana e conscientização. A partir de então, a Igreja Diocesana se fez presente em vários conflitos e tensões da sociedade. Dentre esses conflitos, podemos destacar entre agricultores e índios, no posto Indígena Xapecó (em Xanxerê); luta por melhores preços dos suínos; aves; produtos agrícolas; e luta por indenização justa aos atingidos por barragens. Referente às resistências que a Igreja enfrentou, foi nesse período (a partir de 1978) que muitos católicos e alguns padres da Diocese que já não vinham concordando com uma postura denominada profética reagiram para que a Igreja não se envolvesse nas questões sociais. Segundo registros, “dois projetos da Igreja conviviam lado a lado” (p. 7).

No meio urbano as primeiras tentativas de organização popular surgiram também no seio da Igreja, denominada Pastoral Operária, iniciadas em 1981 em que alguns chapecoenses participaram do primeiro encontro da Pastoral Operária na cidade de Lages (SC). Essa Pastoral visava discutir uma nova alternativa sindical para superar o quadro no qual se encontravam os operários e seus

8 A Diocese de Chapecó foi instalada em 26 de abril de 1959, sua abrangência geográfica é de 15.663,07 km2, atendendo cerca de oitenta municípios. A Diocese tem 41 paróquias, organizada em dez regiões pastorais, atendendo uma população aproximada de setecentos mil habitantes.

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sindicatos. Já na década de 1970, um grupo de religiosas, criaram o Grupo Fonte que passaram a discutir com mulheres de alguns bairros de Chapecó problemas por elas vivenciados, além de realizarem cultos religiosos. Em meados da década de 1980, organizaram-se para obter escolas, creches, segurança e pavimentação, com exceção dos servidores públicos federais e da rede estadual que ultrapassavam essas reivindicações. O grupo, que contava também com formação, desenvolveu lideranças de mulheres, atualmente atuantes nas comunidades e sindicatos, como o das Empregadas Domésticas (SITRADON). Encontramos em Chapecó, organizadas e em funcionamento, associações como da agricultura familiar de pequena propriedade, a Associação dos Produtores Feirantes de Chapecó (APROFEC) e Associação dos Pequenos agricultores do Oeste Catarinense (APACO) instituídas a partir dos trabalhos pastorais.

Percebemos a atuação da Igreja Católica no meio urbano, no final da década de 1970, na intenção de influenciar a organização do Movimento Comunitário, que se deu como forma de se contrapor ao Estado que queria controle sobre a Igreja. Cria os conselhos comunitários, naquele momento, tiveram sua origem atrelada ao poder público municipal e estadual que na interpretação do referido estudo evidencia completa desconsideração por parte do poder público em relação à organização comunitária, na linha do compromisso popular.

Ao assumir a administração municipal um governo com projeto popular, em 1997, que, por meio do orçamento participativo, propôs a participação da população para tomada de decisão sobre a destinação do recurso público, segundo entendimento das associações e conselhos,

[...] acharam que automaticamente estariam representados só moradores, mas a lógica é outra, os delegados e

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conselheiros são indicados em assembleia em que todos os moradores são convidados a participar” (LAJÚS; CUNHA, 2003, p. 39).

Assim, perceberam que não bastava serem lideranças

das associações, precisavam disputar propostas em plenárias. A CONTRIBUIÇÃO DO SINDICALISMO URBANO NAS ELEIÇÕES DE 1996

O primeiro sindicato criado no meio urbano de

Chapecó foi, em 1962, dos Trabalhadores da Construção Civil e do Setor Mobiliário, que por mais de trinta anos não conheceu uma eleição livre. Em 1971, criado o Sindicato dos Comerciários. O Sindicato da Alimentação, categoria mais expressiva da cidade, em 1979; e em 1982, final da primeira gestão, surgiu uma chapa de oposição sindical, sem êxito no pleito eleitoral. No mesmo ano, criado o Sindicato dos Bancários; em 1986, dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários e o dos Metalúrgicos. Em 1985, o Sindicato dos Hoteleiros, dos Condutores Autônomos de Veículos e da Saúde em 1984, e o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Chapecó e Região, em 1988. Na década de 1990, surgiu o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias do Vestuário, dos Trabalhadores em Postos de Combustível e Vigilantes em 1992. Os presidentes dos primeiros sindicatos criados em Chapecó e Região, participaram de cursos sobre sindicalismo nos Estados Unidos da América, organizados por órgãos do sindicalismo atrelado ao capital como o ICT/IADESIL 9 (ROSSARI,

9 O Instituto Cultural do Trabalho, assessorado pelo Instituto Americano de Desenvolvimento do Sindicalismo Livre, foram criados pelos EUA e Latino-Americanos para a formação de dirigentes de sindicatos defensores dos interesses das multinacionais. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, foi intensificada a Guerra Fria, e os Estados Unidos ampliaram

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1993, p. 15). Outras categorias, como a dos professores da rede estadual (SINTE) e a delegacia dos vigilantes, e Sindicato dos Trabalhadores em Água e Esgoto do Estado de Santa Catarina (SINTAE), representante dos funcionários da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN), inicialmente, organizaram-se em delegacias, posteriormente, em sindicatos estaduais com coordenadorias regionais ou municipais sediadas em Chapecó que não seguiram a citada orientação sindical.

Os avanços no campo dos sindicatos combativos, como dos bancários, dos Trabalhadores em Educação (SINTE), Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Chapecó e Região (SITESPM) e SINTAE da CASAN são produto de engajamento da militância de esquerda nas lutas organizadas (greves e passeatas da categoria) que surgiram nos últimos anos em Chapecó. O SITESPM foi criado como uma organização que se propôs a superar as reivindicações de cunho estritamente corporativo e organizar-se de forma independente. Praticamente todas as oposições sindicais organizadas até meados da década de 1980 junto aos trabalhadores do meio urbano ocorreram por iniciativa ou contribuição da militância política e sindical da Pastoral Operária, segundo lideranças sindicais entrevistadas. Para essas lideranças, vários foram os fatores que contribuíram na vitória de um projeto popular na administração pública municipal de Chapecó, como: o trabalho de politização da própria Igreja, o êxodo rural, ou filho do trabalhador rural que vinha para a cidade, por terem uma discussão a partir dos grupos de reflexão de base se identificavam com uma visão de sociedade menos

o controle político na América Latina. Além da repressão da ditadura militar brasileira, foi implementado pela Central Intelligence Agency (CIA) uma política de infiltração de falsos dirigentes sindicais, objetivando acabar com os sindicatos revolucionários.

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conservadora; também, o enfraquecimento de agremiações partidárias, que historicamente representam as elites do país.

De um modo geral, a Igreja contribuiu com os diversos Movimentos Sociais no meio rural e urbano (embora com menor desenvoltura), para a tomada de consciência dos seus problemas, da organização e desenvolvimento das lutas, bem como na resolução de dificuldades internas desses movimentos até constituírem-se autônomos. A contribuição veio por meio de estratégias, como: cursos de formação de lideranças, prestação de assessoria e subsídios com dados e informações, leituras e atuação, caracterizadas por metodologia popular de cunho teórico participativo.

AS CONDIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POPULAR NO MUNICÍPIO

Escrever sobre uma proposta de Educação Popular

pressupõe investigar e evidenciar a presença desse popular, no caso, a atuação, a presença, o lugar ocupado pelos Movimentos Sociais na construção da referida proposta. É pertinente também questionar e perceber em que circunstâncias políticas, sociais e culturais ela se desenvolveu. Compreender ainda como os referidos Movimentos, aqueles com abrangência em âmbito nacional e outros mais pontuais como o sindicalismo urbano contribuíram para o rompimento com as amarras culturais da tradição, do colonialismo, para um revolucionar da cultura e para a democratização do ambiente em Chapecó. Não queremos correr o risco de, ao nos referirmos ao popular, tão logo acreditar que a consciência das pessoas ali envolvidas esteja desenvolvida a ponto de concretizar-se em práticas sociais características da Educação Popular.

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Da luta por sindicatos mais democráticos e do processo de construção dos Movimentos Sociais orientados por relações societárias (SCHERER-WARREN, 1993) geraram a possibilidade de mudança da política local vigente, a Educação Popular, segundo Luciane Maria Carminatti 10, subtraiu subsídios e se propôs a construir “[...] uma educação pro povo e mais... mais cara de povo, ou seja, com a possibilidade de ter cara de povo porque a gente se enxergava nos Movimentos”. A lógica que se pretendeu implantar na educação do município era caracterizada então pela participação e pelo trabalho com os diferentes saberes. Educadores entrevistados destacaram o papel e a atuação da equipe diretiva da Secretaria Municipal de Educação, juntamente com educadores que incorporaram a ideia da proposta educacional do município que viabilizasse a tomada de consciência e participação dos educadores e da comunidade escolar:

Acho que foi muito da equipe diretiva, foi muito dos professores que se incorporaram dessa construção e acredito que a maioria dos professores se envolveram na construção e não falo da Educação Popular só do Tema Gerador acho que é um conjunto, desde a questão da democratização a eleição pra diretor o regimento escolar, proposta pedagógica, o currículo escolar, o ciclo de formação a EJA, é construir a Educação Popular no sentido que o povo tenha controle sobre a educação que se faz, não vamos atribuir só a metodologia, não só o fim mas também ao processo. Nesse sentido nós tivemos um envolvimento significativo dos professores, que estiveram

10 CARMINATTI, Luciane Maria. Ocupou cargos de: diretora do ensino fundamental de janeiro de 1997 a março de 2000. Vereadora pelo partido dos trabalhadores (PT) no período de janeiro de 2000 a abril de 2002. Secretária da Educação da rede Municipal de ensino de Chapecó, de abril de 2002 a abril de 2004. Entrevista concedida à pesquisadora em 9 de março de 2005, Chapecó (SC).

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presentes debatendo, votando, todas as definições sempre foram aprovadas pela maioria. Nunca houve imposição, embora, a equipe diretiva da secretaria sempre tinha proposta, mas sempre teve o espaço pro debate e da votação (Lizeu Mazzioni, entrevista concedida à pesquisadora em 9 de março de 2005, Chapecó, SC).

A partir das entrevistas, podemos entender que a

atitude da Secretaria Municipal de Educação (SMED) foi de tornar sempre presentes os princípios da proposta de Educação Popular: trabalho coletivo, autonomia, democracia e cidadania então construídos com a comunidade escolar, e, quando em discussões com esta mesma comunidade, estes se faziam presentes para dar direção ao trabalho. E sempre que percebida a demanda vinda do coletivo dos educadores das escolas, a exemplo da elaboração do regimento da avaliação:

Quando os grupos começaram a dizer: vamos fazer o regimento porque tem problema de disciplina, o que a gente organizou? Fomos as nossas 126 11 teses que defendem a nossa proposta de trabalho é delas que vamos discutir a questão do regimento. Assim que a gente foi amarrando, nós sempre envolvemos muita gente. As coisas não eram soltas, agora nós vamos fazer isso, depois aquilo, uma coisa era articulada com outra (Liane Rogéria

11 As 126 teses que a educadora se refere foram elaboradas num processo de estudo e discussão político-pedagógica composta por mais de seiscentos delegados eleitos nos segmentos (pais, educandos, servidores e educadores) da rede municipal de ensino, além dos representantes das entidades afins. As teses foram organizadas em cinco temáticas: a) políticas públicas e financiamentos, b) gestão democrática e participação popular, c) conhecimento, realidade e aprendizagem, d) organização, estrutura e funcionamento da escola e e) avaliação, as quais definiram as diretrizes para a educação municipal que compuseram o Plano Municipal de Educação aprovada na segunda Conferência Municipal de Educação realizada de 1 a 3 de dezembro de 1999.

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Martini. Entrevista concedida à pesquisadora em 9 de março de 2004).

A entrevistada segue narrando como se dava a

participação da escola na construção coletiva de todas as ações curriculares:

Toda vez que nós íamos fazer uma conferência pra definir alguma coisa a escola fazia a discussão antes, então a gente tinha uma capacidade e um movimento e um volume de trabalho que tu não imagina o quanto foi isso. [...] Como numa conferência onde a gente envolveu 800 pessoas em pequenas plenárias. A Secretaria de Educação conseguia criar um movimento de participação.

Mas também revela os percalços percebidos em uma

construção curricular com participação popular e de perspectiva freireana, em que aponta alguns elementos motivadores das limitações percebidas pela SMED na prática educativa. Pois, a proposta popular de perspectiva freireana, construída na Rede Municipal de Chapecó, propõe ao educador outra dimensão curricular que envolve mudar, além de sua visão de escola, de homem, de mundo, e da construção do conhecimento, a forma de agir em relação à escola, aos pais e à vida escolar dos seus filhos. Também, construir com os educandos outra relação com a avaliação, não mais demonstrada por nota, mas descritiva. Até entender que na administração popular, os Movimentos Sociais têm visibilidade e passam a constituir lugar no currículo escolar, provocado pela metodologia do Tema Gerador. O Movimento Social tornou-se presença necessária na proposta de Educação Popular, percebida tanto pelas unidades escolares na condução de seus Temas Geradores, quanto pela Secretaria Municipal de Educação para estimular a escola a abrir-se, de fato, à participação da comunidade escolar. A SMED também recorreu ao conhecimento dos

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Movimentos para aprofundamentos sobre a conjuntura, organizações de místicas e participação em conferências municipais. Todos os entrevistados da SMED concordaram e apontaram diversos momentos em que o Movimento Social se fez presente, tanto na organização curricular quanto na prática pedagógica. Embora evidenciem a presença de relações solidárias, mas perpassadas por tensões entre as lideranças dos Movimentos Sociais e a Secretaria de Educação, pois alguns debates não foram travados porque o Movimento tem disputas pessoais, de ideias e de jeitos de construir uma sociedade transformadora.

Ainda que os Movimentos Sociais aqui tratados não tenham atuado mais diretamente na construção da referida proposta educativa, as entrevistas revelam que houve a necessidade, por parte da Secretaria Municipal de Educação, em construir uma relação horizontal de diálogo com os Movimentos Sociais. Processo que possibilitou tornarem-se conhecidos em sua organização, estrutura e ideário, à comunidade escolar.

Embora a ascensão de uma administração pública com inversão de prioridades administrativas e políticas tenha ocorrido, naquele momento, em apenas dois municípios do oeste catarinense 12 , houve a preocupação, por parte dos dirigentes administrativos municipais, em fazer um trabalho político que ultrapassasse os limites e as questões municipais; que implicasse também rever a concepção de mundo presente no social do município e arredores.

Neste sentido, encontramos subsídios em pensadores que tiveram como objeto de estudo processos sociais associados à luta por modificações e transformações em estruturas político-sociais, a exemplo de Gramsci. Para este autor, todos os homens são filósofos, pois expressam

12 Além de Chapecó, o município de Guaraciaba elegeu em 1996 uma administração popular, consequentemente, uma proposta de educação popular.

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em sua linguagem – senso comum, religião e folclore – uma concepção de mundo, uma filosofia espontânea. A filosofia especializada desempenha, contudo, um papel importante na superação da filosofia espontânea:

[...] a filosofia não tende a manter os <simples> na sua filosofia primitiva do senso comum, mas pelo contrário a conduzi-los a uma concepção superior da vida. Afirma o contato entre os <simples> e os intelectuais para construir um bloco-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massas e não só de escassos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1974, p. 40).

Ainda que não tenhamos encontrado registros, no

projeto popular de administração, sobre a intenção de um movimento de unificação de cultura, 13 os relatórios e a observação do trabalho desenvolvidos pelas secretarias da saúde, cultura, assistência social, esportes e educação nos possibilitam entender que, por intermédio de uma política intersetorial, desenvolviam-se ações conjuntas para o atendimento dos educandos e da população em geral. A fim de desvincular-se de uma política assistencialista e viabilizar ações que possibilitassem a construção de novos valores orientados pelos princípios da Educação Popular. A unificação de cultura e a construção de novos valores, expressos em palavras como inclusão e participação pelo projeto popular de administração e educação, não ocorriam com o sentido de uma colonização, mas de resgate daquilo que foi submetido e permaneceu “mudo” por um tempo. Neste sentido, a proposta administrativa da Frente Popular procurou fazer a recuperação dos modos de vida, dos valores dos setores

13 Expressão de Gramsci.

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populares, e “amarrar” teórica e pedagogicamente a dimensão da cultura14 com o educativo.

Com este entendimento e por meio da Educação Popular, não definida conceitualmente por si mesma, mas pela estratégia construída em cada local, coletivamente, onde o ambiente é “mestre do dirigente”, foi realizado um trabalho que buscava a unificação de cultura condizente com o que defendia Gramsci no seu tempo; pois para o pensador:

[...] cada acto histórico não pode ser realizado senão pelo <homem coletivo>, isto é, pressupõe a obtenção de uma unidade <cultural-social> pela qual uma multiplicidade de quereres desagregados, com heterogeneidade de fins, se unem em conjunto para um mesmo fim, na base de uma igual e comum concepção do mundo (geral e particular, transitoriamente actuante - por via emocional - ou permanente, pelo que a base intelectual se radica, se assimila e se vive de tal forma que pode tornar-se paixão). Já que assim acontece, surge importância da questão lingüística geral, ou seja, da obtenção colectiva de um mesmo <clima> cultural (GRAMSCI, 1974, p. 68).

É também o pensador italiano que vai dizer: “[...] a

filosofia da práxis15 não tende a manter os ‘simples’ na sua filosofia primitiva do senso comum mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior da vida” (GRAMSCI, 1974, p. 40); isto para um possível progresso intelectual das

14 O termo cultura aqui referido está na ótica do pensamento de Gramsci (1974, p. 28, nota IV), “[...] criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas <originais>. Significa também e especialmente difundir criticamente verdades já descobertas, <socializá-las> por assim dizer e fazer com que se tornem em bases de acções vitais, elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral”. 15 Em Gramsci (1974, p. 78), entende-se que se atinge a filosofia da práxis quando da igualdade entre filosofia e política, entre pensamento e ação. Tudo é político. A única filosofia é a história em acto, a própria vida.

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massas, e não somente de pequenos grupos intelectuais. O que Gramsci apresenta em seus escritos sobre a filosofia da práxis na relação com o ser humano converge, em sentido, com o sujeito por nós entendido, segundo o pensamento de Freire. Da mesma forma, há uma aproximação entre a vocação de ser mais, em Freire, com o significado de uma concepção superior da vida, em Gramsci.

No cenário político e social conferido pelo resultado do pleito eleitoral de outubro de 1996, e no intuito de reconstruir valores e relações sociais, ainda em período de transição das administrações municipais, educadores da rede municipal comprometidos com o novo projeto de administração e educação iniciaram um trabalho de sensibilização para a participação entre os profissionais das escolas, chamando-os para o debate e para a construção da educação da rede e das relações nas Unidades Escolares. Até final de 1996, os cargos de diretor de escola sempre foram ocupados por educadores, por vezes, alheios àquele espaço escolar, porém indicados e da confiança dos respectivos governos municipais. Portanto, a escolha das direções das escolas pelos próprios educadores não se deu sem disputas, pois as direções de então queriam permanecer nos cargos e um grupo de educadores, que mais tarde integrou a equipe diretiva, traçou critérios a serem observados para a escolha das direções escolares.

As então direções, juntamente com alguns educadores da Unochapecó, passaram a discutir os fundamentos filosóficos e epistemológicos do Projeto Político-Pedagógico da rede municipal, via fórum representativo com participação de todos os espaços educativos.

Com o diagnóstico da realidade do município e das situações das unidades escolares, começaram a discutir, em seminários, os rumos da educação com diversos setores sociais: universidade, sindicatos, Movimentos Sociais, entre

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outros. A proposta educativa encaminhada naquele momento foi da educação com participação popular, baseada na perspectiva freireana de educação.

A partir do entendimento, a Educação Popular da rede municipal de educação de Chapecó caracteriza-se como uma opção política, filosófica e pedagógica da concepção do materialismo histórico-dialético; e propõe a construção de uma nova práxis educacional comprometida com a transformação da realidade social, cultural e econômica vigente; pensadores como Freire e também Vigotski foram escolhidos para dar suporte teórico à orientação da proposta. Diversos estudiosos brasileiros, contemporâneos, contribuíram com seus conhecimentos, por meio de palestras e cursos, com a construção da proposta de educação popular e o processo de formação continuada em Chapecó: Miguel Arroyo, Irma Brunetto, João Pedro Stédile, Ana Maria de Oliveira Lopes, Rita Elizabet Durso Silva, Araci Catapan, César Benjamim, Lisete Gomes Arelaro, Antônio Fernando Gouvêa da Silva, Pedro Demo, Regina Leite Garcia, Gaundêncio Frigotto, Marta Pernambuco, Hilda Braga, Saionara Freitas Bastos, Demétrio Delizoicov, Bernardo Mançano Fernandes, Helena Dória Luccas de Oliveira, Luis Percival Lemes Britto, Madalena Klein, José Arbex, Pedro Pontual, Alípio Mário Dias, Michele Misse; o ex-ministro da Educação Cristovam Buarque e a senadora Ideli Salvatti, bem como educadores locais: Mônica Hass, Arlene Renk, Ione Inês Pinsson Slongo, Solange Alves Poli, Odilon Luiz Poli, Josimar de Aparecido Vieira, Rosa Maria Cominetti, Tânia Mara Zancanaro Pieczkowski, Juceli Morello Lovatto, Leonel Piovezana e outros. Na construção de uma proposta educativa de caráter popular, quando se coloca como urgência

[...] repensar a organização da escola, as relações sociais, a estrutura de poder, o sistema de avaliação, a organização

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do conhecimento, a educação em si, é necessário repensar a cultura, os valores e a concepção do professor (CHAPECÓ, 1998, p. 12). Os educadores da rede municipal de Chapecó

passaram a participar de um processo de formação continuada, que era desenvolvido durante o ano letivo. Segundo a proposta educativa estudada, o educador nela atuante deveria entender “[...] como o alfabetizando organiza mentalmente a caminhada da construção da leitura e da escrita” (CHAPECÓ, 1998, p. 16). À formação continuada, organizada a partir das necessidades da prática pedagógica escolar, inclusa na carga horária de trabalho, combinaram-se diversas atividades para a construção da ação-reflexão-ação, para refletir teoricamente sobre a prática pedagógica e social dos educadores, realizada por meio de seminários, feiras, debates, mobilizações, congressos, conferências, palestras, oficinas pedagógicas, visitas para conhecer experiências de outros locais e encontros mensais por área, sempre envolveram todos os educadores da rede. O planejamento entre educadores de cada coletivo das escolas realizava-se semanalmente, com assessoria da SMED em acompanhamento mais intenso no início de cada ano letivo. A formação continuada então desenvolvida caracterizava-se como grandes paradas para a reflexão e a reconstrução das práticas cotidianas. Na formação continuada, prioritariamente, estudava-se sobre a prática pedagógica, onde era percebida a aproximação entre o trato dado à prática pedagógica da rede municipal com o pensamento de Freire (1987, p. 72): “[...] a melhora da qualidade da educação implica a formação permanente dos educadores. E a formação permanente se funda na prática de analisar a prática”.

A pretensão de criar instrumentos de participação incluiu a conferência municipal de educação, ocorrida de 2 a

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7 de outubro de 1997, composta por representantes dos diversos segmentos da sociedade civil e das comunidades escolares, quando se aprovou a proposta do Sistema Municipal de Educação (CHAPECÓ, 2002, p. 13). Aprovação essa que possibilitou a reorganização legal de vários aspectos da Educação municipal, a exemplo, o Conselho Municipal de Educação. Esse passou a ser composto por membros eleitos pelos próprios pares. Definiram-se, também, as diretrizes para a educação do município na perspectiva da Educação com participação popular, que comportavam: a instituição dos conselhos escolares como órgãos máximos da escola, a eleição dos dirigentes de escolas e centros de educação infantil municipais, a realização de conferências de dois em dois anos, a elaboração do projeto político-pedagógico participativo da rede municipal e das unidades escolares, regimentos escolares, e a transparência nos mecanismos pedagógicos, administrativos e financeiros da proposta. Esta proposta educativa, que apresentou reorientação curricular com participação popular, pretendeu desenvolver novos valores e novas relações na prática educativa e social, ficou organizada em totalidades do conhecimento na educação de jovens e adultos, coletivos dos centros de educação infantil e, no ensino fundamental, ciclos de formação. A criação de espaços participativos na construção da proposta de Educação Popular de Chapecó nos reporta ao pensamento de Freire (2001 p. 73):

[...] a participação enquanto exercício de voz, de ter voz, de inferir, de decidir em certos níveis de poder, enquanto direito de cidadania se acha em relação direta, necessária, com a prática educativa progressista.

Fica evidente o papel desempenhado pelas

comunidades em processo de organização, na construção da proposta de Educação Popular.

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PERCEPÇÃO DAS EDUCADORAS SOBRE A PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POPULAR

Segundo nossa pesquisa, a partir das educadoras

entrevistadas, inicialmente a proposta promoveu movimento de desestabilização da educação, do papel de educadora. Junto a esse movimento estão coladas as primeiras impressões e apreensões deixadas pela proposta de Educação Popular.

Seus depoimentos revelam o conflito vivenciado na implantação. Esse conflito pôde se dar por vários motivos, alguns perceptíveis no corpo da pesquisa, como: as relações de poder, por tratar-se de um projeto político voltado às classes populares e, em especial, a influência da formação idealista dos educadores que, a partir do debate acerca da implementação dos ciclos de formação, perceberam tratar-se não somente da reorganização do espaço e tempo escolares, mas, especialmente, de outra concepção de educação, neste caso, da Educação Popular de perspectiva freireana. O debate inicial de implementação dos ciclos de formação com os educadores ocorreu, desde o segundo semestre de 1997, em dois seminários acompanhados pelo professor Miguel Arroyo. De fevereiro a setembro de 1998, as escolas desenvolveram os estudos e os debates necessários com a comunidade escolar e em reunião convocada para este fim. Os educadores de cada escola decidiram, a partir da decisão da maioria, pelos ciclos de formação. As poucas escolas que naquele momento mantiveram a decisão de continuar com a organização por seriação aderiram posteriormente. Mesmo com as escolas que desde o início das discussões aceitaram a implementação dos ciclos viveram conflitos na construção desse processo.

Mesmo as entrevistadas que não manifestaram seu sentimento de satisfação com a proposta de Educação Popular com palavras: “maravilhosa, boa, arrojada, corajosa

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e desafiadora”, foram unânimes em expressar sua satisfação quanto a proposta trabalhada. Justificam suas opiniões em torno da questão da realização na atuação da proposta, especialmente, devido ao envolvimento das crianças com o conhecimento, uma vez que o currículo era estruturado a partir de suas vivências, o que também viabiliza crescimento pessoal, profissional e social das educadoras. Portanto, dando especial destaque para a metodologia do Tema Gerador.

Algumas educadoras destacaram também que a proposta viabiliza à criança, ao adolescente ou ao adulto ser sujeito na sala de aula, é diferente de uma proposta tradicional-idealista de educação. Ela muda, inova também a postura e a atitude da educadora frente à comunidade. No dizer de algumas educadoras, o diferencial e o benefício da proposta estão também no trabalho coletivo. O que chama a atenção é que o trabalho coletivo é dito como o melhor da proposta pelas duas educadoras da área da educação física das respectivas escolas entrevistadas. Neste contexto de educação, em que a prática educativa prevê a mudança de visão de mundo e de escola, sua organização com espaços coletivos de reflexão e tomada de decisão, sobre a prática pedagógica, o coletivo é percebido como significativo. A importância atribuída ao trabalho coletivo representa a concretização de um de seus princípios, bem como da interdisciplinaridade, implícita ao Tema Gerador de perspectiva freireana. Ou seja, as educadoras partilham a construção curricular desde a pesquisa realizada na sala de aula ou na comunidade escolar, o planejamento do conteúdo das aulas, as ações e avaliações do realizado na prática pedagógica escolar. Para outras entrevistadas, a proposta educativa representa a concretização de algo já almejado por muitos dos educadores do município. As educadoras acreditam que a prática pedagógica orientada pela Educação Popular implica uma prática social transformadora da

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realidade social vigente. Também, identificam variáveis como a resistência às mudanças presentes na construção da mesma. Depoimentos evidenciam a resistência política da comunidade escolar, atitude que revela constante conflito entre um jeito de ser ou “vir sendo” da escola, e outro jeito que estava então sendo implantado. A exemplo, a avaliação, algumas educadoras apresentaram resistência à eliminação das notas nos ciclos mais avançados. Cabe perguntar: seria esse conflito apresentado pelas educadoras solucionável no processo, sem a necessidade de ser atribuída maior importância ou rever o procedimento?

No conjunto das respostas, as educadoras citam os elementos que dão destaque à proposta educativa: “a eleição para diretores”, “o conselho escolar em que os pais discutem o pedagógico”, “o ciclo de formação”, “o trabalho coletivo dos educadores”, a “formação continuada”, “o conteúdo significativo”, a “avaliação que não é classificatória, mas que vem na lógica de “onde vou interferir para que ela supere as dificuldades”. “O professor trabalhar como instigador do pensamento, porque tu tem que pensar e ir atrás e isso tá dentro da nossa proposta”. Também, “[...] a quebra de concepção e promover a escola, não só que vai ensinar a ler e escrever mas que vai fazer o sujeito crescer” (Educ. do 1º ano, 1º ciclo E. B. M. Diogo A. da Silva, 7 nov. 2004, Chapecó-SC). O Tema Gerador parte da realidade da criança; e por isso a educação se torna mais “humanizadora”. “Eu acho assim que pelo fato da gente estar partindo da realidade do aluno, do problema, essa proposta ela se torna mais humanizadora, porque nós estamos vendo o aluno com outro olhar agora” (Educ. do 1º ano, 1º ciclo da E. B. M. André A. Marafon, 4 nov. 2004, Chapecó-SC).

Sendo assim, certamente, a proposta de Educação Popular possibilitou maior aproximação, mudança de olhar em relação ao educando e à comunidade escolar e, pode-se

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dizer, é assim que se inicia o processo de humanização na perspectiva freireana. No entanto, para Freire (1987, p. 78),

[...] existir humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, exigir deles um novo pronunciar.

O que certamente é realizável a partir da mudança de

olhar na prática educativa por parte das educadoras. Porém, a humanização anunciada por Freire pressupõe, além da tomada de consciência, conscientização e práxis.

Todas as entrevistadas apontaram que a proposta de Educação Popular trouxe mudanças na prática pedagógica escolar. Algumas educadoras, que ocupam espaços de liderança quanto ao conhecimento ou assumem cargos de coordenação ou dirigentes no espaço escolar, destacam que a mudança na prática pedagógica efetivamente ocorreu em determinadas circunstâncias, isto é, estiveram em dependência da “concepção e da formação” das educadoras. Porém, afirmam:

[...] muita gente se construiu não tendo a concepção. Outros melhoraram porque a gente estudou muito, a gente leu muito. Então nós conseguimos muitas pessoas aliadas no processo (Vice-dir. da E. B. M. Diogo A. da Silva, 2 nov. 2004, Chapecó-SC).

A pesquisa de campo evidenciou o envolvimento e o

desenvolvimento da compreensão do social por parte das educadoras, que dizem ser este um acontecimento pessoal, realizante e significativo. Entendemos que, de uma prática pedagógica que tem sua construção curricular a partir da expressão da realidade vivida pela comunidade escolar e a organização do conhecimento via Tema Gerador, possibilita aos educandos e educadores se sentirem sujeitos, e promove a

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humanização nas relações de ensino-aprendizagem dos espaços escolares.

Embora evidenciados e constatados os ganhos do município, da rede, das escolas e dos envolvidos com a vivência da proposta de educação com participação popular por duas gestões, deparamo-nos com a descontinuidade das políticas públicas – em razão da alternância de partidos e, consequentemente, de suas orientações, dificultando a potencialização exitosa dessas orientações na educação. O fato de a administração com projeto popular não ter vencido as eleições e a explicação do porquê de não ter permanecido na direção da gestão municipal vão exigir reflexão mais profunda. Isto não significa que a proposta de educação e a proposta da gestão tenham sido ruins ou equivocadas. Esta questão merece um estudo novo. Muitas das entrevistas foram realizadas após o pleito eleitoral de 2004, cientes da descontinuidade da referida proposta. E oito anos são poucos para solidez de outra concepção de educação, sujeito e sociedade como a vivenciada na rede municipal de educação de Chapecó.

Novas pesquisas também poderão discutir os efeitos da atual problematização provocada, em especial, pelos educadores que efetivamente incorporaram a proposta de Educação Popular, diante da atual tendência de implementação de práticas educativas tradicionais.

Ao identificar e tentar compreender e registrar as visões de mundo que passaram a predominar no município de Chapecó a partir das iniciativas da Secretaria Municipal de Educação espera-se contribuir para a memória e valorização de um processo de participação e construção coletiva que não poderá, jamais, ser apagada da história desse município.

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III

A POLÍTICA EDUCACIONAL COMO POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Deise Imara Schilke

INTRODUÇÃO

O processo do qual se originou o presente texto teve

início em 1997, quando a rede municipal de ensino, através de um processo de construção coletiva, propôs-se a elaborar uma proposta político-pedagógica assumindo o compromisso com o desenvolvimento de uma política pública caracterizada pelo conceito de educação com participação popular, cujo aporte teórico principal é a concepção de Paulo Freire.

A partir de 1997, a educação na Rede Municipal de Ensino de Chapecó passou por um processo de transformação. Os princípios da Educação Popular passam a ser adotados como diretrizes pedagógicas e organizacionais da estrutura e gestão do ensino.

Implantou-se o denominado Movimento de Reorientação Curricular, que, por meio de debates com os

Graduada em pedagogia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (1997), mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009), área de concentração em Ensino e Formação de Professores. Tem experiência na área de Educação com ênfase em metodologias da Aprendizagem, Formação de Educadores, na construção de Projetos Político-Pedagógicos voltados para a Educação Crítica, atua nas séries iniciais do Ensino Fundamental, na área da alfabetização. Participou do Movimento de Reorientação Curricular desenvolvido pela Administração Popular em Chapecó (SC), no período de 1997 a 2004.

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educadores e a comunidade escolar, buscou mudanças em vários aspectos da educação municipal. Foram construídas diversas mudanças: a reorganização da estrutura de ensino de séries para Ciclos de Formação, a construção do currículo a partir da realidade de cada comunidade, a avaliação emancipatória como processo avaliativo, com conselhos de classe participativos, a Gestão Democrática, adotando a eleição dos dirigentes dos espaços educativos pela comunidade escolar, com a constituição de vários conselhos (conselhos escolares, conselho da alimentação escolar, conselho municipal de educação), a constituição do fórum dos dirigentes, a criação do programa de Educação de Jovens e Adultos, a elaboração do sistema municipal de ensino, a construção do plano municipal de educação e do regimento escolar unificado, entre outras.

Em relação ao currículo dos diversos níveis de ensino e à seleção dos conteúdos, a orientação que passou a ser adotada foi a de tomar o Tema Gerador como articulador desse processo, que, segundo Silva (2004)1 , se constitui como uma educação crítica que concebe o currículo como cerne da educação escolar, e enquanto fenômeno histórico, que resulta de forças sociais políticas e pedagógicas que expressa a organização dos saberes vinculados à construção de sujeitos sociais. Assim, o currículo é ação, é trajetória, é caminhada construída coletivamente e em cada realidade escolar, de forma diferenciada, sendo um processo dinâmico, sujeito às inúmeras influências, portanto, aberto e flexível.

1 Antônio Fernando Gouvêa da Silva é doutor em Educação. Professor da UFSCAR, em Sorocaba (SP), e professor colaborador do PPGECT/UFSC. Foi assessor pedagógico em diversas administrações populares em movimentos de reorientação curricular de perspectiva crítica, foi assessor pedagógico no período de 1997 a 2004, em Chapecó (SC).

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Nesse sentido, enquanto necessidade de reorganizar a prática dos educadores, sua formação político-pedagógica, reconstruir concepções, construir práticas de sala de aula coletivamente, foi organizada a formação continuada dos educadores, para compreender os diferentes sujeitos no seu contexto como também a aproximação dos diferentes olhares sobre a Educação Popular e reflexões a respeito da construção coletiva do ensino-aprendizagem, nos diferentes níveis de ensino.

Sob este prisma, buscou-se uma postura consciente do educador, no sentido de que ele mesmo perceba quais os fatores que interferem na organização de uma proposta educacional fundamentada na perspectiva dialética materialista, em que, conforme Severino (1986, p. 48),

[...] o próprio educador precisa romper com sua leitura superficial da sociedade, mergulhando num oceano de saberes: sociologia, economia, ciência política, filosofia e até mesmo linguística.

Dessa forma, o educador precisa perceber que é um

sujeito que busca a construção do conhecimento científico, mas que, ao mesmo tempo, está aprendendo sempre, para que a educação de fato esteja voltada à vida das pessoas.

Sua principal tarefa é a intervenção no processo de construção do conhecimento de modo deliberado e politicamente definido, comprometido com um projeto a serviço da humanização e da construção da cidadania.

No decorrer do presente texto, procuro organizar um caminho que apresenta os desafios e tensões que foram impulsionando este estudo na implantação dos princípios da educação popular e no movimento de reorientação curricular, com bases teóricas e concepções que definem as práticas e fornecem subsídios para desenvolver e planejar a prática educativa.

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Para Alves (2007), colocar no chão da escola esta política demandou o enfrentamento severo de questões tanto de ordem estrutural (tempo para planejamento e tomada de decisões pelo coletivo da escola), quanto pedagógicas, no sentido da reorganização do sistema por ciclos de formação, pautados pelo conceito de ciclo como tempo histórico de aprendizagem e desenvolvimento, para além do tempo cronológico de cada indivíduo; um tempo histórico da vida e de uma vida inserida num contexto, construída com os aportes de uma dada cultura.

Transformar implica em agir, agir conscientemente. Este trabalho busca analisar o caráter político dessa experiência como um todo, focando o aspecto participativo dos diferentes sujeitos. Identificar os pressupostos pedagógicos da proposta freireana de educação no município de Chapecó e implicações para as orientações didáticas e práticas para a Educação, como também comparar as bases pedagógicas frente aos modelos tradicionalmente assistidos na Educação. Isso requer um distanciamento epistemológico e problematizador dessa prática coletiva, no sentido de perceber os avanços construídos, suas contradições, seus desafios e quais elementos foram determinantes para a construção do processo histórico de uma política educacional sob esta perspectiva.

A realidade é um referencial fundamental para uma educação que busca a transformação para a humanização2. A educação transformadora, na concepção de Freire (1987, p. 85), organiza seus currículos através “[...] da devolução

2 A partir do pensamento de Freire (1987), entendemos humanização desde a tomada de consciência do homem sobre sua condição social no mundo, de oprimido. E, em diálogo com os outros homens e mulheres, reconhecerem-se inacabados e engajar-se na luta de sua libertação, constante processo de ser mais. Uma vez que a humanização ou desumanização acontece na história dos homens, a humanização implica práxis, isto é, reflexão e ação do homem sobre o mundo para transformá-lo.

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organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada”. O que se busca com esta concepção de trabalho é tomar a compreensão que a comunidade possui do seu cotidiano e acerca dos seus problemas, como ponto de partida, para o processo de construção do conhecimento.

Tomar a realidade na forma de um Tema Gerador, portanto, pressupõe uma concepção de mundo em que a transformação desta realidade é possível. Para isso torna-se necessário investigar essa realidade.

Não uma pesquisa de sujeito e objeto, mas uma pesquisa em que pesquisador e pesquisado se encontrem como sujeitos que dialogam sobre o mundo (BORDA, 1990). É tomar a realidade para a sua transformação, através dos princípios de uma educação popular em que esta esteja “ligada aos reais interesses populares” (VALE, 1996, p. 58).

Tendo a realidade como ponto de partida comum para as ações das diferentes disciplinas e do currículo, requer buscar, na interdisciplinaridade, o aporte para essa organização, concretizada através do trabalho coletivo que, construindo diálogos, vai elaborando relações e buscando as contribuições dos conhecimentos nas diferentes áreas sobre um tema. É uma “visão multifacetada da realidade” (DELIZOICOV; ZANETIC, 1993, p. 14).

Ao referir-me à especificidade desta experiência educativa, pretendo destacar que, entre outras fortes razões, a reflexão necessária para posterior análise desse processo requer identificar o lugar de onde essa se coloca como concepção crítica do conhecimento e do desenvolvimento histórico. Implica compreender que o homem e os processos sociais por ele construídos estão situados social e historicamente, o que impõe o princípio da realidade material, movendo-se dialeticamente.

Para Alves (2007), a sociedade e as relações que a caracterizam é produção histórica, resultante da produção

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humana articulada pelo trabalho, pela produção dos meios de vida material, pela produção das ideias como representações da realidade criada por essa mesma humanidade. A essência humana é “o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS, 1978, p. 13). Assumir esse princípio, implica o reconhecimento de que toda a vida social é essencialmente prática.

Tal política propunha um movimento de reorientação curricular, com a organização de processos pedagógicos fortemente articulados com a ideia e a prática de uma escola comprometida com a comunidade na qual se insere. Uma escola que se organiza a partir da participação efetiva de professores, alunos, pais e mães em Conselhos Escolares, instâncias decisórias em âmbito escolar, eleitas por seus pares, assim como em plenárias para avaliação do processo pedagógico da escola. Essa escola busca incorporar o pensar dessas comunidades, as significações construídas no seu cotidiano para serem colhidas, estudadas, compreendidas e transformadas em conteúdo mediador de novas interpretações de mundo, como propõe a pedagogia da libertação assumida pela proposta educacional.

A DEMOCRACIA SENDO CONSTRUÍDA PELA PARTICIPAÇÃO

Uma das primeiras medidas para a estruturação da

Educação em Chapecó surgiu justamente do seio da participação popular: o Sistema Municipal de Educação surgiu como resultado da 1ª Conferência Municipal de Educação, espaço de ampla participação popular, debate e diálogo entre sociedade civil e poder público.

O Sistema Municipal de Educação representou a integração e a autonomia entre as instituições e organismos envolvidos na Educação Pública do município. Isso significa que ele passou a compreender as principais instâncias

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políticas e burocráticas da educação em nível municipal, integrando Secretaria Municipal de Educação, Conselho Municipal de Educação e as instituições de ensino mantidas pelo poder público.

O Conselho Municipal de Educação surge como um ator imprescindível dentre as instituições participativas, pois se estabelece como

[...] órgão normativo, consultivo, jurisdicional, de assessoramento, com a finalidade de deliberar sobre matéria relacionada ao ensino na forma de legislação pertinente, e fiscalizador do Sistema Municipal de Ensino.

Em outras palavras, o Conselho Municipal de

Educação insere-se no Sistema Municipal de Educação como instância efetiva e constante de controle social.

Para além do controle social, o Conselho estava inserido numa ampla rede de instituições participativas, nas quais a sociedade civil desempenha papel protagonista, em diálogo e em construção coletiva com o poder público. É justamente essa rede de participação que fez o elo entre Educação e democracia em Chapecó, conferindo uma experiência de gestão democrática da educação e da prática democrática como processo educativo.

Além do próprio Conselho, que era composto por conselheiros eleitos, representando a comunidade escolar, outros espaços fundamentais de trânsito, partilha e diálogo entre população e poder público foram estabelecidos na formação da relação Educação-Democracia, como o Orçamento Participativo3.

3 Este programa permite a decisão e fiscalização da população sobre as ações da Prefeitura Municipal. Através dele, a população pode decidir suas prioridades, e a administração realizar as obras que realmente são necessárias em cada comunidade, mais de dez mil pessoas participam anualmente da construção do OP, o que representa 7,5% da população. As decisões são tomadas em Assembleias Regionais e Plenárias temáticas

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Diante disso, podemos trabalhar o conceito de gestão democrática a partir do aspecto teórico, ou a partir da prática de gestão democrática, na qual a participação das pessoas acontece em diferentes espaços de organização, reflexão e decisão. Paro (2008, p. 16) destaca que a “gestão democrática deve implicar, necessariamente, a participação da comunidade”.

Para isso, no entanto, torna-se necessário precisar melhor o conceito de participação. A esse respeito precisamos refletir sob o limite da participação nas decisões. Isto não elimina, obviamente, a participação na execução; mas também não a tem como fim, e sim como meio, quando necessário, para a participação, propriamente dita, que, segundo o autor, consiste: “na partilha de poder, a participação na tomada de decisões”.

Para Pontual (2005), vivemos hoje numa crescente necessidade de ampliar a participação popular. Tais reflexões presentes nos movimentos sociais, nas ONGs, em governos democráticos e em parcela da intelectualidade, em que “[...] a proliferação de práticas participativas nos espaços públicos

abertas a toda a população. Os delegados eleitos têm a tarefa de acompanhar a execução do orçamento anual, rompendo com a política do clientelismo e dando espaço a uma nova cultura que é a da participação, em que os cidadãos se mobilizam em torno do OP, objetivando uma melhor qualidade de vida. Com isso, o OP tornou-se o principal instrumento de participação popular no município de Chapecó e norteador das decisões da Administração Municipal. Todos os anos eram eleitos mais de 500 delegados e 50 conselheiros, que acompanhavam regularmente toda execução do orçamento definido pelas comunidades e regiões do OP e encaminhado à Câmara de vereadores. Além da definição dos investimentos, delegados e conselheiros, passavam por um processo de formação, tanto pela experiência de acompanhar o orçamento, como pelo trabalho de formação construído, através do debate de temas como o papel do Estado, a gestão pública, a distribuição dos impostos no Brasil (SIGNORI; BOSEMBECKER; UCZAI, 2004, p. 14-15).

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vem provocando uma necessária redefinição das relações entre Estado e Sociedade Civil” (PONTUAL, 2005, p. 95).

Nesse sentido, o autor destaca que: A participação cidadã é elemento substantivo para possibilitar efetivamente uma ampliação da base democrática de controle social sobre as ações do Estado. Estas práticas participativas geradas tanto a partir das organizações da sociedade civil como da ação indutora do Estado criam uma sinergia capaz de alterar substantivamente a relação entre ambos os atores. Neste processo amplia-se, aprofunda-se a prática da democracia e constrói-se uma cidadania ativa (PONTUAL, 2005, p. 95).

As práticas de participação cidadã têm dado uma

significativa contribuição na constituição de novas esferas públicas e democráticas e na promoção de um processo progressivo de publicização do Estado e de desestatização da sociedade. Essas práticas que, na sua grande maioria, vêm sendo desenvolvidas, sobretudo, no âmbito dos espaços de poder local, buscam a superação de uma visão da relação Estado e sociedade civil como polaridades absolutas, em favor de uma compreensão mais dinâmica de relações de interdependência, combinadas com o reconhecimento da especificidade e da autonomia de cada ator.

Outra instância participativa na gestão democrática da educação que vinha como novidade à época foram as Conferências Municipais de Educação. Nelas delegados eleitos representavam os mais diversos setores da comunidade escolar, da Educação e dos órgãos envolvidos no processo da gestão educacional e da própria prática pedagógica. A conferência atuou de forma propositiva na construção do Sistema Municipal de Educação, do Plano Municipal de Educação e na avaliação das políticas implementadas.

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A prática democrática em Chapecó também se apresentava dentro das próprias escolas, fazendo com que os envolvidos na vida escolar fossem confrontados com a ideia de representação, responsabilidade e a experiência democrática do voto nas próprias instituições e em sua realidade mais próxima. Isto materializava-se nas eleições dos dirigentes escolares, nas quais a comunidade escolar elegia através do voto os responsáveis pela direção da instituição de ensino (escolas e creches).

Este é também um processo pedagógico importante em si, pois traz para a realidade estritamente local a necessidade de se construir relações de confiança, representação e compromissos com o público e com aqueles que delegam sua representação. Em processos como estes, os envolvidos na comunidade escolar vivenciam na pele um processo eleitoral, entendendo e apreendendo a partir daquele espaço noções da democracia.

Ainda nesta mesma linha, uma outra instância de participação brotava dentro do espaço de poder e de relações políticas e sociais é a escola. Refiro-me aos Conselhos Escolares. Estes configuravam-se como os órgãos máximos de poder e decisão dentro das escolas, contrabalanceando os possíveis vícios de autoritarismo e centralismo que a direção escolar podia trazer, ainda que eleita pela comunidade. Os Conselhos também se estruturavam como uma experiência singular de participação, democracia e controle por parte da comunidade escolar, visto que eram eleitos representantes de seus segmentos para a composição dos Conselhos.

Além da vivência democrática, os Conselhos permitiam abrir a porta das escolas para a comunidade, chamando-a para pensar, refletir e pautar as questões referentes à educação, à convivência, ao projeto que se quer construir e ao dia-a-dia escolar. As pessoas tornavam-se parte do organismo escolar, o que contribuiu, como já dito,

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para a aproximação entre educandos e a escola, e não mais o estranhamento entre os dois, responsável pela exclusão, pela evasão e pelo distanciamento dos alunos.

Mais do que democratizar a gestão, o poder e as relações educacionais, em Chapecó foi possível democratizar a própria ação pedagógica, o método de aprendizagem e a organização educacional a partir da Educação Popular freireana que estabeleceu a necessidade do processo dialógico de forma permanente. Este é um avanço consoante aos apresentados, mantendo a coerência de um projeto que tem como princípios a democracia, a cidadania, a autonomia e o trabalho coletivo.

De nada valeria uma gestão democrática, se o que acontece dentro das paredes da sala de aula fosse ainda marcado pelo autoritarismo, pela verticalidade das relações e por uma concepção pedagógica bancária e esvaziada de significado social.

Neste aspecto, algumas medidas e ações foram imprescindíveis para garantir a sintonia entre a democratização da gestão e da aprendizagem. Primeiro, é importante mencionar a criação dos coletivos de professores, espaços responsáveis por coletivizar, entre a docência, as experiências, as boas práticas e os conteúdos de forma interdisciplinar. Os professores passavam a pensar de forma conjunta a Educação em sua instituição, saindo do isolamento que a forma tradicional de educação impõe, e passando a pensar o todo e não mais apenas sua própria “caixinha”.

Somado a isso, o processo de formação continuada dos educadores foi um mecanismo relevante para a manutenção e aprofundamento destas práticas e da constante renovação do projeto político implantado, seguindo a linha de uma educação libertadora de matriz freireana.

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Durante o período de vigência do movimento de reorientação curricular, a formação continuada dos educadores foi organizada a partir das necessidades dos diferentes coletivos das escolas e centros de educação infantil, em diversos fóruns de discussões e estudos existentes como: Seminários, Conferências, Coletivos das escolas, Oficinas, encontros de polo, grupos específicos, Encontros de áreas, entre outros; sempre no sentido de aprofundar e qualificar a prática pedagógica.

Nas reuniões de estudo que ocorreram nas escolas, nos diferentes grupos e nos encontros organizados pela Secretaria de Educação, sempre esteve presente a preocupação permanente em articular as ações do trabalho cotidiano de sala de aula e o aprofundamento na organização de atividades, a partir do Tema Gerador, a compreensão de como os alunos aprendem, como se caracterizam as diferentes fases de desenvolvimento, a análise profunda do processo de construção histórica pelo qual passaram e se construíram as diversas áreas do conhecimento, a necessidade da busca constante de novas informações sobre a forma de organização e de funcionamento da sociedade, como garantir um processo de construção de conhecimento de forma analítica, entre outros.

O conhecimento passou de algo com caráter depositário, como diz Paulo Freire, para algo construído coletivamente, em mão dupla, aproximando educandos, educadores e o mundo sobre o qual estão concretamente inseridos. Talvez seja esse o grande núcleo que permitiu todo o processo de democratização para além da sala de aula, ou melhor, são processos que se sustentam, alimentam e dão coerência numa relação simbiótica, rumo à humanização dos sujeitos.

Educando e educadores tornaram-se protagonistas no processo de aprendizagem, na mesma medida que, junto

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da comunidade escolar como um todo, também se tornaram protagonistas das decisões que lhes atingiam.

Cabe aqui destacar que um traço presente nas reivindicações sociais de determinados setores explorados não se constitui, muitas vezes, como uma manifestação da luta pela emancipação da exploração capitalista, mas como manifestação dos direitos civis.

Para Altamira e Coggiola (1997), aí se percebe que a cidadania, sendo um conceito político, uma categoria política, não pode ser explorada. Para os autores:

A cidadania diz respeito a uma determinada organização de Estado. Se o direito à cidadania não dá ao povo a possibilidade de se desenvolver é um outro problema. Mas as reivindicações sociais, a luta contra o capitalismo não são direitos dos cidadãos. Não é possível fazê-los entrar forçosamente nas categorias do Estado Burguês. Nesse sentido, diria que, como consideração filosófica, é uma ideia kantiana, ou seja, anterior a Hegel e que consiste em atribuir subjetivamente significados morais – imperativos morais – à ação dos homens. Todavia, atualmente é muito comum indicar, no mundo moderno, o direito à cidadania, algo que foi realizado há muito tempo pela democracia burguesa, com um grau de desenvolvimento diferente, segundo os países, evidentemente. E até com a necessidade de conquistar o direito à cidadania em alguns países que não conheceram aquele período de desenvolvimento democrático, mas que não deixa de ser uma forma determinada da existência do indivíduo na esfera do Estado capitalista (ALTAMIRA; COGGIOLA, 1997, p. 53).

Portanto, a reivindicação pela democracia precisa

estar associada à reavaliação da democracia dentro do período histórico no qual está colocada, as condições materiais que caracterizam cada período histórico, para que,

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de certo modo, não esteja associada à paternidade daquele que, em certa época, a conduziu.

EDUCAÇÃO POPULAR

A concepção de Educação Popular que fundamentou

a construção da política educacional de Chapecó, no período de 1997-2004, possui algumas características importantes que precisam ser abordadas. Para Pontual (2003, p. 2), um aspecto importante desta “Concepção de Educação Popular, que vem sendo construída na América Latina, sobretudo com a preocupação de refletir o papel da Educação Popular nos processos de libertação dos povos [...]”, busca a vinculação orgânica desta concepção de Educação com o processo de construção das organizações populares e das organizações políticas dos trabalhadores.

Buscando contribuir com o processo de diferenciação entre diferentes perspectivas, de educação popular, o autor destaca, num primeiro momento: a primeira concepção, que se trata, segundo ele, de uma concepção ortodoxa, dogmática, também chamada de “vanguardista”, subestima o papel da educação tanto a popular, quanto a educação de modo geral no processo de transformação, presente nos setores de esquerda em que os mecanismos de vanguarda estão orientados para a tomada do aparato estatal, como condição prévia para que se possam realizar as demais transformações, inclusive a educativa:

Para esta concepção, a educação realizada antes da tomada do poder tem sobre tudo um papel de propaganda, de servir de veículo de uma proposta revolucionária, dando-lhe à educação o papel de transmitir essa mensagem, de tal forma que provoque a adesão das massas ao seu projeto político (PONTUAL, 2003, p. 4).

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Quanto à derivação política e pedagógica desta concepção, à Educação Popular é atribuída um caráter “alternativista”, como se na prática a educação popular se pudesse constituir em práticas alternativas a todas as formas de organização popular e política já existentes:

Se trata, de uma linha de pensamento, que ao afirmar a debilidade das formas tradicionais e dogmáticas de fazer política, acaba por negá-las a todas elas. Ao negá-las de forma absoluta, atribui à Educação Popular o papel de sujeito político de transformação na América Latina. Ou seja, nega tudo aquilo que foi construído historicamente em termos de organização, e teorias políticas e afirma que é a Educação Popular, e sem os educadores populares os quais vanguardizaram o processo de transformação na América Latina (PONTUAL, 2003, p. 6).

Essa concepção de Educação Popular aproxima-se

de uma visão espontaneísta do trabalho educativo que considera que algumas práticas localizadas e espontaneístas vão se constituindo numa espécie de “movimento”, que, por si, vai se transformando em um novo sujeito político; negando, desta forma, a experiência histórica de construção política dos movimentos sociais e dos trabalhadores; tornando-se, assim, uma concepção autoritária.

A concepção de Educação Popular defendida pelo autor, e que foi a base para a política educacional de Chapecó, busca a vinculação da Educação Popular

[...] aos processos de organizações populares e à constituição de um sujeito político-popular, se transforma em outra reflexão político-educativa, que, com os signos mudados, destaca o papel da educação popular nos processos de transformação da sociedade (PONTUAL, 2003, p. 6).

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A perspectiva educacional que se buscou construir afirma que esta deve ser pensada no interior mesmo das práticas organizativas que o movimento popular e político vai construindo. Ao ser pensada no interior mesmo dessas práticas, a Educação Popular tem o papel de contribuir para o fortalecimento desses processos. Trata-se, pois, de pensar a prática pedagógica, a partir da própria estratégia organizativa em que o campo popular vai se construindo, nas diversas esferas e dimensões de luta.

Durante a caminhada de construção da política educacional, sempre se procurou um processo de aproximação com os movimentos sociais, organizações dos trabalhadores, associações comunitárias, como espaços que deveriam ser referência para essa prática.

Buscou-se, de certo modo, que estes fizessem parte do processo educacional das escolas, que suas práticas fossem discutidas, refletidas, compreendidas por toda comunidade escolar, no sentido que suas demandas, seus conceitos, suas lutas fizessem parte do cotidiano escolar.

Podemos definir esta concepção como uma concepção político-educativa, por tratar-se de uma concepção metodológica e de um conjunto de princípios político-educativos que iluminam ou direcionam nossas práticas específicas, que devem garantir a articulação coerente entre os elementos do processo educativo e aqueles referentes à estratégia político-organizativa.

Nesse aspecto, Pontual (2003, p. 8) destaca: Falamos de uma articulação coerente, e não desde uma perspectiva positivista, senão de um ponto de vista dialético de onde essa articulação se faz um processo no qual a Educação Popular, ao mesmo tempo em que contribui ao fortalecimento dessas estratégias organizativas, também serve para questioná-los, enriquecê-los, realimentar-se em um processo muito dinâmico.

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No Brasil, observam-se, na trajetória de lutas políticas, momentos de efervescência da classe trabalhadora, que foram contidos por mudanças na correlação das forças sociais e pela coerção, implícita, na direção do desenvolvimento econômico e no reordenamento político do país.

O movimento da educação, como prática social e como espaço de construção contra-hegemônica, foi se constituindo na luta e disputa das forças políticas que negociam entre si os passos a serem dados no desenvolvimento nacional.

O PROCESSO DO CONHECIMENTO NA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO

Esta pedagogia está fundamentada e possui, sem

dúvida alguma, sua essência na humanização dos sujeitos imbricados por suas práticas sociais contextualizadas. Caracterizar o processo de humanização em Freire torna-se importante para esta perspectiva pedagógica. A pedagogia freireana, conforme esclarece Silva (2004, p. 1):

Uma educação crítica e libertadora concebe o currículo como o conjunto de práticas socioculturais que – de forma explícita ou implícita, consciente, intencional, empírica ou incorporada inconscientemente – se inter-relacionam nas diferentes instâncias e momentos do espaço-tempo escolar. Assume-se a defesa de uma intervenção pedagógica crítica na prática educativa desumanizadora vigente, na perspectiva de um currículo responsável, comprometido com os socialmente excluídos, que parta das necessidades e dos conflitos vivenciados para tornar-se significativo, crítico, contextualizado, transformador e popular. [...] Assim, se toda prática escolar está arraigada a um contexto que se manifesta nas dimensões da realidade local, em seus sujeitos e processos

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de construção do real, ou seja, nas inter-relações entre culturas e saberes, comportamentos e posicionamentos éticos, práticas socioculturais da comunidade [...].

Este movimento pedagógico cujo conhecimento não

é um conhecimento desvinculado da prática social, buscando, portanto, refletir a prática concreta da população. A práxis pedagógica libertadora, para Alves (2007, p. 12), “[...] como o próprio nome sugere, indica a necessidade de uma educação vista como um movimento em direção à liberdade”. Não se trata, no entanto, de libertação, num sentido metafísico, de uma essência dada e naturalmente inerente ao humano, “[...] mas de libertação de um ‘ente-histórico’ que se constrói enquanto constrói o mundo, através da práxis” (DAMKE, 1995, p. 58).

Para Mendonça (2006, p. 16), a pedagogia de Paulo Freire apresenta como uma de suas questões centrais a ideia de que os “[...] seres humanos são ontologicamente vocacionados para exercerem, historicamente, a condição de sujeitos para, dessa forma, vivenciarem, permanentemente, a sua humanidade”. Essa dimensão antropológica que caracteriza o pensamento freireano é o que afirma a práxis humana como um compromisso histórico que, ao endereçar os sujeitos ao mundo, possibilita, ao mesmo tempo, a transformação da realidade e dos próprios seres humanos.

A ideia, defendida por Freire, de que os seres humanos têm a “vocação ontológica para ser mais”, ou seja, para serem cada vez mais humanos, implica na superação permanente das situações de desumanização, é o que configura, essencialmente, a dimensão metafísica 4 –

4 A metafísica não é pensada, aqui, na sua conceituação clássica. A palavra metafísica foi usada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, em torno do ano 50 a.C., para se referir aos escritos filosóficos de Aristóteles, que tratavam do “Ser enquanto Ser”, do “Ser das coisas”, denominados de “Filosofia Primeira”. Nesse sentido, pudesse entender

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ontológica – na sua pedagogia, mas, ao mesmo tempo, é também o que articula em seu pensamento as bases conceituais de uma antropologia historicamente apoiada em concepções político-sociais. A perspectiva histórica do seu pensamento infunda-se na afirmação de que a própria história é um contínuo inacabado e, dessa forma, os seres humanos, como seres históricos, também se constituem, humanamente, pela sua inconclusão.

Como seres inconclusos vocacionados, ontológica e historicamente, para realizarem sua felicidade, os homens e mulheres são chamados a um engajamento político e social no mundo, e esse engajamento é a concretização da práxis humana. Para Freire, não é possível a superação das estruturas desumanizantes, se os seres humanos não se tornam seres de práxis.

Contudo, a práxis humana, transformadora, só se pode constituir dentro de uma unidade dialética, absolutamente coerente e solidária entre o pensar e o agir.

A ênfase que Freire dá à dimensão histórica dos seres humanos, na sua pedagogia, considerando fundamentalmente os aspectos da estrutura econômica, política e social e a necessária intervenção para a transformação das condições materiais, em defesa das classes

por metafísica a investigação dos fundamentos, dos princípios e das causas de todas as coisas, refletindo porque elas existem e por que são o que são. Jacobus Tomasius, filósofo alemão do século XVII, por considerar que a filosofia primeira de Aristóteles estudava o Ser enquanto Ser, ou seja, buscava aquilo que faz de um ente ou de uma coisa um Ser, deveria ser denominada de ontologia. Desse modo, a metafísica contemporânea passou a ser designada de ontologia e trata do conhecimento do ser, dos entes e das coisas, como são de fato em si mesmos. Contudo, a metafísica contemporânea ou ontologia se ocupa, principalmente, de investigar as diferentes maneiras como os seres existem, sua essência e sentido, a relação entre a existência e a essência e o modo como aparecem nas consciências. Dessa maneira, a ontologia incorpora em seu processo investigativo (MENDONÇA, 2006, p. 16).

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populares, secundarizou a dimensão metafísica de sua pedagogia. Aspecto esse que parece ter sido feito intencionalmente por Freire, essencialmente pelo caráter concreto de sua perspectiva político-pedagógica.

CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E DE CURRÍCULO DESENVOLVIDA EM CHAPECÓ

Os desafios no campo da educação contemporânea,

tendo presentes as grandes transformações sociais, e as novas dinâmicas das relações políticas e culturais e o avanço da tecnologia, nos desafiam para novas reflexões e uma intervenção social, a partir de novas práticas educativas que contribuam para a participação e a intervenção consciente de homens e mulheres na realidade, tendo como horizonte sua humanização.

Toda e qualquer estrutura de ensino articula uma opção político-pedagógica, que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade, enquanto mecanismos utilizados em sala de aula. Sempre que escolhemos um caminho para o trabalho, devemos nos fazer alguns questionamentos: “para que, por quê e para quem ensinar?”. Isso contribuirá para explicitarmos a concepção de ensino e uma postura relativa à educação.

Optar por uma ou outra teoria do conhecimento não é uma questão dogmática nem definitiva, da mesma forma que não significa estar fundada nas ideias de um único autor. Ao contrário, abarca um leque muito amplo, que tem suscitado o diálogo entre vários pensadores, situados em diferentes contextos filosóficos. Para Damke (1995, p. 17):

A busca de uma teoria da construção do conhecimento e de uma proposta pedagógica crítica, visando a construir uma escola pública popular e democrática, é um processo coletivo para o qual muitos filósofos, educadores e mesmo teólogos deram sua contribuição, na linha da

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teoria e na linha da prática. Dentro desta busca, entendemos que a proposta de Paulo Freire, que também não é exclusivamente dele, distingue-se das demais.

Santos (2006), ao refletir a perspectiva educacional

no plano ético-crítico 5 das reflexões profissionais, pedagógicas, morais epistemológicas, socioculturais, políticas, destaca “[...] que é preciso colocá-las a serviço de uma práxis emancipatória, comprometida com a transformação das situações de produção, reprodução e desenvolvimento da vida dos oprimidos [...]”, caracterizado por Freire (1987).

Para Silva (2004), a negatividade cumpre um papel ético-crítico fundamental na educação, pois ela representa a fonte criativa de reinvenção da realidade, um recurso que inspira a construção de novas práticas, estando, portanto, na própria gênese da positividade do processo educacional ético-crítico.

Freire (1987) contribui significativamente no posicionamento pedagógico ético-crítico presente na perspectiva de currículo, no trabalho desenvolvido em Chapecó, propondo uma prática curricular fundamentada nas dimensões psicossocial, político-epistemológico, cultural

5 Para o conceito de prática ético-crítico, ver comentário de Enrique Dussel (2000, tese 11, p. 636), para o qual se pode perceber como uma das exigências intrínsecas à prática educacional crítica, a explicitação das negatividades que compõem as raízes das práticas positivas que se busca confrontar com processo pedagógico por todos os sujeitos envolvidos com o desenvolvimento curricular. Evidentemente, não se trata de justificar os porquês de determinadas atitudes ou procedimentos pedagógicos, mas de construir, pelo diálogo, as próprias referências éticas para projetos políticos-pedagógicos que se pretende implementar. Nesse processo, a construção e a implementação da proposta curricular pelo coletivo escolar já é o processo educativo de formação crítica comprometido com a produção material, a reprodução e criação cultural e o desenvolvimento social e político da vida comunitária a partir das condições desfavoráveis apresentadas pelo contexto de realidade.

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e social, orientando as metodologias implementadas e os critérios adotados na seleção dos objetos de estudos.

É a possibilidade de criar condições para fazer com que várias vozes falem ao mesmo tempo e sejam compreendidas e respeitadas entre si; o que Freire (1987) chama de Educação Libertadora, e, ao sistematizá-la, concebe-a como Tema Gerador. Nesse sentido, em toda parte a linguagem entra nos arranjos hierárquicos de poder.

Cada palavra transforma-se no campo de batalha onde competem as entonações sociais. Como nos diz Bakhtin (1981 apud SANTOS, 2006), a mesma palavra, sendo pronunciada por um camponês ou um empresário, não é exatamente a mesma palavra. Para Santos (2006), na concepção bakhtiniana, tudo o que é dito está situado fora da alma do falante e não pertence somente a ele. Nenhum falante é o primeiro a falar sobre o tópico de seu discurso. O falante não é o “Adão bíblico” que nomeia o mundo pela primeira vez. Cada um de nós encontra um mundo que já foi articulado, elucidado, avaliado de muitos modos diferentes, algo já falado por alguém. Ao usar as palavras para falar sobre um determinado tópico, ela já está habitada por outras falas, de outras pessoas. A linguagem nunca está completa, ela é uma tarefa, um projeto sempre caminhando e sempre inacabado (BAKHTIN, 1992 apud SANTOS, 2006).

Portanto, a necessidade em se estabelecer o diálogo na escola, ao se buscar o conteúdo do diálogo, alguns questionamentos, como sugere Silva (2004, p. 197-198), são fundamentais:

Mas, na prática pedagógica concreta da escola pública, por onde começar esse diálogo? A mera escolha dos assuntos de interesse dos alunos, tomados como objetos de estudo, seria capaz de intervir criticamente na realidade? Ou, mais especificamente, são os centros de interesses? [...] É esse o significado dado por Freire ao afirmar que a realidade do educando é o ponto de partida para o desenvolvimento da

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práxis libertadora? Situações significativas e centros de interesses possuem o mesmo sentido ético, político-pedagógico e epistemológico?

Precisamos tomar cuidado para não incorrermos em

práticas equivocadas, muitas vezes desenvolvidas nas escolas. Os Temas Geradores, para Silva (2004), não são temáticas motivacionais 6 que se limitam a satisfazer curiosidades ingênuas, recursos didáticos para atrair a atenção dos alunos e introduzir conteúdos preestabelecidos, a partir de critérios que desconsiderem a realidade concreta dos alunos. Temas Geradores são objetos de estudos selecionados no processo de investigação junto à comunidade, e a partir de seu caráter significativo, conflituoso e contraditório (SANTOS, 2006).

A escolha dos objetos de estudo para a prática pedagógica ético-crítica, ressalta Silva (2004), vai além dos interesses imediatos dos alunos, de temas da vida diária ou assuntos de interesse, conceitos, descobertas, pesquisas, exclusivamente selecionados por eles, como também não recai a escolha sobre o que é considerado fundamental à vista apenas dos educadores, como tópicos importantes a serem abordados pelas disciplinas.

Para o educador-educando dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou imposição, ou ainda, um conjunto de informes a serem depositados nos educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que foram entregues através de suas falas, de forma desestruturada e no senso comum.

6 Para Silva (2004, p. 198), Dias das Mães, Copa do Mundo, festa junina, embora na prática escolar sejam usualmente tratados como temas geradores, na perspectiva freireana, não o são. Trata-se de uma confusão, não apenas nomenclatural, mas que tem como intenção ideológica “despolitizar” a prática pedagógica, como se toda a prática não fosse política.

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A busca por estas falas constitui-se na busca pela realidade como ponto de partida para o diálogo:

É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação. O momento deste buscar é que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores [...] (FREIRE, 1987, p. 87).

Para esta investigação, não se pode contradizer a

dialogicidade da educação libertadora. Necessita ser igualmente dialógica. Uma prática conscientizadora, mas que proporcione, ao mesmo tempo, a busca dos temas geradores e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos (FREIRE, 1987).

No sentido de organizar um processo dialógico é necessário que o educador seja capaz de estabelecer o diálogo. Nesse sentido, Freire (1987, p. 80) destaca:

Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo. Não há por outro lado diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante. O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de agir, se rompe, se seus pólos (ou deles) perdem a humildade. Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se vejo sempre no outro, nunca em mim? Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros ‘isto’, em quem não reconhecem outros eu?

Freire (1987) chama a atenção para a necessidade de

se estabelecer uma relação dialógica com aquilo que se

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busca. O trabalho com educação necessita ser pensado, analisado e percebido, a partir do conteúdo a ser trabalhado, pois uma educação comprometida com a transformação não poderá trabalhar com conteúdos que não tenham relação. Para isso, torna-se necessário ter a preocupação de concretizar uma educação que faça sentido na vida das pessoas. Em que os protagonistas se entendam com maior clareza, ou seja, a mediação entre educador e educando deve se dar pelo conteúdo. Portanto, para Damke (1995, p. 75):

No plano da ação, a interdisciplinaridade impõe-se como trabalho coletivo; como esforço para superar a contradição educador educando e para criar relações solidárias que apontem caminhos na direção de uma sociedade democrática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para provocar transformações naquilo que temos

diante de nós, é necessário olhar as coisas muito conhecidas, a partir de outro lugar, ou seja, distanciar-se do objeto. Examinar as contribuições da construção de uma política educacional voltada para a transformação social e buscar nessa experiência nas contribuições, nos limites, nas contradições e nas possibilidades que, sem dúvida, tornam-se um desafio e um aprendizado.

Para Sader ([s.d.] apud MÉSZÁROS, 2005, p. 15), “[...] o objetivo central dos que lutam contra a sociedade mercantil, a alienação e a intolerância é a emancipação humana”. A educação, que poderia ser uma alavanca essencial para essa mudança, tornou-se instrumento dos estigmas da sociedade capitalista:

[...] fornecer os conhecimentos e pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão no sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que

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legitima os interesses dominantes [...] (SADER, [s.d.] apud MÉSZÁROS, 2005, p. 15).

Tornando-se, assim, uma peça do processo de

acumulação de capital, virando-se, ao invés de instrumento de emancipação humana, mecanismo de perpetuação e reprodução desse sistema.

A sociedade contemporânea é o reflexo do processo histórico de criação e recriação do homem, da natureza e da relação homem-natureza. Viver nela e compreender esse processo demandam consciência dos inúmeros desafios que se colocam diante de nós. A sociedade contemporânea é, também, contraditória. Permeiam num mesmo contexto, um movimento intenso de mudanças que explicitam os avanços, as conquistas, mas também a destruição, a catástrofe inerente aos modos de ver e organizar as relações que a própria humanidade construiu.

Contraditoriamente, o capitalismo, a lógica liberal de mercado, a globalização gera a fome e as doenças. Por um lado, traz a tecnologia de última geração; por outro; a exclusão do homem do acesso à tecnologia, à saúde, à alimentação em que tudo é produto da práxis que se faz pela ação do ser humano objetivado pelo trabalho, enquanto atividade vital.

A natureza da educação – como tantas outras coisas essenciais nas sociedades contemporâneas – está vinculada ao destino do trabalho.

Para Alves (2007), as práticas escolares enfrentam dificuldades decorrentes de uma complexidade inerente ao contexto social atual. Dentre os inúmeros desafios a serem enfrentados pela ação educativa escolar, é preciso observar, com cuidado adequado, aqueles referentes às mudanças que a trama social em movimento promove nos sujeitos, na sua atitude frente ao mundo, no seu comportamento, ou seja, no campo da subjetividade mesma, compreendida como

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produto da relação dialética entre ser humano e as formas socioculturais de vida.

Compreender o grau de complexidade que representa para o educador a assimilação de uma nova proposta pode ajudar a compreender o grau de resistência ou de dificuldade para o desenvolvimento do trabalho.

Os sujeitos diretamente envolvidos (crianças e jovens), que se tornam alvos da desintegração inerente aos processos sociais em geral, que entram na escola e que tem ali, neste espaço, talvez, a única possibilidade que lhe resta de apreender o mundo e vê-lo a partir de outro lugar. Aqui reside, provavelmente, uma das mais importantes tarefas da educação escolar, a despeito de todas as dificuldades que enfrenta historicamente: compreender quem são os sujeitos, de onde vêm, como elaboram, significam a experiência sócio-histórica em que se encontram e, ao compreender a complexa trama histórico-cultural em que se constituem os sujeitos, propor estratégias pedagógicas voltadas para um fim específico: a humanização (ALVES, 2007).

Na concepção freireana, desenvolvida em Chapecó, buscou-se estabelecer um processo dialógico dos sujeitos inseridos no contexto social com o mundo, podendo, portanto, entender o Tema Gerador como objeto de estudo que compreende o fazer e o pensar, o agir e o refletir, a teoria e a prática, ou seja, parte-se de uma realidade, da leitura de mundo no nível de senso comum; busca-se os conhecimentos científicos sistematizados, historicamente, e necessários para tal compreensão e leva-se à reflexão dessa ação teorização, provocando assim superações, levando os sujeitos envolvidos a uma ação transformadora.

Numa prática libertadora, dialógica, não se pode abrir mão da dialogicidade proposta por Paulo Freire. Somente esse diálogo, construído pela rigorosidade metódica (FREIRE, 1987), propicia o dimensionamento do poder constitutivo e criador da ação humana, afinal, é a ação que

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dá significado às coisas. Não a ação que engessa e cristaliza pelo adestramento do treinamento e pela monotonia mortífera da repetição, mas, sim, a ação que é realizada a partir dos desejos dos seres humanos envolvidos no processo. Vontade essa que explicita seus anseios, suas necessidades, que fala de sua realidade, que somente será possível se cada um tiver a humildade de ouvir o outro e estabelecer com ele um diálogo verdadeiro e humanizador.

Contudo, não se pretende dizer com isso que uma proposta pedagógica, fundamentada na dialogicidade, venha, por si só, resolver problemas históricos dentro dos espaços educativos. O que se quer dizer é que, com certeza, favorece o surgimento de condições para que esses espaços estabeleçam crítica radical, não só do modelo pedagógico, mas também de suas concepções epistemológicas e visão de mundo.

Os movimentos de reorientação curricular nas Administrações Populares, e no caso específico de Chapecó, no período de 1997 a 2004, evidenciam a possibilidade de superação de práticas educativas conservadoras e apontam novas formas de conhecer e agir, pedagogicamente, coerentes com o compromisso político assumido com a Educação Popular Crítica.

Mesmo convivendo com avanços e retrocessos, é possível pensar que a história segue seu curso e que o trabalho desenvolvido durante a experiência trouxe significativas contribuições para a história da educação em nosso município e em outros lugares.

Fazer a denúncia e o anúncio é praticar a esperança ativa que, ensina Freire, não é a esperança na pura espera, mas a esperança que mobiliza a ação. Por outro lado, não há esperança ativa ou ação transformadora na ignorância. Daí a importância do conhecimento e do fazer desse conhecimento, saber, sabedoria.

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Mais além disso, as contribuições da experiência da educação popular, tal como analisadas neste estudo, permitem concluir que fazer da prática educativa uma prática libertadora implica uma tomada de consciência e uma reflexão crítica permanente sobre as realidades que permeiam a educação. Como promotora do desenvolvimento da consciência, a ação educativa escolar é sempre ação problematizadora, seja na relação pedagógica que terá com o conhecimento mediador dos processos de ensino e de aprendizagem, seja na reflexão crítica sobre si mesma.

Sob este prisma e frente aos desafios que se impõem à educação na conturbada contemporaneidade, o diálogo da pedagogia freireana, com outros autores que fundamentam práticas educativas críticas, traduz, a meu ver, uma possibilidade efetiva de crítica propositiva na direção da necessária superação de concepções e práticas dicotomizadas e dicotomizadoras da integralidade humana.

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PARTE II – FORMAÇÃO DE PROFESSORES

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I

A PARTICIPAÇÃO DOCENTE E AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM TEMÁTICA

FREIREANA PARA A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS1

Geovana Mulinari Stuani

Sylvia Regina Pedrosa Maestrelli

Nadir Castilho Delizoicov

INTRODUÇÃO

A história do Ensino de Ciências no Brasil tem

mostrado a interferência de pressões econômicas e políticas que influenciaram as várias tendências que acompanharam a área ao longo dos tempos (KRASILCHIK, 1987; 2000; FRACALANZA et al., 2002).

Dentre as tendências citadas pelos autores acima, temos a tecnicista, centrada no ensino através de módulos e

1 Versão ampliada do trabalho apresentado no IV EREBIO/SUL e V ENCIBIO, 2010 sob o título: O Movimento de Reorientação Curricular Popular Crítico no Ensino de Ciências Naturais em Chapecó/SC e suas implicações na prática docente. Doutora em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT-UFSC). Professora da rede Municipal de Chapecó. E-mail: [email protected]. Doutora em Genética. Professora do PPGECT/UFSC. E-mail: [email protected]. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no PPGE da Unochapecó, é pesquisadora no grupo de pesquisa Ensino e formação de professores, cadastrado no CNPq. É professora colaboradora do PPGECT/UFSC. E-mail: [email protected].

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na aplicação de testes; a escolanovista, com a preocupação de ensinar o método científico; e a ciência integrada, com o uso de materiais com manuais de instrução. Por mais que estas propostas inovadoras tivessem a preocupação com a qualidade do ensino, nenhuma delas trouxe a realidade objetiva vivenciada pelos estudantes como objeto de estudo para a sala de aula.

Destacamos também, nestas propostas, a participação docente como executor de tarefas pensadas por especialistas, e não como propositor de alternativas para os problemas vivenciados na prática (GOUVEIA, 1995). A autora destaca ainda o aparecimento na década de 1980 de uma nova tendência chamada de progressista, que une as ideias de Snyders (1988), Saviani (1985) e Freire (1975, 2008); cujo enfoque é a construção de um projeto político que visa mudar a vida das pessoas, tendo a escola como espaço propulsor do processo de transformação. Esta concepção progressista de educação coloca o docente como sujeito do processo formativo deixando de ser passivo para tornar-se ativo, sendo coparticipante na elaboração das propostas.

Nesta perspectiva, quando pensamos nas inovações curriculares que, de certa forma, interferiram no ensino da área, um ponto relevante a discutir é qual a participação dos professores nos processos inovadores implementados em sala de aula.

Esta questão é debatida por Carvalho (2007, p. 196), que destaca a relação existente “entre as atitudes e comportamentos dos professores, ao ensinar e a aprendizagem de seus alunos”.

Desta forma, adotaremos o termo inovação curricular ao invés de mudança, compartilhando das ideias de Terrazzan (2007). O autor destaca que o termo inovação refere-se a “ações consistentes que envolvem etapas como: instalação/implementação, aceitação, utilização/vivência e,

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por fim, a consolidação de determinada mudança” (TERRAZZAN, 2007, p. 170).

Thurler (2001) discute esta questão e chama a atenção para as características que envolvem uma inovação com relação à participação dos docentes, ou seja, a adesão “depende do que os professores pensam ou fazem dela” (p. 13).

Terrazzan (2007) destaca também o papel dos professores na implementação das propostas inovadoras; e destaca que a adoção pelo professor de determinada inovação deve-se “ao equilíbrio entre as exigências e compensações” (p. 181). O autor evidencia algumas características presentes em uma inovação para favorecer os docentes:

• Quando promovida pelos próprios docentes, pois costuma produzir um aumento em sua autoestima profissional;

• Quando a participação efetiva pode se traduzir também em promoção profissional, sobretudo, para as posições mais altas na hierarquia da estrutura da carreira profissional;

• Quando o professor constata claramente um aumento de sua autonomia didática e pedagógica, na medida em que passa de uma situação tradicional de executor de tarefas a elaborador de propostas e construtor de soluções partilhadas pelos pares (TERRAZZAN, 2007, p. 181).

Portanto, promover a participação docente nos

processos de inovação é fundamental para que o seu desenvolvimento ocorra de forma equilibrada. Gouveia (1995) chama a atenção para esta questão nos processos de formação docente:

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O envolvimento dos participantes com suas próprias questões faz com que se tornem, ao mesmo tempo agente e produto do processo e não meros aplicadores de instruções, que supostamente levariam a inovações. Tornando-se um pesquisador de sua realidade, o professor de 1º grau está exercitando a reflexão sobre seu próprio cotidiano, podendo, com isto, buscar soluções mais apropriadas para seus problemas (GOUVEIA, 1995, p. 253).

Porém, há de se destacar que, além da sua autonomia

profissional, outros fatores interferem na ação docente, como as pressões da própria instituição na qual o docente atua. O que pode interferir em maior ou menor intensidade na forma e na intencionalidade da prática docente (SACRISTÁN, 2000).

Nesta linha de pensamento, neste estudo, analisaremos uma das propostas progressistas influenciadas pelo pensamento de Paulo Freire que se espalharam pelo Brasil, na década de 1990, em nível das secretarias municipais de educação. Estas propostas encontram-se descritas em Silva (2004a) sendo elas: Angra dos Reis-RJ (1994-2000), Porto Alegre-RS (1995-2000), Chapecó-SC (1998-2003), Caxias do Sul-RS (1998-2003), Gravataí-RS (1997-1999), Vitória da Conquista-BA (1998-2000), Esteio-RS (1999-2003), Belém-PA (2000-2002), Maceió-AL (2000-2003), Dourados-MS (2001-2003), Goiânia-GO (2001-2003) e Criciúma-SC (2001-2003). Analisaremos o Movimento de Reorientação Curricular via Tema Gerador (MRCTG) desenvolvido no município de Chapecó (1997-2004).

Concebendo o MRCTG, ocorrido no município de Chapecó/SC (gestão 1997-2004), como uma inovação curricular, neste artigo discutiremos a seguinte questão: Como a participação docente no Movimento de Reorientação Curricular via Tema Gerador contribuiu para a ressignificação das práticas docentes? Para isso,

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descreveremos brevemente o MRCTG destacando os momentos de participação dos docentes na implementação da proposta inovadora.

O MOVIMENTO DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR VIA TEMA GERADOR E A PARTICIPAÇÃO DOS EDUCADORES

Na gestão popular, ocorrida no período de 1997-

2004, optou-se pela concepção da Educação Popular2; tendo em vista o seu caráter inclusivo e de problematização das injustiças sociais.

A Secretaria Municipal de Educação, em seu primeiro ano de atuação, realizou um diagnóstico das condições de ensino na rede municipal (STUANI, 2010) com a participação de representantes das diversas escolas e centros de educação infantil; constituindo um fórum de discussão e planejamento.

Este processo de discussão coletiva possibilitou a organização do Plano Político-Pedagógico, com assessoria do prof. Dr. Odilon Poli, da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC, atualmente Unochapecó). Após inúmeros estudos e debates a respeito do Plano Político-Pedagógico, sua organização foi estabelecida a partir de três marcos referenciais, a saber: marco situacional, marco operacional, marco doutrinal.

Stuani (2010) destaca que nesta mesma perspectiva foram organizados os princípios da Educação Popular que regeriam a educação municipal, sendo eles: “Cidadania, Democracia, Trabalho Coletivo e Autonomia”, que deram

2 É uma modalidade de trabalho pedagógico cujas aparentes contradições desafiam qualquer tipo de definição, emergindo em um universo de práticas sociais intensamente carregadas de valores e símbolos, de intenções e interesses (BRANDÃO, 1986, p. 151).

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encaminhamento para a reorganização dos tempos e espaços escolares” (p. 54).

O MRCTG desenvolvido no âmbito da prefeitura municipal de Chapecó emergiu como uma resposta à efetivação da Educação Popular e de seus princípios nas práticas cotidianas de sala de aula. O processo de reorientação curricular começou pela Educação de Jovens e Adultos (EJA), sendo desencadeado também no ensino fundamental e na educação infantil.

Este trabalho trouxe a demanda da organização de uma equipe multidisciplinar a fim de mediar o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas e Centros de Educação Infantil (CEIs) (STUANI, 2010). Para organização desse processo de mudanças foi necessário preparar vários momentos de estudos e formação, com a assessoria do professor Gouvêa.3

Para compreender todo o processo de reorientação curricular foram organizadas oficinas, as chamadas Oficinas do Tema Gerador, que ocorreram primeiramente com a equipe pedagógica multidisciplinar e os professores da EJA e após com todos os docentes da rede municipal de ensino.

Stuani (2010) destaca a participação docente neste processo, nos diversos eventos realizados pela Secretaria Municipal de Educação:

O Movimento de Reorientação Curricular envolveu os educadores como sujeitos ativos do fazer pedagógico o que demandou da Secretaria Municipal de Educação e Cultura a realização de eventos de capacitação, dentro de um programa de formação continuada. Dentre eles destaco, somente no ano de 1998, o 1º Seminário de

3 O professor Dr. Antonio Fernando Gouvêa da Silva atuou como assessor da Secretaria Municipal de Educação no processo de Reorientação Curricular, no período de 1998 a 2004. Assessorou a Educação Infantil, a Educação de Jovens e Adultos e o Ensino Fundamental. Doutor em Educação – Currículo – PUC/SP.

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Educação Popular, o 2º Congresso da EJA, Fórum de Debates Ciclo de Formação: Conquistas e Desafios (Folder de divulgação da Secretaria Municipal de Ensino: ‘Um lugar onde se constrói Educação com a Participação Popular’, editado e publicado no ano de 1998) (STUANI, 2010, p. 55).

A efetivação dos princípios da Educação Popular na

prática desencadeou a opção pela Investigação Temática ou Tema Gerador, como concepção organizadora dos processos de ensino e aprendizagem, desencadeados no MRCTG. Enquanto concepção de educação, ela possibilita uma compreensão da realidade social de forma aprofundada, desencadeando processos de mudança.

Nas palavras de Freire (2008, p. 102-114), esse processo significa:

O conceito de ‘tema gerador’, não é uma criação arbitrária, ou uma hipótese de trabalho que deve ser comprovada [...] nos parece que constatação do tema gerador, como uma conscientização, é algo a que chegamos através, não só da própria experiência existencial, mas também de uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens, implícitas nas primeiras. [...] É importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos homens isolados da realidade, em tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo. Investigar o tema gerador é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é a sua práxis.

Stuani, Maestrelli e Delizoicov (2010) destacam que

o Movimento de Reorientação se pautou no processo de Investigação Temática presente nos estudos de Silva (2004a), que aprofundam os diálogos descodificadores propostos por Freire (1975, 2008). Silva (2004a) propõe o Contratema

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(visão de mundo dos educadores a respeito do Tema Gerador) e a elaboração das questões geradoras, além da redução temática por meio da organização de uma estrutura de sistematização das análises das falas significativas 4 pelo grupo, denominada de Rede Temática. Desta forma, a Investigação Temática desenvolvida seguia as seguintes etapas:

a) Levantamento preliminar da realidade local; b) Escolha de situações significativas; c) Caracterização dos temas/contratemas geradores sistematizados na rede temática; d) Elaboração de questões geradoras; e) Construção da programação; f) Preparação das atividades para sala de aula. (SILVA, 2004b, p. 7).

4 As falas significativas compunham o processo de pesquisa junto à comunidade desencadeado na rede municipal de ensino a fim de identificar o Tema Gerador. Apresentam as seguintes características: Abordam questões recorrentes da realidade local e apresentam algum grau de dissociação entre as diferentes dimensões e planos da realidade (aspectos amplos da macro-organização sociocultural e econômica não articulados às situações significativas vivenciadas); Geralmente, o limite explicativo aparece de forma explícita e pragmática no discurso da comunidade, entretanto, quando muito carregada de baixa autoestima, pode estar implícita em muitas situações e discursos, em diferentes formas de expressão; A seleção se dá por contradições, por diferenças nas visões de mundo e concepções da realidade concreta entre educadores e comunidade (evitar a escolha narcisista, do idêntico); Toda fala significativa é significativa, porque demanda um patamar analítico (epistemológico) desconhecido para o “Outro” – referencial diferenciado do pesquisador; É, portanto, fundamental apreender os conceitos cotidianos e as obviedades presentes nas explicações e proposições presentes na leitura de mundo da comunidade; É imprescindível perceber que as diferenças entre as concepções de realidade (de educadores e educandos) baseiam-se em referenciais epistemológicos distintos e vão além das informações sobre o real para uma fundamentação conceitual analítica e relacional; Assim, ao selecionar uma fala significativa, já estamos, implícita ou explicitamente, relacionando informações e conceitos epistemológicos analíticos a serem trabalhados por diferentes áreas e disciplinas (SILVA, 2001, mimeo).

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Para a organização da etapa denominada “preparação

das atividades para sala de aula”, utilizou-se dos estudos de Delizoicov (1991), que propõe como sistematização da dialogicidade (FREIRE, 1975, 2008) os chamados momentos pedagógicos: Estudo da Realidade (ER), Organização do Conhecimento (OC) e Aplicação do Conhecimento (AC) (STUANI; MAESTRELLI; DELIZOICOV, 2010).

Desta forma, no Ensino de Ciências a reorientação curricular no âmbito do MRCTG, partindo da Investigação Temática, pautou-se em dois pressupostos da Educação Libertadora de Freire, a problematização e a dialogicidade.

A problematização entendida enquanto um processo de diálogo entre sujeito e objeto, “sendo a tarefa do educador de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza e não de dissertar sobre ele” (FREIRE, 2006, p. 81). Sendo ela, pressuposto indispensável na superação das situações-limites 5 com vistas a atingir os “inédito-viáveis” (FREIRE, 2008).

Freire (2008) enfatiza o papel da problematização na tarefa de envolver os educandos na tarefa de pensar criticamente e tirar suas próprias conclusões sobre os fatos. Pressuposto da educação dialógica ela desacomoda, articula e põe em movimento o pensamento do ser humano sobre a realidade concreta.

Sendo assim, cabe ao educador progressista, à medida que dialoga com os educandos, chamar a atenção “para os pontos obscuros ou ainda ingênuos, bem como

5 “As situações-limites” são os obstáculos que se apresentam na existência humana. Mas, como afirma Freire, não podem ser vistas como “barreiras insuperáveis”. Elas são dimensões concretas e históricas da realidade, portanto, passíveis de intervenção humana. Elas se apresentam como desafios a serem superados (DICKMANN; DICKMANN, 2008, p. 104-105).

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para as relações estabelecidas pelos sujeitos envolvidos na situação gnosiológica” (DAMKE, 1995, p. 82).

Desta forma, o Ensino de Ciências na perspectiva crítica concebe a participação dos educadores e educandos, como premissa fundamental para a elaboração do conhecimento novo em sala de aula. Para isso, há de se ter a dialogicidade como um pressuposto da educação crítica, cuja presença é constante na Investigação Temática na busca pelo Tema Gerador.

Freire (2008) define o Tema Gerador como a investigação do pensar dos homens referindo-se à realidade, bem como o seu atuar sobre ela, que significa a sua práxis.

Nas palavras de Delizoicov et al. (2002), os temas geradores exercem um papel fundamental na pedagogia freireana:

Os temas geradores foram idealizados como um objeto de estudo que compreende o fazer e o pensar, o agir e o refletir, a teoria e a prática, pressupondo um estudo da realidade em que emerge uma rede de relações e situações significativas individual, social e histórica, assim como uma rede de relações que orienta a discussão, interpretação e representação dessa realidade (DELIZOICOV et al., 2002, p. 165).

O Ensino de Ciências, a partir do Tema Gerador no

Movimento de Reorientação Curricular, provocou nos educadores outro olhar para o conteúdo escolar e para a área de ensino, exigindo alguns questionamentos, como: Por que Ensinar Ciências? Qual a contribuição da área no entendimento dos problemas vivenciados pela comunidade? (STUANI, 2010).

A dialogicidade, presente na busca do conteúdo programático, exigiu dos educadores colocarem o conhecimento científico a serviço da compreensão da realidade vivida pelos educandos.

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Delizoicov (1982, p. 15) define a dialogicidade como: A premissa básica, oriunda de uma reflexão crítica e auto-crítica perante a educação e a sociedade; é a predisposição, “um estado de espírito”, que se corporifica à medida que se pensa a educação e a sociedade. É uma tomada de posição que subjetivamente leva a intenção de interagir com a comunidade e objetivamente leva a uma prática de apreensão da realidade.

Este movimento dialógico fez com que a área de Ciências Naturais se constituísse como um instrumento de diálogo entre os problemas vivenciados pela comunidade e o conhecimento científico. A realidade, expressa nas falas significativas dos educandos e da comunidade, serviu de ponto de partida e objeto de estudo para a reorganização do currículo e na elaboração dos conhecimentos novos (STUANI, 2010).

A autora destaca, ainda, que o trabalho pedagógico, na perspectiva crítica, exigiu a organização de momentos de estudo e planejamento coletivo, o qual foi garantido semanalmente pelas escolas, através da formação permanente.

A perspectiva da formação permanente dos professores concebia o processo formativo na dimensão da práxis, onde ensinar exige por parte do docente um posicionamento ético sobre o que se ensina e por que se ensina.

Freire (1999a) defende a formação docente como permanente e destaca “o educador é o sujeito de sua prática, cumprindo a ele criá-la e recriá-la” (p. 80) de forma coletiva. Para o autor, encontra-se presente nela a dimensão da humanização, pois adentra na ontologia do ser, na busca por ser mais, através da reflexão crítica sobre a prática e a consciência dos valores éticos envolvidos em sua ação pedagógica.

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Desta forma, a formação docente, concebida como formação permanente, acompanhou o Movimento de Reorientação Curricular; dividindo-se em vários momentos: planejamento coletivo nas escolas, encontros de polos (mais de uma escola de uma mesma região) e os encontros bimestrais da área.

A participação docente acompanha o processo de formação permanente como um princípio organizador. Stuani (2010) descreve o caráter destes momentos como:

Nos encontros coletivos das escolas, discutíamos o planejamento a partir da investigação temática, tendo como referência cada realidade local (contexto), com a participação da comunidade escolar (sujeitos), construindo formas de intervenção e planejamento de atividades em sala de aula e atividades extra-escolares (processos). Nos encontros por polos, discutíamos questões mais amplas, que envolviam diferentes escolas, como por exemplo: como organizar a pesquisa participante nas comunidades; como organizar o processo de avaliação emancipatória; como trabalhar interdisciplinarmente, a partir das falas significativas. Nos encontros por área, tomando como base a área de Ciências Naturais, olhávamos para a especificidade da área dentro do movimento de reorientação curricular. Começava-se problematizando a concepção de Ciência, para quê e por quê estudar Ciências Naturais, recorrendo as contribuições da epistemologia com o intuito de entender a Ciência como investigação humana, não linear, processual, de caráter coletivo e sujeita às pressões econômicas e políticas de cada época, portanto não neutra, embasando-nos no trabalho de Delizoicov et al. 2002 (STUANI, 2010, p. 80-81).

Desta forma, a formação permanente, desencadeada

no MRCTG em todas as áreas de ensino, destacando o

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A participação docente... 125

Ensino de Ciências, buscou discutir e implementar processos educativos a partir dos problemas cotidianos enfrentados pelas comunidades escolares, visando a compreensão e conscientização de educadores e educandos.

A participação, como princípio organizador da formação, visava contribuir no desenvolvimento dos educadores, a fim de que assumisse uma postura ativa, crítica e propositiva. O horizonte a ser alcançado era de que, no pensar e repensar a ação de forma coletiva, o educador poderia ter uma consciência crítica sobre a sua ação pedagógica.

CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa é de caráter qualitativo, pois uma das suas

características refere-se à postura do investigador que não fica alheio à realidade estudada, “pois está inserido nos fenômenos dos quais procura captar os significados” (TRIVIÑOS, 1992, p. 121). O estudo faz parte da dissertação de mestrado intitulada: “A construção curricular popular crítica no Ensino de Ciências Naturais e suas implicações na prática docente” (STUANI, 2010).

O grupo investigado compõe-se de 13 professores de Ciências do Ensino Fundamental, participantes do MRCTG, de um universo de vinte professores que participaram do movimento. O critério de escolha foi de terem participado do MRCTG e estarem atuando em sala de aula.

Na coleta dos dados foram utilizados dois instrumentos: a entrevista semiestruturada composta de um roteiro aberto a fim de dar liberdade para exposição das ideias do entrevistado e de um instrumento baseado em ilustrações (APÊNDICE A).

Para analisar os dados coletados, tanto no instrumento baseado em ilustrações quanto na entrevista semiestruturada, foram observados os elementos da

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pedagogia freireana presentes em ambos. As análises apontam para os seguintes elementos da pedagogia freireana presentes nos dados coletados: “realidade do aluno, saberes dos alunos, problematização, pesquisa, interdisciplinaridade, trabalho coletivo, repensar da prática” (STUANI, 2010, p. 102-103). Os dados foram categorizados a partir do cruzamento das informações presentes nas entrevistas semiestruturadas e no instrumento baseado em ilustrações. A partir desta intersecção, elaboraram-se, então, as categorias de análise, a saber: A dialogicidade na ação docente; As superações da prática: o inédito-viável; Repensar na ação: refletindo e agindo sobre a prática pedagógica. Essas, juntas, possibilitam perceber como a participação dos docentes no MRCTG influenciou na ressignificação das suas práticas pedagógicas.

CATEGORIAS DE ANÁLISE A dialogicidade na ação docente

A perspectiva da elaboração do conhecimento no

MRCTG no Ensino de Ciências pautou-se no diálogo entre os diferentes saberes. Sendo assim, foi problematizada a visão de uma Ciência neutra e distante dos educandos, procurando trazer para a sala de aula a voz dos estudantes mediante a importância dada às suas visões de mundo (STUANI, 2010).

Para isso, o processo de formação docente era concebido na perspectiva da formação permanente, partindo das demandas que os educadores traziam de sua prática concreta de sala de aula:

O processo de formação permanente visava problematizar a visão de educação e ensino e partia sempre das dificuldades dos professores em implementar o currículo em sala de aula. A prática cotidiana era ponto

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de partida e chegada nas formações, buscando na teoria as respostas aos problemas vivenciados. A pedagogia da pergunta, os debates, discussões e troca de experiências faziam parte do processo de problematização do paradigma da educação que se queria superar (STUANI, 2010, p. 105).

A dialogicidade permeava o olhar docente para o

conhecimento escolar e para o educando que era visto como um sujeito pensante e não uma tábula rasa. Esta categoria encontra-se presente na importância dada pelos docentes aos saberes dos educandos, na elaboração do conhecimento em sala de aula e na postura investigativa do educador na seleção do conteúdo programático.

O conhecimento visto como algo significativo para os educandos encontra-se presente nas falas abaixo:

Sempre questionando eles, sempre partindo do empírico até o científico fazendo estas pontes (P2). A partir desta proposta eu consegui fazer o conteúdo, a sala de aula relacionar com o dia a dia, com a vida, com a vivência dos alunos (P11).

A preocupação em dialogar com os educandos na escolha dos conteúdos a serem trabalhados em sala também apareceu nos dados presentes no instrumento baseado em ilustrações. Esta afirmação encontra-se na justificativa dada pelos docentes em relação à escolha do ponto de partida para a elaboração do conhecimento em sala de aula. Esta relação pode ser identificada nas falas abaixo:

A situação 1 porque esta é uma realidade de muitos de nossos alunos e esta situação interfere na qualidade de vida deles e na aprendizagem e no relacionamento na escola (P2).

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Assunto 1, por serem temas que estão presentes no dia a dia dos nossos alunos (contexto ambiental e social) (P1). Eu escolheria o assunto água, porque é uma problemática que estamos vivenciando em nosso meio e precisamos esclarecer ao nosso aluno sobre o problema para que o mesmo possa propor soluções (P3).

A participação docente no MRCTG possibilitou o

desenvolvimento da capacidade de dialogar com a realidade junto aos educandos e assim propor alternativas para os problemas enfrentados. Desta forma, a formação docente pautou-se na reflexão crítica sobre a prática, de forma a conceber o docente como um sujeito do processo educativo. “Descobrimos que é a partir da reflexão sobre a nossa ação que nos construímos no dia-a-dia, educadores populares” (CHAPECÓ, 1998, p. 18).

Neste sentido, a dialogicidade possibilitou aos educadores organizarem critérios para a seleção dos conteúdos programáticos de sala de aula, fazendo do conhecimento científico um instrumento de compreensão da realidade e conscientização. As falas abaixo traduzem esta preocupação:

Para que os mesmos criem suas próprias opiniões e identifiquem-se como membros dessa sociedade para que possam construir-se como sujeitos críticos e participativos e com ações que possam fazer diferença no mundo em que vivem (P4). Em função justamente disso, o que a gente quer para o nosso aluno, que tipo de aluno a gente quer. Que cidadão a gente quer, um cidadão pensante, alguém crítico, alguém que ajude a construir a sociedade. Alguém que olhe com esse olhar. Então, que eles possam olhar para o mundo deles e possam refletir os problemas deles, mas que eles

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possam estar argumentando, que eles possam estar lutando (P9).

Desta forma, as preocupações acima citadas pelos

educadores, refletem o pensar de Freire (1998), quando o autor salienta que ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Portanto, participar ativamente na elaboração do currículo de sala de aula provocou nos educadores um repensar de suas práticas, desencadeando os inédito-viáveis que serão analisados na próxima categoria. AS SUPERAÇÕES DA PRÁTICA: O INÉDITO-VIÁVEL

O inédito-viável, para Freire (2008), é a possibilidade

de perceber que as situações contraditórias e opressoras podem ser superadas pelos sujeitos. É a crença de que a mudança é possível: “É a concretização da ação-reflexão dos homens e mulheres críticos, é o resultado da ação dialógica tão postulada por Freire” (DICKMANN; DICKMANN, 2008, p. 102).

A problematização constante do fazer pedagógico através do trabalho coletivo, por meio da participação dos educadores no MRCTG, desencadeou a superação de alguns limites presentes nas práticas pedagógicas, desencadeando alguns aprendizados que denominaremos de inédito-viáveis. A formação a partir das situações-limites, vivenciadas pelos docentes, buscou, na teoria, os fundamentos e embasamentos para a reorganização das práticas (STUANI, 2010).

Podemos considerar como um dos aprendizados a questão da pesquisa, conforme é explicitado nas falas a seguir:

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Com certeza, o desafio lançado naquela época eu trago até hoje. Me desafio sempre, ir em busca de coisas novas, poder trazer a realidade do aluno (P7). Com certeza, a questão da pesquisa que eu não tinha muito presente comigo. E hoje eu trabalho muito a pesquisa com os alunos, e a questão não só da pesquisa, mas o incentivo à leitura (P10).

Freire (2008) destaca a importância da reflexão e

ação dos homens sobre a realidade para transformá-la chamando-a de práxis. Para o autor, a práxis exige a inserção crítica dos oprimidos na realidade opressora, a fim de agirem sobre ela. Nas palavras de Freire (2008), o inédito-viável se expressa quando:

No momento em que estes as percebam não mais como uma ‘fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais ser’, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está implícito o inédito viável como algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua ação (FREIRE, 2008, p. 94).

A categoria inédito-viável busca discutir as

superações das situações-limites presentes no fazer dos professores, que na visão dos mesmos era algo impossível ou então não percebido como importante. Ela procurará identificar às mudanças que a participação dos docentes no MRCTG provocou em suas práticas. Os elementos do MRCTG presentes nesta categoria são: o partir da realidade, a problematização, a interdisciplinaridade e a pesquisa. Estas questões encontram-se explicitadas nas falas abaixo:

A discussão que antes dessa época nunca se fazia. O ER que a gente chamava antigamente e que hoje eles dão outros nomes, mas é a mesma coisa. Sempre

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questionando eles, sempre partindo do empírico até o científico fazendo estas pontes (P2). Mudou que a minha prática era uma prática de informar, eu informava o meu aluno. Porém a partir daquele momento eu passei a formar o meu aluno. A partir do momento que eu pensei em formar o aluno, eu passei a ser um agente mediador. Eu partia do problema do aluno, eu pegava o conhecimento comum passava para o científico e juntamente com o aluno, nós encontrávamos a solução daquele problema (P3).

Há também a interdisciplinaridade entre as diferentes áreas do conhecimento, que isso eu aprendi a trabalhar a partir dos Ciclos, que a gente começou a fazer essa relação. A princípio eu não tinha essa facilidade, eu via a minha área para trabalhar (P10). Antes de trabalhar nesta proposta, quando eu ia trabalhar a água. Eu trabalhava os estados físicos da água, a importância da água, como ela era usada, mas nunca relacionava com o dia a dia do aluno. Então eu trabalhava a água e de repente esse aluno nem tinha água encanada em casa, ou tinha muita falta de água. Então hoje eu consigo relacionar com o dia a dia do aluno, eu parto da realidade deles para depois o conteúdo em si (P11).

Destacamos os aprendizados, acima citados, como uma forma de conscientização da sua ação pedagógica por parte dos educadores. Sendo assim, de acordo com as análises de Damke (1995, p. 96),

[...] quando a realidade é tomada como objeto do conhecimento e o sujeito assume uma posição epistemológica, e quando esse momento formar uma unidade dinâmica e dialética com a ação transformadora, é que podemos falar em conscientização.

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Portanto, os educadores, ao alcançarem seus inédito-viáveis em relação ao seu fazer pedagógico, estariam em processo de superação da chamada “consciência ingênua” (FREIRE, 1999a) e aproximando-se da “consciência crítica”.

Desta forma, Stuani (2010) destaca alguns pontos das falas dos educadores presentes nesta categoria que os aproximam da concepção de educação libertadora, como: o ponto de partida para a elaboração do conhecimento em sala de aula, a preocupação com o enfoque interdisciplinar, a perspectiva da problematização presente na forma de instigar os educandos a estabelecerem relações e formas de intervenção na realidade concreta. Porém, a superação dos limites da prática só é possível quando desenvolve nos sujeitos a capacidade da reflexão crítica sobre a sua ação. REPENSAR NA AÇÃO: REFLETINDO E AGINDO SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA

A formação dos professores é de fundamental

importância para a qualificação da educação pública. Pensar a formação na perspectiva crítica exige conceber os docentes como sujeitos do seu processo formativo.

Os estudos de Terrazzan (2007), Carvalho (2007), Gil-Pérez (1996) e Menezes (1996) destacam a importância da aproximação entre os que pensam e os que executam os processos educativos. Há de se construírem espaços de decisão que sejam compartilhados trazendo a sala de aula e seus problemas para o centro da formação docente.

Portanto, analisar as inovações curriculares envolve pensar a concepção de formação presente nas propostas inovadoras. A Abordagem Temática Freireana pauta-se na formação permanente, que visa aproximar teoria e prática no sentido da práxis. Seu pressuposto é um constante movimento de reflexão da ação docente, visando a

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emancipação e o empoderamento dos educadores diante das dificuldades enfrentadas na prática.

Menezes (1996), ao defender a formação permanente na formação de professores, destaca algumas características presentes nesta modalidade como:

Uma concepção do professor como agente transformador e, portanto, a proposição de atividades de formação orientada para a reflexão e as ações em sala de aula (pesquisa-ação); A aprendizagem entendida como um processo de significação e de construção de conhecimentos; As atividades de formação compreendidas como elaboração conjunta dos professos de mudança, por parte de professores e formadores; estes últimos, através da função de facilitadores da formação; Os facilitadores de processos de formação como pessoas que possuam um bom conhecimento da disciplina científica em questão; Materiais e atividades formativas que reúnam conjuntamente os conteúdos e as formas didáticas; Atividades de formação que permitam a elaboração e colocação em prática coletiva os processos de mudança (MENEZES, 1996, p. 159-160).

O Movimento de Reorientação Curricular Popular

Crítico no Ensino de Ciências, como uma proposta de inovação, priorizou na formação permanente a participação dos docentes no planejamento coletivo das ações educativas.

Os documentos que descrevem o MRCTG destacam a participação como um pressuposto para desencadear, nos docentes, a postura reflexiva diante do seu fazer pedagógico:

O educador não é somente aquele que desenvolve sua aula recebendo receitas de um grupo competente de coordenação que as prepara e organiza. O trabalho de sala de aula exige espaços de construção coletiva sobre as

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134 A atualidade das ideias de Paulo Freire

ações educativas, onde o educador possa criar e recriar, pensar a sua própria prática construindo-a através da teorização (CHAPECÓ, 1998, p. 11).

A categoria Repensar na Ação traz a importância

dada pelos educadores à participação nos momentos de planejamento coletivo para superar as dificuldades imanentes da prática.

O professor P1 destaca a relevância destes momentos e o significado que ele representa no momento presente na educação municipal:

Sempre que a gente tem a possibilidade de trabalhar junto com os outros professores e organizar as aulas juntos é claro que é um ponto positivo. Só que hoje a gente se depara muitas vezes com essa falta do trabalho coletivo nas escolas. A gente tem a impressão de que não se dá muita importância pra isso. E quando a gente tem o grupo reunido todo e que a gente poderia estar planejando em grupo, junto, pensando, trocando ideias, socializando experiências, a gente fica com aqueles momentos pra repasse de recados, na escola [...] Então hoje a gente se limita bastante ao tempo desperdiçado, que hoje quem coordena esse trabalho nas escolas, não pensa que esse momento que a gente para pra pensar juntos seja bem aproveitado.

A fala do educador P1 destaca a busca pela coerência

entre a teoria e a prática, que se aproxima da consciência crítica de Freire (1999a).

Outro elemento presente nesta categoria é a interdisciplinaridade, que só se consolida no trabalho coletivo de sala de aula. A crítica dos educadores é a falta da interdisciplinaridade, vivenciada no momento presente e que era frequente no MRCTG. As falas abaixo explicitam esta questão:

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A participação docente... 135

Hoje a gente se sente um pouco perdido, porque cada um prepara a sua aula e vai para a sala de aula, não sabe o que o outro está fazendo. Hoje na escola é tudo muito individual, cada um faz do seu jeito. Ninguém olha para o planejamento da gente pra dizer que tem que melhorar, se está bom. É eu e o aluno de sala de aula, não tem interdisciplinaridade (P2). E trabalha por disciplina e muito pouco a gente se reúne. Alguma disciplina a gente vê que está trabalhando, aí ah eu tô trabalhando isso eu posso encaixar, tudo na correria a gente não consegue discutir o assunto (P6).

As reflexões dos educadores expressam o conceito

de interdisciplinaridade não como justaposição, mas como um diálogo problematizador a partir de um objeto de estudo comum.

Stuani (2010) destaca a participação como condição na busca que instiga os homens a refletirem sobre sua ação no mundo, com vistas à humanização. O MRCTG tinha na participação popular presente nas várias instâncias de decisão um instrumento de democratização do acesso e permanência dos educandos na escola e no exercício do poder de decisão. Este pressuposto encontra-se presente nas falas dos educadores abaixo:

Eu me sentia bem ativa e com dificuldades. [...] Mas a gente se sentia sujeito, porque a gente acabava fazendo, às vezes errando, às vezes acertando, então não era uma coisa decorada, mas a gente estava sempre indo em busca (P2). Eu me sentia como parte integrante desse movimento, eu sentia prazer em participar. Porque eu percebia que esse conhecimento estava me dando uma maior visão de mundo, os meus alunos também estavam tendo uma melhor visão de mundo (P3).

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Eu me sentia muito valorizada no trabalho que a gente fazia, expondo trabalhos, tendo muitos cursos, eu aprendi muito naquela época (P11).

Freire (1998) destaca que o pensar certo, exige a

coparticipação, pois o entendimento não é transferido, mas elaborado coletivamente através da problematização dos saberes.

Como todo processo inovador, o MRCTG teve seus avanços e suas dificuldades, como podemos perceber na fala dos professores:

Um aprofundamento melhor no estudo para a gente conseguir entender melhor as falas (P6). Muitos, a gente percebeu que não entenderam e nunca vão entender. E se a gente fala de novo em Educação Popular, com toda essa organização que tinha, ficam com medo. Ficam com medo por nunca terem entendido, então como é que a gente poderia ter feito diferente, pra chegar até esses educadores e aos poucos fazendo com que entendessem que as ideias, tudo aquilo que estava sendo construído era com a participação dele também (P1).

Podemos relacionar estas questões com as análises

de Sacristán (2000), que salienta a responsabilidade dos docentes no desenvolvimento curricular, ou seja, na seleção dos conteúdos considerados socialmente válidos. Desta forma, há de se considerar a prática docente como sujeita às pressões das instituições em que atuam:

O professor não decide sua ação no vazio, mas no contexto da realidade de um local de trabalho, numa instituição que tem suas normas de funcionamento marcadas às vezes pela administração, pela política curricular, pelos órgãos de governo de uma escola ou pela

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A participação docente... 137

simples tradição que se aceita sem discutir. [...] Possibilidades autônomas e competências do professor interagem dialeticamente com as condições da realidade que para o que ensina vêm dadas na hora de configurar um determinado tipo de prática por meio da própria representação que faz desses condicionamentos (SACRISTÁN, 2000, p. 166-67).

Compreendendo o ser humano como um sujeito em

constante processo de busca pelo “ser mais” (FREIRE, 2008), o MRCTG no Ensino de Ciências caracterizou-se como um processo de problematização das ações docentes, visando a ressignificação das práticas, além do entendimento dos condicionantes que interferem em sua ação. Desta forma, ficam os desafios de como continuar processos progressistas de educação sem contar com as condições necessárias para a sua implementação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A implementação de processos inovadores, como o

vivenciado no município de Chapecó, na gestão (1997-2004), revela a necessidade dos educadores estarem dispostos a pensarem criticamente e ousarem mudar as suas práticas.

Assumir uma posição progressista (SNYDERS, 1974) diante da sua tarefa educativa, envolve comprometimento ético com a conscientização dos educandos, instigando a capacidade de pensar e promover mudanças na sociedade.

A formação permanente no MRCTG suscitou, nos educadores, a curiosidade epistemológica (FREIRE, 2008) de buscar coletivamente respostas aos problemas imanentes da prática. Salientamos que alguns docentes incorporaram a concepção de Educação Libertadora, reafirmando na prática os princípios da Educação Popular. Em seus depoimentos

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138 A atualidade das ideias de Paulo Freire

explicitam a importância da proposta em seu crescimento profissional e também em nível pessoal.

As categorias analíticas revelam que o pensamento e a ação dos educadores que participaram do MRCTG mudaram após a participação nesse processo. Destacamos que alguns princípios foram incorporados à prática pedagógica, como: a valorização dos saberes dos educandos, a relação entre realidade e o conhecimento científico, a necessidade da interdisciplinaridade e do trabalho coletivo na ação docente.

A participação dos educadores na vivência freireana na elaboração das práticas escolares contribuiu para o processo de humanização (FREIRE, 1998) dos docentes, tanto na superação do medo de falar em público, quanto na forma de pensar os conteúdos escolares. Sendo assim, esperamos que a reflexão pedagógica que a presente pesquisa desencadeou possa contribuir para humanizar as práticas pedagógicas e os sujeitos inseridos nos contextos educativos.

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Apêndice A – Modelo do instrumento baseado em ilustrações

Caro Professor: o instrumento a seguir apresenta três assuntos que são colocados à sua disposição para a escolha daquele que considerar mais importante para se trabalhar em sala de aula.

Assunto 1

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144 A atualidade das ideias de Paulo Freire

Assunto 2

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A participação docente... 145

Assunto 3

1. Que situação você escolheria para trabalhar em sala? Por quê? 2. Procure descrever como você gostaria de trabalhar esta situação, em sala de aula, ou qual seria a melhor abordagem para esse tema. 3. Como você está trabalhando a disciplina de Ciências em sua escola?

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146 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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II

A CONCEPÇÃO FREIREANA COMO APORTE PARA A FORMAÇÃO PERMANENTE DE

PROFESSORES DE EJA1

Suzi Laura da Cunha* Nadir Castilho Delizoicov**

INTRODUÇÃO

É consenso, na comunidade científica, que a

formação profissional não se encerra com a conclusão da licenciatura, pois os professores, no exercício da docência, enfrentam situações com características únicas, que exigem respostas únicas. Freire (1992) considera que a formação do professor acontece o tempo todo, é permanente na caminhada de fazer-se professor, é resultado da “condição de inacabamento do ser humano e a consciência desse inacabamento”. Ao referir-se à formação de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA), Freire salienta que o ato de ensinar e aprender nessa modalidade de ensino não

1 A primeira publicação do texto foi feita na Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 165-185 jan./mar. 2016 * Mestre em Educação pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), onde atua como professora na Licenciatura em Pedagogia. Participa como pesquisadora do grupo de pesquisa Ensino e formação de professores, cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected]. ** Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no PPGE da Unochapecó, é pesquisadora no grupo de pesquisa Ensino e formação de professores, cadastrado no CNPq. É professora colaboradora do PPPGECT/UFSC. E-mail: [email protected].

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deve limitar-se a simples técnicas mecânicas de ler e escrever. É imprescindível uma prática voltada para uma educação diferenciada, com especificidades do universo do aluno adulto.

Quanto ao professor da EJA é o mesmo que atua no ensino fundamental e médio, pois não há exigência de uma formação específica e, geralmente, tal profissional não teve, no âmbito das disciplinas da formação inicial, uma discussão sobre essa modalidade de ensino (MARASCHIN; BOLLOCHIO, 2005). É imprescindível que professores da EJA tenham clareza dos desafios a serem enfrentados, pois historicamente, nesta modalidade, se cruzaram e se cruzam interesses não consensuais, principalmente quando seu público é formado por jovens e adultos trabalhadores, pobres, negros, subempregados, oprimidos e excluídos do direito à escolarização (ARROYO, 2008).

O documento elaborado pelo MEC (BRASIL, 1999) sobre os referenciais para a formação de professores da EJA aponta para a necessidade de professores comprometidos e que tenham a possibilidade de “elevar a qualidade da educação”, visando o desenvolvimento do aluno como sujeito histórico, capaz de responder aos desafios do mundo globalizado. O mesmo documento destaca a importância de constituir novas habilidades na formação docente para uma sociedade em constante transformação e considera, ainda, que essa formação necessita ter a escola como espaço de reflexão (BRASIL, 1999). É no cotidiano da escola que propostas de mudanças devem ser levantadas, discutidas e concretizadas, para que se possa promover a tomada de consciência em direção à construção da escola democrática (SAVIANI, 2000).

Assim, o objetivo deste artigo é analisar, com base em dados da pesquisa de Cunha (2014), a formação permanente de professores da EJA, ocorrida durante o período de 1997 a 2004 no município de Chapecó, no

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âmbito do Movimento de Reorientação Curricular. A pesquisa de Cunha (2014) derivou do sub projeto de pesquisa “O Movimento de Reorientação Curricular em Teses e Dissertações: a implementação da concepção freireana em redes públicas de ensino” (DELIZOICOV, 2011), vinculado ao Projeto interinstitucional da Cátedra Paulo Freire da PUC/SP (SAUL; SILVA, 2011; SAUL, 2014) que investiga a influência da concepção freireana em redes públicas de educação e articula pesquisadores de várias regiões do País (SAUL; SILVA, 2011; DIAS; OLIVEIRA, 2013; DELIZOICOV; STUANI; DELIZOICOV, 2013; OLIVEIRA; RODRIGUES, 2014; SAUL, 2014).

De modo semelhante ao processo formativo ocorrido em Chapecó, no período referido, vários municípios brasileiros, por meio de suas Secretarias de Educação, desenvolveram propostas em sintonia com a concepção de educação de Freire, que é disseminada em sua vasta obra. Em Silva (2004) encontra-se uma análise de algumas delas e em Delizoicov, Stuani e Delizoicov (2013) encontra-se análise de trabalhos acadêmicos desenvolvidos em instituições localizadas na região Sul do País que tiveram essas iniciativas como objeto de estudo.

O CONTEXTO DA PESQUISA

Uma frase de Paulo Freire, “se a educação por si só

não muda o mundo, tampouco o mundo é transformado sem ela”, foi bem compreendida por cidadãos chapecoenses, principalmente aqueles que estavam envolvidos no Orçamento Participativo 2 de 1997, quando se definiu a Educação como prioridade para o município. Frente aos investimentos feitos no campo da Educação, Chapecó tornou-se referência na modalidade de ensino da EJA. Os

2 Programa desenvolvido pela prefeitura municipal de Chapecó como um instrumento de participação e decisão dos investimentos do município.

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professores tinham, à época, garantido 20% da sua carga horária de trabalho para dedicação aos estudos, planejamento e avaliação das práticas escolares. Esse tempo de pensar e repensar as questões pedagógicas da escola permitiu um trabalho coletivo, integrado no sentido de melhorar a qualidade da educação no município. O processo de reorganização, a concepção de currículo, a mudança para uma outra visão de educação, passou a ser denominado de Reorientação Curricular, que teve na EJA a porta de entrada e estendeu-se para as outras modalidades de ensino como o fundamental e a educação infantil (CHAPECÓ, 1998, 2002).

A política educacional, ao organizar e implementar a Reorientação Curricular, faz uma opção pelas práticas que levam as instituições escolares a se tornarem espaços de conscientização e construtores de uma nova cultura transformadora. O Movimento de Reorientação Curricular numa perspectiva crítica busca construir, por intermédio de um processo participativo e inovador, novas práticas socioculturais (SILVA, 2004). Os estudos e discussões apontaram para a definição da Educação Popular como eixo norteador da política educacional em Chapecó:

A organização popular crítica do fazer curricular é capaz de denunciar e superar a prática construtora de sentidos e significados identitários hegemônicos, [...] contribuindo para a transformação participativa da sociedade. Nessa perspectiva, só movimentos de reorientação curricular problematizadores podem ser considerados processos de formação/transformação radical da prática educacional hegemônica que institui a ideologia da positividade como forma de legitimar a negatividade social vivenciada pela comunidade (SILVA, 2004, p. 348).

O Movimento de Reorientação Curricular em

Chapecó envolveu ativamente os educadores e demandou, na Secretaria Municipal de Educação e Cultura, a realização

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de eventos, os quais deram início ao programa de formação permanente. Pode-se citar entre eles o 1o Seminário de Educação Popular, o 2º Congresso da EJA, o Fórum de Debates, Ciclo de Formação, Conquistas e Desafio “Um lugar onde se Constrói Educação com a Participação Popular” (STUANI, 2010):

A Educação Popular, enquanto opção política da Rede Municipal de Educação, deve-se ao compromisso com a democratização da escola pública e a superação do modelo excludente de educação e para uma nova práxis educacional comprometida com a transformação da realidade sociocultural e econômica vigente, tendo a participação popular como eixo organizador das políticas públicas de educação (STUANI, 2010, p. 60).

Além de encontros semanais para que o processo de

formação de professores da EJA se efetivasse, outras ações foram necessárias, tais como: acompanhamento permanente dos professores pela equipe pedagógica da EJA; embasamento teórico através de oficinas; estudo de textos relacionados à Educação Popular na concepção de Paulo Freire; momentos de estudo e intercâmbio de experiências vivenciadas; desenvolvimento de pesquisa participante com a comunidade e com os educandos; seminários com a participação de alunos professores e palestrantes, estudiosos de Paulo Freire (CHAPECÓ, 2002).

Na primeira Conferência Municipal de Educação, ocorrida em Chapecó, no ano de 1997, definiu-se as diretrizes para a educação do município, na perspectiva da Educação Popular através da instituição dos Conselhos Escolares, como órgãos máximo da escola; a eleição dos membros do Conselho Municipal de Educação; a eleição dos diretores de escolas e Centros de Educação Infantil Municipal; e o compromisso de se realizar a conferência de dois em dois anos (CHAPECÓ, 1998). O documento,

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produzido a partir da conferência, destaca o desafio em proporcionar mudanças na educação tradicional até então em vigor:

Diante de todos os desafios que foram colocados no decorrer do ano de 1997 com o trabalho desenvolvido na EJA, percebemos que a superação se dá no fazer, no confronto, não existindo fórmulas para superar as dificuldades. O que ocorreu foi vontade de transformar e criou-se na educação uma rede horizontal de confiança, onde a sinergia ali produzida de maneira coletiva, integradora e democrática, proporcionou as ações de mudança de uma educação que domesticava para uma educação libertadora (CHAPECÓ, 2002, p. 16).

A EJA se consolidou a partir de 1998 como um

programa permanente, no município de Chapecó, pelo atendimento à grande demanda que naquele ano chegava a 4.238 alunos matriculados; um crescimento de mais de 100% em relação ao ano de 1997:

A EJA em 1998, 1999 e 2000 foi reconhecida pelas fundações FORD e FGV com certificado por mérito (Medalha de Mérito em Gestão Educacional Anísio Teixeira) como um dos 100 melhores programas em Gestão e Cidadania no país (CHAPECÓ, 2002, p. 9).

