ressonÂncias filosÓficas · iii afinal de contas, quem somos nÓs? ... o nascimento da atitude...

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RESSONNCIAS FILOSFICAS XXII Simpsio de Filosofia Moderna e

Contempornea da UNIOESTE

Volume II: Artigos

Imagem da capa: https://pixabay.com/pt/coruja-bird-animal-natureza-1996169/

Clia Machado Benvenho Jos Dias

Junior Cunha (Organizadores)

RESSONNCIAS FILOSFICAS XXII Simpsio de Filosofia Moderna e

Contempornea da UNIOESTE

Volume II: Artigos

Primeira Edio E-book

Toledo - PR 2018

Copyright 2018 by Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. Jos Aparecido Pereira PUC-PR

Dr. Jos Beluci Caporalini - UEM Dra. Lorella Congiunti PUU Roma

REVISO FINAL: Prof. Luciana Bovo Andretto

CAPA, DIAGRAMAO E DESIGN: Junior Cunha

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecria CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores

Os textos aqui publicados so de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Editora Vivens Conhecer Poder!

Fone: (45) 3056-5596 Celular: (45) 9-9995-9031

Site: http://www.vivens.com.br E-mail: [email protected]

Ressonncias filosficas: volume II: artigos /

R435 organizadores, Clia Machado Benvenho, Jos

Dias, Junior Cunha. 1. ed. e-book

Toledo, PR: Vivens, 2018.

558 p.: il; color.

XXII Simpsio de Filosofia Moderna e

Contempornea da UNIOESTE

Modo de Acesso: World Wide Web:

ISBN: 978-85-92670-63-4

1. Filosofia.

CDD 22. ed. 106.3

http://www.vivens.com.br/mailto:[email protected]

SUMRIO

APRESENTAO ...................................................................................... 11

I A AUTONOMIA DO CAMPO ESTTICO E SUAS RELAES

COM O CAMPO MORAL SEGUNDO SCHILLER ....................... 13

II A CONCEPO JUSFILOSFICA DO ABORTO SOB A

TICA DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004) ............................... 27

III AFINAL DE CONTAS, QUEM SOMOS NS?

sobre a interpretao heideggeriana da o na fsica ............................................ 41

IV A IMPOSSIBILIDADE DA LIBERDADE PLENA

DECORRENTE DA VONTADE .......................................................... 53

V A LIQUIDEZ E A ESQUIZOFRENIA NAS RELAES

SOCIAIS UMA PERSPECTIVA EM MARCUSE ............................. 61

VI A METFORA DA CARNE NA LINGUAGEM DE

MERLEAU-PONTY .................................................................................. 67

VII A MITEZZA BOBBIANA ............................................................ 77

VIII A RELAO DE PARTIDOS: COMUNISTA E

PROLETRIO ............................................................................................. 91

IX A VIDA HUMANA COMO PRESSUPOSTO NECESSRIO

PARA TODOS OS DIREITOS HUMANOS .................................... 101

X CETICISMO ACADMICO E A DIALTICA NEGATIVA. 115

XI CHARLES PARSONS E A FILOSOFIA DA ARITMTICA DE

KANT ............................................................................................................ 125

8 Ressonncias filosficas - Artigos

XII CONCEPO ONTOLGICA DO CORPO ENQUANTO

IMANENTE AO MUNDO: UMA BREVE ANLISE DAS

TEORIAS DE GABRIEL MARCEL E MERLEAU PONTY A LUZ

DO SPINOZISMO.................................................................................... 135

XIV DIGNIDADE HUMANA ENTRE A LIBERDADE E

IGUALDADE: RETORNO A KANT E ROUSSEAU ................... 147

XV DO PROBLEMA MENTE-CORPO AO PROBLEMA DO

"EU" COMO IDENTIDADE .............................................................. 157

XVI DOS PR-SOCRTICOS A ARISTTELES: O

NASCIMENTO DA ATITUDE CRTICA E O SEU FIM .......... 167

XVII ELECTRA E A M-F SARTREANA: BRINCANDO DE

SER ................................................................................................................ 189

XVIII FABULAES EM TORNO DA FILOSOFIA DE

RANCIRE E SUA RELAO COM O PENSAMENTO

ANARQUISTA ........................................................................................... 201

XIX FENOMENOLOGIA ENQUANTO ATITUDE E ESCRITA

FILOSFICA ............................................................................................. 217

XX FILOSOFIA NA WEB E EXERCCIO DO PENSAMENTO

NA MODERNIDADE LQUIDA ....................................................... 237

XXI FUNDAMENTAO DA METAFSICA DOS COSTUMES:

A MORAL E A AO HUMANA PENSADAS POR KANT ..... 261

XXII HANNAH ARENDT

uma crtica noo de progresso a partir de sobre a violncia ............................... 269

XXIII INTENCIONALIDADE COMO PRINCPIO DE

DEMARCAO DOS FENMENOS PSQUICOS .................... 277

XXIV KANT E A REVALORIZAO DA ESTTICA ............... 291

Sumrio 9

XXV LUDWIG FEUERBACH E O PROBLEMA DO

FETICHISMO ........................................................................................... 313

XXVI MESTRE ECKHART E A CONCEPO DE DEUS ..... 321

XXVII NOTA SOBRE OS CONCEITOS ESCOLSTICO E

CSMICO DE FILOSOFIA EM KANT ........................................... 329

XXVIII O BOM SELVAGEM E O CIDADO CIVILIZADO

CORROMPIDO

noes de uma teoria de J-J. Rousseau ................................................................. 337

XXIX O CORPO NA FENOMENOLOGIA DA PERCEPO DE

MERLEAU-PONTY ................................................................................ 351

XXX O IMATERIALISMO NA FILOSOFIA DE GEORGE

BERKELEY ................................................................................................ 363

XXXI O PAPEL DA ANGSTIA EM HEIDEGGER .................. 369

XXXII O PAPEL DA SUBJETIVIDADE NO PRINCPIO

EMANCIPATRIO DE RANCIRE ............................................... 379

XXXIII O PAUPERISMO DA FILOSOFIA

a questo da objetividade nas cincias sociais e a crtica ao racionalismo crtico de Karl

Popper ............................................................................................................... 389

XXXIV O SENTIDO HISTRICO NA FILOSOFIA DO JOVEM

NIETZSCHE.............................................................................................. 409

XXXV O SER DE DEUS OU NO

na concepo de Feuerbach e Agostinho .............................................................. 415

XXXVI OS BENEFCIOS DA GUARDA COMPARTILHADA EM

SEUS ASPECTOS LEGAIS, PSICOLGICOS E FILOSFICOS

......................................................................................................................... 425

10 Ressonncias filosficas - Artigos

XXXVII PERFEIO CRIST E SANTIFICAO

PROGRESSIVA EM JOHN WESLEY ............................................... 439

XXXVIII RAZES DA TOLERNCIA E DA IGUALDADE NO

CAMPO DA EDUCAO ...................................................................... 459

XXXIX REFLEXES SOBRE ALGUNS ASPECTOS

PRAGMTICOS DA LINGUAGEM EM AUSTIN E GRICE ... 471

XXXX SOCIALISMO E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DO

JOVEM LEFORT ..................................................................................... 481

XXXXI TEMPO E MEMRIA EM AGOSTINHO DE HIPONA

o ser humano volta-se para o seu interior ............................................................ 495

XXXXII UM ESTUDO CRTICO SOBRE O PRINCPIO DA

LIBERDADE RELIGIOSA E A LAICIDADE ESTATAL EM

FACE DA TEORIA HABERMASIANA

a Racionalidade Instrumental e a F .................................................................. 505

XXXXIII UMA INTRODUO FILOSOFIA DE STEPHEN C.

PEPPER FOCADO EM SEU LIVRO WORLD HYPOTHESES

......................................................................................................................... 523

XXXXIV UNIDADE PSICOFSICA E AUTONOMIA DO

PENSAMENTO EM ARISTTELES

ingano sobre De Anima III 4-5 e Castoriadis sobre a imaginao ...................... 535

XXXXV VERIFICAR A IGUALDADE

as ocupaes estudantis pensadas luz da filosofia de Rancire ............................ 549

XXXXVI A EPISTEMOLOGIA DE LARRY LAUDAN

diferentes tradies nas explicaes dos seres vivos e suas implicaes para o Ensino de

Cincias e Biologia ............................................................................................. 555

APRESENTAO

Este livro recolhe os textos completos provenientes das Comunicaes apresentadas no XXII Simpsio de Filosofia Moderna e Contempornea da UNIOESTE, realizado entre 06 e 10 de novembro de 2017, no campus de Toledo-PR. Participantes de diferentes instituies do pas discorreram sobre temas de Histria da Filosofia e da Cincia, Metafsica, Fenomenologia, Esttica, Filosofia Poltica, tica, Ensino de Filosofia e outras reas de conhecimento. Os textos completos referentes s comunicaes apresentadas esto publicados no volume II desta coleo, assim como os textos decorrentes das Conferncias e Minicursos esto publicados no volume III desta coleo.

O Simpsio de Filosofia Moderna e Contempornea da UNIOESTE de 2017 foi a vigsima segunda edio consecutiva do evento, promovido pelos cursos de Graduao e Ps-Graduao em Filosofia de nossa universidade. Esta regularidade do evento, somada ao contnuo crescimento em quantidade e qualidade, mostra a fora do trabalho em equipe, que envolve professores, estudantes e tcnicos da instituio. Tivemos, em 2017, mais de trezentos e cinquenta participantes inscritos, com expressiva participao de pblico em todas as atividades oferecidas; recebemos conferencistas da Itlia, da Espanha e da Argentina, alm de nomes significativos da filosofia do Brasil; sete conferncias e trs minicursos simultneos foram apresentados; ocorreram 120 comunicaes (nas vrias reas de pesquisa filosfica e das cincias humanas) e apresentamos diversificada agenda cultural, incluindo lanamentos de livros. A comunidade do municpio se fez presena marcante, tanto na plateia quanto no auxlio ao financiamento e manuteno do evento. Prova-se, assim, que o trabalho slido sempre possvel, se instituies e comunidade solidariamente se empenham.

