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RESSONÂNCIAS FILOSÓFICAS

XXII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE

Volume III:

Conferências e Minicursos

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Imagem da capa: https://pixabay.com/pt/coruja-bird-animal-natureza-1996169/

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Célia Machado Benvenho José Dias

Junior Cunha (Organizadores)

RESSONÂNCIAS FILOSÓFICAS

XXII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE

Volume III:

Conferências e Minicursos

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2018

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Copyright 2018 by Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. José Aparecido Pereira – PUC-PR

Dr. José Beluci Caporalini - UEM Dra. Lorella Congiunti – PUU – Roma

REVISÃO FINAL: Prof.ª Luciana Bovo Andretto

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Junior Cunha

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores

Os textos aqui publicados são de total e exclusiva responsabilidade de seus autores e tradutores.

Editora Vivens Conhecer é Poder!

Fone: (45) 3056-5596

Celular: (45) 9-9995-9031

Site: http://www.vivens.com.br E-mail: [email protected]

Ressonâncias filosóficas: volume III: conferências

R435 e minicursos / organizadores, Célia Machado

Benvenho, José Dias, Junior Cunha. – 1. ed.

e-book – Toledo, PR: Vivens, 2018.

332 p.

“XXII Simpósio de Filosofia Moderna e

Contemporânea da UNIOESTE”

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-71-9

1. Filosofia.

CDD 22. ed. 106.3

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .........................................................................................9

PRIMEIRA PARTE Conferências .................................................................................................. 15

I A APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO DE HEIDEGGER PELA DASEINSANÁLISE Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo ...................................................................... 17

II A FILOSOFIA DO DIREITO E O FORMALISMO ÉTICO KANTIANO Flamarion Tavares Leite ..................................................................................... 37

III A ELABORAÇÃO HEIDEGGERIANA DO CONCEITO DE TEMPO ENTRE 1915 E 1927 Renato Kirchner .................................................................................................. 53

IV LA CESTA DE SATURNO de la ética del tributo a la política del impuesto Gonzalo Aguirre ................................................................................................. 77

V A CESTA DE SATURNO da ética do tributo à política do imposto Gonzalo Aguirre Tradução: Ester Maria Dreher Heuser ................................................................ 91

VI MUNDO Y LENGUAJE. SOBRE LA CERTEZA SENSIBLE EN LA FENOMENOLOGÍA DEL ESPÍRITU DE HEGEL Jacinto Rivera de Rosales Chacon ...................................................................... 105

VII MUNDO E LINGUAGEM. SOBRE A CERTEZA SENSÍVEL NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO DE HEGEL Jacinto Rivera de Rosales Tradução: Luciano Carlos Utteich ..................................................................... 133

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8 Ressonâncias filosóficas - Conferências e Minicursos

VIII SPINOZA i miracoli, l’origine della religione e il finalismo Emanuela Scribano ........................................................................................... 161

IX ESPINOSA os milagres, a origem da religião e o finalismo Emmanuela Scribano Tradução: Ester Maria Dreher Heuser .............................................................. 177

SEGUNDA PARTE Minicursos ................................................................................................... 193

I ASPECTOS DA DIALÉTICA DE KARL MARX André Cressoni ................................................................................................. 195

II GYÖRGY LUKACS aspectos introdutórios a uma ontologia materialista Bruno Gonçalves da Paixão .............................................................................. 219

III SEMINARIO SOBRE LA ANALÍTICA DE LOS PRINCIPIOS Jacinto Rivera de Rosales Chacon ...................................................................... 247

IV SEMINÁRIO SOBRE A ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS Jacinto Rivera de Rosales Chacon Tradução: Luciano Carlos Utteich ..................................................................... 289

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne os trabalhos escritos provenientes das Conferências e Minicursos apresentados no XXII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE, realizado entre 06 e 10 de novembro de 2017, no campus de Toledo-PR. Diferentes conferencistas discorreram sobre temas de História da Filosofia e da Ciência, Metafísica, Fenomenologia, Estética, Filosofia Política, Ética, Ensino de Filosofia e outras áreas de conhecimento. Trata-se de relevante apanhado do muito que se fez no Simpósio, oferecido, agora, ao público sob a forma escrita, que permite o estudo e a meditação mais demorados, próprios ao pensamento filosófico.

O livro foi dividido em duas partes. Na primeira parte foram reunidos os textos referentes às conferências apresentadas durante o Simpósio, num total de 9 capítulos e, na segunda parte, temos os textos referentes aos minicursos que ocorreram durante o evento, num total de 4 capítulos.

O primeiro capítulo, entitulado como “A apropriação do pensamento de Heidegger pela Daseinsanálise”, é de autoria da professora Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que se propõe a investigar o modo como a psiquiatria e a psicoterapia se apropriam do pensamento de Heidegger e até que ponto essa interlocução se mantém afinada com a proposta de Heidegger sobre a existência e o seu caráter de incontornabilidade. Para poder esclarecer as questões propostas, a autora trabalha algumas concepções que se apresentam mais intensamente discutidas no interior das daseinsanálises: ser-aí e ser-no-mundo; próprio e impróprio; restrição e liberdade e, por fim, cuidado.

O professor Flamarion Tavares Leite, da Universidade de João Pessoa (UNIPÊ), Pernambuco, examina no segundo capítulo “A Filosofia do Direito e o formalismo ético Kantiano” como as concepções de Kant acerca do Direito Político e do Direito Penal, que constituem importante núcleo da sua Filosofia do Direito, estão determinadas pelas premissas do seu formalismo ético, consubstanciado no fato de que é a mera forma da nossa lei moral o que nos determina moralmente, conforme estatui o imperativo categórico: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2009b, Ak 421). Flamarion destaca que, para Kant, uma ação tem pleno valor

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10 Ressonâncias filosóficas - Conferências e Minicursos

moral apenas quando é realizada por dever, sem estar ligada a inclinações ou intenções egoístas. “O dever é ação necessária por respeito à lei moral”. Esta é a essência do formalismo, característico da filosofia moral de Kant que, por isso, pode ser qualificada como ética formal.

No terceiro capítulo Renato Kirchner trabalha “A elaboração heideggeriana do conceito de tempo entre 1915 e 1927". O autor busca evidenciar as ideias condutoras da elaboração heideggeriana do conceito de tempo a partir de dois textos do filósofo: “O conceito de tempo na ciência histórica”, título da aula de habilitação proferida por Heidegger em Friburgo, em 1915, e “O conceito de tempo”, conferência proferida em 1924, em Malburgo. Segundo o autor, é possível identificar desde as primeiras investigações fenomenológicas do filósofo uma compreensão ontológica do tempo, as quais culminariam nas análises fenomenológicas apresentadas em sua obra Ser e tempo, de 1927.

O professor Gonzalo Aguirre, da Universidade de Buenos Aires, Argentina, trabalha a temática "La cesta de Saturno: de la ética del tributo a la política del impuesto" no quarto e quintos capítulos, sendo que no quinto apresentamos a versão traduzida pela professora Ester Maria Dreher Heuser "A CESTA DE SATURNO: da ética do tributo à política do imposto". Gonzalo compartilha conosco as hipóteses e os resultados provisórios de sua investigação sobre o campo impositivo fiscal, especificamente das atuais reformas tributárias que tem lugar ou se preparam na Argentina e no mundo para enfrentar o desafio do comércio eletrônico virtual informacional. O autor procura reenfocar as questões dos impostos, pondo em marcha uma história-filosófica da tributação que possa reconhecer a especificidade do fisco dos Estados-Nação de Direito modernos.

Os capítulos sexto e sétimo trazem os textos do professor Jacinto Rivera de Rosales Chacon, em sua versão original “Mundo y lenguaje. Sobre la certeza sensible en la Fenomenología del Espíritu de Hegel”, e na versão traduzida pelo professor Luciano Carlos Utteich, da Unioeste “Mundo e linguagem. Sobre a certeza sensível na Fenomenologia do Espírito de Hegel”. O professor apresenta a Fenomenologia do Espírito como uma espécie de “romance de formação” (Bildungsroman) da consciência reflexiva em direção ao ser absoluto. Neste processo de desenvolvimento, a linguagem (conceito) e o mundo sensível são dois elementos diferentes e complementares na compreensão da realidade. A aparição da linguagem, como ato criativo do Espírito, modifica radicalmente a relação da consciência com o mundo, oferecendo a base material para a reflexão e

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Apresentação 11

seus conceitos. A linguagem está presente, mas não substitui o sensível; elabora-o para a consciência, interpreta-o para sua orientação na realidade.

Com os capítulos oito e nove encerramos a primeira parte do livro, trazendo os textos da professora Emanuela Scribano, da Universidade de Vezeza (UNIVE), Itália, em sua versão original “SPINOZA: i miracoli, l’origine della religione e il finalismo”, e a tradução feita pelo professor Stefano Busellato “ESPINOSA: os milagres, a origem da religião e o finalismo”. Scribano faz um profundo trabalho de análise dos conceitos de milagre, origem das religiões e finalismo no Tratado Teórico Político e na Ética de Espinosa. Enquanto o Tratado, o finalismo surge com o propósito de privilegiar um grupo humano sobre outros, na Ética esse uso do preconceito finalístico se instala após o seu surgimento e, portanto, não é causa. Ademais, na Ética, a crença em milagres aparece fugazmente como consequência da mesma ignorância das causas que gerou o finalismo, contribuindo para reforçá-lo e difundi-lo. A hipótese defendida por Scribano é que, na passagem entre o Tratado Teórico Político e a Ética, Espinosa estava convencido da possibilidade de inserir a origem da religião não filosófica entre as múltiplas consequências de um único erro de fundo, em virtude de algum tipo de princípio de economia na gênese dos erros. Com semelhante técnica, na Ética, a origem da crença na existência de “um ou mais deuses” é atribuída a uma visão de mundo inteiramente dominada pelo finalismo antropocêntrico, enriquecendo o quadro da origem da religião presente no Tratado Teórico Político. A crença em um ou mais deuses semelhantes ao homem tem a mesma origem da teoria segundo a qual as propriedades das coisas são semelhantes às percepções que as coisas mesmas produzem no sujeito. No Apêndice à Primeira Parte da Ética, Espinosa reconduz ao finalismo antropocêntrico não apenas todas as formas de religião, mas também todas as teorias que atribuem ao mundo externo características semelhantes àquelas percebidas.

A segunda parte do livro refere-se aos textos produzidos a partir dos minicursos proferidos durante o evento. Como primeiro capítulo temos o texto “Aspectos da dialética de Karl Marx”, do minicurso proferido pelo professor André Cressoni, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Como segundo capítulo temos o texto de Bruno Gonçalves da Paixão, da Unioeste, cujo título é: “GYÖRGY LUKACS: aspectos introdutórios a uma ontologia materialista”; o terceiro e o quarto capítulo trazem os textos do minicurso proferido pelo professor Jacinto Rivera de Rosales Chacon, em sua versão original “Seminario sobre La

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Analítica dos Princípios” e na versão traduzida pelo professor Luciano Carlos Utteich, da Unioeste “Seminário sobre a Analítica dos Princípios”.

O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE de 2017 foi a vigésima segunda edição consecutiva do evento, promovido pelos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia de nossa universidade. Esta regularidade do evento, somada ao contínuo crescimento em quantidade e qualidade, mostra a força do trabalho em equipe, que envolve professores, estudantes e técnicos da instituição. Tivemos, em 2017, mais de trezentos e cinquenta participantes inscritos, com expressiva participação de público em todas as atividades oferecidas; recebemos conferencistas da Itália, da Espanha e da Argentina, além de nomes significativos da filosofia do Brasil; sete conferências e três minicursos simultâneos foram apresentados; ocorreram 120 comunicações (nas várias áreas de pesquisa filosófica e das ciências humanas) e apresentamos diversificada agenda cultural, incluindo lançamentos de livros. A comunidade do município se fez presença marcante, tanto na plateia quanto no auxílio ao financiamento e manutenção do evento. Prova-se, assim, que o trabalho sólido é sempre possível, se instituições e comunidade solidariamente se empenham.

Ao longo desses 22 anos, a participação de estudantes e pesquisadores tem se mantido significativa; tanto de universidades do Estado do Paraná, tais como UEL, UEM, PUCPR, UNICENTRO, UENP, UEPG, UNICESUMAR, UEPG, UNIPAR, FAG, UFPR, UNILA, UNESPAR, IFPR, UTFPR, quanto de outros estados brasileiros, dentre as quais podemos citar a PUCRS, UNISINOS, UFRGS, UNIFRA, UFSM, UPF, UFSC, UFFS, UESC, UNICAMP, UFABC, UNESP, USP, PUCSP, UFRJ, UERJ, UFF, UFMG, UFOP, UFSCAR, UFBA, UNB, UFU, UFC, UFPE, UFAL, etc. O mesmo tem ocorrido com jovens professores e pesquisadores, muitos deles ainda estudantes em programas de Mestrado e Doutorado de vários Estados, além, evidentemente, dos palestrantes de renome nacional e internacional que prestigiaram nossos eventos com suas conferências, provindos principalmente dos seguintes países e instituições: Lisboa, Udelar/Uruguay, Asheville/EUA, Duisburg-Essen/Alemanha, Évora/Portugal, Univ. Valladolid/Espanha, UBA/Argentina, Univ. Tel Aviv, UCA/Argentina, UMSB/Venezuela, Sorbonne/Paris, Unsam/Argentina, Lille/França, Universidade de Urbino/Itália, Coimbra/Portugal, Piza/Itália, entre outras.

É sensível a influência do SIMPÓSIO DE FILOSOFIA da UNIOESTE sobre os acadêmicos de Filosofia e sobre seu interesse na

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Apresentação 13

pesquisa e na atividade filosófica, no estado e em âmbito nacional. A convivência com outros acadêmicos e docentes tem servido de incentivo em diversas áreas. É, portanto, um evento integrado e vinculado às várias atividades filosóficas, tais como pesquisas, ciclos de palestras, grupos de pesquisa cadastrados no CNPq e na Fundação Araucária, grupos de estudos, seminários, Grupo Pet-Filosofia, Grupo PIBID-Filosofia, cursos de especialização e outras atividades afins; é expressão do trabalho e do desempenho de seus docentes, em nível interno e externo.

Por fim, esta tradição de ser um evento de qualidade e em sua vigésima segunda edição não seria possível sem o apoio financeiro das agências de fomento: Fundação Fausto Castilho, Fundação Araucária, Reitoria e Pró-Reitoria de Extensão da UNIOESTE (PROEX) e PPGFIL/Unioeste (Programa de Pós-Graduação em Filosofia). Sem esse aporte, a participação dos renomados convidados do exterior e de professores brasileiros que sempre abrilhantaram as edições anteriores estaria inviabilizada. Nossa gratidão a todos os mencionados, direta e indiretamente, fica registrada aqui, junto ao convite para que as próximas edições continuem mostrando nosso compromisso brasileiro, paranaense e toledense com a difusão pública da pesquisa, do ensino e da extensão em Filosofia.

Os Organizadores

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PRIMEIRA PARTE: Conferências

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I

A APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO DE HEIDEGGER PELA DASEINSANÁLISE

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo*

Estudiosos atuais das ciências psi, ao perceberem a insuficiência do modelo das ciências naturais para os estudos do psiquismo humano, foram buscar no romantismo (GUINSBURG, 2008), na fenomenologia de Husserl (1901/2007a; 1910/2007b), na filosofia da existência em Kierkegaard (1844/2010), Heidegger (1927/2003), Sartre (1943/1997), Merleau-Ponty (1945/1994), dentre outros, elementos para pensar a psiquiatria e a psicoterapia em outras modulações. Psicólogos e psiquiatras, desde a década de 40 do século passado, não pouparam esforços no sentido de poder pensar suas ciências em outras bases para além das perspectivas tecnicistas. Dentre os psicólogos envolvidos na tarefa que compreendia o homem em sua totalidade, destacamos Abraham Maslow (1968), Rollo May (1974/1977), Thomas Greening (1975), Charlotte Bühler (Greening, 1975) e James Bugental (Greening, 1975). Os psiquiatras foram Eugène Minkowski (1958,1968; 1993), Von Gebsattel (1969), Hubert Tellenbach (1969/1999), Arthur Tatossian (1980), Ludwig Binswanger (1977a; 1977b; 1977c), Medard Boss (1958; 1959; 1981; 2011), dentre outros.

* Possui graduação em Psicologia pela Faculdade de Humanidades Pedro II (1976), mestrado em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1983) e doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000) com pós-doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001) e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). É Professora Adjunta da UERJ, atuando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e no Curso de graduação em psicologia. Coordena na UERJ o Laboratório de Fenomenologia e Estudos em psicologia Existencial (LAFEPE). Vice-diretora do Instituto de Psicologia. É bolsista produtividade -PQ2 - CNPQ e Procientista da UERJ. Participa do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em psicologia). Sócia fundadora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), Presidente da Asociación Latino-americana de Psicoterapia Existencial (ALPE), no Brasil, Membro Honorário da Sociedad Peruana de Psicología Fenomenológico Existencial (SPPFE). Member of the Honorary Scientific Committee the International Journal of Psychoterapy, vice-presidente da Associação de Psicologia Fenomenológica.

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18 Ressonâncias filosóficas - Conferências e Minicursos

Um segmento que se ergue na tentativa de sair da tendência de tomar o homem em sua objetividade é a perspectiva humanista, que se opõe às tendências mecanicistas e fragmentadoras do comportamento humano. Em um desdobramento da tendência humanista em psicologia, surge um movimento que se denominou Terceira Força em Psicologia. Trata-se de uma perspectiva que agrupa diferentes tendências e guarda, no seu cerne, ideais românticos como, por exemplo, crença no inconsciente, ideia de autenticidade, congruência e ampliação da consciência. Esse modo de pensar a psique humana, no entanto, é tomado como insuficiente por alguns estudiosos do universo psi, que passam a buscar na filosofia, especialmente em Heidegger (1927/2003), outros fundamentos.

A apropriação do pensamento de Heidegger em seus diferentes momentos tem acontecido nos estudos psi de modos diversos. Consta na literatura acadêmica que foi Ludwig Binswanger (1881-1966) o primeiro a pensar a psiquiatria e a psicoterapia por meio da ontologia fundamental do filósofo. Medard Boss (1903–1991), no entanto, foi quem deu prosseguimento a esses estudos, tornando-se um ícone da daseinsanálise. Tanto Binswanger quanto Boss conquistaram seguidores – dentre eles, Kuhn (1912-2005), mesmo sendo um estudioso da psicofarmacologia, em seu contato com Binswanger a partir de 1939 defende que não podemos acompanhar o nosso paciente se estivermos totalmente tomados pelas referências científicas. Kuhn (citado por Dastur e Cabestan, 2015) defende ainda que a liberdade do indivíduo se encontra para além de qualquer diagnóstico psicopatológico; Gion Condrau (citado por Dastur e Cabestan, 2015) considera que foi Boss, em seus contatos com Heidegger, nos Seminários de Zollikon (2001), que criou a verdadeira daseinsanálise médica.

Esses estudiosos da daseinsanálise mantinham uma linha de pensamento uniforme acerca da daseinsanálise e de suas premissas: o afastamento do método científico, a valorização da experiência e a ideia de conquista do autêntico. Nos estudos mais atuais, a daseinsanálise cai em um pluralismo que tem como consequência divergências que provavelmente abalam a sua estrutura fundamental. Acredita-se que isso se agrava por dois outros fatores de grande relevância: o acrescimento da perspectiva existencial-humanista, amplamente divulgada por Rollo May, ganhando relevância tanto nas línguas anglo-saxônicas como também na América Latina; a crítica contundente de Heidegger às elaborações efetuadas por Binswanger e Boss no campo da psiquiatria.

Muitos foram, e continuam sendo, os estudiosos (Sá, 2017;

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A apropriação do pensamento de heidegger... 19

Barreto, Morato & Caldas, 2013; Evangelista, 2015; Dutra, 2017) que tentam resgatar a daseinsanálise em suas práticas clínicas. Podemos alocar pelo menos em quatro modos de apropriação do pensamento de Heidegger pela daseinsanálise: daseinsanálise em Binswanger e Boss; daseinsanálise categorial; daseinsanálise como caminho de pensamento; daseinsanálise como psicologia de resistência.

Convém lembrar que a decisão pelo termo daseinsanálise, tal como inaugurado por Binswanger e mantido pelos seus seguidores, advém do termo alemão Dasein, utilizado por Heidegger (2003) em Ser e tempo para referir-se à análise ontológica das estruturas da existência humana. Ainda, em Seminários de Zollikon, Heidegger (2001) assinala a possibilidade de se pensar uma clínica psicológica e psiquiátrica por meio de pressupostos fenomenológicos e hermenêuticos.

Cabe, agora, perguntar pelo modo como a psiquiatria e a psicoterapia se apropriam do pensamento de Heidegger: até que ponto essa interlocução se mantém afinada com a proposta de Heidegger sobre a existência e o seu caráter de incontornabilidade?

Frente à apropriação da fenomenologia e da hermenêutica pelos estudos em psicologia e psiquiatria, a seguinte dúvida se impõe: como seria, então, para o psicólogo se aproximar do fenômeno existência em seus desdobramentos por meio do que Heidegger denominou fenomenologia hermenêutica?

Para poder esclarecer as questões postas anteriormente, iremos nos ater às seguintes concepções: ser-aí e ser-no-mundo; próprio e impróprio; restrição e liberdade e, por fim, cuidado. A escolha de tais concepções se deve ao fato de serem aquelas que se apresentam mais intensamente discutidas no interior das daseinsanálises. Mostraremos como as diferentes daseinsanálises se apropriam dessas concepções e, por fim, o quanto tais apropriações se encontram afinadas com a ontologia fundamental elaborada por Heidegger. 1.1 A DASEINSANÁLISE EM BINSWANGER E BOSS

O termo daseinsanálise foi adotado por Binswanger em 1941 para substituir a denominação “Análise Existencial”. Esta última expressão foi utilizada pela maioria dos psicólogos e psiquiatras que se opunham ao determinismo e ao instrumentalismo das teorias científico-naturais. A utilização do termo em tamanha amplitude acabou, muito mais, por demarcar um espaço de oposição às psicologias científicas ou

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20 Ressonâncias filosóficas - Conferências e Minicursos

psicodinâmicas do que propriamente caracterizar uma identidade positiva. Por esse motivo é que Binswanger toma o termo daseinsanálise para designar uma abordagem em psicologia e psiquiatria que se propõe a manter um diálogo rigoroso com as elaborações acerca do Dasein, presentes em Ser e Tempo. Com essa aliança, passamos, então, a compreender o homem não mais como resultado de um determinismo e nem mesmo como forças e complexos psíquicos que agem de modo oculto nas suas expressões aparentes.

Binswanger (1977a; 1977c), ao articular a ontologia fundamental de Heidegger à clínica psiquiátrica, parte das seguintes noções: projeto existencial, mais especificamente da relação entre o ser-aí e o seu caráter de poder-ser; estrutura ser-no-mundo na dinâmica propriedade e impropriedade; disposição afetiva da angústia como suspensão das possibilidades determinadas pelo impessoal; cuidado.

A noção de projeto na constituição do ente privilegiado, que se caracteriza pela indeterminação originária, diz respeito ao campo de sentidos que se articulam junto à impessoalidade, sustentando recortes significativos diversos que tornam possíveis os comportamentos do homem.

Ser-no-mundo, em Heidegger, é uma concepção de base na constituição de sua ontologia fundamental, desenvolvida em Ser e tempo. Trata-se de uma estrutura complexa de uma unidade simples (isto é, totalidade) que se denomina ser-no-mundo (estrutura circular). Tal estrutura implica sempre em ser-com, na conformidade da impessoalidade (impróprio) e da pessoalidade (propriedade). O impessoal aparece por meio do índice elementar – ser-no-mundo – logo, essa estrutura é hora, instante do real, de todo real possível. Mundo refere-se à articulaçao de sentidos – phatos, que diz respeito ao fato de que é mundo que instaura uma situação, uma circunstância que define ser-no-mundo. Segundo Barbosa (1998), é com a noção de ser-no-mundo que Binswanger adentra o campo da psicopatologia e é por meio desse existencial que homem e mundo se articulam cooriginariamente. E é desse modo que Binswanger (1977b) acrescenta que se interessou em investigar essa estrutura fundamental da existência, tal como aparece em suas partes essenciais, sempre resguardando a sua estrutura de ser-no-mundo. Assim, o psiquiatra em sua análise existencial retoma a concepção de ser-no-mundo em outras bases, ou seja, nós-somos-no-mundo-para além-do-mundo. E é desse modo que o psiquiatra compreende o modo de ser alterado nas doenças mentais.

Em Heidegger (1927/2003) encontramos que o projeto se

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A apropriação do pensamento de heidegger... 21

constitui por sentidos fornecidos pelo mundo, tornando possível a apropriação de significados, uma vez que o mais próprio ao ser-aí é a sua indeterminação originária. Por isso, as orientações sedimentadas do mundo precisam aparecer e ser operacionalizadas por meio do ser-aí. No interior do projeto impróprio é o mundo que prescreve e diz o que se deve fazer, ditando ainda o sentido do que se deve fazer. Como afirma o filósofo, é na impropriedade que nos encontramos no início e na maioria das vezes. Na propriedade, a experiência de sentido se abre para o caráter de poder-ser do ser-aí. Assim, o próprio é uma modulação do impróprio, já que mesmo aquilo que se toma como singular ainda depende da familiaridade com o mundo.

Para Heidegger (1927/2003), o abrir-se do ser-aí ao seu caráter de poder-ser é decisivo frente à tonalidade afetiva fundamental da angústia: situação limite em que o ser-aí pode se confrontar com o seu poder-ser, ou seja, sua negatividade original. Binswanger, por um lado, considera a importância da angústia para compreender a enfermidade mental; por outro lado, inverte a tese do filósofo e diz que aquele que se apresenta transtornado já se encontra em uma situação limite em que a negatividade se anuncia. O transtorno já é o anúncio da negatividade, por isso faz-se necessário, nesses casos, o resgate da familiaridade perdida.

Binswanger (1997b), em direção contrária à proposta por Heidegger sobre a angústia e a dinâmica da propriedade e impropriedade, conclui que a vida comumente só pode se constituir na impropriedade; logo, na enfermidade mental ocorreria uma perda de familiaridade com aquilo que é mais familiar ao ser-aí: a cadência pela qual se constitui a impropriedade. É a enfermidade que inviabiliza a articulação de sentidos possíveis uma vez que reduz, encurta os projetos existenciais. A clínica psiquiátrica em Binswanger dar-se-ia na tentativa de retomada da familiaridade perdida por meio da reconquista, da rearticulação do projeto singular na amplitude do próprio projeto. O encurtamento das possibilidades se daria na relação restrita ao poder-ser mais originário. A cura se daria pelo reencontro com a medida dada pela própria impessoalidade que, no entanto, vem se encurtando por meio daquilo que é o próprio transtorno.

Binswanger, com base nessa estrutura circular, passa a compreender a doença mental como uma experiência que emerge de situações limites, em que o ser-aí se vê confrontado com sua estranheza constitutiva, fonte de abertura de possibilidade a outros sentidos. Barbosa (1998), nessa mesma direção, defende que: “Partindo da ontologia

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fundamental de Heidegger, Binswanger procura reconhecer a enfermidade como um estilo ou modo particular de ser-no-mundo, como variação ou ‘distorção’ da estrutura ontológica do ser-no-mundo” (p. 9).

Em Formas fundamentais e conhecimento da existência humana, publicado em 1942, Binswanger (citado por Loparic, 2002) reformula a noção de cuidado (Sorge)presente em Ser e tempo, assinalando a insuficiência desse existencial para compreensão da relação entre analista e analisando. Ele passa então a considerar, em sua daseinsanálise, o amor como fundamento de toda e qualquer relação psicoterapêutica, incluindo o existencial amor como base da relação afetiva amorosa que permite a recomposição da familiaridade perdida. A relação de amor entre analisando e analista será o fundamento da daseinsanálise clínica.

Como pudemos acompanhar, Binswanger (1977c) não se afina com alguns elementos fundamentais presentes na ontologia de Heidegger naquilo que diz respeito à relação entre a propriedade e impropriedade e a doença mental; a concepção de ser-no-mundo e a noção de cuidado. Em síntese, Binswanger, ao operar algumas modificações às teses heideggerianas, acabou por perder a essência da ontologia fundamental. Ao modificar a noção de ser-no-mundo para a de nós-somos-no-mundo-para além-do-mundo, o psiquiatra traz um elemento transcendental, modificando o projeto heideggeriano de uma hermenêutica da facticidade. Ao discutir a noção heideggeriana de próprio e de impróprio, que para Heidegger não introduz nenhuma perspectiva valorativa, o psiquiatra introduziu um aspecto moralizante no que diz respeito ao Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt. O caráter moralizante ficou claro quando Binswanger, ao referir-se à repulsa de Ellen West à ingestão de leite, interpreta que desde muito cedo se manifesta nessa paciente uma ruptura entre o Eigenwelt (mundo próprio) e o Umwelt (mundo geral), em uma resistência ao Mitwelt (mundo da relação com os outros).

O psiquiatra passa a descrever diversos casos clínicos – principalmente com diagnóstico de esquizofrenia, como o conhecido caso Ellen West (May, 1977 c) – em que ele aponta para os problemas de alimentação que acompanhavam Ellen desde os nove meses de vida, quando rejeitou o leite. Binswanger esclarece que desde a infância até a vida adulta, Ellen apresentava uma peculiaridade e rigidez frente ao comportamento alimentar, da seguinte forma: “Nessa repulsa ao leite em tenra idade se manifesta uma linha de demarcação entre o Eigenwelt corporal e o Umwelt, uma brecha ou ruptura com o Umwelt, no sentido que aquele adota uma posição conhecida a esse.” (May, 1977c, p. 325)

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É bem verdade que Binswanger inaugura uma nova ênfase na clínica psicológica, que consiste na comunicação e no fazer e desfazer da trama que na própria situação se articula. No entanto, Heidegger (2001) não reconhece na obra do psiquiatra uma afinação com a sua ontologia fundamental. As críticas do filósofo à daseinsanálise psiquiátrica de Binswanger foram severas. A principal crítica diz respeito à estrutura ontológica constitutiva do Dasein, em que Binswanger defende que ao “cuidado” (Sorge) deveria se acrescentar a noção de amor. Com isso, fica claro que ele entende o cuidado como uma estrutura ôntica, mantendo, em última instância, a ideia de uma subjetividade fechada em si mesma, dotada da possibilidade de se relacionar eticamente com os outros a partir da empatia.

Binswanger (1977b) fundou, com a noção de nós-somos-no-mundo-para além-do-mundo, sua antropologia fenomenológica, uma vez que a sua pretensão foi a lida com os fatos e a situação. Ele estabeleceu afirmações ônticas, caracterizando traços efetivos sobre formas e configurações da existência tal como ela se dá na realidade. A antropologia fenomenológica inaugurada pelo psiquiatra foi tomada como uma ciência empírica, com seu método e seu ideal particular de exatidão.

Para Heidegger (1947/1987), a antropologia e o humanismo são metafísicos. Assim, tem-se muitos humanismos, cuja diferenciação está na concepção de liberdade e da natureza do homem. De acordo com Heidegger (1954/2012): “Para acabar essa ponderação, cabe dizer que a antropologia não se esgota na investigação do homem e na vontade de tudo explicar a partir do como de sua expressão” (p.76). Enfim, toda a antropologia reconhece a humanidade como força originária e todas as interpretações possíveis sobre o homem como se fossem pura consequência dessa força. Por fim, na máxima expressão “eu sou”, a antropologia dá destaque ao “eu”, enquanto a ontologia fundamental acompanha o “sou”.

Ao posicionar os existenciais em um plano ontológico, apontando para a necessidade de enunciações ônticas em um plano científico, o psiquiatra recaiu em considerações empíricas, metafísicas e antropológicas que ele (Binswanger 1958/1977a) tentou esclarecer:

A análise existencial de que estamos falando não deve confundir-se com a analítica da existência de Heidegger. A primeira é uma exegese hermenêutica a nível ôntico-antropológico, uma análise fenomenológica da existência humana real. A segunda é uma hermenêutica fenomenológica do ser entendido como existência e se move no plano

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ontológico (p.325).

Por fim, Heidegger argumenta que Binswanger manteve uma ênfase em psicologia que se aproximava mais da posição da filosofia da subjetividade (Boss & Condrau, 1997), portanto, uma antropologia. O psiquiatra, reconhecendo que mantinha o pressuposto da subjetividade passa, então, a nomear a sua abordagem de “Fenomenologia Antropológica” e a retomar uma proximidade maior com relação a Husserl.

Stein (2012) toma uma posição intermediária, denominando a aproximação de Binswanger com Heidegger de encontro-desencontro. O encontro diz respeito à grandeza e importância dos estudos do psiquiatra sobre a analítica existencial, que trouxeram grandes contribuições à psiquiatria, inclusive abrindo a possibilidade de outras compreensões das enfermidades mentais; o desencontro se refere à aplicação direta da analítica existencial à psiquiatra. Por fim, afirmou Stein (2012):

Somos, portanto, livres para pensar partes da obra de Heidegger como elementos que nos podem levar adiante na Psiquiatria. O importante, que talvez nem Heidegger nem Binswanger levaram suficientemente em consideração, é aquilo que costumo chamar de mediação antropológica (p.121).

A daseinsanálise ainda se faz presente nos encontros regulares de Medard Boss com Heidegger e outros médicos e psicoterapeutas, publicados com o titulo de Seminários de Zollikon (Heidegger, 2001). Nesses seminários, que aconteceram de 1959 a 1969, abriram-se outros elementos para a discussão da possibilidade de uma clínica psicológica a partir da fenomenologia-hermenêutica de Heidegger.

Medard Boss (1981) ainda guarda em sua daseinsanálise os mesmos elementos elaborados por Binswanger, como, por exemplo, a importância das relações de amor para alcançar a libertação. Boss também constrói sua daseinsanálise tendo como base a proposta de Heidegger em Ser e tempo, principalmente no que se refere à importância da constituição da existência em seu transcender: abandonando a ideia de um trauma passado que instaura a repetição neurótica, assume a ideia de que a neurose consiste na restrição enquanto um projetar-se. E continua destacando a relação de amor e confiança entre analista e analisando como aquilo que possibilita a ampliação de horizontes de sentido. No entanto, mais tarde, vai considerar em sua perspectiva as tonalidades afetivas da angústia e do

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tédio, discutidas por Heidegger tardiamente. Em Angústia, culpa e libertação (Boss 1981), a daseinsanálise marca

presença por meio de três trabalhos que foram elaborados durante dez anos e, nessa publicação, compilados: angústia vital, sentimento de culpa e libertação psicoterápica. O estudioso da daseinsanálise destaca algumas questões que considera imprescindíveis para se pensar a clínica a partir dos pressupostos heideggerianos: a inseparabilidade do orgânico e do psíquico, a angústia e a culpa como tonalidades afetivas de suma importância no âmbito dos psiquicamente doentes e, por fim, o caminho para a libertação. Além destas, Boss pensou muitas outras questões em psicologia, tais como o ser-doente, os distúrbios e a psicossomática.

Boss (1981), para pensar a sua Psicologia em outra perspectiva, busca em Heidegger seus fundamentos. A primeira delas diz respeito à destruição da ideia de sujeito levada a termo por Heidegger, de modo a assumir uma posição crítica à tomada do eu como substância, ao extremo subjetivismo, ao ideal de domínio do sujeito sobre todas as coisas.

Embora Heidegger tenha dado o seu aval à proposta da daseinsanálise de Boss, esta ainda guarda no seu interior alguns vestígios de uma psicodinâmica, tal como pode ser observado ao se referir à angústia e à culpa como sendo os fundamentos básicos para livrar os pacientes com sintomas psiconeuróticos de seus aprisionamentos (1981, p.42). Em outro trecho, ele afirma que a principal meta da psicoterapia é conduzir os pacientes para a capacidade de amar e confiar (1981, p.43). Estes, entre outros trechos, colocam em dúvida se a clínica em Boss ainda tem ou não pretensões interventoras, que pretendem levar o analisando para um objetivo com ênfase valorativa.

Heidegger (1954/2012) entendeu, por meio de sua crítica às pretensões da psiquiatria, que a proposta de daseinsanálise em Binswanger fracassou, justamente, por ele ter procurado dar contornos àquilo que se mostra, desde sempre, em sua incontornabilidade radical. Pelos esclarecimentos de Heidegger, constatamos que se há a necessidade de pensar em construir pressupostos antropológicos para a construção de uma daseinsanálise psiquiátrica, não nos mantemos mais no caminho de pensamento de Heidegger. Nos Seminários de Zollikon, Heidegger (2001) diz categoricamente, referindo-se à sua analítica do Dasein: “Como é aquela ontologia que prepara a questão do ser como ser, é uma ontologia fundamental. Isso torna claro, novamente, o quanto compreender Ser e tempo como uma Antropologia é uma interpretação errônea” (p.148).

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Loparic (2002) interpreta uma passagem dos Seminários de Zollikon como uma postura crítica de Heidegger a Boss e seus colaboradores, como se esses não estivessem devidamente preparados para acompanhar as ideias inovadoras de suas obras. Loparic destaca a despedida de Heidegger dos Seminários de Zollikon como uma reprovação do modo como Boss entendia o seu projeto filosófico:

Agora que já começa a anoitecer permita-me, caro Sr. Boss, fazer um grande salto para longe do sonho. Quero deixar-lhe uma pergunta que me intriga muito. Como a coisa [Ding] pertence ao acontecimento [Ereignis], se a coisa como tal for vista pela nova determinação? Esta é uma pergunta-armadilha para o senhor, Sr. Boss. Acho que não consigo mais (Heidegger, 2001, p. 243).

Após acompanharmos as críticas de Heidegger à daseinsanálise de Binswanger e Boss, convém nos questionarmos se é possível a aproximação da ontologia fundamental do filósofo com a prática clínica daseinsanalítica: como poderemos, então, sustentar uma proposta teórico-prática inspirada na ontologia fundamental tal como encontramos no interior dos próprios escritos de Heidegger? Vamos acompanhar, a seguir, as reformulações da daseinsanálise que terão continuidade na contemporaneidade. 1.2 DASEINSANÁLISE CATEGORIAL

A denominação daseinsanálise categorial diz respeito à tentativa de estabelecer os existenciais presentes na ontologia fundamental de Heidegger por meio de categorias. Em artigos mais atuais podemos encontrar posições daseinsanalíticas por meio de categorias existenciais, que permitem interpretar situações na existência em sua concretude. Em Elza Dutra (2011; 2012; 2017), em Dutra e Roche (2013), Costa e Forteski (2013), Fukumitsu, Pinheiro e Solomon (2015) e Kusmanic (2010), por exemplo, podemos acompanhar um modo de construir a daseinsanálise categorial quando esses autores pensam o suicídio em uma perspectiva heideggeriana.

Dutra (2011) pretende elaborar outro modo de compreensão do suicídio com base na fenomenologia-hermenêutica – para tanto, se propõe a suspender os rótulos e categorizações presentes em diferentes estudos sobre suicídio. Dutra, então, passa a entender o suicídio como algo da ordem do sofrimento, do desespero, da falta de sentido de si mesmo e de

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um modo impessoal de lidar com a angústia, eliminando-a pela morte voluntária. A autora conclui que se trata do “fenômeno como expressão da angústia e do desamparo humano diante de um mundo que será inóspito para o Dasein na sua condição existencial de ser-no-mundo” (p. 156-157).

Dutra e Roche (2013), também com base nas concepções heideggerianas de ser-no-mundo, chegam à conclusão, após 20 entrevistas realizadas com os familiares e a vizinhança, que os fatores motivadores do ato suicida são: a limitação da possibilidade de ser-no-mundo e o peso de ser o que não se quer ser.

Ainda Dutra e Azevedo (2017) retomam elementos da daseinsanálise de Binswanger, defendendo que: “É importante que reflitamos também que o que lança tal possibilidade está mergulhado na historicidade de cada existência, na trama de significados construída por sua condição de ser-no-mundo-com os outros, na silenciosa melodia escrita por sua abertura no mundo” (p. 63).

Costa e Forteski (2013) pensam o ato suicida por meio das noções de restrição de liberdade e ampliação das possibilidades. Nesse aspecto, os autores estão considerando as discussões da daseinsanálise de Binswanger e Boss, em que restrição é doença e ampliação é saúde. A psicoterapia ocorre na reflexão sobre o sentido dessa decisão de modo que aquele que pensa em suicidar-se não recaia na impessoalidade e na publicidade.

Fukumitsu, Pinheiro e Solomon (2015) pensam o suicídio como algo na ordem de uma decisão inautêntica. O modo de ser – autêntico e inautêntico – é tomado como norma pela qual os pacientes podem ser diagnosticados como potencialmente suicidas. Esses estudiosos concluem ainda que a tarefa do psicólogo ocorre de modo que: “[...] a pessoa com comportamento suicida possa se sentir suficientemente acompanhada para ressignificar a falta de prazer na vida e no viver” (p.52).

Marja Kusmanic (2010) ressalta que os estudiosos da suicidologia definem o suicídio como um ato violento e determinam as causas, os fatores de risco, bem como procedem por meio de dados estatísticos e epidemiológicos. Ela contra-argumenta tais conclusões e diz que ao pensar o suicídio com tais pré-julgamentos, restringimos a possibilidade de nos aproximarmos do fenômeno, sugerindo que se faça a análise do fenômeno pelo pensamento de Heidegger para podermos escapar das ideias preconcebidas. Por fim, a autora acaba cedendo à tentação de tomar as concepções de autêntico e inautêntico para caracterizar o ato suicida – recaindo em uma categorização do ato de pôr fim à vida.

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Há ainda aqueles que se apropriam do pensamento de Heidegger apenas para conquistar outro modo de exercício da clínica psicológica. Nesse modo de proceder, não se considera a tarefa clínica como algo de uma ordem disciplinar. Portanto, ao romper com a barreira que o modelo disciplinar impõe, a daseinsanálise ganha outros contornos para além daquele que destina um modo de atuar aos especialistas. 1.3 A FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA COMO CAMINHO DO PENSAMENTO

Nesse modo de articular a prática clínica, toma-se a filosofia para buscar os conceitos filosóficos como indicativos formais para uma transformação possível do pensamento vigente nas práticas clínicas. Para tanto, não se consideram as fronteiras como algo que se impõe na atividade do clínico, em consonância com aquilo que defende Leão (1991): “coloco-me entre aqueles que consideram que esta é uma fronteira borrada, permeável, de modo que a Filosofia pode trabalhar a partir de obras literárias, assim como estudos literários ou linguísticos podem ser realizados sobre textos filosóficos” (p.255). Ele ainda adverte:

Nós só pensamos quando não sabemos. Por isso, quem pode falar das relações da Psiquiatria com a Filosofia, não é nem o filósofo, nem o psiquiatra. É o pensador, porquanto o pensador é mau filósofo, o pensador é mau psiquiatra. É mau filósofo, porque não sabe o que é Filosofia. É mau psiquiatra, porque não sabe o que é Psiquiatria! (Leão, 1991, p. 75).

Leão (1991) passa então a pensar sobre a relação e as fronteiras entre a Psiquiatria e a Filosofia. Ele aponta para a necessidade de transpor essa linha fronteiriça, mas afirma que é preciso atenção, uma vez que o movimento de transposição pode recair em uma arrogância de quem ignora “ou se recolhe em novas possibilidades de saber e não-saber” (p. 75).

Podemos, então, pensar o âmbito do pensamento como o lugar em que a diferença diz do mesmo e, assim, tomar a Filosofia e a Psicologia para além de uma ordem disciplinar. Na ordem disciplinar, a diferença entre as diversas formas de saber deve ser demarcada, o que acaba por impossibilitar qualquer diálogo entre os diferentes modos de pensar. Por isso, em nosso título, chamamos a atenção para o pensamento que se encontra para além de qualquer ordem disciplinar e que tenta sempre se

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dirigir ao mistério da existência que sempre se esconde em sua incontornabilidade.

Ainda Heidegger diz (2012) que a experiência do pensamento é algo que na atualidade encontra-se esquecida. As ciências e as diferentes áreas do saber que se organizam em uma ordem disciplinar pensam ao modo do cálculo, da antecipação e da repetição do anteriormente dito. O pensamento de sentido se desvia de todos esses modos de pensar que predominam no mundo da ciência e do sistema para, então, buscar o sentido que se encontra no âmbito mais originário, lugar onde ser e pensar são o mesmo (Heidegger, 1991).

A modalidade fenomenológica-hermenêutica como caminho do pensamento recebe essa denominação pelo fato de que fenomenológica, aqui, diz respeito à ideia de que qualquer visada do fenômeno é sempre fenomenológica e não empiricamente dada. Hermenêutica diz respeito à compreensão de que as verdades são historicamente constituídas, aparecendo nas expressões singulares. O que se pretende em uma postura fenomenológica-hermenêutica é destruir o caráter atemporal com que as determinações são tomadas, para deixar que tais expressões possam aparecer em um campo de mobilização de sentidos – e assim o individual e o universal possam ser apreendidos sem a abolição de um dos termos.

Essa modalidade aparece quando o estudo se dá em um exercício do pensamento afinado com o método fenomenológico e/ou hermenêutico. Esses estudos acontecem no caminho do pensamento acerca do fenômeno, de modo a não estabelecer categorias tais como normal e patológico e poder deixar que o fenômeno se mostre por si mesmo. Encontramos nessa modalidade de apropriação do pensamento de Heidegger, os seguintes estudiosos: Feijoo (2011), Sá (2017).

Em um artigo intitulado Pôr fim à vida: coragem, desespero ou hybris?, de Feijoo (2016), esta esclarece que o modo vigente de pensar o suicídio encontra-se em uma perspectiva biopolítica, que defende a vida como bem supremo. Trata-se de uma interpretação historicamente constituída no mundo moderno.

Sá (2017) defende a hermenêutica como uma metateoria que dá apoio para que o psicoterapeuta possa ter uma relação mais livre e, assim, sustentar um caráter crítico e transdisciplinar em sua prática clínica.

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1.4 A DASEINSANÁLISE COMO UMA PSICOLOGIA DE RESISTÊNCIA

Pompéia (2011); Cabral (2012); Feijoo (2011; 2012; 2017); Barreto (2013) e Da Costa (2017); Sá (2017) pensam a daseinsanálise como um modo de resistir às tendências objetivantes e tecnocratas da psicologia tradicional, que tem como proposta a adequação, a correção daquele que se apresenta em descompasso com as determinações sedimentadas em seu mundo. A psicoterapia prima quase que hegemonicamente por um posicionamento ortopédico. Cada um desses estudiosos, a seu modo, resiste à tendência tecnocrata dominante no âmbito das clínicas psicológicas.

Pompéia (2011) defende que ao rompermos com o modelo cartesiano e nos aproximarmos de Heidegger surge outra possibilidade de pensar a psicologia. Esse estudioso afirma que a daseinsanálise clínica nasce da superação de dicotomias, tais como sujeito-objeto, interno e externo.

Feijoo (2011) acena para a crise das filosofias da subjetividade, considerando que a fenomenologia surge como um movimento que responde a tal crise, de modo a colocar a existência como o lugar ao qual a psicologia deveria se ater. Nesse contexto, já a autora aponta para uma proposta clínica que quer resistir às demandas tecnocratas que dominam o fazer psicológico. Feijoo (2012) também faz um aceno na direção de uma daseinsanálise como resistência ao se referir à proposta individualizante e subjetiva da psicoterapia. A autora então propõe que ao pensar o ser-no-mundo, ocorre o primeiro passo de saída do âmbito privado – tão presente nas psicoterapias. E ainda Feijoo (2017) posiciona a daseinsanálise da seguinte forma:

Por fim, caracterizamos esse fazer em psicologia como uma clínica que resguarda o espaço do pensamento que medita. E sem pretensões de chegar a um lugar determinado, apenas resiste, sabendo que a resistência é uma tarefa contínua. Sabemos que esta é uma tarefa árdua e, para prosseguirmos nela, mostramos que é possível apropriar-se da filosofia, tal como desenvolvida por Husserl e Heidegger, para assim encontrar outro espaço para tecer argumentos a favor de uma psicologia anterior a toda e qualquer epistemologia moderna (p.204).

Cabral (2012), em seu artigo intitulado Da crise do sujeito à superação da confissão clínica, já faz um aceno sutil à proposta de uma clínica que se

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coloque muito mais em uma ênfase de negatividade do que em um posicionamento positivo. Dessa forma, ele aponta para a possibilidade da clínica resistir às demandas das psicologias tecnocratas.

Barreto (2013) enfatiza que não pretende buscar no pensamento de Heidegger elementos para construção de outra teoria em psicologia, ao contrário, pretende refletir junto a Heidegger sobre novas possibilidades de uma ação clínica. Em suas palavras, encontramos:

Diante de tal possibilidade, encaminham-se ainda de modo inconcluso, reflexões no sentido de pensar a ação clínica como um modo de estar com o outro/cliente, que poderá manter-nos despertos, no aguardar, silencioso e atento, o pensamento que medita [...] (p.49-50).

Sá (2017) tenta mostrar que a clínica psicológica pode estar para além de qualquer proposta de aplicação técnica ou metodológica. Refere-se à fenomenologia como o que possibilita a superação da atitude natural, e à hermenêutica como a possibilidade de operar em um plano metateórico – e conclui: “A relação da fenomenologia hermenêutica com a clínica não pode ser aquela de um novo método que venha a substituir os antigos” (p. 35).

Da Costa (2016) argumenta a favor da daseinsanálise como uma psicologia de resistência que, para tanto, precisa renunciar ao caráter disciplinar da Psicologia:

Exatamente aqui nasce a necessidade de construção de uma psicologia de resistência. Uma psicologia de resistência, antes de tudo, precisa considerar a si mesma não como uma disciplina explicativa do homem, mas como uma disciplina que se oriente pelo modo de ser do homem como ser-no-mundo, como abertura, como poder-ser. Longe de ser um apelo apaixonado a “São Heidegger” e suas doutrinas, essa saída possível para a psicologia se mostra de forma consistente pelos trabalhos hoje em gênese. Apesar de ser um caminho difícil, ele já pode ser tomado e desenvolvido, apesar de ainda ensaiar seus passos (p.238).

1.5 CONSIDERAÇOES FINAIS

Para podermos nos demorar sobre o modo como a psiquiatria e a psicoterapia se apropriam do pensamento de Heidegger e entender até que ponto a interlocução das ciências psi se mantém afinada com a proposta do filósofo sobre a existência e o seu caráter de incontornabilidade, tivemos que percorrer um longo caminho. Caminho esse que se mostra

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como um grande labirinto que, além de tortuoso, é íngreme e indefinido. Por esse motivo é que tentamos fazer uma classificação das diferentes modalidades de apropriação, que como tais nunca são exaustivas, exclusivas e, muito menos, conclusivas. Por outro lado, acreditamos que nesse modo de organizá-las, poderíamos prestar esclarecimentos acerca do que ocorre nessa apropriação em um formato totalmente didático.

Para o psicólogo clínico, a aproximação do fenômeno existência em seus desdobramentos por meio do que Heidegger denominou fenomenologia hermenêutica pode ainda ser alvo de críticas e até de ironias. No entanto, acreditamos precisar das críticas para podermos continuar nessa escalada com os indícios do caminho a percorrer; quanto às ironias, ao mesmo tempo que elas podem destruir aquilo que tentamos edificar, também podem ter o efeito contrário, ou seja, encher de força aqueles que optaram por esse modo do fazer clínico e, assim, também oferecer resistência.

A psiquiatria trata da vida mental do homem em suas manifestações da doença, o que inclui sempre as manifestações da saúde. E as representa pela e a partir da objetidade da integração de corpo, alma, mente e espírito constitutiva de todo homem. Na objetidade da psiquiatria, o modo já vigente de o homem ser apresenta-se e expõe-se cada vez. Este modo de ser, a ex-sistência do homem, como homem, permanece sempre o incontornável da psiquiatria (Heidegger, 2012, p.53-54).

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II

A FILOSOFIA DO DIREITO E O FORMALISMO ÉTICO KANTIANO

Flamarion Tavares Leite*

RESUMO Ao escrever a Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant já pensava em uma metafísica dos costumes, mas não tinha ideia de que ela deveria ser precedida de uma Crítica da Razão Prática, o que só vai ocorrer com a Fundamentação da Metafísica dos Costumes. A Metafísica dos Costumes, obra forjada pela ótica transcendental da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e da Crítica da Razão Prática, está dividida em duas partes, a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude, estando a Filosofia do Direito contida na primeira parte. Por sua vez, a Doutrina do Direito é dividida em duas partes: o Direito Privado e o Direito Público. Este último divide-se em Direito Político, Direito das Gentes e Direito Cosmopolita. O Direito Político encontra-se no âmbito da filosofia prática, subordinando-se à moral, dada a condição de que o princípio do direito não pode ser separado do imperativo categórico. No Direito Penal, que é parte integrante do Direito Político, a fundamentação da pena é de ordem ética, porquanto na Doutrina do Direito fica assente que a lei penal é um imperativo categórico. O presente trabalho tem por objetivo examinar como as concepções de Kant acerca do Direito Político e do Direito Penal, que constituem importante núcleo da sua Filosofia do Direito, estão determinadas pelas premissas do seu formalismo ético, consubstanciado

* Bacharel em Direito. Mestre em Filosofia. Doutor em Direito pela PUC-SP. Especialista em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal pela Universidade Técnica de Lisboa/UnB/ESAF, com estágio na União Europeia (Bruxelas) e Ministério das Finanças de Portugal (Lisboa). Professor de Filosofia do Direito, de Lógica Jurídica e de Teoria Geral do Direito, nos cursos de graduação e pós-graduação das Faculdades de Direito do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ e da FESP FACULDADES. Professor Convidado (Assistente) da União Europeia no Curso de Especialização em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal da Escola de Administração Fazendária – ESAF, Brasília-DF.

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no fato de que é a mera forma da nossa lei moral o que nos determina moralmente, conforme estatui o imperativo categórico. PALAVRAS-CHAVE: Immanuel Kant; Filosofia do Direito; Direito Político; Direito Penal; Formalismo Ético; Imperativo Categórico. INTRODUÇÃO

Quando Immanuel Kant publicou a Crítica da Razão Pura (1781), já projetava uma metafísica da natureza e uma metafísica dos costumes. A primeira compreende todos os conhecimentos absolutamente a priori do que é; a segunda, os princípios a priori do que deve ser. Desta forma, os pretendidos conhecimentos racionais sobre Deus, a liberdade e a imortalidade, pertencentes à metafísica, entendida como suposto conhecimento de uma realidade suprassensível e incondicional, como conhecimento último da realidade, são rechaçados por Kant, ao considerar que se trata de um conhecimento ilusório, vazio, ou conhecimento dialético. Todavia, ele ainda não tinha ideia de que a metafísica dos costumes deveria ser precedida de uma Crítica da Razão Prática. A julgar pelo plano apresentado na arquitetônica da razão pura, a Crítica da Razão Pura deveria ser a propedêutica da metafísica em geral, ou seja, da metafísica da natureza e da metafísica dos costumes:

A metafísica se divide em metafísica do uso especulativo da razão pura e metafísica do uso prático da razão pura, sendo, portanto, ou metafísica da natureza ou metafísica dos costumes. Aquela contém todos os princípios puros da razão a partir de meros conceitos do conhecimento teórico de todas as coisas (excluída a matemática, portanto), ao passo que esta contém os princípios que determinam e tornam necessário a priori o fazer e o deixar de fazer. Agora, a moralidade é a única conformidade a leis das ações que pode ser derivada inteiramente a priori a partir de princípios (KANT, 2009a, B 870).

Apenas em 1785, com a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, aparece a ideia de uma Crítica da Razão Prática. Kant declara que a metafísica dos costumes deveria estar precedida de uma crítica da razão pura prática, como a metafísica da natureza deveria estar precedida da crítica da razão pura especulativa, já publicada. A Fundamentação proporciona uma análise da consciência moral comum que, começando com os juízos que emitimos comumente, busca manifestar as bases destes

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juízos mediante a formulação da lei moral, que se expressa num imperativo categórico, e a postulação da liberdade, entendida como realização do ordenado por este imperativo. A segunda Crítica é esboçada na Terceira Seção da Fundamentação: transição da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura. Também no Prefácio da Fundamentação já há uma referência a uma crítica da razão prática:

No propósito, pois, de publicar um dia uma Metafísica dos Costumes, faço-a preceder desta Fundamentação. Na verdade, não há a rigor nenhum outro fundamento da mesma senão a crítica de uma razão pura prática, assim como para a Metafísica a crítica da razão pura especulativa já publicada (KANT, 2009b, Ak 391).

A Crítica da Razão Prática, publicada em 1788, começa com definições e axiomas, e a formulação da lei moral e da liberdade da vontade1 se faz dedutivamente. De notar-se que as duas Críticas, tratados filosóficos amplos, seguem o método sintético, enquanto os Prolegômenos e a Fundamentação, que são trabalhos breves, utilizam o método analítico. O método sintético (progressivo) é um método dedutivo, ou seja, um método no qual se começa com as condições que possibilitam a experiência (ou princípios), procedendo-se daí para a experiência, que tais princípios organizam e fazem inteligível. O analítico é um método regressivo (indutivo), i. e., começa-se com a experiência daquilo que nos é conhecido e se remonta aos princípios a priori, sem os quais não seria possível ter tal experiência (KANT, 1999, A 42). Razão por que a Fundamentação estabelece o imperativo categórico diretamente da consciência do dever, enquanto a Crítica da Razão Prática chega a ele através da crítica às éticas materiais. Só ao primeiro procedimento convém a ideia de um regresso analítico partindo do condicionado – o conceito de moralidade – para a sua condição – o princípio supremo.2 O procedimento da Crítica da Razão Prática se dá por um processo progressivo (sintético) desde os

1 A primeira Crítica estava dedicada ao estudo do sujeito cognoscente. A segunda Crítica se dedicará ao estudo do sujeito moral definido pela liberdade. No Prefácio da Crítica da Razão Prática, Kant assinala que o fim essencial dessa obra é estabelecer a existência de uma razão pura prática e, a partir dela, a existência da liberdade transcendental. Isto porque, para Kant, se não houvesse a liberdade, não existiria a lei moral em nós; se não conhecêssemos a lei moral, desconheceríamos a liberdade. 2 Devemos nos lembrar de que a Fundamentação tem como tarefa a busca e estabelecimento do princípio supremo da moralidade. A busca desse princípio se dá nas duas primeiras Seções da Fundamentação. A fixação do princípio da moralidade ocorre na Terceira Seção.

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princípios até os dados condicionados por eles (RODRÍGUEZ ARAMAYO, 1989, p. 80).

A Crítica da Razão Prática está construída segundo o modelo da primeira Crítica, dividindo-se em Doutrina Transcendental dos Elementos e Doutrina Transcendental do Método. Na primeira divisão se expõe a moral e na segunda o modo de transmiti-la. A Doutrina dos Elementos se divide em Analítica Transcendental e Dialética Transcendental. A segunda Crítica não tem a Estética Transcendental, porque a moral, diferentemente do conhecimento teórico, não se funda sobre a sensibilidade, mas, ao contrário, prescinde dela. Demais disso, a Analítica divide-se em Analítica dos Princípios e Analítica dos Conceitos, seguindo uma ordem inversa da primeira Crítica. Na Analítica dos conceitos se determina a lei de uma vontade pura e se conclui que tal lei só pode ser uma lei formal. A Analítica dos conceitos vem depois da Analítica dos princípios porque o conceito de bem só pode ser determinado pelo conceito de lei (GRANJA CASTRO, 2005, p. XVI). Ressalte-se que a Analítica dos princípios insiste em que as leis morais hão de ter validade absoluta, argumentação que rechaça os princípios práticos materiais e reafirma o caráter formal dessas leis.

Isto posto, insta observar que com fulcro na ótica transcendental da Fundamentação da Metafísica dos Costumes3 e da Crítica da Razão Prática será forjada A Metafísica dos Costumes, cuja Primeira Parte se traduz pelo formalismo jurídico, reflexo da ética formal.

Ademais, é noção cediça que a Filosofia do Direito kantiana está contida na Primeira Parte de A Metafísica dos Costumes, que veio a lume em 1797/1798 e está dividida em duas Partes: a Doutrina do Direito (Rechtslehre) e a Doutrina da Virtude (Tugendlehre). Por sua vez, a Doutrina do Direito é dividida em duas Partes: o Direito Privado e o Direito Público. O Direito Público, tratado na Segunda Parte da Doutrina do Direito, apresenta a seguinte divisão: Direito Político (§§ 43 a 52), Direito das Gentes (§§ 53 a 61) e Direito Cosmopolita (§ 62).

Ao nosso estudo interessam o Direito Político e o Direito Penal, parte integrante daquele, por postularmos que as concepções de Kant acerca destes Direitos, constitutivas de inarredáveis fundamentos para sua Filosofia do Direito, encontram-se determinadas por seu formalismo ético.

3 A Terceira Seção da Fundamentação contém a dedução transcendental do princípio de nossos juízos morais.

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O formalismo ético kantiano se consubstancia no fato de que seja a mera forma da nossa lei moral – e não qualquer matéria – o que nos determina moralmente, conforme estatui a célebre fórmula do imperativo categórico: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2009b, Ak 421). Ao nos situarmos no plano do imperativo categórico, distinguimos uma matéria e uma forma da lei. A matéria é a ação mandada; a forma, a universalidade. O formalismo da ética kantiana consiste em afirmar que a forma da lei é fundamento suficiente para determinar a matéria da lei, isto é, que a forma é a chave para decidir que matéria pode ser objeto de uma lei e pode ser categoricamente mandada. O formalismo ético constitui um profundo esforço, perfeitamente pensado e medido, para dar conta da realidade da consciência moral, sendo esta um conhecimento do conceito de moralidade, que engloba a ideia do dever,4 um critério do valor moral da ação e o respeito à lei moral. A ideia do dever significa que se deve agir por dever, ou seja, é necessário fazer o que é dever porque é dever. O valor moral da ação não é conferido pelas consequências da ação, mas pelo princípio da ação, isto é, o princípio de agir por dever. Em outras palavras, uma ação tem pleno valor moral apenas quando é realizada por dever, sem estar ligada a inclinações ou intenções egoístas. Por fim, o dever é ação necessária por respeito à lei moral. Não é possível ter respeito por uma inclinação, pois o que deve ser respeitado é um mandamento, uma lei, enquanto princípio. Esta é a essência do formalismo, característico da filosofia moral de Kant que, por isso, pode ser qualificada como ética formal. Não é despiciendo acrescentar que Kant considerava como a grande virtude do imperativo categórico sua capacidade de ser o critério da moralidade (RODRÍGUEZ ARAMAYO, 1989, p. 77). 2.1 O DIREITO POLÍTICO

O Direito Político encontra-se no âmbito da filosofia prática,

subordinando-se, pois, à moral e constituindo-se em fundamento da Filosofia do Direito. Isto porque o princípio do direito não pode ser separado do imperativo categórico. Para clarificarmos essa asserção, faz-se necessário remontar a noções ínsitas à Doutrina do Direito (Rechtslehre).

O direito, regulando a relação dos livres-arbítrios, deve garantir a

4 O dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei, sendo, portanto, aquela ação a que alguém é obrigado. Todos os imperativos são expressos por um verbo significando dever.

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liberdade de cada um. Para isso, há de constituir-se em legislação universal, pois a garantia da liberdade de cada um implica a garantia da liberdade de todos. Com isso, a lei da liberdade determina a união de todos em uma sociedade regida por uma Constituição civil, como expressão de uma vontade pública. Deste modo, Kant estabelece uma esfera de ação inviolável para o indivíduo, mas, ao mesmo tempo, prescreve uma obediência incondicional à Constituição civil em “uma sociedade na qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se unida no mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma Constituição civil perfeitamente justa” (KANT, 1986a, A 395). Tal Constituição promana do conceito de direito; realizá-la é um dever. Para compreendermos o que pretende Kant, lembremo-nos de que ele apresenta a divisão dos direitos como preceitos em natural (que se baseia em princípios a priori) e positivo (que procede da vontade do legislador).5 Adiante, encontraremos:

A divisão suprema do direito natural não pode ser a divisão em direito natural e social (como sucede às vezes), mas a divisão em direito natural e civil: o primeiro denomina-se direito privado e o segundo direito público. Porque ao estado de natureza não se contrapõe o estado social, porém o civil, visto como naquele pode haver sociedade, só que não é civil (que assegura o meu e o teu mediante leis públicas); daí que o direito no primeiro caso chama-se privado (KANT, 2014, 242).

Claro fica que o direito positivo (público) existe apenas quando o Estado é constituído. O direito natural (privado) é anterior ao Estado.6 Convém notar que Kant separa o direito privado do direito público, colocando-os em status distintos. Ao fazer isto, Kant vê-se obrigado a encontrar uma fórmula que garanta o valor jurídico do direito privado. Com efeito, se ao direito está vinculada a coação, como falar dela onde não existe ainda um poder superior aos indivíduos? Kant resolve o

5 Kant apresenta a divisão geral dos direitos, caracterizando-os como preceitos ou doutrinas sistemáticas (Lehren) e como faculdades (Vermögen). As faculdades de obrigar a outros se classificam em direito inato e direito adquirido. O primeiro é aquele direito que pertence a qualquer um por natureza, independentemente de todo ato jurídico. A liberdade é o único direito inato, originário, pertencente a cada homem por força de sua humanidade. 6 A legitimação do Estado é dada por sua tarefa de garantir o meu e o teu, que o eram apenas provisoriamente no estado de natureza. Esse Estado não é histórico, mas uma ideia da razão e, como o direito nele existente promana da vontade do legislador, não há em Kant nem jusnaturalismo nem juspositivismo, mas um direito racional ou um jusracionalismo, que tem como referência a natureza racional do homem, fundadora das leis que deverão comandar o direito e a política.

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problema afirmando que o estado de natureza é um estado jurídico, mas provisório; o estado civil é um estado jurídico peremptório (KANT, 2014, 256, 257).7 O estado de natureza é provisório porque nele existem os institutos do direito privado, mas não podem ser garantidos, porquanto não existe uma autoridade constituída; inversamente, o estado civil é peremptório porque nele os institutos de direito privado, assim como de direito público podem ser assegurados pela existência de um poder comum. Dizendo que o estado de natureza é provisório, Kant quer dizer que segundo a sua mesma Constituição, ou seja, pela falta de uma coação organizada e, portanto, de uma garantia comum das respectivas liberdades externas dos indivíduos singulares, não está destinado a durar. É um estado cujo destino é levar ao estado civil, o que somente pode durar uma vez organizado o poder coercitivo (BOBBIO, 1984, p. 88). Resta observar que, para Kant, o Estado não é instituído para anular o direito natural, mas para tornar possível seu exercício mediante a coação organizada. O direito positivo e o direito natural não são antitéticos, pois mantêm uma relação de integração. A diferença entre eles não é substancial, mas formal. De tal sorte que, quando Kant assinala como provisório o estado de natureza e como peremptório o estado civil, indica claramente que a modificação, ainda que importante, não é substancial, mas formal. Seria possível dizer-se que, após a constituição do estado civil, o direito torna-se formalmente público, ainda que continue sendo substancialmente privado, ou seja, natural. A articulação do direito privado com o público, determinada pelo dever de defender a liberdade externa dos indivíduos mediante leis, é o fio condutor das três formas do Direito Público, já contempladas em Teoria e Prática (1793) e na Paz Perpétua (1795): o Direito Político, o das Gentes e o Cosmopolita. O Direito Político da Doutrina do Direito (Rechtslehre) enfrenta temas similares aos que Teoria e Prática aborda na sua segunda parte, onde Kant pretende distanciar-se de Hobbes no que se refere aos fins do Estado (KANT, 1986b, A 264-267). Os tópicos do contratualismo entram em jogo para mostrar que o veto irrecusável da razão moral-prática - não deve haver guerra - obriga os homens a selar um pacto de união civil e ingressar num Estado em que pode ser garantido, peremptoriamente, o meu e o teu, sem necessidade de defender o próprio direito mediante a guerra ((KANT, 2014, 354). O dever de selar o pacto de união civil está contemplado na classificação que Kant apresenta dos deveres jurídicos. A

7 O estado civil funda-se nos seguintes princípios a priori: 1. A liberdade de cada membro da sociedade, como homem. 2. A igualdade deste com todos os outros, enquanto súdito. 3. A independência de cada membro de uma comunidade, como cidadão.

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ideia de um pactum unionis civilis seria a ideia de um procedimento que pretende garantir a justiça das leis a que se aplica, semelhantemente ao imperativo moral. Não é estranho que as atuais teorias morais procedimentais pretendam ser herdeiras do contratualismo kantiano, na medida em que a noção de imparcialidade constitui o núcleo de uma razão prática, que se expressa na moral, no direito e na política (KANT, 1986b, 289 ss; CORTINA ORTS, 1989, p. LXV). Quando se refere aos deveres jurídicos, estabelecendo sua divisão geral em internos e externos, Kant recorre às fórmulas clássicas de Ulpiano (honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere), dando-lhes o sentido que, segundo ele, originalmente tiveram. O pactum unionis civilis está ligado aos deveres jurídicos. À terceira fórmula de Ulpiano Kant dá este sentido: “Entra em um estado no qual possa assegurar-se a cada um o que é seu frente aos demais” (KANT, 2014, 237). A interpretação kantiana das regras de Ulpiano ressalta que o seu significado deve encerrar-se em um imperativo categórico. A passagem para o estado civil, que se dá através do contrato, implica uma mudança na forma, mas não na matéria da posse, que já estava assegurada provisoriamente pelo direito natural. Assim, é necessário clarificar a ideia de contrato. Parece não restar dúvidas sobre seu status, porquanto Kant assinala que não se trata de um fato, mas uma mera ideia da razão que tem, todavia, realidade prática, qual seja, a de obrigar a todo legislador que expeça suas leis como se estas pudessem haver emanado da vontade unida de todo um povo, e a que considere cada súdito, na medida em que este queira ser cidadão, como se este houvesse expressado seu acordo com uma tal vontade (KANT, 1986b, 297). A ideia de contrato serve como modelo de perfeição para sistematizar a experiência, não estando destinado a constitui-la, mas a regulá-la,8 o que é reforçado pelas Reflexões: “O contrato social é a regra e não a origem da constituição estatal. O contrato social não é o principium da fundamentação do Estado, mas o da administração do Estado e contém o ideal da legislação, do governo e da justiça pública” (KANT, 2009, AA XIX, 7734, 503). Por isso, fala-se do contrato social como uma quarta formulação (acrescida às três fórmulas secundárias da Fundamentação) do imperativo categórico, que afeta diretamente o soberano (PHILONENKO, 1976, p. 52). A filosofia moral de Kant e o seu formalismo culminam, pois, com a política, que é a doutrina executora do direito (KANT, 2008, B 69-72).

8 Sobre princípios constitutivos e reguladores, ver 10 Lições sobre Kant, p. 124/125, nota 156.

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2.2 O DIREITO PENAL

Punitur quia peccatum est (pune-se porque é crime, lato sensu). Esta máxima de Sêneca é um dos alicerces da teoria kantiana da pena. Mas, para Kant, diferentemente de Sêneca, a fundamentação da pena não é de ordem jurídica, mas de ordem ética. Com efeito, na Doutrina do Direito9 Kant afirma que a lei penal é um imperativo categórico (KANT, 2014, 332).10 Esta assertiva traz certa perplexidade e uma perturbadora dificuldade para quem se debruça sobre a Filosofia do Direito kantiana, posto que para Kant o imperativo categórico é expresso numa proposição sintética-prática a priori, caracterizada pela necessidade e pela universalidade, o que nos remete aos juízos sintéticos a priori que o filósofo de Könisgberg encontrou nas proposições em que estão formulados os princípios das ciências e que logrou explicar mediante o papel desempenhado pela estrutura transcendental do sujeito no ato de conhecer.11 Segundo o juízo ético, o que devemos fazer vem determinado pela lei moral. Este juízo é sintético (negá-lo não implica contradição) e a priori, porquanto o que deve ser não implica qualquer juízo de fato, não descreve impressão sensível e o predicado, a lei universal, não está contido no sujeito, a vontade. É consabido que Kant distingue entre imperativos hipotéticos e categóricos. O imperativo é hipotético quando a ação que ordena é boa para atingir uma finalidade, i.e., boa para alguma coisa; é categórico quando ação que determina é boa em si. O imperativo categórico é, como vimos, expresso numa fórmula: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2009b, Ak 421). Este imperativo é formal, posto que prescreve tão somente a forma e não o conteúdo (matéria) da ação: agir por respeito ao dever.

9 Cf. A Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, Segunda Parte, O Direito Público, Primeira Seção, O Direito Político, Observação Geral, Dos Efeitos Jurídicos Decorrentes da Natureza da União Civil, Letra E, Item I. 10 De notar-se que o imperativo categórico se deve à filosofia moral crítica de Kant. Assim, a Doutrina do Direito kantiana é parte da sua Filosofia Moral. A propósito, na Introdução à Metafísica dos Costumes, o imperativo categórico, posto que enuncia uma obrigação relativa a determinadas ações, é definido como uma lei prático-moral. 11 Por isso, nosso livro 10 Lições sobre Kant está baseado na concepção de que só podemos entender o Direito em Kant se passarmos pela sua epistemologia, ou seja, pela sua teoria do conhecimento, expressa na Crítica da Razão Pura, de 1781, e pela sua doutrina moral, que se encontra em duas outras obras: a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, e a Crítica da Razão Prática, de 1788.

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A importância do estudo do imperativo categórico deriva do fato de a lei penal ser, como assinalamos, um imperativo categórico. Este imperativo tem, além daquela que expressamos, uma fórmula secundária: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2009b, Ak 429).

Resta claro que, para Kant, a moralidade exige que tratemos as pessoas sempre como fins e nunca como meios. O que isso quer dizer exatamente?

Para entendermos essa postura, é necessário lembrar que no reino dos fins12 tudo tem ou bem um preço ou bem uma dignidade. O que tem preço, em seu lugar também se pode pôr outra coisa, enquanto equivalente; mas o que se eleva acima de todo preço, não permitindo, por conseguinte, qualquer equivalente, tem uma dignidade. Dessa perspectiva, os seres humanos têm um valor intrínseco, ou seja, dignidade, o que os torna valiosos acima de tudo. E possuem dignidade porque são agentes racionais, vale dizer, agentes livres capazes de tomar suas próprias decisões, guiando suas condutas por meio da razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais personificam a lei moral. Demais disso, se o seu valor está acima de tudo, conclui-se que os seres racionais devem ser tratados sempre como um fim e nunca como um meio. Isto porque os seres racionais estão submetidos à lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Assim, tratá-los como um fim em si mesmos é o meio encontrado para respeitar sua racionalidade (KANT, 2009b, Ak 433).

Mas o que significa tratar alguém como um ser racional? Um ser racional é alguém que é capaz de raciocinar sobre sua conduta e que livremente decide o que fará, segundo seus próprios juízos morais. Por ser capaz de julgar o que é bom em sentido moral, um ser racional é responsável por suas ações, sendo instado a responder pelo que faz. Entra em cena a primeira fórmula do imperativo categórico. Quando decidimos o que fazer, proclamamos nosso desejo de que a conduta seja transformada em lei universal. Assim, quando um ser racional decide tratar as pessoas de certa maneira, ele determina, em seu julgamento, que esta é a forma que as pessoas devem ser tratadas. Deste modo, se o tratamos da mesma maneira em troca, não estamos fazendo nada mais além de tratá-

12 Por reino, Kant entende a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns, que determinam os fins segundo a sua validade universal.

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lo da maneira que ele decidiu que as pessoas devem ser tratadas. Se ele trata os outros de forma grosseira e o tratamos grosseiramente, estamos obedecendo às suas próprias decisões.

Por isso, Kant afirma relativamente ao criminoso que seus próprios atos maldosos definem a punição que cairá sobre si mesmo. Mas qual é modo e a medida que a justiça pública toma como seu princípio e padrão? É apenas o princípio da igualdade, na posição de fiel da balança da justiça: não se inclinar mais para um lado do que para o outro. Portanto, qualquer mal imerecido que ele causa a outro no povo, o causa a si próprio; se o injuria é a si próprio que ele injuria; se o rouba é a si próprio que ele rouba; se o agride é a si próprio que agride; se o mata é a si próprio que mata. Apenas a lei do talião, a lei de retribuição, pode oferecer com segurança e indicar de forma determinada a qualidade e a quantidade do castigo, mas somente em um tribunal, e não no juízo privado das pessoas (KANT, 2014, 332).

Mas Kant não apenas afirma que a lei penal é um imperativo categórico. Com efeito, ele aduz: “ai daquele que se arrasta pelas sinuosidades do eudemonismo para encontrar algo que o exima da pena ou mesmo de parte dela mediante a vantagem que promete” (KANT, 2014, 332). Com estas palavras, ele faz com que a sua Filosofia do Direito se afaste de toda e qualquer perspectiva utilitarista ou empirista. E não poderia ser diferente, haja vista que ela está ancorada no formalismo ético, antípoda do utilitarismo.13 Isto porque a lei penal deve ignorar uma presumida rentabilidade ou esterilidade do castigo, posto que, enquanto lei, não pode ser uma norma condicionada que dependa de fatores contingentes. A pena judicial nunca pode ser infligida meramente como meio para fomentar outro bem, seja para o próprio criminoso, seja para a sociedade civil, mas tem de ser-lhe infligida apenas por ter cometido um crime, pois o homem nunca deve ser tratado meramente como meio para os propósitos de outrem e confundido com as coisas do direito real. O criminoso tem de ser considerado punível, antes de se pensar em tirar algum proveito da pena, seja para o criminoso, seja para seus concidadãos (KANT, 2014, 332). E da mesma maneira que quem acata a lei moral torna-se digno de ser feliz, o transgressor da legislação jurídica torna-se

13 O formalismo da filosofia moral kantiana rejeita a possibilidade de uma fundamentação racional da obrigação moral a partir de qualquer princípio material. Por isso que a Analítica da razão pura prática tem a tarefa de distinguir entre a doutrina da felicidade (eudemonismo) e a doutrina dos costumes, cujos preceitos se fundam no princípio suprassensível da liberdade.

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digno de ser castigado. Ser culpado de um delito representa uma condição suficiente para receber a punição que lhe corresponda, no contexto do formalismo jurídico, reflexo do seu modelo inspirador, a ética formal kantiana. 2.3 À GUISA DE CONCLUSÃO

Encerrando nosso estudo, trazemos à colação dois exemplos do formalismo ético kantiano que redundam no seu lendário rigorismo.

O primeiro exemplo refere-se a um tópico constante do Direito Político que causou perplexidade entre os comentaristas de Kant: a célebre oposição ao direito de resistência.

Contra o legislador supremo do Estado não há uma resistência legítima do povo, pois tão somente pela submissão sob sua vontade universalmente legisladora é possível um estado jurídico; logo, não há nenhum direito de sedição, menos ainda de rebelião, e muito menos contra ele como pessoa singular, sob o pretexto de abuso de seu poder, de atentado contra sua pessoa e mesmo contra sua vida (KANT, 2014, 320).

Para justificar a sua oposição, Kant declara o presumido direito de resistência um absurdo:

O fundamento do dever de um povo de suportar mesmo um abuso do poder supremo considerável insuportável se encontra nisto: que sua resistência à própria legislação suprema nunca pode ser pensada senão como ilegal e mesmo como destruindo o todo da constituição legal. Pois para ser autorizado a tanto deveria existir uma lei pública que permitisse essa resistência do povo, i. é, a legislação suprema conteria em si uma determinação de não ser a suprema e de, num e mesmo juízo, fazer do povo, enquanto súdito, o soberano sobre aquele de quem é súdito, o que se contradiz (KANT, 2014, 320).

Igualmente ao que ocorrerá com o Direito Penal, o autêntico significado do Direito Político kantiano só é apreensível se o situarmos no marco do sistema transcendental e se levarmos em consideração a clara dependência que tem a teoria jurídico-política de Kant com relação ao seu formalismo ético (RODRÍGUEZ ARAMAYO, 1992, p. 169).

O segundo exemplo corrobora nossa convicção de que o formalismo ético conduz a tão acentuado rigorismo em matéria penal que

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chegou a causar assombro (poderíamos dizer escândalo) entre os leitores de Kant, posto que, para ele, se alguém comete um assassinato tem de morrer, pois não há equivalente para a satisfação da justiça. Isto porque não há semelhança entre uma vida, por mais miserável que seja, e a morte. Portanto, não há igualdade do crime e da retribuição a não ser pela morte infligida judicialmente ao criminoso, mas sem qualquer maltrato que possa reduzir a uma monstruosidade a humanidade na pessoa do apenado. E mais:

Mesmo que a sociedade civil se dissolvesse com a concordância de todos os membros (por exemplo, se o povo de uma ilha decidisse separar-se e espalhar-se por todo o mundo), teria de ser executado antes o último assassino em cativeiro, a fim de que cada um receba o que os seus atos merecem, evitando que o homicídio recaia sobre o povo que não insistiu na punição, uma vez que o povo pode ser considerado cúmplice dessa violação pública da justiça (KANT, 2014, 333).

Kant aplica todo o rigor do imperativo categórico contra aqueles que, igualmente a Beccaria, professam um afetado humanismo. De fato, segundo o marquês, a pena de morte é ilegítima, porque não poderia estar contida no contato civil originário – ninguém pode consentir em perder sua vida, porque não pode dispor dela. Para Kant tudo isso é sofisma e distorção do direito, porquanto ninguém sofre uma punição porque quis a punição, mas porque quis a ação punível. Para responder a essa questão, Kant se vale do idealismo transcendental, aplicando tanto a perspectiva numênica quanto a fenomênica. Do ponto de vista numênico, o sujeito, a partir de uma razão pura juridicamente legisladora, aceita, juntamente com os demais, em uma união civil, submeter-se à lei penal; do ponto de vista fenomênico, o sujeito como súdito, deve ser castigado pelas leis penais porque quis a ação punível, não sendo ele, mas o tribunal que determinará a pena que, no caso de assassinato, não pode ser senão a pena de morte, posto que, a priori, só pode haver a representação de uma medida para os castigos: a igualdade e, de conseguinte, a lei do talião (KANT, 2014, 335).

Isto está em consonância com a tese kantiana de que ser culpado de um delito representa uma condição suficiente para receber o castigo correspondente. Esta regra não atende a considerações de ordem utilitarista, o que conferiria um caráter hipotético à lei penal, incompatível com o pressuposto kantiano de que toda legislação deve ser categórica, levando consigo o conceito de uma necessidade incondicionada e objetiva

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e, portanto, universalmente válida. Por isso, manda categoricamente (KANT, 2005, A 57, 58). REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UnB, 1984.

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III

A ELABORAÇÃO HEIDEGGERIANA DO CONCEITO DE TEMPO ENTRE 1915 E 1927

Renato Kirchner*

Marion Heinz, num primoroso estudo sobre a obra da juventude de Heidegger, afirma que “a obra inicial de Heidegger é uma filosofia do tempo, que se diferencia fundamentalmente de todas as teorias tradicionais a respeito do tempo. O tempo não continua sendo pensado aí como um ser atemporal, mas como verdade, isto é, como horizonte de compreensão do ser”1. Heinz enfatiza um ponto fundamental: o despertar do jovem Heidegger para a temática do tempo está ligado com a

* Professor e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de Campinas desde 2010. Membro do corpo docente permanente da Faculdade de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, coordena o Programa de Mestrado Stricto Senso em Ciências da Religião. E-mail: [email protected]. 1 Há um número considerável de estudos importantes da temática heideggerina do tempo: Marion Heinz, Zeitlichkeit und Temporalität im Frühwerk Martin Heideggers, Würzburg/Amsterdam, Königshausen & Neumann/Rodopi, 1982; Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997; Carlos Másmela, Martin Heidegger: El tiempo del ser, Madri, Trotta, 2000; Ernst Wolfgang Orth, Zeit und Zeitlichkeit bei Husserl und Heidegger, Friburgo, Karl Alber, 1983; Kurt Flasch, Was ist Zeit?, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993; M. Fleischer, Die Zeitanalysen in Heideggers Sein und Zeit, Würzburg, Könighausen & Neumann, 1991; Rainer Marten, Martin Heidegger: o tempo autêntico, in: Luis A. de Boni (org.), Finitude e transcendência, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 599-625; Jaime Montero Anzola, Reflexiones en torno a Ser y tiempo de Mantin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de Bogotá, ano 37, n. 112, jan.-abr. 1996, p. 19-45; Emmanuel Martineau, Conception vulgaire et conception aristotélicienne du temps (Sur le § 19 de Die Grundprobleme der Phänomenologie de Heidegger, éclairant la page 432 de Sein und Zeit), in: Archives de Philosophie, vol. 43, fasc. 1, 1980, p. 99-120; Irene Borges-Duarte, Prólogo à edição portuguesa e Notas à tradução, in: Martin Heidegger, O conceito de tempo, Lisboa, Fim de Século, 2003, respectivamente p. 9-15 e 87-91; Jesús Adrián Escudero, Nota sobre la presente edición, in: Tiempo e historia, Madri, Trotta, p. 9-12; Rainer Marten, “Der Begriff der Zeit”: Eine Philosophie in der Nussschale, in: Dieter Thomä (editor), Heidegger Handbuch: Leben, Werk,Wirkingen, Stuttgart/Weimar, J.B. Metzler, 2003, p. 22-26.

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“compreensão do ser”, quer dizer, com a questão do ser2. Assim, desde o início, as investigações fenomenológicas de Heidegger ocupam-se em compreender o tempo ontologicamente.

3.1 A AULA DE HABILITAÇÃO O CONCEITO DE TEMPO NA CIÊNCIA HISTÓRICA

O conceito de tempo na ciência histórica (Der Zeitbegriff in der

Geschichtswissenschaft) é o título da aula de habilitação proferida por Heidegger no dia 27 de julho de 1915, em Friburgo3. O texto foi publicado pela primeira vez no Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, em 1916 e, posteriormente, no primeiro volume das obras completas (Gesamtausgabe), em 1972, pela editora Vittorio Klostermann, de Frankfurt.

Trata-se do primeiro escrito importante de Heidegger em que é explícita sua preocupação com a temática do tempo e, também, da história. Apesar de sua importância no conjunto da obra heideggeriana e dos muitos estudos realizados aqui no Brasil sobre o pensamento deste filósofo, poucas referências são feitas a este texto.

Numa nota de rodapé do § 80 de Ser e tempo, obra principal publicada somente em 1927, o filósofo reconhece: “Uma primeira tentativa de se interpretar o tempo cronológico e os números na história encontra-se na aula de habilitação, dada pelo autor na Universidade de Friburgo (semestre de verão, 1915)”4. Segundo as palavras do próprio filósofo, trata-se de “uma primeira tentativa de interpretar o tempo cronológico e os números na história”. Na mesma nota lê-se ainda: “As relações entre os números históricos, o tempo calculado astronomicamente e a temporalidade e historicidade do ser-aí necessitam

2 No texto Meu caminho para a fenomenologia e no diálogo De uma conversa da linguagem entre um japonês e um pensador, das décadas de 50 e 60, Heidegger fala explicitamente que seu início na filosofia tem tudo a ver com as investigações realizadas por Edmund Husserl no âmbito da fenomenologia. Não é casual caso que a publicação de Ser e tempo tivesse sido dedicada a Husserl. A dedicatória fala em “admiração e amizade”. Porém, em jogo estava algo maior que amizade ou admiração. Através de Husserl, Heidegger irá gradativamente entrar em contato com a filosofia fenomenológica. E, como ele mesmo reconhece, já estava a caminho da questão do ser. 3 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo, Geração Editorial, 2000, p. 94. 4 Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, nota 233, p. 514; Martin Heidegger, “Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft”, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 356-375.

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de uma ampla investigação”5. Esta nota evidencia claramente a inquietação de Heidegger aproximadamente dez anos antes da publicação de Ser e tempo. Seguindo estes esclarecimentos, procuraremos apontar e analisar interepretativamente algumas das ideias condutoras presentes no texto da aula de habilitação.

Como epígrafe ao texto da aula, Heidegger cita um pensamento de Mestre Eckhart: “Tempo é o que se altera e diversifica, a eternidade se mantém simples”6. Chama atenção que Heidegger não tenha grifado a palavra “simples” (literalmente, pelo latim, sine plex, “sem-dobra”), mas chama atenção para a alteração e a diversificação. Então, o tempo diz respeito ao que se trans-forma e se multi-plica. A ênfase nestas palavras revela duas ideias importantes: 1) que o tempo muda, se altera, implicando, portanto, uma passagem entre o antes e o depois; 2) que o tempo é múltiplo, que possui várias dimensões.

O próprio título do texto denuncia que Heidegger ocupa-se com o conceito de tempo enquanto problema relacionado à história, ou melhor, à ciência histórica. A partir disso, é possível fazer uma interpretação do texto da aula de habilitação em dois momentos distintos: de um lado, a preocupação de Heidegger consiste em estabelecer uma diferença básica

5 Chama atenção Heidegger mencionar vários textos relativos à cronologia ou cronometria: G. Simmel, Das Problem der historischen Zeit. Philosophische Vorträge veröffentl. von der Kantgesellschaft, n. 12, 1916; as duas obras fundamentais sobre a formação da cronologia histórica são: Josephus Justus Scaliger, De emendatione temporum, 1583, e Dionysius Petavius, SJ, Opus de doctrina temporum, 1627; sobre a antiga medição do tempo, G. Bilfinger, Die antiken Stundenangaben, 1888; Der bürgerliche Tag. Untersuchungen über den Beginn des Kalendertages im klassischen Altertum und im christlichen Mittelalter, 1888; H. Diels, Antike Technik, 2. ed., 1920, p. 155-232s: Die antike Uhr; sobre a cronologia recente, trata Friedrich Rühl, Chronologie des Mittelalters und der Neuzeit, 1897. O mesmo texto de G. Bilfinger é também citado por Heidegger no volume 64 das obras completas ( Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit. 1. Der Begriff der Zeit (1924); 2. Der Begriff der Zeit (Vortrag 1924). Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, nota 4, p. 68). 6 Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 357. Embora Heidegger não esclareça, esta epígrafe é do sermão 44, dos sermões alemães eckhartianos. Na tradução brasileira, Mestre Eckhart, Sermões alemães, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 252-256. Estudos importantes a respeito da aula de habilitação são os de Thomas Regehly, “Historische und erfüllte Zeit. Walter Benjamins Kritik an Heideggers Antrittsvorlesung über den ‘Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft’ (1916)”, in: Die Zeit Heideggers, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002, p. 141-152; Bernd Irlenborn, “Zeitlichkeit und Zeitrechnung beim frühen Heidegger”: in: Die Zeit Heideggers, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002, p. 161-172; Philippe Capelle, “Heidegger et maître Eckhart”, in: Revue des Sciences Religieuses, ano 70, n. 1, jan. 1996, p. 113-124.

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entre o modo de conceber o tempo nas ciências naturais e o modo de conceber o tempo nas ciências históricas, procurando encontrar os “limites” de uma em relação à outra; de outro lado, ele preocupa-se em mostrar que o conceito de tempo na ciência histórica possui um significado todo peculiar. Por isso afirma, ao final do texto, que todo e qualquer número histórico só possui sentido (Sinn) e valor (Wert) no âmbito da ciência histórica, na medida em que se levar em consideração o significado do conteúdo histórico (inhaltlich historisch Bedeutsame).

