fato estético imaginação histórica

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de realidade, uma presença e uma inteligibilidade públicas cotidianas. Mes- mo porque, nunca se sabe, pode muito bem estar a caminho a Semana de Arte Pós-Moderna. Fato estético e imaginação histórica Extraído de Cultura: substantivo plural, 1996 Este texto I pretende apenas desenvolver algumas reflexões e ponderações livres acerca do nosso trabalho cotidiano no mestrado em história social da cultura na PUC-RJ. O problema crucial que esse mestrado procura enfren- tar - na medida em que incorporou o programa de história da arte - tem sido o de repensar a história da arte como disciplina acadêmica e teórica, enfim, como afirmar seu estatuto "científico". Em paralelo, coloca-se a questão de como uma história social da cultura pode, superando os impas- ses da tradição, abrir-se, efetivamente, ao fenômeno estético e incorporar um dado simbólico cujo caráter exige a revisão de seu conceito básico de princípio - o conceito de fato histórico. Por algum tempo vigora já uma disciplina de história da cultura que consiste em historiar as sêries dos fatos culturais e a produção artística. Um conceito mais contemporâneo de história da cultura torna contudo tal pers- pectiva insuficiente e considera seus critérios precários, rudimentares. Per- cebe-se que o problema não consiste somente em historiar fatos culturais. A questão é incorporar a dimensão da cultura, a dimensão do simbólico, ao próprio conceito de fato histórico. O que passa a exigir do historiador o reconhecimento da fundamental importância, para seu próprio ofício, do que chamaríamos "imaginação histórica". N o sentido amplo do termo, vivemos hoje notoriamente uma crise da L Adaptado, sem maiores acréscimos ou cortes, apenas com correções e alterações que se impõem à linguagem escrita, de uma palestra com o mesmo título. 139

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Texto em pdf pesquisável.Fonte: BRITO, Ronaldo. Experiência Crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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  • de realidade, uma presena e uma inteligibilidade pblicas cotidianas. Mes-mo porque, nunca se sabe, pode muito bem estar a caminho a Semana deArte Ps-Moderna.

    Fato esttico e imaginao histricaExtrado de Cultura: substantivo plural, 1996

    Este texto I pretende apenas desenvolver algumas reflexes e ponderaeslivres acerca do nosso trabalho cotidiano no mestrado em histria social dacultura na PUC-RJ. O problema crucial que esse mestrado procura enfren-tar - na medida em que incorporou o programa de histria da arte - temsido o de repensar a histria da arte como disciplina acadmica e terica,enfim, como afirmar seu estatuto "cientfico". Em paralelo, coloca-se aquesto de como uma histria social da cultura pode, superando os impas-ses da tradio, abrir-se, efetivamente, ao fenmeno esttico e incorporarum dado simblico cujo carter exige a reviso de seu conceito bsico deprincpio - o conceito de fato histrico.

    Por algum tempo vigora j uma disciplina de histria da cultura queconsiste em historiar as sries dos fatos culturais e a produo artstica. Umconceito mais contemporneo de histria da cultura torna contudo tal pers-pectiva insuficiente e considera seus critrios precrios, rudimentares. Per-cebe-se que o problema no consiste somente em historiar fatos culturais.A questo incorporar a dimenso da cultura, a dimenso do simblico, ao

    prprio conceito de fato histrico. O que passa a exigir do historiador oreconhecimento da fundamental importncia, para seu prprio ofcio, doque chamaramos "imaginao histrica".

    No sentido amplo do termo, vivemos hoje notoriamente uma crise da

    L Adaptado, sem maiores acrscimos ou cortes, apenas com correes e alteraes que se

    impem linguagem escrita, de uma palestra com o mesmo ttulo.

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  • conscincia histrica. O que viria a ser essa crise? Vem a ser, antes de maisnada, o reconhecimento de que a histria escapa aos desgnios do que sejauma conscincia - O que permitiria compreend-Ia e mesmo projet-Ia ou

    program-Ia -, assim como vem a ser tambm a crise da prpria nooenftica, algo teleolgica, de crise.