Ao longo desses 22 anos, a participao de estudantes e pesquisadores tem se mantido significativa; tanto de universidades do Estado do Paran, tais como UEL, UEM, PUCPR, UNICENTRO, UENP, UEPG, UNICESUMAR, UEPG, UNIPAR, FAG, UFPR, UNILA, UNESPAR, IFPR, UTFPR, quanto de outros estados brasileiros, dentre as quais podemos citar a PUCRS, UNISINOS, UFRGS, UNIFRA, UFSM, UPF, UFSC, UFFS, UESC, UNICAMP, UFABC, UNESP, USP, PUCSP, UFRJ, UERJ, UFF, UFMG, UFOP, UFSCAR, UFBA, UNB, UFU, UFC, UFPE, UFAL, etc. O mesmo tem ocorrido com jovens

12 Ressonncias filosficas - Artigos

professores e pesquisadores, muitos deles ainda estudantes em programas de Mestrado e Doutorado de vrios Estados, alm, evidentemente, dos palestrantes de renome nacional e internacional que prestigiaram nossos eventos com suas conferncias, provindos principalmente dos seguintes pases e instituies: Lisboa, Udelar/Uruguay, Asheville/EUA, Duisburg-Essen/Alemanha, vora/Portugal, Univ. Valladolid/Espanha, UBA/Argentina, Univ. Tel Aviv, UCA/Argentina, UMSB/Venezuela, Sorbonne/Paris, Unsam/Argentina, Lille/Frana, Universidade de Urbino/Itlia, Coimbra/Portugal, Piza/Itlia.

sensvel a influncia do SIMPSIO DE FILOSOFIA da UNIOESTE sobre os acadmicos de Filosofia e sobre seu interesse na pesquisa e na atividade filosfica, no estado e em mbito nacional. A convivncia com outros acadmicos e docentes tem servido de incentivo em diversas reas. , portanto, um evento integrado e vinculado s vrias atividades filosficas, tais como pesquisas, ciclos de palestras, grupos de pesquisa cadastrados no CNPq e na Fundao Araucria, grupos de estudos, seminrios, Grupo Pet-Filosofia, Grupo PIBID-Filosofia, cursos de especializao e outras atividades afins; expresso do trabalho e do desempenho de seus docentes, em nvel interno e externo.

Por fim, esta tradio de ser um evento de qualidade e em sua vigsima segunda edio no seria possvel sem o apoio financeiro das agncias de fomento: Fundao Fausto Castilho, Fundao Araucria, Reitoria e Pr-Reitoria de Extenso da UNIOESTE (PROEX) e PPGFIL/Unioeste (Programa de Ps-Graduao em Filosofia). Sem esse aporte, a participao dos renomados convidados do exterior e de professores brasileiros que sempre abrilhantaram as edies anteriores estaria inviabilizada. Nossa gratido a todos os mencionados, direta e indiretamente, fica registrada aqui, junto ao convite para que as prximas edies continuem mostrando nosso compromisso brasileiro, paranaense e toledense com a difuso pblica da pesquisa, do ensino e da extenso em Filosofia.

Os Organizadores

I

A AUTONOMIA DO CAMPO ESTTICO E SUAS RELAES COM O CAMPO MORAL SEGUNDO SCHILLER

Paulo Borges de Santana Jnior*

RESUMO Recentemente, testemunham-se muitos casos de discursos que questionam exposies artsticas em nome de valores morais. Alm dos efeitos imediatos que tais discursos impem particularmente contra algumas obras, preciso tambm projetar os seus efeitos indiretos tanto na forma de inibio ao patrocnio e realizao de exposies mais ousadas, quanto na forma de produo de preconceitos no domnio tico. Diante desse contexto, parece ressurgir a relevncia da tradicional questo sobre a autonomia do campo esttico. Nesse horizonte, Schiller se destaca por apresentar uma resposta que defende a autonomia do esttico e que, simultaneamente, afirma a dimenso esttica como intermediria dimenso moral. Mas Como possvel pensar, sem contradio, o esttico como fim em si mesmo e como meio para a moralidade? O esclarecimento dessa questo exige a mobilidade entre dois pontos de vistas diferentes: os fundamentos especficos do esttico e do moral; e as relaes desses dois campos, sobretudo, nas aes humanas. Do ponto de vista de seus fundamentos (da legitimao), cada campo autossuficiente. Porm, enquanto aspectos da humanidade, tais campos vivem em constantes trocas e interferncias recprocas. Nessa ltima perspectiva, Schiller concebe o esttico como meio para a moralidade em dois sentidos diferentes. Por um lado, o gosto refinado pode auxiliar a conformidade moral; por outro, o esttico, enquanto unificao entre entendimento e sensibilidade, ser imprescindvel para a efetivao de uma genuna moral no ser humano. Tais reflexes conduzem compreenso de que, ao

* Doutorando pela Universidade de So Paulo; e-mail: [email protected]; http://lattes.cnpq.br/1503481482254393 Bolsista pelo processo n 2017/07914-9, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP).

14 Ressonncias filosficas - Artigos

respeitar a autonomia do esttico, promove-se uma concepo de humano mais ampla. PALAVRAS-CHAVE: Schiller; Autonomia esttica; Liberdade; Humanidade. INTRODUO

Gostaria de comear essa apresentao com uma introduo que tratasse no especificamente do meu texto, mas da temtica geral a respeito da autonomia do campo esttico. Nos dias de hoje, testemunhamos um discurso moralizante a se colocar de maneira bem intimidadora nas escolas, nas universidades, no debate poltico, nas sentenas judiciais e tambm nas exposies de arte. Essa invaso do discurso moralizante prejudica todas essas reas, mas quero enfatizar sumariamente os seus efeitos no campo da expresso esttica.

Cabe salientar que nesses conflitos no est em jogo propriamente princpios morais, mas sim uma instrumentalizao de preceitos morais (frmulas prontas) para perpetuar ou engendrar, na nossa sociedade, caractersticas de intolerncia diante da diversidade presente nas expresses humanas. A reproduo mecnica dos discursos moralizantes tem como efeito no a promoo de princpios morais, mas sim o crescimento do preconceito e o fechamento da nossa sociedade diante daquilo que se mostra de modo mais original, mais vivo, mais livre. Um discurso que fala em nome da moral, mas que no se compromete com a noo de liberdade tampouco com a coerncia dos seus princpios, na verdade, quer apenas se aproveitar da forma imperativa do dever e do apelo quase unnime das pautas morais para deturpar algum acontecimento e promover certos grupos ou iniciativas, cujas finalidades so frequentemente obscuras para a grande maioria da populao.

Por esse motivo, no podemos dizer que a autonomia do campo esttico est ameaada atualmente pelos princpios morais, mas sim pela reproduo de preconceitos disfarada de bons costumes ou de boa conduta. Vemos, hoje, os conceitos de bem e mal sendo utilizados de maneira vazia em questionamentos e tambm em aes judiciais para justificar o fechamento ou impedimento de exposies. H um esforo de fazer com que as expresses dos artistas sejam avaliadas pelas lentes cada vez mais embaadas da preservao dos costumes, e, quando reprovadas por essas lentes, as expresses so simplesmente acusadas de corrupo.

A autonomia do campo esttico... 15

Cabe aqui lembrar, nos exemplos de Scrates, como a acusao de corrupo vaga e esconde as verdadeiras motivaes de uma sentena judicial. O que assistimos, na verdade, no a moral se voltando contra a arte, mas sim a limitao e o impedimento do exerccio autnomo de artistas e expositores, limitao e impedimento que tm conscientemente um resultado direto contra o livre-pensamento da nossa sociedade. Desse modo, refletir sobre a autonomia do campo esttico no se restringe a uma defesa acerca da autonomia do criador da obra, mas tambm faz parte de uma defesa ampla da autonomia de pensamento do pblico, ou seja, da autonomia de pensamento de todas as pessoas em sociedade.

Dessa maneira, recorre-se s ideias de Schiller, um autor que desde o sculo XVIII compreendia que o campo esttico estava profundamente vinculado ao aperfeioamento da humanidade. Ressaltar a dimenso profunda desse vnculo um modo de preservar esse campo das pretenses moralizadoras que muitas vezes atentam contra a sua autonomia. 1.1 FORMULAO DA PERGUNTA

Para compreender como Schiller trata a autonomia do esttico, convm lembrar que, para o autor, o esttico no se reduz ao sentimento ou natureza sensvel da humanidade. Schiller desvincula o esttico do prazer puramente emprico e o concebe como um impulso formado pela relao recproca dos dois impulsos fundamentais no humano: o formal (racional) e o material (sensvel). Desse modo, a caracterstica esttica surge quando, nas aes humanas, manifesta-se algo que no pode ser reduzido isoladamente a nenhuma de suas partes. A caracterstica esttica aquela que se contrape s caractersticas parciais do homem para manifestar um ser que simultaneamente racional e sensvel. Essa concepo do esttico, como interao dos dois impulsos fundamentais da humanidade, imprescindvel para entender como Schiller consegue defender tanto a autonomia do esttico quanto a concepo do esttico como um estado intermedirio da determinao moral. Com essa concepo do esttico enquanto interao entre sensvel e racional, pode-se superar a formulao binria da questo: o esttico um fim em si mesmo ou um meio para a moralidade? E, consequentemente, reformular tal questo da seguinte maneira: como o campo esttico consegue manter-se autnomo e, ao mesmo tempo, se colocar como intermedirio para a aquisio de um estado moral?

