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Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 14, vol.21(2): 305-328 (2010) Canoa não é força, é opinião: O Vale do Jequitinhonha contado e cantado por canoeiros Patricia Guerrero 1 Resumo O Vale do Jequitinhonha, região situada no nordeste de Minas Gerais, há anos vem carregando os problemas e o estigma de miserável que têm marcado, profundamente, os discursos produ- zidos sobre ele. A proposta deste artigo é compreender o Vale através do olhar de canoeiros do rio Jequitinhonha e, mais especi- ficamente, através da memória social e dos discursos por eles pro- duzidos, de modo a conhecer um pouco da história dessa região contada por pessoas que dela fazem parte. É importante salientar que, nesse trabalho sobre memória de canoeiros, o rio aparece como um dos elementos principais, senão o principal, para pensar o processo de rememoração, pois, além de permear, é ele quem conduz, na maioria das vezes, a narrativa. Palavras-chave: memória; narrativa; canoeiros; Vale do Jequiti- nhonha. 1 Mestre em Antropologia pela Unicamp. Doutora em Educação pela UFSC. E-mail: [email protected]

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Revista antropológica

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  • Revista ANTHROPOLGICAS, ano 14, vol.21(2): 305-328 (2010)

    Canoa no fora, opinio: O Vale do Jequitinhonha

    contado e cantado por canoeiros

    Patricia Guerrero 1

    Resumo O Vale do Jequitinhonha, regio situada no nordeste de Minas Gerais, h anos vem carregando os problemas e o estigma de miservel que tm marcado, profundamente, os discursos produ-zidos sobre ele. A proposta deste artigo compreender o Vale atravs do olhar de canoeiros do rio Jequitinhonha e, mais especi-ficamente, atravs da memria social e dos discursos por eles pro-duzidos, de modo a conhecer um pouco da histria dessa regio contada por pessoas que dela fazem parte. importante salientar que, nesse trabalho sobre memria de canoeiros, o rio aparece como um dos elementos principais, seno o principal, para pensar o processo de rememorao, pois, alm de permear, ele quem

    conduz, na maioria das vezes, a narrativa. Palavras-chave: memria; narrativa; canoeiros; Vale do Jequiti-nhonha.

    1 Mestre em Antropologia pela Unicamp. Doutora em Educao pela UFSC. E-mail:

    [email protected]

  • Revista ANTHROPOLGICAS, ano 14, vol.21(2), 2010

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    Abstract The Jequitinhonha Valley, a region in Minas Gerais state, North-eastern Brazil, since a long time suffers problems and stigma of misery that deeply influenced the discourses about it. The idea of this article is to understand the Valley from the point of view of its oarsmen, more specifically, by social memory and production of discourses, for knowing a part of the history of a region counted by people that belong to it. It is important to emphasize that in this text the river appears as one of the principal compo-nents, if not the most important at all, for thinking about pro-cesses of remembrance, since, besides traversing the valley, it is the river which mostly represents the narrative string. Keywords: memory; narrative; oarsmen; Jequitinhonha Valley.

    Introduo

    O Vale do Jequitinhonha, regio situada no nordeste do estado de Minas Gerais, h anos vem carregando os problemas decorrentes da seca e o estigma de miservel que tm marcado, profundamente, os discursos produzidos a seu respeito.

    Dentre os inmeros sujeitos presentes neste universo, pretende-se, com esse trabalho, compreender o Vale do Jequitinhonha atravs do olhar de canoeiros do rio Jequitinhonha e, mais especificamente, atravs da memria social e dos discursos e narrativas produzidos por eles, de modo a trazer ao conhecimento um pouco da histria do Vale, contada por pessoas que dele fazem parte.

    Atravs dos depoimentos de alguns canoeiros2, procurei aliar e entrelaar sua histria pessoal com a histria do lugar. importante

    2 Neste artigo, sero trabalhados os depoimentos de seu Gizrio, canoeiro da cidade

    de Jequitinhonha, e de Man Preto e Dema, canoeiros da cidade de Araua. Sero feitas, ainda, algumas anlises a partir da fala do canoeiro Odilo Paulo, tambm da cidade de Jequitinhonha. Durante a pesquisa foram realizadas, ao todo, onze entre-vistas.

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    salientar que, nesse trabalho sobre memria de canoeiros, o rio aparece como um dos elementos principais, seno o principal, para pensar o pro-cesso de rememorao, pois, alm de permear, ele quem conduz, na maioria das vezes, a narrativa.

    Dessa forma, ao reconstruir sua histria, o canoeiro reconstri tambm uma histria do rio e uma histria do Vale, bem como deixa transparecer o contraste tanto histrico quanto geogrfico presente nessa regio. A proposta deste artigo , portanto, contar e recontar uma hist-ria do Vale do Jequitinhonha atravs do olhar do canoeiro e procurar entender como se d seu processo de rememorao e de reconstruo do passado.

    A frase do canoeiro Odilo Paulo, da cidade de Jequitinhonha, enunciada no ttulo deste trabalho: Canoa no fora, opinio, resume no s o sentido e o significado que este ofcio ocupou e ocupa na vida e na memria dos sujeitos dessa pesquisa, mas o sentido e o significado que o prprio cenrio da pesquisa, o serto mineiro, imprime nas pessoas que compem este universo.

    Por outro lado, esta frase ou, mais precisamente, o termo opinio reconfigura os esteretipos e os estigmas que tm marcado os discursos produzidos sobre o Vale. Ele possibilita uma nova maneira de olh-lo e perceb-lo.

    Este termo possui, ao mesmo tempo, um significado especfico e mltiplo, na medida em que congrega e se desdobra em outras foras, como a fora moral, e em outros valores, como, honra, orgulho, determi-nao, convico, dignidade e perseverana.