Na primeira parte do texto, fazendo uso de uma terminologia e temática próprias do neokantismo, Heidegger aborda problemas que ultrapassam e, por isso mesmo, já não podem mais ser resolvidos nas estritas fronteiras kantianas de uma teoria do conhecimento. Assim, embora se trate “ainda” de uma investigação epistemológica, o filósofo procura estabelecer a especificidade do conceito de tempo da ciência histórica em oposição ao conceito das ciências físicas.

Num primeiro momento, a ênfase recai na análise do que Heidegger chama de “estrutura lógica do conceito de tempo”. Deve-se determinar, então, “a estrutura do conceito de tempo”. “Podemos reconhecer a estrutura do conceito de tempo da história a partir de sua fundamentação na ciência histórica”, afima o filósofo. A pergunta que Heidegger se coloca é: “Que estrutura (Struktur) deve ter o conceito de tempo na ciência histórica para poder desempenhar a função (Ziel) como conceito de tempo de acordo com a finalidade (Funktion) dessa ciência?7 Está em jogo dar visibilidade ao conceito de “tempo histórico” (historischen Zeit) a partir do conceito de “tempo em geral” (Zeit überhaupt). O termo “geral” possui um sentido eminentemente ontológico. Entretanto, toda e qualquer determinação ôntica nasce necessariamente de uma determinação ontológica fundamental. Ora, a ciência histórica é uma ciência ôntica. Contudo, essa diferenciação se tornará mais evidente na medida em que Heidegger demonstra que o conceito de tempo histórico tem um significado todo peculiar, se comparado com o conceito de tempo das ciências físicas.

Tendo presente o pensamento de Eckhart sobre o tempo, na qual ainda repercute de algum modo o conceito de tempo aristotélico8, Heidegger está mesmo interessado na compreensão que está “em oposição”, isto é, no modo como o tempo passa a ser compreendido no início da modernidade. A diferença fundamental reside no modo

7 Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 359. 8 Aristóteles, Física, livro IV, 119a 9s.

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“completamente novo” como a geração de Galileu aprendeu o tempo “metodologicamente”. Segundo Heidegger, no novo método reside uma dupla particularidade: a) afirma-se uma suposição ou hipótese, que possibilita compreender os fenômenos de um âmbito determinado a partir de uma lei geral, no caso, os fenômenos relacionados ao movimento; b) a suposição ou hipótese não afirma, de modo algum, uma qualidade oculta (vergorgene Qualität) como causa explicativa dos fenômenos, mas contém relações matematicamente compreensíveis, ou melhor, mensuráveis, entre os momentos do fenômeno concebidos idealmente.

Formulado desse modo, vê-se que Galileu levou a efeito, pela primeira vez, um método científico que alcançou predomínio e legitimidade do decorrer dos últimos séculos, de modo a fazer-se presente e operante nas mais diversas ciências, especialmente nas ciências físico-naturais. É possível concluir, então, que aqui se define a finalidade da física como ciência, quer dizer, de reduzir todos os fenômenos do mundo físico a um conceito de unidade, a saber, a leis fundamentais matematicamente fixáveis a partir de uma “dinâmica geral” (allgemeinen Dynamik). Dessa metodologia resulta, consequentemente, que, sempre que e quando o tempo é medido, determina-se uma quantidade (Soviel). A indicação de quantidade reúne numa unidade os pontos de tempo nela transcorridos e, assim, acaba-se fazendo um corte na escala temporal (Zeitskala), destruindo com isso o “tempo verdadeiro” (eigentliche Zeit) em seu fluir e, desse modo, qualquer “unidade de tempo” é forçosamente hipostasiado. O fluxo (Fluß) é detido, congela-se, torna-se superfície e, somente como superfície, é passível de mensuração. Dessa maneira, o tempo transforma-se numa “ordenação homogênea” (homogenen Stellenordnung), transforma-se em escala, em parâmetro (Parameter)9.

Segundo Heidegger, mesmo na teoria da relatividade de Einstein – uma das conhecidas teorias físicas do tempo – está em jogo o problema da “mensuração do tempo” (Zeitmessung) e “não o tempo em si mesmo” (nicht um die Zeit an sich). Com efeito, mesmo na teoria da relatividade, o conceito de tempo permanece inalterado e intocado10, ou seja, de Galileu a Einstein a concepção do tempo na física não se modificou, sendo sua função básica tornar possível a mensurabilidade do tempo. O tempo

9 Sobre os conceitos “tempo e espaço” e, também, sobre “Aritóteles e Newton”, Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, §§ 5 e 18, respectivamente p. 25-33 e 86-93. 10 Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 366.

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constitui-se, então, num momento essencial e necessário na definição do movimento, que é um dos principais objetos da física. Ora, para possibilitar a medida, o tempo deve tornar-se mensurável, o que é possível somente, se for “pensado” (tomado) como um fluxo uniforme, isto é, se for identificado com o próprio espaço11.

Salvaguardados o limite e propósito de Heidegger, está em jogo, em primeiro plano, traçar uma diferença entre o conceito de tempo da física (homogeneidade quantitativa) e o conceito de tempo da ciência histórica (heterogeneidade quantitativa).

Heidegger chega à evidência de que o conceito de tempo da ciência histórica deve ser “totalmente peculiar e próprio”. A partir disso, acaba tendo diante dos olhos um fenômeno novo, que é, na verdade, o problema central da aula de habilitação. É necessário ver e entender o “sentido” de uma possível “estrutura do conceito de tempo histórico”, a qual só pode estar relacionada diretamente com a própria história, ou melhor, com o objeto que esta se propõe investigar, na medida em que se justificar ontologicamente tal direito. Em certo sentido, pode-se admitir, Heidegger chega a tomar uma posição crítica – naturalmente implícita – em relação ao modo como os historiadores realizam suas investigações em história12. Assim, é necessário ver e entender por que, segundo Heidegger, no conceito de tempo da ciência histórica reside um problema (es steckt ein

11 Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 26. 12 No âmbito das investigações heideggerianas deveríamos perguntar e aprofundar vários outros aspectos. Nesse sentido, deveríamos perguntar: de que fonte bebe Heidegger para chegar a uma diferenciação conceitual entre historicidade e história? São muitas. Na aula de habilitação de 1915 são citados J. Bodinus, E. Meyer, E. Bernheim, J. G. Droysen, E. Troeltsch, H. Rickert, L. Ranke, sendo que os dois últimos, ao lado de Windelband, G. Simmel e G. Misch, são mencionados também no § 77 de Ser e tempo. Entretanto, no capítulo “temporalidade e historicidade”, dois outros autores são realmente fonte de inspiração importantíssima para Heidegger: Wilhelm Dilthey e Paul Yorck von Wartenburg, o Conde Yorck. Ele mesmo atesta isso no início do § 77: “A discussão empreendida acerca do problema da história nasceu da assimilação do trabalho de Dilthey. Foi confirmada e consolidada pelas teses do Conde Yorck, dispersas em sua correspondência com Dilthey” (Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 77, p. 490-491). Além destes autores, também Jacob Burckhardt é significativo. No livro em que Heidegger interpreta Parmênides, reconhece: “Tudo que é historiográfico (Historische) orienta-se a partir do histórico (Geschichtliche). A história, ao contrário, não tem nenhuma necessidade da historiografia. O homem da historiografia é, sempre, apenas um técnico, um jornalista. Um pensador da história é totalmente distinto do historiógrafo. Jacob Burckhardt não é nenhum historiador, mas um verdadeiro pensador da história (Geschichtsdenker)” (Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 94-95).

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Problem im Zeitbegriff der Geschichtswissenschat)13. Está em jogo aqui, compreender fundamentalmente o que o pensador vê como “estrutura (Struktur) do conceito de tempo histórico” e que “função” (Funktion) desempenha.

Com efeito, se as ciências naturais operam com os números como meras quantidades, as ciências históricas, ao contrário, não devem tratar tais dados com a mesma objetividade. Desse modo, a ciência histórica, para ser rigorosa ao modo de descrever os fenômenos de seu campo de investigação, necessita compreender os dados históricos de um modo que não seja quantitativo, mas qualitativo, que não seja homogêneo, mas heterogêneo. Portanto, a ciência histórica não pode descrever os fenômenos de seu campo de investigação emprestando critérios de outra ciência, ficando pressuposto que deve possuir ou elaborar seus próprios critérios e métodos investigativos.

Um dos questionamentos centrais em relação ao conceito de tempo na ciência histórica parece ser: como pode o historiador alcançar seu objeto, visto que este se encontra no passado? Como vencer a distância temporal (Zeitferne)? A resposta é surpreendentemente “simples”: “O passado sempre tem sentido somente, na medida em que é visto a partir de um presente. O passado não apenas não é mais, considerado a partir de nós, ele era também um outro como nós e nossas relações de vida hoje são no presente”14. Heidegger não quer dizer apenas que não é possível interpretar algum fato passado sem considerar o presente, mas toda e qualquer interpretação do passado radica sempre já num presente bem determinado. Melhor, todo presente já é, em certo sentido, também passado, na medida em que, todo e qualquer agora, quando o pronunciamos e reconhecemos de algum modo, já não é mais presente, mas passado. A rigor, o passado possui a mesma vitalidade do presente, isto é, desde que seja visto corretamente a partir do presente. O passado, para o historiador, deve estar vitalmente presente em seu presente. É nisso que reside o “significado totalmente original no âmbito da história” (Die Zeit hat in der Geschichte eine ganz originale Bedeutung), reconhece Heidegger.

Diante disso, é possível destacar duas ideias importantes presentes no texto da aula de habilitação: a) embora de uma forma não explícita, vemos nesse texto a ideia norteadora segundo a qual o tempo na ciência

13 Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 367. 14 Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1972, p. 369-370.

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histórica diferencia-se essencialmente do tempo como fila de agoras, sem-começo e sem-fim, isto é, como se a todo agora seguisse pura e simplesmente um novo agora e, assim, indefinidamente. Decorre dali que o conceito de tempo na ciência histórica não possui o caráter homogêneo do conceito do tempo natural. Por isso mesmo, o tempo histórico também não pode ser expresso matematicamente através de uma fila como se houvesse uma lei que determinasse os “agoras” um após o outro. Nessa ideia manifesta-se, de algum modo, o conceito vulgar de tempo, quer dizer, que o tempo é uma pura sequência de agoras, sem-começo e sem-fim. E assim, pensa Heidegger, na ciência histórica, “a pergunta pelo quando (Wann) possui um sentido totalmente diverso”. Além disso, também é preciso compreeender melhor o problema com o qual Heidegger se depara: b) de um lado, se o tempo não deve ser visto unicamente como uma mera sequência ou fila de agoras, sem-começo e sem-fim, quer dizer, de modo indeterminado (o que equivale ao quantitativo nas ciências naturais), de outro lado, coloca-se uma nova questão: qual o sentido do “agora enquanto data” histórica, por exemplo? Qual a estrutura significativa “do agora” enquanto data histórica? O conteúdo histórico possui significado (inhaltlich historisch Bedeutsame), possui sentido (Sinn), possui valor (Wert).

Heidegger pergunta-se nestes termos: “O que são os números da história, então?”, ou seja, qual o caráter do propriamente qualitativo em termos históricos? A partir disso, o filósofo determina propriamente como concebe o qualitativo na ciência histórica e o diz de uma maneira lapidar: “O qualitativo do conceito de tempo histórico não significa outra coisa que compactação (Verdichtung) – cristalização (Kristallisation) – de uma objetivação de vida dada dentro da história. Portanto, a ciência histórica não trabalha com quantidades”. Embora de modo não explícito, pode-se ler aqui: o conceito de tempo histórico implica, de algum modo, compreender que a própria vida humana se temporaliza, se historializa. O ser humano pode “voltar” ao passado, porque a vida se compacta, se cristaliza sob formas significativas, de sentido, de valor.

Assim, por exemplo, se analisarmos sob os olhos da fenomenologia, não somente e necessariamente datas importantes como da proclamação da independência, da proclamação da república ou da abolição da escravatura no Brasil, publicamente reconhecidas e comemoradas, constituem-se compactações ou cristalizações de vida e de história humanas. De uma maneira muito mais próxima e imediata, porém, a data de nosso nascimento não é, a rigor, uma mera data, muito menos

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mero número. Evidencia-se isso no fato de, em geral, não pensarmos necessariamente “no dia do nascimento” como algo perdido num passado mais próximo ou mais distante. Pois toda vez que, na passagem de mais um ano de vida, co-memoramos nossa existência, o que co-memoramos? Dizemos manifestamente: “nossa vida, nossa existência”. Na verdade, porém, tornamos memorável “cada passagem do tempo em nossa vida” e é justamente isso que dá sentido à constituição do “co” da co-memoração. Nesse sentido, dizemos também às vezes: “re-cordamos”, isto é, reunimos e trazemos para junto do “coração”, tudo que já fomos e somos, mas também alimentamos a esperança de poder-ser o ainda-não-sido em cada nova passagem do tempo em nossa vida. De fato, cada passagem de ano, cada dia que passa, cada hora, cada segundo, cada milionésimo de segundo constituem o (co)memorável da nossa vida, da nossa existência.

Desse modo, à procura de determinar o conceito de tempo da física, Heidegger evidencia que o tempo nela compreendido caracteriza-se como tempo homogêneo (homogen) e quantitativo (quantitativ). Assim, sem prejuízo algum para a própria física enquanto ciência, é possível perguntar: se o tempo medido pela física é sempre homogêneo e quantitativo, o que é dito através de expressões como “ordenação homogênea” (homogenen Stellenordnung), como tematizar o tempo que está nela previsto e pressuposto, ou seja, que tempo é este que se revela em expressões como “tempo verdadeiro” (eigentliche Zeit), “tempo em geral” (Zeit überhaupt), “dinâmica geral” (allgemeinen Dynamik) e “o tempo em si mesmo” (um die Zeit an sich)? A partir desses questionamentos, qual seria propriamente o conceito de tempo da ciência histórica?

A princípio, parece evidente que a ciência histórica não trabalha nem opera com quantidades e, portanto, é óbvio que se opõe ao conceito do tempo da física. A questão central, porém, consiste exatamente em mostrar e demonstrar isso. Num primeiro momento, é importante ter presente que, quando a ciência histórica se ocupa com determinada datação, por exemplo, ela não se ocupa com mera data. É que, a toda e qualquer data histórica, sempre se atribui alguma significação, algum sentido, algum valor. Por isso mesmo, não pode ser reduzida ao modelo, ou melhor, ao parâmetro epistemológico das ciências da natureza e, em particular, à física. Em questão está, portanto, um modo de tematizar o “tempo em si mesmo”, “o tempo verdadeiro”, tratando-se então de uma questão de ordem ontológica.

Embora o conceito de tempo ainda não seja abordado no texto da aula de habilitação como em diversos textos posteriores, é notória aqui a

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preocupação – Heidegger conta, então, com 25 anos de idade – com o “tempo em si mesmo”. Esta expressão possui um sentido eminentemente ontológico.

A partir do que acabamos de dizer, é possível perceber que já estão presentes nesse texto, embora ainda não explícitos e muito menos minuciosamente elaborados, conceitos importantes como significância (Bedeutsamkeit), possibilidade de datação (Datierbarkeit), lapso de tempo (Gespanntheit) e tempo público (Öffentlichkeit), conceitos que Heidegger elabora em vários textos importantes da década de 1920. Não é mera casualidade, portanto, que Heidegger cite o texto da aula de habilitação numa nota de rodapé do § 80 de Ser e tempo. Uma evidência do que afirmamos está em frases e expressões como “distância temporal” (Zeitferne), “separação temporal” (zeitliche Kluft), “significado do conteúdo histórico” (inhaltlich historisch Bedeutsame), “o tempo possui um significado totalmente original no âmbito da história” (Die Zeit hat in der Geschichte eine ganz originale Bedeutung), entre outras empregadas pelo filósofo.

De fato, nos textos contemporâneos a Ser e tempo, a preocupação de Heidegger é determinar fenomenologicamente a constituição plena do “quando” (“agora”) do tempo sob a forma de uma análise rigorosa do tempo ocupado, do tempo do mundo e da intratemporalidade15. Em muitos textos heideggerianos posteiores há passagens que apontam para as análises realizadas na aula de habilitação de 1915.

Concluindo esta análise interpretativa da aula de habilitação, poderíamos dizer que a possibilidade da ciência histórica é vista e tematizada por Heidegger, mas não ainda em sua gênese ontológica como temporalidade do ser-aí. Ele irá elaborar estes conceitos em textos de anos posteriores. Segundo ele, a condição de possibilidade do conceito de tempo da ciência histórica reside no fato de o historiador poder escolher no passado os momentos mais significativos e “recontar” ou “reconstruir” a história a partir deles, uma vez que o próprio tempo é constituído por momentos significativos, os quais projetam sempre de novo uma nova luz tanto sobre o passado como sobre o futuro, mas sempre a partir do presente.

Com efeito, como o pensador dirá em Ser e tempo, “‘o ser-aí é histórico’ não significa apenas o fato ôntico de que o homem representa um ‘átomo’ mais ou menos importante no fluxo da história do mundo, sendo a bola deste jogo de circunstâncias e acontecimentos. A tese coloca

15 Heidegger ocupa-se com estes temas no último capítulo de Ser e tempo e no livro Os problemas fundamentais da fenomenologia.

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o seguinte problema: Em que medida e em quais condições ontológicas, a historicidade, enquanto constituição essencial, pertence à subjetividade do sujeito ‘histórico’?”16. “Por isso é que, radicada na hermenêutica do ser-aí, a metodologia das ciências históricas do espírito (historischen Geisteswissenschaften) só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido derivado”17.

3.2 A CONFERÊNCIA O CONCEITO DE TEMPO

Para acompanhar a elaboração heideggeriana do conceito de

tempo analisaremos também aqui a conferência O conceito de tempo (Der Begriff der Zeit). Entendemos que, embora o tempo seja tematizado em vários outros textos da juventude ou mesmo em obras heideggerianas mais tardias18, é visível nesta conferência a preocupação do pensador em elaborar, de uma maneira tematicamente explícita, um novo conceito de tempo. Nossa proposta restringe-se, então, em evidenciar as ideias condutoras da elaboração heideggeriana do conceito de tempo, razão pela qual muitos temas conexos não poderão ser especificamente abordados neste texto.

Pois bem, sabemos que o título da conferência pronunciada por Heidegger no dia 25 de julho de 1925, no Teologado de Marburgo, é O conceito de tempo19. O texto foi publicado pela primeira vez em alemão, em 1989, pela editora Max Niemeyer, de Tübingen. Posteriormente, foi publicado também, como anexo ao volume 64 das obras completas (Gesamtausgabe), em 2004, pela editora Vittorio Klostermann, de Frankfurt. Esse volume contém quatro outros textos importantes diretamente relacionados ao conteúdo da conferência, a saber: a) “A colocação da questão de Dilhey e a tendência fundamental de Yorck”; b) “Os caracteres

16 Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 73, p. 474. 17 Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 3, p. 78. 18 Textos mais tardios de Heidegger, onde a problemática do tempos reaparece, são por exemplo: Que é isto – a filosofia? (1955) e Tempo e ser (1962). No entanto, são particularmente importantes as reflexões que se encontram registradas no volume Seminários de Zollikon (BOSS, Medard e HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon: protocolos – diálogos – cartas. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2009). No que diz respeito às análises fenomenológicas sobre múltiplas variações de manifestação ou mesmo percepção do tempo, são especialmente importantes as sessões dos seminários entre os anos de 1964 e 1965. 19 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo, Geração Editorial, 2000, p. 172.

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ontológicos originários do ser-aí”; c) “Ser-aí e temporalidade”; d) “Temporalidade e historicidade”.

Devemos considerar, além disso, que as análises fenomenológicas apresentadas em Ser e tempo são a culminância de um grandioso empenho investigativo do autor especialmente nos primeiros anos da década de 1920. Embora só tenha sido publicado em 1927, Heidegger vinha trabalhando em seu tratado há vários anos, especialmente desde a aula de habilitação de Friburgo, em 1915. Encontram-se publicados muitos volumes das obras completas que evidenciam isso e que são fruto das investigações anteriores à publicação da opus maius.

Gadamer escreveu, certa vez, que esta conferência é “proto-forma” (Urform) de Ser e tempo20. De fato, para quem conhece os temas em torno dos quais gravita a analítica existencial e temporal do ser-aí, lendo atentamente a conferência de 1924, não terá como discordar. Da mesma maneira, segundo nosso entendimento, a grande maioria dos volumes das obras completas citados acima são, ao lado desta conferência, “primeiras elaborações” de Ser e tempo.

Como falamos no início deste tópico, trata-se de avistar e evidenciar as ideias condutoras da elaboração heideggeriana do conceito de tempo, razão pela qual muitos temas conexos não poderão ser especificamente abordados aqui. Heidegger criou uma nota ao § 54, onde diz: “As considerações anteriores e as que haverão de seguir foram apresentadas, sob forma de tese, na conferência de Marburgo (julho de 1924) sobre o conceito de tempo”21. Importante observar que o § 54 é justamente o capítulo em que Heidegger tematiza a possibilidade do poder-ser próprio e a decisão (§§ 54 a 60), capítulo este preparatório para o capítulo em que a temporalidade como sentido ontológico da cura é tematizada (§§ 61 a 66).

Na nota o pensador diz que as considerações feitas anteriormente (vorstehenden) e as que haverão de seguir (nachfolgenden) foram apresentadas na forma de tese na conferência de 1924. A partir disso podemos concluir que há, na conferência, ideias – segundo Heidegger, “na forma de teses” (in thesenartiger Form) – que dizem respeito diretamente à tematização do tempo e outras não. Entre numerosos conceitos presentes no texto da

20 Hans-Georg Gadamer, “Martin Heidegger und die Marburger Theologie”, in: Otto Pöggeler (ed.). Heidegger: Perspektiven zur Deutung seines Werks, Colônia/Berlim, Kiepenheuer & Witsch, 1970, p. 169. 21 Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 54, nota 151, p. 346.

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conferência, cabe apontar apenas alguns: “ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein), “ser sempre meu” (Jemeinigkeit), “ser em cada caso” (Jeweiligkeit), “ser-com-os-outros” (Mit-einander-sein), “fala” (Sprechen), “cura” (Sorge), “ocupação” (Besorgen), “cotidianidade” (Alltäglichkeit), “impessoal” (Man), “compreensão” (Verstehen), “angústia” (Angst), “estar-no-fim” (Zu-Ende-sein), “porvir” (Zukunft), “convivência” (Miteinnandersein)22. Percebe-se que, nesses exemplos, estão em jogo conceitos que dizem respeito a toda movimentação analítica de Ser e tempo. Consideramos ser possível desenvolver e explicitar alguns desses conceitos em outros momentos de nossa investigação; voltar-nos-emos, por isso, primeiramente para algumas ideias relacionadas diretamente à tematização do tempo. Nesse sentido, esperamos ser possível mostrar que há uma mudança considerável, não somente conceptual, mas, sobretudo, no modo de pensar e tematizar o fenômeno do tempo, entre a aula de habilitação de 1915 e a conferência de 1924.

A primeira ideia, aparentemente sem importância, está nestas palavras, ao final da breve introdução: “O filósofo não crê. Se o filósofo pergunta pelo tempo, está decidido a compreender o tempo a partir do tempo relacionado ao aeí, o qual diz respeito à eternidade, mas revela-se como mero derivado do ser-temporal”23. Depreende-se daqui que, embora Heidegger esteja falando provavelmente para muitos teólogos, a abordagem do tempo a que ele se propõe não é teológica, mas filosófica. Heidegger estabelece uma diferença essencial entre a dimensão da fé e o pensamento filosófico. Para Heidegger, pensar o tempo a partir da eternidade já não é possível. Por isso, filosoficamente, trata-se de compreender o tempo a partir do tempo, ou seja, a partir dele mesmo. Isso evidencia-se em muitas outras passagens da analítica temporal na forma de expressões como, por exemplo, “o tempo se temporaliza”. Por isso, na conferência de 1924, Heidegger escreve: “O tratamento que se segue não é de tipo teológico. [...] O modo de tratar também não é filosófico, à

22 Especialmente oito estruturas fundamentais do ser-aí (Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 12-14; tradução brasileira: “O conceito de tempo”, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 16/17-20/21. 23 Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: “O conceito de tempo”, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9. também Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 27 e Benedito Nunes, “Experiências do tempo”, in: Adauto Novaes, Tempo e história, São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 131-140.

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medida que não reivindica fornecer uma determinação sistemática do tempo válida universalmente, cuja determinação devesse voltar-se para o que está atrás do tempo, em associação com as outras categorias”24.

Heidegger pergunta-se: “O que experimentamos do tempo por meio do relógio?” Pelo relógio, o tempo vem ao nosso encontro como algo indiferente ao ponto de poder ser fixado como ponto-de-agora (Jetztpunkt). Com isso, através de dois pontos-de-tempo, um é anterior e outro é posterior. Nessa acepção, nenhum dos pontos (agoras) possui privilégio sobre o outro. Enquanto agora, um é anterior (Früher) e outro é posterior (Später). Esse tempo é completamente “igual” (gleichartig) e “homogêneo” (homogen). Revela-se assim, mais uma vez, que o tempo só é passível de mensuração quando concebido em sua homogeneidade, ou seja, o anterior e o posterior só podem ser determinados a partir de um agora, sendo, porém, “em si mesmo”, totalmente igual e indiferente.

Todavia – e isso é, de fato, relevante aqui! – Heidegger reconhece que a “determinação primária” (primäre Bestimmung) evidenciada pelo uso do relógio não alcança a indicação do “quanto-tempo” (Wielange), nem mesmo o “quanto” (Wieviel) do tempo que passa. O que ele determina é a fixação constante do agora, ou melhor, de cada agora que passa. Diante disso, se olho para o relógio que está no meu pulso ou em meu celular, qual a primeira coisa que digo? Digo, por exemplo: “Agora são 21 horas” e, precisando melhor, dizemos: “10 minutos após isso ou aquilo ter ocorrido” e, na sequência, certamente ainda dizemos ou pensamos: “daqui a 3 horas será meia-noite”. Nessa fala do tempo, mesmo lendo o tempo no relógio, revela-se uma coisa muito curiosa: o que é cada um dos três agoras? São eles iguais e indiferentes? Não exatamente! Quando digo 21 horas, posso estar pensado que é a hora do término da aula; 10 minutos depois, estarei ou terei estado na sala de professores ou na secretaria; daqui a 3 horas será meia-noite e, provavelmente, estarei em minha casa. Por fim, mesmo que em nossa fala sejam pronunciados números relativos às horas, estas horas não são cifras, muito menos iguais e indiferentes.

Devidamente considerado, Heidegger acaba fazendo uma série de perguntas fundamentais em relação ao fenômeno do tempo na conferência de 1924. Temas como “tempo ocupado” e “tempo do mundo” e, também, embora implícito, da “intratemporalidade”, são apenas evocados, mas não desdobrados em sua constituição ou estrutura

24 Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: “O conceito de tempo”, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.

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fenomenal. Heidegger ocupa-se desses temas principalmente no último capítulo de Ser e tempo e no livro Os problemas fundamentais da fenomenologia.

Contudo, as perguntas essenciais que Heidegger se faz são estas duas: “Sou eu o agora? Cada uma das outras pessoas é o agora?” O “olho” de Heidegger vê o que aqui? O que o pensador evidencia? Trata-se, no fundo, de uma só e mesma pergunta. Ora, se sou eu mesmo o agora, então, o outro, cada outro, todos os outros, tantos outros quantos é possível haver, são eles agora? Está em jogo, aqui, uma só pergunta: a condição de possibilidade de toda e qualquer individualidade experimentar tempo. Embora seja pleonástico, deve-se afirmar que cada individualidade é singular, única, irrepetível. Em suma, além de cada indivíduo estar na possibilidade de experimentar o agora em sua singularidade, cada singularidade experimenta a passagem de todo e qualquer agora que lhe advém e, além disso, deve ser possível também, em certo sentido, experimentar a passagem do agora na convivência com os outros, isto é, com os semelhantes a mim mesmo (Mitdasein). O que evidencia esta possibilidade é que o agora pronunciado é, no estar junto com os outros, compreensível para cada um. A questão, contudo, é mostrar como isso acontece25.

Diante disso, mesmo que não digamos nem falemos, não afirmemos nem explicitemos nada a respeito do tempo – o que, certamente, acontece na maioria do tempo em nossa vida – isso, contudo, ainda não prova não ser possível experimentar o tempo da maneira como o estamos tentando descrever aqui. Na verdade, desde que visto e entendido adequadamente, não há absolutamente experiência humana alguma destituída de tempo. Toda experiência humana é perpassada, transpassada pelo tempo. Heidegger chamou a experiência dessa passagem de temporalização do ser-aí e às possibilidades de temporalização do ser-aí denominou temporalidade originária. Assim, em toda e qualquer passagem do tempo, do ser-aí se temporaliza, seja de maneira própria ou

25 Na conferência de 1924 Heidegger afirma que “o tempo é o adequado principium individuationis. [...] Mas em que medida o tempo, enquanto algo próprio, é o princípio de individuação (Individuationsprinzip), isto é, a partir de onde o ser-aí está no ser em cada caso? Sendo porvir ao antecipar, o ser-aí que está na medianidade é ele mesmo; na antecipação, o ser-aí torna-se visível enquanto o único ser que é desta vez (Diesmaligkeit) em seu único destino (Schicksal) na possibilidade de seu próprio passar” (Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 24-27; tradução brasileira: “O conceito de tempo”, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 36/37). também Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 55-56.

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imprópria. O ser-aí, à medida que existe, vive e experimenta o tempo em sua existência.

Com efeito, Heidegger aponta um “método bem-determinado” a partir do qual a própria ciência histórica poderia renovar-se, isto é, repensar seus fundamentos de investigação. Assim, se bem considerado, a ideia é basicamente a mesma se comparada à aula de habilitação, cujo tema central era: o conceito de tempo da ciência histórica.

Nesse sentido, na conferência de 1924 reaparecem duas ideias já presentes na aula de habilitação de 1915: a irreversibilidade (Nicht-Umkerhbarkeit) e a homogeneização (Homogenisierung). Os termos empregados por Heidegger são novos, mas não a ideia. Para ele, o fundamental é conquistar um modo próprio de acesso (Wie) àquilo que se busca compreender e interpretar como já passado e, nesse caso, “se o tempo é definido como tempo do relógio, então fica mesmo perdida a esperança de tentar chegar ao seu sentido originário (ursprünglichen Sinn)”26.

Como já visto anteriormente, está em jogo mostrar e fundamentar a razão pela qual o ser-aí é o ente que pode e deve fazer-se a pergunta fundamental: “quem” sou eu? Nessa tarefa está a caminho Ser e tempo, obra que Heidegger estava elaborando quando pronunciou a conferência O conceito de tempo.

Segundo nosso modo de ver e entender, esta é uma das partes mais difíceis da conferência de 1924, mas que, nem por isso, pode-se passar por cima e ir adiante. A primeira coisa a fazer, para compreendê-la adequadamente, é considerá-la e lê-la desde o contexto da conferência.

De fato, do modo como Heidegger encaminha a conceituação do tempo nesta conferência, chama atenção principalmente o modo inusitado e, portanto, totalmente novo, como formula a questão pelo tempo. Heidegger propõe uma mudança no modo de colocar a questão acerca do tempo. Da tradicional pergunta o que é o tempo?, ele propõe: quem é o tempo? Não se trata de uma simples substituição de termos, nem de um modismo, nem mesmo uma maneira nova e esquisita de perguntar pelo tempo. Não se trata de responder a estas perguntas com objetividade, num curto e grosso é isso ou aquilo ou, então, não é isso nem aquilo. Quem é o tempo? Heidegger diz que é o ser-aí. Ora, o ser-aí é o ente que eu mesmo sou e, nesse sentido, é o ente que está no ser em cada caso enquanto é ser sempre meu (Jeweiligkeit als meiniges).

26 Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 23-24; tradução brasileira: “O conceito de tempo”, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 32/33-34/35.

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Heidegger emprega aqui dois conceitos importantes, ambos relacionados à experiência que o ser-aí faz do tempo. Tanto Jeweiligkeit como Jemeinigkeit desempenham papéis importantes na terminologia heideggeriana entre 1923 e 192527. Etimologicamente, a expressão “Je-weilig-keit” contém a palavra jeweilig, muitas vezes traduzida por “respectivo”. Contudo, ela possui um sentido temporal: um tempinho, momento, lapso de tempo. Já a partícula “je” reúne a ideia de uma particularização do tempo do ser-aí em sua individualidade, o que se evidencia na expressão “eu sou”. Esta expressão, por sua vez, designa propriamente o emprego heideggeriano de Jemeinigkeit, na medida em que esta contém tanto o “je” como o “mein”, isto é, “meu”. De um lado, chama atenção que, em Ser e tempo, Heidegger já não empregue mais a forma substantivada Jeweiligkeit, mas apenas o adjetivo jeweilig e, por outro lado, dá preferência à forma Jemeinigkeit substantivada.

Para ver e entender adequadamente esta conferência, portanto, é preciso levar em conta todo o encaminhamento dado por Heidegger ao problema do tempo em suas investigações a respeito do tempo, especialmente do período da década de 1920. Segundo nosso entendimento, embora em geral se dê preferência a textos mais conhecidos como Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia, são também relevantes os livros Kant e o problema da metafísica e Prolegômenos para a história do conceito de tempo. Nosso modesto propósito, no entanto, quis ocupar-se apenas com dois textos menos conhecidos? Por serem menores e menos divulgados? Talvez. Nesse caso, porém, as aparências enganam. Pois, como tivemos a oportunidade de ver, são textos menores, mas de uma densidade conceptual excepcional. De fato, o caráter excepcional reside no modo como o tempo é neles conceituado e tematizado pelo filósofo alemão.

A partir disso, poderíamos colocar algumas perguntas: Como é o tempo um quem? O que seria, nesse caso, o quem ou este quem? Sou “eu” o quem? É o quem sempre um “eu”? E, nesse caso, qual o caráter deste “eu” enquanto tempo? Ou é o tempo apenas um predicado, uma categoria, um atributo de um quem? Afinal, como e qual o caráter deste “quem” que é ao modo de tempo, isto é, que é temporal? Que significa existir “no tempo”? Em que sentido é este “quem” o próprio ser-aí em sua temporalidade?

27 Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995 e History of the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985, § 18, p. 152-156.

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De fato, ao formular a pergunta pelo tempo empregamos pronomes interrogativos: o quê? (Was) e quem? (Wer). Porém, em certo sentido, Heidegger coloca em jogo não os pronomes em si, mas o modo (Wie) de perguntar pelo tempo. Em Heidegger a filosofia revive como pensamento por renovar-se desde o modo de perguntar fundamental, que é tão antigo quanto a própria filosofia28. A problemática do tempo, quer dizer, a questão do tempo é uma questão mesmo “velha”. Talvez uma das mais “velhas”. Tão “velha” quanto o homem é homem (Wer). Tão “velha” como homem se compreende a si mesmo (Wie). Tão “velha” que a filosofia é filosofia (Was). Em Heidegger, a filosofia chega a ser sinônima de questão do ser. Nesse sentido, poderíamos também ousar dizer: tão “velha” quanto a tríade homem–mundo–linguagem, tão “velha” quanto a tríade homem–ser–tempo, tão “velha” quanto a tríade homem–tempo–história. Vê-se, assim, a questão do tempo faz parte de um repertório relativamente restrito de questões essenciais do pensamento, constituindo-se mesmo na questão primordial de toda e qualquer tentativa de pensar. Tematizar o tempo é conceituá-lo como e enquanto a questão do pensamento.

Pelo que tivemos a oportunidade de ver até aqui, por enquanto deve-se considerar o seguinte: tanto a pergunta “o quê” como a pergunta “quem” são duas perguntas que apontam para uma só e mesma questão, para um só e mesmo problema central. Nessa perspectiva, a pergunta de Heidegger não chega a ser nem pretende ser uma pergunta nova ou interessante. Apesar disso, porém, a mudança no modo de perguntar tem sua razão de ser, tem seu fundamento. É que, ao se perguntar pela temporalidade do tempo, já não se pode mais fazer uso de um modo de perguntar cuja estrutura sempre indica substancialidade (ousia), quididade (quidditas, essentia)29. Já não é mais possível perguntar simplesmente pelo tempo a partir da ideia de substância, de coisa, ou melhor, “do quê” o tempo em si mesmo “não é”. Por isso mesmo deve-se perguntar pela temporalidade do tempo, que resulta na temporalidade do ser-aí.

28 Questões como: O que é o tempo? O que é uma coisa? O que é o movimento? O que é essência? O que é existência? O que é mundo? O que é o homem?, “são questões velhas de milênios. O que possuem de sempre novo é apenas a necessidade histórica de serem investigadas sempre de novo” (Emmanuel Carneiro Leão, “A filosofia na idade da ciência”, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, p. 26 (grifo nosso). 29 Ver toda a quarta seção de Kant e o problema da metafídica e a Disputatio de Davos entre Ernst Cassier e Martin Heidegger, publicadas em apêndice a este livro (Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, §§ 36-45, respectivamente p. 198-239 e 246-268).

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Embora haja uma tendência comum de compreender o tempo de modo impróprio – o que será explicitado quando falarmos da temporalidade, do tempo do mundo, do tempo ocupado e da intratemporalidade como gênese do conceito vulgar do tempo –, procuramos colocar-nos aqui diante do modo como Heidegger vê e entende e, a partir disso, compreende e conceitua o fenômeno do tempo. Portanto, para conquistar um acesso devido “à coisa mesma” “do tempo”, isto é, daquilo que está em questão, deve-se perguntar temporalmente pela temporalidade do tempo do ser-aí, ou seja, “quem” é o tempo?

Porém, como Heidegger realiza a tarefa de liberar o tempo em sua estrutura ontológica fundamental? O que significa explicitar o tempo em sua estruturação ontológica? Isso é possível desde uma elaboração (Ausarbeitung) das estruturas fundamentais do ser-aí como existenciais30. Nesse sentido, há, no texto da conferência, muitas palavras, expressões e ideias relativas ao modo de ser do ser-aí, das quais destacamos rapidamente algumas, embora não possamos analisá-las aqui. Dentre estas palavras, expressões e ideias, algumas serão tematizadas nos próximos capítulos: o ser-aí (Dasein) é ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), no sentido que lida, ocupa-se e cuida de si mesmo e dos outros entes; ele é o ente que eu mesmo sou e, nesse sentido, é o ente que está no ser cada vez enquanto é sempre meu (Jeweiligkeit als meiniges), palavras que expressam a singularidade e a unicidade do ser-aí; o ser-aí sempre já vive e convive com os outros (Mit-einander-sein); o ser-aí sempre já se auto-interpreta (Selbstauslegung); na coditianidade ninguém é si mesmo (keiner ist in der Alltäglichkeit er selbst); pela cura, o ser-aí sempre e a cada vez estabelece uma preocupação com o ser (Die Sorge um das Daseins hat jeweils das Sein in die Sorge gestellt); na medianidade (Durschnittlichkeit) do ser-aí cotidiano não há uma reflexão sobre o eu e sobre si próprio e, mesmo assim, o ser-aí se encontra numa totalidade afetiva; a autenticidade do ser-aí é o que constitui sua possibilidade mais extrema (äußerste Seinsmöglichkeit); o fato de o ser-aí, de repente, não ser mais, revela que, em última instância e em sentido próprio, não posso substituir o ser-aí dos outros (o outro, a rigor, eu nunca sou e nem posso ser); a extrema possibilidade de si mesmo, a morte, pode ser experimentada pelo ser-aí através da consciência na antecipação; a morte é a possibilidade mais própria enquanto estar-no-fim (Zu-Ende-sein), embora indeterminada; o ser-aí é junto de si mesmo, pois, enquanto existe autenticamente, se mantém no antecipar; o antecipar nada mais é do que

30 Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, p. 88-89.

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o porvir autêntico e singular do próprio ser-aí; o fenômeno fundamental do tempo é o futuro (das Grundphänomen der Zeit ist die Zukunft); na cotidianidade, o ser-aí não é o ser que eu sou, pois na cotidianidade o ser-aí é muito mais aquele modo de ser que se é (Man ist) e, por isso, o ser-aí é o tempo, no qual se está com os outros: o tempo do impessoal; o relógio que se possui, cada relógio, indica o tempo da convivência-no-mundo (Miteinander-in-der-Welt-sein); o relógio indica o agora, mas nenhum relógio jamais indicou o futuro ou o passado; toda mensuração do tempo implica: trazer o tempo para o quanto (Wieviel); o fato de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes (zunächst und zumeist), o tempo poder ser definido, dessa ou daquela maneira, reside no próprio ser-aí; o que o ser-aí diz do tempo, di-lo a partir da cotidianidade; no porvir, o ser-aí é seu passado, ou seja, ele pode voltar ao passado pelo como (Wie).

Diante de todas essas ideias presentes no texto da conferência, é necessário manter viva a ideia norteadora da tematização da temporalidade a partir do ser-aí. Ele é a base de onde nasce, cresce e se desenvolve o conceito heideggeriano do tempo. Isso significa que podemos ver no tempo do uso cotidiano, mas principalmente no modo como o tempo já sempre de algum modo está à mão de todo mundo, um modo derivado da temporalidade originária e própria? O problema do tempo envolve a tese fundamental segundo a qual Heidegger propõe colocar a própria ontologia em novas bases. A realização dessa tarefa foi chamada por ele de ontologia fundamental. Ela está enraizada na analítica existencial e temporal da facticidade do ser-aí.

Diante de todas essas considerações a respeito da conferência de 1924, podemos tirar duas consequências importantes: 1) o ser humano enquanto ser-aí não deve ser interpretado fenomenalmente no que é e como é, passando por cima da situação primordial de ser (ser-no-mundo e experiência fática), razão pela qual também nenhum pensador antes de Heidegger colocou a questão do ser a partir da analítica ontológica do ser-aí. Com efeito, se o ser-aí não é visto e compreendido constitutivamente como sendo temporal, então: 2) o fato de ser sempre já “no tempo” poder ser visto por Heidegger como a base para a tematização do que é histórico, então, deve-se tematizar – fenomenologicamente falando – também a historicidade do ser-aí de um modo todo próprio. É por isso que, ao encaminhar-se para dentro da problemática do tempo, Heidegger confronta-se também e necessariamente com o problema da historicidade.

Para Heidegger, o que fundamenta a temporalidade, enquanto sentido ontológico da cura, não é o tempo “natural”, isto é, o modo pelo

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qual grande parte da tradição metafísica compreendeu e interpretou o tempo. Está em jogo “devolver” o tempo ao próprio ser humano. Já Aristóteles e Santo Agostinho perceberam que é o homem o ente por excelência a fazer a experiência do tempo, nele estando a origem e o destino do próprio tempo. A preocupação de Heidegger, portanto, ao tratar do problema do tempo, é compreender em que sentido o tempo é tempo do ser-aí ou, mais especificamente, em que sentido é ele mesmo quem se temporaliza, já sempre, desse ou daquele modo. Em contrapartida, quanto mais o tempo é o tempo da quantidade e da mera mensurabilidade – Heidegger reconhece isso já na aula de habilitação de 1915 –, menor a possibilidade de se fazer a experiência do tempo enquanto temporalidade do ser-aí. REFERÊNCIAS BOSS, Medard e HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon: protocolos – diálogos – cartas. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2009.

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IV

LA CESTA DE SATURNO: de la ética del tributo a la política del impuesto

Gonzalo Aguirre*

PRESENTACIÓN Buenas noches.

Quisiera compartir con todos Ustedes las hipótesis y los resultados provisorios de un campo de investigación en el que he estado trabajando el último año y medio. Un campo que me ha sorprendido a mí mismo y que tiene todas las características de lo que Foucault y Nietzsche llamaban Entstehung (emergencia). Se trata del campo impositivo, fiscal. En principio se trataba de aportar una mirada filosófica al área de recaudación impositiva, pero lentamente ese aporte comenzó a volver como un boomerang sobre la propia mirada filosófica. Como espero mostrar a lo largo de esta presentación de diversos “papeles de recienvenido” (como diría Macedonio Fernández), finalmente aquella “reforma impositiva” en curso que intentaba comprender filosóficamente, dio lugar a la comprensión del nacimiento de la Filosofía misma como una “reforma tributaria”. Lo mismo habrá de pensarse de plantearse sobre el Cristianismo y, finalmente, sobre el Estado-Nación capitalista. Aunque en este último caso es más habitual atribuir a la Reforma luterana un papel preponderante en tal surgimiento, suele no prestarse la suficiente atención al hecho de que esa reforma (y también su Contrarreforma) es en sustancia una reforma tributaria.

Quede claro que no quisiera que se entienda que lo que aquí diga es así. El método genealógico que sigo sólo intenta generar la pregunta: ¿qué sucedería si esto fuese así? Como diría Gilles Deleuze, se trata de dar a pensar, de llenarlos de inquietudes y de gérmenes de ideas. Si salen de esta palêstra confundidos y mareados, habré cumplido mi objetivo. Nada que se precie se comprende en el momento. Todo lleva su tiempo de preparación. Quizás en un mes o dentro de un año alguno de Ustedes me

* Doutor pela Universitat de Barcelona (2008). Universidad de Buenos Aires (UBA).

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recuerde por una conexión activada entre algo que pude haber dicho hoy y una lectura o evento o cúmulo de lecturas y eventos que de pronto activan esa conexión. En tal caso daré por compensada la confusión que hoy pudiera producirse, cerrando así al menos un ciclo de sacrificio y tributación que aquí abrimos entre nosotros. 4.1 UNA INVESTIGACIÓN EN CURSO

Esta investigación se propone dar cuenta de las actuales reformas tributarias que tienen lugar o se preparan en Argentina y el mundo para enfrentar el desafío del comercio electrónico virtual informacional. Para hacerlo procura re-enfocar las cuestión de los impuestos poniendo en marcha una historia filosófica de la tributación que pueda reconocer la especificidad del fisco de los Estados-Nación de Derecho modernos. A partir de ello, y en conjunción con una comprensión ontológica del fenómeno informacional, podrían precisarse mejor las condiciones en las que se dan los intentos de reforma actuales, calibrando así sus chances de superar el desafío informacional. Entendemos que sin comprender en profundidad el estatuto de la información ni reconsiderar la concepción territorial habitual sobre el fisco y el impuesto modernos, las reformas en curso no podrán trazar con precisión el escenario sobre el cual han de desplegar su estrategia para detener esta “fuga impositiva” que, más que evadir al fisco estatal, resulta elusivo respecto a su lógica, y parece darse fuera del alcance de su condición soberana territorial.

Las actuales reformas tributarias en curso en la Argentina y el mundo se anuncian como intentos por parte de los Estados de enfrentar el desafío que supone la creciente “mudanza” de las prácticas comerciales, económicas y sociales al ámbito de la digitalidad electrónica. Este ámbito resulta especialmente inexpugnable para la lógica estatal por encontrarse más allá del principio de territorialidad con el que los Estados se definen a sí mismos y, por lo tanto, sus prácticas recaudatorias (Marconi: 2017). La gran mayoría de los intentos por superar este obstáculo parecen más bien asumirlo como inexpugnable en la medida en que implican modificaciones o “parches territoriales” que, sin embargo, siguen estando dentro de la lógica de la extensión, esto es del espacio como categoría cartesiana. Entendemos que en tanto no se encare un nuevo fundamento para la recaudación estatal que ya no dependa de la territorialidad concebida como extensión, el desafío del comercio electrónico continuará sin ser cabalmente comprendido por las reformas que pretenden abordarlo. En

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ese sentido, se precisa también dar cuenta de un modo no extensivo de aquello que llamamos información, en tanto se trataría de un modo de ser tampoco reductible a la lógica extensiva y temporal con la que la teoría el Estado y del Derecho ha venido fundamentando hasta ahora al Estado-Nación de Derecho. El comercio electrónico resulta ir siempre mucho más rápido que las reformas estatales que procuran alcanzarlo. Y eso no sólo por las comprensibles demoras y complicaciones para su puesta en vigor (que ha de ser concebida a nivel inter y hasta trans-estatal), si no básicamente porque se trata de reformas que estarían pensadas para un problema concebido en los términos de una lógica que no es la misma que la de aquello que plantea el problema. El comercio electrónico no es estatal ni nacional ni territorial y las reformas estatales insisten en pensarlo dentro de su lógica. Creemos que, como mínima postura de arranque, se requeriría un nuevo enfoque histórico-filosófico de la teoría del Estado y del Derecho, que permita concebir la posiblidad de dar cuenta del poder de los Estados de Derecho según una lógica que ya no sea, al menos exclusivamente, la de la territorialidad extensiva. 4.1.1 CORPUS TEÓRICO

Se trata de un campo de conocimiento poco explorado de modo directo, aunque aunando distintos textos de distintas disciplinas logra conformarse un corpus de arranque teórico. En efecto, autores como Le Goff, Foucault, Agamben, Klossowski, Bataille apuntalan un abordaje que puede volver sobre textos clásicos como República de Platón, para iniciar desde allí un diagnóstico histórico-filosófico que pueda rastrear, desde la Reforma luterana pensada en clave tributaria, hasta el Cristianismo y el nacimiento de la Filosofía pensadas en esa misma clave. Para el primer caso existe el ya clásico libro de Max Weber La ética protestante y los orígenes del Capitalismo, en tanto que para el segundo pueden encontrarse apuntes en ese sentido en algunos textos de Pascal Quignard y en el libro de José Luis Villacañas Teología imperial y comunidad de salvación cristiana. En tanto que la concepción del nacimiento de la Filosofía en Platón como parte de una reforma en la prestación de tributos en la polis griega, queda apuntada en algunos pasajes de diversos textos de Roberto Calasso, y en especial República de Platón. En este marco, proponemos relecturas de varios pasajes bíblicos en especial del evangelio de Mateo quien, él mismo recaudador de impuestos, diera cuenta de la famosa frase de Jesús “al César lo que es del César; y, a su vez, recabar bibliografía existente sobre

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el papel del dinero y la usura en el Cristianismo hasta la Reforma luterana. A partir de aquí las elaboraciones son mayores e incluso clásicas. Autores como Hobbes, Rousseau, Locke y tantos más reflexionan sobre las nuevas condiciones de gobierno estatal en el marco del nuevo mapa político-social desencadenado por la Reforma luterana. Se trata de releer ese material clásico de la teoría política en clave impositiva, procurando desentrañar el papel que juega el impuesto en la conformación definitiva del Estado-Nación. Para ello puede apelarse a los primeros cursos dictados por Michel Foucault en el Collège de France en 1971 (Lecciones sobre la voluntad de saber) o algunas de las clases de Gilles Deleuze sobre Aparato de Estado y Axiomática capitalista publicadas en Derrames II. Finalmente, resulta clave la lectura del libro de Gilbert Simondon La indiviudación a la luz de la nociones de forma e información. Allí queda planteada una noción de información como proceso y no como término-individual u objeto determinado. En torno a esa noción aparecen otros concpetos como transducción, analogía real, transinidiviualidad, etc, cuyo desarrollo no resulta pertinente en esta presentación, pero que resultan objeto de creciente interés en las más diversas áreas del conocimiento, como ha quedado claro en el III Colóquio Internacional Gilbert Simondon - Individuação e Inovação, del que he participado la semana pasada en el Museu do Amanhã en Rio de Janeiro. 4.1.2 HIPÓTESIS

- El impuesto es un modo del tributo que surge en la Edad Media y se afianza con los Estados-Nación modernos. Con anterioridad a la Edad Media cabe rastrear en Roma y Grecia antiguas el camino que lleva del tributo sacrificial al tributo impositivo.

- Los Estados-Nación son agentes de la obligación necesaria que implica la subsunción de todo tributo en impuesto. La obligatoriedad de los impuestos vendría dada necesariamente por la pérdida de necesidad que caracterizaba al tributo.

- El impuesto es el modo del tributo propio de la formación Kapital del dinero en su fase nacional. Esta formación implica una retorización nacional de las prácticas sociales y de gobierno que precisan del impuesto para sostenerse en términos económicos, esto es en términos de reglas/nomos del hogar/oikos, o leyes de la hospitalidad.

- Las actuales reformas impositivas en curso en Argentina y el mundo que procuran responder a la digitalización creciente de las operaciones económicas, sociales y políticas, pueden explicarse siguiendo

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el hilo del diagnóstico histórico-filosófico que aquí procuramos llevar adelante.

- La block-chain (cadena de bloques) implica un movimiento tecno-informático cuya expresión en bitcoins no agota sus implicancias en términos de gestión de la desconfianza, la esperanza y el miedo sobre los que se asienta el moderno contrato político y económico.

- Quizás haya que empezar a plantear un Post-capitalismo o Ultracapitalismo, una suerte de Segunda venida, de segunda exteriorización del Resentimiento, luego de la interiorización de Cristo en el Dinero/Kapital.

- Un nuevo modo del Juicio se anuncia y, por lo tanto, un nuevo modo del excedente y de su recaudación. La lógica estatal territorial y su dispositivo jurídico y fiscal quedan crecientemente obsoletos ante el avance de los flujos performativos cuya Axiomática ya no reconoce los modos estatales de dar curso al poder y al Kapital. 4.2 FISCUS: SACRIFICIO Y TRIBUTO

El gesto de detenerse, moroso, extra-ordinario, a contemplar la propia faena, sea cual fuera. Ese gesto por el que nos desacomodamos del trajín rutinario del día a día y nos entregamos a la contemplación de Lo Cotidiano, a la contemplación del discurrir de ese trajín. Basta con retirarse una hora del juego, en el bar de una estación de tren o ingresando a un museo. Y con ese gesto reconocer que no sabemos lo que es tributar, ni recaudar; que ni siquiera estaríamos seguros de lo que un impuesto pudiera ser. Aunque, por cierto, las definiciones están a mano, y las historias que nos cuentan quiénes somos y lo que hacemos también. Pero sabemos bien que esas definiciones y esas historias dependen, para sostenerse como tales, de nuestra desatención, de su repetición como estribillo o muletilla, como estribo o muleta, en los que apoyarse para seguir.

Una historia filosófica es otro tipo de historia, en la medida en que no sabe lo que cuenta. Más bien es la historia de quien pretende averiguar la procedencia de aquello cuya historia está contando. La historia filosófica es la historia del “había una vez…”, es la historia de esa “vez” y de su “había”. Así, en este caso, la historia de lo que hemos asumido sean los impuestos y la tributación y la recaudación.

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Podría decirse que hacia el siglo XIII se operó en Europa un pasaje del tributo al impuesto (impôt)1 regular, y sabemos que el modo (forzoso)2 de recaudar ese impuesto era síntoma de la pérdida de fuerza tributaria. El tributo había sido siempre notoriamente necesario. No se tributaba más que por necesidad, por correspondencia. Todo tributo constituía un regreso a su fuente, resultaba un retorno, una devolución necesaria. Pareciera ser que en cierto momento de lo que llamamos Historia esa fuente se perdió de vista y los hombres dejaron de saber hacia donde debían dirigir su tributo. Sustitutos no faltaron pero la fuerza de tributación siguió disminuyendo hasta que la “devolución” o el retorno terminó resultando obligatoria, sostenida solamente por la fuerza recaudadora de la “fuente sustituta”. Diríase que el tributo transformado en impuesto concluye el lento proceso de internalización de la culpa cristiana. Esta podrá ser devuelta (confesada) a partir de entonces sólo como impuesto secular. La formación de gobierno que conocemos como “Estado” habrá de ser esa nueva “fuente sustituta” secular. En tanto tal procurará paliar la violencia retributiva del impuesto a través de prestaciones (políticas públicas) que, a la vez de constituir instrumentos de gobierno, hacen las veces de sobre-devoluciones a la devolución forzosa del impuesto. De allí en más, entonces, la fuente sustituta no será ya concebida como punto al que hay que devolver o retornar o tributar algo. Más bien, inversamente, será esa fuente sustituta la que debe devolver a sus “tributadores” el impuesto al que ya no encuentran sentido tributario más que a condición de una suerte de contrapartida o devolución de parte de la “fuente” estatal. Esta inversión del sentido de la tributación quedará coronada por teorías de carácter contractual que asumirán, incluso, que la “fuente” es del mismo calibre óntico que sus “tributarios”.

Si el Estado y sus integrantes son individuos o personas jurídicas que ostentan el mismo rango de ser, entonces no puede sostenerse que los integrantes tengan obligación alguna para con el Estado, en la medida en que no podrían tener obligación alguna consigo mismos. Perdida la fuente y al fuerza tributativa, todo impuesto no puede ser más que una fuente de contraprestaciones entre iguales. El Estado, así, sería aquel individuo que garantiza las condiciones para no tener que tributar. Ahora bien, estas

1 Consúltese “Cambios, dinero y moneda en la revolución comercial del siglo XIII”, en Le Goff, Jacques, La Edad Media y el dinero. Ensayo de antropología histórica, Akal, Madrid, 2012. 2 “… la resistencia de las poblaciones no les permitió establecer [a los Estados nacientes] una fiscalidad estable antes del siglo XVI.” (Le Goff, idem, p. 129)

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condiciones cuestan. Y mucho. Por lo que es preciso recaudar entre los individuos integrantes un “tributo” para mantener esas condiciones. Esta suerte de meta-tributo o falso-tributo es el que recibe el nombre de impuesto (moderno). Y es en la medida en que no puede reconocerse más que como no-voluntario es que resulta obligatorio. En el corazón de esta aporía que constituye la clave de bóveda de la legitimidad de la forma de gobierno conocida como “Estado”, es que se desarrolla la labor recaudadora estatal: todo impuesto resulta antes que nada no-voluntario y, casi simultáneamente, obligatorio. En ese lapso entre la no-voluntariedad y la obligación se desarrolla el drama de la recaudación cuyo agente dramático es el funcionario impositivo. El pago de un impuesto es ineluctablemente no-voluntario y, sólo en tanto tal, puede constituirse en el tributo que corresponde a la pérdida de toda fuente tributaria. Ahora bien, esa no-voluntariedad resulta intolerable como “fuente” y, por tanto, se traslada a la fuente estatal para que obligue al pago de esos impuestos de por sí no-voluntarios; de manera tal que esa obligación resulte la fuente o causa de esa no-voluntariedad. De esta manera el agente de esa no-voluntariedad (el “contribuyente”) podrá, además, presentar todo su resentimiento o mala conciencia de base3 bajo el paraguas psicológico del “egoísmo” o de la “maximización de beneficios”.

Así las cosas, la tarea del agente tributario se concentra en obligar a algo que es, desde el vamos, no-voluntario, asumiendo así una suerte de culpa inexistente por obligar a los contribuyentes a una contribución impositiva que, de todo modos, es necesariamente no-voluntaria. Diríase que el agente impositivo se ofrece como excusa para la ausencia de toda agencia u orientación tributaria. Su tarea específica es la de hacer de cuenta que impone racionalmente una obligación de contribuir que, de todos modos, sigue siendo necesaria (como todo tributo) y, por procedencia, originariamente no-voluntaria. Así, todo impuesto resulta no-voluntario y necesario, mientras que el agente impositivo puede llegar a creer que obliga a pagar impuestos contingentes. Su tarea, en realidad, se limita a racionalizar esas imposiciones presentándolas como contraprestaciones. Más allá de eso, no hay culpa ni engaño posibles. Todos participamos del juego estatal que compensa nuestra absoluta desorientación tributaria. Y esa compensación, cabe decirlo, no tiene precio.

3 Consúltese “Culpa, mala conciencia y similares” en Nietzsche, Friedrich, Genealogía de la moral, Alianza, Madrid, traducción de Sánchez Pascual.

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4.3 LA MONEDA DE DIOS Y LA LITURGIA DE LOS POBRES

“Aquí, los gemidos de la agonía, allí, el llanto de un recién nacido que acaba de llegar a la existencia. La suma del conjunto, en la que parpadean al azar la naturaleza naciente y la muerte degradada, permanece constante.” (Serres, El nacimiento de la Física en el texto de Lucrecio)

La palestra impositiva trae, al día de hoy, las expresiones

superficiales de profundas capas geológicas de toda la experiencia humana de subsistencia en el mundo a través de los intercambios, las delegaciones y las retribuciones. Esa subsistencia en el mundo se consideró, durante un tiempo casi inmemorial que llega hasta las orillas de nuestra Modernidad, como algo que dependía también de un intercambio con un plano extramundano, plano divino.

Con ese plano tenían lugar las principales relaciones de tributación e intercambio mediadas por una institución de una importancia apenas comparable con alguna institución actual: el sacrificio. Necesario, jamás obligatorio, el sacrificio era un tributo mortal a los inmortales. A cambio, los mortales recibían alguna señal extramundana con incidencia física y anímica en lo abierto del mundo.

Con el tiempo, las mutaciones técnicas dieron lugar a una capacidad desconocida por los hombres hasta entonces: la capacidad de auto-confortación. Ya no hacía falta más subsistir en lo abierto del mundo. Se existía al amparo de la nueva fuerza técnica de auto-confortación tanto física como anímica. Dejamos de depender exclusivamente de figuras extramundanas de confortación y, así, dejamos de deberle a los dioses nuestra subsistencia. ¿Por qué razón seguir sacrificando?

El sacrificio resultó internalizado, mundanizado, mundializado. La principal resultante de esa mutación es una nueva forma de gobierno basada en lo que se conoce como "políticas públicas" y encarnada en el Estado. Esta nueva figura mundana, como ya hicieran notar desde un comienzo autores como Thomas Hobbes, es una suerte de dios terrenal, re-composición del excedente resultante de la suspensión de todo sacrificio. Así, el Estado habrá de recibir toda la fuerza de confortación que antes quedaba atribuida al mundo divino, y habrá de desplegarla como “servicio” o política pública auto-confortativa. La distribución de esta fuerza no es, sin embargo, gratuita. No puede serlo porque debe aún, geológicamente u ontológicamente hablando, toda esa fuerza confortante recibida de todos los sacrificios ya no realizados. Así, lo que los hombres debían a los dioses, ahora lo debe el Estado (dios terrenal) a los hombres.

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Es el Estado el que debe sacrificar su fuerza auto-confortante a los hombres. A su vez, estos pagan ese sacrificio con la sensación de estar siendo estafados. En efecto, el Estado no puede realizar sus sacrificios (u obras públicas) sin los rituales correspondientes. Estos también conllevan un costo que los hombres (ya no más mortales, si no hombres, humanos) no están dispuestos a pagar, pues consideran (dada la donación primigenia o acumulación originaria) su derecho toda auto-confortación y, simultáneamente, consideran que no deben pagar ninguna auto-confortación que cada uno de los demás hombres no haya pagado por sí mismo. Hete aquí el dilema del impuesto. Siempre resulta injusto por ser absolutamente justo; siendo a su vez necesariamente obligatorio, justamente por no ser ya más necesario (el sacrificio al que sustituye). El Estado tiene que financiar la devolución de la fuerza (auto)confortativa a los hombres que, ya sin dioses, se consideran individuos aislados que contratan entre sí. Ninguno de ellos cree que deba financiar el proceso ritual de esa devolución y, a la vez, siente que nunca se le está devolviendo lo suficiente a él, que siempre se le devuelve más a los otros.

En la medida en que ya no se recauda necesariamente para un sacrificio extramundano; en la medida en que una suerte de Recaudación originaria exime terrenalmente de aquella necesidad, quedamos condenados al impuesto: malestar constante con el que pagamos el precio de no deberle nada a los dioses; obligación inconcebible, justamente por no necesaria, a la que el Estado está obligado, también inconcebiblemente, a obligarnos.

El pasaje del régimen sacrificial confortativo al régimen fiscal de la auto-confortación, del sacrificio al impuesto, encuentra su primera formulación en boca de Jesús y constituye en sí un enigma. Según el evangelista Mateo, a la sazón, recaudador de impuestos, los fariseos, tratando de engañarle, preguntaron a Jesús si era lícito tributar al César (el término griego es kensus y refiere a un tributo a título personal). La trampa, bajo el régimen arcaico de tributación (sacrificial), consistía en que de negarse la legitimidad del tributo debido al César -por no ser necesario- se estaría socavando el poder de recaudación del imperio; pero de afirmarse su legitimidad se estaría cometiendo un acto de hybris contra la divinidad, por ser ésta el necesario destinatario de todo tributo. Jesús respondió entonces: “Den al César lo que es del César y a Dios lo que es de Dios”.

Se abre aquí una profunda reforma tributaria. La liturgia (liturgía) era un tributo de las polis griega destinado al ciudadano más rico que, cuando las circunstancias lo requerían, era encargado de dirigir y financiar

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un cargo público (por ejemplo la construcción de un barco de guerra). En principio, como todo tributo, se trataba de un honor, pero lentamente ese tributo fue transformándose en una carga que resultaba impuesta. De allí que surgiera la figura jurídica del “intercambio de fortunas” o antídosis para que el ciudadano designado para hacerse cargo de una liturgia tuviera la chance de descargarla en otro ciudadano al que consideraba más rico. Al finalizar el proceso, el ciudadano que finalmente era designado tenía la opción de aceptar la liturgia o bien de realizar un intercambio de fortunas con su oponente. Como puede apreciarse, el Cristianismo opera una profunda reforma tributaria a partir de la cual, por ejemplo, la liturgia alcanzará también y fundamentalmente a los pobres: los que no tienen nada para dar son los únicos que tienen algo para dar. El Cristianismo democratiza la liturgia, vuelve dignos de ella a todos los hombres. Aquellos pobres en la moneda del César, serán ricos en la moneda de un Dios que, a su vez, habrá monopolizado las fuerza ultraterrenas en una suerte de sistema rudimentario de cadena de bloques (blockchains) Dios-Hijo-Espíritu Santo capaz de generar un sistema de confianza y confortación en torno al Enviado, en torno a su Moneda de cambio, imposible de registrar o recaudar por el dispositivo fiscal romano, aún de carácter pagano-aristocrático. De allí que pueda pensarse que la conversión del Imperio Romano al Cristianismo es análoga a la lenta conversión del sistema bancario a la lógica de la blockchain. 4.4 EL SACRIFICIO DEL REY PÁLIDO

"... toda vida en su estado bruto es una amalgama de no ser, tinieblas y muerte. Para salir de ella es necesario contar con una ayuda; para contar con una ayuda hace falta un rito." (Calasso, El ardor, p. 293) "... había dos clases de personas en el mundo: la gente que entendía las realidades técnicas de cómo funcionaba el mundo real, y la gente que no las entendía." (F. W., El rey pálido, p. 245)

La lectura de la inacabada novela de David Foster Wallace, El rey pálido (Mondadori, Buenos Aires, 2012) debiera ser obligatoria. Se trata de aprender a prestar atención, a sumergirse en el aburrimiento. Sin distracciones. Para un adulto actual su lectura ha de resultar ardua, plomiza, incapaces como estamos para atender a nuestra propia capacidad de atención, de lectura. La novela de Foster Wallace está hecha de escritura. Y nada más. No hay otra acción que la de las palabras.

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Ascendiendo y descendiendo por los entresijos lógico-conductuales de una Agencia Tributaria, Foster Wallace va desplegando una escritura cuyo ánimo, cuyo humor recuerda infinitamente al de Franz Kafka pero sin las estratagemas de este. No falta aquí crimen, ni sobra castigo. No falta ni sobra nada. No pasa nada más que lo que se lee. No ocurre otra cosa más que la lectura. Si alguien preguntara de qué trata esta novela de Foster Wallace podría uno responder tranquilamente: trata de leer. Ciertamente, se dirá que toda literatura que se precie de tal ha de poder definirse por su tratamiento del propio material de lectura: la escritura. Y se estará en lo correcto. Ocurre que en la escritura de Foster Wallace se desliza un afecto reflexivo peculiar. No crea un nuevo afecto vivificante, algún atisbo de salud. Más bien machaca sobre nuestras afecciones, sobre nuestra incapacidad afectiva de atender a lo que nos pasa.

La trama impositiva sobre la que tracciona la escritura de F.W. resulta alucinante y alcanza altas cotas metafísicas que, a su vez, brindan una clave interpretativa de la vida moderna en el mundo del Capitalismo Mundial Integrado montado sobre la forma de gobierno Estado Nación de Derecho. Ambientada en los años '80 calibra un diagnóstico de las mutaciones del Capitalismo contemporáneo haciendo palanca en pequeños deslizamientos geológicos de las políticas fiscales. Estos deslizamientos se formulan en términos de "tipos ideales" weberianos invertidos: no se trata de grandes rasgos contemplados desde el aire, si no de micro-movimientos nerviosos o musculares teniendo lugar al interior mismo del corazón recaudador del Estado de Derecho capitalista.

Inacabada, no resulta caótica. Acabada, quizás lo hubiera resultado. La tarea emprendida por Foster Wallace implicaba una experiencia atlético-metafísica para la que resulta difícil concebir una fuerza existenciaria capaz de soportarla. Una novela policial cuyo crimen es la novela misma y cuyo castigo es escribirla. Los agentes impositivos, lindando a veces con agentes del FBI, resultan ser agentes secretos pero entendidos al modo védico: “El secreto no es una actitud para esconder algo que de otro modo sería evidente. El secreto señala que se ha entrado en una zona en la que todo, comenzando por el significado, es interior a un recinto. El secreto es el lugar aislado por el cercado, como el cuadro por el marco.” (Calasso, idem, pp. 294-5)

Los agentes de la Agencia no esconden nada. Se encuentran inmersos en distintos niveles del secreto, dentro de un ámbito sagrado cuya pretensión de transparencia resulta demencial, generando que casi todos los agentes sufran y sintomaticen la presión de no saber que

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participan de un rito cuya propia naturaleza impide cualquier tipo de exteriorización. Los pocos que lo saben resultan casi místicos, sacerdotes o chamanes del flujo energético del mundo. Del mismo modo, la escritura de Foster Wallace, montada sobre cierta jerga impositiva, tampoco oculta nada, ni siquiera a sí misma, ni siquiera al autor. Inmerso en el secreto de la escritura, al borde del precipicio del aburrimiento, de la contemporánea ausencia de conciencia sobre los ritos y los gestos sagrados sobre los que toma forma el mundo que habitamos, Foster Wallace parece haber sucumbido en pos de la gran salud que suele aguardar al otro lado de la enfermedad literaria. En una de sus notas al margen de la novela puede leerse: “Resulta que el éxtasis –un placer sentido segundo a segundo y acompañado de gratitud por el don de estar vivo y de ser consciente- se encuentra al otro lado del aburrimiento absolutamente letal.” 4.5 LA FILOSOFÍA COMO REFORMA TRIBUTARIA Y LA TRIBUTACIÓN COMO REFORMA LITERARIA

A la hora de encarar un estudio histórico-filosófico de las prácticas impositivas actuales, lo primero que hemos asumido es que un enfoque filosófico de los impuestos se diferenciaba de un enfoque económico o administrativo. No nos interesaba la práctica diaria concreta, sino más bien alcanzar un diagnóstico de las condiciones generales de esa práctica, cualesquiera esta fuera. Objetivo ambicioso, se trataba de ampliar el campo de batalla impositivo, de detectar el campo de fuerzas del que pudiera haber surgido eso que llamamos "impuestos". Como hemos ido planteando en diversos artículos aparecidos en números anteriores de esta Revista, pudimos ir detectando como hasta el siglo XII no había impuestos, que recién entonces aparece en territorio francés la palabra "impôt". También pudimos concebir al Cristianismo como la resultante de una gran transformación impositiva, de la cual la Reforma luterana sería un ulterior coletazo que habrá dado origen del espíritu al Capitalismo (al decir de Max Weber).

Ahora bien, todo lo que podíamos ir aprendiendo sobre el nacimiento de los impuestos o, más precisamente, sobre los aspectos histórico-filosóficos de la tributación, dejaba siempre a la filosofía como por fuera del ámbito impositivo, como si la filosofía estuviera por definición exenta de todo tributo o imposición. Hasta que finalmente la investigación comenzó a gestionar su propio retorno e implicó tributariamente también al nacimiento de la filosofía.

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En República de Platón, Sócrates propone el plan para una nueva polis basado en tres estamentos (guardianes-filósofos, guardianes-guerreros y artesanos), entre los cuales serían distribuidos todos los ciudadanos a partir del método llamado padeia (educación). Este método, basado en el control del Logos, esto es, de las historias que se cuentan a los ciudadanos desde niños, veía como competidores peligrosos a los sofistas y los poetas, también especialistas o expertos en Logos. En especial a poetas consagrados como Homero, cuya multiplicidad de historias y fuerza poética podía dar por tierras con el Logos educativo que postulaba Sócrates, más simple y moderado. En este marco, el principal factor de perturbación que Sócrates veía en la poesía de Homero, además de su multipliciad y su fuerza poética, era la persistente ausencia en sus historias de cualquier tipo de intermediario a la hora de realizar sacrificios, esto es, tributos. Cada quien parecía saber y poder realizar los tributos en cualquier momento, en todo momento. Como si todo fuera una fecha sagrada. Mientras que en República, Platón escribe con el espíritu desengañado respecto a la posibilidad de que los ciudadanos supieran y pudieran presentar tributos por su cuenta. Esta capacidad ya había sido delegada o más bien abandonada o más bien olvidada, y quedaba en manos de múltiples gestores de los tributos ya por entonces crecientemente concebidos como cargas tributarias (aunque no tan pesadas como para llegar a hablar de impuestos). Platón procura en República reorganizar esa delegación, ese olvido, procurando monopolizar la distribución de las cargas de modo tal de dejar tendencialmente conformes a los ciudadanos con aquello que les corresponde (justamente porque, por diagnóstico, ya no lo saben), esto es, su estamento asignado vía educación. Así, este plan de polis justa implica una reforma educativa que, a su vez, implica una reforma tributaria cuyo fin es monopolizar la intermediación sacrificial que en un poeta tan famoso como Homero no existía. Esta reforma tributaria es filosófica en la medida en que habrá de ser el guardián-filósofo el encargado de distribuir las cargas estamentales; pero es también directamente Filosofía, en la medida en que según Giorgio Colli esta implica una reforma "literaria" del Logos. Diríase que la Filosofía es el primer género literario cuyo control del Logos mediante la escritura (de diá-logos) genera un intermediario neutro capaz de gobernar la relación del ciudadano-lector consigo mismo (diálogo interior) y, por lo tanto, con los tributos debidos a la Nueva Polis hecha a su imagen y semejanza.

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V

A CESTA DE SATURNO: da ética do tributo à política do imposto

Gonzalo Aguirre*

Tradução: Ester Maria Dreher Heuser** APRESENTAÇÃO Boa noite.

Quero compartilhar com todos vocês as hipóteses e os resultados provisórios de um campo de investigação em que estou trabalhando no último ano e meio. Um campo que tem surpreendido a mim mesmo e que tem todas as características do que Foucault e Nietzsche chamaram Entstehung (emergência). Se trata do campo impositivo, fiscal. Em princípio, se tratava de pôr [aportar] um olhar filosófico à área de cobrança de impostos, porém, lentamente, esse aporte começou a voltar como um boomerang sobre o próprio olhar filosófico. Como espero mostrar ao longo dessa apresentação de diversos “papeis recentes” (como diria Macedonio Fernández), finalmente aquela “reforma impositiva” em curso que tentava compreender filosoficamente, deu lugar à compreensão do nascimento da Filosofia mesma como uma “reforma tributária”. O mesmo haverá de ser pensado sobre o Cristianismo e, finalmente, sobre o Estado-Nação capitalista. Ainda que neste último caso é mais habitual atribuir à Reforma luterana um papel preponderante em tal surgimento, só não prestar suficiente atenção ao fato de que essa reforma (e também sua Contrareforma) é, em substância, uma reforma tributária.

Fique claro que não quero que se entenda que o que aqui digo é assim. O método genealógico que sigo só tenta gerar a pergunta: o que aconteceria se isso fosse assim? Como diria Gilles Deleuze, se trata de dar a pensar, de enchê-los de inquietações e de germes de ideias. Se saírem dessa palestra confusos e mareados, terei cumprido meu objetivo. Nada que se

* Doutor pela Universitat de Barcelona (2008). Universidad de Buenos Aires (UBA). ** Professora-pesquisadora adjunta da UNIOESTE, Campus Toledo (PR), no curso de Filosofia - Licenciatura, Mestrado e Doutorado (Linha: Ética e Filosofia Política).

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aprecie se compreende no momento, tudo leva seu tempo de preparação. Quem sabe, dentro de um mês ou em um ano, alguém de vocês lembre de mim por uma conexão ativada entre algo que eu possa ter dito hoje e uma leitura, ou evento, ou acúmulo de leituras e eventos que, de repente, ativem essa conexão. Neste caso, darei por compensada a confusão que hoje possa ser produzida, encerrando, assim, ao menos um ciclo de sacrifício e tributação que aqui iniciamos entre nós 5.1 UMA INVESTIGAÇÃO EM CURSO

Esta investigação se propõe a dar conta das atuais reformas tributárias que tem lugar ou se preparam na Argentina e no mundo, para enfrentar o desafio do comércio eletrônico virtual informacional. Para fazê-lo, procura reenfocar as questões dos impostos, pondo em marcha uma história-filosófica da tributação que possa reconhecer a especificidade do fisco dos Estados-Nação de Direito modernos. A partir disso, e em conjunção com uma compreensão ontológica do fenômeno informacional, poderiam precisar-se melhor as condições em que se dão as tentativas atuais de reforma, calibrando, assim, suas chances de superar o desafio informacional. Entendemos que sem compreender em profundidade o estatuto da informação, nem reconsiderar a concepção territorial habitual sobre o fisco e o imposto modernos, as reformas em curso não poderão traçar com precisão o cenário sobre o qual tem de implantar sua estratégia para deter essa “fuga impositiva” que, mais do que evadir o fisco estatal, resulta ilusório relativamente à sua lógica e parece ocorrer fora do alcance de sua condição de soberania territorial.

As atuais reformas tributárias em curso na Argentina e no mundo se anunciam como tentativas, por parte dos Estados, de enfrentar o desafio que supõe a crescente “mudança” das práticas comerciais, econômicas e sociais no âmbito da “digitalidade” eletrônica. Este âmbito resulta especialmente impenetrável para a lógica estatal por encontrar-se além do princípio de territorialidade com o qual os Estados se definem a si mesmos e, portanto, suas práticas arrecadatórias (MARCONI, 2017). A grande maioria das tentativas para superar este obstáculo parecem mais assumi-lo como impenetrável, na medida em que implicam modificações ou “emendas territoriais” que, no entanto, seguem a lógica da extensão, isto é, do espaço como categoria cartesiana. Entendemos que enquanto não se encarar um novo fundamento para a arrecadação estatal que já não dependa da territorialidade concebida como extensão, o desafio do

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comércio eletrônico continuará sem ser cabalmente compreendido pelas reformas que pretendem abordá-lo. Nesse sentido, será preciso também dar conta de um modo não extensivo daquilo que chamamos informação, enquanto se trataria de um modo de ser tampouco redutível à lógica extensiva e temporal com a qual a teoria do Estado e do Direito tem fundamentado até agora o Estado-Nação de Direito. O comércio eletrônico avança sempre muito mais rápido que as reformas estatais que procuram alcança-lo. E isso não só pelas compreensíveis demoras e complicações para sua entrada em vigor (que devem ser concebidas em nível inter e até trans-estatal), mas basicamente porque se trata de reformas que foram pensadas para um problema concebido nos termos de uma lógica que não é a mesma daquela que propôs o problema. O comércio eletrônico não é estatal, nem nacional, nem territorial e as reformas estatais insistem em pensa-lo dentro de sua lógica. Cremos que, como mínima postura de partida, se requereria um novo enfoque histórico-filosófico da teoria do Estado e do Direito, que permita conceber a possibilidade de dar conta do poder dos estados de Direito segundo uma lógica que já não seja, ao menos exclusivamente, a da territorialidade extensiva. 5.1.1 CORPUS TEÓRICO

Se trata de um campo de conhecimento pouco explorado de modo direto, ainda que unindo distintos textos de distintas disciplinas se consiga constituir um corpus teórico inicial. Com efeito, autores como Le Goff, Foucault, Agamben, Klossowski, Bataille sustentam uma abordagem que retorna aos textos clássicos, como a República de Platão, para iniciar, desde ali, um diagnóstico histórico-filosófico que possa rastrear, desde a Reforma luterana pensada enquanto chave tributária, até o Cristianismo e o nascimento da Filosofia pensados nessa mesma chave. Para o primeiro caso existe o já clássico livro de Max Weber A ética protestante e as origens do Capitalismo, enquanto que para o segundo podem encontrar-se apontamentos nesse sentido em alguns textos de Pascal Quignard e no livro de José Luis Villacañas Teologia imperial e comunidade de salvação cristã. Enquanto que a concepção de nascimento da Filosofia em Platão, como parte de uma reforma na prestação de tributos na polis grega, está apontada em algumas passagens de diversos textos de Roberto Calasso, e em especial República de Platão. Neste marco, propomos releituras de várias passagens bíblicas, em especial de Mateus quem, ele mesmo cobrador de impostos, dera conta da famosa frase de Jesus “a César o que é de César”;

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e, por sua vez, recolher bibliografia existente sobre o papel do dinheiro e a usura no Cristianismo até a Reforma luterana. A partir daqui as elaborações são maiores e inclusive clássicas. Autores como Hobbes, Rousseau, Locke e tantos mais refletiram sobre as novas condições de governo estatal no marco do novo mapa político-social desencadeado pela Reforma luterana. Se trata de reler esse material clássico da teoria política em termos impositivos, procurando desvendar o papel que desempenha o imposto na conformação definitiva do Estado-Nação. Para isso, pode se apelar aos primeiros cursos ministrados por Michel Foucault no Collège de France, em 1971, (Lições sobre a vontade de saber) ou algumas das aulas de Gilles Deleuze sobre Aparelho de Estado e Axiomática capitalista publicadas em Derrames II. Finalmente, resulta central a leitura do livro de Gilbert Simondon A individuação à luz das lições das noções de forma e informação. Nele está proposta uma noção de informação como processo e não como termo-individual ou objeto determinado. Em torno dessa noção aparecem outros conceitos como transdução, analogia real, transindividualidade, etc., cujo desenvolvimento não é pertinente nessa apresentação, porém resultam objeto de crescente interesse nas mais diversas áreas do conhecimento, como ficou claro no III Colóquio Internacional Gilbert Simondon – Individuação e Inovação, do qual participei a semana passada no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. 5.1.2 HIPÓTESES

- O imposto é um modo de tributo que surge na Idade Média e se consolida com os Estados-Nação modernos. Anteriormente à Idade Média, cabe rastrear em Roma e na Grécia antigas o caminho que leva do tributo sacrificial ao tributo impositivo.

- Os Estados-Nação são agentes da obrigação necessária que implica a subsunção de todo tributo em imposto. A obrigatoriedade dos impostos seria dada, necessariamente, pela perda da necessidade que caracterizava o tributo.

- O imposto é o modo do tributo próprio da formação Kapital do dinheiro em sua fase nacional. Essa formação implica uma nova retórica nacional das práticas sociais e de governo que precisam do imposto para sustentar-se em termos econômicos, isto é, em termos de regras/nomos, em termos da casa/oikos, ou leis da hospitalidade.

- As atuais reformas impositivas em curso na Argentina e no mundo que procuram responder a digitalização crescente das operações

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econômicas, sociais e políticas podem explicar-se seguindo o fio do diagnóstico histórico-filosófico que aqui procuramos levar adiante.

- A block-chain (cadeia de blocos) implica um movimento tecno-informático cuja expressão em bitcoins não esgota suas implicações em termos de gestão da desconfiança, a esperança e o medo sobre os quais se assenta o moderno contrato político e econômico.

- Talvez tenha que começar a propor um Pós-capitalismo ou Ultracapitalismo, uma espécie de Segundo advento, de segunda exteriorização do Ressentimento, logo, da interiorização de Cristo no Dinheiro/Kapital.

- Um novo modo do Juízo se anuncia e, portanto, um novo modo do excedente e de sua arrecadação. A lógica estatal territorial e seu dispositivo jurídico e fiscal ficam crescentemente obsoletos frente ao avanço dos fluxos performativos, cuja Axiomática já não reconhece os modos estatais de dar curso ao poder e ao Kapital. 5.2 FISCUS: SACRIFÍCIO E TRIBUTO

O gesto de deter-se, moroso, extraordinário, a contemplar o próprio trabalho, seja qual for. Esse gesto pelo qual nos desacomodamos da lida rotineira do dia-a-dia e nos entregamos à contemplação do Cotidiano, à contemplação do transcorrer dessa lida. Basta retirar-se por uma hora do jogo, no bar de uma estação de trem ou ingressar em um museu. E com esse gesto, reconhecer que não sabemos o que é tributar, nem arrecadar; que nem sequer estaríamos seguros do que um imposto possa ser. Ainda que, por certo, as definições estão à mão, e as histórias que nos contam quem somos e o que fazemos também. Porém, sabemos bem que essas definições e essas histórias dependem, para sustentarem-se como tais, de nossa desatenção, de sua repetição como um estribilho ou um chavão, como estribo ou muleta, nos quais [é preciso] apoiar-se para seguir. Uma história filosófica é outro tipo de história, na medida em que não se sabe o que se conta. Melhor, é a história de quem pretende averiguar a procedência daquilo que cuja história está sendo contado. A história filosófica é a história do “havia uma vez...”, é a história dessa “vez” e de seu “havia”. Assim, neste caso, a história do que assumimos sejam os impostos e a tributação e a arrecadação.

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Poderia se dizer que por volta do século XIII se operou na Europa uma passagem do tributo ao imposto (impôt)1 regular, e sabemos que o modo (forçado)2 de arrecadar esse imposto era sintoma da perda de força tributária. O tributo havia sido sempre notoriamente necessário. Não se tributava mais do que por necessidade, por correspondência. Todo tributo constituía um regresso a sua fonte, resultava em um retorno, uma devolução necessária. Parece que em certo momento do que chamamos História, essa fonte se perdeu de vista e os homens deixaram de saber para onde deveriam dirigir o seu tributo. Substitutos não faltaram, porém, a força da tributação seguiu diminuindo até que a “devolução”, ou o retorno, terminou resultando obrigatória, sustentada somente pela força arrecadadora da “fonte substituta”. Dir-se-ia que o tributo transformado em imposto conclui o lento processo de internacionalização da culpa cristã. Esta poderá ser devolvida (confessada) a partir de então somente como imposto secular. A formação de governo que conhecemos como “Estado” haverá de ser essa nova “fonte substituta” secular. Como tal, procurará atenuar a violência retributiva do imposto através de prestações (políticas públicas) que, ao invés de constituir instrumentos de governo, fazem as vezes de sobre-devoluções à devolução forçosa do imposto. Daí em diante, então, a fonte substituta não será mais concebida como o ponto ao qual haveria que devolver ou retornar ou tributar algo. Mas, inversamente, será essa fonte substituta que deverá devolver a seus “tributadores” o imposto que não tem sentido tributário para eles mais que a condição de uma espécie de contrapartida ou devolução por parte dessa “fonte” estatal. Essa inversão do sentido da tributação será coroada por teorias de caráter contratual que assumiriam, inclusive, que a “fonte” é do mesmo calibre ôntico que seus “tributários”.

Se o Estado e seus integrantes são indivíduos ou pessoas jurídicas que ostentam o mesmo estatuto de ser, então não se pode sustentar que os integrantes tenham obrigação alguma para com o Estado, na medida em que não poderiam ter obrigação alguma consigo mesmos. Perdida a fonte e a força tributária, todo imposto não pode ser mais do que uma fonte de contraprestações entre iguais. O Estado, assim, seria aquele indivíduo que garante as condições para não ter que tributar. Ora, essas

1 Consulte-se “Câmbios, dinheiro e moeda na revolução comercial do século XIII”, em Le Goff, Jacques, A Idade Média e o dinheiro. Ensaio de antropologia histórica, Akal, Madrid, 2012. 2 “… a resistência das populações não lhes permitiu estabelecer [aos Estados nascentes] uma fiscalidade estável antes do século XVI” (Le Goff, idem, p. 129).

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condições custam. E muito. Por isso é preciso arrecadar, entre os indivíduos, um “tributo” para manter essas condições. Esse tipo de meta-tributo ou falso-tributo é o que recebe o nome de imposto (moderno). E é na medida em que não pode reconhecer-se mais do que como não-voluntário é que se torna obrigatório. No coração dessa aporia que constitui a pedra de toque da legitimidade da forma de governo conhecida como “Estado”, é que se desenvolve o trabalho arrecadatório estatal: todo imposto é, antes de mais nada, não-voluntário e, quase simultaneamente, obrigatório. Nesse lapso entre a não-voluntariedade e a obrigação se desenvolve o drama da arrecadação cujo agente dramático é o funcionário impositivo [cobrador de imposto]. O pagamento de um imposto é inelutavelmente não-voluntário e, somente enquanto tal, pode constituir-se no tributo que corresponde à perda de toda fonte tributária. Porém, essa não-voluntariedade se torna intolerável como “fonte” e, portanto, se transforma em fonte estatal para que obrigue o pagamento desses impostos não-voluntários; de maneira tal que essa obrigação se torne a fonte ou causa dessa não-voluntariedade. Dessa maneira, o agente dessa não-voluntariedade (o “contribuinte”) poderá, ademais, apresentar todo seu ressentimento ou má-consciência de base3 sob a proteção [o guarda-chuva] psicológica do “egoísmo” ou da “maximização de benefícios”.

Na realidade, a tarefa do agente tributário se concentra em obrigar a algo que é, desde o início, não-voluntário, assumindo, assim, uma espécie de culpa inexistente por obrigar os contribuintes a uma contribuição impositiva que, de qualquer forma, é necessariamente não-voluntária. Dir-se-ia que o agente impositivo se oferece como desculpa para a ausência de qualquer orientação tributária. Sua tarefa específica é a de fazer de conta que impõe racionalmente uma obrigação de contribuir que, de qualquer forma, segue sendo necessária (como todo tributo) e, por procedência, originariamente não-voluntária. Assim, todo imposto é não-voluntário e necessário, enquanto que o agente impositivo pode chegar a crer que obriga a pagar impostos contingentes. Sua tarefa, na realidade, se limita a racionalizar essas imposições, apresentando-as como contraprestações. Além disso, não há culpa nem engano possíveis. Todos participamos do jogo estatal que compensa nossa absoluta desorientação tributária. E essa compensação, cabe dizer, não tem preço.

3 Consulte-se “Culpa, má-consciência e similares” em Nietzsche, Friedrich, Genealogia da moral, Alianza, Madrid, tradução de Sánchez Pascual.

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5.3 A MOEDA DE DEUS E A LITURGIA DOS POBRES

“Aqui, os gemidos da agonia, ali, o choro de um recém-nascido que acaba de chegar à existência. A soma do conjunto, na qual piscam o acaso da natureza nascente e a morte degradada, permanece constante” (Serres, O nascimento da Física no texto de Lucrécio) O cenário impositivo traz, aos dias de hoje, expressões superficiais

de profundas camadas geológicas de toda a experiência humana de subsistência no mundo, através dos intercâmbios, das delegações e das retribuições. Essa subsistência no mundo se considerou, durante um tempo quase imemorial que chega até as margens de nossa Modernidade, como algo que dependia, também, de um intercâmbio com um plano extramundano, plano divino.