16 Ressonncias filosficas - Artigos

Para responder de maneira mais completa a essa questo, divide-se a apresentao em dois momentos, os quais correspondem a textos distintos de Schiller. Num primeiro momento, com base no texto Sobre a utilidade moral dos costumes estticos, trata-se da relao entre moral e esttica no nvel dos costumes, ou seja, no nvel da exterioridade, no nvel da aparncia. Em suma, indica-se que essa relao externa, apesar de sua pertinncia, no contribui especificamente para o campo esttico tampouco para o moral. Num segundo momento, com base na terceira parte de Cartas para a educao esttica do homem, demonstra-se como a qualidade esttica condio para a efetivao da moralidade no humano, mas sem permitir a instrumentalizao das noes de beleza ou dos princpios estticos. 1.2 A UTILIDADE DOS COSTUMES ESTTICOS (A RELAO EXTERNA ENTRE MORAL E ESTTICA)

Ao se limitar ao nvel dos costumes, a considerao acerca da relao entre moral e esttica pode identific-la como utilidade na medida em que os costumes estticos, ou seja, o refinamento das condutas, tm o poder de enfraquecer as determinaes mais imediatas ou naturais, abrindo, desse modo, espao para uma possvel determinao da prpria vontade ou de representaes intelectuais. Pensando o conceito de humanidade em funo do tempo ou de sua histria, nota-se como primeiro estgio uma determinao imediata feita pela natureza e pelas necessidades materiais; o refinamento proporcionado pelo gosto em geral atuaria, nesse caso, como um estgio intermedirio, conduzindo a humanidade a determinaes menos rsticas, mais suaves, leves ou formais. Uma vez intensificada a receptividade humana para essas determinaes mais formais, as condutas morais, cujos motivos ou justificaes exigem frequentemente a renncia a prazeres imediatos, teriam mais facilidade para se fazerem presentes entre as pessoas. As aes do gosto e as aes morais tm em comum a renncia s determinaes imediatas das inclinaes sensveis, e essa semelhana que est na base da chamada utilidade moral dos costumes estticos, ideia presente no ttulo desse texto.

Os costumes estticos podem ter uma semelhana externa com a moralidade na medida em que tais costumes enfraquecem a determinao natural em seu nvel mais imediato. Mas convm frisar que Schiller possui uma concepo de moral bem prxima da kantiana. Por isso, a semelhana

A autonomia do campo esttico... 17

das aes estticas com as aes morais no possui propriamente valor moral. Por exemplo, se algum afastasse o egosmo do fundamento de suas aes no pelo dever de tratar as pessoas como fins em si mesmas, mas pelo fato de o egosmo ser uma atitude rude ou grosseira, com certeza teria aes conformes moral, mas no teria aes com um valor moral. Nas palavras de Schiller: o tico nunca pode ter outro fundamento do que a si mesmo. O gosto pode favorecer a moralidade da conduta, mas ele nunca pode produzir algo de moral atravs de sua influncia (SCHILLER, 2004, p. 55). Diante disso, a chamada utilidade moral diz respeito apenas conformidade (ou legalidade) moral das aes e no ao seu valor propriamente moral. Desse modo, qual a relevncia de afirmar a utilidade moral dos costumes estticos?

Aqui convm evidenciar qual a perspectiva que justifica ou mesmo torna necessria a preocupao com a legalidade moral das aes independentemente do seu valor propriamente moral. justamente um pessimismo acerca da situao moral dos homens de sua poca que faz Schiller defender a relevncia da legalidade moral.

Se no quisermos tomar nenhuma medida para a legalidade de nossa conduta, por ela no ter valor moral, a ordem do mundo poderia se dissolver e, antes de nossos princpios [morais] ficarem prontos, todos os laos da sociedade seriam dilacerados. Quanto mais contingente , porm, nossa moralidade, tanto mais necessrio encontrar precaues para a legalidade, e uma negligncia descuidada ou orgulhosa desta pode nos ser moralmente imputada (SCHILLER, 2004, p. 66).

Num momento hipottico em que fosse grande a carncia de moralidade na esfera humana, seria orgulho ou ingenuidade insistir na exigncia do valor moral das aes, ou se quisermos ir mais alm, nesses momentos, seria nulo o enrijecimento do discurso moral ou a imposio mais violenta dos seus preceitos. Segundo Schiller, seria at mesmo responsabilidade moral promover, pelos costumes estticos, a legalidade moral das aes independentemente da verdadeira virtude. O motivo disso que a legalidade moral, mesmo sem o seu valor propriamente dito, ainda capaz de manter os laos de uma sociedade, e, sob essa perspectiva social, a promoo do gosto e dos costumes estticos, apesar de seu aspecto meramente externo, se tornam imprescindveis. Assim, o gosto, longe de ser um auxlio verdadeira moral, exerceria um constrangimento social visando conscientemente apenas legalidade moral, e nessa utilidade

18 Ressonncias filosficas - Artigos

o gosto seria mais eficaz do que um discurso que afirmasse de maneira impositiva valores morais.

Em suma, essa a argumentao de Schiller para justificar a utilidade moral dos costumes estticos enquanto promoo da legalidade moral das aes sob a perspectiva da sociedade, perspectiva em que seria descabido depositar todas as esperanas diretamente nas virtudes puras da humanidade. Mas alm dessa resposta, o fim do texto nos fornece uma instigante imagem simbolizando seus argumentos.

Do mesmo modo que o louco, que pressente o seu prximo paroxismo, afasta todas as facas e se deixa prender voluntariamente para no ser responsvel num estado sadio pelos crimes do seu crebro destrudo do mesmo modo tambm ns estamos obrigados a nos prender pela religio e pelas leis estticas para que nossa paixo no fira a ordem fsica nos perodos do seu domnio (SCHILLER, 2004, p. 66).

Nessa imagem podemos considerar que o esttico, sem ter propriamente poder para evitar a loucura, isto , a falta de valor moral entre os humanos, capaz de diminuir os danos que possam provir dessa falta e, mais especificamente, os danos que poderiam romper, no limite, as prprias relaes sociais. Nessa imagem, as leis estticas servem como prises, nas quais, durante um momento de lucidez, o louco por vontade prpria se prende. Com essa utilidade, o campo esttico cumpre uma funo simplesmente anloga funo da religio. Ou seja, sob esse aspecto, as leis estticas praticamente perdem a sua peculiaridade e se confundem com a prpria religio, na medida em que ambas podem ser vistas como prises ou ncoras tornadas atrativas (ou em razo da beleza ou em razo da imortalidade da alma) para aqueles que possuem uma moral contingente ou impotente diante das tentaes do mundo.

Em poucas palavras, na verdade, h uma relevncia ou mesmo uma necessidade de fazer consideraes entre o esttico e o moral em funo dos costumes, isto , em funo das relaes externas entre tais domnios. Essa relevncia se justifica pela sociedade, no propriamente pelo bem da sociedade, mas sim pela sua existncia mnima, pela sua simples conservao. Mas, nessa perspectiva, o campo moral se limita mera legalidade, e o campo esttico se limita mera funo de impedir a selvageria humana. Portanto, enquanto permanece-se nessa perspectiva, no se avana nada nem em termos genuinamente morais tampouco em termos propriamente estticos. Ser em termos completamente diferentes que Schiller justificar o seu projeto de uma Educao Esttica do Homem.

A autonomia do campo esttico... 19

1.3 O CONCEITO DE DETERMINABILIDADE (A RELAO ENTRE ESTTICA E MORAL NO NIMO DO SER HUMANO)

A questo sobre o modo como o esttico pode ser um

intermedirio para a moral sem perder a sua autonomia nos leva imediatamente para a terceira parte1 de Educao Esttica do Homem, mais precisamente para as cartas de XVIII a XXII. Essas so as cartas em que Schiller argumenta com teor mais especulativo; e, nessa argumentao, o conceito de determinabilidade atuar de maneira central. Para entender o conceito de determinabilidade, necessrio compreender como ele atua na relao com os conceitos de determinao passiva e ativa.

No contexto da filosofia moral kantiana ou ps-kantiana, o ser racional sensvel pode ser determinado de maneira passiva (sensvel) ou ativa (inteligvel). A determinao passiva a determinao pela matria ou pela natureza, ela significa o estado de heteronomia, no qual o ser humano determinado por leis que se fundamentam nos objetos e no no seu poder enquanto sujeito legislador de si mesmo. A determinao ativa a determinao alcanada pelos princpios formais da razo, e somente essa determinao significa autonomia moral, ou seja, a liberdade de atribuir a si mesmo leis que possuem fundamentao diretamente na representao do sujeito. As doutrinas morais que se associam tradio kantiana possuem, assim, a tarefa de mostrar como o ser humano conseguiria passar da determinao passiva para a determinao ativa. Quais so os meios que precisam ser mobilizados para que essa passagem seja realizada efetivamente e no apenas de maneira ilusria? A dificuldade da passagem da determinao passiva para a ativa consiste em que, entre essas determinaes, h o abismo entre a matria e a forma pura. Como um sujeito que tem suas aes desde o nascimento condicionadas pela matria consegue alcanar uma determinao que precisa ser puramente formal para ser considerada ativa ou livre?

A resposta de Schiller para esse problema aprofundar ainda mais o abismo entre o formal e o material, afirmando at mesmo que, na interao entre matria e forma que percebemos na experincia,

1 Cartas I a IX (setembro de 1794); Cartas X a XVII (nov-dez de 1794); Cartas XVIII a XXVIII (fevereiro a junho de 1795).

20 Ressonncias filosficas - Artigos

impossvel existir propriamente uma mistura entre esses elementos2. A oposio entre a determinao ativa e a determinao passiva no ser racional sensvel no pode ser suprimida por nenhuma delas individualmente. H aqui a preocupao em alcanar uma representao pura do estado de determinao ativa e do estado de determinao passiva, ou seja, por mais que na experincia identifiquem-se esses estados em sucesso um ao outro, para Schiller preciso fazer uma representao transcendental da oposio entre eles. Somente depois desse passo especulativo, o conceito chave da esttica de Schiller, a beleza, pode exercer o seu poder de ligar realmente esses dois estados. Caso contrrio, a ligao efetivada pela beleza seria concebida simplesmente como mistura, como algo pertencente ao emprico e no um poder transcendental que tem como origem o prprio sujeito.

