1964 o julgamento de deus capitulo 1

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Capítulo 1

Um mocorongo no poder

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OS MATUTOS COSTUMAM DIzER NA SUA LINGUAGEM peculiar: “Mês miou, mês cabou”. Ou seja, depois de metade, o mês já está chegando ao fim. Acostumado a acordar de madrugada ao longo de toda a vida, o marechal chegou cedo ao Palácio do Planalto, naque-le dia da segunda metade de agosto de 1964, quando o mês já tinha embicado para o final. Aguardava para uma audiência o ministro das Relações Exteriores.

Depois de dar uma olhada nos jornais, ficou andando de um lado para o outro, contemplando a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional através das paredes de vidro do gabinete presidencial, seu local de trabalho desde abril. Estava no governo havia pouco mais de quatro meses, ainda procurando se acostumar melhor aos meandros do ambiente político. De repente se deu conta de que era a primei-ra vez que um ministro civil solicitava uma audiência a ele. Antes, só compareciam quando convocados. A solicitação inédita o intrigava. O que o auxiliar estava trazendo? Só podia ser problema, e dos grandes.

Escolhido pelos seus pares para ocupar o cargo máximo do País, de-pois do golpe militar, em circunstâncias que ao longo da narrativa vão ficar melhor esclarecidas, o marechal usurpou o título republicano e democrático de presidente, e como tal exigia ser tratado.

Como os historiadores nunca se deram ao trabalho de botar os pingos nos is, e os documentos oficiais nunca foram retificados, os ditado-res do período militar, e até de ditaduras anteriores, continuam sendo chamados de presidentes. De modo que o País viveu quase 40 anos intercalados sob ditaduras diversas, sem que conste dos livros de His-tória um único sujeito tachado de ditador.

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O marechal só era chamado de ditador, tirano ou outro sinônimo equivalente em panfletos clandestinos que a muito custo a oposição conseguia fazer circular. Ou em raras ocasiões no exterior, por parti-dos de esquerda que funcionavam em países democráticos

A voz do chanceler, um tratamento que era atribuído ao responsável pelas relações internacionais do País, denotava apreensão e ansiedade. Presidente, desculpou-se por telefone, só estou lhe tirando dos seus mui-tos afazeres porque trata-se de um assunto urgente e delicado. E só tomo essa liberdade porque já esgotei todas as instâncias sem encontrar uma orientação adequada. O único encaminhamento que me resta é recorrer à sapiência, ao tirocínio e à autoridade iluminada de Vossa Excelência.

O marechal gostou de ouvir o elogio. Concordou no íntimo. Ele, real-mente, na condição de maior autoridade do País, não era para ser per-turbado por qualquer dá cá aquela palha.

O que apreciava, na verdade, era conversar sobre motes e piadas de caserna. Conhecia os últimos modelos de armamentos, as táticas e estratégias mais modernas, era especialista em história militar. E se es-baldava de rir com as mais tolas anedotas sobre recrutas.

Outro tema que dominava bem era literatura regional. Cultivava a ami-zade de escritores, inclusive tidos como esquerdistas. Nesse assunto não fazia discriminações ideológicas. Nas férias, frequentava a fazenda de consagrada romancista social que na juventude fora até comunista.

Detestava conversar sobre banalidades em geral, particularmente fo-focas sociais, futebol e principalmente política.

Depois que assumiu o cargo supremo do País, esse último tema pas-sou a ser parte da sua rotina. Era um dos contrapesos da função. Mili-tar é acostumado a dar ordens e ser obedecido. Política, mesmo numa ditadura, implica em conversas e negociações. Coisa muito chata, para ele. Sua úlcera queimava como brasa. E política internacional, então, era purgante em dose dupla.

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Por isso, não fazia, até aquele momento, muita questão de acompanhar as minúcias do governo. Tudo o que subalternos pudessem pôr em prática sem contrariar o seu comando estava de bom tamanho. Desde que não desagradasse ao Exército e à Embaixada dos Estados Unidos da América do Norte. Pode até parecer brincadeira, mas a doutrina adotada depois do golpe era clara: o que é bom para os Estados Uni-dos é bom para o Brasil.