Com esse plano, tinham lugar as principais relações de tributação e intercâmbio mediadas por uma instituição de uma importância apenas comparável com alguma instituição atual: o sacrifício. Necessário, jamais obrigatório, o sacrifício era um tributo mortal aos imortais. Em contrapartida, os mortais recebiam algum sinal extramundano com incidência física e anímica no aberto do mundo.

Com o tempo, as mutações técnicas deram lugar à uma capacidade desconhecida pelos homens até então: a capacidade de auto conforto (autoconsolo). Já não fazia falta mais subsistir no aberto do mundo. Se existia o amparo da nova força técnica de auto conforto, tanto física como anímica, então deixamos de depender exclusivamente de figuras extramundanas de conforto e, assim, deixamos de dever aos deuses nossa subsistência. Por qual razão seguir se sacrificando?

O sacrifício foi internalizado, mundanizado, mundializado. O principal resultado dessa mutação é uma nova forma de governo baseada no que se conhece como “políticas públicas” e encarnada no Estado. Essa nova figura mundana, como fizeram notar desde o começo autores como Thomas Hobbes, é um tipo de deus terreno, recomposição do excedente resultante da suspensão de qualquer sacrifício. Assim, o Estado terá de receber toda a força de conforto que antes era atribuída ao mundo divino e terá de implantá-lo como “serviço” ou política pública auto confortante.

A distribuição dessa força não é, contudo, gratuita. Não pode sê-lo, porque deve, ainda, geológica ou ontologicamente falando, toda essa força confortante recebida de todos os sacrifícios já não realizados. Assim, o que os homens deviam aos deuses, agora o deve o Estado (deus terreno) aos homens. É o Estado que deve sacrificar sua força auto confortante aos

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homens. Por sua vez, estes [os homens] pagam esse sacrifício com a sensação de estar sendo enganados. Com efeito, o Estado não pode realizar seus sacrifícios (ou obras públicas) sem os rituais correspondentes. Estes também acarretam um custo que os homens (não concebidos mais como mortais, só humanos) não estão dispostos a pagar, pois consideram (dada a doação primordial ou acumulação originária) seu direito todo auto conforto e, simultaneamente, consideram que não devem pagar nenhum auto conforto que cada um dos demais homens não tenha pago por si mesmo. Eis aqui o dilema do imposto. Sempre é injusto por ser absolutamente justo, sendo, por sua vez, necessariamente obrigatório, justamente por já não ser mais necessário (o sacrifício ao qual substitui). O Estado tem que financiar a devolução da força auto confortante aos homens que, já sem deuses, se consideram indivíduos isolados que contratam entre si. Nenhum deles crê que deva financiar o processo ritual dessa devolução e, por sua vez, sente que nunca está devolvendo o suficiente a ele, que sempre lhe devolve mais aos outros.

Na medida em que já não se arrecada necessariamente para um sacrifício extramundano; na medida em que uma espécie de Arrecadação originária exime terrenamente daquela necessidade, ficamos condenados ao imposto: mal-estar constante com o qual pagamos o preço de não dever nada aos deuses; obrigação inconcebível, justamente por não ser necessária, a qual o Estado está obrigado, também inconcebivelmente, a nos obrigar.

A passagem do regime sacrificial consolativo ao regime do auto conforto, do sacrifício ao imposto, encontra sua primeira formulação na boca de Jesus e constitui, em si, um enigma. Segundo o evangelista Mateus, à época, cobrador de impostos, os fariseus, tentando lhe enganar, perguntaram a Jesus se era lícito tributar a César (o termo grego é kensus e se refere a um tributo a título pessoal). A armadilha, sob o regime arcaico de tributação (sacrificial), consistia em que ao negar a legitimidade do tributo devido a César – por não ser necessário – se estaria fragilizando o poder arrecadatório do império; porém, ao afirmar a sua legitimidade se estaria cometendo um ato de hybris contra a divindade, por ser esta a necessária destinatária de todo o tributo. Jesus respondeu, então: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Se abre aqui uma profunda reforma tributária. A liturgia (liturgía) era um tributo das polis grega, destinado ao cidadão mais rico que, quando as circunstâncias requeriam, era encarregado de dirigir e financiar um cargo público (por exemplo, a construção de um barco de guerra). Em

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princípio, como todo tributo, se tratava de uma honra, porém, lentamente, esse tributo foi se transformando em uma carga que resultava imposta. Dali que surgiu a figura jurídica do “intercâmbio de fortunas” ou “antídosis” para que o cidadão designado a pagar uma liturgia tivesse a chance de descarrega-la em outro cidadão considerado mais rico. Ao finalizar o processo, o cidadão que finalmente era designado a pagar tinha a opção de aceitar a liturgia ou realizar um intercâmbio de fortuna com seu oponente. Como se pode apreciar, o Cristianismo opera uma profunda reforma tributária a partir da qual, por exemplo, a liturgia alcançará também, e fundamentalmente, aos pobres: os que não tem nada para dar são os únicos que têm algo para dar. O Cristianismo democratiza a liturgia, torna dignos dela todos os homens. Aqueles pobres na moeda de César, serão ricos na moeda de um Deus que, por sua vez, terá monopolizado as forças ultraterrenas em uma espécie de sistema rudimentar de cadeia de blocos (blockchains) Deus-Filho-Espírito Santo capaz de gerar um sistema de confiança e consolo em torno do Enviado, em torno da sua Moeda de troca, impossível de registrar ou de arrecadar pelo dispositivo fiscal romano, ainda de caráter pagão-aristocrático. A partir daí é que se pode pensar que a conversão do Império Romano ao Cristianismo é análoga à lenta conversão do sistema bancário à lógica da blockchain. 5.4 O SACRIFÍCIO DO REI PÁLIDO

“... toda a vida em estado bruto é um amálgama de não ser, trevas e morte. Para sair dela é necessário contar com uma ajuda; para contar com uma ajuda, faz falta um rito" (Calasso, El ardor, p. 293) "... havia duas classes de pessoas no mundo: a gente que entendia as realidades técnicas de como funcionava o mundo real, e a gente que não as entendia" (F. W., El rey pálido, p. 245)

A leitura da inacabada novela de David Foster Wallace, O rei pálido (Mondadori, Buenos Aires, 2012) deveria ser obrigatória. Se trata de aprender a prestar atenção, a mergulhar no aborrecimento. Sem distrações. Para um adulto atual, sua leitura tem de ser árdua, obscura, incapazes como estamos para atender a nossa própria capacidade de atenção, de leitura. A novela de Foster Wallace é feita de escritura. E nada mais. Não há outra ação que a das palavras. Ascendendo e descendendo pelos subterrâneos lógico-comportamentais de uma Agência Tributária, Foster Wallace vai desenvolvendo uma escritura cujo ânimo, cujo humor, recorda

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infinitamente ao de Franz Kafka, porém sem os estratagemas deste. Não falta aqui crime, nem sobra castigo. Não falta nem sobra nada. Não acontece nada mais do que o que se lê. Não ocorre outra coisa mais do que a leitura. Se alguém perguntar do que trata essa novela de Foster Wallace poderia se responder tranquilamente: trata de ler. Certamente, se dirá que toda a literatura que se preze tem de poder definir-se pelo tratamento do próprio material de leitura: a escritura. E se estará correto. Ocorre que na escritura de Foster Wallace desliza um afeto reflexivo peculiar. Não cria um novo afeto vivificante, alguma centelha de saúde. Ao invés disso, pisa sobre nossas afecções, sobre nossa incapacidade afetiva de prestar atenção ao que nos acontece [nos passa].

A trama impositiva sobre a qual traciona a escritura de F.W. se torna alucinante e alcança altas cotas metafísicas que, por sua vez, proporciona uma interpretação da vida moderna no mundo do Capitalismo Mundial Integrado formado sobre a forma de governo Estado-Nação de Direito. Ambientada nos anos 80, faz um diagnóstico das mutações do Capitalismo contemporâneo, provocando pequenos deslizamentos geológicos das políticas fiscais. Estes deslizamentos se formulam em termos de “tipos ideais” weberianos invertidos: não se trata de grandes traços contemplados a partir do ar, senão de micro movimentos nervosos ou musculares que ocorrem no interior do coração arrecadatório do Estado de Direito capitalista.

Inacabada, não resulta caótica. Acabada, quem sabe o tivesse resultado. A tarefa empreendida por Foster Wallace implicava uma experiência atlético-metafísica para a qual se torna difícil conceber uma força existencial capaz de suportá-la. Uma novela policial cujo crime é a própria novela e cujo castigo é escrevê-la. Os agentes impositivos, fazendo fronteira, às vezes, com agentes do FBI, são agentes secretos, porém entendidos ao modo védico: “O segredo não é uma atitude para esconder algo que de outro modo seria evidente. O segredo assinala que se entrou em uma zona em que tudo, começando pelo significado, é interior a um recinto. O segredo é o lugar isolado pelo cercado, como o quadro pela moldura” (CALASSO, O ardor, p. 294-5).

Os agentes da Agência não escondem nada. Se encontram imersos em distintos níveis do segredo, em um âmbito sagrado cuja pretensão de transparência se torna demente, fazendo com que quase todos os agentes sofram e sintomatizem a pressão de não saber que participam de um rito cuja própria natureza impede qualquer tipo de exteriorização. Os poucos que o sabem se tornam quase místicos, sacerdotes ou xamãs do fluxo

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energético do mundo. Do mesmo modo, a escritura de Foster Wallace, montada sobre certo jargão impositivo, tampouco oculta nada, nem sequer a si mesma, nem sequer ao autor. Imerso no segredo da escritura, na beira do precipício do aborrecimento, da contemporânea ausência de consciência sobre os ritos e os gestos sagrados sobre os quais toma forma o mundo que habitamos, Foster Wallace parece ter sucumbido após a “grande saúde” nietzschiana, a qual, supostamente, aguarda do outro lado da “doença literária”. Em uma de suas notas à margem da novela se pode ler: “Resulta que o êxtase – um prazer sentido segundo a segundo e acompanhado de gratidão pelo dom de estar vivo e de ser consciente – se encontra do outro lado do aborrecimento absolutamente letal”. 5.5 A FILOSOFIA COMO REFORMA TRIBUTÁRIA E A TRIBUTAÇÃO COMO REFORMA LITERÁRIA

Na hora de enfrentar um estudo histórico-filosófico das práticas impositivas atuais, primeiramente o que temos assumido é que um enfoque filosófico dos impostos se diferenciava de um enfoque econômico ou administrativo. Não nos interessava a prática diária concreta e sim alcançar um diagnóstico das condições gerais dessa prática, quaisquer que fossem. Objetivo ambicioso, se tratava de ampliar o campo de batalha impositivo, de detectar o campo de forças do qual pudesse ter surgido isso que chamamos de “impostos”. Como propomos anteriormente, até o século XII não havia impostos; recém então aparece no território francês a palavra “impôt”. Também pudemos conceber o Cristianismo como resultante de uma grande transformação impositiva, da qual a Reforma luterana seria um posterior complemento que teria dado origem ao espírito do Capitalismo (no dizer de Max Weber).

Ora, tudo o que podíamos ir aprendendo sobre o nascimento dos impostos ou, mais precisamente, sobre os aspectos histórico-filosóficos da tributação, deixava sempre a filosofia fora do âmbito impositivo, como se a filosofia estivesse, por definição, isenta de todo tributo ou imposição. Até que, finalmente, a investigação começou a instaurar seu próprio retorno e implicou tributariamente também o nascimento da filosofia.

Em República de Platão, Sócrates propõe o plano para uma nova polis baseado em três estamentos (guardiões-filósofos, guardiões-guerreiros e artesãos), entre os quais seriam distribuídos todos os cidadãos a partir do método chamado Paideia (educação). Este método, baseado no controle do Logos, isto é, das histórias que se contam aos cidadãos desde

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pequenos, via como competidores perigosos os sofistas e os poetas, também especialistas ou experts em Logos. Em especial a poetas consagrados como Homero, cuja multiplicidade de histórias e força poética podia “dar por terra” com o Logos educativo que postulava Sócrates, mais simples e moderado. Neste marco, o principal fator de perturbação que Sócrates via na poesia de Homero, além de sua multiplicidade e força poética, era a persistente ausência em suas histórias de qualquer tipo de intermediário na hora de realizar sacrifícios, isto é, tributos. Cada um parecia saber e poder realizar os tributos em qualquer momento, em todo o momento. Como se sempre fosse uma data sagrada. Ao mesmo tempo que na República, Platão escreve, com o espírito desapontado, a respeito da possibilidade de que os cidadãos soubessem e pudessem apresentar tributos por sua própria conta, essa capacidade já havia sido delegada, ou melhor, abandonada ou esquecida, e ficava nas mãos de múltiplos gestores dos tributos já, por então, crescentemente concebidos como cargas tributárias (ainda que não tão pesadas para chegar a falar de impostos). Platão procura, na República, reorganizar essa delegação, esse esquecimento, procurando monopolizar a distribuição das cargas de tal modo a deixar tendencialmente conforme aos cidadãos com aquilo que lhes corresponde (justamente porque, por diagnóstico, já não o sabem), isto é, seu estamento atribuído via educação. Assim, este plano de polis justa implica uma reforma educativa que, por sua vez, implica uma reforma tributária cujo fim é monopolizar a intermediação sacrificial que em um poeta tão famoso como Homero não existia. Essa reforma tributária é filosófica, na medida em que haverá de ser o guardião-filósofo o encarregado de distribuir as cargas estamentais; porém é também diretamente Filosofia, na medida em que, segundo Giorgio Colli, esta implica uma reforma “literária” do Logos. Dir-se-ia que a Filosofia é o primeiro gênero literário cujo controle do Logos, mediante a escritura (de diá-logos) gera um intermediário neutro capaz de governar a relação do cidadão-leitor consigo mesmo (diálogo interior) e, portanto, com os tributos devidos a Nova Polis, feita a sua imagem e semelhança.

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VI MUNDO Y LENGUAJE. SOBRE LA CERTEZA SENSIBLE EN

LA FENOMENOLOGÍA DEL ESPÍRITU DE HEGEL

Jacinto Rivera de Rosales Chacon*

6.1 LA CERTEZA SENSIBLE EN LA ESTRUCTURA DE LA FENOMENOLOGÍA

La Fenomenología del Espíritu quiere ser la escala de acceso que ha de servir a la conciencia, o sea, al hombre consciente, para que se alce hasta el punto de vista que el filósofo tiene de lo que es real o realidad. Hay muchas perspectivas sobre ese asunto, y Hegel las quiere poner en orden genético, desde la más primitiva, pasando por puntos de vista intermedios, hasta que, mostrando las limitaciones de cada una de ellas, el lector comprenda la verdad del saber absoluto desde el cual el filósofo quiere desarrollar su Ciencia de la Lógica y sus Filosofías de la Naturaleza y del Espíritu, o sea, su explicación del mundo.

Pero esta escala no puede ser abandonada una vez alcanzado el horizonte desde el cual se ha de abordar la comprensión de la realidad, como pensaba Wittgenstein, que pedía tirar la escalera de su Tractatus lógico-filosófico (6.54) una vez que hubiera sido escalado. Cada una de esas figuras del Espíritu alberga su verdad, que es además necesaria como elementos de un proceso dialéctico, pues la verdad no se alcanza en una sola proposición, en un simple juicio, sino que requiere un largo relato. Toda la realidad, tanto la de la naturaleza como la del Espíritu, es un proceso de realización de la Idea, o sea, un proceso de conocimiento a través de diversas etapas, que va desde el momento de la mayor exteriorización e inconsciencia que es el espacio-tiempo-materia, el primero de la Naturaleza, hasta el de mayor interioridad y saber que se da en el Espíritu absoluto, o sea, en el arte, la religión y sobre todo en la filosofía, y en concreto en la filosofía de Hegel, en donde todo encontraría su lugar, o sea, su sentido, su realidad y su límite. La Fenomenología del Espíritu se

* Catedrático de Universidad, área de filosofía, en la Universidad Nacional de Educación a Distancia - UNED, Madrid; E-mail: [email protected].

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presenta como una especie de “novela de formación” (Bildungsroman) de la conciencia a través de las diversas figuras del espíritu, ya reflexivo.

El relato comienza con la certeza sensible: Die sinnliche Gewißheit oder das Diese und das Meinen. En sus tres primeros capítulos la Fenomenología aborda lo que podríamos llamar la captación teórica y solitaria de la realidad por parte de la conciencia reflexiva mediante la sensibilidad, la percepción y el entendimiento1. Aquí la reflexión y exposición que hace el filósofo quiere obligar a la conciencia, y con ella al lector, a alzarse desde un empirismo realista hasta el Idealismo teórico, donde ella se comprende a sí misma como configurando y siendo también lo otro, el mundo. Es entonces cuando arribamos a la autoconciencia deseante, en el capítulo IV, y con ello comienza lo que podríamos denominar la parte práctica e intersubjetiva, la experiencia de la libertad, cuya primera figura relevante es la lucha del amo y del siervo por el reconocimiento como seres libres.

En esta conferencia nos vamos a situar en el inicio, porque ahí se realizan movimientos importantes para esta partida. Pues en definitiva lo que la conciencia ha de descubrir en estos tres momentos iniciales no es sólo la libertad de los individuos, sino más aún la del Espíritu, que en esos primeros pasos tiene que liberarse de creer que es pasivo a la hora de conocer teóricamente al mundo, y ese es el movimiento que se lleva a cabo en el Idealismo alemán. Para que el Espíritu sea enteramente libre, es decir, llegue a ser absoluto (en la Fenomenología al saber absoluto), ha de captar que el mundo no es sino una objetivación de sí mismo, un momento de su despliegue.

Antes de aparecer el mundo de la libertad humana, Hegel tiene que dar unos martillazos (por hablar en términos nietzscheanos) a la solidez del mundo a fin de romper su dura cáscara y mostrar que en la verdad o en el interior de esa pretendida realidad en sí habitaba la creatividad del Espíritu. El primer golpe va dirigido al mundo sensible, una crítica que tiene cierta similitud con la idea racionalista de que esta realidad sensible no es sino la inteligible pero confusamente captada. El segundo va dirigido a la substancia o esencia (Wesen) para disolverla en fuerzas, como ya Leibniz lo había intentado contra Descartes y Newton. El tercero se propone ver en ese juego de fuerzas las fuerzas mismas de la inteligencia,

1 Se utiliza aquí el término “teórico” en el sentido kantiano, como la captación objetiva del mundo de los objetos o teoría del conocimiento objetivo del mundo, y se contrapone en Kant a “pragmático” y “práctico”, que es todo lo relativo al deseo y a la libertad. El mismo Hegel hace esa distinción en el tramo “Psicología” de la Enciclopedia, abordando primero “El espíritu teórico” y después “El espíritu práctico”.

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lo que Leibniz había ensayado con sus mónadas concibiéndolas como fuerzas representativas, Berkeley pensando que el mundo no era sino representaciones de seres inteligentes, pero sobre todo Schelling, que en su filosofía de la naturaleza la construye usando las mismas fuerzas con las que Fichte había mostrado la génesis del Yo2.

Entonces la conciencia llega a la autoconciencia, o sea, el Espíritu llega a ser consciente de sí mismo y de su potencia ante el mundo objetivo, conquista su libertad frente a él, comprende que éste no le es ajeno, y ahí se abre a otro proceso, esta vez bastante doloroso, el camino que va desde el deseo individual hasta la comunidad, y que le lleva a comprenderse como un nosotros, es decir, como un Espíritu incluso histórico. La conciencia reflexiva se va abriendo hacia espacios de comprensión más amplios cuando experimenta la estrechez de cada una de sus figuras y las inconsistencias en las que cae cuando pretende absolutizarlas o tomarlas como la última palabra sobre lo real. Al final esa misma libertad humana se encuentra, a través de la religión y de la filosofía, desbordada por una realidad absoluta, y el Espíritu objetivo pasa a saberse Espíritu absoluto o Dios en nosotros. Así pues, la experiencia que la conciencia realiza en el proceso de la Fenomenología del Espíritu la podríamos resumir en tres pasos: (1) la superación (Aufhebung) de la realidad en sí del mundo material para dar paso a la conciencia-autoconciencia, (2) la superación de la autoconciencia individual para abrirla al nosotros, al Espíritu, y (3) la superación del nosotros para ver en él el proceso y la realización del Absoluto. La experiencia de la libertad tiene esos tres momentos, si bien la libertad parece decirse propiamente del segundo. El primero la prepara, el segundo la desarrolla, y el tercero le ofrece su fundamento.

2 «El resultado de la comparación establecida hasta ahora es que los tres momentos en la construcción de la materia realmente se corresponden con los tres actos de la inteligencia. Por tanto, si esos tres momentos de la naturaleza son propiamente tres momentos en la historia de la autoconciencia, entonces es bastante manifiesto que realmente todas las fuerzas del universo en última instancia se retrotraen a fuerzas representativas; una proposición sobre la cual se basa el idealismo leibniziano, que debidamente entendido no es de hecho distinto del transcendental. Cuando Leibniz llama materia al estado de sueño de las mónadas, o Hemsterhuis al espíritu derramado, reside en estas expresiones un sentido que se puede entender con toda facilidad a partir de los principios aquí expuestos. De hecho, la materia no es otra cosa que el espíritu intuido en el equilibrio de sus actividades. No se necesita mostrar detalladamente cómo por esta supresión de todo dualismo o de toda oposición real entre espíritu y materia, al ser ésta misma sólo espíritu apagado o, a la inversa, éste la materia vista sólo en devenir, se pone término a una cantidad de investigaciones desorientadoras sobre la relación entre ambos» (Schelling, Sistema del idealismo transcendental, SW III, 453; trad. Anthropos, p. 255).

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Aquí nos vamos a situar al inicio de todo, en la figura del Espíritu que Hegel denomina “La certeza sensible” (die sinnliche Gewißheit) en la Fenomenología del Espíritu y “La conciencia sensible” (das sinnliche Bewußtsein) en la Enciclopedia (§ 418). 6.2 LA SENSIBILIDAD EN LA ENCICLOPEDIA

La certeza o conciencia sensible es el comienzo de la conciencia reflexiva. Pero si la colocamos dentro del sistema completo hegeliano, el que Hegel expone en su Enciclopedia, ella es también el resultado de un proceso anterior, que nos hace ver de dónde viene, cómo surge, qué es, qué problema de la etapa anterior ha solucionado ese paso del Espíritu que le ha dado lugar, o sea, qué tiene que solucionar, pero también finalmente cuáles serán sus límites, el problema que ha de ser resuelto en la etapa posterior. Ese es el método hegeliano, y por tanto hay que saber en qué momento del sistema nos encontramos, pues ello nos explica el sentido del mismo.

El tema es el papel que juega la sensibilidad en el conocimiento objetivo de la realidad del mundo. Pues bien, la sensibilidad como elemento teórico aparece en la Enciclopedia en los tres momentos del Espíritu subjetivo: en la Antropología, en la Fenomenología y en la Psicología. Con anterioridad a ese Espíritu subjetivo encontramos la sensación y sentimiento de los animales como interioridad subjetiva3, lo cual se expresa en su voz (Stimme)4, no aún en la palabra (humana). En ellos aparecen ya los cinco sentidos5. Pero aquí la Idea está todavía hundida (versenkt) en la naturaleza y no consciente de sí de manera reflexiva; sólo se alza al sentimiento (Gefühl), al sentimiento de sí, como ya había dicho Leibniz: «La sensación/sensibilidad (Empfindung), el encontrarse-en-sí-a-sí-mismo (Sich-selbst-im-sich-Finden) es lo supremo que hay aquí por primera vez. Pues la planta no se encuentra en sí, porque sus miembros son

3 «La sensación (Empfindung), el encontrarse-en-sí-a-sí-mismo (Sich-selbst-in-sich-Finden) es lo supremo que se halla por primera vez aquí [en la vida animal]; esto es permanecer uno consigo mismo en la determinidad, ser libre en (bei) sí mismo en la determinidad. La planta no se encuentra en sí, porque sus miembros son frente a ella individuos independientes» (E § 338 Z, W IX, 342). 4 E § 351. «La voz es un alto privilegio del animal, que puede parecer maravilloso; es la expresión de la sensación y del sentimiento de sí» (E § 351 Z, W IX, 433). «La voz es lo más cercano al pensar» (434). 5 E § 358.

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individuos independientes entre sí»6. Aún estamos en la unidad Naturaleza-Idea, pero será esa sensibilidad el vehículo de la separación y del nacimiento del Espíritu. Gracias a ese sentirse a sí del animal, el Espíritu surge de la naturaleza, separándose de la misma como individuo, cuando este llega a captarse como tal, distinto de la especie, porque ésta permanece mientras que él como individuo está abocado al dolor y a la muerte. 6.2.1 EL ALMA

Es frente a la muerte del animal-individuo como la Idea o actividad ideal que construye la naturaleza da el salto para convertirse en Espíritu. El Espíritu surge saliendo de la naturaleza, no de la natura naturata, sino de la natura naturans. Primero se encuentra metido en su naturaleza, en su corporalidad, como Espíritu natural, como alma. Es lo que narra la Antropología. En cuanto alma, el espíritu se siente a sí mismo, es ya sujeto, pero no es todavía propiamente Espíritu7, pues no llega al conocimiento de sí (Selbsterkenntnis), no alcanza la conciencia ni al lenguaje, es aún como un sueño del espíritu8, en el sentido de que está aún en el sentimiento (Gefühl), en la unidad del pensar y del ser, oscura e inconsciente de sí, y no propiamente en la reflexión, que es donde se rompe esa unidad y se separan alma y materia, el yo subjetivo de su cuerpo9. Es en virtud de esa reflexión separadora como aparece propiamente la conciencia y se inicia el periplo que nos narra la Fenomenología del Espíritu, que sería como la parte del iceberg que surge del agua y se ve a sí misma como sí misma. Por eso, la conciencia ignora enteramente su pasado, sus orígenes, y proyecta toda su luz hacia el mundo presente que se le abre por primera vez. Es gracias a la experiencia de ascenso que le procura la Fenomenología que la conciencia puede recuperar su pasado y tener de sí un conocimiento apropiado.

El primer paso del Espíritu es el alma de la Antropología. En su momento del ser-para-sí, ella despierta y encuentra en sí misma (sie findet in sich selbst) las determinaciones o contenidos de su naturaleza espiritualizada en la forma de sensación (Empfindung)10, que comparte con

6 E § 337 Z. 7 E § 338. 8 E § 389 9 E § 389 Z. 10 E § 399.

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los animales, y cuyo contenido son las cualidades sensibles11, lo agradable y lo desagradable, los sentimientos y afectos corporales. La sensación la encuentra dada, pues su producción le antecede, y ella sólo ve su efecto, un producto dado. «La sensación es la forma del sordo tejer del Espíritu en su individualidad inconsciente y carente de entendimiento. En la sensación toda determinación es aún inmediata y puesta de manera no desarrollada tanto por lo que respecta a su contenido como en la oposición de algo objetivo con respecto al sujeto»12. Su saber es oscuro y confuso. De esa manera, a semejanza de los racionalistas, Hegel comprende la sensibilidad como una primera etapa no desarrollada del concepto: la sensación es algo aislado, accidental, unilateralmente subjetivo, es «la peor forma de lo espiritual»13, la más baja. Esto aparecerá también en la Fenomenología y en la Psicología, y se opone directamente a la distinción transcendental, de origen y contenido, que Kant establece entre sensibilidad y entendimiento14. Hegel elimina en el proceso dialéctico toda contraposición que pretenda ser definitiva e intenta mostrar los dos elementos contrapuestos como siendo lo mismo, o dos caras de una misma moneda. Lo contrario, quedarse en una dualidad irresuelta, sería para él una filosofía de la reflexión, una lógica del entendimiento, que se para en la dualidad y no llega a comprender lo Absoluto mediante la lógica de la razón dialéctica y especulativa. 6.2.2 LA CONCIENCIA

El alma, encerrada en su sentimiento, se comporta y se comprende como individuo15, como aquel animal que ha comprendido su muerte. Así también, como individualidad, comienza la conciencia o sujeto consciente, pero a lo largo del proceso habrá de abrirse a la comunidad, la cual, como veremos, se encuentra en realidad presente desde el inicio por medio del lenguaje, aunque Hegel no reflexione sobre ese asunto en su camino genético.

11 «El contenido particular de lo sensible, por ejemplo el olor, el sabor, el color, etc., cae dentro de la sensación, como hemos visto en el § 401» (E § 418 Z, W 10, 207). 12 E § 400; W X, 97. 13 E § 400 Z; W X, 100. 14 Kant, Crítica de la razón pura A 43-46, B 60-63. 15 Hegel olvida que el sentimiento es también conciencia de pertenecer a un grupo, presente asimismo en los animales sociales, de manera que no sólo la razón es comunitaria. La comunidad es consustancial a la vida, pues se propaga, y más en la propagación sexuada.

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La conciencia es la auto-aparición del Espíritu por medio de una reflexión, que parte del sentimiento de sí del alma, y que se despierta en la identidad de sí misma como un Yo16. El Espíritu se eleva a la identidad abstracta del Yo echando fuera de sí (negatividad) el contenido, que toma la forma de objeto independiente y, en ese sentido, exterior17. Esa reflexión rompe la unidad pensar-naturaleza que reinaba aún en el alma de la Antropología y se inicia la dualidad básica de la conciencia reflexiva. Encontramos la separación propia de un segundo momento en el proceso dialéctico, pues la Fenomenología trata del segundo momento del Espíritu subjetivo. El objeto aparece como un ser (Sein) o ente (Seiende) independiente, como un otro autónomo (selbständiges Anderes), individual (Einzelnes) e inmediato18. La experiencia se centra pues en el ser otro del objeto frente al sujeto, por cuanto que cobra independencia. Ahí comienza el saber objetivo o saber propiamente dicho. Esta separación sujeto-objeto es necesaria en la evolución y toma de conciencia del Espíritu, ya que la conciencia requiere también distinción: si yo conozco esto como mesa es también porque sé que no es el suelo, ni la ventana, ni la pared, ni mi cuerpo, etc. Esa separación era, por tanto, la solución hacia la que se encaminaba el alma encerrada en su cuerpo y sin más horizonte, pero será a su vez el problema que tenga que resolverse a lo largo de la Fenomenología, pues toda dualidad ha de ser superada en el proceso hacia la integración de todos los elementos en el saber absoluto, el que engloba todas las etapas o momentos. Ése es el programa y el criterio de realidad: nada subsiste aislado de lo otro, todo forma parte de una conexión global. Si nos paramos en una dualidad irresoluble, como sería la distinción entre sensibilidad y concepto, eso significaría que no habríamos captado su conexión dialéctica, que estamos en el nivel de la reflexión abstracta del entendimiento. Pero al inicio de la Fenomenología aún predomina la unidad inmediata conciencia-mundo en la sensibilidad, que es el tema de esta conferencia.

16 E § 446 Z. Gefühl salió con el alma, «wo dieselbe, aus ihrem in sich verschlossenen Naturleben erwachend die Inhaltsbestimmungen ihrer schlafenden Natur in sich selber findet und eben dadurch empfindend ist, durch Aufhebung der Beschränktheit der Empfindung, aber zum Gefühl ihres Selbstes, ihrer Totalität gelangt und endlich, sich als Ich erfassend, zum Bewußtsein erwacht» (E § 446 Z, W 10, 246). 17 «Dieser Unterschied gehört erst dem Bewuβtsein an, tritt erst dann hervor, wenn die Seele zu dem abstrakten Gedanken ihres Ichs, ihres unendliche Fürsichseins gekommen ist. Vom diesem Unterschiede haben wir daher erst in der Phänomenologie zu sprechen » (E § 400 Z, W 10, 100). 18 Enciclopedia § 418 Z, W 10, 207.

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«El Yo es la relación infinita del Espíritu consigo mismo, pero en cuanto subjetivo, en cuanto certeza de sí mismo»19, pues sólo es saber de sí y sabiendo de sí. Pero al haber echado su contenido fuera de sí, el Yo es aquí meramente individual, una abstracta y formal identidad, que, mediante la experiencia de sus límites, habrá de ir integrando para sí el mundo y los otros yoes, con los que está relacionado necesariamente. Sólo de ese modo conquista su esencia y su libertad al ir más allá de los contornos iniciales. En ese movimiento de apertura, el Yo ha de darse cuenta de que él es «la luz que se manifiesta a sí misma pero también a lo otro»20. Sólo de ese modo superará la contradicción en la que está metido el estrecho punto de vista de la conciencia teórica, que es la contradicción básica del conocimiento objetivo, según la cual el objeto está por una parte en la conciencia como conocido, y por otra parte aparece como dado, externo e independiente de ella, sin su intervención. El Yo, en toda esta etapa de la conciencia o sea de los tres primeros capítulos de la Fenomenología, ha de superar la idea de la cosa en sí kantiana y del No-Yo fichteano, y comprender que el objeto en sí y el espíritu son idénticos21, un paso que se dio propiamente en la Filosofía de la Naturaleza de Schelling a partir de 1797. Esto se lleva a cabo «gracias a la fuerza del concepto, que actúa tanto en el sujeto como en el objeto»22, de lo cual el Yo abstracto de la mera conciencia aún no tiene conocimiento.

Ése es el primer argumento también en el tramo de la Fenomenología de la Enciclopedia, la separación abstracta de sujeto y objeto, que sería sin embargo un primer momento necesario para la constitución de la conciencia o Espíritu reflexivo; todavía no se analiza aquí la exterioridad de los objetos entre sí en virtud del espacio y el tiempo, pues eso será asunto de la etapa siguiente, de la Psicología23. El segundo argumento que aquí nos interesa se fija en el contenido de la conciencia sensible, la primera figura de la Fenomenología, nuestro tema. Esos

19 E § 413, W 10, 199. 20 E § 413, W 10, 199. 21 E § 414 Z, W 10, 201-2; § 415, W 10, 202-203. 22 E § 417 Z, W 10, 204 23 E § 418, W 10, 206. Es difícil comprender cómo podrá ser el objeto algo exterior a la conciencia sin el espacio y el tiempo, y más aún cómo la conciencia en su tercer momento podrá captar las leyes de la naturaleza sin el espacio y el tiempo. Posiblemente la sensibilidad sólo se pueda entender si unimos sus tres momentos, como estoy haciendo aquí, el de la Antropología, el de la Fenomenología y el de la Psicología. Esto mostraría una cierta artificialidad en el empeño hegeliano de mostrar un proceso lineal, sobre todo por lo que respeta a la división entre la Fenomenología y la Psicología.

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contenidos son los que había encontrado en sí el alma y que la (nueva) reflexión los separa de sí y les concede en primer lugar la determinación de ser exterior a la conciencia. Pues bien, a la conciencia sensible su objeto se le «aparece como el más rico en contenido, pero es el más pobre en pensamientos»24. En cuanto se le añade el pensamiento y es pensada como cosa con muchas propiedades, predicados, relaciones, etc., ya hemos pasado al segundo momento de la conciencia, el de la conciencia preceptora (Wahrnehmen). Es por tanto un momento muy específico de la conciencia. 6.2.3 LA INTUICIÓN SENSIBLE

Mientras que la conciencia, cuyo desarrollo describe la Fenomenología, está volcada hacia la exterioridad y ocupada en integrar lo exterior a sí misma, el Espíritu estudiado en la Psicología mira desde esa exterioridad hacia su interior25 y al proceso de interiorización (como algo suyo) que ahí tiene lugar desde la presentación de lo sensible objetivo hasta la comprensión de que no se le opone nada natural o exterior, y que sólo tiene que vérselas con sus propias determinaciones, en la unidad de lo objetivo y de lo subjetivo, y sabe «que su objeto es el concepto y el concepto es objetivo»26. Entonces se habrá convertido en razón, en un Espíritu libre.

De nuevo el proceso comienza con la inmediatez del Espíritu teórico, y en concreto con la intuición sensible, y se dirige a superar dicha inmediatez, pues lo verdadero para Hegel es el todo, y éste es lo más mediado o mediatizado, lo que integra todos los elementos y sus mediaciones. La intuición sensible considera las determinaciones como estando efectivamente en el objeto, pero a la vez puestas por el Espíritu, y es la superación de esa contradicción en el saber lo estudiado en la Psicología. Son etapas de su liberación, pues desmontando la ilusión (Schein) de que el objeto le es dado al saber desde fuera, él se muestra como lo que es en sí, como Espíritu que absolutamente se auto-determina. Pero ese no es ya el mero Espíritu subjetivo del hombre individual y no cae

24 E § 418; W X, 206. 25 E § 443 «Wie das Bewußtsein zu seinem Gegenstande die vorhergehende Stufe, die natürliche Seele hat (§ 413), so hat oder macht vielmehr der Geist das Bewußtsein zu seinem Gegenstande; d. i. indem dieses nur an sich die Identität des Ich mit seinem Anderen ist (§ 415), so setzt sie der Geist für sich, daß nun er sie wisse, diese konkrete Einheit» (E § 443, W 10, 236). 26 E § 440 Z; W 10, 230.

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dentro del ámbito del saber meramente subjetivo del individuo, sino del Espíritu absoluto, del saber absoluto al que llega al final la Fenomenología del Espíritu, situado en el horizonte de la filosofía (última etapa del Espíritu absoluto), mientras que en la Psicología el Espíritu permanece aún a un nivel subjetivo, para el cual continúa habiendo un contenido del objeto fuera de la unidad con el Espíritu, dado que la forma en la que éste elabora el objeto o mundo no lo traspasa enteramente27.

La actividad del Espíritu subjetivo teórico o Inteligencia es el conocer (Erkennen), que es un saber con necesidad cuando se alza hasta la razón. Es aquí propiamente donde Hegel rescribe la Crítica de la razón pura desde su propio sistema. Su primer paso es la intuición, que integra la sensación del alma y el objeto sensible de la conciencia, pero esta vez añadiendo el espacio y el tiempo, gracias a los cuales los objetos son exteriores entre sí.

El primer momento de la intuición es el Espíritu o Inteligencia sentiente (fühlend)28. Ese encontrarse la inteligencia así determinada (por el sentir del alma y los objetos de la conciencia), y por tanto también como individual y subjetiva: «es su sordo tejer dentro de sí, en lo cual el Espíritu es para sí de índole material, y tiene toda la materia de su saber»29 -de nuevo la idea central de este artículo de que Hegel considera lo sensible como el oscuro tejer del concepto, y niega la diferencia transcendental entre ellos establecida por Kant-. Aquí, en la Psicología, el sentimiento es la forma que el Espíritu se da a sí mismo como unidad de lo objetivo y lo subjetivo, y sin embargo toma la forma de una determinada afección30, es decir, el Espíritu o Inteligencia aún no es consciente de su actividad, y por tanto, aunque en la sensación o sensibilidad (Empfindung) está toda la razón, la Inteligencia no es aún libre o Espíritu propiamente dicho, pues no ha reconocido la racionalidad o el espíritu de aquello que recibe, y tiene aún que liberarse de la ilusión de la exterioridad en sí del mundo.

El segundo momento de la intuición es el de la atención (Aufmerksamkeit), que también aparecía en la KrV como fundamento del sentido interno. Gracias a esta autodeterminación de la Inteligencia las determinaciones del sentimiento son arrojadas a la exterioridad

27 E § 444 Z; W 10, 240. 28 E § 446; W 10, 246. En el § 447 Z encontramos la expresión «empfindende Intelligenz» (W X, 248). Sería interesante hacer un estudio comparando esta idea idealista con la tan conocida idea realista zubiriana de la inteligencia sentiente. 29 E § 446; W 10, 246. 30 E § 447.

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(negatividad) como entes (Seiende), no sólo separados de la conciencia, sino también entre sí en el espacio y el tiempo, pero estando a la vez en el interior de la conciencia, siendo un contenido suyo. Sólo mediante esa doble actividad del suprimir (Aufheben) y del restaurar o reponer (Wiederherstellen), propia de la atención, se hace posible el conocimiento objetivo, de algo que es a la vez subjetivo, para mí, y objetivo, un ser independiente, o sea, unidad y separación.

Gracias a esa atención sucede entonces el tercer momento, el de la intuición propiamente dicha, que consiste en la conversión de lo sentido en un objeto existente fuera de nosotros (momento de la conciencia), conservando sin embargo el momento de la interioridad (el del alma). El contenido es el mismo, lo que cambia es su forma de la interioridad por otra de la exterioridad, y el objeto se convierte en espacial y temporal, lo que no ocurría aún en la Fenomenología de la conciencia, aunque sí en la Fenomenología del Espíritu. Eso proporciona a la intuición una totalidad y racionalidad por parte del objeto de la que aún carecería la conciencia de la Fenomenología31. Hay que tomar aquí el espacio y el tiempo no como simples formas subjetivas, como hace Kant según Hegel, pues los objetos son ellos mismos espaciales y temporales (también para Kant el espacio y el tiempo tienen realidad empírica). «En el punto de vista de la mera intuición estamos fuera de nosotros, en la espacialidad y la temporalidad, las dos formas de la exterioridad. La inteligencia está aquí hundida en la materialidad exterior, hecha una con ella, y no tiene otro contenido que el objeto intuido. Por eso podemos ser en la intuición extremadamente no-libre (unfrei). […] Por consiguiente, el Espíritu pone la intuición como suya, la traspasa y la convierte en algo interior, se la interioriza y se hace presente

31 E § 449 Z. Anschauung - Bewußtsein. Im weitesten Sinne des Wortes könnte man dem sinnlichen Bewußtsein den Namen der Anschauung geben. Pero sólo la intuición llega a una totalidad, daß das Bewuβtsein «in unvermittelter, ganz abstrakter Gewißheit seiner selbst auf die unmittelbare, in mannigfache Seiten auseinanderfallende Einzelheit des Objektes sich bezieht, die Anschauung dagegen ein von der Gewißheit der Vernunft erfülltes Bewußtsein ist, dessen Gegenstand die Bestimmung hat, ein Vernünftiges, folglich nicht ein in verschiedene Seiten auseinandergerissenes Einzelnes, sondern eine Totalität, eine zusammengehaltene Fülle von Bestimmungen zu sein» (E § 449 Z, W 10, 254). Die Anschauung ist noch nicht erkennendes Wissen, «weil sie als solche nicht zur immanenten Entwicklung der Substanz des Gegenstandes gelangt, sondern sich vielmehr auf das Erfassen» des Äußerlichen und Zufälligen beschränkt. «Die Anschauung ist daher nur der Beginn des Erkennens». «In der unmittelbaren Anschauung habe ich zwar die ganze Sache vor mir» (255). El tiempo es para Hegel un angeschauter Begriff (FE Jiménez 904). Véase el tratamiento que hace Heidegger del “aquí”, “ahí, “allí” en Ser y tiempo § 26, y del tiempo en Hegel en el § 82.

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en ella, y con ello se hace libre»32. Ese momento interior según el cual el objeto es mío, está ya presente en la intuición; pero sólo en la etapa posterior, la de la representación, es también puesta reflexivamente para la conciencia, que se da cuenta de que el objeto es igualmente una representación suya, o sea, que ella es quien tiene la intuición. Se produce entonces un proceso de interiorización que, a través de la imaginación y la memoria, conduce a la inteligencia hacia el pensar (concepto, juicio y razón), que desemboca en el Espíritu subjetivo práctico. Por último, la intuición sensible vuelve a cobrar un papel fundamental en el arte y su belleza33, pero ahí no nos vamos a detener ahora. 6.3 LA CERTEZA SENSIBLE EN LA FENOMENOLOGÍA DEL ESPÍRITU

El sistema de Hegel es circular y genético, dos características del método que ya comenzaron a ser elaboradas por Fichte y Schelling como necesarias para la corrección y completud de todo sistema, pues la génesis ligaría todos los elementos entre sí y la circularidad aseguraría que no nos habríamos dejado fuera ningún miembro necesario en la explicación. Hegel lleva la circularidad hasta sus últimas consecuencias, siguiendo en esto gran parte de las intuiciones de Schelling en su filosofía de la identidad, la cual añade a la Naturaleza y al Espíritu un ámbito del pensar puro, que Hegel llamará Lógica, capaz de aunar la última etapa del Espíritu con el inicio del mundo. En virtud de dicha circularidad, cada momento de la génesis de la realidad es a la vez el resultado de todo el proceso anterior y el inicio de ese mismo proceso hacia adelante. En consecuencia, toda etapa puede ser tomada como principio y final del sistema34.

Y sin embargo hay en él dos inicios privilegiados por Hegel que a grandes rasgos podríamos calificar por contraste de objetivo y subjetivo. Uno es el comienzo de la Lógica con la categoría de «ser», pensada como la más abstracta, inmediata (unmittelbar) y vacía de las categorías, y eso es

32 E § 450; W 10, 256. 33 «La figura de este saber en cuanto inmediata (el momento de la finitud del arte) es, por una parte, un caer en una obra de una existencia común exterior, en el sujeto que la produce y la intuye y la venera; por otra parte, es la intuición y representación concretadle Espíritu absoluto en sí en cuanto ideal» (E § 556; W 10, 367). «Si se juzgan objetos sólo mediante conceptos piérdese toda representación de belleza» (KU, A. V, 215). 34 Esta idea la he desarrollado en el artículo “Del ser al ente. El inicio de la Lógica hegeliana”, publicado en el libro La herida del concepto, Servicio de publicaciones de la UAM, Madrid, 2017, pp. 289-324.

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lo que Hegel hace en su Enciclopedia. El otro inicio, el que aquí nos ocupa, es el de la conciencia en su certeza sensible, por donde empieza la Fenomenología del Espíritu, como inicio subjetivo y pedagógico de la conciencia reflexiva, aquella que es capaz de elevarse a la reflexión filosófica. Kant señalaba la síntesis como el primer acto de la conciencia35, y analizaba los elementos que la hacían posible en la Doctrina transcendental de los elementos, uno de los cuales era ciertamente la espontaneidad o actividad de la Apercepción y sus formas a priori, y otro residía en la pasividad de sus sensaciones o afecciones. Pero todos esos elementos se daban a la vez, en la síntesis, de modo que quedaban comprendidos arquitectónicamente.

Es Fichte en su Fundamentación de toda Doctrina de la Ciencia quien cambió de perspectiva para trazar lo que denominaba la “historia pragmática del espíritu humano”36. Según él, el inicio de esa historia habría de ponerse en el sentimiento (Gefühl), y en concreto en el sentimiento de limitación, que era a su vez captado como tal mediante el sentimiento de querer ir más allá o sentimiento del anhelo, pues ambos son complementarios y forman una unidad37. Ese sentimiento doble es el inicio de toda conciencia y el suelo o conciencia básica de toda realidad, pues en él se manifiesta la realidad del Yo y del No-Yo. A partir de ese sentimiento, el Yo se dirige a objetivar el mundo y es entonces cuando los sentimientos se transforman en sensaciones o conciencia objetiva. De ahí, mediante sucesivos actos de reflexión, el Yo se alzaría hasta conquistar la visión que la filosofía tenía ya de él y de la realidad, cerrándose el círculo. En ese retorno filosófico sobre sí, descubre que en el inicio, como primer principio, había que colocar una auto-posición del Yo o intuición intelectual que encuentra su límite real en un No-Yo que le pone al Yo en contradicción consigo mismo y por tanto en acción infinita para remontar y resolver esa contradicción. Aunque Fichte insiste en que todos los elementos del sistema se dan a la vez (in einem Schlag), ya había puesto sobre la escena filosófica una “historia”, una serie de actos genéticamente enlazados entre sí, a diferencia del método arquitectónico kantiano38. Ese es el proceso que recoge igualmente Schelling en su Sistema del idealismo

35 KrV § 15. 36 Fichte, GWL GA I/2, 365. 37 Véase mi artículo “La relevancia ontológica del sentimiento en Fichte”, publicado en el libro Fichte. 200 años después, Editorial Complutense, Madrid, 1996, pp. 45-73. 38 Véase mi artículo „The Methodical Singularity of the First Fichte”, en el libro Fichte and Transcendental Philosophy, Palgrave Maxmillan, New York, 2015, pp. 211-228.

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trascendental (1800), pero integrando ahí el nuevo horizonte conquistado en sus estudios sobre Filosofía de la naturaleza, es decir, implicando en ese proceso también a la naturaleza como pasado transcendental del Yo fichteano. Ya estamos en el horizonte de pensamiento del hen kai pan en el que se moverá Hegel.

La Fenomenología del Espíritu representa el inicio subjetivo del sistema, la puerta de entrada para la conciencia común, pues quiere mostrarnos el camino que conduciría a la conciencia o Yo o lector desde su elemento más primario e inmediato, la sensibilidad, hasta el punto de vista verdadero del filósofo o saber absoluto. Aquí se trata del Yo ya reflexivo y por tanto de una sensibilidad que se inicia ya en ese nivel, pues solamente la conciencia reflexiva puede llegar a plantearse la cuestión filosófica sobre la realidad, acerca de qué es lo verdadero y lo real. La primera aparición del sentimiento y de la sensación estaba situada, como vimos, en un estadio anterior, pre-reflexivo o preconsciente, colocada en niveles anteriores, en los animales al final de la Filosofía de la Naturaleza, y en el alma hundida en su cuerpo y analizada en la Antropología. Pero la conciencia propiamente dicha, la que inicia su andadura en la Fenomenología, se distancia de su cuerpo, y esa distancia es y se produce por la reflexión y el lenguaje. En virtud de esa distancia reflexiva, la conciencia comienza poniéndose a sí misma como un Yo y enfrentándose con los objetos sensibles. Ése es su primer momento de inmediatez, que habrá de conducir, mediante dolorosas experiencias de los límites de cada una de las figuras intermedias del Espíritu, hasta la libertad absoluta del saber de sí que el Espíritu habría alcanzado en la filosofía hegeliana.

La certeza sensible es presentada como el inicio del Espíritu propiamente dicho, pues el alma tratada en la Antropología se había quedado a medio camino. Ese inicio lo marca la conciencia reflexiva, la que desde su saber se pregunta por la verdad, una cuestión que le conducirá finalmente al saber absoluto según Hegel. Ella es, como en el caso de la categoría “ser” para la Lógica, lo más pobre de pensamiento y lo más inmediato a esa conciencia reflexiva, su saber inmediato sobre lo inmediato (unmittelbares Wissen des Unmittelbaren). En realidad, en la certeza o conciencia sensible ya se da todo, pues es ese todo lo que la hace posible, pero no aún para la conciencia misma, de modo que ésta tendrá que irlo descubriendo por sí misma en un largo proceso de aperturas encadenadas que le conduce a su propio fundamento. El proceso comienza con lo más inmediato para esa conciencia, aunque se encuentra de suyo mediatizado por todo el proceso de la naturaleza y del alma, pero ella no lo ve; al ser

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éste su primer momento de reflexión, podemos decir que del objeto sólo percibe el resultado. Desconoce su origen y el de su contenido y exterioridad, no tiene noticia del proceso genético de la naturaleza a partir de la Idea que le ha dado el ser, ni de su propia acción de arrojarlo fuera de sí mediante la reflexión, pues esta acción es la que la ha producido como conciencia y se halla en consecuencia a sus espaldas; es una conciencia meramente receptiva y sin comprensión (aufnehmend ohne Begreifen). Por eso requerirá un largo camino de reflexiones, hasta la filosofía última, para reconocerlo y ponerlo en la conciencia o Espíritu (absoluto). Por lo tanto, el objeto se le aparecerá aquí al Espíritu como un ente (Seiendes) independiente (selbständig), exterior y enfrentado a ella, estando ahí sin su acción, frente al cual la conciencia es meramente pasiva, receptora, es decir, meramente sensible y no libre. Pronto habrá de ir descubriendo que no es tan pasiva, y que, según Hegel, su acción constituye esencialmente la verdad de lo que allí se revela.

Ya Kant había preparado el terreno mostrando formas a priori, es decir, procedentes de la subjetividad en la propia sensibilidad, y en concreto el espacio y el tiempo, que posibilitaban la recepción sensible de la multiplicidad del mundo y su ordenación objetiva. Ese era un pilar básico de su idealismo transcendental. Este movimiento idealista lo profundiza el primer Fichte mostrando que las afecciones sensibles y todo el ámbito teórico son también elaboraciones de la actividad ideal del Yo sobre la base de los sentimientos. Y finalmente Schelling, que salta desde un Yo humano finito a un Yo que lo abarca todo, también a la naturaleza, y coloca la acción de la actividad ideal subjetiva aún más atrás, pues todo el proceso que genera y da lugar al mundo no es sino la elaboración de la actividad real mediante la ideal, la cual se va potenciando sucesivamente hasta dar lugar al hombre, al Yo fichteano. El proceso de la Fenomenología se cifra, por tanto, en desmontar la pretendida realidad en sí del objeto, disolviendo tanto la cosa en sí de Kant como el No-Yo del primer Fichte, una descomposición que, sin embargo, solo se completa al final del sistema, dando paso a la libertad del Espíritu absoluto. En esta figura inicial de la certeza o conciencia sensible, sin embargo, se dan unos primeros pasos decisivos, que queremos aquí examinar.

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6.4 LENGUAJE Y MUNDO SENSIBLE

El argumento decisivo aquí es la disolución de la verdad sensible concreta del mundo en la universalidad del lenguaje, de ahí el título de este trabajo. En efecto, el contenido (Inhalt) del mundo sensible, con su ilimitada multiplicidad, se le aparece en primer lugar a la conciencia como el conocimiento más inmediato y rico, de una abundancia sin límite en el espacio y en el tiempo39, y a la vez por tanto como el conocimiento más verdadero, pues no deja fuera de él nada del objeto. Según esto, el último resorte de la realidad y de la verdad estaría en un objeto independiente del Espíritu, y éste sólo se podría comportar de manera pasiva y no libre, subordinado y esclavo de esa verdad-realidad que lo domina. Toda actividad y libertad sería en el fondo un error, y el ideal del Espíritu residiría en convertirse en cosa.

La estrategia de la dialéctica hegeliana es mostrar que esa conciencia sensible es lo contrario de lo que ella cree (meinen) que es. De hecho, afirma Hegel, la certeza sensible, como el ser en la Lógica, es la verdad más abstracta y pobre. La razón es la siguiente: cuando esa conciencia quiere expresar su verdad, la singularidad y riqueza de su objeto, sólo alcanza a decir vaguedades, términos universales de gran pobreza de contenido, como es decir que eso es, o sea, aplicar la categoría de ser, que la Lógica hegeliana intentará mostrar después como el más vacío de los conceptos, o decir este, lo cual puede aplicarse a cualquier objeto o fenómeno sin especificarlo en absoluto, o aquí y ahora, las más abstractas formas de la naturaleza y del decir. Ésa es toda su verdad en la pura inmediatez, incapaz de vincular las cosas entre sí y de mostrar sus relaciones, sus dependencias, la trama del mundo, que sólo se llega a ver en la siguiente etapa, la de la percepción, y más aún en la del entendimiento. Estas verdades de la certeza sensible son tan vacías que carecen de significado concreto propiamente dicho. El “ahora” puede ser noche o día, o cualquier otro momento. El “aquí” es cualquier lugar y vale para cualquier objeto. «Para probar la verdad de la certeza sensible basta un simple ensayo. Escribamos esa verdad; una verdad no puede perderse al escribirla»40, y escribamos “ahora es de noche”. Pero al pasarla a la escritura, que perdura y por tanto borra el momento temporal y el

39 Como vimos ya, en la Fenomenología del Espíritu Hegel introduce ya el espacio y el tiempo, que posteriormente, en la Enciclopedia reserva para la Psicología, diferencia que es advertida por el mismo Hegel en el § 418 (W 10, 206). 40 Hegel, FG, W 3, 84

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contexto en el que se escribe, entonces el “ahora” puede no corresponder al momento presente pues se comporta negativa e indiferentemente con respecto a todo contenido sensible actual, y por tanto es algo mediatizado (por esa negatividad frente a lo otro) y universal. Pero ocurre lo mismo si utilizamos substantivos, como casa, árbol, papel, etc., pues ellos valen como universales para cualquier otra casa, otro árbol u otro papel41, de modo que la certeza sensible, queriendo captar lo singular, sólo es capaz de decir lo universal. «Lo universal es en consecuencia y de hecho lo verdadero de la certeza sensible»42, y eso queda recogido en el lenguaje (Sprache). Lo singular es inalcanzable por el lenguaje, es lo indecible (Unaussprechliche), y por tanto también lo no verdadero (das Unwahre), lo no racional (das Unvernünftige), lo meramente opinado (Gemeinte)43. Aquí escuchamos la tesis que unos 150 años después defenderá Gadamer: «El ser que puede ser comprendido es lenguaje»44.

Comprendemos ahora que lo propio y nuevo que aparece en el ámbito de la conciencia reflexiva de la Fenomenología es el lenguaje, y con él la comunidad y comunicación con los otros yoes, el decir, o al menos así lo presenta Hegel, y es el lenguaje lo que modifica la sensibilidad de la conciencia reflexiva con respecto al sentimiento de los animales (Naturaleza) y del alma (Antropología), que se comunican con voces, gritos y gestos. Aunque Hegel coloca en la inteligencia (Psicología) la palabra, como su producto, y la comunidad en un paso posterior de la Fenomenología, a saber, en la autoconciencia, sin embargo aquí ya están ambas, palabra y comunidad, presentes y actuantes en su análisis, lo que pone en dificultad la linealidad genética que nos propone. La aparición del lenguaje modifica esencialmente la relación con el mundo, y eleva la actividad del sujeto. Hemos de suponer, pues, que sobre ese lenguaje se basará la ciencia y la comunidad humana, tanto la lucha de autoconciencias como su reconciliación racional. ¿Pero podemos decir que ese lenguaje es propiamente lo único verdadero de la conciencia y del Espíritu, mientras que la experiencia sensible se hundiría en lo no esencial? Me atrevería a decir que Hegel analiza la sensibilidad de la conciencia reflexiva, su verdad

41 Se ha de advertir que Hegel hace uso también de esos términos, y por consiguiente no podríamos tomar su figura de “certeza sensible” como pre-lingüística, lo que sí era el alma, pero no la conciencia. 42 Hegel, FG, W 3, 85. 43 Hegel, FG, W 3, 92. 44 Gadamer, Verdad y Método, GA I, 478.

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(objeto) y certeza (yo) con un método o modo parcial e inadecuado. Yo sólo me he fijado en la primera parte, en la de la verdad de la sensibilidad.

6.5 ANOTACIONES CRÍTICAS SOBRE LA VERDAD DE LO SENSIBLE 6.5.1 DECIR LO SINGULAR

En primer lugar, Hegel sostiene que no se puede decir lo singular, pues todo término o palabra del lenguaje es universal, como árbol, papel o casa. Eso ocurre incluso con aquellos términos que parecen señalar lo más concreto: ahora, éste, aquí, yo, ayer, vosotros, etc., o sea, los pronombres y los adverbios de lugar y de tiempo. Son los llamados “deícticos”, que sólo son comprensibles dentro del contexto en el que se pronuncian, de modo que en cuanto se modifica el contexto cambian también sus referentes y se muestran por tanto como indiferentes frente a esos objetos singulares. Pero aquí Hegel lleva a cabo una reflexión parcial del asunto. Ciertamente el lenguaje y el concepto hacen referencia a la universalidad, pero no carecen de recursos para señalar también lo singular, incluso en la escritura, aunque esa capacidad de señalar lo concreto ocurra sobre todo en la oralidad, que es donde nace el lenguaje, en la presencia y para señalar el entorno conocido por los hablantes. Pero también lo singular puede ser escrito, ciertamente no con un solo término común, pues todos ellos son universales, como lo son los conceptos que ellos expresan, ni únicamente con nombres propios repetibles, como Antonio o Paula, pero sí con nombres propios expresamente no repetidos como por ejemplo España, o Brasil, o la Luna, o el Nilo, pero también Alejandro Magno o el diamante Cullinan. Más aún, también se puede decir lo singular utilizando varios términos que se circunscriben entre sí e incluyendo algún nombre propio, que es también un elemento del lenguaje. Y así podemos señalar y describir objetos y hechos singulares acaecidos por ejemplo en la Revolución Francesa y escribir sobre ella un libro de historia, o publicar una biografía de un personaje o escribir sobre uno mismo en un texto que no cambia de referente al ser escrito. El lenguaje tiene más recursos para indicar la concreción sensible de la que habla; la certeza sensible puede, por ejemplo, emprender una larga narración de lo sucedido, dando datos temporales y geográficos bien precisos, describiendo los personajes que ahí intervienen (como lo hace la literatura), o comunicando poéticamente un sentimiento propio, etc., de

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manera que todo aquel que comprenda esa lengua se entere de qué se está hablando, aunque no tenga toda la riqueza de un observador directo y atento.

Una situación concreta se puede expresar de otro modo a como lo reduce Hegel. Él pretende que la certeza sensible sólo se puede comunicar con las pocas palabras que él señala y además con vocablos sueltos. Pero eso es una reducción artificial; no se habla sólo con esas palabras que él señala ni con términos aislados. Quien sabe hablar, utiliza también otras palabras45, usa frases encadenadas, en las cuales puede ofrecer más información sobre el contexto, que haga comprensible qué singular quiere señalar. Una conciencia meramente sensible a la que se le niegue el lenguaje no podría hablar, ni siquiera con deícticos, pero entonces tampoco sería una conciencia reflexiva, no habría llegado a ese nivel del Espíritu, se habría quedado como alma encerrada en el interior de su cuerpo. Si habla, entonces posee algo más que deícticos, pues éstos no son posibles sin los demás elementos del lenguaje. La certeza sensible de la conciencia que analiza aquí Hegel es ya lingüística y por tanto comunitaria (un elemento que no tiene en cuenta Hegel en su génesis lineal) y sólo se da en la síntesis con las otras acciones del espíritu. Aislarla y reducirla es una operación artificial. Si se opta por declarar a la certeza sensible como pre-lingüística, a pesar de que Hegel hace referencia a su lenguaje, tendría que señalar otro momento del sistema de Hegel en el que la sensibilidad fuera valorada como elemento del conocimiento objetivo del mundo en su especificidad frente al concepto y al lenguaje.

6.5.2 EL APORTE ESPECÍFICO DE LO SENSIBLE AL CONOCIMIENTO

Ahora bien, aunque el lenguaje tiene instrumentos para señalar lo singular sensible, no puede sustituirlo y convertirlo en inesencial y prescindible, sino que es un elemento necesario en el saber. La conciencia reflexiva surge con el lenguaje, el cual ofrece la base material para la reflexión y sus conceptos, para la idealidad de la conciencia reflexiva que es el significado de las palabras, de lo que se dice. Esta idealidad hace que la conciencia cobre una distancia respecto del mundo, una diferencia entre

45 Sólo sucedería así en el caso de un extranjero que únicamente supiera esos términos. Pero ni siquiera ése sería el caso, pues esa persona utiliza también para su comprensión su propia lengua en toda su extensión. Únicamente en el caso de un niño pequeño que estuviera aprendiendo a hablar.

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las palabras y las cosas, que modifica gran parte de lo anterior, por ejemplo cómo se vive el cuerpo propio y sus necesidades. Debido a esa distancia, la idealidad mantiene una cierta vida propia que crea el mundo específicamente humano, el de la cultura y del comercio, la religión y la moral, las instituciones y leyes de la libertad, el arte, la ciencia y la filosofía. Entonces el mundo sensible aparece de otra manera, es comprendido, modificado y ordenado según otras leyes y finalidades. La aparición del lenguaje, como acto creativo del Espíritu, modifica radicalmente la relación de la conciencia con el mundo, pues la introduce en un ámbito de universalidad, que es el horizonte último de la verdad (ciencia, política, moral, arte, mito y filosofía), que va colocando cada elemento de la misma en un lugar propio y limitado, y por tanto proporciona una conciencia más acotada asimismo de la singularidad, y a la vez se la capta en cuanto tal. Pero no por ello desaparece en lo inesencial, como afirma Hegel, ni siquiera en su papel de elemento del conocimiento reflexivo y objetivo del mundo sensible. Este conocimiento no se agota en el lenguaje ni en los conceptos, sino que ellos sirven para interpretar el mundo desde esas nuevas perspectivas, incluso para hacer ciencia de él, si bien la función de esos conceptos no se agota en esa labor, sino que también puede hablar de lo no sensible, por ejemplo de la libertad o del deber, y sirve para formar metáforas de lo no visible.

Hegel sigue aquí una estrategia distinta a la que adopta en el otro principio, el de la Lógica, donde conceptuando al “Ser” como carente de toda determinación lo asimila a la “Nada” y los iguala en el devenir. Aquí, al contrario, mantiene primeramente la contraposición entre sensible y lenguaje, y procede a desvalorizar el aporte de lo sensible en el asunto de la verdad y del saber, diciendo primero que esa contribución es muy pobre y abstracta46, carente de pensamiento, mientras que lo dicho en el lenguaje es lo más verdadero (das Wahrhaftere), para terminar asignando a la universalidad del lenguaje toda la verdad de la certeza sensible47, y conceptualizando lo sensible como lo no verdadero48. Para Hegel los

46 Hegel, FG, W 3, 82 47 Hegel, FG, W 3, 85-86. 48 Hegel, FG, W 3, 92. Este mismo movimiento lo encontramos en la relación de la Lógica con las dos otras partes del sistema, la Filosofía de la naturaleza y la Filosofía del Espíritu. No es lo mismo (cualitativamente) la categoría lógica que experimentar individualmente la existencia, y eso es también un momento necesario. Tampoco para Hegel es lo mismo, pues distingue lo lógico de lo natural y del espíritu, y esa distinción le es esencial, pues constituyen diversos momentos del proceso, y esa diversidad es esencial en el proceso mismo. Pero él lo banaliza, y dice aquí: «die Naturphilosophie und die Philosophie des

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sentidos no proporcionan ninguna distinción determinada49, y el espacio y el tiempo, que para Kant constituían la claridad de lo sensible, su posibilidad transcendental de ordenación objetiva, los trata Hegel como «determinaciones extremadamente pobres (dürftige) y superficiales»50. Trata los contenidos sensibles como comprensiones borrosas de lo que después se despeja y clarifica en los conceptos, siguiendo en esto a Leibniz, y es ahí entonces donde se produce la identificación necesaria en el proceso dialéctico, eliminándose la diferencia transcendental que Kant había puesto entre la sensibilidad y el entendimiento, como una diferencia propia de la lógica abstracta del entendimiento que ha de ser disuelta en la razón dialéctica y especulativa. Al igual que ocurría con el “Ser”, que no era pensado en su especificidad ontológica, sino sólo en lo que le igualaba a la categoría de la “Nada”, a saber, el no incluir ninguna diferencia óntica51, aquí también Hegel escamotea lo específico de la conciencia sensible, la riqueza insondable de la singularidad presentada. No es pensada la diferencia entre la experiencia sensible y la experiencia lingüística52, sino que aquélla es disuelta en la universalidad del lenguaje. Así lo repite en la Enciclopedia: «si para lo sensible se ha propuesto las determinaciones de la singularidad y de la exterioridad mutua, se puede aún añadir que también estas determinaciones son ellas mismas de nuevo pensamiento y universales; en la Lógica se mostrará que el pensamiento y lo universal es precisamente eso, que es él mismo y su otro, que lo sobrepasa y nada se le escapa. Por cuanto que el lenguaje es obra del pensar, tampoco puede ser

Geistes, gleichsam als eine angewandte Logik, denn diese ist die belebende Seele derselben. Das Interesse der übrigen Wissenschaften ist dann nur, die logischen Formen in den Gestalten der Natur und des Geistes zu erkennen, Gestalten, die nur eine besondere Ausdruckweise der Formen des reinen Denkens sind» (Enz § 24 Z2, W 8, 84), teniendo en cuenta, sin embargo, die Ohnmacht der Natur, die logischen Formen rein darzustellen. Él es lo más real en esas formas (85). Pero, aunque sea así, habrá que admitir un modo menor de ser, que es, y que no se reduce a lo lógico. 49 Vorlesung über Naturphilosophie, 1823-4, p. 64. 50 W 10, 253. Y sigue diciendo el texto: «por consiguiente, las cosas tienen poco en esas formas, y por tanto con su pérdida, si fuera posible, perderían muy poco. El pensar que conoce no se para en esas formas; capta las cosas en su concepto, que contiene en sí el espacio y el tiempo como algo superado (Aufgehobenes)» (ibidem). 51 Esta idea la he desarrollado en el artículo “Del ser al ente. El inicio de la Lógica hegeliana”, publicado en el libro La herida del concepto, Servicio de publicaciones de la UAM, Madrid, 2017, pp. 289-324. 52 Que hay diferencia entre intuición y concepto se muestra en los tres diferentes estilos del arte. Pero Hegel diría que son dos niveles de comprensión, y que el concepto es más evolucionado y engloba la intuición.

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dicho nada en él que no sea universal […]. Y lo inefable, el sentimiento, la sensación, no es lo más excelente, lo más verdadero, sino lo más insignificante y no-verdadero. Cuando digo: “lo singular”, “esto singular”, “Aquí”, “Ahora”, todas estas [expresiones] son universalidades; todas las cosas y cada una de ellas son un singular, esto, incluso cuando son sensibles, aquí, ahora»53.

Pienso que la información que nos proporciona la sensibilidad no puede ser en modo alguno sustituida por el lenguaje y sus conceptos, pues es de otra índole, es un elemento diferente del saber, no son resolubles el uno en el otro, una afirmación esta que se enfrenta directamente con el método hegeliano, que tiene como criterio máximo no dejar ninguna oposición no disuelta por el movimiento dialéctico en una totalidad que sería lo verdadero; pero quizás tendríamos que configurar esa totalidad de otra manera. El mero concepto de árbol no sustituye la comprensión que tenemos de él en la visión directa y sensible del árbol real, aunque en esa visión esté y está operando también el concepto con el que yo comprendo que estoy viendo eso, un árbol. Se podría incluso afirmar que en el árbol real está operando el concepto o la idea organizándolo como un todo, según lo piensa la Filosofía de la Naturaleza de Schelling y de Hegel, de modo que en el árbol estaría su concepto in re, como lo expresaría Tomás de Aquino, y en nuestra mente encontraríamos ese mismo concepto post rem. Pero es que la sensibilidad o elemento sensible del conocimiento no es lo uno ni lo otro, sino otro modo de presentación con una riqueza y una realidad propia, inagotable para la conciencia lingüística e insustituible por otros elementos del saber. Es insustituible porque lo sensible me ofrece resistencia y en eso me muestra su realidad. No es posible comprender la realidad de lo sensible sin introducir en su análisis la acción real y corporal del sujeto, lo que no hace Hegel. Yo conozco el mundo sensible como real porque ofrece resistencia a mi acción real sobre él, a la consecución de los fines que quiero o deseo lograr, y esa resistencia se siente y es así como se comprende entonces al mundo como siendo real y exterior, mientras que la idealidad de un concepto o de un término no ofrece esa resistencia, o bien hablaríamos de otro tipo de resistencia como cuando quiero ordenarlo en un discurso con sentido, o científico o incluso original, y entonces me tengo que esforzar mentalmente para pensarlo y formularlo bien. Hegel coloca la conciencia práctica después de la teórica,

53 E § 20; W 8, 74.

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y podríamos decir que va de lo abstracto a sus fundamentos54, pero en estas etapas posteriores no vuelve a hacer o recuperar su análisis de lo sensible desde esas posiciones más abarcantes. De nuevo la linealidad dialéctica del proceso hegeliano se nos aparece distorsionante, al menos en algunos de sus puntos.

Por tanto, la información que tengo de un palacio cuando lo visito no es sustituible por muchas descripciones que de él me hagan, partiendo ya de la misma vivencia sensible, dinámica y corporal que de él tengo cuando lo visito, o al menos son dos experiencias diferentes. Ni siquiera es lo mismo ver fotos de un palacio que visitarlo personalmente: el cuerpo sentido hace que lo midamos y apreciemos con una sensación de realidad vivida y en su verdadera medida por medio de la imaginación, que actúa sobre lo concreto. Es cierto que la conciencia reflexiva se deja dirigir por los conceptos que ya tiene y le es más difícil reparar en aquello que ignora conceptualmente, pero eso mismo indica la diferencia entre sensibilidad y concepto: el fenómeno sensible está ahí pero no se repara en ello reflexivamente, aunque puede que esto ocurre y entonces se pregunte: ¿y esto qué es? hasta lograr encontrar o adquirir el nuevo concepto.

Hagamos un contra-ejemplo al de Hegel y preguntemos a un ciego de nacimiento si sabe qué es un color, y comprobaremos que no, aunque tenga el concepto o término de color. No podríamos sustituir con palabras ese saber directo y sensible de lo que es un color. Y un color no sólo es un elemento del conocimiento objetivo del mundo, también es básico en el arte de la pintura, en la que se expresa sensiblemente el Espíritu sin usar palabras ni pudiendo ser sustituido por éstas, pero es asimismo importante en otras artes como la arquitectura, la escultura, la puesta en escena o el cine. Y lo mismo podríamos decir de alguien que no hubiera visto nunca una planta, si eso fuera posible; tendríamos que dibujársela. En este sentido sí que podríamos decir con los escolásticos que individuum est ineffabile55, porque no es sustituible por el lenguaje, pero eso no sólo pone límites a la certeza sensible, sino también al lenguaje, a lo conceptual, o mejor dicho a las pretensiones de creer que el lenguaje es todo lo real o lo

54 De hecho, en este texto de la “Certeza sensible”, Hegel hace alusión a un acto real, y no meramente de conocimiento objetivo, a saber, que los animales devoran las cosas sensibles, y con ello muestran que no se las toman como cosas en sí, y de esa manera nos enseñan «cuál es la verdad de las cosas sensibles» (W 3, 91) 55 Para Aristóteles es imposible definir al individuo sensible (Metafísica Z 15), y sin embargo era la substancia, el sínolon, lo más real. Ni siquiera si decimos «el Rey de España» nombramos algo singular, pues nos falta indicar el tiempo, y además hay que tener en cuenta que España es un espacio concreto, un aquí nombrado, designado.

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único verdadero; muestra la inadecuación de la certeza sensible respecto del lenguaje, pero también la inadecuación y los límites del lenguaje a la hora de acoger en él la riqueza y singularidad de la experiencia sensible del mundo. Eso distingue a ambos elementos y los aboca necesariamente a la complementariedad, a la relación o referencia o remisión del uno al otro, pues comprender engloba diversos momentos en una síntesis que respeta también su diversidad. El lenguaje hace referencia primariamente a la universalidad de las reglas con las que interpretamos y ordenamos el mundo sensible, mientras que la sensibilidad lo presenta directamente en su singularidad y realidad, aunque incluso esa singularidad y realidad hayan de ser comprendidas también por medio de conceptos básicos o categorías para ser captados como tales por la conciencia reflexiva; son dos elementos del conocimiento objetivo del mundo que no pueden disolverse el uno en el otro. Decir que sólo el lenguaje es el único ser comprensible, una opinión muy extendida a partir del llamado “giro lingüístico” (Rorty dixit), es cercenar esa riqueza sensible, que después incluso se ve potenciada y requerida en el arte56. La comprensión se hace a diversos niveles, no sólo en el lenguaje, y únicamente en la conjunción de todos ellos se logra una comprensión plena. Hay incluso niveles inconscientes, que no llegan al lenguaje, y que están operando en nuestra comprensión de la realidad o distorsionándola. Tendríamos que concluir que lenguaje (concepto) y mundo sensible son dos elementos diferentes y complementarios en la comprensión de la realidad. Son inadecuados el uno al otro porque son diferentes57. Ninguno sustituye al otro ni puede arrogarse ser la fuente única de la verdad o del conocimiento. La experiencia sensible es ella misma una revelación originaria de la realidad, lo que percibimos sobre todo cuando aún no están demasiado gastados nuestros sentidos y quedamos incluso sorprendidos, impactados por su presencia, lo que sucede más a menudo en la niñez y en la adolescencia, por ejemplo, en la primera vez que vemos el mar. También por eso es tan importante y nos penetra tan profundamente la belleza. Ese sentir, o la

56 En el último apartado de su obra Verdad y método, Gadamer escribe y explica su famoso dictum: «el ser que puede ser comprendido es lenguaje» (Gadamer, Gesammelte Werke, Mohr Siebeck, Tübingen, 1990, tomo I, p. 478). Pero si leemos el contexto en el que eso se ha dicho, ahí lenguaje es toda forma, pues habla del lenguaje de la naturaleza, etc. Según ese sentido lato, toda forma de conciencia es lenguaje, y entonces la sentencia de Gadamer es verdadera. 57 La diferencia entre el mero lenguaje y la experiencia con lenguaje es como la que hay entre leer el menú y comérselo (esto es una metáfora, pues en las dos expereincia hay tanto lenguaje como experiencia sensible).

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imagen o el sonido, etc. no es sustituible por medio de palabras58, aunque con ellas adquiere un significado más pleno.

Podemos sacar entonces la conclusión de que no existiría lenguaje sin sensibilidad o mundo sensible debido a la necesaria contraposición para que exista conciencia reflexiva. Toda conciencia comprende algo como no siendo las otras cosas, capta que esto es una mesa contraponiéndola con la silla y el bolígrafo etc. Así comprendemos el lenguaje, entre otras distinciones, al contraponerlo con las cosas reales y a la inversa. Cuando no se hace esa distinción entre palabra y cosa, se está aún en un pensamiento mágico. Más aún, la universalidad del lenguaje requiere una respuesta positiva por parte de lo sensible en un doble sentido. Primero en un sentido objetivo, a saber, que distintos objetos o acciones respondan a un mismo término lingüístico que sea capaz de agruparlos, por ejemplo, llamándolos a todos ellos “caballo” o “árbol”. Segundo en un sentido subjetivo que crea también comunidad: que todos vean lo mismo, que no ocurra que ante un objeto unos vean un caballo y otros un árbol. En ello se basa también la objetividad en el conocimiento del mundo y gracias a ello es distinguida de las alucinaciones o de las mentiras. La objetividad hace posible que todos compartamos el mismo mundo de los objetos, y eso requiere que todos veamos lo mismo y lo interpretemos con términos acordados. La sensibilidad es un elemento necesario para la objetividad y la comunidad, no sólo el lenguaje. 6.5.3 EL SIGNIFICADO SENSIBLE DEL LENGUAJE

Además, el primer significado del lenguaje es señalar los objetos y las acciones dentro del mundo sensible. A partir de ahí se forman las metáforas para designar lo no sensible, como cuando dice Platón que el

58 Las artes que no usan la palabra son experiencias que cuentan con una información sensible no sustituibles por palabras, aunque su experiencia sea más evolucionada que la de la experiencia sensible, cuenta con ella como un elemento no sustituible por medio de palabras. Gadamer tiene problemas con las artes de la música, y tienden todos a apreciar más las artes de la palabra. Hay olores, sitios, colores, situaciones, que nos traen un recuerdo, un afecto, un temor, etc. Su particularidad es expresiva, es una comprensión originaria de la realidad, de nuestra realidad, de nuestra Stimmung. Por ejemplo, el agua lípida y fresca de la alberca cuando me zambullo en ella en un día caluroso de verano y su sensación en mi cuerpo como una revelación del agua y de la carne, de la luz y del estar ahí, del calor y de la vida, del movimiento y del respirar. Muchos hablan de sensaciones, vivencias y sentimientos que no se pueden expresar con palabras. Tal se podrían indicar algo por medio de una obra de arte, pero siempre quedan insustituibles en cuanto tales.

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bien es el “sol” de las ideas. Sin ese mundo sensible no habría por tanto lenguaje, en realidad no habría ni subjetividad ni comunidad, nada que compartir. El lenguaje no sería comprendido sin referencia a esa realidad sensible, aunque las cosas sensibles no sean lo único real ni tampoco la realidad última y más importante, y en eso Hegel dice verdad, como cuando señala que los animales “las agarran sin más y las devoran y […] nos enseñan en qué consiste la verdad de las cosas sensibles”59, a saber, que son puros medios y tienen un modo de ser subordinado. Pero eso no quiere decir que su realidad se disuelva en los conceptos universales de la lengua.

Gran parte del lenguaje, y mediadamente todo él, carecería de sentido sin esa referencia al mundo sensible, quedaría vacío, sería sin más incomprensible. El lenguaje no es autosuciente sino que remite primariamente a la realidad sensible vivida, que si no se ha experimentado, no se comprende de qué se está hablando o muy vagamente y por analogía a lo experimentado. Él es inteligible en su referencia al mundo, tanto natural como humano. Por ejemplo, sin la sensibilidad y la acción real sensible no sabríamos qué significa frío o calor, amargo-dulce-salado-ácido, tener hambre o dolor, correr, saborear la comida, los olores. Podemos decir: huele a lavanda, pero no tendremos ni idea qué significa eso si no la hemos olido. Pero ¿de qué objeto sensible podríamos hablar y entender lo que se dice sin esa conciencia sensible? Borraríamos así gran parte del diccionario, y de paso la otra, pues se apoya analógica o metafóricamente en la anterior. Pues lo mismo ocurre con la sexualidad, la paternidad, ocupar un puesto en la sociedad, escribir un libro, hacer turismo, contemplar una obra de arte, o una puesta de sol, etc. La sensibilidad y la acción real sensible son fuentes originarias e inagotable de comprensión de nuestro ser-en-el-mundo y de nuestro ser-con-los-otros, aunque no suficiente, pues la conciencia reflexiva precisa también del lenguaje para entender claramente lo que está viendo o experimentando, y si aún no hemos creado el concepto, entonces diremos que no sabemos muy bien qué está sucediendo, y buscaremos las palabras que lo puedan interpretar, aunque no siempre se logra y entonces se suele decir: no tengo palabras para eso. El lenguaje está también presente, pero no sustituyendo lo sensible, sino elaborándolo para la conciencia, interpretándolo para su orientación en la realidad. En nuestra comprensión hay elementos lingüísticos y no lingüísticos, como hay también elementos conscientes e inconscientes, mal llamados “inconsciente”, porque son también

59 Hegel, FG, W 3, 91.

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conscientes, aunque no llegan a la conciencia reflexiva o propiamente lingüística. El lenguaje sólo adquiere significado dentro de la vida concreta de la comunidad y partiendo de ese contexto60, si bien es capaz de ir más allá pues tiende a señalar la universalidad, y situar incluso a la propia comunidad de la que parte. Sin la vida concreta, quizás podría entenderse la estrutura fonética y gramatical del lenguaje, su materialidad, pero se carecería de la semántica y de la pragmática.

Entre el lenguaje y la experiencia sensible se daría la complementariedad de lo inmediato y lo mediatizado. Disolviendo la certeza sensible en el lenguaje, Hegel quiere mostrar, al menos también, que la certeza sensible no es para la conciencia algo absolutamente inmediato, sino que se encuentra mediatizado por el lenguaje y disuelta en él toda su verdad. Pienso que la experiencia de inmediatez que la conciencia sensible tiene del mundo no sólo posee certeza en ella, sino también verdad aunque no absoluta, y esa verdad debería ser evaluada en un método dialéctico como el de Hegel, en el que todo momento tiene su verdad aunque limitada. Más propiamente hegeliano hubiera sido valorar la especificidad de la experiencia sensible, para después ciertamente mostrar sus límites, y no dejarla sólo como lo inesencial. Según la propuesta de Hegel, todas las etapas en el proceso de la realidad o del Absoluto son necesarias, de manera que la verdad está en la unión y mantenimiento sintético de sus respectivas verdades y realidades limitadas. «Lo verdadero [sin límites] es el todo, nos dice el famoso dictum del Prólogo a la Fenomenología. El todo sin embargo sólo es el ser (Wesen) que se completa a sí mismo mediante su propio desarrollo»61. La verdad o saber absoluto no es sólo el resultado, sino también el camino y sus etapas, de modo que si éstas se pierden y nos quedamos únicamente con la última figura, con el mero concepto filosófico tautológico (“el todo es el todo”), volveremos a caer en la inmediatez abstracta y vacía. «Cada punto de vista (Ansicht) es necesario, pero individualmente [aisladamente] es unilateral»62. La cuestión que no ha quedado respondida es entonces qué elemento verdadero incorpora al todo esa experiencia sensible de la conciencia en su especificidad.

60 En el diccionario Collins inglés-español se anuncia como conteniendo «Artículos especiales sobre costumbres, tradiciones e instituciones de los países de habla inglesa». Sólo en el contexto de la vida cotidiana se puede entender el lenguaje, en el vivir y experimentar esa realidad sensible, natural e institucional. 61 W 3, 24. 62 E § 269 Z; W IX, 84.

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La experiencia sensible se le aparece a la conciencia reflexiva en su primer surgir como inmediata apertura a la realidad del mundo. Será la única inmediatez que perdure en todo su desarrollo, tanto en el miedo a la muerte del siervo, en la felicidad de Espíritu práctico, en el amor de la familia, en los colores y sonidos del arte. Todo lo demás, toda la cultura producida por el lenguaje, serán mediaciones de la reflexión, de la interpretación y de la organización del mundo humano. Todo ello elabora la inmediatez, pero no la eliminan. Esa inmediatez de lo sensible para la conciencia reflexiva tiene ciertamente su pasado, hunde sus raíces en la sensibilidad animal y hegelianamente también en el alma de la Antropología, que tampoco carecen de reglas de comprensión, de modo que los animales saben igualmente orientarse en el mundo. Pero la aparición del lenguaje, en el cual se objetiva la regla y se comprende como tal regla, en su modo de ser lógico y universal, todo se modifica. La inmediatez es expresa y reflexivamente contrapuesta a la universalidad, y es comprendida por primera vez como tal inmediatez gracias a esa contraposición. Por ello se convierte en la conciencia reflexiva en una inmediatez mediatizada en virtud de esa contraposición expresada. Esa es la tensión propia de la conciencia sensible reflexiva, difícil de mantener, pues la reflexión sobre ella tiende a bascular hacia un extremo u otro, o hacia intermedios que no respectan la especificidad de los dos elementos que aquí estamos considerando. Sólo porque hay inmediatez, la mediación del lenguaje es posible, y a la inversa, sólo a través de la mediación del lenguaje, la inmediatez sensible aparece como inmediatez objetivada, reflexivamente comprendida por esa conciencia, y no solo sentida. Esa sensibilidad está mediatizada por toda la trama del mundo, pues no de otro modo vemos ese árbol o aquella casa, a saber, dentro de la interpretación global que hacemos del mundo objetivo. Pero ese momento de inmediatez es también verdadero y necesario en el conocimiento objetivo del mundo e irremplazable por cualquier otro, incluido el lenguaje. Son actos diferentes del Espíritu enlazados entre sí, de manera que no se daría el uno sin el otro. Hegel quiere disolver toda inmediatez en un proceso lineal dialéctico que se cerraría en un círculo. Pero podríamos ensayar una dialéctica que acepte la inmediatez mediatizada, una dialéctica más plural, no tan lineal, y que ligue todos los elementos sin diluir su verdad.

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VII

MUNDO E LINGUAGEM. SOBRE A CERTEZA SENSÍVEL NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO DE HEGEL

Jacinto Rivera de Rosales*

Tradução: Luciano Carlos Utteich** 7.1 A CERTEZA SENSÍVEL NA ESTRUTURA DA FENOMENOLOGIA

A Fenomenologia do Espírito quer ser a escada de acesso que tem de servir à consciência, ou seja, ao homem consciente, para que se alce até o ponto de vista que o filósofo tem do que é real ou realidade. Há muitas perspectivas sobre esse assunto, e Hegel as quer colocar em ordem genética, desde a mais primitiva, passando por pontos de vista intermédios, até que, mostrando as limitações de cada uma delas, o leitor compreenda a verdade do saber absoluto desde o qual o filósofo quer desenvolver sua Ciência da Lógica e suas Filosofia da Natureza e do Espírito, ou seja, sua explicação do mundo.

Mas esta escada não pode ser abandonada após ter alcançado o horizonte desde o qual se tem de abordar a compreensão da realidade, como pensava Wittgenstein, que pedia para tirar a escada de seu Tractactus lógico-filosófico (6.54) tão logo o tivesse escalado. Cada uma dessas figuras do Espírito abriga sua verdade, que é, além disso, necessária como elementos de um processo dialético, pois a verdade não se alcança em uma só proposição, em um simples juízo, senão que requer um largo relato. Toda a realidade, tanto a da natureza como a do Espírito, é um processo de realização da Ideia, ou seja, um processo de conhecimento através de

* Catedrático de Universidad, área de filosofía, en la Universidad Nacional de Educación a Distancia - UNED, Madrid; E-mail: [email protected]. ** Pós-doutor em Filosofia pela Universität Duisburg-Essen (Alemanha). É atualmente Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutor pela PUCRS (2008), com pesquisa na área da Filosofia Transcendental kantiana e do Idealismo Alemão (fichte, schelling e hegel). participa do grupo de pesquisa filosofia sistemática: dialética e filosofia do direito; com linha de atuação ainda na pesquisa dialética e filosofia sistemática e dialética e sistema (PUCRS), e dos grupos de pesquisa história da filosofia e filosofia, ciência e natureza na alemanha do séc.xix: subjetividade e natureza na unioeste.

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diversas etapas, que vai desde o momento da maior exteriorização e inconsciência que é o espaço-tempo-matéria, o primeiro da Natureza, até o de maior interioridade e saber que se dá no Espírito absoluto, ou seja, na arte, na religião e sobretudo na filosofia, e de modo concreto na filosofia de Hegel, onde tudo encontraria seu lugar, ou seja, seu sentido, sua realidade e seu limite. A Fenomenologia do Espírito se apresenta como uma espécie de “romance de formação” (Bildungsroman) da consciência através das diversas figuras do espírito, já reflexivo.

O relato começa com a certeza sensível: Die sinnliche Gewiβheit oder das Diese und das Meinen. Em seus três primeiros capítulos a Fenomenologia aborda o que poderíamos chamar a captação teórica e solitária da realidade por parte da consciência reflexiva mediante a sensibilidade, a percepção e o entendimento1. Aqui a reflexão e exposição que faz o filósofo quer obrigar à consciência, e com ela ao leitor, a alçar-se desde um empirismo realista até o Idealismo teórico, onde ela se compreende a si mesma como configurando e sendo também o outro, o mundo. É então quando chegamos à autoconsciência desejante, no capítulo IV, e com isso começa o que poderíamos denominar a parte prática e intersubjetiva, a experiência da liberdade, cuja primeira figura relevante é a luta do senhor e do servo pelo reconhecimento como seres livres.

Nesta conferência vamos nos situar no início, porque aí se realizam movimentos importantes para esta partida. Pois, em definitivo, o que a consciência tem de descobrir nestes três momentos iniciais não é só a liberdade dos indivíduos, senão antes mais a do Espírito, que nesses primeiros passos tem que se liberar de acreditar que é passivo ao instante de conhecer teoricamente o mundo, e esse é o movimento que se leva a cabo no Idealismo alemão. Para que o Espírito seja inteiramente livre, isto é, chegue a ser absoluto (na Fenomenologia ao saber absoluto), tem de captar que o mundo não é senão uma objetivação de si mesmo, um momento de seu desenvolvimento.

Antes de aparecer o mundo da liberdade humana, Hegel tem que dar umas marteladas (para falar em termos nietzschianos) na solidez do mundo a fim de romper sua dura casca e mostrar que no fundo ou no interior dessa pretendida realidade em si habitava a criatividade do

1 Utiliza-se aqui o termo “teórico” no sentido kantiano, como a captação objetiva do mundo dos objetos ou teoria do conhecimento objetivo do mundo, e se contrapõe em Kant a “pragmático” e “prático”, que é todo o relativo ao desejo e à liberdade. O mesmo Hegel faz essa distinção na seção “Psicologia” da Enciclopédia, abordando primeiro “O espírito teórico” e depois “O espírito prático”.