    O termo "conscincia histrica" designa o momento do idealismo mo-derno que supunha seria possvel reenderear a histria em sentido emanei-patrio ou revolucionrio a partir da compreenso de suas leis. O que seconstata amargamente agora, com a falncia das ideologias e com o desen-canto cultural que vivemos, a insuficincia do prprio conceito de "cons-cincia histrica". E a a histria da arte - a experincia esttica - teria cer-

    tamente muito a nos dizer. A histria que, anteriormente, via com suspeioos critrios de avaliao esttica, por julg-Ios afinal subjetivos, comea a seinterrogar sobre os eventuais mritos, sobre a eventual perspiccia crtica,dessa prtica eminentemente incerta, dubitativa, do historiador da arte.

    A histria da arte passa desde logo a interessar histria na medida emque envolve uma ambigidade, uma relatividade, um questionamento queno somente da ordem da conscincia mas, sobretudo, da ordem da vivn-

    cia. Talvez, em lugar de conscincia histrica, o que se precisa hoje seja deuma autntica experincia histrica. E por experincia histrica entenda-seuma inter-relao entre sujeito e objeto de tal forma que no h diferenantida entre critrios objetivos e padres subjetivos.

    A disciplina da histria da arte, para se impor, para obter estatuto uni-versitrio, postulou alguns princpios que deixavam intacta a questo do ju-zo esttico da obra. Wolfflin, entre outros, fez isso. Era necessrio que o ju-zo esttico permanecesse de fora pois no dava conta do quesito objetividade.Eis a dificuldade da histria em lidar com o fato artstico: nele so insepar-veis o princpio formal de construo e o elemento histrico de sua fora derevelao, de sua potncia esttica propriamente dita.

    O historiador da arte sempre lidou com a contemporaneidade do objeto- ali estava ele - tanto quanto com o fato de que aquele objeto, sendo o mes-mo, parece falar sempre de forma diferente. O caracterstico do trabalho dohistoriador da arte , a partir do juzo esttico, colocar em xeque a tpica divi-so da cultura ocidental entre sensvel e inteligvel, particular e universal. Na

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    prtica, ele est sempre inevitavelmente tentando aplicar critrios de ordena-o objetiva e, concomitantemente, engajado no embate sensvel com as obras.

    Apoiada em princpios positivistas de ordenao, a histria tradicionalcompunha uma narrativa - que mal se reconhecia como tal - b~seada natransparncia de seus objetos tericos, tais como o "curso do tempo". Onovo historiador tem cada vez mais a conscincia aguda de que a histria escrita e escrita por ele, historiador. Ele escreve a histria, parte dela, e nomomento em que a escreve constri uma histria a partir de certo padro de

    narrao, segundo uma forma. No momento em que se depara com o pro-blema do escrever da histria, aforma que est dando ao suposto curso obje-tivo de acontecimentos, se sabe, fatalmente, uma conscincia contempo-rnea a expor os limites da suposta objetividade, os limites da suposta

    transparncia dos fatos.Merleau-Ponty, num texto em que menciona a Revoluo Francesa,

    dizia que se a revoluo tivesse ocorrido uma vez estaria ocorrendo semprepara quem a interroga, seja filosfica ou historicamente. O que postulava,fenomenologicamente, era que qualquer historiador, diante de qualquerevento, sempre um contemporneo. O historiador trata dos eventos nopresente, com sua armadura cultural, com sua estrutura epistemolgica,conformando esse objeto. Para Merleau-Ponty, no existiria passado em ne-

    nhum sentido estvel do termo.Tal relao com o tempo e com os eventos o dilema e, tambm, 0-

    prazer especfico do historiador da arte. A experincia, sempre contempo-rnea, que os objetos da histria da arte proporcionam ao historiador inver-te a ordem dos problemas iniciais; na medida em que o historiador faz aexperincia atual do objeto que interroga, toda a feio cultural do indiv-duo e de sua preparao condicionam a realizao de seu trabalho.

    Subitamente, o historiador dito objetivo, o historiador com seus m-todos e suas certezas, quem comea a interrogar a histria da arte e a pr-pria arte de maneira a que possa vir a manejar um conceito plstico de fato

    histrico. Um conceito plstico reconhece que o fato histrico tem um ladooculto, e que nenhum fato um todo indiviso; ao contrrio, fatos so entesmutveis, fluidos, e demandam um conceito renovado, necessariamente di-ferenciado, sobre o seu coeficiente de realidade.