Os princípios teóricos de Paulo Freire subsidiaram

ações que objetivaram mudanças visando à melhoria na qualidade da educação, no município de Chapecó.

Apresentamos, a seguir, os encaminhamentos metodológicos que permitiram obter informações de professores e coordenadores, que vivenciaram o processo de formação permanente da EJA, durante o Movimento de Reorientação Curricular.

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ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS A coleta de dados se deu por meio de questionário

com perguntas abertas e fechadas; e entrevista semiestruturada, com o objetivo de aprofundar informações sobre as compreensões dos docentes a respeito da formação permanente. Professores que coordenaram o setor da EJA, durante o Movimento de Reorientação Curricular, forneceram uma lista com os nomes de 61 docentes; 45 deles foram localizados e a estes se encaminhou os questionários. O envio se deu por e-mail para 27 professores, com retorno de apenas seis; dos 18 questionários entregues pessoalmente retornaram 11. Para todos os professores e coordenadores que participaram deste estudo foi encaminhado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme exigência do Comitê de Ética.

Do total de 17 questionários foi possível obter as seguintes informações: 14 professores estavam efetivos em 2013, época da recolha dos dados, atuaram em sala de aula durante o processo de Reorientação Curricular e participaram sistematicamente da formação permanente; três destes coordenaram a equipe da EJA em um determinado período; um deles tinha cerca de dez anos de docência e os demais 15 anos de profissão. Esses professores atuam em distintas disciplinas, tais como Ciências, Geografia, Artes, Matemática, Língua Portuguesa, Língua espanhola, na Coordenação da EJA e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A entrevista semiestruturada foi realizada com quatro professores, que se dispuseram a colaborar com o estudo, sendo que um deles foi coordenador. Os professores estão assim identificados, por exemplo, “EA”, a letra “E” significa que os dados foram fornecidos através de entrevista e a letra “A” refere-se ao professor informante. Quando o professor estiver identificado com uma letra “P” acompanhada de um número, por exemplo “P1”, significa

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que as informações foram retiradas do questionário. Os dados obtidos foram submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2009). DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Os depoimentos dos professores foram organizados

em categorias determinadas a posteriori, são elas: práticas pedagógicas; trabalho coletivo e dialogicidade; sujeito do processo; formação permanente, conforme proposição estabelecida para análise de dados fundamentados no projeto (SAUL, 2011). Práticas pedagógicas

Durante o período de Reorientação Curricular foram

ocorrendo mudanças, uma das mais complexas refere-se à concepção de educação e à ação pedagógica, pois a intenção era desconstruir a lógica fragmentada do planejamento e da ação docente em direção a uma prática

[...] mais contextualizada e coletivizada, onde os educadores, coletivamente, na condição de sujeitos do processo pedagógico, a partir da realidade e do conhecimento científico, constroem o planejamento da ação docente, e a programação das aulas, de forma que, os alunos também na condição de sujeitos do processo pedagógico tenham aprendizagens significativas para a sua formação cidadã (MAZZIONI, 2004, p. 117).

Uma das grandes alterações foi a proposta do Tema

Gerador (FREIRE, 1983) como orientador das ações pedagógicas, fundada na concepção da prática transformadora que determina o diálogo com a realidade como categoria permanente e constante no ato de conhecer e reconhecer o cotidiano do educando. Com essa orientação

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conceitual, a partir das situações concretas, pode-se organizar o conteúdo programático da educação em diálogo com os envolvidos, através da proposta de Freire (1983) para a efetivação da investigação temática.

A proposta político-pedagógica da Secretaria Municipal de Chapecó identificou, em Paulo Freire, o aporte essencial para o desenvolvimento de uma prática educativa libertadora, que tem como princípios a democracia, a cidadania, a autonomia e o trabalho coletivo. Nessa concepção, o sujeito é visto como humano pleno de historicidade e de possibilidades de interação ativa com a realidade (POLI, 2004).

A abertura para uma mudança se colocou como ponto de partida para aqueles que optaram por propor transformações: “É exatamente porque sei que mudar é difícil, mas é possível que eu me dou ao esforço crítico de trabalhar num projeto de formação de educadores” (FREIRE, 2000, p. 96).

Com a definição da concepção freireana, como a norteadora do processo de formação, deu-se início a um novo movimento pedagógico, segundo o qual o conhecimento não é desvinculado da prática que liberta. Essa mudança demanda uma problematização do conhecimento, implica fazer uma ruptura com a cultura pedagógica historicamente construída sob uma concepção tradicional de educação. Desse modo, novos horizontes passaram a ser vislumbrados pelos professores:

[...] a gente passou a olhar a educação com outro olhar, a respeitar mais aquilo que era trazido pelos educandos, pelos adultos na época, o conhecimento que era trazido e ressignificado, ele era problematizado junto com eles nos diferentes momentos de estudo e com certeza todo esse processo, os momentos de parada que na época eram semanais contribuíram muito na prática no olhar crítico da educação e na prática também (EA).

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Imagine professores estritamente tradicionais, começarem a dialogar com alunos, acolher os mesmos, pensar as aulas a partir de suas necessidades, foi algo revolucionário e desafiador (P3).

Pelos depoimentos destaca-se que a formação

permanente, na concepção freireana, busca a transformação não apenas da prática, como muitas vezes é o objetivo de oficinas ofertadas esporadicamente em cursos de formação continuada; ao contrário, a formação permanente através da problematização e das discussões visa alterar a forma de pensar e agir, portanto, trata-se de um processo lento de conscientização dos docentes para uma compreensão do por que e para que mudar.

Assim, [...] mudou não só a minha prática, mas mudou a minha vida enquanto ser humano mesmo, eu passei a ver o mundo com outros olhos, a sociedade com outros olhos porque ela não mexeu apenas na minha prática enquanto professora ela mexeu na minha concepção enquanto ser humano enquanto sujeito inserido neste mundo, um cidadão, eu sou professora pra quê, eu ensino ciências pra quê, o que o ensino de ciências vai contribuir pra esse aluno da EJA (EB).

[...] eu me tornei muito mais sujeito acho que eu cresci muito, me ajudou muito como pessoa como ser humano... quem sabe um dia a gente construa uma outra experiência semelhante, não vamos fazer a mesma experiência, mas acho que precisa mudar algumas coisas na educação do município (EA).

Freire (2000) argumenta que não cabe ao professor

conduzir os educandos na direção dos seus sonhos, mas sim o dever de combater as injustiças, deixando claro que “[...] mudar é difícil, mas é possível. A consciência de que é

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possível mudar o mundo é conhecimento indispensável aos educadores” (FREIRE, 2000, p. 98).

A intensidade de estudos, pesquisas e reflexões, tendo a prática como ponto de partida, qualificou o trabalho pedagógico do coletivo de professores da EJA, que passou a considerar o ato educativo de forma diferenciada da tradicional, que considera o aluno como o receptor de informações.

Quanto à continuidade do processo de Reorientação Curricular, como o vivenciado na rede municipal de Chapecó, os quatro professores entrevistados afirmaram que teriam a possibilidade de avançar para além daquilo que foi produzido, pois possuem maior clareza sobre a intensidade e o objetivo de uma educação segundo os pressupostos de Paulo Freire:

Participaria com certeza. [...] inclusive teria questões para sugerir pra avançar em questões de resistência, muita gente era resistente ao processo e hoje eu teria mais clareza pra lidar melhor com estas resistências, pra criar novos espaços de participação [...] (EB).

Sim eu participaria, porque pra mim o programa foi muito bom, eu posso dizer assim que eu era uma professora antes do programa e agora sou outra pra mim o programa foi muito rico em aprendizagem [...] (EC).

Esses depoimentos demonstram que, através de um

trabalho de formação intensivo e organicamente sistematizado, pode-se vislumbrar mudanças significativas nas ações docentes, o que requer tempo para uma conscientização sustentada teoricamente. No entanto, encontra-se resistência daqueles que, por razões diversas, inclusive ideológicas, se negam a avançar preferindo permanecer na zona de conforto na qual se sentem mais seguros.

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Freire (1990) destaca a reflexão e a ação na formação de professores: “[...] é um movimento realizado entre o fazer e o pensar, entre o pensar e o fazer, ou seja, no ‘pensar para fazer’ e no ‘pensar sobre o fazer’” (FREIRE, 1990, p. 85). A partir do conceito de reflexão, Freire acrescenta duas categorias: a crítica, que resulta na transformação da curiosidade ingênua em inquietação indagadora, e a formação permanente, que pressupõe que nunca estamos prontos. Um dos objetivos da formação permanente é possibilitar a articulação teórica com as práticas pedagógicas, num movimento constante de ação-reflexão-ação,

[...] a construção das questões geradoras realizadas pelo diálogo entre as diferentes dimensões envolviam o pensar, o agir e o teorizar a prática num movimento de reflexão-ação de caráter coletivo (P17).

Freire propõe uma pedagogia dialógica, propulsora

da ação-reflexão, práxis determinante da conscientização, capaz de possibilitar maior representatividade social do aluno como cidadão ativo, que se descobre integrante da sociedade na qual está inserido, renunciando ao papel de mero espectador, tornando-se agente transformador da realidade (FREIRE, 1996). No pensamento do autor, o professor deixa de ser visto como transmissor de conhecimentos e é concebido como sujeito portador de um saber teórico e prático que lhe permite enfrentar situações nem sempre previsíveis e construir respostas para situações complexas e singulares, um profissional com atitude investigativa e reflexiva da prática pedagógica. A formação permanente implica em reflexão crítica da prática pedagógica e construção de diálogo e respeito pelo saber do educando:

É pensando criticamente a prática de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo

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concreto que quase se confunda com a prática (FREIRE, 1996, p. 18).

A reflexão surge a partir da curiosidade sobre a

prática docente, curiosidade que inicialmente é ingênua e transforma-se em crítica, na medida em que vai fazendo o movimento de reflexão sobre a ação com vistas a uma ação transformadora.

A formação permanente e o trabalho coletivo podem ajudar o professor a ter maior clareza de seu papel enquanto educador e, consequentemente, melhorar seu desempenho como sujeito que ensina e que aprende. Trabalho coletivo e dialogicidade

Somente nos constituímos como seres humanos no

coletivo e, para tanto, é preciso conviver com o diferente e aprender que existem pensamentos diferentes dos nossos, mas que podem agrupar-se em forma de teia de vivências enriquecedoras para todo o grupo (FREIRE, 1983). A visão de trabalho coletivo é apontada pelos professores quando discorrem sobre o forte envolvimento do grupo nas ações que eram proposta,

[...] participação também dos educadores que trabalhavam com estes alunos. Envolvimento das direções das escolas com os responsáveis pela Secretaria de Educação para melhorarmos a educação dos jovens e pensar um modelo diferente para atrair os alunos até a escola (P7).

Freire e Shor (1986) afirmam que a educação

libertadora se constitui num estímulo para as pessoas se mobilizarem, organizarem-se e se “empoderarem”. Os envolvidos se ajudam num esforço comum de conhecer e reconhecer o espaço de atuação. O conhecimento é uma construção social, que está necessariamente interligada ao

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coletivo. No trabalho coletivo, instigamos o senso da contradição e da oposição ao outro ser humano, mas também reafirmamos nossos princípios e concepções.

O planejamento coletivo e interdisciplinar exigia do grupo envolvido um diálogo constante que, segundo Freire (1992), é um componente essencial na educação comprometida com a construção de sujeitos democráticos, “[...] era o grupo de professores que ia sugerindo por onde a gente vai andar, eu lembro que a gente estudou alguns referenciais [...] então a gente foi estudando [...]” (ED).

Freire, assim, compreende o diálogo necessário à prática educativa:

Diálogo é uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos (FREIRE, 1992, p. 115).

A experiência dialógica estimula o homem a

investigar criticamente o mundo, na intenção de transformá-lo, a dialogicidade exige que o homem se mantenha em uma relação de respeito perante a liberdade do outro, portanto, requer uma relação construída não pela força da opressão e submissão, mas pela capacidade de dialogar. Não existe aquele que só ensina e aquele que só aprende, todos são sujeitos das ideias e comportamentos que vão compor o todo do trabalho que será produzido (FREIRE, 1996). “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1983, p. 68).

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O sujeito do processo Não é possível conceber a educação sem identificar o

educando como sujeito do ato educativo, identificar não só um sujeito que conhece, mas que vive, age e constrói história, determinando os rumos da sociedade. À medida que os homens exercem sua ação eficaz sobre o mundo, na intenção de transformação pelo seu trabalho, refletindo sobre seu fazer, vão tomando consciência de si e do mundo e se constituindo como sujeito de seu próprio ser (FREIRE, 1992).

Os depoimentos dos professores consideram a intenção de no processo de formação permanente enfatizar a necessidade de se organizar, na escola, um espaço de ensino-aprendizagem que tenha o aluno como sujeito dessas ações:

[...] a gente construía, [...] uma outra perspectiva ... eles se consideravam sujeitos, os alunos eles tinham um processo que era interessante de encontro e de diálogo (EA);

[...] os nossos alunos eram muito críticos, os alunos da EJA eram muito críticos... a gente percebia assim que não era um estudar para tirar nota [...] era um estudar pra saber mesmo pra aprender (EB).

A importância de se considerar o conhecimento dos educandos foi observada no depoimento dos professores, como:

Levar em conta a realidade do aluno. Conhecer sua história, entender a sua vivência e junto com ele tentar transformar a realidade em que vive (que não é fácil) (P13).

Ouvir os alunos, sentir suas necessidades, ver educação como um espaço de libertação, gostar de gente, assim

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como Paulo freire. Partir da realidade e fazer análise crítica do conhecimento (P7).

Há aspectos profundos na percepção e valorização

dos saberes e cultura popular, pois significa reconhecer a pluralidade de tempos e espaços, isto é, reconhecer a cultura como matriz da educação. A EJA constitui espaço rico de experiências e os saberes dos alunos podem ser transformados em conteúdos curriculares (ARROYO, 2008).

Não é suficiente que professores e alunos sejam críticos apenas em relação às situações que os cercam, é necessário que os conteúdos apresentados na escola estejam contextualizados à realidade vivenciada pelos alunos e por outras comunidades (FREIRE, 1990).

O grande desafio de uma educação libertadora é a renovação constante da prática, de acordo com as necessidades da população. A Educação para Freire consiste em um conjunto de valores pedagógicos, um compromisso com a população que ao longo da história foi sendo discriminada e excluída da escola.

Formação permanente

Na concepção freireana de educação, a formação do

professor necessita constituir-se permanentemente pelas próprias demandas de um currículo que é construído a partir das contradições vividas, pelos educandos e educadores em seu cotidiano. Essa concepção desencadeou modificações significativas na forma de trabalhar com o público da EJA, na firme intenção de superar a concepção dessa modalidade como suplência ou como reforço (CHAPECÓ, 1998). Para Freire (1996), formar vai além do movimento de puramente treinar o educando. É preciso se colocar como sujeito em constante transformação num movimento permanente de procura e de curiosidade.

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A definição pela concepção freireana de educação, adotada pelo Movimento de Reorientação Curricular, segundo os professores, deu-se por entenderem que ela apresenta características necessárias para responder às problemáticas enfrentadas no cotidiano da escola:

A opção por freire veio primeiramente por uma visita a uma experiência lá da EJA de Porto Alegre e a EJA de POA trabalhava a partir de Freire, mas a concepção freireana veio mesmo a partir dos próprios princípios organizados nos PPC’S das escolas que se pautavam em alguns princípios como democracia, trabalho coletivo, cidadania e autonomia além de toda uma inclusão social de uma parcela da população [...] então a concepção freireana ela só veio responder a uma demanda teórica que nós tínhamos e ela veio responder com a prática [...] (EB). [...] buscando assessoria porque na verdade também todos os componentes da secretaria nunca passaram por um processo de formação [...] foi um processo de diálogo, de leituras, de visitas de formação e assessoria de outras administrações então essa definição foi exercitando esse diálogo (ED).

O grupo de professores compreendeu que a

concepção freireana apresentava importantes subsídios para orientar o Projeto Político-Pedagógico da rede, bem como orientar uma proposta capaz de promover transformações no processo de ensino-aprendizagem de sujeitos adultos:

Tinha uma proposta definida e era essa que estudávamos, o estudo era constante, toda semana, fomos visitar experiência em Porto Alegre de educação de jovens e adultos. O que mais marcou foi que, durante este período que trabalhei na EJA, aprendi mais com a formação mais do que com meu tempo de faculdade (P9).

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Na afirmação do professor (P9), pode-se destacar que a experiência vivenciada forneceu subsídios não só para a atuação docente, mas para a formação do ser humano como cidadão que ensina e que aprende. Na formação permanente não basta refletir sobre a prática pedagógica, é necessário refletir criticamente de modo contínuo e permanente, é um movimento apoiado em uma teoria consistente para que professores em formação possam visualizar possibilidades de mudanças.

Algumas dificuldades e desafios enfrentados durante o processo do Movimento de Reorientação Curricular foram apontados pelos professores, tais como: a resistência inicial de docentes para envolverem-se em um processo diferenciado e ter que repensar as práticas escolares:

Houve resistência, sim, por medo do novo, por falta de consciência, por não acreditar e pela concepção de política de cada um. [...] Outros continuaram resistindo e fazendo por fazer o seu trabalho [...] (P17).

Implantar o próprio processo foi desafiador. Era mexer com uma realidade arraigada, viciada, acomodada e ‘exigir’ que lêssemos, discutíssemos, produzíssemos, planejássemos juntos. E ‘o sair do território’ onde nos achávamos experts, [...], foi doloroso, aliás, muitos não saíram, outros faziam de conta, mas a maioria bancou esse projeto depois que compreendeu (P11).

Alterar a prática demanda tempo e conscientização,

por exemplo, Delizoicov (1995) analisa uma amostra de professores de ciências naturais que participou do processo de formação permanente de professores, sob os princípios de Paulo Freire, ocorrido na Secretaria de Educação do Município de São Paulo no período de 1989/1992. São caracterizadas práticas educativas desses professores o que permitiu distinguir três grupos com práticas que se

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diferenciam entre si. Assim, identificou-se alguns docentes que conseguiram alterar significativamente suas práticas pedagógicas, esses foram considerados professores transformadores; outros por razões diversas não conseguiram alterar a forma de pensar e dirigir a prática docente, constituindo o grupo de professores não transformadores; aqueles cujas práticas apresentavam avanços, mas tinham resquícios das práticas tradicionais, constituíram os professores que se encontravam em transição.

A reflexão sobre as dificuldades enfrentadas nos movimentos pedagógicos, segundo Silva (2004), contribui para repensar os limites e as possibilidades das práticas; a mudança implica, necessariamente, em mudar a cultura. Os professores possuem uma bagagem de conhecimento e certezas sobre a prática docente, decorrente de sua própria história de vida e têm resistência em mudar o que está cristalizado.

Outra dificuldade apontada pelos professores foi a forma impositiva da equipe diretiva ao bom desenvolvimento do trabalho:

Algumas coisas não eram bem aceitas pelo grupo, mas eram questões burocráticas e outras eram meio que impostas por diferenças de concepções de educação e sociedade, alguns não aceitavam por exemplo a avaliação descritiva, que hoje também avalio que poderia ter sido diferente [...] (P13). Foi um processo que posso definir como contraditório, maravilhoso e dolorido. Dolorido, pois fomos forjadas como ferro com fogo e marteladas, explico, tanto na minha formação como na das colegas, na formação universitária não foi estudado Paulo Freire [...] Maravilhoso por revelar outra realidade e por me ter

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construído como sujeito e possibilidade de organização e transformação (P10).

Freire (1990) adverte que o homem precisa fazer a

sua opção, e não pode ser um sujeito neutro: ou adere à mudança ou fica a favor da permanência. Quando isso não ocorre, não significa que a minha ideia será imposta, pois se proceder desta forma, mesmo sendo a favor da libertação e da humanização, trabalhará de forma contraditória e manipuladora atuando para uma educação domesticadora.

O processo de formação dos professores apresentou avanços gradativos buscando a superação de metodologias e concepções tradicionais de ensino. Os desafios que se apresentaram foram frutos de uma experiência em construção com suas limitações e contradições. A dificuldade em trabalhar com uma concepção totalmente diferente daquela que orientava as ações que vinham fazendo como profissionais da educação foi apontada pelos docentes como um dos grandes desafios que tiveram que enfrentar. A concepção tradicional de educação estava impregnada na prática docente que precisava ser transformada:

[...] lembro que a maior dificuldade era a mudança ‘de tudo o que eu tenho pronto’ agora tudo precisa ser construído com o aluno [...] isso foi muito difícil. [...] a formação continuada me desafiou a estudar mais profundamente, produzir os textos para trabalhar com os alunos deixando um pouco de lado os livros didáticos (P8).

A educação tecnicista e tradicional perdura há

décadas na educação brasileira e encontra-se impregnada no fazer cotidiano dos professores. Há predominância do uso do livro didático que determina o currículo escolar, com aulas sempre iguais independente das características ou da idade dos alunos:

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É verdade que há professores tradicionais que sabem ensinar os alunos a aprender dessa forma, a maioria deles não se dá conta de que a aprendizagem duradoura é aquela pela qual os alunos aprendem a lidar de forma independente com os conhecimentos (LIBÂNEO, 2001, p. 1).

As práticas pedagógicas de uma parcela considerável

de professores baseiam-se em modelos e fórmulas prontas, que podem ser reproduzidas para contextos diferentes. Para mudar é preciso saber o porquê e para que se deseja mudar, a consciência dos professores no sentido de trabalharem de acordo com as necessidades de aprendizagem de seus alunos indica o compromisso com seu trabalho na busca por um ensino de qualidade (MARQUES, 2000). A sociedade é por si contraditória e requer repensar a formação de homens capazes de transformar a sociedade, em que o fazer torna-se ação e reflexão, práxis pedagógica, caracterizada pela ação transformadora.

Portanto, [...] você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um que fazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos (FREIRE, 2006, p. 126).

Uma formação permanente e sistematicamente

organizada terá maior possibilidade para conscientizar o professor do seu papel enquanto educador e da necessidade de uma ação pedagógica com vistas à formação de cidadãos autônomos e críticos que vislumbrem transformações sociais.

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168 A atualidade das ideias de Paulo Freire

CONSIDERAÇÕES FINAIS O Movimento de Reorientação Curricular do

município de Chapecó, foco deste artigo, buscou alterar a prática tradicional de educação, centrada em conteúdos disciplinares tendo o professor como detentor do saber, em direção a uma concepção de educação libertadora, de uma concepção dialógica de ensino-aprendizagem, ao se valorizar os saberes dos alunos, tendo o Tema Gerador como o desencadeador dos conhecimentos necessários para a compreensão da realidade; assim, são discutidos os conhecimentos sistematizados que fazem sentido para os educandos.

O recorte que fizemos neste artigo, sobre Movimento de Reorientação Curricular, foi a formação permanente de professores de EJA ocorrida no município de Chapecó, entre os anos de 1997 a 2004, privilegiando a análise dos seguintes aspectos: as práticas pedagógicas, o trabalho coletivo e a dialogicidade, o aluno como sujeito do processo educativo e a formação permanente.

No processo de formação permanente da EJA, a resistência às ações para a implementação da proposta de Reorientação Curricular foi apontada, pela maioria dos professores, como um dos maiores problemas enfrentados no desenvolvimento da experiência de formação, uma vez que a concepção freireana de educação não era algo do cotidiano das escolas e tão pouco esteve presente na formação inicial de boa parte dos professores. Mudar a forma de trabalho, depois de anos de formação e de práticas tradicionais, não foi tarefa fácil.

Para a efetivação de um processo inovador, torna-se essencial ter clareza sobre os pressupostos de uma educação emancipadora, assim é possível compreender a dificuldade e a resistência de muitos professores, uma vez que nem todos tinham conhecimento da pedagogia freireana. O sistema de

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avaliação foi outro aspecto questionado pelos docentes que participaram deste e de outros estudos. Portanto, merece ser repensada e analisada a forma como a avaliação se colocou no cotidiano da atividade escolar, uma vez que é apontada como um fator de comprometimento da aprendizagem do aluno.

Esperamos que os limites e as possibilidades enfrentadas, entre outros aspectos do estudo, possam subsidiar iniciativas que tenham a concepção freireana de educação como eixo direcionador de práticas transformadoras. REFERÊNCIAS

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PARTE III – EXPERIÊNCIA FREIREANA NOS DIVERSOS NÍVEIS DE ENSINO

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I

O MOVIMENTO DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR VIA TEMA GERADOR: UM NOVO

OLHAR PARA EDUCAÇÃO INFANTIL

Isabel Spingolon Azambuja

Eloísa Acires C. Rocha

INTRODUÇÃO

O presente texto é um recorte da dissertação de

mestrado intitulada: “Currículo de Educação Popular para a Educação Infantil: limites, tensões e possibilidades a partir da experiência do município de Chapecó”, orientada por Eloisa Acirres C. Rocha, em 2009. O texto analisa a orientação do currículo popular crítico do município de

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2009. Pedagoga pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) em 1997 e em 1999 especializou-se em Educação Infantil Ensino Fundamental de 1º a 4º série também pela UNOESC. Trabalhou na Secretária Municipal de Educação na Implantação da Proposta Político-Pedagógica de Educação Popular na Gestão de 1997 a 2004, atuando no departamento de Educação Infantil. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas em 1999 e em 2004 realizou estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos da Criança (IEC) na Universidade do Minho, Portugal, no qual aprofundou estudos sobre a Sociologia da Infância e Estudos da Criança. No ano de 2011 realizou estágio pós-doutoral na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro sob supervisão de Sonia Kramer, no qual buscou localizar as marcas da invenção da docência na Educação Infantil no Brasil, entre o século XIX e XX. Tem desenvolvido pesquisas em torno da produção científica da Educação Infantil e suas interlocuções disciplina. Recentemente participou da Comissão de Especialistas em Avaliação da Educação Infantil.

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Chapecó (SC), na gestão de 1997 a 2004, e as implicações teóricas e práticas da pedagogia freireana para a Educação Infantil.

A pesquisa foi realizada por meio de análise de documentos, definindo-se categorias para subsidiar o desenvolvimento da análise, no sentido de identificar as principais indicações teóricas e práticas que orientam a organização do currículo para a Educação Infantil. No andamento deste trabalho, organizou-se um percurso de pesquisa que explicitasse os desafios e tensões, no movimento de organização curricular, realizado neste município para a construção pedagógica na Educação Infantil, tornando-se pertinentes as teorizações da concepção de currículo, currículo na Educação Infantil e a contextualização histórica dessa modalidade, neste município.

Azambuja (2009) destaca que, no percurso da Educação Infantil em Chapecó, ocorrem mudanças, definições e redefinições da função e papel. No caminho “da guarda das crianças”, “assistência”, debates teóricos e práticas sobre “educação”, certos conceitos são inquietantes na ação pedagógica. Processos estes que fundamentaram teoricamente práticas e contexto das creches e pré-escolas.

A partir de 1997, na troca de governo municipal, a coligação “Prá Frente Chapecó” vence as eleições e, caracterizando-se como um governo democrático e popular, deu início a um processo de discussão e implementação de ações com o princípio da participação, criando ações como Orçamento Participativo (OP) no município. A Secretaria de Educação de Ensino aposta numa proposta político-pedagógico denominada “Educação com Participação Popular”, fundamentada nos princípios de democracia, cidadania, autonomia, trabalho coletivo e sensibilidade social.

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Numa breve retomada da história da Educação Infantil, pode-se perceber que veio se construindo no Brasil políticas de caracteres diversos, assistencialistas, escolar, higienista, compensatória, psicológica, religiosa mesclada com reivindicações no contexto da sociedade, já identificadas por Kuhlmann Jr. (2007b) e Kramer (1995a). Para esses, as modificações sociais, culturais, políticas, epistemológicas educacionais vivenciadas pela sociedade evidenciaram retratos de crianças, concepções e formas diferenciadas de atendimento, pautadas em diferentes ciências. Delinearam contextos pedagógicos influenciando a construção do currículo, programas e propostas educacionais dirigidas às crianças menores de seis anos.

Nesse movimento de entrelaçar interesses educacionais e políticos, no Brasil, vários municípios e estados vêm implementando projetos de gestão pública voltados para a educação, nos últimos anos, de caráter curricular de educação diferenciado.

A partir de 1997 até 2004, a educação municipal de Chapecó passa a ser construída e vivenciada sob o processo educacional que tem como concepção a Educação Popular. Os vários momentos de discussões foram norteando a formação continuada dos professores e coordenações pedagógicas da Educação Infantil, construída através das discussões do Currículo Popular Crítico.

Porém, a necessidade de aprofundar a especificidade gerou o diferencial, imprimindo a compreensão de que a organização coletiva dessa caminhada necessitava de planejamentos, de pautas, organização de oficinas pedagógicas e seminários e formação permanente de todos os sujeitos que fazem parte do cotidiano da instituição pública denominada Centro de Educação Infantil Municipal (CEIM). A perspectiva organizada nesse período impulsionou necessidades de construir e reconstruir práticas cotidianas.

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As inquietações sobre como se realizava o trabalho na Educação Infantil, anterior à gestão popular, que perspectivas e que mudanças têm ocorrido na área implicaram em problematizações: qual o ponto de partida do currículo e do planejamento, uma vez que se avaliava a necessidade de ser o mais próximo possível da criança, da família e da comunidade impulsionaram a trajetória da Educação Infantil, neste período. À medida que as discussões eram ampliadas, em torno da Educação Popular, a partir da política da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SEC), questionava-se o papel social dos Centros de Educações Infantis, impulsionando outros referenciais pedagógicos, prescrevendo um Currículo Popular Crítico, numa perspectiva freireana.

Azambuja (2009) destaca que o movimento de reorientação curricular, nos diferentes níveis de ensino, especificamente na Educação Infantil, iniciou-se por debate para discutir tempo, espaços, sujeitos, conhecimento, currículo, pesquisa (a realidade vivida pela criança e comunidades, a família no conjunto social, político e econômico da cidade e do país) a partir da comunidade escolar, que demandava a reorganização da prática, na qual a problematização, o diálogo, o coletivo, o compromisso com a emancipação dos diferentes sujeitos envolvido permeavam as discussões no cotidiano, como também a reflexão sobre uma Educação Infantil que se distanciasse das propostas assistencialistas, compensatórias, espontaneístas ou identificadas com instituições de ensino fundamental.

Neste movimento, era necessário fundamentar e implementar uma política educacional na teoria crítica na práxis da Educação Popular, em que o compromisso com a emancipação orienta o fazer dialógico direcionado à Educação Infantil; na qual observar e problematizar situações do cotidiano pedagógico, como a intencionalidade do papel social dos espaços públicos de atendimento às

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crianças de zero a seis anos, a rotina o planejamento, o brinquedo, a brincadeira, o conhecimento, bem como a ética e o compromisso com a comunidade escolar fizeram parte do processo.

O desafio para aquele momento era caminhar na implementação da proposta na Educação Infantil, pois o legado teórico de Educação Popular, no decorrer da história, tem apontado experiências populares com adultos, mas que se inscrevem na consolidação metodológica possível e pertinente ao mundo infantil.

Esse movimento de reorientação curricular, fundamentado e implementado a partir de uma proposta educacional na teoria crítica, na práxis da Educação Popular, comprometida com a emancipação orienta um currículo direcionado à Educação Infantil. A escolha por analisar o currículo popular dá-se, em parte, pela seguinte inquietação: De que forma um projeto particular de educação de um governo popular representa uma ruptura com os modelos pedagógicos convencionais; e quais as bases teóricas, políticas e pedagógicas e as implicações para as orientações e práticas indicadas na Educação Infantil?

METODOLOGIA

A análise da proposta freireana do município de

Chapecó teve como objetivo identificar os conteúdos, pressupostos pedagógicos e suas implicações para orientações didáticas e práticas para a Educação Infantil, no período de 1997 a 2004. A escolha de metodologia de investigação consistiu em uma das etapas significativas deste processo. Este movimento se deu por amostragem probabilística que orienta escolhas documentais e revela o contato com o objeto de estudo (BECKER, 1994) tomando, como base de análise, os documentos oficiais produzidos e

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182 A atualidade das ideias de Paulo Freire

divulgados no âmbito da Secretaria de Educação, naquela administração municipal.

A pesquisa em questão teve como objetivo geral extrair e analisar os conteúdos, as bases teóricas e as diretrizes e orientações curriculares para a Educação Infantil. Teve como objetivos específicos mapear os contextos históricos do atendimento à Educação Infantil no município; identificar os pressupostos pedagógicos da proposta freireana do município de Chapecó e suas implicações nas orientações didáticas e práticas para a Educação Infantil.

Para a realização do presente trabalho, inicialmente, fez-se uma busca dos documentos emitidos pela Secretaria de Educação, constituindo um inventário daqueles que abarcaram a reorientação curricular no município, no período de 1997 a 2004. Azambuja (2009) sistematiza este inventário no qual permitiu organizar um quadro síntese de documentos gerais, do processo político-pedagógico da educação e um específico de documentos da Educação Infantil. Esses quadros registram: tipo do documento, local de publicação, participantes, título, conteúdo e número de páginas.

De forma geral, os conteúdos desses documentos expressaram as orientações da Secretaria Municipal de Educação, em relação ao processo de reorientação curricular, orientações e diretrizes para a construção do Projeto Político-Pedagógico, impressos com pautas de orientações pedagógicas, construídas durante o processo de formação continuada; textos, relatos das oficinas que visavam orientar a construção de um programa de ação, a partir de uma proposta. Esta proposta de orientação interdisciplinar orientava-se por um desenvolvimento curricular em torno de temas geradores na formação continuada, como eixo do próprio movimento de reorientação curricular.

Neste levantamento, considerou-se pertinente, para o estudo e para dar concretude à análise, incluir as revistas

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O movimento de reorientação... 183

publicadas pela administração municipal com textos da política de educação e do movimento de reorientação curricular. Feito esse levantamento, optou-se por documentos publicados e produzidos, oficialmente, sobre o movimento de reorientação curricular e os que tratavam, especificamente, da Educação Infantil.

Com a sistematização do conjunto dos documentos em quadros, foi possível observar que documentos pertinentes ao movimento de reorientação geral para a rede municipal referiam-se e dirigiram-se à Educação Infantil. Desta forma, o corpus de análise, constituído após leitura geral de todos os documentos, tomados como referência para este estudo, está distribuído em textos de revistas e no Projeto Político-Pedagógico da Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó, como mostra o quadro 3.

Quadro 3 – Corpus de análise Documentos Objeto

Marco Referencial: Marco Situacional e Princípios (1997)

Síntese do movimento das discussões na rede municipal e do referencial político-pedagógico educacional.

Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (1998)

Sistematização dos princípios pedagógicos que orientam a ação; a prática da Educação Popular na Educação Infantil.

Revista Educação de Jovens e Adultos (1998)

Sínteses do processo da Proposta de Educação Popular: as práticas vivenciadas como organização coletiva formação de educadores; Tema Gerador, processo interdisciplinar; avaliação; problematização da prática pedagógica.

Proposta Pedagógica da Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (1999)

Sistematização do Projeto Político-Pedagógico da Educação Infantil.

Revista Educação com Participação Popular (2000)

Sistematização: Educação com Participação Popular; Democratização da Educação, Democracia como princípio, meio e fim;

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Educação Infantil, uma política educacional de fato; Tema Gerador uma revolução no fazer pedagógico.

Revista em Discussão a Educação Infantil Pública de Chapecó (2004)

Síntese dos debates em torno das orientações do Departamento de Educação Infantil.

Fonte: elaboração das autoras. Partindo de alguns pressupostos descritos por Vala,

(1999) a finalidade de análise de conteúdo é efetuar inferência sobre as mensagens inventariadas e que permitam a passagem da descrição à interpretação com base nos objetivos e no objeto de pesquisa. Após leitura dos textos, foi organizado o seguinte sistema de categorização dos conteúdos dos documentos, com o objetivo de identificar os princípios e orientações educativas gerais e específicas da Educação Infantil, como mostra o quadro 4, sistema de categorização. Quadro 4 – Sistema de categorização

Categoria Subcategoria Definições das categorias

A. Participação como princípio da democracia

A.1 Participação como eixo direcionador da educação A.2 Práticas do processo de participação

A.1 Alusões à expressão participação, que traduz orientações no desenvolvendo da prática dos sujeitos na execução e decisões da educação. A.2 Definição das estratégias e referenciais pelos quais a educação passa a se construir como processo coletivo e democrático.

B. Currículo popular crítico

B.1 Bases teóricas do Currículo Popular

B.1 Referências da abordagem teórico

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O movimento de reorientação... 185

Crítico para Educação Infantil

curricular que originaram práticas, discussões nas instituições infantis que contextualizaram o Currículo Popular Crítico.

C. Educação Infantil

C.1 Criança/Infância C.2 Desenvolvimento/ aprendizagem C.3 Diretrizes Pedagógicas C.4 Processos, procedimentos pedagógicos para a Educação Infantil

C.1 Afirmações, referências que revelam em que medidas são consideradas e concebidas a criança/infância no processo educacional. C.2 As referências abordadas em relação ao desenvolvimento e aprendizagem na Educação Infantil. C.3 As referências e diretrizes educacionais da Educação Popular pertinente para a Educação Infantil. C.4 Que procedimentos pedagógicos se inscrevem para Educação Infantil numa proposta de Educação Popular com uma abordagem freiriana.

Fonte: elaboração das autoras. CATEGORIAS DE ANÁLISE

Para análise do movimento de reorientação

curricular, via Tema Gerador um novo olhar para educação infantil, optou-se como foco as categorias da Educação Infantil: “as crianças e a infância” e a categoria “Processos, procedimentos pedagógicos para a Educação Infantil”. A

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186 A atualidade das ideias de Paulo Freire

escolha por essas duas categorias de análises neste texto se inscreve pela necessidade de ressaltar o processo vivido num período particular de educação popular com inserção na Educação Infantil com perspectiva freireana; e por considerar que parte do processo praxiológico tinha como intenção problematizar conceitos vivenciados em relação ao sujeito principal dessa política educacional “a criança”, na formação dos educadores com uma organização pedagógica, de reconhecimento do espaço público ocupado pela comunidade. É a partir desta análise e desta proposição educativa que se buscou as orientações conceituais das discussões sobre Educação Infantil: as crianças e a infância e Processos, procedimentos pedagógicos para a Educação Infantil.

Criança/infância

A caracterização de criança/infância, dentro de um

projeto particular de educação denominada Educação Popular, expressa uma perspectiva de sujeito como: uma criança cidadã, sujeito ativo e participante da construção de sua história, enfim, crianças ativas, autônomas, pensantes, que se organizassem nos valores da sensibilidade e do amor. Também situa a criança como sujeito sócio-histórico, no dia a dia, no contexto histórico, social e econômico, sujeito em pleno desenvolvimento.

Na análise geral, o desenvolvimento/aprendizagem enfoca a necessidade de compreender como a criança aprende como o adulto percebe suas capacidades, o papel da interação, a mediação ensino-aprendizagem, o papel da linguagem do brinquedo e da brincadeira. Essas perspectivas levantadas quanto à criança e à infância, naquele período, podem ser lidas na Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 22); durante os encontros de formação procurou-se identificar o conceito de

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criança numa proposta de educação popular. No documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 17), a criança é compreendida:

A infância, na perspectiva de Educação Popular, é entendida num contexto histórico, político, social, econômico onde a criança é um sujeito de direito e em pleno desenvolvimento desde o nascimento, que não aguarda nenhuma etapa, idade ou período. Uma criança presente, e que tem consciência de seu passado, conhece seus opressores e constroem seus heróis e que transforma suas ações cotidianas nas relações sociais estabelecidas com os outros.

As indicações trazem presente o mundo real da

criança, onde vive, em que condições se encontram no mundo da produção material da existência, na organização comunitária e na ampla da sociedade. Por isso, compreender a criança a partir do olhar das ciências, sem compreendê-la em seu contexto social e no mundo da produção concreta da vida, pode levar a um reducionismo da prática pedagógica e padronizar o comportamento. Desta forma, situa-se a necessidade de olhar as crianças e a infância dentro do contexto histórico, político, social e econômica. Ter presente essa e outras análises implica no caráter e desenvolvimento de uma ética pedagógica. É uma forma de olhar esse sujeito existente no mundo e quais perspectivas a seu respeito são traçadas para a autonomia com potencial de criação participante ou para consumidor.

Como afirma Franco (2002, p. 11):

Sendo a infância uma construção histórico-social é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea, pois o processo histórico faz perceber diferentes populações infantis em processos desiguais de socialização.

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Os registros das crianças das classes populares, segundo Kuhlmann Jr. (2007b, p. 28), “[...] estão num amplo conjunto de documentos no âmbito da vida pública, envolvendo as iniciativas destinadas ao atendimento aos pobres e trabalhadores”.

Considerar esse recorte na Educação Infantil imprime a necessidade de olhar nessa história, a história da criança, quem é esse sujeito, na possibilidade de reconhecê-la nas relações sociais, seu lugar, seu tempo, sua cultura na construção histórica da humanidade, na busca de uma identidade da criança na sua singularidade, identidade social. Quem realmente é essa criança que vem para a instituição infantil, de compreender e analisar aquilo que é a sua realidade.

Fazer no cotidiano pedagógico espaço que a ouça que possa exercer seu jeito de ser criança na escolha, nas decisões e nos interesses. Uma prática pedagógica que considera o sujeito-criança histórico precisa estar atenta a esse fazer pedagógico. Segundo Kuhlmann Jr. (2007b, p. 31):

Pensar a criança na história significa, [...] perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes momentos.

O processo de orientação pedagógica pautava-se na

pertinência dada às bases das ciências, mas, principalmente, na sistematização da realidade social através de pesquisa, compreendida como ponto de partida, instrumento problematizador para a organização de temas geradores na construção do planejamento.

Passar então a entender a criança, a partir do contexto, representa admitir que ela não aprenda sozinha, que necessita das relações sociais, da cultura, de espaços que sistematize conhecimento que inclua a sua participação

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como sujeito histórico. Neste sentido, Rocha (1999) chama a atenção à necessidade de compreender o conhecimento pedagógico a partir da contribuição das diferentes áreas, para fornecer bases ao processo de produção do saber e compreensão das influências de contextos e desenvolvimento humano. Processos, procedimentos pedagógicos para a Educação Infantil

A partir da história da Educação Infantil no Brasil,

pode-se verificar os diferentes contornos e interpretações que marcam momentos de grande importância na afirmação de políticas implementadas para essa área. E serviram de referência no delineamento de práticas introduzidas nas ações educacionais locais, gerando ordenamento e diferentes contornos curriculares e expressando diretrizes e bases educacionais.

Em relação às orientações pedagógicas, Chapecó vivenciou na administração, gestão de 1997 a 2004, uma experiência de Educação Popular. Esse processo se deu por opção de uma Educação com Participação Popular. Os princípios e diretrizes dessa educação deram o Norte ao Projeto Político-pedagógico da rede municipal, gerado a partir de problematizações e diagnósticos da realidade municipal apontando para uma Educação Infantil que se distanciasse do debate e prática local com perspectivas espontaneístas, compensatória e assistencialista.

Num processo embasado em observações das práticas e tendo como referencial a Educação Popular Participativa. Com muitos desafios, limites e tensões, a partir da Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, iniciou-se uma ampla discussão, envolvendo professores(as), coordenadores(as), pais e crianças, a pedagogia adotada nas instituições públicas do município de Chapecó, o currículo, revendo os tempos, os espaços, os conteúdos, a formação. À

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medida que crescia o debate filosófico e pedagógico da Educação Popular, indicações e possibilidades concretas de ter as crianças e comunidade escolar como sujeitos da prática de uma educação transformadora, acentuavam-se necessárias.

Tais questões pautam-se em Freire (1998, p. 77): “Toda prática demanda a existência de sujeitos, um que ensinando aprende outro que aprendendo ensina”. Neste sentido, consolidar uma prática em que as crianças e os educadores envolvidos fossem de fato parte da ação pedagógica, requer a dialogicidade que, segundo Freire (2000, p. 53), “[...] quando o educador-educando se encontram em uma situação pedagógica, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com este”. Este processo pedagógico problematizador requer uma busca de conhecimento sobre o mundo em que se encontra o sujeito.

Foi pautando-se nas ações vivenciadas e cotidianas, na história e na realidade da criança, de suas famílias e comunidade, que se buscou material concreto para o planejamento. São nesses primeiros contatos sociais e culturais da criança que, imersa no contexto da sociedade, trazem um universo de temáticas pertinentes a serem problematizadas e estudadas nos Centros de Educação Infantil.

As indicações para a Educação Infantil pautaram-se, então, nas ideias de que as representações feitas às crianças sobre o mundo do trabalho e as práticas de vida, de mudanças, de transformação podem estar na caminhada, como escreve Freire (1979), da heteronímia para autonomia e que se materializam as formas de como o outro se expressa com elas, no gesto, na fala, no dar, no ter, no ser, nas significações do mundo físico, material e social, das relações que se estabelece, da troca adulto/criança, na prática de concebê-las sujeito ou não, que pensa com natureza infantil,

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que é expressa por ela na fala, gestos ou palavras e no brincar.

Afirma-se, também, a Educação Infantil como espaço público e coletivo que reúne a infância num mesmo espaço e tempo, que precisa construir um olhar diferenciado da criança, pois as mudanças que estão em curso no país, as relações de trabalho, as formas de organizações sociais e culturais e de produção reordenam necessidades e impulsionam o olhar, o sentimento, as relações dos sujeitos em seus contextos.

Esse meio, no qual a criança vive e atua, segundo Muniz (1999), apresenta-se para Vygotsky como um lugar carregado de significados, carregado de ideologia, história e cultura, em que não cabe pensar num ser abstrato, naturalizado. O aprendizado humano “[...] pressupõe uma natureza social específica e um processo pelo qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que a cercam” (MUNIZ, 1999, p. 258). Esse movimento precisava ser registrado, analisado, problematizado.

Um referencial construído para a elaboração de pesquisa socioantropológica foi sendo construído, a partir da necessidade existente nos coletivos de professores durante o processo de formação continuada, como também, à medida que se aprofundava o debate sobre a especificidade infantil, outras necessidades impulsionavam o trabalho nos momentos de parada para planejamento. Construíram-se pautas para estudo e reorganização da prática pedagógica com atenção às diferenciações entre o jeito de planejar para berçário, maternal e pré-escola, compreendendo os sujeitos nas suas necessidades a partir de seus referenciais sociais.

Em síntese, esse movimento buscou, fundamentalmente, partir de necessidades práticas, desencadeando uma orientação curricular na Educação Infantil, considerando os sujeitos: criança, comunidade, professores, servidores e famílias no processo educacional.

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Para referenciar essa categoria, destaco os cinco momentos da investigação temática levantada por Silva (2004), por representar o desenvolvimento da prática pedagógica, vivida no período de 1997 a 2004: 1) levantamento preliminar da realidade selecionada para estudo; 2) análise das situações e escolha das codificações – falas; 3) diálogos decodificadores – delimitar temas e contratemas; 4) redução temática – rede; 5) preparação para a sala de aula.

No âmbito das instituições infantis, do município, era comum encontrar afirmações emitidas por professores, como também em documentos que sistematizam propostas, reiterando que, para a construção do planejamento, deve se levar em consideração a criança sócio-histórica, a partir da realidade dela. Essa construção é resultado de um rico processo na Educação Infantil que, gestada na sociedade, revela avanços no pensar sobre esse sujeito, a partir de considerações teóricas pertinentes aos avanços realizados nessa área.

Para compreender como esses aspectos se desenvolveram no movimento de reorientação, a partir da prática dessa proposta, a subcategoria Processos e procedimentos pedagógicos foram agrupados por diferentes momentos, a partir da investigação temática apontada por Silva (2004). As unidades de registros expressam como aconteceu o desenvolvimento do movimento do currículo popular crítico, na Educação Infantil e as interpretações daquele momento:

1) Levantamento preliminar da realidade selecionada para estudo, significa desencadear uma pesquisa sociocultural para buscar, pedagogicamente, falas da comunidade e das crianças que expressem situações significativas, temas geradores a partir de um olhar crítico

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dos professores: No documento Revista em Discussão a Educação Infantil Pública de Chapecó (CHAPECÓ, 2004):

- Então como trabalhamos com o tema gerador, pesquisamos as situações dos diferentes sujeitos que convivem com a criança, buscamos informações, tensões, contradições, práticas culturais vividas conceitos que estão colocados nas relações do mundo adulto simultaneamente ao mundo da criança nos espaços da casa, da igreja, da praça, interpretando a forma como esses adultos junto com a criança vivem seus cotidianos (p. 14); - A pesquisa vai do berçário à pré-escola porque entendemos que ignorar a realidade das crianças é um desrespeito aos saberes do grupo social a que elas pertencem. É a partir delas que educadores estabelecem prioridades no trabalho com as crianças (p. 16); - A criança vai expressando seus saberes e suas práticas sociais. Isso é ponto de partida para o trabalho pedagógico com a criança (p. 15); - O trabalho pedagógico com a criança não pode ser distanciado da realidade local, da vida da criança, da família e da comunidade. Para chegar ao contexto da criança, percorremos um longo caminho, temos feito diversos estudos, buscamos na antropologia, na sociologia, na psicologia e na história, subsídios para analisar e interpretar as diferentes realidades que são representadas nas vozes infantis.

No documento Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 23), esse movimento está assim descrito:

- Pautadas nas ações vivenciadas na realidade cotidiana das pessoas é que buscávamos os conteúdos e temáticas sistematizadas por uma compreensão crítica e contextualizada desta realidade numa dimensão de totalidade.

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- Inicia-se a pesquisa, que tinha como intenção conhecer e reconhecer a comunidade [...] na comunidade com pessoas adultas, nas visitas, nas rodas de chimarrão, nas conversas com pais na porta da sala, as falas foram nos mostrando o ‘caldo cultural’ onde estas pessoas estavam inseridas. Com as crianças encontramos algumas dificuldades, por serem tão pequenas e ainda não conseguirem falar e expressar com nitidez sua realidade, foi necessário planejar intervenções [...] a organização de espaços se tornou um mecanismo pedagógico fundamental (simulação do cotidiano da criança, materiais de vivência dela) [...] registramos as visões de mundo construídas na criança por seu grupo social.

No documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil

da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 26): Para aprender a realidade e suas contradições, a lógica estabelecida nas falas de cada pessoa e o relacionamento estabelecido com os outros, é necessário investigá-lo. A pesquisa participante realizada nos CEIs tem essa intenção. O educador se torna pesquisador, visitando as famílias da comunidade promovendo encontros com as lideranças, participando das rodas de chimarrão e dos encontros informais para desvelar as relações.

2) Análise das situações e escolha das codificações – falas, esse percurso implica em, coletivamente, os professores, a partir da pesquisa realizada, selecionarem falas significativas dentro de um quadro geral de análises (que tenha dados qualitativos e quantitativos), falas descritivas, analíticas e propositivas e recolocá-las em quadro de problematizações e explicações dos problemas levantados.

No documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil

da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 25), lê-se:

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Na análise, estão às explicações do senso comum, mais diretamente ligado às práticas, menos articulado teoricamente, com soluções limitadas e imediatas e as explicações do conhecimento científico, de caráter processual, sistemático e universal, presente nas visões de mundo do educador, da comunidade e da criança. A realidade é tomada como ponto de partida para a elaboração do planejamento pedagógico, quando o coletivo do CEIM, faz análise dos dados qualitativos e quantitativos, contextualizando-os nas relações sociais, econômicas e culturais que determinam a realidade.

3) Diálogos decodificadores – delimitar temas e contratemas, os temas estão na visão de mundo, no pensamento e percepção da realidade, da comunidade, da criança. Definido o Tema Gerador, constrói-se o contratema, ou seja, o contraponto, em relação aos limites explicativos (visão de mundo que tem o caráter de estabelecer relações e construir outra visão sobre determinado problema). Questões geradoras, diálogo entre tema/contratema orientando os professores no percurso pedagógico programático, a partir da rede temática: documento Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 24):

Cada Centro de Educação Infantil Municipal construiu com auxílio da Secretaria de Educação e Cultura, seu tema gerador definindo as problemáticas centrais de cada comunidade observando com maior atenção falas e registros vindos das crianças.

Pois o que diz o documento, Proposta Pedagógica da

Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 25):

A busca do tema gerador da comunidade e da criança nos traz as situações limites presentes nas falas da comunidade

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e os problemas por eles vividos [...] O tema gerador, na lógica do mundo infantil, é o reflexo do problema apresentado pela comunidade. É o contratema que constitui o ponto de chegada da programação. São os educadores que expõem ali sua visão de mundo numa explicação ampla e contextualizada do problema.

4) Redução temática – rede, contextualização da realidade local a partir das falas problematizadas e selecionadas, identificando as tensões entre os conhecimentos presentes da realidade local e análises relacionais da micro e macro-organização social, realizadas pela comunidade escolar, expressas em diferentes relações entre aspectos socioculturais da infraestrutura local, inserindo-a em um contexto mais amplo, propiciando as compreensões dos conflitos como contradições sociais passíveis de superação, a partir da prática dos sujeitos envolvidos.

Documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil da

Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 25) traz: A rede compõe um mapa pedagógico construído pelos educadores, onde estes propõem uma relação entre as explicações das crianças, da comunidade e dos elementos da organização social, buscando uma leitura coletiva da realidade. É na rede que se estabelece o diálogo entre as diferentes visões de mundo, numa análise relacional envolvendo dimensões da micro e da macroestrutura.

5) Preparação para sala de aula, está pautada em um trabalho coletivo de construção curricular do planejamento, da realização de práticas para a sala de aula de acompanhamento e avaliação, a partir da práxis compreendida como dinâmica dialógica sistematizada em três momentos: Estudo da Realidade (ER), Organização do Conhecimento (OC) e Aplicação do Conhecimento (AC).

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Esse movimento está representado em dois documentos, Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b):

Significar o saber, para que esse interviesse de fato nas explicações dadas pelas crianças às coisas, permitindo abstrações e generalizações mais amplas acerca da realidade, modificando sua relação com o mundo; que a lida com o conhecimento contribuísse na formação de crianças (p. 23). Não esquecendo que em nossa especificidade lidamos com crianças de 0 a 6 anos e que entendemos como construção de novos conhecimentos, a ampliação de visão de mundo, as mudanças cotidianas estabelecidas com os outros e com o grupo [...]. A intervenção pedagógica da Educação Infantil precisa possibilitar um olhar e um pensar diferente sobre essa realidade (p. 24). A organização do conhecimento na Educação Infantil dentro da proposta do tema gerador intensifica as primeiras discussões feitas na rede pela Administração popular sobre a forma de chegarmos a crianças tão pequenas. A história infantil reconstruída numa dimensão histórica, a brincadeira intencionalmente conduzida, cada aula parte de uma fala... (p. 25).

E Proposta Pedagógica da Educação Infantil da Rede

Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 26): Estudo da Realidade (ER) em que se problematiza as explicações da comunidade e da criança, analisando a situação da realidade local. Organização do Conhecimento (OC) cujos conteúdos selecionados para construir a ruptura da situação inicial (ER), são enfatizados. As histórias construídas e reconstruídas, a organização do espaço, o passeio, o desenho, o texto, o filme, a entrevista, o teatro, a dramatização, o canto, a

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brincadeira, as informações que o(a) professor(a) quer organizar com as crianças são planejadas, estrategicamente, com a intenção de superar as explicações das situações problematizadoras, construindo uma nova compreensão. Aplicação do Conhecimento (AC), essa organização metodológica, enfatiza o diálogo e o pensamento crítico sobre a vivência cotidiana da criança e da família e, reafirma a construção histórica e coletiva do conhecimento que vem sempre em resposta a uma necessidade concreta de homens, mulheres e crianças.

A proposta de organização da educação, aqui

apresentada pelos documentos, aponta como leitura à sua construção, a partir da Educação Popular, como indica o documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 21) “a Educação Infantil tem como princípio fundamental a Educação Popular”, indicando a pedagogia libertadora de Paulo Freire. A sua construção para a área da Educação Infantil emerge de um contexto social e político do município de Chapecó, no período em que a cidade passa a ser governada pela Administração com Participação Popular, assim denominada (1997-2004) e referenciada pelos documentos:

O significado dessa construção encontra-se na avaliação crítica de situar a Educação Infantil nos parâmetros sociológicos, culturais, políticos e econômicos que passam a compreender e perpassar os encaminhamentos, a partir da Educação Popular, desencadeando todas as ações pedagógicas, a partir de princípios que são cidadania, democracia, trabalho coletivo, autonomia (CHAPECÓ, 1999, p. 14).

A leitura que se fez naquele movimento, a partir

desses princípios, trouxe a necessidade de reescrever e vivenciar uma retomada da organização dos espaços de Educação Infantil, situando a democracia, a cidadania e o

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O movimento de reorientação... 199

trabalho coletivo como orientadores das mudanças estruturais e pedagógica.

Tomar como referência esses princípios compartilhados pela imaginação de organizar espaços pedagógicos, que aproximem professores(as) com as crianças, na possibilidade de entrar no tempo “mundo infantil” entrelaçar caminhos, é provocar a produção de diálogo com o conhecimento, a partir da realidade social e cultural das crianças e famílias, o que implica, segundo o documento Proposta Pedagógica de Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999, p. 15-19), caracterizar os espaços de Educação Infantil da seguinte forma:

[...] atender os interesses da classe popular; vivência da cidadania; organizar espaço público com relações democráticas; espaço de reconstrução de valores da organização da vida; espaço de qualidade essencial, na construção de conceitos científicos e desenvolvimento das crianças.

O documento Revista em Discussão a Educação Infantil

Pública de Chapecó (CHAPECÓ, 2004, p. 11-13) indica que a organização de espaços:

[...] que respeitem os olhares das crianças precisam ser pensados, a partir da vida cotidiana das crianças, do brincar, do dormir, de sair [...] que respeitem a criança como criança, [...] espaço necessariamente planejado, pensado, de relações, de atividades que reorganizem situações coletivas para os problemas.

O documento Revista Ler e Escrever a Realidade para

Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 22) traz presente “[...] a criança como ser social, o espaço desafiador, instrumento do conhecimento, professor como mediador das relações”. As

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200 A atualidade das ideias de Paulo Freire

indicações afirmam a necessidade da organização dos espaços como processo pedagógico, e devem ser construídos a partir de uma lógica que tenha presente a criança, e também como forma de reduzir a distância entre as pessoas que circulam nas instituições infantis, explicitando o pertencimento, o reconhecimento, a inserção das crianças nas famílias, como forma de humanizar os espaços, a rotina e qualificar as relações entre adultos e crianças. O sujeito prescrito nessa proposta caracteriza-se a partir das considerações de uma produção histórica e social, que impulsiona tomar a criança como sujeito histórico-social, na descoberta de ser humano com a vocação de criar e transformar, intencionalmente, o seu mundo. Tomar a realidade e o conhecimento significa a possibilidade de perceber que a realidade pode ser mudada pela ação e não como condição determinada. Nesse sentido, o documento Proposta Pedagógica da Educação Infantil da Rede Municipal de Chapecó (CHAPECÓ, 1999 p. 13) indica que:

[...] compreender a criança como sujeito sócio-histórico, significa, antes de tudo, realizar a leitura das relações sociais, nas quais se insere e se constituem os seres humanos, [...] desmistificar essas relações [...], mas também aquilo que acomete no cotidiano [...] as contradições, a luta de classe, o jogo ideológico e a produção de valores comportamentais, trama das relações que compõem a sociedade humana.

Esse núcleo de sustentação de uma educação calcada

no ser humano implica na concepção de uma teoria do conhecimento, em Paulo Freire, identificada por Damke (1995, p. 72) “[...] na formulação do conhecimento que engloba as teorias do ensino, aprendizagem e da pesquisa, e se completa com a teoria da transformação da realidade”. Nesse sentido, a organização do processo do conhecimento interdisciplinar implica ter como ponto de partida para a sua

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O movimento de reorientação... 201

construção, a realidade social, cultural e a sistematização consciente dos dados, escolher situações significativas, a caracterização de temas geradores e contratemas sistematizados na rede temática, elaboração de questões geradoras, construção de programação e preparação das atividades para a sala de aula.

Esse caminho indicado, para a busca do conhecimento significativo, na Educação Infantil, remeteu à construção e reorganização da formação permanente com os professores, implicando em organizar oficinas de temas geradores, a construção de pautas para a pesquisa na comunidade e com as crianças, a organização coletiva para análises de falas, a partir da pesquisa e construção de rede temática, organização de programações para os diferentes níveis: berçário, maternal, pré-escola e preparação de atividades para a sala de aula, observando o desenvolvimento ensino e aprendizagem das crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em busca de compreender os princípios e

orientações de um currículo popular crítico para Educação Infantil, a elaboração deste trabalho de pesquisa procurou identificar os pressupostos pedagógicos da proposta freireana do município de Chapecó e suas implicações para orientações didáticas e práticas. O foco de análise esteve voltado para documentos sistematizados, publicados a partir do movimento de reorientação curricular, na gestão de 1997 a 2004. Selecionados os documentos, definiram-se as categorias e subcategorias que permitiram extrair dos documentos os conteúdos de análise desta pesquisa.

Para captar o contexto social-político-educacional existente neste município, com relação à Educação Infantil, foram realizadas algumas entrevistas e revisados documentos, com o objetivo de destacar pontos de

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202 A atualidade das ideias de Paulo Freire

referência e orientações epistemológicas já existentes nessa área. A partir do registro do contexto, foi possível identificar as primeiras formas de trabalho realizadas com as crianças de zero a seis anos de idade no município. Em relação às creches, o desenvolvimento dessa política, inicialmente, percorreu programas desenvolvidos com vínculo direto da esfera federal e estadual, pautadas numa perspectiva de assistência social.

Em relação às ações realizadas pela Secretaria Municipal de Educação, no período anterior ao delimitado para este estudo, foram identificadas duas as principais influências na Educação Infantil: o programa PROEPRE (1980), dirigido para a pré-escola e Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina (1991), envolvendo creches e pré-escolas.

No que se diz respeito à democratização, há um rompimento com a tradição política anterior, com uma valorização dos serviços públicos, principalmente em relação à educação, que foram enfatizadas pelo FOMDEP, consolidando uma maior abertura e participação por parte da comunidade escolar, no que se referem ao destino da escola pública, construções democráticas de participação nas decisões e encaminhamentos pedagógicos dos profissionais, espaços de participação democráticos (como a escolha dos membros do conselho municipal, e as eleições para escolha dos dirigentes das escolas e CEIs).

Historicamente, as políticas públicas, no contexto da cidade de Chapecó, situaram-se dentro de um modelo de decisões feitas em gabinetes, sem consultas democráticas à população.

Essa pesquisa, que teve como objeto de estudo a Educação Infantil, construída a partir de um projeto de Educação Popular, evidenciou uma ruptura com os modelos pedagógicos convencionais, elementos significativos deste processo, tais como a participação e o conhecimento da

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realidade das crianças, como ponto de partida para a orientação e desenvolvimento da ação educativa.

A gestão do governo popular (de 1997 a 2004) abriu a possibilidade de uma Educação com Participação Popular, definindo princípios gerais centrais para a organização em todos os níveis educativos: democracia, cidadania e autonomia, que forjaram uma prática pedagógica coletiva e participativa. O conceito de participação indica um movimento que colocou em debate educacional o processo de relação entre escola, CEIs, crianças, professores, alunos e Secretaria Municipal de Educação.