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Espírito. O primeiro golpe vai dirigido ao mundo sensível, uma crítica que tem certa similaridade com a ideia racionalista de que esta realidade sensível não é senão a inteligível, mas confusamente captada. O segundo golpe vai dirigido à substância ou essência (Wesen) para dissolvê-la em forças, como já Leibniz havia tentado contra Descartes e Newton. O terceiro golpe se propõe ver nesse jogo de forças as forças mesmas da inteligência, o que Leibniz havia tentado com suas mônadas ao concebê-las como forças representativas, Berkeley pensando que o mundo não era senão representações de seres inteligentes, mas sobretudo Schelling, que em sua filosofia da natureza a constrói usando as mesmas forças com as quais Fichte havia mostrado a gênese do Eu.2

Então a consciência chega à autoconsciência, ou seja, o Espírito chega a ser consciente de si mesmo e de sua potência perante o mundo objetivo, conquista sua liberdade frente a ele, compreende que este não lhe é alheio, e aí se abre a outro processo, desta vez bastante doloroso, o caminho que vai desde o desejo individual até a comunidade, e que o leva a compreender como um nós, isto é, como um Espírito inclusive histórico. A consciência reflexiva se vai abrindo para espaços de compreensão mais amplos quando experimenta a estreiteza de cada uma de suas figuras e as inconsistências nas quais cai quando pretende absolutizá-las ou tomá-las como a última palavra sobre o real. Ao final essa mesma liberdade humana se encontra, através da religião e da filosofia, transbordada por uma realidade absoluta, e o Espírito objetivo passa a se saber Espírito absoluto ou Deus em nós. Assim, pois, a experiência que a consciência realiza no processo da Fenomenologia do Espírito poderia ser resumida em três passos: (1) a superação (Aufhebung) da realidade em si do mundo material para dar

2 “O resultado da comparação estabelecida até agora é que os três momentos na construção da matéria realmente se correspondem com os três atos da inteligência. Portanto, se esses três momentos da natureza são propriamente três momentos na história da autoconsciência, então é bastante manifesto que realmente todas as forças do universo em última instância retrocedem a forças representativas; uma proposição sobre a qual se baseia o idealismo leibniziano, que devidamente entendido não é de fato distinto do transcendental. Quando Leibniz chama matéria ao estado de sono das mônadas, ou Hemsterhuis ao espírito derramado, reside nestas expressões um sentido que se pode entender com toda facilidade a partir dos princípios aqui expostos. De fato, a matéria não é outra coisa que o espírito intuído no equilíbrio de suas atividades. Não se necessita mostrar detalhadamente como por esta supressão de todo dualismo ou de toda oposição real entre espírito e matéria, ao ser esta mesma somente espírito apagado ou, inversamente, este a matéria vista somente em devir, se põe termo a uma quantidade de investigações desorientadas sobre a relação entre ambos” (Schelling, Sistema del Idealismo transcendental, SW III, 453; trad. Anthropos, p. 255).

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passagem à consciência-autoconsciência, (2) a superação da autoconsciência individual para abri-la a nós, ao Espírito, e (3) a superação do nós para ver nele o processo e a realização do Absoluto. A experiência da liberdade tem esses três momentos, se bem que a liberdade parece se dizer propriamente do segundo. O primeiro a prepara, o segundo a desenvolve, e o terceiro oferece o seu fundamento.

Aqui vamos nos situar ao início de tudo, na figura do Espírito que Hegel denomina “A certeza sensível” (die sinnliche Gewiβheit) na Fenomenologia do Espírito e “A certeza sensível” (das sinnliche Bewuβtsein) na Enciclopédia (§ 418). 7.2 A SENSIBILIDADE NA ENCICLOPÉDIA

A certeza ou consciência sensível é o começo da consciência reflexiva. Mas se a colocamos dentro do sistema completo hegeliano, o que Hegel expõe em sua Enciclopédia, ela é também o resultado de um processo anterior, que nos faz ver de onde vem, como surge, o que é, qual problema da etapa anterior solucionou esse passo do Espírito que lhe deu lugar, ou seja, o que tem que solucionar, mas também finalmente quais serão seus limites, o problema que tem de ser resolvido na etapa posterior. Esse é método hegeliano, e portanto há que saber em que momento do sistema nos encontramos, pois isso nos explica o sentido do mesmo.

O tema é o papel que joga a sensibilidade no conhecimento objetivo da realidade do mundo. Pois bem, a sensibilidade como elemento teórico aparece na Enciclopédia nos três momentos do Espírito subjetivo: na Antropologia, na Fenomenologia e na Psicologia. Com anterioridade a esse Espírito subjetivo encontramos a sensação e sentimento dos animais como interioridade subjetiva3, o qual se expressa em sua voz (Stimme)4, não ainda em palavra (humana). Neles aparecem já os cinco sentidos5. Mas aqui a Ideia está, todavia, fundida (versenkt) na natureza e não consciente de si de maneira reflexiva; só se alça ao sentimento (Gefühl), ao sentimento de

3 “A sensação (Empfindung), o encontrarse-em-si-a-si-mesmo (Sich-selbst-in-sich-Finden) é o supremo que se acha pela primeira vez aqui [na vida animal]; isto é permanecer uno consigo mesmo na determinidade, ser livre em (bei) si mesmo na determinidade. A planta não se encontra em si, porque seus membros são frente a ela indivíduos independentes” (E § 388 Z, W IV, 342). 4 E § 351. “A voz é um alto privilégio do animal, que pode parecer maravilhoso; é a expressão da sensação e do sentimento de si” (E § 351 Z, W IX, 433). “A voz é o mais próximo ao pensar” (434). 5 E § 358.

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si, como já havia dito Leibniz: “A sensação/sensibilidade (Empfindung), o encontrar-se-em-si-a-si-mesmo (Sich-selbst-im-sich-Finden) é o supremo que há aqui pela primeira vez. Pois a planta não se encontra em si, porque seus membros são indivíduos independentes entre si”6. Ainda estamos na unidade Natureza-Ideia, mas será essa sensibilidade o veículo da separação e do nascimento do Espírito. Graças a esse sentir-se a si do animal, o Espírito surge da natureza, separando-se da mesma como indivíduo, quando este chega a captar-se como tal, distinto da espécie, porque esta permanece enquanto que ele como indivíduo está exposto à dor e à morte. 7.2.1 A ALMA

É frente à morte do animal-indivíduo o modo em que a Ideia ou atividade ideal que constrói a natureza dá o salto para converter-se em Espírito. O Espírito surge saindo da natureza, não da natura naturata, mas antes da natura naturans. Primeiro se encontra metido em sua natureza, em sua corporalidade, como Espírito natural, como alma. É o que narra a Antropologia. Enquanto alma, o espírito se sente a si mesmo, é já sujeito, mas não é todavia propriamente Espírito7, pois não chega ao conhecimento de si (Selbsterkenntnis), não alcança a consciência nem a linguagem, é ainda como um sonho do espírito8, no sentido de que está ainda no sentimento (Gefühl), na unidade do pensar e do ser, obscura e inconsciente de si, e não propriamente na reflexão, que é onde se rompe essa unidade e se separam alma e matéria, o eu subjetivo de seu corpo9. É em virtude dessa reflexão separadora que aparece propriamente a consciência e se inicia o périplo que nos narra a Fenomenologia do Espírito, que seria como a parte do iceberg que surge da água e se vê a si mesma como si mesma. Por isso, a consciência ignora inteiramente seu passado, suas origens, e projeta toda sua luz para o mundo presente que se abre a ela pela primeira vez. É graças à experiência de ascensão que a Fenomenologia procura que a consciência pode recuperar seu passado e ter de si um conhecimento apropriado.

O primeiro passo do Espírito é a alma da Antropologia. Em seu momento do ser-para-si, ela desperta e encontra em si mesma (sie findet in sich selbst) as determinações ou conteúdos de sua natureza espiritualizada

6 E § 337 Z. 7 E § 338. 8 E § 389. 9 E § 389 Z.

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na forma de sensação (Empfindung)10, que compartilha com os animais, e cujo conteúdo são as qualidades sensíveis11, o agradável e o desagradável, os sentimentos e afetos corporais. A sensação a encontra dada, pois sua produção a antecede, e ela só vê seu efeito, um produto dado. “A sensação é a forma do surdo tecer do Espírito em sua individualidade inconsciente e carente de entendimento. Na sensação toda determinação é ainda imediata e posta de maneira não desenvolvida tanto no que respeita a seu conteúdo como na oposição de algo objetivo com respeito ao sujeito”12. Seu saber é obscuro e confuso. Dessa maneira, a semelhança dos racionalistas, Hegel compreende a sensibilidade como uma primeira etapa não desenvolvida do conceito: a sensação é algo isolado, acidental, unilateralmente subjetivo, é “a pior forma do espiritual”13, a mais baixa. Isto aparecerá também na Fenomenologia e na Psicologia, e se opõe diretamente à distinção transcendental, de origem e conteúdo, que Kant estabelece entre sensibilidade e entendimento14. Hegel elimina no processo dialético toda contraposição que pretenda ser definitiva e tenta mostrar os dois elementos contrapostos como sendo o mesmo, ou duas caras de uma mesma moeda. O contrário, o ficar-se em uma dualidade que não se resolveu, seria para ele uma filosofia da reflexão, uma lógica do entendimento, que para na dualidade e não chega a compreender o Absoluto mediante a lógica da razão dialética e especulativa. 7.2.2 A CONSCIÊNCIA

A alma, encerrada em seu sentimento, se comporta e se compreende como indivíduo15, como aquele animal que compreendeu sua morte. Assim também, como individualidade, começa a consciência ou sujeito consciente, mas ao longo do processo terá de se abrir à comunidade, a qual, como veremos, se encontra em realidade presente desde o início por meio da linguagem, ainda que Hegel não reflita sobre esse assunto em seu caminho genético.

10 E § 399. 11 “O conteúdo particular do sensível, por exemplo, o odor, o sabor, a cor, etc., cai dentro da sensação, como temos visto no § 401” (E § 418 Z, W 10, 207). 12 E § 400; W X, 97. 13 E § 400 Z; W X, 100. 14 Kant, Crítica da razão pura, A 43-46, B 60-63. 15 Hegel esquece que o sentimento é também consciência de pertencer a um grupo, presente assim mesmo nos animais sociais, de maneira que não só a razão é comunitária. A comunidade é consubstancial à vida, pois se propaga, e mais na propagação sexuada.

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A consciência é a auto-aparição do Espírito por meio de uma reflexão, que parte do sentimento de si mesmo da alma, e que se desperta na identidade de si mesma como um Eu16. O Espírito se eleva à identidade abstrata do Eu lançando fora de si (negatividade) o conteúdo, que toma a forma de objeto independente e, nesse sentido, exterior17. Essa reflexão rompe a unidade pensar-natureza que reinava ainda na alma da Antropologia e se inicia a dualidade básica da consciência reflexiva. Encontramos a separação própria de um segundo momento no processo dialético, pois a Fenomenologia trata do segundo momento do Espírito subjetivo. O objeto aparece como um ser (Sein) ou ente (Seiende) independente, como um outro autônomo (selbständiges Anderes), individual (Einzelnes) e imediato18. A experiência se centra, pois, no ser outro do objeto frente ao sujeito, posto que cobra independência. Aí começa o saber objetivo ou saber propriamente dito. Esta separação sujeito-objeto é necessária na evolução e tomada de consciência do Espírito, já que a consciência requer também distinção: se eu conheço isto como mesa é também porque sei que não é o chão, nem a janela, nem a parede, nem meu corpo, etc. Essa separação era, portanto, a solução para a qual se encaminhava a alma encerrada em seu corpo e sem mais horizonte, mas será ao mesmo tempo o problema que tem que se resolver ao longo da Fenomenologia, pois toda dualidade tem de ser superada no processo para a integração de todos os elementos no saber absoluto, o que engloba todas as etapas ou momentos. Esse é o programa e o critério de realidade: nada subsiste isolado do outro, tudo forma parte de uma conexão global. Se estacionamos em uma dualidade que não se resolve, como na distinção entre sensibilidade e conceito, isso significaria que não teríamos captado sua conexão dialética, que estamos no nível da reflexão abstrata do entendimento. Mas ao início da Fenomenologia ainda predomina a unidade imediata consciência-mundo na sensibilidade, que é o tema desta conferência.

16 E § 446 Z. Gefühl salientou com a alma, “wo dieselbe, aus ihrem in sich verschlossenen Naturleben erwachend die Inhaltsbestimmungen ihrer schlafenden Natur in sich selber findet und eben dadurch empfindend ist, durch Aufhebung der Beschränktheit der Empfindung, aber zum Gefühl ihres Selbstes, ihrer Totalität gelangt und endlich, sich als Ich erfassend, zum Bewuβtsein erwacht” (E § 446 Z, W 10, 246). 17 “Dieser Unterschied gehört erst dem Bewuβtsein an, tritt erst dann hervor, wenn die Seele zu dem abstrakten Gedanken ihres Ichs, ihres unendliche Fürsichseins gekommen ist. Vom diesem Unterschiede haben wir daher erst in der Phänomenologie zu sprechen” (E § 400 Z, W 10, 100). 18 Enciclopédia § 418 Z, W 10, 207.

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“O Eu é a relação infinita do Espírito consigo mesmo, mas enquanto subjetivo, enquanto certeza de si mesmo”19, pois só é saber de si e sabendo de si. Mas ao haver lançado seu conteúdo fora de si, o Eu é aqui meramente individual, uma abstrata e forma identidade, que, mediante a experiência de seus limites, terá de ir integrando para si o mundo e os outros eus, com os quais está relacionado necessariamente. Somente deste modo conquista sua essência e sua liberdade ao ir mais além dos contornos iniciais. Nesse movimento de abertura, o Eu tem de se dar conta de que ele é “a luz que se manifesta a si mesma, mas também ao outro”20. Somente deste modo superará a contradição na qual está metido o estreito ponto de vista da consciência teórica, que é a contradição básica do conhecimento objetivo, segundo a qual o objeto está por um lado na consciência como conhecido, e por outro lado aparece como dado, externo e independente dela, sem sua intervenção. O Eu, em toda esta etapa da consciência, ou seja, dos três primeiros capítulos da Fenomenologia, tem de superar a ideia da coisa em si kantiana e do Não-Eu fichtiano, e compreender que o objeto em si e o espírito são idênticos21, um passo que se deu propriamente na Filosofia da Natureza de Schelling a partir de 1797. Isto se leva a cabo “graças à força do conceito, que atua tanto no sujeito como no objeto”22, do qual o Eu abstrato da mera consciência ainda não tem conhecimento.

Esse é o primeiro argumento também na seção da Fenomenologia da Enciclopédia, a separação abstrata de sujeito e objeto, que seria, no entanto, um primeiro momento necessário para a constituição da consciência ou Espírito reflexivo; todavia, não se analisa aqui a exterioridade dos objetos entre si em virtude do espaço e do tempo, pois isso será assunto da etapa seguinte, da Psicologia23. O segundo argumento que aqui nos interessa se fixa no conteúdo da consciência sensível, a primeira figura da Fenomenologia, nosso tema. Esses conteúdos são os

19 E § 413, W 10, 199. 20 E § 413, W 10, 199. 21 E § 414 Z, W 10, 201-2; § 415, W 10, 202-203. 22 E § 417 Z, W 10, 204. 23 E § 418, W 10, 206. É difícil compreender como poderá ser o objeto algo exterior à consciência sem o espaço e o tempo, e mais ainda como a consciência em seu terceiro momento poderá captar as leis da natureza sem o espaço e o tempo. Possivelmente a sensibilidade só possa se entender se unimos seus três momentos, como estou fazendo aqui, o da Antropologia, o da Fenomenologia e o da Psicologia. Isso mostraria uma certa artificialidade no empenho hegeliano de mostrar um processo linear, sobretudo no que respeito à divisão entre a Fenomenologia e a Psicologia.

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que a alma havia encontrado em si e que a (nova) reflexão separa-os de si e concede em primeiro lugar a determinação de ser exterior à consciência. Ora, à consciência sensível seu objeto se “aparece como o mais rico em conteúdo, mas e o mais pobre em pensamento”24. Enquanto se acrescenta o pensamento e é pensada como coisa com muitas propriedades, predicados, relações, etc., já passou ao segundo momento da consciência, o da consciência perceptiva (Wahrnehmen). É, portanto, um momento muito específico da consciência. 7.2.3 A INTUIÇÃO SENSÍVEL

Enquanto que a consciência, cujo desenvolvimento a Fenomenologia descreve, está voltada para a exterioridade e ocupada em integrar o exterior a si mesma, o Espírito estudado na Psicologia tem em conta desde essa exterioridade para seu interior25 e ao processo de interiorização (como algo seu) que aí tem lugar desde a apresentação do sensível objetivo até a compreensão de que não se opõe nada natural ou exterior, e que somente tem que vê-las com suas próprias determinações, na unidade do objetivo e do subjetivo, e sabe “que seu objeto é o conceito e o conceito é objetivo”26. Então se terá convertido em razão, em um Espírito livre.

De novo o processo começa com a imediatez do Espírito teórico, e concretamente com a intuição sensível, e se dirige para superar tal imediatez, pois o verdadeiro para Hegel é o todo, e este é o mais mediato ou mediatizado, o que integra todos os elementos e suas mediações. A intuição sensível considera as determinações como estando efetivamente no objeto, mas ao mesmo tempo postas pelo Espírito, e é a superação desta contradição no saber o estudado na Psicologia. São etapas de sua liberação, pois desmontando a ilusão (Schein) de que o objeto é dado ao saber desde fora, ele se mostra como o que é em si, como Espírito que absolutamente se autodetermina. Mas esse não é já o mero Espírito subjetivo do homem individual e não cai dentro do âmbito do saber meramente subjetivo do indivíduo, mas sim do Espírito absoluto, do saber

24 E § 418; W X, 206. 25 E § 443 “Wie das Bewuβtsein zu seinem Gegenstande die vorhergehende Stufe, die natürliche Seele hat (§ 413), so hat oder macht vielmehr der Geist das Bewuβtseinzu seinem Gegenstande; d.i. indem dieses nur an sich die Identität des Ich mit seinem Anderen ist (§ 415), so setztsie der Geist für sich, daβ nur er sie wisse, diese konkrete Einheit.” (E § 443, W 10, 236) 26 E § 440 Z; W 10, 230.

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absoluto ao qual chega ao final da Fenomenologia do Espírito, situado no horizonte da filosofia (última etapa do Espírito absoluto), enquanto que na Psicologia o Espírito permanece ainda a um nível subjetivo, para o qual continua havendo um conteúdo do objeto fora da unidade com o Espírito, visto que a forma na que este elabora o objeto ou mundo não o ultrapassa inteiramente27.

A atividade do Espírito subjetivo teórico ou inteligência é o conhecer (Erkennen), que é um saber com necessidade quando se alça até a razão. É aqui propriamente onde Hegel reescreve a Crítica da razão pura desde seu próprio sistema. Seu primeiro passo é a intuição, que integra a sensação da alma e o objeto sensível da consciência, mas desta vez acrescentando o espaço e o tempo, graças aos quais os objetos são exteriores entre si.

O primeiro momento da intuição é o Espírito ou Inteligência sentinte (fühlend)28. Esse encontrar-se assim determinada (pelo sentir da alma e dos objetos da consciência); e, portanto, também como individual e subjetiva: “é seu surdo tecer dentro de si, no qual o Espírito é para si de índole material, e tem toda a matéria de seu saber”29 – de novo a ideia central deste artigo de que Hegel considera o sensível como o obscuro tecer do conceito, e nega a diferença transcendental entre eles estabelecida por Kant. Aqui, na Psicologia, o sentimento é a forma que o Espírito se dá a si mesmo como unidade do objetivo e do subjetivo e, no entanto, toma a forma de uma determinada afecção30, isto é, o Espírito ou Inteligência ainda não é consciente de sua atividade e, portanto, ainda que na sensação ou sensibilidade (Empfindung) está toda a razão, a Inteligência não é ainda livre ou Espírito propriamente dito, pois não reconheceu a racionalidade ou o espírito daquilo que recebe, e tem ainda que se liberar da ilusão da exterioridade em si do mundo.

O segundo momento da intuição é o da atenção (Aufmerksamkeit), que também aparecia na KrV como fundamento do sentido interno. Graças a esta autodeterminação da Inteligência as determinações do sentimento são lançadas à exterioridade (negatividade) como entes (Seiende), não só separados da consciência, senão também entre si no

27 E § 444 Z; W 10, 240. 28 E § 446; W 10, 246. No § 447 Z encontramos a expressão “empfindende Intelligenz” (W X, 248). Seria interessante fazer um estudo comparando esta ideia idealista com a tão conhecida ideia realista zubiriana (Xavier Zubiri, 1898-1983) da inteligência sentinte. 29 E § 446; W 10, 246. 30 E § 447.

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espaço e tempo, mas estando ao mesmo tempo no interior da consciência, sendo um conteúdo seu. Só mediante esta dupla atividade do suprimir (Aufheben) e do restaurar ou repor (Wiederherstellen), própria da atenção, se torna possível o conhecimento objetivo, de algo que é ao mesmo tempo subjetivo, para mim, e objetivo, um ser independente, ou seja, unidade e separação.

Graças a essa atenção acontece então o terceiro momento, o da intuição propriamente dita, que consiste na conversão do sentido em um objeto existente fora de nós (momento da consciência), conservando, no entanto, o momento da interioridade (o da alma). O conteúdo é o mesmo, o que muda é sua forma da interioridade por outra da exterioridade, e o objeto se converte em espacial e temporal, o que não ocorria ainda na Fenomenologia da consciência, ainda que sim na Fenomenologia do Espírito.

Isso proporciona à intuição uma totalidade e racionalidade por parte do objeto da qual ainda careceria a consciência da Fenomenologia31. Há que tomar aqui o espaço e o tempo não como simples formas subjetivas, como faz Kant segundo Hegel, pois os objetos são eles mesmos espaciais e temporais (temporais para Kant o espaço e o tempo têm realidade empírica). “No ponto de vista da mera intuição estamos fora de nós, na espacialidade e na temporalidade, as duas formas da exterioridade. A inteligência está aqui fundida na materialidade exterior, feita uma com ela, e não tem outro conteúdo que o objeto intuído. Por isso podemos ser na intuição extremadamente não-livre (unfrei). [...] Por conseguinte, o Espírito põe a intuição como sua, a ultrapassa e a converte em algo interior, se interioriza e se faz presente nela, e com isso se faz livre”32. Esse momento interior segundo o qual o objeto é meu, está já presente na

31 E § 449 Z. Anschauung – Bewuβtsein. Im weitesten Sinne des Wortes könnte man dem sinnlichen Bewuβtsein den Namen der Anschauung geben. Mas somente a intuição chega a uma totalidade, daβ das Bewuβtsein “in unvermittelter, ganz abstrakter Gewiβheit seiner selbst auf die unmittelbare, in mannigfache Seiten auseinanderfallende Einzelheit des Objektes sich bezieht, die Anschauung dagegen ein von der Gewiβheit der Vernunft erfülltes Bewuβtsein ist, ein Vernunftiges, folglich nicht ein in verschiedene Seiten auseinandergerissenes Einzelnes, sondern eine Totalität, eine zusammengehaltene Fülle von Bestimmungen zu sein” (E § 449 Z, W 10, 254). Die Anschauung ist noch nicht erkennendes Wissen, “weil sie als solche nicht zur immanenten Entwicklung der Substanz des Gegenstandes gelangt, sondern sich vielmehr auf das Erfassen” des Äuβerlichen und Zufälligen beschränkt. “Die Anschauung ist daher nur der Beginn des Erkennes”. “In der unmittelbaren Anschauung habe ich zwar die ganze Sache vor mir” (255). O tempo é para Hegel um angeschauter Begriff (FE Jiménez 904). Cfe. o tratamento que faz Heidegger do “aqui”, “aí”, “ali” em Ser e Tempo ,- 26, e do tempo em Hegel no § 82. 32 E § 450; W 10, 256.

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intuição; mas só na etapa posterior, a da representação, é também posta reflexivamente para a consciência, que se dá conta de que o objeto é igualmente uma representação sua, ou seja, que ela é quem tem a intuição. Produz-se então um processo de interiorização que, através da imaginação e da memória, conduz à inteligência para o pensar (conceito, juízo e razão), que desemboca no Espírito subjetivo prático. Por último, a intuição sensível volta a cobrar um papel fundamental na arte e sua beleza33, mas agora não vamos nos deter nisso. 7.3 A CERTEZA SENSÍVEL NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

O sistema de Hegel é circular e genético, duas características que já começaram a ser elaboradas por Fichte e Schelling, como necessárias para a correção e completude de todo sistema, pois a gênese ligaria todos os elementos entre si e a circularidade asseguraria que não teríamos deixado fora nenhum membro necessário na explicação. Hegel leva a circularidade até suas últimas consequências, seguindo nisto grande parte das intuições de Schelling em sua filosofia da identidade, a qual acrescenta à Filosofia da Natureza e ao Espírito um âmbito do pensar puro, que Hegel chamará Lógica, capaz de harmonizar a última etapa do Espírito com o início do mundo. Em virtude de tal circularidade, cada momento da gênese da realidade é ao mesmo tempo o resultado de todo o processo anterior e o início desse mesmo processo para diante. Consequentemente, toda etapa pode ser tomada como princípio e final do sistema34.

E, no entanto, há nele dois inícios privilegiados por Hegel, que em grandes traços poderíamos qualificar por contraste de objetivo e subjetivo. Um é o começo da Lógica com a categoria de “ser”, pensada como a mais abstrata, imediata (unmittelbar) e vazia das categorias, e isso é o que Hegel faz em sua Enciclopédia. O outro início, que nos ocupa aqui, é o da consciência em sua certeza sensível, por onde começa a Fenomenologia do Espírito, como início subjetivo e pedagógico da consciência reflexiva,

33 “A figura deste saber enquanto imediata (o momento da finitude da arte) é, por um lado, um cair em uma obra de uma existência comum exterior, no sujeito que a produz e a intui e a venera; por outro lado, é a intuição e representação concreta do Espírito absoluto em si enquanto ideal” (E § 556; W 10, 367). “Se se julgam objetos somente mediante conceitos perde-se toda representação da beleza” (KU, A. V, 215). 34 Esta ideia a desenvolvi no artigo “Del ser ao ente. El inicio de la Lógica hegeliana”, publicado no livro La herida del concepto, Servicio de publicaciones de la UNAM, Madrid, 2017, pp. 289-324.

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aquela que é capaz de se elevar à reflexão filosófica. Kant assinalava a síntese como o primeiro ato da consciência35, e analisava os elementos que a tornavam possível na Doutrina transcendental dos elementos, um dos quais era certamente a espontaneidade ou atividade da Apercepção e suas formas a priori, e outro residia na passividade de suas sensações ou afecções. Mas todos esses elementos se dão ao mesmo tempo, na síntese, de modo que ficavam compreendidos arquitetonicamente.

Foi Fichte, em sua Fundamentação de toda Doutrina da Ciência, que mudou de perspectiva para traçar o que denominava a “história pragmática do espírito humano”36. Segundo ele, o início dessa história teria de ser posto no sentimento (Gefühl) e, concretamente, no sentimento de limitação, que era por sua vez captado como tal mediante o sentimento de querer ir mais além ou sentimento do anelo (Sehnsucht), pois ambos são complementários e forma uma unidade37. Esse sentimento duplo é o início de nossa compreensão básica de toda realidade, pois nele se manifesta a realidade do Eu e do Não-Eu. A partir desse sentimento, o Eu se dirige a objetivar o mundo e é então quando os sentimentos se transformam em sensações ou consciência objetiva. Daí, mediante sucessivos atos de reflexão, o Eu se alçaria até conquistar a visão que o filósofo tinha já dele e da realidade, fechando-se o círculo. Nesse retorno filosófico sobre si, descobre que no início, como primeiro princípio, tinha que colocar uma autoposição do Eu ou intuição intelectual que encontra seu limite real em um Não-Eu que põe ao Eu em contradição consigo mesmo e, portanto, em ação infinita para remontar e resolver essa contradição. Ainda que Fichte insiste em que todos os elementos do sistema se dão ao mesmo tempo (in einem Schlag), já havia posto sobre a cena filosófica uma “história”, uma série de atos geneticamente ligados entre si, diferentemente do método arquitetônico kantiano38. Esse é o processo que Schelling igualmente recolhe em seu Sistema do Idealismo transcendental (1800), mas integrando aí o novo horizonte conquistado em seus estudos sobre Filosofia da natureza, isto é, implicando nesse processo também à natureza como passado transcendental do Eu fichtiano. Já estamos no horizonte do pensamento do en kai pan no qual se moverá Hegel.

35 KrV § 15. 36 Fichte, GWL GA I/2, 365. 37 Cfe. meu artigo “La relevância ontológica del sentimento en Fichte”, publicado no livro Fichte, 200 años después, Editorial Complutense, Madrid, 1996, pp. 45-73. 38 Cfe. meu artigo “The Methodical Singularity of the First Fichte”, no livro Fichte and Transcendental Philosophy, Palgrave Maxmillan, New York, 2015, pp. 211-228.

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A Fenomenologia do Espírito representa o início subjetivo do sistema, a porta de entrada para a consciência comum, pois quer nos mostrar o caminho que conduziria à consciência ou Eu ou leitor desde seu elemento mais primário e imediato, a sensibilidade, até o ponto de vista verdadeiro do filósofo ou saber absoluto. Trata-se aqui do Eu já reflexivo e, portanto, de uma sensibilidade que se inicia já nesse nível, pois só a consciência reflexiva pode chegar a colocar-se a questão filosófica sobre o que é a realidade, acerca do que é o verdadeiro e o real. A primeira aparição do sentimento e da sensação estava situada, como vimos, em um estágio anterior, pré-reflexivo ou pré-consciente, colocada em níveis anteriores, nos animais ao final da Filosofia da Natureza, e na alma fundida em seu corpo e analisada na Antropologia. Mas a consciência propriamente dita inicia seu andamento na Fenomenologia, se distancia de seu corpo, e essa distância é e se produz pela reflexão e pela linguagem. Em virtude dessa distância reflexiva, a consciência começa pondo-se a si mesma como um Eu e enfrentando-se com os objetos sensíveis. Esse é seu primeiro momento de imediatez, que terá de conduzir, mediante dolorosas experiências dos limites de cada uma das figuras intermediárias do Espírito, até a liberdade absoluta do saber de si que o Espírito teria alcançado na filosofia hegeliana.

A certeza sensível é apresentada como o início do Espírito propriamente dito, pois a alma tratada na Antropologia havia ficado a meio caminho fechada em um corpo. Esse início marca a consciência reflexiva, a que desde seu saber se pergunta pela verdade, uma questão que a conduzirá finalmente ao saber absoluto segundo Hegel. Ela é, como no caso da categoria “ser” (começo objetivo do sistema) para a Lógica, o mais pobre de pensamento e o mais imediato a essa consciência reflexiva, seu saber imediato sobre o imediato (unmittelbares Wissen des Unmittelbaren). De fato, na certeza ou consciência sensível já se dá tudo, pois é esse todo o que a torna possível, mas não ainda para a consciência mesma, de modo que esta terá que o ir descobrindo por si mesma em um longo processo de aberturas encadeadas que a conduzem a seu próprio fundamento. O processo começa com o mais imediato para essa consciência, ainda que se encontra propriamente mediatizado por todo o processo da natureza e da alma, mas ela não o vê; ao ser este seu primeiro enfrentamento ao mundo (primeiro momento de reflexão), podemos dizer que o objeto somente percebe o resultado. Desconhece sua origem e a de seu conteúdo e exterioridade, não tem notícia do processo genético da natureza a partir da Ideia que lhe deu o ser, nem de sua própria ação de lançá-lo fora de si

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mediante a reflexão, pois esta ação é a que a produziu como consciência e se encontra em consequência às suas costas (para ela começa o mundo; é o começo subjetivo do sistema); é uma consciência meramente receptiva e sem compreensão (aufnehmend ohne Begreifen). Por isso requerirá um longo caminho de reflexões, até a filosofia última, para reconhecê-lo e pô-lo na consciência ou Espírito (absoluto). Portanto, o objeto aparecerá aqui ao Espírito como um ente (Seiendes) independente (selbständig), exterior e fazendo frente a ela, estando aí sem sua ação, diante da qual a consciência é meramente passiva, receptora, isto é, meramente sensível e não livre. Logo terá de ir descobrindo que não é tão passiva, e que, segundo Hegel, sua ação constitui essencialmente a verdade do que ali se revela.

Já Kant havia preparado o terreno mostrando formas a priori da sensibilidade, isto é, procedentes da subjetividade na própria sensibilidade, e concretamente o espaço e o tempo, que possibilitavam a recepção sensível da multiplicidade do mundo e sua ordenação objetiva. Esse era um pilar básico de seu idealismo transcendental. Este movimento idealista o primeiro Fichte aprofundou mostrando que as afecções sensíveis e todo o âmbito teórico são também elaborações da atividade ideal do Eu sobre a base dos sentimentos. E finalmente Schelling, que salta desde um Eu humano finito para um Eu que abarca tudo, também a natureza, e coloca a ação da atividade ideal subjetiva ainda mais atrás, pois todo o processo que gera e dá lugar ao mundo não é senão a elaboração da atividade real mediante a ideal, a qual se vai potenciando sucessivamente até dar lugar ao homem, ao Eu fichtiano. O processo da Fenomenologia se cifra, portanto, em desmontar a pretendida realidade em si do objeto, dissolvendo tanto a coisa em si de Kant como o Não-Eu do primeiro Fichte, uma decomposição que, no entanto, unicamente se completa ao final do sistema, dando passagem à liberdade do Espírito absoluto. Nessa figura inicial da certeza ou consciência sensível, no entanto, se dão uns primeiros passos decisivos, que queremos aqui examinar. 7.4 LINGUAGEM E MUNDO SENSÍVEL

O argumento decisivo aqui é a dissolução da verdade sensível concreta do mundo na universalidade da linguagem, daí o título deste trabalho. Com efeito, o conteúdo (Inhalt) do mundo sensível, com sua ilimitada multiplicidade, aparece em primeiro lugar à consciência como o conhecimento mais imediato e rico, de uma abundância sem limite de

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informações no espaço e no tempo39, e ao mesmo tempo, portanto como o conhecimento mais verdadeiro, pois não deixa de fora dele nada do objeto. Segundo isto, a última mola da realidade e da verdade estaria em um objeto independente do Espírito, e este somente se poderia comportar de maneira passivo e não livre, subordinado e escravo dessa verdade-realidade que não domina. Toda atividade e liberdade seria, no fundo, um erro, e o ideal do Espírito residiria em converter-se em coisa.

A estratégia da dialética hegeliana é mostrar que essa consciência sensível é o contrário do que ela crê (meinen) que é. De fato, afirma Hegel, a certeza sensível, como o ser na Lógica, é a verdade mais abstrata e pobre. O motivo é o seguinte: quando essa consciência quer expressar sua verdade, sua singularidade e riqueza de seu objeto, só alcança dizer vaguidades, termos universais de grande pobreza de conteúdo, como dizer que isso é, ou seja, aplicar a categoria de ser, que a Lógica hegeliana tentará mostrar depois como o mais vazio dos conceitos, ou dizer este, o qual pode se aplicar a qualquer objeto ou fenômeno sem especificá-lo de nenhum modo, ou aqui e agora, as mais abstratas formas da natureza e do dizer. O “agora” pode ser noite ou dia, ou qualquer outro momento. O “aqui” é qualquer lugar e vale para qualquer objeto. “Para provar a verdade da certeza sensível basta um simples ensaio. Escrevamos essa verdade; uma verdade não pode perder-se ao escrevê-la”40, e escrevamos “agora é de noite”. Mas, ao passá-la à escrita, que perdura e, portanto, apaga o momento temporal e o contexto em que se escreve, então o “agora” pode não corresponder ao momento presente, pois se comporta negativa e indiferentemente com respeito a todo conteúdo sensível atual, e portanto, é algo mediatizado (por essa negatividade frente à outro) e universal. Mas ocorre o mesmo se utilizamos substantivos, como casa, árvore, papel, etc., pois eles valem como universais para qualquer outra casa, outra árvore ou outro papel41, de modo que a certeza sensível, querendo captar o singular, só é capaz de dizer o universal. “O universal é em consequência e de fato o verdadeiro da certeza sensível”42, e isso fica recolhido na linguagem (Sprache). O singular é inalcançável pela linguagem, é o indizível

39 Como já vimos, na Fenomenologia do Espírito Hegel introduz já o espaço e o tempo, que posteriormente, na Enciclopédia reserva para a Psicologia, diferença que é advertida pelo mesmo Hegel no § 418 (W 10, 206). 40 Hegel, FG, W 3, 84. 41 Há que se advertir que Hegel faz uso também desses termos e, por conseguinte, não poderíamos tomar sua figura de “certeza sensível” como pré-linguística, o que sim era a alma, mas não a consciência. 42 Hegel, FG, W 3, 85.

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(Unaussprechliche); e, portanto, também o não verdadeiro (das Unwahre), o não racional (das Unvernünftige), o meramente opinado (Gemeinte)43. Aqui escutamos a tese que uns 150 anos depois defenderá Gadamer: “O ser que pode ser compreendido é linguagem”44.

Compreendemos agora que o próprio e novo que aparece no âmbito da consciência reflexiva da Fenomenologia é a linguagem, e com ela a comunidade e comunicação com os outros eus, o dizer, ou ao menos assim apresenta Hegel, e é a linguagem o que modifica a sensibilidade da consciência reflexiva com respeito ao sentimento dos animais (Natureza) e da alma (Antropologia), que se comunicam com vozes, gritos e gestos. Ainda que Hegel coloca na inteligência (Psicologia) a palavra, como seu produto, e a comunidade em uma passagem posterior da Fenomenologia, a saber, na autoconsciência, no entanto aqui já estão ambas, palavra e comunidade, presentes e atuantes em sua análise, o que coloca em dificuldade a linearidade genética que nos propõe. A aparição da linguagem modifica essencialmente a relação com o mundo e com nosso próprio corpo, e eleva a atividade do sujeito. Temos de supor, pois, que sobre essa linguagem se baseará a ciência e a comunidade humana, tanto a luta de autoconsciências como sua reconciliação racional. Mas podemos dizer que essa linguagem é propriamente o único verdadeiro da consciência e do Espírito, enquanto que a experiência sensível se fundiria no não essencial? Atrever-me-ia a dizer que Hegel analisa a sensibilidade da consciência reflexiva, sua verdade (objeto) e certeza (eu) com um método ou modo parcial e inadequado. Eu somente me fixei na primeira parte, na da verdade da sensibilidade. 7.5 ANOTAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A VERDADE DO SENSÍVEL 7.5.1 DIZER O SINGULAR

Em primeiro lugar, Hegel sustenta que não se pode dizer o singular, pois todo termo ou palavra da linguagem é universal, como árvore, papel ou casa. Isso ocorre inclusive com aqueles termos que parecem assinalar o mais concreto: agora, este, aqui, eu, ontem, vocês, etc., ou seja, os pronomes e os advérbios de lugar e de tempo. São os chamados “dêiticos”, que somente são compreensíveis dentro do contexto em que

43 Hegel, FG, W 3, 92. 44 Gadamer, Verdad y Método, GA I, 478.

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se pronunciam, de modo que enquanto se modifica o contexto mudam também seus referentes e se mostram, portanto como indiferentes frente a esses objetos singulares. Mas aqui Hegel leva a cabo uma reflexão parcial do assunto. Certamente a linguagem e o conceito fazem referência à universalidade, mas não carecem de recursos para assinalar também o singular, inclusive na escrita, ainda que essa capacidade de assinalar o concreto ocorre sobretudo na oralidade, onde nasce a linguagem, na presença e para assinalar o entorno conhecido pelos falantes. Todavia, também o singular pode ser escrito, certamente não com um único termo comum, pois todos eles são universais, como são os conceitos que eles expressam, nem unicamente com nomes próprios repetíveis, como Antônio ou Paula, mas sim com nomes próprios expressamente não repetidos como por exemplo Espanha, ou Brasil, ou a Lua, ou o Nilo, mas também Alexandre Magno ou o diamante Cullinan da rainha da Inglaterra. Ainda mais, também se pode dizer o singular utilizando vários termos que se circunscrevem entre si e incluindo algum nome próprio, que é também um elemento da linguagem. E assim podemos assinalar e descrever objetos e fatos singulares acontecidos por exemplo na Revolução Francesa e escrever sobre ela um livro de história com debates singulares, ou publicar uma biografia de um personagem ou escritor sobre alguém mesmo em um texto que não muda de referente ao ser escrito. A linguagem tem mais recursos para indicar a concreção sensível da qual fala; a certeza sensível pode, por exemplo, empreender uma longa narração do sucedido, dando dados temporais e geográficos bem precisos, descrevendo os personagens que aí intervêm (como faz a literatura), ou comunicando poeticamente um sentimento próprio, etc., de maneira que todo aquele que compreenda essa língua se inteire do que se está falando, ainda que não tenha toda a riqueza de um observador direto e atento.

Uma situação concreta pode ser expressa de outro modo ao que o reduz Hegel. Ele pretende que a certeza sensível somente se possa comunicar com as poucas palavras que ele assinala e, além disso, com vocábulos soltos. Quem sabe falar, utiliza também outras palavras45, usa frases encadeadas, nas quais pode oferecer mais informação sobre o contexto, que faça compreensível qual singular quer assinalar. Uma consciência meramente sensível à qual se negue a linguagem não poderia

45 Somente aconteceria assim no caso de um estrangeiro que unicamente soubesse esses termos. Mas nem sequer esse seria o caso, pois essa pessoa utiliza também para sua compreensão sua própria língua em toda sua extensão. Unicamente no caso de uma criança pequena que estivesse aprendendo a falar.

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falar, nem sequer com dêiticos, mas então tampouco seria uma consciência reflexiva, não teria chegado a esse nível do Espírito, haveria ficado como alma encerrada no interior de seu corpo. Se fala, então possui algo mais que dêiticos, pois estes não são possíveis sem os demais elementos da linguagem. A certeza sensível da consciência que Hegel analisa aqui é já linguística e, portanto, comunitária (um elemento que Hegel não leva em conta em sua gênese linear) e somente se dá na síntese com as outras ações do espírito. Isolá-la e reduzi-la é uma operação artificial. Se se opta por declarar à certeza sensível como pré-linguística (como fazem alguns intérpretes), apesar de que Hegel faz referência a sua linguagem, teria que assinalar outro momento do sistema de Hegel em que a sensibilidade fosse valorizada como elemento do conhecimento objetivo do mundo em sua especificidade frente ao conceito e à linguagem. 7.5.2 O APORTE ESPECÍFICO DO SENSÍVEL AO CONHECIMENTO

Ora, ainda que a linguagem tem instrumentos para assinalar o singular sensível, não pode Hegel substituí-lo e convertê-lo em inessencial e prescindível, senão que é um elemento necessário no saber. A consciência reflexiva surge com a linguagem, a qual oferece a base material para a reflexão e seus conceitos, para a idealidade da consciência reflexiva que é o significado das palavras, do que se diz. Esta idealidade faz com que a consciência cobre uma distância com respeito ao mundo, uma diferença entre as palavras e as coisas, que modifica grande parte do anterior, por exemplo, como se vive o corpo próprio e suas necessidades. Devido a essa distância, a idealidade mantém uma certa vida própria que cria o mundo especificamente humano, o da cultura e do comércio, da religião e da moral, das instituições e leis da liberdade, da arte, da ciência e da filosofia. Então o mundo sensível aparece de outra maneira, é compreendido, modificado e ordenado segundo outras regras e finalidades. A aparição da linguagem, como ato criativo do Espírito, modifica radicalmente a relação da consciência com o mundo, pois a introduz em um âmbito de universalidade, que é o horizonte último da verdade (na pergunta pela ciência, política, moral, arte, mito e filosofia), que vai colocando cada elemento da mesma em um lugar próprio e limitado e, portanto, proporciona uma consciência mais limitada assim mesmo da singularidade, e ao mesmo tempo a capta enquanto tal. Mas nem por isso desaparece no inessencial, como afirma Hegel, nem sequer

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em seu papel de elemento do conhecimento reflexivo e objetivo do mundo sensível. Este conhecimento não se esgota na linguagem nem nos conceitos, senão que eles servem para interpretar o mundo desde essas novas perspectivas, inclusive para fazer ciência dele, se bem que a função desses conceitos não se esgota nesse labor, senão que também pode falar do não sensível, por exemplo, da liberdade ou do dever, e serve para formar metáforas do não visível.

Hegel segue aqui uma estratégia distinta a que adota em outro princípio, o da Lógica, onde conceituando ao “Ser” como carente de toda determinação o assimila ao “Nada” e os iguala no devir. Aqui, ao contrário, mantém primeiramente a contraposição entre sensível e linguagem, e procede em desvalorizar o aporte do sensível no assunto da verdade e do saber, dizendo primeiro que essa contribuição é muito pobre e abstrata46, carente de pensamento, enquanto que o dito na linguagem é o mais verdadeiro (das Wahrhaftere), para determinar designando à universalidade da linguagem toda a verdade da certeza sensível47, e conceitualizando o sensível como o não verdadeiro48. Para Hegel os sentidos não proporcionam nenhuma distinção determinada49, e o espaço e o tempo, que para Kant constituíam a claridade do sensível (e era isso uma revolução), sua possibilidade transcendental de ordenação objetiva, Hegel os trata como “determinações extremamente pobres (dürftige) e superficiais”50. Trata os conteúdos sensíveis como compreensões borradas

46 Hegel, FG, W 3, 82. 47 Hegel, FG, W 3, 85-86. 48 Hegel, FG, W 3, 92. Este mesmo movimento encontramos na relação da Lógica com as duas outras partes do sistema, a Filosofia da natureza e a Filosofia do Espírito. Não é o mesmo (qualitativamente) a categoria lógica que experimentar individualmente a existência, e isso é também um momento necessário. Tampouco para Hegel é o mesmo, pois distingue o lógico do natural e do espírito, e essa distinção lhe é essencial, pois constituem diversos momentos do processo, e essa diversidade é essencial no processo mesmo. Mas ele o banaliza, e diz aqui: “die Naturphilosophie und die Philosophie des Geistes, gleichsam als eine angewandte Logik, denn diese ist die belebende Seele derselben. Das Interessee der übrigen Wissenschaften ist dann nur, die logischen Formen in den Gestanten der Natur und des Geistes zu erkennen, Gestalten, die nu reine besondere Ausdruckweise der Formen des reinen Denkens sind” (Enz § 24, Z2, W 8, 84), tendo em conta, no entando, die Ohnmacht der Natur, die logischen Formen rein darzustellen. Ele é o mais real nessas formas (85). Mas, ainda que seja assim, terá que admitir um modo menor de ser, que é, e que não se reduz ao lógico. 49 Vorlesung über Naturphilosophie, 1823-4, p. 64. 50 W 10, 253. E continua dizendo o texto: “por conseguinte, as coisas têm pouco essas formas, e portanto com sua perda, se fosse possível, perderiam muito pouco. O pensar

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do que depois se esclarece e clarifica nos conceitos, seguindo nisto a Leibniz, e é aí então onde se produz a identificação necessária no processo dialético, eliminando-se a diferença transcendental que Kant havia posto entre a sensibilidade e o entendimento, como uma diferença própria da lógica abstrata do entendimento que tem de ser dissolvida na razão dialética e especulativa. Do mesmo modo como ocorria com o “Ser”, que não era pensado em sua especificidade ontológica, senão somente no que lhe igualava à categoria do “Nada”, a saber, o não incluir nenhuma diferença ôntica51, aqui também Hegel escamoteia o específico da consciência sensível, a riqueza insondável da singularidade apresentada. Não é pensada a diferença entre a experiência sensível e a experiência linguística52, senão que aquela sensível é dissolvida na universalidade da linguagem. Assim repete na Enciclopédia: “se para o sensível se propôs as determinações da singularidade e da exterioridade mútua, se pode ainda acrescentar que também essas determinações são elas mesmas de novo pensamento e universais; na Lógica se mostrará que o pensamento e o universal é precisamente isso, que é ele mesmo e seu outro, que o ultrapassa e nada se lhe escapa. Por isso que a linguagem é obra do pensar, tampouco pode ser dito nada nela que não seja universal [...]. E o inefável, o sentimento, a sensação, não é o mais excelente, o mais verdadeiro, senão o mais insignificante e não-verdadeiro. Quando digo: ‘o singular’, ‘este singular’, ‘Aqui’, ‘Agora’, todas estas [expressões] são universalidades; todas as coisas e cada uma delas são um singular, isto inclusive quando são sensíveis, aqui, agora”53.

Penso que a informação que nos proporciona a sensibilidade não pode ser de modo algum substituída pela linguagem e seus conceitos, pois é de outra índole, é um elemento diferente do saber, não se podem resolver um no outro, uma afirmação que faz frente diretamente ao método hegeliano, que tem como critério máximo não deixar nenhuma oposição não dissolvida pelo movimento dialético em uma totalidade que seria o verdadeiro; mas, talvez teríamos que configurar essa totalidade de outra

que conhece não para nessas formas; capta as coisas em seu conceito, que contém em si o espaço e o tempo como algo superado (Aufgehobenes)”(ibidem). 51 Desenvolvi essa ideia no artigo: “Del ser ao ente. El inicio de la Lógica hegeliana”, publicado no livro La herida del concepto, Servicio de publicaciones de la UNAM, Madrid, 2017, pp. 289-324. 52 Mostra-se que há diferença entre intuição e conceito nos três diferentes estilos da arte. Mas Hegel dirá que são dois níveis de compreensão, e que o conceito é mais desenvolvido e engloba a intuição. 53 E § 20; W 8, 74.

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maneira. O mero conceito de árvore não substitui a compreensão que temos dela na visão direta e sensível da árvore real, ainda que nessa visão esteja e está operando também o conceito com o qual eu compreendo que estou vendo isso, uma árvore. Poder-se-ia inclusive afirmar que na árvore real está operando o conceito ou a ideia organizando-a como um todo, segundo pensa a Filosofia da Natureza de Schelling e de Hegel, de modo que na árvore estaria seu conceito in re, como expressaria Tomás de Aquino, e em nossa mente encontraríamos esse mesmo conceito post rem. Todavia, trata-se de que a sensibilidade ou elemento sensível do conhecimento não é um nem outro, senão outro modo de apresentação com uma riqueza e uma realidade própria, inesgotável para a consciência linguística e insubstituível por outros elementos do saber.

É insubstituível porque o sensível me oferece resistência e nisso me mostra sua verdade. Não é possível compreender a realidade do sensível sem introduzir em sua análise a ação real e corporal do sujeito, o que Hegel não faz. Eu conheço o mundo sensível como real porque oferece resistência à minha ação real sobre ele, à consecução dos fins que quero ou desejo conseguir, e essa resistência se sente e é assim como se compreende então o mundo como sendo real e exterior, enquanto que a idealidade de um conceito ou de um termo não oferece essa resistência, ou bem falaríamos de outro tipo de resistência como quando quero ordená-lo em um discurso com sentido, ou científico ou inclusive original, e então tenho que me esforçar mentalmente para pensá-lo e formulá-lo bem. Hegel coloca a consciência prática depois da teórica, e poderíamos dizer que vai do abstrato a seus fundamentos54, mas nestas etapas posteriores não volta a fazer ou recuperar sua análise do sensível desde essas posições mais abarcantes. De novo a linearidade dialética do processo hegeliano aparece-nos distorcida, ao menos em alguns de seus pontos.

Portanto, a informação que tenho de um palácio quando o visito não é substituível por muitas descrições que dele me façam, partindo já da mesma vivência sensível, dinâmica e corporal que dele tenho quando o visito, ou ao menos são duas experiências diferentes. Nem sequer é o mesmo ver fotos de um palácio que visitá-lo pessoalmente: o corpo sentido faz com que o meçamos e apreciemos com uma sensação de

54 De fato, neste texto da “Certeza sensível”, Hegel faz alusão a um ato real, e não meramente de conhecimento objetivo, a saber, que os animais devoram as coisas sensíveis, e com isso mostram que não as tomam como coisas em si, e dessa maneira nos ensinam “qual é a verdade das coisas sensíveis” (W 3, 91).

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realidade vivida e em sua verdadeira medida por meio da imaginação, que atua sobre o concreto. É certo que a consciência reflexiva se deixa dirigir pelos conceitos que já tem e é mais difícil reparar naquilo que ignora conceitualmente, mas isso mesmo indica a diferença entre sensibilidade e conceito: o fenômeno sensível está aí porém não se repara nele reflexivamente, ainda que possa que isto ocorra e então se pergunte: e isto o que é? até ignorar ou adquirir o novo conceito.

Façamos um contraexemplo ao de Hegel e perguntemos a um cego de nascimento se sabe o que é uma cor, e comprovaremos que não, ainda que tenha o conceito ou termo da cor. E uma cor não somente é um elemento do conhecimento objetivo do mundo, também é básico na arte da pintura, na qual se expressa sensivelmente o Espírito sem usar palavras nem podendo ser substituído por estas, mas é assim mesmo importante em outras artes como a arquitetura, a escultura, a realização cênica ou o cinema. E o mesmo poderíamos dizer de alguém que não teria visto nunca uma planta, se isso fosse possível; teríamos que desenhá-la. Neste sentido, sim, poderíamos dizer com os escolásticos que individuum est ineffabile55, porque não é substituível pela linguagem, mas isso não só põe limites à certeza sensível, senão também à linguagem, ao conceitual, ou melhor dito, às pretensões de crer que a linguagem é todo o real ou o único verdadeiro; mostra a inadequação da certeza sensível com respeito à linguagem no momento de acolher nela a riqueza e singularidade da experiência sensível do mundo. Isso distingue a ambos os elementos e os limita necessariamente à complementariedade, à relação ou referência ou remissão de um ao outro, pois compreender engloba diversos momentos em uma síntese que respeita também sua diversidade. A linguagem faz referência primariamente à universalidade das regras com as quais interpretamos e ordenamos o mundo sensível, enquanto que a sensibilidade o apresenta diretamente em sua singularidade e realidade, ainda que inclusive essa singularidade e realidade tenham de ser compreendidas também por meio de conceitos básicos ou categorias para ser captados como tais pela consciência reflexiva; são dois elementos do conhecimento objetivo do mundo que não podem se dissolver um no outro. Dizer que somente a linguagem é o único ser compreensível, uma opinião muito estendida a partir do chamado “giro linguístico” (Rorty

55 Para Aristóteles é impossível definir ao indivíduo sensível (Metafísica Z 15), e no entanto era a substância, o sínolon, o mais real. Nem sequer se dizemos “O Rei da Espanha” nomeamos algo singular, pois nos falta indicar o tempo, e além disso há que ter em conta que Espanha é um espaço concreto, um aqui nomeado, designado.

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dixit), é cercear essa riqueza sensível, que depois inclusive se vê potenciada e requerida na arte56. A compreensão se faz em diversos níveis, não somente na linguagem, e unicamente na conjunção de todos eles se obtém uma compreensão plena. Há inclusive níveis inconscientes, que não chegam à linguagem, e que estão operando em nossa compreensão da realidade ou distorcendo-a. Teríamos que concluir que linguagem (conceito) e mundo sensível são dois elementos diferentes e complementares na compreensão da realidade. São inadequados um ao outro porque são diferentes57. Nenhum substitui ao outro nem pode atribuir-se ser a fonte única da verdade ou do conhecimento. A experiência sensível é ela mesma uma revelação originária da realidade, o que percebemos sobretudo quando ainda não estão demasiado gastos nossos sentidos e ficamos inclusive surpreendidos, impactados por sua presença, o que ocorre mais frequentemente na infância e na adolescência, por exemplo, na primeira vez que vemos o mar. Também por isso é tão importante e nos penetra tão profundamente a beleza. Esse sentir, ou a imagem ou o som, etc., não é substituível por meio de palavras58, ainda que com elas adquire um significado mais pleno.

Podemos extrair então a conclusão de que não existiria linguagem sem sensibilidade ou mundo sensível devido à necessária contraposição para que exista consciência reflexiva. Toda consciência compreende algo

56 Na última parte de sua obra, Verdade e Método, Gadamer escreve e explica seu famoso dictum: “o ser que pode ser compreendido é linguagem” (Gadamer, Gesammelte Werke, Mohr Siebeck, Tübingen, 1990, tomo I, p. 478). Mas se lemos o contexto no qual se disse isso, aí linguagem é toda forma, pois fala da linguagem da natureza, etc. Segundo esse sentido lato, toda forma de consciência é linguagem, e então a sentença de Gadamer é verdadeira. 57 A diferença entre a mera linguagem e a experiência com linguagem é como a que há entre ler o menu e comê-lo (isto é uma metáfora, pois nas duas experiências há tanto linguagem como experiência sensível). 58 As artes que não usam a palavra são experiências que contam com uma informação sensível não substituíveis por palavras, ainda que sua experiência seja mais desenvolvida que a da experiência sensível, conta com ela como um elemento não substituível por meio de palavras. Gadamer tem problemas com as artes da música, e tendem todos a apreciar mais as artes da palavra. Há odores, lugares, cores, situações, que nos trazem uma recordação, um afeto, um temor, etc. Sua particularidade é expressiva, e uma compreensão originária da realidade, de nossa realidade, de nossa Stimmung. Por exemplo, a água límpida e fresca do tanque quando me lanço nela em um dia caloroso de verão e sua sensação em meu corpo como uma revelação da água e da carne, da luz e do estar aí, do calor e da vida, do movimento e do respirar. Muitos falam de sensações, vivências e sentimentos que não podem se expressar com palavras. Poder-se-ia indicar tal algo por meio de uma obra de arte, mas sempre ficam insubstituíveis enquanto tais.

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como não sendo as outras coisas, capta que isto é uma mesa contrapondo-a com a cadeira e a esferográfica etc. Assim compreendemos a linguagem, entre outras distinções, ao contrapô-la com as coisas reais e inversamente. Quando não se faz essa distinção entre palavra e coisa, se está ainda em um pensamento mágico. Ainda mais, a universalidade da linguagem requer uma resposta positiva por parte do sensível em um duplo sentido. Primeiro em um sentido objetivo, a saber, que distintos objetos ou ações respondam a um mesmo termo linguístico que seja capaz de agrupá-los, por exemplo, chamando-os todos eles “cavalo” ou “árvore”. Segundo em um sentido subjetivo que cria também comunidade: que todos vejam o mesmo, que não ocorra que diante de um objeto uns vejam um cavalo e outros uma árvore. Nisso se baseia também a objetividade no conhecimento do mundo e graças a isso é distinguida das alucinações ou das mentiras. A objetividade torna possível que todos compartilhemos o mesmo mundo dos objetos, e isso requer que todos vejam o mesmo e o interpretemos com termos em acordo. A sensibilidade é um elemento necessário para a objetividade e a comunidade, não somente a linguagem. 7.5.3 O SIGNIFICADO SENSÍVEL DA LINGUAGEM

De resto, o primeiro significado da linguagem é assinalar os objetos e as ações dentro do mundo sensível. A partir daí se formam as metáforas para designar o não sensível, como quando Platão diz que o bem é o “sol” das ideias. Sem esse mundo sensível não haveria, portanto, linguagem, em realidade não haveria nem subjetividade nem comunidade, nada que compartilhar. A linguagem não seria compreendida sem referência a essa realidade sensível, ainda que as coisas sensíveis não sejam o único real nem tampouco a realidade última e mais importante, e nisso Hegel disse a verdade, como quando assinala que os animais “as agarram sem mais e as devoram e [...] nos ensinam em que consiste a verdade das coisas sensíveis”59, a saber, que são puros meios e têm um modo de ser subordinado. Mas isso não quer dizer que sua realidade se dissolva nos conceitos universais da língua.

Grande parte da linguagem, e de modo mediado toda ela, careceria de sentido sem essa referência ao mundo sensível, ficaria vazio, seria simplesmente incompreensível. A linguagem não é autossuficiente, senão que remete primariamente à realidade sensível vivida, que se não se experimentou, não se compreende do que se está falando ou muito

59 Hegel, FG, W 3, 91.

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vagamente e por analogia ao experimentado. Ela é inteligível em sua referência ao mundo, tanto natural como humano. Por exemplo, sem a sensibilidade e a ação real sensível não saberíamos o que significa frio ou calor, amargo-doce-salgado-ácido, ter fome ou dor, correr, saborear a comida, os odores. Podemos dizer: tem cheiro de lavanda, mas não teremos nem ideia do que significa isso se não a tivermos cheirado. Mas, de que objeto sensível poderíamos falar e entender o que se diz sem essa consciência sensível? Excluiríamos assim grande parte do dicionário, e provisoriamente a outra, pois se apoia analógica ou metaforicamente na anterior. Pois o mesmo ocorre com a sexualidade, a paternidade, ocupar um posto na sociedade, escrever um livro, fazer turismo, contemplar uma obra de arte, ou um pôr do sol, etc. A sensibilidade e a ação real sensível são fontes originárias e inesgotáveis de compreensão de nosso ser-no-mundo e de nosso ser-com-os-outros, ainda que não suficiente, pois a consciência reflexiva precisa também da linguagem para entender claramente o que está vendo ou experimentando, e se ainda não criamos o conceito, então diremos que não sabemos muito bem o que está acontecendo, e buscaremos as palavras que o possam interpretar, ainda que nem sempre se consegue e então se costuma dizer: não tenho palavras para isso. A linguagem está também presente, mas não substituindo o sensível, senão elaborando-o para a consciência, interpretando-o para sua orientação na realidade. Em nossa compreensão há elementos linguísticos e não linguísticos, como também há elementos conscientes e inconscientes, mal chamados “inconsciente”, porque são também conscientes, ainda que não chegam à consciência reflexiva ou propriamente linguística. A linguagem somente adquire significado dentro da vida concreta da comunidade e partindo desse contexto60, se bem que é capaz de ir mais além, pois, tende a assinalar a universalidade, e situar inclusiva à própria comunidade da qual parte. Sem a vida concreta, talvez se poderia entender a estrutura fonética e gramatical da linguagem, sua materialidade, mas se careceria da semântica e da pragmática.

Entre a linguagem e a experiência sensível se daria a complementariedade do imediato e do mediatizado. Dissolvendo a certeza sensível na linguagem, Hegel quer mostrar, ao menos também, que a certeza sensível não é para a consciência algo absolutamente imediato,

60 No dicionário Collins inglês-espanhol se anuncia como contendo “Artigos especiais sobre costumes, tradições e instituições dos países de fala inglesa”. Somente no contexto da vida cotidiana se pode entender a linguagem, no viver e experimentar essa realidade sensível, natural e institucional.

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senão que se encontra mediatizado pela linguagem e dissolve nela toda sua verdade. Penso que a experiência de imediatez que a consciência sensível tem do mundo não somente possui certeza nela, senão também verdade ainda que não absoluta, e essa verdade deveria ser avaliada em um método dialético como o de Hegel, no qual todo momento tem sua verdade ainda que limitada. Mais propriamente hegeliano teria sido valorizar a especificidade da experiência sensível, para depois certamente mostrar seus limites, e não a deixar somente como o inessencial. Segundo a proposta de Hegel, todas as etapas no processo da realidade ou do Asoluto são necessárias, de maneira que a verdade está na união e conservação sintética de suas respectivas verdade e realidades limitadas. “O verdadeiro [sem limites] é o todo, nos diz o famoso dictum do Prólogo à Fenomenologia. O todo, no entanto, somente é o ser (Wesen) que se completa a si mesmo mediante seu próprio desenvolvimento”61. A verdade ou saber absoluto não é somente o resultado, senão também o caminho e suas etapas, de modo que se estas se perdem e ficamos unicamente com a última figura, com o mero conceito filosófico tautológico (“o todo é o todo”), voltaremos a cair na imediatez abstrata e vazia. “Cada ponto de vista (Ansicht) é necessário, mas individualmente [isoladamente] é unilateral”62. A questão que não ficou respondida é então qual elemento verdadeiro incorpora ao todo essa experiência sensível da consciência em sua especificidade.

A experiência sensível aparece à consciência reflexiva em seu primeiro surgir como imediata abertura à realidade do mundo. Será a única imediatez que perdura em todo seu desenvolvimento, tanto no medo à morte do servo, na felicidade do Espírito prático, no amor à família, nas cores e sons da arte. Tudo o mais, toda a cultura produzida pela linguagem, será mediações da reflexão, da interpretação e da organização do mundo humano. Tudo isso elabora a imediatez, mas não a elimina. Essa imediatez do sensível para a consciência reflexiva tem certamente seu passado, funde suas raízes na sensibilidade animal e hegelianamente também na alma da Antropologia, que tampouco carecem de regras de compreensão, de modo que os animais sabem igualmente orientar-se no mundo. Mas a aparição da linguagem, na qual se objetiva a regra e se compreende como tal regra, em seu modo de ser lógico e universal, tudo se modifica. A imediatez é expressa e reflexivamente contraposta à universalidade, e é compreendida pela primeira vez como tal imediatez graças a essa contraposição. Por isso

61 W 3, 24. 62 E § 269 Z; W IX, 84.

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se converte na consciência reflexiva em uma imediatez mediatizada em virtude dessa contraposição expressada. Essa é a tensão própria da consciência sensível reflexiva, difícil de manter, pois a reflexão sobre ela tende a inclinar para um extremo ou outro, ou para intermediários que não respeitam à especificidade dos dois elementos que aqui estamos considerando. Somente porque há imediatez, a mediação da linguagem é possível, e inversamente, somente através da mediação da linguagem, a imediatez sensível aparece como imediatez objetivada, reflexivamente compreendida por essa consciência, e não apenas sentida. Essa sensibilidade está mediatizada por toda a trama do mundo, pois não de outro modo vemos essa árvore ou aquela casa, a saber, dentro da interpretação global que fazemos do mundo objetivo. São atos diferentes do Espírito ligados entre si, de maneira que não se daria um sem o outro. Hegel quer dissolver toda imediatez em um processo linear dialética que se fecharia em um círculo. Mas, poderíamos tentar uma dialética que aceite a imediatez mediatizada, uma dialética mais plural, não tão linear, e que ligue todos os elementos sem diluir sua verdade.

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VIII

SPINOZA: i miracoli, l’origine della religione e il finalismo

Emanuela Scribano*

8.1 I MIRACOLI E IL FINALISMO

Nel TTP Spinoza dedica un intero capitolo, il VI, ai miracoli. Il tema dei miracoli ricorre, ma solo incidentalmente, anche nell’Ethica, nella grande Appendice alla prima Parte. In entrambi i casi, i miracoli sono associati a una interpretazione della natura fortemente osteggiata da Spinoza, quella che ritiene che la natura tenda al fine di avvantaggiare l’uomo. Ma c’è una differenza importante tra i due testi.

Il capitolo VI del TTP si apre facendo riferimento alle credenze popolari. Il popolo ritiene che la presenza di Dio si riveli negli eventi straordinari della natura di cui non conosce le cause:

Il volgo chiama miracoli, e cioè opere di Dio, i fatti non comuni della natura, e … preferisce ignorare le cause naturali delle cose, ed è ansioso di sentir parlare soltanto di ciò che massimamente ignora e che, perciò, soprattutto ammira.”1

Di questo atteggiamento Spinoza individua subito dopo l’origine:

L’origine di ciò sembra da ricercarsi presso gli antichi Ebrei, i quali, per convincere i pagani loro contemporanei, che adoravano divinità visibili, come il Sole, la Luna, la Terra …, e per dimostrare loro che quelle divinità erano deboli e incostanti e sottomesse all’autorità del Dio invisibile, raccontavano i propri miracoli, coi quali si sforzavano inoltre di dimostrare che l’intera natura era regolata a loro esclusivo vantaggio dalla potenza del Dio che essi adoravano. (Ibid.)

* Reconhecidamente uma das maiores pesquisadoras de História da Filosofia Moderna. Foi professora nas Universidades de Florença, Veneza e Siena. Atualmente, leciona História da Filosofia e História da Filosofia Moderna na Universidade Ca' Foscari de Veneza. Ocupa-se especialmente do pensamento filosófico moderno e sua conexão com o pensamento medieval. 1 pp. 150-51.

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Malgrado l’inizio del capitolo presenti la credenza nei miracoli come diffusa genericamente nel “popolo”, la sua origine è poi fatta risalire a un gruppo umano particolare, gli Ebrei. Questi infatti avrebbero propagato la credenza nei miracoli per convincere i pagani ad abbandonare il politeismo, abbracciare il loro monoteismo, e convincerli della particolare predilezione del Dio nascosto nei loro confronti. A questo scopo gli Ebrei raccontavano i miracoli del Dio invisibile “miracula sua narrabant”, grazie ai quali intendevano soprattutto mostrare che “l’intera natura era diretta esclusivamente al fine di procurare loro il massimo vantaggio dal Dio che essi adoravano.” La credenza nei miracoli sarebbe dunque finalizzata a mostrare che l’intera natura è retta dall’unico Dio riconosciuto dagli Ebrei in funzione esclusiva del benessere del popolo eletto. Dietro la credenza nei miracoli si cela un progetto di supremazia del popolo ebraico.

L’uso che gli Ebrei avrebbero fatto del miracolo è poi piaciuto così tanto agli uomini che tutti si sono messi in caccia di eventi che potessero essere fatti passare per miracoli, in modo da presentarsi anche loro come il fine per il quale Dio avrebbe creato tutte le cose: “tanto questo piacque agli uomini che fino al giorno d’oggi hanno continuato a immaginare miracoli, per essere creduti più cari agli Dei degli altri e per far credere di essere essi stessi la causa finale per la quale Dio creò tutte le cose e continuamente le dirige.” Nella gara imitativa per stabilire chi fosse maggiormente gradito agli dèi, i gruppi umani entravano in competizione per aggiudicarsi l’attestato di “causa finale, per la quale Dio creò tutte le cose e continuamente le dirige.” Nel TTP il finalismo fa la sua comparsa come un finalismo etnocentrico.

L’ipotesi sull’origine ebraica della credenza nei miracoli si aggiunge a caratteristiche analoghe attribuite agli ebrei, come quella di ignorare le cause intermedie e di attribuire sempre a Dio ogni accadimento, oppure quella di riferire a Dio gli eventi di cui ignoravano le cause.2 Il caso dei miracoli è però peculiare. Mentre l’abitudine ebraica di riferire ogni evento a Dio dà ragione di molte espressioni utilizzate nel racconto biblico, ma non esclude che si tratti di un uso invalso presso altri popoli, la credenza nei miracoli degli Ebrei è individuata come l’origine dell’analoga credenza diffusa in tutto il genere umano, con il relativo corollario della finalità etnocentrica.

2 “Judaei nunquam causarum mediarum, sive particularium faciunt mentionem, nec eas curant, sed religionis ac pietatis, sivi (ut vulgo dici solet) devotionis causa ad Deum semper recurrunt” (cap. I, Geb. III, 16-17); oppure: “omnia, quae captum Judaeorum superabant et quorum causas naturales tum temporis ignorabant, ad Deum referri solebant” (cap. I, Geb. III, 23)

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Nella discussione del finalismo e nell’accenno ai miracoli presenti nell’Ethica, invece, scompare ogni accenno a una diffusione di queste credenze tramite l’azione egemonica di un particolare gruppo umano. L’attenzione di Spinoza si concentra sull’origine del pregiudizio finalistico, presentato come una tendenza spontanea della mente umana:

…gli uomini fanno ogni cosa in vista di un fine, ovvero dell’utile cui mirano; quindi cercano sempre di conoscere le cause finali di ciò che è avvenuto …

L’incapacità di individuare le cause finali degli eventi naturali porta poi gli uomini a proiettare sulla natura i fini che essi stessi perseguono e in questo modo essi si convincono che ci siano “uno o più sovrani della natura, dotati di umana libertà, che si sarebbero presi cura di tutto per loro e che avrebbero fatto ogni cosa a loro uso”. In pochi passaggi, la credenza spontanea nel finalismo della natura si trasforma nella convinzione, altrettanto spontanea, che il fine della natura sia il benessere del genere umano. Infine, gli uomini attribuiscono agli dèi caratteristiche umane: all’antropocentrismo si aggiunge l’antropomorfismo.

C’è in realtà un punto di raccordo tra l’Appendice della Prima Parte dell’Ethica e il TTP. Nell’Ethica, subito dopo aver sinteticamente presentato le tappe che portano dal finalismo della natura all’antropocentrismo riguardo ai fini della/e divinità e da questo all’antropomorfismo riguardo al carattere della/e divinità, Spinoza osserva che “è così accaduto che tutti quanti abbiano escogitato a modo loro modi diversi di rendere culto a Dio, affinché Dio li prediligesse sopra tutti gli altri e dirigesse tutta la natura ad uso del loro cieco desiderio e insaziabile avarizia.” Ma proprio il richiamo interno al TTP rende evidente l’inversione che questo tema ha subito nel passaggio tra le due opere. Mentre nel TTP il finalismo nasce con lo scopo di privilegiare un gruppo umano sugli altri, nell’Ethica questo uso del pregiudizio finalistico si installa dopo la sua nascita e non ne è quindi causa. Nell’Ethica la credenza nei miracoli compare poi fuggevolmente come conseguenza della stessa ignoranza delle cause che ha generato il finalismo. Coloro che il popolo venera “come interpreti degli dei” cercano di mantenere viva tale credenza come strumento del loro potere: “colui che indaga le vere cause dei miracoli … è generalmente considerato eretico e empio da quelli che il popolo venera come interpreti della natura e degli dei.”

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8.2 L’ORIGINE DELLA RELIGIONE

Il cambiamento relativo al rapporto tra credenza nel finalismo antropocentrico e rivalità dei gruppi umani nel contendersi il favore degli dèi è la spia di una importante novità presente nel testo dell’Ethica, ovvero dell’articolata teoria sull’origine della religione che complica e modifica le tesi del TTP. Nell’Appendice alla prima Parte dell’Ethica, il finalismo antropocentrico è indicato come il responsabile della credenza nell’esistenza di una o più divinità (“hanno dovuto dedurre che ci fossero uno o più sovrani della natura”) e del culto reso agli dèi (“tutti quanti hanno escogitato modi diversi di rendere culto a Dio”). Questa credenza e questo culto si sono poi tramutati in superstizione: “E questo pregiudizio, tradottosi in superstizione, ha gettato radici profonde nelle menti, da produrre l’effetto che ognuno ce la mettesse tutta per capire le cause finali di tutte le cose e spiegarle.” Nell’Ethica, il finalismo antropocentrico è indicato come la causa della religione che si trasforma, poi, in superstizione. Se torniamo a esaminare il TTP, sarà facile verificare che in questo testo non è presente alcun collegamento tra il finalismo e l’origine della superstizione. Nel TTP, infatti, l’origine della superstizione è individuata solo in una causa passionale, la paura. L’intera prefazione del TTP è dedicata a questo tema, e alla pericolosità sociale e politica di un fenomeno di origine interamente irrazionale: “La paura è la causa che origina, mantiene e favorisce la superstizione”. Per questo tutti gli uomini sono naturalmente inclini ad essa. Questa spiegazione dell’origine della superstizione è in grado di escludere che in essa si celi qualche barlume di verità: “Se questa, dunque, è la causa della superstizione, è chiaro che tutti gli uomini sono ad essa naturalmente inclini (checché ne dicano coloro i quali ritengono esserne la causa, il fatto che tutti i mortali abbiano una qualche idea confusa della divinità)”.

La prefazione del TTP porta la traccia della lettura recente del Leviathan di Hobbes e dell’adesione vigorosa alla tesi secondo la quale è la paura, ossia una emozione, che è all’origine della religione. Notoriamente, per Hobbes la differenza tra religione e superstizione è del tutto relativa, dal momento che gli uomini chiamano superstizione le credenze altrui e religione le proprie. Spinoza, nel TTP, segue Hobbes in tutti i dettagli della sua argomentazione, per quanto attiene all’origine della superstizione: questa è causata da una passione, la paura, fomentata dall’ignoranza delle cause naturali; questa origine ne spiega universalità e naturalità, senza alcun riferimento alla sua verità. Lungi dal negare l’azione imposturale dei

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politici, questa viene riaffermata come una necessità dovuta all’impossibilità di ignorare un fenomeno intrinseco alla natura umana e, al contempo, come un fenomeno da governare attraverso il potere politico. Invece, nell’Ethica, la ricostruzione dell’origine del fenomeno religioso non menziona le passioni. L’origine della credenza in uno o più dèi e del culto ad essi tributato è individuata in un atteggiamento cognitivo e non emotivo. La religione è un fenomeno naturale e quindi universale, ma non perché sia originata da una passione, bensì perché nasce da una falsa credenza che segue necessariamente dall’ignoranza delle cause. L’universalità del fenomeno religioso non è un indizio della sua verità, ma per ragioni diverse da quelle indicate nella prefazione del TTP a proposito della superstizione. Infine, nell’Ethica, la parola “superstizione” compare come una ulteriore conseguenza del pregiudizio finalistico che reagisce su questo contribuendo a rafforzarlo e diffonderlo.

La tesi secondo la quale la paura gioca un ruolo rilevante nell’origine della superstizione è presente anche nell’Ethica, sia pure collocata in un contesto che non le dà molta evidenza, ossia in margine all’analisi delle passioni della speranza e della paura, quando, attraverso casuali associazioni di idee, queste passioni portano a interpretare alcuni eventi come buoni o cattivi presagi:

Le cose che accidentalmente sono cause di speranza o di paura vengono chiamate buoni o cattivi presagi. … Di qui sono sorte le superstizioni, dalle quali gli uomini sono dovunque combattuti (III, pL,s)

Quale sia il rapporto tra religione e superstizione Spinoza non dice né nell’Ethica né altrove. Nell’Ethica, come si è visto, si parla indifferentemente di monoteismo o di politeismo come figli del pregiudizio finalistico, tutti indifferentemente trasformatisi in “superstizione”. Nel TTP Spinoza si propone di distinguere la vera religione dalla superstizione nel campo delle forme di religione non filosofica. Ma la religione “vera” dovrà sorgere dalla riforma dell’esegesi biblica proposta da Spinoza. Nel frattempo, i politici hanno corredato “sia la vera sia la falsa religione” di un apparato cultuale che costringesse all’uniformità i credenti, nella convinzione che analoghe pericolose conseguenze si producano in ogni forma di religione. La superstizione di cui parla Spinoza sembra includere il fenomeno religioso di origine non filosofica in generale.3 Semmai l’uso del termine “superstizione” viene

3 Garber art. che mi ha inviato

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privilegiato quando si tratti di culti e credenze stravaganti o di conseguenze violente del fenomeno religioso, come accade nella prefazione del TTP. Ma anche limitando il confronto tra TTP e Ethica alla “superstizione”, si può constatare che, mentre nella prefazione del TTP si parlava solo dell’origine emotiva della superstizione, nell’Ethica, la speranza e la paura operano o, eventualmente, cooperano con un sottofondo cognitivo, ossia con la convinzione che esistano reggitori della natura che l’hanno creata o ordinata al fine di favorire gli uomini, e che quindi è conveniente omaggiare. Al contrario di quel che pensava Hobbes, nell’Ethica la religione deve la sua universalità anche a una teoria errata che gli uomini assumono inevitabilmente, e che quindi sarebbe nata anche senza la paura. Le ragioni di questa forte immissione cognitiva nell’origine della religione non possono che essere ipotetiche. In quel che segue suggerirò di cercarne le ragioni nell’allargamento dell’ambito dei fenomeni la cui origine, nell’Ethica, viene addossata al finalismo antropocentrico, e nel quale viene fatta rientrare la base cognitiva del fenomeno religioso. 8.3 IL FINALISMO NELL’ETHICA

Nell’Appendice alla Prima parte dell’Ethica, Spinoza si propone tre obiettivi: 1. Ricercare la causa per la quale la maggioranza degli uomini è vittima del pregiudizio finalistico; 2. Mostrarne la falsità; 3. Mostrare come da quel pregiudizio “abbiano avuto origine i pregiudizi sul bene e il male …”

I primi due punti si concentrano sulla teologia derivata dal pregiudizio finalistico, mentre il terzo si concentra su un ampio spettro di nozioni anch’esse ricondotte al finalismo antropocentrico. Queste nozioni vengono precisate due volte, in due elenchi distinti e non coincidenti. Il primo elenco si trova al momento dell’annunzio di quel che sarà oggetto del terzo punto preso in considerazione:

Infine (mostrerò) come da esso (ossia dal pregiudizio finalistico) abbiano avuto origine i pregiudizi sul bene e il male, il merito e la colpa, la lode e il biasimo, l’ordine e la confusione, la bellezza e la bruttezza, e su altre simili cose.

Il pregiudizio che concerne queste nozioni consiste nel fatto che esse attribuiscono alle cose stesse le percezioni soggettive. Senza il finalismo, gli uomini direbbero che una cosa “piace”, o “è favorevole”; il finalismo antropocentrico, invece, induce a pensare che una cosa sia in se stessa “buona”, ovvero che il piacere in colui che percepisce quella cosa

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sia ciò cui quella cosa tende. Questa proiezione sulle cose stesse delle percezioni soggettive è spiegabile solo grazie all’operare silenzioso del pregiudizio finalistico antropocentrico. Non solo: dato il pregiudizio finalistico antropocentrico, quelle nozioni si producono necessariamente. Ovvero il finalismo antropocentrico non è solo causa necessaria ma anche sufficiente per la nascita di queste nozioni, come Spinoza precisa introducendo la seconda lista di nozioni derivate dal finalismo:

Gli uomini, una volta persuasi che tutto ciò che si produce viene prodotto per loro, hanno dovuto (sott. mia) giudicare che più di tutto contasse in ciascuna cosa ciò che a loro fosse più utile, e considerare superiori a tutte le cose quelle dalle quali erano maggiormente colpiti. A partire di qui hanno dovuto (sott. mia) formare le nozioni in base alle quali spiegare la natura delle cose, ossia le nozioni di bene, male, ordine, confusione, caldo, freddo, bellezza e bruttezza; e dal fatto che si ritengono liberi sono sorte le nozioni di lode, biasimo, colpa e merito.

Rispetto al primo elenco, una coppia di nozioni si è aggiunta: il caldo e il freddo. Se il primo elenco aveva potuto dare l’impressione che il finalismo antropocentrico fosse responsabile solo dell’origine dei valori, ora sappiamo che non sono solo i valori ad aver origine nel finalismo ma anche altre nozioni apparentemente prive di connotazioni valutative, come il caldo e il freddo.

Anche in questo caso, l’errore indotto dal finalismo antropocentrico consiste nel fare di queste nozioni proprietà delle cose, invece di riconoscerne il carattere soggettivo:

Tutte quelle altre nozioni, del resto, non sono altro se non modi di immaginare, da cui l’immaginazione è variamente colpita, e tuttavia gli ignoranti le considerano come i principali attributi delle cose; questo perché, come già abbiamo detto, credono che tutte le cose siano state fatte per loro, e dunque chiamano la natura di una cosa buona o malvagia, sana o marcia e corrotta, a seconda di come ne sono colpiti.

Spinoza scende poi nel dettaglio di queste nozioni analizzando l’origine di ognuna. Le cose sono giudicate belle “se il movimento che i nervi ricevono attraverso gli occhi produce benessere” e brutte se il movimento dei nervi produce un effetto opposto. Nuovamente sono in gioco valori, stavolta estetici, tutti ritenuti reazioni del soggetto a percezioni gradevoli o sgradevoli provocate dall’ambiente. L’elenco però prosegue e l’indagine si sofferma su caratteristiche semplicemente

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descrittive, ovvero sulla oggettivazione di percezioni che non sono né gradevoli né sgradevoli, ma che producono comunque una reazione percettiva:

Gli oggetti poi che stimolano i sensi attraverso le narici li chiamiamo profumati o puzzolenti, e dolci o amari, saporiti o insipidi, ecc. quelli che lo fanno per mezzo della lingua. Quelli che passano attraverso il tatto saranno chiamati duri o molli, ruvidi o lisci ecc... Tutto questo mostra a sufficienza come ciascuno giudichi delle cose in base alla disposizione del suo cervello, o piuttosto prenda per cose reali le impressioni dell’immaginazione.

La seconda lista di nozioni che derivano dal finalismo antropocentrico e la spiegazione che ne segue mostra come al finalismo antropocentrico si debba addossare ogni oggettivazione delle sensazioni, siano queste piacevoli, spiacevoli o emotivamente indifferenti. In assenza del finalismo l’uomo della strada che tocca la neve direbbe: sento freddo quando tocco la neve. Lo scienziato, per parte sua, direbbe che la temperatura della neve è di zero gradi. Chi ragiona secondo un finalismo antropocentrico, invece, pensa e dice che la neve è fredda. Infatti quest’ultimo pensa che le sensazioni che l’uomo prova al contatto delle cose siano il fine cui tendono le cose stesse, e per questo ritiene che l’effetto che esse provocano sia riconducibile a una loro caratteristica intrinseca, simile alla sensazione che essa provoca nel soggetto.

Il terzo punto discusso nell’Appendice di differenzia dai primi due perché le nozioni qui analizzate non dipendono necessariamente dalle implicazioni teologiche del finalismo antropocentrico. Non è infatti indispensabile che gli uomini arrivino alla conclusione che esiste un Dio che ha fatto la natura per il bene dell’uomo per “chiamare la natura di una cosa buona o malvagia, sana o marcia e corrotta, a seconda di come ne sono colpiti.” Basta fermarsi al primo gradino delle inferenze, ossia alla convinzione che il fine per il quale opera la natura è l’uomo. In effetti, la presentazione del terzo punto collega i pregiudizi che qui vengono discussi direttamente al finalismo antropocentrico, senza passare attraverso una teologia: “Gli uomini una volta persuasi che tutto ciò che si produce viene prodotto per loro (omnia quae fiunt, propter eos fieri), hanno dovuto giudicare che più di tutto contasse in ciascuna cosa ciò che a loro fosse più utile, e considerare superiori a tutte le cose quelle dalle quali erano maggiormente colpiti. A partite di qui hanno dovuto formare le nozioni in base alle quali spiegare la natura delle cose, ossia le nozioni di bene, male …”

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In base a questi dati, possiamo trarre una prima provvisoria conclusione. Nell’Ethica le conseguenze del finalismo antropocentrico si estendono all’intera visione prescientifica del mondo. Quale sia la visione del mondo di cui il finalismo antropocentrico è ritenuto responsabile non è difficile stabilire: si tratta della percezione di un mondo nel quale le caratteristiche percepite sono ritenute simili a quelle realmente possedute dagli oggetti. Si tratta, insomma, della concezione pre-cartesiana del mondo fisico, in una parola si tratta della fisica qualitativa di origine aristotelica. 8.4 CONTRO ARISTOTELE

A partire da un intervento di Don Garrett del 1999 si è ipotizzato non solo una esclusione di Aristotele dalla critica spinoziana al finalismo, ma addirittura una convergenza di Spinoza nel finalismo aristotelico.4 Le ragioni per le quali Aristotele sfuggirebbe alla critica spinoziana sono essenzialmente due:

1. il finalismo aristotelico non implica l’esistenza di un Dio che consapevolmente impone fini alla natura;

2. il finalismo aristotelico non è antropocentrico.5

Colpisce che nell’analisi di Garrett e di chi lo ha discusso o ripreso, non si prenda mai in considerazione il terzo dei punti nei quali si articola l’analisi spinoziana del pregiudizio finalistico. In questo modo non ci si confronta con la tesi spinoziana secondo la quale il finalismo antropocentrico non avrebbe solo conseguenze teologiche, ma anche epistemologiche e assiologiche. Inoltre, spostando l’attenzione sul terzo punto, si vedrebbe facilmente che la prima ragione addotta per escludere il finalismo aristotelico dalla critica spinoziana non è utilizzabile nel caso delle nozioni là elencate. Infatti, grazie all’autonomia dal passaggio attraverso una teologia, questo peculiare gruppo di pregiudizi può includere al suo interno anche una filosofia che non abbia fatto ricorso al progetto consapevole di un Dio trascendente. Proprio per questo è

4 Cfr. D. Garrett, Teleology in Spinoza and Early Modern Rationalism, in R.J. Gennaro; Ch. Huenemann, New Essays on the Rationalists, New York, Oxford UP 1999, pp. 310-35. La tesi è stata ripresa recentemente da A. Sangiacomo, Aristotle, Heereboord, and the Polemical Target of Spinoza’s Critique of Final Causes, “Journal of the History of Philosophy” 5 Su questo secondo punto ha insistito soprattutto A. Sangiacomo

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soprattutto sul terzo punto della critica spinoziana alle conseguenze del finalismo antropocentrico che va misurata l’adesione o la rottura di Spinoza nei confronti di Aristotele, e cercherò di farlo soffermandomi sugli indizi di una esplicita allusione ad Aristotele nella critica spinoziana al finalismo antropocentrico.

Nell’Appendice alla prima parte dell’Ethica si trovano due chiare allusioni ai testi aristotelici. La prima, inserita dopo che la ricostruzione del pregiudizio finalistico in ambito teologico ha toccato il suo vertice con il ricorso all’inconoscibilità dei fini di Dio, concerne il fatto che la matematica ha fornito un criterio di verità indipendente dal finalismo: “per questa unica causa la verità sarebbe davvero rimasta eternamente nascosta al genere umano, se un’altra regola di verità non fosse stata manifestata agli uomini dalla matematica, che non si occupa dei fini ma soltanto delle essenze e proprietà delle figure.”6 Si tratta di un rinvio a Metaphysica A 996a, 29-30: “Nelle matematiche non si dimostra nulla mediante la causa finale, e non esiste alcuna dimostrazione che argomenti in base al meglio o al peggio.” In questo testo, è fondamentale l’affermazione aristotelica secondo la quale la matematica, al contrario delle scienze che si avvalgono della finalità, non utilizza “argomenti in base al meglio o al peggio”. Secondo Aristotele, invece, il finalismo implica un’assiologia, ovvero un riferimento al “meglio e al peggio”, come risulta evidente dal testo fondamentale della dottrina aristotelica sul finalismo naturale, ossia il secondo Libro della Fisica: “non un estremo qualsiasi, ma soltanto il migliore ha la pretesa di essere il fine” (Fisica II (B), 2, 194 a,30-32). Il fine delle singole specie è la realizzazione della propria natura, ma la realizzazione della propria natura non è un termine qualsiasi di ogni processo -altrimenti si potrebbe dire che la morte è il fine della vita-, ma la perfezione della natura di ogni singola specie: l’uomo adulto e sano realizza il fine cui tende la natura umana, non il malato o il defunto.

Emblematica, in questo senso, è la confutazione aristotelica di coloro che criticano l’interpretazione finalistica della natura rifacendosi agli eventi irregolari che si verificano raramente e che sono in contrasto con la perfezione che si dice che la natura intenderebbe raggiungere: i mostri. Aristotele ha la genialità di avvalersi dell’obiezione contro la finalità della natura tratta dagli “errori” presenti in essa, per rafforzare l’interpretazione finalistica. Solo dove c’è un fine, infatti, c’è errore, quindi chi parla di errori di natura presuppone il finalismo che vorrebbe contestare: “Del resto, si riscontrano errori anche nei prodotti dell’arte …

6 p. 69

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è ovvio, quindi, che ciò può accadere anche nei prodotti naturali. Se vi sono, dunque, cose artificiali in cui ciò che è esatto, è tale in virtù della causa finale, mentre nelle parti sbagliate pur si è mirato ad un fine, ma non si è riusciti a conseguirlo, la medesima cosa avverrà anche nei prodotti naturali, e i mostri risultano sbagli di quella determinata causa finale.” (Fisica, II, (B), 8, 199 a,35-b5).