    I4I

  • Esta a perplexidade que a histria est vivendo - quanto mais se apro-pria dos documentos, quanto maior o seu volume textual, mais o problemade sua prpria forma se coloca diante de sua voracidade. Quanto mais ohistoriador interroga os fatos, mais conhece os vrios relatos dos fatos,

    menos acha que sabe. Os fatos lhe chegam por todos os lados, por todos osmeios, com diferentes coloraes, a tal ponto que percebe que no existemfatos isolados, nem sries estritas; tudo pede a necessidade de uma forma,tudo exige uma Gestalt. Aquele ponto de vista de uma compreenso distan-te, aquele olho ciclpico renascentista, enfim, a possibilidade mesma de umponto de vista torna-se problemtica.

    Deveramos, talvez, substituir o conceito de conscincia, a noo deponto de vista histrico e o conceito de viso de mundo por um conceito deexperincia da histria, um conceito de experincia da vida, desde que talconceito seja entendido como vivncia e pensamento, no qual no se possaexatamente separar o sensvel do inteligvel, o particular do universal, aconscincia da inconscincia, o imaginrio do real. Da o historiador come-

    a a perceber que a histria, efetivamente, depende de sua "imaginao".Uma histria mal escrita uma histria mentirosa. A histria comea

    por ser bem escrita. No pretendo com isso, claro, que o historiador ve-nha a falsear uma realidade, tantas vezes atroz. Mas o ato de escritura ele

    prprio no pode ser um ato miservel ou atroz. Pode surgir um poeta domiservel, que faa eventualmente da misria um tema da poesia, no ummiservel poeta!

    O historiador comea agora a sentir a sua falta de cultura, na acepo

    um pouco arcaica do termo, e repe em parte a questo da erudio, a ne-cessidade do contato mais estreito com o fato esttico. Pois ele se d conta

    de que o modo como sente a vida, o modo como sente os fatos, parte in-trnseca do real.

    Uma das dificuldades crnicas que a arte e a histria da arte sofremdecorre do fato de que a arte tomada como representao do real, reflexodo real- tanto pelas pessoas de um modo geral, quanto por muitos intelec-

    tuais -, aparecendo, quase sempre, como a representao de um imagin-rio subjetivo. muito difcil, para nossa cultura, reconhecer no fato arts-tico uma ordem fatual que, paralela aos outros modos de instituio,

    constitutiva do real. No h como tirar da histria da modernidade ociden-

    tal a realidade do fato esttico. No h como tirar da modernidade a con-

    quista crucial da autonomia esttica.Max Weber, o clebre socilogo, j no incio do sculo definiu o mun-

    do moderno a partir da autonomia de trs esferas: a esfera do jurdico, dosdireitos do cidado, incluindo a seus direitos privados; a esfera da razocientfica, que chamou de teleolgica; e a esfera da autonomia do juzoesttico, a autonomia do gosto. O gosto, finalmente, um componente his-

    trico e parte intrnseca da constituio do real.Nietzsche dizia que tudo afinal se resumia a mudar o gosto. A sen-

    sibilidade deixa de ser assim "subjetiva". Ao contrrio, a dimenso dasensibilidade vincula-se experincia histrica do real. No se trata deapurar ou depurar a conscincia, no se trata de construir um monumen-to de conscincia histrica. Fazer histria fazer a experincia do maior,diante do qual vivemos em situao de carncia, em situao de demanda,

    mas que no deixa de ser um estado de desafio.A interpretao no se sobrepe aos fatos. Os fatos, em si mesmos,

    so fatos interpretados. Quando se l a histria se l um texto, claro. Oproblema do narrar, o problema do escrever a histria um problema his-trico. Obviamente no estou dizendo que inexista o real. Mas, quando oreal se torna histrico e captado no interior de outra ordem, efetivado naordem da linguagem. Quando o historiador contemporneo percebe que