A democracia aparece como eixo essencial e organizador da política, subscrevendo a participação como prática para a vivência e construção das bases orientadoras do movimento de reorientação curricular para uma Educação Popular.

Voltando o olhar para a área da educação, o processo educacional delineado no período aponta para a necessidade de abertura de canais de participação, via educação, expressadas pelas demandas populares e constatadas no âmbito das unidades escolares e CEIs. Esse referencial, no movimento de educação com participação popular, construído no período estudado, permeou modalidades da educação em diferentes âmbitos: planejamento, avaliação, organização do espaço, formação dos professores e gestão. Via-se nisso, uma das possibilidades de abrir o contexto institucional, desenvolvendo outras possibilidades de inclusão e participação da população.

A construção da gestão democrática também é expressa através de instrumentos que levam à participação da comunidade escolar e indicam a forma de vivenciar os princípios indicados, por meio de Orçamento Participativo, conferências, elaboração de Projeto Político-Pedagógico (da rede como um todo e em cada instituição), construção do Plano Municipal de Educação e das propostas pedagógicas,

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diferentes fóruns como possibilidade de abertura para debates e decisões, envolvendo os sujeitos que fazem parte das instituições, direcionando e significando um processo democrático via escola e CEIs. O planejamento participativo e a formação continuada, a partir da abordagem temática, constituíram-se como práticas democráticas, indicadas de modo geral pelos documentos, que articulam a relação entre as ações do poder público constituído e a realidade social.

Estes espaços e formas de participação são indicativos da intenção de construir um modelo pedagógico, contrário aos convencionais, pautado na participação dos diferentes sujeitos, identificados, que fazem parte desse processo: professores(as), servidores(as), coordenadores(as), pais e famílias, entre eles a criança, que são caracterizados como: sujeitos participativos, ativos no processo, sujeitos de espaço público para aprender a ser cidadão, através da prática.

A partir da formação permanente, produziram-se discussões e teorizações a respeito da realidade e suas contradições, principalmente no campo educacional em que foram pautando os debates e as orientações pedagógicas.

A Educação Infantil, na sua especificidade, de aproximação com o mundo concreto das crianças. Revelam, nesse processo, as perspectivas de compreender as crianças, a partir das relações sociais em que elas vives, aponta-se para um processo pedagógico pautado em relações dialógicas e ações coletivas, e uma formação pedagógica orientada para a pesquisa participante. A participação efetiva de todos os sujeitos nessa construção é indicada como condição básica para se conseguir desenvolver uma educação de qualidade, em que toda a ação coletiva deve criar oportunidade de reflexão.

Concretamente, a participação é evidenciada no processo pedagógico, a partir do Tema Gerador, numa organização curricular que toma a pesquisa participante

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como instrumento organizador e criador do processo educativo. A participação dos sujeitos foi se revelando efetivamente necessária, no sentido de aproximar o contexto da realidade local, das famílias e do mundo infantil. Representando naquele período a importância de compreender a criança, a partir do contexto social e cultural, seu jeito, seus modos, seus costumes e as representações da realidade, no sentido de inseri-la num contexto de participação e pesquisa. Percebe-se que, a partir dessas elaborações, o vínculo da Educação Infantil com uma perspectiva freireana se dá na construção de espaços de participação, olhando para o sujeito-criança e o professor, enquanto autor de sua prática, rompendo com a perspectiva de mero executor de tarefas pedagógicas.

Esse movimento de pesquisa participante, desenvolvido na Educação Infantil, imprimiu uma direção problematizadora sobre quem são esses sujeitos, como também a função do espaço, redirecionando o contexto pedagógico institucional e as práticas pedagógicas, planejamentos e seus desdobramentos para definição do brinquedo e da brincadeira na rotina da avaliação e organização de espaços circunscritos e a participação da família e da comunidade.

Ao desencadear o processo de construção e implementação da Proposta Curricular, orientaram-se os processos pedagógicos de formação permanente dos professores em torno de alternativas pedagógicas contrárias às tradicionais, identificando caminhos e possibilidades para a construção de uma prática educativa participante, em oposição a concepções autoritárias, individualistas e classificatórias.

No que se refere ao currículo que norteou o período estudado, situa-se como uma prática social, um currículo vivo, reafirmando a ação humana. Essas expressões evidenciam a força e a importância que se dava à

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participação dos sujeitos. Indicam, também, por onde se inicia a articulação do diálogo, na produção de conhecimento significativo, da realidade social e com sujeitos, como forma de afirmar a participação e as possibilidades da ação criativa e autônoma na produção da prática pedagógica.

O Tema Gerador, como forma de consolidar um conhecimento significativo da realidade (micro e macroestrutura social) e estabelecer uma relação dialética entre os conhecimentos e seus limites explicativos, que indicam parâmetros epistemológicos do projeto pedagógico interdisciplinar naquele período. Essa concepção de interdisciplinaridade também privilegiou a socialização, o diálogo entre os professores e seus diferentes saberes e conhecimentos, a busca profissional, a organização coletiva para o planejamento e desenvolvimento de outras ações pedagógicas, previstas na política de formação continuada. Apostava na autonomia, na socialização do conhecimento e na capacidade de sujeitos educadores criativos.

Esse processo de reorientação curricular exigiu desdobramentos em momentos mais específicos, destacando-se o diálogo com as crianças, as famílias, os educadores, através do registro das suas falas, manifestações, pesquisas sobre a realidade das comunidades e as situações reais do cotidiano das crianças e da comunidade, a partir das quais são apontadas as bases do movimento de reorganização curricular.

A organização desse movimento começa na busca “visão de mundo” dos envolvidos a partir da realidade, isso implica em fazer pesquisa. Todo o conjunto de informações obtido durante a pesquisa passa então a ser trabalhado, discutido e analisado pelos professores, num processo de sistematização em busca de situações significativas, problemas e necessidades vividas. Destacando-se os

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possíveis temas geradores que serão tomados como diálogo na continuidade da pesquisa.

A necessidade de um trabalho coletivo impulsionado pelo processo de organização, sistematização e análise da realidade, na organização, produção e negociação coletiva de redes temáticas, temas geradores, recortes do conhecimento necessários àquela realidade, exigiu um reordenamento do perfil da formação, implicando na decisão política de construir um processo de formação continuada para toda a rede municipal de ensino.

A investigação temática passou a fazer parte da organização do currículo, estabelecendo a intenção pedagógica, os procedimentos como o levantamento da realidade local através de pesquisa socioantropológica, imprimindo, assim, para cada espaço educativo um ponto de partida para a organização pedagógica, entrelaçando os saberes e recriando práticas institucionais. A realidade pesquisada é a possibilidade de diálogo com os diferentes sujeitos e uma das possibilidades de participação da construção do currículo.

A sistematização dos dados em forma de rede temática a partir da realidade, com elaboração de programas construídos coletivamente pelas equipes, especificamente na Educação Infantil, pelos professores, aborda, direciona os caminhos que se possa trabalhar na organização do planejamento identificando conceitos a serem trabalhados e possíveis mudanças no cotidiano das crianças, nas instituições, no processo ensino-aprendizagem.

Os planejamentos realizados nos CEIs mantinham estrutura de organização coletiva, no desenvolvimento de cada especificidade e buscavam compreender e encaminhar, com criatividade e imaginação, o processo pedagógico com as crianças, definidos como: Estudo da Realidade, Organização do Conhecimento e Aplicação do Conhecimento.

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Essa dinâmica dialógica de sala de aula, que necessitou a busca de aprofundamentos sobre como a criança aprende, a construção de canais de comunicação com o mundo infantil concreto, na área da expressão, literatura, brincadeira, organização dos espaços dentro e fora da sala, música, reorganização de oficinas e construção de objetos que contribuíssem na relação entre os professores e as crianças, no processo da aprendizagem. Inaugura um diferencial pedagógico no movimento de reorientação curricular via Tema Gerador, um novo olhar para educação infantil.

Esse processo demarca um diferencial em relação ao que se vinha construindo, ao planejamento que, situado numa concepção dialógica, imprime a necessidade de um trabalho que não termina quando se encontram os “conteúdos” a serem trabalhados, mas iniciam um processo de compreensão que relaciona conhecimento e realidade da criança como sujeito histórico. Na dinâmica geral, pode-se extrair que as bases teóricas do currículo popular crítico, transcrito e vivenciado pela rede municipal de educação de Chapecó, especificamente para a Educação Infantil, situam-se numa perspectiva sociológica da prática educativa, imprimindo um novo olhar para a área, no campo educacional.

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II

AS EXPERIÊNCIAS DAS ESCOLAS DO CAMPO NO CONTEXTO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO

POPULAR NO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ/SC (1997-2004)

Jane Suzete Valter

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objeto de estudo a

experiência de educação popular junto às escolas do campo, desenvolvida no período de 1997 a 2004, no município de Chapecó, em Santa Catarina. A pesquisa se ateve a analisar os pressupostos teórico-metodológicos da proposta de educação popular para as escolas do campo; avaliar o contexto de implementação da proposta e a base real de sustentação na vida material e organizativa das comunidades; refletir sobre o papel da educação escolar na perspectiva popular e seus limites nas vias institucionais.

Nas últimas décadas, alguns movimentos sociais organizados no campo, tem lutado pelo direito à educação e à escola, colocando-se numa posição de enfrentamento à lógica da educação predominante no Brasil, a qual é expressão do sistema nacional: elitista, constituindo-se ainda em privilégio social, sem conexão com a forma de vida e de organização do conjunto da população, especialmente do campo.

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina e docente do Curso de Licenciatura em Pedagogia do IFC – Campus Videira. E-mail: [email protected].

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Neste contexto, também emergiram experiências de educação popular em administrações municipais e estaduais de esquerda. Visando compreender as contradições desse processo (uma educação popular no âmbito de instituições formais), ou seja, sob controle do Estado, procurou-se desenvolver um estudo sobre a experiência de educação desenvolvida no município de Chapecó, tendo como foco a educação do campo.

No ano de 2006, após ter vivenciado a experiência como professora na proposta de Educação Popular, uma das inquietações, não somente minha, mas de várias colegas educadoras, era perceber que todo o processo educacional construído pela Administração Popular vinha intencionalmente sendo aniquilado. Por ter atuado como professora em escola do campo no período de construção da experiência de educação popular, é que surgiu o desafio de pesquisar e registrar essa experiência; é com essa intenção que se propõe este estudo.

Considerando a pesquisa um instrumento de investigação da realidade, o trabalho de campo foi desenvolvido tendo como referência a pesquisa qualitativa, que possibilita conhecer a produção do conhecimento visando ampliá-lo ou até mesmo superá-lo. De acordo com Chizzotti (2001, p. 79), na abordagem qualitativa

[...] o conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeito observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado.

Tendo o entendimento dessa importância, para a

realização deste texto utilizou-se três fontes referenciais ou metodológicas.

Visando analisar a experiência educacional da administração popular do município de Chapecó,

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As experiências das escolas... 213

desenvolveu-se pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Na pesquisa documental teve-se como fonte de pesquisa documentos da Secretaria Municipal de Educação, do Fórum Municipal em Defesa da Escola Pública e registros das escolas do campo, a intenção foi compreender como ocorreu a construção da experiência, bem como as contradições evidenciadas no processo. Ao buscar sintetizar o processo de construção da experiência, encontrou-se algumas dificuldades como o acesso aos registros da proposta desenvolvida nos espaços escolares. Pois, com a troca de administração, grande parte dos registros (redes temáticas, programações de aulas, pesquisas...) que haviam sido arquivados nas escolas não foram encontrados e esse foi um dos limitadores no desenvolvimento deste trabalho. Entretanto, considerando a importância de registrar essa experiência, procurou-se identificar as mudanças efetuadas na educação do campo, bem como os avanços e limites apontados, constituindo-se dialeticamente num movimento de construção e reconstrução e não como algo pronto e acabado.

Na pesquisa de campo realizou-se entrevistas semiestruturadas com pais de alunos, membros do conselho escolar, professores e coordenadores de escolas do campo, além de entrevista com o secretário de educação do município no período pesquisado.

As entrevistas foram indispensáveis, pois possibilitaram maior conhecimento da realidade e a análise da experiência de educação do campo construída no município. Como critério para seleção dos entrevistados, buscou-se os sujeitos que tinham um determinado grau de envolvimento e participação no período pesquisado. Foram entrevistados cinco professores e duas coordenadoras que acompanharam o processo de construção da proposta, quatro pais de alunos que estudavam no campo, dos quais dois faziam parte do conselho escolar; o responsável pelo

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transporte escolar, um agricultor que foi sócio de uma cooperativa, além do secretário de educação que atuou no período inicial da construção da proposta. Optou-se por realizar a pesquisa com pessoas de diferentes escolas do campo, pois as diversas realidades poderiam trazer maiores contribuições à pesquisa. Visando preservar a identidade das pessoas que colaboraram com a pesquisa atribui-se a elas nomes fictícios A EDUCAÇÃO DO CAMPO

O debate entre educação do campo e da cidade, na

maioria das vezes, vincula-se à simples transposição da educação da cidade para o campo, desconsiderando-se totalmente a realidade e as especificidades dos sujeitos que vivem no campo.

Com a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aparecem elementos que tratam especificamente da Educação do Campo. O artigo 28 propõe adequações da escola à vida do campo, mas não traz grandes novidades e avanços.

O que historicamente se evidencia é que a educação nunca foi prioridade e muito menos teve a intenção de atender os camponeses. Sabe-se que é nas estruturas capitalistas que se mantêm, a lógica é de manutenção e somente teremos mudanças radicais na educação se rompermos com esse sistema. Nesse sentido, Mészáros (2005, p. 25) afirma:

Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados. Consequentemente uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as

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suas vitais e historicamente importantes funções de mudança.

Tendo essa compreensão e entendendo que a

educação não poderia mais estar a serviço de uma elite, é que alguns movimentos sociais desenvolvem suas experiências educacionais, defendendo que os processos educativos devem ir além da educação escolar. Foi na defesa de seus direitos (entre eles a educação) que alguns movimentos sociais (juntamente com entidades e organizações) iniciaram um movimento nacional de luta e defesa da educação pública para os povos do campo e realizaram a I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo.

Esta foi resultado de um processo iniciado no final do I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA), realizado em Brasília e promovido pelo MST, em julho de 1997, no qual foi colocado o desafio para as entidades promotoras de realizar um trabalho mais amplo sobre a educação, levando-se em conta o contexto do campo (RIBEIRO, 2008, p. 13-14).

Nesse período, o MST tinha uma coordenadoria especializada para a Educação do Campo, e foi um dos principais movimentos a organizar e reivindicar esse direito. Esse movimento tinha como objetivo primeiro a luta para ter escolas nas áreas de Reforma Agrária, num processo dialético de construção envolvendo o debate teórico com as vivências. Esse processo foi ajudando a constituir uma pedagogia, a qual denominou Pedagogia do Movimento. Desta forma, a Educação do Campo foi construída juntamente com os trabalhadores do campo, discutindo-se desde o acesso até a concepção de educação que se queria construir:

O movimento inicial de Educação do Campo foi o de uma articulação política das organizações e entidades para denúncia e luta por políticas públicas de educação no

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campo, e para mobilização popular em torno de um novo projeto de desenvolvimento. Ao mesmo tempo tem sido um movimento de reflexão pedagógica das experiências de resistência, constituindo a expressão e, aos poucos, o conceito de Educação do Campo (CALDART, 2004, p. 3).

Os movimentos sociais, ao construir a experiência de

Educação do Campo, têm a concepção de que é necessário que ocorram mudanças no sistema de ensino. Porém, tem claro que não basta mudar a educação, pois esta por si só não resolve os problemas, mas, combinada com outras ações, pode contribuir para a transformação do atual modelo social. Como afirma Vendramini (2000, p. 201):

Se, por um lado, o Movimento dos Sem Terra procura inovações e reforma no interior do sistema econômico e político existente, através de um ensino inovador, com seus claros limites para se constituir enquanto tal, por outro lado, constrói pela sua ação uma educação não formal, que pode resultar numa consciência de classe, fundamental para os movimentos que prosseguem na transformação estrutural de sociedade.

Mesmo com algumas experiências que se

contrapõem à lógica capitalista, que é o caso de alguns movimentos sociais, percebe-se que é o modelo econômico quem dita as regras, o qual está diretamente ligado ao modelo de agricultura e a escola tem dificuldades em construir uma educação crítica, pois sua forma de organização vem na lógica de manter o controle social. Conforme afirma Frigotto (1999, p. 170-171):

O que estamos querendo enfatizar é que a forma de organização escolar e o uso das próprias técnicas, na análise que estamos efetivando, já vêm articulados à determinação e a interesses de classe. Interesses estes cujo compromisso não é a elevação dos filhos dos

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trabalhadores aos níveis mais altos de cultura e do próprio saber processado na escola, mas a elitização do processo escolar como mecanismo de reprodução das relações econômico-sociais que perpetuam a desigualdade.

Mais uma vez, a escola parece reproduzir

hegemonicamente a ideologia dominante, ou seja, a serviço do sistema econômico capitalista. Para inverter esse papel, Freire (1981) acredita que a educação seja capaz de ajudar o oprimido a se libertar do opressor, pois é através do conhecimento de sua condição que o oprimido vai lutar para mudar a realidade. Assim:

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor do que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade de libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, 1981, p. 32).

Outra perspectiva é apontada por Mészáros (2005),

na qual a educação formal, por si só, não garante a superação ou manutenção de um sistema, mas ela é parte integrante dessa totalidade de processos educacionais da sociedade, podendo trazer contribuições. Conforme afirma Mészáros (2005, p. 45):

A educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou ‘consenso’ quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados.

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Concordando com Mészáros, o qual afirma que a educação institucionalizada no atual modelo de Estado, historicamente tem contribuído na perspectiva de manutenção da sociedade capitalista e mesmo quando desenvolvida com a intencionalidade de conscientizar, não consegue “tocar” as estruturas. Portanto, não esperemos que através da educação consigamos grandes transformações, embora ela possa contribuir na conscientização das pessoas, quando trabalhada numa perspectiva emancipatória.

Com a intencionalidade de enfrentar a forma de organização desse sistema, tanto no que se refere ao espaço, quanto na construção do conhecimento, é necessário pensar o campo não apenas como um espaço de produção para valorização do capital, mas como lugar de vida, de reorganização, tanto na distribuição populacional, quanto no acesso aos bens necessários a uma vida digna.

Nesse sentido, Cury (1992, p. 130) contribui declarando que a tarefa educativa deve estar associada às relações sociais e à transformação da realidade. Afirma que, se a educação esteve mais comprometida com os interesses dos grupos dominantes do que com os interesses da classe trabalhadora, isto não é uma fatalidade, pois assim como ela coopera com a reprodução das estruturas vigentes, ela mescla no conjunto de uma ação social transformadora que se opõe ao sistema capitalista. Mas, para tanto, é necessário construir uma teoria mais elaborada sobre a prática educativa, que ajude a revelar os elementos decisivos de sua superação.

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A EDUCAÇÃO DO CAMPO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Esse processo de debates e mobilizações, citado

anteriormente, em torno da construção de uma educação do campo oposto à educação rural também desencadeou a luta para torná-la política pública. A aprovação das Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo, aprovada em 2001, foi considerada um importante avanço, principalmente por contemplar as reivindicações e a concepção defendida pelos movimentos sociais.

A partir da II Conferência Nacional de Educação do Campo, de acordo com Munarim (2006, p. 12),

[...] na medida inversa do cumprimento de uma agenda, por parte do MEC, agenda esta determinada pela Articulação Nacional, o Movimento de Educação do Campo começa a dar sinais de arrefecimento.

Nesse contexto, conforme Munarim (2006), foi

instituída, na estrutura do MEC, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), a qual tinha, entre outras tarefas, de atender a Educação do Campo. Com esse objetivo foi criada uma Coordenação de Educação do Campo, que se encarregou de organizar os seminários estaduais de educação do campo.

Com o Projeto de Resolução que fixa as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo, criou-se uma expectativa de avanços efetivos com relação à educação do campo. Porém, houve uma distância muito grande entre o que estava no papel e sua efetivação na prática, a qual equivale, segundo Munarim (2006, p. 10): “[...] entre estar no comando do Poder Executivo um governo minimamente disposto ou contrário a fazer valer uma concepção de educação e de sociedade democráticas”.

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Mas considerando que o Estado está a serviço da reprodução do capital, no momento em que a educação do campo está ligada a este aparato, esta pode perder suas bases de construção tornando-se mais uma forma de reprodução da sociedade atual. Nessa direção, Vendramini (2008, p. 8) afirma que:

[...] a luta por uma educação do campo corre o risco de ficar atrelada ao âmbito do Estado e das políticas públicas, perdendo sua dimensão fundamental da educação como estratégia de interiorização de valores contrapostos à lógica individualista, liberal, competitiva, funcional que nos conforma e que cria um consenso generalizado em torno do consumo.

Assim, pelo fato da educação do campo fazer parte

das políticas públicas, é possível que ela se torne mais um dos programas oficiais, desvinculada da intencionalidade que tinha quando na sua constituição inicial.

As diversas experiências desenvolvidas no âmbito institucional implicam em políticas públicas, como foi no município de Chapecó, que, através da Administração Popular, procurou-se implementar uma experiência de educação do campo com a intencionalidade de construir outra sociabilidade.

AS MUDANÇAS INSTITUÍDAS NA EDUCAÇÃO DO CAMPO EM CHAPECÓ

Historicamente, as escolas isoladas foram o meio

encontrado para universalizar as primeiras letras com os filhos dos agricultores, já que um grande número de pessoas habitava os lugares mais distantes. O difícil acesso, a precariedade das estradas e a falta de transporte escolar fizeram com que, por muito tempo, a escola isolada fosse a única solução para as comunidades.

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Propagou-se a ideia de que o desenvolvimento, a vida fácil e a qualidade de vida estão na cidade e que o campo é lugar de “atraso”, de abandono, dos menos capazes. Essa visão, que apresenta o Brasil como “atrasado”, foi propagada principalmente pelo personagem do Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato, em 1951. Conforme Fiod (2007, p. 3):

Jeca Tatu é exemplar do caboclo brasileiro. Um grande preguiçoso, símbolo do atraso e da miséria, um genuíno representante do campo [...] Ele não planta árvores frutíferas, hortas ou flores. Apenas retira coisas que a natureza espalha pelo mato, o que lhe custa apenas o gesto de espichar a mão.

Assim, percebe-se que esta visão preconceituosa em

relação ao caboclo brasileiro não veio do acaso, mas foi construída e, certamente, com uma intencionalidade, segundo Fiod (2007). O que “espertou” o caboclo no Brasil foi o assalariamento, ou a impossibilidade de viver sem vender sua capacidade de trabalhar. Como crítica a essa ideia, Oliveira (2003) traz a análise sobre as bases econômicas no processo de industrialização, no Brasil, em que a agricultura de subsistência e de seu excedente se articula com a acumulação do capital, formando um processo combinado, ou seja, a produção das relações capitalistas “modernas” vai se apoiar no “atraso”, expressado pelo setor agrícola.

Esse preconceito em relação ao espaço do campo, é também evidenciado na educação. Conforme Vieira (1999, p. 50), as escolas do campo são:

Tratadas como uma espécie de resíduo da organização educacional brasileira, as escolas do campo apresentam ainda outros problemas básicos, tais como: inexistência de infraestrutura adequada para esta finalidade, projeto

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político e pedagógico alheio a um projeto alternativo de desenvolvimento social e aos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, aos seus movimentos e suas organizações.

Em Chapecó, ao mesmo tempo que se evidencia o

crescimento econômico e populacional, também aumentam os problemas sociais, o que não é diferente da realidade nacional, pois nesse sistema capitalista a tendência é cada vez maior de concentração da riqueza e aumento da pobreza. Essa situação fica clara no contexto geral do município, mas no campo é ainda mais grave, com falta de políticas públicas, de distribuição de renda, de acesso à terra e a uma vida digna. Percebe-se, portanto, que há um descaso, inclusive com relação à educação dessa população.

De acordo com o diagnóstico elaborado pela Secretaria Municipal de Educação, um ano depois de assumir a Administração Popular (1997), a realidade das escolas do campo era de abandono da estrutura de grande parte delas, em estado de degradação, com falta de merenda de qualidade, ausência de formação e acompanhamento dos educadores, muitos sem formação para a área de atuação. Conforme Santin (2003, p. 9-10):

Em 1997 era comum situações em que o/a professor/a não ia à escola quando chovia, cultura que se prolongou por vários anos em que os alunos nos dias de chuva não vinham para a escola com medo de não encontrar o/a professor/a. Nas cozinhas dessas escolas era comum em muitas delas as merendas conviverem com predadores e alimentos estragados. A carne era à base de carcaça (ossos de frango), sopas prontas e alimentos enlatados à base de conservantes prejudiciais à saúde humana.

Nesse período, a maioria das escolas do campo eram

vinculadas ao sistema municipal de educação. Foi após a Lei

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de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) e o Plano Nacional de Educação que, diante desse quadro, em relação à educação presente no campo, os municípios passam a seguir orientação do Ministério da Educação e do Desporto para organizar a estrutura e o funcionamento dessas escolas. De acordo com Brzezinski (1997, p. 176), pode-se perceber que:

A primeira tarefa do município deveria ser a de escolher a melhor forma para sua organização, como uma das tarefas do Poder Público responsável pelo processo educativo. Isto quer dizer que a LDB oferece a oportunidade de o município poder optar pela forma que julgar mais adequada para a organização de seu sistema de ensino.

Com a tarefa de cada município organizar o seu

sistema de ensino, de acordo com o que entendesse ser mais apropriado para a sua realidade educacional, houve diferentes direcionamentos, principalmente no que se refere à decisão de manter ou não as escolas no campo. O AGRUPAMENTO DAS ESCOLAS DO CAMPO EM CHAPECÓ – NUCLEAÇÃO

O processo de agrupamento das escolas do ensino

fundamental do campo é uma iniciativa do poder público, na intenção de organizar o ensino nessas escolas; essa forma de organização é denominada de nucleação. Nesse sentido, diferentes projetos de nucleação foram implementados nas redes de ensino dos municípios do Oeste do Estado de Santa Catarina. A maioria dos processos ocorreu com a ausência de discussões com a população do campo.

Em Santa Catarina, o Sistema Estadual de Educação do Estado, no capítulo X, estabelece:

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Art. 66. O Poder Público dispensará especial atenção à oferta de educação básica para a população rural, pesqueira, indígena e carcerária que será adaptada às suas peculiaridades, mediante regulamentação específica e levará em conta: I – o envolvimento dos órgãos municipais de educação [...] da agricultura, [...] famílias e a comunidade na formulação de políticas educacionais específicas e na oferta de ensino; II – a elaboração de currículos com conteúdos curriculares apropriados para atender às reais necessidades e interesses dos alunos [...]; III – adoção de metodologias, programas e ações voltadas para a superação e transformação das condições de vida nos meios rural e pesqueiro e nas comunidades indígenas, proporcionando a estas a autossustentação e autodeterminação (SANTA CATARINA, 1998, [s.p.]).

Além desses aspectos, a Lei também aborda as

condições didático-pedagógicas, manutenção do transporte escolar e organização de cursos para estes espaços. Fundamentado nessa Lei, é que o estado de Santa Catarina, em conjunto com os municípios, desencadeia o processo de nucleação.

Nessa reorganização das escolas do campo, orientado pela LDB, muitos municípios optaram por levar os alunos do campo para a cidade, o que, de certa forma, interferiu ainda mais no processo de o urbano se sobrepor ao rural, pois a educação acabou priorizando o espaço da cidade, não considerando a realidade e os conhecimentos dos alunos que vem do campo. Reportando-nos à nova LDB, verifica-se, no capítulo IX, que as disposições transitórias aparecem da seguinte maneira:

É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei. Parágrafo 1°. A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional

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de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (BRASIL, 1996, Art. 87).

A partir dessa disposição, os estados, o Distrito

Federal e os municípios, em colaboração, deveriam apresentar ao Congresso Nacional o referido plano, até o final de 1997 (SAVIANI, 1998). Percebe-se que a aprovação da LDB e a construção do Plano Nacional de Educação estão vinculadas às exigências mundiais e, certamente, com a intencionalidade de cumprir metas de educação definidas em nível internacional.

O Plano Nacional de Educação, ao referir-se ao ensino fundamental, no item 3, aborda a questão do agrupamento das escolas do campo, denominada nucleação. Outro fator que incentiva os municípios a optarem pela nucleação é o financiamento que dispõe sobre o FUNDEF, que regulamenta a distribuição do salário educação, em que um dos critérios de recebimento dos recursos é o número de matrículas do ensino fundamental e educação especial, o que, de certa forma, encaminhou a nucleação. Nesse sentido, comentando sobre o Programa de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental, Vieira (1999, p. 56) afirma:

No parágrafo 1°, somente podem participar deste programa, escolas públicas do ensino fundamental com no mínimo 21 matrículas. Este critério ‘força’ as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação a agruparem as escolas com menos de 21 alunos matriculados, formando a nucleação.

Nesse contexto, a política educacional, desenvolvida

pelos administradores estaduais para as escolas do campo, esteve na lógica da descentralização, o que culminou na municipalização da grande maioria das escolas rurais de 1ª a

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4ª série e encaminhamento para que fossem reagrupadas. Ao assumir a Administração Popular, em Chapecó, esse processo já estava em andamento, mas, conforme documento, foi retomado com a seguinte perspectiva:

Em Chapecó, procuramos uma reorganização das escolas rurais buscando a superação do isolamento geográfico e político-pedagógico dos professores e alunos das escolas isoladas/multisseriadas, viabilizando escolas com melhores condições pedagógicas mantidas em comunidades do meio rural, com perspectiva de ampliação do atendimento até conclusão do ensino fundamental (CHAPECÓ, 1999c, p. 18).

A Administração Municipal de Chapecó, ao tomar a

decisão de nuclear as escolas, mantendo-as no campo, de certa forma, acabou considerando aspectos como: currículo, realidade do campo, identidade das comunidades, entre outros.

A partir da elaboração da proposta de nucleação, a Secretaria de Educação organizou discussões com as comunidades sobre o assunto. De acordo com Santin (2003), esta proposta foi amplamente debatida elencando pontos positivos e negativos da nucleação. Nesse sentido, ficava garantida a possibilidade de a escola permanecer e fortalecer cada comunidade, mas se explicitavam as contradições de como responder a alguns desafios: Como garantir espaço físico adequado? Qual o envolvimento do professor com a comunidade? Como organizar para que o professor não ficasse com todas as tarefas, inclusive de serviços gerais e administrativos?

Esse processo culminou na nucleação da maioria das escolas, onde se definiram as comunidades estratégicas para manter e organizar a ampliação do atendimento. A organização dos espaços foi a seguinte:

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Em Chapecó, as 68 escolas isoladas foram reagrupadas em 18. Em 8 dessas escolas, foi ampliado o atendimento do ensino fundamental [...]. O atendimento no Ensino Fundamental completo, no ano de 1996 era oferecido em apenas uma escola do campo, no ano de 2000 passou a ser em 7 escolas nucleadas, além da Educação de Jovens e Adultos (CHAPECÓ, 1999c, p. 18).

Nesse debate, a Secretaria de Educação

acompanhava a discussão e a aprovação, ou não, da nucleação que se dava por parte das comunidades envolvidas, estando em constante avaliação com as dificuldades e avanços dessa iniciativa. Sobre o processo de nucleação um pai que pertence a uma das comunidades da escola citada anteriormente relata:

Quando a Secretaria de Educação veio com a proposta da nucleação, foram feitas reuniões, primeiro com cada comunidade e depois juntaram todas as comunidades para as decisões (Paulo, 2008).

Outro aspecto a ser considerado, a partir da

nucleação das escolas do campo, foi a questão do transporte escolar, pois até 1997, com exceção de uma escola (Escola Agropecuária), todas as outras ofereciam somente as séries iniciais; e somente os filhos dos agricultores que tinham condições de pagar o transporte continuavam a estudar na cidade, os demais cursavam as séries iniciais do ensino fundamental. Conforme relato do professor responsável pela organização do transporte escolar, naquele período:

Antes da nucleação os alunos que quisessem concluir o ensino fundamental tinham que se deslocar até os bairros ou centro de Chapecó e pagar 50% do valor de seu transporte. [...] Com a implantação de oito núcleos escolares, os alunos passaram a estudar nas comunidades rurais e ter acesso ao transporte gratuito [...]. Assim o

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transporte escolar passou a contemplar aproximadamente 4.500 alunos (José, 2008).

Se, por um lado, a nucleação trouxe alguns avanços

para a educação nas escolas do campo, por outro lado, apresentou-se como um problema, pois muitos alunos acabaram tendo que viajar de ônibus até uma hora, para se deslocarem de suas residências até a escola nucleada.

Sobre os pontos positivos da nucleação, um pai relata que aproximou as comunidades, que anteriormente quase nem se conheciam e com a nucleação passaram a conviver. Segundo ele:

Pra mim um ponto positivo da nucleação foi na relação dos alunos das diferentes comunidades [...]. Essa aproximação se deu também pela participação no Orçamento Participativo, em que nós tinha que se unir para reivindicar e decidir o que era prioridade para cada comunidade (Pedro, 2008).

Embora indicadores apontem que houve melhora do

atendimento educacional, também houve reclamação por parte de algumas comunidades, visto que a escola multisseriada era um, quando não o único, espaço coletivo da comunidade, em que as famílias se encontravam para rezar, fazer reuniões, atividades de lazer, entre outras. O que acabou, de certa forma, isolando ainda mais algumas comunidades, cuja escola foi fechada para ser deslocada para outra comunidade. No relato de um pai, constatamos que:

Houve uma desmotivação, pois antes o pessoal se reunia por causa da escola e quando ela foi fechada não se reuniu mais. Os pais vão para a comunidade onde está a escola nucleada e até as mercearias, bodegas foram para esta comunidade (Felipe, 2008).

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Ao mesmo tempo que se avalia a nucleação como um processo positivo, no que diz respeito à melhoria no ensino, também se percebem aspectos negativos, como a diminuição de organização e de encontro coletivo das comunidades, onde as escolas foram fechadas.

No processo de nucleação, algumas comunidades optaram por manter as escolas na comunidade, como já relatado anteriormente, mas na política do governo municipal, incluía-se a melhoria no atendimento dos alunos do campo e mesmo não nucleando, essas escolas passaram por uma reestruturação, que ia desde infraestrutura até aspectos pedagógicos.

Em 1997, as escolas do campo, em grande parte, encontravam-se numa situação de precariedade. Conforme relato da professora Suzane (2008): “As condições de trabalho naquele período eram difíceis, pois o professor tinha que fazer tudo”. Também, de acordo com a professora, não havia acompanhamento pedagógico por parte da Secretaria de Educação, que, de acordo com a professora, ia à escola somente para fiscalizar.

Ainda, segundo essa professora, mesmo nas escolas não nucleadas, as mudanças a partir da Administração Popular foram grandes:

Mudou tudo, a escola tava acabada, não tinha material didático e nem equipamentos, a merenda era péssima. A escola foi reformada, foram adquiridos equipamentos, também veio material didático e pedagógico (Suzane, 2008)

Percebe-se que houve um redimensionamento da

educação nesses espaços, não somente na infraestrutura, mas na própria relação que se estabeleceu com as comunidades, pois estas passaram a fazer parte do processo, discutindo, opinando, avaliando e, certamente, esses fatores deram outro caráter à educação, pois esta passou a ser feita com a

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comunidade, numa perspectiva mais democrática e coletiva. Na conversa com a professora, ela ainda relata que essa forma de trabalhar na escola com a participação e envolvimento dos pais foi muito interessante, pois organizaram-se várias atividades na escola: com os sindicatos, grupos de mulheres, os sem-terra. Tanto é que quando a Secretaria de Educação queria fechar a escola e os pais não deixaram: “bateram o pé” e não aceitaram! Hoje eles sabem que têm direitos.

Percebe-se que toda essa política de investimento e valorização do campo, conforme explicitado nos registros da escola, possibilitou um espaço ativo de participação coletiva, o que representou melhorias significativas na qualidade da educação.

MUDANÇAS NA INFRAESTRUTURA DAS ESCOLAS DO CAMPO

Como já mencionado neste trabalho, as escolas do

campo estavam em completo estado de abandono, sem as condições mínimas de infraestrutura. Entre as decisões da Administração Municipal, incluía-se a política de valorização do campo e a educação era um dos seus aspectos.

Nessa perspectiva, houve grandes investimentos na infraestrutura das escolas do campo, entre eles: compra de equipamentos, aquisição de material pedagógico, compra de material didático de uso dos professores e alunos, reforma e construção do espaço físico, ampliação do quadro de funcionários, garantiu-se tempo para o planejamento e estudo dos professores, melhoria na qualidade da merenda escolar e a instalação de laboratório de informática em uma escola do campo, o que, segundo a secretária de Educação, do período,

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[...] na escola do campo foi muito questionada, pois atenderia um número pequeno de alunos se comparado com a cidade, mas como havia a política de valorizar, também, este espaço, manteve-se a decisão (Luciana, 2008).

Também na perspectiva de que o brincar é

importante para o desenvolvimento das crianças, construíram-se parques alternativos em todas as escolas nucleadas e em algumas não nucleadas, já que, anteriormente, não havia em nenhuma escola do campo.

Com relação ao quadro de funcionários das escolas do campo, houve uma significativa ampliação, o que significou um aumento de 43,36%, inclusive com a constituição de Diretores em dez escolas, eleitos, de forma democrática, por segmentos de pais, funcionários e alunos maiores de dez anos. Além disso, as turmas eram constituídas, em média, por 17 alunos nas escolas do campo; e 20% a 25% da carga horária dos professores era destinada ao planejamento das aulas e estudo (SANTIN, 2003, p. 8).

Ampliou-se o atendimento na educação infantil de 95 alunos em 1996, para 246 alunos em 2004. Na Educação de Jovens e Adultos não havia turmas em 1996, sendo que, em 2004, havia 265 alunos matriculados e durante esses oito anos mais de mil alunos dessa modalidade estudaram nas escolas do campo. Os dados demonstram, também, que houve uma diminuição no atendimento do Ensino Fundamental, o que se deve ao atendimento nas escolas estaduais (CHAPECÓ, 1999c). A REORIENTAÇÃO CURRICULAR NAS ESCOLAS DO CAMPO

Em 1997, o trabalho pedagógico e os conteúdos nas

escolas do campo e da cidade seguiam os mesmos padrões: pensados e organizados por pessoas que não conviviam com

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as diferentes realidades, mais direcionado ao espaço urbano, conteúdos predeterminados, enfim, organizavam-se na mesma perspectiva que, historicamente, manteve-se no Brasil.

Nesse contexto, a Secretaria de Educação propõe repensar, também, a educação para as escolas do campo:

Queremos pensar qual é a função social da educação do campo, isto é, só tem sentido pensar um projeto educacional para o campo se este de fato contribuir para que se ‘desenhe’ uma vida melhor aos trabalhadores agricultores(as) filhos(as) do campo. Compreendendo assim, que a educação não transforma a sociedade, mas transforma os sujeitos e serão estes que enquanto classe poderão modificar seu cotidiano e a sociedade como um todo (CHAPECÓ, 1998, p. 30).

Com essa intencionalidade, o currículo na educação

do campo foi organizado a partir da realidade deste espaço, em que se construiu o Projeto Político-Pedagógico de cada unidade escolar, mas em consonância com o Sistema Municipal de Ensino. Nessa perspectiva, Cury (1992, p. 111, grifos nossos) diz que, para organizarmos o currículo, não basta pensá-lo, simplesmente, na lógica de levantamento de conteúdos para as diversas disciplinas, pois

[...] o currículo é um meio relevante para a consolidação da função política na educação, manifesta ou não. É um instrumento que responde ao o que fazer para se atingir determinado objetivo.

Dessa forma, um aspecto reorganizado em relação ao

currículo nas escolas do campo foi a metodologia de ensino, através do Tema Gerador, em que o ponto de partida era a realidade social dos sujeitos, ou seja, através da pesquisa nas comunidades para se perceber as principais problemáticas e,

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a partir daí, organizar o Tema Gerador, o contratema, a rede temática e os recortes do conhecimento a serem trabalhados. Esse, a julgar pelos depoimentos, foi o grande diferencial. De acordo com o depoimento do Secretário de Educação:

Num momento em que a lógica do país era em outra direção, mas como nossa diretriz pedagógica era de construir o planejamento e o conteúdo escolar considerando a realidade da comunidade escolar, acho que essa foi a diferenciação, porque a realidade que os professores construíram era a partir da realidade escolar, se a comunidade escolar era do campo, eu acho que era a grande questão até porque a educação do campo tem que ser a inversão, não pode ser uma educação direcionada pra formar agricultores, exclusivamente, especialmente da educação básica e educação infantil e ensino fundamental ela tem que ser universal, agora a grande conquista foi no sentido que se tinha um processo democrático e uma metodologia de ensino diferenciada (Leandro, 2008).

A estrutura curricular também está ligada à forma

como se desenvolve o planejamento e é importante a utilização do método para se chegar a determinado fim, pois este sempre tem uma intencionalidade. Segundo Saviani (1998, p. 67), é através do método que os currículos ganham movimento:

É o uso dos métodos adequados que irá impulsionar os conteúdos curriculares na direção dos objetivos propostos. Na relação dialética objetivos-currículos-métodos [...] cada um desses elementos é a um tempo condição e consequência do outro, o que quer dizer que eles se contrapõem e se compõem num todo único.

Com o objetivo de desenvolver uma ação pedagógica

que levasse em conta os interesses dos grupos dominados, a metodologia de trabalho ocorria com a intenção de superar a

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consciência espontânea. Nessa perspectiva, segundo a professora, o trabalho era desenvolvido da seguinte maneira:

Nós pesquisávamos, fazíamos análise e discussão com os pais e a partir daí organizávamos o trabalho. A gente envolvia também os pais, levava em conta as necessidades do campo, orientava sobre os direitos que os agricultores tinham. Através do currículo escolar, instrumentalizava o povo a exercer a cidadania e reivindicar seus direitos na saúde, na educação, na aposentadoria, para conseguir terra, até abaixo-assinado nós ajudamos a fazer para a prefeitura arrumar as estradas [...] eu penso que isso é cidadania. Ou você é educado para ser sujeito ou para ser sujeitado (Marizete, 2008).

Após a organização do trabalho, acima descrito, em

algumas escolas apresentava-se, em assembleia, a proposta definida pelos professores para discussão e aprovação pela comunidade. A exemplo disso, a professora relata:

A construção do planejamento se dava coletivamente com a contribuição da equipe pedagógica. A temática trabalhada era apresentada em assembleia para ser discutida com os pais e aprovada (Kátia, 2008).

O encaminhamento de discutir com a comunidade

era orientação da Secretaria de Educação para todas as escolas, porém, ao serem questionados sobre como ocorria esse debate com os pais, os educadores entrevistados afirmam que nem todas as escolas conseguiam organizar desta forma, dependendo principalmente, do grau de envolvimento dos professores e da comunidade escolar. Por ser um processo democrático, muitas vezes se evidenciavam os conflitos entre os que acreditavam construir uma proposta com os princípios da Educação Popular e os que não acreditavam, e resistiam em construir o novo, ficando

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presos a práticas que tiveram durante toda a sua experiência. Nesse sentido, a coordenadora das escolas do campo afirma:

Acredito que era um processo democrático, pois na maioria das decisões de secretaria passavam por debates/discussões nos espaços escolares por meio de assembleias, reuniões. A sala de aula era espaço de dois campos em conflito: um grupo de professores que se agarravam à velha forma de ensinar que carregava religiosamente o livro didático e outro grupo de educadores que estavam abertos à construção curricular fundamentada nos princípios citados da Educação Popular (Marizete, 2008).

O que se evidencia nesse processo são as contradições, em alguns casos, mesmo com a definição coletiva dos temas geradores, surgiam limites, no sentido de trabalhar determinados conteúdos em sala de aula, pois como era uma construção e não algo pronto e acabado, também era desafiador, no sentido de construir outras relações que superassem a lógica transmissiva de conteúdos. Mas, embora com limites, a maioria dos professores considera que foi um processo único e rico: “A avaliação é que foi um processo rico de identidade, de troca de saberes, de respeito com o outro, enfim uma construção coletiva mais humana” (Solange, 2008).

Com relação aos encaminhamentos para a organização do planejamento, tanto nas escolas do campo, quanto da cidade, a pesquisa era algo indispensável na construção dos temas geradores. Portanto, sendo a pesquisa investigativa na base da construção curricular, o educador detém-se na tarefa de entender os grupos sociais, levando em consideração as relações de trabalho, as vivências, as resistências, enfim todas as formas que organizam a vida dos sujeitos. É nesse contexto que vem à tona algumas questões: Como criar práticas pedagógicas ligadas às práticas sociais,

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dentro do espaço escolar? Como relacionar a prática escolar com a pedagogia do trabalho, da cultura, do movimento social? Nesse sentido é necessário que o professor seja um pesquisador permanente, com sensibilidade de querer aprender e ensinar:

Foi um grande desafio, tudo era novidade, pesquisa participativa, Tema Gerador... Mas creio eu que foram os anos que mais estudei, aprendi muito com os meus colegas a buscar, pesquisar, ouvir as pessoas e como fazer a diferença. Ser humilde, mesmo que muitas vezes pensava em desistir porque o novo mexe com as pessoas e nesse caminho encontramos algumas pessoas resistentes à mudança. Hoje quatro anos depois sei o quanto foi fundamental o trabalho que fizemos, pois deixamos marcas nas comunidades nos professores e alunos e em nós mesmos de que é possível melhorar a vida das pessoas mesmo que nas pequenas coisas (Inês, 2008).

Nessa perspectiva, a prática pedagógica deve

estabelecer uma relação dialógica entre o trabalho desenvolvido na escola e a problemática da comunidade, conforme tese aprovada na Segunda Conferência Municipal de Educação:

Tese nº 71 - A pesquisa investigativa se dará no decorrer de todo o ano letivo observando as conversas de alunos, pais e comunidade e registrando todas as falas, expressões e manifestações que forem necessárias para definir a problemática central, ou no decorrer do ano para dar continuidade ou redimensioná-la. A definição da problemática percebida a partir da pesquisa deve ser definida com a participação de todos os segmentos da comunidade escolar (CHAPECÓ, 1999c, p. 37).

Na intencionalidade de pesquisar para conhecer a

realidade e as problemáticas das comunidades, no início do

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ano letivo, nas escolas do campo, organizava-se um plano de pesquisa nas diferentes comunidades, e, conforme a necessidade, o coletivo da escola utilizava três a quatro dias para visitar as famílias. Registravam as falas, depoimentos, observações e, após esse processo, retornavam à escola para organizar o planejamento das aulas.

É importante ressaltar que o ponto de partida na organização do trabalho pedagógico é a realidade dos alunos, das comunidades, já que no desenvolvimento do trabalho pedagógico este é o ponto de partida, mas em hipótese alguma se deve ficar somente na realidade social. É necessário a mediação do professor, com os conhecimentos já produzidos, historicamente, para ampliar a visão de mundo dos alunos, fazendo com que eles construam relações tanto no nível micro, quanto no macro. Assim, não bastava apenas entender a realidade, mas era necessário apropriar-se dos conhecimentos científicos, construindo relações com a totalidade. Giroux (1997, p. 29) aponta o papel da mediação afirmando que:

Enquanto intelectuais combinarão reflexão e ação no interesse de fortalecerem os estudantes com habilidades e conhecimento necessários para abordarem as injustiças e de serem atuantes críticos comprometidos.

Com o trabalho partindo da pesquisa da realidade

social dos alunos e da comunidade, houve uma inversão na maneira de trabalhar os conteúdos, pois até então esses já vinham predeterminados da Secretaria de Educação e, normalmente, construídos por pessoas do espaço urbano que, muitas vezes, tinham pouco conhecimento do espaço do campo. Com o trabalho de pesquisa e construção do Tema Gerador, a definição dos conteúdos se dava a partir da realidade em que os alunos estavam inseridos.

Embora a Lei do Sistema Municipal de Ensino indicasse a possibilidade de, na educação no meio rural,

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elaborar uma proposta curricular envolvendo as diversas instituições ligadas a esse local, além de atender às reais necessidades e interesses do aluno, um limite apontado pelos pais foi com relação às disciplinas que faziam parte do currículo, pois, segundo eles, sempre sugeriam a inclusão de uma disciplina voltada às questões específicas do campo e isso não ocorreu na prática, conforme nos relata um pai:

A nossa ideia na época era que o currículo escolar da escola do campo fosse mais voltado pra agricultura mesmo, para nossa realidade assim tipo que se existisse uma matéria pra agricultura, hoje a gente se vê que um agricultor ou uma pessoa que entenda na agricultura tem que se formar fazer uma agronomia, sendo que isso aí pra um filho de agricultor que tenham baixa renda não tem condições de fazer. [...] Por exemplo, um técnico agrícola hoje simplesmente ele vai ensinar quanto de adubo tem que comprar, quanto de adubo tem que pôr na planta, [...] simplesmente a serviço das empresas então eles não vão estudar para fixar no campo, simplesmente para ir servir ou trabalhar para uma agroindústria (Pedro, 2008).

Nesse depoimento, percebe-se a preocupação do pai

em buscar alternativas de incentivo para que os filhos mantenham a relação com a terra, uma vez que na lógica colocada vem se desenvolvendo o oposto, isto é, a saída do campo, já que as condições de sobrevivência estão cada vez mais difíceis para os pequenos agricultores.

É importante ressaltar que a escola do campo tem as suas especificidades, porém, deve-se ater para o fato de que, historicamente, a lógica da educação se funda numa dualidade, conforme a classe social. Portanto, ao ressaltar a necessidade de a escola do campo ter especificidades, estas devem apontar no sentido de elementos que determinam o ponto de partida a ser superado; pois, ao enfatizar o isolamento e a fragmentação das escolas do campo, estaria se

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mantendo a dualidade entre campo e cidade, além de outros aspectos.

As oficinas pedagógicas nas escolas do campo

A preocupação em reorganizar os tempos de

aprendizagem dos alunos, no sentido de que não fosse apenas uma mudança de nome da seriação para os ciclos, mas que realmente possibilitasse o atendimento das necessidades, fez com que, em muitos espaços, educadores, juntamente com a Secretaria de Educação, organizassem alternativas para ajudar os educandos a superarem suas dificuldades.

No campo, como o número de alunos com dificuldades de aprendizagem não era grande, organizavam-se oficinas por necessidade, ou seja, fazia-se um levantamento das principais dificuldades dos alunos, organizando grupos conforme a grande dificuldade (independentemente da turma em que estudasse) e desenvolviam-se atividades diferenciadas para ajudar a superar essas dificuldades.

Com relação às escolas do campo, alguns professores avaliam que a falta de uma turma ou professor, para ajudar os alunos a superarem as dificuldades, limitou a proposta, pois somente as oficinas pedagógicas não garantiam os avanços necessários aos alunos com dificuldades de aprendizagem, conforme relato da professora:

Para mim, um limite da proposta foi o avanço progressivo, porque muitos alunos não tiveram os reforços paralelos e aí avançavam com dificuldades em relação à turma (Kátia, 2008).

O avanço progressivo ocorria durante os três anos de

cada ciclo e no final desse período, caso o aluno não tivesse condições de “acompanhar” a turma, era retido e

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encaminhado à turma de progressão para ser, posteriormente, enturmado. Nas escolas do campo, a falta da turma de progressão era um problema, pois em alguns casos os alunos não avançavam para o próximo ciclo e em outros avançavam com dificuldades. A tentativa de superar as dificuldades ocorria nas oficinas pedagógicas:

Aconteciam oficinas entre alunos das diferentes turmas e diferentes áreas com a contribuição dos professores, da coordenação e da direção. Também na sala de aula havia uma troca (Kátia, 2008).

Nesse processo, envolvia-se todo o coletivo da

escola, o que permitia o trabalho com um número menor de alunos e a possibilidade de contribuir mais individualmente, conforme a necessidade do aluno. De acordo com a avaliação dos professores, as oficinas contribuíam significativamente no processo ensino-aprendizagem e eram desenvolvidas semanalmente, ou conforme as dificuldades dos alunos.

A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO CAMPO

A Educação de Jovens e Adultos, em Chapecó,

anterior a 1997, tem características semelhantes à história da Educação de Jovens e Adultos do Brasil, promovendo uma política paliativa, voltada para o atendimento da demanda do mercado. Essa proposta privilegiava as Suplências I e II, ou seja, até a 4ª série do ensino fundamental, entendida como escolarização compensatória tardia, qualificação para o mercado de trabalho. Portanto, não era de ser vista como um direito.

Durante o ano de 1997, com um processo contínuo de formação de educadores, surgiu a necessidade de reorganizar a estrutura existente até então, desde as

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nomenclaturas até a forma de desenvolver a ação pedagógica. A Educação de Jovens e Adultos inicia uma construção própria, com suas especificidades e voltada aos interesses de uma parcela da população que, historicamente, foi excluída da educação escolar. Estes alunos trazem ricas experiências de vida e a educação vai adquirindo uma concepção diferente da que se desenvolvia até esse período. Os índices de analfabetismo, no município, eram elevados, conforme dados apresentados:

Os dados expostos nas pesquisas, sobre a população do Município de Chapecó/SC, aproximadamente 145.000 habitantes e, segundo o IBGE de 1991, 16,19% analfabetos, a Administração Popular 1997-2000 define a EJA como uma das prioridades do governo. Na segunda Administração Popular a EJA continua sendo prioridade, pois entende-se que a educação é um direito de todos. Iniciou-se esta com 6,37% de analfabetismo, conforme IBGE/2000, em uma população de 146.967 habitantes que corresponde a 8.452 jovens e adultos analfabetos (CHAPECÓ, 2002, p. 10).

No campo, para dar conta dessa demanda, também

se elaborou uma proposta específica para Jovens e Adultos, pois era necessário proporcionar uma educação em consonância com a realidade social e os interesses dessas populações. Organizaram-se coletivos de professores habilitados nas diferentes áreas do conhecimento, os quais formavam grupos para atenderem as diversas comunidades. Isso só foi possível devido à implantação do transporte que garantiu a locomoção dos professores. Essa mobilidade passou a ser chamada pela comunidade de EJA Itinerante. Esse coletivo contava com a assessoria da Secretaria de Educação que se reunia um dia por semana para estudo, planejamento e pesquisa (CHAPECÓ, 2004).

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Foi nesse movimento, conforme depoimento da professora, que muitos se despiram da ideia de que é o professor quem detém o conhecimento e se colocaram na condição de pesquisadores. Foi um grande aprendizado tanto para mim como para os alunos:

Nessa proposta eu enquanto professora precisava pesquisar e estudar, pois tinha que entender as relações que se estabelecem nas diferentes áreas e não somente a minha área (Lúcia, 2008).

Essa metodologia do trabalho pedagógico, a partir da

realidade, possibilitou a construção de relações mais solidárias entre os sujeitos envolvidos no processo. Considerando essa realidade da comunidade escolar da rede pública municipal do campo, cuja maioria é formada por pequenos proprietários, empregados rurais, arrendatários e desempregados, o trabalho desenvolvia-se da seguinte forma:

O currículo da EJA do Campo é construído a partir da pesquisa socioantropológica junto aos alunos e a comunidade, a partir da metodologia do Tema Gerador na concepção Freireana. A partir das ‘falas’ são definidos os temas/problemáticos denunciados na pesquisa, e após essa constatação, constrói-se a Rede Temática. A partir disso, são organizadas as programações das áreas do conhecimento contemplando as problematizações e recortes do conhecimento em diferentes dimensões (CHAPECÓ, 2004, p. 38).

Desta forma, visualizam-se as diferentes

problemáticas pertinentes à realidade do campo, o que vem contribuir na qualificação da educação do campo, porém não se pode ficar somente na realidade, é necessário conhecê-la para transformá-la, conforme Pinto (1986, p. 104):

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Entenda-se não somente a modificação dos conteúdos da consciência, mas, sobretudo, de sua dinâmica, de sua forma de apreender a realidade. A ‘conscientização’ será, pois, entendida como um processo de construção de conhecimentos que há de levar a ver a realidade social como uma totalidade determinada, na qual avulta a contradição entre o capital e o trabalho o que permite compreender os interesses objetivos da classe trabalhadora.

Tendo essa compreensão da possibilidade de

mudanças na visão de mundo dos sujeitos envolvidos no processo, a escola passou a ser referência em muitas comunidades, principalmente pelo trabalho desenvolvido na Educação de Adultos. Este contribuiu na organização das comunidades, como na organização da cooperativa dos cortadores de erva-mate, hortas comunitárias e associação de artesões. Esse processo possibilitou a integração entre as escolas do campo, a participação dos alunos nos movimentos sociais, nos sindicatos, associações, entre outros (CHAPECÓ, 2004). De acordo com o depoimento da professora:

A educação tem que atender a demanda da população menos privilegiada, de maneira que ajude a ter informações e contribua para que as pessoas conheçam a realidade e possam transformá-la (Kátia, 2008).

Nessa perspectiva, os trabalhadores do campo foram

sendo incentivados e instrumentalizados, no sentido de buscarem respostas coletivas para seus problemas. Embora a Administração Municipal tivesse criado algumas políticas públicas de incentivo à busca de melhores condições de vida e permanência dos agricultores no campo (feiras, produção agroecológica, hortas comunitárias...), elas acabam sendo momentâneas e paliativas, pois não resolvem as questões de

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fundo, como a desigualdade social, gerada pela atual política desenvolvida no país.

FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO E A RELAÇÃO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS

A formação de professores do campo, até o período

de 1997, ocorria com uma reunião mensal para tratar de assuntos administrativos e duas a três vezes no ano aconteciam grandes palestras com toda a rede municipal. Percebe-se que não havia de fato uma política voltada à formação para qualificar o trabalho pedagógico.

A escola, enquanto um dos espaços educativos, deve construir um processo de formação dos profissionais para que deem conta de mediar a construção do conhecimento. Nesse sentido, um dos objetivos da Administração Popular foi:

Fortalecer o programa de educação continuada dos trabalhadores em educação, valorizando a práxis da ação-reflexão-ação na construção da política educacional, buscando suporte teórico e troca de experiências junto às instituições e movimentos sociais que tenham como base de suas propostas e práticas, a Educação Popular (CHAPECÓ, 1999b, p. 33).

Buscando avançar no processo de construção da

educação na rede municipal, os professores necessitavam de um programa de formação continuada, já que a perspectiva pretendida na educação não era algo pronto/acabado, mas uma experiência a ser construída. Assim, havia a necessidade de estudar, pesquisar, trocar experiências.

A formação dos professores do campo ocorria em diferentes momentos: um na formação geral da rede municipal, nos seminários, conferências e debates, onde ocorriam estudos e elaboração das diretrizes da educação.

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Outro momento ocorria com a formação mais específica para os professores do campo, com encontros pedagógicos mensais em que havia momentos de estudo, diálogos, reflexões, trocas de experiências, elaboração e socialização do planejamento para ser analisado pelo coletivo e acrescentadas sugestões. Além desses momentos citados, a formação também ocorria em consonância com a construção da proposta Por uma Educação do Campo, que vinha sendo discutida e elaborada naquele período.

O envolvimento com os movimentos sociais e entidades que organizavam uma educação a partir das experiências vivenciadas no campo, foi, em grande medida, formativo. Conforme relato da professora, essas vivências foram essenciais no processo formativo:

A educação era pensada para todos e ocorria troca de saber entre o científico e o popular e esse processo produzia conhecimento nos mais diversos espaços da comunidade, nos movimentos sociais, embora eu avalie que o envolvimento com os movimentos sociais pudesse ter sido maior, pois eu aprendi mais com os movimentos sociais do que na universidade. Eu aprendi tantas coisas nas caminhadas, nas lutas... eu participei de lutas do MST, do MMA que hoje é MMC, da Consulta Popular e do Sindicato (Marizete, 2008).

A primeira participação de professores de Chapecó

em ações dos movimentos sociais ocorreu na 1ª Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, em que foram eleitos representantes para essa participação. Entre os vários debates dessa conferência, criou-se um expressivo movimento pedagógico, com experiências escolares que tinham como pano de fundo a concepção de Educação Popular, ligada às matrizes culturais do campo (SANTIN, 2003, p. 34).

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Esse período é marcado por intensos debates e tentativas que visavam à superação da fase “rural” na educação escolar, em que se busca construir uma outra perspectiva de educação, a qual passa a ser denominada “do campo”. Mas essa não se deu de forma hegemônica no país, foram experiências desenvolvidas no âmbito de movimentos sociais e algumas administrações. A Secretaria Municipal de Educação de Chapecó, através da coordenação e professores das escolas do campo, envolveu-se nesse processo. Segundo Santin (2003, p. 35): “Há uma mobilização local, regional, estadual e nacional na luta para garantir uma “[...] educação básica do campo, portanto com novas metodologias principalmente a freireana”.

Em 1999, após a participação na Conferência Nacional, no município de Chapecó foi organizado um ciclo de debates em quatro etapas com a participação de assessorias ligadas aos movimentos sociais e à concepção da Educação do Campo, que se estava construindo em nível nacional. Também houve envolvimento na organização e participação das 1ª, 2ª e 3ª Conferências Estaduais Por uma Educação do Campo e no Seminário da Região Sul, em que grande parte dos professores do campo participaram.

Em 2002, houve participação de representantes das diferentes escolas do campo do município no Seminário Nacional Por uma Educação do Campo e, em 2004, um grupo de professores também participou de um Seminário Estadual de Educação do Campo, organizado pelo MEC. Esses processos formativos foram contribuindo com a formação dos professores, conforme afirma a professora:

A formação dos professores do campo se dava a cada 15 dias em que se estudava e refletia sobre a prática e planejava-se com a participação da Secretaria de Educação. Com várias atividades, como: ciclos, Seminários e outros. Foi maravilhoso! Um processo criativo, formador e libertador (Salete, 2008).

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Portanto, a formação dos professores do campo esteve voltada a aspectos que pudessem, de fato, contribuir com a construção do conhecimento específico, visando possibilitar uma atuação mais voltada à realidade dos sujeitos, conforme a Tese aprovada na II Conferência Municipal de Educação a seguir:

A formação continuada dos educadores necessita garantir os encontros por áreas, com troca de experiências e socializações dos materiais produzidos e pesquisados e aprofundamento específico (CHAPECÓ, 1999b, p. 33).

Percebe-se que na formação dos professores do

campo, além das trocas de experiências, aprofundamento teórico, também houve a preocupação de dar conta das especificidades do contexto, pois, além de estar vinculada aos movimentos sociais do campo, havia a preocupação de uma formação voltada à transformação da sociedade atual.

ESCOLA DO CAMPO: ESPAÇO DE PARTICIPAÇÃO

Construir um processo de participação nas escolas

do campo não foi algo que ocorreu de um momento para outro, pois, de acordo com informações obtidas em conversas informais, tanto de pais, quanto de professores, os pais estavam acostumados a serem chamados na escola para receber a avaliação, para reclamações sobre comportamento dos filhos e para ajudar na limpeza de pátio. No momento em que a administração municipal buscou construir um processo de participação efetiva nas escolas, houve necessidade de outra postura tanto das pessoas que trabalhavam na escola como dos pais, sendo um trabalho persistente e desafiador, como indica a entrevistada:

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Tínhamos autonomia, nos víamos enquanto protagonistas, deixávamos de ser passivos e participávamos. Uma disciplina completava a outra no trabalho, pois conseguíamos trabalhar coletivamente, dialogando, se ajudando. Era legal, a gente vivenciava a democracia escolhia, votava, todos opinavam e saía os encaminhamentos. Tanto nós como os alunos podiam questionar, reclamar, fazíamos debates (Lúcia, 2008).