Como entender essa oposio transcendental entre determinao passiva e ativa? Schiller defende que a passagem direta de uma determinao natural para uma determinao moral impossvel, porque os princpios morais so fundamentalmente formais e, dessa maneira, eles s poderiam determinar efetivamente o ser humano depois da supresso da determinao natural. A fora da forma pura poderia determinar plenamente somente aps o ser humano anular a sua determinao natural, pois, caso contrrio, em vez de uma determinao genuinamente moral, esse impulso formal conseguiria apenas refinar ou civilizar as determinaes previamente constitudas pela matria sensvel. Ou seja, nesse caso, a matria, por mais refinada que possa ser sua aparncia, continuaria sendo o fundamento efetivo de determinao do ser humano. Sem a compreenso da oposio transcendental entre determinao passiva e ativa, o mero refinamento dos costumes seria indistinguvel da moralidade.

luz dessa oposio transcendental entre matria e forma, percebe-se que o impulso formal do ser humano, em vez de suprimir diretamente a determinao passiva, na verdade, pressupe essa supresso para que possa efetivamente iniciar uma determinao ativa (determinao com base no conceito moral de liberdade). Assim, a sucesso entre a determinao passiva e a ativa precisa pressupor um estado que seria o ponto zero entre as duas determinaes, um estado que poderamos chamar de determinabilidade.

2 Apesar de Schiller no dar esse exemplo, pode-se entender esse argumento como a relao entre dois elementos (gua e leo) que mesmo quando esto num mesmo recipiente no se misturam efetivamente (um no tem o poder de dissolver o outro).

A autonomia do campo esttico... 21

Determinabilidade um conceito que significa, ao mesmo tempo, a ausncia de determinao presente e a possibilidade de determinao futura. Convm entender primeiramente o sentido passivo desse termo. A determinabilidade passiva o estado do esprito humano antes de qualquer determinao pela impresso dos sentidos (SCHILLER, 2010, p. 91). Do ponto de vista conceitual, a determinabilidade passiva se refere s representaes formais puras da intuio: tempo e espao. Aqui evidente que Schiller se fundamenta na Esttica transcendental de Kant. Consideradas em si mesmas, as formas puras do tempo e do espao so infinitas, uma vez que esto ausentes os limites que provm das representaes particulares de contedos. Mas, na abstrao de todas as suas representaes particulares, a infinitude do espao e tempo s se mantm nas suas representaes vazias, enquanto entes da imaginao. S h realidade do tempo ou do espao quando estes esto dentro dos limites de uma representao singular. Enquanto formas puras da sensibilidade sem referncia a nenhuma determinao dada, tempo e espao so infinitos, mas tambm so apenas fices da imaginao, por isso, sua caracterstica de determinabilidade considerada passiva.

Resta frisar novamente que no temos a experincia de um estado de determinabilidade passiva, esse estado funciona como um comeo hipottico ou conjectural. Ele um pressuposto para a explicao da origem temporal da determinao material, mas digno de nota que essa pressuposio no ocorre apenas no nvel conceitual. Alis, muito antes de se conjecturar sobre essa origem atravs de representaes abstratas, tais conjecturas j eram feitas por meio de imagens. No nvel imagtico da literatura ou da religio, encontramos facilmente a necessidade da inveno de uma imagem que simbolize a infinitude vazia ou irreal desse conceito de determinabilidade passiva: A Era de Ouro de Hesodo, o paraso anterior queda do Genesis, ou mesmo quando pensamos na modernidade , a valorizao de uma primeira infncia presente na literatura desde o Romantismo. A determinabilidade passiva pode ser entendida como esse momento hipottico anterior ao padecimento que o homem sente em relao matria. Esse conceito de uma infinitude vazia possui um estatuto transcendental porque, apesar de no descrever propriamente nenhum estado psicolgico do nimo, colocado como condio de possibilidade para pensar (ou explicar) o incio da determinao material sobre a humanidade.

Assim como uma determinabilidade ser condio para pensarmos o incio da determinao material, Schiller estabelece outro estado que ser

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condio para o incio no tempo da determinao formal no ser humano: a determinabilidade ativa. Mas ao contrrio, da primeira, Schiller precisa afirmar o carter real da determinabilidade ativa, pois ela tem a difcil tarefa de suprimir a determinao material e manter a presena da prpria matria sensvel, sem a qual o ser humano no existiria ou seria outro ser: um anjo ou um deus. Ou, nas palavras de Schiller:

A determinao que [o ser humano] recebe pela sensao tem, portanto, de ser retida, pois ele no pode perder a realidade; ao mesmo tempo, entretanto, medida que limitao, [a determinao passiva] tem de ser suprimida, pois deve ter lugar uma determinabilidade ilimitada. A tarefa, portanto, destruir e conservar a um s tempo a determinao do estado, o que s possvel se lhe opusermos outra [determinao]. Os pratos da balana equilibram-se quando vazios e tambm quando suportam pesos iguais (SCHILLER, 2010, p. 98).

A determinabilidade ativa um estado de equilbrio entre a matria e a forma, mas tal equilbrio no pode ser a ausncia ou a eliminao completa da matria (como era a noo fictcia de determinabilidade passiva). Por isso, o equilbrio aqui almejado significa conseguir com que o impulso formal se faa presente no ser humano em igual medida ao impulso material. A determinao passiva um estado em que a matria tem mais peso do que o formal; a determinao ativa um estado em que, no nvel do fundamento da ao, a forma tem mais peso do que a matria; por fim, a determinabilidade ativa um estado em que a balana possui um equilbrio real entre os dois pesos. Portanto, compreendermos que a determinabilidade suprime a determinao passiva, no pela anulao da matria, mas pela efetivao da forma, ou seja, pela capacidade de tornar o nimo do ser humano receptivo qualidade formal das representaes da razo. 1.4 A DETERMINABILIDADE: INTERMEDIRIO, SIM; INSTRUMENTO, NO

Essa determinabilidade real no um instrumento da determinao moral, por dois motivos: (i) ela no utiliza nem busca como fundamento os princpios formais da moralidade; e (ii) ela condio necessria, mas no suficiente do incio da determinao moral no ser humano. Em outras palavras, ela condio para que a vontade do ser humano se manifeste de maneira mais imediata em relao s

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determinaes naturais, mas a qualidade moral da vontade permanece um efeito direto da forma da lei moral.

A determinabilidade real pressupe apenas o exerccio e o fortalecimento das disposies formais que desde sempre existem no ser humano em sociedade e que no podem ser reduzidas diretamente ao domnio moral, pois tambm pertencem (dentro da tradio kantiana) ao domnio terico e a instncia a priori tambm do gosto. A determinabilidade real visa ao conceito pleno de ser humano, conceito no qual os impulsos formais e materiais possuem a mesma importncia e, desse modo, situa-se no campo esttico. Pelo contrrio, na determinao moral, o nimo precisa ser direcionado, de maneira pura, pelo conceito de liberdade moral; aqui o impulso formal no simplesmente uma disposio, mas precisa ser o fundamento de determinao da vontade e excluir a referncia a qualquer elemento material. A determinao moral tem interesse apenas numa das partes do ser humano e exige a realizao do dever independente de qualquer condio do mundo sensvel, enquanto a determinabilidade real tem interesse no ser humano, por inteiro, deixando em aberto a ndole moral da sua vontade.

Aqui poderia surgir a pergunta: qual o verdadeiro dever do ser humano? O dever com o seu conceito pleno ou o dever com a sua parte puramente racional? No entanto, em Schiller, mais interessante notar como, no desenrolar da vida do ser humano, o progresso3 da determinao moral pressupe o progresso da determinabilidade ativa, ou seja, do campo esttico.

O campo esttico ou o efeito que a beleza tem sobre o nimo justamente essa determinabilidade ativa. Esse campo tem seu domnio e efeitos prprios e, por esse motivo, no pode ser considerado um instrumento para a moralidade; porm, o resultado do impulso esttico no nimo do ser humano condio sem a qual se torna incompreensvel o incio no tempo de uma determinao moral sobre o humano e, portanto, o esttico, mesmo sem se representar desse modo enquanto inteno ou horizonte, um estado intermedirio entre a determinao natural e a determinao moral, intermedirio que no favorece positivamente o

3 A questo do progresso muito interessante. Pois os discursos moralizantes que buscam se impor como limitaes e impedimentos nos campos da esttica ou mesmos em outros campos como o da cincia, da religio, do uso corpo, nunca esto preocupados com o progresso moral, mas sim com o risco da corrupo. Um discurso moralizante, na medida em que prega contra esse conceito vago da corrupo, na verdade, pressupe a incapacidade do ser humano em ser um sujeito moralmente livre. Em suma, o discurso moralizante corrompe ativamente a noo de liberdade humana.

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direcionamento da vontade lei moral. Desse modo, o esttico possui um fim em si mesmo, ou seja, uma autonomia, na medida em que o efeito da beleza independente de qualquer mandamento ou resultado moral e tambm na medida em que o efeito da beleza apenas exclui, da matria, o seu carter determinante sem impor determinao nenhuma vontade do ser humano. Por outro lado, o esttico tambm um meio, ou seja, uma condio intermediria para o aperfeioamento moral do ser humano no mundo, na medida em que torna real um estado zero, um momento de ausncia de determinao que condio negativa (isto , no suficiente) para a compreenso do incio da determinao moral no ser humano.

importante aqui distinguir o que fundamento do que resultado. Em poucas palavras, a determinabilidade real um estado que tem fundamento na autonomia do belo no campo esttico e, simultaneamente, tem como resultado um momento em que o ser humano se pe livre de toda a coero material e se torna capaz de expressar no mundo de maneira imediata a verdadeira natureza da sua vontade (seja tal vontade moral ou no).

importante, frisar por ltimo, que quando no h respeito peculiaridade e autonomia do campo esttico, tambm se perde o estado intermedirio determinao moral, ou seja, compromete-se uma verdadeira efetividade da moral no mundo. Uma instrumentalizao ou limitao do campo esttico, feita por preceitos morais, resulta em perdas para os dois domnios. A peculiaridade do domnio moral uma determinao formal que precisa se efetivar sobre a vontade de maneira autossuficiente, sem o recurso a mbiles sensveis. Recorrer ao esttico para promover intencionalmente normas morais significa tanto a morte da arte quanto o reconhecimento da falncia moral do ser humano na medida em que mistura elementos materiais naquilo que deveria ser puramente formal. Comprometer a autonomia do esttico igualmente comprometer a prpria autonomia moral, em suma, obstruir a capacidade do ser humano em determinar a si mesmo.