Apesar do esforço para aparentar uma unidade monolítica, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica disputavam poder entre si. Dentro de cada uma dessas forças, correntes antagônicas se digladiavam. O governo, na parte que coube aos militares, era uma sucessão de feudos, ocupa-dos pelas diversas linhas conflitantes. A fim de acomodar esse saco de gatos, cada qual mandava no seu pedaço.

Entretanto, quando surgiam problemas, complicações ou aborreci-mentos que não conseguiam resolver sozinhos, todos corriam para o marechal. Ele era o ponto de equilíbrio, o algodão entre os cristais. Assim, era forçado a lidar com um aborrecimento atrás do outro. Raro o dia que não lhe caía no colo algo desagradável para decidir. Governar é resolver pepinos, filosofou certo dia para um alto executivo da ONU. Por isso, já andava pela tampa do tabaqueiro, como se dizia no interior do Ceará, com tantas chateações medíocres.

Enquanto esperava, olhando para o relógio a todo instante, foi várias vezes ao banheiro arrumar o fraque diante do espelho. Durante toda a sua extensa carreira, desde os tempos da Escola Militar, o marechal sempre fora o que na gíria dos quartéis se chama de mocorongo. Um caipira de almanaque, um sujeito desmantelado como uma capivara. Do uniforme de campanha à farda de gala, nenhum traje lhe caía bem.

Destacou-se entre os seus pares pela aplicação, cultura e até mesmo in-teligência, nunca pela elegância. Agora, escolhido ditador, ou melhor, presidente da República, conforme a terminologia oficial, foi obrigado a trocar a farda por roupas civis. A situação ficou ainda pior.

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Era baixinho, cabeça grande e chata. Diziam que ficara assim porque na infância distante no Ceará os adultos batiam sempre com a palma da mão no seu quengo e falavam: Esse menino vai dar pra gente. Nin-guém ostenta uma catedral desse tamanho para nada.

Foi assim, segundo as más línguas, que aplainou o alto da cabeça e afundou o pescoço. O que restou dessa parte do corpo que a girafa tem de sobra era tão pequenininho que a cabeçorra parecia pregada diretamente sobre os ombros. Até para olhar para os lados era difícil, tinha quase que virar o tronco inteiro, como se fosse o robô do popu-lar seriado da televisão Perdidos no Espaço.

Mas esse detalhe não atrapalhou sua trajetória. Vida afora, acabou cumprindo as profecias da infância. Galgou por mérito os mais altos postos do Exército, casou com mulher honrada, inteligente e bonita, e agora, viúvo, estava empoleirado no cargo mais importante da Nação.

O sucesso não impedia que vivesse mal acomodado dentro do fraque cortado justo, na tentativa dos alfaiates para deixá-lo um pouco mais esbelto e menos desgracioso.

Para piorar as coisas, certo publicitário gaúcho teve uma infeliz ideia que a muitos áulicos pareceu genial. Sugeriu e foi acatado que o di-tador portasse, o tempo inteiro, a faixa presidencial verde e amarela atravessada sobre o peito. Isso para se diferenciar do antecessor, pouco dado a essas formalidades bobas. E, de quebra, passar a ideia de ser presidente em tempo integral.

A imagem desse mocorongo que parecia mal-assombrado foi quase imediatamente espalhada através de uma foto oficial obrigatória nas repartições públicas, escolas, prefeituras, sindicatos e, também, adota-da por bajuladores ou partidários do regime em instituições, igrejas e até residências.

Seu desalinhamento facilitava a vida dos chargistas e humoristas, em-bora estes tivessem pouco espaço para divulgar suas caricaturas. Estas

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circulavam como folhetos clandestinos, passando de mão em mão e provocando gostosas risadas entre os frequentadores da boemia.

O desmantelo facilitava também a vida dos imitadores de todos os quilates. Em toda conversa nos bares ou pontas de rua, onde não esti-vesse presente uma autoridade, um policial ou conhecido dedo-duro, havia sempre alguém para arremedar o ditador.