A experiência de educação do campo desenvolvida

durante os oito anos do governo popular distingue-se das anteriores, especialmente por ter uma intencionalidade e princípios voltados aos interesses das classes populares.

Historicamente, a democracia tem sido utilizada como um preceito liberal, mas Wanderley (1986, p. 67) atenta para essa discussão, mais recentemente, dizendo:

O que há de importante hoje é que a discussão na América Latina sobre a democracia passa do nível ideológico para o nível das ciências sociais, ou seja, ela se dá ao nível das necessidades fundamentais de sobrevivência e de reprodução da população, quer no plano econômico, quer nos planos políticos e sociais. [...] Em outros termos, democracia, fundamentalmente, significa justiça social. [...] significa a extensão dos direitos democráticos e a produção dos sujeitos capazes de exercê-los; significa, enfim, uma forma de vida.

Embora a estrutura de Estado limite as

possibilidades de democratização e participação popular, a perspectiva desenvolvida no município, no período estudado, aponta para a ampliação de espaços mais democráticos e participativos. A democracia com participação, para além da democracia burguesa, perpassa diversos momentos na construção da proposta educacional, desenvolvida nas escolas do campo, as quais foram objeto deste estudo. Nessa perspectiva, Pinto afirma que uma

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As experiências das escolas... 249

prática pedagógica da educação popular, requer a participação popular:

A participação da população na Educação Popular não é acessória, mas essencial. Entenda-se participação como ‘assumir a parte que lhe toca por direito’, isto é, em termos concretos, ‘defender o trabalho’. Essa participação não pode dar-se somente em alguns momentos do processo de educação, mas em todos. [...] Não se trata, pois, de fazer com que a população (o povo) participe no projeto do Estado, orientado ao desenvolvimento do capital. Trata-se de que o povo assuma prioritariamente o controle do seu próprio projeto de desenvolvimento (PINTO, 1986, p. 105).

Portanto, a participação ocorria nos diversos

momentos, espaços, segmentos da comunidade escolar. De acordo com educadoras do campo entrevistadas, é consenso que houve mudanças significativas na educação do campo, a partir da Proposta de Educação Popular, em que se destacou a participação e o envolvimento dos pais na escola, conforme elucidado no depoimento:

Um grande avanço foi a participação dos pais porque os pais não eram chamados só para discutir, mas eles vivenciavam o processo, se sentiam parte, então ajudavam, participavam. [...] Se pensava a educação do campo para o campo, este espaço era valorizado (Marizete, 2008).

Os pais também destacaram o envolvimento e a

participação nas diferentes atividades desenvolvidas na escola:

A participação dos pais e das comunidades era muito grande porque tinha mais atração, por exemplo, quando se fazia assembleia reunia bastante gente, os pais eram

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convocados pra assembleia tinha várias apresentações. [...] Os pais se sentiam bem na época. Quando mudou a administração, eu lembro que um dia de uma atividade até eu tive que entrar pra ajudar fazer uma apresentação, porque não tinha ninguém que apresentasse (Pedro, 2008).

Além da participação dos segmentos nas atividades

escolares, também houve um período de ampliação e maior democratização nas tomadas de decisões, em que a comunidade ajudava a decidir as prioridades de investimento, através do Orçamento Participativo, além do Conselho Escolar ser o órgão máximo, com poder de decisão no espaço escolar.

De acordo com a Lei Municipal de Criação dos Conselhos Escolares, estes são constituídos por representantes eleitos pelo segmento de pais, alunos, professores e funcionários encarregados de discutir e elaborar o planejamento da escola, passando a ter funções pedagógicas, administrativas, consultivas e fiscalizadoras como editar, modificar e aprovar o orçamento da escola, criar e garantir mecanismos de participação efetiva e democrática da comunidade escolar na construção do Projeto Político-pedagógico da escola. Para que os representantes desempenhassem melhor sua função, a Secretaria de Educação organizou encontros de estudo com debates referentes à atuação e participação dos conselheiros no Conselho Escolar (CHAPECÓ, 1999a).

Culturalmente, porém, pais e alunos foram acostumados à ideia de que pessoas que tem estudo sabem e eles não sabem. Constatamos, em conversas informais, que em alguns espaços, mesmo com a criação dos conselhos escolares, não houve a democratização das decisões e do poder, pois acabaram ficando centralizadas nas direções e nos professores da escola. Já em outros espaços, os conselhos escolares se constituíram atuantes e fortes na gestão. Ajudaram a organizar a participação de pais e alunos

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na definição do currículo escolar (dos temas a serem trabalhados), na avaliação, na construção do Projeto Político-pedagógico, na aplicação de recursos recebidos, entre outros. Sobre a função do conselho escolar, um membro que dele fazia parte relata:

Na Administração Popular, o conselho tinha espaço para discutir a proposta pedagógica, participar nos congressos e seminários, ajudar a organizar a proposta de trabalho da escola, auxiliar na parte administrativa que envolvia professores, alunos e servidores (Paulo, 2008).

Ao observar as atas das reuniões do Conselho

Escolar, a partir de 2004, inicialmente, percebe-se que os membros do conselho se posicionam em relação às mudanças e às perdas de direitos conquistados, como a Eleição de Diretores, mas mesmo assim o Poder Público manteve as mudanças definidas pelo mesmo.

Na perspectiva de construir um processo educacional com maior participação é importante que os conselhos escolares atuem nos diversos aspectos, conforme orientação do MEC:

O Conselho Escolar, como parceiro de todas as atividades que se desenvolvem no interior da escola, elege a essência do trabalho escolar como sua prioridade. Para tanto, sua tarefa mais importante é a de acompanhar o desenvolvimento da prática educativa e, consequentemente, do processo ensino-aprendizagem (BRASIL, 2007, p. 50).

Percebe-se, nas conversas informais, que na maioria

dos espaços havia participação do conselho escolar, não somente na perspectiva de contribuir com aspectos administrativos, mas também com o pedagógico da escola.

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Porém, essa perspectiva de gestão mais democrática rompeu-se com a mudança de administração.

Considerando os processos que foram construídos a partir da Administração Popular, constatamos avanços importantes na educação do campo, por conta de decisões políticas de construir práticas educacionais e ações que pudessem contribuir com as pessoas daquele espaço. Embora com limites circunstanciais e estruturais, apontados no decorrer da pesquisa, percebemos que foi uma grande experiência, pois possibilitou organizar espaços e sujeitos da educação sob a perspectiva de emancipação humana.

Observando as práticas desenvolvidas nas escolas do campo, no município de Chapecó, constatamos que quando as pessoas têm oportunidade de vivenciar processos de democracia participativa, não são aceitas passivamente práticas de imposição, normalmente consideradas como “naturais”; e passam a questionar e cobrar ações que são de responsabilidade do poder público.

Mas, analisando a experiência desenvolvida, o impasse volta, talvez, a uma das questões cruciais desse debate sobre os limites de ações que possibilitem a emancipação humana, no âmbito do Estado burguês. Embora a experiência desenvolvida no município de Chapecó tenha construído práticas voltadas a uma sociabilidade opostas à da escola capitalista; estas até se mantêm com rupturas temporárias, mas quando envolvem uma abrangência maior, esbarra-se nas impossibilidades de ações. Para ilustrar esse processo, citamos a experiência construída em Chapecó, sobre a participação dos pais e comunidade que, com a mudança de administração, foi deixando de acontecer e de forma intencional, pois não é interesse dos representantes da classe dominante que a população participe efetivamente das decisões.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao considerar o contexto e os processos históricos

que desencadearam a possibilidade de uma Administração Popular assumir o governo municipal em Chapecó, percebe-se as relações de poder que se estabeleceram no processo de colonização, o que resultou numa cultura de mandonismo local e de aceitação – por parte da classe trabalhadora – dos desmandos dos representantes da burguesia local, bem como o uso da máquina pública a serviço de alguns.

Na construção da experiência de Educação do Campo desenvolvida no município, a educação apresentou-se como uma das possibilidades de construir práticas na direção da emancipação humana, contrapondo-se à educação capitalista. Mas teve suas limitações, principalmente, por estar sendo constituída na via institucional na estrutura de uma sociedade que predomina o Estado burguês.

Ao avaliar a experiência construída no município, verificamos que a Administração Popular conseguiu certa ruptura temporária, ou seja, até que se manteve à frente da administração e, por um período subsequente, conseguiu adesões da população na luta pela permanência de alguns direitos conquistados. Porém, com o empenho dos representantes da burguesia local em destruir todo o processo construído (desarticulação dos coletivos, ameaças e perseguições explícitas...), as resistências foram diminuindo com o passar dos tempos. Cabe evidenciar que o projeto alternativo da administração, no espaço do campo, foi aprovado através do voto, que continuou sendo favorável à administração popular. No entanto, as populações do campo são a minoria e não conseguem ultrapassar a hegemonia da população urbana.

Olhando para o processo desenvolvido, considero que foi uma grande experiência, porém, por estar atrelada às vias institucionais do Estado burguês, acabou ficando

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comprometida, pois no momento em que venceu nas urnas o projeto conservador, pessoas com projetos diferentes assumem o poder e de forma autoritária e intencional interrompem os processos democráticos. Nesse sentido, tanto os ensinamentos de Marx e Engels, quanto Mészáros, entre outros, justificam que uma educação para além do capital não cabe na estrutura da sociedade capitalista.

É importante ressaltar que esse processo trouxe contribuições para a vida de muitas pessoas que, após terem vivenciado uma experiência, como esta que foi descrita, certamente entenderam com maior clareza as contradições do atual sistema e deixaram de ser indiferentes às relações desiguais e injustas. Nesse processo, também se entende que a educação, por si só, não garante a transformação da sociedade, mas a participação de sujeitos conscientes e organizados pode contribuir nessa perspectiva, embora dentro dessa estrutura de sociedade capitalista tenha limites. Cabe destacar também que não se rompe definitivamente com um “modelo” e se implementa outro, mas é um processo contraditório que vai se construindo no decorrer da caminhada, em que teorias e práticas se mesclam entre as que existiam e as que vão se constituindo.

Nesse processo contraditório, experiências como estas podem estar contribuindo com a construção de outra sociabilidade, embora esbarrando nas limitações da sociedade capitalista.

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As experiências das escolas... 255

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256 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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III

O “OUTRO” NA ESCOLA: A BUSCA POR UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA INCLUSIVA

Ivanete Fátima Solivo Pavan

INTRODUÇÃO

A inclusão faz parte da realidade nas escolas da rede

municipal de educação de Chapecó. No entanto, estas têm demonstrado, em suas práticas pedagógicas, dificuldades em dar conta de sua função social no que se refere às políticas inclusivas. Torna-se necessário aprofundar o debate sobre a proposta pedagógica a ser trabalhada com toda a comunidade escolar, bem como o debate sobre a diversidade. Isso implica em buscar compreender a heterogeneidade, as diferenças individuais e coletivas, as especificidades do humano e, sobretudo, as diferentes situações vividas na realidade social e no cotidiano escolar.

No município de Chapecó, os educandos, pais, educadores, enfim, toda a comunidade da rede municipal de ensino puderam vivenciar e participar das duas Propostas Político-Pedagógicas desenvolvidas pela rede. Ambas muito distintas em sua organização e seu prisma étnico, social e cultural. Neste momento, fazer análise comparativa entre ambas significa a busca por propostas pedagógicas curriculares que demonstrem a nossa capacidade de nos mobilizarmos para pôr fim ao paternalismo, ao

Mestre em Ciências da Educação pela Universidad Politécnica y Artística del Paraguay (UPAP), atua como professora na Educação Infantil da rede pública municipal. E- mail: [email protected].

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protecionismo e a todos os argumentos que pretendem justificar a nossa incapacidade de fazer jus ao que todo e qualquer educando merece uma escola capaz de oferecer-lhe condições de aprender, na convivência com as diferenças e que valorize o que consegue entender do mundo e de si mesmo.

Presencia-se, atualmente, uma crise paradigmática que aponta para a falência do modelo educacional tradicional, arcaico e excludente. A escola não pode continuar negando o que acontece ao seu redor, oprimindo, excluindo e marginalizando as diferenças.

Ao longo do processo histórico no Brasil, percebe-se que o atendimento da educação especial, enquanto sistema de ensino, tem sido de assistência às crianças e jovens deficientes, e não o de educação de alunos que têm necessidades educativas especiais.

A concepção e os princípios da educação inclusiva,1 dentro de um contexto mais amplo que dizem respeito à estrutura da sociedade, encontram-se associados aos movimentos de garantia dos direitos, exigem a transformação dos sistemas de ensino em relação à fundamentação, à prática pedagógica e aos aspectos do cotidiano da escola.

1 Educação Inclusiva: direito a diversidade – Programa iniciado em 2003, pelo Ministério da Educação – Secretaria de Educação Especial que contou com a adesão de 144 municípios-polo que passaram a atuar como multiplicadores da formação para mais 4.646 municípios da área de abrangência. O objetivo geral do programa é garantir o acesso de todas as crianças e adolescentes com necessidades educacionais especiais ao sistema educacional público, bem como disseminar a política de construção de sistemas educacionais inclusivos e apoiar o processo de implementação nos municípios brasileiros. O município de Chapecó passou a desempenhar a função de multiplicador do programa aos municípios da região, onde representantes da Secretaria de Educação passaram a receber formação junto ao Ministério de Educação – Brasília.

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A educação inclusiva, orientada pelos princípios dos direitos humanos e pela proposta pedagógica de que todos podem aprender, passa a contrapor o paradigma tradicional da organização do sistema educacional, que conduzia políticas especiais para pessoas com deficiência definidas no modelo de segregação e de integração, com ênfase na abordagem clínica. Seguindo a lógica de escolas especiais, organizadas a partir da identificação da deficiência ou do encaminhamento desses alunos para classes especiais, essas políticas conduziram a espaços segregados, entendidos como seu lugar de destino, que acabam por discriminar e excluir alunos em razão de deficiências, desvantagens, dificuldades e atitudes.

A partir dessa compreensão, os professores, na sua relação com a comunidade, podem identificar elementos que contribuam na elaboração de estratégias pedagógicas, favorecendo a intervenção no enfrentamento da exclusão educacional e social. Uma tarefa fundamental é organizar as escolas para a eliminação das barreiras, o fortalecimento das relações entre a escola e a família, o acesso aos serviços sociais da comunidade, o planejamento participativo, a troca de experiências no trabalho pedagógico e o desenvolvimento de mecanismos de gestão que priorizem a inclusão educacional.

As raízes históricas e culturais do fenômeno deficiência sempre foram marcadas por forte rejeição, discriminação e preconceito. A educação inclusiva, como diretriz para a transformação na estrutura da escola, foi definida pelo Ministério da Educação como política pública que assumiu sua disseminação por meio do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, iniciado em 2003. Essa ação conduziu um processo amplo de reflexão nos sistemas educacionais sobre as formas tradicionais do pensamento pedagógico e de ruptura com a concepção

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determinista da relação entre condições históricas, desvantagens sociais, deficiência e a não aprendizagem.

O programa afirma o direito de todos à educação, o acesso dos alunos com necessidades educacionais especiais à rede regular de ensino; e introduz o debate sobre a diversidade na formação de gestores e educadores, de forma que as práticas do cotidiano escolar não reforcem as desigualdades pela limitação das perspectivas e expectativas de aprendizagem e participação; que passem a compreender as diferenças como parte da identidade de cada sujeito e não como um problema aos sistemas de ensino e as propostas educacionais.

O processo de inclusão social prevê um novo tipo de sociedade, com transformações em todos os seus espaços. No Brasil foi se construindo, neste processo histórico, a consciência acerca dos direitos das pessoas com deficiência, criação de instrumentos legais e gradativas implantações de sistemas educacionais com objetivos mais inclusivos.

O Programa de Educação Inclusiva: Direito à Diversidade, considerado avanço histórico no país, onde o Ministério de Educação buscou desenvolver a política de educação inclusiva pressupondo a transformação do Ensino Regular e da Educação Especial. Nessa perspectiva, são implantadas diretrizes e ações que reorganizam os serviços de Atendimento Educacional Especializado oferecido aos alunos com deficiência, visando a complementação da sua formação e não mais a substituição do ensino regular. O município de Chapecó passou a ser agente multiplicador como cidade-polo e os participantes, agentes multiplicadores com apoio do Ministério da Educação. Desenvolvia-se, na época, como Política Educacional de Educação Popular – Tema Gerador, pautada nos ensinamentos de Paulo Freire, processo este que foi interrompido com a eleição para o governo municipal, em final de 2003. Foi percorrida uma caminhada de oito anos de governo popular em Chapecó,

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com grandes esforços e avanços significativos na educação como um todo. Enquanto processos sociais, tinham a filosofia de inclusão como possibilidade de uma sociedade, onde se pudesse viver de fato o direito à cidadania, independentemente das diferenças sociais, de cor, raça, gênero, deficiências, onde os excluídos não sejam o outro na sociedade, mas que haja equiparação de oportunidades.

A ética na educação está relacionada ao desejo de realizar a vida, desejo este que nos leva enquanto educador a fazer opções político-pedagógicas, direcionando as nossas ações enquanto educador. Segundo Freire (1996, p. 17):

Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos.

Os educadores necessitam ter ciência de que o fazer

pedagógico é fortemente influenciado e determinado por nosso contexto histórico, e esse contexto social ao qual estamos inseridos nos leva a acreditar que o respeito às diferenças é algo supremo, no entanto, também precisamos ter ciência de que a sociedade em sua prática prega constantemente, de uma forma sutil, a desigualdade, a individualidade, a competitividade e a exclusão.

O processo de inclusão, como enfatiza constantemente Sassaki (1997), é um processo de construção de uma sociedade para todos, e dentro dessa sociedade um dos direitos básicos de todo ser humano é a aspiração à felicidade ou, como outros lhe preferem chamar, à qualidade de vida.

Na sociedade em que vivemos, julgamos aos outros a partir de nossas experiências, convivências, enfim, a partir de nós, vistos como seres “normais e perfeitos”. Então como se deu a construção social da identidade do anormal? Para a sociedade, quem é o anormal?

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Como nos escreve Bueno (1993, p. 159): A identidade social do anormal, como uma construção histórica, mantém alguma continuidade no transcurso da civilização, é a de que, em todas as épocas, o meio social identificou, por algum critério, indivíduos que possuíam alguma(s) característica(s) que não fazia(m) parte daquelas que se encontravam entre a maior parte desse mesmo meio – não pela simples presença de uma diferença, pelas consequências de tais diferenças acarretavam às possibilidades de participação desse sujeito na construção coletiva de sobrevivência e reprodução de diferentes agrupamentos sociais, em diferentes momentos históricos.

Desta forma, a sociedade moderna julga-se o modelo

padrão da “normalidade” e passa a integrar os cidadãos (os outros) “anormais” como dificuldades escolares e sociais, pregando um paradigma de sociedade democrática.

Dentro dessa perspectiva podemos afirmar que a anormalidade não é um conceito abstrato, mas construído historicamente pela sociedade e pelos homens.

Na escola os princípios educativos também estão alicerçados nos critérios de valores que a sociedade já construiu. À medida que esta diferença hierarquiza, exclui, controla, se encarrega de estar a serviço de uma sociedade desumana e excludente.

Os tempos em que vivemos caracterizam-se por uma grande crise do que acreditamos enquanto valores, sentimentos. A sociedade naturaliza o individualismo, o consumismo, a perversão da subjetividade, onde os indivíduos valem pelo que consomem e só tem que preocupar-se com ele mesmo.

Que significado teria a postura “Ética” nesta sociedade? E o “outro” enquanto sujeito diferente nesta sociedade como constrói sua alteridade?

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Precisamos compreender o que é “alteridade”. Alter – significa o outro, nossa relação com o outro, eu sou o que o outro não é, o outro é aquilo que eu não sou e este outro é que me define. Então alteridade é a formação da identidade a partir do outro:

O indivíduo afirma-se em sua alteridade. Mas hoje se tem a impressão que o indivíduo e suas máquinas funcionam em circuito integrado e que a ordem que se funda é a ordem homogênea. Assiste-se não a inclusão, mas a um integrismo. Perde-se a lógica da diferença, para se mergulhar na indiferença a mais radical (MARTINS et al., 2008, p. 47).

A “inclusão” deve presumir a inclusão de sujeitos em

sua totalidade, dando-lhe a possibilidade de se construir, nunca em sua individualidade, mas por suas diferenças e diversidades.

Dussel (1980) também estabelece outra visão de diferença identitária baseada na “diversidade distinta” e na relação “distinção-convergência” a alteridade.

As características individuais são apresentadas por pessoas específicas, na medida em que as destacamos e lhes atribuímos significações de desvantagem e de descrédito social, não são mais diferenças e sim rótulos, estereótipos de exclusão social:

A ética da inclusão está centrada na valorização da especificidade, das particularidades de cada indivíduo. São as especificidades, as diferenças que dão sentido à complexidade dinâmica do ser humano. Isto também quer dizer que a inclusão supõe o direito à integridade; as diferenças e especificidades de cada indivíduo constituem os elementos integrantes de sua singularidade humana. É exatamente a riqueza da singularidade dos indivíduos que torna fecunda a sua heterogeneidade (MARTINS et al., 2008, p. 49).

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A sociedade está mais complexa a cada dia, com isso, imperceptivelmente, muda também a forma de compreendermos o mundo e os próprios semelhantes.

Cada ser humano é sempre distinto, na sua existência real é como “outro”, como exterioridade e alteridade. Dessa forma, o horizonte não é o “ser” identitário e sim o Outro como Outro, rompendo a unidade do mesmo e apontando para um novo conceito de identidade, dinâmico, processual, histórico e cultural, que supõe um sujeito ativo, capaz de constituírem-se a si mesmos nas suas relações intersubjetivas, sociais e históricas (OLIVEIRA, 2004).

Este é o novo paradigma – viver a igualdade na diferença. A partir desta nova visão paradigmática precisamos refletir sobre as concepções de educação de escola e de sujeito. Debater sobre diferenças que se completam em vez de se excluírem mutuamente, é pensar a existência de “um outro”. Um outro que se apresenta com uma realidade que se impõe, gradativamente, no dia a dia; um outro concreto com identidade, com história, um “outro” gente. Desta forma neste artigo discutimos: Quais pressupostos filosóficos das duas propostas filosóficas, entre as duas propostas pedagógicas desenvolvidas na rede municipal de ensino do município de Chapecó (SC), que contempla de forma integral a inclusão e a integração do outro na escola? METODOLOGIA

A pesquisa é de cunho qualitativo, bibliográfica, com

análise de documento e comparativa. Conforme Lüdke e André (1986, p. 57), a pesquisa do tipo qualitativa pode ser caracterizada como uma pesquisa que se preocupa mais com o processo do que com o produto. Além de estar atenta aos significados que as pessoas dão às coisas e à sua vida, que são os focos de atenção dado pelo pesquisador. O estudo faz

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parte da dissertação de mestrado intitulada O ‘outro’ na escola: uma análise comparativa das propostas da Educação Popular e da Escola Forte Gestão de Excelência em Educação no município de Chapecó-SC, em 2011. Para isso foram entrevistados: prefeitos (Administração Popular e Escola Forte gestão em excelência em Educação), vereadores (um de cada administração), secretários de educação (um de cada administração), gestores/diretores de escola (um em cada administração) e um pai de um aluno com deficiência que frequentou a escola nas duas administrações e um que passou a frequentar somente na atual administração municipal.

EDUCAÇÃO POPULAR X ESCOLA FORTE GESTÃO EM EXCELÊNCIA EM EDUCAÇÃO

O governo popular vence a eleição municipal em

1996, em Chapecó, onde se inicia um processo de rupturas com as forças conservadoras que historicamente ocuparam o governo municipal. Inicia-se a busca de um novo projeto social e político desenvolvido a partir das lutas sociais, da experiência cotidiana da classe trabalhadora. Este foi eleito com o compromisso de democratizar e ampliar as políticas públicas de responsabilidade do município, com um olhar especial para as vozes até então silenciadas e excluídas por uma política conservadora representada pela burguesia e por representantes das grandes agroindústrias local e regional.

A concepção de Educação Popular utilizada pelo governo popular desta época foi a partir de Paulo Freire entendendo “popular” numa perspectiva de intencionalidade política, outra qualidade que revela interesses populares pelos desfavorecidos, outra forma de conceber o papel cultural, social, com compromisso político e pedagógico. Referindo-se a um currículo popular crítico. Assim, podemos definir a Educação Popular como uma teoria de

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conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade.

Neste processo, a Secretaria Municipal de Educação passa a construir com as classes populares, com educadores, pais, alunos e comunidade escolar, um projeto de educação comprometido com a cidadania e com a inclusão na escola pública municipal. Caracterizando-se como opção político-filosófica e pedagógica a reorganização estrutural e da prática pedagógica. Tendo como principal a utilização do saber da comunidade, seus conflitos e problemas sociais, culturais, políticos e econômicos, como matéria-prima para o ensino. É aprender a partir do conhecimento do sujeito e ensinar a partir de falas, ações, manifestações e temas geradores do cotidiano dele. A Educação era vista como ato de conhecimento e transformação social, tendo um cunho político. O governo popular foi reeleito tendo como mandato até o ano de 2004.

Missão: A concepção de educação que as escolas do município vinham desenvolvendo até 1997 era advinda de uma trajetória marcada por um processo permanente de exclusão, com repetidos fracassos, com abandono, com defasagem idade/série; consequências da falta de investimentos necessários e do modelo e concepção de escola construída no sistema seriado, que contribuía para o afastamento de crianças e adolescentes da escola e do processo de aprendizagem.

A construção da Educação Popular2 inicia quando é possibilitado pela administração um repensar da Educação Formal e a possibilidade de construir uma educação

2 Publicação da Secretaria de Educação e Cultura de Chapecó/Administração Popular. Uma proposta de Educação Popular, ano 1, n. 1, dez. 1998.

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consciente de sua função social diante da sociedade atual (opressor e oprimido) vêm questioná-la e acreditar na utopia da construção de um novo projeto histórico como condição para a superação dessa realidade desigual, que discrimina, domina, marginaliza e explora. Dessa forma, a Educação Popular caracteriza-se com uma opção política da Rede Municipal de Educação que vem romper com o modelo excludente de educação e propõe a construção de uma nova estrutura baseada na concepção do materialismo histórico-dialético, comprometida com a cidadania e com a inclusão das classes populares atendidas pela escola pública.

A construção, de forma coletiva, do Projeto Político-Pedagógico para a Rede Municipal de Ensino a partir da Educação Popular, tendo como diretrizes a Qualidade Social, a Cidadania, a Democracia, a Autonomia e o Trabalho Coletivo. Neste processo, os educadores, os(as) alunos(as) e os(as) pais/mães passam a participar, pensar e repensar a prática pedagógica e social.

Redimensionar a função social da escola; valorizando os saberes que as crianças e suas comunidades possuem, reorganizando os tempos e os espaços sob uma lógica que respeite os processos de construção do conhecimento e socialização, os ritmos de aprendizagem, as idades culturais, cognitivas e sociais e que acima de tudo considere as múltiplas dimensões dos sujeitos; o que se busca de fato, é a superação da concepção autoritária, individualista e classificatória de um modelo de escola que, apesar de “universalizar” o ensino, não se preocupa com o que faz no dia a dia com os alunos.

Visão: Reconstrução das práticas de sala de aula, com enfoque central na aprendizagem, tendo como ponto de partida o sujeito que faz a aprendizagem como este constrói o conhecimento e não mais para as disciplinas com um “rol” de conteúdos predeterminados. Neste processo, os conteúdos escolares devem estar a serviço dos sujeitos e os

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educadores são os articuladores/mediadores centrais do processo, para construir/reconstruir conhecimentos no confronto dos saberes entre o senso comum e o conhecimento científico.

Nesta perspectiva, com base nas leituras de Paulo Freire e outros autores, iniciou-se uma reorganização curricular, a partir da concepção metodológica que constrói a prática de sala de aula num processo interdisciplinar, considerando o sujeito humano em sua totalidade, ou seja: parte-se da prática concreta (realidade) dos homens/mulheres teoriza-se esta prática, buscam-se recortes do conhecimento científico para análise dessa realidade e para a construção de uma nova ação. Essa concepção metodológica foi construída na Rede Municipal de Ensino de Chapecó na EJA, Ciclos de Formação e na Educação Infantil, respeitadas as especificidades de cada nível, tendo como princípio a Educação Popular, que traz para a construção do conhecimento o caráter político da prática pedagógica.

Para efetivar-se como construção democrática da construção do conhecimento consciente, a pesquisa, o diálogo autêntico, a palavra verdadeira, o respeito, são condições imprescindíveis para a efetivação da metodologia por temas geradores, da prática interdisciplinar, da avaliação emancipatória, formação continuada e da gestão democrática.

Na Educação Popular o professor tem uma função política, com responsabilidade social, para a construção de uma nova sociedade onde a escola coloca-se a serviço da conscientização da população que historicamente foi sendo excluído do processo educacional, político, econômico e social.

Numa perspectiva freireana, busca-se a construção de um currículo popular crítico; pressupõe um processo ideológico de humanização a partir de um contexto real em

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que o sujeito está inserido, organizado num processo democrático, dialógico e com a pedagogia que tem o compromisso com a vida, com a justiça e com a libertação.

Compreender o paradigma freireano na prática pedagógica da escola é desvelar a realidade do mundo da criança através do processo de diálogo entre os diferentes sujeitos. Portanto, a construção do Tema Gerador parte de um paradigma dialógico e de conscientização dos sujeitos sobre o mundo. Não basta ficar no nível da consciência, é necessário construir conscientização, porque é nela que se concentra a ação e intervenção do sujeito na realidade.

ESCOLA FORTE GESTÃO EM EXCELÊNCIA EM EDUCAÇÃO

Aconteceram mudanças no cenário político, a gestão

popular perde a eleição e, a partir de 2005, assume o governo municipal o candidato da direita (PFL), atual (DEM). Neste processo acontecem grandes mudanças na educação em termos estruturais e pedagógicos. No Projeto Politico Pedagógico (PPP) consta ser necessário que os conhecimentos, já sistematizados pela humanidade, auxiliem na articulação da ação pedagógica, e é nesse sentido que se opta pela Concepção Histórico-Cultural para fundamentar a prática pedagógica das Escolas Básicas Municipais de Chapecó. No decorrer desse processo, ao mesmo tempo que os educadores presenciavam, vivenciavam, sentiam grandes mudanças, que foram sendo discutidas, implementadas, impostas como: o fim da eleição para diretores das escolas que passa a ser indicação do prefeito, a mudança da organização de ciclos, para novamente seriado, a avaliação que era descritiva, retrocede a nota e ainda passam a negar a pesquisa participante, a qual servia para levantar a realidade social dos educandos. Em meio a tantas alterações concretas ainda muito se ouvia/se ouve, colegas, gestores dizerem que

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não têm diferenças entre as propostas pedagógicas, o que as diferencia é o compromisso de cada um enquanto educador.

Missão: Buscam-se, a partir da Concepção Histórico-Cultural, reflexões que auxiliem na construção de uma prática pedagógica ressignificada. Acredita-se na vertente russa da psicologia com seus princípios. Apoiam-se nos pressupostos marxistas, pois acredita-se que o ser humano desenvolve-se a partir do trabalho sobre a natureza, que dá origem à cultura e às relações sociais. Segundo a Proposta Político-Pedagógica, o ensino deve ter como ponto de partida os conhecimentos espontâneos, já construídos pelos educandos e, a partir da intervenção do educador, serem ampliados até a aproximação dos conceitos científicos. O processo inverso também é permitido desde que seja assegurada a ponte entre o já conhecido e o novo. Na prática pedagógica, essa concepção se constrói a partir da atenção, do desenvolvimento da memória, da observação, da abstração, da capacidade de estabelecer comparações e sínteses, o que desenvolve constantemente a atividade mental por parte do aprendiz e não se concretiza a partir de um ensino verbalista de transmissão de conceitos.

Visão: Segundo a Proposta Político-Pedagógica, a escola é uma instituição social com organização sistematizada, inserida num contexto social repleto de contradições e mudanças. Esse contexto social exige uma escola que atenda às reais necessidades da população e contemple relações diversificadas de ensinar e aprender, evidenciando o compromisso na divulgação de uma concepção de mundo que contribua para a formação dos educandos e para a vida sociopolítica e cultural, além de compreender que a escola é um direito inquestionável de todas as pessoas.

A escola, ao exercer sua função social de ensinar e educar, deve estar atenta às dimensões que envolvem os conhecimentos que serão trabalhados. Assim, os educandos

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buscarão, nas diferentes áreas do conhecimento, abordar as dimensões das diferenças individuais, da estética, do conhecimento, da ludicidade e de possibilidades axiológicas, política, social, humana relacional, didática, pedagógica e familiar.

Desenvolver ações educativas com estas dimensões significa ultrapassar as fronteiras do tecnicismo fragmentado, transcender as práticas escolares conservadoras e enxergar horizontes pedagógicos inseridos nos modelos epistemológicos que ressaltam a capacidade de criar, de construir e de compreender o mundo.

Atualmente, as escolas que buscam desenvolver uma prática de qualidade estão atentas à formação intelectual e global, que proporcionam aos educandos a vivência da criatividade, da ludicidade, da relação escola-família, da cooperação e o exercício da cidadania.

O importante é que a escola reconheça sua função social de agentes formadores de pessoas, na sua totalidade, abertas ao mundo, buscando a formação de educandos críticos, alegres, humanizados e solidários capazes de construir um mundo com mais justiça social. Para esse fazer pedagógico é importante trabalhar nas mais diversas dimensões do conhecimento.

ANALISANDO OS PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E A PROPOSTA

A inclusão está sendo uma inovação que implica

esforços do conjunto de toda a sociedade e todos os envolvidos com o processo educacional. A fim de elaborar a análise comparativa, foi necessário buscar a opinião dos seguintes segmentos: prefeitos (Administração Popular e Escola Forte gestão em excelência em Educação), vereadores (um de cada administração), secretários de educação (um de cada administração), gestores/diretores de

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escola (um em cada administração) e um pai de aluno com deficiência que frequentou a escola nas duas administrações e um que passou a frequentar somente na administração municipal seguinte. As análises desenvolvidas, nesta seção, visam compreender quais das duas propostas pedagógicas proporcionam, de fato, a inclusão do sujeito deficiente na rede municipal de educação em Chapecó.

Neste momento, fazer análise de discurso dos envolvidos nos dois processos é a busca por respostas a tantas dúvidas, angústias na efetivação de uma educação verdadeiramente democrática e inclusiva. Conforme Freire e Faundez (1985, p. 59):

[...] uma sociedade desafiada pela globalização da economia, pela fome, pela pobreza, pelo tradicionalismo, pela modernidade e até pós-modernidade, pelo autoritarismo, pela democracia, pela violência, pela impunidade, pelo cinismo, pela apatia, pela desesperança, mas também pela esperança.

É nessa realidade que se encontra a educação

popular e o desafio da formação de uma cultura político-democrática e cidadã das classes populares: “A conscientização é uma das fundamentais tarefas de uma educação realmente libertadora e por isso respeitadora do homem como pessoa” (FREIRE; NOGUEIRA, 2002, p. 45).

Analisam-se neste momento as falas dos prefeitos, que, enquanto gestores público, acredita-se desempenhar papel fundamental na implantação e implementação de políticas públicas voltadas à inclusão.

1) Ao ser questionado: Quais as características presentes na Proposta Político-Pedagógica voltadas com o olhar para esses sujeitos, ou seja, para a inclusão? Posiciona-se argumentando:

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A ideia central é que a proposta pedagógica não estava focada naquela criança que tem problema, ou naquela criança que não tem problema. A proposta central era construir uma outra sociedade, com cidadania, com democracia, com inclusão de todos num processo social, cultural, econômico e como cidadão, com qualidade de vida. [...] Então, o conjunto da Proposta Político-Pedagógica, estava voltada para transformar o conjunto da sociedade, para diminuir os problemas da sociedade. Neste contexto que nós entendemos que a proposta pedagógica [...] queria emancipar, queria transformar e não só integrar a eles, a essa sociedade, pra que essas pessoas pudessem se transformar em sujeitos da história.

No decorrer de sua fala, cita ações realizadas na sua

administração, que acredita contemplar de forma concreta a inclusão. Percebe-se, em seu relato, a preocupação constante da inclusão não ser algo único e exclusivo da sala de aula, com os educandos deficientes, e sim uma inclusão social de todos os excluídos socialmente.

Podemos concluir que a educação é um ato político a partir do pressuposto que é um ato humano, ou seja, confirmando Aristóteles que disse que “o homem é um animal político”, todas as suas ações são políticas na medida em que são ações tomadas dentro de uma coletividade, tendo as influências da aplicação dessas ações também nessa coletividade.

Segundo Mantoan (2006, p. 47): O ensino individualizado/diferenciado para alunos que apresentam déficit intelectual e problemas de aprendizagem é uma solução que não corresponde aos princípios inclusivos, uma vez que não podemos diferenciar um aluno por sua deficiência. Na visão inclusiva o ensino diferenciado continua segregado e discriminando os alunos dentro e fora das salas de aula.

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Conforme a Revista Educação com Participação Popular3 (2009, p. 14), produzida pela administração popular, uma das questões mais conflitantes da escola era encontrar respostas significativas para um dos maiores problemas a serem enfrentados: a superação das dificuldades de aprendizagem ou os problemas de aprendizagem daqueles alunos que não acompanhavam “os ritmos médios ou normais de aprendizagem”, ou como atender os educandos com necessidades especiais. Até então, a reprovação resolvia o problema da escola e do professor porque permitia manter a acomodação dos alunos na estrutura rígida do sistema seriado, em que o aluno reprovado permanecia na mesma série e no ano seguinte o professor poderia trabalhar o mesmo conteúdo com toda série independentemente se ali houvesse ou não crianças que já tinham ouvido lido, copiado, memorizado e repetido aqueles conteúdos.

Com a implantação dos Ciclos de Formação, foi encarada esta questão. Dificuldades e problemas de aprendizagem deixam de ser um problema só do aluno e passam a ser da escola, do professor, dos pais ou responsáveis e da Secretaria de Educação. O problema sai do âmbito individual do aluno para o âmbito do coletivo da escola, da rede, da Secretaria de Educação. Passam também a ser problema do Poder Público como responsável pela política pública de Educação.

2) O prefeito (B) posiciona-se, quando questionado que sujeito o Projeto Político-Pedagógico almejava construir:

3 REVISTA Educação com Participação Popular. Chapecó: 2ª Conferência Municipal de Educação e Cultura de Chapecó, 2009. Traz uma visão mais completa da política de educação baseada em quatro pilares: a democracia, a cidadania, a autonomia e o trabalho coletivo. Traz conhecimentos sobre a forma de fazer Educação, a partir do Tema Gerador, um pouco do trabalho realizado nas escolas e números de aumento de vagas, redução da evasão e repetência.

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O que nós pretendemos e é o nosso desejo, é construir um sujeito decidido, qualificado, que saiba o que quer não revolucionário, mas sim, alguém que tenha o desejo de prosperar na vida, não podemos, e não queremos, [...] Então a proposta nossa é uma proposta propositiva, [...] é preparar essas crianças, esses adolescentes que sejam realmente profissionais independentemente da função e da profissão que escolham, então a proposta nossa é essa, tornar esses meninos e essas meninas os futuros empreendedores da nossa cidade, de nosso Estado, esse é o desejo.

Segundo Anjos et al. (2004, p. 647), revoltado

significa que se revoltou ou se rebelou. Diz-se pessoa inconformada, que se sente alvo de injustiça. Empreendedor é um conceito correspondente ao setor financeiro que vem de encontro à satisfação econômica e pessoal. Marx Weber (1930) identificou o sistema de valores como um elemento fundamental para a explicação do comportamento empreendedor. Via os empreendedores como inovadores, pessoas independentes cujo papel de liderança nos negócios inferia uma fonte de autoridade formal.

Trata-se simplesmente do vocabulário de quem subordina a educação à lógica perversa do mercado, do lucro, do individualismo, da dualização de um projeto neoconservador. Evidencia-se também no próprio nome dado à Proposta Político-Pedagógica: Escola Forte Gestão e Excelência em Educação.

Enguita (2004, p. 158-159) escreve que “[...] ‘a insistência na excelência’ e na ‘qualidade’ simboliza o passo de preocupar-se com a educação da maioria a fazê-lo com a educação da minoria”. A ideia de excelência trata de mobilizar a competitividade entre as escolas e entre os alunos, organizando a educação, como um campo de provas, cujo objetivo principal é a seleção dos melhores.

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A ideia da busca da excelência parte, explícita ou implicitamente, da aceitação da imagem de uma sociedade dual. Para a maioria, para os que ocuparão os postos de baixa qualificação, sem espaço para a iniciativa nem capacidade de decisão, qualquer educação serve. No diálogo com o Prefeito (B) fica explícita a negação do caráter político no fazer pedagógico, pregando uma certa neutralidade não existente, quando se refere que não deseja criar revoltados. Segundo Freire (1996, p. 71):

Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho que me omitir, por que ocultar a minha posição política, assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeitá-lo. O meu papel, ao contrário, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção deste direito por parte dos educandos.

Acredita-se que a função do legislativo municipal é

de grande relevância, quando este se preocupa com a necessidade da comunidade e percebe-se enquanto representante legítimo dessa. Buscou-se também, na entrevista com os vereadores, perceber como esses compreendem, como veem o sujeito que necessita ser incluído.

Vereador (A): 1) Nessas duas políticas, nestes dois jeitos de fazer,

como você percebe o processo de inclusão neles? Referindo-se ao cidadão excluído do processo social:

Projeto Político-Pedagógico depende de quem coordena. No governo passado ele era construído de forma democrática. Então a inclusão de fato ela se dava com a saída da escola até onde estava a pessoa. Havia uma corresponsabilidade de todos os seguimentos com a

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escola inclusive na gestão da escola, na aplicação dos recursos, na discussão do PPP, na eleição direta de diretores, nas atividades extracurriculares, havia um movimento bem maior na comunidade, [...] porque isso respingava na comunidade, essa vida na escola, isso se dava também na associação de moradores, no grupo de mulheres, na organização do próprio orçamento participativo, [...] A escola era o caldeirão que impulsionava a vida da comunidade [...], era outra forma de fazer educação, de fazer política pública, de fazer participação popular.

A participação popular se encontrava no centro da

construção dessa política pública de educação em Chapecó. Para tanto, criou-se instrumentos de participação intensa dos segmentos da comunidade escolar na construção da Educação Popular.

A partir das diretrizes do projeto popular, foram construídos diversos espaços e instrumentos de participação popular: o Orçamento Participativo, o Conselho Municipal de Educação com representantes eleitos, as Conferências Municipais de Educação, a eleição dos dirigentes das Escolas e CEIMs, a composição de Conselhos Escolares como órgão máximo da escola, o Fórum dos Dirigentes eleitos, os coletivos de professores, a avaliação descritiva com a participação dos professores, pais, alunos, a construção participativa do Projeto Político-Pedagógico e a metodologia do Tema Gerador, construído o trabalho e o currículo escolar a partir da pesquisa participante (REVISTA EDUCAÇÃO..., 2009, p. 7).

Uma escola que quer avançar na direção da orientação inclusiva precisa de apoio, tanto por parte do sistema, quanto da própria gestão de suas autoridades imediatas. Se não houver interesse das autoridades, lideranças, somente o esforço, empenho dos educadores não

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será o suficiente, dificilmente modificará a cultura da escola de forma significativa.

Para a gestão democrática, as ações são resultados de discussões coletivas, em que se considera os cidadãos sujeitos de direitos. Significa mudança de cultura, no sentido de compreender a escola como espaço de produção de conhecimento.

Conforme Freire (1996, p. 22, grifo no original),

[...] assumindo-se como sujeito da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção.

Vereador (B): Realizou-se entrevista com vereador

eleito pela primeira vez, somente nesta administração, este líder do atual governo na câmara de vereadores.

1) Quais os avanços percebidos na educação voltados para a inclusão dos sujeitos com deficiência?

Vejo as escolas parques que foram construídas fazem parte de uma estrutura melhor, principalmente nesses bairros mais distantes para as pessoas mais carentes [...]. Quanto aos projetos que vem geralmente a gente é chamado né pela secretaria, pelo prefeito, [...] porque não é o prefeito[...] às vezes quem faz é lá no gabinete, [...] Então vejo que, no caso, quando a essas crianças especiais, eu vejo que infelizmente o poder municipal passa para APAE, né? O município praticamente não tem nada, [...] o que tem que fazer, nós, o governo, tem que ajudar, por exemplo, passar dinheiro pra APAE dá condições aonde já tem, né? Pra que cada vez melhore mais.

O vereador (B) deixa explícito que a política pública

do governo, o qual representa, é centralizadora, de projetos realizados em gabinete, pouco democrática e participativa. Centra a preocupação em amenizar as carências sociais

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existentes, não demonstrando conhecimento sobre as políticas de inclusão no município e no país.

O preconceito revela-se, muitas vezes de forma perversa, em atitudes paternalistas e de caridade. Segundo Aquino (2000, p. 123):

Na atitude paternalista de praticar aquilo que é considerado como caridade, na moralidade cristã, nem sempre há o reconhecimento do outro como igual. Ao contrário, a caridade é a própria prática da desigualdade. É por reconhecer o outro em condição inferior e por nos considerarmos superiores que, por vezes, podemos nos colocar em posição de ajudá-los ou não. Nesse sentido a prática de caridade é que a atitude paternalista contém o preconceito.

Buscou-se entrevistar, da mesma forma, a ex-

secretária de Educação do Governo – Educação Popular e também a secretária de Educação do governo atual, pois acredita-se que a Secretaria de Educação é o carro-chefe da política educacional a ser desenvolvida; é ela que media, articula, constrói o Projeto Político-Pedagógico junto às escolas.

1) Secretária de Educação (A): Como secretária na administração popular: como a PPP foi construída olhando para esse sujeito que é diferente, buscando a construção do conhecimento por todos os envolvidos num único espaço?

Então assim, nós partimos do pressuposto de que a escola não é uma junção de alunos iguais, a escola precisa explicitar e permitir o espaço da diferença, essa diferença não se dá apenas na cor, não se dá apenas em quem tem uma necessidade física ou não tem. Mas essa diferença tanto se dá nos diferentes tipos e jeitos de aprender. Se a gente parte desse pressuposto diríamos que não pode existir um tratamento discriminatório, pra quem tem uma deficiência, mas precisa ter um tratamento diferenciado

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porque as pessoas aprendem de formas diferentes, [...]. Como se dá a aprendizagem, como as pessoas aprendem. Todos aprendem do mesmo jeito? Diferentes momentos, em que tempo cada um aprende.

Discutir sobre educação inclusiva implica em refletir

sobre práticas educacionais. Conforme Mantoan (1997), para que a inclusão de fato ocorra, nós educadores devemos ter novos posicionamentos, transformando nossas práticas para que, de fato, todos aprendam. Para isso, há de se reconhecer que as dificuldades que os alunos deficientes ou não apresentam, não são apenas deles, mas resultam em grande parte do modo como o ensino é ministrado, a aprendizagem é concebida e avaliada.

É fundamental pensar a formação docente na perspectiva inclusiva em que a celebração das diferenças seja algo possível e desejado. Esta formação é primordial ao abrigar a necessidade de ter uma percepção clara das diferenças e especificidades de saberes e práticas na direção de um trabalho pedagógico, pautado em parcerias que contribuam para a coletividade.

A proposta pedagógica, desenvolvida neste período em Chapecó, fundamenta-se na visão de que o ser humano se desenvolve em sua totalidade, em todas as suas dimensões, com diferentes ritmos entre as pessoas, em ciclos com tempos mais longos que o considerado pelo sistema seriado e que a aprendizagem e o desenvolvimento são processos contínuos; sendo que o papel da escola é criar condições para atender as diferentes necessidades e possibilidades de cada aluno.

No Ensino Fundamental organizado em ciclos de formação, com base na idade e no ciclo, o aluno não fica retido (reprovado), ele avança conforme sua idade e aprendizagem necessária para cada etapa (Ciclo) de Ensino Fundamental. No decorrer do ano letivo, através da avaliação descritiva, os professores da turma acompanham o

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desenvolvimento de cada criança. A organização do trabalho escolar considera as dificuldades e os avanços de cada aluno; e, quando necessário, são organizadas novas e diferentes oportunidades de aprendizagem, de forma que a criança em dificuldades tenha a possibilidade de acompanhar a turma dentro do Ciclo. Para os alunos que necessitarem de outros recursos além do trabalho das turmas regulares do ciclo, são oferecidos SAPS, APAE, CAP, turmas de progressão e oficinas pedagógicas (REVISTA EDUCAÇÃO, 2009, p. 13).

Seria um equívoco considerar o ciclo como uma proposta voltada àqueles que não aprendem, ou que fracassam. Não se trata de inventar algo para acabar com a repetência. Educação por ciclos de formação é uma organização do tempo escolar, de forma a se adequar melhor às características biológicas e culturais do desenvolvimento de todos os alunos. Não significa, portanto, “dar mais tempo para os mais fracos”, mas, antes disso, é dar o tempo adequado a todos. A ideia de ciclos confere ao processo de aprender o que ele é: um trabalho com conteúdos do, assim chamado, conhecimento formal, simultaneamente, ao desenvolvimento de sistemas expressivos e simbólicos, à formação (aquisição, transformação e reformulação) de formas de atividades humanas que levam à construção do conhecimento (atividades de estudo) e à possibilidade de, realmente, se trabalhar no nível de transformação de funções psicológicas superiores; que se dá pela introdução e pelo processo de significação de novos instrumentos culturais (LIMA, 2002, p. 9-10).

Podemos, então, dizer que a definição de currículo está atrelada à concepção de cidadão e de indivíduo sociocultural que é subjacente à política educacional. Não há, portanto, currículo ingênuo: ele sempre implica em uma opção e uma definição do que seria o processo de humanização (LIMA, 2002, p. 21).

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2) Secretária de Educação (B): Como se deu a construção da PPP, de forma que contemple a construção do conhecimento voltada à inclusão ou a integração?

A construção de nossa proposta pedagógica ela se deu de forma coletiva, foi com muita discussão, com muito estudo [...]. A questão da inclusão é um assunto um tanto novo. Há muito tempo se vem tentando desenvolver um trabalho, mas a gente sabe que tem muita coisa que precisa ser melhorada. A questão do conhecimento, nós entendemos [...] que precisa ser garantida independentemente de quem é o ser humano que está lá na escola. [...] Percebe-se uma necessidade de maior envolvimento de toda a comunidade nas discussões sobre a inclusão, ainda essa formação fica muito restrita aos educadores, há necessidade urgente de se ampliar a todos os segmentos da escola com participação ativa da comunidade escolar.

Concepção de qualidade em educação, na busca de

uma educação, de fato, inclusiva implica respeito ao outro, ao direito de sermos diferentes, ao direito de aprendermos e avançarmos conforme nossas potencialidades; tendo sempre valorizados os nossos avanços, por menor que sejam, na conquista do saber.

Acredita-se que cabe à Secretaria de Educação dar o Norte pedagógico, com fundamentação teórica e prática a partir do Projeto Político-Pedagógico a ser desenvolvido, tendo sempre em mente que não há neutralidade política em nossas ações concretas.

Ao relatar sobre a formação voltada à inclusão, ficam explícitos na fala da Secretária de Educação (B) os limites e dificuldades encontrados para que, de fato, envolva toda a comunidade escolar. O Projeto Político-Pedagógico que tem caráter político e cultural deve ser construído no âmbito da

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escola observando as necessidades educacionais especiais dos alunos.

A transformação da escola não é, portanto, uma mera exigência da inclusão de pessoas com deficiências ou dificuldade de aprendizado. Assim sendo, ela deve ser encarada como um compromisso inadiável de todos os envolvidos, que terá a inclusão como consequência:

A inclusão não prevê o uso de práticas de ensino escolar específica para esta ou aquela deficiência e/ou dificuldade de aprendizagem [...] Não se trata de uma aceitação passiva do desempenho escolar, e sim de agirmos com realismo e coerência e admitirmos que as escolas existem para formar as novas gerações, e não apenas alguns de seus futuros membros, os mais capacitados e privilegiados (MANTOAN, 2006, p. 47).

Buscou-se realizar entrevistas com diretora de escola

que atuou na Educação Popular, esta eleita pela comunidade escolar num processo democrático, atualmente professora de sala de aula e também um gestor/vice-gestora 4 de escola, este atualmente indicado pela administração municipal.

Uma educação de qualidade para todos implica também em mudanças relativas à administração e os papéis desempenhados pelos membros da organização escolar, gestores e coordenadores; e que o teor controlador, fiscalizador e burocrático dessas funções seja substituído pelo trabalho em equipe, de apoio, de orientação, ao professor e toda a comunidade escolar. Ainda que seja descentralizadora com maior autonomia pedagógica aos professores, onde estes possam participar opinar e sugerir

4 A entrevista foi realizada na Escola Parque Cidadã Ciro Sosnosky, indicada pela própria Secretaria de Educação. No momento da entrevista participaram o gestor e a vice-gestora, ambos responsáveis pelo estabelecimento de ensino.

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sobre os recursos financeiros e suas necessidades pedagógicas.

A diretora (A) relata, em sua fala, os avanços acontecidos de forma democrática no período de Educação Popular e, para ela, o retrocesso dos avanços na atual administração. Então perguntamos: 1) Se você tivesse que se posicionar, de qual das duas propostas você faria a defesa?

Com certeza Educação Popular, porque é realmente você ser sujeito de seu trabalho. [...] Eu não consigo me ver na lógica de ser simplesmente um repassador de conteúdos, isso me frustra. O currículo – quando você tem um rol de conteúdo todo mundo é igual, [...] Pra mim o currículo é tudo aquilo que acontece na escola. Na Educação Popular o conteúdo, ele partia da realidade, era feita a pesquisa com a comunidade, com os alunos, aí se fazia os recortes do conhecimento para construir os conteúdos. [...] hoje cursos de formação oferecido pela secretaria vêm de encontro de como trabalhar com a cartilha. Então, é uma forma para mim de infantilizar o sujeito. [...] Hoje você não tem pessoas que vem contribuir contigo na construção do conhecimento como sujeito realmente, vem sim como forma de fiscalizar, [...] Na administração popular nós descrevíamos o processos, como cada sujeito estava, [...] Hoje temos uma política extremamente tradicional de manutenção da sociedade, do sujeito ser preparado para o mercado de trabalho para visar lucro ao capitalismo, é a lógica de dominar algumas habilidades pra dar conta do mercado, é realmente, é fazer o sujeito estar preparado para o mercado.

Na concepção freireana, o diálogo é a interlocução

com o mundo. Podemos entender o Tema Gerador como um objeto que compreende o fazer e o pensar, o agir e o refletir, a teoria e a prática, ou seja: parte-se de uma realidade, da leitura de mundo no nível de senso comum, busca-se recortes do conhecimento científico e leva-se à

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reflexão dessa ação, teorização, provocando rupturas, ampliações na visão inicial, apresentada pelos educandos e levando-os, assim, a uma ação transformadora. Essa metodologia constitui-se, então, num processo de ação-reflexão-nova ação.

A fala da professora/diretora (A) vem de encontro à fala do prefeito (B), quando afirma que em sua proposta de educação se almeja formar empreendedores para a sociedade, e não revoltados.

A lógica do mercado, do lucro, é que dita as normas, regras de competitividade, pregando a igualdade de oportunidades. Esta, numa política de sociedade excludente, não condiz:

O indivíduo afirma-se na alteridade, mas hoje se tem a impressão que o indivíduo e suas máquinas funcionam em circuito integrado e que a ordem que se funda é a ordem homogênea. Assiste-se não a inclusão, mas um integrismo. Perde-se a lógica da diferença, para se mergulhar na indiferença a mais radical (VASCONCELLOS, 2008, p. 46, grifo no original).

A escola tem a função de produzir saberes sobre a

realidade, é o lugar de aproximação com a realidade, como possibilidade de superação de conflitos e preconceitos. A educação tem a função do fortalecimento do sujeito para sua intervenção transformadora, não só de sua realidade social, mas do mundo.

Da mesma forma, buscou-se entrevistar um Gestor (B) da atual administração. No momento se encontravam o gestor e a vice-gestora que foram respondendo aos questionamentos realizados juntos. Trata-se de uma escola-parque com atendimento integral.

Gestor/Vice-Gestor (B): 1) Quanto a avaliação dos alunos com deficiência, você dizia que é de forma diferenciada, nós sabemos que hoje a PPP prevê a nota.

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Eles têm avaliação descritiva e a avaliação por nota, enquanto os outros têm uma avaliação, [...]. Nós temos vários critérios para a avaliação, nos construímos a partir da proposta da UNESCO de inclusão e dos critérios que a gente avaliou com o coletivo da escola que eram importantes estar sendo desenvolvidos. O currículo estabelece algumas coisas, o restante precisamos criar [...] tem muitas crianças que a gente considera que está só integrando e por outro lado precisamos buscar alternativas. [...]. Nós estamos aprendendo no processo por que nós não tivemos formação, muitos professores tiveram que buscar formação fora do horário de trabalho [...]. E o tempo desse professor aprender? [...] muitos professores ainda resistentes. Ele até integra na turma, mas ele não consegue incluir, então a gente tem muita resistência ainda.

Os gestores (B) demonstram preocupação e

seriedade com o processo de inclusão e também dificuldade de realizar o trabalho pedagógico a partir da necessidade do educando.

Percebe-se, novamente, um avanço no processo de construção do conhecimento no grupo de educadores, quando se busca estabelecer critérios para a avaliação, procurando descrever os avanços dos educandos; confirma-se que a avaliação numérica somente não dá conta da inclusão dos educandos com deficiência, de forma efetiva.

Conforme Mantoan (2006, p. 50): Quando se ensina a turma toda, é indispensável suprir o caráter classificatório de notas e de provas e substituí-lo por uma visão diagnóstica da avaliação escolar. Para ser coerente com essa novidade, o professor deve priorizar a avaliação do desenvolvimento das competências dos alunos diante de situações-problemas, em detrimento da memorização de informações e da reprodução de

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conhecimentos sem compreensão, cujo objetivo é apenas tirar boas notas e ser promovido.

Novamente os gestores (B) relatam dificuldades

encontradas quanto à formação de todos os professores, e não apenas de alguns. Ainda relatam que os professores se sentem obrigados a buscar fora de seu horário de trabalho formação, qualificação para trabalhar com o educando com deficiência. Avalia-se que, enquanto Secretaria de Educação, essa tem a responsabilidade de proporcionar formação efetiva de qualidade a todos os educadores, preferencialmente em seus horários de trabalho.

A partir da fala dos gestores (B) fica explícita a necessidade de maior diálogo entre a Secretaria de Educação, a comunidade escolar para a construção de uma proposta inclusiva de forma participativa e democrática de todos os envolvidos.

A entrevista seguinte foi realizada com educador efetivo que atuou/atua nas duas administrações e também é responsável por sua irmã que frequentou a Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Educação Popular e continua frequentando na proposta atual.

Educador (A): 2) Você vivenciou as duas propostas trabalhadas na rede municipal de educação, ambas muito distintas. Então, se você tivesse que se posicionar, de qual das duas propostas você faria a defesa quanto à inclusão?

Na perspectiva da construção do conhecimento, nessa perspectiva da responsabilidade social que a educação tem, eu não tenho dúvida que a educação popular. Eu trabalhei com a educação popular na educação de jovens [...] você conseguia fazer o processo metodológico com muita tranquilidade, que era muito empolgante, muito motivador. [...] hoje os alunos estão integrados não estão num processo de inclusão. Por quê? Porque a escola olha pra aquilo que está preestabelecido, então definitivamente isso

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não é inclusão. Inclusão tem a perspectiva da aprendizagem, mas a escola quer que ela aprenda, aquilo que a escola quer que ela aprenda, o que está no rol de conteúdos preestabelecidos, anacronicamente.

Para ensinar a turma toda, devem-se propor

atividades abertas e diversificadas, ouvindo as sugestões dos alunos; de que forma eles gostariam de realizar determinada atividade ou resolver determinada situação problema, em que não se destaquem os que sabem mais ou que sabem menos. As atividades passam a ser exploradas, segundo a possibilidade e interesses dos alunos.

Professora (B): 1) O PPP possibilita o acesso, permanência e igualdade na construção do conhecimento por todos?

Não, a gente tem que organizar atividades para fazer com as crianças. Aqui na prática na hora do trabalho mesmo é que a gente encontra as dificuldades, um segundo professor ajudaria [...] lado aprendizagem mesmo fica pendente [...] eu tenho uma estagiária que está terminando o 2º grau, ensino médio, tem 16 anos, ela não tem uma preparação, [...] pra mim deixar o restante da turma para atender ele não é fácil e deixar ele também é difícil. A gente sente um pedacinho aí sem atendimento e isso angústia, muito, muito. Às vezes choca até...

A professora relata sua angústia e falta de preparo

para trabalhar com um de seus educandos com deficiência. Constata-se um grande desânimo por parte da educadora; sente-se só, angustiada, com pouca preparação e apoio ao atender educandos com deficiências. Somente a partir de 2010 obtiveram-se avanços quanto ao auxílio de estagiárias para auxiliarem na Educação Infantil, nas turmas que havia crianças com deficiências. As estagiárias não têm formação específica, são estudantes do ensino médio, sendo ainda hoje

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uma grande dificuldade para a inclusão dos pequenos. Já no ensino fundamental passou-se a contratar um segundo professor para as turmas que possuem crianças incluídas com deficiência, sendo este professor com habilitação em Educação Especial e/ou Pedagogia.

Já se vivenciou na rede, na proposta de Educação Popular, que o trabalho coletivo é de fundamental contribuição para que os educadores se sintam fortalecidos em busca da solução de problemas a serem enfrentados. O trabalho coletivo requer a construção de relações democráticas, em que o sujeito, sem perder sua individualidade, constrói-se no grupo. O compromisso com um projeto requer que pensamos juntos as “ações”, ações essas que serão desenvolvidas para cada membro do grupo de forma individual, tendo presentes os princípios definidos coletivamente.

Da mesma forma, buscou-se realizar entrevistas com familiares de educandos sendo um que foi aluno nas duas propostas pedagógicas desenvolvidas no município de Chapecó – Educação Popular e Escola Forte Gestão e Excelência em Educação; e outro que participa do projeto de educação oferecido pela atual administração.

Acredita-se que as famílias têm muito a contribuir no processo pedagógico, pois é ela que tem o maior conhecimento sobre o desenvolvimento de seus filhos. No entanto, precisam ser ouvidas e valorizadas por suas contribuições. A escola ainda pode servir como mediadora, articuladora das ações em prol da inclusão junto à comunidade escolar.

Responsável por aluna matriculada nas duas administrações (irmã): 1) Participou das duas propostas de educação: da educação popular e a atual, desenvolvida hoje na rede. O que você percebe de diferente, semelhante, nas duas propostas voltadas à inclusão?

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Na outra, ela uma vez fez uma fala num seminário, falou acho que uns cinco minutinhos sobre o prazer de estudar na EJA. [...] Se você disser assim na perspectiva das duas propostas, pra [...], acho que a outra, tinha mais sociabilidade [...], para mim inclusão tem a ver com a presença, com a participação e com o aprendizado. [...] A escola não se movimenta para outras coisas, eu acho que teria que ter dança na escola... Mas a escola fica às quatro horas do início ao final querendo ensinar a ler e escrever.