Al colpo di genio di Aristotele corrisponde specularmente il colpo di genio di Spinoza: è la finalità presupposta acriticamente che ha prodotto la nozione di ordine e di disordine, di perfezione e imperfezione, di bene e di male in natura. E’ poi ovvio che solo la finalità possa spiegare le nozioni che essa stessa ha generato. Se invece neghiamo la finalità, quelle stesse nozioni che la finalità era chiamata a spiegare spariscono con lei, e con lei sparisce la possibilità di parlare di fenomeni ordinati o disordinati, fenomeni buoni e cattivi, e errori di natura. Così i valori attribuiti alle cose –il bene e il male-, assieme alle qualità secondarie –il caldo e il freddo– svaniscono assieme all’errore che li ha generati. In questo modo Spinoza, nell’Appendice della prima Parte dell’Ethica, dissolve il classico problema di teodicea, negando legittimità alle nozioni di “male” o di “disordine” in natura.

Il primo rinvio a un testo aristotelico avalla la convinzione spinoziana che il finalismo –nel caso quello aristotelico– non possa fare a meno di quel criterio di valore nel giudicare gli eventi naturali che Spinoza intende dissolvere nel terzo punto della critica al pregiudizio finalistico.

Il secondo rinvio testuale ad Aristotele porta poi a confrontarsi direttamente con la seconda e più seria ragione per la quale il finalismo aristotelico non potrebbe essere incluso nella critica spinoziana, ossia il fatto che il finalismo aristotelico non solo non implica una teologia ma non è nemmeno antropocentrico. Si tratta della citazione di un celebre motto di origine aristotelica di cui tutta la tradizione successiva si è avvalsa a piene mani: “La natura non fa niente invano”. Spinoza non si limita a citare questo celebre motto, ma ad esso aggiunge una chiosa, inserita tra parentesi: “cioè, che non sia utilizzabile dagli uomini”. Per decidere sulla inclusione o meno di Aristotele nella critica al finalismo antropocentrico, è importante capire se l’aggiunta tra parentesi inserita da Spinoza a commento dell’adagio aristotelico si proponga di escludere o di includere lo stesso Aristotele. Spinoza potrebbe infatti voler precisare in senso antropocentrico il motto aristotelico allo scopo di escludere dalla sua critica chi, come Aristotele, non avesse utilizzato un finalismo di quel tipo. In realtà, la frase, comprensiva del testo inserito in parentesi, ripropone

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una versione dell’adagio presente nel testo aristotelico di Politica, I, 8, 1256b:

Le piante sono fatte per gli animali e gli animali per l’uomo, quelli domestici perché ne usi e se ne nutra, quelli selvatici, se non tutti, almeno la maggior parte, perché se ne nutra e se ne serva per altri bisogni, ne tragga vesti e altri arnesi. Se dunque la natura niente fa né di imperfetto né invano, di necessità è per l’uomo che la natura li ha fatti, tutti quanti.”

L’impressione è che Spinoza abbia valorizzato uno dei pochi luoghi nei quali l’adagio è presentato da Aristotele stesso in una chiara versione antropocentrica, incitando a interpretare tutti i luoghi nei quali l’adagio compare alla luce di quel testo.

C’è però una ulteriore ipotesi di lettura, la più semplice e quindi la preferibile, ovvero che Spinoza, secondo una tecnica argomentativa che gli è abituale, e sulla quale ci soffermeremo tra breve, non cerchi teorie organiche dietro i pregiudizi che va denunciando, ma individui presupposti logicamente necessari di quegli stessi pregiudizi, anche se non necessariamente consapevoli. Nella sua ipotesi sull’origine della oggettivazione delle percezioni –caldo, freddo, dolce amaro, liscio ruvido– Spinoza non intende certo sostenere l’implausibile tesi secondo la quale una teoria relativa al finalismo antropocentrico preceda consapevolmente il linguaggio ordinario delle sensazioni, ma, molto più ragionevolmente, che un inconsapevole pregiudizio finalistico e antropocentrico è operante nell’attribuire alle cose le qualità percepite nella sensazione. Ricordiamo che, secondo Spinoza, senza quel pregiudizio l’oggettivazione delle percezioni non si produrrebbe. In effetti, e malgrado il passo della Politica, non c’è dubbio che il finalismo aristotelico si presenti come non antropocentrico, soprattutto nel secondo libro della Fisica. E tuttavia –questa è la tesi di Spinoza– se il finalismo antropocentrico non fosse silenziosamente operante, la tesi della somiglianza tra le proprietà delle cose e le percezioni non sarebbe mai sorta, così come i giudizi di valore relativi agli eventi naturali. In questo caso, il testo della Politica è rivelatore di quello che nella maggior parte dei casi rimane occulto ad Aristotele stesso.

Se questa analisi è corretta, essa permette di individuare la tesi di fondo di Spinoza, che si perde del tutto nelle letture che ipotizzano una confluenza di Spinoza nel finalismo aristotelico. La sfida teorica lanciata nell’Appendice alla Prima Parte dell’Ethica consiste precisamente nel

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sostenere che ogni finalismo è per sua natura antropocentrico: “natura nihil frustra, hoc est quod in usum hominum non sit, agit.”

8.5 UNA TECNICA DI CONFUTAZIONE

Rimane ora da verificare che la tecnica di confutazione spinoziana

corrisponda veramente a quella sopra ipotizzata. Nell’Appendice della prima Parte dell’Ethica Spinoza riconduce al

finalismo antropocentrico non solo tutte le forme di religione ma anche tutte le teorie che attribuiscono al mondo esterno caratteristiche simili a quelle percepite. Sotto la critica di Spinoza cadono sia teorie che assumono esplicitamente un finalismo antropocentrico sia teorie che assumono un finalismo apparentemente non antropocentrico e persino teorie che apparentemente non si cimentano nemmeno con il finalismo, come quelle che hanno ritenuto che le cose siano calde o fredde, dure o molli.

La tecnica con la quale vengono individuati i bersagli della critica al finalismo antropocentrico è tipica di Spinoza. Spinoza l’aveva già sperimentata a largo raggio nei Cogitata metaphysica. All’epoca, si trattava di dimostrare che tutta la teologia scolastica interpreta la natura divina secondo un modello umano, ed è quindi incapace di comprenderne l’infinità e la assoluta semplicità. I teologi allora presi a bersaglio rivelavano attraverso le loro teorie di attribuire a Dio una durata e una quantità, di distinguere l’esistenza e la potenza divine dall’essenza di Dio, di limitare la potenza e l’onniscienza divine, di distinguere l’intelletto dalla volontà di Dio, anche se a parole affermavano il contrario, ovvero che in Dio non vi sono distinzioni. Solo alcuni pensatori marginali –gli scolastici olandesi –Burgersdijck; Heereboord,- e, soprattutto, i sociniani assumevano esplicitamente le tesi operanti in ogni teologia.

A suo tempo, Dunin Borkowski sottolineava che solo il gruppo marginale dei sociniani aveva davvero sostenuto le tesi stigmatizzate da Spinoza, e si meravigliava che Spinoza si impegnasse a confutare un gruppo così marginale.7 In realtà l’intento di Spinoza era più sottile: si trattava di mostrare come i “crassi sociniani” fossero –hegelianamente- la “verità” della teologia scolastica. I sociniani assumono apertamente i presupposti nascosti di ogni teologia: affermano schiettamente che Dio è finito, che la sua potenza è distinta dall’essenza, che Dio è esteso e separato dal mondo, che non prevede i futuri contingenti, che l’eternità è una durata

7 Stanislaus von Dunin Borkowski, Spinoza, Munster i.W, 1933-36, III, Aus des Tagen Spinozas, pp. 120-124; 353-58.

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indefinita. I rispettabili teologi scolastici, invece, affermano che Dio è infinito, assolutamente semplice, scevro da ogni quantità e durata, ma poi, con le loro teorie sulla onnipresenza, l’immensità, l’onnipotenza divine, dimostrano chiaramente di attribuire a Dio una quantità, di ritenere che i suoi attributi sono distinguibili dalla sua essenza, e quindi di ritenerlo finito. Un esempio per tutti: se i teologi più rispettabili “sembrano” soltanto “distinguere tra l’essenza divina e la sua potenza” “altri lo dicono più apertamente, quando sostengono che Dio è ovunque per potenza, ma non per essenza…” Gli altri, coloro che distinguono apertamente essenza e potenza in Dio sono Fausto Sozzini, Johann Crell e l’arminiano Episcopio.8 E’ nel De Deo di Crell che si trova esplicitamente affermato che Dio è finito, esteso, che ha una durata, che in lui la potenza e l’essenza sono divise ecc. E’ nel De Deo di Crell che si nasconde la “verità” di tutta la teologia scolastica.

E’ bene tenere presente questo testo inaugurale della tecnica di confutazione delle teologie pre-spinoziane, perché aiuta a leggere anche i primi due punti della critica di Spinoza ai pregiudizi derivati dal finalismo antropocentrico. Come accade per Aristotele nel terzo punto, anche nella individuazione delle conseguenze del finalismo antropocentrico in teologia Spinoza è in caccia dei presupposti impliciti che lavorano nell’ombra per uscire poi allo scoperto, magari in autori marginali o moderni, che osano affermare chiaramente quel che è operante in ogni teologia.

A partire da Wolfson, si è cercato di determinare quali fossero i teologi che sostenevano le tesi teologiche che, secondo Spinoza, discendono necessariamente dal finalismo antropocentrico e che quindi costituiscono il bersaglio della critica spinoziana. I nomi individuati sono gli stessi che erano stati i bersagli della critica spinoziana nei Cogitata metaphysica: la scolastica olandese con la sua fonte più prossima, Francisco Suarez, e i sociniani, con la figura di spicco della teologia razionale di questi ultimi, ovvero Johann Crell. Suarez e Crell meglio di altri si prestano a dare un volto davvero preciso al bersaglio polemico di Spinoza, dal momento che il loro finalismo è esplicitamente un finalismo antropocentrico.9 Aver

8 F. Sozzini, Fragmentum cathechismi Prioris F.S.S. in F. Sozzini, Opera omnia, 2 voll, I, p. 685: gli scritti sacri “suadere … videntur, ipsius Dei substantiam non ubique pariter praesentem esse., et sic eam non esse immensam nec infinitam, quamvis ubique tamen sua virtute et providentia sit ipse Deus praesens.” E J. Crell, pp. 90b ss; Episcopius, Insititutiones theologicae, in Opera theologica, Amsterdam 1650, p. 287b. 9 J. Crellius, Liber de Deo et ejus attributis, in Bibliotheca fratrum polonorum , cap. III, Ex mundi huius opificio Deum esse demonstratur. P. 6a: “Utilitatem Solis longe maximam, ad quam natura

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individuato questi bersagli polemici ha poi molto contribuito alla tesi secondo la quale autori come Aristotele e teologie come quella tomista sarebbero immuni dalla critica spinoziana.10

La relativa marginalità o la modernità degli autori capaci di dare un volto riconoscibile alla teologia criticata da Spinoza sembra però confliggere con l’incipit epocale della critica al finalismo, che riconduce ad esso, come si è visto, l’intero ambito delle credenze religiose e attribuisce questo errore e le sue conseguenze sempre agli “uomini”, all’intero genere umano: “Homines … concludere debuerunt, dari aliquem vel aliquos naturae rectores…”. Questa apparente incongruenza del testo può essere superata alla luce della strategia polemica costante in Spinoza. Anche in questo caso, infatti, alcuni autori marginali o moderni assumono apertamente i presupposti operanti in ogni teologia, anche quella che non fa ricorso all’antropomorfismo, e si limita a parlare di un disegno divino senza il quale non sarebbe possibile spiegare fenomeni complessi come “la struttura del corpo umano”.

Questa tecnica argomentativa è presente anche nel TTP, proprio nel capitolo sui miracoli dal quale eravamo partiti. In questo capitolo, Spinoza sostiene che coloro che credono nei miracoli si raffigurano Dio e natura come due potenze distinte e indipendenti l’una dall’altra. Solo così si spiegherebbe la loro convinzione che Dio operi sulla natura alterandone occasionalmente le leggi. Anche in questo caso Dunin Borkowski si stupiva dell’analisi spinoziana: nessuno, stavolta nemmeno i sociniani, ha sostenuto che la potenza di Dio e quella della natura sono distinte. A chi pensava dunque Spinoza? Probabilmente a nessuno in particolare, ma, anche in questo caso, Spinoza individuava il presupposto teorico operante nella credenza nei miracoli, ne fossero o meno consapevoli i sostenitori del potere divino di alterare le leggi della natura.

Con analoga tecnica, nell’Ethica l’origine della credenza nell’esistenza di “uno o più dèi” è ricondotta a una visione del mondo interamente dominata dal finalismo antropocentrico, arricchendo il quadro dell’origine della religione presente nel TTP. Come preannunciato,

comparatus est, qui non cernit, eum caecum esse oportet … Ita enim a natura factus est, ut et lumen animantibus, ac praecipue homini, ad variarum rerum cognitionem, atque ad actiones operaque necessaria ptraebeat.”; p. 8b: “Ex his vero alia iterum emergit utilitas, quae plantae tum animalium, tum vero maxime hominis vitae, qui rerum terrenarum omnium dominus est et finis quideam, serviunt.” Ma in questo anche Suarez, sulla scia del passo della Politica di Aristotele sopra ricordato. DM 24.2.10: “res singulas Deus ordinavit ad pulchrutudinem universi, et herbas et animalia condidit propter hominem…” 10 Sangiacomo.

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le ragioni di questo intervento non possono che essere ipotetiche. La mia ipotesi è che nel passaggio dal TTP all’Ethica Spinoza si sia convinto della possibilità di inserire l’origine della religione non filosofica tra le molteplici conseguenze di un unico errore di fondo, in forza di una sorta di principio di economia nella genesi degli errori. La credenza in uno o più dèi simili all’uomo ha ora la stessa origine della teoria secondo la quale le proprietà delle cose sono simili alle percezioni che le cose stesse producono nel soggetto.

Come conseguenza, almeno una delle responsabilità di cui gli Ebrei portavano il peso nel TTP –la credenza nei miracoli e il finalismo etnocentrico– è stata equamente distribuita sul genere umano e sulle sue debolezze.

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IX

ESPINOSA: os milagres, a origem da religião e o finalismo

Emmanuela Scribano*

Tradução: Ana Maria Lorenzoni** 9.1 OS MILAGRES E O FINALISMO

No TTP, Espinosa dedica um capítulo inteiro, o VI, aos milagres. O tema dos milagres repete-se, mas apenas incidentalmente, também na Ética, no grande Apêndice à Primeira Parte. Nos dois casos, os milagres são associados a uma interpretação da natureza fortemente contrária à de Espinosa, àquela que considera que a natureza tende a favorecer o homem. Mas há uma diferença importante entre os dois textos.

O capítulo IV do TTP se inicia fazendo referência às crenças populares. O povo acredita que a presença de Deus se revela nos eventos extraordinários da natureza, dos quais desconhece as causas:

O vulgo chama de milagres, a saber, obras de Deus, os feitos incomuns da natureza, e... prefere ignorar as causas naturais das coisas, e anseia por ouvir falar apenas daquilo que maximamente ignora e que, por isso, acima de tudo admira1.

* Reconhecidamente uma das maiores pesquisadoras de História da Filosofia Moderna. Foi professora nas Universidades de Florença, Veneza e Siena. Atualmente, leciona História da Filosofia e História da Filosofia Moderna na Universidade Ca' Foscari de Veneza. Ocupa-se especialmente do pensamento filosófico moderno e sua conexão com o pensamento medieval. ** Doutoranda no Programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, na linha de pesquisa de Ética e Filosofia Política. Possui Mestrado em Ética e Filosofia Política (2015), e licenciatura em Filosofia (2012), ambos pela mesma instituição. Foi bolsista de Iniciação Científica dedicando-se à pesquisa dos textos filosóficos de Theodor W. Adorno e de Ernst Bloch. Atua, junto ao CNPq, na linha de pesquisa: Poder, Política e Legitimidade, do grupo de pesquisa Ética e Política, da Unioeste. Atualmente, dedica-se ao estudo da obra de Ernst Bloch, sobretudo seus aspectos éticos e políticos. Tem interesse nos seguintes temas: filosofia da natureza, materialismo, utopia, etologia, filosofia contemporânea, ética, política e teoria crítica. 1 pp. 150-51.

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Espinosa identifica a origem dessa postura logo em seguida:

A sua origem pode ser encontrada junto aos antigos hebreus, os quais, para convencer seus contemporâneos pagãos, que adoravam divindades visíveis como o Sol, a Lua, a Terra..., e para demonstrar que aquelas eram frágeis e inconstantes e submissas à autoridade do Deus invisível, narravam os próprios milagres, com os quais ainda se esforçavam para demonstrar que toda a natureza era regulada para seu exclusivo proveito pelo poder do Deus que eles adoravam (Ibid.).

Malgrado o início do capítulo apresente a crença em milagres como difundida genericamente no “povo”, a sua origem é, em seguida, atribuída a um grupo humano particular, os hebreus. Estes de fato teriam propagado a crença nos milagres para convencer os pagãos a abandonar o politeísmo, abraçar o seu monoteísmo, e convencê-los da particular predileção do Deus escondido com relação a eles. Para tanto, os hebreus narravam os milagres do Deus invisível “miracula sua narrabant”, com os quais pretendiam sobretudo mostrar que “toda a natureza era direcionada exclusivamente para dar-lhes o máximo benefício do Deus que adoravam”. A crença em milagres seria, portanto, destinada a mostrar que toda a natureza é regida pelo único Deus reconhecido pelos hebreus, em função exclusiva do bem-estar do povo eleito. Por detrás da crença em milagres, esconde-se um projeto de supremacia do povo hebraico.

O uso que os hebreus fariam dos milagres agradou tanto os homens, que todos se colocaram à caça de eventos que pudessem ser passados por milagres, de modo que eles também pudessem ser apresentados como o fim para o qual Deus teria criado todas as coisas: “isso agradou tanto os homens que até os dias de hoje continuam a imaginar milagres, por acreditarem ser mais caros a Deus do que os outros e por fazê-los acreditar que eles são a causa final pela qual Deus criou todas as coisas e continuamente as rege”. Na disputa imitativa para estabelecer quem seria majoritariamente bem-visto pelos deuses, os grupos humanos entrariam numa competição para reivindicar o atestado de “causa final, pela qual Deus criou todas as coisas e continuamente as rege”. No TTP, o finalismo surge como um finalismo etnocêntrico.

A hipótese sobre a origem hebraica da crença em milagres se coaduna a características análogas atribuídas aos hebreus, como a de atribuir a Deus os eventos dos quais ignoravam as causas2. O caso dos

2 “Judaei nunquam causarum mediarum, sive particularium faciunt mentionem, nec eas curant, sed

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milagres é, porém, peculiar. Enquanto o hábito hebreu de referir cada evento a Deus explica muitas expressões utilizadas na narração bíblica, mas não excluí que se trata de um uso também utilizado por outros povos, a crença em milagres dos hebreus é identificada como a origem da crença análoga difundida em todo o gênero humano, com seu respectivo corolário da finalidade etnocêntrica.

Na discussão sobre o finalismo e na referência aos milagres presente na Ética, entretanto, desaparece qualquer alusão a uma propagação dessa crença por meio de uma ação hegemônica de um grupo humano particular. A atenção de Espinosa se concentra sobre a origem do preconceito finalístico [pregiudizio finalístico], apresentado como uma tendência espontânea da mente humana:

...os homens fazem tudo em vista de um fim ou ganho que visam; assim procuram sempre conhecer as causas finais do que aconteceu...

A incapacidade de identificar as causas finais dos eventos naturais leva os homens a projetarem sobre a natureza os fins que eles mesmos perseguem e, deste modo, se convencem de que existem “um ou mais soberanos da natureza, dotados de humana liberdade, que eles tomariam conta de tudo e que fariam tudo para seu uso”. Dentro de poucas passagens, a crença espontânea no finalismo da natureza se transforma na convicção, outrossim espontânea, que o fim da natureza seja o bem-estar do gênero humano. Finalmente, os homens atribuem aos deuses características humanas: ao antropocentrismo se une o antropomorfismo.

Há realmente um ponto de conexão entre o Apêndice da Primeira Parte da Ética e o TTP. Na Ética, logo após ter sinteticamente apresentado os estágios que levam do finalismo da natureza ao antropocentrismo concernente aos fins da(s) divindade(s) e deste ao antropomorfismo concernente ao caráter da(s) divindade(s), Espinosa observa que “é dessa forma que todos eles desenvolveram, à sua maneira, maneiras diferentes de render culto a Deus, a fim de que Deus os preferisse acima de todos os outros e dirigisse toda a natureza ao uso de seu desejo cego e avareza insaciável”. Mas é precisamente a recordação interna ao TTP que evidencia a inversão que esse tema recebeu na transição entre as duas obras. Enquanto no TTP o finalismo surge com o propósito de privilegiar um grupo humano sobre

religionis ac pietatis, sivi (ut vulgo dici solet) devotionis causa ad Deum semper recurrunt” (cap. I, Geb. III, 16-17); ou: “omnia, quae captum Judaeorum superabant et quorum causas naturales tum temporis ignorabant, ad Deum referri solebant” (cap. I, Geb. III, 23).

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outros, na Ética esse uso do preconceito finalístico [pregiudizio finalístico] se instala após o seu surgimento e, portanto, não é causa. Ademais, na Ética, a crença em milagres aparece fugazmente como consequência da mesma ignorância das causas que gerou o finalismo. Aqueles que o povo venera “como intérpretes dos deuses” buscam manter viva tal crença como instrumento do poder que eles possuem: “aquele que pergunta pelas verdadeiras causas dos milagres ... é geralmente considerado herege e ímpio por aqueles que o povo venera como intérpretes da natureza e dos deuses”. 9.2 A ORIGEM DA RELIGIÃO

A mudança relativa ao relacionamento entre a crença no finalismo antropocêntrico e a rivalidade dos grupos humanos na luta pelo favorecimento dos deuses é a luz de uma importante novidade presente no texto da Ética, ou seja, da articulada teoria sobre a origem da religião que dificulta e modifica a tese do TTP. No Apêndice da Primeira Parte da Ética, o finalismo antropocêntrico é indicado como o responsável pela crença na existência de uma ou mais divindades (“eles [os homens] tiveram que deduzir que existiam um ou mais soberanos da natureza”) e do culto rendido aos deuses (“todos inventaram modos diversos de render culto a Deus”). Essa crença e esse culto são, em seguida, transformados em superstição: “E esse preconceito [pregiudizio], que se traduziu em superstição, lançou raízes profundas nas mentes, até produzir o efeito de que cada um movesse todos os esforços para compreender as causas finais e todas as coisas e explicá-las”. Na Ética, o finalismo antropocêntrico é indicado como a causa da religião que se transforma, em seguida, em superstição. Se voltarmos a examinar o TTP, será fácil verificar que nesse texto não se encontra qualquer conexão entre o finalismo e a origem da superstição. De fato, no TTP, a origem da superstição é identificada apenas em uma causa passional, o medo. A inteira prefação do TTP é dedica a esse tema e à periculosidade social e política de um fenômeno de origem inteiramente irracional: “O medo é a causa que origina, mantém e favorece a superstição”. Por isso todos os homens são inclinados a ela. Essa explicação da origem da superstição é capaz de impedir qualquer partícula de verdade: “Se essa, então, é a causa da superstição, é claro que todos os homens são a ela naturalmente inclinados, apesar do que dizem aqueles que consideram que a causa do medo seja o fato de que todos os mortais tenham uma ideia confusa da divindade”.

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A prefação do TTP, traz o sinal da leitura recente do Leviatã, de Hobbes, e da adesão vigorosa à tese segundo a qual é o medo, ou seja, uma emoção, que origina a religião. Notoriamente, para Hobbes, a diferença entre religião e superstição é totalmente relativa, visto que os homens chamam de superstição as crenças dos outros e de religião a sua própria. Espinosa, no TTP, segue Hobbes em todos os detalhes da sua argumentação no que concerne a origem da superstição: esta é causada por uma paixão, o medo, fomentada pela ignorância das causas naturais; essa origem explica sua universalidade e naturalidade, sem qualquer referência à sua verdade. Longe de negar a ação enganadora dos políticos, esta é reafirmada como uma necessidade devido à impossibilidade de ignorar um fenômeno intrínseco à natureza humana, e, ao mesmo tempo, como um fenômeno para governar por meio do poder político. Na Ética, em vez disso, a reconstrução da origem do fenômeno religioso não menciona as paixões. A origem da crença em um ou mais deuses e do culto pago a eles é identificada em uma atitude cognitiva e não emotiva. A religião é um fenômeno natural e, portanto, universal, mas não porque se origina de uma paixão, mas porque nasce de uma falsa crença que advém necessariamente da ignorância das causas. A universalidade do fenômeno religioso não é um indício da sua verdade, mas por motivos diferentes daqueles indicados na prefação do TTP sobre as superstições. Enfim, na Ética, a palavra “superstição” aparece como uma ulterior consequência do preconceito finalístico [pregiudizio finalístico] que reage sobre este, contribuindo para reforçá-lo e difundi-lo.

A tese segundo a qual o medo tem um papel relevante na origem da superstição é presente também na Ética, ainda que inserida em um contexto que não lhe dá muita evidência, ou seja, margem às análises das paixões da esperança e do medo, quando, por meio de associações causais de ideias, essas paixões levam a interpretar alguns eventos como presságios bons ou ruins:

As coisas que acidentalmente são causas de esperança ou de medo são chamadas de presságios bons ou ruins. ... Assim surgem as superstições com as quais os homens se debatem (III, pL,s).

A relação entre religião e superstição não é indicada por Espinosa na Ética, nem em outro lugar. Na Ética, como se viu, se fala indiferentemente de monoteísmo ou de politeísmo como filhos do preconceito finalístico [pregiudizio finalístico], todos indiferentemente se transformam em “superstição”. No TTP, Espinosa se propõe a distinguir

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a verdadeira religião da superstição no campo das formas de religião não filosófica. Mas a religião “verdadeira” deverá surgir da reforma da exegese bíblica proposta por Espinosa. Entretanto, os políticos têm munido “seja a verdadeira, seja a falsa religião” de um aparato cultual que constrange os crentes à uniformidade, com a convicção de que consequências analogamente perigosas se produzem em toda forma de religião. A superstição da qual fala Espinosa parece incluir o fenômeno religioso de origem não filosófica em geral3. Mais precisamente, o uso do termo “superstição” é privilegiado quando se trata de cultos e crenças extravagantes ou de consequências violentas do fenômeno religioso, como ocorre na prefação do TTP. Mas também limitando o confronto entre o TTP e a Ética à “superstição”, é possível constatar que, enquanto na prefação do TTP se falava somente da origem emotiva da superstição, na Ética, a esperança e o medo operam ou, eventualmente, cooperam com um fundo cognitivo, isto é, com a convicção de que existem regentes da natureza que a criaram ou ordenaram, tendo como fim o favorecimento dos homens, e, portanto, é conveniente homenageá-los. Ao contrário daquilo que pensava Hobbes, na Ética, a religião deve a sua universalidade também a uma teoria errada que os homens assumem inevitavelmente, e que nasceria inclusive sem o medo. As razões dessa forte introdução cognitiva na origem da religião não são nada além de hipotéticas. Naquilo que se segue, sugerirei buscar as razões no alargamento do âmbito dos fenômenos cujas origens, na Ética, estão vinculadas ao finalismo antropocêntrico, e nos quais regressa a base cognitiva do fenômeno religioso. 9.3 O FINALISMO NA ÉTICA

No Apêndice da Primeira Parte da Ética, Espinosa se propõe três objetivos: 1. Pesquisar a causa pela qual a maioria dos homens é vítima do preconceito finalístico; 2. Mostrar sua falsidade; 3. Mostrar como, daquele preconceito, “originamos os preconceitos sobre o bem e o mal...”

Os primeiros dois pontos se concentram sobre a teologia derivada do preconceito finalístico, enquanto o terceiro se concentra sobre um amplo espectro de noções que também reconduzem ao finalismo antropocêntrico. Essas noções são precisadas em duas ocasiões, em duas listagens distintas e não coincidentes. A primeira listagem se encontra no

3 Garber art. che mi ha inviato

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momento do anúncio daquilo que será objeto do terceiro ponto considerado:

Enfim (mostrarei) como disso (ou seja, do preconceito finalístico) originamos os preconceitos sobre o bem e o mal, o mérito e a culpa, o elogio e a reprovação, a ordem e a confusão, a beleza e a feiura, e sobre outras coisas semelhantes.

O preconceito que concerne essas noções consiste no fato de que atribuímos às coisas mesmas as percepções subjetivas. Sem o finalismo, os homens diriam que uma coisa “agrada” ou “é favorável”; o finalismo antropocêntrico, em vez disso, induz a pensar que uma coisa seja em si mesma “boa”, ou seja, que o prazer daquele que percebe aquela coisa seja aquilo ao qual aquela coisa tende. Essa projeção sobre as coisas mesmas, das percepções subjetivas, é explicável apenas graças ao trabalhar silencioso do preconceito finalístico antropocêntrico. Não só isso: dado o preconceito finalístico antropocêntrico, aquelas noções se produzem necessariamente. Ou seja, o finalismo antropocêntrico não é apenas causa necessária, mas também suficiente, para o nascimento dessas noções, como Espinosa especifica introduzindo a segunda lista de noções derivadas do finalismo:

Os homens, uma vez convencidos de que tudo aquilo que se produz é produzido para eles, tiveram (grifo nosso) que julgar que o que tem mais valor em cada coisa seria mais útil para eles, e considerar superiores todas as coisas das quais eram majoritariamente afetados. A partir daqui, tiveram (grifo nosso) que formar as noções com base nas quais explicar a natureza das coisas, ou seja, as noções de bem, mal, ordem, confusão, calor, frio, beleza e feiura; e, do fato que se consideram livres, surgiram as noções de elogio, reprovação, culpa e mérito.

No que se refere à primeira listagem, um par de noções é adicionado: o calor e o frio. Se a primeira listagem poderia dar a impressão de que o finalismo antropocêntrico seria responsável somente pela origem dos valores, agora sabemos que não são apenas os valores que têm origem no finalismo, mas também outras noções aparentemente privadas de conotação valorativas, como o calor e o frio.

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Também nesse caso, o erro induzido pelo finalismo antropocêntrico consiste em fazer dessas noções propriedades das coisas, em vez de reconhecer seu caráter subjetivo:

Todas aquelas outras noções, de resto, não são outra coisa a não ser modos de imaginar, das quais a imaginação é afetada variadamente, e, todavia, os ignorantes as consideram como os principais atributos das coisas; isso porque, como já disséramos, creem que todas as coisas foram feitas para eles, e então chamam a natureza de uma coisa boa ou má, saudável ou podre e corrupta, a depender de como são afetados.

Espinosa, em seguida, incide nos detalhes dessas noções, analisando a origem de cada uma. As coisas são julgadas belas “se o movimento que os nervos recebem através dos olhos produzem bem-estar” e feias se o movimento dos nervos produz um efeito oposto. Novamente estão em jogo valores, desta vez estéticos, todos considerados como reações do sujeito a percepções agradáveis ou desagradáveis provocadas pelo ambiente. A listagem, então, prossegue, e a investigação se concentra sobre as características simplesmente descritivas, ou seja, sobre a objetivação das percepções que não são nem agradáveis nem desagradáveis, mas que produzem de qualquer maneira uma reação perceptiva:

Os objetos que estimulam os sentidos através do nariz, chamamos de perfumados ou malcheirosos, e doces ou amargos, saborosos ou insípidos etc. aqueles que o fazem por meio da língua. Aqueles que atravessam o tato, são chamados duros ou moles, ásperos ou lisos etc. Tudo isso mostra suficientemente como cada um julga as coisas com base nas disposições de seu cérebro, ou melhor, toma como coisas reais as impressões da imaginação.

A segunda lista de noções que derivam do finalismo antropocêntrico e a explicação que a segue mostram como, ao finalismo antropocêntrico, deve-se imputar toda objetivação das sensações, aprazíveis, desaprazíveis ou emotivamente indiferentes. Na ausência do finalismo, o homem comum que toca a neve diria: sinto frio quando toco a neve. O cientista, por sua vez, diria que a temperatura da neve é de zero grau. Quem raciocina segundo um finalismo antropocêntrico, em vez disso, pensa e diz que a neve é fria. De fato, este último pensa que as

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sensações que o homem prova ao ter contato com as coisas são o fim ao qual tendem as coisas mesmas, e por isso considera que o afeto que elas provocam faz referência a uma característica intrínseca delas, semelhante às sensações que provocam no sujeito.

O terceiro ponto discutido no Apêndice se diferencia das duas primeiras partes porque as noções analisadas aqui não dependem necessariamente das implicações teológicas do finalismo antropocêntrico. Não é efetivamente indispensável que os homens cheguem à conclusão de que existe um Deus que fez a natureza para o bem do homem, para “chamar a natureza de uma coisa boa ou má, saudável ou podre e corrupta, a depender de como nos afetam”. Basta deter-se na primeira etapa das inferências, ou seja, na convicção de que o fim ao qual a natureza opera é o homem. Com efeito, a apresentação do terceiro ponto liga os preconceitos [pregiudizi] discutidos aqui diretamente ao finalismo antropocêntrico, sem passar por uma teologia: “os homens, uma vez convencidos de que tudo aquilo que se produz é produzido para eles (omnia quae fiunt propter eos fieri), tiveram que julgar que o que tem mais valor em cada coisa seria mais útil para eles, e considerar superiores todas as coisas das quais eram majoritariamente afetados. A partir daqui, tiveram que formar as noções em base às quais explicar a natureza das coisas, ou seja, as noções de bem, mal...”.

Com base nesses dados, podemos extrair uma primeira provisória conclusão. Na Ética, as consequências do finalismo antropocêntrico se estendem à inteira visão pré-científica do mundo. A visão de mundo da qual o finalismo antropocêntrico é julgado como responsável não é difícil estabelecer: se trata da percepção de um mundo na qual as características percebidas são consideradas semelhantes àquelas possuídas pelos objetivos. Se trata, em suma, da concepção pré-cartesiana do mundo físico, em poucas palavras, da física qualitativa de origem aristotélica. 9. 4 CONTRA ARISTÓTELES

A partir de uma intervenção de Don Garrett, de 1999, chegou-se à hipótese não apenas de uma exclusão de Aristóteles da crítica espinosana ao finalismo, mas também de uma convergência de Espinosa com o finalismo aristotélico . As razões pelas quais Aristóteles escaparia da crítica espinosana são essencialmente duas:

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1. O finalismo aristotélico não implica a existência de um Deus que se impõe conscientemente sobre a natureza;

2. O finalismo aristotélico não é antropocêntrico .

Surpreende que, na análise de Garret e daqueles que discutiram ou retomaram o assunto, não se leva em consideração o terceiro dos pontos nos quais se articula a análise espinosana do preconceito finalístico. Deste modo, não há o confronto com a tese espinosana segundo a qual o finalismo antropocêntrico não possui apenas consequências teológicas, mas também epistemológicas e axiológicas. Além disso, deslocando a atenção sobre o terceiro ponto, vê-se facilmente que a primeira razão adotada para excluir o finalismo aristotélico da crítica espinosana não é aplicável no caso das noções lá elencadas. De fato, graças à autonomia da passagem através de uma teologia, esse peculiar grupo de preconceitos pode incluir em seu interior também uma filosofia que não recorrera ao projeto consciente de um Deus transcendente. Precisamente por essa razão é que sobretudo no terceiro ponto da crítica espinosana às consequências do finalismo antropocêntrico mesura-se a adesão ou a ruptura de Espinosa com respeito a Aristóteles, e procurarei fazê-lo detendo-me sobre indícios de uma explícita alusão a Aristóteles na crítica espinosana ao finalismo antropocêntrico.

No Apêndice à Primeira Parte da Ética, encontram-se duas claras alusões aos textos aristotélicos. A primeira, inserida após a reconstrução do preconceito finalístico em âmbito teológico, alcança seu ápice com o recurso à impossibilidade de conhecer as finalidades de Deus, e diz respeito ao fato de que a matemática forneceu um critério de verdade independente do finalismo: “por esta única causa, a verdade teria permanecido eternamente desconhecida ao gênero humano, se uma outra regra de verdade não tivesse se manifestado aos homens por meio da matemática, que não se ocupa dos fins, mas apenas das essências e propriedades das figuras”4. Trata-se de uma alusão à Metaphysica A 996 a, 29-30: “Na matemática, não se demonstra nada mediante a causa final, e não existe qualquer demonstração que argumente baseando-se no melhor ou no pior”. Neste texto, é fundamental a afirmação aristotélica segundo a qual a matemática, ao contrário das ciências que recorrem à finalidade, não utiliza “argumentos que se baseiam no melhor ou no pior”. Segundo Aristóteles, em vez disso, o finalismo implica uma axiologia, ou seja, uma referência ao “melhor e ao pior”, como é evidente a partir do texto

4 p. 89.

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fundamental da doutrina aristotélica sobre o finalismo natural, isto é, o segundo Livro da Física: “não um extremo qualquer, mas apenas o melhor tem a pretensão de ser o fim” (Física II (B), 2, 194 a, 30-32). O fim de toda espécie é a realização da própria natureza, porém a realização da própria natureza não é o término qualquer de todo processo – caso contrário, poder-se-ia dizer que a morte é a finalidade da vida –, mas sim a perfeição da natureza de cada espécie singular: o homem adulto e saudável realiza o fim ao qual tende a natureza humana, não o doente ou o que morreu.

Emblemática, neste caso, é a refutação aristotélica daqueles que criticam a interpretação finalística da natureza fazendo referência aos eventos irregulares que se verificam raramente e que contrastam com a perfeição que se diz que a natureza alcançaria: os monstros. Aristóteles tem a genialidade de valer-se das objeções contra a finalidade da natureza, no que diz respeito aos “erros” presente nesta, para reforçar a interpretação finalística. Somente onde há um fim há, efetivamente, erro, portanto, aquele que fala de erros da natureza pressupõe o finalismo que gostaria de contestar: “De resto, encontram-se erros também nos produtos da arte... é óbvio, então, que eles podem ocorrer também nos produtos naturais. Se existem, então, coisas artificiais nas quais aquilo que é exato o é em virtude da causa final, ao passo que nas partes erradas visava um fim, mas não foi exitoso em alcançá-lo, a mesma coisa ocorrerá nos produtos naturais, e os monstros resultam como erros daquela determinada causa final” (Física, II, (B), 8, 199 a, 35-b5).

Ao golpe de gênio de Aristóteles corresponde especularmente o golpe de gênio de Espinosa: é a finalidade pressuposta acriticamente que produz a noção de ordem e de desordem, de perfeição e de imperfeição, de bem e de mal na natureza. É, portanto, óbvio que apenas a finalidade possa explicar noções que ela mesma gerou. Se, em vez disso, negarmos a finalidade, as mesmas noções que a finalidade deveria explicar desaparecem com ela, e com ela desaparece a possibilidade de falar em fenômenos ordenados ou desordenados, fenômenos bons e ruins, e erros da natureza. Assim, os valores atribuídos às coisas – o bem e o mal – juntamente com as qualidades secundárias – o calor e o frio – desaparecem junto com os erros que os geraram. Deste modo, Espinosa, no Apêndice da Primeira Parte da Ética, dissolve o clássico problema da teodiceia, negando a legitimidade das noções de “mal” ou de “desordem” na natureza.

A primeira alusão a um texto aristotélico endossa a convicção espinosana de que o finalismo – no caso, o aristotélico – não pode

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prescindir daquele critério de valor no julgamento dos eventos naturais que Espinosa pretende dissolver no terceiro ponto da crítica ao preconceito finalístico.

A segunda alusão textual a Aristóteles leva, em seguida, a confrontar-se diretamente com a segunda e mais séria razão pela qual o finalismo aristotélico não poderia ser incluído na crítica espinosana, qual seja, o fato de que o finalismo aristotélico não apenas não implica uma teologia, mas que nem sequer é antropocêntrico. Se trata da citação de um célebre mote de origem aristotélica do qual toda a tradição posterior se valeu a bel-prazer: “A natureza não faz nada em vão”. Espinosa não se limita a citar esse célebre mote, mas adiciona um comentário a ele, inserido entre parêntesis: “isto é, que não seja utilizável pelos homens”. Para decidir sobre inclusão ou não de Aristóteles na crítica ao finalismo antropocêntrico, é importante compreender se a adição entre parêntesis, inserida por Espinosa em comentário ao ditado aristotélico, se propõe a excluir ou a incluir o mesmo Aristóteles. Espinosa poderia, de fato, querer especificar em um sentido antropocêntrico o mote aristotélico, com o intuito de excluir aqueles que, como Aristóteles, não usaram um finalismo desse tipo. Na realidade, a frase, incluindo o texto inserido entre parêntesis, reitera uma versão do ditado presente no texto aristotélico da Política, I, 8, 1256b:

As plantas são feitas para os animais e os animais para o homem, os domesticados para o serviço e para a alimentação, os selvagens, se não todos, ao menos a maior parte, para a alimentação e para diversas utilidades, tais como o vestuário e outros utensílios. Se, portanto, a natureza nada faz nem de imperfeito nem em vão, é necessário que é ela tenha feito tudo isso para o homem.

A impressão é que Espinosa valorizara um dos poucos lugares nos quais o ditado é apresentado pelo próprio Aristóteles em uma clara versão antropocêntrica, incitando a interpretar todos os lugares nos quais o mote aparece à luz daquele texto.

Há, porém, uma outra hipótese de leitura, a mais simples e, portanto, a mais preferível, ou seja, Espinosa, de acordo com uma técnica argumentativa que lhe é habitual e sobre a qual nos deteremos brevemente, não busca teorias orgânicas atrás dos preconceitos a serem denunciados, mas individua pressupostos logicamente necessários daqueles mesmos preconceitos, mesmo que não necessariamente conscientes. Na sua hipótese sobre a origem da objetivação dos preconceitos – calor, frio,

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doce, amargo, liso, áspero – Espinosa seguramente não pretende sustentar a implausível tese segundo a qual uma teoria com respeito ao finalismo antropocêntrico anteceda conscientemente a linguagem ordinária das sensações, mas, muito mais sensatamente, que um inconsciente preconceito finalístico e antropocêntrico opera ao atribuir às coisas as qualidades percebidas pelas sensações. Recordemos que, segundo Espinosa, sem esse preconceito, a objetivação das percepções não seria produzida. De fato, e malgrado a passagem da Política, não há dúvida de que o finalismo aristotélico se apresenta como não antropocêntrico, sobretudo no segundo livro da Física. E, todavia, – essa é a tese de Espinosa – se o finalismo antropocêntrico não fosse silenciosamente operante, a tese da similaridade entre as propriedades das coisas e as percepções nunca teria surgido, bem como os juízos de valor com respeito aos eventos naturais. Neste caso, o texto da Política é revelador daquilo que, na maior parte dos casos, permanece oculto ao próprio Aristóteles.

Se esta análise for correta, permitirá identificar a tese de fundo de Espinosa, que difere em tudo da leitura que admite a hipótese de uma convergência de Espinosa com o finalismo aristotélico. O desafio teórico lançado no Apêndice à Primeira Parte da Ética consiste precisamente em sustentar que todo finalismo é, por natureza, antropocêntrico: “natura nihil frustra, hoc est quod in usum hominum non sit, agit”. 9.5 UMA TÉCNICA DE REFUTAÇÃO

Resta agora verificar se a técnica de refutação espinosana corresponde realmente à hipótese supracitada.

No Apêndice à Primeira Parte da Ética, Espinosa reconduz ao finalismo antropocêntrico não apenas todas as formas de religião, mas também todas as teorias que atribuem ao mundo externo características semelhantes àquelas percebidas. Sob a crítica de Espinosa, incidem, sejam teorias que assumem explicitamente um finalismo antropocêntrico, sejam teorias que assumem um finalismo aparentemente não antropocêntrico, e até mesmo teorias que aparentemente não se envolvem com o finalismo, como aquelas que consideram que as coisas são quentes ou frias, duras ou moles.

A técnica com a qual são identificados os alvos da crítica ao finalismo antropocêntrico é típica de Espinosa. Espinosa já havia a experimentado amplamente nos Cogitata metaphysica. Na ocasião, tratava-se de demonstrar que toda a teologia escolástica interpreta a natureza divina

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segundo um modelo humano, sendo, portanto, incapaz de compreender a infinitude e a simplicidade absoluta. Os teólogos, alvos naquele momento, visavam, através de suas teorias, atribuir a Deus uma duração e uma quantidade, distinguir a existência e a potência divina da essência de Deus, limitar a potência e a onisciência divina, distinguir o intelecto da vontade de Deus, mesmo quando em palavras afirmavam o contrário, ou seja, que em Deus não existem distinções. Apenas alguns pensadores marginais – os escolásticos holandeses – Burgersdijck; Heereboord – e, sobretudo, os socinianos assumiram explicitamente as teses trabalhadas em cada teologia.

Em sua época, Dunin Borkowski apontou que apenas o grupo marginal dos socinianos havia realmente sustentado as teses estigmatizadas por Espinosa, e surpreendeu-se por Espinosa ter se empenhado em refutar esse grupo tão marginal5. Na realidade, a intenção de Espinosa era mais sutil: tratava-se de mostrar como os “crassos socinianos” eram – hegelianamente – a “verdade” da teologia escolástica. Os socinianos assumem abertamente os pressupostos ocultos de cada teologia; afirmam abertamente que Deus é finito, que a sua potência é diferente de sua essência, que Deus é extenso e separado do mundo, que não prevê os futuros contingentes, que a eternidade é uma duração indefinita. Os respeitáveis teólogos escolásticos, ao contrário, afirmam que Deus é infinito, absolutamente simples, desprovido de toda quantidade e duração, mas depois, com suas teorias sobre a onipresença, a imensidão, a onipotência divina, demonstram claramente atribuir a Deus uma quantidade, considerar que os seus atributos são distinguíveis da sua essência, e, então, considerá-lo finito. Um exemplo para todos: se os teólogos mais respeitáveis “parecem” apenas “distinguir a essência divina da sua potência” “outros o dizem mais abertamente, quando sustentam Deus está em qualquer lugar, pela potência e não pela essência...”. Os outros, aqueles que distinguem abertamente essência e potência em Deus, são Fausto Sozzini, Johann Crell e o arminiano Episcopio6. É no De Deo, de Crell, que se encontra explicitamente afirmado que Deus é finito, extenso, que possui uma duração, que nele a potência e a essência são

5 Stanislaus von Dunin Borkowski, Spinoza, Munster i.W, 1933-36, III, Aus des Tagen Spinozas, pp. 120-124; 353-58. 6 F. Sozzini, Fragmentum cathechismi Prioris F.S.S. in F. Sozzini, Opera omnia, 2 voll, I, p. 685: os escritos sacros “suadere … videntur, ipsius Dei substantiam non ubique pariter praesentem esse., et sic eam non esse immensam nec infinitam, quamvis ubique tamen sua virtute et providentia sit ipse Deus praesens.” E J. Crell, pp. 90b ss; Episcopius, Insititutiones theologicae, in Opera theologica, Amsterdam 1650, p. 287b.

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divididas etc. É no De Deo, de Crell, que se esconde a “verdade” de toda a teologia escolástica.

É bom ter presente este texto inaugural da técnica de refutação da teologia pré-espinosana, porque ajuda a ler também os primeiros dois pontos da crítica de Espinosa aos preconceitos derivados do finalismo antropocêntrico. Como ocorre com Aristóteles no terceiro ponto, também na identificação das consequências do finalismo antropocêntrico na teologia acontece de Espinosa estar em busca dos pressupostos implícitos que trabalham na sombra, para trazê-los à luz, quiçá em autores marginais ou modernos, que se atrevem a afirmar claramente o que opera em toda teologia.

A partir de Wolfson, tentou-se determinar quais foram os teólogos que sustentavam a tese teológica da qual, segundo Espinosa, deriva necessariamente o finalismo antropocêntrico, e que, portanto, constituem o alvo da crítica espinosana nos Cogitata metaphysica: a escolástica holandesa com a sua fonte mais próxima, Francisco Suarez, e os socinianos, com a figura principal da teologia racional desses últimos, qual seja, Johann Crell. Suarez e Crell, melhor do que outros, prestam-se a dar um rosto realmente preciso ao alvo polêmico de Espinosa, uma vez que o finalismo deles é explicitamente um finalismo antropocêntrico7. Identificar esses alvos polêmicos contribui muito para a tese segundo a qual autores como Aristóteles e teologias como aquela tomista permaneceriam imunes à crítica espinosana8.

A relativa marginalidade ou a modernidade dos autores capazes de dar um rosto reconhecível à teologia criticada por Espinosa parece, porém, entrar em conflito com o incipit epocal da crítica ao finalismo, que leva, como foi visto, para o inteiro âmbito das crenças religiosas e atribui esse erro e as suas consequências sempre aos “homens”, ao inteiro gênero humano: “Homines … concludere debuerunt, dari aliquem vel aliquos naturae rectores…”. Essa aparente incongruência do texto pode ser superada sob a luz da estratégia polêmica, constante em Espinosa. Também neste caso,

7 J. Crellius, Liber de Deo et ejus attributis, in Bibliotheca fratrum polonorum, cap. III, Ex mundi huius opificio Deum esse demonstratur. P. 6a: “Utilitatem Solis longe maximam, ad quam natura comparatus est, qui non cernit, eum caecum esse oportet … Ita enim a natura factus est, ut et lumen animantibus, ac praecipue homini, ad variarum rerum cognitionem, atque ad actiones operaque necessaria ptraebeat.”; p. 8b: “Ex his vero alia iterum emergit utilitas, quae plantae tum animalium, tum vero maxime hominis vitae, qui rerum terrenarum omnium dominus est et finis quideam, serviunt.” Também Suarez, apoiando-se na passagem da Política de Aristóteles, supracitada. DM 24.2.10: “res singulas Deus ordinavit ad pulchrutudinem universi, et herbas et animalia condidit propter hominem…” 8 Sangiacomo.

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de fato, alguns autores marginais ou modernos assumem aparentemente os pressupostos operantes em toda teologia, também naquela que não recorre ao antropomorfismo, e se limita a falar de um projeto divino sem o qual não seria possível explicar fenômenos complexos como “a estrutura do corpo humano”.

Essa técnica argumentativa é presente também no TTP, precisamente no capítulo sobre os milagres, do qual partimos. Neste capítulo, Espinosa sustenta que aqueles que creem em milagres imaginam a Deus e a natureza como duas potências distintas e independentes uma da outra. Somente assim se explica a convicção deles de que Deus opera sobre a natureza alterando, ocasionalmente, as leis dela. Também neste caso Dunin Borkowski se surpreende com a análise espinosana: ninguém, nem mesmo os socinianos, sustentam que a potência de Deus e aquela da natureza são distintas. Então, em quem pensava Espinosa? Provavelmente, em ninguém em particular, mas, também neste caso, Espinosa identificava o pressuposto teórico operante na crença em milagres, sejam ou não conscientes aqueles que afirmam o poder de Deus de mudar as leis da natureza.

Com semelhante técnica, na Ética, a origem da crença na existência de “um ou mais deuses” é atribuída a uma visão de mundo inteiramente dominada pelo finalismo antropocêntrico, enriquecendo o quadro da origem da religião presente no TTP. Conforme dito anteriormente, as razões dessa intervenção não podem ser outras que não hipotéticas. A minha hipótese é que, na passagem entre o TTP e a Ética, Espinosa estava convencido da possibilidade de inserir a origem da religião não filosófica entre as múltiplas consequências de um único erro de fundo, em virtude de algum tipo de princípio de economia na gênese dos erros. A crença em um ou mais deuses semelhantes ao homem tem a mesma origem da teoria segundo a qual as propriedades das coisas são semelhantes às percepções que as coisas mesmas produzem no sujeito.

Como consequência, ao menos uma das responsabilidades carregadas pelos os hebreus no TTP – a crença em milagres e o finalismo etnocêntrico – foi igualmente distribuída sobre o gênero humano e sobre suas fraquezas.

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SEGUNDA PARTE: Minicursos

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I

ASPECTOS DA DIALÉTICA DE KARL MARX

André Cressoni*

INTRODUÇÃO

Ao tratarmos da dialética de O Capital, é incontornável debruçar-se sobre a problemática do modo de exposição, isto é, da Dastellungsweise. Esta temática já rendeu diversos estudos e suas possibilidades abrangem tanto uma abordagem voltada para as leis econômicas quanto para uma ontologia do ser social ou mesmo identificando a dialética marxiana com o modo de exposição sem nenhum lastro ontológico. Assim também, há numerosos aspectos envolvidos na problemática expositiva de O Capital, desde os diversos estágios e modificações que o plano da obra sofre a partir de seus primeiros esboços, até a relação entre método de investigação e modo de exposição e suas relações para com a dialética hegeliana.

Não nos ocuparemos dessas diversas leituras, abordagens e caminhos. Nos restringiremos a analisar uma categoria – a saber, o preço de custo – e buscaremos demonstrar como diversas outras categorias surgem ao se dissecá-la. Isso nos permitirá rastrear sua origem desvendando-a para além de sua identidade superficial ou aparente, tal como surge para a consciência dos agentes sociais. Do mesmo modo, há um ganho essencial ao se escolher o preço de custo como categoria privilegiada de nossa análise: com o desvelamento de sua identidade demonstar-se-á o funcionamento do modo expositivo de Marx através de um dos momentos mais essenciais da dialética do conceito de capital: a determinação do valor.

* Bacharel e Licenciado em Filosofia (UFU-2007). Mestrado em Filosofia (UNICAMP-2010) e Doutor em Filosofia (UNICAMP-2015) sob orientação de Hector Benoit. Realizou estadia sanduíche de 1 ano durante o doutorado na Universidade Goethe (Frankfurt, Alemanha) sob supervisão de Axel Honneth. Tem experiência na área de Filosofia, focando em História da Filosofia e Idealismo Alemão, com ênfase nos seguintes temas: Marx, Hegel, Platão e história da dialética. PNPD-UFG; E-mail: [email protected]

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Antes de tudo, porém, parece necessário delinear alguns traços essenciais para a compreensão da dialética expositiva marxiana. Trata-se do lugar do método de abstração de Marx no interior de seu modo de exposição.

1.1 A ABSTRAÇÃO – UMA QUESTÃO DE MÉTODO

Dois traços iniciais são importantes a serem destacados, um menos óbvio que o outro. Em primeiro lugar, a abstração deve ser compreendida dialéticamente, isto é, não se tratar de um processo de indução através do qual se adquire alguns princípios ou leis abstratas com base na repetição de casos particulares suficientemente analisados. Em segundo lugar, a função da abstração não consiste em desfazer-se de certos elementos perturbadores somente devido à dificuldade em compreender a realidade do sistema produtivo em questão.

O conceito dialético de abstração deve estar compreendido no percurso através do qual se prova o fundamento do real. Este percurso, porém, não constitui uma passagem em que vão se incluindo novas determinações como somatórias ou sobreposições. Ao contrário, trata-se do processo de externalização de uma lógica interna, onde interior e exterior não se contrapõem, mas interpenetram-se. No lugar de uma relação externa da abstração para com seu conteúdo – que resultaria ao se concebê-la como mero instrumento para se lidar com as dificuldades que o objeto em questão impõe para a análise –, a abstração implica um método de tornar manifesto o desenvolvimento lógico interno das categorias. Devido a isso, a famosa passagem do abstrato ao concreto compreende a passagem de condições lógicas de possibilidade para sua efetivação em níveis distintos de efetividade.

Entretanto, mesmo a análise científica ou epistêmica que escrutina, avalia e identifica os diversos níveis de efetividade do conceito dialético, deve assentar-se numa determinação histórica. Para tanto, em primeiro lugar, as abstrações devem caber a um momento histórico bem definido, pois

“até as categorias mais abstratas (…), apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem validez senão para estas condições e dentro dos limites destas” (MARX, 1978, p.120).

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Confundir-se abstração com as determinações que são comuns a todas as formas históricas seria reduzir o método dialético de O Capital a uma antropologia da raça humana, o que não nos parece ser o objetivo de Marx, já que “não se trata de uma abstração arbitrária, mas um abstração que compreende as características específicas que distingue o capital de todas as outras formas de riqueza” (MARX, 1993, p.449). O perigo de uma má compreensão do conceito de abstração pode dar origem a falsas conclusões sobre o método de Marx.

Se, então, a forma específica do capital é abstraída, e somente seu conteúdo é enfatizado, como aquilo que é um momento necessário de todo trabalho, então claramente nada é mais fácil que demonstrar que capital é uma condição necessária de toda produção humana. A prova disso procede precisamente pela abstração de todos os aspectos específicos que fazem dele o momento de um estágio histórico específico de desenvolvimento da produção humana (Ibid., p.258).

O método de abstração deve conseguir encontrar os momentos essenciais e internos de determinado modo de produção, pois o tipo de abstração que “demonstra que as relações econômicas expressam em todo canto as mesmas determinações simples” consistem em “uma abstração infantil”, já que, criticando Bastiat, chegaríamos ao resultado de que

“toda relação em seu caráter específico é reduzida a uma abstração e tudo é reduzido à relação não-desenvolvida da troca de mercadoria (…). De acordo com isso, todas as categorias econômicas são somente vários nomes para o que é sempre a mesma relação, e essa crua inabilidade para compreender as verdadeiras distinções é, então, suposta a representar o puro senso comum como tal” (Ibid., p.249).

De fato, o nível da abstração em que Marx trata do capital em geral demonstra sua posição essencial na medida em que corresponde, também, à chave metodológica para a análise histórica do desenvolvimento dos modos de produção, já que se trata, sobretudo, de compreender que o fundamento do movimento histórico consiste na relação entre a propriedade dos meios de produção e a força produtiva. Mas essa abstração deve ser tomada de modo não mediatizado, não podendo ser 'reduzido à relação não-desenvolvida'. O que na passagem acima de Marx aparece na ordem histórica é verdadeiro também no que concerne à ordem lógica. O abstrato não desenvolvido se reduz a uma compreensão somente representativa do real, contrário ao conhecimento dialético-conceitual. O

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abstrato desenvolvido ganha o significado de concreto, onde suas possibilidades se efetivaram como identidade do interno e do externo. O concreto, por isso, é um resultado do desenvolvimento a partir do abstrato, que colocou as relações essenciais do sistema produtivo.

Neste sentido, são frutíferos os apontamentos de Sweezy quando afirma que, seguindo Hegel, o objeto da abstração em O Capital consiste em “Colocar o essencial em relevo e tornar possível sua análise” (SWEEZY, 1973, p.41), assim também quando afirma que o essencial é a relação entre capital e trabalho assalariado, de modo que “todas as relações sociais exceto as existentes entre capital e trabalho devem ser provisoriamente afastadas, para serem reintroduzidos, uma de cada vez” (Ibid., p.45). Nisso corresponderia o conceito de abstração, não no sentido de “se afastar do mundo real, mas isolar certos aspectos dele para a investigação intensiva” com um “número relativamente pequeno de aspectos da realidade”, tendo, por isso, “um caráter provisório” (Ibid., p.46). Este caráter provisório consiste – não muito distante daquilo que se vê desenrolar na lógica hegeliana – em situar os níveis de efetividade do conceito: a cada categoria nova introduzida de sua anterior, e a cada passo o sistema torna-se mais concreto, ganha corpo e essa exposição de suas relações internas demonstra derradeiramente como ele se sustenta de pé, isto é, põe-se a efetividade de seu fundamento próprio.

A relação essência-aparência surge, assim, em paralelo com a intenção hegeliana de demonstrar como a essência se faz aparecer, como expresso em sua ‘Doutrina da Essência’ na Ciência da Lógica. Pensamos que Marx apreende de Hegel a premissa de que “provar significa em filosofia o mesmo que mostrar como o objeto se faz – por si mesmo e de si mesmo – o que ele é” (HEGEL, 1995, p.169), assim como, uma vez que a “essência deve aparecer”, ela “não está atrás ou além do fenômeno; mas, porque é essência que existe, a existência é fenômeno” (Ibid., p. 250).

A seguir, voltaremos nossa atenção para a categoria de preço de custo que surge na superfície do sistema capitalista, e sua anatomia constitui objeto de fetiche por parte dos agentes sociais, isto é, sua essência e origem estão velados para a consciência dos mesmos. Apesar de nos determos aqui em um ângulo de análise, a amplitude total da proposta marxiana consiste em tecer uma exposição dialética que almeja desvelar o conceito mesmo de capital e, assim, o sistema econômico que sustenta a sociedade burguesa enquanto tal.

Trata-se de um viés duplo que deve nortear as nossas análises sobre a tese abstrato-concreto em O Capital. Seriam elas: a busca de Marx

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por uma crítica epistêmica da economia política e, ao mesmo tempo, a multiplicidade de categorias que surgem na esfera da concorrência. Entretanto, o que constitui precisamente aquilo que chamamos, de um lado, de crítica epistêmica da economia política e, de outro lado, a multiplicidade de categorias que compõe o movimento da concorrência? Qual é o ponto de encontro entre ambas para resolver a passagem dialética abstrato-concreto? Estas questões são de fundamental importância para a delimitação da problemática a ser explorada.

Buscaremos, neste ponto, desenvolver os postulados que permitem desmistificar a inversão na qual a categoria preço de custo se constitui. Para tanto, faremos primeiro uma análise da categoria ela mesma, compreendida pelo ponto de vista do mero adiantamento de capital. Neste ínterim apontaremos o ocultamento que se verifica como horizontalização entre capital constante e variável, a partir do qual será explorado a desmistificação do preço de custo através de um retorno às definições iniciais do processo de produção imediato, tal como aparece no Livro I de O Capital. Logo após, investigaremos qual é a origem deste ocultamento, seguindo as categorias de capital fixo e circulante presentes no Livro II, para então termos em mãos um desvelamento da categoria preço de custo em relação à determinação do valor como tal. 1.2 O DESVELAMENTO DO PREÇO DE CUSTO – CAPITAL CONSTANTE E VARIÁVEL

Seguindo as análises propostas por Rosdolsky, temos dois níveis diferentes da análise do conceito de capital operados por Marx: o capital em geral e a pluralidade de capitais. O fio condutor que permite operar tanto a diferenciação entre capital em geral e a pluralidade de capitais quanto traçar a linha progressiva que interpenetra estas duas dimensões, consiste em que “o que a concorrência não mostra é a determinação do valor” (MARX, 1988, C. III, vol. IV, p 159). Esta frase, bem compreendida, indica todo o percurso que deve ser operado para explorar corretamente o método dialético de Marx. Pois na determinação do preço de custo, categoria que prepara a passagem para o lucro, “Só vemos valores prontos, disponíveis – as partes de valor do capital adiantado que entram na formação do valor-produto” (Ibid., p.27). Neste nível da análise do capital, os componentes que 'entram na formação do valor-produto' são considerados somente do ponto de vista do adiantamento de capital. Assim, as grandezas de valor são determinadas somente

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quantitativamente. Maquinaria, materiais de produção, força de trabalho: consistem todos em fatores que, no adiantamento de capital, são tratados somente segundo o quantum de valor que foi despendido para que, reunidos, dessem como resultado um produto definido. Por isso,

As duas partes do preço de custo, em nosso caso 400c + 100v, só têm em comum o seguinte: que ambas são partes do valor-mercadoria que repõem capital adiantado (Ibid., p.26).

Na categoria preço de custo tudo aparece somente como adiantamento de capital. Por isso, os custos da produção de mercadorias surgem como uma horizontalização da relação entre capital constante e variável, de modo que se oculta a verdadeira fonte do valor. Isso se dá pelo fato de que “No preço de custo da mercadoria retorna o preço dos meios de produção, como ela já figurava no adiantamento de capital” (Ibid., ibidem). O ponto de inversão da realidade interna da determinação de valor constitui-se no fato de que o preço de custo “recebe a falsa aparência de uma categoria da própria produção de valor” (Ibid., p.24), e isso na medida em que “na formação aparente do preço de custo não se reconhece nenhuma diferença entre capital constante e variável” (Ibid, p.29-30). O valor gasto em força de trabalho

só difere da parte de capital desembolsada em meios de produção (…) por servir para o pagamento de um elemento de produção materialmente diverso, mas de maneira alguma por desempenhar um papel funcionalmente diverso no processo de formação do valor da mercadoria, e portanto também no processo de valorização do capital (Ibid., p.26).

A força de trabalho aparece, portanto, meramente como valor ao lado de todas as outras categorias que se conjugam no capital. Porém, se “no adiantamento de capital”, que constitui o preço de custo, “a força de trabalho conta como valor”, por outro lado, “no processo de produção ela funciona como formadora de valor” (Ibid., p. 25).

O que se coloca em jogo, neste momento, consiste em que a única diferença entre o capital constante e o variável é de ordem quantitativa. Porém, as formas aparentes, tal qual surgem na superfície da sociedade capitalista, invertem a realidade interna da determinação do valor. A tarefa da ciência, por isso, consiste e compreender esta inversão, como ela acontece, ao invés de ficar presa às representações isoladas. Trata-se, por

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isso, de buscar, dentro da mera divergência quantitativa, uma diferenciação mais profunda, de ordem qualitativa entre os fatores que participam da produção. Quando se adentra nesta nova ordem dos fatores que influem na produção a coisa muda de figura, e a partir disso capital constante e variável surgem como “dois elementos total e absolutamente diferentes do valor-mercadoria” (Ibid., ibidem). Na medida em que a análise se aprofunda nesta diferenciação qualitativa, vê-se que “O custo capitalista da mercadoria se mede no dispêndio de capital, o verdadeiro custo da mercadoria no dispêndio de trabalho” (Ibid., p.24).

Retomemos as primeiras análises de Marx no Livro I de O Capital. Ali descobrimos que a substância do valor é o trabalho, e assim como a mercadoria se divide em valor-de-uso e valor, também o trabalho se divide em trabalho abstrato e trabalho específico. O importante para nós, neste momento, é a busca de Marx em determinar a fonte do valor, a modificação quantitativa que o valor sofre para a realização da mais-valia. Porém, segundo as leis da circulação simples, o intercâmbio de mercadorias e dinheiro não gera sobre-valor, pois se trata sobretudo, para Marx, de analisar o sistema capitalista em seu funcionamento normal, não em suas trapaças de venda acima do valor de mercado. Neste sentido, a troca de mercadorias só ocorre segundo a lei da igualdade: não se paga um valor acima do que corresponde ao valor de cada mercadoria. Sendo isto correto, a “modificação do valor de dinheiro (…) não pode ocorrer neste mesmo dinheiro”, uma vez que o dinheiro “só realiza o preço da mercadoria que ele compra ou paga” (MARX, 1988, C. I, vol. I, p.134). Assim, se a circulação simples se fundamenta na lei da igualdade de valores trocados, não pode se originar nem do primeiro ato, a compra, nem do segundo ato, a venda. Por isso que toda modificação no valor “precisa ocorrer, portanto, com a mercadoria comprada no primeiro ato D – M”, isto é, “A modificação só pode originar-se, portanto, do seu valor de uso enquanto tal, isto é, de seu consumo” (Ibid., p. 134-135). Trata-se, porém, de uma mercadoria específica, que “o possuidor de dinheiro encontra no mercado”, mercadoria esta, porém, “cujo próprio valor de uso tivesse a característica peculiar de ser fonte de valor”: esta mercadoria é “a capacidade de trabalho ou a força de trabalho” (Ibid., p.135).

Nisto consiste a diferença essencial entre os meios de produção e a força de trabalho. Isso se verifica pelo fato de que, sozinhos e por si mesmos, os meios de produção degradam-se à inutilidade e ao apodrecimento. Somente o trabalho vivo pode “despertá-las dentre os mortos, transformá-las de valores de uso apenas possíveis em valores de

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uso reais e efetivos” (Ibid., p.146)1. Porém, não basta somente encontrar a mercadoria específica que é fonte de valor para diferencia-la dos meios de produção. Esta diferença essencial deve determinar também sua participação no processo de formação de valor. Para isto ser possível, deve-se já compreender o processo de produção em sua diferença qualitativa interna: “Como a própria mercadoria é unidade de valor de uso e valor, seu processo de produção tem de ser unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor” (Ibid., p.148).

Denota-se aqui, antes de tudo, como se operou um desenvolvimento de caráter lógico desde aquela contradição interna à mercadoria até o processo de produção. Ao mesmo tempo, é com esta diferenciação qualitativa interna ao processo imediato de produção que se torna possível desenvolver a diferenciação qualitativa entre capital constante e variável, na medida em que “os diversos fatores do processo de produção se comportam de maneira totalmente diferente” (ROSDOLSKY, 2001, p.189). O papel que ambos fatores desempenham na formação do valor diverge profundamente. De um lado, o valor dos meios de produção não pode ser reproduzido, pois se “Seu valor não é, de fato, consumido, nem pode, portanto, ser reproduzido” (MARX, 1988, C. I, vol. I, p.162). Deve-se aqui novamente ater-se ao desenvolvimento lógico desde a contradição interna à mercadoria. Nos meios de produção, o que se consome é seu valor de uso, ao passo que seu valor é conservado, conservação que não se prende mais ao seu valor de uso original, mas ao valor de uso da nova mercadoria produzida. Ou seja, gasta-se o corpo dos meios de produção, mas seu valor é transferido para a mercadoria nova. Nas palavras de Marx:

O que se consome dos meios de produção é seu valor de uso, pelo consumo do qual o trabalho forma produtos. Seu valor não é, de fato, consumido, nem pode, portanto, ser reproduzido. (...) O valor dos meios de produção reaparece, por isso, no valor do produto, mas, falando exatamente, ele não é reproduzido. O que é produzido é o novo valor de uso, em que reaparece o antigo valor de troca (Ibid., p.162).

1 Aqui já se vislumbra a importância apontada anteriormente quanto à passagem da possibilidade à efetividade, já que os instrumentos de trabalho só existem, em sua concretude como meios de produção, na medida em que entram em contato com o trabalho vivo. O trabalho vivo, neste sentido, consiste na força interna que desperta o trabalho morto para o movimento vivificador. Isto se expressa em vários momentos no Livro I de O Capital.

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A conservação do seu valor se mostra, portanto, ao mesmo tempo como transferência do mesmo para outra mercadoria: “O valor dos meios de produção conserva-se, portanto, pela sua transferência ao produto” (Ibid., p.157). O surgimento de seu valor em outra mercadoria não é, porém, uma qualidade inerente aos meios de produção. Esta conservação/transferência de valor só pode ser efetuada na medida em que entra em contato com o trabalho vivo, já que, como vimos, sozinhos os meios de produção degradam-se. A característica de conservação/transferência de valor dos meios de produção é uma propriedade da força de trabalho que executa a produção de mercadorias. Assim, também na força de trabalho vemos um desenvolvimento da contradição interna à mercadoria. De um lado, como trabalho abstrato, a força de trabalho agrega valor ao novo produto; de outro lado, como trabalho específico, conserva e transfere o valor dos meios de produção para o novo produto. Trata-se de uma “dualidade de seu resultado no mesmo instante”2:

Portanto, em virtude de sua propriedade abstrata, geral, como dispêndio de força e trabalho humana, o trabalho do fiandeiro agrega novo valor aos valores do algodão e do fuso, e em virtude de sua propriedade concreta, específica, útil, como processo de fiação, transfere o valor dos meios de produção ao produto (Ibid., p.158).

Portanto, a partir da determinação do processo de produção imediata como unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor, “caracterizamos, de fato, as funções das diferentes partes componentes do capital em seu próprio processo de valorização” (Ibid., p.163). Daí podermos caracterizar suas partes em capital constante e variável, já que aquela “parte do capital (…) que se converte em meios de produção (…) não altera a grandeza de valor”; ao passo que aquela “parte convertida em força de trabalho em contraposição muda seu valor”, pois, diferente do capital contante, o capital variável “reproduz seu próprio equivalente e, além disso, produz um excedente” (Ibid., ibidem).

Ora, era justamente isso que, segundo analisamos, a categoria preço de custo ocultava. Ela reduzia o capital constante e variável a valores

2 Esta 'dualidade do seu resultado', apesar de ocorrer 'no mesmo instante', não podem ser reduzidas à mesma coisa. Não trataremos deste ponto na dissertação, mas cabe aqui assinalar: “(...) a propriedade em virtude da qual o trabalho, durante o mesmo processo indivisível, conserva valores é essencialmente diferente da propriedade em virtude da qual ele cria valores” (Ibid., p.158).

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de funções iguais, diferindo somente segundo a quantidade de valor que se despendia em cada uma, segundo o adiantamento de capital. Vê-se, com isso, que a origem do valor excedente sofre uma inversão tal como aparece na consciência dos agentes sociais, pois, visto em sua imediatidade, “após o processo de produção ele [valor excedente] existe e antes do processo de produção ele não existia”, e parece

para o capitalista que esse acréscimo de valor se origina dos procedimentos produtivos que são efetuados com o capital, que, portanto, ele se origina do próprio capital (MARX, 1988, C. III, vol. IV, p. 28).

A determinação segundo a participação do processo de formação do valor de cada elemento que entra no processo imediato de produção é a pedra de toque para compreender a origem real do valor excedente. Determinam-se, por isso, capital constante e variável, como “diferenciações internas à abstração do 'capital em geral' (…) já que 'caracterizam todos os tipos de capital” (ROSDOLSKY, 2001, p.52). Através dos preços de custos, essa compreensão fica relegada a uma representação imediatista, sem conseguir desenvolver as mediações através das quais o sistema capitalista ganha sua forma verdadeira. Assim, a delimitação dos elementos que entram no processo imediato de produção como capital constante e variável serve, para Marx, no sentido de poder abstrair da parte constante do capital, já que a participação deste no processo de formação do valor consiste, como vimos, somente num reaparecimento de seu valor no produto novo. Entretanto, não é objetivo do capitalista produzir bens de valor de uso em si mesmo, mas somente na medida em que esta produção origine para ele um valor e exceda aquele que foi originalmente adiantado. Como vimos, este excedente provém da parte variável do capital produtivo. Com isso pôde Marx, no Livro I, abstrair do capital constante quando trata da origem da mais-valia. Abstração, neste momento, carrega o significado de purificar os elementos que ofuscam a análise, mas ao mesmo tempo de encontrar as leis universais que regem o processo imediato de produção da mais-valia.

Como a taxa de mais-valia determina-se pela sua relação não com a soma total, mas com a parte do capital variável, assim a grandeza do mais produto determina-se pela sua relação não com o resto do produto total, mas com aquela parte do produto em que se representa o trabalho necessário. Como a produção da mais-valia é o objetivo determinante da

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produção capitalista, não é a grandeza absoluta do produto, mas a grandeza relativa do mais-produto que mede o grau da riqueza (MARX, 1988, C. I, vol I, p.177).

Só com esta digressão, que resultou nas categorias capital constante e variável, é que se colocou o fator que realmente influi para a determinação do valor excedente. E somente assim pôde Marx focar sua análise naquilo que realmente intervinha diretamente na formação do valor: a mais valia absoluta e relativa, ou seja, a análise extensiva e intensiva da jornada de trabalho, dando forma, deste modo, às leis da exploração que posteriormente se desenvolvem em leis da acumulação.

Entretanto, o que se põe de imediato é o problema de como o ocultamente, que resultou na categoria preço de custo, se originou do processo imediato de produção à superfície do sistema capitalista. Como veremos, Marx opera uma mediação na qual pouco a pouco se desenvolvem as leis internas em suas formas fenomênicas. Isso ocorre, porém, em graus de desenvolvimento do conceito de capital. É neste sentido que buscaremos agora analisar o problema do ocultamento da determinação do valor na categoria preço de custo. 1.3 O PROCESSO DE OCULTAMENTO DA DETERMINAÇÃO DO VALOR – CAPITAL FIXO E CIRCULANTE

Retomemos a diferença entre processo de trabalho e processo de valorização. Sabemos já, que tanto capital constante quanto capital variável entram em ambos os processos, porém de modo diverso. O capital variável gera novo valor e transfere o valor do capital constante para o novo produto. Por outro lado, o capital constante entra no processo de valorização, mas somente transferindo o valor que já carrega em si, não podendo, como a força de de trabalho, gerar um valor que excede aquele que já contém. Esta perda de valor que se transfere tem, portanto, seu limite: “O máximo de perda de valor que podem sofrer no processo de trabalho está evidentemente limitado pela grandeza originária de valor com que entram no processo de trabalho” (MARX, 1988, C. I, vol. I, p.161).

Dado este limite máximo de valor que o capital constante pode transferir, limita-se, por conseguinte, sua participação no processo de valorização. Porém, isso não é tudo. A transferência que o capital constante opera no processo de valorização não se dá de maneira unívoca, isto é, elementos diferentes do capital constante transferem também de

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maneiras diferentes seus valores ao novo produto. Isso só é compreensível na ótica da diferenciação entre processo de trabalho e processo de valorização. Antes vimos que há uma diferença entre capital constante e variável na maneira como participam de ambos os processos. Agora, trata-se de os elementos do capital constante também diferirem internamente na participação destes mesmos processos. Assim, nem todo capital constante transferirá todo seu valor ao novo produto, já que outros elementos só o transferem gradualmente, continuando a participar no processo de trabalho por vários ciclos, como é o caso da maquinaria:

Vê-se, portanto, que um fator do processo de trabalho, um meio de produção, entra em sua totalidade no processo de trabalho, mas só em parte no processo de valorização. A diferença entre processo de trabalho e processo de valorização reflete-se aqui em seus fatores objetivos, dado que o mesmo meio de produção conta, em sua totalidade, como elemento do processo de trabalho, e apenas em parte como elemento da formação do valor (Ibid., p.160).

Tudo ocorre segundo sua participação no processo de trabalho e no processo de valorização. O capital constante, uma vez que compreende variados elementos - não somente maquinaria, mas também instrumentos e materiais de produção, matérias-primas, etc. - apesar de serem determinações do capital constante e, por isso, somente transferirem valor ao novo produto, contudo sua participação nos processos de trabalho e valorização diferem. É por isso que, “Por outro lado, um meio de produção pode, ao contrário, entrar totalmente no processo de valorização, embora apenas parcialmente no processo de trabalho” (Ibid., p. 161).

Como vimos, os elementos que compõem o capital constante participam de maneiras diferentes no processo de trabalho e de valorização, transferindo seus valores em períodos diferentes. Entretanto, com o método de abstração se pôs limites à análise desta periodicidade na transferência de valor. Isso será o ponto de partida para a distinção entre capital fixo e circulante. Na esfera da circulação, trata-se já de avaliar a rotação do valor de todos os elementos do capital e, por isso, já não se limita somente aos elementos do capital constante. Agora também será avaliado a periodicidade de circulação do valor da força de trabalho. Porém, Marx parte, primeiro, da periodicidade na transferência de valor do capital constante, demonstrando claramente que se trata aqui de um desenvolvimento a partir das condições lógicas que já haviam sido apontadas no Livro I. No Livro II, todo capital está em rotação, e por isso

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aquela transferência de valor colocada em estado germinal pelo processo de valorização é agora levada para além dos limites que o método de abstração lhe incutiu. Assim, apesar do fato de que “todo o valor-capital está em circulação contínua e, nesse sentido, todo capital é capital circulante”, “a circulação da parte do capital aqui considerada é peculiar” (MARX, 1988, C. II, vol. III, p.118):

Primeiro, não circula em sua forma útil, mas apenas seu valor circula, e de modo gradual, fracionário, na medida em que passa dele ao produto que circula como mercadoria. Durante todo o tempo em que funciona, parte de seu valor fica sempre fixada nele, independente das mercadorias que ajuda a produzir. Por essa peculiaridade essa parte do capital constante obtém a forma de capital fixo (Ibid., ibidem).

Este modo peculiar de circulação do valor dos elementos do capital “decorre do modo próprio pelo qual o meio de trabalho cede seu valor ao produto ou se comporta como formador de valor durante o processo de produção” (Ibid., p.119).

Ou seja, como afirmamos anteriormente, trata-se de um desenvolvimento a partir da participação que os meios de trabalho adquirem no processo de trabalho e de valorização, pois

A análise do processo de trabalho já mostra como mudam as determinações de meio de trabalho, material de trabalho, produto, conforme o papel distinto que uma mesma coisa desempenhe no processo. As determinações de capital fixo e não-fixo são, por sua vez, erguidas sobre os papéis determinados que esses elementos desempenham no processo de trabalho e, portanto, no processo formador de valor (Ibid., p.152).

Entretanto, deve-se explorar aqui a mudança qualitativa que surge a partir da passagem da esfera produtiva para a esfera da circulação. Se na produção imediata os elementos do capital compõem-se de acordo com o processo de trabalho e valorização, na esfera da circulação isso surgirá de acordo com a determinação destes fatores segundo sua participação nos ciclos de rotatividade do capital. Assim, é capital fixo aquele que participa de vários ciclos, nos quais sua transferência de valor, não esgotando sua função de valor de uso, não precisa ser reposto no ciclo seguinte, ao passo que é capital circulante (fluido) aquele que deve ser reposto em cada ciclo de rotatividade do capital. É por isso que o “capital circulante como antítese do fixo” consiste em que o primeiro “tem de ser reposto integralmente

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pelo valor do produto e, por isso, tem de participar inteiramente nas metamorfoses deste, não sendo o caso do capital fixo” (Ibid., p.149).

Sua participação na esfera da circulação impõe aos elementos do capital uma mudança de forma que difere daquelas surgidas na esfera produtiva, apesar de se originarem dela. Sua função nos ciclos de rotatividade do capital é agora o horizonte de determinação de suas especificidades. Ao mesmo tempo que se origina da produção, muda sua forma de determinação. Se na esfera produtiva o princípio de determinação dos elementos do capital consiste em sua participação diferente nos processos de trabalho e de valorização, esta dará lugar, na passagem para a esfera da circulação, a um outro princípio de determinação: a diversidade de rotação. O que o processo de trabalho e de valorização colocou como possibilidade lógica de desenvolvimento categorial foi a maneira como os elementos do capital transferem seu valor. Mas este, agora, é um horizonte diverso daquele que definiu o capital constante e variável. Trata-se, por isso, de uma transformação qualitativa na determinação dos mesmos elementos. Daí afirmar Marx:

As determinações formais de capital fixo e fluido derivam apenas da rotação diferente do valor capital que funciona no processo de produção ou do capital produtivo. Essa diversidade da rotação deriva, por sua vez, do modo distinto como os diversos elementos do capital produtivo transferem seu valor ao produto, mas não de sua participação diferente na produção do valor-produto ou de seu comportamento característico no processo de valorização (Ibid., p.123).

É de extrema importância compreender este salto qualitativo na determinação dos elementos do capital, pois pode dar lugar a muitos equívocos. Uma coisa é a 'participação diferente na produção do valor-produto', outra é o 'modo distinto como...transferem seu valor ao produto'. Este se originou daquele, mas agora constitui-se como um outro princípio de determinação dos mesmos elementos em voga. Ou seja, trata-se agora “apenas ao modo como essa parte do valor-capital adiantado tem de ser (…) reposta, renovada, portanto reproduzida” (Ibid., p.159) nos diversos ciclos de rotatividade do capital. E aqui se origina o ponto nodal da mistificação que o preço de custo incute à composição orgânica do capital; e nisto consiste o processo dialético de Marx: somente o desenvolvimento das contradições internas ao capital pode desnudar o processo real do sistema como tal. Na mudança do princípio de determinação dos elementos do capital, que compreende a mudança da

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esfera da produção para a circulação, verificou-se que todos os elementos do capital são tomados somente segundo a rotatividade de seu valor:

O capital fixo aplicado só entra portanto em parte no preço de custo da mercadoria, porque ele só é despendido em parte em sua produção. O capital circulante empregado entra por inteiro no preço de custo da mercadoria, porque é gasto por inteiro em sua produção (MARX, 1988, C. III, vol. IV, p.27).

Deste modo, a conceitualização de capital fixo e circulante não perde nenhuma de suas determinações quando é definida segundo o preço de custo, pois seu horizonte é a reposição do valor adiantado.

A circunstância de que os diversos componentes de valor do capital adiantado sejam desembolsados em elementos de produção materialmente diferentes, em meios de trabalho, matérias-primas e auxiliares e trabalho, só requer que o preço de custo da mercadoria tenha de recompor esses elementos de produção materialmente diversos. Em relação à formação do próprio preço de custo, só se faz, por outro lado, valer uma diferença, a diferença entre capital fixo e capital circulante (Ibid., ibidem).

Como buscamos demonstrar, a passagem dos momentos mais abstratos, onde se verificam as relações internas e essenciais do capital, para suas formas concretas e aparentes, não se faz de maneira direta ou imediata. A passagem do abstrato ao concreto compreende uma mediação dialética que fundamenta toda a exposição categorial de Marx, colocando o método de abstração na sua função devida. Por isso é que a passagem do capital constante e variável para o preço de custo compreende necessariamente a determinação dos mesmos elementos como capital fixo e circulante. Este processo é que encerra a mistificação própria ao preço de custo como categoria aparente.

Essa diferença essencial entre capital fixo e circulante em relação ao cálculo do preço de custo só comprova, portanto, o surgimento aparente do preço de custo a partir do valor-capital despendido ou do preço que os elementos de produção despendidos, inclusive o trabalho, custam ao próprio capitalista. Por outro lado, a parte variável de capital, desembolsada em força de trabalho, é identificada aqui expressamente, com referências à formação do valor e sob a rubrica e capital circulante, com o capital constante (…), consumando-se assim a mistificação do processo de valorização do capital (Ibid., p.27-28).

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No nível da análise do processo de produção imediata, há limites diante dos quais faz-se uso da abstração para envolver as especificidades que darão a chave para os desenvolvimentos posteriores. Purifica-se, portanto, os elementos do capital em geral dos fatores perturbadores, de modo a compreender com clareza, neste momento, os elementos do capital que influem diretamente no processo de produção. É no nível desta abstração que se originou, na análise, o capital constante e variável e que, diante de sua participação no processo de trabalho e de valorização, colocam já as condições lógicas para os desenvolvimentos posteriores – mais-valia, acumulação e, no que tange diretamente nosso objeto neste momento, o capital fixo e circulante e preço de custo, entre outros. Capital constante e variável são formas derivadas do capital à medida em que influem diretamente na produção do capital, ao passo que capital fixo e circulante são formas derivadas do capital enquanto influem diretamente na circulação do capital. Deste modo, os elementos que compõem o capital em geral são determinados segundo as funções que exercem, resultando, por sua vez, em um enriquecimento dos elementos fundamentais surgidos a partir do desenvolvimento da antítese entre produção e circulação. Se na esfera da produção as formas derivadas de capital constante e variável surgiram segundo sua função, ou, como preferimos, sua participação3 no processo de trabalho e de valorização, na esfera da circulação estes mesmos elementos tomarão a forma derivada de capital fixo e circulante e, posteriormente, como preço de custo no adiantamento de capital. Há uma linha progressiva que vai do abstrato ao concreto4. 1.4 O DESENVOLVIMENTO DAS CONTRADIÇÕES

No ângulo de nossa interpretação da passagem abstrato-concreto na dialética de O Capital de Marx, é fundamental esta relação na qual os elementos passam a ser determinados segundo sua participação no sistema como um todo. De fato, como veremos no prosseguimento de nossa

3 A escolha pelo termo participação ao invés do termo função – esta mais própria da terminologia de Marx e Engels -, se justificará, posteriormente, diante da compreensão da abstração que pretendemos adotar, tendo em vista um debate de Marx com a tradição dialética, ótica que, para nós, se mostra não somente mais frutífera, mas também mais adequada para compreender o método dialético de Marx. 4 Como veremos em outro momento, essa linha progressiva constitui-se, ao mesmo tempo, como linha regressiva, que progride até atingir o fundamento do sistema, a luta de classes.

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investigação, o ponto de vista concreto e real é aquele da totalidade. Este se apresenta como a efetividade lógica uma vez que, na totalidade concreta, todos os elementos estão conjugados em suas relações e determinidades específicas. Todo O Capital está, a nosso ver, estruturado internamente por uma cadência que interpenetra suas determinações, de modo que esta interpenetração ocorre no sentido de uma forma de participação com o todo. Esta participação, entretanto, consiste em um transpassar de momentos lógicos que devem ser compreendidos no desenvolvimento das contradições internas do capital. Trata-se, portanto, de relacionar o problema da participação - que nos foi indicado através da análise das relações entre o capital variável e constante, e o capital fixo e circulante - e o conceito de negatividade.

Neste sentido, vejamos uma definição do todo elaborada por Harris, quando discute o problema dialético da abstração, para pensarmos o concreto, ou efetivo:

O todo é genuinamente todo somente em sua auto-diferenciação sistemática e total, e isso se diferencia em partes que, para formar o todo, são (e devem ser) adaptadas mutuamente, e relacionadas internamente como seu princípio ordenador dita (HARRIS, 1990, p.80).

O concreto, ou efetivo, trata-se, assim, da auto-diferenciação do todo, de modo que suas partes estão 'relacionadas internamente'. Esta relação interna das partes, como já indicamos ser primordial na dialética de Marx, formando o todo logicamente ordenado, é justamente a participação na qual as partes se resolvem. Deste modo, vemos que os elementos do capital (força de trabalho e meios de produção) são definidos segundo a sua participação nas esferas dentro das quais se encontram. Por isso é que, na esfera da produção, definem-se como capital constante e variável, na esfera da circulação como capital fixo e circulante, e, enfim, na superfície social como preços de custo. Do mesmo modo o trabalho excedente: como veremos adiante, na esfera da produção, trata-se mais-valia segundo a produtividade, intensidade e duração; na esfera da circulação, a mais-valia é incorporada segundo a quantidade de rotações que um capital perfaz em determinado período; e na superfície social, participa de modo diverso, relacionando-se não com o capital variável, mas com o valor global do capital, e por isso adquire a determinação de lucro, tornando-se, segundo a participação dos diversos capitais, lucro médio. Assim, também, todas estas modificações compreendem o transcurso pelo qual perpassa o valor até atingir o preço de produção,

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entre outras. Posteriormente analisaremos estas passagens, mas tratam-se neste momento de exemplos, mas expressando um processo que ocorre com todo o desenvolvimento dialético. Assim, a abstração só pode ser compreendida à medida em que se apreende esta auto-diferenciação, esta relação que se estabelece a partir de seu próprio interior externalizado.

Na passagem acima citada, entretanto, aquilo para o qual Harris apontam consiste, antes, isso sim, de um retorno à problemática da negatividade tal como foi exposta por Platão no seu diálogo O Sofista.