    Sendo assim, o processo de rememorao e de reconstruo do passado dos canoeiros, alm de estar profundamente marcado pelo fluxo das guas do Jequitinhonha onde o fio da memria vai se desenrolando ao longo da narrativa num movimento similar ao da canoa deslizando no rio , est, tambm, profundamente marcado pela fora sobre-humana necessria para a realizao deste movimento. No entanto, a opinio se faz presente em muitos contextos, no apenas na fala do canoeiro, mas tam-bm nos versos cantados pelo sertanejo:

    Palmatria quebra dedo Cad meu dedo, cad minha mo chicote deixa vergo cad minha faca e meu faco cacetete quebra costela cad minha pistola e minha repetio

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    mas no quebra Opinio cad gente rica que tem boa ao cad gente pobre que tem Opinio mulher t sentada fiando algodo

    Assim, quando os homens e as mulheres do Vale falam em fora, vontade, orgulho, so os mltiplos sentidos da opinio que encontramos. Ela algo que se estende alm do ofcio do canoeiro, ela no se esgota na sua trajetria pelo rio, mas percorre toda a sua vida bem como a vida das pessoas do Vale.

    preciso, ento, desafiar o rio, preciso desafiar o Vale e o Serto; preciso superar os limites do corpo fsico e at os limites que a prpria natureza impe ao homem para viver e sobreviver em regies como essa. Vinculada a uma experincia coletiva, a opinio representa e expressa, concretamente como estas pessoas vivenciam e compreendem as coisas de sua prpria experincia.

    Entende-se melhor as palavras do canoeiro Odilo Paulo, e a sua intensidade, quando se conhece um pouco mais a histria da navegao do rio Jequitinhonha e, principalmente, suas condies de navegabili-dade.

    O rio Jequitinhonha, por ser um rio empedrado e encachoeirado em grande parte de seu curso, no era considerado um rio propriamente navegvel, tornando-se, assim, um desafio para os canoeiros que depen-diam de muita habilidade e opinio para atravess-lo. Tpico rio de monta-nhas, o Jequitinhonha3 nasce na Serra do Espinhao, em Pedra Redonda, municpio de Serro. Corta o nordeste de Minas percorrendo 1.086 Km 888km em Minas e 198 Km na Bahia ou 181 lguas, das quais 103 navegveis, at encontrar o mar, na cidade de Belmonte, no sul da Bahia.

    No final do sculo XVI, o rio Jequitinhonha j havia sido desco-berto por aventureiros instigados pelas notcias da existncia de metais e pedras preciosas no serto mineiro, especialmente prata e esmeraldas. Iam em busca do Sol da Terra, que acreditavam poder encontrar s margens do rio.

    3 O nome Jequitinhonha deriva de uma prtica dos ndios Botocudos de deixarem

    noite, no rio, uma armadilha pronta para pegar peixe, certificando-se, no dia se-guinte, de que no jequi tinha onha (jequi: armadilha de pesca feita de bambu; onha: peixe). O rio tambm conhecido como Rio Grande e, j no estado da Bahia, conhecido por Rio Grande de Belmonte.

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    Com a descoberta de minas de ouro em Vila Rica (Ouro Preto), no sculo XVII, o rio Jequitinhonha foi abandonado e ficou esquecido at que, no final do mesmo sculo e incio do sculo XVIII, descobriram ouro em Hivituri (denominao indgena de montanhas frias), atual cidade de Serro. Quando, alguns anos mais tarde, descobriram diamantes no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, consolidou-se, ento, a explorao do rio Jequitinhonha e do rio Araua, seu principal afluente.

    Mesmo assim, demorou muitos anos para que ele fosse conhecido em todo o seu curso. No rio Jequitinhonha, o trfego de grandes embar-caes era praticamente impossvel dada s grandes dificuldades que o rio apresentava e por este ser, em grande parte de seu curso, um rio de pedras. Apenas seu curso baixo, conhecido como rio de areia, apresen-tava condies um pouco mais favorveis navegao. De fato, a nave-gao no Jequitinhonha dependia muito da habilidade dos canoeiros e do conhecimento que detinham sobre o rio.

    Descendo o rio com os canoeiros

    O processo de rememorao dos canoeiros segue cursos dife-

    rentes: s vezes, guiado por um roteiro de perguntas, outras vezes, por suas prprias lembranas no rio. Costumam descrever o caminho per-corrido sem precisar datas, nomeando os pontos do rio ou relatando os acontecimentos vividos durante a travessia, ora com entusiasmo, com alegria e saudade, ora com pesar e sofrimento.

    Alm disso, ao descreverem o cotidiano de seu trabalho, desde o carregamento da canoa com manufaturas at a chegada aos pontos de arribada entoando o beira-mar4, os canoeiros retratam, tambm, um perodo de intenso comrcio ao longo do rio. Numa das cantigas de beira-mar, cujo nome Canoeiro, pode-se perceber a referncia s riquezas existentes nas terras do Jequitinhonha, bem como a atividade comercial exercida ao longo da travessia:

    4 Beira-mar o nome que recebe o canto de trabalho dos canoeiros.

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    Canoeiro, canoeiro

    Qu que trouxa na canoa

    Trouxe ouro, trouxa prata Trouxe muita coisa boa.

    Quem no me conhece chora Miquelina ei

    Que far quem me quer bem, Miquelina.

    Sou negociante, sou principiante

    Comprador de ouro e de diamante Tanto eu compro ouro, Como eu compro gado No te dou dinheiro

    Que eu no tenho trocado.5

    Nossos contadores canoeiros assemelham-se figura do mari-nheiro comerciante do qual nos fala Benjamim (1994). Como narradores-viajantes, contam o saber de terras distantes, histrias de outros, vistas e ouvidas ao longo do caminho; porque saram, tm o que contar. Mas, de alguma forma e, em algum momento, possvel tambm associ-los ao outro tipo de narrador enunciado por Benjamim: o campons sedentrio.

    O primeiro, por viajar demais, tem muito o que contar; o segundo conhece por vivenciar e observar de perto suas histrias e tradies. Apesar de suas viagens, o canoeiro do Jequitinhonha seguia sempre o mesmo trajeto, passando pelas mesmas cidades e encontrando e reen-contrando, quase sempre, as mesmas pessoas. Apesar de no se fixar em um mesmo espao fsico, no chegava a percorrer terras distantes e des-conhecidas. O que se renovava em seu trajeto era o desafiar o rio.