Dessa maneira, segundo a proposta da Educao Esttica de Schiller, podemos elencar conceitos, do ponto de vista esttico e do ponto de vista moral, para argumentar como a defesa da autonomia dos dois campos o melhor modo de conceber o ser humano de maneira mais plena e, simultaneamente, mais tica. Por conseguinte, o conflito entre o discurso esttico e o moral significa um desconhecimento, uma desconfiana e um retrocesso sobre as dimenses e as foras do ser humano.

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REFERNCIAS SCHILLER, F. A educao esttica do homem. Trad. de Roberto Schwarz e Mrcio Suzuki. So Paulo: Ed. Iluminuras. 2010

______. Cultura esttica e liberdade. Trad. e introd. de Ricardo Barbosa in Cultura esttica e liberdade. So Paulo: Hedra. 2009.

______. Sobre a utilidade moral dos costumes estticos. Trad. R. Barbosa. In BARBOSA, R. Schiller & a cultura esttica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2004. (pp. 55-67)

KANT, I. Crtica da Razo Prtica. Trad. de Valrio Rohden. So Paulo: Ed Martins Fontes. 2003.

______. Crtica da Faculdade do Juzo. Trad. de Valrio Rohden e Antnio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitria. 2002.

SUZUKI, M. O belo como imperativo. In. SCHILLER, F. A educao esttica do homem. So Paulo: Ed. Iluminuras. 2010

BARBOSA, R. Schiller & a cultura esttica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2004.

II

A CONCEPO JUSFILOSFICA DO ABORTO SOB A TICA DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004)

Reginaldo Csar Pinheiro*

Jos Dias** RESUMO O presente estudo tem por finalidade analisar a concepo jusfilosfica do aborto sob a tica de Norberto Bobbio (1909-2004). Ainda que no se tenham estatsticas precisas, possvel afirmar que grande parcela da sociedade se manifesta favoravelmente ao aborto. Neste aspecto, a viso de Bobbio ganha destaque por ser atual, lanada sob um ponto de vista eminentemente tico e despida de valores religiosos. Surpreende o filsofo o fato de leigos deixarem ao alvedrio dos crentes as assertivas de que no se deve matar. Sob seu prisma, o aborto envolve direitos e deveres de forma bastante conflituosa. Em primeiro lugar, destaca o direito do nascituro de nascer; em segundo, o direito da mulher a no ser sacrificada por uma criana que no quer; e em terceiro, o direito das sociedades em geral, que buscam exercer certo controle de natalidade, com vistas a evitar a superpovoamento das cidades. A soluo encontrada a comparao de direitos, sendo que o direito do nascituro o fundamental e os outros direitos derivados. O direito das mulheres e da sociedade utilizado para

* Unioeste; e-mail: [email protected] ** Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docncia no Ensino Superior pela Unicesumar (2015); Mestre em Direito Cannico pela Pontifcia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itlia (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifcia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itlia (2006); Doutor em Direito Cannico tambm pela Pontifcia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itlia (2005); Doutor em Filosofia tambm pela Pontifcia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itlia (2008). Atualmente professor Adjunto da UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa TICA E POLTICA, da UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosficas e juristas. E-mail: [email protected]; Lattes: lattes.cnpq.br/9950007997056231

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justificar o aborto, mas podem ser alcanados sem ele. Sem embargo, a adoo de mtodos contraceptivos ou de planejamento familiar, so medidas que contemplam os direitos secundrios, mas que s podem ser exercidos at a concepo. Aps a concepo, o direito do nascituro s assegurado com seu nascimento. Muitos sustentam que os altos ndices de aborto seriam justa causa para sua realizao. A debilidade desse argumento se constata por analogia, pois o alto ndice de roubo de carros no legitima tal prtica. Ainda, a mxima meu corpo, minhas regras, a despeito da autonomia da mulher, no aplica em relao ao aborto, pois nesse caso h outro no corpo da mulher.

PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Direito Vida; tica; Imperativo Categrico.

INTRODUO

Sempre que se discute a vida, bem como sobre o Direito Vida, a

primeira vertente argumentativa que se apresenta a jurdica, como se o tema fosse de domnio exclusivo dos juristas a discusso de tais temas. O imaginrio popular entende como responsabilidade da rea jurdica tudo o que for de direito seja assegurado, seja para assegurar. Mas, ao estabelecer o princpio tico No Matar! como um imperativo categrico, Norberto Bobbio remete a discusso do campo estritamente jurdico para o campo filosfico. Haja vista que o estabelecimento de um imperativo categrico o princpio geral e supremo de toda e qualquer moral e da qual a discusso jurdica dele derivada. Pensar no direito vida tambm, mas no s rea do direito. O direito, porm, uma das vertentes derivadas da filosofia a defender a vida como ordem categorial incondicional.

Chama a ateno a expresso de Norberto Bobbio, no livro A Era dos Direitos (2004), em que afirma: o problema fundamental em relao aos direitos do homem, hoje, no tanto o de justific-los, mas o de proteg-los. (p. 23). Parece que, hodiernamente, no se tem dvidas sobre a importncia e o valor da vida para homem. Vale ressaltar aqui que o direito vida se infere a partir de toda e qualquer situao que possa, ainda que minimamente, feri-la ou aniquil-la. Por mais claro que o direito natural vida esteja presente no iderio popular, muito ainda se tem a pensar e refletir sobre tal tema, pois, mesmo com tantos recursos e entendimento respeito do humano, o que mais lhe restringe esse direito seu semelhante.

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Muitos so os ataques humanos contra seus semelhantes que lhes ferem o direito natural de viver. Aqui, porm, limitar-se- quilo que Bobbio pensa como impedimento vida e ao direito de viver que atende a legalidade, isto , fere o imperativo categrico, mas est de acordo com a legislao e a moral vigente. Nesse sentido, constatar as excees que foram criadas dentro da legislao que regulamenta a conduta das pessoas, conferindo-lhes o direito e impedir o direito, parece minimamente preocupante. Desse modo, como defender ou discursar, para alm dos plpitos religiosos, a defesa de um imperativo categrico onde uma legislao menor o fere diretamente? Como pensar o direito de viver, ignorando-o como imperativo tico vlido em sentido absoluto, conforme defendeu Bobbio, em uma cultura e uma moral que visa legitimar e legalizar condutas que ferem deliberadamente tal direito?

Por essa razo, o presente estudo visa analisar a relao entre as (in)coerncias da legislao brasileira iluminadas com o pensamento de Norberto Bobbio no que tange a vida e o seu imperativo categrico No Matar!; com especial ateno aos aspectos legais e garantidores dos direitos vida do nascituro e, de uma mesma legislao, que permite retir-la. Situao que, aparentemente, apresenta-se certa incoerncia e sem qualquer parmetro conceitual.

2.1 A FUNO DA LEI NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO

As discusses sobre o aborto, do ponto de vista filosfico,

percorrem tambm e necessariamente o campo jurdico e a problemtica nele existente. Afinal, atualmente a produo legislativa no obedece a uma lgica formal e material razovel (NUNES e BUSSINGUER, 2012) e que os parlamentares consomem seu tempo e suas energias na apresentao e votao de projetos de interesse meramente pessoais e voltados, muitas vezes, para sua prpria manuteno no sistema. (NUNES e BUSSINGUER, 2012). Ainda que no sejam interesses de ordem pessoal, os legisladores propem e aprovam leis sem maiores delongas ou esclarecimentos conceituais basilares. Sucumbem presso de grupos segmentados da sociedade. Assim, em uma clara viso mercantil eleitoreira da poltica um sistema legislador e construdo.

Dessa constatao, nota-se, em princpio, um desvio da finalidade precpua das leis idealizada por Montesquieu, segundo o qual as leis, no seu significado mais extenso, so relaes necessrias que derivam da

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natureza das coisas (MONTESQUIEU, 1996, p. 11). De modo que defender qualquer legislao que incida contra a vida, fere diretamente o direito natural de viver e o direito natural da coisa humana sua vida. Rousseau tambm entende que a vontade geral, consubstanciada nas leis deve partir de todos para aplicar-se a todos, e de que ela perde sua explicao natural quando tende a algum objetivo individual e determinado (ROUSSEAU, 1996, p. 55). (Grifou-se). Com isso, a vontade do legislador deve corresponder aos anseios da coletividade. Muito embora tais anseios devam se pautar na vontade geral e no na vontade de todos. A vontade de todos a soma das vontades individuais, enquanto que a vontade de todos manifesta na vontade do legislador, com assentimento da assembleia, por ser a melhor deciso a todos, independentemente dos desejos e necessidades individuais. Percebe-se, assim, um claro desvio de conduta do legislador democrtico que se dispe a atender e propor leis que violem o bem maior do humano que sua vida.

Na obra O Futuro da Democracia, Bobbio discorre sobre as diferenas entre o governo dos homens e o governo das leis. O primeiro, governo dos homens, governam sob a gide de suas paixes, atendendo as vontades individuais. J o governo das leis que assegura igualdade e proteo aos cidados. Para Bobbio o governo das leis garante a igualdade contra as discriminaes arbitrrias impostas pelo tirano (BOBBIO, 2000b, p. 641) e, por isso, conclui que a democracia o governo das leis por excelncia. (BOBBIO, 2000a, p. 185). Portanto, no estado democrtico que se pode falar em direitos que precisam ser assegurados com igualdade. Garantidos por uma legislao que vise proteger a vida de todos, sem excluso de ningum, por mais que fira alguma vontade individual.

Assim, se as leis so importantes para Bobbio enquanto modo de governar, torna-se de relevncia tambm saber se o seu contedo pode conspirar em desfavor da democracia, infringindo direitos. E considerar a hiptese do confronto da legislao com algum imperativo categrico ou, na espcie, com o imperativo categrico No Matar! A dvida persistente, pois em certa feita Bobbio afirmou: Que existam leis igualitrias e leis desigualitrias um outro problema: um problema que diz respeito no forma da lei mas ao contedo (BOBBIO, 2000a, p. 172). De forma resumida, a lei quanto sua forma, abrange aspectos relacionados legitimidade e competncia para legislar; sendo que quanto ao seu contedo, abrange aspectos relacionados ao regramento estabelecido, que segundo Bobbio, pode trazer algum contedo justo ou injusto.