No diálogo O Sofista trata-se de um acerto de contas com a tradição parmenidiana da identidade, onde, portanto, se busca acima de tudo confirmar a existência ou não do não-ser. Este, na qualidade de negação (apóphasis), “não é a contrariedade, mas sim, alteridade” (BENOIT, 2004, p.115), isto é, “quando enunciamos o não-ser, não falamos, ao que parece, de algum contrário do ser, mas somente algo de outro (heteron monon)” (257b3-4). Isso se desvelou pela relação de participação que se verificou entre os gêneros Ser, Repouso, Movimento, Mesmo e Outro, de tal modo que não se trata de um não-ser no sentido de contrário ao ser, o que resultaria numa compreensão de algo parecido com o nada, tal como Parmênides teorizou o não-ser. Ao invés disso, o não-ser surge como alteridade na relação de participação entre dois gêneros. Nos exemplos de Platão, o não-belo não consistiria em qualquer outro que não seja o belo mesmo, mas um outro determinado pela relação com o belo, “aquilo que foi recortado e delimitado de um determinado gênero” e por isso “conserva sua raiz de origem”.

Há uma relação substancial interna ao gênero do qual surge que, “após o recorte negativo se conserva, de alguma maneira, como imanente ao gênero de origem” (BENOIT, 2004, p.119), mas de tal maneira que se trata de uma “gênese ocorrida em determinada relação contraditória de ser-em-comum” (Ibid., p.118). Entretanto, “ao que parece, quando uma parte da natureza do outro e uma parte do ser que se opõem mutuamente, esta oposição não é, se é permitido dizer, mais ser que o ser ele mesmo” (258a-b)5; ou seja, “ao enunciar a antítese, na enunciação, parece diferenciar as partes da antítese da própria antítese” (BENOIT, 2004, p.120). Na oposição entre, por exemplo, o belo e o não-belo, o resultado

5 Nesta passagem de Platão, preferimos a versão oferecida por Hector Benoit, que enfoca o termo antítese, ao passo que na tradução francesa preferiu-se o termo oposição. Oferecemos a tradução de Benoit: “Portanto, ao que parece, a antítese (antitesis) da natureza da parte do outro e da natureza de parte do ser, se opondo mutuamente...” (BENOIT, 2004, p.120).

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é a própria antítese, de tal modo que 'esta oposição não é... mais ser que o ser ele mesmo'. Como apontamos na nota 5, o termo oposição que a tradução francesa utilizou, consiste no termo grego antithesis. É por isso que

a antítese parece ser o resultado de certo tipo de oposição mútua entre a natureza de parte do outro e da natureza de parte do ser, isto é, parecem existir três elementos estruturados: 1) a parte do outro, 2) a parte do ser, e 3) a antítese (Ibid., ibidem).

Não somente o outro do ser conserva sua origem, de tal modo que possui consistência substancial, ousiológica; também a própria antítese, este ponto surgido da koinologia, de ser-em-comum entre os gêneros, ganha sua própria consistência ousiológica, como forma:

(...) o não-ser é, a título estável, possuidor de sua própria natureza, do mesmo modo como o grande era grande e que o belo era belo, o não-grande, não grande, e o não-belo, não-belo; do mesmo modo também o não-ser era e é, unidade integrante no número que constitui a multitude das formas (258b-c)6.

Na medida em que a antítese surge como “uma região específica

de negatividade, aquela que se forma no cruzamento específico entre o ser e outro que o ser” (BENOIT, 2004, p.122), ganha sua própria forma (eidos) ousiológica, como sendo em si mesmo um próprio gênero (genós). Viu-se, neste sentido, que a negatividade consiste numa relação na qual ocorre uma interconexão entre dois gêneros, uma relação estabelecida internamente aos próprios gêneros em questão. Esta relação consiste na potência interna de cada gênero em formar-se, em sua própria identidade consigo mesmo, como ser-em-comum, e “na sua koinonia, no seu ser-em-comum, formam outro ente (…) um ente que se chama 'antítese'” (Ibid., p.121), como uma dýnamis koinológica, “potência interna de determinação das relações desse ser-em-comum” (Ibid., p.115), uma potência do ser-em-comum que determina o ser, “negando-o e, assim, o determinando” (Ibid., ibidem). Por isso,

6 Na tradução mais precisa oferecida por Hector Benoit: “como o grande era grande e o belo era belo, e o não-grande, não-grande, e o não-belo, não-belo, assim também o não-ser segundo ele mesmo era e é não-ser, enumerado como uma forma entre os múltiplos gênero que são” (BENOIT, 2004, p.122).

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O não ser (to mé on) como antítese se manifesta, da mesma maneira que o ser (to on), através de todos os entes, permanentemente, internamente e originariamente, já na própria predicação da identidade de qualquer ente (Ibid., ibidem).

É esta relação, formando as regiões antitéticas ou de negatividade, que carrega a possibilidade interna de determinar precisamente a identidade não abstrata, pois “a negação aponta e indica algo (…), algo de outro em relação às próprias coisas negadas”, de tal modo que “ao nega-las, as determina e as revela pela oposição e pela diferença negativa” (Ibid., p.116).

É esta potência interna de negatividade que fundamenta não somente a ordem histórica, como aponta Benoit em seu artigo, mas também a ordem lógica. A negatividade consiste, portanto, naquilo que permite e dá base real para o transcurso lógico e histórico.

Para o objetivo de nossas investigações, estes apontamentos sobre o conceito de negatividade indicam aquilo que é fundamental na interpretação da dialética exposta por Marx. Essas regiões de negatividade, na qual os gêneros participam entre si por uma determinação interna a si mesmos, surgem no desenrolar dialético de O Capital como a potência, dýnamis, de um transpassar de níveis lógicos de possibilidades colocadas abstratamente e que, através de sua negatividade imanente, efetivam-se na concretude real do capital. É assim que “em Marx o negativo pode ser compreendido como um transpassar de regiões e gêneros” de modo que “O Capital seria a descrição de uma série de gêneros antitéticos que vão se cruzando e construindo novas antíteses” (BENOIT, 1996, p.02). Deste modo, Marx vai analisando as regiões do negativo, o entrecruzamento da alteridade, o desenvolvimento koinológico das especificidades lógicas e históricas até chegar na antítese fundamental da gênese histórica, e nisto está expresso a dýnamis do koinonen, a passagem do possível ao efetivo, movimento de realização das regiões do negativo à antítese fundamental como luta de classes.

Vê-se, por isso, que a abstração, para o método dialético-conceitual de Marx, não se trata tão somente de um atalho diante da dificuldade de apreender o 'mundo dos fenômenos concretos', como afirma Grossmann. Trata-se, muito mais, de um método com o qual, através de níveis lógicos cada vez mais desenvolvidos da contradição interna ao capital, se colocam o que preferimos chamar de condições lógicas de possibilidade do sistema em movimento e desenvolvimento, de tal modo a efetivarem-se como uma totalidade concreta. Somente a partir disso que

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se pode, ao nosso ver, dizer que se trata do único modo racional e científico de apreender o 'mundo dos fenômenos concretos'. De fato, ao invés de consistir num atalho ou na maneira mais acessível de apreender o sistema concreto, o método dialético bem compreendido é, como já insistiu várias vezes Hegel, o “trabalho amargo do espírito” (HEGEL, 1995, p.67): “Nada mais fácil do que julgar o que tem conteúdo e solidez; apreendê-lo é mais difícil; e o que há de mais difícil é produzir sua exposição, que unifica a ambos” (HEGEL, 2005, p.27).

De fato, um dos motivos pelos quais Grossmann sofre deste erro consiste, sobretudo, em confundir método de investigação e método de exposição: “Que o método de investigação marxiano se apoia em supostos simplificadores não resulta nada de novo” (GROSSMANN, 1984, p.04). Isso claramente contradiz o próprio rigor de Marx quando afirma ser, “sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente, do método de pesquisa”, afirmando que à pesquisa, ou investigação do objeto de pesquisa, cabe “captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima”, ao passo que à exposição cabe “expor adequadamente o movimento real” (MARX, 1988, C. I, vol. I, p.26).

Antes de retornarmos à análise de Marx, cabe levantar ainda outro aspecto da análise de Grossmann que compete à nossa abordagem da passagem entre as análises do capital constante e variável para a do capital fixo e circulante e até o preço de custo. Grossmann argumenta que ao método de abstração cabe estabelecer “numerosos supostos simplificadores que nos permitem conhecer o objeto de nossa investigação em sua essência” (GROSSMANN, 1984, p.03). Entretanto, apesar de apontar que o método de abstração é utilizado para compreender a essência do sistema capitalista – e isso, segundo Grossmann, porque 'o mundo é demasiado complicado para que possa ser conhecido diretamente' -, falha no momento de demonstrar sua verdadeira utilidade, isto é, no que tange aos desenvolvimentos posteriores. Pois não se trata tão somente de apreender a essência do sistema, mas a maneira como esta vem à realidade através de desenvolvimentos lógicos. Diante disso é que Grossmann afirma: “os conhecimentos alcançados deste modo só podem ter o caráter de provisório, pelo qual a este primeiro grau de conhecimento deve seguir um segundo e definitivo” (Ibid., p.04). De fato, não basta para Marx analisar a distinção entre capital constante e variável, do mesmo modo como não basta analisar a origem da mais-valia, como veremos no próximo ponto. Estas categorias, fechadas em sua abstração, não explicam o sistema por si só. A resposta, porém, dada por Grossmann parece, a nós,

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unilateral, pois afirma que “A cada suposto simplificador adotado lhe corresponde uma correção posterior que deverá tomar em conta os elementos da realidade inicialmente deixados de lado” (Ibid., ibidem).

De fato, no caminho da exposição Marx amplia os fatores que se conjugam para a formação do conceito de capital, ampliando os elementos que envolvem a análise do sistema capitalista como um todo. Somente diante disso é que se pode compreender corretamente esta 'correção posterior'. Uma vez que se trata de desenvolvimentos que derivam como possibilidades lógicas daquilo que foi colocado, as correções posteriores aparecem como desmistificações originadas da própria lógica interna desenvolvida dialeticamente. Tratam-se de elementos que se encontram em potência, e por isso não demonstram ainda sua face verdadeira. As correções posteriores de fato ocorrem, mas somente compreendidas no interior do desenvolvimento das potências lógicas do próprio sistema ainda mistificado. Apesar de concordar que se tratam de correções posteriores, se seguíssemos estes apontamentos metodológicos de Grossmann até as suas últimas consequências, na medida em que não apontam o contexto no qual as correções são realizadas, isso nos levaria à afirmação de que o lucro é uma correção da mais-valia, assim como o preço de custo é uma correção do capital constante e variável, o que resultaria num absurdo do ponto de vista teórico e metodológico de Marx. As correções posteriores que Marx realiza no decorrer da obra são, por isso, resultados de uma abstração que consegue, apesar da face mistificada do sistema, encontrar ali suas potencialidades internas, sendo este o único modo a partir do qual se poderão, de fato, corrigir as ilusões do sistema. Ao nosso ver, portanto, Grossmann, apesar de apontar um dos nódulos da dialética de Marx, abre margens para interpretações que podem dar origem a sérios equívocos, na medida em que não contextualiza a abstração como momento de colocação destas possibilidades lógicas do sistema como tal. REFERÊNCIAS BENOIT, Hector. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, n.03. Editora Brasiliense, 1996

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HARRIS, Errol E. A Reply to Philip Grier. in: Essays on Hegel's Logic. George di Giovanni (org.). Albany: State Univ. Of New York, 1990.

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___________. Grundrisse – Foundations of the Critique of Political Economy. Translated with a Foreword by Martin Nicolaus. London: Penguin Books, 1993.

___________. Para a critica da economia política. Tradução Edgar Malagodi - 2ª ed. - São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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SWEEZY, Paul M. Teoria do desenvolvimento capitalista. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

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II

GYÖRGY LUKACS: aspectos introdutórios a uma ontologia materialista

Bruno Gonçalves da Paixão*

RESUMO A presente proposta de texto visa abordar, em suas linhas mais gerais, as principais características de uma ontologia materialista, com base na grande obra de maturidade do filósofo marxista, György Lukács: o Para uma ontologia do ser social. Para além de apontar os aspectos terrenos, ou melhor, materialistas de uma ontologia, que ao longo da história sempre esteve atrelada à filosofia metafísica, pretendemos ainda mostrar que os delineamentos ontológicos da filosofia lukacsiana estão ancorados no pensamento filosófico de Marx. Nesse sentido, categorias consagradas no léxico marxiano, ao contrário de serem revisadas, ganham contornos mais concretos e radicalmente históricos, quando buscadas suas origens numa nova esfera do ser: o ser social. Assim – especialmente, mas de forma alguma exclusiva, privilegiaremos o capítulo sobre o Trabalho, que figura entre as vigas mestras dessa ontologia histórico-crítica e nos dá a base para compreendermos o elemento fundante do ser social e seu avançar para além da esfera biológica. Nesse sentido, pretendemos mostrar, a partir de Lukács, o ponto cego das ontologias metafísicas: a de que, desde sua origem (esta inclusa) até aqui, o único artífice ou demiurgo de sua história foi o próprio homem. E para isso, não obstante, delinearemos também, a partir de Parmênides de Eléia e de Platão, o que estendemos por ontologia tradicional/metafísica. PALAVRAS-CHAVE: Ontologia; materialismo; metafísica; marxismo.

* Doutorando pelo programa de Pós-Graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (2017), possui mestrado em Filosofia pela mesma instituição (2016) e graduação em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB (2010). Atuando na linha de pesquisa: Ética e Filosofia Política, concentra seus estudos em torno da Política e do Estado na obra marxiana e marxista (K. Marx e G. Lukács). E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O título deste pequeno trabalho introdutório1, muito provavelmente não deve ter passado totalmente despercebido para quem é da filosofia. Mais especificamente para quem estuda no campo da metafísica. Ler ontologia materialista se não causar espanto, talvez, no mínimo, seja comparado a tão obstinada procura daquela personagem - o promotor Paravan2 - de T. Mann, que se dedicou a provar a quadratura do círculo.

A estranheza, diga-se de passagem, não é sem motivo. Ao longo da história da filosofia a ontologia foi identificada sempre com a metafísica. Com uma tendência ao procurar as “origens de tudo”, foi sempre impelida a achar, em última instância, um ser suprassensível para montar o quebra-cabeça causal (do gerado sempre tem um gerador), não raramente, mudando o que tem que ser mudado, por uma redução ontológica. Não por acaso, a ontologia cai nas graças da Igreja Católica, que encontra nos seus fundamentos elementos para “a prova da existência de Deus”. Isso porque, um dos atributos do ser na metafísica é, por exemplo, o princípio do não gerado e imutável. Sem muita ginástica, grandes pensadores do medievo (mesmo que separados por séculos) vão chegar à conclusão que o verdadeiro ser é Deus (Judaico/cristão). Em Santo Agostinho temos: “Deus, a essência suprema, isto é, aquele que é sumamente e por isso é imutável” (2006, p. 1083). Em Santo T. de Aquino aparece “(...) a existência do primeiro ser, que é exclusivamente ser: este ser é a causa primeira, isto é, Deus” (1988, p. 30). Disso, obtemos uma equação muito simples entre duas categorias importantes, porém, hipostasiadas em larga medida, que é o desdobramento do fenômeno a partir da essência numa forma rígida. Deus, que é o ser primeiro, a essência mundi, eterna e que gera tudo, e esse tudo, porque não é o ser verdadeiro, se torna o mundo fenomênico, visto como mutável, passageiro, dos simples mortais e pecadores, em suma, do mundo corruptível. Mas, admitamos, a ontologia não é filha dos cristãos. E ela não se resume a provar a existência de um deus tal qual nos catequisaram.

1 O presente texto, que por ora o leitor tem em mãos, tem um caráter muito preliminar. Ele foi produzido com base no minicurso: Marxismo, Dialética e Ontologia, coordenado pelo Professor Dr. Jadir Antunes, no XXII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE. Coube-me a última parte, exatamente a que falaria sobre ontologia. 2 Personagem que aparece no romance A Montanha Mágica.

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Para podermos entrar de vez no que entendemos como ontologia materialista teremos que, antes, retornar ao seu surgimento (verifica-se já aqui, uma predisposição do autor a uma postura ontológica), à sua base fundadora, com vistas a possibilitar ao final, uma diferenciação entre o que chamamos de ontologia tradicional/metafísica e a materialista. Nesse sentido, dois autores merecem uma atenção maior: são eles Parmênides e Platão. Antes de qualquer coisa, nunca é demais lembrar ao leitor que não somos especialistas nos autores supracitados, e nesse sentido, passaremos ao largo das polêmicas próprias dos exegetas e pesquisadores especializados em ambos. A intenção aqui é mais modesta do que o tema sugere. Queremos apenas tocar na relação intricada dos caracteres os mais gerais entre fundante/fundado, essência/aparência e ser/não-ser.

2.1 PARMÊNIDES E PLATÃO

Parmênides de Eléia (cerca de 530-460 A.C) é considerado o primeiro filósofo a tratar do problema do ser, num poema intitulado Sobre a Natureza. Ou seja, pode-se dizer que foi o primeiro a fazer o que ficou conhecido como ontologia3. Ou, como bem coloca, em outros termos, Marques, “podemos também falar do percurso que o próprio poema executa, caminho poético de Parmênides que inaugura a filosofia enquanto busca pelo ser na palavra que se quer justa e verdadeira” (1997, p. 17). Em suma, não é exagero algum falar que, no que diz respeito à ontologia tradicional, “tudo começa com Parmênides" (WOLLF, 1996, p. 179).

O que se tem da “obra” de Parmênides são “apenas” fragmentos que aparecem citados por alguns filósofos/médicos como Simplício e Sexto Empírico. Não obstante a precariedade documental para um estudo aprofundado de sua obra, o poema Sobre a Natureza influenciou não de maneira pífia a história da filosofia.

O poema relata a viagem do eleata “rumo à região da luz e do inteligível” por meio de um carro de rodas fulgurantes, puxado por éguas, dirigidas por duas moças, que próximos ao destino deixam se identificar enquanto musas, as filhas do Sol. Essas não só guiaram-no da noite ao

3 Cabe aqui, desde já, um esclarecimento. Devemos ao Prof. Dr. Jadir Antunes, através do texto, Notas Sobre o Poema de Parmênides, grande parte de nossa interpretação sobre o filósofo eleata. Como as notas não foram publicadas, optamos por não citá-la diretamente, mas com certeza o autor das mesmas não deixará de perceber o quanto esse texto é devedor das ideias ventiladas nas notas. Essas notas podem ser encontradas na página: https://jadirantunes.wordpress.com/mestrado/

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portal do dia, mas também “com brandas palavras, persuadiram habilmente a que a tranca aferrolhada depressa removesse das portas” (PARMÊNIDES, 1973, p. 147). Transposto as portas, ele é recebido pela deusa Justiça que lhe disse:

Ó jovem, companheiro de aurigas imortais […] não foi mau destino perlustrar essa via (pois ela está fora da senda dos homens), mas lei divina e justiça; é preciso que de tudo te instruas, no âmago inabalável da verdade bem redonda, e de opiniões de mortais em que não a fé verdadeira. No entanto também isso aprenderás, como as aparências deviam validamente ser […] (PARMÊNIDES, 1973, p. 147).

O caminho feito por Parmênides é a via que leva à verdade. Não é fortuito que esse trajeto sai da noite rumo ao dia, ele deixa “as moradas da Noite, para a luz” (PARMÊNIDES, 1973, p. 147), numa clara alusão à dicotomia entre a ignorância (Noite) e o conhecimento (Luz), entre esse último e as opiniões dos mortais. Em suma, entre a verdade e o mundo das aparências. Não raro, porém também não sem polêmica, esse poema é entendido a partir de uma divisão em duas partes, precedido por um preâmbulo4: a primeira que fala sobre a verdade, o lócus do verdadeiro ser, da essência, e a segunda que vai tratar da opinião, o mundo do não-ser, do fenômeno etc. Nessa última estrofe, é anunciada essa separação, e em fragmento seguinte, a verdade é identificada ao ser, e esse ao pensamento. Assim continua a deusa:

Pois bem, eu te direi […] os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é o caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é […] nem o dirias… pois o mesmo é pensar e portanto ser (PARMÊNIDES, 1973, p. 148).

Essa passagem é fundamental para o propósito desse texto. Nele, a deusa revela a Parmênides que dos dois caminhos, um diz respeito ao que é, ao verdadeiro existente, enquanto que o segundo, não é, ou seja, não é existente, pois esse trajeto não é passível de ser crível. Em outros termos, pode-se retirar do excerto o seguinte princípio: o que é, é, e não pode deixar de ser (imutável), e o que não é não pode ser. Mas talvez a relação mais importante é a que expõe outro traço da ontologia parmenídica, a

4 O preâmbulo é a parte na qual Parmênides narra sua viagem.

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saber, a identificação entre o pensar e o ser. Essa relação de identidade tem uma especial importância, pois dela poderíamos inferir que essa similaridade do existente ao pensamento, possui um caráter fundante. Ou seja, o que existe é fruto do pensamento, enquanto que o que possui caráter do não existente é o mundo sensível, que está fora do pensamento.

Dessa relação de identidade entre ser e pensamento, desprende-se algumas qualidades do ser que são características de uma ontologia tradicional/metafísica. O ser de Parmênides é ingênito e imperecível “pois é todo inteiro, inabalável e sem fim” (PARMÊNIDES, 1973, p. 149). Em outras palavras, o ser não é gerado por nada, e se ele não nasce de algo, ele também não morre, é imperecível e contínuo. O ser de Parmênides é eterno. Já o não ser, esse por ser gerado, também morre, é descontínuo, efêmero e finito. “Se nasceu, não é […] Assim geração é extinta e fora de inquérito perecimento” (PARMÊNIDES, 1973, p. 149). Além do mais, o ser é imóvel, enquanto o não-ser é fugaz. O primeiro é “imóvel […] é sem princípio e sem pausa […] é não carente; não sendo, de tudo careceria” (PARMÊNIDES, 1973, p. 149). Ou seja, o ser de Parmênides é autossuficiente, ele basta-se a si mesmo, enquanto o não ser é todo carente, pois precisa, por exemplo, de uma causa geradora. Toda essa caracterização do ser para o eleata é o pensar. Nas suas próprias palavras, “o mesmo é pensar […] pois nem era ou será outro fora do que é, pois Moira o encadeou a ser inteiro e imóvel […] é todo inviolado […]” (PARMÊNIDES, 1973, p. 149). Aqui, a razão (essência) é morada do que é verdadeiro, enquanto o mundo sensível (fenômeno) vai ser encarado como o caminho do não verdadeiro5. Nesse sentido, argumenta Souza:

5 Parece-me que essa relação não deve ser muito exagerada. Mesmo abordando didaticamente de forma a tornar visível a diferenciação entre a essência e o fenômeno, entendemos que o fato do segundo ser caracterizado como não-ser, não o exclui do momento necessário para o conhecimento, tanto é que no excerto já explorado, parcialmente, por nós na pag. 03, quando a deusa vai dizer que ele precisa se instruir de tudo, e fala da verdade mais profunda, diz também que é preciso conhecer as “opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. […] também isso aprenderás, como as aparências deviam validamente ser […]” (PARMÊNIDES, 1973, p. 147 ). O que queremos dizer em síntese é: nessa relação de identidade entre o pensar e o ser, e o mundo físico com o não-ser, não queremos exagerar a ponto de imputar a Parmênides a ideia de uma não realidade física, mas apenas mostrar que existe uma relação valorativa onde o acento dado ao campo do ser (pensamento) é o “momento predominante” da relação do conhecer. Sobre o debate a cerca disso, vale a pena conferir o texto (um prefácio) do Jean Beaufret, que aparece na coletânea da Abril Cultural sobre os pré-socráticos, a partir da pag. 160 (1973). E também, um artigo do Giovanni Casertano, intitulado A Cidade, o Verdadeiro e o Falso em Parmênides (2017).

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A afirmação de que o pensamento é sempre pensamento sobre o ser não recebe nenhuma justificativa no poema, mas é antes um princípio. E, a partir deste princípio, justifica-se a exclusão do não-ser do pensamento e do discurso e a escolha do ser como única via possível de verdade e conhecimento. Sendo pressuposta esta íntima relação entre pensamento e ser, tem origem uma concepção de não-ser absolutamente impensável e inefável […] O não-ser aparece, no poema, como o contrário do ser, a total inexistência, o nada […] (1998, p. 29).

As características do ser de Parmênides, fundados ontologicamente no pensamento, na ratio, ao possuírem as qualidades de ingênita, imutável e eterna, dão base à nascente ontologia de cunho metafísico, onde o ser verdadeiro é o suprassensível e o não-ser faz parte do mundo sensível, que escapa pelo tempo em sua fugacidade e imediatez, onde a aparência é enganadora, desvirtuadora do caminho do verdadeiro ser, pois é fundada pela opinião dos “mortais que nada sabem […] pois o imediato em seus peitos dirige errante pensamento; e são levados como surdos e cegos […] indecisas massas, para os quais ser e não-ser é reputado o mesmo […]” (PARMÊNIDES, 173, p. 148). Assim, a embrionária ontologia opera um corte, mesmo que interpretado meramente como questão de método, entre essência e fenômeno.

Outro grande filósofo, que recorrerá a algumas teses de Parmênides, sofisticando-as a partir de uma crítica dialética, é Platão (por volta de 428-7/348-7 a.C). Este é responsável pelo já famoso parricídio de Parmênides6, onde para salvar a teoria do pai, uma personagem, o Estrangeiro de Eléia, precisa matá-lo. Mata-o para ressuscitá-lo. Mas em que consiste esse parricídio? De chofre, poderíamos resumir na seguinte tese: “o não ser é”. Nas palavras da própria personagem: “para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é” (PLATÃO, 1991, p. 263).

Essa tese de Platão, sem dúvida já é um salto qualitativo em relação ao “imobilismo” parmenídico, dando movimento à relação do ser e do não-ser, pressupondo assim, diferentemente de Parmênides, o não-ser como partícipe, em certo sentido desse movimento. A passagem onde o

6 O parricídio de Parmênides aparece nos Diálogos, intitulado de O Sofista. O estrangeiro, que é de Eléia, mesmo rincão de Parmênides, também é retratado como um dos seus discípulos, por isso, ao contradizer a famosa tese do seu mestre em que o “Ser é e não pode deixar de ser”, é dramaticamente aludido a ideia do assassinato do pai.

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Estrangeiro de Eléia expressa admiração e espanto com o aceite, até aquele momento, da tese do seu pai, traduz essa suprassunção em relação à tese de Parmênides: “Por Zeus! Deixar-nos-emos, assim, tão facilmente, convencer de que o movimento, a vida, a alma, o pensamento não tem, realmente, lugar no seio do ser absoluto; que ele nem vive nem pensa e que, solene e sagrado, desprovido de inteligência, permanece estático sem poder movimentar-se?” (PLATÃO, 1991, p. 280), e arremata admiravelmente com a afirmação de que “Temos, pois, de conceder o ser ao que é movido e ao movimento” (PLATÃO, 1991, p. 281). Pois,

o movimento é o mesmo, e não o mesmo: é necessário convir nesse ponto sem nos afligirmos, pois, quando dizemos o mesmo e não o mesmo, não nos referimos às mesmas relações. Quando afirmamos que ele é o mesmo é porque, em si mesmo, ele participa do mesmo, e quando dizemos que ele não é o mesmo, é em conseqüência de sua comunidade com "o outro", comunidade esta que o separa do "mesmo" e o torna não-mesmo, e sim outro; de sorte que, neste caso, temos o direito de chamá-lo "não-o-mesmo” (PLATÃO, 1991, p. 300).

Com esse caráter de movimento atribuído ao ser, Platão pode chegar ao não-ser como também existente. E ele o faz pela tese da alteridade. Ou seja, o não-ser é em ralação a um outro, à diferença, e não à negação do ser. A título de exemplo: se dissermos que João é homem e logo depois, que também José é homem, chegaríamos à conclusão que eles são. Mas se colocarmos em outros termos e afirmarmos que, João não é José, logo, José não é João, temos que eles não são a mesma pessoa, mas não deixam de ser homens. Em outros termos, o não-é, segundo Platão, não teria simplesmente um caráter negativo-contraditório, mas apenas reconheceria enquanto sendo uma diferença. Assim, o filósofo grego concebe tal ideia: “Quando falamos no não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa contrária ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser” (PLATÃO, 1991, p. 303). E em outros termos temos: “Não podemos, pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas apenas admitiremos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o "não" que colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negação, ou ainda das coisas designadas por esses nomes” (PLATÃO, 1991, p. 303).

No entanto, ao que nos interessa no presente texto, o “avanço” para por aí. Mesmo por uma via mais sofisticada à de Parmênides, Platão também vai conceber certa hierarquização em relação ao ser, criando assim um mundo suprassensível (modelo/essência) inatingível aos mortais, e

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outro, lócus desses últimos, como cópias fenomênicas do primeiro. Tal qual Parmênides, a estrutura ontológica da realidade inteligível seria “sempre da mesma maneira, não gerado e imperecível” (PLATÃO apud REALE, 1993, p. 172-173) enquanto que a realidade sensível seria uma “cópia ou imagem sensível do modelo inteligível. É gerada e está em movimento contínuo” (REALE, p. 1993, p. 173). Tanto é que como pressuposto para a discussão nos diálogos do Timeu, Platão, dando voz à personagem que dá nome ao livro, adverte que:

Na minha opinião, temos primeiro que distinguir o seguinte: o que é aquilo que é sempre [to on aei] e não devém, e o que é aquilo que devém [to gignomenon], sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, pois é imutável. Ao invés, o segundo é objecto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca (PLATÃO, 2011, p. 93-94).

O excerto do Timeu, do ponto de vista de sua estrutura metafísica, em nada perde para a divisão parmenídica. Para Lopes, “trata-se da célebre diferença entre o que pertence ao inteligível e o que diz respeito ao sensível – um dos pilares do platonismo” (2011, p. 32). Sem exagerarmos, poderíamos dizer que a referida distinção proposta por Lopes, enquanto base do platonismo, também o é para toda a ontologia metafísica. Não é a toa que o apreender pelo pensamento através da razão é passível apenas ao que é e nunca muda. Já o que é mutável, ao contrário, pertence à “irracionalidade dos sentidos”, é passível apenas da opinião. Em outras palavras, existe uma espécie de identidade entre o elemento epistêmico/gnosiológico com o ontológico. Nesse mesmo sentido vai argumentar Lopes que,

A esta distinção surge associada uma outra, de carácter epistemológico, que tem que ver com a forma como cada um desses níveis ontológicos pode ser apreendido: se o que é cabe ao pensamento e à razão, já o que pertence ao nível do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos. […] Toda esta argumentação em torno da distinção entre o sensível e o inteligível faria adivinhar a célebre oposição platónica entre opinião (doxa) e saber (epistêmê), estando a primeira destinada ao que devém e a segunda ao que é sempre […] (2011, p. 32).

A partir desses níveis do ser, Platão vai classificar três grandes dimensões ontológicas: a primeira seria o plano das ideias, a segunda, o

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dos seres matemáticos e por último, o campo do mundo sensível. Essa estrutura, que acima afirmamos ser hierárquica, o é devido ao fato de que existe uma dependência ontológica rígida e inquebrável entre uma esfera e outra. Ou seja, do mundo das Ideias ao mundo físico, existe um caráter determinante sempre daquele nível superior ao inferior. Isso é importante porque essa estrutura não permite que a dimensão sensível, de qualquer forma que seja, possa atingir ou chegar à esfera superior das Ideias. São campos que em sua estrutura genérica, as mais gerais, são pensados de uma forma que inferiorizam a realidade sensível. Nesse sentido, a realidade superior e fundante do mundo dos homens, seria um campo suprassensível.

Esse caráter, que é um traço fundamental da ontologia metafísica de Platão, tem como diferencial entender também o mundo sensível como possuidor de um quanto de ser. Em outros termos, no mundo do inteligível o ser teria o status do verdadeiro e absoluto, enquanto que no mundo sensível, o ser possuiria existência atravessada pelo ser e pelo não-ser. Isso porque, de alguma forma o ser do mundo sensível tem como modelo o ser verdadeiro e ao mesmo tempo e ao contrário do seu arquétipo, é um mundo da transitoriedade e da multiplicidade fenomênica. Assim, de certa forma esquematicamente, mas não sem razão, divide Reale esses dois campos: “1) Ser inteligível e eterno; Idéias, seres matemáticos (ser em sentido pleno); 2) Ser que nasce, morre, vem-a-ser (ser em sentido apenas parcial e não pleno)” (1993, p. 162).

Mas ora! Se existe uma dimensão ontológica que é gerada, e outra que abriga o ser por excelência, que por sua vez é ingênita e inerte (não pode gerar nada), como se pode deduzir que o mundo físico foi gerado? Afinal, se algo foi gerado, alguém o gerou. Platão resolve esse dilema com a inclusão de um médium não menos do mundo suprassensível: o Demiurgo. Assim chega a isso Timeu: “Ora, tudo aquilo que devém é inevitável que devenha por alguma causa, pois é impossível que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa. Deste modo, o demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria” (PLATÃO, 2011, p. 94). Nesse exato sentido, o primeiro plano ontológico, o famoso mundo das Ideias de Platão, é o modelo do que há de mais belo para onde o Demiurgo vai olhar e se inspirar para construir o plano ontológico inferior do mundo e dos homens. Nas próprias palavras da personagem sobre a criação do mundo:

aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arquétipos: daquele que é imutável e inalterável ou do que devém. Ora, se o mundo

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é belo e o demiurgo é bom, é evidente que pôs os olhos no que é eterno; se fosse ao contrário – o que nem é correcto supor –, teria posto os olhos no que devém. Portanto, é evidente para todos que pôs os olhos no que é eterno, pois o mundo é a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo é a mais perfeita das causas. Deste modo, o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pôs os olhos no que é imutável e apreensível pela razão e pelo pensamento (PLATÃO, 2011, p. 95-96).

O excerto acima é um tanto claro sobre essa estrutura mais geral da relação fundante fundado, ou em outros termos, da hierarquia ontológica na cosmologia platônica, no que concerne ao arquétipo, que é imutável e eterno, e ao mundo gerado que é uma imagem, cópia do patamar ontológico verdadeiro. Nas palavras de Timeu,“Assim sendo, de acordo com estes pressupostos, é absolutamente inevitável que este mundo seja uma imagem de algo” (PLATÃO, 2011, p. 96). E, ao continuar sua abordagem sobre a imagem, diz que: “Em relação aos que se reportam ao que é copiado do arquétipo, por se tratar de uma cópia, estabelecem com essa cópia uma relação de verossimilhança e analogia; conforme o ser está para o devir, assim a verdade está para a crença” (PLATÃO, 2011, p. 96), pois, “é que o arquétipo é ser para toda a eternidade, enquanto que a representação foi, é e será continuamente e para todo o sempre deveniente” (PLATÃO, 2011, p. 111).

Em suma, mudando o que tem de ser mudado, temos uma estrutura geral que nos possibilita identificar as características mais gerais de uma ontologia tradicional/metafísica tanto em Platão quanto em Parmênides. Em ambos existe uma valoração entre duas grandes dimensões: a do mundo suprassensível e a do sensível. Esse aspecto valorativo atribui ao mundo meta-físico a qualidade de ser o lócus do que é verdadeiro, essencial e perfeito. Nesse, o ser seria ingênito, imutável e eterno. Já no mundo do aquém, o oposto é o motor, ou seja, é o campo da opinião (doxa), do falso, do fenomênico, da aparência e da imperfeição. Esse nasce, assim, é gerado, é passageiro e finito. Existe em toda ontologia metafísica tradicional, uma relação de causalidade (causa e efeito), e em todas elas a causa primeira sempre será um ser suprassensível. O Uno (Parmênides e Zenão), o Demiurgo (Platão), o Motor Imóvel (Aristóteles), o Deus judaico-cristão (Agostinho/Aquino), e o Deus da lógica (Hegel), para ficarmos numa espécie de amostragem de alguns dos mais expressivos da tradição filosófica ocidental. Em resumo, um ser não material sempre é colocado, ora como princípio, ora como criador do mundo e dos homens.

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2.2 LUKÁCS: O CHAMADO À ATERRISSAGEM DA ONTOLOGIA

No começo desse texto falamos da possível estranheza que a ligação entre as palavras ontologia e materialismo poderiam gerar frente aos estudiosos/pesquisadores do campo da metafísica. Contudo, sejamos justos. A relação entre ontologia e materialismo causou e causa uma inquietação também no seio do marxismo. Quem sabe até mais alvoroçada do que no primeiro campo de estudos. Talvez nenhuma imagem primaveril, por mais bela e alcance que possa ter seu caráter poético da renovação, consiga exprimir o efeito de uma tese lançada já nas primeiras linhas da obra tardia do filósofo húngaro, György Lukács (1885-1971). Exatamente na abertura do livro I da sua Ontologia do Ser Social7, ele dispara essa categórica afirmação: “Ninguém se ocupou tão extensamente quanto Marx com a ontologia do ser social” (LUKÁCS, I, 2012, p. 25).

Essa afirmação que cai - para parafrasear uma expressão do próprio Marx – como um “raio em dia de céu sereno” na fortaleza da vulgata marxista, se interpretada à luz das ontologias acima delineadas em seus contornos os mais gerais, realmente deveria ser alvo de uma crítica mordaz. E o próprio Lukács sabia disso, quando também abre, lá nos Prolegômenos, com a seguinte observação: “Ninguém se surpreenderá – muito menos o autor destas linhas – se a tentativa de basear sobre o ser o pensamento filosófico acerca do mundo se confrontar com resistências de muitos lados” (S/D, p. 07). Ou seja, o filósofo magiar sabia que sua tese da maturidade tardia seria recebida com as mais duras relutâncias. Provavelmente, nesse caso, o exemplo não vinha da casa ao lado. Em outras palavras, o próprio Lukács, em tempos anteriores, foi um duro crítico da ontologia8. Como bem vai apontar Oldrine,

7 Um esclarecimento sobre a versão da ontologia utilizada nesse texto: excetuando o livro I da Ontologia do Ser Social, as referências ao livro II e aos Prolegômenos são todas da versão traduzida pelo professor e pesquisador Sérgio Lessa. Como esta ainda não foi publicada, vale ressaltar ao leitor que a tradução é uma versão preliminar e continua em processo de revisão. De qualquer sorte, o projeto dessa tradução, que tem previsão de ser lançada em 2018 pela editora do Coletivo Veredas, prevê ainda mais duas edições com novas revisões. Pelo fato de não ter sido publicada ainda, não aparecerá, obviamente, a data ao nos referirmos às mesmas. Outro ponto é, quando nos referirmos a Ontologia I e II, utilizaremos os referidos algarismos entre parênteses respectivamente. No caso dos Prolegômenos, esse deverá ser reconhecido quando não houver nenhum algarismo. Agradecemos imensamente ao Sérgio Lessa por autorizar a utilização dessa versão. 8 Importante ressaltar aqui, de passagem, que Lukács tem uma vida teórico-política muito complexa e que, não parte de início, de uma formação marxista. Geralmente divide-se o

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Pela palavra “ontologia” Lukács mesmo, por muito tempo, experimenta desconfiança e suspeita. Como a palavra que pertence à velha metafísica, como a palavra que carrega a conotação moderna conferida por Heidegger, essa tem de fato […] para ele, apenas uma validade negativa; significa, na melhor das hipóteses, “antropologia pura”, sociologia “mistificada ontologicamente”, pseudo-objetividade ([…] ensaio de 1848, sobre o Heidegger redivirus) […] E ainda o seu conhecido ensaio sobre o “realismo crítico” […] considera o termo “essência ontológica” apenas “um termo da moda”, possuindo desenvolvimento e significado apenas em relação à instância da “eterna universal “condition humaine” (2017, p. 282).

Não obstante a isso, o uso da “bela palavra ontologia” (LUKÁCS, 1971, p. 15), não será por muito tempo negligenciada pelo filósofo magiar. Após o término de sua monumental Estética, por volta de 1960, o projeto de Lukács era iniciar os trabalhos em torno de sua Ética (TERTULIAN, 1986, 1996; OLDRINE, 2014, 2017), “pelo qual ele vinha recolhendo grande quantidade de materiais preliminares desde o final dos anos de 1940” (OLDRINE, 2017, p. 278). E sem espaço de tempo entre um projeto e outro, ele começa a empreitada da Ética, porém, percebe que a ela, deveria ser escrito um capítulo “introdutório de caráter ontológico”, ou melhor, como ele mesmo confessa em carta de 21 de maio de 1962, que “necessitaria ainda prosseguir adiante em direção de uma concreta ontologia do ser social” (LUKÁCS apud OLDRINE, 2017, p. 278). Quando ruma para essa direção, o filósofo húngaro não mais retornará ao projeto inicial (escrever uma Ética marxista9). A necessária introdução consome os últimos anos de sua vida, mas se transforma na mais original e radical tentativa de retorno à obra de Marx, com vista a tirá-la da paralisia, do esquematismo e da redução ao determinismo econômico da vulgata materialista. Assim, no mesmo sentido que atribuiu uma ontologia a Marx,

desenvolvimento teórico de Lukács em três períodos: 1) o pré-marxista; 2) o proto-marxista e 3) Maturidade: virada dos anos 30 (período moscovita) e maturidade tardia (Estética e Ontologia). Sobre isso, ver especialmente Oldrine (2017). Sobre o segundo e terceiro período, vale uma olhada ainda em Coutinho e Netto (2008). 9 Vale a informação que, mesmo não escrevendo seu projeto inicial de uma Ética marxista, Lukács deixou várias notas sobre a temática. Essas notas foram publicadas pela primeira vez no Brasil, somente em 2014, pelo Instituto Lukács e traduzidas por Sérgio Lessa, com o título de Notas Para uma Ética. Para um entendimento melhor sobre as principais questões que envolvem a Ética em Lukács, sugiro a leitura da apresentação do livro, feita pelo próprio Lessa.

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assevera – no capítulo Os princípios ontológicos fundamentais de Marx - que “se o marxismo quiser hoje voltar a ser uma força viva do desenvolvimento filosófico, deve em todas as questões retornar ao próprio Marx” (LUKÁCS, I, 2012, p. 302). 2.2.1 OS ASPECTOS GERAIS DO SER

Essa incursão introdutória foi necessária por dois motivos: 1) mostrar que a tese de uma ontologia materialista não é uma teoria que passa sem problemas dentro do próprio marxismo10, diria até que, talvez, o Lukács da ontologia viva à margem dos estudos dominantes no marxismo hoje (muito pelo preconceito em relação à palavra ontologia); 02) A ontologia lukacsiana, por mais que lance mão de teses de Aristóteles, Hegel e Hartmann, é fincada na letra de Marx. Ela parte desse último e atribui ao mesmo todos os fundamentos que vão ser desenvolvidos em sua obra tardia. Mas, talvez o leitor, não sem razão, já esteja impacientemente querendo saber do que se trata essa ontologia materialista. Antes de passarmos de fato ao problema que nos interessa, vale ressaltar que abordaremos especificamente em larga medida um dos capítulos da chamada parte teórica, que abre o livro II, intitulado: O Trabalho. Talvez desnecessário dizer que, aqui e ali, possam aparecer referências aos outros capítulos (Reprodução; Ideologia e Alienação), assim como ao livro I e aos Prolegômenos. No entanto, antes mesmo de passarmos ao Trabalho, vamos explorar primeiro e sinteticamente os aspectos gerais do ser.

De saída, devemos esclarecer que Lukács vai reconhecer três grandes esferas do ser. A primeira seria a do ser inorgânico (processos químicos e físicos), a segunda a do mundo orgânico (das plantas aos animais superiores [ex. chipanzés]), e por último, o que nos interessa, o ser social. Isso é importante por que essas três grandes esferas possuem uma entrelaçabilidade ontológica, ou seja, a de que a inferior se constitui enquanto base da superior. Em outros termos, a esfera mais desenvolvida, a do ser social, traz em suas características, elementos importantíssimos da esfera inorgânica e orgânica. Afinal, nascemos e morremos. Esse é um traço irreversível da esfera biológica, por exemplo, no ser social. Nesse

10 Isso vale até mesmo dentro do campo dos lukacsianos. Há aqueles que não assumem essa última obra de Lukács como marxista. Esses defendem o Lukács de História e Consciência de Classe. Livro esse que o próprio autor “renegou”. Ver prefácio de 1967 do livro em questão e também, Pensamento Vivido (2017).

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sentido, aqui já emerge uma diferenciação substancial da ontologia lukacsiana em relação à “velha” metafísica. O ser-social tem como base ontológica, dois grandes campos de ser que se desenvolveram naturalmente desde os minutos iniciais do surgimento do universo. Vale, sobre isso, a explicação de Lessa sobre o materialismo de Lukács:

O pressuposto de Lukács é que o desenvolvimento do ser inorgânico é a história do universo. Essa história tem como características ontológicas decisivas o fato de ser composta apenas por processos físicos e químicos; e, ainda, pelo fato de esses processos inorgânicos terem dado origem a elementos e compostos químicos que evoluem, de um estágio primeiro em que eram muito mais homogêneos e, suas interações, mais simples, para outro em que se estabeleceu a atual diferença entre a matéria e a energia, em que todos os elementos da tabela periódica estão formados, em que a matéria inorgânica se estabilizou (relativamente) no patamar em que hoje a conhecemos. Desse processo evolutivo do inorgânico resultam interações muito mais complexas, tanto entre os átomos e moléculas, quanto entre as diferentes formas de energia e de matéria, do que as que havia no passado. Do simples ao complexo – mas, ainda, mantendo sua determinação ontológica essencial: apenas processos químicos e físicos (2014, p. 11).

Outro ponto importante, e que de certa forma torna menos obscuro essa discussão toda em torno da ontologia é que, segundo Lukács, para começarmos a refletir sobre o caráter ontológico de algo, devemos partir de uma questão muito simples, a constatação ontológica da existência imediata da vida cotidiana. Porém, essa existência instantânea, visto em sua imediaticidade, talvez possa esconder mais sobre ele do que revelá-lo. Nas palavras do próprio autor:

Por um lado, uma reflexão ontológica acerca do ser social é impossível sem buscar seu primeiro ponto de partida nos fatos mais simples da vida cotidiana dos homens. Para demonstrar este estado de coisas nas condições as mais primitivas, deve ser lembrada a frequentemente esquecida trivialidade de que apenas uma lebre existente pode ser caçada, apenas uma cereja existente pode ser colhida, etc. Todo pensamento, cujos pressupostos e conclusões percam este fundamento último, em seu todo, em seu resultado final, deve se dissolver subjetivisticamente em si próprio. A isto se opõe, por outro lado, que – do mesmo modo como resultado de um fato basilar do ser humano, a saber, que nunca somos capazes de agir com pleno conhecimento de todos os componentes e consequências de nossas decisões – também na vida cotidiana o ser real,

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com frequência, se apresenta de um modo altamente distorcido. […] Deve-se, portanto, partir da imediaticidade da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, ultrapassá-la, para poder apreender o ser como autêntico em-si (LUKÁCS, s/d, p. 07-08).

Esse trecho dos Prolegômenos está tratando, dentre outras coisas importantes, da relação entre essência e aparência. A essa correlação, o fato “trivial”, ou seja, a constatação ontológica é partir do que existe. Exemplo: Quero fazer um machado (primitivo), preciso reconhecer a existência de uma pedra, uma madeira e um cipó. Feito essa constatação ontológica, nada me permite dizer ainda que a pedra que o homem primitivo tem próximo a ele serve para realizar seu objetivo. Esse mesmo homem terá que conhecer as propriedades do objeto em-si. Isso porque, existem pedras e pedras, ou seja, umas podem servir para cortar, outras serem quebradiças e não servirem para um machado, já outras seriam mais duras do que o necessário, impedindo assim o processo de afiação do machado etc. Em outros termos, quando reconhecemos a existência de um objeto, a aparência dele pode nos levar também ao erro do seu ser em-si. Mas, talvez o mais importante aqui, é que o ser em-si da pedra, poderá (não importa o tempo que leve/levou) ser reconhecido.

Ora, essa relação entre o conteúdo essencial e o aparente é sem dúvidas um dos traços desenvolvidos pelos filósofos que tratamos na primeira parte desse texto. Nesse sentido, Lukács, partindo de Marx, não estaria apenas dando seguimento à mesma ontologia metafísica? A diferença, ao mesmo tempo que simples, é abissal. Lá, o conhecimento, o pensamento, ou o mundo do suprassensível era o lócus do verdadeiro ser, da realidade. Em Lukács, o inverso é verdadeiro. Ou seja, na ontologia materialista, é o ser sensível do mundo empírico, objetivo que constitui o primeiro impulso para o conhecimento autêntico do ser. Aqui não existe um reconhecimento dicotômico onde o plano do eterno, imóvel e imutável seria a essência verdadeira enquanto que a dimensão fenomênica do mundo empírico, por sua vez, o passageiro e falso. O plano metafísico é simplesmente apagado in limine. Toda relação ontológica se movimenta no mundo sensível. Em outras palavras, o mundo objetivo, em última instância é que rege o mundo subjetivo11.

11 Essa relação entre objetivo e subjetivo não deve ser entendido como algo dicotômico. Existe aí uma relação dialética que numa análise concreta do fato em si, pode se perceber uma inversão determinante na relação.

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Ainda sobre a passagem acima, outro ponto deve ser destacado: o de que a ontologia materialista vai continuar operando com categorias desenvolvidas desde Parmênides (essência/aparência). Isso porque é reconhecida por Lukács (antes já por Marx) a importância das mesmas para o desvelamento da realidade. Marx já chamava atenção a isso quando argumentava no Capital que, “toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX, 1961, Livro III, p. 870). Nesse mesmo sentido, em Salário, Preço e Lucro, diz: “As verdades científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas” (2002, p. 51). O último excerto de Lukács se conecta sobremaneira com essas esparsas passagens do filósofo alemão. Reconhecer a existência de alguma coisa, não é conhecer todas as propriedades dessa coisa. Daí porque falamos que a constatação ontológica é um primeiro impulso para o conhecimento cada vez maior do objeto em questão. Isso inclusive vale para o desvelamento da mística tese metafísica de uma criação do universo com base no plano do suprassensível, onde na verdade, com o desenvolvimento da ciência, fora comprovado que a origem do universo, não passou de processos químicos e físicos (elementos materiais).

Não obstante a tudo isso, vale um último esforço com o objetivo de tirar o máximo de consequências do último excerto de Lukács. Quando esse filósofo chama atenção para a constatação trivial de que só se pode caçar uma lebre, caso ela exista, ele tem em mente também uma crítica às filosofias (aos filósofos) que defendem uma espécie de teoria da representação. Ou seja, a tese de que a realidade seria uma representação da minha mente (sem dúvida, é uma atualização da metafísica tradicional). Assim Lukács sarcasticamente vai exemplificar a questão:

Os automóveis na rua podem, pela teoria do conhecimento, ser facilmente declarados meras impressões dos sentidos, representações, etc. E, contudo: se eu for atropelado por um carro, embora não haja uma colisão entre minha representação de um carro e minha representação de mim mesmo, meu ser como homem vivo é colocado ontologicamente em perigo por um carro existente (s/d, p. 11)12.

12 Nesse mesmo sentido, com outro exemplo, mas não menos “trivial” como prefere chamar Lukács essa constatação ontológica, Marx vai referir-se na nota 6, do livro I d’O Capital, quando tenta dissipar um suposto caráter paradoxal da relação do peixe enquanto meio de produção: “Parece um paradoxo […] considerar o peixe que ainda não foi

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Assim, me parece que a diferenciação geral de uma ontologia materialista, pela constatação simples, de que a existência é objetiva, de que seu lócus seja o plano sensível, concreto, possibilita-nos a passar à categoria fundante de um ser específico: o ser social. E, como se trata de uma abordagem ontológica, não tem como contornar o “fenômeno originário” dessa nova esfera do ser. 2.2.2 A CATEGORIA FUNDANTE DO SER SOCIAL: O TRABALHO

Uma das características gerais de toda a ontologia é buscar entender a origem das coisas: do universo, dos astros, dos planetas, dos homens etc. Não será diferente com a ontologia lukacsiana. Porém, o autor em questão, mesmo deixando clara a importância dos outros dois patamares do ser (inorgânico e orgânico) para a compreensão do ser social, é, em especial, a este último que sua ontologia estará voltada. Nesse sentido Lukács vai investigar a categoria fundante do ser social, e a partir dela, não de forma determinativa, jogar luz num processo ininterrupto de humanização do homem. Assim, abre o primeiro capítulo do livro II de sua ontologia: “Se se deseja expor as categorias específicas do ser social, seu crescimento a partir das suas formas ontológicas precedentes, sua conexidade com elas, sua fundabilidade nelas, deve iniciar esta tentativa com a análise do trabalho” (LUKÁCS, II, s/d, p. 7).

Por ventura, não estaria o leitor se perguntando: “Ora, se nessa ontologia, algo também funda um ser, Lukács não estaria incorrendo no mesmo caráter metafísico que, por exemplo, Platão, que tem o seu demiurgo?” Essa é uma dúvida extremamente válida. Por isso vamos, pelo menos tentar, dissipá-la de pronto. Primeiro temos que entender o que é o trabalho, e para isso, vamos buscar em Marx - assim como Lukács o fez - sua conceptualização:

o trabalho é um processo em que participa o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. […] Põe em movimento as forças naturais do seu corpo […] a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo

pescado meio de produção de pesca. Mas até hoje, não se inventou a arte de pescar em águas onde não haja peixes” (2006, p. 215 [grifos nossos]).

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tempo modifica a sua própria natureza. […] Pressupomos o trabalho em sua forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha, é que ele figura na sua mente sua construção antes de transformá-la em realidade (MARX, 2006, 211).

Essa tese marxiana, transcrita apenas em parte, é de onde Lukács vai desenvolver sua ontologia. É daí que o filósofo magiar vai detectar a constatação ontológica de Marx, a partir do trabalho. Assim, o trabalho deve ser entendido enquanto intercâmbio entre o homem (sociedade) e a natureza. Quando Lukács vai identificar o trabalho enquanto categoria fundante do ser social, ele o faz porque é essa categoria a única que possibilita ainda uma clara ligação entre as três esferas do ser, a natureza (inorgânica e orgânica) e a do ser social (atividade e produto do trabalho). Segundo Lukács, “Apenas o trabalho tem sua essência ontológica em um distinto caráter de transição” (II, s/d, p. 9), e continua dizendo que essa inter-relação “assinala a transição, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social” (LUKÁCS, II, s/d, p. 9-10). Só o trabalho tem esse caráter limite, enquanto todas as outras categorias já possuem, mesmo que primitivamente, uma especificidade de ser puramente social. Mas é no trabalho que “estão contidas todas as determinações que […] constituem a essência do novo no ser social” (LUKÁCS, II, s/d p. 10). Por isso, o autor é categórico ao dizer que “O trabalho pode ser considerado, portanto, como fenômeno originário, como modelo do ser social” e que diante disso “parece metodologicamente vantajoso começar pelo trabalho” (LUKÁCS, II, s/d, p. 10).

Nesse sentido, começar pelo trabalho é o mesmo que começar pela categoria mais simples do ser social, assim como Marx começa pela mercadoria, como a categoria mais simples e abstrata da produção capitalista. No entanto, ao tratar abstratamente do trabalho, não se desconsidera que ele faz parte de um complexo. O trabalho, tal qual Marx aponta no excerto acima, traz uma série de componentes inerentes ao seu modus operandi. Tal categoria traz em seu bojo categorias que sintetizam processos ideados e objetivados, assim como, reflexivos, tornando assim um complexo onde os componentes cognitivos e corporais andam juntos. Trocando em miúdos, o trabalho não é apenas uma atividade puramente mecânica, uma ação cega, muito menos que sua realização seja somente um produto externo criado pelo homem, existe também, ao mesmo

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tempo, uma retroação subjetiva no homem que trabalha, transformando-o internamente. Existe, nessa dimensão do trabalho como modelo da práxis social, uma inexorável relação de ideação, pesquisa, valoração, transformação e autotransformação. E é a partir desse complexo - que analisaremos a seguir – que tal categoria fundante se diferencia dos fenômenos originários da ontologia metafísica. Através do trabalho, ou seja, de uma práxis criadora operada e regulada por um ser sensível e ativo - o ser social - que este se funda. Em outros termos, o ser social é autofundado13. Ele é o seu próprio demiurgo, ou seja, a história é devolvida ao fazer-se do homem, tirando qualquer ser metafísico (deus/ motor imóvel/espírito absoluto) da gênese criadora. Lukács, com sua ontologia, retira o acento de gênese de um ser místico, e devolve ao homem o processo gerador dele mesmo e do seu próprio mundo.

Para explicarmos o complexo do trabalho enquanto modelo da nova esfera do ser, devemos revisitar a citação de Marx acima, especificamente a observação do autor sobre a diferenciação entre a atividade transformadora de um animal em relação à do homem. O trabalho exclusivamente humano só o é porque nele está contido uma operação teleológica, isto é, o homem, antes de executar uma atividade laboral primeiro projeta em sua cabeça antes de realizar a ação. Essa ideação é voltada para a execução de alguma finalidade. Ou seja, começa a surgir cristalinamente um processo em que a atividade criadora material só tem sentido se precedida por uma atividade da consciência. Exatamente aqui, segundo Lukács, o homem se diferencia do ser meramente biológico. A atividade da aranha, para ficarmos no exemplo de Marx, não ultrapassa o seu caráter de ser biológico, ou seja, cria aquela teia de forma esplendorosa e perfeita, porém, só cria isso. Em resumo, do trabalho humano, que surge primitivamente voltado para as necessidades imediatas, nasce o mundo antigo, o medievo e o capitalismo. Do trabalho da aranha, surge apenas a sua teia perfeita. Se do abacateiro só dá abacate, do trabalho humano, dá a ciência, o direito, a política, o Estado, a religião etc.

13 Deve-se atentar para o fato de que, quando se fala de uma categoria ontologicamente fundante, não tem a ver com a temporalidade da categoria, ou seja, não diz respeito a quem veio antes ou depois. Caso fosse o princípio de temporalidade e não o caráter ontológico, segundo a essência, que regesse a tese da fundabilidade do ser, o Trabalho cairia na mesma armadilha da metafísica. Sobre isso Lukács alerta que: “deve estar sempre claro que com essa, aqui apresentada, consideração isolada do trabalho, é realizada uma abstração; a sociabilidade, a primeira divisão de trabalho, linguagem etc. surgem, de fato, do trabalho, contudo não em uma sucessão temporal claramente determinável, mas, segundo a essência, simultaneamente” (II, s/d, p. 10).

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desnecessário dizer que esse é um processo de centenas de milhares de anos, com muitos becos sem saída e não mecanicamente dado. Por isso, após citar a mesma passagem de Marx, por nós transcrita acima (a última citação direta do texto), Lukács vai dizer que,

Com isso a categoria ontológica central do trabalho é enunciada: através do trabalho é realizada uma posição teleológica no interior do ser material como o nascimento de uma nova objetividade. Assim o trabalho se torna o modelo de toda práxis social14, na medida em que nesta – mesmo se através de mediações muito extensas -- sempre são realizadas posições teleológicas, por último materiais (II, s/d, p. 12).

O acento dado à teleologia no interior do trabalho, enquanto categoria importante para o devir humano do homem é devedor de Marx. Porém, a teleologia é uma categoria filha da história da filosofia. E Lukács vai reconhecer que, Aristóteles e Hegel foram os primeiros a enxergar no trabalho, o seu caráter teleológico. O grande problema, e aqui não utilizamos apenas de uma figura de linguagem, é que ambos dilataram o entendimento da teleologia tanto para a história quanto para a natureza. Enquanto Lukács, com base em Marx, circunscreve o pôr teleológico à práxis social, Aristóteles e Hegel, ampliam-na para além da atividade humana. Ora, disso aflora outro ponto de contraste entre as duas grandes concepções ontológicas que queremos “demarcar”. Isso porque, se a teleologia pressupõe uma consciência que projeta algo com vista a alguma finalidade, temos que, na ontologia lukasciana, essa consciência tem nome e endereço, é o homem. Já na ontologia metafísica, se ela espraia para além da atividade humana, qual é a consciência que realiza sua finalidade no universo e na história? O motor-imóvel (deus) ou o espírito universal (deus lógico de hegel)? Ou ainda, o Uno (imóvel, imutável, eterno de Parmênides), e/ou o Demiurgo (Deus-artífice de Platão)? Assim, Lukács, após reconhecer a importância e limites da abordagem teleológica em Aristóteles e Hegel, vai dizer que, “o problema ontológico verdadeiro emerge em que a espécie de posição teleológica – mesmo em Aristóteles e Hegel – não permanece limitado ao trabalho (ou, em um sentido mais

14 Essa constatação do trabalho como modelo, de modo algum deve ser elevado a alguma forma de esquematismo. Lukács não cansou de combater tal possibilidade. Numa das várias passagens, é categórico: “Naturalmente, como veremos mais tarde, este caráter de modelo do trabalho para o agir dos seres humanos na sociedade não deve ser esquematicamente exagerado” (LUKÁCS, II, s/d, p. 12).

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ampliado, contudo legítimo, à práxis humana em geral), ao contrário, é elevada a uma categoria cosmológica geral” (II, s/d, p. 13). Dessa ampliação da teleologia resulta em que, “fossem corretas as diferentes teorias idealistas ou religiosas de um domínio geral da teleologia […] cada pedra, cada mosca, seria igualmente uma realização do ‘trabalho’ de Deus, do espírito do mundo (Weltgeistes) etc., tal como as realizações […] nas posições teleológicas dos seres humanos”15 (LUKÁCS, II, s/d, p. 26).

Junto à teleologia no trabalho, Lukács vai recuperar outra categoria cara à ontologia tradicional, que é a causalidade (relação de causa e efeito). No entanto, o filósofo húngaro vai chamar atenção para o fato de que essas duas categorias sempre foram vistas como antípodas pela história da filosofia, impossibilitando assim visualizar uma ação com vistas a um fim em conexão com uma categoria que tem como princípio, segundo o próprio Lukács, o automovimento. Segundo o autor em questão: “[…] para ser preciso, a causalidade é um princípio de automovimento que repousa sobre si mesmo que preserva este seu caráter mesmo quando uma série causal tem seu ponto de partida em um ato consciente (Bewußtseinsakt)” (LUKÁCS, II, s/d, p. 13), enquanto que a teleologia “por sua essência, é uma categoria posta: todo processo teleológico implica uma posição de finalidade e com isso uma consciência que põe fins” (LUKÁCS, II, s/d, p. 13).

A relação pretendida de unitariedade dada a duas categorias heterogêneas formam as peças imprescindíveis para a compreensão correta do complexo do trabalho. Isso porque, ao mesmo tempo em que o pôr do homem é relativizado pela necessidade de compreender um movimento da objetividade das cadeias causais, essa conexão com uma categoria que independe da ação humana, o possibilita um contínuo apreender do mundo objetivo. E isso desdobra cada vez mais em

15 Vale aqui uma passagem de Lukács à margem, pois ela traz uma analogia interessante para visualizarmos que a ontologia metafísica tradicional, seja filosófica ou religiosa, quando dilata o conceito de teleologia abrindo espaço assim para uma consciência criadora (deus), elas têm em larga medida, o trabalho como modelo. Assim comenta Lukács: “Já aqui está visível que todas as formas idealistas ou religiosas de teleologia natural, da natureza como criação de Deus, são projeções metafísicas deste único modelo real. Na história da criação do Velho Testamento este modelo é tão nitidamente visível que o Deus, não apenas – tal como o sujeito humano do trabalho – verifica continuamente o realizado, como também, tal como o ser humano que trabalha, após o trabalho se permite um descanso. Em outros mitos da criação, mesmo que possam imediatamente receber uma forma já filosófica, pode-se reconhecer do mesmo modo sem dificuldade o modelo humano-terreno de trabalho; pense-se ainda uma vez no relógio do mundo, em que Deus deu corda” (p. 18).

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conhecimento mais apropriado para a realização do pôr teleológico. Visto por outro ângulo, é o mesmo que dizer que não é possível realizar uma finalidade correta (de acordo com o projetado na consciência) sem interferir com relativo conhecimento num movimento do mundo natural totalmente “alheio” ao interesse do ponente. A causalidade se torna também nesse processo, um meio propício à utilização com vistas a um fim.

Para exemplificarmos, tomemos a necessidade de um homem primitivo ter de construir um machado. Ora, se ele tem necessidade, ele o tem por alguma coisa. Nesse caso, o homem em questão, precisa construir um machado para facilitar o corte de uma carne rija como a do javali. Antes de construir um machado, porém, esse homem tem que ter projetado em sua mente um instrumento que, caso ele consiga realizar o pôr corretamente, o chamará exatamente de machado. Nisso, temos que, se ele apenas idear tal instrumento nunca teremos um machado no mundo. Ele precisa objetivar essa ideia. E para isso, ele precisa conhecer minimamente alguns objetos naturais do seu entorno. Nesse sentido, ele vai precisar conhecer as propriedades de algumas pedras, algumas madeiras e alguns cipós, assim como compreender que a pedra “x” serve para cortar, a madeira “y” poderá servir como um cabo que propicie melhor manuseio da pedra cortante, e que o cipó “z”, como algo maleável, será o elemento de ligação entre esses três objetos. Ora, é esse conhecimento dos meios que propiciará no final, o resultado correto ou não da teleologia. Ou seja, é a objetividade o polo regente da relação, e não o que pensamos. É o mesmo que dizer, dentro da problemática do conhecimento que “não cabe ao sujeito criar – teoricamente – o objeto, mas traduzir, sob a forma de conceitos, a realidade do próprio objeto” (TONET, 2013, p. 14). Isso por dois motivos: o primeiro é que a necessidade que queremos satisfazer é algo objetivo. E em segundo lugar, só podemos idear algo também que seja reflexo do objeto (mundo externo material), assim como só podemos realizar a nossa intenção com o material encontrado na natureza. É a famosa tese marxiana de que a objetividade, em última instância, rege a subjetividade.

Porém, sem esse projeto em nossa cabeça (o caráter subjetivo), nunca transformaríamos uma pedra, com um pedaço de madeira e um cipó, numa ferramenta humana. Mas em que consiste o uso das cadeias causais no exemplo dado? Simplesmente no fato de que não existe um átomo sequer nas propriedades da pedra “x”, da madeira “y” e do cipó “z”, naturalmente dadas para serem transformados num machado.

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Noutras palavras, a existência dos objetos em questão não tem nenhuma relação com a necessidade de outro ser. Elas não estão ao alcance do homem primitivo por uma atividade consciente, elas estão lá por uma série de cadeias causais. Não obstante, e aqui entra a conexidade entre a causalidade e teleologia, quando esse homem primitivo “descobre” que tais objetos naturais possuem as propriedades para a sua finalidade, e assim o concretiza, a causalidade passa da mera naturalidade à posta. Afinal de contas, não existe um machado na natureza. A partir dessa relação, que faz parte da atividade do trabalho, temos um novo ser existente. Aquele machado que estava apenas na cabeça do homem primitivo, agora se torna um existente. Sobre toda essa relação, Lukács vai afirmar que

A separação de ambos os atos, a saber, a posição da finalidade e a pesquisa dos meios é, para a compreensão do processo de trabalho, particularmente para o seu significado na ontologia do ser social, da maior importância. E precisamente aqui se mostra a inseparável ligação de categorias em si opostas e, vistas abstratamente, mutuamente excludentes: causalidade e teleologia. […] Natureza e trabalho, meio e propósito resultam, portanto, deste modo em algo em si homogêneo: o processo de trabalho e, ao final, o produto do trabalho (II, s/d, p. 20).

Dessa relação no interior do complexo do trabalho (que está longe de esgotar esse complexo), o homem tende a cada vez mais conhecer o seu entorno e ao mesmo tempo se deparando com necessidades que o obriga sempre a estar produzindo o novo. Disso emerge por um lado uma tendência à universalização do conhecimento e ao mesmo tempo, e exatamente por isso, um domínio cada vez maior da consciência sobre os instintos. Cada novo ser existente no mundo produzido pelo homem é uma abertura para um campo cada vez maior de possibilidades. Assim, o machado de pedra que foi idealizado para facilitar o corte de uma carne de caça rija, poderá ser usado para cortar madeiras, assim como se transformar em uma arma de defesa ou propícia ao assassinato. Isso quer dizer, com base na ontologia de Lukács, que o homem não tem total controle sobre o ideado objetivado. Isso porque também ele não tem total conhecimento de tudo.

Desse não conhecimento de tudo, e isso vale tanto para o homem primitivo quanto para o homem de hoje, em um dos seus aspectos, faz brotar por exemplo criações mágicas que dominam o universo. O raio que queima um galho, que cai do misterioso céu, que pra nós (excetuando os religiosos) possui explicação incontroversa, para o homem primitivo

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poderia ser visto com um poder de um ser metafísico. O fogo que se inicia com o raio, que num primeiro momento vai trazer temor, ao ser dominado, ainda pelo nosso ancestral, não vai ficar preso apenas às suas propriedades materiais (de afugentar animais pelo calor, de esquentar o homem ou grupo de homens, de assar carnes de caça etc.), ele vai também atribuir para aquele homem uma projeção suprassensível de sua origem e de seu poder. Assim, Lukács vai argumentar nos Prolegômenos que,

quanto menos os seres humanos em um estágio de desenvolvimento são capazes de compreender o real, tanto maior deve se tornar o papel do complexo de representação que eles constroem imediatamente das suas experiências com o ser, e sobre eles os projetam analogicamente, um ser para eles ainda objetiva e realmente inapreensível. Como o trabalho (e a linguagem que surge simultaneamente com ele) constitui a menor parte da vida então compreensível, não pode nos surpreender que, precisamente nessas projeções, – assumidas como ser – joguem o papel decisivo. Já as representações mágicas são projeções, ainda que muito amplamente impessoais, dos momentos mais importantes do trabalho. Quando a religião, o patamar mais elevado, surge, esta situação das coisas experimenta uma intensificação da personificação. O momento comum é que o acontecimento essencial no mundo não parece como um fundado em si mesmo, mas como produto de uma (transcendente) atividade posta (LUKÁCS, s/d p. 17).

O que toda essa construção de uma ontologia do ser social baseada na práxis do próprio ser social traz de mais importante para o pensamento filosófico da contemporaneidade, talvez seja a devolução ao homem de todo o seu processo criativo enquanto uma nova esfera do ser. Isso quer dizer que, do machado ao reator atômico, da magia/religião à matemática, física, química, filosofia e à arte, até processos horrendos como a escravidão, holocausto e guerras, nada foi feito senão pela atividade do homem. A ontologia materialista se diferencia da ontologia tradicional/metafísica (sem, contudo, enterrá-la), pelo simples fato de que é a relação dialética entre consciência e objetivação, o pensar, pesquisar e o fazer, seja frente a uma matéria natural, ou seja frente a uma matéria social, num processo longo, de malhas mediativas as mais complexas e variadas, que o ser social se constrói e se autoconstrói ininterruptamente, seja pelo trabalho (o mundo produtivo), seja pelas dimensões as mais espiritualizadas possível (Valores, Direito, Política etc), afinal, para essas últimas, vale lembrar que elas enquanto categorias puramente sociais (possuem autonomia em relação ao intercâmbio com a natureza), são,

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Daseinformen, Existenzbestimmungen, ou seja, formas de ser, determinações da existência. 2.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de considerações finais, queremos apenas lembrar ao leitor que, em nenhum momento o texto que tem como objetivo fazer distinções entre a ontologia tradicional/metafísica e a ontologia materialista, procura com isso criar uma relação valorativa entre as ontologias (ex. pior e melhor). A intenção foi apenas mostrar que a recuperação por conta de Lukács não só da “bela palavra ontologia”, mas da necessidade de recuperá-la enquanto delineamentos metodológicos, e alça-la à sua real posição, à sua autenticidade frente ao mundo regido preponderantemente, pelo neo-positivismo e pela teoria do conhecimento. Lukács procura um tertium datur, entre o empirismo e o gnosiologismo. Recuperar a ontologia nos “moldes” do materialismo não é renegar a ontologia tradicional, mas sim, reconhecê-la, mesmo que enquanto mistificadora (não de forma intencional), como fonte primeira em busca do que somos. Criticá-la é trazê-la ao debate, onde cada vez mais o irracionalismo ganha terreno com seu discurso de que a verdade não existe. A ontologia materialista é esse recuperar da necessidade de procurarmos conhecer sempre a realidade. É o compromisso com a verdade, com vistas sempre, a construções de relações sociais cada vez mais humanizadas. Para isso, um primeiro passo é devolver ao homem o seu caráter de autoconstrutor do seu próprio mundo, como único ente responsável, por isso, pela transformação de sociedades alienantes. Quando esses descobrirem que os males da humanidade não são nem oriundos e nem solucionáveis por deuses, mas sim pela própria humanidade, a trilha da transformação será percorrida não mais por caminhos imaginários, mas sim por rotas autoconstruídas. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica: Ensaio introdutório. Texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. Marcelo Perine. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2005, v. 1.

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III

SEMINARIO SOBRE LA ANALÍTICA DE LOS PRINCIPIOS

Jacinto Rivera de Rosales Chacon*

En la Analítica de los principios Kant pasa al estudio de los juicios básicos. Es un momento de aplicación de todos los elementos elaborados anteriormente, un momento de síntesis. De esta manera se establecen los criterios o principios fundamentales que rigen nuestro conocimiento objetivo, es decir, se configura una ontología, pero no ya del ente en cuanto ente o cosa en sí, sino como analítica del ente en cuanto objeto1.

Esos principios fundamentan la posibilidad objetiva de los juicios empíricos y científicos, y a la vez se ponen los límites de esa validez. Superamos así la simple prudencia y censura escéptica que, como reacción descontrolada a la desmesura dogmática, tendía a ponerlo todo en duda, tanto las desmedidas pretensiones metafísicas sobre una realidad transcendente, como las de un conocimiento objetivo y científico del mundo. Por el contrario, la Crítica establece, mediante principios, los límites de lo objetivamente fundado y lo separa netamente del hablar infundado que pretenda ir más de ellos2. De esta manera se ofrece un marco para los juicios objetivamente correctos y se establece la verdad transcendental, que precede y posibilita toda verdad empírica3, pues "las condiciones de la posibilidad de la experiencia en general [que son las formas a priori y la apercepción transcendental] son a la vez condiciones de la posibilidad de los objetos de la experiencia [dado que éstos son fenómenos], y por tanto tienen validez objetiva en un juicio sintético a priori"4.

* Catedrático de Universidad, área de filosofía, en la Universidad Nacional de Educación a Distancia - UNED, Madrid; E-mail: [email protected]. 1 KrV A 247, B 303. 2 KrV A 761 y 767, B 789 y 795. 3 KrV A 146, B 185; A 197, B 242 ss.; A 221-222, B 269; A 237, B 296; A 492-493, B 520-521. 4 KrV A 158, B 197.

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3.1 LOS PRIMEROS PRINCIPIOS Y LA CIRCULARIDAD DE LA CONCIENCIA

Hay dos primeros principios que rigen todos los juicios. En primer lugar está el principio supremo de los juicios analíticos que exige que el predicado no contradiga lo pensado en el sujeto. Ese es el principio de no contradicción. Kant elimina en él toda alusión a la temporalidad, pues ésta pertenece a la sensibilidad, mientras que aquél es un principio meramente lógico que hace abstracción de todo contenido sensible.

Este principio lógico formal es sólo un criterio de lo que puede ser pensado, de la mera espontaneidad ideal, pues se hace abstracción de toda sensibilidad. Al contrario de lo que sucede con el principio supremo de los juicios sintéticos. Este expresa el fundamento último que nos faculta para hablar del mundo, para hablar con fundamento de la realidad objetiva. Kant lo formula así: “Las condiciones de posibilidad de la experiencia en general son a la vez condiciones de posibilidad de los objetos de la experiencia y tienen por tanto validez objetiva en un juicio sintético a priori”5. Podríamos reformularlo así: dado que las estructuras a priori son las que hacen posible la objetivación del mundo, o sea, que éste se presente a un sujeto cognoscente de manera tal que puede ser recibido y pensado por él, ellas constituyen las condiciones de posibilidad de los objetos mismos de esa experiencia, pues éstos no son cosas en sí, independientes de toda subjetividad (en ese caso serían incognoscibles), sino fenómenos pues responden justamente a nuestras formas a priori, a nuestras exigencias de objetividad, a nuestras preguntas, y en ese sentido ideal dependen de nuestras formas a priori.

Este principio nos muestra la circularidad de la conciencia: las formas o acciones a priori (espacio, tiempo, esquemas y categorías) de la subjetividad transcendental son objetivas porque se apoyan en una experiencia dada en donde los objetos responden positivamente a nuestras formas a priori, y la experiencia dada se objetiva porque se configura según esas acciones a priori. No se trata de un círculo vicioso, pues éste sólo tiene lugar en el orden de la argumentación lógico-formal, donde se deducen proposiciones (las conclusiones) de otras (las premisas). El círculo no es lógico6 sino transcendental: encuentro aquello que yo he

5 KrV, A 158, B 197. 6 “Se comete un círculo en la demostración cuando se pone aquella proposición que se quiere demostrar como fundamento de su propia demostración” (Kant, Logik § 92; AA IX, 135).

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elaborado idealmente y soy capaz, por tanto, de reconocer. La conciencia objetivante es un ámbito que abre creativamente la subjetividad y vale para ella. Aquí se parte de una acción originaria y espontánea de la subjetividad, el Yo pienso o autoconciencia con sus formas a priori, y de la necesaria autorreferencia a sí de sus acciones, necesaria para la construcción de esa misma subjetividad. Todo lo que es para el Yo lo ha de poner o elaborar el Yo desde sí, pues sólo así es para él y puede enterarse de ello. La autoconciencia o autoposición es el fundamento de esta circularidad. No podemos ponernos en un punto exterior a esa idealidad y alcanzar una visión divina a fin de comparar (como quien compara dos objetos) nuestros conocimientos con cosas en sí totalmente independientes de ellos.

Además, ese círculo no es un círculo dogmático o desde el punto de vista divino, sino que es en el fondo hipotético. Hubiera podido suceder que el mundo no respondiera a nuestras formas a priori de conocer, pero entonces en ese caso no hubiera podido existir la conciencia ni el Yo, pues este es consciente de sí en el acto de determinar el mundo. Es así que sí soy consciente, entonces puedo afirmar con fundamento que el mundo existe y es conforme a mis formas a priori. Y como el conocimiento no tiene lugar sin sujeto, entonces los objetos deben acomodarse a la idealidad transcendental si han de ser conocidos. En absoluto, incluso podría no haber nada; no hay contradicción lógica en que hubiera habido la nada en vez del ser. Pero ya que la subjetividad existe, es transcendentalmente necesario que se dé esa acomodación, ese conocimiento objetivo, al menos en cierta medida, en una medida soportable; de ahí que el círculo no pueda llegar a ser vicioso, sino que siempre queda abierto a la respuesta positiva del mundo. Eso conlleva también la facticidad de las formas a priori, el que, en absoluto, también hubieran podido ser otras las categorías y las formas a priori de la sensibilidad7. Los idealistas (Fichte, Schelling y Hegel) las deducen genéticamente, pero eso sólo mostraría la coherencia interna de esas formas, no que no hubiera podido haber otra subjetividad distinta, también coherente, y de la cual ciertamente carecemos de idea. En ellos está también presente la circularidad, pues esa es incluso la forma total del sistema, y actualmente se la sigue elaborando por ejemplo bajo la figura del círculo hermenéutico.

7 Véase KrV B 145-146; A 230, B 283; A 393; A 557, B 585; A 613-4, B 641-2; Prolegomena § 36 (AA IV, 318); Entdeckung, AA VIII, 249. Sobre este asunto me extiendo más en el capítulo III del libro El punto de partida de la metafísica transcendental.

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Esa circularidad de la subjetividad cognoscente reside en la autorreferencia necesaria para que el Yo comprenda que está conociendo y qué está conociendo, y es en realidad una apertura ideal a lo otro de sí, al mundo, pues el Yo no tiene el modo de ser de una cosa, encerrada en sí misma, sino que sus formas a priori son preguntas abiertas que esperan la respuesta del mundo8, no respuestas, y si no hubiera ninguna positiva, la subjetividad se desaparecería, sobre todo respecto a la estructura a priori estudiada por la KrV, que es el marco mínimo de la objetividad. Pero es cierto que esa circularidad o autorreferencia es la que hace también posible la cerrazón, la terquedad, y la locura, convirtiéndose entonces en un círculo vicioso. Un universo conceptual, incluso el más desvariado, tiende a interpretarlo todo desde sus claves, y puede cerrarse sobre sí mismo y ver siempre aquello que quiere ver, lo cual puede ocurrir en un individuo o en un grupo. El Yo entonces se pierde, se destruye poco a poco, y sólo en la medida en que mantenga una distinción modal entre posibilidad y realidad y un contacto con la realidad, un "realismo", sigue existiendo. No se podría dar un Yo real en la total ilusión (y confusión): no sería un Yo real, sería como mucho la ilusión de otro Yo, si eso tiene sentido. Cabe, por tanto, preguntarse si nuestra comprensión actual contiene alguna ilusión más o menos importante, o si es parcial, pues esas preguntas pueden hacerse gracias a la idealidad transcendental en cuanto posibilidad de abrirse a la realidad y de descubrir la ilusión que representaba mi conciencia anterior9. Pero no cabe preguntarse si todo es mera ilusión, o máscara, o mentira. En ese caso el sujeto desaparecería por falta de realidad. Pero ciertamente abrirse a la realidad y comprenderla es una tarea que le constituye al sujeto10.

8 KrV B XIII-XIV. 9 Según la Fenomenología del Espíritu de Hegel vamos pasando de una figura a otra, esto es, de una visión del mundo a otra, debido a la limitación que encontramos en cada una de ellas y a la frustración que eso nos produce. 10 Para ello no sólo se requiere investigación y acción sobre el mundo, sino también intersubjetividad y diálogo. La verdad ha de ser compartible (KrV, A 820, B 848). Diálogo significa pensar por sí mismo coherentemente (utilizar la propia razón) y saber escuchar al otro, es decir, ponerse en su lugar, pensarse a fondo sus razones (KU § 40, AA V, 294-295; Antropología §§ 43 y 59, AA VII, 200, 228-229}; Logik, Einleitung VII, AA IX, 57).

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3.2 ESQUEMA DE LOS PRINCIPIOS

En la Sección tercera de ese capítulo II de la Analítica de los principios, Kant nos presenta primeramente el conjunto de los cuatro principios básicos que se desprenden de la tabla de las categorías. Poniendo en relación las diversas partes de todo este entramado sistemático, más otros momentos de su sistema filosófico, se podría hacer el esquema que se encuentra en la página siguiente. Este cuadro nos servirá de guía en la explicación de cada uno de los Principios, y es ahí donde también encontrará su aclaración detallada.

Pero aquí es oportuno decir lo siguiente. El primer nivel horizontal de arriba, el de la sensibilidad, tal y como se estudia en la Estética transcendental, sólo abarca propiamente lo que aparece en las dos primeras columnas verticales: la forma espacio-temporal y la materialidad de las sensaciones, materia y forma que configuran cada uno de los fenómenos. La expresión “fenómeno + f+f+f...” quiere significar la pluralidad de fenómenos u objetos y su unión o síntesis mutua, configurando lo que Kant denomina la natura formaliter spectata. Y en un sentido aún más lato se ha de tomar lo puesto arriba de la cuarta columna, pues no sólo incluye la sensibilidad, sino también la elaboración señalada en las tres columnas anteriores. Todo esto quedará explicado mejor en lo que sigue.

He extendido este esquema a la Dialéctica transcendental y a la estética de la KU con la voluntad de ofrecer una panorámica mayor que arroje aún más luz a la Analítica de los principios y los enmarque en sus límites al confrontarlos con el intento dialéctico de ir más allá y a la diferente experiencia de los objetos que ofrece lo bello y lo sublime. 3.3 AXIOMAS DE LA INTUICIÓN

Con las categorías de cantidad, sus esquemas y los Axiomas de la intuición lo que hacemos es elaborar, desde la idealidad o reglas de síntesis, la forma espacio-temporal de los fenómenos o formas a priori de la sensibilidad. El espacio y el tiempo dejan de ser meras multiplicidades ordenables, como ocurre en la sensibilidad, pues la multiplicidad continua del espacio y del tiempo es delimitada sintética y discretamente al recortar espacio-temporalmente a los objetos, y mediante esa acción también el espacio y el tiempo llegan a ser intuidos. Esta labor es realizada primariamente por la capacidad imaginativa mediante el esquema de la

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cantidad, que según Kant es el número. Por él se reúne, mediante adición sucesiva de las partes de un objeto que recorremos imaginativamente en su espacio y tiempo, una multiplicidad de igual naturaleza, homogénea, y se la distingue de otras multiplicidades concretas y concretadas también por el mismo esquema y que conforman otros objetos. Gracias a eso (1º) a los objetos se les asigna una cantidad discreta de espacio y tiempo, y (2º) éstos, que en sí, en cuanto absolutos o meras formas de la intuición, no son empíricamente intuidos, llegan a serlo en la concreción empírica de esos objetos, o sea, como dice Kant, "el tiempo mismo es producido en la aprehensión de la intuición"11. Y lo mismo ocurre con el espacio, pues el espacio absoluto tampoco es empírico ni empíricamente intuible, ni en sí ni en sus consecuencias como sería la percepción del movimiento de un objeto comparándolo con el espacio absoluto, sino que es una forma a priori de la sensibilidad, una idealidad, y sólo significa la capacidad ideal de ir más allá de todo espacio dado12.

No se trata aquí de que la espontaneidad de la síntesis imaginativa produzca ella misma la multiplicidad sensible del espacio y el tiempo, pues entre sensibilidad y entendimiento o espontaneidad en general, en donde hay que situar también a la imaginación, hay una diferencia transcendental, de origen y contenido13. El esquema de las categorías de magnitud o cantidad contiene y hace representable “la producción (síntesis) del tiempo mismo en la sucesiva aprehensión de un objeto”14; o sea, lo que produce la imaginación no es el espacio y el tiempo como formas de la sensibilidad, sino su síntesis limitada al recorrer el espacio y el tiempo de un objeto, y al limitarlos en esa síntesis empírica también son empíricamente intuidos; sólo lo limitado es empíricamente intuible, y esa limitación o síntesis es el efecto de la acción imaginativa. El espacio y el tiempo como formas ideales son la imagen pura, ideal, del mundo en general, y al ser quanta hacen posible la determinación de la quantitas de las cosas: "La imagen (Bild) pura de todas las magnitudes (quantorum) ante el sentido externo es el espacio; y de todos los objetos del sentido en general, el tiempo"15. Las categorías de cantidad son las únicas categorías que tienen imagen (pura, no

11 KrV A 143, B 182. 12 Véase por ejemplo KrV B 207; A 291, B 347; A 429, B 457 nota. Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza, cap. 1º, Enunciado 1, Observación 2 (AA IV, 481) y cap. 4º, Observación general (AA IV, 559 ss.). 13 KrV A 15, B 29; A 50, B 74 ss.; A 92-93, B 125; B 146; A 294, B 350; Antropología § 40 (AA VII, 196). 14KrV A 145, B 184. 15 KrV A 142, B 182.

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empírica), pues se dirigen a la pura forma de los fenómenos; por eso su matematización es completa y podemos establecer incluso axiomas.

En consecuencia, como hemos visto en la cita anterior, no sólo se esquematiza la cantidad contando con el tiempo, como había afirmado Kant en el Esquematismo transcendental, sino también con el espacio. Esto resulta más claro aún en la originaria producción de figuras, que da lugar al esquema general de los fenómenos externos, o mundo espacial, y a la geometría16. Yendo más allá del texto kantiano podríamos afirmar que no sólo el número es aquí el esquema (aritmética), sino también la línea, el trazado de la línea o contorno espacial del objeto (geometría), que hace posible igualmente el de la superficie y el del volumen (de nuevo una tríada). Con la acción de trazar una línea, dice Kant, conectamos el tiempo y el espacio17. La síntesis imaginativa es figurada y plástica18. Más aún, mientras que la figura, por ejemplo la construcción de un triángulo, queda bien delimitada a priori, la construcción de unidad de medida (el metro, el litro, el kilo, etc.) por el contrario, depende también de las condiciones empíricas tanto del sujeto como del objeto: hay distancias que medimos con metros, porque así es más cómodo, y otras mediante años luz. Quizás así podríamos comprender, tal y como defiende Kant, que sólo en geometría sean posibles los axiomas.

Aquí se lleva a cabo una síntesis de lo homogéneo, niveladora, sobre el fondo de lo cual se podrán ir insertando diferencias. Además, es una síntesis sucesiva, que va recorriendo la multiplicidad hasta unificarla, es decir, que en esa acción las partes preceden al todo, confiriendo de ese modo al objeto una magnitud extensiva espacial y temporal. Este es el principio de la comprensión mecánica del mundo, la que se sitúa en el punto de vista de la heteronomía, diferente a la comprensión teleológica de la naturaleza, que es abordada en la KU, y en concreto en su segunda parte, en la “Crítica del Juicio teleológico”, donde el todo o idea de fin precede a la comprensión de las partes y las organiza en una unidad interna y autónoma, como ocurre en los seres vivos. Mientras que en los seres vivos las partes se co-pertenecen esencialmente, en lo mecánico aparecen yuxtapuestas, en exterioridad unas de otras, y en eso consiste la magnitud

16 KrV A 163, B 204. 17 KrV A 33, B 50; B 154-155, 292. Podríamos asignar a la línea la categoría de unidad, a la superficie la de pluralidad y al volumen la de totalidad. El punto no es aún espacio, sólo representa el límite: "No hay nada real en el espacio que sea simple, pues los puntos (que constituyen lo único simple en el espacio) son meramente límites, no algo que, como partes, sirviera para constituir el espacio" (KrV B 419). 18 KrV B 151.

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extensiva. Sólo desde esa exterioridad puedo manejar técnicamente el mundo y cubrir mis necesidades.

Esta "exterioridad" significa además que no partimos de un conocimiento empírico de la totalidad del mundo, sino que por el contrario vamos descubriendo su realidad progresivamente en el espacio y en el tiempo. El carácter de continuo que éstos tienen me introduce en un proceso sin fin, pues (1º) no encontramos límites irrebasables a su idealidad y por tanto a la necesidad de conectar todo momento empírico con su anterior y todo espacio empírico con su entorno, ni (2º) podemos afirmar que empíricamente lo hayamos recorrido y que lo conozcamos la totalidad como un infinito dado. Una línea trazada, empíricamente real, es siempre limitada, aunque tenemos la capacidad (al menos ideal) de continuarla indefinidamente. Toda síntesis real, empírica, es finita, aunque se podría ir más allá en virtud del carácter ilimitado de las idealidades transcendentales en cuanto tales, de manera que ellas nos sirven de guías para sobrepasar cualquier fenómeno o experiencia concreta y seguir el proceso del conocimiento. El conocimiento empírico, real, está siempre en proceso, in fieri. Si pretendemos concluirlo mediante un elemento incondicionado que detenga la serie, o bien creyendo que conocemos la totalidad absolutamente incondicionada, nos vemos abocado a la dialéctica19, nos vemos abocados a la dialéctica, y en concreto aquí a la primera de las Antinomias, donde de nuevo se tiene en cuenta no sólo al tiempo, sino también al espacio. Por eso, en el esquema de los Principios

19 "... y dado que el mundo no existe en sí (independiente de la serie regresiva de mis representaciones), no existe ni como un todo en sí infinito ni en sí finito. Sólo se le puede hallar en el regreso empírico de la serie de los fenómenos, no en sí mismo. Por consiguiente, si esta [serie] es siempre condicionada, nunca es dada de manera completa, y el mundo no es, pues, un todo incondicionado, ni existe en consecuencia como tal, ni de magnitud infinita ni finita. [...]. La serie de las condiciones sólo pueden ser encontradas en la síntesis regresiva, no en sí en el fenómeno considerado como una cosa propia y dada antes de todo regreso" (KrV A 505, B 533; véase toda esa Sección séptima -A 497, B 525 ss- y la Sección octava -A 508, B 536 ss-). "...la totalidad absolutamente incondicionada de la síntesis de los fenómenos [...] no se encuentra más que en nuestra idea" (KrV A 481-482, B 509-510). "Pero en su significado empírico, el todo es siempre sólo comparativo" (KrV A 483, B 511), de manera que las tesis y las antítesis son o demasiado grandes o demasiado pequeñas para el concepto del mundo que encontramos en la Estética y en la Analítica transcendentales (KrV A 486, B 514 ss; A 529, B 557). De la totalidad absoluta nada puedo decir. "El regreso en la serie de los fenómenos del mundo, como una determinación de la magnitud del mundo, se extiende in indefinitum, lo que equivale a decir que el mundo sensible no tiene una magnitud absoluta" (KrV A 521, B 549).