    utiliza uma linguagem -linguagem que no s verbo e escrita, tambmum mtodo, uma ttica de pensamento, um projeto de compreenso -,obriga-se a um comprometimento cultural. Num sentido muito amplo, pas-sa a sentir como a filosofia lhe imprescindvel para a compreenso ntima

    da metafsica ocidental, dentro da qual seu trabalho ainda problemati-camente se encontra. Assim, ele pode observar as premissas idealistas queoperam, sem que suspeitasse, na base da sua histria. E como essa origeme essa tradio conduzem a determinada concepo de histria, a certa con-

    cepo de verdade.Um grave problema se insinua quando observamos a incorporao

    crescente, por parte dos historiadores contemporneos, de diversos obje-tos - alguns at bastante localizados -, plasmando formas histricas de

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  • significao que permeiam toda a sociedade, desde as relaes econmicasat um certo artesanato, certa produo modesta de tecido ou joalheria. Aconstante repetio desse procedimento nos leva a suspeitar dessa reduodas obras de arte a objetos culturais de certa comunidade. Numa fico

    assim construda, perde-se o essencial da experincia esttica: exatamenteapotncia esttica das grandes obras. Tornou-se comum interrogar obrasdceis que fazem parte de um conjunto de significados, sem que a sua po-tncia esttica, a sua emergncia como obras de arte sejam assimiladas.

    A potncia esttica das grandes obras coloca um desafio para o histo-riador que tende a supor que essa potncia no histrica, tende a pens-Iacomo fenmeno de outra ordem - o que seria absurdo - ou que teme instin-tivamente essa potncia. Para esse historiador, no entanto, h um campo deobservao muito interessante e que est reduzido at agora comunidadeartstica, histria da arte, que o campo de formao do consenso esttico- processo pelo qual uma obra vai se tornando paradigmtica sem que issoseja derivado da ao deliberada de um grupo ou de um poder central qual-

    quer. A formao de tal consenso no qual, com o tempo, as obras vo im-pondo, embora de maneira imprevisvel, sua prpria evidncia, permite queas pessoas especializadas em determinados campos de conhecimento alcan-

    cem a sua qualidade especfica. Tal processo expe a existncia de um dife-rencial que, at segunda ordem, parece torn-Ias irredutveis ao processo deconstruo de sentidos da histria. Pensando dessa forma, camos novamen-te no equvoco de separar importncia histrica e evidncia esttica.

    O termo "aura", e todo um discurso acerca dele, consagrou uma vi-so da arte como o substituto moderno da religio. Essa impregnao dereligiosidade caracterizaria a relao do homem moderno com a obra de

    arte e sua "aura" de sagrado. De certo modo, nos acostumamos a olharcom suspeio, desconfiados, a potncia esttica das grandes obras. Porm,

    a meu ver, a "aura" do sagrado que um componente da fora esttica-o fenmeno esttico transcende a "aura" -, a pulso esttica irredutvelao sagrado. O sagrado, ele sim, seria redutvel ao impulso esttico, sensi-bilidade humana perante a vida. A arte pode muito bem passar sem "aura"

    e, ainda assim, conservar sua fora de emergncia que torna sua evidnciaplstica alguma coisa que escapa ao historiador "tradicional".

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    Existem historiadores, em particular o italiano Giulio Carlo Argan,que, com todas as suas premissas idealistas, detm entretanto uma com-preenso intrnseca da potica das obras. Fluem, por assim dizer, entre aarte e a histria. Argan, no caso, apresenta um desgnio terico bastanteprodutivo: compreender o valor esttico como o prprio valor histrico. Ahistoricidade seria fator constitutivo do valor esttico. O prprio conceitode histrico passa a envolver uma questo esttica qualitativa. No seu fazermesmo, a arte seria uma modalidade histrica, pois se repe continuamen-te' na verdade o seu modo de incorporar a vida a transforma, no limite,, ,em modelo de historicidade.