A concepo jusfilosfica do aborto... 31

Aprende-se com Bobbio que possam existir leis que no promovam ou mesmo desprezem a igualdade dos legislados. Afinal, anota-se de Canotilho, que as leis verdadeiras so as leis boas e justas dadas no sentido do bem comum (CANOTILHO, 2003, p. 713) e de Laurentis e Dias que o contedo de toda lei deve se identificar com um ideal de justia, racionalidade e universalidade (2016, p. 167). A resposta parece estar no prprio Bobbio que amparado em Rousseau (1996, p. 44) afirmou que a atribuio do Estado do direito prpria vida serve no para destru-la, mas para garanti-la contra o ataque dos outros (BOBBIO, 2004, p. 150).

Ainda para problematizar, qualquer Estado, valendo-se de seus legisladores, pode promulgar em sua constituio a pena de morte. Assim, matar se torna legalmente aceitvel e, em alguns casos, at recomendvel. Rousseau assegura que:

A pena de morte infligida aos criminosos pode ser encarada, de certo modo, sob o mesmo ponto de vista: para no ser a vtima de um assassino que algum consente em morrer, caso se torne assassino. Nesse tratado, longe de dispor de sua prpria vida, s se pensa em garanti-la, e no para presumir-se que, por isso, qualquer dos contratantes premedite-se enforcar (ROUSSEAU, 1996, p. 44).

Sob outro prisma, Dias interpreta o pensamento bobbiano em relao ao aborto e ao direito vida como sendo direitos de primeira gerao, ao afirmar:

Segundo Bobbio, o conflito poltico por excelncia o conflito entre o poder de uns e as liberdades dos outros. Poder e liberdade so dois termos correlatos: numa relao intersubjetiva quanto mais se estende o poder de um dos sujeitos, tanto mais se restringe a liberdade do outro. Aos pedidos de limites do poder do Estado correspondem aos direitos de liberdade ou a um no-fazer da parte do Estado, que a chamada a primeira gerao dos direitos. Este no-fazer da parte do Estado pertence o direito vida, em sentido negativo: No matar! Dito com outras palavras: Deixar viver! (2011a, p. 50).

Desse modo, o Estado tem no s o poder, mas o dever de garantir a vida e a viver; como um guardio dos direitos de primeira gerao e, por essa razo, no lhe conferido a tarefa ou a faculdade de elaborar leis que conspirem contra a vida.

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2.2 O IMPERATIVO CATEGRICO Torna-se imperioso questionar se uma lei pode ser boa, justa ou

decorrente da vontade de seu povo, se ela ignora um imperativo categrico? Especificamente em relao ao Direito Vida, como podem ser escritas ignorando o imperativo categrico No Matar!?

Jos Francisco de Assis Dias (2011b, p. 17), destaca que o imperativo categrico No Matar! surgiu de uma entrevista concedida por Norberto Bobbio ao jornal Corriere dela Sera, em 8 de maio de 1981, onde, foi perguntado: Toda a sua longa atividade, professor Bobbio, os seus livros, o seu ensinamento sob o testemunho de um esprito firmemente laico; imagina que ter surpresa no mundo laico por estas suas declaraes [referindo-se sobre sua posio contrria ao aborto]?. E Bobbio respondeu: Eu queria perguntar qual surpresa pode existir no fato que um leigo considere como vlido em sentido absoluto, como um imperativo categrico, o No matar!; e me surpreendo que os leigos deixem aos que creem o privilgio e a honra de afirmar que no se deve matar.

Nesse aspecto, cabe observar que o imperativo categrico No Matar!, formulado por Bobbio, partiu das reflexes de Kant, o qual asseverou que um imperativo uma regra prtica pela qual uma ao em si mesma contingente tomada necessria (KANT, 2003, p. 65). Logo, a partir da definio de imperativo categrico em Kant age sempre em conformidade com uma mxima que desejarias que pudesse ser ao mesmo tempo uma lei universal (2003, p. 67-68) que Bobbio formula o seu imperativo categrico No Matar!. Ento, a discusso que se apresenta no campo da legislao perpassa e depende, necessariamente, do campo filosfico. Visto que o imperativo no propriamente pensado como uma norma de justia, mas como um princpio geral e supremo da moral no qual est contido o princpio da justia (KELSEN, 2009, p. 56).

Esses objetivos individuais e determinados das leis, criticados por Rousseau, ficam mais demonstrados quando se verifica, preliminarmente, que a produo legislativa acerca do Direto Vida revela valores muito distintos. Cumpre esclarecer que este estudo tomar como parmetro delimitador as quatro formas de explicitao do Direito Vida estabelecidas por Bobbio: no matar, no abortar, socorrer quem est em perigo de vida e oferecer os meios de sustento a quem deles for carente. Afirma Bobbio:

J que no h direito de um indivduo sem o correspondente dever de outro, e j que todo dever pressupe uma norma imperativa, o debate

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sobre as quatro formas em que se explicita o direito vida remente ao debate sobre o fundamento de validade e, eventualmente, sobre os limites do dever de no matar, de no abortar (ou de no provocar o aborto), de socorrer quem est em perigo de vida, de oferecer os meios mnimos de sustento a quem deles carente (BOBBIO, 2004, p. 170-171).

Sob o prisma de Bobbio (1981), o aborto suscita discusses complexas, pois envolvem direitos e deveres de forma bastante conflituosa. Em primeiro lugar, destaca o direito do nascituro (o direito de nascer); em segundo, o direito da mulher a no ser sacrificada por uma criana que no quer; e em terceiro, o direito das sociedades em geral, que buscam exercer certo controle de natalidade, com vistas a evitar a superpovoamento das cidades. A soluo encontrada a comparao de direitos, sendo que o direito do nascituro o fundamental e os outros (o da mulher e o da sociedade), direitos derivados.

O direito das mulheres e da sociedade, muitas vezes utilizado para justificar o aborto, mas podem ser alcanados sem o recurso do aborto. Sem embargo, a adoo de mtodos contraceptivos ou de planejamento familiar, so medidas que contemplam os direitos secundrios, mas que s podem ser exercidos at a concepo. Aps a concepo, o direito do nascituro s pode ser satisfeito permitindo o seu nascimento. Muitos sustentam que os altos ndices de aborto seriam justa causa para sua realizao. Contudo, o argumento dbil, pois o fato de tambm se ter altos ndices de roubo de carros, no se legitimaria o roubo nesta modalidade.

Sob outro prisma, a mxima meu corpo, minhas regras, a despeito da autonomia da mulher sobre o prprio corpo, no deve ser aplicado em relao ao aborto, pois no caso do aborto h um outro no corpo da mulher. Nas palavras de Bobbio (1981): O suicida dispe de sua prpria vida. Com o aborto se dispe de uma vida alheia.

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2.3 O IMPERATIVO E A LEGISLAO

A lei brasileira estabelece parmetros muito distintos em relao

ao direito vida e notadamente em relao ao aborto. Exemplificativamente, a Lei n 11.804/2008 estabeleceu, em seu art. 2, o direito aos alimentos gravdicos, com vistas a assegurar os meios materiais necessrios ao desenvolvimento do nascituro:

Art. 2o Os alimentos de que trata esta Lei compreendero os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do perodo de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepo ao parto, inclusive as referentes a alimentao especial, assistncia mdica e psicolgica, exames complementares, internaes, parto, medicamentos e demais prescries preventivas e teraputicas indispensveis, a juzo do mdico, alm de outras que o juiz considere pertinentes. (grifou-se)

O mesmo se verifica no Cdigo Civil Brasileiro, em seu art. 2, estabelece que a personalidade civil da pessoa comea do nascimento com vida; mas a lei pe a salvo, desde a concepo, os direitos do nascituro; deixando claro que se estabeleceu a concepo como marco jurdico inicial de existncia da vida e que se assegurou os direitos do nascituro.

Porm, o Cdigo Penal Brasileiro, estabeleceu hipteses em que no se pune o aborto se no h outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (art. 128, incisos I e II). Acrescente-se, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 54, considerou ausente de punio o aborto de feto anencfalo. A ADPF a abreviatura de Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental, que se constitui em um tipo de ao judicial proposta exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, visando provocar o Supremo Tribunal Federal a analisar alguma matria sob a tica da Constituio Federal. Nesse sentido:

ESTADO LAICIDADE. O Brasil uma repblica laica, surgindo absolutamente neutro quanto s religies. Consideraes. FETO ANENCFALO INTERRUPO DA GRAVIDEZ MULHER LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA SADE DIGNIDADE AUTODETERMINAO DIREITOS FUNDAMENTAIS CRIME INEXISTNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretao de a interrupo da gravidez de feto

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anencfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Cdigo Penal. (STF. ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACRDO ELETRNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-00011).

Essa diferena valorativa e at mesmo conceitual do direito natural vida observada na legislao brasileira; o que provoca uma situao, no mnimo, inquietante, pois a vida humana no deveria ser matria que comportasse excees. No olvidar-se, sobre a possibilidade de se admitir a perda do Direito Vida, embora no sejam consideradas excees, Bobbio afirmou: As circunstncias nas quais se pode perder o direito vida so sobretudo duas: quando tal direito entra em conflito com um direito fundamental considerado como superior; e quando o titular do direito no reconhece e viola o igual direito dos outros, ou quando se choca com um outro direito ou com o direito do outro. (BOBBIO, 2004, p. 172-173). Em outras palavras, tratou-se dos institutos da legtima defesa e do estado de necessidade que, em que pese admitidos em seu aspecto legal, no so considerados legtimos por Bobbio, pelo fato do Estado possuir o monoplio da fora e, portanto, outros meios para o estabelecimento de sanes (DIAS, 2011b, p. 71).