A escola para todos extingue as práticas escolares em

que todos os alunos têm de dominar as mesmas aprendizagens, no mesmo ritmo e através dos mesmos métodos de ensino.

Segundo a fala do responsável pela aluna matriculada nas duas administrações, a proposta de Educação Popular ainda era mais participativa, flexível e tinha mais sociabilidade. No entanto, as duas propostas não deram conta da necessidade de sua irmã, tanto a Educação Popular, quanto a Escola Forte Gestão e Excelência em Educação atuaram de forma linear, tentando ensinar o que a escola tradicional sempre se propôs, o ler e o escrever. A segunda proposta foi ainda mais excludente com o processo de reprovação.

Responsável por aluna matriculada somente nesta administração (mãe): “A [...] é aluna do ensino fundamental, tem dez anos, vai para a escola desde os cinco anos, sempre em escola de ensino regular”.

2) Enquanto mãe, como você se sente em ter sua filha numa sala de ensino regular?

Eu acho bom, né?, porque com essa inclusão social que a gente pode levar no colégio junto com as outras crianças é muito bom [...] A escola foi muito boa porque se a gente precisa trabalhar sabe que tá bem lá. [...] Eu acho que

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minha filha aí junto com as outras crianças, ela aprende mais.

A aluna frequentando a escola no meio social onde

vive é um dos pontos positivos. Pois, é neste meio depois de sua própria família que vai concretizar suas relações sociais. No entanto, não pode ser apenas o facilitador da vida da família em função do trabalho, esta deve atender às necessidades do processo ensino-aprendizagem em sua totalidade pelo educando.

Os sistemas de ensino deverão garantir não somente a matrícula e a permanência de todos seus alunos, independentemente de suas deficiências ou necessidades educacionais especiais, organizando-se para oferecer, além da escolarização, atendimento educacional especializado aos alunos que dele necessitarem. É um desafio aos sistemas de ensino para que revejam seus paradigmas e reencontrem alternativas educacionais que de fato contribuam com o processo de ensino-aprendizagem de todos.

Segundo Freire e Faundez (1985), é preciso rejeitar de qualquer forma estas atitudes discriminatórias, pois a prática preconceituosa ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia.

Todos os envolvidos no espaço da escola, gestores, coordenadores, perde o caráter fiscalizador; todos têm função pedagógica, conforme afirma Freire (1996, p. 23):

[...] estou convencido da importância, da urgência da democratização da escola pública, da formação permanente de seus educadores e educadoras entre eles incluo vigias, merendeiras, zeladores. Formação permanente, científica, a que não falte, sobretudo, o gosto pelas práticas democráticas, entre as quais a de que resulte a ingerência crescente dos educandos e de suas famílias no destino da escola.

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Isso implica na reorganização do cotidiano escolar, da forma como se trabalha na sala de aula, trabalho coletivo, utilizando a aprendizagem cooperativa é um meio de minorar as dificuldades que derivam da competitividade e do trabalho individualizado; é o reconhecimento da diversidade dos talentos. O aluno aprende apenas quando ele se torna sujeito da sua aprendizagem; e, para tornar-se sujeito da sua aprendizagem, ele precisa participar das decisões que dizem respeito ao projeto da escola, que faz parte também do projeto de sua vida.

É inegável que, pelos sistemas de ensino estarem pautados para atender o aluno idealizado e ensinando a partir de um projeto escolar elitista, meritocrático e homogeneizador, nossas escolas produzem quadros de exclusão a partir da forma de avaliação adotada, que têm, injustamente, prejudicado a trajetória educacional de muitos educandos. A avaliação escolar é uma forma de rotular e diferenciar os capazes e os incapazes. O processo de avaliação deve ser contínuo, flexível, que leve em consideração as necessidades específicas dos educandos, respeitando o tempo individual de aprendizagem.

Estas mudanças exigem vontade política, investimentos contínuos e Propostas Político-Pedagógicas que deem suporte às mudanças legislativas. A educação inclusiva pode ser considerada um avanço significativo para a efetivação de educação de qualidade, desde que este movimento de inserir alunos nas classes de ensino comuns seja paralelo à transformação da escola, com investimentos na saúde e na educação.

Esses desafios estão sendo constantemente anulados, contemporizados por políticas educacionais, diretrizes, currículos, programas compensatórios (reforço, aceleração entre outros). Falsas saídas têm permitido às escolas comuns e especiais escaparem pela tangente e livrarem-se do enfrentamento necessário com a reorganização pedagógica,

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ideológica e estrutural da escola como um todo. A inclusão implica também em uma transformação considerável no espaço escolar. Implica quebrar e vencer paradigmas, buscar atender à diversidade humana com ajuda de recursos materiais, humanos e financeiros. O desafio é conseguir quebrar o esquema de homogeneidade.

No entanto, a escola precisa se abrir para políticas de ensino verdadeiramente democráticas e participativas. Sua Proposta Político-Pedagógica precisa ser real, mas também utópica e sonhadora. Que se baseia na mudança de postura perante a heterogeneidade humana, mediante a valorização da diversidade como um elemento enriquecedor do desenvolvimento pessoal e social. Espera-se que haja um empenho de toda a sociedade escolar para que, num futuro próximo, a diversidade deixe de ser um desafio para tornar-se uma conquista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A opção deste artigo foi pelo tema “O ‘outro’ na

Escola: uma análise comparativa das propostas da Educação Popular e Escola Forte Gestão em Excelência em Educação”, desenvolvidas pela rede municipal de educação da cidade de Chapecó. Trata-se da busca por propostas pedagógicas, curriculares que demonstrem possibilidades, prática concretas, para a efetivação de uma educação pública, de qualidade para todos, com transformação da sociedade de forma mais justa, solidária, humana e que celebre as diferenças.

Ao analisar a Educação popular, pode-se perceber que ela se caracterizou como uma opção política da Rede Municipal de Educação que veio romper com o modelo excludente de educação e propõe a construção de uma nova estrutura baseada na concepção do materialismo histórico-dialético, de cunho marxista, comprometida com a cidadania

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e com a inclusão das classes populares atendidas pela escola pública. Educação Popular é uma educação diretiva, os projetos são a não diretividade da prática, deve ter cunho gnosiológico, objetivos e conteúdos claros, utopia, intencionalidade prática.

Segundo o olhar da pesquisadora, conclui-se que a Educação Popular se apresentou como uma das possibilidades para se construir práticas na direção da emancipação humana, contrapondo-se à educação tradicional, capitalista e excludente. Seu Projeto Político-Pedagógico fazia parte de um projeto de sociedade, que queria transformar o conjunto das relações sociais, econômicas, culturais, políticas, para construir uma sociedade justa, com igualdade. Ainda, como possibilidade de construir autonomia e democracia dos envolvidos destacando-se pelo envolvimento da comunidade com participação ativa na escola e elevando a consciência da classe e o senso crítico de seus educandos e educadores.

A Escola Forte possui apoio e recursos do governo federal que busca ampliar e efetivar de forma concreta a Educação Inclusiva conforme Programa Educação Inclusiva-Direito à Diversidade.

As duas propostas, embora tenham pressupostos filosóficos diferenciados, buscam incluir o “outro” em sala de aula, primando pelo direito constitucional que é inerente a todo cidadão brasileiro, bem como procurando cumprir os acordos firmados em declarações de cunho internacional que tratam sobre a inclusão e a integração, presentes na educação para diversidade, tão discutida mundialmente.

A luta pela inclusão não pode ser meramente a hipocrisia do discurso frente ao direito do educando deficiente; e sim a análise social, política e cultural que reflita uma luta maior de educação de qualidade para todos. Enquanto sujeito político e social que somos, não podemos nos esquecer de que vivemos em uma sociedade com valores

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antagônicos que se relacionam diferentemente com os meios de produção estabelecidos pelo modo de produção capitalista.

A inclusão expressa uma dimensão de direitos humanos e justiça social que pressupõe o acesso pleno e a participação de todos nas diferentes esferas da estrutura social, a garantia de liberdade e direitos iguais e o estabelecimento de princípios de equidade.

Portanto, as transformações nas relações das pessoas com deficiências e a sociedade se efetivam, em condições concretas, no bojo, nas lutas gerais empreendidas também por outros segmentos marginalizados, como negros, índios, mulheres e trabalhadores camponeses. Desses grupos, muitos deles, a maioria em termos quantitativos, e minorias que vem desenvolvendo, historicamente, lutas objetivas como agentes políticos contra o Estado e setores exploradores que, por força de pressões, buscam respostas às necessidades sociais e políticas desses grupos espoliados, como forma de desenvolver novas estruturas de poder, visando a sua hegemonia. Conclui-se, portanto, que a inclusão, dialeticamente, é um processo contínuo e histórico que se confunde na busca de mudanças estruturais de um sistema econômico-político e social desigual e injusto. REFERÊNCIAS

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O “outro” na escola... 299

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PARTE IV – O TEMA GERADOR NO CURRÍCULO ESCOLAR

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I

A PESQUISA-AÇÃO COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA PARA OS TEMAS GERADORES

NOS PRESSUPOSTOS FREIREANO

Leusa Possamai A Rede Pública Municipal de Educação do

município de Chapecó (SC), no período de (1997/2004), implementou nas escolas uma política de reorientação curricular crítico-emancipado1 fundamentada no pensamento de Paulo Freire. Uma Educação Popular 2 comprometida com a solidariedade, a justiça social e com a transformação social. Uma educação libertadora 3 pautada por princípios

Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), atua como técnica em assuntos educacionais no Instituto Federal de Santa Catarina campus Chapecó (IFSC). Participa como pesquisadora do grupo de ensino e pesquisa em Currículo Integrado do IFSC, cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected]. 1 Fundamentada em autores que trabalham na perspectiva crítico-emancipadora, tais como Silva (2000, 2004), Saul (2012), Freire (1987a, 1998), Saul; Silva (2009, 2011), que visa construir a unidade teoria-prática, constituindo a práxis. No materialismo histórico-dialético por entender a realidade social como resultado da ação do ser no contexto de estruturas históricas. 2 Os alicerces desta concepção podem ser mais bem aprofundados em Freire (1985, 1987b, 1994), Brandão (1999, 2002), Pontual (2003). 3 A educação libertadora baseia-se na Pedagogia da Libertação (Freire, 1987a, 1987b). A Pedagogia Libertadora na Rede Pública Municipal era concebida como unívoco da Educação Popular. Defendia que as classes populares têm o direito de tomar decisões, ter iniciativas, optar, expressar-se e recriar-se culturalmente. Direito de construir a autonomia intelectual e produzir criticamente a realidade em que estão inseridas, modificando as práticas sociais existentes, tornando-se sujeito histórico

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educativos como: cidadania, democracia, trabalho coletivo e autonomia.

Durante este processo, vários aspectos foram alterados na organização e na estrutura do funcionamento escolar, provocando significativas reflexões enquanto proposta curricular. Buscava, como propõe Severino (1995), transformar a escola em um lugar onde é possível superar a fragmentação da prática, tornando-se um Projeto Educacional. Um conjunto articulado de propostas e planos de ações, baseados em valores previamente explicitados e assumidos, fundados numa intencionalidade do coletivo de educadores e comunidade escolar.

O Movimento de Reorientação Curricular que foi se constituindo na rede pública municipal de educação foi um processo amplo de construção coletiva com o envolvimento de diferentes grupos: educadores de diferentes áreas do conhecimento, direções, especialistas, comunidade e educandos, de adesão das escolas a organização curricular via temas geradores. Primou pela autonomia das escolas, a valorização e a criação de práticas de experiências curriculares que estimulavam a diversidade na unidade, bem como a unidade teoria-prática no movimento de prática-teoria-prática. Exigiu mudanças de valores e práticas dos educadores e a disponibilidade para o trabalho coletivo, também a democratização da gestão e a formação permanente dos educadores.

Para auxiliar no entendimento de como se deu a reorientação curricular, mencionaremos aqui entrevistas com educadoras4 daquele período, as quais revelaram que, para

atuante – Revista da Secretaria Municipal de Educação de Chapecó, Movimento de Reorganização Curricular (CHAPECÓ, 2001, p. 3). 4 Foram realizadas entrevistas, para produção da Dissertação de mestrado, com cinco educadoras da rede pública municipal de educação de Chapecó com posterior transcrição das falas. O critério para seleção das educadoras entrevistadas foi terem vivenciado a reorganização.

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elas, no início, colocar em prática a proposta foi difícil, sofrido, assustador e que exigiu uma mudança radical de suas práticas porque essa perspectiva era inovadora. Que estavam acostumadas a ficarem fechadas cada uma na sua sala de aula, que tinham pouco contato com os colegas, mais era nos intervalos das aulas, mas era cada um na sua, nas suas atividades, sem um opinar no trabalho do outro.

Ainda conforme as educadoras, antes dessa proposta elas já haviam tentado, experimentado trabalhar de jeitos mais significativos para os educandos, mas em nenhum momento haviam vivenciado uma mudança do todo. Afirmam que para elas a educação tradicional já estava superada, que buscavam coisas diferentes para melhorar o trabalho, mas de forma solta, desconectada. E mais, que a nova proposta as ajudou a mudar as relações em sala de aula com os educandos e com o conhecimento, tornando-se uma proposta político-pedagógica que proporcionou construir relações entre a realidade e os conhecimentos mediatizados por elas e pelos educandos e, não mais apenas atividades desconectadas, soltas.

Outro aspecto que mencionam é que foi naquele período que mais se sentiram realizadas no seu trabalho porque se sentiam desafiadas, tinham que estudar bastante, sair de uma prática individualista e se construir no coletivo. Que mudou a relação delas e da escola com a comunidade escolar, que esta deixou de ser chamada apenas para ajudar nos eventos e passou a estar presente também na definição curricular. Além disso, como desafio de grande impacto nas

curricular crítico-emancipadora via abordagem temática no período de (1997/2004), ter disponibilidade para a entrevista e contemplar uma de cada área do conhecimento. A Dissertação foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE/FAED/ UDESC, com o título: “Contribuições da pesquisa-ação na produção de conhecimentos escolares: experiências curriculares na Rede Pública Municipal de Educação de Chapecó” (1997-2004), ano de 2014, autora: Leusa Fátima Lucatelli Possamai.

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práticas docentes, foi trabalharem os conteúdos a partir do senso comum dos educandos, e não mais dos conteúdos definidos a priori nos livros didáticos ou prescrições não produzidas pelos educadores e muito menos a partir da realidade dos educandos.

Outra mudança significativa apontada foi a visão delas em relação aos educandos, pois passaram a vê-los e tratá-los como pessoas com direito à palavra, às manifestações e a conhecimentos significativos. Entenderam que os conhecimentos deveriam ajudar os educandos a tornarem-se críticos e reflexivos em relação ao porquê dos problemas que vivenciavam, percebendo que essa era a verdadeira função social da escola.

Enfrentaram o desafio de organizar as aulas a partir da realização de um diagnóstico da realidade local, desenvolvido a partir de pesquisas com os educandos e comunidade, que objetivava conhecer o que esses segmentos ligados à escola pensavam e o que tinham como “verdades” e/ou necessidades para, a partir desse diagnóstico, definir os conteúdos a serem trabalhados em sala de aula. Que esse foi o maior impacto de todos e também o que mais realizava as educadoras no trabalho. Que aprenderam, na prática, a trabalhar a partir do que realmente iria fazer a diferença na vida dos educandos, no sentido de estarem opinando, avaliando seus problemas e entendendo-os à luz dos conhecimentos. Uma das educadoras afirma que, até então, a educação sempre tinha sido no sentido de um repasse de conteúdo, encher a cabeça das crianças, quanto mais enchia caderno era melhor. Deixar essa prática, estudar mais, trabalhar coletivamente, partir mais da vida da comunidade, dos educandos para trabalhar os conhecimentos, reformular conceitos, desmistificar verdades foi a experiência vivenciada nesta proposta.

A proposta implementada requereu muitas mudanças, tanto individuais, quanto estruturais das escolas e

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A pesquisa-ação como estratégia... 307

Secretaria de Educação. Neste capítulo abordarei três aspectos, dentre os vários alterados na proposta de reorientação curricular, que são indissociáveis ao trabalhar com os temas geradores. Primeiramente, será aclarado qual o conceito de realidade que permeou a reorientação curricular da rede municipal. Em segundo lugar, elucidar o que são os temas geradores na perspectiva freireana; e, por último, explicitar o uso da pesquisa-ação (PA) como instrumento metodológico na identificação dos temas geradores; e, consequentemente, um redimensionamento dos conteúdos escolares.

A construção curricular crítica, popular e emancipatória, orientada a partir do Tema Gerador, da realidade concreta e objetiva, como objeto pedagógico crítico, revela conflitos, tensões e intenções, onde suas contradições permitem planejar e construir novas ações. Enquanto escola, permite rever e replanejar a relação educando educador, a lógica dos conteúdos escolares e a função social da educação.

Freire (1987a) e Saul e Silva (2009, 2011) afirmam que trabalhar com os temas geradores é desenvolver uma educação pautada essencialmente na prática, mas sempre uma prática intencionada, que vai se constituindo em paradigmas expressos em concepções pedagógicas e de conhecimento escolar, em que os conhecimentos escolares contribuem para produzir modos de ser e de viver conforme mencionado por uma das educadoras ao afirmar que, algumas vezes, através da realização da pesquisa chegaram ao Tema Gerador do consumismo e, ao irem trabalhando esse, percebiam mudanças nas crianças, no sentido de não chegarem em casa e ficarem pedindo o tempo todo para os pais que queriam tal coisa, a tal Barbie ou outras coisas; percebiam outra relação com o consumismo.

Logo, o processo de ensino e aprendizagem se torna uma práxis intencionada, não neutro e inserido em contextos

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históricos atravessados por diferentes valores que perpassam a sala de aula.

Para apropriarem-se da concepção de ensino e aprendizagem como práxis, foi necessário desencadear um processo de formação permanente, que procurou colocar a ciência e os conhecimentos a serviço da humanização dos sujeitos no processo ensino-aprendizagem. O que demandou um trabalho em equipe, tanto nas escolas, quanto na Secretaria Municipal de Educação 5 ; com intencionalidade capaz de explicitar a realidade que, embora seja cognoscível, não se dá direta nem imediatamente. Portanto, requereram relações democráticas, o exercício do diálogo, das explicitações dos conflitos e contradições. Da participação efetiva dos educadores, educandos, pais, mães nas escolas e um exercício permanente da práxis, do pensar sobre o fazer e, redimensioná-lo conforme as necessidades.

As entrevistadas são unânimes em afirmar que os momentos de estudos proporcionados pela Secretaria de Educação tornaram-se mais profundos, que aprenderam muito e em várias áreas, compreenderam muitos aspectos

5 Na Secretaria Municipal de Educação, foi constituída a equipe de coordenação pedagógica, composta de profissionais de todas as áreas do conhecimento (Português, matemática, história, geografia, ciências, artes, pedagogia, educação física e língua estrangeira), buscando ser uma equipe interdisciplinar. Seu fazer constituía-se em problematizar, mediar e subsidiar, com embasamento teórico-prático, o trabalho das escolas e Centros de Educação Infantil Municipais (CEIMs), visando à construção das diretrizes da Secretaria Municipal de Educação definidas no Projeto Político-Pedagógico. Desencadeou, também, um processo de formação permanente nos envolvidos, tanto da Secretaria Municipal de Educação, como e especialmente nos educadores das escolas de serem os sujeitos da práxis, como propõe Saul e Silva (2009, p. 227): “localizar os pontos críticos que requerem fundamentação, revisão e superação da prática”. Isso, ao analisar os dados, permite afirmar que significou pensar, problematizar e teorizar criticamente sobre o seu fazer, sobre os acertos e desacertos que estavam ocorrendo no currículo que efetivamente estava sendo construído nas escolas (POSSAMAI, 2014, p. 58).

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dos problemas que envolvem os educandos e em alguns os próprios educadores. Que passaram a buscar, juntamente com pais, educandos e os outros educadores envolver-se em ações que visavam mudar a realidade. As educadoras dizem que vivenciaram, experimentaram e aprenderam a refletir e teorizar seu fazer, aprenderam a ser questionadoras, a problematizar e repensar suas concepções a partir dessas reflexões.

As afirmações das educadoras explicitam que a proposta implementada pautou-se no que propõe Freire (1987a), são as “situações-limites” 6 de compreensão que a comunidade possui de sua realidade, que se apresentam como se fossem determinantes históricos e que diante dos quais não tem alternativa senão adaptar-se. Diz ele:

O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores (FREIRE, 1987a, p. 87).

6 Conceito esse cunhado por Freire (1987a, p. 90-91) e também por Álvaro Vieira Pinto (1960, p. 284). Freire define que: As “situações – limites” são dimensões concretas e históricas de uma dada realidade e que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis. São dimensões desafiadoras dos homens em lugar de implicarem sua aceitação dócil e passiva. Superação que só existe nas relações homens-mundo, da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações-limites”. Portanto, se dão historicamente como seu enfrentamento e superação também só podem ser feitos historicamente. Não são as “situações-limites”, em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento histórico, como freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. Somente a percepção crítica que se instaura e desenvolve um clima de esperança e confiança leva os homens a se empenharem na superação das situações-limites.

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310 A atualidade das ideias de Paulo Freire

E propõe que “[...] a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política” (FREIRE, 1987a, p. 86).

Esse momento, na experiência investigada e objeto deste estudo, se materializava na realização da pesquisa-ação, preparada e encaminhada pelos educadores. Conforme Freire (1987a, p. 86),

[...] temos que propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, [...] o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação.

Por isso, constatamos que o fazer educacional

reafirmava o que propõe Freire (1987a, p. 88):

[...] o que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se encontram envolvidos em seus ‘temas geradores’.

E também o que Thiollent (2011) afirma, que a

função política da pesquisa-ação está intimamente relacionada com o tipo de ação proposta e com seus atores, pois a investigação está inserida numa política de transformação.

Considerando a investigação sugerida por Freire (1987a) e a função da PA, segundo Thiollent (2011), na rede pública municipal no período de (1997/2004), investigava-se a realidade, esta que, segundo Marx e Engels (1986), Kosik (1976), Paulo Freire (1987a), Konder (1981, 1998, 1992), entre outros, é uma construção histórica, portanto, humana. Por ser humana é contraditória e também é desigual. A

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história da sociedade se confunde com a história da luta de classes, que opressores e oprimidos vivem em permanente conflito entre si, ora abertos, ora camuflados.

A sociedade burguesa mantém os antagonismos sociais e políticos. Revoluciona os meios e as relações de produção e todas as relações sociais. Cultiva a subversão contínua da produção, e o abalo constante de todo sistema social. Mantém uma permanente agitação e insegurança suprimindo todas as relações estáveis, como afirma Marx e Engels (1986, p. 22): “O que parecia sólido desaparece; o que era sagrado é profano, e finalmente, os homens são obrigados a encarar, com serenidade, suas condições de vida e suas relações recíprocas”.

Ela imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo, por meio da exploração do mercado mundial, da globalização. A propriedade pessoal tornou-se um simples valor de troca balizado pela liberdade do comércio que se caracteriza por uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. Esta mesma realidade sujeitou o campo à cidade e produziu os aglomerados urbanos. Submeteu os países pouco evoluídos aos civilizados, os povos do Oriente ao Ocidente. Impôs a centralização de meios de produção e concentrou em mãos de poucos a propriedade (MARX; ENGELS, 1986, p. 23).

Segundo Marx e Engels (1986), nesta realidade a burguesia também foi capaz de gerar forças produtivas mais variadas e potentes do que todas as gerações precedentes juntas. Além de controlar as forças naturais pelo homem, emplacou a livre concorrência com a organização sociopolítica própria, sob o predomínio econômico e político da burguesia e a classe de operários modernos:

Esses operários, obrigados a se venderem diariamente, transformam-se em mercadorias e artigos de comércio e por isso sujeitos a todos os trâmites da concorrência, a

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todas as oscilações de mercado (MARX; ENGELS, 1986, p. 24).

Esta realidade, para Kosik (1976), não se mostra aos

homens à primeira vista, e os indivíduos enquanto seres sociais no trato prático-utilitário com as coisas em que a realidade se revela, criam suas próprias representações das coisas e produzem todo um sistema correspondente que capta e fixa o aspecto fenomênico da mesma. Captá-la requer ser compreendida como uma totalidade concreta, onde os problemas mais específicos, aparentemente mais isolados, só podem ser compreendidos como partes do todo.

Carminati e Meksenas (2008, p. 139) afirmam que:

O real não é apenas aquilo que ocorre aqui e agora ao meu lado, como também o é condicionado ao que acontece ali e acolá, distante de mim. Não só o ocorrido hoje, como também o ontem, pois o real contém a força do passado e do presente.

Na reorientação curricular-crítico emancipadora via

abordagem temática desenvolvida naquele período, o trabalho em sala de aula tornou-se o compromisso em “captar” esta realidade e potencializar uma educação libertadora, porque carregava em seu significado o sentido de que é tarefa da educação contribuir para que os educandos passem a “[...] assumir a posição de sujeito cognoscente, comunicar-se e estabelecer relações consigo, com os outros sujeitos e com a natureza” (DAMKE, 1995, p. 54).

Logo, veio ao encontro do que propõe Freire (1987b, p. 15), que a sala de aula não pode se limitar a palavras, conteúdos soltos, desconectados da realidade, do mundo, por isso propõe que “ler mundo” e “ler palavra”, implicam “reescrever” o mundo, a leitura da palavra deve ser inserida na compreensão da transformação do mundo, que

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provoca a leitura dele e deve remeter-nos, sempre, à leitura de novo do mundo. Uma das estratégias que ele propõe são os temas geradores, porque estão presentes na realidade dos educandos e comunidade escolar.

Compreender os temas geradores presentes na realidade dos educandos que propõe Freire é entender que o Tema Gerador “gera dor”. E “gera dor para o outro”, neste caso, para os educandos, o que também pressupõe compreender que não são os educadores que definem os temas geradores, mas a realidade dos educandos. São problemas vivenciados por eles, porém, sua compreensão ainda não está clara, encontra-se no nível do senso comum. O Tema Gerador sobre o consumismo, abordado por uma das educadoras entrevistadas, ajuda-nos a entender a “dor do outro”, ou seja, neste caso específico, não conseguir satisfazer as necessidades de consumo dos filhos gerava a dor da impotência, da incapacidade e da culpabilidade dos pais.

Entretanto, não são todos os problemas que são temas geradores, pois os alunos carregam consigo, bagagens práticas de seu cotidiano, que, para Freire (1987b, p. 14),

[...] indiscutivelmente, há uma sabedoria popular, um saber popular que se gera na prática social de que o povo participa, mas, às vezes, o que está faltando é uma compreensão mais solidária dos temas que compõem o conjunto desse saber.

Compreendê-los requer conhecer bem como

funciona a realidade, bem como relacioná-los com o conjunto do saber, ou com a totalidade do conhecimento produzido.

Os problemas que se caracterizam como temas geradores estão relacionados e vinculados aos elementos da estrutura socioeconômica da sociedade de classes. Vinculados aos núcleos temáticos, como a moradia, a saúde,

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o transporte, a educação, a convivência, o saneamento, o trabalho, o lazer, o abastecimento, a comunicação, a política, as leis, entre outros, onde “[...] todas as regiões da realidade objetiva são sistemas, isto é, conjunto de elementos que exercem entre si uma influência recíproca” (KOSIK, 1976, p. 46).

Ou seja, os temas geradores são problemas construídos historicamente pelos seres humanos, pelas relações e interesses desiguais, ou até injustos. Estão relacionados a aspectos da organização da sociedade e são vivenciados pelos alunos e comunidade escolar com limite de compreensão por estes. O Tema Gerador é um problema para os alunos.

Nesse sentido, os educandos vivenciam “a dor” dos problemas, mas não têm ainda todos os elementos e conhecimentos necessários para saber compreendê-la. Logo, definem os problemas como sendo de responsabilidade individual, atribuindo a suas “incapacidades”, ou a atribuições divinas, mágicas, entre outras. Suas explicações se dão de forma estanque. Para solucionar estes problemas e superar “a dor”, os educandos e a comunidade escolar propõem soluções isoladas e pontuais, caracterizando o senso comum. Uma das educadoras entrevistada ao exemplificar o Tema Gerador do desemprego, ou o medo, de perder o emprego, afirma que para dar conta de saber trabalhar esse tema tinham que estudar e entender os conteúdos para explicar o porquê do desemprego, o que provoca essa situação, no que esse problema está relacionado com a forma da sociedade estar organizada.

Os temas geradores proporcionam trabalhar com o que propõe Kosik (1976), que em muitas situações os seres humanos possuem uma intuição prática da realidade, uma práxis utilitária, ou seja, o senso comum. Mesmo no senso comum se orientam no mundo, se familiarizam com as coisas e as manejam, mas não significa que compreendem as

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coisas e a realidade. Para exemplificar ela afirma que: “[...] os homens usam dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro” (KOSIK, 1976, p. 14).

A partir da análise da realidade e definição dos temas geradores, a preparação das aulas requeria dos educadores o diálogo e a visão das diferentes áreas de conhecimento em relação àquele problema, buscando parâmetros epistemológicos balizados pelas estruturas de pensamento e pela capacidade argumentativa dos educadores, ou seja, requeria a definição do contratema 7 . Isso exigiu, dos educadores, trabalhar de forma coletiva e também exigiu reorganizar as escolas para possibilitar esse trabalho.

Para elucidar, apresento o depoimento de uma das educadoras entrevistadas:

Eu já não trabalhava matemática pura, só que antes partia de mim e não da pesquisa, da necessidade dos educandos [...]. Daí em noventa e sete eu comecei a trabalhar o inverso, partia do conhecimento deles, dos educandos e da comunidade também. Os conhecimentos passaram a ser definidos a partir da necessidade dos educandos e, também eram articulados às outras áreas que numa relação dialógica e por decisão dos coletivos de professores, após a realização da pesquisa na comunidade, da análise de falas 8 coletadas, transformavam-se em

7 Se o Tema Gerador é a visão dos educandos e da comunidade em relação aos problemas vivenciados, o contratema é a visão dos educadores em relação aos mesmos problemas vivenciados, de tal forma que se ambos estão “percebendo” o problema da mesma maneira, não é Tema Gerador. 8 Denominava-se falas significativas, pois, ao realizar a pesquisa, os educadores da rede municipal coletavam falas significativas junto aos educandos. As falas significativas apresentavam limites de compreensão para os problemas vivenciados pelos educandos que, ao referirem-se os problemas vivenciados, os descreviam, os analisavam e propunham soluções, mas sempre na perspectiva do senso comum, carecendo de outros conhecimentos e análises. Após análise destas falas, os

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temas geradores que, no âmbito da sala de aula gerariam novas problematizações e mediações voltadas ao fazer de cada conteúdo, um modo de compreender a vida e o conhecimento em suas complexidades (POSSAMAI, 2014, p. 76, grifos nossos).

Para Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), os

temas geradores compreendem o fazer e o pensar, o agir e o refletir, a teoria e a prática; pressupondo o estudo da realidade, desta que emerge uma rede de relações entre situações significativas individual, social e histórica que orienta a discussão, interpretação e representação da realidade; pode-se dizer que é uma prática que tem no método dialético sua efetivação.

Os autores Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002, p. 166) apresentam cinco princípios como sendo da natureza dos temas geradores, porque estes proporcionam exercitar a práxis, partir da prática, refletir, entender e problematizar essa prática, estabelecendo relações entre problemas e contextos locais e amplos.

Como primeiro princípio, afirmam que os temas geradores requerem uma visão de totalidade. Relacionar os problemas da realidade local com um contexto mais amplo, como um todo articulado, atravessado por contradições que se relacionam.

Naquele período, para desencadear a análise do Tema Gerador (visão da comunidade), com a visão de totalidade, realizar a análise destes com os contratemas (visão dos educadores), construía-se a rede temática ou rede de relações 9 . Em uma das entrevistas, foi afirmado que

professores organizavam os conteúdos conforme as necessidades levantadas pelas mesmas, especialmente nos aspectos que se apresentavam como contraditórios, faltando compreensão, informação, conhecimento. 9 A rede temática ou rede de relações é o exercício dialético do coletivo de professores que ocorre após definição dos temas geradores e dos

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depois que trabalharam com a pesquisa, com o Tema Gerador e com a rede temática, enxergavam o problema na totalidade, buscavam perceber essas implicâncias nos vários setores, nos vários aspectos, entender o porquê que passaram a compreender melhor o mundo, suas intenções. Que os problemas não são naturais, eles têm uma razão de ser, que alguém está sendo beneficiado e é isso que as pessoas às vezes têm dificuldade de compreender.

O segundo princípio propõe a ruptura com o conhecimento no nível do senso comum. Trabalhar a partir da realidade dos educandos requer mergulhar nela para compreender os nexos lógicos que produzem desigualdades e injustiças para desmistificá-la. Elucidando também com o depoimento de uma das educadoras entrevistadas ao afirmar que passaram a estudar muito, que respeitavam o senso comum dos alunos, mas que tinham que mostrar outras possibilidades. E ainda, que começavam pela realidade, pelo conhecimento que os alunos traziam e, desse conhecimento, iam construindo um conhecimento mais elaborado, que esta era a função dos educadores.

No terceiro princípio apresentam o diálogo nas relações de ensino-aprendizagem como sua essência. Para Freire (1987a), o diálogo como exigência existencial não é um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, tampouco tornar-se simples troca de ideias, mas é o encontro dos seres humanos mediatizados pelo mundo como ato de criação e de amor, de coragem, de compromisso com as causas da

contratemas, e é necessário construir a relação entre ambos. Construir a visão das diferentes áreas do conhecimento, definir e negociar diferentes caminhos para abordar os conteúdos. Essa é a função da rede temática, ela explicita as relações daquele problema com outros, com a realidade objetiva, com os conhecimentos produzidos historicamente do micro (local) para o macro (global). É o exercício da práxis. Os educadores construíam a análise partindo do mais simples para relacionar com análises mais complexas permitindo retornar ao simples, mas com outras apreensões.

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libertação dos oprimidos, o diálogo é tarefa de sujeitos, em criar as condições de superar o conhecimento no nível do senso comum para o nível da análise. Uma das educadoras entrevistadas afirma que tudo o que fazia, que nenhum exercício, nenhuma folha, nenhum vestígio que se levasse para a sala de aula era sem ter uma intenção. Tinha que ser sempre algo que problematizasse com o aluno. A partir do Tema Gerador, então não podia levar na sala de aula, uma folha para eles pintarem, simplesmente para passar tempo, tudo tinha que ser realmente pensado e planejado de forma diferente.

O quarto princípio é que os educadores tenham uma postura de crítica, de problematização constante, de distanciamento, de estar na ação e de se observar e se criticar nessa ação. Freire (1987a) afirma que a educação problematizadora, aqui sendo concebida como construída a partir dos temas geradores, parte do caráter histórico e da história dos seres humanos, por isso reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, assim como também a realidade que, por ser histórica, é inacabada. Nesse sentido, a educação é um fazer permanente na razão da inconclusão dos homens e do devir da realidade. Para ser tem que estar sendo. Numa das entrevistas encontramos que este é um processo contínuo. Que os educadores vão retomando, reorganizando. Que coletivamente construíam uma rede de relações, mas depois iam “recheando”, complementando, mudando conforme o trabalho ia se desenvolvendo. Era um processo dinâmico e contínuo e que o fato de terem que complementar, “rechear” a rede de relações, era por respeitar e considera o Outro um sujeito também. Que os Outros (alunos) também eram seres humanos e não estavam ali apenas para sentar e absorver, não eram esponjas, mas seres que interagiam, questionavam, exemplificavam, entendiam outra coisa e isso precisava ser considerado sem perder o foco das aulas.

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E o quinto princípio os autores propõem que os temas geradores devem apontar para a participação, discutindo no coletivo e exigindo disponibilidade dos educadores. Exemplificando, uma das entrevistadas diz que podiam não saber direito para onde ir, não saber que rumo tomar, que conteúdo escolher. Podiam ficar perdidas, mas pediam ajuda e tinham respaldo. Que ao definirem um Tema Gerador construíam a rede de relações e iam observando o que artes, o que português, o que matemática, o que cada área do conhecimento poderia seguir e explicar aquele problema, qual era o caminho na rede temática; e um ajudava o outro.

Corroborando com os cinco princípios elencados acima, Freire (1987a, p. 98) afirma que: “Investigar o tema gerador é investigar [...], o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis”. Requerendo uma metodologia de investigação, onde ambos, investigadores e investigados, façam-se sujeitos, não reduzindo a investigação a um ato mecânico. Exemplificando, a professora entrevistada afirma:

Na conversa com a comunidade, a gente ia explorando, pedindo, perguntando e conduzindo eles a falarem. A gente ouvia muito eles, para que falassem dos problemas que viviam, a gente falava pouco (POSSAMAI, 2014, p. 52).

A investigação

[...] tem de constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem ‘comportada’, mas, na complexidade de seu permanente vir a ser (FREIRE, 1987a, p. 101).

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Freire (1987a) diz que são as representações concretas de ideias, valores, concepções e esperanças e também os obstáculos ao ser mais dos homens que constituem os temas de cada época. Esses não têm como serem surpreendidos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus opostos. Como também não há outro lugar para encontrá-los que não seja nas relações dos seres humanos com o mundo.

Para proporcionar aos educandos a compreensão mais ampla de seus problemas, de seus temas geradores, eles precisam ser trazidos para dentro da sala de aula. Diante destes, os educadores, de forma coletiva, selecionam os conteúdos escolares e/ou os conhecimentos, que serão trabalhados nas aulas, dando condições aos alunos de superar o senso comum nas explicações dos mesmos. Portanto:

O momento de buscar é o que inaugura o diálogo da educação [...] é o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores (FREIRE, 1987a, p. 87).

A pesquisa-ação10, como estratégia metodológica na

definição e organização dos conhecimentos escolares,

10 Para identificar os temas geradores, na rede pública municipal de educação, adotou-se inicialmente a pesquisa participante como estratégia metodológica. Thiollent (2011, p. 13-14) afirma que frequentemente usa-se pesquisa participante e pesquisa-ação como sinônimos e não o são. Ainda segundo este autor, a pesquisa-ação vai além da participação e supõe uma forma de ação planejada com caráter social, educacional, técnico ou outro, que nem sempre se encontra em propostas da pesquisa participante. Neste processo, a pesquisa participante foi encaminhada por contemplar a forma de ação planejada, buscando na realidade local problemas a

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possibilitou assumir a posição de sujeitos cognoscentes, aspectos da pedagogia freireana; implicou olhar para as situações vivenciadas pelos educandos, suas experiências de vida, sua realidade concreta, seu pensar e as significações que davam para esse cotidiano, para estas serem “[...] colhidas, estudadas, compreendidas e transformadas em conteúdo mediador de novas interpretações de mundo” (ALVES, 2012, p. 15).

Também a PA proporcionou potencializar um dos traços fundamentais da consciência, a abertura para o novo, para o desafiador, um permanente processo de busca, de superação e conquista pessoal e do mundo. Explicitando o que afirma Damke (1995, p. 54): “[...] o ser humano como um ser inacabado e, ao mesmo tempo, como alguém capaz de refletir e de tomar consciência da sua incompletude”.

Para Brandão (1999) a pesquisa-ação recria de dentro para fora formas concretas de grupos e classes participarem do direito e do poder de pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seus saberes, superando a divisão entre o lado “popular” e o lado “científico”. Segundo Thiollent (2011), corroborando com Brandão (1999), sem abandonar o espírito científico a pesquisa-ação é concebida e realizada “em estreita associação com uma ação e com uma resolução de problema coletivo” (THIOLLENT, 2011, p. 20), em que pesquisadores e pesquisados constituem-se como “sujeitos de um mesmo trabalho, ainda que com condições e tarefas diferentes” (BRANDÃO, 1999, p. 11) e envolvem-se de modo cooperativo ou participativo na construção e apropriação do conhecimento.

O pesquisador observa e interpreta a partir de sua formação e suas experiências anteriores, não substituindo a

serem mais bem compreendidos na relação da sala de aula e construindo sua superação. Entretanto, por não se restringir ao que problematiza Thiollent, pesquisa-ação e pesquisa participante aqui serão tratadas como sinônimos.

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objetividade na pesquisa, mas respeitando, por meio de um controle metodológico, a descrição verbal minuciosa de um diálogo aberto, que consiga captar o que o povo pensa e fala (os temas geradores) de forma mais dialógica. De tal forma que: “O qualitativo e o diálogo não são anticientíficos” (THIOLLENT, 2011, p. 30).

Após definir a estratégia, os educadores vão para a coleta de falas significativas que também é um “ouvir atento”, mas, ao mesmo tempo, problematizador com os entrevistados; levando-os a falarem mais e com o maior número de informações possíveis, explicitando suas visões em relação aos problemas vivenciados. O depoimento de uma das educadoras corrobora, exemplificando um pouco desse processo, ao mencionar que primeiro coletavam as falas de alunos e da comunidade, depois saíamos para as ruas a fazer visitas nas casas, não só de pais de alunos, mas de toda a comunidade, do loteamento todo. Conversavam com todas as pessoas que estavam nas casas, ouviam-nas para compreenderem a realidade em que estavam inseridos. Que todos os professores faziam isso.

Ter a realidade como ponto de partida, esta ser apreendida através da pesquisa-ação, que identifica os temas geradores, permite alterar a definição dos conteúdos de sala de aula; não seguindo mais, de forma “acrítica”, os temas dos livros didáticos. Permite superar a lógica depositária de conteúdos nos educandos. Também possibilita não ter conteúdos definidos a priori e, consequentemente, proporciona aos educandos, mas também aos educadores, que “[...] o meu ‘destino’ não é dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir” (FREIRE, 1998, p. 58). Que o depoimento de uma das professoras entrevistadas em Possamai (2014, p. 114) mostra um pouco dessa relação que desenvolviam e vivenciavam:

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A pesquisa-ação como estratégia... 323

Os alunos, eles chegavam em casa e eles conseguiam conversar com os pais sobre o que a gente foi trabalhando na escola, sobre o que a gente foi construindo na escola, eles conseguiam passar uma nova visão sobre o problema, uma nova visão de mundo ou do porque estava tendo aqueles problemas. Saía daquela lógica do senso comum, porque você realmente trazia elementos de reflexão e não era a tua ideia imposta para as crianças, mas através do conhecimento historicamente construído, você fazia as reflexões, problematizações. Conseguia problematizar a situação vivenciada. Ou seja, não era mais uma coisa pré-definida, era uma dúvida, gerada pelo conhecimento em relação ao que antes era um problema, uma verdade que antes era entendido que era causado por alguma coisa do além do acaso.

Ao realizar a pesquisa junto aos educandos e

comunidade, compreendiam-se suas vivências, culturas, problemas e visões de mundo que se perpetuavam no senso comum, requerendo compromisso com os entrevistados, pois o diálogo dava-se entre seres históricos, que mesmo cada um sendo um ser único, o jeito de ver o mundo resulta e faz parte de uma teia social.

A pesquisa-ação no currículo crítico visava à construção do conhecimento como processo que ocorre a partir da prática de pesquisar, o que tornava o processo de ensinar e aprender mais significativo. Provinha de posturas investigativas dos educadores, que proporcionam compreender os nexos lógicos entre contextos e problemas reais, que mediados por intencionalidades, por projetos, numa relação de totalidade produz-se o conhecimento.

A construção curricular em processo, que propõe Saul e Silva (2009, p. 230), valendo-se da pesquisa-ação como estratégia na definição dos temas geradores e na organização dos conhecimentos escolares, supera a dissociação entre conhecimento escolar e cidadania.

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324 A atualidade das ideias de Paulo Freire

Considerava conteúdos escolares a realidade local dos educandos, como aspectos de uma totalidade de um contexto sócio-histórico mais amplo, quanto o próprio processo de ensino-aprendizagem, que se dava no diálogo entre os saberes dos educandos, dos educadores e dos conhecimentos sistematizados. A apreensão dos conhecimentos acontecia de forma coletiva a partir da análise das contradições vivenciadas na realidade local dos educandos. E, por conseguinte, o fazer pedagógico passou a ser o próprio exercício da cidadania crítica, contextualizado e processual, consistente e emancipatório. Nesse sentido, vem ao encontro do que propõe Freire (1998, p. 102):

Toda investigação temática de caráter conscientizador se faz pedagógica e toda autêntica educação se faz investigação do pensar. Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando. Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de um mesmo processo.

Ao realizar a pesquisa como estratégia metodológica

na organização e produção do conhecimento, exercita-se o movimento dialético de não isolar a realidade dos conteúdos, de estar diretamente ligadas às preocupações e experiências cotidianas dos educandos, mas também de não usar os conteúdos para ajustar à realidade e, sim, exercitar a análise crítica e relacional dos problemas vivenciados com a ciência produzida.

Nesse sentido, Freire (1998, p. 32) afirma que: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino [...] enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,

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A pesquisa-ação como estratégia... 325

intervenho intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.

A PA proporciona o rumo do trabalho, alude não ter

conteúdos preestabelecidos, mas reconhece-os como uma produção histórica, de acordo com a necessidade dos temas geradores, faz-se um recorte dos conhecimentos científicos, para dar conta de proporcionar o “alargamento” da compreensão dos problemas por parte dos educandos. A educação torna-se um ato cognoscente, pois parte das relações homens-mundo e possibilita sua apreensão e, consequentemente, a inserção crítica de ambos educadores e educandos neste mundo, visando sua superação.

As educadoras entrevistadas expressam que realizavam as entrevistas tendo um fio condutor, uma estrutura de base ligada ao núcleo temático a ser pesquisado, para não atirar para todas as direções. Que antes de ir a campo realizar a pesquisa, preparavam-se e levantavam hipóteses do que avaliavam ser problemas para a comunidade. Também organizavam as perguntas, as problematizações a serem feitas no momento da conversa com os pais. Os assuntos giravam em torno de núcleos temáticos em relação aos elementos da estrutura socioeconômica da sociedade, como moradia, saúde, transporte, educação, convivência, saneamento, trabalho, lazer, abastecimento, comunicação, política, entre outros. Que faziam a pesquisa e coletavam as falas para saber qual que era a visão de mundo deles, que problemas eles sentiam e como que eles analisavam aqueles problemas. Que após a pesquisa voltavam para a escola com as falas e faziam a análise das mesmas e, a partir daí é que se selecionavam os conteúdos para ir para a sala de aula, montavam o Tema Gerador e a rede de relações.

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326 A atualidade das ideias de Paulo Freire

Realizar a pesquisa-ação para coletar os temas geradores era enxergar as dimensões visíveis, mas também as ocultas na trajetória da vida das pessoas, desnudar a realidade em suas contradições, perceber os limites explicativos dos educandos aos problemas vivenciados, onde muitas situações percebidas e explicadas pelos educandos são

[...] diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente (KOSIK, 1976, p. 14).

Elucidando, as educadoras entrevistadas afirmam

que, no momento da pesquisa, consideravam não só o dito explicitamente, mas a maneira de dizer, as inflexões, as hesitações, as pausas, os silêncios, porque tudo dizia muito. Aspecto importante a ser considerado, pois, geralmente, nessas hesitações, silêncios, pausas do discurso é que estão a ambiguidade e a contradição entre o pensar e o agir; e que é importante captar e desvelar. O “não dito” e o “mal dito”, por medo, pudor, desconfiança ou porque por dizê-lo seria doloroso demais, por isso, são tão ou mais importantes quanto às outras respostas.

As educadoras entrevistadas revelam que se preparavam antes de ir para a pesquisa. Que tinham objetivos ao realizar a pesquisa. Que além de captar as falas, também conheciam a comunidade para conseguir intervir naquela realidade. Que não tinha como trabalhar independente da sociedade e da comunidade.

Definir os conhecimentos escolares a partir da pesquisa-ação implicava reafirmar o compromisso social e científico desta, orientando-se em função da resolução de problemas do mundo real e/ou de objetivos de transformação e não de modo retórico ou simbólico, já que por trás dos problemas há sempre uma série de condicionantes sociais, apontados anteriormente, a serem

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A pesquisa-ação como estratégia... 327

evidenciados pela investigação. Para dar conta de problematizar, entender e situar os problemas necessitava-se compreendê-los não como algo isolado frente aos contextos. Era preciso “[...] penetrar na lógica deste objeto/problema, para poder com ele dialogar adequadamente e estabelecer sínteses superadoras do conhecimento acumulado” (JANTSCH; BIANCHETTI, 1995, p. 178).

Ao trabalhar a partir da realidade dos educandos, dos temas geradores percebidos na realização da PA, na ação sobre o mundo os educadores criavam o domínio da cultura e da história, constituindo-se em seres da práxis. A práxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, era fonte de conhecimento reflexivo e de criação. Como seres em permanente ação transformadora da realidade, simultaneamente, criavam a história e se faziam seres histórico-sociais.

Logo, para os educadores, o conhecimento é significativo quando possibilita compreender os contextos, a realidade como social, como construção humana, como processo, como uma totalidade. Também, entender como os educandos, os pais, explicitam em suas ideias, em suas representações esse real. Quais concepções são a força motriz de seu fazer e fazer-se ao estar com seus pés fixados em uma realidade de sobreposição de uma classe sobre a outra, de interesses também contrários e de conhecimentos que servem a valores antagônicos.

A pesquisa cumpre a tarefa de buscar no real imediato o senso comum, em que:

Tomar o imediato como realidade significa ater-se aos elementos emitidos pela percepção primeira dos objetos. Assim, o fenômeno passa a ter significado e sentido real. Para o senso comum, e para quem se guia por ele, realidade é a primeira manifestação do fenômeno e esta constitui sua visão de mundo. Sua ‘criticidade e ação refletida’ têm o limite da não percepção da totalidade,

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328 A atualidade das ideias de Paulo Freire

porque não percebe que a realidade é maior que o fenômeno percebido (CARMINATI; MEKSENAS, 2008, p. 141).

Após a realização da pesquisa junto aos educandos e

comunidade, interdisciplinarmente, os educadores devem analisar e organizar as programações e as aulas de cada disciplina, buscando suscitar dúvidas sobre as certezas e verdades absolutizadas pelos educandos e que carecem de fundamentação científica para melhor serem compreendidas e desmistificadas. Constata-se que realizar a pesquisa-ação para compreender a visão de mundo dos entrevistados exige, dos educadores, perspicácia, intencionalidade, curiosidade, inquietude e muito trabalho coletivo para não definir as problemáticas a partir da ótica destes.

A produção do conhecimento, à luz da perspectiva freireana, remete os pesquisadores a um compromisso social, ético e político, interferindo para melhorar a qualidade de vida e as relações sociais especialmente dos marginalizados e dos excluídos. A produção do conhecimento requer explicitar a responsabilidade social, proporcionar avanços científicos e humanos produzidos por sujeitos reais, concretos, históricos, que sofrem, choram, se emocionam, tomam posições, amam e odeiam, que tem as marcas da história, das condições de vida, da capacidade ou não de problematização em todo seu desenvolvimento, aspectos estes presentes em cada sala de aula.

A pesquisa explicita a contradição de que assumir o fenômeno como imediato que oriente suas vidas, carece de reflexão e de sentido que estabeleça relações. Em Freire (1987a, p. 77), podemos entender quando afirma que “[...] não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”. Que pressupõe criticidade, ou seja, o exercício pelo qual a consciência vai se apropriando do conhecimento do mundo

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A pesquisa-ação como estratégia... 329

de modo cada vez mais rigoroso, em que os homens ultrapassam as “situações-limites”, o senso comum e, através da sua ação sobre a realidade concreta em que estas se dão e, ao serem superadas, outras surgirão, pois é próprio dos homens estarem com a consciência de si e do mundo, em uma relação de enfrentamento com sua realidade que, historicamente se dão as “situações-limites”.

A metodologia da pesquisa-ação na rede pública municipal (1997/2004) constituiu-se ao que propõe Brandão (1999) por tornar-se uma proposta político-pedagógica que buscou realizar uma fusão entre o estudo dos processos de mudança social e o envolvimento dos pesquisadores numa dinâmica que segue uma dupla postura de observador crítico e de participante ativo, visando disponibilizar os conhecimentos científicos a serviço dos seres e organizações com os quais estavam envolvidas, potencializando a aquisição de uma consciência crítica para que assumissem com maior lucidez e autonomia o papel de protagonistas sociais.

Os educadores proporcionavam que os conhecimentos trabalhados na escola oportunizassem aos educandos a discussão sobre seus direitos de participar, não sendo meros receptores de ideias prontas e palavras vazias. Desenvolveram um trabalho educativo que possibilitava a passagem de uma compreensão mágica ou ingênua da realidade para predominantemente crítica, fruto do pensamento organizado e reflexivo através da apropriação e da produção dos conhecimentos.

Pode-se afirmar que havia uma intenção na realização da pesquisa-ação não a reduzindo às preocupações de Thiollent (2011) que, em muitos casos, realizar pesquisa, é chegar a muita participação e pouco conhecimento. E que é necessário ter a pesquisa-ação fundamentada dentro de uma perspectiva de investigação científica, de modo aberto. Que ciência não seja sinônimo de positivismo mesmo a pesquisa-

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ação não deixando de ser uma experimentação em situação real em que os pesquisadores intervêm conscientemente e onde os participantes desempenham um papel ativo.

A reorientação curricular crítica popular, via abordagem temática construída a partir dos temas geradores, definidos a partir da pesquisa-ação, concretizaram na rede municipal, naquele período, a concepção de currículo que propõe Freire (1987a), ou seja, que dialogando entre os diferentes sujeitos, mediatizados pela realidade e pelo conhecimento científico construíram uma concepção crítica da realidade enquanto totalidade, visando à sua transformação.

Em Freire (1987a, p. 116-139) encontramos a proposta metodológica completa da proposta implementada naquele período. Ele definiu cinco momentos: 1) Levantamento preliminar da área selecionada para trabalho; 2) Análise das situações e escolha das codificações; 3) Diálogo decodificador; 4) Redução temática; 5) Preparação de atividades para sala de aula. Que Silva (2004, p. 7) reestruturou-os, aprofundando-os e, em Chapecó, foram adotados esses procedimentos metodológicos na organização e implementação do currículo popular crítico via abordagem temática. Sendo: 1) Levantamento preliminar da realidade local (este o procedimento que implica a realização de pesquisas sendo tanto qualitativa como quantitativa); 2) Escolha de situações significativas; 3) Caracterização dos temas e contratemas geradores sistematizados na rede temática; 4) Elaboração de questões geradoras; 5) Construção da programação; 6) Preparação das atividades para sala de aula.

Portanto, realidade, temas geradores e pesquisa-ação desencadearam relações de sujeitos, educadores e educandos, outra forma de trabalhar com os conteúdos escolares, deixaram de usar conceitos como partir da realidade dos educandos, trabalhar de forma interdisciplinar apenas como

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A pesquisa-ação como estratégia... 331

processos elucidativos para, de fato, mergulhar na lógica do real e, a partir desta, definir e organizar os conteúdos escolares; o que exigiu também outra reorganização das escolas bem como da Secretaria Municipal de educação. REFERÊNCIAS

ALVES, S. M. Freire e Vygotski: um diálogo entre a pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural. Chapecó: Argos, 2012.

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332 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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KOSIK, K. Dialética do concreto. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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A pesquisa-ação como estratégia... 333

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334 A atualidade das ideias de Paulo Freire

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II

O TEMA GERADOR NO ENSINO DE HISTÓRIA

Maristella Müller Drews

INTRODUÇÃO

Trabalhar a realidade do educando como ponto de

partida e como questão central no processo de ensino adquiriu uma forma mais concreta a partir do contato com a concepção do Tema Gerador1. Essa orientação foi adotada na Rede Municipal de Ensino de Chapecó (SC), no Movimento de Reorientação Curricular implantado entre os anos de 1998 a 2004. Cabe considerar que, após este período, o Movimento de Reorganização Curricular não teve prosseguimento, dada uma nova conjuntura política que se estabeleceu no município.

A educação na Rede Municipal de Ensino de Chapecó foi modificada a partir do ano de 1997, quando o poder local foi assumido por uma administração vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT). A partir de então, os princípios da Educação Popular foram adotados como diretrizes pedagógicas do Movimento de Reorientação Curricular, que, por meio de debates com os educadores, pretendeu mudar a educação municipal. Foram implantadas diversas reformas, dentre elas, os Ciclos de Formação, a Avaliação Emancipatória e as Totalidades de Conhecimento na Educação de Jovens e Adultos... Em relação ao currículo

Mestre em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). 1 Como Tema Gerador é categoria fundamental deste trabalho, optei por utilizá-lo com iniciais maiúsculas para destacá-lo ao longo do texto.

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e a seleção dos conteúdos, a orientação que passou a ser adotada foi a de trabalhar o Tema Gerador como articulador de programações.

Trabalhar a realidade com Tema Gerador, no entanto, pressupõe uma concepção de mundo em que a transformação é possível. A educação transformadora, na concepção de Freire (1987, p. 85), organiza seus currículos através “[...] da devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada”.

Em que se constituem os temas geradores? De acordo com Corazza (1992, p. 11), “[...] é, pois, aqui, em nossa realidade e na consciência que dela temos, que Freire situa o lugar, por excelência, de procura do conteúdo programático da educação que se pretende conscientizadora [...]”, ou o lugar onde estão os temas geradores.

Segundo Freire (1987, p. 92-3), “tema” é “[...] a representação concreta de ideias, valores, concepções, esperanças, como também os obstáculos ao ser mais dos homens [...]”; “situações de opressão”, explicita Corazza (1992, p. 17); ou ainda, para Hurtado (1993, p. 69), “o que expressa a realidade a ser analisada”. São “geradores” por “[...] conterem em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas” (FREIRE, 1987, p. 93).

Os depoimentos dos professores são fundamentais para um melhor entendimento da organização curricular através do Tema Gerador, pois, segundo Besse e Caveing (2002, p. 164), “[...] sem o retorno constante à prática o processo do conhecimento se detém [...], não contribuindo para superações dos limites encontrados no fazer cotidiano”.

O estudo pretende apresentar as possibilidades e dificuldades do trabalho com o Tema Gerador na área de História. Na elaboração de programas e seleção de

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O tema gerador... 337

conhecimentos, conteúdos para a disciplina no terceiro ciclo (séries finais do Ensino Fundamental). O PROCESSO DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR EM CHAPECÓ NO PERÍODO DE 1997 A 2004

Quando, no ano de 1997, assume a Administração

Popular em Chapecó, a Secretaria de Educação do Município iniciou uma redefinição da educação oferecida até então. Desencadeou um trabalho de construção dos Princípios Político-Pedagógicos. Buscava

[...] a superação da concepção autoritária, individualista e classificatória de um modelo de escola que apesar de ‘universalizar’ o ensino, não se preocupa com o que se faz no dia a dia com os alunos (CHAPECÓ, 1998a, p. 8).

Entre os princípios que orientaram o

desenvolvimento do PPP nos coletivos das escolas estão:

A noção de aprender a partir da realidade do sujeito popular; - A noção de ensinar a partir de temas geradores; - A educação como ato de conhecimento e transformação social: - A politicidade da educação (GADOTTI; TORRES, 1992, p. 115).

A organização de currículos, programações e

trabalhos de sala de aula encaminharam para a

[...] construção de programas dentro de uma proposta interdisciplinar que considera fundamental o estudo da realidade local, o levantamento das situações significativas de cada comunidade e a codificação-descodificação dos Temas Geradores (CHAPECÓ, 1998a, p. 9).

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O trabalho com Temas Geradores foi realizado com a assessoria do professor Antônio Fernando Gouvêa da Silva2.

O problema que gerou os questionamentos das entrevistas se refere às possibilidades de construção de programações da área de História, a partir dos Temas Geradores. O TEMA GERADOR E A DISCIPLINA DE HISTÓRIA: ANÁLISE DE UMA PRÁTICA

O contexto deste estudo é a prática de professores

que trabalharam com Temas Geradores na área de História. A pesquisa de campo e a coleta dos depoimentos foram através de entrevistas realizadas nos meses de outubro, novembro e dezembro do ano de 2004. As entrevistas seriam com professores que atuassem especificamente na área de História no 3º ciclo de formação (o terceiro ciclo de formação corresponde às séries finais do Ensino Fundamental, ou seja, 6ª, 7ª, e 8ª séries), que tivessem experiência docente na disciplina de história. Foram realizadas oito entrevistas. Dos professores que concordaram em participar do trabalho, apenas um quis manter o anonimato. Por esse motivo foram adotados nomes fictícios para todos os entrevistados.

Durante as entrevistas, os professores sentiram-se à vontade e demonstraram segurança em suas respostas; em geral, tinham muito a falar. As entrevistas não seguiram o roteiro de questionamentos de forma rígida, foram informais, não se caracterizando como perguntas e respostas; caracterizando-se mais como conversas sobre o

2 Antonio Fernando Gouvêa da Silva, doutor em Educação - Currículo – PUC/SP. Licenciado em Ciências Físicas e Biológicas, em Biologia, Bacharel em Ciências Biológicas, pós-graduação em Genética de Populações.

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O tema gerador... 339

tema das perguntas. O roteiro das entrevistas gerou novas perguntas como forma de esclarecimentos ou aprofundamentos dos temas.

Na organização da pesquisa, o problema proposto foi abordado por um objetivo geral: “Verificar as possibilidades do uso do Tema Gerador na elaboração de programações no ensino de História”, e dos seguintes objetivos específicos: evidenciar a construção do Tema Gerador e a forma que organiza programações para a disciplina de História; destacar o ponto de partida para a elaboração do Tema Gerador e das programações de História, da seleção dos conteúdos da disciplina; caracterizar a participação dos membros da comunidade escolar no processo do Tema Gerador; identificar limites da proposta e possíveis mudanças, avanços.

Em relação ao roteiro das entrevistas, este versou sobre o problema da pesquisa orientado pelos objetivos, organizado com os seguintes pontos: Identificação; Tempo de trabalho como professor; no trabalho anterior ao ano de 1996 como era o currículo da área de História? Como eram selecionados os conteúdos da disciplina? A partir de 1998, com o processo de reorientação curricular, o que muda efetivamente na área de História? Como se realiza a seleção dos conteúdos? Como é a organização da área de História? Qual o ponto de partida da organização do currículo orientado pelo Tema Gerador? Como é definido o que é específico na área de História? Como funciona o trabalho com os conceitos nessa organização curricular? Qual a avaliação que você faz dessa forma de organização curricular (avanços, dificuldades, necessidades)?

Após a realização das entrevistas, foram feitas diversas leituras do material com o objetivo de perceber categorias que agrupavam os relatos dos professores. Uma vez que o roteiro não foi seguido de forma rígida, os depoimentos narraram os temas, ora de forma analítica, ora

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de forma mais objetiva. Ao serem analisadas as entrevistas e o roteiro das mesmas, os professores abordaram o problema “da construção de programações de História via Tema Gerador no processo de reorientação curricular”, formando os seguintes eixos: o ensino de História anterior ao processo de reorientação curricular; o trabalho coletivo, a interdisciplinaridade e o processo do Tema Gerador; a definição dos conteúdos na área de História; mudanças percebidas.