    A partir de tal esquema terico, o problema do historiador se deslocada pergunta estril de procurar, por exemplo, a relao entre "Velzquez eseu tempo" para problematizar a verdadeira historicidade da arte. Tal his-

    toricidade faz com que, estranhamente, algum possa dizer uma verdadesobre Rembrandt e outra pessoa possa dizer uma verdade diversa sobre omesmo Rembrandt, contrria verdade inicial, e as duas permaneceremautnticas verdades. Verdades que atestam d~is modos de experimentaruma verdade da obra de Rembrandt. Esse modo de compreenso nos daria

    um modelo de verdade bem diferente dos critrios de verificao, adequa-o e clculo tradicionalmente utilizados pelo discurso histrico. O fato deo texto literrio ou a obra de arte serem contemporneos do esforo decompreenso recoloca, enfaticamente, a questo do envolvimento do his-toriador com a obra.

    O pblico em geral tem uma idia inocente, altamente insuficiente,acerca da experincia da arte. Acredita, entre outras coisas, que exista oconnaisseur, o crtico de arte, algum autorizado a falar sobre os objetos dearte porque os conhece e os domina. No existe nada disso, hvio. Nin-gum connaisseur por princpio ou mritos pretritos: s se conhece artequando se a est experimentando. Nada sabemos de Mir, seno quandovivemos a experincia de sua obra. Se falamos dele, sua obra est em nos-

    sa mente. Se no estivermos com ele, nada podemos dizer. da natureza daarte reclamar esse envolvimento, uma experincia com a presena atual.

    Inexiste frmula, portanto, diferentemente do campo matemtico que podeesquecer da essncia da matemtica e continuar a usar eficientemente a sua

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  • frmula. A experincia artstica - por isso um modelo para a experinciahistrica - algo que s se cumpre em ato. S se pode falar da experinciada arte de dentro, da que ningum possua, apriori, autoridade dessa fala.Falar de uma obra de arte, de uma potica, ingressar em um domniofluido do qual, a rigor, ningum volta o mesmo. A experincia da vida mo-derna, nossa experincia da histria atual tem muito a ver, se no me enga-no, com semelhante lan. Talvez o que esteja faltando seja o prazer, a graa,a recompensa que a experincia esttica propicia e que o real, na medidamesma em que real, parece quase sempre recusar.

    Mas, afinal, quem o historiador? Aquele que sofre de paixo cr-nica pela realidade.' Ou est altura desse envolvimento passional, ouno ser capaz de produzir histria. No produzir forma histrica por-que uma forma histrica sempre uma produo. No digo que seja obrade arte, mas com certeza trata-se de algo que se faz num esforo de cria-o e com linguagem autnoma. Subitamente, as dificuldades e os irnpas- ,ses da histria da arte, se no resolvem absolutamente os problemas dahistria, at certo ponto, passam a ser paradigmticos. A histria com-preende agora a construo de seu objeto como diverso da construo deuma estrutura lgica, que se apresenta necessariamente da mesma forma.Grande parte da prpria histria da arte e seus derivados, sobretudo osseus aspectos patrimoniais, permanecem inspirados, infelizmente, nessadissociao entre a materialidade das obras e o fenmeno esttico. Como

    se fosse possvel conservar a materialidade dessas obras dissociada de suaavaliao esttica. Essa impossibilidade mostra, por si s, essa estranhaverdade: o fato, materialmente, est ali mas o fenmeno no imediata-mente visvel. necessrio extrair o fenmeno - a forma - do fato. Umquadro, em certo momento, pode no ser nada para algum. O mesmo

    quadro, em outro momento, quando esse algum j est preparado, reve-la-se fenmeno esttico. Isso semelhante, em todo caso no muitodiferente, do que Ocorre com os fatos. Um fato s fato histrico, na acep-o elevada do termo, quando se captam seu fenmeno, sua emergncia esua razo de ser.

    2. Mas casado, querendo ou no, com a linguagem.

    A potncia esttica das grandes obras tem muito a nos ensinar acercada fora de propagao histrica dos acontecimentos cruciais: tais eventosso cruciais, entre outros motivos, por sensibilizarem, mobilizarem as pes-soas, condicionando, propondo e dando outra forma vida. Isso produ-zido por agentes vivos, relativamente conscientes, mas ultrapassa as suasconscincias. E produz uma experincia que, na medida mesma em que experincia na acepo aqui referida, escapa a uma conscincia.