    Falando assim, fica-se com a impresso de que o caminho refeito pelos canoeiros era sempre o mesmo, a mesma travessia, os mesmos canais, as mesmas cachoeiras. No entanto, no bem isso que demons-

    5 Essa beira-mar foi recolhido e gravado pelo Coral Trovadores do Vale, da cidade de

    Araua. Informante: Filomena Maria de Jesus Araua. Existem outros cantos de trabalho que retratam o cotidiano de tropeiros, boiadeiros, tecedeiras, lavadeiras, etc.

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    tram nossos interlocutores. Cada viagem uma nova viagem, um desafio renovado, uma nova aventura vivida nas mesmas cachoeiras, dificuldades enfrentadas e repassadas de outra forma. Nunca se sabe ao certo o que os espera na outra curva do rio. Conhecer o rio facilita a sua leitura, mas no impede que o novo aparea. So os mesmos lugares, mas uma outra histria, um outro acontecer.

    Como enunciado na introduo deste trabalho, o fluxo das lem-branas dos canoeiros est muito marcado e demarcado pelo fluxo das guas. O fio da memria vai se desenrolando ao longo da narrativa num movimento similar ao da canoa deslizando no rio e, esse caminho refeito pela canoa, refaz o cenrio presente durante o percurso.

    Ao reconstruir a sua histria, o canoeiro reconstri tambm a histria do rio e a histria do Vale do Jequitinhonha. Ele no s entrelaa a sua histria com a do rio, mas o seu prprio destino.

    Quando usamos o termo reconstruo, estamos nos reportando ao conceito de memria utilizado por Maurice Halbwachs (Halbwachs 1990; Bosi 1987), onde a memria vista como uma reconstruo do pas-sado e no como a conservao deste6.

    Segundo Bosi ao interpretar o pressuposto de Halbwachs , essa reconstruo do passado, atravs da lembrana, no implicaria um reviver, mas um refazer, repensar, um ressignificar as experincias do passado, com as ideias e imagens do presente. E ela completa dizendo:

    [...] memria no sonho, trabalho. Se assim , deve-se duvidar da sobrevivncia do passado, tal como foi, e que se daria no in-consciente de cada sujeito. A lembrana uma imagem construda pelos materiais que esto, agora disposio, no conjunto de re-presentaes que povoam nossa conscincia atual. Por mais ntida que nos parea a lembrana de um fato antigo, ela no a mesma imagem que experimentamos na infncia, porque ns no somos os mesmos de ento e porque nossa percepo alterou-se e, com

    6 Para provar esse pressuposto, Halbwachs no se preocupa em estudar a memria

    pura, mas os quadros sociais da memria, ou seja, estudar a memria do indi-vduo atrelada ao grupo (ou aos grupos) no qual est inserido. Para ele: ...cada

    memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, um ponto de vista que muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relaes que mantenho com outros meios (Halbwachs 1990:51).

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    ela, nossas ideias, nossos juzos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado no presente exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e prope a sua diferena em termos de ponto de vista. (Bosi 1987:17)

    possvel perceber que, em muitos momentos, esse trabalho reali-zado pelos canoeiros, quando rememoram, acompanhado de uma pr-tica exercida por eles ao longo do rio. O ato de lembrar e o ato de remar se interagem na fala do canoeiro: ele conduz a canoa, ao mesmo tempo em que conduz a narrativa.

    Sendo assim, possvel perceber tambm que existe um reviver no rememorar, existe um caminho que refeito, que revisitado e que, ao lhe permitir viver de novo o que j foi vivenciado, completa mais do

    que o sentido no sabido, completa uma parte da vida ainda no vivida e to passada (Brando 1998:152).

    O reviver na narrativa evoca, dessa forma, a expectativa de um futuro que estava presente no passado e que no se realizou. Ao reviver, assim, a sua histria, ele ressignifica a experincia do passado, ao mesmo tempo em que ressignifica a expectativa do futuro.

    Concordando com Bosi (1987), afirmei acima que o rememorar no reviver. As afirmaes de Brando e de Bosi, apesar de aparente-mente contraditrias, no o so de fato, pois Brando no se refere a um reviver o passado tal como foi, mas a um reviver que ressignifica as experincias do passado e as expectativas do futuro , um reviver do que ainda no foi vivido.

    Atravs do relato de trs canoeiros: seu Gizrio, da cidade de Jequitinhonha, Man Preto e Dema, da cidade de Araua, procurarei demonstrar os pressupostos expostos acima.

    A Canoa rompe, rompe, rompe...

    Seu Gizrio7, antigo canoeiro da cidade de Jequitinhonha, um

    7 Esta entrevista foi realizada na cidade de Jequitinhonha, durante o Festival de Cul-

    tura Popular do Vale do Jequitinhonha de 1996 Festivale como tarefa de um dos grupos participantes da oficina: Histria do Vale do Jequitinhonha, minis-trada por Eduardo Magalhes Ribeiro. Seu Gizrio comeou a remar ainda menino,

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    senhor forte, apesar de seus 84 anos, alegre, de pele bem morena, curtida de sol, nos recebeu na cozinha de sua casa e, antes que comessemos com nossas perguntas, nos deu a direo de sua fala: Ento, comeando de Salto da Divisa pr c.... Vez ou outra nos perguntava se poderia incluir mais alguma informao: E essas pedras que tem na beira do rio, pedra grande, pode falar?.

    Pretendia, dessa forma, discorrer sobre os pontos perigosos do rio, sobre as cidades que o margeavam, as pedras e as cachoeiras encontradas pelo caminho e devidamente batizadas pelos canoeiros. Queria falar sobre os nomes do rio Jequitinhonha, fornecendo, dessa maneira, o roteiro de sua viagem. E assim o fez. Apesar das nossas intervenes, no perdia o fio de sua narrativa e a retomava sempre que um outro assunto ou uma nova pergunta o pudesse fazer desviar-se dela.

    Seu Gizrio conta como quem v, visualiza o cenrio e, ao contar, permite que o ouvinte forme imagens de sua travessia e crie moldura para suas histrias. Ele presentifica o passado na narrativa e nos carrega junto com ele: agora vamo pass pr cima desse lugar....