Partindo-se do princípio de que não é possível construir um diálogo fragmentado, uma vez que os temas se complementam, a abordagem da pesquisa através destes eixos foi uma forma de organizar o diálogo entre os depoimentos. Estas abordagens procuram apenas construir encaminhamentos e análises para trabalhar o problema deste estudo, mas são as falas que devem apresentar os argumentos. O ENSINO DE HISTÓRIA ANTERIOR AO PROCESSO DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR

A organização do ensino da área de História, na

Rede Municipal de Ensino de Chapecó, anterior a 1997, teve como referência a Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina. Sua adoção foi feita com o objetivo de padronizar o currículo em nível de Ensino Fundamental, municipal, estadual e particular atuantes no município. A primeira publicação data de 1991 e “se propõe superar a concepção de história tradicional” (PEREIRA, 2000, p. 103). Nas suas caminhadas de professores de História, que atuaram antes da Reorientação Curricular, alguns fazem considerações a respeito do trabalho da área que tinha como referência a Proposta Curricular de Santa Catarina. Assim se expressaram: “[...] nós trabalhávamos muito na lógica positivista da história...” (Professor César).

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O tema gerador... 341

Em relação aos programas, conteúdos por série, é descrito um processo linear e adotado sem debates ou formação. E, ao afirmar que o trabalho tem uma linha positivista, há uma contradição em seu depoimento, uma vez que a Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 1991) se define pelo materialismo histórico-dialético. O que foi constatado, de acordo com os professores, foi a adoção das listagens de conteúdos por série contidos na proposta.

Embora de forma restrita e individual a disciplina já recebia algumas influências de outras concepções. Porém, o trabalho não avançava devido à falta de debates, como relata o professor: “[...] eu não me lembro, de nós professores do município sentar e fazer uma discussão de como é que se trabalhava a área, aprofundar, fazer um trabalho mais consistente” (Professor César).

A organização da área e do ensino de História, anterior a 1996, trabalhava com currículos prescritos, conhecimentos prontos, desvinculados da realidade vivida, ou, de acordo com Silva (1982, p. 21), a “exclusão da história vivida”. Uma história que torna o aluno passivo, sem qualquer projeção ou iniciativa em relação à realidade vivida e seus problemas. AÇÃO COLETIVA E O TRABALHO INTERDISCIPLINAR NA CONSTRUÇÃO DO TEMA GERADOR

Após o ano de 1997, os professores foram chamados

para planejamento coletivo de todas as áreas ou de áreas afins. É por meio do trabalho coletivo que os envolvidos deixam de ser sujeitos passivos, para se tornarem sujeitos ativos, críticos frente ao processo de ensino-aprendizagem, “[...] exercendo um papel de pesquisadores do conhecimento, numa perspectiva participativa e de interação

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com o conhecimento” (CHAPECÓ, 1998b, p. 11). O trabalho coletivo, ao organizar os professores em torno do Tema Gerador, revelou fragilidades; colocou o grupo no movimento em que: “[...] chega a ser como um critério a capacidade de trabalho com o outro, a organização do coletivo” (Professora Roseli).

Além da organização do grupo, o trabalho coletivo tem a dimensão de amparar a interdisciplinaridade necessária no desenvolvimento de currículos com o Tema Gerador. A interdisciplinaridade proposta vai além do conceito tradicional de “afrouxamento das fronteiras rígidas entre as disciplinas”; vai trabalhar a questão de como se produz o conhecimento e seus fins, bem como a criação de novos conhecimentos para transformação da sociedade (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2003, p. 119).

Trabalho coletivo e interdisciplinaridade constroem a capacidade de dialogar com o outro. Os diálogos em torno do conhecimento passam a ser num outro patamar, não trabalham conhecimentos prontos, acabados, mas sim “[...] você passa a construir e buscar conhecimento, pesquisar conhecimento, o que antes não se fazia. Há situações em que você tem que produzir o texto” (Professor César). É através da pesquisa e de diálogos interdisciplinares do coletivo de professores que, elaborando relações e buscando contribuições dos diferentes conhecimentos de áreas sobre um tema, surge uma “visão multifacetada da realidade” (DELIZOICOV; ZANETIC, 1993, p. 14).

Assim, trabalho coletivo torna-se condição de trabalho interdisciplinar. O tripé – trabalho coletivo, interdisciplinaridade e conhecimento – tem a intenção de criar currículos dialógicos da área de História que ultrapassem a fragmentação em relação às diferentes áreas. Busca, principalmente, a relação do conhecimento com a realidade vivida visando sua possível transformação.

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O tema gerador... 343

Para a concretização do trabalho com Temas Geradores, a pesquisa e a organização da rede temática também foram tema de análise dos professores de História. A pesquisa na comunidade

A ação investigativa é um elemento-chave em

trabalhos de reorientações curriculares interdisciplinares com Temas Geradores. A pesquisa é uma ferramenta que alimenta de forma permanente o trabalho.

Trabalhar Temas Geradores significa investigar a realidade. Não uma pesquisa de sujeito e objeto, mas uma pesquisa em que “pesquisador e pesquisado se encontrem como sujeitos que dialogam sobre o mundo” (BORDA, 1990). É tomar a realidade para a sua transformação através dos princípios de uma educação popular “ligada aos reais interesses populares” (VALE, 1996, p. 58). Mas como ter a realidade como ponto de partida comum para as ações e disciplinas do currículo?

A pesquisa inicia com a delimitação da área de trabalho. Em seguida a coleta de diferentes informações existentes sobre o local. Poderia ser a história do bairro construída através de diferentes fontes, contada por moradores mais antigos, atas de reuniões, reportagens de jornais, trabalhos de alunos. São informações sobre bairro apresentando uma visão geral onde está a comunidade escolar, caracterizando o todo ou partes da comunidade. Este dossiê tem como objetivo organizar as informações sobre o ponto de partida do trabalho – a realidade local – e aos poucos vai sendo ampliado com outros dossiês que contextualizam, de forma mais ampla, esse lugar; como município, zona rural e urbana, região, estado, país, entre outras escalas do real.

Só então iniciam os contatos com os moradores na busca de opiniões, expectativas, ressentimentos e

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preocupações do dia-a-dia. São depoimentos, anotações, os mais variados registros sobre tudo, com o objetivo de: “[...] entender o mundo que essas pessoas vivem, as visões de mundo deles, o que pensam, como percebem o espaço em que vivem” (Professora Vanda).

A postura investigativa torna-se importante nas observações diretas e no envolvimento com a situação em estudo. Isto porque, segundo André (1997), “o eixo de referência é o universo investigado”, ou seja, o local e o grupo em estudo devem ser investigados a partir de seus pontos de vista; e o investigador deve ultrapassar seus métodos e valores observando que há outros entendimentos e explicações para o mundo.

No entanto, quando da implantação da Reorientação Curricular, o desconhecimento do processo de investigação foi tomado como um grande desafio. Não foi algo tranquilo, conforme se vê no depoimento a seguir:

No início estávamos meio apavorados com a história de sair da escola e fazer pesquisa nas casas. [...] E nós temos que reconhecer de que houve um choque. E a diferença estava nisso (na pesquisa) (Professora Roseli).

Passado o momento do choque, os professores

passam a realizar suas pesquisas já com maior desenvoltura, considerando que o tempo de pesquisa acaba sendo “[...] muito legal na rede. Nós conseguirmos sair da escola e ir para as comunidades onde a gente trabalhava” (Professor César).

De acordo com o professor, nos diferentes espaços em que se desenvolveu o trabalho com o Tema Gerador houve “maior ou menor” envolvimento das escolas com suas comunidades. Esse contato com a comunidade durante as pesquisas de campo foi assim descrito:

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Quando nós saímos começamos conversando com eles. Há quanto tempo moram aqui, porque vieram para cá, do que vivem? Procurando uma coisa mais informal para as pessoas não se sentirem retraídas na hora de falar. Procuramos não anotar na frente das pessoas, fazíamos anotações depois. Fomos em grupo pois facilitava a retenção do que foi dito e depois tudo era digitado (Professora Cledi).

Esse comportamento é o que Freire (1987, p. 104)

denomina como “[...] observadores simpáticos, [...] com atitudes compreensivas em face do que observam”. Esses comportamentos simpáticos dos pesquisadores contribuíram para um entrosamento maior entre comunidade e escola, pois:

Nós íamos com a disposição de ouvir. [...] E a gente era bem recebida. [...] E que desapontamento das famílias que não recebiam visitas. Elas falavam: ‘porque não foi na minha casa professora?’ [...] Então foi algo bem visto pela comunidade – a presença do professor e a pesquisa (Professora Roseli).

Sendo um trabalho realizado por educadores,

funcionários da escola, educandos e comunidade, a pesquisa do Tema Gerador desencadeia “o diálogo da educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1987, p. 87). Uma educação que considera todos como sujeitos, capazes de participar, de contribuir. A comunidade era um foco da investigação, outro era o grupo de alunos e com eles o processo “acontece mais na sala mesmo, o trabalho acontece mais na escola” (Professora Vanda).

Os encaminhamentos com os alunos, segundo a professora, estão mais restritos ao espaço escolar. Mas por que buscar as falas dos alunos? Pesquisar com os alunos na escola e fora dela é uma forma de construir o Tema Gerador

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de acordo com cada grupo de trabalho. Pois a forma de ver o mundo, de pensar sobre os problemas, é vista de forma diferente para cada fase de vida. Mesmo assim, as falas da comunidade são importantes, pois são elas que contextualizam, dão suporte, explicam ou contradizem as falas dos alunos.

A pesquisa busca conhecer a realidade da comunidade e o que pensam as pessoas que vivem nesse local, suas visões de mundo; e “estudar em que nível de percepção delas se encontra os moradores da área” (FREIRE, 1987, p. 106). Essas percepções são captadas através das falas e da forma como estas são proferidas, pois “[...] a atitude, o comportamento. Alguns processos que acontecem e às vezes você consegue não só visualizar, mas perceber de uma forma as vezes emocional” (Professora Evelin). Em se tratando de pesquisa-ação, de acordo com Oliveira e Oliveira (1990, p. 17), pode-se constatar que “[...] não é unicamente aquilo que é dito explicitamente que é significativo. A maneira de dizer, as inflexões, as hesitações, as pausas e os silêncios dizem muita coisa”.

De posse dos resultados da pesquisa – as falas contextualizadas, os professores passam para a etapa de redução temática3. Da definição do Tema Gerador à redução temática (organização da rede)

Tendo em mãos o resultado da pesquisa, os

educadores passam a selecionar e analisar as falas. A seleção do problema é feita junto à comunidade e alunos no

3 O trabalho do Tema Gerador não se restringe a estas duas etapas: pesquisa e redução temática. Durante a pesquisa com os professores o objetivo não foi pormenorizar etapa por etapa da construção de temas geradores, mas ouvir e registrar de que forma os professores organizavam seus planejamentos da área de História.

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confronto entre análises do contexto local, estatísticas e pesquisas quantitativas realizadas. Quanto à seleção do problema, de acordo com os professores, eram feitas várias reuniões. No início, com a comunidade; depois, discussões em sala com os alunos e, por fim, com todos. Durante o processo de análise das falas, selecionado o problema pela comunidade ou alunos, escolhe-se aquela que melhor representa o problema – o Tema Gerador. Considerando que o Tema Gerador é a expressão de uma coletividade, a seleção será feita na tentativa de representar a todos os envolvidos.

As falas a serem utilizadas, de acordo com os professores, devem ser significativas. Reveladoras de “conflitos” (contradição) ou “o que o morador não entende” (limite explicativo), de acordo com a professora Eloísa. Buscando a explicação nos depoimentos, a professora Vanda nos diz que “[...] a fala, ela geralmente aponta um problema, ela diz o porquê desse problema e muitas vezes as pessoas dão até sugestões de soluções para esses problemas”.

Quanto à análise das falas e da forma como abordam os aspectos da realidade, estas são classificadas em:

Descritivas quando se limitam a uma exposição de acontecimentos; – Analíticas quando trazem explicações sobre os fatos, decompondo-os em partes e relações; – Propositivas quando apontam possibilidades de ações transformadoras do real (SILVA, 2000).

Podemos citar, como exemplos dessa classificação,

as falas analisadas no quadro a seguir:

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Quadro 3 – Falas analisadas pela equipe pedagógica da Secretaria de Educação Fala Tipo de fala Significado

“O que a gente ganha não dá para comprar tudo o que a gente precisa. Aqui em casa todo mundo come a mesma coisa”.

Descritiva É uma fala sem contexto. Apenas apresenta o problema.

“Tinha uma mulher que morava nesse porão, um dia ela brigou com o marido, e ele quis esfaquear ela, nós ouvimos tiros, ficamos na nossa, nesses casos a gente não pode se meter, tem que fazer de conta que não vê nada”, (Adolescente filho de dona de casa, rua Princesa Izabel).

Descritiva. Analítica. Propositiva

Fala com contexto, situa o local. Apresenta o problema (descreve) e analisa colocando a sua posição perante o problema (propositiva).

Fonte: Equipe Pedagógica Encadernação de Estudos (2002). São as falas que balizam todo o processo, uma vez

que as análises das mesmas fazem com que o trabalho avance, retroceda ou tome novos rumos. Também é através dessas análises que se constrói o posicionamento dos professores sobre o problema. A visão dos educadores representa a intervenção do conhecimento universal sistematizado, que será colocado a serviço do problema apresentado pelo Tema Gerador.

No quadro anterior foi apresentada a classificação das falas na forma como elas abordam a realidade. O quadro a seguir apresenta a análise das falas por parte dos educadores, destacando o entendimento que a comunidade tem, ou sua visão de mundo. Destaca também a visão de mundo do educador e os elementos por ele apresentados:

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Quadro 4 – Fala analisada pelo coletivo do terceiro ciclo da EBM Jardim do Lago no ano de 2001

Fala

Visão de mundo do outro

Elementos presentes na visão de mundo do outro

Visão de mundo do educador

Elementos presentes na visão de mundo do educador

Hoje uma pessoa sem estudo não arranja trabalho porque não aprendeu tudo que precisava. O estudo também ajuda a melhorar a vida porque se você está desempregado e tem estudo necessário, você consegue um trabalho.

As pessoas não têm emprego por falta de estudo, tendo estudo se consegue emprego.

Estudo. Emprego.

A falta de emprego para todos não é apenas decorrente da falta de estudo, mas devido à política social e econômica adotada no País. O estudo é necessário para a compreensão e transformação da realidade na qual estamos inseridos.

Educação reprodutora. Educação transformadora. Política social e econômica.

Fonte: Planejamento do terceiro ciclo da EBM Jardim do Lago (2001).

Os elementos presentes nas falas são utilizados na

organização da rede temática4. Os relatos dos professores abordaram: “seleção de

falas, do Tema Gerador, e elaboração do contratema

4 A rede temática completa encontra-se no Anexo 1.

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(intencionalidade), para então montar a rede”. Descrevem também seus significados:

[...] o Tema Gerador é o conflito presente na comunidade; o contratema é o conhecimento científico que explica o conflito, e a questão geradora que são as duas visões de mundo colocadas em xeque. O contratema é a intencionalidade que orienta o

ponto de chegada em relação ao Tema Gerador; e, ao mesmo tempo, o processo de construção da rede temática.

A questão geradora

[...] são as duas visões, a visão do conflito dada pela comunidade que é o Tema Gerador e a explicação dada pelo conhecimento científico. As duas visões são colocadas em xeque, em questão (Professora Eloísa).

É uma pergunta que o coletivo de professores faz a

partir da problemática local. Tem o objetivo de colocar em dúvida a explicação dada pela comunidade; e visa chegar à superação apontada pelo grupo de educadores. É um questionamento que, ao mesmo tempo, descreve, analisa e propõe acerca do problema: “Procura responder, mesmo que parcialmente, questões existenciais, utilizando os recortes do conhecimento universal, gerando, portanto, conteúdos” (EQUIPE PEDAGÓGICA, 1998).

Passava-se, então, para a elaboração da rede temática5. Mas o que é uma rede temática? Qual o seu papel na organização de uma programação? Qual o seu significado? O depoimento da professora Roseli observa alguns aspectos da organização da rede, bem como analisa o seu significado: A rede ela tentava organizar “[...] temas que

5 Não é objetivo deste trabalho detalhar esse processo, a elaboração da rede temática.

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vinham das falas, [...] da realidade da comunidade, [...] ligando o micro ao meso e ao macro” (Professora Roseli).

Os elementos representam na rede temática organizações, instituições, equipamentos de uso coletivo que articulam a representação gráfica da rede temática. São aspectos coletivos, questões físico-ambientais, questões socioculturais, políticas e econômicas. Os elementos, presentes nas falas da comunidade ou dos alunos, abordam, na maioria das vezes, questões da microestrutura, da comunidade, do local. Surgem também, na visão dos educadores, quando analisam as falas, podendo ter uma dimensão micro, mas de suas análises surgem principalmente os elementos da organização meso e macro da rede6.

Os professores analisaram as dificuldades de trabalhar a elaboração da rede quando os elementos que organizam a vida da comunidade, ou abordados pelos professores, são tomados como fixos. Alguns dos elementos são uma constante em diferentes redes, porém, o conhecimento e a criatividade do grupo é que fazem com que o processo não se cristalize. Sobre a dificuldade na mudança dos elementos na composição da rede temática, houve avanços na caminhada construída pelos coletivos, quando: “a modificação dentro do processo coletivo ela tem que ir amadurecendo” (Professora Roseli). Mesmo considerando as dificuldades, a rede temática foi sendo incorporada e utilizada como orientação do processo pedagógico. Na construção de programações: “[...] no momento em que volto para a rede, vejo [...]. O que já trabalhei e que eu ainda preciso trabalhar” (Professora Cledi).

O diálogo que a rede temática constrói de forma relacional contemplando movimentos da realidade

6 São as diferentes escalas do real: micro – a realidade local vivenciada; meso – o contesto maior de inserção do local – o Estado, o país; macro – contextos globais, modelos sociais, políticos, econômicos...

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desencadeia o processo pedagógico entre as áreas e diálogos na construção de planejamentos dialógicos da área de História, como nas demais áreas7, buscando conteúdos que contextualizam, analisam, explicam e aprofundam o tema. A rede temática é: “Uma síntese da questão da interdisciplinaridade, da questão da escolha do conteúdo. E realmente ela te dá uma base para você se situar e saber por onde andar” (Professora Evelin).

O depoimento da professora aponta a rede temática como um mundo de diferentes relações que aparecem nas falas de forma explícita ou implícita. As relações na rede temática não são aleatórias, são construídas a partir do Tema Gerador e da visão dos educadores orientadas pelos contratemas.

A rede funciona como mapa, para o professor se situar num movimento que inicia, tem meio, fim e retorna à realidade. O conteúdo a ser trabalhado torna-se significativo por organizar o pensamento em função do problema, num movimento dialético. Na construção da rede temática, estabelecem-se relações que partem da fala e da dimensão local para outras dimensões, que servirão como trajetos de orientação. E ainda, para a relação entre diferentes conteúdos e áreas do conhecimento, ou para aprofundamentos necessários que a fala demanda.

A interdisciplinaridade no projeto de Reorientação Curricular, de acordo com Torres, O’Cadiz e Wong (2003, p. 117), “[...] refere-se ao conceito de que o currículo não deve dividir o conhecimento em disciplinas separadas, mas que todo conhecimento está inter-relacionado”. Ou seja, uma área isolada não consegue explicar o problema do Tema Gerador.

7 Todas as áreas de conhecimento ou disciplinas passaram por processos de construção de programações a partir do Tema Gerador, da mesma forma como analisado neste trabalho para a área de História, considerando suas especificidades.

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Ao ter a rede temática construída de forma interdisciplinar, o passo seguinte, que é a organização das programações dialógicas da área de História. Mas como a área de História, bem como as demais são visualizadas, percebidas?

PROGRAMAS DIALÓGICOS DE ENSINO DE HISTÓRIA E A SELEÇÃO DE CONTEÚDOS

No trabalho com Temas Geradores para elaboração

de planejamentos dialógicos para sala de aula, não é o problema que determina os conteúdos, mas as visões de mundo da comunidade e dos educadores sobre o problema. E as programações são elaboradas a partir das falas contextualizadas e não do problema em si. São as relações construídas ou não pelos moradores do bairro, ou elaboradas pelos educadores, a partir do Tema Gerador, que inserem o local em contextos mais amplos, apontando conteúdos de área.

Sobre esta fase em que se organizam e selecionam os conhecimentos das áreas, encontramos a seguinte orientação desenvolvida no Movimento de Reorientação Curricular na cidade de São Paulo:

Ao nível da planificação curricular, na fase conhecida

como de Organização de Conhecimento 8 , os

8 O projeto Inter, como foi denominado em São Paulo, compreendia quatro fases: a primeira fase o debate e consideração sobre a participação no projeto, a segunda fase envolvia o estudo da realidade (ER) até a definição do Tema Gerador. Na terceira fase os professores organizavam o conteúdo e os métodos das suas diversas disciplinas em torno do Tema Gerador; a isto chamava-se organização do conhecimento (OC). Na quarta fase os professores criavam exercícios, atividades e projetos, através dos quais os alunos aplicavam o conhecimento – conhecida como aplicação do conhecimento (AC) (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2003, p. 139).

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354 A atualidade das ideias de Paulo Freire

professores que trabalham no currículo interdisciplinar por meio do Tema Gerador utilizam os dados e a informação do Estudo da Realidade para daí retirarem as questões geradoras para cada uma das suas áreas disciplinares, a partir das quais se determinam os conceitos e conteúdos específicos a ensinar em cada ano de aprendizagem (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2003, p. 147).

Inicialmente, para a construção de programações das

áreas/disciplinas, Silva (2004, p. 272) propõe

[...] a construção de questões geradoras de área para [...] orientar o percurso programático a ser seguido pela área, na perspectiva de, transitando pelas relações estabelecidas pela rede temática, contribuir em sua especificidade.

A questão geradora é uma pergunta que a área de

História faz, problematizando o Tema Gerador, e que orienta as escolhas de conhecimentos de história para as programações.

Outro critério usado pelos professores como referência para perceber na fala, na rede o que é pertinente para a área sócio-histórica (história e geografia) são as esferas da existência humana 9 . As esferas da existência humana auxiliam na organização das disciplinas em grandes áreas. Atuam como portas de entradas das disciplinas em relação às falas. Tais esferas foram tornadas práticas na organização das

9 Esfera produtiva em que, pelo trabalho, os homens interferem na natureza, com vistas a prover os meios de sua existência material, garantindo a produção de bens e a reprodução da espécie. Esfera simbolizadora na qual as relações produtivas e sociais são simbolizadas em nível de representação e de apreciação valorativa, no plano subjetivo visando a significação e a legitimação da realidade social e econômica vivida pelos homens. Esfera social é aquela em que os homens ao produzir seus meios de subsistência, estabelecem entre si relações funcionais e caracterizadas de poder (SEVERINO, 1994, p. 26).

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áreas e usadas como forma de dar mais visibilidade ao que cada uma trabalha. Aos poucos, esse critério foi sendo traduzido para um linguajar mais próximo de cada área. Para a dimensão social política que compreende a área de História foi construída a seguinte caracterização

[...] ao produzir seus meios de subsistência os homens estabelecem entre si, na dimensão do espaço, relações funcionais carregadas de poder. Percebe como as sociedades em seus diferentes tempos e espaços se organizam para suas necessidades no concreto. São as diferentes interações na sociedade, nas diferentes organizações sociais. Está na dimensão do contexto procurando resgatar as origens, as diferentes experiências dos problemas vividos (CHAPECÓ, 2004c).

Ao abordar o Tema Gerador, as falas apresentam-se

numa, noutra ou nas três esferas de existência. Na área da História temos as práticas sociais que

[...] são as contradições sociais, os problemas sociais, [...] que a disciplina de História vai ter que se preocupar em compreender a origem, a formação e a possibilidade [...] (Professora Mariana).

Ainda na lógica de selecionar conteúdos da área,

outro trabalho realizado na Rede Municipal de Chapecó, a exemplo de São Paulo e Porto Alegre, foi o desenvolvimento e uso dos conceitos. Foram construídos conceitos “que transitam nas diferentes áreas como: Tempo, Espaço, Sujeito” (CHAPECÓ, 2004b, p. 40). Aqueles específicos da área de História, construídos pelos professores na rede municipal de Chapecó eram: poder, Estado, política, sujeito histórico, processo, tempo, conflito e transformação.

Na organização de currículos por meio dos Temas Geradores os conceitos estão presentes com a função de

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estabelecer relações, entre os recortes de conhecimentos de cada disciplina e atuar como critério de seleção. São as respostas às questões geradoras, problematizações dirigidas às falas e ao Tema Gerador, que “determinam os conceitos e conteúdos específicos a ensinar em cada ano aprendizagem” (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2003, p. 147). O trabalho com os conceitos, nas redes de ensino que passaram pelo processo de Reorientação Curricular via Tema Gerador 10 , foram acompanhados por amplos debates e formação dos professores sobre o papel e a função dos conceitos em geral, dos conceitos de área e sua aplicação.

No caso da disciplina de História, em Chapecó, esse processo culminou com a edição do Caderno de Áreas de História elaborado pelos professores da rede, em que descrevem: “Os conceitos básicos são instrumentos de trabalho, para a análise e compreensão da realidade, permitem perceber a interligação dos fenômenos” (CHAPECÓ, 2004b, p. 39). Enfim, os conceitos atuam como ferramentas de análise, contribuindo no estabelecimento de relações e gerando necessidade de conteúdos.

Na etapa de elaboração das programações, questões geradoras, conceitos e esferas da existência humana se efetivam como balizas do processo das Áreas do Conhecimento no diálogo interdisciplinar. No entanto, todo o debate específico das áreas

[...] deve ser submetido à apreciação e avaliação final do coletivo dos educadores que sempre terá o poder decisório sobre a pertinência das abordagens específicas e das articulações conceituais interdisciplinares (SILVA, 2004, p. 274).

10 Pode-se citar, como exemplo, a produção em cadernos de áreas de Porto Alegre e São Paulo, que constam da bibliografia.

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Todos esses recursos utilizados na problematização das falas, questionamentos, perguntas-análise geram respostas, indicam conhecimentos em torno do problema – os conteúdos. O quadro a seguir é um exemplo de problematização de fala apresentando tópicos do conhecimento da área de História. Quadro 5 – Problematização de falas realizada por professores do terceiro ciclo

Fala Problematização Tópico do conhecimento

Meu bairro falta dinheiro, porque existem muitas pessoas desempregadas e sem dinheiro as coisas ficam difíceis, não tem o que comer vestir, se divertir.

– O que é renda? – De onde vem a renda? – O que gera o desemprego? – O modelo sócio econômico é o único responsável pelo desemprego?

– Modelo de sociedade capitalista. – Políticas de geração de emprego. – Políticas compensatórias.

Fonte: Planejamento do terceiro ciclo da EBM Zélia Roque de Lima Munzi, 2004.

Quando a seleção de conhecimentos, conteúdos da

área de História são elaboradas a partir dos Temas Geradores, da realidade e inseridas em contextos mais amplos, relacionam o presente ao passado, passando a se constituir como possibilidade e não determinação. São conhecimentos que, transitando em diferentes tempos e espaços, buscam fundamentações para contribuir na formação de um aluno crítico, atuante no seu dia a dia, que relaciona o conhecimento de sala de aula com necessidades do cotidiano.

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358 A atualidade das ideias de Paulo Freire

CONSIDERAÇÕES FINAIS A questão central deste estudo foi a verificação de

limites e possibilidades do uso do Tema Gerador no ensino de História, para elaboração de programações e conteúdos.

Inicialmente os depoimentos desvelaram uma área em movimento através das pesquisas de campo. Outra face desta mobilização foi o envolvimento de pais, educadores e alunos em diferentes etapas de construção do Tema Gerador. O Tema Gerador desestabilizou a organização da escola, mas mostrou o quanto a comunidade é capaz de retribuir quando envolvida nos processos de educação escolar. A comunidade demonstrou um comportamento acolhedor durante as visitas. Os professores destacaram a oportunidade de conhecer a realidade de seus alunos, entender comportamentos. Enfim, como forma de inserção do educador na comunidade estreitando laços de construção de responsabilidade das partes.

O Tema Gerador, ao orientar a seleção dos conhecimentos de história, constrói mediações entre sujeitos e saberes, tempos, sociedades, organizações sócio-políticas, econômicas e culturais com o objetivo de fundamentar entendimentos. É nessa complexidade que se elaboram programações formadas de conteúdos que jamais serão mínimos, pré-requisitos ou descontextualizados. Os conteúdos de história serão nesta perspectiva, “no mínimo úteis, algo que você vai usar para a tua vida” (Professora Evelin).

O trabalho da área de História, aos poucos, passa a fazer sentido por estar a serviço de sujeitos e de mudanças para o homem e sua vida cotidiana, que fora esquecido pela disciplina em favor dos heróis. É uma história que desvela o passado, que denuncia e constrói possibilidades. É uma história revisitada por todos, uma vez que o trabalho é

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interdisciplinar, ora como contexto, ora como fundamentação ou possibilidade.

Os relatos definiram a seleção de conteúdos “a partir da visão de mundo que o aluno tem” (Professora Vanda). Enfatizaram o papel da rede temática na construção de programações. Por fim, trouxeram outros elementos – conceitos de área, questões geradoras de área e a caracterização das práticas sócio-históricas – como critérios que organizam e orientam a área de História na seleção de conteúdos específicos.

A interdisciplinaridade construída pelo Tema Gerador aponta para diálogos entre História e Geografia. Estas disciplinas trabalharam organizadas em uma grande área – a área sócio-histórica. Foi por meio do processo interdisciplinar que os professores conseguiram avaliar as lacunas de suas respectivas disciplinas, fato demonstrado na preocupação em dominarem os conhecimentos e práticas da área de História.

Com base nos aspectos destacados pelos professores, esse estudo é uma contribuição para quem deseja desenvolver trabalhos da área de História a partir da realidade. Os conteúdos prescritos, o uso exclusivo do livro didático, foram aos poucos sendo superados na medida em que os professores de História perceberam não mais a possibilidade, mas a concretização de planejamentos dialógicos em que todo recurso, fonte, metodologia ou procedimento serão usados de acordo com as demandas que o Tema Gerador compreende.

Uma dificuldade percebida no desenvolvimento do estudo, senão a dificuldade maior, foi a tentativa de visualizar a área de História separada do todo. Mas, em função do trabalho interdisciplinar, do trabalho coletivo e das relações exigidas pelo Tema Gerador, essa dificuldade contribuiu para a superação da fragmentação no trabalho desenvolvido, e construiu um diálogo com o todo. Diálogo

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360 A atualidade das ideias de Paulo Freire

limitado, pouco crítico pela inexperiência de lidar com depoimentos, pesquisa e produção a partir dessa, mas diálogos que podem ser reconstruídos.

O trabalho de Reorientação Curricular não foi aceito passivamente. Foi considerado difícil pelos professores da área de História pelo volume de mudanças, pelas deficiências da formação acadêmica e falta de domínio de alguns conhecimentos. Em seus depoimentos, lançaram como desafios: a capacidade de ser investigador; o domínio de área; o trabalho coletivo; a sistematização de programações; ser educador popular e trabalhar educação popular; a superação da reprovação de fato; trabalhar a resistência; um trabalho em permanente reconstrução, entre outros. Foram estes mesmos desafios que colocaram os professores de História no movimento de construção de programas dialógicos da área, e em movimento para perceber e buscar a superação dos limites. REFERÊNCIAS

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O tema gerador... 361

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Anexo A – Rede temática

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O tema gerador... 365

PARTE V – EDUCAÇÃO, ARTE E CULTURA

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I

CENTROS ARTÍSTICOS DE CULTURA POPULAR: AS INTER-RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E

CULTURA NO GOVERNO DA FRENTE POPULAR EM CHAPECÓ (1997-2004)

Marinilse Netto Neste trabalho são projetados dois campos, a

educação e a cultura. Trata-se de um estudo que tem como foco uma proposta cultural, desenvolvida no âmbito da política pública com concepções educativas. Nessa compreensão, a noção de popular ganha sentido como instrumento de consciência às massas e é projetada na metodologia histórico-crítica, que tem Paulo Freire como precursor de um movimento que propõe a educação pautada em um processo dialógico e crítico:

A concepção de liberdade [...] é a matriz que dá sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica (FREIRE, 2005, p. 59).

A área cultural desenvolvida nessa esfera tem por

pretensões conceber e disseminar o ideário político de consciência popular, proposto pela administração pública através de atividades artísticas (dança, teatro e música) desenvolvidas em diversos locais no município de Chapecó,

Mestre em Educação e doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Docente do curso de Artes Visuais - Licenciatura da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó.

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por um projeto vinculado a área cultural, os chamados Centros Artísticos de Cultura Popular (CACPs).

A criação dos CACPs teve como inspiração os Centros Populares de Cultura (CPCs), projeto desenvolvido por movimentos sociais nos anos de 1960. O CPC torna-se um movimento contra hegemônico pensado e articulado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pela União Nacional dos Estudantes (UNE), apoiados, de modo significativo, por representantes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e da vanguarda artística. A relação entre os intelectuais do ISEB no campo cultural e no desenvolvimento da concepção de “nacional popular” é assim destacada por Ortiz (2003, p. 68):

Para o ISEB os intelectuais têm [tinham] um papel fundamental na elaboração e na concretização de uma ideologia do desenvolvimento; são eles que devem explicitar o processo de tomada de consciência, e, por conseguinte, viabilizar o projeto de transformação do país.

Neste sentido, o movimento que deu origem ao

CPCs se propõe a “chegar ao povo” e construir uma unidade de pensamento político social. É no Anteprojeto do Manifesto dos CPCs que se percebe a premissa da construção de uma arte revolucionária, que tem como concepção a teoria marxista, através dos escritos de Antonio Gramsci. Essa concepção proporciona à arte cepecista característica de direção cultural e política de consciência às massas:

Ocorre que, na virada dos anos 50 para os 60, configurou-se no Brasil um debate intenso em torno da ideologia do nacionalismo, debate esse que influenciou inúmeras instituições, partidos políticos e movimentos sociais. Essa articulação se concretizou, na área da produção artístico-cultural, na constituição de uma pedagogia estética voltada,

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Centros artísticos... 369

sobretudo, para a classe média intelectualizada e na adaptação do ‘nacional-popular’. (GARCIA, 2004, p. 129).

O Manifesto do CPC propõe um “atrelamento” entre

arte e política. Como forma de compreender os conceitos que envolvem esses dois contextos – arte e cultura revolucionária –, o manifesto refuta a arte do povo e a arte popular:

A arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artista e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. A arte popular, por sua vez, se distingue desta não só pelo seu público que é constituindo pela população dos centros urbanos desenvolvidos, como também devido ao aparecimento de uma divisão de trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialista (HOLLANDA, 2004, p. 147).

A arte engajada constitui a base das ações políticas

do CPC e a linguagem artística foi usada como instrumento de aproximação, articulação e de comunicação com o povo, motivo esse que levou os artistas à criação de espaços públicos e coletivos de arte, a uma nova concepção de dramaturgia com a realização de teatro de rua, divulgação de oficinas de arte e exposições.

A criação dos CPCs e as discussões em torno do nacional popular não se davam fortuitamente. Nos anos de 1960, o Brasil passava por um forte processo industrial e, em consequência, estava sob dependência da economia

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estrangeira. O povo, em número considerável de não alfabetizados, vivia à margem da modernização e de uma elite burguesa que apoiava a política brasileira, de caráter populista, comprometida às suas demandas. A par disso, vale dizer que, no início dos anos 1960, fervilhava em nosso país uma vontade de mudança em todos os níveis.

O nacional-popular, preconizado pelo Anteprojeto do Manifesto do CPC, conforme já mencionamos, defende a construção e desenvolvimento de uma arte de caráter pedagógico-político. Para os cepecistas, numa leitura reducionista de intelectual orgânico da teoria gramsciana, o intelectual artista revolucionário opta por ser povo, numa “[...] missão assumida como tal: trata-se de um dever, de um compromisso com o povo e com a justiça vindoura – a revolução nacional e popular” (HOLLANDA, 2004, p. 31).

Para os ideólogos do CPC, o popular é a fonte a partir da qual a arte popular revolucionária ‘encontra o seu eixo mestre’: “[...] o conceito do movimento dialético segundo o qual o homem aparece como o próprio autor das condições históricas de sua existência” (HOLLANDA, 2004, p. 152).

Essa noção de autoria consciente de vida (ou conscientização) constitui-se a base da ideia de ‘educação do povo’, ou do caráter educativo intrínseco à própria arte e cultura popular; conforme consta no Manifesto:

[...] nossa arte revolucionária pretende ser popular quando se identifica com a aspiração fundamental do povo, quando se une ao esforço coletivo que visa dar cumprimento ao projeto de existência do povo (HOLLANDA, 2004, p. 150).

Nos anos de 1990, o município de Chapecó rompe

com a tradição política local, elegendo para o governo um grupo partidário de filiação ao ideário de esquerda, o qual imprimiu no município uma forma própria de administração

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Centros artísticos... 371

política. Comprometida com os ideais de representatividade da classe trabalhadora, contraria uma situação de hegemonia colocada pela política desenvolvida até então. Os princípios de inclusão social, emancipação crítica e comprometimento com uma educação popular se estendem por todos os campos da administração, incluindo o campo cultural.

Foi nos anos de 1997 a 2004 que a administração pública municipal, através de um governo que defende programas ideologicamente calcados pela participação popular, elege políticos representantes da Frente Popular. Esse governo “[...] se coloca como o ‘novo’ no campo político, envolvendo rupturas em relação às práticas políticas tradicionais [...]”, imprimindo

[...] uma nova forma de administração pública, instituindo formas alternativas de relacionamento entre Estado e sociedade civil em âmbito municipal, conjugando a democracia representativa e a democracia direta (HASS; WERLANG, 2003, p. 16).

Conforme citado, a política desenvolvida pela Frente

Popular tem premissas da participação do povo na administração dos projetos e recursos públicos. Tal visão institui, na administração municipal, o programa Orçamento Participativo (OP) 1 , que tem como principal campo articulador, o diálogo com a sociedade civil. Deste modo, criam-se, como modo inovador, espaços diretos de participação e decisão do povo nos destinos da cidade. Em relação a essa forma própria de administração e as expectativas geradas na sociedade civil, Hass e Werlang

1 Orçamento Participativo (OP) é uma prática governamental reconhecida mundialmente, criada no intuito de submeter o destino de parte dos recursos públicos à consulta pública, através de reuniões comunitárias abertas ao público, onde primeiramente são coletadas sugestões, depois votadas às prioridades, e encaminhadas ao governo para que ele atenda a solicitação através de investimento público.

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(2003, p. 22), analisando o comportamento político dos chapecoenses, afirmam:

Geralmente, quando questionados a respeito dos aspectos positivos da administração municipal, os eleitores estabeleceram uma correlação entre os aspectos positivos da administração em suas áreas de atuação e as prioridades do próximo governo. Destacam-se preferencialmente os investimentos na área da saúde, educação, empregos, estradas, agricultura, com poucas alterações nesta ordem.

Do modo como foi exposto, mostrou-se que até o

ano de 1996 a política local tinha a hegemonia de grupos e partidos políticos ditos ‘conservadores’. Com a ascensão de partidos políticos de esquerda e de centro esquerda, apoiados pelos movimentos sociais2 nas eleições municipais em 1996, esse cenário é revertido, causando uma ruptura na hegemonia política local.

A partir daí, tem-se no município uma gestão administrativa pautada no ideário de um novo modelo de sociedade. Nesse novo processo, a educação, tomada como possibilidade de emancipação e de construção de consciência crítica, torna-se um elemento central, sendo objeto de uma reforma significativa.

2 “Igrejas, principalmente a igreja católica liderada pelo Bispo D. José Gomes, os sindicatos ligados à CUT – Central Única dos Trabalhadores, os movimentos populares, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, o Movimento das Mulheres Agricultoras – MMA, a União Brasileira das Mulheres – UBM, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Organizações Estudantis, UMES – União Municipal dos Estudantes, DCE – Diretório Central dos Estudantes da UNOESC, agora UNOCHAPECÓ, o movimento popular das pessoas com necessidades especiais, do qual destacam-se a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, FCD - Chapecó/SC, entre outras” (SANTOS, 2006, p. 27).

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Centros artísticos... 373

A Educação Popular na Rede Municipal de educação de Chapecó caracteriza-se como uma opção político-filosófica e pedagógica, que vem rompendo com o modelo excludente de educação e propõe a construção de uma nova práxis educacional comprometida com a transformação da realidade sociocultural e econômica vigente (CHAPECÓ, 2001a, p. 3).

A Secretaria Municipal de Educação e Cultura adota

como proposta pedagógica a Educação Popular e a organização curricular em ciclos de formação, conforme Lei Complementar n. 48, de 22 de dezembro de 1997. A substituição do sistema seriado pelo sistema de ciclos não foi, contudo, apenas uma questão organizativa ou metodológica. Como se pode notar no documento citado acima, a mudança visava, entre outros aspectos, a superação dos processos seletivos e excludentes que, historicamente, caracterizam a educação brasileira e a proposta educacional local. Em consonância com esse novo princípio organizativo, a Secretaria de Educação adotou também uma nova orientação teórico-metodológica na definição dos currículos de ensino: a pedagogia de Paulo Freire passou a ser a principal referência, e os temas geradores tornam-se o princípio básico de sua organização.

Esta pedagogia se concretiza com a Lei Complementar n. 48, de 22 de dezembro de 1997, e a partir daí o processo de construção nas escolas municipais inicia-se num ritmo acelerado, pois era preciso desconstruir uma prática curricular histórica e fixar as bases para a proposta que estava por vir:

Essa opção revela o compromisso político-pedagógico com a superação das contradições sociais opressoras, impostas pelo sistema capitalista e pela política neoliberal; explicita uma educação voltada às classes populares, que busca um processo educativo que considere as diferentes

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possibilidades de aprender e de ensinar de cada um, respeitando as diferenças que constituem os seres e propõe ações pedagógicas que respeitem os diferentes tempos do desenvolvimento humano em suas formas: cognitivo, social, afetivo, psicológico, corporal (SANTOS, 2006, p. 27).

Essa ideia da arte como espaço de ‘conscientização

do povo’ apresenta nexos com a noção de conscientização difundida pelo educador Paulo Freire, nos movimentos de Educação Popular 3 como proposta de mobilização e conscientização política, social e cultural às massas, desenvolvido no início dos anos 1960:

A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se desvela a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por essa mesma razão, a conscientização não consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição falsamente intelectual [...] por isso mesmo a conscientização é um compromisso histórico (FREIRE, 2005, p. 30).

Para o autor citado, não existe uma educação neutra

no sentido de ser completamente desvinculada dos fatores ideológicos pertencentes a uma classe. Nesse sentido, Freire converge com o pensamento gramsciano, para quem a

3 O movimento começou, em 1962, na região Nordeste, onde cerca de trezentos trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. Com o apoio do governo federal, o método foi desenvolvido durante o período de junho de 1963 e março de 1964, com cursos de capacitação para professores dos estados da Guanabara (Rio de janeiro), Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul. O plano para 1964 previa a instalação de vinte mil Círculos de Cultura capazes de formar, no mesmo ano, por volta de dois milhões de alunos. Estava prevista para iniciar na zona urbana e depois alcançar a zona rural. O movimento teve seu fim durante golpe de 1964.

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Centros artísticos... 375

educação representa um instrumento a hegemonia é reconhecida como um processo, um meio para a elaboração de uma concepção de mundo.

Etimologicamente grega, a palavra hegemonia quer dizer: guiar, conduzir, mandar, governar, ser chefe. O substantivo etimológico significa a ação de ir à frente, ser guia, condutor. O conceito de hegemonia é também referência para Gramsci discutir a questão da cultura popular e o nacionalismo. Para o pensador italiano, o conceito de hegemonia pressupõe correlação ou oposição de forças, operando em dois níveis: direção cultural e direção política (CHAUÍ, 1984, p. 18).

Discutindo o conceito de hegemonia, Jesus (1989, p. 18) considera que se esta “é a capacidade de direção cultural ou ideológica de uma classe sobre o conjunto da sociedade”, é preciso considerar que é também uma

[...] relação de dominação entre dirigentes e dirigidos, responsáveis pela formação de um grupo orgânico e coeso em torno de princípios e necessidade defendidos pela classe dominante.

Sendo direção política-ideológica do povo,

hegemonia não se confunde, contudo, com governo (como instituição política, uso de força), nem com ideologia (sistema abstrato e invertido de representações, normas, valores dominantes): “Não é forma de controle sociopolítico nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade” (CHAUÍ, 1987, p. 18-19).

Assim, a energia que move a substituição de uma hegemonia por outra está vinculada a fontes econômicas, políticas e culturais, amarradas a um processo pedagógico. De acordo com Gramsci (1989, p. 56),

[...] é neste sentido que as relações hegemônicas são pedagógicas, e como a realização de uma tarefa

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pedagógica implica a compreensão das contradições para transformá-las em concepção de mundo unitária e coerente, as relações pedagógicas são igualmente hegemônicas.

A hegemonia precisa de seus elementos diretivos

tanto para sua implantação como para sua manutenção: poder-direção ou dominação-consenso. Hegemonia não é ausência de poder ou de autoridade, ao contrário, os elementos de dominação coexistem dialeticamente com os elementos de direção, como polos de uma só relação. Tomando-se como ponto de partida uma classe dominada, esta usará de meios pedagógicos (elementos diretivos) para desmascarar e vencer as contradições; uma vez dominadora, ela procurará ocultar as contradições que ameaçam a sua hegemonia, tentando assegurar pela construção das consciências, as relações de dominação:

Isto significa, por um lado, que a hegemonia determina o modo como os sujeitos sociais se representam a si mesmos e uns aos outros, o modo como interpretam os acontecimentos, o espaço, o tempo, o trabalho e o lazer, a dominação e a liberdade, o possível e o impossível, o necessário e o contingente, as instituições sociais e políticas, a cultura em sentido restrito, numa experiência vivida ou mesmo refletida (CHAUÍ, 2004, p. 90).

O trabalho educativo desenvolve-se tanto na

hegemonia, quanto na contra-hegemonia, visando às relações sociais que incluem o homem como sujeito que pode modificar ou manter certa estrutura social. Nessa direção, Gramsci (2004, p. 43) compreende o homem como sujeito histórico, concreto,

[...] vivo em uma série de relações ativas processuais, a humanidade que se reflete em cada individualidade é

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composta por diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza.

O homem produz e transforma bens em nível de estrutura ou de superestrutura na relação com os demais homens e com a natureza; nessa relação o processo educativo tem a função de ‘moldar’ o consenso, a energia de uma ação consciente. Em sua dupla dimensão, individual e social, o homem modifica e renova o mundo pela educação ao mesmo tempo em que se renova e se modifica em busca da hegemonia (GRAMSCI, 2004, p. 43).

No segundo mandato da Frente Popular, nos anos

de 2000 a 2004, a área da cultura assume a importância de associar-se às orientações políticas de cunho democrático-popular, tal escolha encontra-se mais fortemente assimilada pelo projeto dos Centros Artísticos de Cultura Popular (CACPs), objeto dessa pesquisa.

Conforme apresentado, a administração da Frente Popular constrói, no município de Chapecó, uma experiência de gestão orientada a partir dos princípios de emancipação e inclusão social. Princípios estes vinculados ao pressuposto de que a participação direta do povo, compreendido como sujeito social coletivo organizado, deve ser o principal meio a partir do qual as políticas públicas podem ser definidas, implementadas e controladas.

Na organização dessa pesquisa seguiu-se um percurso de investigação compreendendo: a) revisão de literatura que trata das relações entre educação, cultura, movimentos e projetos populares; b) coleta, seleção e classificação dos documentos relacionados com a área da cultura; e c) análise dos documentos selecionados mediante a técnica de Análise de Conteúdo (AC).

Nas etapas de seleção, os documentos foram classificados de acordo com sua pertinência aos objetivos da

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pesquisa. Desse modo, definiu-se por documentos “centrais”, que constituem efetivamente o corpus de análise e documentos “complementares”, que não foram submetidos diretamente à análise, mas constituem-se importante apoio, pois permitem esclarecer informações necessárias ao entendimento e análise dos documentos “centrais”. É consenso na literatura que a AC se consolidou como um método de tratamento de dados, tendo como referência o desenvolvimento e o emprego de técnicas sistemáticas de análise de dados (FRANCO, 2005; CHIZZOTTI, 2008; GIL, 2011).

Empregada originalmente em pesquisas sobre o conteúdo de jornais, a AC foi utilizada, primeiramente, em investigações sobre opinião pública e propaganda, posteriormente, passou também a ser usada para identificar características do conteúdo de obras literárias, didáticas e científicas, em campos como a sociologia e a psicologia. É hoje uma das técnicas mais comuns nas investigações empíricas desenvolvidas nas áreas das ciências humanas e sociais (FRANCO, 2005).

Aplicada como instrumento metodológico em discursos diversificados, a AC consiste no tratamento de mensagens ou falas significativas como forma de reflexão qualitativa do conteúdo. Segundo Chizzotti (2008, p. 113), por suas características, a AC aproxima-se da linguística, da semiótica, da hermenêutica e é usada “a fim de se extrair significados expressos ou latentes de um texto”.

A característica qualitativa se dá pela análise das categorias como reflexão dos núcleos de sentidos ou significados latentes. Para o pesquisador que utiliza a análise de conteúdo ‘os vestígios’ são decodificados através de dados e fenômenos obtidos na investigação, descritos e interpretados, tendo a inferência como mediação.

Na primeira etapa deu-se a coleta de documentos para a sistematização e seleção do corpus de análise da

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Centros artísticos... 379

pesquisa. Nessa etapa, percebemos uma enorme escassez de registros documentais dos projetos ou ações projetadas/desenvolvidas na área da cultura, de uma forma geral, em todo o acervo (memória) da administração pública local. Os documentos mais recentes e que demonstram as atividades desenvolvidas pelo setor cultural a partir de 1997 foram encontrados em arquivos da Secretaria de Educação.

A seleção dos documentos está assim dividida: a) Principais: referem-se ao projeto CACPs, projeções, ações e atividades desenvolvidas de 1999 até o ano de 2004; b) Complementares: documentos que indiretamente trazem informações ou contribuições à compreensão de ações culturais no município, nas quais se evidencia a criação dos CACPs apresentados nos quadros 1 e 2. Quadro 1 – Documentos selecionados para análise Nº TÍTULO DO DOCUMENTO/ORIGEM DATA

01 Lei Orgânica do Município – referente à organização da esfera cultural na cidade de Chapecó

1990

02 Proposta Político-Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação/Departamento de Educação de Chapecó

1992

03 Plano Decenal de educação para Todos - Secretaria da Educação e Cultura

1993

04 Plano Setorial Secretaria da Educação e Cultura 1993

05 Relatórios e planejamentos-Cultura/Escola de Artes/Departamento do Patrimônio Histórico e Memória/Secretaria da Educação e Cultura

1994

06 Proposta Político-Pedagógica - Departamento Patrimônio Histórico, Memória e Cultura - Secretaria da Educação e Cultura

1996

07 Plano de Governo para a Área da Cultura - Administração 1997/2000

1996

08

Secretaria da Educação e Cultura - Lei Orgânica do Município - Emenda LOM n. 3/97, Lei Complementar n. 48 de dezembro de 1997 e parecer 010/98 e Lei Complementar n. 67 de 03 de dezembro de 1998, que organiza a educação municipal em ciclos - Gabinete do Prefeito

1997

09 Movimento de Reorganização Curricular s.d.

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380 A atualidade das ideias de Paulo Freire

10 Projeto Político-Pedagógico - Educação Popular - Secretaria de Educação e Cultura

1997

11 Relatório das atividades realizadas pelo Departamento da Cultura - Departamento da Cultura

1997

12 Relatório das ações realizadas pelo Departamento de Juventude e Lazer no período de janeiro a julho de 1998 - Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer

1998

13 Propostas para Cultura, Esporte e Lazer Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer

1999

14 Plano de Governo dos candidatos à administração pública municipal (2º mandato) - Frente Popular/PT/PCdoB/PSB/PAN

2000

15 Plano de Ação da cultura - Departamento da Cultura 2001

16 Mensagem nº 1740/02 - propõe o projeto de lei complementar em 20 de maio de 2002 - criação da Fundação Cultural no município - Gabinete do Prefeito

2002

17 Plano Plurianual 2002/2005 - Secretaria de Educação e Cultura

2002

18 Agenda Cultural 2002 - Departamento da Cultura 2002

19 Relatório das atividades desenvolvidas pelos Centros Artísticos de Cultura Popular - Departamento da Cultura

2002

20 Projeto de Lei que cria o Conselho de Cultura no município - Gabinete do Prefeito

2003

21 Relatório das atividades desenvolvidas pelos Centros Artísticos de Cultura Popular - Fundação Cultural de Chapecó

2003

22 Relatório das atividades/2004 - Fundação Cultural de Chapecó

2004

Fonte: Material coletado pela autora. Após esse levantamento selecionou-se àqueles

documentos considerados centrais para os objetivos da pesquisa, quais sejam, àqueles diretamente relacionados ao projeto objeto de nossa análise, os Centros Artísticos de Cultura Popular.

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Quadro 2 – Documentos constituintes do corpus de análise Nº DOCUMENTO ORIGEM DATA

01 Propostas para Cultura, Esporte e Lazer

Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer

1999

02

Plano de Governo dos candidatos à administração pública municipal (2º mandato)

Frente Popular/PT/PCdoB/PSB/PAN

2000

03 Plano e Ação da Cultura 2001-2004

Departamento de Cultura 2001

04 Plano Plurianual 2002-2005

Secretaria da Educação e Cultura

2002

05

Relatório das Atividades desenvolvidas no período de março a dezembro de 2002

Coordenação dos Centros Artísticos de Cultura Popular – Departamento de Cultura

2002

06

Relatório 2003 - Centros Artísticos de Cultura Popular - Coordenação e professores dos Centros Artísticos de Cultura Popular

Departamento de Cultura 2003

07 Relatório das atividades/2004

Fundação Cultural de Chapecó 2004

Fonte: Material coletado pela autora. Como já mencionado, a análise de conteúdo propõe

a interpretação das representações ou sinais de linguagem (conteúdo manifesto/latente), embutidas nas ações como projeções ideológicas. Os resultados da AC devem refletir os objetivos da pesquisa e ter como apoio indícios manifestos e capturáveis no âmbito das mensagens emitidas.

O Projeto dos CACPs foi implementado e desenvolvido no período de 2000 a 2004, na área cultural do município de Chapecó, estado de Santa Catarina. Evidencia-

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382 A atualidade das ideias de Paulo Freire

se, em especial, a centralidade deste na política cultural da Frente Popular, suas formas de organização e de diálogo com a sociedade. A fidelidade ao ideário marxista e as concepções de consciência às massas via cultura indica pontos de convergência entre o projeto aqui citado (os CACPs), e aquele desenvolvido nos anos de 1960, sob a coordenação da UNE e de setores da esquerda brasileira: os CPCs. A partir dessa contextualização, busca-se discutir as convergências analisando, então, as concepções orientadoras do Projeto dos Centros Artísticos de Cultura Popular.

As análises da concepção de arte e cultura e da concepção de educador popular, orientadoras dos CACPs, tiveram como base documentos produzidos no âmbito da administração municipal – documentos do orçamento participativo, produzidos nas áreas de educação e, mais especificamente, na área de cultura.

Tem-se como objetivo apreender as concepções que o orientavam analisando as relações entre estas e as práticas culturais realizadas, identificando, ainda, o caráter educativo das mesmas. Parte-se do pressuposto, apoiando-se na perspectiva gramsciana, que os processos culturais são sempre intencionais, portanto, politicamente orientados e, nesse sentido, podem contribuir para manter ou transformar as relações sociais vigentes. Dessa perspectiva, analisa-se o projeto Centros Artísticos Cultura Popular – “carro chefe” do governo popular, na cidade de Chapecó –, interrogando sobre a orientação político-pedagógica do mesmo, seu delineamento como política cultural de caráter popular e suas filiações político-ideológicas com o movimento cultural dos Centros Populares de Cultura, desenvolvido no Brasil nos anos de 1960.

Nesse estudo, procura-se apresentar também dados sobre o processo de construção, implementação e desenvolvimento dos CACPs busca-se apreender as contradições que o moveram no município de Chapecó. Os

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A pesquisa-ação como estratégia... 383

CACPs, organizados a partir de atividades culturais diversificadas, tais como dança, teatro e música, desde sua origem até o fim das atividades (1999-2004), caracterizaram-se como principal programa público na área de cultura durante a administração popular1.

Até a criação e implementação dos CACPs em diversos pontos da cidade, a difusão artística cultura era centrada nas atividades desenvolvidas pela Escola de Artes. Criada em 1º de maio de 1979, pela Lei Municipal n. 052/79, denominada inicialmente de “Escola de Belas Artes”, teve sua origem vinculada à efervescência cultural vivida pelas elites nas décadas de 1970 e 1980, momento em que eram promovidos na cidade, grandes eventos artístico-culturais; como salão de artes plásticas, recitais, globais de arte, intercâmbios com a capital do estado, mediados pelo Conselho Estadual de Cultura. Na lei de sua criação, são definidos os objetivos da escola, os quais dão ênfase à formação de ‘produtores’ e ‘apreciadores’ das artes. Os alunos que a frequentam dispõem de recursos para compra de instrumentos de música, material didático e roupas apropriadas ao exercício das atividades, além de pagamento de mensalidades, compondo assim um público específico, ou seja, as classes média e alta.

No que tange à estrutura cultural da cidade, até 1997, portanto, antes do 1º Mandato da Frente Popular, a cultura ficava vinculada, como departamento específico, à Secretaria Municipal de Educação. Quando a Frente Popular assume, cria a Secretaria da Juventude, Esporte, Cultura e Lazer,

1 O Governo Popular, articulado a partir da “Frente Popular”, teve como força majoritária o Partido dos Trabalhadores; além deste, participaram o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Popular Socialista (PPS) e o Partido dos Aposentados da Nação (PAN). Essa frente exerceu o governo municipal por dois mandatos: o primeiro, entre 1997-2000, e o segundo entre 2001-2004, quando foi substituída por uma coligação de direita, liderada pelo PFL e PSDB.

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384 A atualidade das ideias de Paulo Freire

sendo este departamento transformado em uma diretoria dentro dessa nova Secretaria, ali permanecendo até o início do 2º mandato (2001-2004).

Em função da adoção da proposta de educação popular e dos ciclos pela Secretaria de Educação, a cultura volta a ser um departamento desta Secretaria (posto que já se gestava também o projeto dos CACPs), orientada por princípios similares aqueles da educação. A área cultural permanece vinculada a área da educação até 2003, ano de criação da Fundação Municipal de Cultura.

Como já mencionado, a administração da Frente Popular instituiu mudanças na área da educação já nos primeiros meses após ter assumido a política local, porém, na área cultural foi preciso ainda dois anos para que a proposta popular fosse efetivada, fato esse verificado no Documento “Propostas para Cultura, Esporte e Lazer do ano de 1999”, onde se faz menção ao projeto cultural chamado “Arte Popular”, com os seguintes objetivos:

Difundir, incentivar e ampliar o fazer artístico-cultural, valorizar e resgatar a cultura local. Implantar, construir, em locais existentes nas localidades centros populares de artes, em 10 locais de Chapecó, destinados a oferecer oficinas, aulas de musicalização, dança, teatro, artes plásticas e outras (CHAPECÓ, 1999, [s.p.]).

O projeto “Arte Popular”, criado a partir da ideia da

descentralização da cultura e dos preceitos dos movimentos de educação e cultura popular, dará, posteriormente, origem à criação dos Centros Artísticos de Cultura Popular.

No Plano de Governo dos candidatos à Administração Pública Municipal (2000), onde se apresentam indicadores do primeiro mandato e se traçam orientações e proposições para o segundo mandato da Frente Popular (2001-2004), é possível verificar que, no final da primeira gestão, já estavam em funcionamento diversas

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A pesquisa-ação como estratégia... 385

atividades, fazendo-se menção ao número de alunos que as frequentavam, ainda no âmbito do Projeto Arte Popular. Desenhavam-se desde então, as orientações que se presentificariam posteriormente, de forma mais sistematizada, no projeto dos CACPs.

Como mencionado, o projeto Arte Popular dá o empurrão inicial para a proposta do desenvolvimento, na área cultural, de atividades de cunho popular, originando então os CACPs e durante os anos de 2001 a 2004, na segunda gestão do governo popular ocorre sua implementação e desenvolvimento. Conforme consta no Plano de Governo dos Candidatos à Administração Pública Municipal, tinha como objetivo: “Ampliar os Centros Artísticos de Cultura Popular nas diversas regiões município, que hoje atendem gratuitamente três mil alunos”.

Nos anos seguintes, pode-se verificar no Documento “Plano de Ação para a Cultura 2001/2004”, datado de 14 de maio de 2001 – o projeto CACPs figura como proposta central na área cultural do município, pois é apontado como prioridade nos investimentos públicos pela comunidade, definida através do orçamento participativo, conforme registro: “Ampliação dos Centros Artísticos de cultura popular (conforme demanda reivindicada pelo orçamento participativo)” (CHAPECÓ, 2001b, [s.p.]).

O documento, acima mencionado, articula-se a partir de três seções orientadoras, conforme segue:

• Sonho de Mundo e Sociedade: discute-se aqui questões relacionadas à preservação da cultura e a produção artística como valorização e resgate das manifestações da cultura local;

• Sonho de Política Cultural: delineia-se e aponta-se para a construção de uma política cultural com uma concepção libertadora, pautada no diálogo entre as diferentes culturas e entre diferentes sujeitos;

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386 A atualidade das ideias de Paulo Freire

• Desafios: são estruturados tendo como base quatro grandes eixos: 1) Resgate, organização, preservação e socialização da memória histórica; 2) Ampliação do acesso da população ao conhecimento, formação e produção artística/cultural; 3) Criar, fomentar e/ou apoiar empreendimentos culturais; e 4) Criação da Fundação Municipal de Cultura.

Em continuidade ao projeto cultural delineado no

“Plano Plurianual 2002-2005”, evidencia-se um conjunto de ações voltadas à área cultural do município, fortalecendo-se a ideia dos Centros Artísticos como proposta de inclusão social e como programa de governo. Viabiliza-se a construção dos espaços físicos destinados às atividades e à criação da Fundação Municipal de Cultura, como garantia, aos chapecoenses, de acesso à política cultural. Conforme o documento já citado:

O município possui uma estrutura de serviços públicos na área cultural constituída pela Escola de artes, biblioteca Pública Municipal, 19 Centros Artísticos de Cultura Popular que atendem mais de 5.000 pessoas em atividades educativas nas áreas de música, dança, artes plásticas e artes cênicas. O Departamento da Cultura organiza e desenvolve eventos culturais que envolvem a participação de milhares de pessoas como o carnaval popular, teatro da paixão, dia do desafio, mostras culturais, mateadas, etc. O Departamento da Cultura resgata, organiza e preserva a memória histórica através dos museus, murais e monumentos (CHAPECÓ, [s.d., s.p.]).

Cabe ainda ressaltar que, nesse documento, são

firmadas as diretrizes e ações voltadas a uma política cultural de âmbito popular, conforme segue:

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A pesquisa-ação como estratégia... 387

Aprofundar a gestão democrática da política cultural incluindo o Orçamento Participativo, o Conselho Municipal de Cultura e os Conselhos da Escola de Artes e dos Centros Artísticos de Cultura Popular e a participação popular em todo o processo cultural (CHAPECÓ, [s.d., s.p.]).