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la primera de las Antinomias está colocada en línea (vertical) con los Axiomas de la intuición. En consecuencia, no sólo podemos decir que todos los fenómenos o intuiciones serán espacio-temporales, como era el caso en la Estética transcendental, sino que, al añadir la necesaria delimitación de la síntesis imaginativa, podemos afirmar como Principio que lo serán limitadamente; y así se formulan los Axiomas de la intuición.

Se podría objetar, retomando en ello las aporías de Zenón, que si se ha de ir de las partes al todo, por ejemplo para configurar la unidad de medida o para trazar una línea, dado que hemos de recorrer las infinitas partes del espacio y del tiempo, nunca llegaríamos al todo, aunque éste sea finito. Aquí se nos presenta de nuevo una buena ocasión para captar el carácter específico de esa pieza introducida por Kant que es la acción de la imaginación, capaz de configurar síntesis reales, de mediar entre el entendimiento que fija y la ilimitada multiplicidad de lo real. La imaginación, o sea, la subjetividad en esa acción suya, logra aprehender el movimiento y sintetizar el continuo espacio-temporal mediante un trazar líneas. Ella avanza de un punto a otro punto del espacio y del tiempo y no se para a analizar y determinar la infinitud de esa multiplicidad recorrida; no lo llevaría nunca a término, dado que en el espacio y en el tiempo no hay partes simples. La recorre (apprehensio) según su capacidad plástica en un acto de síntesis vivo y real, o sea, en un acto que le asigna unos límites empíricos (comprehensio aesthetica). Y así, confinados en sus límites, un movimiento o un tiempo o un espacio concretos son intuidos imaginativamente como un todo, sin que tengamos de detenernos a determinar y a reflexionar sobre cada una de sus partes20. Y no hemos de hacerlo porque, como hemos visto, esas partes no están dadas como realidades en sí, sino que el proceso de partición, aunque encuentre un límite real por nuestras limitadas capacidades técnica, que nos impidan seguir dividiendo las partículas elementales de la materia, carece idealmente de límites. Este es el tema que se discute en la segunda de las Antinomias: nunca llegamos a partes simples, como se afirma en la tesis, ni recorremos la infinitud de lo real para afirmar que lo simple no existe, como quiere la antítesis, sino que siempre estamos en proceso.

Cuando el objeto es empíricamente tan grande que excede nuestra imaginación, sus capacidades de recopilación o comprensión estética, y sin embargo no nos atemoriza, sino que lo contemplamos desinteresadamente, es decir, pasamos de una actitud teórico-técnica a otra contemplativa, estética, entonces surge lo que Kant denomina el

20 KrV A 426/428, B 454/456 nota; véase también B 48-49, 291-292.

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sentimiento estético de lo sublime matemático. Por eso aparece también en la tabla de los Principios en relación con la cantidad, que es con lo que lo relaciona Kant21. La grandeza del objeto nos empequeñece y nos hace ver nuestros estrechos límites empíricos. Pero dado que en ese momento nuestra pequeñez no nos pone en peligro, surge en nosotros el sentimiento de nuestra superior determinación suprasensible, el sentimiento de que tenemos una razón pura independiente, y de que su ilimitación ideal sobrepasa todos los cielos, lo cual nos causa un placer estético22. 3.4 ANTICIPACIONES DE LA PERCEPCIÓN

Con las categorías de cantidad, sus esquemas y los Axiomas de la intuición elaborábamos la forma de los objetos. Con las categorías de cualidad, sus esquemas y las Anticipaciones de la percepción interpretamos activamente la realidad y materialidad de los mismos, su presencia o presentación, lo que en la Estética transcendental aparecía como afecciones y sensaciones. Por tanto, llevamos a la comprensión conceptual la limitación real del sujeto o realitas del mundo, en cuanto que éste llena (erfüllt) de contenido el espacio y el tiempo, la figura y la extensión espacio-temporal de los objetos estudiadas en los Axiomas. Si encontramos ahí un objeto, diremos que es y comprenderemos ese fenómeno con el concepto de realidad, y si no lo encontramos, si por ejemplo vamos a la habitación y no encontramos sillas, captaremos esa no presencia con el concepto de negación y diremos: no, aquí no hay ninguna silla.

Ese contenido o realitas phaenomenon, su ser o no ser (su nada) en la manera de ser de lo fenoménico, es lo que se anuncia mediante la sensación. Y de ese contenido se anticipa aquí no sólo que se dará (eso ya fue estudiado en la Estética transcendental), sino que ha de tener un grado, que el objeto ha de ser limitadamente real, sometido a la delimitación sintética. Pero esto Kant lo fundamenta apelando en última instancia a que la sensación admite grados en la conciencia empírica, lo cual no es dar un fundamento transcendental. De nuevo encontramos aquí lo que ya sucede con la sensación en la Estética: la falta de una elaboración transcendental de este tema23.

21 KU §23. 22 KU § 27. 23 Este tema lo he tratado en mi libro El punto de partida de la metafísica transcendental, capítulo II, § 3, B (Ediciones Xorqui, Madrid, 2011) y en el artículo “La realidad cualitativa del

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Ese contenido o realidad fenoménica se nos muestra en definitiva como fuerza (Kraft, energía se diría ahora), por ejemplo como fuerza de impenetrabilidad de los cuerpos, y en concreto como una fuerza motriz originaria. En la segunda parte de sus Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza, Kant se adhiere a una concepción dinámica de la materia. Esta fuerza o realitas es originaria, es decir, no puede ser inventada, sino que nos ha de ser dada, y en eso se muestra nuestra finitud real, y no meramente ideal. Por tanto, ahí yo diría que no sólo entra en juego la idealidad de la conciencia, sino también nuestra misma realidad originaria, cuya limitación (y dependencia respecto a la otra realidad) sentimos. Lo otro que me limita realmente se manifiesta como fuerza real opuesta y originaria, es decir, que parte desde sí, que no es puesta sino dada, ya sea como un otro al que tengo que considerar igual que yo, o bien como fuerza-cosa que puedo e intento dominar. La otra realidad, la del mundo, se me manifiesta porque resiste no a la mera representación, sino a mi acción, a mi voluntad, a mi esfuerzo, a mi autoafirmación en el ser, a mis deseos, a mi proyecto de libertad, lo que no ocurriría con las meras fantasías24. No basta con distinguir, como hace Kant, la conciencia pura (ideal) de la conciencia empírica en cuanto que ésta es real y admite grados, pues lo empírico es lo que debe ser explicado mediante un fundamento transcendental. Para explicar la comprensión de la realitas y de su limitación tenemos que remontarnos a la realidad originaria del sujeto (la acción real y libre) y a la autoconciencia de la misma (la conciencia moral). Kant deja apuntado el tema al señalar que la libertad es la piedra angular de todo el sistema y al mostrar el primado de lo práctico sobre lo teórico.

Sentimos la limitación y ese sentir primario lo podemos relacionar con el sujeto y se manifiesta en forma de sentimientos, o bien con la otra realidad a fin de objetivarla y entonces da lugar a las sensaciones25. Pero la aprehensión de esa realitas no va de las partes al todo en una síntesis sucesiva como ocurría con los Axiomas de la intuición y sus magnitudes extensivas, ni tampoco del todo sus partes discretas, como es el caso en la

fenómeno: la ambigüedad de la sensación y de su grado”, publicado en el libro Kant en nuestro tiempo. Las realidades en que habitamos, Biblioteca Nueva, Madrid, 2016, pp. 71-88. 24 De ese modo, diría Freud, al principio del placer se añade el principio de realidad. Véase, por ejemplo, Formulaciones sobre los dos principios del funcionamiento psíquico (1911). 25 Algo parecido nos viene a decir Kant en la KU § 3 (AA V, 206) y en la Metafísica de las costumbres, Introducción I (AA VI, 211-212 nota).

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comprensión teleológica de la naturaleza (los seres vivos), sino que la intuición de la realidad del mundo es instantánea y formando un todo26.

Yendo más allá del texto kantiano, podríamos decir, que si la realidad objetiva no fuera limitada y limitable, el sujeto no cabría, ni podría comprenderse en la contraposición, ni podría transformarla según sus fines. Pero lo mismo sucedería si no hubiera realidad, o sea, si nos encontráramos en el vacío absoluto, sólo con las puras formas espacio-temporales; o si el sujeto lo ocupara todo y fuera infinito. Luego podemos decir que lo fenoménico tendrá un grado de realidad, será limitadamente real, tendrá una magnitud intensiva. Del mismo modo (dado que en estos dos primeros Principios estamos en el terreno de la intuición objetiva, de lo homogéneo desde el punto de vista nivelador) nuestra realidad será también limitada y devendrá yo empírico, un objeto más del mundo. No obstante, esa limitación cósica, heterónoma, no podrá instalarse (al menos no enteramente) en lo que el sujeto es de originario, libre y autoconsciente, de modo que éste sigue abierto a la totalidad y tenderá a limitar la limitación, empujar más allá el límite, y es ese esfuerzo y proyecto lo que nos revela el límite y su realidad.

Con los Axiomas y las Anticipaciones hemos agotado la intuición del fenómeno, y no se daría propiamente intuición sin reglas de síntesis. Por eso Kant los llama Principios constitutivos del fenómeno en la intuición o Principios intuitivos, de evidencia inmediata o apodíctica. Son ellos los que hacen posible la aplicación de la matemática a los objetos; sobre todo los Axiomas, que elaboran la forma y ésta es pura posibilidad de relación y comparación27. La realitas, dado que ahí partimos de un ponerse originario que va del todo a las partes, y en virtud de su carácter de instantaneidad, sólo es matematizable el grado y a él cabe aplicarle el número.

En ambos Principios se encuentra también integrada, pensada, la síntesis y delimitación de lo sensible por parte de la imaginación. Por eso no sólo decimos que los fenómenos han de ser espacio-temporales y poseer realitas, sino también que todo eso lo son limitadamente. De suyo la categoría no presentaría por sí misma esa limitación, pues el concepto como tal, al ser la regla en cuanto regla, abstraída de todo contenido, sólo muestra su universalidad lógica y la ilimitación propia de lo meramente ideal. Es la síntesis real de la imaginación la que precisa los límites, como

26 KrV A 523-524, B 551-552; A 526, B 554. 27 KrV B 66-67.

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se ve en el caso de lo sublime matemático, donde la magnitud del objeto sobrepasa a la imaginación.

Tampoco aquí se da lo simple, lo que da lugar a la segunda de las Antinomias. En ella, la tesis pretende afirmar la existencia de elementos simples en esa realitas. Estos serían substancias en sí o nouménicas, como sucede en la monadología de Leibniz. La antítesis anularía el proceso dándolo por concluido como si hubiéramos ya recorrido la infinitud. Ahora bien, los fenómenos están en el espacio-tiempo, y en éstos no hay partes simples, y por tanto tampoco puede ser recorrida o agotada su ilimitación ideal28. Tengamos en cuenta que en esta comprensión objetivadora de la naturaleza que estudia la KrV el sujeto se dirige a "extenderla" en la exterioridad de partes extra partes.

Otra y complementaria será la visión teleológica de la naturaleza, estudiada en la KU. En el cuerpo organizado, que no es un quantum continuum sino discretum, la división ya no puede proceder ilimitadamente29. Ambos momentos y su contraposición son necesarios para la comprensión de la realidad, de modo que conviene no olvidar que la objetividad es sólo un elemento en la construcción de la subjetividad y de su mundo; hay que reparar tanto en su especificidad como en su conexión con la totalidad30. También incluyo aquí los Paralogismos, pues en ellos se busca asimismo desde lo teórico, o sea, desde lo objetivo o modo de ser del objeto, una realitas simple, no ya en la naturaleza sino en el Yo, cuestión que es también considerada por Kant en esta segunda Antinomia31. La teoría que históricamente defendía aquí la tesis, la monadología de Leibniz, pensaba que esos elementos simples constitutivos (también de la naturaleza) no eran, justamente por su misma simplicidad, res extensa sino res cogitans. No obstante, en el texto de los Paralogismos no se parte del objeto y su divisibilidad, sino directamente del sujeto, del "Yo pienso", de la autoconciencia.

En el Esquema de los Principios he colocado lo bello al final de esta segunda columna. En efecto, la satisfacción propia de lo bello, dice

28 Por esa apelación al espacio y al tiempo que se da constantemente en la discusión de esta segunda Antinomia, la conecto también con la primera columna del Esquema de los Principios que puse al inicio (punto 3). 29 KrV A 526-527, B 554-555. 30 No se trata de negar las tesis, sino de no tenerlas en cuenta cuando nos ocupemos del conocimiento teórico u objetivo del mundo y de la simple especulación (KrV A 472, B 500 nota). 31 KrV A 463, B 491; A 466, B 494.

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Kant, va unida a la cualidad, y en concreto al desinterés32. El sentir primario hace relación también a la realidad del sujeto y a su limitación, por eso "duele", se siente, se es pasivo. De ahí nace el interés teórico de objetivar la otra realidad a fin de poder convertir en positiva dicha dependencia. El interés teórico es en su raíz práctico, aunque conserva su autonomía, su necesidad o a prioris transcendentales. Pues bien, el ámbito estético en general, y sobre todo de lo bello en particular, surge cuando, poniendo entre paréntesis ese interés teórico, técnico, pragmático (de dominación) e incluso práctico por la otra realidad, la dejamos ser desde sí misma, no la metemos en la trama del mundo, en la universalidad de los conceptos, y abrimos un ámbito en el que se manifiesta verdaderamente su individualidad. En ese espejo y el sentimiento que nos produce, reconocemos nuestra realidad concreta, la concreción que somos de libertad y naturaleza, de originariedad y limitación o finitud, nuestro ser en el mundo. Ante esa mirada poética, la realitas de las cosas del mundo se subjetiviza y empezamos a con-vivir, a habitar-con, a co(n)-sentir. 3.5 ANALOGÍAS DE LA EXPERIENCIA

Con los dos momentos anteriores, los Axiomas y las Anticipaciones, tenemos ya los fenómenos configurados en su intuición, pues hemos elaborado, mediante reglas de síntesis, tanto su materialidad como su forma espacio-temporal. Ahora se trata de fijar y objetivar las relaciones de los objetos entre sí, de los unos con los otros, para unirlos y sintetizarlos en lo que podríamos llamar la trama del mundo y que Kant denomina la natura formaliter spectata33. Si se diera una total desconexión de los fenómenos entre sí, estaríamos en el caos y no podría haber conocimiento objetivo. No sabríamos entonces a qué atenernos ni qué hacer o cómo manejar la otra realidad para controlar en lo posible nuestra dependencia respecto de ella y llevar a cabo el proyecto de libertad.

Ahora bien, esas relaciones entre los objetos no pueden ser establecidas arbitrariamente, como si fueran fantasías, pues se trata de la otra realidad que yo no protagonizo, sino según reglas que determinen el espacio y el tiempo de los objetos. Aquí tanto el espacio como el tiempo no son ya las meras formas a priori de la sensibilidad, sino los elaborados y delimitados en los dos anteriores momentos de cantidad y de cualidad, o sea, el espacio y el tiempo concretos y finitos, pero también la realidad

32 KU §§ 1-5, 23. 33 KrV B 165, 446n.

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limitada de cada uno de los fenómenos, y son esos los que han de ser puestos en relación entre sí para poder orientarnos en el mundo objetivo. Tenemos pues que colocar a los fenómenos unos en relación con los otros, su distancia o cercanía, si son anteriores en el tiempo o posteriores o simultáneos. Pues bien, lo que sucede y lo que Kant repite en cada una de las analogías es que esa posición de cada uno de los objetos no puede llevarse a cabo colocándoles respecto al espacio y al tiempo absolutos pues estos no son intuidos: toda intuición lo es de lo finito. No podemos percibir ni el espacio-tiempo absolutos en cuanto formas a priori de la sensibilidad, tampoco si los concebimos en el modo como lo hace Newton, como dos realidades que constituyen, junto con la masa, los parámetros absolutos que hacen posible todas las transformaciones de las ecuaciones de la física; justamente el hecho de que el espacio y el tiempo absolutos no son magnitudes físicas comprobables fue lo que condujo a la teoría de la relatividad de Einstein. En consecuencia, para poder colocar en el tiempo y en el espacio los objetos no podemos apelar al tiempo ni al espacio mismos, sino que serán los objetos (ya espacio-temporales) los que se determinen, relativamente entre sí, el puesto que ocupen en el espacio-tiempo. La determinación de ese puesto relativo de cada uno con respecto a los demás es la objetivación de sus relaciones mutuas, y éstas han de ser buscadas o establecidas entre los objetos mismos mediante conceptos o reglas, mediante esquemas y categorías necesarias a nuestra comprensión y a nuestro interés teórico, a saber, las categorías de relación, sus esquemas y sus principios, que son las Analogías de la experiencia. Gracias a esas reglas de síntesis, y a las respuestas positivas de la realidad del mundo, establecemos, nos dice Kant, el orden objetivo del tiempo34 según sus tres modos o esquemas: permanencia, sucesión y simultaneidad35. Pero también se determina, como ya se ha visto, el orden objetivo en el espacio. Veámoslo. 3.5.1 LA PRIMERA ANALOGÍA

Se refiere a la substancia, que es lo que permanece, y a los accidentes, lo cuales cambian. El objeto sería lo que permanece aunque modificándose (verändert), mientras que lo que cambia (wechselt), sucediéndose las unas a las otras, son sus determinaciones o modos de existencia. La argumentación kantiana va del cambio de los fenómenos en

34 KrV A 145, B 184-185. 35 KrV A 144, B 183-184; A 177, B 219.

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el tiempo a la necesaria permanencia de algo. Primero, porque sólo sobre el fondo de algo que permanece es posible percibir el cambio; la conciencia requiere contraposición, yo conozco esto como mesa porque lo contrapongo con la silla, la lámpara, etc. Segundo, porque si no hubiera ninguna permanencia y en un momento todo cambiara de modo que el mundo se hundiera en la nada y volviera al ser, se rompería la unidad del tiempo y de la experiencia a falta de una objetivación de la necesaria conexión sintética en las relaciones entre los fenómenos, ya que un tiempo vacío no puede ser objeto de percepción36, de modo que "es lo permanente lo que hace posible la representación del paso de un estado a otro"37. Y tercero, si no hubiera cambio tampoco habría conocimiento de lo permanente ni por tanto conciencia, y tampoco la libertad podría transformar el mundo según sus fines, y en consecuencia no habría subjetividad alguna.

Frente a la crítica humeana a la idea de substancia, Kant contesta que "la representación de algo permanente en la existencia no es lo mismo que la representación permanente, pues ésta puede ser transitoria y cambiable, como todas nuestras representaciones, incluida la de la materia, y referirse sin embargo a algo permanente que, por tanto, ha de ser una cosa exterior [extensa] y distinta de todas mis representaciones"38. La categoría de substancia no se aplica a las representaciones del sentido interno, sino a los objetos externos; la permanencia nos dirige a algo espacial39 y en ello se basará la "Refutación al Idealismo"40. Esto espacial es lo propiamente material, pura exterioridad, partes extra partes, de modo que irremediablemente se limitan las unas a las otras hasta el infinito, introduciendo así una posibilidad específicamente sensible de distinción y ordenación, y de que exista otra realidad "fuera" de mí, lo que no cabría en la mera temporalidad.

Ahora bien, nada en el fenómeno es absoluto, y no hay un fenómeno que permanezca absolutamente. También en Aristóteles se da un cambio substancial. Habíamos visto en los Axiomas de la intuición y en las Anticipaciones de la percepción que todo fenómeno tiene un

36 En realidad, desaparecería también el yo empírico y con él la subjetividad. Pero ni siquiera un hipotético espectador puro, ideal (si eso pudiera darse), lograría captar la unidad de la experiencia, pues, como se ha dicho antes, las relaciones de los objetos se han de establecer desde ellos mismos. 37 KrV A 188, B 231. 38 KrV B XLI nota. 39 Véase KrV B 291; A 381. 40 KrV B XL-XLI nota y 275 ss.

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quantum limitado de espacio-tiempo y de realitas. Ese quantum de cada uno de los fenómenos es lo que hemos de determinar y situar, y lo hemos de hacer poniendo en relación unos objetos con otros. Aquí en concreto podemos decir que toda substancia fenoménica lo es relativa o comparativamente; aunque todo cambia, unos fenómenos lo hacen más lentamente que otros: "aquello que llamamos substancia en el fenómeno tiene otra constitución que lo que se pensaría de una cosa en sí misma mediante un concepto puro del entendimiento. Aquélla no es un sujeto absoluto, sino una imagen permanente de la sensibilidad y no otra cosa que intuición, en la que no se encuentra nada incondicionado"41. Esto es así porque la materia, en cuanto pura exterioridad, carece de partes simples o interiores que pudieran permanecer siempre e invariablemente; por tanto, "las determinaciones internas de una substancia phaenomenon en el espacio no son más que relaciones, y toda ella no es sino un conjunto de meras relaciones", afirma Kant polemizando con Leibniz42. Es la síntesis de la imaginación la que lo mantiene como permanente en la conciencia, y gracias a eso el objeto y su existencia adquiere una magnitud (limitada, pues introducimos aquí la delimitación de esa síntesis imaginativa) en la serie temporal de la trama del mundo que se denomina "duración"43.

Pero no por eso hemos de pensar que la substancia fenoménica es una mera ilusión (Schein. Es fenómeno (Erscheinung), pues la otra realidad responde, aunque no sea sino en cierta medida, a ese concepto. Ninguna realidad sensible se adecúa perfectamente a la exigencia incondicionada y universal de la regla en cuanto regla. Por tanto en definitiva, la substancia, al igual que las otras categorías, y más estos principios regulativos que los constitutivos (los Axiomas y las Anticipaciones), es una idealidad, una

41 KrV A 525-526, B 553-554. 42 KrV A 265, B 321. Véase también KrV A 274-278, B 330-334; A 283-286, B 339-342; A 413, B 440; Refl. 3921 (AA XVII, 345-6) y 5982 (AA XVIII, 415). 43 KrV A 183, B 226. Este modo de ver es llevado a sus últimas consecuencias por Fichte en la parte teórica de la Doctrina de la ciencia: "La totalidad [de lo teórico, de lo fenoménico] consiste meramente en la relación completa y no hay en absoluto nada en sí fijo que la determine. La totalidad consiste en la completud de una relación y no en una realidad. (Los miembros de la relación considerados individualmente son los accidentes, su totalidad es substancia, como se dijo anteriormente. [...]. Los accidentes, unidos sintéticamente, dan la substancia [...] No hay que pensar en un substrato permanente, en un cierto soporte de los accidentes; cada uno de los accidentes es soporte de sí mismo y del accidente contrario [...]. El Yo que pone [en su acción de poner], por medio de la más maravillosa de sus facultades [la imaginación transcendental] [...] retiene ese accidente, que va desapareciendo, hasta que lo ha comparado con aquel que lo desplaza" (Grundlage der WL, FW t. I, pp. 203-204 = GA t. I,2, p. 353-354).

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estrategia subjetiva para la configuración de la objetividad, del conocimiento desde el punto de vista heterónomo, una exigencia transcendental de comprensión a la que la otra realidad responde en mayor o menor medida. Los dos últimos Principios (Analogías y Postulados) Kant los denomina regulativos en contraposición con los dos primeros, pero son constitutivos de la objetividad comparados con las Ideas de la razón, cuyo uso teórico correcto es meramente regulativo, como nos advierte el “Apéndice a la Dialéctica transcendental”. En realidad, todas las formas a priori que aquí estamos estudiando son estrategias más o menos básicas o primarias de la subjetividad para “deletrear la experiencia”.

Ese es el método de la reflexión transcendental: "todo aquello sin lo cual sería imposible la experiencia de los objetos, es necesario en relación a los objetos de la experiencia"44. Y esa idealidad transcendental no es ilusión porque a ella responde una realidad empírica, una respuesta comprensible precisamente desde esa idealidad (circularidad de la que ya he hablado). Por eso, la substancia fenoménica no es mera idealidad, sino que exhibe una realitas propia, justo la que vimos bajo las categorías de cualidad. Allí, en las Anticipaciones de la percepción, se exigía la existencia de la otra realidad, una existencia limitada pero nunca nula (o vacío total), pues entonces desaparecería el mundo, la finitud de la subjetividad y ella misma. Esto es en última instancia a donde apunta la exigencia de permanencia substancial que aquí se está pensando: la realitas de la otra realidad o mundo debe permanecer y darse siempre, sin corte, en medio de todos los cambios. Y al ser esa otra realidad diferente de la mía, eso únicamente puede ser intuido de manera sensible en cuanto que ella ocupa otro lugar en el espacio y es algo "fuera" de mí, como ya vimos anteriormente al unir permanencia con espacialidad.

Ese "siempre" de tiempo, materia y espacio (los tres absolutos de la mecánica de Newton), sólo es percibido si algo cambia, y esto a su vez si algo permanece. En absoluto, podría no darse ninguno de ellos y que nada fuera dado (aquí no se está razonando desde el dogmatismo, desde un hipotético punto de vista divino), pero en ese caso la subjetividad tampoco se daría; por tanto le es transcendentalmente necesario, y como la subjetividad existe, podemos afirmar con fundamento que algo siempre es dado, que el mundo es siempre real45. Ese substrato último de todos los

44 KrV A 213, B 259-260. Véase también A 216-217, B 263-264, A 346-347, B 405. 45 Esta idea, central en la filosofía transcendental y que no hemos de olvidar nunca a la hora de valorar su idealismo, aparece por primera vez en el escrito precrítico El único

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cambios, de todos los objetos y/o fenómenos, ese hypokéimenon o materia prima aristotélica, esa “materia transcendental” como lo llama Kant46, ya no es lo conocido fenoménicamente. Es lo presupuesto o lo que en el fondo la subjetividad exige y expresa en la categoría de “sustancia”.

Ese en sí (materia o, como se prefiere entender ahora, energía) ni se crea ex nihilo ni se destruye, ni aumenta ni disminuye, sólo se transforma, nos recuerda Kant47. O sea, para la subjetividad es algo originario y enteramente dado, que ella no puede crear ni destruir, únicamente transformar más o menos en orden a su proyecto de libertad48; al igual que, por su originariedad, le es transcendentalmente necesario que el cambio sea posible, a fin de tener conciencia y realizar ese mismo proyecto organizando la otra realidad según sus necesidades. Entendida en un sentido relacional o relativo y como substrato de algunos cambios o accidentes, los objetos singulares son substancias fenoménicas, no aisladas ni simples. Pero dado que esos mismos objetos también aparecen y desaparecen, toda la experiencia en su conjunto podría ser tomada como los cambios o manifestaciones de una única substancia49. Ella es el substrato material último de todos los fenómenos, y representa espacialmente el tiempo en general50, el “siempre material” sobre el fondo de lo cual será posible tanto el pasado, como el presente y el futuro objetivos (temporalidades que aún no se han distinguido), lo que continuamente ha de darse "llenando" esas formas a priori de la sensibilidad con las que aceptamos nuestra imborrable finitud. Si él fallara,

fundamento posible de demostración de la existencia de Dios (1763), "Sección primera", "Segunda consideración. Sobre la posibilidad interna en cuanto que presupone una existencia" (AA II, 77ss). La posibilidad formal del pensamiento se basa en el principio de no contradicción, pero su posibilidad material, en que algo real le sea dado para ser pensado. "Sin materia (Stoff) no se podría pensar absolutamente nada" desde el punto de vista objetivo (KrV A 232, B 284; véase también A 452, B 480 nota). 46 KrV A 143, B 182. 47 KrV B 224-225. Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza III (AA IV, 541). Es interesante leer este pequeño libro de Kant y compararlo con la Analítica de los Principios de la KrV. 48 KrV A 185-186, B 228-229; A 206, B 251. Por el sentir, la limitación y la frustración, comprendemos no sólo que ese estar ahí de la materialidad del mundo no lo hemos puesto nosotros, sino que tampoco se da sin más para nosotros. Esa inadecuación suya respecto a las exigencias o fines de la subjetividad se comprende también estéticamente desde lo feo, lo siniestro y lo sublime en general. 49 Retomamos aquí el pensamiento de Spinoza, pero limitando su alcance ontológico. No olvidemos que estamos hablando desde el punto de vista teórico, que no es el único ni el supremo. 50 KrV B 225; A 183, B 226.

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si se quebrara la identidad de ese substrato, se rompería la unidad del tiempo y de la experiencia, pues un tiempo y un espacio vacío serían imperceptibles51. Podemos comprender esta afirmación kantiana como que en ello está en juego la propia identidad del sujeto, que necesita construir un mundo para saber quién es y a qué atenerse. Esto nos indica hasta qué punto esa permanencia o substancialidad significa una exigencia transcendental (una categoría), y a la vez que estamos en una filosofía que ni desvincula al sujeto del mundo, ni lo piensa como una mera cosa o producto del mismo, sino que ensaya otro camino según su específico modo de ser52. 3.5.2 LA SEGUNDA ANALOGÍA

Se refiere a la ley de la causalidad. En la primera vimos que era transcendentalmente necesario que haya algo que permanezca y algo que cambie. Ahora se trata de objetivar ese cambio, que no sea captado arbitrariamente, sino conforme a una regla necesaria. Este habrá de ser distinguido de la mera sucesión subjetivo-empírica de mis representaciones en el sentido interno. Pero dado que el tiempo absoluto no es percibido como tal, de nuevo tendrán que ser los mismos fenómenos espacio-temporales los que se determinen a sí mismos su lugar en el orden temporal del mundo. Siguiendo esa categoría o necesidad transcendental de comprensión buscamos qué fenómenos se muestran como causas, es decir, como condiciones materiales objetivas de posibilidad de otros, que son sus efectos, y que por tanto éstos no pueden preceder a aquéllos. Sólo en la medida en que lo logro, consigo una ordenación objetivada del tiempo y una comprensión objetiva de la trama del mundo. Como es una relación objetiva, eso quiere decir que un fenómeno determina al otro en su existencia, es su razón objetiva suficiente. Pero no en cuanto a su substancia última, en su misma materialidad, pues entonces se daría una creación desde la nada y se rompería la unidad de la experiencia, sino únicamente en cuanto fenómeno concreto, en su concreción. La causalidad aquí es una ley meramente fenoménica.

Hume pensaba que no se podía defender racionalmente la causalidad puesto que no tenemos una impresión de esa necesidad. Sólo tenemos el hecho de que un fenómeno sigue a otro, pero no una impresión de que ese seguirse sea necesario. Por ejemplo, vemos que todos los días

51 KrV A 186, B 229. 52 Véase KrV B XL-XLI nota, 274 ss, 293-294; A 367 ss.

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sale el Sol, pero no tenemos la seguridad de que hará lo mismo mañana, sólo la creencia y la costumbre de que así ha sido. Para Hume el criterio último de realidad es la impresión, y por eso también criticaba la idea de substancia, porque carecemos de una impresión que durara siempre, sino que todas ellas son sucesivas y ninguna permanece. Kant se pone a otro nivel, y piensa que las categorías no se aplican a las impresiones, sino al espacio y al tiempo, y son necesidades transcendentales de comprensión. Así, si mañana no sale el Sol, entonces tenemos la necesidad de buscar la causa de ese nuevo fenómeno para poderlo determinar objetivamente, y mientras no la encontremos, habremos de confesar nuestra ignorancia. Y lo mismo ocurre con la categoría de substancia, que expresa la necesidad de que algo permanezca y de encontrarlo o identificarlo. Estas categorías de relación y sus Analogías de la experiencia son reglas que nos ponen a la búsqueda del otro elemento, no nos lo dan en la intuición, al contrario de lo que ocurre con las categorías de cantidad y de cualidad. Dado un fenómeno, la categoría de causa expresa la necesidad de comenzar la búsqueda de encontrar su causa en analogía a otros fenómenos similares, y puede ocurrir que no la encontremos, o que tardemos mucho tiempo en hallarla.

Sin un principio de ordenación tendríamos un caos de representaciones. Por tanto, la causalidad es una exigencia que no viene ni depende de experiencias particulares, sino que hace posible la experiencia objetiva en general (idealismo transcendental). Claro que, si la otra realidad no respondiera positivamente a esa exigencia subjetiva y fuera totalmente caótica, entonces esa categoría no sería posible por falta de realismo empírico53. Después, con el uso y la reflexión sobre la experiencia, podemos ir tomando conciencia reflexiva y claridad lógica de estas reglas y formas a priori que utilizamos y que parece que sacamos de la experiencia, pero es porque previamente las hemos puesto en ella como esquemas y guías de la acción de conocer y la hemos elaborado según ellas54. Además, con la categoría de la causalidad sólo tenemos un hilo conductor para la búsqueda, una exigencia cuya idealidad no nos proporciona sin más la existencia de la causa; ésta nos tiene que ser dada siempre en la experiencia55. Nunca tendré la total seguridad de encontrarla,

53 Algo parecido se dice en KrV A 100-101. 54 KrV A 196, B 241. 55 Heidegger nos comenta en sus lecciones sobre La pregunta por la cosa. La doctrina kantiana de los Principios transcendentales (Alfa, Buenos Aires, 1975, p. 197; original en Niemeyer, 1962), que la analogía expresa una relación de "tal como ... así". En las analogías

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como tampoco de que no puedan ocurrir cosas imprevistas, por ejemplo que mañana no salga al Sol (argumento humeano); pero sí puedo decir que únicamente si encuentro la causa de ese nuevo fenómeno lo conoceré objetivamente, porque eso es una exigencia transcendental de dicho conocimiento, que es de lo que estamos hablando. Aquí no hacemos ciencia, sino filosofía.

En primer lugar, la causalidad es una ley que nos dirige hacia atrás. Frente a un fenómeno dado nos preguntamos por su causa: "Todo lo que sucede (o comienza a ser) presupone algo a lo cual sigue conforme a una regla"56. De ese modo, porque todo momento presente remite, como a su condición objetiva, a un momento anterior que ya no puede ser percibido, comprendemos el presente y el pasado objetivos contraponiéndolos, y desde el presente ordenamos el pasado transcurrido57. O dicho de manera práctico-pragmáticamente: el tiempo pasado es lo que ya no está en nuestro poder, y sin embargo determina (heterónomamente) el presente, de modo que nuestra acción ha de contar con ello como algo dado e incambiable58. En ese "ya no" sentimos y percibimos nuestra finitud y el punto empírico del que parte nuestra acción. Si en la substancia

matemáticas: tal como A a B, así C a D, donde D es producido por esa misma construcción matemática. Pero eso no es posible con la existencia, con las analogías en filosofía. Por la ley de la causalidad no se hace sin más presente la existencia del objeto causa; ahí "sólo obtenemos la indicación de una relación de algo dado con algo no dado, es decir, la indicación de cómo tenemos que buscar a partir de lo dado lo no dado, y como qué lo encontraremos cuando se muestre" (p. 198). Lo dado es el fenómeno a explicar, y si es similar a otros buscaremos asimismo una causa parecida; además ésta es encontrada en relación a algo objetivamente presente: las analogías lo son de la experiencia. Pero este Principio no nos proporciona una intuición del objeto causa, sino una interpretación de la misma para que cuando la hallemos podamos reconocerla; por eso no es posible llegar a la existencia de Dios desde la causalidad objetiva (argumento cosmológico; KrV A 603, B631 ss). Ni siquiera encontramos en él una evidencia intuitiva, como en los Axiomas y en las Anticipaciones, pues ahí se formulaban exigencias sin las cuales la subjetividad no se daría en absoluto, mientras que aquí el encontrar la causa es una aventura; aunque si no conociéramos y manejáramos ninguna tampoco sería posible la subjetividad, pues ésta no lograría realizar ningún propósito. 56 KrV A 189; véase también A 200-201, B 245-246. 57 KrV A 193-194, B 239. 58 Véase KpV, Parte primera, libro 1º, cap. II, la segunda mitad de "Aclaración crítica a la Analítica de la razón pura práctica" (A 169 ss; AA V, 94ss). No sólo no está en nuestro poder, sino que normalmente se piensa que ello representa un límite incluso para la potencia de Dios, pues según la mayoría de las concepciones teístas ni siquiera Él podría borrar lo sucedido o cambiar el pasado.

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elaborábamos una imagen del tiempo como lo permanente59, aquí el tiempo objetivo es comprendido como sucesión de continuos ahoras que pasan de manera irrecuperable.

Pero no acaba ahí el interés teórico, como tampoco el práctico. También se necesita prever lo que ocurrirá, predecir, manipular e incluso producir objetos. De ahí nace la observación metódica, la ciencia, el experimento y la técnica. Aquí se usa el principio de causalidad también hacia adelante, hacia lo que va a suceder o a salir. De esa manera comprendemos el futuro objetivo. Ambas direcciones, del presente hacia el pasado y hacia el futuro, son contrapuestas y complementarias, y los tres momentos de la temporalidad (presente, pasado y futuro) se ordenan y comprenden en su contraposición conforme a las leyes o Analogías de experiencia.

Kant mismo plantea el problema60 de que la mayor parte de los efectos naturales no son posteriores en el tiempo a sus causas, sino simultáneos, y todos lo son al menos en el momento de surgir. A pesar de ello la ley de la causalidad sigue siendo válida para el establecimiento de un orden objetivo del tiempo, por cuanto que el efecto no puede ser anterior a la causa. Para esa ordenación del tiempo basta también la interdependencia: si varía "x" varía "y", y a la inversa, y eso es lo que pide la comprensión objetiva en esta segunda Analogía. Por otra parte, las ciencias se han ido abriendo a la predicción estadística e incluso a la indeterminación. Así en la mecánica cuántica se afirma que de las partículas subatómicas no se puede determinar con exactitud y a la vez su posición (espacio) y su momento cinético (= masa + velocidad). Ahora bien, el esfuerzo teórico se dirige no a aumentar esa indeterminación, sino a irla venciendo, o al menos acotándola en un abanico estadístico. Esos descubrimientos de la ciencia actual no van en contra de esta segunda Analogía de la experiencia, sino del determinismo total de la física clásica61. Pero frente a esa idea se alza también la propia KrV, pues esa pretensión de totalidad en la serie de los fenómenos, que son siempre condicionados, nos llevaría a la dialéctica de la razón, y en concreto a lo defendido por la antítesis de la tercera Antinomia. En la medida en que algo nos queda indeterminado, hemos de confesar que lo ignoramos, y la categoría de causa se muestra entonces como tarea y principio de búsqueda de un orden objetivo de los fenómenos.

59 KrV A 41, B 58; B 224-225; A 182-183, B 226. 60 KrV A 202-203, B 247-248. 61 Véase R. Torretti, Kant, Charcas, Buenos Aires, 1980, pp. 455 y 460-462.

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Por tanto, Kant no sostiene el determinismo total, que es lo que afirma la antítesis de la tercera antinomia. La categoría de causa nos pone una tarea que no tiene final en el continuo espacio-temporal. Por tanto, tampoco nos conduce a algo incondicionado, porque siempre necesitamos captar la causa de cualquier fenómeno, y por eso tampoco es objetiva la pretensión de la tesis que afirma la existencia de la libertad. El conocimiento fenoménico está siempre en proceso, in fieri, pues toda experiencia empírica real es limitada, parcial, y no podemos tener una experiencia de la totalidad ni de algo incondicionado, que son las exigencias de la razón.

"Esta causalidad nos conduce al concepto de acción, ésta al concepto de fuerza, y a través de ello al concepto de substancia. [...] Donde hay acción, y por tanto actividad y fuerza, allí hay también substancia, y sólo en ella ha de buscarse la sede de la fructífera fuente de los fenómenos"62. Aquí unimos la categoría de causalidad con la de substancia y, en última instancia, con el substrato de la realidad material del fenómeno (categoría de realidad). Este nos limita, la substancia objetiva es lo real (das Reale) que yo no protagonizo. Por tanto, dado que me pienso como acción libre que quiere y se esfuerza por expresarse, también lo otro real que me pone límites se me ha de aparecer como acción y fuerza contraria. Siguiendo en eso a Leibniz, Kant hace una interpretación dinámica de la materia, cuya realitas, como vimos, se encuentra constituida por fuerzas, y en concreto aquí por originarias fuerzas motrices (bewegende Kräfte) que son comprendidas a la vez como substancias y causas fenoménicas. En la medida en que considero a los objetos como puros medios para mis fines, sólo me intereso por lo que tienen de fuerzas ciegas y mecánicas, que actúan por inercia y sin vida propia, objetivables y heterónomamente modificadas o modificables por una fuerza o causa exterior a ellas según la ley de la causalidad63. A la base del conocimiento teórico está el interés práctico, no el mero goce de contemplar estáticamente un mundo, sino la voluntad de modificarlo dinámicamente frente a la limitación, y por tanto interesada no sólo en que haya pluralidad de fenómenos y en que sea posible el cambio, sino también en descubrir esas relaciones dinámicas manipulables.

Por el contrario, en la visión teleológica de la naturaleza, la estudiada por la KU, consideramos a los objetos "como si" partieran desde sí, desde su propia fuerza configuradora (bildende Kraft). Mucho más sucede

62 KrV A 204, B 249-250. 63 Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza III; AA IV 543-544; trad. 134-136.

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esto en el ámbito de la libertad o conciencia moral, por la que el sujeto se atribuye la capacidad de iniciar desde sí, espontáneamente, una serie de fenómenos o de modificaciones del mundo, de manera que se hace responsable de su acción fenoménica y se imputa a sí mismo el origen de algunos cambios en los objetos. Ese acto de libertad del sujeto racional no vendría determinado por un momento anterior que no estuviera ya en su poder, sino que hunde sus raíces en una acción siempre originaria. Este interés práctico y esa comprensión racional que, a partir de sí, el sujeto tiene de lo incondicionado entran en colisión con la regla de comprensión objetiva (o criterio de lo objetivo frente a lo fantaseado) que estamos viendo en esta segunda de las Analogías de la experiencia y con la exigencia de unidad de la experiencia, de modo que, si no se establecen límites a esos dos puntos de vista, se llegaría al conflicto dialéctico estudiado en la tercera de las Antinomias64.

Aun descubierto ese conflicto dialéctico de la razón consigo misma, que como tal es meramente teórico e ideal, queda siempre el conflicto real entre lo que somos de naturaleza y lo que somos o debemos ser de libertad, entre nuestra heteronomía o finitud y nuestra originariedad autónoma, tanto en el terreno de lo pragmático-técnico (entre lo que deseo o debo y lo que puedo), como sobre todo en el práctico o moral (entre lo que debo y lo que deseo). Esto es lo que comprendemos estéticamente en el sentimiento de lo sublime dinámico. La fuerza de la naturaleza, y sobre todo de algunos de sus fenómenos (volcanes, huracanes aludes, cataratas, etc.), al superar con mucho nuestras fuerzas físicas y nuestra técnica, nos llenan de temor por el peligro en que nos ponen. Pero si estamos a salvo y no está implicado ese interés por la vida (propia y ajena), podemos contemplarlo desde el desinteresado ámbito de lo estético. Entonces, en contraste con nuestra pequeñez empírica, descubrimos la superioridad transcendental de nuestro modo de ser respecto a esa misma naturaleza, la independencia de nuestra acción originaria o libertad moral65.

64 KrV A 444-451, B 472-479; A 532-558, B 560-586; KpV, Parte primera, libro 1º, cap. II, la segunda mitad de "Aclaración crítica a la Analítica de la razón pura práctica" (A 169 ss; AA V, 94ss). 65 KU § 28. Además de lo sublime dinámico natural, yo añadiría aquí también la tragedia y la descripción de lo trágico por cualquiera de las artes, donde el hombre lucha por su libertad y sucumbe ante poderes superiores a él.

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3.5.3 LA TERCERA ANALOGÍA

La tercera de las categorías de relación, así como la tercera Analogía de la experiencia, la de la comunidad o acción recíproca o interacción, recoge ciertamente la tercera ley de la mecánica de Newton sobre la acción y reacción o acciones recíprocas de los cuerpos entre sí66. Pero aquí reflexionamos sobre el principio transcendental en la ordenación objetiva de los fenómenos que en esa ley newtoniana adquiere, podríamos decir, una concreción posible. En la primera Analogía vimos que tiene que haber permanencia y cambio. En la segunda, que el cambio objetivo se hace según una ley: la causalidad o bien algún otro nexo objetivado, por ejemplo la probabilidad y la función. En esta tercera hemos de pensar a la vez esos dos momentos y establecer la permanencia o coexistencia de una pluralidad de substancias fenoménicas, pluralidad que ya se estableció en los Principios matemáticos (los Axiomas y las Anticipaciones) y de la que ahora buscamos una síntesis objetiva. Esa permanencia hay que objetivarla según la ley de relación que se estableció en la segunda Analogía: la de la causalidad, en cuanto que una substancia actúa sobre la otra y a la inversa, de modo que entonces ninguna precede ni sigue a la otra. Dado que permanecen, los objetos simultáneos no se causan aquí por lo que se refiere a su substancia fenoménica, sino sólo en sus accidentes o determinaciones.

El esquema de esta categoría es el de la simultaneidad67, y aquí de nuevo no basta la esquematización del tiempo, sino que se hace necesaria también la del espacio, según hemos visto68. En cuanto que el espacio es la forma propiamente dicha de la exterioridad, de partes extra partes (siendo en eso lo más diferente a la intimidad o unidad del sujeto), el espacio es lo que permite la existencia simultánea de una pluralidad sensible de objetos o substancias fenoménicas: "el espacio es la representación de una mera posibilidad de coexistencia"69. Por eso se lo incluye en el enunciado mismo de esta Analogía: "Todas las substancias, en la medida en que pueden ser percibidas como simultáneas en el espacio, están en una completa relación recíproca"70.

66 Véase Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza III; AA IV, 544ss. 67 KrV A 144, B 183-184. 68 KrV A 31, B 47; A 183, B 226; A 188-189, B 232. 69 KrV A 374. 70 KrV B 256. Véase también A213-214, B 260; B 292-293.

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Dado que ni el espacio ni el tiempo absolutos se perciben, son los mismos fenómenos espacio-temporales los que, actuando los unos sobre los otros, se determinan unos a otros el orden objetivo que ocupan en el espacio y en el tiempo, y aquí en concreto su coexistencia. Si las substancias como fenómenos estuviesen aisladas y sin influjo recíproco, tal y como pensaba Leibniz, entonces sería imposible objetivar y percibir su simultaneidad. Además de su existencia, debe haber una ley que los determine en el tiempo y el espacio recíprocos y relativos, o sea, deben estar mediata o directamente en comercio mutuo, en conexión objetiva y dinámica. De este modo los fenómenos están a la vez fuera unos de otros y, sin embargo, en relación o síntesis, formando un compositum reale; es decir, se distinguen y se relacionan (objetivamente), los dos momentos que constituyen el conocimiento y su específica síntesis. Si en los dos Principios anteriores elaborábamos la síntesis de cada fenómeno en su forma y su materia, en las Analogías de la experiencia lo que se objetivan son las reglas de la síntesis de los fenómenos entre sí para configurar una sólo experiencia.

Esta mutua determinación espacio-temporal de todos los objetos entre sí Kant la ve factible gracias a la instantaneidad de la luz71. Ella, como también la gravitación universal de Newton, posibilitaría una acción inmediata a distancia. Ahora bien, eso lo ha puesto en entredicho la teoría de la relatividad: todo lo físico es limitado, también la velocidad de la luz, y ninguna acción puede ir más rápido que ella. Sin embargo, esto no va en contra del principio transcendental aquí elaborado, sólo contra la hipótesis física que aquí acepta Kant. Justamente porque no se da esa acción causal de velocidad infinita, cuanto más alejados estén dos eventos, más difícil resultará establecer su simultaneidad o sucesión temporal, nos dice la física actual. Luego sigue siendo válido que sólo en la medida en que se objetive la interacción entre los distintos fenómenos, se puede determinar objetivamente el lugar y el tiempo de ellos y establecer así la unidad de la experiencia. Eso se podría lograr gracias de nuevo a un absoluto unificador de todos los sistemas según la teoría de la relatividad: la constante de la velocidad de la luz.

Pero aún nos falta un tercer elemento que ha ido apareciendo a lo largo de las Analogías. Kant lo denomina cambio o sucesión subjetiva de representaciones en el sentido interno o yo empírico. Ese cambio se contrapone tanto a lo permanente (espacial) como al cambio objetivo de los objetos o fenómenos externos, y gracias a esa contraposición, ellos son

71 KrV A 213, B 260.

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comprendidos como tales y objetivados. El ejemplo que se utiliza en la KrV para mostrárnoslo es el de la simultaneidad de una casa, que sin embargo sólo puede ser aprehendida sucesivamente72. Al visitar una casa o un palacio, nosotros vamos pasando de una habitación a otra, vamos contemplando uno objeto tras otro, pero comprendemos todas sus partes y todos sus objetos existen simultáneamente. Gracias a esa simultaneidad vamos situándolos en el espacio-tiempo objetico, y nos vamos situando a nosotros mismos en ese recorrido. La sucesión imaginativa es reunificada en el concepto de casa o de palacio, y la subjetiva aprehensión sucesiva de las partes o habitaciones es contrapuesta a la determinación de su simultaneidad objetiva, y de ese modo se distingue el sentido interno del externo. La sucesión empírica de representaciones ha de ser conservada en la conciencia, si bien contrapuesta a aquélla, a la simultaneidad como temporalidad objetiva. Gracias a esta contraposición, tanto la simultaneidad como el cambio objetivo (el cambio de los objetos mismos según la ley de la causalidad o funcionalidad) son comprendidos como tales, como objetivos y verdaderamente “exteriores”. Afirmar que "eso es lo objetivo" implica necesariamente saber qué no lo es, lo que se deja fuera por ser lo individual subjetivo. Además, gracias a esa acción de contraponerlas nos situamos en el espacio-tiempo objetivo, capto el lugar de mi yo empírico en la trama del mundo: porque tengo una visión de conjunto de la casa, o de una ciudad etc., sé dónde me encuentro y desde dónde la contemplo, sé situar mi mirada, mi perspectiva empírica. Con ello surge la conciencia empírica o sentido interno o la idea de una mera representación como diferente de los objetos del mundo o sentido externo. No tendríamos conciencia determinada de una sucesión subjetiva de percepciones, de la que parte Hume, si sólo conociéramos ésta, sin poder salir de ella y contraponerla objetivamente a una permanencia y sucesión de los objetos del mundo. El empirismo olvida los presupuestos de su punto de vista. El subjetivismo kantiano no es empírico sino transcendental.

Pero el sentido interno que aquí aparece es un elemento del conocimiento objetivo, que debe distinguirse de la fantasía o ilusiones (por ejemplo, ilusiones ópticas o acústicas) de cada uno. Yo sitúo mis representaciones del sentido interno en el espacio-tiempo objetivo y las ligo con él como dependientes de los objetos; de ahí viene la idea de la afección, pues toda dependencia objetiva la comprendemos con la categoría de causa. Para esa diferenciación entre sentido interno y fantasía

72 A 190, B 235 ss.

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tendríamos que recurrir (Kant no lo hace) a la acción real y a la intersubjetividad: sé que mi percepción de que en la mesa hay un vaso es verdadera, porque lo puedo coger con mi mano, y porque cualquier otra persona lo ve también como real. Si ocurriera lo contrario, tendría que aceptar que es una alucinación, si es que no he perdido el sentido de la realidad, lo cual es posible porque la subjetividad no es algo dado, sino una tarea de cada uno y de la comunidad. Y del modo parecido tendríamos que construir la comprensión de que algo ha sido soñado.

En consecuencia, aquí se está elaborando no sólo las diferencias y conexiones de los objetos entre sí mediante leyes empíricas, sino también su heterogeneidad respecto a la realidad del sujeto. Tanto en los Axiomas como en las Anticipaciones tenía lugar la síntesis de lo homogéneo, de la espacio-temporalidad y de la realitas, mientras que en los dos últimos Principios (Analogías y Postulados) se sintetiza lo heterogéneo73. En efecto, la espacio-temporalidad que elaboramos desde el punto de vista teórico es homogénea, niveladora, donde todos los puntos y todos los momentos valen por igual, debido a su carácter de continuos. Eso ya lo hemos visto. Pero tampoco la realitas estudiada en las Anticipaciones significa sin más la comprensión de la heterogeneidad del objeto frente al sujeto, su diferencia respecto a la realidad que el sujeto se asigna a sí, su estar enfrente (Gegen-stand, ob-jectum), sino que aún permanecíamos en lo homogéneo, en la confusión entre deseo-representación y realidad. Lo que nos hace comprender la existencia separada del objeto es el establecimiento de relaciones dinámicas entre ellos y también respecto a mi situación empírica entre ellos, con lo que se establece distinciones entre los relacionados (relaciones dinámicas que a mi modo de ver comportaría acciones reales subjetivas, movimientos corporales, intersubjetividad y frustraciones).

En esta relación diferenciadora, al sujeto y a los objetos se les asignan realidades diferentes, pero a la vez la relación se establece desde una homogeneidad: ambas son fenoménicas, el sujeto objetiva aquí su realidad empírica: para Kant, como sentido interno, yo pienso que también como cuerpo subjetivizado, el que en nuestro ejemplo se pasea por la casa o el palacio y hace posible el conocimiento objetivo de ellos, pues sólo gracias a él entro en relación dinámica con los objetos del mundo. Si el espacio y el tiempo en cuanto formas a priori de la sensibilidad podemos decir que es la aceptación de mi finitud, de que exista un mundo fuera de mí, antes y después de mí, aquí lo que se delimita es mi realidad empírica

73 KrV B 201-202 nota.

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concreta y se la sitúa en el espacio-tiemp-realitas de los objetos, poniéndola en relación dinámica con ellos. Mediante las categorías de modalidad y sus Postulados del pensar empírico se vuelve a reflexionar, en un nivel superior, sobre la heterogeneidad sujeto-objeto, tanto sobre su diferencia (idealidad-realidad, posibilidad-existencia, subjetivo-objetivo) como sobre su suelo común: la idealidad transcendental que elabora a ambos. Pero ahí es el sujeto transcendental el que se diferencia del objeto empírico. No se detiene ahí el proceso, la realidad de lo fenoménico será comprendida más aún en contraposición con la idealidad subjetiva de las Ideas de la razón pura teórica y su petición de incondicionado y de totalidad, que supera todo lo objetivo (Dialéctica), y sobre todo en el ámbito de lo práctico, donde el objeto queda ontológicamente relegado a puro medio o cosa, mientras que la libertad racional se pone como fin en sí misma y realidad en sí.

Ahora podemos entender, en mi opinión de una manera más adecuada al punto de vista transcendental, desde dónde parte la reflexión empírica cuando nos presenta la materialidad del fenómeno desde la sensación, concepción que se recoge en la Estética transcendental y que ocasiona distorsiones en la filosofía kantiana. Es en virtud de estas Analogías de la experiencia que comprendemos nuestra finitud consciente o sensibilidad como afección y sensación. Mi yo empírico, íntimo o interno y a la vez corporal (estoy, por tanto, yendo algo más allá del texto kantiano) se encuentra en relación dinámica y heterónoma con los objetos del mundo. Esa limitación o delimitación al ser dinámica se objetiva según la ley de la causalidad (segunda Analogía de la experiencia), de modo que el sentir originario aparece, en su vertiente corporal, como afección (empírica) de los objetos a mi conciencia en cuanto identificada con un cuerpo, y en su aspecto meramente psicológico (o sentido interno) como sensación. En cuanto que son fenómenos empíricos, ni la afección ni la sensación provocadas podían ser principios transcendentales que sirvieran para la explicación de la materialidad y de la captación de la otra realidad. Una reflexión empírica parte ciertamente de ahí, pues ella surge entonces, en ese punto, gracias a estas acciones transcendentales precedentes que quedan a su espalda y no ve, de modo que la afección y la sensación son sus primeros datos. Pero una reflexión transcendental ha de preguntarse por las condiciones de posibilidad de esos materiales empíricos, superando los límites y la dialéctica en la que cae la primera al querer totalizarse, al pretender hacerse filosófica. Sólo esta reflexión transcendental logra comprender la diferencia entre las representaciones del sentido interno y

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los objetos sin tener que considerar a éstos como cosas en sí, y por tanto haciendo posible que el sujeto pueda relacionar objetivamente (mediante reglas que configuran la verdad transcendental) sus representaciones internas con los objetos, estableciendo así la posibilidad de una verdad empírica74.

Por último hay que señalar que esta tercera Analogía es la objetivación máxima de la síntesis objetiva (y conocer es primariamente síntesis), donde todos los elementos anteriormente analizados se conjugan. Es una síntesis que se abre indefinidamente a la totalidad de los objetos, a la naturaleza entera en su unidad y coherencia dinámica, o sea, a la acción recíproca universal75. Indefinidamente, pues pretender llegar a esa totalidad de modo determinado y desde el punto de vista de la heteronomía sería desembocar de nuevo en las antinomias, en una contradicción de la subjetividad consigo misma; toda la realidad aparecería como modificaciones de una sola substancia objetiva y no habría espacio ontológico para la libertad. Ir avanzado progresivamente en esa determinación es, sin embargo, la labor del conocimiento objetivo y científico, una idea regulativa que no ha ser reificada. No obstante y en cierta medida, esa totalidad de acción recíproca parece que se nos objetiva (por tanto limitadamente) en los seres vivos. Allí las partes configuran el todo y a la inversa, de modo que en esta categoría de comunidad podríamos encontrar el paso hacia lo orgánico y lo teleológico en cuanto se lograra cerrar una totalidad funcional limitada. Pero eso se hace en virtud de un salto cualitativo, y lo que allí aparece es un panorama diferente, estudiado en la segunda parte de la KU. Es otro principio organizador el que entonces se manifestaría, una fuerza configuradora (bildende Kraft) y no meramente motriz, configuradora de una cierta totalidad siempre abierta y precaria, frágil y finita, sobre el telón de fondo de lo inorgánico. 3.6 LOS POSTULADOS DEL PENSAR EMPÍRICO EN GENERAL

Los tres Principios anteriores forman una unidad, de nuevo una unidad triádica, mediante la cual configuramos el objeto. Una vez constituido, éste es puesto ahora en relación con la facultad de conocer.

74 KrV A 146, B 185; A 197, B 242 ss; A 221-222, B 269; A 237, B 296; A 492-493, B 520-521. 75 KrV A 216, B 263.

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Como se nos dijo en su momento76 y se nos vuelve a recordar ahora77, las categorías de modalidad propiamente no añaden algo particular al objeto mismo, sino que lo ponen todo él en relación con el sujeto, no ya con el sujeto empírico, él mismo fenómeno también, como era el caso en las Analogías de la experiencia, sino con el sujeto cognoscente en general, con el transcendental: señalan la acción subjetiva que da lugar y fundamenta nuestras afirmaciones sobre un objeto78. Es pues un momento posterior, de reflexión sobre los pasos dados anteriormente en la configuración de la objetividad, sobre las acciones subjetivas transcendentales que la hacen posible y consecuentemente también sobre las restricciones que la imponen. Con ello se sigue elaborando la distinción entre lo objetivo y lo subjetivo, distinción que conocerá otras etapas posteriores, por ejemplo en la idealidad que se descubre en la dialéctica de la razón pura, y alcanzaría su punto culminante en la "revolución interior" moral, donde el sujeto descubre y acepta en la práctica, en la acción, su específico y originario modo de ser, distinto del modo de ser de las cosas, y el modo de ser libre de los otros sujetos. 3.6.1 EL PRIMER POSTULADO

Es el de la posibilidad: es objetivamente posible todo lo que concuerde, al menos hipotéticamente, con las formas a priori, con las exigencias transcendentales de la objetividad que hemos ido estudiando hasta aquí, es decir, las de los tres Principios anteriores. No basta la no contradicción lógica. No sería posible, o diríamos sin más que se trata de una fantasía, si se nos propone un objeto que, aun no siendo contradictorio, no fuera sin embargo espacio temporal, o lo pensáramos como careciendo de materia captable de alguna forma sensiblemente79, no cambiara ni permaneciera, o no estuviera en relación objetiva con los demás objetos de la experiencia. Con eso no se niega aquí que no pueda haber una realidad así, o que en absoluto sea imposible, que no existan otros modos de ser diferentes al modo de ser objetivo. Justamente la KrV

76 KrV A 74-76, B 99-101. 77 KrV A 219, B 266; A 233-235, B 286-287. 78 KrV A 233-235, B 286-287. Heidegger diría que no es un predicado óntico sino ontológico. 79 Yo incluiría, pues, en el ámbito de la posibilidad también la concordancia del objeto con las condiciones materiales de la experiencia, pero no aún en cuanto dada empíricamente, sino en cuanto pensada, o sea, no ya como realitas fenoménica, sino sólo como exigencia puramente transcendental de que haya una materialidad.

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se dirige contra esta afirmación y procede a la limitación ontológica de lo objetivo, que por eso es llamado "fenómeno", contrapuesto a una realidad en sí, y ofreciendo de ese modo la posibilidad de afirmar la libertad.

Ni siquiera podemos decir que no puedan existir otras formas de intuir o de discurrir, es decir, otras reglas de síntesis, de interpretación del mundo, otros esquemas y categorías, sólo que con esos otros seres, si es que existieran, no podremos entrar en comunidad, pues nos compartiríamos el mismo mundo. La posibilidad e imposibilidad absoluta no es un concepto del entendimiento sino de la razón80. En ella la subjetividad pide lo incondicionado, y frente a eso lo fenoménico, lo que tiene el modo de ser del objeto, de la heteronomía, se desfonda. Por tanto, es la razón pura, y propiamente la práctica, la fuente última de posibilidad para el sujeto según Kant. Ella tiene la capacidad de decir: "si debes, puedes", pues ahí se expresa su libertad, su superioridad de destino frente a la naturaleza81, según vimos ya al hablar de lo sublime. Pero también esa libertad moral es finita frente al mundo en el que ha de realizar sus fines, de modo que su tarea es una aventura nunca enteramente alcanzable. Esto nos aboca a una nueva dialéctica, esta vez de la razón pura práctica, estudiada en la KpV, y en la que aquí no vamos a entrar.

3.6.2 EL SEGUNDO POSTULADO

Es el de la existencia: sólo existe objetivamente lo que de hecho material y empíricamente concuerda con las exigencias transcendentales de la objetividad, y no sólo con las condiciones materiales, como se limita a decir textualmente Kant, dando aquí por supuesto que lo real cumple asimismo las condiciones de lo posible82. Puede resultar confusa la asignación del término "realidad" tanto a la primera categoría de cualidad como a esta segunda entre las modales, máxime cuando el criterio objetivo parece, en un primer momento, ser el mismo: la sensación. En cuanto a la cuestión terminológica, Kant se facilita el problema utilizando para la

80 KrV A 230-232, B 282-285. 81 "Él [alguien puesto en la disyuntiva entre la rectitud moral y la muerte], por tanto, juzga que puede [hacer] algo justamente porque es consciente de que debe [hacer]lo, y reconoce en sí la libertad que de otra manera, sin la ley moral, hubiera permanecido desconocida para él" (KpV Parte primera, libro primero, capítulo primero, § 6, al final de la Observación; AA V, 30). Véase también o.c. 143; Religión dentro de los límites de la mera razón (AA VI, 45, 47, 49 nota, 50, 62, 66-67); Gemeinspruch - trad. Teoría y práctica (AA VIII, 287); Streit - trad. La contienda entre las facultades de filosofía y teología (AA VII, 42, 58). 82 "Todo lo real es posible" (KrV A 231, B 283).

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primera categoría de cualidad una palabra de raíz latina: Realität, y para la segunda categoría modal otra de raíz germana: Wirklichkeit, que algunos traducen por "efectividad" a fin de evitar la ambigüedad, pero también usa el término de Dasein, que significa “existencia”, que nos ayuda más a evitar la confusión.

Más importante es la segunda cuestión, pues si las dos tienen el mismo criterio, ¿en qué se diferencian? Para contestar a esto es preciso hacer notar que la primera se opone a la categoría de negación, mientras que la segunda a la posibilidad. Además, se ha de recordar que la modalidad representa una reflexión posterior sobre el camino recorrido (Kant no lo dice textualmente así) y que por tanto en ella están presente los tres Principios anteriores. Real (categoría de cualidad) es algo que se da en el aquí y el ahora, mientras que existir no es sin más ser percibido, como afirmaba Berkeley; ese algo puede no estar siendo percibido y sin embargo existir en otro lugar o en otro tiempo, en otro punto de la trama del mundo. Eso lo podemos afirmar en virtud de las Analogías de la experiencia. La conexión de la existencia con la percepción puede ser inmediata o bien mediata, mediatizada a través de las leyes de la experiencia estudiadas por las ciencias, cuyos primeros principios son las Analogías, que es lo nuevo que se introduce ahora en la reflexión modal. Gracias a ellas hemos logrado articular el tiempo objetivo en un presente, un pasado y un futuro. En consecuencia, no sólo el presente es real, y menos aún se puede reducir a lo percibido ahora la realidad del mundo que podemos afirmar con fundamento, sino que también podemos distinguir en gran medida entre un pasado real (wirklich o que ha existido) y una narración inventada del mismo, así como diferenciar un futuro real o al menos posible de otro enteramente fantaseado, en la medida en que ese futuro se deja prever a partir del conocimiento del presente. Así, partiendo de sus restos y huellas y siguiendo las leyes de la experiencia, podemos afirmar con fundamento que los dinosaurios han existido. Y sin embargo ni el pasado tiene ya realitas ni el futuro la tiene aún. Mientras que lo real como reell hace referencia a la sensación o percepción, lo real en cuanto wirklich u objeto existente tiene una duración, la propia de la substancia.

Pero también las Analogías nos abrieron a un espacio objetivamente ordenado, a una permanencia, simultaneidad y cambios objetivos distintos del cambio subjetivo de percepciones, lo cual nos ofrece un fundamento para afirmar, por ejemplo, la existencia de la otra cara de los objetos que yo ahora no veo, o que esta mesa ha seguido

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existiendo por la noche cuando yo no la percibía, etc. Es decir, ellas nos abrieron a un volumen espacio temporal que no se limita a mi mirada, ni siquiera a nuestra mirada empírica en cuanto humanos. Por esta trabazón de la experiencia ampliamos nuestro conocimiento sobre lo real (wirklich), la realidad del mundo se despega del yo empírico y sus limitaciones, éstas son a su vez comprendidas y objetivadas, hay una mayor elaboración y diferenciación entre lo objetivo y lo subjetivo, el mundo adquiere su realidad empírica global e ilimitada en el espacio y el tiempo, y distinguimos esa realidad de lo soñado83. "Es real (wirklich) todo lo que está en conexión con una percepción según leyes del progreso empírico. Luego ellos [los posibles habitantes de la Luna, como ejemplo] son reales (wirklich), si se hallan en conexión empírica con mi conciencia real (wirklich) [...]. No se nos da de modo real (wirklich) sino la percepción y el progreso empírico desde ésta hacia otras posibles percepciones"84.

En esta misma trabazón de la experiencia elaborada por las Analogías es en lo que se apoya la “Refutación del idealismo” problemático de Descartes y de cualquier otro escepticismo sobre la realidad o existencia del mundo, la cual es transcendentalmente necesaria, como ya hemos ido viendo. Esta importante pieza de la KrV es introducida aquí en la segunda edición85, más la nota añadida en el Prólogo a la misma86, mientras que en la primera sus argumentaciones se encontraban en gran parte recogidas a lo largo de la discusión sobre el cuarto de los Paralogismos87. Con ello Kant sale al paso de las críticas que le hicieron sus contemporáneos sobre su idealismo, precisando cómo éste había de ser entendido. El trata de probar que desde su filosofía se puede afirmar que de las cosas externas o mundo espacial no sólo tenemos imaginaciones sino experiencia, y no una mediata, a través de la experiencia interna y de la inferencia causal problematizada por Malebranche y Hume, sino una experiencia inmediata.

En efecto, nuestra experiencia interna o yo empírico, nuestra existencia en el tiempo (y yo añadiría también en el espacio), sólo puede ser determinada y objetivada gracias a las Analogías de la experiencia desde el tiempo y el espacio de los objetos, desde la experiencia externa (corporal

83 KrV A 492, B 520-521. 84 KrV A 493, B 521. Véase también el contexto de la cita más A 225-226, B 273-274; A 231, B 284. 85 KrV B 274 ss. 86 KrV B XXXIX-XLI nota. 87 KrV A 367 ss.

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e intersubjetiva), como tuvimos ocasión de examinar. Sólo objetivando la realidad del mundo puedo conocer y situar mi finitud. Luego "la conciencia de mi propia existencia es a la vez la conciencia inmediata de la existencia de otras cosas fuera de mí"88. No es que la conciencia de mi existencia sea producida por el mundo, como piensa el materialismo yéndose al otro extremo. De nuevo el idealismo transcendental busca el justo medio. Para él, la conciencia de que (daß) soy, como toda conciencia, se funda en un acto de espontaneidad de mi subjetividad, en mi Apercepción transcendental o autoconciencia o “Yo pienso”89. Pero la determinación objetiva de qué (was) soy sólo puede tener lugar en relación al mundo objetivo. Pero no hemos de olvidar que no sólo soy consciente de mi realidad fenoménica, sino que en virtud de la conciencia moral llego a serlo también de mi realidad en sí u originaria como libertad, la cual no es apresada desde lo teórico porque la libertad no tiene el modo de ser de la cosa. La comprensión práctica de este específico modo de ser de lo libre es la razón moral y el respecto (Achtung) frente a la dignidad de su autonomía, mientras que las cosas sólo tienen precio y pueden ser utilizadas como puros medios90.

Tan importante como la diferencia que acabamos de ver entre Realität y Wirklichkeit es la que se da entre las dos primeras categorías modales: la posibilidad y la existencia. Ya en El único fundamento de prueba posible para una demostración de la existencia de Dios (1763)91 Kant había alcanzado a precisar, frente a la filosofía racionalista que él heredó, una distinción entre ellas que, en lo fundamental, es recogida en la KrV, primero aquí en los Principios92 y más ampliamente en su crítica al argumento ontológico sobre la existencia de Dios93. Para mostrarlo, el Kant precrítico había echado mano de dos argumentos, sin distinguirlos específicamente. El primero, situado todavía en el racionalismo, recurre al

88 KrV B 276. La experiencia externa y la interna constituyen una sola experiencia y no se daría la una sin la otra (KrV B XLI nota). "De ahí [de que toma la existencia de los seres pensantes como determinada por sí mismos] se sigue que el idealismo es inevitable en ese mismo sistema racionalista, al menos el [idealismo] problemático, y que, al no ser en absoluto exigida la existencia de cosas exteriores para la determinación de su propia [existencia] en el tiempo, aquélla es admitida de manera enteramente gratuita, sin poder dar de ella ninguna prueba" (KrV B 418). 89 KrV B 157-158. 90 Véase, por ejemplo, la Fundamentación de la metafísica de las costumbres, el último tercio del capítulo segundo, AA IV, 427 ss. 91 Primera Sección, primera consideración, AA II, 69-77. 92 A 225, B 272-273. 93 A 597-601, B 625-629.

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diverso papel que el entendimiento y la voluntad divinas juegan en la creación del mundo. Más interesante y ajustado al pensamiento crítico es el segundo, que procede a un análisis del juicio en general. Si decimos "Italia es un país", o "Alicia es una niña que visitó el país de las maravillas", o "el ogro es azul", los diversos predicados analizan sus respectivos sujetos y estos sujetos sólo son afirmados relativamente o en relación a esos predicados gracias a la cópula "es" que sirve de enlace entre dos conceptos. Y así podríamos ir afirmando más predicados de ellos, analizando todas sus características. Otra cosa es afirmar que esos sujetos existen o no existen o qué modo de existencia les corresponde.

Pongamos el siguiente esquema:

suj. Cóp. predicados

Juana es

rubia

con ojos azules

rica

inteligente

cariñosa

etc.…

Podríamos seguir añadiendo predicados de ese tono, y estaríamos afirmado o poniendo a Juana en relación con cada uno de esos predicados. Otra cuestión sería preguntarse si "Juana es", si esa "Juana existe" o si no es el mero deseo de un hombre ensoñador. Entonces vemos que el “es”, la cópula, afirmación de la existencia, no está en el orden o columna de los predicados, de la posibilidad, sino que significa la “posición absoluta” de la cosa, aquí de Juana, con todos sus predicados posibles94. Son por tanto dos modos de afirmar el "es", el ser, y en consecuencia requieren criterios diferentes para no confundirlos. En caso contrario, nuestro hombre ensoñador no sabría distinguir entre la existencia o no existencia (de Juana) y la mera posibilidad, aunque ésta esté fantaseada respetando en gran medida la trama del mundo o Analogías de la experiencia; confundiría sus

94 Este argumento es especialmente valioso y afortunado, pues no recurre ni a algo desconocido, fuera de toda experiencia, como le sucede al primero que apela a Dios, ni remite (como el empirismo) a la experiencia empírica, la cual sólo nos daría el hecho y no su necesidad, sino que se apoya en la lógica, como hará después en la KrV. Pero en ésta aparece un elemento decisivo: el que pone es la Apercepción o sujeto transcendental. No se trata, por tanto, de una posición divina o dogmática de la cosa, de una cosa en sí misma considerada, sino que el ser objetivo indica esencialmente una relación con el sujeto cognoscente, con el Yo pienso.

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sueños y sus deseos con la realidad y entraría en la locura. Ni comprendería al mundo ni a sí mismo.

Por un lado está la posibilidad, que para que sea objetiva no basta ciertamente la no contradicción, sino que es preciso añadir las demás exigencias transcendentales o formas a priori, como ya hemos visto. Pero yo añadiría que como esas idealidades no son transcendentes sino transcendentales, han de objetivarse en una materialidad, y esta es la del lenguaje. El sujeto se identifica con esa idealidad materializada: de lo posible podemos hablar, fantasear según el deseo o predecirlo conforme a cierto conocimiento objetivo del presente, pero la realidad nos tendrá que venir dada y ella se encargará de confirmarlo o corregirlo. Y a la inversa, en esa contraposición la realidad del mundo es comprendida como tal, en cuanto siendo otra realidad; sobre todo aquella que no se maneja, que se opone y limita al sujeto.

Si esta distinción entre posibilidad y existencia es básica en la construcción de la subjetividad y su mundo, entonces no puede valer el mismo criterio para ambas; no podemos pasar del concepto y posibilidad de algo a la afirmación de su realidad, según se pretende en el argumento ontológico sobre la existencia de Dios, que es el punto a donde abocan todas las otras pruebas según Kant. "Así pues, si pienso un ser como la realidad suprema (sin carencia alguna), siempre queda la pregunta sobre si existe o no. Pues [...] aún falta algo en su relación con mi estado entero de pensamiento [con mi capacidad de conocer], a saber, que el conocimiento de ese objeto sea posible también a posteriori [...]. Si queremos, por el contrario pensar la existencia sólo mediante la categoría pura, entonces no es de extrañar que no podamos señalar ninguna característica para diferenciarla de la mera posibilidad. En consecuencia, contenga lo que contenga el concepto que tengamos de un objeto, tenemos que salir de él para atribuirle la existencia"95. El conocimiento teórico u objetivo lo es de la otra realidad que yo no protagonizo, y de mi realidad en la medida en que se encuentra heterónomamente determinada como un objeto del mundo. Por consiguiente, la realidad me tiene que venir dada, exhibida, no puedo configurarla desde la mera idealidad subjetiva.

Otra cosa sucede en la acción real del hombre, la práctica, la pragmática y la poiética. Ella es ciertamente finita y presupone la materialidad de lo que se propone transformar. No obstante es capaz de pasar de la posibilidad en forma de concepto a la realización del fin allí

95 KrV A 600-601, B 628-629. Véase también todo el contexto de esta cita más A 639, B 667 y KU § 76 (AA V, 402).

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formulado. La imaginación, como facultad de síntesis concreta, es la capacidad humana de tender este puente entre las dos categorías modales, de ir abriendo, en la misma realidad del mundo, nuevos caminos y dando forma a posibilidades queridas. Ella es la que se manifiesta en el arte, como fuerza verdaderamente productora y creadora de formas a medio camino entre la realidad objetiva del mundo y la posibilidad meramente fantaseada o quizás, sin más, presentida como oscura noticia. Ella da lugar incluso a un mundo de ficción donde logramos recrearnos y comprender, de manera plástica y en libre juego, la síntesis concreta que somos de libertad y naturaleza, así como expresar en símbolos lo que de suyo es inefable mediante conceptos objetivos y determinados. Allí se manifiesta la fuerza originaria creadora de la cultura, de mundos habitables por la subjetividad, de nuevas posibilidades donde ésta va con-figurando su realidad más propia pues la imaginación está a la base de toda síntesis creadora de sentido. Por eso he puesto el arte al final de esta columna en el Esquema de los Principios. 3.6.3 EL TERCER POSTULADO

Es el de la necesidad. Retornando al argumento ontológico sobre la existencia de Dios, contra la crítica kantiana antes expuesta se podría objetar que en él no se pasa sin más de la posibilidad a la existencia, sino de la necesidad de aceptar su existencia a su aceptación fáctica. Entramos así en el tercero de los Postulados del pensar empírico. Pues bien, en él se nos dice que la única existencia objetiva que puede ser afirmada con necesidad es aquélla que logramos alcanzar mediante las leyes o Analogías de la experiencia y su desarrollo científico. Pero éstas presuponen la dación empírica, el espacio y el tiempo, los dos Principios matemáticos (Axiomas y Anticipaciones). Luego nunca de una forma absolutamente a priori y por mero análisis de conceptos. La necesidad expresada en este tercer Postulado es de lo empíricamente necesario, cuya necesidad se determina por las leyes de la naturaleza y en la medida en que así suceda. No se trata, por tanto, de una necesidad en sí o desde un punto de vista divino, de una substancia cuya no existencia fuera impensable, sino de una necesidad condicionada, ligada: "Todo lo que sucede es hipotéticamente necesario"96, pues "en el fundamento de toda necesidad se halla siempre

96 KrV A 228, B 280.

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una condición transcendental"97. En absoluto, no sería contradictorio que nada existiera.

Otro camino parece tomar el argumento cosmológico sobre la existencia de Dios, analizado también en "El ideal de la razón pura"98, y que ya aparecía en la tesis de la cuarta Antinomia99. Este argumento cosmológico parte de la contingencia del mundo, luego no de un mero concepto de Dios, sino de la experiencia en general, de la existencia fáctica de lo real, y de la necesidad racional de lo incondicionado: como existe algo, entonces tiene que haber un ser necesario, cuya existencia sea incondicionada y sobre la cual repose en última instancia todo lo condicionado o serie de condicionados. Para comprender esta serie se utiliza (al menos también) la causalidad o segunda de las Analogías, razón por la cual, aunque la cuarta Antinomia y "El ideal de la razón pura" están colocados en la cuarta columna del Esquema de los principios, pues tratan de alcanzar un modo de ser necesario, he trazado también una línea que los liga a las Analogías. Pues bien, el inconveniente no ha sido evitado, porque, una vez que se ha llegado al concepto o exigencia racional de un ser absolutamente necesario, se retoma de nuevo el argumento ontológico y se quiere pasar de ese concepto o su realidad, porque ya no tenemos ningún apoyo en la experiencia. 3.7 CONCLUSIÓN

Estos Principios señalan el fundamento de nuestro conocimiento objetivo, pero igualmente su limitación a lo empírico. Sobre todo esto se vuelve a reflexionar en el capítulo III, que sirve de conclusión a esta Analítica de los Principios. "La Analítica transcendental tiene por tanto este importante resultado: que el entendimiento no puede hacer a priori nada más que anticipar la forma de la experiencia posible en general y que no puede sobrepasar nunca los límites de la sensibilidad", de modo que "el arrogante nombre de una ontología", que pretende hablar del ente en cuanto ente incluso más allá de toda dación sensible, "ha de dejar su sitio al modesto nombre de una mera analítica del entendimiento puro"100, que trata del ente en cuanto objeto. Pero eso no quiere decir que él sea el único

97 KrV A 106. 98 KrV A 603, B 631 ss. 99 KrV A 452, B 480 ss; A 559, B 587 ss. 100 KrV A 246-247, B 303.

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modo de ser posible, sino el único alcanzable desde el punto de vista de la heteronomía, de la objetividad, como ya hemos visto.

No podemos conocer objetivamente noúmenos, entes inteligibles, pues carecemos de intuición intelectual. Este concepto de noúmeno sirve más bien para nombrar el límite de nuestro conocimiento objetivo, aquello que no podemos conocer. Eso es lo que Kant denomina noúmeno en sentido negativo101. Su utilización en sentido positivo sólo aparecerá en el ámbito de lo práctico.

Por último, en el Apéndice, Kant polemiza con Leibniz, que según él no logró comprender la diferencia transcendental (de origen y contenido o significado) entre sensibilidad y entendimiento. Por eso pretendió construir un sistema intelectual del mundo, carente incluso de relaciones o influjos físicos reales. Pensó que lo sensible no era sino lo intelectual confusamente conocido, y por tanto ni reparó en la necesaria relación a lo empírico de todo conocimiento objetivo, ni en la distinta significación (anfibología o anfibolía = doble sentido) de los conceptos de reflexión cuando se aplican a lo sensible o a lo puramente intelectual. Hacia el final Kant vuelve sobre el concepto de noúmeno102, y acaba con una tabla sobre la nada del objeto.

101 Sobre los conceptos de noúmeno e intuición intelectual me remito al capítulo IV de mi libro El punto de partida de la metafísica transcendental (Ediciones Xorki, Madrid, 2011). 102 KrV A 286-289, B 342-346.

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IV

SEMINÁRIO SOBRE A ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS

Jacinto Rivera de Rosales Chacon* Tradução: Luciano Carlos Utteich**

Na Analítica dos princípios Kant passa ao estudo dos juízos básicos. É um momento de aplicação de todos os elementos elaborados anteriormente, um momento de síntese. Desta maneira se estabelecem os critérios ou princípios fundamentais que regem nosso conhecimento objetivo, isto é, se configura uma ontologia, mas não já do ente enquanto ente ou coisa em si, senão como analítica do ente enquanto objeto1.

Esses princípios fundamentam a possibilidade objetiva dos juízos empíricos e científicos, e ao mesmo tempo põem os limites dessa validade. Superamos assim a simples prudência e censura cética que, como reação descontrolada ao exagero dogmático, tendia a colocar tudo em dúvida, tanto as exageradas pretensões metafísicas sobre uma realidade transcendente, como as de um conhecimento objetivo e científico do mundo. Pelo contrário, a Crítica estabelece, mediante princípios, os limites do objetivamente fundado e o separa nitidamente do falar infundado que pretenda ir mais além deles2. Desta maneira se oferece um marco para os juízos objetivamente corretos e se estabelece a verdade transcendental, que precede e possibilita toda verdade empírica3, pois “as condições da possibilidade da experiência em geral [que são as formas a priori e a apercepção transcendental] são ao mesmo tempo condições da

* Catedrático de Universidad, área de filosofía, en la Universidad Nacional de Educación a Distancia - UNED, Madrid; E-mail: [email protected]. ** Pós-doutor em Filosofia pela Universität Duisburg-Essen (Alemanha). É atualmente Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutor pela PUCRS (2008), com pesquisa na área da Filosofia Transcendental kantiana e do Idealismo Alemão (fichte, schelling e hegel). participa do grupo de pesquisa filosofia sistemática: dialética e filosofia do direito; com linha de atuação ainda na pesquisa dialética e filosofia sistemática e dialética e sistema (PUCRS), e dos grupos de pesquisa história da filosofia e filosofia, ciência e natureza na alemanha do séc.xix: subjetividade e natureza na unioeste. 1 KrV A 247, B 303. 2 KrV A 761 e 767, B 789 e 795. 3 KrV A 146, B 185; A 197, B 242 ss.; A 221-222, B 269; A 237, B 296; A 492-493, B 520-521.

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possibilidade dos objetos da experiência [visto que estes são fenômenos], e, portanto, têm validade objetiva em um juízo sintético a priori”4.

4.1 OS PRIMEIROS PRINCÍPIOS E A CIRCULARIDADE DA CONSCIÊNCIA

Há dois primeiros princípios que regem todos os juízos. Em primeiro lugar está o princípio supremo dos juízos analíticos que exige que o predicado não contradiga o pensado no sujeito. Esse é o princípio de não contradição. Kant elimina nele toda alusão à temporalidade, pois esta pertence à sensibilidade, enquanto que aquele é um princípio meramente lógico que faz abstração de todo conteúdo sensível.

Este princípio lógico formal é somente um critério do que pode ser pensado, da mera espontaneidade ideal, pois se faz abstração de toda sensibilidade. Ao contrário do que ocorre com o princípio supremo dos juízos sintéticos. Este expressa o fundamento último que nos faculta a falar do mundo, para falar com fundamento da realidade objetiva. Kant assim o formula: “As condições de possibilidade da experiência em geral são ao mesmo tempo condições de possibilidade dos objetos da experiência e têm, portanto, validade objetiva em um juízo sintético a priori”5. Poderíamos reformulá-lo assim: visto que as estruturas a priori são as que tornam possível a objetivação do mundo, ou seja, que este se apresente a um sujeito cognoscente de maneira tal que pode ser recebido e pensado por ele, elas constituem as condições de possibilidade dos objetos mesmos dessa experiência, pois estes não são coisas em si, independentes de toda subjetividade (nesse caso seriam incognoscíveis), mas sim fenômenos, pois respondem justamente a nossas formas a priori, a nossas exigências de objetividade, a nossas perguntas, e nesse sentido ideal dependem de nossas formas a priori.

Este princípio nos mostra a circularidade da consciência: as formas ou ações a priori (espaço, tempo, esquemas e categorias) da subjetividade transcendental são objetivas porque se apoiam em uma experiência dada na qual os objetos respondem positivamente a nossas formas a priori, e a experiência dada se objetiva porque se configura segundo essas ações a priori. Não se trata de um circulo vicioso, pois estes somente têm lugar na ordem da argumentação lógico-formal, na qual se deduzem proposições

4 KrV A 158, B 197. 5 KrV A 158, B 197.

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(as conclusões) de outras (as premissas). O círculo não é lógico6 mas antes transcendental: encontro aquilo que eu elaborei idealmente e sou capaz, portanto, de reconhecer. A consciência objetivante é um domínio que abre criativamente a subjetividade e vale para ela. Aqui se parte de uma ação originária e espontânea da subjetividade, o Eu penso ou autoconsciência com suas formas a priori, e da necessária autorreferência a si de suas ações, necessária para a construção dessa mesma subjetividade. Tudo o que é para o Eu o Eu tem de pôr ou elaborar desde si, pois somente assim é para ele e pode inteirar-se disso. A autoconsciência ou autoposição é o fundamento desta circularidade. Não podemos pôr-nos em um ponto exterior a essa idealidade e alcançar uma visão divina a fim de comparar (como quem compara dois objetos) nossos conhecimentos com coisas em si totalmente independentes deles.

Além disso, esse círculo não é um círculo dogmático ou desde o ponto de vista divino, mas antes é, no fundo, hipotético. Poderia acontecer que o mundo não respondesse a nossas formas a priori de conhecer, mas então nesse caso não poderia existir a consciência nem o Eu, pois este é consciente de si no ato de determinar o mundo. É assim que se sou consciente, então posso afirmar com fundamento que o mundo existe e é conforme a minhas formas a priori. E como o conhecimento não tem lugar sem sujeito, então os objetos devem se acomodar à idealidade transcendental se tem de ser conhecidos. Em geral, inclusive poderia não haver nada; não há contradição lógica em que houvesse o nada em vez do ser. Mas já que a subjetividade existe, é transcendentalmente necessário que se dê essa acomodação, esse conhecimento objetivo, ao menos em certa medida, em uma medida suportável; daí que o círculo não possa chegar a ser vicioso, senão que sempre fica aberto à resposta positiva do mundo. Isso implica também a facticidade das formas a priori, que, em geral, também poderiam ser outras as categorias e as formas a priori da sensibilidade7. Os idealistas (Fichte, Schelling e Hegel) as deduzem geneticamente, mas isso somente mostraria a coerência interna dessas formas, não que não poderia haver outra subjetividade distinta, igualmente coerente, e de cuja ideia certamente carecemos. Neles está também

6 “Comete-se um círculo na demonstração quando se põe aquela proposição que se quer demonstrar como fundamento de sua própria demonstração” (Kant, Logik § 92; AA IX, 135). 7 Cfe. KrV B 145-146; A 230, B 283; A 393; A 557, B 585; A 613-4, B 641-2; Prolegomena § 36 (AA IV, 318); Entdeckung, AA VIII, 249. Sobre este assunto me estendo mais no capítulo III do livro El punto de partida de la metafísica transcendental.

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presente a circularidade, pois essa é inclusive a forma total do sistema, e atualmente ela continua sendo elaborada, por exemplo, sob a figura do círculo hermenêutico.

Essa circularidade da subjetividade cognoscente reside na autorreferência necessária para que o Eu compreenda que está conhecendo e o que está conhecendo, e é de fato uma abertura ideal ao outro de si, ao mundo, pois o Eu não tem o modo de ser de uma coisa, fechada em si mesma, senão que suas formas a priori são perguntas abertas que esperam a resposta do mundo8, não contestações, e se não houvesse nenhuma positiva, a subjetividade desapareceria, sobretudo com respeito à estrutura a priori estudada pela KrV, que é o marco mínimo da objetividade. Mas é certo que essa circularidade ou autorreferência é a que torna também possível a obtusão, obstinação, e a loucura, convertendo-se então em um círculo vicioso. Um universo conceitual, inclusive o mais desvairado, tende a interpretar tudo desde seu conjunto de regras, e pode fechar-se sobre si mesmo e ver sempre aquilo que quer ver, o qual pode ocorrer em um indivíduo ou em um grupo. O Eu então se perde, se destrói pouco a pouco, e somente na medida em que mantenha uma distinção modal entre possibilidade e realidade e um contato com a realidade, um “realismo”, continua existindo. Não se poderia dar um Eu real na total ilusão (e confusão): não seria um Eu real, seria quando muito a ilusão de outro Eu, se isso tem sentido. Portanto, cabe perguntar se nossa compreensão atual contém alguma ilusão mais ou menos importante, ou se é parcial, pois podem ser feitas essas perguntas graças à idealidade transcendental enquanto possibilidade de abrir-se à realidade e de descobrir a ilusão que representava minha consciência anterior9. Mas não cabe se perguntar se tudo é mera ilusão, ou máscara ou mentira. Nesse caso o sujeito desapareceria por falta de realidade. Todavia, abrir-se à realidade e compreendê-la é certamente uma tarefa que constitui o sujeito10.