    Ele toma a sua canoa e segue o caminho do rio rompendo pelas guas, ao mesmo tempo em que relembra, revive, reconstri sua vida e seu ofcio de viver e remar. Os pontos e os marcos descritos em seu per-curso demarcam sua prpria trajetria de vida no rio. Sua travessia no tem comeo nem fim, tem continuidade. E, assim como toda histria o ensejo de uma nova histria (Benjamim 1994:13), sua viagem o ensejo de uma nova viagem:

    Ento, comeando l do Salto da Divisa pr c: Nova Gaia, uma casa que tem l e chama Nova Gaia [...]. Agora, os pontos do rio : Zueira, Panela...

    Abaixo do Jacinto era Paga-Fogo, Foieiro, Estanhague, Canela-Demo. Deixa eu ver... Feijoal, os Periquito [...] tudo nome de rio. So Simo, Crrego do Martim. Gangorrinha, Ilha do Po.

    por volta dos 12 anos. Para ele, aprender a remar o mesmo que aprender a leitura e, assim, aprendeu a remar como quem aprende a ler sozinho: Aquilo no preci-sava ensinar, no. [...] Os canal pr andar igual a leitura, quem aprende aquilo, o mesmo que saber a leitura. Tem que ir certo, se errar....

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    Deixa eu s perguntar pro senhor, at hoje ainda tem esses pontos todos no rio ou j sumiu um tanto?

    Tem. Deixa eu ver agora. Depois da Ilha do Po, tem Barra Nova. Simoa, agora o Banco, s no empresta dinheiro. Deixa eu ver, a rompe, rompe, rompe, rompe, rompe... Crrego de So Miguel que vem daqui de Joama e cai no rio. Do rio pr riba no tem; tem o Quebra, isso a, aonde tem aquelas pedras. Mas a, eles bota os nome com uns trem tudo certinho, porque a se cair canoa ali, quebra. J quebrou umas trs, morreu gente ali. Agora vamo passar pr cima desse lugar. Cocar, Sete pecado, viaja, viaja, viaja, e o Angelim. [...] Carreira Comprida, Ciriba. O rio que tem l agora, esses que eu t falando aqui, tem o caminho, e quando esses nome assim, eles mesmos que pe, os canoeiros pergunta um pro outro: em qual lugar t correndo?

    E, deixa eu ver agora. Tem Azabroba. gente, ficou o Cerqueiro do Alto que eu no pus. [...] De cidade tem Jacinto, Almenara, que nesse tempo era Vigia. Guarilndia era Farrancho. Emburana t a, n. Emburana pertinho de Almenara, perto de So Simo. Bom, ns deix Azabroba. Escalavrado, So Pedro. Deixa eu ver, Estreito. Ah, um lugar que a canoa quando o rio t cheio, eles tm que pux porque se ela entrar... E tem uma rota assim que aquilo fica qualhadinho de pau, como que um pedreiro que arrum aquilo. bonito. Da, Itaobim, a cidade. Crrego So Joo, Maravilha. Barra do Pontal, j t perto de Araua. Morro Redondo, j perto de Araua. So Domingos o nome de Santo. Terminou, chegou em Araua, terminou. Agora eu vou voltar pr Itapor. Itinguinha um crrego que fica abaixo da Barra do Pontal. L ponto de canoa. Chega a de Araua, vem do sul e vem do norte. [...] Depois de Itapor, Janjo. E agora Diamantina, ns vamo chegar cabeceira do rio agora. Pedra Redonda no municpio de Serro. [...] Pedra Redonda ponto que a escola que tem d. No todo mundo que sabe no. Eu tenho dado muita lio pr esse povo.

    Aliando o que viu ao que ouviu, seu Gizrio vai construindo sua narrativa e entremeando sua experincia pessoal com fatos vividos por outros, da mesma forma, vai entrelaando e cruzando sua histria pes-soal com a histria aprendida e apreendida na escola.

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    Ao contrrio do que pensam e dizem os contadores citados por Pereira (1996)8, para quem a escola converte-se numa ameaa ao saber popular, seu Gizrio alia o que aprendeu na escola com o que apreendeu na prtica do viver para, assim, consolidar seu saber, para constru-lo artesanalmente e (re)transmiti-lo a outros9.

    Como um arteso da memria, seu Gizrio incorpora sua pr-pria experincia vivida e narrada outras narrativas e, at mesmo, um saber formal, que lhe possibilita reconstruir a sua fala. E esse saber, elaborado luz de outros conhecimentos, o que lhe permite e lhe auto-riza a dar muita lio a esse povo.

    Pereira tambm tece comentrios a esse respeito, salientando e enfatizando o orgulho que sentem esses sbios e mestres contadores, pelo papel que exercem e pelo lugar que ocupam na comunidade na qual esto inseridos. Como guardies da memria, ainda que ameaados, continuam a transmitir, artesanalmente, uma bagagem de experincias e de conhecimentos teis acumulados ao longo de vrias vidas. Segundo as palavras da autora:

    Esses contadores delimitam, em suas falas, o espao de seu trn-sito no Vale do Jequitinhonha, ao mesmo tempo que nelas ainda configuram a sua posio, o lugar que acreditam seu entre os mestres, os sbios da regio. No exerccio de uma tarefa artesanal, ensinam filhos, netos, amigos, moldam geraes para um trabalho manual, executando longe dos recursos urbanos, das escolas e, no desempenho dessa liderana, obtm o respeito, o amor de seu grupo. Para isso recorrem s reminiscncias, ao acervo acumulado de vrias vidas, de muitas experincias, falando s vezes de coisas que apenas ouviram dizer, mas que, ao serem assimiladas sub-stncia do seu viver, formam a necessria bagagem de conheci-mentos teis. Os contadores orgulham-se dos papis que exercem

    8 A escola, no texto de Pereira, colocada pelos narradores como algo que ameaa a

    perpetuao da arte da narrativa oral, pois, ao ensinar coisas em excesso, ela rouba dos jovens o interesse e a ateno matria transmitida pelos contadores (1996:35).

    9 Apesar do pouco tempo de estudo, seu Gizrio acentua a importncia da escola na construo do seu saber sobre o rio e sobre a regio.