O Projeto CACPs, como já salientado, vinha sendo

desenvolvido no âmbito do Projeto “Arte Popular”. Contudo, como o Projeto não dispunha de uma coordenação, funcionou, nesse período, com pouca visibilidade; sem um suporte que o impulsionasse e sistematizasse suas diretrizes e atividades. Havia a carência de uma sustentação teórica mais sólida, que possibilitasse uma compreensão aprofundada da cultura, no âmbito de uma administração popular.

Como reflexo desse processo, muitas improvisações ocorreram, inclusive, no que se refere à contratação de professores para as atividades, a maioria sem qualificação técnica-formal, sobretudo, muitos deles, pouco partilhando os preceitos político ideológicos da então administração popular. Sem essa vinculação maior com o projeto político que estava na base dos CACPs, muitos professores desenvolviam suas atividades de acordo com sua ‘própria vontade e direção’, fato esse agravado ainda pela ausência, no departamento da cultura e no projeto dos CACPs, de uma unidade de pensamento, no que se referia a uma proposta popular na área. Como consequência desse processo, muitas atividades artísticas desenvolvidas voltavam-se mais para o aspecto de entretenimento.

As atividades desenvolvidas pelos CACPs aparecem mais detalhadas, nos documentos analisados, registrados a partir de 2002. No Relatório das Atividades Desenvolvidas no Período de março a dezembro de 2002, por exemplo, aparece a indicação de atividades de planejamento nos Centros Artísticos, conforme é mencionado: “Planejar em conjunto

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388 A atualidade das ideias de Paulo Freire

com a equipe de professores, as ações educativas a partir das necessidades e vivências de cada grupo, dentro das linguagens música, teatro e dança” (CHAPECÓ, 2002). Estabelecer o planejamento das atividades dos CACPs como um dos objetivos expressa as mudanças que foram ocorrendo nesse período, em especial, a introdução de uma concepção de caráter mais pedagógico, e não apenas de entretenimento, para as atividades em curso.

Vinculados, então, à Secretaria da Educação, os CACPs passam a adotar, também em sua prática, a perspectiva da educação popular, assimilada por essa Secretaria. Fundamentado no ideário de Paulo Freire e na sua concepção de conscientização pela educação, os CACPs inspiram-se, por um lado, nessas experiências educacionais e, por outro, resgataram preceitos do movimento dos CPCs, desenvolvidos nos anos de 1960, em especial a concepção do caráter transformador e revolucionário da arte.

Ancoradas nessas referências, as atividades, no âmbito dos CACPs, passam a ser mais organizadas, prevendo-se, por exemplo, espaços de reflexão e formação destinados aos educadores atuantes no Projeto.

O objetivo era que os professores 2 se tornassem agentes disseminadores de mudanças nos padrões

2 Os professores que atuavam nos CACPs eram contratados pela Secretaria da Educação, através de edital público, apresentando além de currículo com habilidade na área pretendida, um projeto apresentando as linhas gerais no desenvolvimento das atividades artísticas ou aulas. Os candidatos às vagas eram avaliados pelo currículo (horas de atividade/capacitação) e são contratados por 11 meses a contar do início do ano letivo nas escolas municipais, no mês de fevereiro. O professor é contratado em regime temporário para os meses de fevereiro a dezembro com carga horária de 8h diárias, podendo ser contratado de 20h a 40h semanais. Possuem, em sua maioria, ensino médio completo e alguns iniciando cursos em nível superior. Ainda é possível verificar que o quadro possui professores sem o nível médio completo, sendo contratados como estagiários, com carga horária de 20h semanais. Como o recrutamento se dá por edital aberto, é possível verificar também uma

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tradicionais estabelecidos pela elite chapecoense, constituindo-se, nesse sentido, como uma contra hegemonia.

As ações voltadas para os professores, conforme consta no Relatório das atividades desenvolvidas nos períodos de março a dezembro de 2002, são assim definidas:

Formar um grupo de professores com perfil indicado para um trabalho popular em arte e cultura com qualificações a seguir: comprometido com as políticas educacionais nas ações desenvolvidas para com o educando; tenha postura de educador, percebendo o aluno como um ser pensante, com vontade e sonhos; que seja desafiado e desafiante; que organize e articule a comunidade onde atua, sendo elo de ligação entre o aluno, a comunidade e cultura e que se sinta responsável pelo crescimento do CACP. Em 2003, com o trabalho de coordenação chegando ao seu primeiro ano, foi possível verificar nos CACP’s o processo de reflexão e capacitação realizado (CHAPECÓ, 2002, [s.p.]).

O Relatório dos Centros Artísticos produzido em dezembro de

2003 traz informações em relação à implementação pedagógica. Em síntese, a criação de uma coordenação específica e os encaminhamentos pedagógicos mediados pela secretaria da educação, proporcionou ao Projeto uma nova fase com organicidade nas atividades realizadas, evidenciando, ainda, comprometimento da administração com o mesmo.

A criação da Fundação Cultural, em 2003, também contribuiu para dar novo impulso aos CACPs, seja em relação à sua difusão ou descentralização para os diversos bairros da cidade. A partir disso, são estabelecidos canais diretos de diálogo com a comunidade para a definição das atividades que comporiam o projeto em cada localidade.

certa rotatividade de professores. Entretanto, há professores que desenvolvem as atividades desde a origem do projeto CACP.

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As crises internas, provocadas pelas dissonâncias de ordem política, acabaram por interferir no andamento dos projetos e, em especial, ao grupo de professores dos CACPs, com prejuízos para a continuidade dos trabalhos de formação e capacitação. Com a substituição do corpo administrativo em 2004, último ano da gestão da Frente Popular, o Projeto CACPs ganha novos contornos, conforme verificamos nos documentos referentes a este período.

Essas mudanças se refletiram, inclusive, na sistematização da documentação do Projeto; os dados referentes a 2004 encontram-se esparsos, reunidos em uma pasta-arquivo, tratando-se mais de registros espontâneos do que documentos de planejamento, diretrizes ou avaliação. Não há, nesta pasta, nenhum registro documental realizado pela coordenação que forneça dados consistentes sobre o desenvolvimento das atividades deste ano, os documentos se constituem de registros feitos pelos professores, de atividades realizadas e de expectativas futuras. Contudo, esses documentos, mesmo prejudicados, expressam os encaminhamentos dados aos CACPs, em especial, pela mudança na orientação do planejamento das atividades a serem desenvolvidas que passam, então, a serem elaborados por área, pelos professores responsáveis, evidenciando a ausência de uma orientação pedagógica orgânica e unitária. Nota-se, também, a carência de documentos que indiquem, de modo organizativo, as atividades desenvolvidas no período.

Em que pesem as contradições presentes em projetos dessa natureza, é importante registrar seu caráter de ruptura com a orientação política predominante até meados da década de 1990, para a área cultural. Até esse período, perdurava na cidade a presença de uma política chamada de “direita”, comprometida com o poder econômico local,

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priorizando os interesses privados desses setores como orientação para a administração do município.

Em 1997, com a vitória da Frente Popular, inicia-se uma série de mudanças de ordem político-social em Chapecó, tendo como principal marca a implementação do orçamento participativo, a administração popular via este como o principal instrumento para definições políticas a partir das necessidades e demandas públicas; difunde-se a ideia e a prática da decisão coletiva na distribuição dos investimentos públicos, haja vista que as plenárias públicas constituíram-se nos principais espaços de discussão e deliberação popular.

Essa nova concepção de administração expressou-se também nos âmbitos da educação e cultura, dando a estas uma nova direção: conscientização popular, dialética, inclusão social, emancipação. Essas áreas ganham destaque numa perspectiva destinada à inclusão social, trazendo para o cenário municipal, propostas de participação popular, inspiradas no ideário marxista.

Os CACPs têm origem na esfera pública municipal como um projeto descentralizador, com princípios de inclusão e sensibilização através das linguagens artísticas. Na medida em que se desenvolve, cumpre a função proposta em sua origem: tornar o campo cultural do município um campo popular, usar a arte como uma linguagem de aproximação com o povo, visando criar junto ao povo consciência crítica em relação à sua realidade, ao contexto sociopolítico, provocando a transformação social do sujeito e contexto. A arte engajada dos CACPs tem nos CPCs a inspiração de origem, pois ambas, em seu desenvolvimento, têm o objetivo de promover a possibilidade de consciência crítica e a visão de mundo ao público participante.

Os Centros Populares de Cultura também reivindicavam uma renovação cultural no contexto brasileiro da década de 1960. Almejavam produzir uma arte

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essencialmente política, tomando o povo como criador, retirando-o, portanto, de sua condição de espectador. Conforme Garcia (2004, p. 63), “[...] baseada na atuação com os grupos sociais, estava voltada para a união e formação do povo, não somente como recebedor, mas também como criador de cultura”.

Como projeto desenvolvido dentro de uma esfera pública, que tem concepções políticas de inclusão e participação social, os CACPs, diferentemente dos CPCs cujo núcleo fomentador se constituía de artistas, intelectuais e movimentos sociais, orientam suas atividades para esse fim, pois recebem respaldo teórico da Secretaria de Educação, já comprometida com a educação popular, criando assim dentro do município uma unidade de pensamento nos campos de atuação.

O projeto CACP apresenta em seus objetivos, diferentes concepções acerca da função social da arte e da cultura. Tais concepções evidenciam a dinâmica de estruturação por que passava. A arte é vista como bem público social através da garantia do “acesso da população ao conhecimento, formação e produção artística/cultural”; arte como meio para conscientização do povo “a arte na busca da consciência e do desenvolvimento popular na busca da liberdade e igualdade”; e arte como resgate da memória popular “resgatar, preservar e socializar a memória histórico-cultural do povo chapecoense” (CHAPECÓ, 2001b, [s.d.]).

Tais concepções convergem para o desenvolvimento de uma política que expressa a valorização pelo povo através da criação e desenvolvimento de espaços populares de cultura, atribuindo ao povo o poder de renovação cultural.

Dentro do Projeto CACPs, o campo cultural adquire uma função educativa, formalizada pelos centros como aulas de dança, de teatro e de música e o profissional, onde atuam professor(a) educador(a) e aluno/aluna. A arte configura-se

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como atividade não acadêmica, tem características de expressividade e liberdade de criação, visa uma “[...] cultura que motive e respalde a produção artística e a liberdade das diferentes formas de criação” (CHAPECÓ, [s.d., s.p.]).

Essa função educativa, atribuída à arte e à cultura no Projeto em análise, configura-se como proposta de conscientização popular, o que se expressa tanto nas referências às bases teóricas da educação popular, em especial as contribuições de Paulo Freire, como em sua própria sistemática de organização, criando as possibilidades de participação direta da população de cada comunidade na definição do “formato” do projeto em seu local. Nos objetivos dos CACPs, essa intenção educativa assim se expressava:

A arte na busca da consciência e do desenvolvimento popular na busca da liberdade e igualdade. Construir uma política cultural com uma concepção libertadora onde o diálogo entre as diferentes culturas seja entre sujeitos (CHAPECÓ, [s.d., s.p.]).

Ao preconizar para os CACPs essa função de

mediação na construção de uma consciência social crítica, observa-se uma aproximação com aquelas funções atribuídas aos CPCs, nos anos de 1960, pelos seus realizadores. Discutindo essa intenção de conscientização das massas dos CPCs, Hollanda (2004, p. 23), destaca:

Trata-se, claramente, de uma concepção, da arte como um instrumento de tomada de poder. Não há lugar aqui para os ‘artistas de minorias’ ou para qualquer produção que não faça uma opção de público em termos de ‘povo’.

A dimensão coletiva é um imperativo e a própria

tematização da problemática individual será sistematicamente recusada como politicamente

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inconsequente se a ela não se chegar pelos problemas sociais. Dizendo de outro modo, a proposta de arte desenvolvida pelos Centros Artísticos de Cultura Popular nasce com um caráter inclusivo (trazer o povo para reflexão e manifestação no campo cultural) cultivo e tradição (reconhecer e valorizar as manifestações culturais locais) e promove nas comunidades a consciência crítica da sua realidade.

A função da arte dos CACPs está pautada pela possibilidade de mudança em nível social, operando nas comunidades como meio para a emancipação social. Como já mencionamos anteriormente, a forte referência em Paulo Freire, em sua concepção de educação popular e libertadora, vinculava também aos CACPs a direção implementada para a educação pública municipal, que passou desde a assunção da Frente Popular do poder, a adotar uma nova proposta teórico-metodológica baseada, em termos curriculares, nos temas geradores. Nesse sentido, havia uma unidade de pensamento tanto em termos da direção mais ampla da Frente Popular, como em termos da relação concebida entre educação e cultura.

Os conceitos construídos de arte e cultura durante a administração da Frente popular, arte como inclusão social e arte como conscientização nos apontam os caminhos pelos quais as linguagens artísticas se inserem nos centros e o percurso educativo que os professores desenvolvem nas comunidades através das atividades de dança, teatro e música.

No âmbito dos CACPs, os professores/educadores começam estudos a partir dos escritos de Paulo Freire, em especial os livros Pedagogia do oprimido e Pedagogia da libertação. No documento 6 [Relatório de Atividades de 2003], encontramos a seguinte menção:

Paulo Freire é legitimado pelo grupo como pesquisador, pedagogo, estudioso de uma proposta fundamentada na

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práxis, na dialogicidade, no contato com as diferentes realidades e sua transformação a partir de um trabalho emancipatório.

Ainda, no documento citado acima encontramos

evidências do trabalho de reflexão sobre as atividades realizadas:

O que se propõe o projeto Centros Artísticos de Cultura Popular - A inclusão através da Arte? A sensibilização às linguagens artísticas? Espaço de reflexão de quem somos (em nossa cidade, em nossa região, o que representamos no país, no mundo) e o que produzimos culturalmente? Disseminar uma ideologia partidária? O reconhecimento de nossa cultura local e seus condicionantes históricos? (Relatório de Atividades de 2003).

A relação entre educação e conscientização tão

presente na obra de Freire, conforme expressa o autor quando afirma que “[...] uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher seu próprio caminho [...]” (FREIRE, 2005, p. 23), tem a conscientização, processo pelo qual o cidadão se torna libertário e liberto, como principal vetor, também na arte/cultura, para a tomada de consciência, como compromisso histórico. A construção de uma unidade de pensamento dentro do campo cultural em consonância com outros setores da gestão popular gerou, portanto, a necessidade de formar nos professores ou agentes culturais, o caráter de comprometimento, de engajamento, visando à construção do campo cultural como um campo de reflexões. Este objetivo está expresso no Documento 3 [Plano de ação da Cultura 2001-2004], quando determina como pré-requisito à exigência de uma “habilitação mínima para

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ingresso e programa de formação continuada aos servidores da cultura” (CHAPECÓ, [s.d., s.p.]).

A partir desse contexto, a arte desenvolvida no interior dos CACPs concebe também espaços de discussão e de formação para o grupo de professores. Fazendo referência a esse caráter político-educativo que as experiências culturais podem proporcionar e, fazendo referência particular às experiências realizadas em gestões populares, Chauí reafirma o caráter emancipatório da cultura e da arte, uma vez que a

[...] capacidade de decifrar as formas da produção social da memória e do esquecimento, das experiências, das ideias e dos valores, da produção das obras de pensamento e das obras de arte, sobretudo, é a esperança racional de que dessas experiências e ideias, desses valores e obras surja um sentido libertário, com força para orientar novas práticas sociais e políticas das quais possa nascer outra sociedade (CHAUÍ, 2006, p. 8).

Por esse aspecto, podemos inferir o caráter de

engajamento da arte nas atividades desenvolvidas com os alunos e os CACPs se tornam também referências para o coletivo, por suas características de envolvimento comunitário, movimento de luta e de inclusão.

No CPC o artista revolucionário popular é concebido como aquele que opta por ser povo, que, para Hollanda (2004, p. 30),

[...] sua opção é moral. Sua ação política é um problema de honra e doutrina [...] trata-se de um dever, de um compromisso com o povo e com a justiça vindoura – a revolução nacional e popular.

Nos CACPs, o agente cultural, denominado por

professor/educador popular, deve-se ter aptidões artísticas e

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capacitação na linguagem desenvolvida dentro do campo cultural, um leitor crítico de mundo e sociedade, que perceba o aluno como um ser pensante, com limites e potencialidades a serem desenvolvidas, numa pedagogia dialética, que para Freire (1999, p. 28) se traduz num processo gnóstico de: “dodiscência – docência-discência”.

Os CACPs apresentam no ano de 2002 a projeção para formação de um grupo de professores com perfil indicado para o trabalho popular em arte e cultura, “é um debate a ser feito mediante a contratação dos professores para o próximo ano” (CHAPECÓ, 2002, [s.p.]). Vejamos qual é o perfil escolhido para o educador popular:

• Comprometido com as políticas educacionais nas ações desenvolvidas com o educando;

• Que tenha postura de educador, percebendo o aluno como um ser pensante, com vontades e sonhos;

• Que seja desafiador e desafiante;

• Que perceba, organize e articule a comunidade onde atua, sendo elo de ligação entre o aluno – comunidade – departamento de cultura;

• Que se sinta responsável pelo crescimento do projeto centros artísticos (CHAPECÓ, 2002, [s.p.]).

No trabalho de formação com os professores,

tomaram-se, além de Paulo Freire, também as contribuições de Henri Giroux. Este último, na tentativa de construir um modelo teórico, aproxima-se também dos estudos de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin esboçando uma pedagogia emancipatória. O uso da linguagem, considerado por Bakhtin como um ato eminentemente social e político, aprofunda a compreensão sobre a natureza da criação, fornecendo subsídios para análise de como as pessoas concebem valores e a partir de diferentes níveis do discurso.

Para Henry Giroux, Paulo Freire amplia e aprofunda o projeto de Bakhtin, pois a experiência de Freire está

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enraizada em uma visão da linguagem e de cultura na qual o diálogo e o significado estão fortemente unidos a um projeto social que enfatiza o campo político, além de trabalhar como central na noção de fortalecimento social e político de uma luta coletiva por uma vida sem opressão. Tanto Bakhtin, quanto Freire trabalham a partir de uma visão de linguagem, de diálogo, de cronotipo e de diferença, rejeitando uma concepção totalizante da história.

Ambos fornecem um modelo pedagógico que se inicia com as experiências concretas da vida diária. Os autores percebem a necessidade de analisar como as experiências humanas são produzidas, contextualizadas e legitimadas dentro da dinâmica do cotidiano da sala de aula. Conforme sublinha Freire (1978, p. 13), a arte popular se desenvolve em oposição às classes dominantes, nascendo do seio da cultura popular negada, sendo permanentemente regida pela análise crítica dos valores, pois essa ação é transformadora e se transforma sempre. Giroux (1988) argumenta a favor do desenvolvimento de uma pedagogia radical como forma de política cultural. Ainda para o autor:

A escola é a incorporação, histórica e estrutural, de formas de cultura que são ideológicas. Ela dá significado à realidade pelo modo como é frequente e ativamente contestada e pelas diferentes maneiras como é experienciada por indivíduos e grupos (GIROUX, 1988, p. 82).

O autor, citando Paulo Freire e Mikhail Bakhtin,

associa a pedagogia radical a uma forma de política cultural, onde a linguagem, o significado e as práticas sociais envolvidas num movimento dialético produzem um projeto social que enfatiza a pedagogia emancipatória. A formação e a qualificação dos professores, para atuar nos CACPs, passavam por concepções de cultura como espaço de formação humana. Conforme já mencionado, as atividades

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culturais nos Centros eram desenvolvidas no formato das aulas, sendo organizadas em termos de horas/aula, e turmas estruturadas a partir de faixa etária. Nesse sentido, poderíamos dizer que sua estrutura didática está inspirada no caráter formal da educação. Tais contradições encontram sentido na medida em que o projeto, como atividade inédita está sendo construída com o grupo de professores e com a relação nas comunidades.

Assim como a arte, os elementos culturais ganham novos significados de acordo com o contexto social, de tal forma que a cultura acaba se constituindo num conjunto de sistemas de símbolos que articulam significados novos a cada reelaboração, pois a arte como produção social é sempre histórica, geradora de impulsos que modificam e transformam tanto o contexto socioeconômico quanto o contexto sociocultural.

Como já mencionado, até o início da gestão da Frente Popular, a cultura do município é constituída por concepções geradas pela elite chapecoense, na produção de uma arte formal, com espaços definidos pela classe artística. Contrapondo-se a essa perspectiva, a implementação do Projeto dos Centros Artísticos de Cultura Popular representou, do ponto de vista político, uma proposta renovadora, com intenções transformadoras.

Os CACPs apresentam-se na esfera cultural de Chapecó, como um projeto que propõe a popularização da arte e da cultura, contrapondo-se à arte desenvolvida no campo cultural do município até fins da década de 1990, que tinha na Escola de Artes, na classe artística chapecoense, em especial, nas artes visuais, nos escritores e em algumas atividades na área privada, seus principais representantes. O setor cultural mantém-se, por décadas, na reprodução de uma arte acadêmica formal, não criando políticas públicas de fomento à produção local; salvo algum tipo de apoio

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institucional em nível estadual, na organização de mostras de artes plásticas ou lançamento de livros.

A política cultural, apresentada pela Frente Popular a partir de 1997 até 2004, promove no município uma renovação em termos de concepções no setor; implementando um projeto que tem, na arte, a linguagem de aproximação com o povo e, na cultura, o espaço de participação popular. As atividades artístico-culturais desenvolvidas pelos CACPs, as aulas de dança, teatro e música cumprem função de construir novos conceitos pautados pela concepção de emancipação. As concepções de engajamento político e articulação de consciência e emancipação do indivíduo como mediação para consciência crítica têm como fonte de inspiração os pressupostos dos Centros Populares de Cultura da década de 1960, concebido como proposta de renovação do cenário sociocultural brasileiro, provendo reflexões em torno da arte nacional e popular destinada à conscientização das massas.

Conforme já mencionamos, o OP constituiu-se no mais importante canal de participação popular, e as demandas para a área cultural ocorriam também no âmbito das plenárias do mesmo. Uma vez apresentadas e definidas as demandas culturais pela comunidade, constando, portanto, no orçamento para o período, o líder comunitário tornava-se o elo entre a comunidade e o setor cultural, tanto na organização de espaço físico para a realização das atividades (salões comunitários, salas anexas a igrejas, escolas, programas socioeducativos etc.), como na divulgação junto à comunidade. O processo de descentralização das atividades culturais foi mantido até 2004, ocorrendo nesse ano a inclusão de novas comunidades e a supressão de outras.

No que se refere às atividades desenvolvidas, observa-se ainda o predomínio das atividades de dança, seguidas daquelas relacionadas ao aprendizado da música em

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diferentes instrumentos musicais. Ainda no que tange a atuação da Fundação Municipal de Cultura e sua presença junto à área cultural da cidade, vale registrar que, em que pese à importância de sua criação, sua atuação nesse período foi dificultada por problemas de ordem estrutural e política. Por exemplo, a descontinuidade administrativa – num curto espaço de tempo, menos de um ano de sua criação, a presidência da Fundação já havia sido substituída três vezes – fato que demonstrava conflitos, de ordem político-administrativa, dentro do governo municipal. Outro fato a mencionarmos é a destinação orçamentária, sempre restrita quando destinava a atender as demandas culturais da cidade.

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II

O ENSINO DA ARTE NA PERSPECTIVA CRÍTICA E A POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO DOS

SUJEITOS

Sônia Maria Serena

INTRODUÇÃO

A visão contemporânea do currículo da área da Arte

tem colocado a necessidade de resgatar o valor da arte nas escolas, como um saber e um fazer passível de reflexão e de construções cognitivas; um conhecimento que pode ser aprendido e ensinado também na escola (SERENA, 2012).

Moreira e Silva (1997) defendem a concepção de currículo como um elemento que não é neutro na transmissão do conhecimento social, cuja constituição é de cunho cultural, social e histórico.

No entanto, ao analisarmos as políticas educacionais, estas historicamente foram pautadas na perspectiva de obedecer às demandas do mercado, com currículos determinados por uma equipe de especialistas.

No Ensino da Arte temos várias concepções que acompanharam a área ao longo dos tempos, ora como conhecimento técnico, ora como concepção espontânea, perdendo-se de vista a sua totalidade (BARBOSA, 1991). Um exemplo clássico da concepção técnica do Ensino da Arte foi o acordo MEC-USAID que orientava as políticas educacionais no Brasil, na década de 1960.

Professora efetiva da EBM Severiano Rolim de Moura.

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Serena (2012) destaca a resistência a essa lógica que emergiu, na década de 1960, com os estudos de Paulo Freire a partir da inserção na educação de sua obra intitulada: Pedagogia do oprimido. Na década de 1990, os estudos de Barbosa (1991) aproximam-se de uma perspectiva crítica no Ensino da Arte, gerando avanços no campo metodológico visando à estética do cotidiano, a compreensão histórico-cultural dos alunos, tendência que no Brasil recebe o nome de Metodologia Triangular.

No Brasil, a Metodologia Triangular (BARBOSA, 1991) tem como pressuposto tratar Arte como um conhecimento que pode ser abordado na conjunção das ações de leitura de imagens, contextualização e fazer artístico.

No período de 1997 a 2004, na vigência do Movimento de Reorientação Curricular, o currículo de artes, a partir do olhar popular crítico, buscou a construção de um novo olhar, de um olhar mais sensível diante da arte; onde esse olhar pressupõe incluir reflexões que venham a permitir que educadores e alunos problematizem a realidade e passem a atuar de forma mais consciente em seu cotidiano; articulando-o com o saber acumulado, comparando-os, analisando-os, assimilando conteúdos a serem incluídos na prática social.

O movimento de reorientação curricular abrangeu os diferentes níveis e áreas de ensino, entre eles, o ensino das artes que iniciou um debate discutindo tempo, espaço, sujeitos, conceitos, conhecimento, ensino-aprendizagem junto à comunidade escolar (SERENA, 2012). Assim, a Educação Popular, na perspectiva freireana, possibilitou o repensar do currículo através da inserção da criança, jovem ou adulto, no mundo social ou histórico como produtores do saber. Nas palavras de Freire (2008, p. 81):

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[...] a educação como prática da liberdade ao contrário daquela prática de dominação implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim, também na negação do mundo como uma realidade ausente do homem.

Nesta perspectiva, o currículo popular crítico buscou

dialogar com os diferentes saberes, a fim de construir compreensões críticas da totalidade, com ênfase na transformação social.

Partindo desta concepção no Ensino da Arte, buscou-se desenvolver nos sujeitos a criticidade através do pensar criticamente a prática e analisar qual a função do conhecimento científico na educação dos sujeitos pensantes e atuantes na e sobre a realidade em que vivem.

Buscando compreender a interferência deste processo na formação dos educadores na área do Ensino da Arte elaborou-se a seguinte questão de estudo: Como o planejamento curricular da Arte a partir da realidade pode superar conflitos e emancipar os sujeitos? CONSTRUÇÃO CURRICULAR POPULAR CRÍTICA NO ENSINO DA ARTE

A defesa de uma educação de qualidade social

suscitou a necessidade de construir uma educação inclusiva de qualidade para as classes populares partiu de uma dessas políticas, onde desencadeou na rede um movimento de Reorganização Curricular nos diferentes níveis de modalidade de ensino, dentre eles o Ensino de Arte. Repensar o currículo naquele período, exigiu um movimento interdisciplinar e coletivo que abrangeu todas as áreas do conhecimento, incluindo o Ensino de Artes, o que envolveu estudos e aprofundamentos teórico-metodológicos durante o processo.

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Serena (2012) destaca que a opção pela Educação Popular ganhou corpo a partir das discussões por uma educação que garantisse, de fato, a formação da cidadania das classes populares. Esta participação efetivou-se nos diferentes fóruns, destacando o compromisso com a democratização da escola pública e o intuito de desmobilizar e desconstruir o modelo excludente de educação. Como princípio da Educação Popular, a democracia é a condição essencial para o envolvimento popular e a educação libertadora, no sentido de construir uma nova práxis educacional comprometida com a transformação da realidade; seja ela social, cultural, política e econômica.

Neste sentido, o fazer pedagógico na Educação Popular provocou um Movimento de Reorientação Interdisciplinar, via Tema Gerador, desenvolvido nos diferentes níveis de ensino (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos).

Ao repensar um currículo, a partir da concepção freireana, foi preciso buscar sua origem que se tornaram conhecidas nos anos 60, principalmente com a publicação de suas obras: Educação como prática da liberdade (1968) e Pedagogia de oprimido (1975), onde a educação dos homens como processo de libertação da opressão, da qual se encontravam, foi proposta por Freire.

De acordo com o documento 5 (SÃO PAULO, 1992), quanto à área ainda chamada de Educação Artística, foi produzindo um documento preliminar com a visão de área. A visão de área, ora encaminhada aos educadores, veio com o objetivo de ampliar a discussão sobre o Ensino da Arte nas escolas propondo parâmetros para a construção de programas pelos educandos.

Quanto a concepção de área, o movimento defende o documento 5 (SÃO PAULO, 1992), que:

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Na instituição escolar, o trabalho artístico deve ter a mesma naturalidade cultural que a do meio onde a escola está inserida. O que se pretende é que se traga para a escola a arte produzida na comunidade e que se estabeleçam relações com o conhecimento universal em arte.

Neste contexto, considera-se a arte como patrimônio

de todas as culturas e sociedades seja ela brasileira, estrangeira, popular, erudita, primitiva, infantil, entre outros; sem perder de vista sua contextualização histórica e seus questionamentos contemporâneos. Tinha-se entendimento que o ensino da arte teria uma estrutura dinâmica ou em outras palavras, em constante mutação no sentido de estar pretendendo refletir sempre através das mais diversas possibilidades que as linguagens artísticas oferecem.

Na busca de tornar o Ensino da Arte uma tarefa emancipadora, surgiu a necessidade de formular alguns questionamentos para orientar a prática educativa com o intuito de ser crítica e comprometida:

- Que conhecimentos se privilegiam ao ensinar? - Qual o enfoque dado à disciplina? - Estimula-se a capacidade criadora dos alunos para, levantar hipóteses concluir e reelaborar conclusões? - Qual a visão social que está subjacente aos conteúdos apresentados? (SÃO PAULO, 1992).

Nesse sentido, o objetivo de conhecimento é a

própria arte, suas várias linguagens e códigos. Através de o processo sentir, pensar, construir e expressar, o indivíduo chega à produção artística. As experiências acumuladas articulam o antigo e a nova constituição, assim, uma aprendizagem significativa onde professores, colegas e o meio desempenham um papel de mediação cultural e de

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intervenção em área de “desenvolvimento potencial de aluno” (VYGOTSKY, 1984).

Trazer presente a dialogicidade, a criticidade epistemológica de Freire para o Ensino de Arte, exige um esforço no sentido de entender qual a concepção de educação o autor defende e como relacioná-la com o Ensino da Arte. Nesse sentido, o desafio era como encaminhar um movimento de reorientação curricular comprometido com a melhoria da qualidade do ensino da escola pública voltado à emancipação das comunidades excluídas? Como tendo em vista o ensino da Arte, partir da superação das práticas pedagógicas convencionais, perceber o processo de conquista da autonomia da unidade escolar e a formação permanente dos educadores se dando a partir de uma construção coletiva?

Freire (2008) enfatiza o diálogo como um pressuposto que antecede uma situação pedagógica, ou seja, começa quando o educador se questiona em torno do que vai dialogar. Sendo assim, a problematização passa a ser parte do processo de construção do diálogo entre sujeito e objeto. Entende-se que a tarefa do educador é problematizar o conteúdo e não “despejá-lo” sobre os educandos. Como observa Freire (2006, p. 81):

A tarefa do educador, então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado.

A partir do momento que o educador problematiza

os educandos, ao mesmo tempo, ele também se sente problematizado e firmando, assim, como um ato dialético e reflexivo. Ele ajuda pensar criticamente sobre o conteúdo. A problematização tem a função de envolver os educandos na

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tarefa de pensar criticamente e de tirar suas próprias conclusões sobre os fatos.

Na prática, o ato de problematizar envolve procedimentos metodológicos que ajudam na organização de um currículo crítico em relação aos sujeitos eticamente envolvidos. Ao trazer presente o sujeito neste enfoque, significa partir do reconhecimento do “outro” como ser humano autor-reflexivo e autônomo. Nesse sentido, para Freire (2006), é responsabilidade do processo educacional assumir a transformação de situações desumanizadoras. A prática educativa é entendida como possibilidade de transformação das negatividades concretas do real. Ou seja, a fala significativa, nesta concepção, é vista como ponto de partida para um verdadeiro trabalho educacional.

Dessa forma, ao falar de um Ensino de Arte de forma crítica e próxima da realidade dos alunos, a problematização e a dialogicidade são categorias fundamentais para a concretização do mesmo.

O conhecimento histórico sistematizado tem ênfase partindo de situações-problema dicotomizadas pela problematização. Portanto, organizar um currículo baseado na investigação da realidade via Tema Gerador faz parte da metodologia freireana.

Partindo dessa perspectiva, a Construção Curricular popular crítica do Ensino da Arte em Chapecó provocou outro olhar para o conhecimento e para a área, exigindo muitos questionamentos, como: Por que ensinar Arte? Qual a contribuição da área no entendimento dos problemas vivenciados pela comunidade? Que sujeito se quer construir? Que relações seriam estabelecidas com o ensino da arte e com a aprendizagem? Qual seria a função do Ensino da Arte e o comprometimento com a transformação social? A partir dessas problematizações, buscou-se construir uma abertura para o diálogo, tendo em vista estabelecer orientações para a ação educativa.

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O diálogo foi fundamental na busca do conhecimento a ser trabalhado e foi preciso que a área se colocasse a serviço da compreensão da realidade vivida pelos educandos.

Organizar o fazer pedagógico, tendo como ponto de partida os sujeitos, suas necessidades e suas visões de mundo é preciso a investigação da realidade na qual os homens estão inseridos. Investigação temática que, para Freire (2008, p. 116),

Se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e tão mais crítica quanto, deixando de perder-se nos esquemas estreitos das visões parciais da realidade, das visões ‘focalistas’ da realidade, se fixe na compreensão da totalidade.

A Investigação Temática desafia refletir sobre a

sociedade que se tem e a sociedade que, de fato, se quer construir através da tomada de consciência dos sujeitos e da capacidade de no mundo intervir.

No Movimento de Reorientação Curricular, trabalhou-se a partir da Investigação Temática proposta por Freire (2008) com os aprofundamentos de Silva (2004), sendo as etapas do processo organizados da seguinte forma:

a) Levantamento preliminar da realidade local; b) Escolha de situações significativas; c) Caracterização dos temas/contratemas geradores sistematizados na rede temática; d) Elaboração de questões geradoras; e) Construção de programações; f) Preparação das atividades para a sala de aula (SILVA, 2004, p. 7).

A construção curricular popular crítica do Ensino da

Arte, em Chapecó, levou em consideração estes

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O ensino da arte... 413

aprofundamentos realizados por Silva (2004), referendando a concepção freireana, utilizando-se da pesquisa participante, da investigação temática; relacionando, assim, todas as áreas do conhecimento.

A intenção deste movimento pedagógico foi desafiadora para perceber que o conhecimento, historicamente produzido, deve estar disponível de tal forma que qualquer sujeito faça uso dele e para isso deve ser apreendido.

Essa proposta apostou na capacidade de os educadores construírem o próprio material didático contrapondo-se aos que defendem o já pronto e acabado. Foi essa dinâmica que influenciou e possibilitou a reorganização curricular do Ensino da Arte no município de Chapecó (SC). METODOLOGIA

A pesquisa é de caráter qualitativo, pois se refere a

uma atividade de aproximação sucessiva da realidade, que inclui uma combinação de teoria e dados, pensamento e ação em contínuo movimento (MINAYO, 2007). O estudo faz parte da dissertação de mestrado intitulada: “Currículo Popular Crítico do Ensino da Arte a partir da realidade: conflitos e possibilidades de emancipação dos sujeitos” (SERENA, 2012).

A pesquisa é de caráter documental, sendo analisados todos os documentos produzidos pela Secretaria de Educação na gestão (1997-2004), a saber: Marco Referencial: Marco Situacional e Princípios (1997); Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformações (1998); Revista Educação de Jovens e Adultos (1998); Revista Educação com Participação Popular (2000); Revista Movimento de Reorganização Curricular (2001); Caderno de Áreas (Arte): uma reflexão sobre o conhecimento (2004).

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414 A atualidade das ideias de Paulo Freire

Os dados coletados nos materiais produzidos, durante a vigência do Movimento de Reorientação Curricular trouxeram subsídios para a reconstrução do processo e análise do objeto de estudo. Os dados foram interpretados e categorizados a partir da análise de conteúdo (BARDIN, 1977), possibilitando a contextualização dos fatos que envolveram o processo. Desta forma, foram definidas as seguintes categorias: Participação como princípio da democracia na educação; Currículo Popular Crítico; Área da Arte no processo educacional numa proposta de Educação Popular.

CATEGORIAS DE ANÁLISE

No tecer das relações, foram encontrados elementos

necessários que fundamentaram o processo de construção curricular, entre eles, o trabalho coletivo, a participação, a interdisciplinaridade e os princípios da Educação Popular.

Os estudos e trabalhos referentes à proposta curricular foram pautados pela concepção freireana, cuja intenção era desenvolver processos visando uma educação que possibilitasse a participação dos diferentes sujeitos envolvidos como ferramenta para pensar uma nova escola com relações humanizadas.

A democracia aparece como eixo essencial e organizador da política destacando a participação como prática para a consolidação deste princípio sendo destacado no documento Revista Educação com Participação Popular (CHAPECÓ, 2000, p. 8), “[...] a democracia, no sentido pleno, como princípio, meio e fins da política educacional. Esta diretriz é condição essencial para a participação popular e educação libertadora”.

Intensificou-se a participação dos segmentos da comunidade escolar na construção da Educação Popular, reafirmando o compromisso político, possibilitando uma

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maior abertura para o debate e decisões envolvendo os sujeitos. O processo educacional apontou para a necessidade de abertura de canais de participação colocando a escola a serviço da conscientização da população que historicamente foi excluída do processo educacional, político, econômico e social.

A prática pedagógica e social passa a ser pensada nesse processo pelos educadores, pais e estudantes, mediados pela dialogicidade; revelando e possibilitando a aproximação e compreensão da construção do conhecimento.

As relações dialógicas, a ação coletiva em que os sujeitos são ativos e exercem o papel de pesquisadores é reconhecido no documento Revista Educação de Jovens e Adultos (CHAPECÓ, 1998a), onde o processo da prática, teoria e prática possibilitou aulas mais significativas tornando os educandos mais participativos. De modo geral, as unidades de registros apontam um “[...] sujeito participativo, que deixa de ser agente passivo para tornar-se ativo ao processo de ensino-aprendizagem, exercendo um papel de pesquisador do conhecimento” (CHAPECÓ, 1998a, p. 11).

A perspectiva da participação popular, como princípio para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, despertou uma importância significativa no entrelaçamento entre sujeitos, contextos e processos, pautando uma nova forma de construir o conhecimento.

A reorientação curricular foi construída numa dinâmica pedagógica coletiva a partir de situações e relações dialógicas e reflexivas fundamentadas na participação, nos princípios da Educação Popular envolvendo todos os sujeitos. Esta prática, portanto, representou desafios na dinâmica pedagógica, no sentido da participação dos sujeitos pautados na leitura da realidade sociocultural, estabelecendo relações dialógicas na construção de práticas mais transformadoras.

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416 A atualidade das ideias de Paulo Freire

b) Currículo Popular Crítico; Registros referentes às Bases e Orientações

epistemológicas da Arte pelo documento Revista ler e escrever a palavra para transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 8) traz presente a necessidade do envolvimento de outras práticas pedagógicas para a construção de um currículo, afirmando que:

Torna-se fundamental para a construção de uma outra prática pedagógica ter presente a história dos movimentos não oficiais de reorientação curricular, dos movimentos de resistência dentro das redes pública, da Educação Infantil à Universidade e de experiências pontualizadas em todo o país.

Reafirma a importância de observar e problematizar

o trabalho no dia a dia dos sujeitos descrevendo a educação como mediadora para a construção da democracia e que o saber não deve ser algo padronizado a que os ciclos de formação têm, conforme consta na Revista Ler e Escrever a Realidade para Transformá-la (CHAPECÓ, 1998b, p. 28):

[...] como princípio fundamental compreender os sujeitos não se desenvolvem de forma igual e ao mesmo tempo; que o conteúdo de sala de aula não é predeterminado, pois a criança não vive numa única realidade.

O diálogo passa a ser o processo de teorização e não

uma técnica para a instrumentalização, envolvendo construção e formação coletiva e não transmissão de forma individual.

Com a investigação participativa, buscou-se problematizar e sistematizar as negatividades que aparecem em redes e conceitos entendendo que essa apreensão crítica da realidade é, de fato, a teorização que propicia planos de

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ação intervencionistas. O conhecimento surge da necessidade do homem em procurar respostas, gerando questionamentos para conhecer e intervir na realidade. Essa metodologia pressupõe o acreditar no crescimento do indivíduo no grupo, na pergunta, no conflito, na participação como forma de apropriação, construção e reconstrução do saber.

A Educação Popular possibilitou o sujeito a inquietar-se, curiosidade e sentir-se ligado ao projeto coletivo e histórico de homem. Mulher e sociedade que deseja construir.

A reflexão sobre o conhecimento focou o currículo como movimento que provoca descoberta, transforma e mexe com os educadores. Destaca-se no documento caderno de áreas:

Concebe-se o currículo como conjunto de práticas socioculturais que, de forma explícita ou implícita, consciente e intencional, ou incorporada de maneira acrítica, se inter-relacionam nas diferentes instâncias e momentos de espaço/tempo escolar, assumindo uma intervenção pedagógica emancipatória na prática educativa convencional. Parte-se do conflito para chegar a um currículo significativo e contextualizado (CHAPECÓ, 2004a, p. 7).

Esse movimento é reflexo da política educacional

que naquele momento colocou em pauta questões educacionais, como acesso, permanência, qualidade de ensino para as classes populares. O movimento de reorientação curricular caracterizou-se pela valorização das práticas pedagógicas já existentes na rede, do trabalho coletivo, da formação dos educadores, tendo na práxis o processo de desconstrução/reconstrução crítica de cada espaço.

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Faz-se necessário desenvolver atividades que, problematizadas, desenvolvem as contradições presentes na prática pedagógica tradicional. A pesquisa sociocultural precisa ser desencadeada como necessidade pedagógica para buscar falas na comunidade que, de fato, expresse situações significativas e conflitantes, concebidas como situações limites, temas e contratemas; partindo sempre do olhar dos educandos.

A Educação Popular é vista como um organismo vivo, uma estrutura dinâmica construída por uma autonomia que conduz para a prática da libertação e transformação. E o educador não é somente aquele que desenvolve sua aula recebendo receitas de um grupo, trabalho de sala de aula exige espaços de construção coletiva sobre ações educativas, onde o educador possa criar, recriar, pensar a sua própria prática construindo-a através da teorização.

A escola deve ser planejada coletivamente, desde as grandes até as pequenas ações do dia a dia. Uma escola sem esse planejamento não possibilita a transformação. O Caderno de áreas: uma reflexão sobre o conhecimento (CHAPECÓ, 2004a, p. 10) cita que

[...] o processo de construção curricular coletiva demanda registrar concepções de mundo e sistematizar discussões em seus diferentes momentos de análise da realidade problematizada.

Nesta perspectiva, pensar na educação de forma

coletiva é muito mais que pensar na escola. É se colocar na posição de quem ajuda construir um novo projeto de sociedade. É pertinente que enquanto espaço de organização, a escola tem que ter objetivos coletivos que levem à construção de tal projeto. Pensar com antecedência os momentos de estudo, planejamento e avaliações onde as reflexões sejam contidas e sistematizadas. Dessa forma,

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educadores e educandos conseguem fazer a relação do “micro” para o “macro” da construção social.

A Educação Popular enquanto prática surge, neste contexto, como uma opção política que rompe com o modelo excludente de educação e desafia propondo a construção de uma nova estrutura baseada na concepção do materialismo histórico-dialético. Os documentos apontam que a própria opção foi um processo que veio se construindo nos movimentos de estudos, debates e decisões coletivas, definindo a Educação Popular como um fio condutor de toda a proposta teórico/prática/prática da Rede Municipal de Educação.

A escola coloca-se a serviço da conscientização da população. O professor passa a ter função política com responsabilidade social acreditando na autonomia dos sujeitos. O documento Educação com Participação Popular (CHAPECÓ, 2000, p. 36) indica que “[...] a prática da Educação Popular valoriza e considera o conhecimento que o indivíduo traz consigo [...]” e, mediado pela dialogicidade, respeita os diferentes saberes e diferentes culturas protegidas pelos grupos populares.

A pesquisa participante como forma de conhecer a realidade, os conteúdos e temáticas sistematizadas a partir da realidade são consideradas como práticas, reafirmando que o conhecimento se constrói a partir da relação com o outro; e com a função de se colocar a serviço da justiça e da cidadania (SERENA, 2012). Considera que esta prática resulta num currículo vivo que reafirma a ação humana e pauta a participação dos sujeitos, articulando a produção de conhecimentos significativos.

Partindo da sociedade, o currículo popular crítico pressupõe uma prática organizada a partir do Tema Gerador, onde o conhecimento significativo da realidade local, os níveis micro e macrossociais, a dialética entre conhecimentos

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e seus limites explicativos foram indicativos, como parâmetros epistemológicos para um projeto pedagógico.

Sendo assim, os programas construídos coletivamente, a sistematização dos dados, as redes temáticas direcionaram os caminhos para cada especificidade e possibilitou identificar conceitos a serem trabalhados com crianças, jovens e adultos contribuindo com as possíveis mudanças no cotidiano de cada sujeito, nas instituições e no processo de ensino-aprendizagem (SERENA 2012). Nesta perspectiva de educação emancipatória, popular crítica, comprometida com a denúncia das negatividades, procura ressignificar e devolver à prática sociocultural seu caráter de humanização coletiva, desvencilhando de seu papel alienador.

A problematização curricular desvela as disputas presentes na comunidade, atuando no sentido de descobrir historicamente os conflitos, buscando através da organização coletiva uma nova forma de selecionar e produzir conhecimentos na comunidade escolar. Para Silva (2004, p. 205),

[...] o conflito, ao explicitar diferentes concepções sobre uma mesma realidade em confronto, pode facilitar o distanciamento epistemológico do real vivenciado, ampliando as possibilidades e os horizontes de apreensão.

Podemos, dessa forma, compreendê-los, não os

restringindo a um enlace entre as representações culturais, mas também como paradigmas de percepção e representação social onde as práticas sociais são organizadas.

Portanto, este é o diferencial de um currículo popular crítico, pautando a valorização dos sujeitos como agentes ativos no processo curricular onde a prática pedagógica procura ser um movimento dinâmico e questionador. Esta concepção de construção curricular voltada à Educação Popular relaciona prática e teoria à

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construção do conhecimento, num processo crítico para entender a realidade.

Um currículo crítico a partir da realidade, necessariamente é preciso refletir sobre o papel social da escola e de todas as áreas do conhecimento, fundamentado por Freire (2006, p. 95):

A educação crítica é a futuridade revolucionária [...]. Ela se identifica, portanto, com o movimento que compromete os homens como seres conscientes de sua limitação, movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo. Esse ponto de partida encontra-se nos próprios homens. Mas já que os homens não existem fora do mundo, fora da realidade, o movimento deve começar com a relação homem-mundo.

Torna-se fundamental o conhecimento da realidade

porque pensar o currículo envolve discutir as concepções entre educadores que, para Freire (1998, p. 31), reforça a importância do papel do educador problematizador que não se limita apenas no ensinar, mas no pensar certo. Conforme Silva (2004), todo o currículo pressupõe uma concepção de sujeitos, contextos e processos para que as práticas sejam organizadas.

A área da Arte no Município de Chapecó, numa perspectiva crítica, apontou para a necessidade da formação de organização coletiva e no diálogo reflexivo, onde o conteúdo da Arte ganhou outra dimensão enquanto área do conhecimento.

c) A área da Arte no processo educacional numa

proposta de Educação Popular. As afirmações, referências das ocorrências quanto ao

Ensino da Arte, enfocam a necessidade de compreendê-lo primeiramente dialogando em outra concepção como

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destaca o documento Revista Educação de Jovens e Adultos (CHAPECÓ, 1998a, p. 21). Concepção mediada pelo diálogo tem o Tema Gerador como objeto de estudo para ter compreensão entre uma ação e reflexão, entre teoria e sua prática:

Parte-se de uma realidade, da leitura do mundo no nível de senso comum, busca-se recortes do conhecimento científico e leva-se à reflexão, dessa ação, teorização, provocando assim rupturas, ampliações na visão inicial apresentada pelos educandos e levando-os assim a uma ação transformadora (CHAPECÓ, 1998a, p. 21).

Optar por uma prática pedagógica voltada à

Educação Popular não é tarefa fácil. Significa despojar-se de alguns hábitos, dogmas e percorrer o caminho inicial ouvindo o outro. Aprender incluir o outro através do diálogo e com atividades desafiadoras efetivando essa prática que, parafraseando Freire (2008, p. 91), deve ser “um ato de criação”. Nesse sentido, o trabalho como o Tema Gerador ressalta o diálogo como interlocução e como ponto de partida do conhecimento. Freire (2008, p. 96) ressalta que:

Para essa concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador/educando se encontra como educando/educador em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se perguntar em torno do que vai dialogar com estes. Essa inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação.

O trabalho com o Tema Gerador torna-se um

referencial que pode desencadear uma leitura mais crítica da sociedade, entendendo que o conhecimento só constrói a partir da relação com o outro e com o objeto a ser conhecido na ação-reflexão-ação. Portanto, conhecer a

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realidade local torna-se pertinente no processo ensino-aprendizagem, mas como princípio básico para estabelecer um diálogo consistente entre os sujeitos que procuram compreender melhor a realidade vivida em seus problemas, necessidades e conflitos.

Partindo desse enfoque, o documento Movimento de Reorganização Curricular (CHAPECÓ, 2001, p. 33) redimensiona a área da arte e sua função:

Recuperar a arte como forma de conhecimento, trabalho, expressão, é buscar esta totalidade para dar conta da necessidade humana de expressão, afirmação e interação com a realidade através do trabalho artístico.

Trabalhá-la a partir da realidade pressupõe romper

com a tradução cultural seletiva e colocar o acervo dos conhecimentos sistematizados não só da arte, mas, enfim, de todas as áreas à disposição dos sujeitos (SERENA, 2012). Daí a necessidade de problematizar e priorizar o que realmente é pertinente para os educandos ou comunidade escolar como um todo.

O documento Movimento de Reorganização Curricular (CHAPECÓ, 2001, p. 3) coloca que, sendo assim,

[...] o processo de construção do conhecimento por seu caráter político educativo está a serviço da justiça da inclusão crítica, da vivência plena da cidadania, comprometido com a humanização da sociedade.

O ensino da arte foi ressignificado a partir da

concepção freireana, trabalhando mais a sua totalidade a partir de questões, diálogo, aprofundamento teórico focando para uma ação educativa. A arte mais próxima do povo e este se sentindo capaz de também produzi-la.

O documento Caderno de Áreas: uma reflexão sobre o conhecimento referencia que:

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A arte faz parte das formas do conhecimento humano. Seu lugar na escola pública, em todas suas linguagens, música, plástica, teatro e dança é inquestionável, porque uma proposta de Educação deve considerar e vivenciar o conhecimento artístico como direito de todos (CHAPECÓ, 2004a, p. 21).

E sendo direito, ela possibilita refletir sobre as

mudanças da vida contemporânea contribuindo na conscientização dos sujeitos. O mesmo documento coloca que a arte faz parte das formas do conhecimento humano, com todas as suas expectativas, considerando que:

O ensino da arte é um processo de articulação da experiência, da relação do indivíduo consigo mesmo, pois através da criação, diálogo com a experiência acumulada pelo sujeito em ação, relaciona o antigo e o novo através de uma transformação que respeita o sujeito e o objeto a ser conhecido (CHAPECÓ, 2004a, p. 26).

Este novo jeito de olhar a arte foi possível criar

novas visões de mundo e de sociedade, onde produzida pela comunidade estabeleceu relações entre os saberes. Pois, conforme cita no Caderno de Áreas (CHAPECÓ, 2004a, p. 26), “[...] o ensino da arte deve ter uma estrutura dinâmica, mutável, com muitas reflexões nas diferentes linguagens artísticas [...]”, que, de forma interdisciplinar, compõe com conteúdos próprios, claros, respeitando a evolução e o processo de construção do conhecimento de cada indivíduo.

Pode-se afirmar que a concepção freireana possibilita o registro do diálogo reflexivo e analítico entre os olhares e linguagens, entre pensamentos e concepções de realidade. Sendo assim, o ensino da arte, conforme o documento Caderno de Área (CHAPECÓ, 2004a, p. 27), “deve estar em consonância com a contemporaneidade”. Ou seja, o espaço de aprendizagem deve ser o laboratório, o atelier onde as

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pesquisas, as técnicas são criadas e recriadas. A criatividade é redimensionada porque o processo criador é vivo e dinâmico. Partir da realidade significa que tanto a pesquisa, quanto a construção do conhecimento são valores para educando e educadores. O rompimento com a relação sujeito/objeto do ensino tradicional desafia o ensino da arte a estar necessariamente ligado ao interesse de quem deseja aprender.

Portanto, essa concepção metodológica de conceber o ensino da arte rompe barreiras de exclusão destacando a prática educativa não como um dom, mas sim como capacidade de experiência de cada sujeito. A capacidade de desenhar, escrever, representar, dançar, tocar, declamar, discursar é estimulada pela vivência aonde cada um vai sentindo-se seguro e capaz. Partindo desse princípio, o interesse pelas atividades aumenta e os participantes se reconhecem como construtores de seus próprios caminhos.

A unidade de registro do Caderno de Áreas lembra que:

A concepção da arte no espaço implica numa expansão do conteúdo de cultura, ou seja, toda e qualquer produção e as maneiras de conceber e organizar a vida social são levadas em consideração. Cada grupo inserido nestes processos considera-se pelos seus valores e sentimentos e são atores na construção e transmissão dos mesmos [...]. A cultura está em permanente transformação, ampliando-se e possibilitando ações que valorizam a produção (CHAPECÓ, 2004a, p. 28).

Dessa forma, reafirma o elo entre teoria e prática

tornando o ensino e a aprendizagem da arte uma prática significativa para quem dela participa.

A arte deixa finalmente de ser apêndice pedagógico e toma seu lugar enquanto conhecimento, enquanto criação, estética e produção humana.

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Uma proposta educacional onde o espaço público está a serviço do interesse comum do sujeito coletivo, a prática o torna autores capazes de recriar a realidade escolar. Desafiam-se nesse caminhar as perspectivas, diretrizes ético-críticas e político-epistemológicas e pressupostos capazes de permear a política educacional comprometida com a construção dialógica do Projeto Político-Pedagógico com práticas transformadoras e humanizadoras. A proposta considera o educando como um sujeito que aprende construindo, produzindo e reconstruindo saberes e conhecimentos a partir de suas experiências de vida.

O movimento de reorganização curricular popular crítico precisa fazer parte da política de formação permanente dos segmentos da comunidade. Necessariamente deve ser dialógica, fundamentada na análise crítica e transformadora da realidade social.

Tratando-se de Ensino da Arte, o documento Revista Movimento de Reorganização Curricular indica que:

O Ensino da Arte, de acordo com a concepção, é um processo de articulação da experiência, de significação, da relação com o indivíduo e consigo mesmo. O que se pretende é que se traga para a escola a arte produzida na comunidade estabelecendo relações com o conhecimento universal da arte (CHAPECÓ, 2000, p. 33).

Portanto, para construir uma articulação reflexiva da

realidade levando em conta a construção dos indivíduos enquanto sujeitos críticos e conscientes, de suas possibilidades de alterar o contexto social e de sua prática pedagógica, desafia-nos a fazer um movimento de problematização da realidade. E o melhor ponto de partida, segundo Paulo Freire, é a inclusão do ser humano. Discutir o sujeito é preciso compreender, refletir, perceber a organização social, o que vai sendo modificado ao longo do tempo. Como um sistema econômico político social de

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O ensino da arte... 427

reprodução interfere na educação, na comunidade, nos signos e significados, na expressão até simbólica dos indivíduos, na formação de conceitos, nas suas escolhas pessoais, nas relações sociais e no seu jeito de criar, sentir e vivenciar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise desta pesquisa esteve voltada

prioritariamente para os documentos sistematizados e publicados na gestão de 1997 a 2004, onde se constatou a implementação de processos do movimento de reorganização curricular popular crítico.

No estudo, tendo como objetivo o Ensino da Arte, a construção e sua implementação a partir da concepção freireana, percebeu-se uma ruptura com os modelos pedagógicos convencionais. Alguns pontos foram significativos neste processo, sendo destacados o conhecimento da realidade como ponto de partida, as redes temáticas para seleção e recortes do conhecimento a serem trabalhados em sala de aula. Outro elemento fundamental foi o trabalho coletivo e interdisciplinar permeado com o diálogo dos saberes tanto dos educandos como dos educadores.

A partir do momento que o coletivo escolar foi assumindo conscientemente a autoria da própria prática e seu papel na construção social, percebeu-se um rompimento com a tradição política anterior anunciando novos significados dessa prática. Ou seja, anunciava-se uma abertura e maior participação pela comunidade escolar, construções democráticas de participação das decisões e encaminhamentos pedagógicos, eleições para escolha de dirigentes e valorização dos serviços públicos.

Porém, nesta perspectiva constatou-se que só foi possível a construção e organização de uma teoria crítica

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capaz de superar a demanda que essa prática propõe, com sujeitos coletivos e necessariamente envolvidos na ação educativa. Esse movimento não foi linear, mas sim pautado com tropeços e recuos, intercalados com avanços e dificuldades em sua construção.

A participação democrática e efetiva de todos os envolvidos nesse processo revela-se como condição básica para construir-se e desenvolver uma educação capaz de criar oportunidades reflexivas nas ações coletivas de forma qualitativa.

A participação é evidenciada no processo pedagógico a partir do Tema Gerador onde possibilitou um reordenamento do espaço sociocultural escolar resgatando o papel humanizador da pedagogia, tomando a pesquisa participante como instrumento organizador e criador do processo educacional.

As análises realizadas revelam a importância da pesquisa participante e desenvolvida quanto ao Ensino da Arte apontando uma direção problematizadora sobre quem são os sujeitos, que funções têm os espaços pedagógicos e a importância do trabalho coletivo na construção de propostas com trocas de experiências, estudos e aprofundamento teóricos e práticos.

As análises realizadas destacam o projeto interdisciplinar via Tema Gerador, sendo orientado pela intervenção crítica na prática educativa, concebendo um currículo como processo e não como produto. Consolidou conhecimento significativo da realidade (micro e macro) estabelecendo uma relação dialética entre os conhecimentos e os limites explicativos do projeto interdisciplinar.

A epistemologia curricular, que foi sendo construída coletivamente com enfrentamentos de conflitos, expôs limites e contradições das práticas cotidianas, mas também ofereceu alternativas que partiram dos sujeitos,

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O ensino da arte... 429

possibilitando espaços de reflexão e disputas entre as concepções e diferentes interesses.

A organização curricular foi permeada pela investigação temática, estabelecendo a intencionalidade pedagógica pela pesquisa socioantropológica, possibilitando o diálogo com os diferentes sujeitos na construção de um currículo participativo.

É importante destacar que esse processo direcionou caminhos para cada especificidade, identificando conceitos possíveis de trabalhar com os educandos nos diferentes níveis, desafiando mudanças no cotidiano, seja no processo ensino-aprendizagem, seja nas instituições e na postura dos sujeitos envolvidos.

A gestão democrática passou a ser uma necessidade pedagógica e, por assim ser, demarca um diferencial entre o que se vinha fazendo, imbuído de uma concepção dialógica, ressaltando a necessidade de um trabalho que não termina quando se encontram os “conteúdos” a serem trabalhados, mas inicia um processo relacional incorporado como um sujeito histórico.

No contexto geral do processo da construção curricular pode-se destacar que as bases e orientações epistemológicas do currículo popular crítico vivenciado e construído pela Rede Municipal de Educação de Chapecó, especificamente para o Ensino da Arte, edificou-se numa perspectiva sociológica da prática educativa, incitando um novo olhar para todas as áreas do campo educacional.

O currículo Popular Crítico construído a partir da concepção freireana situa-se a participação no campo pedagógico como um eixo fundamental na organização curricular focando a criança, jovens, adultos, professores, pais como sujeitos participantes. A partir da problematização das práticas e da lógica escolar, foi-se construindo outro olhar para a educação em Chapecó. As práticas pedagógicas a partir da dialogicidade, da metodologia dialética do

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conhecimento, do planejamento coletivo, da realidade, constroem sujeitos pensantes e atuantes sobre os fazeres.

Portanto, só é possível estabelecer um processo de transformação que efetive a vivência da autonomia escolar com um trabalho coletivo comprometido com a participação dos diferentes segmentos. Ou seja, o diálogo com os movimentos sociais, Igrejas, sindicatos, associação de moradores precisa fazer parte das decisões pedagógicas. Uma das formas de iniciar esse diálogo na busca de construir práticas curriculares pode ser a pesquisa sociocultural na comunidade. Compreender o currículo dessa forma implica a consolidação de uma base teórica interdisciplinar de apoio à ação pedagógica.

Enfim, o movimento de reorientação curricular a partir de uma abordagem dialética exige um diálogo constante com as diferenças, com os conflitos e contradições, mas com uma postura aberta para as transformações. É neste contexto que a construção de um currículo crítico, comprometido com a emancipação das comunidades, através da prática educativa, se configurou como um diferencial no período de 1996 a 2004 em Chapecó. Diferencial que fez repensar nossa prática e nos tornou sujeitos mais criativos, críticos e humanizados e o conhecimento da Arte mais expressivo, mais dinâmico, mais significativo, mais próximo da comunidade como um novo olhar: um olhar mais popular, mais crítico.

Para concluir, ressalto como observação que esse movimento educacional ousado, foi vivenciado com muitas dificuldades, conflitos e tensões, mas, todavia, constitui-se de uma grandeza sem tamanho, com indicadores que ampliaram o conceito de qualidade educacional. Caracterizou-se como testemunho da possibilidade de construir currículo numa perspectiva crítico-transformadora. Serviu de debate e de fonte investigativa para educadores de diversos municípios refletirem suas práticas e acreditar que é possível sermos

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sujeitos das próprias ações e capazes de construirmos a própria história de forma criativa, dialógica, humana e emancipatória. REFERÊNCIAS

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AS ORGANIZADORAS

Nadir Castilho Delizoicov – Graduação em Ciências Biológicas. Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/UFSC). Professora na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) onde atua no Curso de Mestrado em Educação. Professora Colaboradora no Programa de Educação Cientifica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT/UFSC). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ensino e Formação de Professores, (Unochapecó) cadastrado no CNPq.

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Geovana Mulinari Stuani – Graduação em Ciências Biológicas. Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT/UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa PALAVRAÇÃO (Unochapecó), cadastrado no CNPq.

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A organizadoras 437

Suzi Laura da Cunha é Mestre em Educação pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), onde atua como professora na Licenciatura em Pedagogia. Participa como pesquisadora do grupo de pesquisa Ensino e Formação de Professores, cadastrado no CNPq.

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A organizadoras 439

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