Até pelo interior do País esse assunto era tratado. Dizia-se pelas bo-degas: Esse aí foi escolhido a dedo. Quem fez ele felizmente quebrou a fôrma. O homem é mais feio do que talho de foice, mais mal-amanhado do que o boi de nanico.

Também nos ambientes mais seletos das sociedades carioca e paulis-tana, a estética presidencial era assunto obrigatório. As senhoras que se reuniam todo dia para rezar um rosário pelo sucesso do que chama-vam Revolução Católica, Apostólica, Romana e Redentora não con-seguiam fugir ao assunto. Entre elegantes chávenas de chá importado acompanhado pelo mais legítimo bolo inglês, perguntavam maliciosa-mente qual a misteriosa solução para o presidente conseguir colocar a gravata.

Era tudo falsidade dessas matronas carolas, que posavam de bastiães da moral e dos bons costumes. Todas sabiam a resposta, que ouviam nas cozinhas, nas garagens, nas conversas de pé de ouvido.

A população em geral também conhecia a fórmula. Bastava circular por oficinas, puteiros, bares, praças, ruas. Ou até ficar no sereno das missas e casamentos, nas portas das igrejas. O método utilizado, muito simples, por sinal, era geralmente descrito com detalhes e coreografia da forma mais direta e escrachada possível.

Dava-se como certo, e assim se representava a cena, que o marechal só conseguia completar o traje passeio oficial quando o ajudante de or-dens aplicava-lhe uma popular dedada no centro das nádegas. E mes-mo assim com bem muita força, sob pena de não fazer efeito.

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Todo mundo sabe que o dedo maior de todos, aplicado com vigor no eixo central da bunda, provoca em qualquer homem uma reação fisio-lógica natural: um gemido gutural e uma esticada do pescoço.

Nesse momento crucial, o ditador conseguia espichar um tantinho de nada a minúscula embalagem da garganta. Aproveitando o movi-mento instintivo, o ajudante de ordens, agindo com destreza e rapidez, conseguia encaixar a gravata. Em caso de fracasso, o procedimento constrangedor tinha que ser repetido.

Essas e dezenas de outras piadas tendo o ditador como motivação se multiplicavam País afora. Afinal, rir dos opressores é remédio com sa-bor de refrigerante.

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Um quengo privilegiado

Por conta das características e contradições de uma ditadura que ain-da engatinhava, a agenda do déspota, que fazia força para parecer es-clarecido, era um verdadeiro faz de conta. Tinha sempre um toque de imprevisibilidade, desde que os ministros militares metiam a mão na porta e entravam a qualquer hora, sem se fazerem anunciar. Mesmo as-sim, a relação de compromissos era folgada feito colarinho de palhaço.

Para preencher os espaços vagos, o ministro chefe da Casa Militar, que ironicamente era o responsável pela comunicação do governo, asses-sorado por publicitários e jornalistas metidos a especialistas em gestão de imagem, sempre tinha o cuidado de programar algum compromis-so que rendesse notícia.

Inutilidades simpáticas como visitar uma escola infantil ou um hospi-tal eram constantemente relacionadas para humanizar a sua imagem. Receber alguma autoridade estrangeira dava ao ditador ares de impor-tância e reconhecimento internacional. Reunir-se com lideranças reli-giosas, sindicais ou empresariais, passava a impressão de um homem aberto ao diálogo. Tudo isso não ocupava mais do que uma hora do seu dia. Entretanto, gerava fotos para as primeiras páginas dos jornais e recheava os noticiários de rádio e da televisão. Além de preencher espaço nas naturais, como eram chamados os noticiários que antece-diam os filmes nos cinemas, exibidas entre um trailer e outro.

Nesse caso específico, com o tempo, a duração das aparições foi sen-do gradativamente reduzida. É que toda vez que o ditador surgia, aproveitando o escurinho do cinema, a moçada o saudava com uma sonora vaia.