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    e do que representam para a comunidade, fazendo questo de deixar isso claro. (Pereira 1996:33)10

    O dia a dia no rio, a durao de cada viagem, as paradas para almoo e descanso, o transporte de mercadorias que ligam cidades e pessoas, a contextualizao socioeconmica e histrica da poca da navegao no Vale, os beira-mar anunciando a chegada nos portos, as leis e os costumes dos canoeiros, o imaginrio sobre os ndios do Jequitinhonha, o saber aprendido e o saber vivido, tudo isso so fatos que perpassam a narrativa de seu Gizrio, realizada, muitas vezes, sob uma temporalidade descontnua, imprecisa e plural.

    Nesse tempo, s viajava por canoa, negcio de sal vinha por canoa, pegava a embarcao l e subia de canoa, vinha a pr Araua e vendia mercadoria por 16 mil ris. Esse rio era todo cheio de mato, tudo tampado de mato, s tinha ndio...

    E como eram as viagens, tinha muita cantoria?

    , beira-mar. Voc quer ver quando descia uma canoa com eles cantando, era bonito. Saa todo mundo pr ver e quando chegava no comrcio tambm, era a mesma coisa. Era a diverso deles. Era como os marinheiros...

    [...] As viagens eram assim: tinha os pontos de comer, de quem sai daqui era na pedra da raposa. Tem um lugar a que chama pedra da raposa, l era ponto de almoar. Quando tava ventando, que tava esse vento forte de baixo, saa daqui ia dormir em So Pedro, alcanava So Pedro. Daqui Araua ia com uns trs dias. O vento forte ajuda. Botava tolda. A, os proeiros no trabalhava, era s o piloto, segurando de um lado e do outro do escal11. Ia em trs canoeiros. Proeiro quem ia na frente. Fica dois na frente e um atrs.

    10 Vale ressaltar que a anlise de narrativas orais e populares do Vale do Jequitinhonha

    (mais especificamente da regio de Diamantina, que corresponde ao Alto Jequiti-nhonha), feita por Pereira, procura enfatizar a presena de uma memria mais cole-tiva do que pessoal, o que permite comunidade resistir e permanecer apesar das dificuldades.

    11 Escal ou escaler uma canoa pequena.

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    E tinha jeito de cozinhar dentro da canoa?

    Querendo cozinhar, cozinha. Faz um fogo, cozinha caf. E quem viaja de canoa s lava prato de homem passageiro, mas se o canoeiro par de com e bot o prato l sem lav, no outro dia ou de tarde, ele tem que lav. Cada um tem que cuidar disso. A lei deles essa. E cozinha tambm, hoje de um, se ele for cozinheiro amanh, j ele toma conta hoje. Hoje ele j bota o feijo no fogo, amanh a gente pega e faz. Os outro ajuda a cortar uma verdura, uma coisa, mas o (tempero?), ele que faz. Eh, povo que cozinha bom. Eles fazia uma feijoada...

    [...] Era feijoada, arroz e farinha. Era os trem que eles comia, era isso. Peixe do rio, pescava. [...] Agora, tinha muito peixe, no podia demor muito seno enchia a canoa.

    [...] E tinha uma coisa, j ia acabando de com, bebia gua, ia viajando, no tinha moleza, no.

    E tinha muita cachaa, seu Gizrio?

    Vigi. Quando viajava tinha uns que caa, ia bot a vara dentro dgua. Aqui, tinha um. Um dia, a canoa ia num vento aqui, ele foi bot a vara, vir, foi preciso do Florncio, do piloto, peg ele e bot dentro da canoa.

    Essas professora de antigamente aqui, ia tudo pr Araua, era de canoa. [...] No tinha estrada de rodagem, estrada cavaleira, ia de cavalo e ia de canoa.

    O senhor levava as professoras?

    No, isso j era antigo, os outro que conta.

    Para discutir um pouco mais a questo da temporalidade, vou fazer uso do estudo de N. Denzin (1984) sobre o assunto. Em seu texto, a temporalidade colocada como uma questo bsica em estudos que se utilizam de depoimentos pessoais, e podem ser distinguidas duas formas: a temporalidade mundana e a temporalidade fenomenolgica interior.

    O tempo mundano o tempo cotidiano, cortado, categorizado em blocos, pedaos e segmentos discretos que chamamos o passado, o presente e o futuro. O tempo fenomenolgico o tempo como fluxo contnuo, onde o passado, o presente e o futuro so proces-

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    sos contnuos dos quais a pessoa parte, alm disso, no possuem uma linha definida, possvel de ser traada e visualizada. (Denzin 1984:34)

    A vida de cada pessoa vai se fazendo dentro e atravs dessas for-mas temporais e da forma como as pessoas agem e interagem no espao-tempo. Cabe ao pesquisador, no momento da investigao, ir to longe quanto possvel na vida do sujeito, at e inclusive o presente, enquanto regressa ou se movimenta para trs nas condies materiais, histricas e temporais que estabelecem as particularidades da vida e dos projetos do sujeito (Denzin 1984:41).

    Dentro de uma temporalidade que coloca o sujeito numa perspec-tiva aqum ou alm de seu tempo, existem os sujeitos que transitam, que coparticipam de sua vida e de sua narrativa; existem vidas numa histria de vida.

    Segundo Denzin (1984:32), a vida uma produo temporal que se estende antes, durante e depois do tempo de vida de uma pessoa. As vidas so propriedades biogrficas pertencentes a pessoas e a outros, in-clusive instituies, Naes-Estados e at a uma parte do sistema mun-dial. Quando algum fala de si, fala tambm de seus antepassados, de seus sucessores; fala de uma histria que o atravessa.

    O que d sentido narrativa e rememorao de seu Gizrio no o que se encontra nos lugares, nem so os lugares a que se pode chegar e a que se chega, a travessia e a ideia de movimento que est implcita nesta palavra.

    Em sua narrativa prevalece o movimento, o reviver de sua histria atravs do fluxo e do correr das guas. como se a fala do canoeiro con-strusse ou reconstrusse um quadro em movimento e no uma moldura esttica do passado, mas algo que acompanha o ritmo da narrativa. Sua lembrana implica um realizar novamente, navegar de novo nas guas do Jequitinhonha. Alm de reconstruir um quadro em movimento, ele traa um mapa geogrfico do rio Jequitinhonha e, com isso, reconstri no s o tempo, mas o espao onde se inscreve sua narrativa, o seu territrio: o rio.