    A prpria histria da arte, grande parte dela, tratada como se a suafuno fosse conservar, ser o lugar por excelncia da memria insigne dopassado. Porm tal conceito de memria muito pobre, convenhamos. Anoo de memria como mera conservao est ligada a uma inteligncia

    primria de tempo, balizada por referncias simplistas de passado, presentee futuro. Esse conceito de articulao histrica, fundamentalmente causa-lista, toma a histria como um conto tradicional com princpio, meio e fim.Mas a histria no tem fim, bem como no teve incio. A histria um pro-

    cesso em aberto, uma interpretao ininterrupta, remorso e projeto.H pouco tempo, aqui mesmo num dos auditrios do CCBB, ocorreu um

    incidente que bastaria para nos levar a refletir sobre a relao entre arte ehistria. Durante uma mesa-redonda acerca das pinturas e dos desenhos de

    Roland Barthes, uma senhora da platia tornou pblica sua preocupao coma eventual entronizao na histria da arte dessas obras despretensiosas des-se clebre crtico literrio em razo do esforo crtico que se estava ali reali-zando. Isso seria um verdadeiro absurdo, ao ver da interlocutora, pois Ro-land Barthes no mereceria a glria insigne de entrar para a histria da arte.Ora, a histria da arte no nenhum prdio onde se guardem obras segun-do um critrio determinista do que deva ou no estar ali dentro. Esta umaconcepo tradicionalista que enxerga seu campo como o panteo. Por outrolado, o fato de haver uma histria da arte, no sentido forte, indica que o que histrico propriamente dito vem da potncia esttica dos grandes artistas.

    No consigo evitar de olhar com certa antipatia a "histria dos peque-nos artistas". Esforo que me parece, muitas vezes, uma tentativa de esca-motear uma evidncia perturbadora. A potncia esttica coloca um dilemaqualitativo que exige do historiador uma redefinio do processo simbli-co da cultura e vejo a ~o uma exemplaridade arcaica qualquer mas um

  • poder de emanao histrico ainda maior. No acho que o fato esttico for-je a histria graas a seu carter excepcional; ele, no entanto, revela melhora prpria dinmica da historicidade. Por isso mesmo mais enigmtico,presta-se menos a contextualizaes confortveis. com ele que a histriatem que se debater. Se fizermos da histria da arte o lugar da exceo, daexemplaridade, da singularidade ideal, o lugar da aura e do gnio, estare-mos contudo falseando a prpria experincia esttica. O interessante na ex-perincia esttica exatamente o seu critrio de transformao qualitativa- o que, para uma experincia efetivamente moderna e democrtica, meparece hoje mais do que oportuno, fundamental. Quando se comea aapreciar certo nvel de formalizao torna-se logo intolervel um nvel in-

    ferior. Quem vive no embate contnuo de fazer a experincia de grandesobras tende a no suportar as pequenas, as falsas obras.

    Li em Adorno uma frase meio antiptica mas que aponta algo sobre oqual quase nunca nos damos conta: inexiste a m cincia, cincia cincia;

    mas existe a m arte e a m arte pe de fato em risco a essncia da arte. Nolimite, a m arte uma afronta arte. O que demonstra a sua imensa fragi-lidade: a.qualquer momento pode vir a morrer. E, certamente, na experin-cia da arte h sempre um impulso de autotransformao, auto-superao,concomitante a essa angstia da insuficincia e da indeterminao.

    A experincia da arte, mesmo para o leigo, est sempre vinculada auma fala, a um esforo verbal de compreenso. bom lidar com esseesforo. Para o historiador ele particularmente instrutivo porque a his-tria lida afinal com palavras. O historiador l a histria. E como a l ten-

    de a acreditar que a compreende. Neste ponto a obra de arte serve de im-prescindvel advertncia. O historiador para comear deve passar a nocompreender a histria. Suspeitar sistematicamente dessa compreensoinicial, renovar a aventura da interrogao. A sim reconhece e retoma aperplexidade diante do fato histrico. Este me parece o mnimo de bomsenso terico e de critrio esttico para se enfrentar a complexidade deuma histria que no cabe em nenhuma conscincia, nenhum programa,no passvel de compreenso esquemtica - dialtica ou analtica -, no passvel de ordenao estvel, nem cabe em processos, sries, a no ser

    que sejam sabiamente plsticos.