Mais ou menos pelo mesmo motivo, as atividades externas do ditador eram monitoradas com muito cuidado. Vistoriar obras ou frequentar locais com aglomeração popular, por exemplo, eram programas fora de cogitação.

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A primeira e única iniciativa do gênero, logo nas primeiras semanas, resultou em verdadeiro desastre midiático e político. Primeiro, não foi encontrado em nenhuma loja do ramo um capacete capaz de se aco-modar na imensa cabeça do ditador. Foi preciso fabricar um apetrecho com diâmetro especial. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o resultado não podia ter sido pior.

Os operários foram perfilados à distância regulamentar e alguns esta-vam, sob coação, segurando faixas laudatórias. Entretanto não esca-pou aos ouvidos atentos dos jornalistas presentes, inclusive e princi-palmente dos estrangeiros, o desmoralizante coro de vaias com que o visitante foi saudado. No dia seguinte, o registro negativo estava feito na imprensa do mundo inteiro.

Mas a pior repercussão aconteceu mesmo em solo pátrio. A equipe palaciana vivia pisando em ovos, todos com medo de se tornarem sus-peitos de sabotagem ou agentes da guerra psicológica adversa, que era como se tratavam os comentários desfavoráveis ao regime.

No ambiente palaciano, quando se referiam ao general, era inimagi-nável qualquer restrição ou comentário que parecesse crítica. Assim, ninguém teve coragem de tomar a iniciativa e expressar o pensamen-to comum sobre o ridículo da foto oficial do evento. Repetiu-se no Planalto Central aquela fábula do rei que está nu. Como não houve manifestação de discordância, a assessoria liberou a imagem para a mídia impressa.

No outro dia, logo cedo, quando a foto apareceu estampada em todas as primeiras páginas dos jornais, aconteceu um verdadeiro bafafá.

Na fotografia, o marechal, com seu capacete de inimaginável dimen-são, ficou parecendo um extraterrestre de história em quadrinhos. As pessoas passavam pelas bancas e, mesmo quando não compravam um exemplar, faziam questão de apreciar a munganga para cair na inevitá-vel gargalhada.

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O mais atrevido foi certo jornaleco meio comunista do Rio de Janei-ro, que até então sobrevivia às perseguições da ditadura a duríssimas penas. Sentindo que não aguentaria por muito tempo a pressão do go-verno, as sucessivas prisões de seus colaboradores e a fuga em massa dos anunciantes, o editor-proprietário optou por aproveitar a opor-tunidade para sair de cena em grande estilo. Fez uns ajustes na foto e enquadrou o marechal em frente a uma britadeira, de um ângulo em que a máquina ficou parecendo uma nave espacial.

Ocupou com o retrato toda a parte de cima da primeira página. Logo abaixo da foto, estampou uma manchete espalhafatosa anunciando que os marcianos tinham tomado o governo no Brasil. Só lá embai-xo, em tipos quase ilegíveis, se explicava que a manchete não era nada mais nada menos que uma chamada para um artigo de ficção cientí-fica, a ser publicado na edição seguinte. Que, aliás, nunca veio à luz.

Antes que a Polícia Militar invadisse a redação e empastelasse a publi-cação a marretadas, o jornaleco rodou 4 edições sucessivas. Utilizou até papel emprestado por concorrentes que, meses antes, pregavam o golpe, mas que também não estavam satisfeitos com o andar da car-ruagem. Vendeu feito água no deserto. Os exemplares eram disputa-dos a tapa na Cinelândia, no Largo da Carioca, na Avenida Rio Branco e outros pontos de grande concentração popular.

Graças à ponte aérea, em pouco tempo a publicação chegou a São Paulo.

No Rio, as Polícias Civil e Militar foram mobilizadas. Revistavam e arrancavam os impressos das mãos dos leitores. Filas, elevadores, res-taurantes, repartições públicas, lotações, escritórios, trens de subúr-bio, tudo virou um verdadeiro pandemônio, um generalizado campo de batalha. Quem conseguiu salvar o seu exemplar fez sucesso à noite nos bairros. Vários desses leitores, denunciados por vizinhos alcague-tes, que naqueles dias sombrios se multiplicavam feito erva daninha, foram parar em delegacias e quartéis.