8 KrV B XIII-XIV. 9 Segundo a Fenomenologia do Espírito de Hegel vamos passando de uma figura à outra, isto é, de uma visão do mundo à outra, devido à limitação que encontramos em cada uma delas e à frustração que isso nos produz. 10 Para isso não se requer somente investigação e ação sobre o mundo, mas também intersubjetividade e diálogo. A verdade tem de ser compartilhável (KrV, A 820, B 848). Diálogo significa pensar por si mesmo coerentemente (utilizar a própria razão) e saber escutar o outro, isto é, colocar-se em seu lugar, pensar a fundo suas razões (KU § 40, AA V, 294-295; Antropologia §§ 43 e 59, AA VII, 200, 228-229; Logik, Einleitung VII, AA IX, 57).

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4.2 ESQUEMA DOS PRINCÍPIOS Na Seção terceira desse capítulo II da Analítica dos princípios,

Kant nos apresenta primeiramente o conjunto dos quatro princípios básicos que se extraem da tábua das categorias. Colocando em relação as diversas partes de todo este entrecruzamento sistemático, com outros momentos de seu sistema filosófico, poderia se fazer o esquema que se encontra na página seguinte. Este quadro nos servirá de guia na explicação de cada um dos Princípios, e é aí onde também encontrará seu esclarecimento detalhado.

Mas aqui é oportuno dizer o seguinte. O primeiro nível horizontal de cima, o da sensibilidade, tal e como se estuda na Estética transcendental, somente abarca propriamente o que aparece nas duas primeiras colunas verticais: a forma espacio-temporal e a materialidade das sensações, matéria e forma que configuram cada um dos fenômenos. A expressão “fenômeno + f +f+f” quer significar a pluralidade de fenômenos ou objetos e sua união ou síntese mútua, configurando o que Kant denomina a natura formaliter spectata. E num sentido ainda mais lato se tem de tomar o colocado acima da quarta coluna, pois não só inclui a sensibilidade, mas também a elaboração assinalada nas três colunas anteriores. Tudo isto ficará melhor explicado a seguir.

Estendi este esquema à Dialética transcendental e à estética da Crítica do Juízo (KU) com a vontade de oferecer uma panorâmica maior que lança ainda mais luz à Analítica dos princípios e os determine em seus limites ao confrontá-los com o propósito dialético de ir mais além e à diferente experiência dos objetos que oferece o belo e o sublime. 4.3 AXIOMAS DA INTUIÇÃO

Com as categorias de quantidade, seus esquemas e os Axiomas da intuição o que fazemos é elaborar, desde a idealidade ou regras de síntese, a forma espacio-temporal dos fenômenos ou formas a priori da sensibilidade. O espaço e o tempo deixam de ser meras multiplicidades ordenáveis, como ocorre na sensibilidade, pois a multiplicidade contínua do espaço e do tempo é delimitada sintética e discretamente ao recortar espacio-temporalmente os objetos, e mediante essa ação também o espaço e o tempo chegam a ser intuídos. Este trabalho é realizado primariamente pela capacidade imaginativa mediante o esquema da quantidade, que segundo Kant é o número. Por ela se reúne, mediante adição sucessiva das partes de um objeto que percorremos imaginativamente em seu espaço e

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tempo, uma multiplicidade de igual natureza, homogênea, e se a distingue de outras multiplicidades concretas e concretizadas também pelo mesmo esquema e que conformam outros objetos. Graças a isso (1º) se designa aos objetos uma quantidade discreta de espaço e tempo, e (2°) estes, que em si, enquanto absolutos ou meras formas da intuição, não são empiricamente intuídos, chegam a sê-lo na concreção empírica desses objetos, ou seja, como diz Kant, “o tempo mesmo é produzido na apreensão da intuição”11. E o mesmo ocorre com o espaço, pois o espaço absoluto tampouco é empírico nem empiricamente intuível, nem em si nem em suas consequências como seria a percepção do movimento de um objeto comparando-o com o espaço absoluto, mas antes é uma forma a priori da sensibilidade, uma idealidade, e somente significa a capacidade ideal de ir mais além de todo espaço dado12.

Não se trata aqui de que a espontaneidade da síntese imaginativa produza ela mesma a multiplicidade sensível do espaço e do tempo, pois entre sensibilidade e entendimento ou espontaneidade em geral, na qual tem se situar também a imaginação, há uma diferença transcendental, de origem e conteúdo13. O esquema das categorias de magnitude ou quantidade contém e torna representável “a produção (síntese) do tempo mesmo na sucessiva apreensão de um objeto”14; ou seja, o que a imaginação produz não é o espaço e o tempo como formas da sensibilidade, senão sua síntese limitada ao percorrer o espaço e o tempo de um objeto, e ao limitá-los nessa síntese empírica também são empiricamente intuídos; somente o limitado é empiricamente intuível, e essa limitação ou síntese é o efeito da ação imaginativa. O espaço e o tempo como formas ideais são a imagem pura, ideal, do mundo em geral, e ao ser quanta tornam possível a determinação da quantitas das coisas: “A imagem (Bild) pura de todas as magnitudes (quantorum) ante o sentido externo é o espaço; e de todos os objetos do sentido em geral, o tempo”15. As categorias de quantidade são as únicas categorias que têm imagem (pura, não empírica), pois se dirigem à pura forma dos fenômenos; por

11 KrV A 143, B 182. 12 Cfe. por exemplo KrV B 207; A 291, B 347; A 429, B 457 nota. Princípios metafísicos da ciência da natureza, cap. 1°, Enunciado 1, Observação 2 (AA IV, 481) e capítulo 4°, Observação geral (AA IV, 559, ss.). 13 KrV A 15, B 29; A 50, B 74 ss.; A 92-93, B 125; B 146; A 294, B 350; Antropologia § 40 (AA VII, 106). 14 KrV A 145, B 184. 15 KrV A 142, B 182.

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isso sua matematização é completa e podemos estabelecer inclusive axiomas.

Consequentemente, como vimos na citação anterior, a quantidade não só se esquematiza contando com o tempo, como Kant havia afirmado no Esquematismo transcendental, senão também com o espaço. Isto resulta mais claro ainda na originária produção de figuras, que dá lugar ao esquema geral dos fenômenos externos, ou mundo espacial, e à geometria16. Vendo mais além do texto kantiano poderíamos afirmar que não só o número é aqui o esquema (aritmética), senão também a linha, o traçado da linha ou contorno espacial do objeto (geometria), que torna possível igualmente o da superfície e o do volume (de novo uma tríade). Com a ação de traçar a linha, diz Kant, conectamos o tempo e o espaço17. A síntese imaginativa é figurada e plástica18. Mais ainda, enquanto que a figura, por exemplo, a construção de um triângulo, fica bem delimitada a priori, a construção de unidade de medida (o metro, o litro, o quilo, etc.), pelo contrário, depende também das condições empíricas tanto do sujeito como do objeto: há distâncias que medimos com metros, porque assim é mais cômodo, e outras mediante anos-luz. Talvez assim poder-se-ia compreender, tal e como Kant defende, que somente na geometria sejam possíveis os axiomas.

Leva-se a cabo aqui uma síntese do homogêneo, niveladora, sobre o fundo do qual se poderá ir inserindo diferenças. Além disso, é uma síntese sucessiva, que vai percorrendo a multiplicidade até unificá-la, isto é, que nessa ação as partes precedem o todo, conferindo desse modo ao objeto uma magnitude extensiva espacial e temporal. Este é o princípio da compreensão mecânica do mundo, a qual se situa no ponto de vista da heteronomia, diferente da compreensão teleológica da natureza, que é abordada na Crítica do Juízo (KU), e de modo concreto na sua segunda parte, na “Crítica do Juízo teleológico”, onde o todo ou ideia de fim precede à compreensão das partes e as organiza em uma unidade interna e autônoma, como ocorre nos seres vivos. Enquanto que nos seres vivos as partes se co-pertencem essencialmente, no mecânico aparecem justapostas, em exterioridade umas às outras, e nisso consiste a magnitude

16 KrV A 163, B 204. 17 KrV A 33, B 50; B 154-155, 292. Poderíamos designar à linha a categoria de unidade, à superfície a de pluralidade e ao volume à de totalidade. O ponto não é ainda espaço, somente representa o limite: “Não há nada real no espaço que seja simples, pois os pontos (que constituem o único simples no espaço) são meramente limites, não algo que, como partes, servisse para constituir o espaço” (KrV B 419). 18 KrV B 151.

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extensiva. Só desde essa exterioridade posso manejar tecnicamente o mundo e atender minhas necessidades.

Esta “exterioridade” significa, além disso, que não partimos de um conhecimento empírico da totalidade do mundo, mas antes, pelo contrário, que vamos descobrindo sua realidade progressivamente no espaço e no tempo. O caráter contínuo que estes têm me introduz em um processo sem fim, pois (1°) não encontramos limites inexcedíveis a sua idealidade e, portanto, à necessidade de conectar todo momento empírico com seu anterior e todo espaço empírico com seu entorno, nem (2°) podemos afirmar que empiricamente o tenhamos percorrido e que conheçamos a totalidade como um infinito dado. Uma linha traçada, empiricamente real, é sempre limitada, ainda que tenhamos a capacidade (ao menos ideal) de continuá-la indefinidamente. Toda síntese real, empírica, é finita, ainda que se poderia ir mais além em virtude do caráter ilimitado das idealidades transcendentais enquanto tais, de maneira que elas nos servem de guias para ultrapassar qualquer fenômeno ou experiência concreta e continuar o processo do conhecimento. O conhecimento empírico, real, está sempre em processo, in fieri. Se pretendemos concluí-lo mediante um elemento incondicionado que detenha a série, ou bem acreditando que conhecemos a totalidade absolutamente incondicionada, vemo-nos lançados à dialética19, e concretamente aqui à primeira das Antinomias, onde novamente se tem em conta não apenas o tempo, mas também o espaço. Por isso, no esquema dos Princípios a primeira das Antinomias está colocada em linha

19 “[...] e visto que o mundo não existe em si (independente da série regressiva de minhas representações), não existe nem como um todo em si infinito nem em si finito. Somente se pode falar no regresso empírico da série dos fenômenos, não em si mesmo. Por conseguinte, se esta [série] é sempre condicionada, nunca é dada de maneira completa, e o mundo não é, pois, um todo incondicionado, consequentemente nem existe como tal, nem de magnitude infinita nem finita. [...] A série das condições somente podem ser encontradas na síntese regressiva, não em si no fenômeno considerado como uma coisa própria e dada antes de todo regresso” (KrV A 505, 533; cfe. toda essa sétima Seção – A 497, B 525 ss – e a oitava Seção – A 508, B 536 ss –). “[...] a totalidade absolutamente incondicionada da síntese dos fenômenos [...] não se encontra senão em nossa ideia” (KrV A 481-482, B 509-510). “Mas em seu significado empírico, o todo é sempre só comparativo” (KrV A 483, B 511), de modo que as teses e as antíteses são ou muito grandes ou muito pequenas para o conceito do mundo que encontramos na Estética e na Analítica transcendentais (KrV A 486, B 514 ss; A 529, B 557). Da totalidade absoluta nada posso dizer. “O regresso na série dos fenômenos do mundo, como uma determinação da magnitude do mundo, se estende in indefinitum, o que equivale a dizer que o mundo sensível não tem uma magnitude absoluta” (KrV A 521, B 549).

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(vertical) com os Axiomas da intuição. Consequentemente, não só podemos dizer que todos os fenômenos ou intuições serão espacio-temporais, como era o caso na Estética transcendental, senão que, ao acrescentar a necessária delimitação da síntese imaginativa, podemos afirmar como Princípio que o serão limitadamente; e assim se formulam os Axiomas da intuição.

Poder-se-ia objetar, retomando nisso as aporias de Zenon, que se se tem de ir das partes para o todo, por exemplo, para configurar a unidade de medida ou para traçar uma linha, visto que temos de percorrer as infinitas partes do espaço e do tempo, nunca chegaríamos ao todo, ainda que este seja finito. Aqui novamente se apresenta a nós uma boa ocasião para captar o caráter específico dessa peça introduzida por Kant que é a ação da imaginação, capaz de configurar sínteses reais, de mediar entre o entendimento que fixa e a ilimitada multiplicidade do real. A imaginação, ou seja, a subjetividade nessa ação sua, consegue apreender o movimento e sintetizar o contínuo espacio-temporal mediante um traçar linhas. Ela avança de um ponto a outro ponto do espaço e do tempo e não se detém para analisar e determinar a infinitude dessa multiplicidade percorrida; nunca chegaria a um fim, visto que no espaço e no tempo não há partes simples. Percorre-a (apprehensio) segundo sua capacidade plástica em um ato de síntese vivo e real, ou seja, em um ato que lhe designa alguns limites empíricos (comprehensio aesthetica). E assim, confinado em seus limites, um movimento ou um tempo ou um espaço concretos são intuídos imaginativamente como um todo, sem que tenhamos de nos deter a determinar e a refletir sobre cada uma de suas partes20. E não temos de fazê-lo porque, como vimos, essas partes não estão dadas como realidades em si, mas antes o processo de partição, ainda que encontre um limite real por nossas limitadas capacidades técnicas, que nos impedem de continuar dividindo as partículas elementares da matéria, carece idealmente de limites. Este é o tema que se discute na segunda das Antinomias: nunca chegamos a partes simples, como se afirma na tese, nem percorremos a infinitude do real para afirmar que o simples não existe, como quer a antítese, senão que sempre estamos em processo.

Quando o objeto é empiricamente tão grande que excede nossa imaginação, as capacidades dela de recompilação ou compreensão estética, e, no entanto, não nos atemoriza, senão que contemplamos desinteressadamente, isto é, passamos de uma atitude teórico-técnica a outra contemplativa, estética, surge então o que Kant denomina o

20 KrV A 426/428, B 454/456 nota; cfe. também B 48-49, 291-292.

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sentimento estético do sublime matemático. Por isso aparece também na tábua dos Princípios em relação com a quantidade, que é com o que Kant o relaciona21. A grandeza do objeto nos apequena e faz ver nossos estreitos limites empíricos. Mas, visto que nesse momento nossa pequenez não nos coloca em perigo, surge em nós o sentimento de nossa superior determinação suprassensível, o sentimento de que temos uma razão pura independente, e de que sua ilimitação ideal ultrapassa todos os céus, o qual nos causa um prazer estético22. 4.4 ANTECIPAÇÕES DA PERCEPÇÃO

Com as categorias de quantidade, seus esquemas e os Axiomas da intuição, elaborávamos a forma dos objetos. Com as categorias de qualidade, seus esquemas e as Antecipações da percepção, interpretamos ativamente a realidade e materialidade dos mesmos, sua presença ou apresentação, o que na Estética transcendental aparecia como afecções e sensações. Portanto, levamos à compreensão conceitual a limitação real do sujeito ou realitas do mundo, enquanto que este preenche (erfüllt) de conteúdo o espaço e o tempo, a figura e a extensão espacio-temporal dos objetos estudados nos Axiomas. Se encontramos ali um objeto, diremos que é e compreenderemos esse fenômeno com o conceito de realidade, e se não o encontramos, se por exemplo vamos à sala e não encontramos cadeiras, captaremos essa não presença com o conceito de negação e diremos: não, aqui não há nenhuma cadeira.

Esse conteúdo ou realitas phaenomeno, seu ser ou não ser (seu nada) na maneira de ser do fenomênico, é o que se anuncia mediante a sensação. E desse conteúdo se antecipa aqui não só que se dará (isso já foi estudado na Estética transcendental), senão que tem de ter um grau, que o objeto tem de ser limitadamente real, submetido à delimitação sintética. Mas isto Kant fundamenta apelando, em última instância, a que a sensação admite graus na consciência empírica, o qual não é dar um fundamento transcendental. Encontramos novamente aqui o que já acontece com a sensação na Estética: a falta de uma elaboração transcendental deste tema23.

21 KU § 23. 22 KU § 27. 23 Este tema tratei em meu livro El punto de partida de la metafísica transcendental, capítulo II, § 3, B (Ediciones Xorqui, Madrid, 2011), e no artigo “La realidade cualitativa del fenómeno: la

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Esse conteúdo ou realidade fenomênica se mostra a nós definitivamente como força (Kraft, energia se diria agora), por exemplo, como força de impenetrabilidade dos corpos, e concretamente como força motriz originária. Na segunda parte de seus Princípios metafísicos da ciência da natureza, Kant adere a uma concepção dinâmica da matéria. Esta força ou realitas é originária, isto é, não pode ser inventada, senão que tem de nos ser dada, e nisso se mostra nossa finitude real, e não meramente ideal. Portanto, eu diria aí que não apenas entra em jogo a idealidade da consciência, mas antes também nossa mesma realidade originária, cuja limitação (e dependência com respeito à outra realidade) sentimos. O outro que me limita realmente se manifesta como força real oposta e originária, isto é, que parte desde si, que não é posta, mas sim dada, seja já como um outro ao qual tenho que considerar igual que eu, ou seja como força-coisa que posso e tento dominar. A outra realidade, a do mundo, se manifesta para mim porque resiste não à mera representação, senão à minha ação, à minha vontade, ao meu esforço, à minha autoafirmação no ser, aos meus desejos, ao meu projeto de liberdade, o que não ocorreria com as meras fantasias24. Não é suficiente distinguir, como Kant faz, a consciência pura (ideal) da consciência empírica enquanto esta é real e admite graus, pois o empírico é o que deve ser explicado mediante um fundamento transcendental. Para explicar a compreensão da realitas e de sua limitação temos que remontar à realidade originária do sujeito (a ação real e livre) e à autoconsciência da mesma (a consciência moral). Kant deixa apontado o tema ao assinalar que a liberdade é a pedra angular de todo o sistema e ao mostrar o primado do prático sobre o teórico.

Sentimos a limitação e podemos relacionar esse sentir primário com o sujeito e se manifesta na forma de sentimentos, ou bem com a outra realidade a fim de objetivá-la e então dá lugar às sensações25. Mas a apreensão dessa realitas não vai das partes para o todo em uma síntese sucessiva como ocorria com os Axiomas da intuição e suas magnitudes extensivas, nem tampouco do todo para suas partes discretas, como é o caso na compreensão teleológica da natureza (os seres vivos), senão que a intuição da realidade do mundo é instantânea e formando um todo26.

ambigüedad de la sensación y de su grado”, publicado no livro Kant en nuestro tiempo: Las realidades em que habitamos. Biblioteca Nueva, Madrid, 2016, pp. 71-88. 24 Desse modo, diria Freud, ao princípio do prazer se acrescenta o princípio de realidade. Cfe, por exemplo, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911). 25 Algo parecido vem a dizer Kant na KU § 3 (AA V, 206) e na Metafísica dos costumes, Introdução I (AA VI, 211-212 nota). 26 KrV A 523-524, B 551-552; A 526, B 554.

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Olhando mais além do texto kantiano, poder-se-ia dizer que se a realidade objetiva não fosse limitada e limitável, o sujeito não caberia, em poderia se compreender na contraposição, nem poderia transformá-la segundo seus fins. Mas o mesmo aconteceria se não houvesse realidade, ou seja, se nos encontrássemos no vazio absoluto, somente com as puras formas espacio-temporais; ou se o sujeito ocupasse tudo e fosse infinito. Logo podemos dizer que o fenomênico terá um grau de realidade, será limitadamente real, terá uma magnitude intensiva. Do mesmo modo (visto que nestes dois primeiros Princípios estamos no terreno da intuição objetiva, do homogêneo desde o ponto de vista nivelador) nossa realidade será também limitada e tornar-se-á eu empírico, um objeto a mais do mundo. Não obstante, essa limitação cósica, heterogênea, não poderá se instalar (ao menos não inteiramente) no que o sujeito é de originário, livre e autoconsciente, de modo que este continue aberto à totalidade e tenderá a limitar a limitação, empurrar mais além o limite, e é esse esforço e projeto o que nos revela o limite e sua realidade.

Com os Axiomas e as Antecipações esgotamos a intuição do fenômeno, e não se daria propriamente intuição sem regras de síntese. Por isso Kant os chama Princípios constitutivos do fenômeno na intuição ou Princípios intuitivos, de evidência imediata e apodítica. São eles os que tornam possível a aplicação da matemática aos objetos; sobretudo os Axiomas, que elaboram a forma, e esta é pura possibilidade de relação e comparação27. A realitas, visto que aí partimos de um pôr-se originário que vai do todo às partes, e em virtude de seu caráter de instantaneidade, somente é matematizável o grau e a ele cabe aplicar o número.

Em ambos Princípios se encontra também integrada, pensada, a síntese e delimitação do sensível por parte da imaginação. Por isso não só dizemos que os fenômenos hão de ser espacio-temporais e possuir realitas, mas também que tudo isso [eles] o são limitadamente. Naturalmente a categoria não apresentaria por si mesma essa limitação, pois o conceito como tal, ao ser a regra enquanto regra, abstraída de todo conteúdo, apenas mostra sua universalidade lógica e a ilimitação própria do meramente ideal. É a síntese real da imaginação a que precisa os limites, como se vê no caso do sublime matemático, onde a magnitude do objeto ultrapassa a imaginação.

Tampouco aqui se dá o simples, o que dá lugar à segunda das Antinomias. Nela, a tese pretende afirmar a existência de elementos simples nessa realitas. Estes seriam substâncias em si ou numênicas, como

27 KrV B 66-67.

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ocorre na monadologia de Leibniz. A antítese anularia o processo dando-o por concluído como se houvéssemos já percorrido a infinitude. Ora, os fenômenos estão no espacio-tempo, e nestes não há partes simples, e portanto tampouco pode ser percorrida ou esgotada sua ilimitação ideal28. Tenhamos em conta que nesta compreensão objetivadora da natureza que a KrV estuda o sujeito se dirige a “estendê-la” na exterioridade partes extra partes.

Outra e complementária será a visão teleológica da natureza, estudada na Crítica do Juízo. No corpo organizado, que não é um quantum continuum mas antes discretum, a divisão já não pode proceder ilimitadamente29. Ambos momentos e sua contraposição são necessários para a compreensão da realidade, de modo que convém não esquecer que a objetividade é só um elemento na construção da subjetividade e de seu mundo; há que reparar tanto em sua especificidade como em sua conexão com a totalidade30. Também incluo aqui os Paralogismos, pois neles se busca assim mesmo desde o teórico, ou seja, desde o objetivo o modo de ser do objeto, uma realitas simples, não já na natureza senão no Eu, questão que é também considerada por Kant nesta segunda Antinomia31. A teoria que historicamente defendia aqui a tese, a monadologia de Leibniz, pensava que esses elementos simples constitutivos (também da natureza) não eram, justamente por sua mesma simplicidade, res extensa mas antes res cogitans. Não obstante, no texto dos Paralogismos não se parte do objeto e sua divisibilidade, mas sim diretamente do sujeito, do “Eu penso”, da autoconsciência.

No Esquema dos Princípios coloquei o belo ao final desta segunda coluna. Com efeito, a satisfação própria do belo, diz Kant, vai unida à qualidade, e concretamente ao desinteresse32. O sentir primário faz relação também à realidade do sujeito e a sua limitação, por isso “dói”, se sente, se é passivo. Daí nasce o interesse teórico de objetivar a outra realidade a fim de poder converter em positiva tal dependência. Pois bem, o âmbito estético em geral, e sobretudo do belo em particular, surge quando,

28 Por essa apelação ao espaço e ao tempo que se dá constantemente na discussão desta segunda Antinomia, também conecto-a com a primeira coluna do Esquema dos Princípios que pus ao início (ponto 3). 29 KrV A 526-527, B 554-555. 30 Não se trata de negar as teses, mas sim de não as levar em conta quando ocupamo-nos do conhecimento teórico ou objetivo do mundo e da simples especulação (KrV A 472, B 500 nota). 31 KrV A 463, B 491; A 466, B 494. 32 KU §§ 1-5, 23.

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colocando entre parênteses esse interesse teórico, técnico, pragmático (de dominação) e inclusive prático pela outra realidade, a deixamos ser desde si mesma, não a colocamos na trama do mundo, na universalidade dos conceitos, e abrimos um âmbito no qual se manifesta verdadeiramente sua individualidade. Nesse espelho e no sentimento que nos produz, reconhecemos nossa realidade concreta, a concreção que somos de liberdade e natureza, de originaridade e limitação ou finitude, nosso ser no mundo. Diante dessa consideração poética, a realitas das coisas do mundo se subjetiviza e começamos a con-viver, a habitar-com, a co(n)-sentir. 4.5 ANALOGIAS DA EXPERIÊNCIA

Com os dois momentos anteriores, os Axiomas e as Antecipações, temos já os fenômenos configurados em sua intuição, pois elaboramos, mediante regras de síntese, tanto sua materialidade como sua forma espacio-temporal. Agora trata-se de fixar e objetivar as relações dos objetos entre si, de uns com os outros, para uni-los e sintetizá-los no que poderíamos chamar a trama do mundo e que Kant denomina a natura formaliter spectata33. Se se desse uma total desconexão dos fenômenos entre si, estaríamos no caos e não poderia haver conhecimento objetivo. Não saberíamos então a que nos ater nem o que fazer ou de que modo manejar a outra realidade para controlar na medida do possível nossa dependência com respeito a ela e levar a cabo o projeto de liberdade.

Ora, essas relações entre os objetos não podem ser estabelecidas arbitrariamente, como se fossem fantasias, pois se trata da outra realidade que eu não protagonizo, senão segundo regras que determinem o espaço e o tempo dos objetos. Aqui tanto o espaço como o tempo não são já as meras formas a priori da sensibilidade, senão os elaborados e delimitados nos dois anteriores momentos de quantidade e de qualidade, ou seja, o espaço e o tempo concretos e finitos, mas também a realidade limitada de cada um dos fenômenos, e são esses os que têm de ser postos em relação entre si a fim de podermos nos orientar no mundo objetivo. Temos, pois, que colocar os fenômenos uns em relação com os outros, sua distância e proximidade, se são anteriores no tempo ou posteriores ou simultâneos. Com efeito, o que acontece e o que Kant repete em cada uma das analogias é que essa posição de cada um dos objetos não pode se levar a cabo colocando-os com respeito ao espaço e ao tempo absolutos, pois estes não são intuídos: toda intuição é intuição do finito. Não podemos perceber

33 KrV B 165, 446 n.

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nem o espaço-tempo absolutos enquanto formas a priori da sensibilidade, tampouco se os concebemos no modo como o faz Newton, como duas realidades que constituem, junto com a massa, os parâmetros absolutos que tornam possível todas as transformações das equações da física; justamente o fato de que o espaço e o tempo absolutos não são magnitudes físicas comprováveis foi o que conduziu à teoria da relatividade de Einstein. Consequentemente, para poder colocar os objetos no tempo e no espaço, não podemos apelar ao tempo nem ao espaço mesmos, senão que serão os objetos (já espacio-temporais) os que determinam, relativamente entre si, o posto que ocupam no espacio-temporal. A determinação desse lugar relativo de cada um com respeito aos demais é a objetivação de suas relações mútuas, e estas têm de ser buscadas ou estabelecidas entre os objetos mesmos mediante conceitos ou regras, mediante esquemas e categorias necessárias a nossa compreensão e a nosso interesse teórico, a saber, as categorias de relação, seus esquemas e princípios, que são as Analogias da experiência. Graças a essas regras de síntese, e às respostas positivas da realidade do mundo, estabelecemos, diz Kant, a ordem objetiva do tempo34 segundo seus três modos ou esquemas: permanência, sucessão e simultaneidade35. Mas também se determina, como já se viu, a ordem objetiva no espaço. Vejamos isso. 4.5.1 A PRIMEIRA ANALOGIA

Se refere à substância, que é o que permanece, e aos acidentes, os quais mudam. O objeto seria o que permanece ainda que se modificando (verändert), enquanto que o que muda (wechselt), sucedendo-se umas às outras, são suas determinações ou modos de existência. A argumentação kantiana vai da mudança dos fenômenos no tempo à necessária permanência de algo. Primeiro, porque só sobre o fundo de algo que permanece é possível perceber a mudança; a consciência requer contraposição, eu conheço isto como mesa porque a contraponho à cadeira, à lâmpada, etc. Segundo, porque se não houvesse nenhuma permanência e em um momento tudo mudasse de modo que o mundo se fundisse no nada e voltasse ao ser, se romperia a unidade do tempo e da experiência por falta de uma objetivação da necessária conexão sintética nas relações entre os fenômenos, já que um tempo vazio não pode ser

34 KrV A 145, B 184-185. 35 KrV A 144, B 183-184; A 177, B 219.

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objeto da percepção36, de modo que “é o permanente o que torna possível a representação da passagem de um estado a outro”37. E terceiro, se não houvesse mudança tampouco haveria conhecimento do permanente nem portanto consciência, e tampouco a liberdade poderia transformar o mundo segundo seus fins, e consequentemente não haveria subjetividade alguma.

Frente à crítica humeana à ideia de substância, Kant contesta que “a representação de algo permanente na existência não é o mesmo que a representação permanente, pois esta pode ser transitória e mudável, como todas nossas representações, incluída a da matéria, e referir-se no entanto a algo permanente que, portanto, tem de ser uma coisa exterior [extensa] e distinta de todas minhas representações”38. A categoria de substância não se aplica às representações do sentido interno, senão aos objetos externos; a permanência nos conduz a algo espacial39 e nisso se baseará a “Refutação do Idealismo”40. Este espacial é o propriamente material, pura exterioridade, partes extra partes, de modo que irremediavelmente se limitam umas às outras até o infinito, introduzindo assim uma possibilidade especificamente sensível de distinção e ordenação, e de que exista outra realidade “fora” de mim, o que não caberia na mera temporalidade.

Ora, nada no fenômeno é absoluto, e não há um fenômeno que permaneça absolutamente. Também em Aristóteles se dá uma mudança substancial. Havíamos visto nos Axiomas da intuição e nas Antecipações da percepção que todo fenômeno tem um quantum limitado de espacio-tempo e de realitas. Esse quantum de cada um dos fenômenos é o que temos de determinar e situar, e temos de fazer colocando em relação uns objetos com outros. Aqui concretamente pode-se dizer que toda substância fenomênica o é relativa ou comparativamente; ainda que tudo muda, alguns fenômenos o fazem mais lentamente que outros: “aquilo que chamamos substância no fenômeno tem outra constituição que o que se pensaria de uma coisa em si mesma mediante um conceito puro do entendimento. Aquela não é um sujeito absoluto, senão uma imagem permanente da sensibilidade e não outra coisa que intuição, na qual não se

36 De fato, desapareceria também o eu empírico e com ele a subjetividade. Mas nem sequer um hipotético espectador puro, ideal (se isso pudesse se dar), conseguiria captar a unidade da experiência, pois, como se disse antes, as relações dos objetos têm de se estabelecer a partir deles mesmos. 37 KrV A 188, B 231. 38 KrV B XLI nota. 39 Cfe. KrV B 291; A 381. 40 KrV B XL-XLI nota e 275 ss.

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encontra nada incondicionado”41. Isto é assim porque a matéria, enquanto pura exterioridade, carece de partes simples ou interiores que pudessem permanecer sempre e invariavelmente; portanto, “as determinações internas de uma substância phaenomenon no espaço não são mais que relações, e toda ela não é senão um conjunto de meras relações”, afirma Kant polemizando com Leibniz.42 É a síntese da imaginação a que o mantém como permanente na consciência, e graças a isso o objeto e sua existência adquire uma magnitude (limitada, pois introduzimos aqui a delimitação dessa síntese imaginativa) na série temporal da trama do mundo que se denomina “duração”43.

Mas nem por isso temos de pensar que a substância fenomênica é uma mera ilusão (Schein). É fenômeno (Erscheinung), pois a outra realidade responde, ainda que não seja senão em certa medida, a esse conceito. Nenhuma realidade sensível se adequa perfeitamente à exigência incondicionada e universal da regra enquanto regra. Portanto, em definitivo, a substância, assim como as outras categorias, e mais estes princípios regulativos que os constitutivos (os Axiomas e as Antecipações), é uma idealidade, uma estratégia subjetiva para a configuração da objetividade, do conhecimento desde o ponto de vista heterogêneo, uma exigência transcendental de compreensão à qual a outra realidade responde em maior ou menor medida. Os dois últimos Princípios (Analogias e Postulados) Kant os denomina regulativos em contraposição com os dois primeiros, mas são constitutivos da objetividade comparados com as Ideias da razão, cujo uso teórico correto é meramente regulativo, como adverte-nos o “Apêndice à Dialética transcendental”. Em realidade, todas as formas a priori que aqui estamos

41 KrV A 525-526, B 553-554. 42 KrV A 265, B 321. Cfe. também KrV A 274-278, B 330-334; A 283-286, B 339-342; A 413, B 440; Refl. 3921 (AA XVII, 345-6) e 5982 (AA XVIII, 415). 43 KrV A 183, B 226. Este modo de ver é levado às suas últimas consequências por Fichte na parte teórica da Doutrina da Ciência: “A totalidade [do teórico, do fenomênico] consiste meramente na relação completa e não há em absoluto nada em si fixo que a determine. A totalidade consiste na completude de uma relação e não em uma realidade. (Os membros da relação considerados individualmente são os acidentes, sua totalidade é substância, como se disse anteriormente. [...] Os acidentes, unidos sinteticamente, dão a substância [...] Não há que pensar em um substrato permanente, em um certo suporte dos acidentes; cada um dos acidentes é suporte de si mesmo e do acidente contrário) [...]. O Eu que põe [em sua ação de pôr], por meio da mais maravilhosa de suas faculdades [a imaginação transcendental] [...] retém esse acidente, que vai desaparecendo, até que o comparou com aquele que o desloca” (Grundlage der WL, FW t.I, pp. 203-204 = GA t. I, 2, p. 353-354).

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estudando são estratégias mais ou menos básicas ou primárias da subjetividade para “soletrar a experiência”.

Esse é o método da reflexão transcendental: “tudo aquilo sem o qual seria impossível a experiência dos objetos, é necessário em relação aos objetos da experiência44”. E essa idealidade transcendental não é ilusão porque a ela responde uma realidade empírica, uma resposta compreensível precisamente desde essa idealidade (circularidade da qual já falei). Por isso, a substância fenomênica não é mera idealidade, senão que exige uma realitas própria, justo a que vimos sob as categorias da qualidade. Ali, nas Antecipações da percepção, se exigia a existência da outra realidade, uma existência limitada, mas nunca nula (ou vazia total), pois então desapareceria o mundo, a finitude da subjetividade e ela mesma. Isso é em última instância para onde aponta a exigência de permanência substancial que aqui se está pensando: a realitas da outra realidade ou mundo deve permanecer e dar-se sempre, sem corte, em meio de todas as mudanças. E ao ser outra realidade diferente da minha, isso unicamente pode ser intuído de maneira sensível, enquanto que ela ocupa outro lugar no espaço e é algo “fora” de mim, como já vimos anteriormente ao unir permanência com espacialidade.

Esse “sempre” do tempo, matéria e espaço (os três absolutos da mecânica de Newton), só é percebido se algo muda, e isto por sua vez se algo permanece. Em geral, poderia não se dar nenhum deles e que nada fosse dado (aqui não se está raciocinando desde o dogmatismo, desde um hipotético ponto de vista divino), mas nesse caso a subjetividade tampouco se daria; portanto, lhe é transcendentalmente necessário, e como a subjetividade existe, podemos afirmar com fundamento que algo sempre é dado, que o mundo é sempre real45. Esse substrato último de todas as mudanças, de todos os objetos e/ou fenômenos, esse hypokéimenon ou matéria prima aristotélica, essa “matéria transcendental” como o chama

44 KrV A 213, B 259-260. Cfe. também A 216-217, B 263-264, A 346-347, B 405. 45 Esta ideia, central na filosofia transcendental e que não temos de esquecer nunca no momento de valorizar seu idealismo, aparece pela primeira vez no escrito pré-crítico O único fundamento possível de demonstração da existência de Deus (1763): “Seção primeira”, “Segunda consideração. Sobre a possibilidade interna enquanto pressupõe uma existência” (AA II, 77ss). A possibilidade formal do pensamento se baseia no princípio da não contradição, mas sua possibilidade material, em que algo real lhe seja dado para ser pensado. “Sem matéria (Stoff) não se poderia pensar absolutamente nada” desde o ponto de vista objetivo (KrV A 232, B 284; cf. também A 452, B 480 nota).

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Kant46, já não é o conhecido fenomenicamente. É o pressuposto ou o que no fundo a subjetividade exige e expressa na categoria de “substância”.

Esse em si (matéria ou, como se prefere entender agora, energia) nem se cria ex nihilo nem se destrói, nem aumenta nem diminui, só se transforma, recorda Kant47. Ou seja, para a subjetividade é algo originário e inteiramente dado, que ela não pode criar nem destruir, unicamente transformar mais ou menos em ordem a seu projeto de liberdade48; do mesmo modo que, por sua originariedade, lhe é transcendentalmente necessário que a mudança seja possível, a fim de ter consciência e realizar esse mesmo projeto organizando a outra realidade segundo suas necessidades. Entendida em um sentido relacional ou relativo e como substrato de algumas mudanças ou acidentes, os objetos singulares são substância fenomênicas, não isoladas nem simples. Mas visto que esses mesmos objetos também aparecem e desaparecem, toda a experiência em seu conjunto poderia ser tomada como as mudanças ou manifestações de uma única substância49. Ela é o substrato material último de todos os fenômenos, e representa espacialmente o tempo em geral50, o “sempre material” sobre o fundo do qual será possível tanto o passado, como o presente e o futuro objetivos (temporalidades que ainda não se distinguiram), o que continuamente tem de se dar “preenchendo” essas formas a priori da sensibilidade com as quais aceitamos nossa indelével finitude. Se ele faltasse, se se quebrasse a identidade desse substrato, se romperia a unidade do tempo e da experiência, pois um tempo e um espaço vazio seriam imperceptíveis51. Podemos compreender esta afirmação kantiana como que nisso está em jogo a própria identidade do sujeito, que necessita construir um mundo para saber quem é e a quem ater-se. Isto indica-nos até que ponto essa permanência ou substancialidade significa uma exigência transcendental (uma categoria), e

46 KrV A 143, B 182. 47 KrV B 224-225. Princípios metafísicos da ciência da natureza III (AA IV, 541). É interessante ler este pequeno livro de Kant e compará-lo com a Analítica dos Princípios da KrV. 48 KrV A 185-186, B 228-229; A 206, B 251. Pelo sentir, a limitação e a frustração, compreendemos não só que esse estar aí da materialidade do mundo nós não o colocamos, senão que tampouco se dá sem mais para nós. Essa inadequação sua a respeito das exigências ou fins da subjetividade se compreende também esteticamente desde o feio, do sinistro e do sublime em geral. 49 Retomamos aqui o pensamento de Espinosa, mas limitando seu alcance ontológico. Não esqueçamos que estamos falando desde o ponto de vista teórico, que não é o único nem o supremo. 50 KrV B 225; A 183, B 226. 51 KrV A 186, B 229.

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ao mesmo tempo que estamos em uma filosofia que nem desvincula ao sujeito do mundo, nem o pensa como uma mera coisa ou produto do mesmo, senão que ensaia outro caminho segundo seu específico modo de ser52. 4.5.2 A SEGUNDA ANALOGIA

Se refere à lei da causalidade. Na primeira vemos que era transcendentalmente necessário que haja algo que permaneça e algo que mude. Trata-se agora de objetivar essa mudança, que não seja captado arbitrariamente, senão conforme a uma regra necessária. Este terá de ser distinguido da mera sucessão subjetivo-empírico de minhas representações no sentido interno. Mas visto que o tempo absoluto não é percebido como tal, de novo terão que ser os mesmos fenômenos espacio-temporais os que se determinem a si mesmos seu lugar na ordem temporal do mundo. Seguindo essa categoria ou necessidade transcendental de compreensão buscamos quais fenômenos se mostram como causas, isto é, como condições materiais objetivas de possibilidade de outros, que são seus efeitos, e que, portanto, estes não podem preceder aqueles. Só na medida em que obtenho isso, consigo uma ordenação objetivada do tempo e uma compreensão objetiva da trama do mundo. Como é uma relação objetiva, isso quer dizer que um fenômeno determina ao outro em sua existência, é sua razão objetiva suficiente. Mas não enquanto sua substância última, em sua mesma materialidade, pois então se daria uma criação desde o nada e se romperia a unidade da experiência, senão unicamente enquanto fenômeno concreto, em sua concreção. A causalidade aqui é uma lei meramente fenomênica.

Hume pensava que não se podia defender racionalmente a causalidade visto que não temos uma impressão dessa necessidade. Só temos o fato de que um fenômeno segue a outro, mas não uma impressão de que esse seguir-se seja necessário. Por exemplo, vemos que todos os dias sai o Sol, mas não temos a segurança de que fará o mesmo amanhã, só a crença e o costume de que assim foi. Para Hume o critério último da realidade é a impressão, e por isso também criticava a ideia de substância, porque carecemos de uma impressão que dure sempre, senão que todas elas são sucessivas e nenhuma permanece. Kant se coloca em outro nível, e pensa que as categorias não se aplicam às impressões, senão ao espaço e ao tempo, e são necessidades transcendentais de compreensão. Assim, se

52 Cfe. KrV B XL-XLI nota, 274 ss, 293-294; A 367 ss.

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amanhã não sair o Sol, então temos a necessidade de buscar a causa desse novo fenômeno para poder determiná-lo objetivamente, e enquanto não a encontramos, haveremos de confessar nossa ignorância. E o mesmo ocorre com a categoria de substância, que expressa a necessidade de que algo permaneça e de encontra-lo e identifica-lo. Essas categorias de relação e suas Analogias da experiência são regras que nos colocam na busca de outro elemento, não se nos dão na intuição, ao contrário do que ocorre com as categorias de quantidade e de qualidade. Dado um fenômeno, a categoria de causa expressa a necessidade de começar a busca de encontrar sua causa em analogia a outros fenômenos similares, e pode ocorrer que não a encontremos, ou que tardemos muito tempo em encontrá-la.

Sem um princípio de ordenação teríamos um caos de representações. Portanto, a causalidade é uma exigência que não vem nem depende de experiências particulares, senão que torna possível a experiência objetiva em geral (idealismo transcendental). Claro que, se a outra realidade não respondesse positivamente a essa exigência subjetiva e fosse totalmente caótica, então essa categoria não seria possível por falta de realismo empírico53. Depois, com o uso e a reflexão sobre a experiência, podemos ir tomando consciência reflexiva e claridade lógica destas regras e formas a priori que utilizamos e que parece que extraímos da experiência, mas é porque previamente as colocamos nela como esquemas e guias da ação de conhecer e as elaboramos segundo elas54. Além disso, com a categoria da causalidade só temos um fio condutor para a busca, uma exigência cuja idealidade não nos proporciona sem mais a existência da causa; esta tem que nos ser dada sempre na experiência55. Nunca terei a

53 Algo parecido se diz em KrV A 100-101. 54 KrV A 196, B 241. 55 Heidegger comenta em sua lições sobre La pergunta por la cosa. La doctrina kantiana de los Principios transcendentais (Alfa, Buenos Aires, 1975, p. 197; original em Niemeyer, 1962), que a analogia expressa uma relação de “tal como... assim”. Nas analogias matemáticas: tal como A a B, assim C a D, onde D é produzido por essa mesma construção matemática. Mas isso não é possível com a existência, com as analogias em filosofia. Pela lei da causalidade não se torna sem mais presente a existência do objeto causa; aí “só obtemos a indicação de uma relação de algo dado com algo não dado, isto é, a indicação de como temos que buscar a partir do dado o não dado, e como que o encontraremos quando se mostre” (p. 198). O dado é o fenômeno a explicar, e se é similar a outros buscaremos assim mesmo uma causa parecida; além disso esta é encontrada em relação a algo objetivamente presente: as analogias o são da experiência. Mas este Princípio não nos proporciona uma intuição do objeto causa, senão uma interpretação da mesma para que quando a encontremos possamos reconhecê-la; por isso não é possível chegar à existência de Deus desde a causalidade objetiva (argumento

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total segurança de encontra-la, como tampouco de que não possam ocorrer coisas imprevistas, por exemplo, que amanhã não saia o sol (argumento humeano); mas sim posso dizer que unicamente se encontro a causa desse novo fenômeno o conhecerei objetivamente, porque isso é uma exigência transcendental de dito conhecimento, que é do que estamos falando. Aqui não fazemos ciência, mas sim filosofia.

Em primeiro lugar, a causalidade é uma lei que nos dirige para trás. Frente a um fenômeno dado perguntamo-nos por sua causa: “Tudo o que sucede (ou começa a ser) pressupõe algo ao qual continua conforme a uma regra”56. Desse modo, porque todo momento presente remete, como a sua condição objetiva, a um momento anterior que já não pode ser percebido, compreendemos o presente e o passado objetivos contrapondo-os, e desde o presente ordenamos o passado transcorrido57. Ou dito de maneira prático-pragmaticamente: o tempo passado é o que já não está em nosso poder e, no entanto, determina (heteronomamente) o presente, de modo que nossa ação tem de contar com isso como algo dado e inalterável58. Nesse “já não” sentimos e percebemos nossa finitude e o ponto empírico do qual parte nossa ação. Se na substância elaboramos uma imagem do tempo como o permanente59, aqui o tempo objetivo é compreendido como sucessão de contínuos agoras que passam de maneira irrecuperável.

Mas não acaba aqui o interesse teórico, como tampouco o prático. Também se necessita prever o que ocorrerá, predizer, manipular e inclusive produzir objetos. Daí nasce a observação metódica, a ciência, o experimento e a técnica. Aqui se usa o princípio de causalidade também para adiante, para o que vai se suceder ou a sair. Dessa maneira compreendemos o futuro objetivo. Ambas direções, do presente para o passado e para o futuro, são contrapostas e complementares, e os três momentos da temporalidade (presente, passado e futuro) se ordenam e

cosmológico; KrV A 603, B 631 ss.). Nem sequer encontramos nele uma evidência intuitiva, como nos Axiomas e nas Antecipações, pois aí se formulavam exigências sem as quais a subjetividade não se daria em absoluto, enquanto que aqui o encontrar a causa é uma aventura; ainda que se não conhecêssemos e manejássemos nenhuma tampouco seria possível a subjetividade, pois esta não conseguiria realizar nenhum propósito. 56 KrV A 189; cfe. também A 200-201, B 245-246. 57 KrV A 193-194, B 239. 58 Cfe. KpV, Parte primeira, livro 1°, cap. II, a segunda metade de “Explicação crítica à Analítica da razão pura prática” (A 169 ss; AA V, 94ss). Não só não está em nosso poder, senão que normalmente se pensa que isso representa um limite inclusive para a potência de Deus, pois segundo a maioria das concepções teístas nem sequer Ele poderia fazer desaparecer o acontecido ou mudar o passado. 59 KrV A 41, B 58; B 224-225; A 182-183, B 226.

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compreendem em sua contraposição conforme a leis ou Analogias da experiência.

Kant mesmo coloca o problema60 de que a maior parte dos efeitos naturais não são posteriores no tempo a suas causas, senão simultâneos, e todos o são ao menos no momento de surgir. Apesar disso a lei da causalidade continua sendo válida para o estabelecimento de uma ordem objetiva do tempo, por que o efeito não pode ser anterior à causa. Para essa ordenação do tempo basta também a interdependência: se varia “x” varia “y”, e inversamente, e isso é o que pede a compreensão objetiva nesta segunda Analogia. Por outro lado, as ciências foram se abrindo à predição estatística e inclusive à indeterminação. Assim na mecânica quântica se afirma que das partículas subatômicas não se pode determinar com exatidão e ao mesmo tempo sua posição (espaço) e seu momento cinético (= massa + velocidade). Ora, o esforço teórico se dirige não a aumentar essa indeterminação, mas antes a ir vencendo-a, ou ao menos condicionando-a a um ábaco estatístico. Esses descobrimentos da ciência atual não vão contra a esta segunda Analogia da experiência, senão do determinismo total da física clássica61. Mas frente a essa ideia se alça também a própria KrV, pois essa pretensão de totalidade na série dos fenômenos, que são sempre condicionados, nos levaria à dialética da razão, e concretamente ao defendido pela antítese da terceira Antinomia. Na medida em que algo nos fica indeterminado, temos de confessar que o ignoramos, e a categoria de causa se mostra então como tarefa e princípio de busca de uma ordem objetiva dos fenômenos.

Portanto, Kant não sustenta um determinismo total, que é o que afirma a antítese da terceira antinomia. A categoria de causa coloca-nos uma tarefa que não tem final no contínuo espaço-temporal. Portanto, tampouco nos conduz a algo incondicionado, porque sempre necessitamos captar a causa de qualquer fenômeno, e por isso tampouco é objetiva a pretensão da tese que afirma a existência da liberdade. O conhecimento fenomênico está sempre em processo, in fieri, pois toda experiência empírica real é limitada, parcial, e não podemos ter uma experiência da totalidade nem de algo incondicionado, que são as exigências da razão.

“Esta causalidade nos conduz ao conceito de ação, esta ao conceito de força, e através disso ao conceito de substância. [...] Onde há ação, e portanto atividade e força, ali há também substância, e só nela tem

60 KrV A 202-203, B 247-248. 61 Cfe. R. Torreti, Kant, Charcas, Buenos Aires, 1980, pp. 455 e 460-462.

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de se buscar a sede da frutífera fonte dos fenômenos”62. Aqui unimos a categoria de causalidade com a de substância e, em última instância, com o substrato da realidade material do fenômeno (categoria de realidade). Este limita-nos, a substância subjetiva é o real (das Reale) que eu não protagonizo. Portanto, visto que me penso como ação livre que quer e se esforça por expressar-se, também o outro real que me coloca limites tem de aparecer para mim como ação e força contrária. Seguindo nisso a Leibniz, Kant faz uma interpretação dinâmica da matéria, cuja realitas, como vimos, se encontra constituída por forças, e concretamente aqui por forças originárias forças motrizes (bewegende Kräfte) que são compreendidas ao mesmo tempo como substâncias e causas fenomênicas. Na medida em que considero aos objetos como puros meios para meus fins, interesso-me apenas pelo que têm de forças cegas e mecânicas, que atuam por inércia e sem vida própria, objetiváveis e heteronomamente modificadas ou modificáveis por uma força ou causa exterior a elas segundo a lei da causalidade63. À base do conhecimento teórico está o interesse prático, não o mero gozo de contemplar estaticamente um mundo, senão a vontade de modificá-lo dinamicamente frente à limitação, e, portanto, interessada não só de que haja pluralidade de fenômenos e em que seja possível a mudança, senão também em descobrir essas relações dinâmicas manipuláveis.

Pelo contrário, na visão teleológica da natureza, a estudada pela Crítica do Juízo (KU), consideramos os objetos “como se” partissem desde si, desde sua própria força configuradora (bildende Natur). Isso acontece muito mais no âmbito da liberdade ou consciência moral, pela qual o sujeito se atribui a capacidade de iniciar desde si, espontaneamente, uma série de fenômenos ou de modificações do mundo, de maneira que se torna responsável por sua ação fenomênica e se imputa a si mesmo a origem de algumas mudanças nos objetos. Esse ato de liberdade do sujeito racional não viria determinado por um momento anterior que não estivesse já em seu poder, senão que funde suas raízes em uma ação sempre originária. Este interesse prático e essa compreensão racional que, a partir de si, o sujeito tem do incondicionado entram em colisão com a regra de compreensão objetiva (ou critério do objetivo frente ao fantasiado) que estamos vendo na segunda das Analogias da experiência e com a exigência de unidade da experiência, de modo que, se não se

62 KrV A 204, B 249-250. 63 Princípios metafísicos da ciência da natureza III; AA IV 543-544; trad. 134-136.

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estabelecem limites a esses dois pontos de vista, se chegaria ao conflito dialético estudado na terceira das Antinomias64.

Ainda descoberto esse conflito dialético da razão consigo mesma, que como tal é meramente teórico e ideal, fica sempre o conflito real entre o que somos de natureza e o que somos ou devem ser de liberdade, entre nossa heteronomia ou finitude e nossa originariedade autônoma, tanto no terreno do pragmático-técnico (entre o que desejo ou deve e o que posso), como sobretudo no prático ou moral (entre o que devo e o que desejo). Isto é o que compreendemos esteticamente no sentimento do sublime dinâmico. A força da natureza e, sobretudo, de alguns de seus fenômenos (vulcões, furacões maciços, cataratas, etc.), ao superar em muito nossas forças físicas e nossa técnica, nos enchem de terror pelo perigo em que nos colocam. Mas se estamos a salvo e não está implicado esse interesse pela vida (própria e alheia) podemos contemplá-lo desde o desinteressado âmbito do estético. Então, em contraste com nossa pequenez empírica, descobrimos a superioridade transcendental de nosso modo de ser com respeito a essa mesma natureza, a independência de nossa ação originária ou liberdade moral65. 4.5.3 A TERCEIRA ANALOGIA

A terceira das categorias de relação, assim como a terceira Analogia da experiência, a da comunidade ou ação recíproca ou interação, guarda certamente a terceira lei da mecânica de Newton sobre a ação e reação ou ações recíprocas dos corpos entre si66. Mas aqui refletimos sobre o princípio transcendental na ordenação objetiva dos fenômenos que nessa lei newtoniana adquire, poder-se-ia dizer, uma concreção possível. Na primeira Analogia vimos que tem que haver permanência e mudança. Na segunda, que a mudança objetiva se faz segundo uma lei: a causalidade ou antes alguma outra conexão objetivada, por exemplo, a probabilidade e a função. Na terceira temos de pensar ao mesmo tempo esses dois momentos e estabelecer a permanência ou coexistência de uma pluralidade de substâncias fenomênicas, pluralidade que se estabeleceu nos Princípios

64 KrV A 444-451, B 472-479; A 532-558, B 560-586; KpV, Parte Primeira, livro 1°, cap. II, a segunda metade da “Explicação crítica à Analítica da razão pura prática” (A 169 ss; AA V, 94ss). 65 KU § 28. Além do sublime dinâmico natural, eu acrescentaria aqui também a tragédia e a descrição do trágico por qualquer uma das artes, onde o homem luta por sua liberdade e sucumbe diante de poderes superiores aos dele. 66 Cfe. Princípios metafísicos da ciência da natureza III; AA IV, 544ss.

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matemáticos (os Axiomas e as Antecipações) e da qual agora buscamos uma síntese objetiva. Tem de se objetivar essa permanência segundo a lei de relação que se estabeleceu na segunda Analogia: a da causalidade, enquanto uma substância atua sobre a outra e inversamente, de modo que então nenhuma precede nem continua a outra. Visto que permanecem, os objetos simultâneos não se causam no que se refere à sua substância fenomênica, senão só em seus acidentes ou determinações.

O esquema desta categoria é o da simultaneidade67, e aqui de novo não basta a esquematização do tempo, senão que se faz necessária também a do espaço, segundo vimos68. Enquanto o espaço é a forma propriamente dita da exterioridade, de parte extra partes (sendo nisso o mais diferente da intimidade ou unidade do sujeito), o espaço é o que permite a existência simultânea de uma pluralidade sensível de objetos ou substâncias fenomênicas: “o espaço é a representação de uma mera possibilidade de coexistência”69. Por isso se está incluído no enunciado mesmo desta Analogia: “Todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como simultâneas no espaço, estão em uma completa relação recíproca”70.

Visto que não se percebem nem o espaço nem o tempo absoluto, são os mesmos fenômenos espacio-temporais os que, atuando uns sobre os outros, se determinam uns a outros a ordem objetiva que ocupam no espaço e no tempo, e aqui concretamente sua coexistência. Se as substâncias como fenômenos estivessem isoladas e sem influência recíproca, tal e como pensava Leibniz, então seria impossível objetivar e perceber sua simultaneidade. Além de sua existência, deve haver uma lei que os determine no tempo e no espaço recíprocos e relativos, ou seja, devem estar mediadas ou diretamente em comércio mútuo, em conexão objetivada e dinâmica. Deste modo os fenômenos estão ao mesmo tempo fora uns dos outros e, no entanto, em relação ou síntese, formando um compositum reale; isto é, se distinguem e se relacionam (objetivamente), os dois momentos que constituem o conhecimento e sua específica síntese. Se nos dois Princípios anteriores elaborávamos a síntese de cada fenômeno em sua forma e sua matéria, nas Analogias da experiência são as regras da síntese dos fenômenos entre si que se objetivam, a fim de configurar uma só experiência.

67 KrV A 144, B 183-184. 68 KrV A 31, B 47; A 183, B 226; A 188-189, B 232. 69 KrV A 374. 70 KrV B 256. Cfe. também A 213-214, B 260; B 292-293.

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Esta mútua determinação espacio-temporal de todos os objetos entre si Kant a vê factível graças à instantaneidade da luz71. Ela, como também a gravitação universal de Newton, possibilitaria uma ação imediata à distância. Ora, isso a teoria da relatividade colocou em dúvida: todo o físico é limitado, também a velocidade da luz, e nenhuma ação pode ir mais rápido que ela. No entanto, isto não vai contra o princípio transcendental elaborado aqui, mas apenas contra a hipótese física que Kant aceita aqui. Justamente porque não se dá essa ação causal de velocidade infinita, quanto mais afastados estejam dois eventos, mais difícil resultará estabelecer sua simultaneidade ou sucessão temporal, diz-nos a física atual. Logo continua sendo válido que apenas na medida em que se objetive a interação entre os distintos fenômenos, se pode determinar objetivamente o lugar e o tempo deles e estabelecer assim a unidade da experiência. Isso se poderia obter graças novamente a um absoluto unificador de todos os sistemas segundo a teoria da relatividade: a constante da velocidade da luz.

Mas ainda falta-nos um terceiro elemento que foi aparecendo ao longo das Analogias. Kant o denomina mudança ou sucessão objetiva de representações no sentido interno ou eu empírico. Essa mudança se contrapõe tanto ao permanente (espacial) como à mudança objetiva dos objetos ou fenômenos externos, e graças a essa contraposição, eles são compreendidos como tais e objetivados. O exemplo que se utiliza na KrV para mostrar isso é o da simultaneidade de uma casa que, no entanto, apenas pode ser apreendida sucessivamente72. Ao visitar uma casa ou um palácio, vamos passando de uma habitação a outra, vamos contemplando um objeto após outro, mas compreendemos todas suas partes e todos seus objetos existem simultaneamente. Graças a essa simultaneidade vamos situando-nos no espaço-tempo objético, e vamos situando-nos a nós mesmos nesse itinerário. A sucessão imaginativa é reunificada no conceito de casa ou de palácio, e a subjetiva apreensão sucessiva das partes ou habitações é contraposta à determinação de sua simultaneidade objetiva, e desse modo se distingue o sentido interno do externo. A sucessão empírica de representações tem de ser conservada na consciência, se bem que contraposta àquela, à simultaneidade como temporalidade objetiva. Graças a esta contraposição, tanto a simultaneidade como a mudança objetiva (a mudança dos objetos mesmos segundo a lei da causalidade ou funcionalidade) são compreendidos como tais, como objetivos e

71 KrV A 213, B 260. 72 KrV A 190, B 235 ss.

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verdadeiramente “exteriores”. Afirma que “isso é o objetivo” implica necessariamente saber o que não o é, o que se deixa fora por ser o individual subjetivo. Além disso, graças a essa ação de contrapô-las situamo-nos no espaço-tempo objetivo, capto o lugar de meu eu empírico na trama do mundo: porque tenho uma visão de conjunto da casa, ou de uma cidade, etc., sei onde me encontro e desde onde a contemplo, sei situar meu ver, minha perspectiva empírica. Com isso surge a consciência empírica ou sentido interno ou a ideia de uma mera representação como diferente dos objetos do mundo ou sentido externo. Não teríamos consciência determinada de uma sucessão subjetiva de percepções, da qual parte Hume, se só conhecêssemos esta, sem poder sair dela e contrapô-la objetivamente a uma permanência e sucessão dos objetos do mundo. O empirismo esquece os pressupostos de seu ponto de vista. O subjetivismo kantiano não é empírico, mas sim transcendental.

Mas o sentido interno que aqui aparece é um elemento do conhecimento objetivo, que deve se distinguir da fantasia ou ilusões (por exemplo, ilusões óticas ou acústicas) de cada um. Eu situo minhas representações do sentido interno no espaço-tempo objetivo e as ligo com ele como dependentes dos objetos; daí vem a ideia da afecção, pois toda dependência objetiva nós a compreendemos com a categoria de causa. Para essa diferenciação entre sentido interno e fantasia teríamos que recorrer (Kant não o faz) à ação real e à intersubjetividade: sei que minha percepção de que na mesa há um vaso é verdadeira, porque o posso colher com minha mão, e porque qualquer outra pessoa o vê também como real. Se ocorresse o contrário, teria que aceitar que é uma alucinação, se é que não perdi o sentido da realidade, o qual é possível porque a subjetividade não é algo dado, senão uma tarefa de cada uma e da comunidade. E de modo parecido teríamos que construir a compreensão de que algo foi sonhado.

Em consequência, está sendo elaborado aqui não só as diferenças e conexões dos objetos entre si mediante leis empíricas, senão também sua heterogeneidade com respeito à realidade do sujeito. Tanto nos Axiomas como nas Antecipações tinha lugar a síntese do homogêneo, da espacio-temporalidade e da realitas, enquanto que nos dois últimos Princípios (Analogias e Postulados) se sintetiza o heterogêneo73. Ora, a espacio-temporalidade que elaboramos desde o ponto de vista teórico é homogênea, niveladora, onde todos os pontos e todos os momentos valem igualmente, devido a seu caráter de contínuos. Isso nós já vimos.

73 KrV B 201-202 nota.

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Mas tampouco a realitas estudada nas Antecipações significa em geral a compreensão da heterogeneidade do objeto frente ao sujeito, sua diferença com respeito à realidade que o sujeito designa a si, seu estar em frente de (Gegen-stand, ob-jectum), senão que ainda permanecíamos no homogêneo, na confusão entre desejo-representação e realidade. O que nos faz compreender a existência separada do objeto é o estabelecimento de relações dinâmicas entre eles e também com respeito à minha situação empírica entre eles, com o que se estabelece distinções entre os relacionados (relações dinâmicas que a meu modo de ver comportaria ações reais subjetivas, movimentos corporais, intersubjetividade e frustrações).

Nesta relação diferenciadora, se designam ao sujeito e aos objetos realidades diferentes, mas ao mesmo tempo a relação se estabelece desde uma homogeneidade: ambas são fenomênicas, o sujeito objetiva aqui sua realidade empírica; para Kant, como sentido interno, eu penso que também como corpo subjetivizado, o que em nosso exemplo passeia pela casa ou pelo palácio e torna possível o conhecimento objetivo deles, pois só graças a ele entro em relação dinâmica com os objetos do mundo. Se o espaço e o tempo enquanto formas a priori da sensibilidade, podemos dizer que é a aceitação de minha finitude, de que exista um mundo fora de mim, antes e depois de mim, aqui o que se delimita é minha realidade empírica concreta e se a situa no espaço-tempo-realitas dos objetos, pondo-a em relação dinâmica com eles. Mediante as categorias de modalidade e seus Postulados do pensar empírico se volta a refletir, em um nível superior, sobre a heterogeneidade sujeito-objeto, tanto sobre sua diferença (idealidade-realidade, possibilidade-existência, subjetivo-objetivo) como sobre seu solo comum: a idealidade transcendental que elabora a ambos. Mas aí é o sujeito transcendental o que se diferencia do objeto empírico. Não se detém aí o processo, a realidade do fenomênico será compreendida mais ainda em contraposição com a idealidade subjetiva das Ideias da razão pura teórica e sua petição de incondicionado e de totalidade, que supera todo o objetivo (Dialética), e sobretudo no âmbito do prático, onde o objeto fica ontologicamente relegado a puro meio ou coisa, enquanto que a liberdade racional se põe como fim em si mesma e realidade em si.

Podemos entender agora, em minha opinião de uma maneira mais adequada ao ponto de vista transcendental, de onde parte a reflexão empírica quando nos apresenta a materialidade do fenômeno desde a sensação, concepção que se guarda na Estética transcendental e que ocasiona distorções na filosofia kantiana. É em virtude destas Analogias

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da experiência que compreendemos nossa finitude consciente ou sensibilidade como afecção e sensação. Meu eu empírico, íntimo ou interno e ao mesmo tempo corporal (estou, portanto, vendo algo mais além do texto kantiano) se encontra na relação dinâmica e heterônoma com os objetos do mundo. Essa limitação ou delimitação a ser dinâmica se objetiva segundo a lei da causalidade (segundo Analogia da experiência), de modo que o sentir originário aparece, em sua vertente corporal, como afecção (empírica) dos objetos a minha consciência enquanto identificada com um corpo, e em seu aspecto meramente psicológico (ou sentido interno) como sensação. Enquanto são fenômenos empíricos, nem a afecção nem a sensação provocadas podiam ser princípios transcendentais que serviam para a aplicação da materialidade, e da captação da outra realidade. Uma reflexão empírica parte certamente daí, pois ela surge então, nesse ponto, graças a estas ações transcendentais precedentes que ficam às suas costas e não vê, de modo que a afeção e a sensação são seus primeiros dados. Mas uma reflexão transcendental tem de se perguntar pelas condições de possibilidade desses materiais empíricos, superando os limites e a dialética na qual cai a primeira ao querer se totalizar, ao pretender fazer-se filosófica. Apenas esta reflexão transcendental consegue compreender a diferença entre as representações do sentido interno e os objetos sem ter que considerar a estes como coisas em si, e portanto, tornando possível que o sujeito possa relacionar objetivamente (mediante regras que configuram a verdade transcendental) suas representações internas com os objetos, estabelecendo assim a possibilidade de uma verdade empírica74.

Por último tem de se assinalar que esta terceira Analogia é a objetivação máxima da síntese objetiva (e conhecer é primariamente síntese), onde se conjugam todos os elementos anteriormente analisados. É uma síntese que se abre indefinidamente à totalidade dos objetos, à natureza inteira em sua unidade e coerência dinâmica, ou seja, à ação recíproca universal75. Indefinidamente, pois, pretender chegar a essa totalidade de modo determinado e desde o ponto de vista da heteronomia seria desembocar novamente nas antinomias, em uma contradição da subjetividade consigo mesma; toda a realidade apareceria como modificações de uma única substância objetiva e não haveria espaço ontológico para a liberdade. Ir avançando progressivamente nessa

74 KrV A 146, B 185; A 197, B 242 ss; A 221-222, B 269; A 237, B 296; A 492-493, B 520-521. 75 KrV A 216, B 263.

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determinação é, no entanto, o trabalho do conhecimento objetivo e científico, uma ideia regulativa que não tem de ser reificada. Não obstante e em certa medida, essa totalidade de ação recíproca parece que se objetiva (portanto, limitadamente) nos seres vivos. Ali as partes configuram o todo e inversamente, de modo que nesta categoria de comunidade poderíamos encontrar a passagem para o orgânico e o teleológico enquanto se consegue fechar uma totalidade funcional limitada. Mas isso se faz em virtude de um salto qualitativo, e o que ali aparece é um panorama diferente, estudado na segunda parte da Crítica do Juízo (KU). O que então se manifestaria é outro princípio organizador, uma força configuradora (bildende Kraft) e não meramente motriz, configuradora de uma certa totalidade sempre aberta e precária, frágil e finita, sobre o pano de fundo do inorgânico. 4.6 OS POSTULADOS DO PENSAR EMPÍRICO EM GERAL

Os três Princípios anteriores formam uma unidade, de novo uma unidade triádica, mediante a qual configuramos o objeto. Uma vez constituído, este é posto agora em relação com a faculdade de conhecer. Como disse em seu momento76 e volta a recordar-nos agora77, as categorias de modalidade propriamente não acrescentam algo particular ao objeto mesmo, senão que colocam tudo em relação com o sujeito, não já com o sujeito empírico, ele mesmo fenômeno também, como era o caso nas Analogias da experiência, senão com o sujeito cognoscente em geral, com o transcendental: assinalam a ação subjetiva que dá lugar e fundamenta nossas afirmações sobre um objeto78. É, pois, um momento posterior, de reflexão sobre os passos dados anteriormente na configuração da objetividade, sobre as ações subjetivas transcendentais que a tornam possível e consequentemente também sobre as restrições que a impõem. Com isso se continua elaborando a distinção entre o objetivo e o subjetivo, distinção que conhecerá outras etapas posteriores, por exemplo, na idealidade que se descobre na dialética da razão pura, e alcançaria seu ponto culminante na “revolução interior” moral, onde o sujeito descobre e aceita na prática, na ação, seu específico e originário modo de ser, distinto do modo de ser das coisas, e o modo de ser livre dos outros sujeitos.

76 KrV A 216, B 263. 77 KrV A 74-76, B 99-101. 78 KrV A 233-235, B 286-287. Heidegger diria que não é um predicado ôntico, mas antes ontológico.

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4.6.1 O PRIMEIRO POSTULADO

É o da possibilidade: é objetivamente possível tudo o que concorde, ao menos hipoteticamente, com as formas a priori, com as exigências transcendentais da objetividade que viemos estudando até aqui, isto é, as dos três Princípios anteriores. Não basta a não contradição lógica. Não seria possível, ou diríamos em geral que se trata de uma fantasia, se se nos propõe um objeto que, ainda que não seja contraditório, não fosse, no entanto, espacio-temporal, ou que o pensássemos como carecendo de matéria captável de alguma forma sensivelmente79, não mudasse nem permanecesse, ou não estivesse em relação objetiva com os demais objetos da experiência. Com isso não se nega aqui que não possa haver uma realidade assim, ou que em geral seja impossível, que não existam outros modos de ser diferentes ao modo de ser objetivo. Justamente a KrV se dirige contra esta afirmação e procede à limitação ontológica do objetivo, que por isso é chamado “fenômeno”, contraposto a uma realidade em si, e oferecendo desse modo a possibilidade de afirmar a liberdade.

Nem sequer podemos dizer que não possam existir outras formas de intuir ou de discorrer, isto é, outras regras de síntese, de interpretação do mundo, outros esquemas e categorias, somente que com esses outros seres, se é que existem, não poderemos entrar em comunidade, pois não compartilharíamos o mesmo mundo. A possibilidade e impossibilidade absoluta não é um conceito do entendimento, senão da razão80. Nela a subjetividade exige o incondicionado, e frente a isso o fenomênico, o que tem o modo de ser do objeto, da heteronomia, perde seu fundo. Portanto, é a razão pura, e propriamente a prática, a fonte última de possibilidade para o sujeito, segundo Kant. Ela tem a capacidade de dizer: “se deve, pode”, pois aí se expressa sua liberdade, sua superioridade de destino frente à natureza81, segundo vimos já ao falar do sublime. Mas também

79 Eu incluiria, pois, no âmbito da possibilidade também a concordância do objeto com as condições materiais da experiência, mas não ainda enquanto dada empiricamente, senão enquanto pensada, ou seja, não já como realitas fenomênica, senão apenas como exigência puramente transcendental de que haja uma materialidade. 80 KrV A 230-232, B 282-285. 81 “Ele [alguém posto na disjuntiva entre a retidão moral e a morte], portanto, julga que pode [fazer] algo justamente porque é consciente de que deve [fazê]lo, e reconhece em si a liberdade que de outra maneira, sem a lei moral, teria permanecido desconhecida para ele” (KpV Parte primeira, livro primeiro, capítulo primeiro, § 6, ao final da Observação; AA V, 30). Cfe. também o.c 143; Religião nos limites da simples razão (AA VI, 45, 47, 49 nota, 50, 62, 66-67); Gemeinspruch – trad. Teoría y práctica (AA VII, 287); Streit – trad. La contenda entre las faculdades de filosofía y teologia (AA VII, 42, 58).

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essa liberdade moral é finita frente ao mundo no qual tem de realizar seus fins, de modo que sua tarefa é uma aventura nunca inteiramente alcançável. Isto nos aproxima a uma nova dialética, desta vez da razão pura prática, estudada na KpV, à qual não entraremos aqui. 4.6.2 O SEGUNDO POSTULADO

É o da existência: só existe objetivamente o que de fato material e empiricamente concorda com as exigências transcendentais da objetividade, e não só com as condições materiais, como se limita a dizer textualmente Kant, levando pressuposto aqui que o real cumpre assim mesmo as condições do possível82. Pode resultar confusa a designação do termo “realidade” tanto à primeira categoria de qualidade como a esta segunda entre as modais, principalmente quando o critério objetivo parece, em um primeiro momento, ser o mesmo: a sensação. Quanto à questão terminológica, Kant facilita o problema utilizando para a primeira categoria de qualidade uma palavra de raiz latina: Realität, e para a segunda categoria modeal outra de raiz germânica: Wirklichkeit, que alguns traduzem por “efetividade” a fim de evitar a ambiguidade, mas também usa o termo de Dasein, que significa “existência”, que nos auxilia mais a evitar a confusão.

Mais importante é a segunda questão, pois se as duas têm o mesmo critério, em que se diferenciam? Para contestar a isto é preciso fazer notar que a primeira se opõe à categoria de negação, enquanto que a segunda à possiblidade. Além disso, tem de se recordar que a modalidade representa uma reflexão posterior sobre o caminho percorrido (Kant não diz assim textualmente) e que, portanto, nela estão presentes os três Princípios anteriores. Real (categoria de qualidade) é algo que se dá no aqui e agora, enquanto que existir não é em geral ser percebido, como Berkeley afirmava; esse algo pode não estar sendo percebido e no entanto existir em outro lugar ou em outro tempo, em outro ponto da trama do mundo. Podemos afirmar isso em virtude das Analogias da experiência. A conexão da existência com a percepção pode ser imediata ou antes mediata, mediatizada através das leis da experiência estudadas pelas ciências, cujos primeiros princípios são as Analogias, que é o novo que agora se introduz na reflexão modal. Graças a elas conseguimos articular o tempo objetivo em um presente, um passado e um futuro. Em consequência, não só o presente é real, e menos ainda se pode reduzir ao percebido agora a

82 “Todo o real é possível” (KrV A 231, B 283).

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realidade do mundo que podemos afirmar com fundamento, senão que também podemos distinguir em grande medida entre um passado real (wirklich ou que existiu) e uma narração inventada do mesmo, assim como diferenciar um futuro real ou ao menos possível de outro inteiramente falseado, na medida em que esse futuro se deixa prever a partir do conhecimento do presente. Assim, partindo de seus restos e pistas e seguindo as leis da experiência, podemos afirmar com fundamento que os dinossauros existiram. E, no entanto, nem o passado tem já realitas nem o futuro ainda a tem. Enquanto que o real como reell faz referência à sensação ou percepção, o real enquanto wirklich ou objeto existente tem uma duração, a própria da substância.

Mas também as Analogias abriram para um espaço objetivamente ordenado, a uma permanência, simultaneidade e mudanças objetivas distintas da mudança objetiva de percepções, o qual nos oferece um fundamento para afirmar, por exemplo, a existência da outra cara dos objetos que eu agora não vejo, ou que esta mesa continuou existindo durante a noite quando eu não a percebia, etc. Isto é, elas abriram a nós a um volume espacio-temporal que não se limita a meu ver, nem sequer ao nosso ver empírico enquanto humanos. Por essa conexão da experiência ampliamos nosso conhecimento sobre o real (wirklich), a realidade do mundo se desenvolve do eu empírico e suas limitações, estas são ao mesmo tempo compreendidas e objetivadas, há uma maior elaboração e diferenciação entre o objetivo e o subjetivo, o mundo adquire sua realidade empírica global e ilimitada no espaço e no tempo, e distinguimos essa realidade do sonhado83. “É real (wirklich) tudo o que está em conexão com uma percepção segundo leis do progresso empírico. Logo eles [os possíveis habitantes da lua, como exemplo] são reais (wirklich), se se acham em conexão empírica com minha consciência real (wirklich) [...]. Não se nos dá de modo real (wirklich) senão a percepção e o progresso empírico desde esta a outras possíveis percepções”84.

Esta mesma conexão da experiência elaborada pelas Analogias é em que se apoia a “Refutação do idealismo” problemático de Descartes e de qualquer outro ceticismo sobre a realidade ou existência do mundo, a qual é transcendentalmente necessária, como já viemos vendo. Essa importante peça da KrV é introduzida aqui na segunda edição85, mais a

83 KrV A 492, B 520-521. 84 KrV A 493, B 521. Cfe. também o contexto da citação A 225-226, B 273-274; A 231, B 284. 85 KrV B 274ss.

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nota acrescentada no Prólogo da mesma, enquanto que na primeira suas argumentações se encontravam em grande parte recolhidas ao longo da discussão sobre o quarto Paralogismo86. Com isso Kant sai ao corrente das críticas que seus contemporâneos fizeram sobre seu idealismo, precisando como este tinha de ser entendido. El busca provar que a partir de sua filosofia se pode afirmar que das coisas externas ou mundo espacial não apenas temos imaginações sem experiência, e não uma mediata, através da experiência interna e da inferência causal problematizada por Malebranche e Hume, senão uma experiência imediata.

Ora, nossa experiência interna ou eu empírico, nossa existência no tempo (e eu acrescentaria também no espaço), somente pode ser determinada e objetivada graças às Analogias da experiência externa (corporal e intersubjetiva), como tivemos ocasião de examinar. Somente objetivando a realidade do mundo posso conhecer e situar minha finitude. Logo “a consciência de minha própria existência é ao mesmo tempo a consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim”87. Não é que a consciência de minha existência seja produzida pelo mundo, como pensa o materialismo indo ao outro extremo. De novo o idealismo transcendental busca o justo meio. Para ele, a consciência de que (daβ) sou, como toda consciência, funda-se em um ato de espontaneidade de minha subjetividade, em minha Apercepção transcendental ou autoconsciência ou “Eu penso”88. Mas a determinação objetiva do que (was) sou somente pode ter lugar em relação ao mundo objetivo. Mas não temos de esquecer que não somente sou consciente de minha realidade fenomênica, senão que em virtude da consciência moral chegou a sê-lo também de minha realidade em si ou originária como liberdade, a qual não é aprisionada desde o teórico porque a liberdade não tem o modo de ser da coisa. A compreensão prática deste específico modo de ser do livre é a razão moral

86 KrV BXXXIX-XLI nota. 87 KrV B 276. A experiência externa e a interna constituem uma única experiência e não se daria uma sem a outra (KrV B XLI nota). “Daí [de que toma a existência dos seres pensantes como determinada por si mesmos] se segue que o idealismo é inevitável nesse mesmo sistema racionalista, ao menos o [idealismo] problemático, e que, ao não ser em absoluto exigida a existência de coisas exteriores para a determinação de sua própria [existência] no tempo, aquele é admitida de maneira inteiramente gratuita, sem poder dar dela nenhuma prova” (KrV B 418). 88 KrV B 157-158.

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e o respeito (Achtung) frente à dignidade de sua autonomia, enquanto que as coisas somente têm preço e podem ser utilizadas como puros meios89.

Tão importante como a diferença que acabamos de ver entre Realität e Wirklickkeit é a que se dá entre as duas primeiras categorias modais: a possibilidade e a existência. Já em O único fundamento da prova possível para uma existência de Deus (1763)90 Kant havia alcançado precisar, perante à filosofia racionalista que ele herdou, uma distinção entre elas que, no fundamental, é recolhida na KrV, primeiro aqui nos Princípios91 e mais amplamente em sua crítica ao argumento ontológico sobre a existência de Deus92. Para mostrá-lo, o Kant pré-crítico havia lançado mão de dois argumentos, sem distingui-los especificamente. O primeiro, situado, todavia no racionalismo, recorre ao diverso papel que o entendimento e a vontade divinas jogam na criação do mundo. Mais interessante e ajustado ao pensamento crítico é o segundo, que procede a uma análise do juízo em geral. Ao dizermos “Itália é um país”, ou “Alice é uma menina que visitou o país das maravilhas”, ou “o ogro é azul”, os diversos predicados analisam seus respectivos sujeitos e estes sujeitos somente são afirmados relativamente ou em relação a esses predicados graças à cópula “é” que serve de ligação entre dois conceitos. E assim poderíamos ir afirmando mais predicados deles, analisando todas suas características. Outra coisa é afirmar que esses sujeitos existem ou não existem ou qual modo de existência a eles corresponde.

Coloquemos o seguinte esquema:

suj. Cóp. predicados

Juana é

ruiva

com olhos auis

rica

inteligente

carinhosa

etc.…

Poderíamos continuar acrescentando predicados deste tom, e estaríamos afirmando ou colocando a Juana em relação com cada uma desses predicados. Outra questão seria perguntar se “Joana é”, se “Joana existe” ou se não é mero desejo de um homem fantasioso. Então vemos

89 Cfe. por exemplo, a Fundamentação da metafísica dos costumes, a última seção do capítulo segundo, AA IV, 427ss. 90 Primeira Seção, primeira consideração, AA II, 69-77. 91 A 225, B 272-273. 92 A 597-601, B 625-629.

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que o “é”, a cópula, afirmação da existência, não está na ordem ou coluna dos predicados, da possibilidade, mas antes significa a “posição absoluta” da coisa, aqui de Joana, com todos seus predicados possíveis93. São, portanto, dois modos de afirmar o “é”, o ser, e em consequência requerem critérios diferentes para não os confundir. Do contrário, nosso homem fantasioso não saberia distinguir entre a existência e a não existência (de Joana) e a mera possibilidade, ainda que esta esteja fantasiada respeitando em grande medida a trama do mundo ou Analogias da experiência; confundiria seus sonhos e seus desejos com a realidade e enlouqueceria. Nem compreenderia ao mundo nem a si mesmo.

Por um lado, está a possibilidade, que para que seja objetiva não basta certamente a não contradição, senão que é preciso acrescentar as demais exigências transcendentais ou formas a priori, como já vimos. Mas eu acrescentaria que como essas idealidades não são transcendentes, mas antes transcendentais, tem de objetivar-se em uma materialidade, e esta é a da linguagem. O sujeito se identifica com essa idealidade materializada: do possível podemos falar, fantasiar segundo o desejo ou predizê-lo conforme a certo conhecimento objetivo do presente, mas a realidade terá de vir dada a nós e ela se encarregará de confirmá-lo ou corrigi-lo. E, inversamente, nessa contraposição a realidade do mundo é compreendida como tal, enquanto sendo outra realidade; sobretudo aquela que não se usa, que se opõe e limita ao sujeito.

Se esta distinção entre possibilidade e existência é básica na construção da subjetividade e seu mundo, então o mesmo critério não pode valer para ambas; não podemos passar do conceito e possibilidade de algo à afirmação de sua realidade, segundo se pretende no argumento ontológico sobre a existência de Deus, que é o ponto aonde desembocam todas as outras provas segundo Kant. “Assim, pois, se penso um ser como a realidade suprema (sem carência alguma), sempre fica a pergunta sobre se existe ou não. Pois [...] ainda falta algo em sua relação com meu estado inteiro de pensamento [com minha capacidade de conhecer], a saber, que o conhecimento desse objeto seja possível também a posteriori [...]. Se

93 Este argumento é especialmente valioso e bem-sucedido, pois não recorre nem a algo desconhecido, fora de toda experiência, como acontece ao primeiro que apela à Deus, nem remete (como o empirismo) à experiência empírica, a qual somente nos daria o fato e não sua necessidade, senão que se apoia na lógica, como fará depois na KrV. Mas nesta aparece um elemento decisivo: o que coloca é a Apercepção ou sujeito transcendental. Portanto, não se trata de uma posição divina ou dogmática da coisa, de uma coisa em si mesma considerada, senão que o ser objetivo indica essencialmente uma relação com o sujeito cognoscente, com o Eu penso.

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queremos, pelo contrário, pensar a existência só mediante a categoria pura, então não é de estranhar que não possamos assinalar nenhuma característica para diferenciá-la da mera possibilidade. Em consequência, contenha o que contenha o conceito que tenhamos de um objeto, temos que sair dele para atribuir-lhe a existência”94. O conhecimento teórico ou objetivo o é da outra realidade que eu não protagonizo, e de minha realidade na medida em que se encontra heteronomamente determinada como um objeto do mundo. Por conseguinte, a realidade tem que me vir dada, exibida, não posso configurá-la desde a mera idealidade subjetiva.

Outra coisa acontece na ação real do homem, a prática, a pragmática e a poética. Ela é certamente finita e pressupõe a materialidade do que se propõe transformar. Não obstante é capaz de passar da possibilidade em forma de conceito à realização do fim ali formulado. A imaginação, como faculdade de síntese concreta, é a capacidade humana de estender essa ponte entre as duas categorias modais, de ir abrindo, na mesma realidade do mundo, novos caminhos e dando forma a possibilidades queridas. Ela é a que se manifesta na arte, como força verdadeiramente produtora e criadora de formas a meio caminho entre a realidade objetiva do mundo e a possibilidade meramente fantasiada ou talvez, sem mais, pressentida como obscura notícia. Ela dá lugar inclusive a um mundo de ficção onde conseguimos recriar e compreender, de maneira plástica e em livre jogo, a síntese concreta que somos de liberdade e natureza, assim como expressar em símbolos o que naturalmente é inefável mediante conceitos objetivos e determinados. Ali se manifesta a força originária criadora da cultura, de mundos habitáveis pela subjetividade, de novas possibilidades, onde ela vai con-figurando sua realidade mais própria, pois, a imaginação está na base de toda síntese criadora de sentido. Por isso coloquei a arte ao final desta coluna no Esquema dos Princípios. 4.6.3 O TERCEIRO POSTULADO

É o da necessidade. Retornando ao argumento ontológico sobre a existência de Deus, contra a crítica kantiana exposta antes, poder-se-ia objetar que nele não se passa naturalmente da possibilidade à existência, mas antes da necessidade de aceitar sua existência à sua aceitação fática. Entramos assim no terceiro dos Postulados do pensar empírico. Ora, nele

94 KrV A 600-601, B 628-629. Cfe. também todo o contexto desta citação em A 639, B 669 e KU § 76 (AA V, 402).

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se diz que a única existência objetiva que pode ser afirmada com necessidade é aquela que conseguimos alcançar mediante as leis ou Analogias da experiência e seu desenvolvimento científico. Mas estas pressupõem a dação (datio) empírica, o espaço e o tempo, os dois Princípios matemáticos (Axiomas e Antecipações). Logo nunca de uma forma absolutamente a priori e por mera análise de conceitos. A necessidade expressada neste terceiro Postulado é do empiricamente necessário, cuja necessidade se determina pelas leis da natureza e na medida em que assim aconteça. Portanto, não se trata de uma necessidade em si ou desde uma necessidade condicionada, ligada: “Tudo o que acontece é hipoteticamente necessário”95, pois “no fundamento de toda necessidade se acha sempre uma condição transcendental”96. Em absoluto, não seria contraditório que nada existisse.

Outro caminho parece tomar o argumento cosmológico sobre a existência de Deus, analisado também em “O ideal da razão pura”97, e que já aparecia na tese da quarta Antinomia98. Este argumento cosmológico parte da contingência do mundo, logo não de um mero conceito de Deus, senão da experiência em geral, da existência fática do real, e da necessidade racional do incondicionado: como existe algo, então tem que haver um ser necessário, cuja existência seja incondicionada e sobre a qual repouse em última instância todo o condicionado ou série de condicionados. Para compreender esta série se utiliza (ao menos também) a causalidade ou segunda das Analogias, motivo pelo qual, ainda que a quarta Antinomia e “O ideal da razão pura” estão colocados na quarta coluna do Esquema dos princípios, pois tratam de alcançar um modo de ser necessário, tracei também uma linha que os liga às Analogias. Ora, o inconveniente não foi evitado, porque, uma vez que se chegou ao conceito ou exigência racional de um ser absolutamente necessário, se retoma de novo o argumento ontológico e se quer passar desse conceito ou sua realidade, porque já não temos nenhum apoio na experiência.

95 KrV A 228, B 280. 96 KrV A 106. 97 KrV A 603, B 631ss. 98 KrV A 452, B 480ss; A 559, B 587 ss.

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4.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estes princípios assinalam o fundamento de nosso conhecimento objetivo, mas igualmente sua limitação ao empírico. Sobre tudo isto se volta a refletir no capítulo III, que serve de conclusão a esta Analítica dos Princípios. “A Analítica transcendental tem, portanto, este importante resultado: que o entendimento não pode fazer a priori nada mais que antecipar a forma da experiência possível em geral e que não pode ultrapassar nunca os limites da sensibilidade”, de modo que “o arrogante nome de uma ontologia”, que pretende falar do ente enquanto ente inclusive mais além de toda dação (datio) sensível, “tem de deixar seu lugar ao modesto nome de uma mera analítica do entendimento puro”99, que trata do ente enquanto objeto. Mas isso não quer dizer que ele seja o único modo de ser possível, mas sim o único alcançável desde o ponto de vista da heteronomia, da objetividade, como já vimos.

Não podemos conhecer objetivamente númenos, entes inteligíveis, pois carecemos de intuição intelectual. Este conceito de númeno serve antes para nomear o limite de nosso conhecimento objetivo, aquilo que não podemos conhecer. Isso é o que Kant denomina númeno em sentido negativo100. Sua utilização em sentido positivo só aparecerá no âmbito do prático.

Por último, no Apêndice, Kant polemiza com Leibniz, que segundo ele não conseguiu compreender a diferença transcendental (de origem e conteúdo ou significado) entre sensibilidade e entendimento. Por isso pretendeu construir um sistema intelectual do mundo, carente inclusive de relações ou influências físicas reais. Pensou que o sensível não era senão o intelectual confusamente conhecido, e portanto não reparou na necessária relação ao empírico de todo conhecimento objetivo, nem na distinta significação (anfibologia ou anfibolia = duplo sentido) dos conceitos de reflexão quando se aplicam ao sensível ou ao puramente intelectual. Para o final Kant volta-se sobre o conceito de númeno101, e acaba com uma tábua sobre o nada do objeto.

99 KrV A 246-247, B 303. 100 Sobre os conceitos de númeno e intuição intelectual remete ao capítulo IV de meu livro: El punto de partida de la metafísica transcendental (Ediciones Xorki, Madrid, 2011). 101 KrV A 286-289, B 342-346.

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OS ORGANIZADORES:

CÉLIA MACHADO BENVENHO é doutoranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná; é Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2008), financiado pelo CNPQ, na linha de pesquisa Metafísica e Conhecimento. Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1994). Especialista em Administração e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997), e especialista em Computação Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringá (1998). Atualmente é professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo.

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/9781758140510682

JOSÉ FRANCISCO DE ASSIS DIAS é Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231

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JUNIOR CUNHA Graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR. É estagiário da Biblioteca Universitária da UNIOESTE-Campus Toledo. Bolsista – no período de 01 de junho de 2016 a 31 de março de 2017 – do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Bolsista – no período de 1 de abril de 2017 a 31 de março de 2018 – do Projeto de Extensão Teatro em Ação, vinculado ao Programa Universidade Sem Fronteiras-USF, financiado com recursos do Fundo Paraná. Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Teatro e Filosofia com enfoque em William Shakespeare.

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/7824455868007103

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