    Um antigo conceito esttico, o velho conceito daforma, torna-se afi-

    nal mais realista, faz mais sentido enfim para a histria, do que os esquemaslgicos de conexo, e adequao, e mesmo, talvez, mais do que os conceitospresentes nas pragmticas de compreenso histrica. Ou melhor, talvez sedeva acrescentar problematicamente a todas essas correntes se elas conse-guirem atinar com seu inexorvel. Em arte, o conceito da forma interes-

    sante e instigante justo porque a forma nunca est fixa em lugar algum. Saparece quando a detectamos. Quando revemos as grandes obras no as re-vemos para confirmar nada, vamos v-Ias na nsia de que de novo nos apa-ream! Eventualmente no aparecem e pronto. Eis um estilo mais contem-porneo de lidar e de evocar a realidade. Esta talvez seja a forma simblica

    nos fatos: a forma dubitativa, incerta, da dimenso simblica.Para a histria, dentro do tema cultura. Substantivo plural, cultura

    no algo que se acresa vida, que a ela se some. O homem , de sada,animal interpretativo, animal cultural. No h vida e depois cultura. No

    h formao cultural independente da vida. Toda vida j vida em cultu-ra obviamente desde logo condicionada e elaborada. E, no entanto,, ,quando aos polticos faltam todos os outros argumentos, a e s a apelampara a famosa "crise cultural". Desde sempre existiu, existe e existir oproblema da "crise cultural", ela no se desprega da estrutura do real. Porisso, to incuo e improdutivo pretender "explicar" o fenmeno cultural

    por fatores causais, econmicos ou sociais; to incuo quanto querer que acultura resolva o problema da estrutura bsica do real. cultura no cabe,absolutamente, a "soluo" da vida material. Da mesma maneira, no seruma estruturao material da vida em que a cultura tratada como secun-dria e irrelevante que vai produzir novas perspectivas culturais, novas

    vidas culturais, enfim.Cultura experincia vivida e assim se incorpora inextricavelmente

    ao real. Os historiadores, felizmente, ficam perplexos ao saber que o fatohistrico fato interpretado, e interpretado tambm por eles mesmos: oproblema da histria tem incio exatamente na relao do historiador comesse fato. J o "velho Kant" falava do gosto, do problema da universali-

    dade do "gosto". Ao pensar o juzo de gosto, Kant inventou o paradoxoda "universalidade subjetiva". Na cultura ocidental, o universal sempre

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  • foi o conhecimento objetivo passvel de mthesis; o subjetivo era a doxa,a opinio relativa. Kant - que pouco entendia de arte - pressentiu umadimenso especfica da transcendncia do pensamento que constitua jus-tamente a "universalidade subjetiva". Um pensamento no-objetivo po-rm universal.

    Para ns, na contemporaneidade, o que continua insatisfatrio a res-trio subjetividade. O problema que a arte coloca, e pode ser algo deordem maior do que a cincia, que o debate no se encerra entre objetivi-dade e subjetividade. Ao fracassar, a poltica lana mo do argumento cul-tural. Mas a poltica tambm um fato cultural. H uma cultura poltica,

    uma sensibilidade poltica e, se a cultura poltica fosse um pouco mais de-senvolvida, se houvesse uma efetiva sensibilidade poltica, no ouviramosdos polticos o que to freqentemente somos obrigados a ouvir. No h,pelo menos no Brasil, uma cultura poltica na acepo autntica da expres-so. A poltica aqui no vivida e sentida como algo que exprima uma ver-dade para a comunidade. Assim, limita-se a um instrumento burocrtico,um exerccio violento e opaco de poder. Com certeza, no poltica no sen-

    tido grego do termo, da plis, no poltica no sentido aristotlico.A verdadeira poltica s comea quando h dilogo. algo falado, ne-

    cessria e incessantemente falado. A idia de cultura que se tem no Brasil arcaica, a sociedade no consegue produzir uma dinmica real de cultura. Fi-camos, ento, com sua caricatura: uma fantasia de vida, compensao simb-lica e subjetiva. O que o Brasil pede da cultura um efeito imediato de com-

    pensao, alegria e identidade. N