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    L vem o Caldeiro!!!

    Man Preto12, da cidade de Araua (importante entreposto comer-cial no auge da navegao), comeou a trabalhar como canoeiro em 1951, quando este movimento j estava acabando na regio e j comea-vam a construir as primeiras estradas de rodagem.

    Ele conta como se narrasse uma grande aventura, descrevendo o tempo da canoa como um tempo em que a vida era boa demais. Mesmo nas situaes mais adversas, quando descreve a passagem pelas cachoeiras, ou quando tinha que subir o rio na poca da cheia, ou ainda sobre as canoas que afundavam, ainda assim, sua fala ressalta o contenta-mento e a satisfao em estar naquela lida.

    Sua narrativa costuma ressaltar a beleza de seu ofcio: a sada das canoas, as cantigas de beira-mar, a espera das pessoas na beira do rio apre-ciando a sada e a chegada dos canoeiros, as canoas enfeitadas, a malan-dragem, a farra, a festa, a colegage, a unio.

    Alm disso, descreve a atividade comercial realizada pelos cano-eiros em suas viagens ao longo do rio e rede de relaes socioeco-nmicas estabelecida entre canoeiros, donos de canoa, donos de arma-zm, ferrovirios, comerciantes, tropeiros e carroceiros na cidade de Ara-ua.

    Talvez, mais do que re-viver o passado, o trao mais marcante do seu depoimento tenha sido a oportunidade de re-sentir cada episdio de sua aventura no rio. O relato de seu Man Preto mais parece uma odis-seia, marcado pela saudade e pelo entusiasmo com que narra suas aven-turas no rio.

    Eu trabalhei uns trs ano no rio. Era tempo que levava as carroa para os armazns, ento transportava dos armazns para o rio. O Calhauzinho13, n, tinha aquele praio bonito e nis acampava

    12 Man Preto, um senhor alto, forte, de pele bem morena e feio marcada, mais pela

    vida do que pela idade, tinha 71 anos quando estive em Araua, pela primeira vez, em 1996.

    13 O rio Calhauzinho um afluente do rio Araua. Alm disso, era o porto de onde saam as canoas dessa cidade.

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    naquela praia.

    Ali, os carregador chegava com as carga, nis carregava a canoa e descia rio abaixo. O Jequitinhonha longe, voc precisava de v. Descia o rio abaixo, pegava um monto de cachoeira pesada, ia passando e ia embora, para pegar Jequitinhonha, Almenara, at Salto da Divisa nis ia.

    [...] Na poca das gua [poca de chuva], era uma beleza, saa daqui mais era rapidinho chegava l. Tinha muita gua, o rio tava liso, a ia embora. Porque tinha aqueles grau pr gente pass, tinha grau que no passava, muitos lug perigoso que no passava. Ento, quando assim, meio liso, que dava pr pass, a gente ia embora direto. Agora, de l pr c [subir o rio], pelo amor de Deus. Era um Deus me acuda.

    A gente via, tinha aqueles pedaos de pau, puxando canoa, puxando regera14 pru lado de fora pr salv aqueles lug ruim, pedao de cobra, dormia junto com cobra, sapo, era tudo. Nis lut muito, lut muito. Ento, nis fic a um tempo, a as canoa foi acabano, at que acab tudo.

    No tinha rodagem nessa poca, no tinha carro, no tinha nada. O transporte era do rio. [...] Pegava 4, 5 canoa pr carreg estudante pr Jequitinhonha. Levava e trazia de novo pr qui. Ocasio de frias era aquele Deus me acuda, nis trazia aquele povo.

    [...] Iam 3 pessoas na canoa, 3, 4. s vezes, ia o dono da canoa tambm. Ia o dono da canoa mais os trabalhador, era s trs, um piloto, dois proeiros. Agora, chegava tinha o Estreito muito perigoso, no Estreito, ns carregava, s vez, a carga, conforme o grau do rio, ento, ns tinha que carreg o sal nas costas. Passa por terra, ento, passava a canoa arriada no Estreito.

    Canoa arriada era o seguinte: um amarrava uma corda na frente, outra atrs e uma no meio, e soltava ela sozinha. [...] passava por baixo dgua e ia embora, aquela correnteza arrastando a gente, pulando de pedra em pedra, ia embora. Quando chegava l embaixo, tirava a gua e tornava a rum e ia embora.

    A, passava, n. Ia com a canoa, s vezes tinha um, eles chamava

    14 Regera o mesmo que corda.

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    Caldeiro, ento, eles falava: l vem o Caldeiro, a passava, n.

    [...] ... tem pedra a que tem pilozinho, que pode soc caf, de faz escora. No assim: gua mole em pedra dura, tanto bate at que fura. Int no rio tem lug que as canoas tudo viajava, de modo a faz travessa de um lado pr outro, pegava sempre num lug s e ficava a marca [...] a gente fazia 2, 3, 4 pilozinho assim, onde a ponta da vara pegava.

    [...] Ento, era muito bonito, aquela vida divertida, ns descia com 4, 5 canoa, 6 canoa. Descia uma atrs da outra, aquela beleza, aquela maravilha, tudo alegre, s se vendo, era forado, mas tudo alegre, satisfeito, uma comida boa que oc precisava de v...

    Em 1999, a conversa iniciada na cozinha de sua casa, estendeu-se s ruas da cidade e casa do canoeiro Dema15 que, segundo Man Preto, foi seu mestre e professor nas guas do Jequitinhonha. Com Dema, Man Preto dividiu o trabalho no rio e na estrada ambos trabalharam no DER e, tambm, o trabalho da memria.

    O incio da nossa caminhada foi em busca de um pedao de canoa, a Alefoa, que estava na casa da famlia de um antigo canoeiro. Enquanto andvamos, Man Preto ia descrevendo o preparo das canoas e a arte de enfeit-las e nome-las; fazia-o com tal envolvimento, e tal zelo, que mais parecia descrever um ser que lhe inspirasse cuidados.