Afinal, conforme asseverou Dias Bobbio afirmou que o princpio tico No matar! vlido em sentido absoluto, como um imperativo categrico, porque a vida humana o valor primordial enquanto condio para todos os valores (DIAS, 2008, p. 164-165). Ainda que:

Em outras palavras, o princpio tico No matar um imperativo categrico por que: - categrico o valor da vida que esse imperativo entende proteger; - impe um dever perfeito em vista de proteger o valor primordial da vida humana, comum a todos os homens; - no tem outros argumentos para impor-se seno a sua prpria fora, porque o dever vai cumprido por princpio, independentemente das suas razes, sem alguma considerao das circunstncias em que vem de vem em quando aplicado; - porm, no prescreve outra conduta que aquela assumida por livre deciso no respeito do dever moral (DIAS, 2008, p. 357).

Assim, a vida

o direito fundamental por excelncia de todos os homens; no de alguns privilegiados ou daqueles psquicos e somaticamente melhor

36 Ressonncias filosficas - Artigos

desenvolvidos. Mas de todos os indivduos que compartilham a mesma natureza humana: a humanitas (DIAS, 2008, p. 358).

Dessa constatao, possvel inferir que se negligenciarmos, sob qualquer aspecto, o Direito Vida, todos os demais direitos estaro sob risco, pois so deles dependentes e derivados. No por acaso, afirmou Moraes que o direito vida o mais fundamental de todos os direitos, j que se constitui em pr-requisito existncia e exerccio de todos os demais direitos (MORAES, 1999, p. 60-61). No mesmo sentido, afirmou Maluf:

O primeiro dos direitos cuja garantia ressalta dos termos do art. 153 o direito vida, que, alis, pressupe todos os outros direitos. de evidncia axiomtica frisa Nogueira Itagiba que, excludo o direito vida, no se necessitaria falar em direito liberdade, segurana individual e propriedade (MALUF, 1980, p. 392-393).

2.4 CONSIDERAES FINAIS

Finalmente, tem-se que No Matar! entendido aqui como o direito vida e a viver constitui-se em um verdadeiro imperativo categrico kantiano, devendo ser aplicado, em sentido absoluto, tambm em relao ao aborto ou a qualquer outra forma de ceifar a vida humana. Da decorre que qualquer legislao que no assegure esse direito imperioso da vida em toda e qualquer condio e situao no ser, minimamente, igualitria.

A funo da legislao e normatizar e regularizar costumes culturalmente consolidados e punir queles que no cumprem ou agem de acordo com os mesmos. Por que? Para salvaguardar a perpetuao da existncia humana. Essa a ideia da lei. Existe para assegurar que tenhamos o direito de viver e que tal vida seja o mais digna possvel. Qualquer lei que fira ou viole tal segurana est em desacordo com os princpios filosficos e categoriais que desde os contratualistas esto buscando fundamentar.

A concepo jusfilosfica do aborto... 37

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III

AFINAL DE CONTAS, QUEM SOMOS NS?

sobre a interpretao heideggeriana da o na fsica

Hugo Tostes Martins* RESUMO

O presente texto visa tratar da interpretao heideggeriana do conceito de

o compreendida na investigao que tece a respeito da no

contexto da Fsica de Aristteles. Segundo Heidegger o termo na cunhagem aristotlica ganha uma significao fundamental e decisiva. A

palavra designa "aquilo que se encontra a defronte". Assim, a ao modo daquilo que se encontra defronte; significa: presente enquanto presentar por si. O que nos coloca diante de uma metafsica outra, que com a transformao da por natura, com os romanos, desemboca no moderno modo como nos relacionamos com o ente em sua totalidade.

PALAVRAS-CHAVE: O; Metafsica; Modernidade

INTRODUO O ttulo desse trabalho j nos coloca numa postura fundamental

para o modo como nos compreendemos a cada vez que somos. "Afinal de contas" - o que isso quer dizer? H realmente um "afinal de contas"? Por "contas" entendemos aquilo que o resultado de um procedimento lgico pautado no clculo. Calculamos um mais um mais um e no final das contas dizemos que o resultado trs; se que calculei bem. Temos at um verbo para isso - calcular. Calculamos as coisas. Os entes. O problema que com o "afinal de contas", tal qual expresso lingustica, escondemos uma determinao fundamental, quando pensamos j modernamente. Calculamos as coisas e a ns mesmos, sendo ns pensado ento como uma coisa entre outras coisas. Em alguma medida trataremos dessa

* Universidade Estadual de Maring; e-mail: [email protected]

42 Ressonncias filosficas - Artigos

questo, contudo sem desviar demasiadamente do propsito do texto, que logo ser apresentada.

A seguinte pergunta ecoa: o que uma coisa? intricada a discuo sobre a coisidade da coisa e no que consiste a diferena entre uma coisa e um ente. Se que h tal diferena. Cirsunscreveremos antes o debate para o que chamamos por "ente" ou o pensando abstratamente:

"entidade"; que uma traduo possvel da palavra grega o. Portanto,

sobre a o grega que estaremos tratando. Todavia a pensaremos num contexto bem especfico, a saber, na Fsica de Aristteles. Contudo

invetigaremos o conceito de o na Fsica segundo a interpretao heideggeriana. A rica possibilidade interpretativa do termo e assim outras acomodaes possveis de sua traduo, como "substncia" ou "essncia", no sero explorados explicitamente.

Conduzir um termo cunhado em um tempo histrico e pertinente a uma outra cultura para nossa no uma tarefa amide simples e precisa ser cautelosamente acomodada. Tal qual como o transplante de uma planta para um novo solo, preciso conhecer as peculiaridades pertinentes, para que as razes possam da retirar o alimento adequadamente e conforme convm. A acomodao converge inevitvelmente para ns e nos coloca como uma questo que diz respeito ao modo como nos compreendemos. assim, que numa determinada altura de nosso debate, nos encaminharemos mesmo que tangentemente, para a questo da modernidade e do clculo. Em vista das consideraes heideggerianas sobre a metafsica da modernidade e a relao dessa com

sua interpretao do conceito de o na Fsica de Aristteles.

3.1 A INTERPRETAO HEIDEGGERIANA DE O

A interpretao heideggeriana do conceito de o a que iremos nos referir est localizada na investigao que tece a respeito da compreendida no contexto da Fsica de Aristteles. Heidegger aponta que a traduo romana do termo por natura conduziu posteriormente a uma alterao fundamental na maneira como os gregos a concebiam; situao essa relacionada com uma outra metafsica. Entendendo aqui, no contexto heideggeriano, por metafsica o modo como nos relacionamos com ente em sua totalidade. Conduzir um termo de um contexto e tempo para outro nunca uma tarefa isenta de desafios, o que transcorre em toda preocupao heideggeriana de dar voz ao que o conceito traz de sua mxima significancia no lugar e como foi utilizado. Proceder esse que leva

Afinal de contas, quem somos ns? 43

a adentrarmos no domnio do outro, daquilo que no familiar e na condio de estranhamento perceber com maior acuidade o que nos pertence e como nos pertence. A insistncia etimolgica como um escavar e descobrir um mundo que est sob a poeira dos tempos, mas que dizem sobre a formao de nosso prprio modo de pensar.

Destarte a pertinencia est em compreender a tal como os gregos, e no que nos toca, na cunhagem aristotlica empenhada na Fsica, afim de embrenharmos uma correta interepretao do que est em jogo ou ao menos assim o tentarmos.

Traado esse horizonte, a tem uma fundamental e

fundamental porque fundamentante, relao com o conceito de o. O que tentaremos explicitar ao longo do texto.

Para Heidegger, o conceito de tem um significado que no meramente arbitrrio. Ele que est relacionado com o modo como ns nos voltamos para os entes em geral. A cada vez que esse "voltar-se" se

faz de uma determinada maneira funda uma . O que vai para o ente em seu alm desse voltando para o mesmo uma vez que est sempre em um direcionar para o ente para ir alm. O que trata da maneira como inquirimos sobre a verdade do ente e o modo como respondemos, a cada vez que somos, a esse inquirir. Mesmo que nada saibamos sobre esse inquirir, j nos situamos num campo pertinente a esse inquirir no comportamento que emitimos no mundo ao sermos. Uma investigao sobre a nesse encaminhamento um perscrutar sobre a metafsica grega e em estranhamento, um compreender a nossa. Tal que perguntar pelo ente em sua totalidade perguntar pela .

A disposio estrutural da respectiva verdade "sobre" o ente no seu todo chama-se "metafsica". No importa se essa vem expressa em sentenas ou no, se o que expresso se transforma em um sistema ou no. Metafsica aquele saber no qual a humanidade da histria do Ocidente guarda a verdade das relaes com o ente na totalidade e a verdade sobre esse. Meta-fsica "fsica" em um sentido plenamente essencial - isto ,

um saber a respeito da ( ). (HEIDEGGER, 2008, p. 256)

No entanto, qual o caminho aristotlico que nos reporta a um saber a respeito da ? Heidegger destaca o termo , cujo o conceito no projeto sobre a determinao sobre a essncia da fundamental. Compreenderemos como mobilidade e que na interpretao que estamos seguindo reporta ao cerne da delimitao da

44 Ressonncias filosficas - Artigos

essncia do movimento - ; tal qual como trao fundamental da . A questo do movimento passa a ser ento uma pegunta fundamental. Aristteles distingue diversos tipos de movimento, mas isso no corrobora que prefere um tipo em relao a outro. As diversas concepes de parecem conduzir para um questionamento sobre a fundamentao da essncia da como ; a despeito de seus diferentes modos de acontecer. O "ser movido" aparece como uma caracterstica essencial da e, portanto, diz algo a respeito do ser da

- . A e enquanto "" o tal qual . O que a est, o est tal qual como est - repouso ao olhar, mas est mesmo ao olhar como o que o descobre como movimento. Co-pertinencia de: descobrir no e em repouso e movimento.