    Int as canoa tinha um nome, nis punha nome nas canoa, pintava aquilo bem pintadinho, pintava ela toda, mas era um trem to bonito. A regera, tinha aquela regera, ento falava: vamo pente o cabelo da Alefoa? Eu no lembro nome de tudo, lembro dessa que era uma canoa que aqui chamava Alefoa. Ento, fazia aquela regera, pegava uns toco de pau assim, e ia enrolando a regera certinho, e ali enchia de flor. Nis enfeitava aquilo, quando pegava que carregava a carga, tinha uma lona, nis passava a lona,

    15 Dema da cidade de Jequitinhonha, mas mora em Araua h muitos anos. Ele

    mais novo que Man Preto tinha 64 anos na poca da entrevista e vem de uma famlia de canoeiros. Aposentou-se, tambm, pelo DER (Departamento de Estradas de Rodagem), mas continua trabalhando em sua casa, fazendo de tudo um pouco.

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    reburava16, que passava em rebento dgua que no molhava a carga, prendia a lona assim com umas vara, prendia a lona, a gua passava corrida, porque tinha lugar que a gua passava assim, [mergulhava], entrava e saa l embaixo. Nis fundava canoa, tinha hora que fundava, ela ia embaixo, sortava a carga embaixo, a ela saa. [...] Mas era bonito, moa, a canoa bem cuidada, pintava tudo direitinho, a eles falava: ah, vamo pente o cabelo dela e enchia de flor. E eles j saa cantando tambm. Quando nis saa da, da Barra do Calhauzinho, j saa cantando, s vezes a beira de rio enchia assim de gente pr ver, que chamava ateno, os beira-mar bonito, chamava ateno da pessoa.

    Ao falar sobre a Alefoa e as demais canoas, que tambm tinham nome, Dema fez o seguinte comentrio: era tudo pintada, era uma coisa feita realmente com muita cincia.

    A palavra cincia, alm de ser empregada por Dema para discorrer sobre a arte e o conhecimento necessrios quando da feitura e enfeite das canoas, pode, ainda, estender-se a outras dimenses da fala dos cano-eiros, como quando falam em dar o desconto, coisa que s quem bom piloto consegue fazer, principalmente porque conhece, no rio, pedra por pedra, canal por canal e, assim, capaz de conduzir e comandar a sua canoa.

    Este fazer com muita cincia pode traduzir-se, dessa forma, num saber especfico e particular de viver no rio, mas tambm de viver no Vale e viver no serto. Uma sabedoria que permite conduzir e ensinar a faz-lo, porque se conhece o fundamento das coisas.

    Podemos intuir que a cincia, da qual Dema est falando, seja a capacidade de observar o cotidiano e de se observar vivendo e prati-cando esse cotidiano. Sendo assim, essa cincia pode ser entendida, tam-bm, como uma arte de saber-fazer, que assume um significado de ob-servao, de prtica e de uma experincia diria que acaba por facilitar a dureza da vida e do trabalho.

    Por sua vez, esse saber-fazer pode traduzir-se, ainda, num pro-cesso de aprendizagem e numa produo de conhecimento que se d a partir de outras linguagens, de outras relaes, de interpretaes e com-preenses de mundo e modos de vida que tira do seu apanhado a mat- 16 Reburar o mesmo que cobrir.

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    ria do seu saber e do seu fazer, como possvel perceber nessas palavras de Dema quando se refere s composies do beira-mar: o beira-mar, isso era feito de improviso, da atividade mesmo do canoeiro e no questo de ser curioso, mas questo de observao. [...]. Ento, c fazia letra do seu apanhado e dava certo.

    Da mesma forma que a palavra opinio, destacada e enfatizada no discurso de um dos canoeiros seu Odilo Paulo , a palavra cincia tam-bm adquire um significado especial no contexto estudado. Opinio e cin-cia cruzam-se no momento em que dizem mais do que seus significados imediatos. Os termos empregados traduzem significados diferenciados e especiais neste contexto. So termos, como vimos, de significados mlti-plos. Embora polissmicos, eles tm uma aplicabilidade muito precisa neste contexto. No so termos sobre os quais se pense ou reflita, mas que servem como guia, como instrumentos de vida e de sobrevivncia, no rio, nas estradas, no serto.

    No incio desta conversa, Dema e Man Preto comearam a relem-brar, juntos, os nomes dos canoeiros da cidade de Araua. Aos poucos, este fio da memria foi se desenrolando em outros nomes e em outras funes: dos canoeiros partimos para os donos de canoa, para os donos de armazm e para a rede de relaes comerciais e interpessoais que ia sendo tecida ao longo dos rios Araua e Jequitinhonha e no encontro ou desencontro do rio com a estrada de rodagem.

    Da mesma forma, o movimento de canoas, o trem de ferro, as tropas e as estradas esto intimamente ligados no relato desses canoeiros. Eles perpassam e remetem aos caminhos e crescimento da cidade de Araua e do Vale do Jequitinhonha como um todo. Tanto o rio quanto a estrada passam a ser espaos reconstrudos atravs do processo de reme-morao desses canoeiros. Eles descrevem a vida em movimento no tempo e no espao do rio, mas tambm descrevem a vida em movi-mento no tempo e no espao do trilho e da estrada.

    E ao fazerem isso, eles esto, na verdade, construindo e recon-struindo territrios, pois esses espaos que ocupam seja atravs da memria/lembrana ou de forma concreta esto plenos de significados sociais, de relaes que se estabelecem entre homens e entre estes e o meio que os cerca. Dessa maneira, possvel pensar no rio como terri-trio. Um territrio possuidor de marcas identitrias, de marcas de tra-vessias e de cdigos de linguagem criados pelos prprios canoeiros,

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    como os nomes dos canais e dos pontos do rio e os piles que iam se formando nas pedras quando nelas escoravam o remo.

    Foz: guisa de concluso

    Conforme enunciado na introduo, a proposta deste trabalho era contar o Vale do Jequitinhonha atravs do olhar do canoeiro e de suas memrias, procurando entender qual o processo de rememorao e de reconstruo do passado por ele vivenciado. Um passado vivido em um cenrio, o serto mineiro, e na realizao de um ofcio que lhe exigia no apenas fora, mas opinio, expressa na honra, na coragem, na perseve-rana, na dignidade.

    Antes considerada uma das regies mais ricas do pas, o Vale do Jequitinhonha passa a ser visto como uma rea de pobreza absoluta e estagnao secular, tornando-se, assim, para o poder pblico, uma ferida de subdesenvolvimento em Minas Gerais (Moura 1988:1).

    O trabalho com memria de canoeiros vem, justamente, no sen-tido de fazer conhecer uma outra face dessa histria no oficial que revela, atravs das pessoas e dos cenrios/sujeitos que narram, uma outra forma de ler o Vale e de questionar esses pressupostos que lhe atribuem conotaes to negativas.

    Registrar memrias no significa apreender o todo de uma vida, mesmo porque isso seria uma tarefa impossvel, nem apreender verdades absolutas sobre tal ou qual assunto. A memria seletiva, nem tudo fica gravado, registrado e nem tudo lembrado. Existem muitos silncios, muitos esquecimentos, muitos vazios.

    O que se tem, ento, so fragmentos de memria. Fragmentos, estes, que podem repetir-se, unir-se e encaixar-se como peas, entre si e/ou com peas trazidas pelas lembranas de outras pessoas.

    Ao traarem sua trajetria no rio, num movimento de ir e vir rea-lizado tanto com a canoa quanto durante o processo de rememorao , de lembrar e esquecer, os canoeiros urdiam, no prprio rio, o tecido de suas reminiscncias.

    E nesse movimento contnuo, sem comeo nem fim, o movimento da canoa e do canoeiro no rio se intercalam e, at mesmo, se confundem com o seu processo de rememorao e de reconstruo do passado.

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    Existe, nesse processo, um reviver, mas existe tambm um reconstruir que reflete uma releitura e uma ressignificao da prpria vida, seja ela de sofrimento, de satisfao, de orgulho, de opinio.

    Os canoeiros narram fatos semelhantes com a peculiaridade de cada um que os viveu e os interpretou, e do modo como o extraram de sua experincia seja ela pessoal ou contada por outras pessoas , sem pretender, com a narrao, transmitir o em si do acontecido, mas tecendo a narrativa at atingir uma forma boa (Bosi 1987:46).

    O trabalho com histria oral costuma trazer fatos, acontecidos ou no, de forma subjetiva. preciso estar atento s interpretaes e apre-enses pessoais que cada um faz de sua histria.

    Para Thompson (1992:183), [...] a mesma subjetividade que alguns veem como fraqueza das fontes orais pode tambm faz-la singularmente valiosa. Pois a subjetividade do interesse da histria tanto quanto os fatos mais visveis. O que o informante acredita , na verdade, um fato (isto , o fato de que ele acredita nisso) tanto quanto o que real-mente aconteceu.

    Assim, o que torna o fato to significativo o modo como ele atua na memria das pessoas. Nesse ponto, a proposio de Pollak (1992:209) de que a histria est se transformando em histrias, histrias parciais e plurais, at mesmo sob o aspecto da cronologia torna-se relevante no estudo da prpria Histria. Esse deslocamento em direo ao que sin-gular e ao que universal, ao que subjetivo e ao que objetivo, ao que individual e ao que coletivo, so movimentos constantes num tra-balho que envolve histria oral.

    Neste sentido, os canoeiros compartilham a mesma linguagem, o mesmo espao e o mesmo tempo da canoa e do rio mesmo no tendo trabalhado na mesma poca , eles compartilham a mesma memria coletiva. Seus relatos privilegiam o tempo do rio quando este era a estrada. Mas, ao mesmo tempo, com o rio se entrecruzam outras estra-das: o trilho, a terra, o asfalto e seus tempos.

    Por outro lado, os relatos tambm privilegiam o espao ocupado pelo canoeiro, o rio, sendo muitas vezes descrito como um mapa, com seus acidentes geogrficos: pedras, poes, canais, dando, assim, ao ou-

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    vinte, ou ao leitor, o traado da sua viagem e do seu recordar. Nessa hora, o espao que marca o tempo. Como nas palavras de Godoi:

    So os espaos como pontos de marcao do tempo. [...] Vemos a memria se inscrever no solo do lugar e, medida que seguimos a narrao, os movimentos feitos no so apenas o percorrer um espao, so antes a sua prpria criao. Assim, o espao serve para pensar o tempo. [...] Cada aspecto, cada detalhe dos lugares, pos-sui um sentido inteligvel somente para os membros do grupo, porque todas as partes do espao por ele ocupadas passaram a se constituir em pontos de marcao de um tempo por ele vivido. [...] Para esses camponeses, ler uma paisagem ler o tempo; a ordem dos lugares-de-memria no est relacionada somente com a sequncia da narrao, mas nos remete ao j referido sistema de imagens coletivas. [...] a memria coletiva do Zabel constituda por imagens-movi-mentos e, ao invs de o pensamento ser treinado atravs de uma memria de coisas ou de palavras, ele o por uma memria de aes. (1999:112-3; grifos meus)

    Com os canoeiros do Jequitinhonha, acontece um movimento semelhante aos camponeses do Zabel, no serto do Piau. O espao tambm demarca o tempo, os lugares-de-memria so evocados e esto l: as pedras no rio, os poes, os canais, as marcas dos remos nas pedras. Essas marcas so apontadas pelos canoeiros nas suas narrativas e nos levam a imaginar e a visualizar esses espaos.

    No h como separar tempo e espao quando se pensa em mem-ria, quando se fala em relembrar. No caso dos canoeiros, o espao ocu-pado pelo rio e formado por ele o local onde se apoia a sua narrativa. Da mesma forma, o tempo do rio, o ritmo do rio, que dita o fluxo da narrativa.

    Antes transmitido atravs dos mestres e professores do rio aos ho-mens que aprendiam a navegar como se aprendessem a ler, o saber dos canoeiros j no encontra discpulos que deem continuidade a este aprendizado.

    Sendo assim, a cincia dos canoeiros vira memria, vira lembrana de quem conta seus feitos e sua sabedoria, talvez no mais para o uso prtico que se possa fazer dela, mas para que suas histrias contadas e

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    cantadas e seu conhecimento permaneam na memria de outros coletivos. Histrias, essas, construdas ao longo do rio e do Vale, com muita Opinio.

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    Recebido em setembro de 2009

    Aprovado para publicao em maio de 2010