A leitura heideggeriana sobre esse ponto pode ser encontrada

quando interpreta a seguinte passagem da Fsica: "

" (A. 2, 185 a 12ss). Sobre ela, escreve:

/ significa a conduo para aquilo que se v, quando olhamos de antemo para alm do ente. Mas em que direo? Para o ser. s quando j temos em vista o arbrico que podemos con-statar rvores singulares. O ver e tornar visvel o que assim j est na mirada como o

arbrico . A o "concluir" (Ausmachen) no duplo sentido de: primeiro elevar viso e depois fixar ao mesmo tempo o que foi visto. (HEIDEGGER, 2008, p. 256)

A circunscrio do problema da como um problema metafsico e assim um indagar pelo ser do ente que temos em vista como , trata de sua essncia enquanto aquilo que o essencializa. Heidegger conceber como a "causa originria".

A questo da causa originria no est na relao de causa e efeito, como algo que causa outro algo. Antes, o abrir mesmo enquanto possibilidade para o algo - para que o ente seja o que . A abertura como mbito do acontecimento da . Causa original que nos coloca numa relao com o constante enquanto insconstante. Constante concebido no pela predominancia de um algo no tempo. Mas o eclodir da presena, "aco, entendida a partir da correlao entre a potncia e o acto como o pr-se em obra da verdade" (BLANC, 2014, p.1). Tentaremos tornar isso mais claro ao longo do texto.

Segundo Heidegger os gregos no pensavam o contante a partir da contraposio. Para ele o pensamento moderno pautado na

Afinal de contas, quem somos ns? 45

subjetividade que possibilita esse modo de compreender. Ou seja, quando temos um sujeito que observa um objeto que fora dele se mantm constante no tempo. Destarte uma subjetividade em vista de uma objetividade. Diversamente, o constante grego da , no entender heideggeriano, aquilo que perdura por si mesmo em si mesmo no eclodir da abertura da causa originria.

Pensaramos de maneira completamente estranha aos gregos, se quisssemos compreender o constante como objeto que se nos contrape. Contra-posto a "traduo" de objeto. O ente s pode ser experimentado como objeto onde o homem se tornou o sujeito, que na objetivao daquilo com que encontra experimenta a relao fundamental para com o ente como a dominao e amestramento do mesmo. Para os gregos, o homem jamais sujeito; e, por isso, o ente no-humano tambm jamais ter o carter de objeto (contra-posto). aquilo a que se deve um modo especfico de estar-em-si-mesmo do constante. (HEIDEGGER, 2008, p. 258)

Destacado a distino entre o constante grego e moderno a

investigao heideggeriana ir apontar a importncia da para tal.

Afirma Heidegger que "a " (2008, p. 259). Mas o que a ?

Segundo o encaminhamento que tomamos a o ponto de partida e o dispor da mobilidade. Uma vez que no pelo modo da contraposio

moderna que estamos pensando o contante da pela que encontraremos a chave interpretativa para compreendermos aquilo que

perdura a cada vez na tal como - entidade. O ente desvelado enquanto presena tem em-si um dispor para e como mobilidade que o

mantm enquanto o sendo. nesse carter da que encontramos o constante e no na contraposio.

Buscando a essncia da vimos que a mobilidade lhe pertence e ao modo que a mesma aparece num determinado ente enquanto constante e como movimento. Tambm delineamos que essas caractersticas diferem no entender de Heidegger do modo moderno de compreendermos o que se mantm no movimento, concluso essa

chegada pela sua interpretao do conceito de como partida e dispor da mobilidade que a engloba a cada vez e a mantm. Agora cabe sublinhar que toda mobilidade uma transformao. Uma . Um algo que leva a outro algo. Contudo, a como transformao deve ser pensada nesse contexto como "e-rupo". O que brota, surge, com a abertura do ser o desvelar. Trata-se do modo especfico de como os entes

46 Ressonncias filosficas - Artigos

vem a presena a cada vez. Escreve Blanc:

O movimento, na sua tripla expresso (deslocao de lugar, crescimento e diminuio e alterao), apresenta a estrutura formal de uma "passagem de isto a isto" (metabol ek tinos eis ti), atravs da qual algo, at a velado e ausente, aparece, vem presena. Assemelha-se assim "fabricao", que , tambm ela, um movimento de "trazer-para-diante" (hervor-bringen), uma produo, porm no tem, como esta, fora de si o seu princpio motor, mas nele. A natureza , por isso, um "princpio originante" (arch) que se pe a si mesmo em presena, um eclodir que se desdobra num regressar a si, uma gnese que se retira em si e se ausenta. (2014, p. 119)

Como partida e dispor para o movimento-transformao, "

" (HEIDEGGER, 2008, p. 260). Conforme vimos, a metafsica moderna desvela os entes como

objetos. Esse carter desmboca na disponibilidade dos objetos ao sujeito, pensados como contraposio. O a e a mo para a utilizao - um utilizvel, portanto. Todavia, segundo a leitura heideggeriana, Aristteles no descarta a utilizibilidade dos objetos, mas reserva para essa especfica relao o termo .

Os utenslios por no possurem uma neles mesmos so, ao

modo como so, diferentes da ao modo da , que possui a nele mesma. Assim, a desvela a diferentemente. Uma cama,

por exemplo, objeto da , ganha seu aspecto () diversamente de uma rvore. Nesse sentido, Heidegger pode afirmar que a rvore tem "mais" do que a cama - a rvore por si mesma e a cama no. A de cada qual so diferentes. Uma ao modo de ser contruda, um

objeto da , e a outra como um ente () que por si mesma. Entretanto alerta Heidegger que no devemos tomar a como

algo que se faz a si mesmo. Tal qual um artefato que faz a si mesmo. Lembremos que a no um artefato, ela pode ser ao modo do artefato. A por si mesma, mas no se faz a si mesma. Poderamos facilmente cair, por familiaridade, no conceito de "orgnico" ou "organismo", como um artefato que faz a si mesmo, que se auto-produz. O que no o caso. A discrepncia, entre um ente ao modo da e um

ao modo da (que por si mesma), reside no fato que a s pode vir ao encontro , mas no ser ela mesma. A no faz a si mesma, mas por si mesma a cada vez que .

A pedra de toque est na compreenso do conceito de . O

Afinal de contas, quem somos ns? 47

que proporciona clareza sobre a distino entre artefatos da e

ao modo da . Como o leitor j deve ter percebido, ora usamos o

termo ente, ora . Por ente podemos entender um determinado. Se temos um lpis em nossas mos, podemos dizer que temos um determinado ente em nossas mos. Contudo, o termo "ente" pode ser usado para todo e qualquer ente. Falamos "ente" e no o especificamos explicitamente. Todava, delineando cautelosamente o que Heidegger quer

referir por , devemos ter em vista a entidade do ente; o que trata do abstrato de "ente". A entidade aquilo que caracteriza o ente enquanto tal.

Para nossos fins, evitaremos utilizar a traduo e manteremos o

termo como cunhado em grego - . Mas cabe ressaltar, que para

Heidegger, "entidade" a traduo mais adequada para .

A frase decisiva diz: - e tudo isto - a saber, o ente que provm da - possui o ser do modo da entidade. A expresso "entidade" (Seiendheit), bem bruta para a escuta habitual, a nica

traduo adequada para . Todava, tambm essa expresso no diz muito, sim, ela quase no diz nada. E precisamente neste ponto que reside a sua vantagem: evitamos as outras "tradues" correntes, isto ,

interpretaes de como "substncia" e "essencialidade".

, isto , entidade - aquilo que caracteriza o ente como um tal, precisamente o ser. (2008, p. 272)

O termo no expressamente, a princpio, um termo filosfico. na cunhagem aristotlica que ganha uma significao

fundamental e decisava. A palavra designa "aquilo que se encontra a defronte". A ao modo daquilo que se encontra defronte; o que conforme estamos acompanhando significa: presente enquanto presentar por si. Constante e movimento. A si mesmo enquanto transformao no presentar.

Cabe, contudo, explicitar em que medida a . Ou seja, como "ela possui o carter da entidade (do ser)" (HEIDEGGER, 2008, p. 273). Para isso, Heidegger chama ateno, para o uso do "particpio

de modo correspondente com o " (2008, p.273). signifigca tanto um determinado ente, como "isto que ". Igualmente, no

olhar heideggeriano, pode significar tanto "o que se encontra defronte", como "o prprio encontrar-se defronte" (2008, p.273).

Na Fsica encontramos a seguinte passagem: "

" (192b 36-37). Heidegger entender

48 Ressonncias filosficas - Artigos

essa passagem da seguinte maneira: "pois a sempre algo assim como um encontrar-se defronte e "em" algo que se encontra defronte" e logo acrescenta: "Gostar-se-ia logo de apontar que aqui traduzimos de

modo "falso"; a frase de Aristteles no diz: , ela no fala sobre um encontrar-se defronte, mas sobre algo que se encontra defronte" (HEIDEGGER, 2008, p. 273). A ligeira diferena desagua na

compreenso j muitas vezes mencionada de como "presena". Segundo Blanc, "a originalidade da leitura heideggeriana de

Aristteles reside no seu carcter fenomenolgico" (2014, p. 215). A

compresso de como presena desdobra-se numa srie de questionamentos. Podemos mesmo indagar a pertinncia etimolgica da leitura heideggeriana dos termos gregos, mas de sobremaneira o lugar de suas contribuies para pensar o que o fenmeno. Levando em

considerao a importncia que atribui a como a maneira do ser essencializar a si mesmo tal qual como .

Fenmeno, na linguagem heideggeriana, o que eclode no existir e que presenteia a si mesmo. Se esse o caso, temos aqui uma compreenso do ente em sua totalidade - uma metafsica, que pauta outro desvelamento - acontecer. Esse, por sua vez, ocorre histricamente. Isso significa que o acontecemento pertence a um tempo historial, e o modo como ocorre marca o comportamento do homem como poca. A antiguidade, o medievo, a modernidade. Uma poca o modo como o acontecimento acontece em uma e numa determinada compreenso do ente em sua totalidade, a cada vez que o homem .

A interpretao heideggeriana nos conduz a pensarmos a nossa prpria relao com o ente em sua totalidade, na medida em que causa um estranhamento quando pensamos sobre a maneira grega de ser.

Quando os gregos concebem o ser ora como o postar-se-em-si

- substa