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Cabeças rolaram. A equipe de marketing, do publicitário ao fotógrafo, foi toda substituída. Mas o estrago estava feito.

A partir dali, o próprio marechal estabeleceu que em matéria de obra, só iria a inaugurações quando não se exigisse capacete em ninguém. E como nada havia para inaugurar, ele aproveitou o episódio para se livrar de levar sol quente no quengo e aplaudir discursos sem graça nenhuma.

Nada disso, porém, estava em pauta ou sequer era lembrado naque-la manhã. O que interessava eram as novas do ministro, que cumpriu britanicamente o horário, fez-se anunciar, cumprimentou o chefe, es-perou a ordem para sentar.

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Bate-bate coração

O marechal ajeitou-se com dificuldade na cadeira larga e alta que fora feita para acomodar as longas pernas de Juscelino Kubitscheck, seu primeiro ocupante. Sem se preocupar em esconder o desconforto, au-torizou o ministro a expor o que o levara a solicitar às pressas aquela audiência imprevista.

O chanceler estava ainda pior acomodado. Balançava para um lado e para o outro, parecia pêndulo de relógio de parede. Procurava ajeitar as nádegas na poltrona o tempo todo. Se estivesse sentado em cima de um formigueiro, não transpareceria maior desconforto. Sabia que dificilmente o que tinha a dizer agradaria. Era perspicaz o suficiente para perceber, também, que o seu papo, recheado de mesuras e forma-lismos vazios, dava nos nervos do ditador.

Achou que precisava ganhar algum tempo, preparar o espírito do co-mandante supremo. Por isso, iniciou uma conversa do tipo que o povo chama de cerca-lourenço, evitando ir direto ao assunto.

O marechal já sabia que o problema não era simples. Por isso, após ouvir alguns longos minutos de lero-lero, girando em torno da delica-deza do tema a ser tratado, cortou a palavra do auxiliar e, bruscamente, ordenou que fosse direto ao assunto.

Mais suado do que sugeria o clima do Cerrado naquela época do ano, o ministro nem assim conseguiu ser esclarecedor. Estava tra-vado, sua aclamada loquacidade de repente fora para o espaço. Ao invés de cumprir a ordem, continuou costeando o alambrado, como se diz no Sul.

Foi naquela altura que o marechal perdeu a calma pela primeira vez. Levantou a voz e determinou: Ministro, por caridade, poupe os meus neurônios. Se eu não sei do que se trata, como posso lhe dar comandos, orientações ou sequer rezar um padre-nosso pela solução do problema?

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Apesar de culto, o marechal tinha um senso de humor rasteiro. Além disso, não estava acostumado e não gostava de ser desobedecido. Então apelou para a ignorância. Ameaçou o ministro com a linguagem dos porões, onde os prisioneiros políticos eram interrogados: Talvez uns bons choques elétri-cos nos culhões lhe façam desembuchar. Não teste a minha paciência.

A pressão excessiva fez efeito contrário, como aliás acontecia muitas vezes nos calabouços onde se praticavam as torturas contra inimi-gos do regime. O ministro perdeu a cor, a fala e a capacidade de se expressar.

O absurdo da situação era tão evidente que o marechal caiu em si. Es-tava no caminho errado. Era preciso relaxar o interlocutor. Apertou uma campainha e pediu à solícita secretária, que surgiu aparentemente do nada, dois copos com água gelada e dois cafezinhos bem passados.

Logo entrou Cícero, o copeiro oficial, trazendo a encomenda no grau. Xícaras fumegantes, copos suando da água gelada. O marechal aproveitou para desanuviar o ambiente e perguntou a Cícero pelas novidades.

Era como um código. O copeiro sempre trazia para o presidente con-versas de cocheira, relatórios da Rádio Corredor e até piadas sobre o próprio marechal que ninguém tinha o topete de contar. Em troca, servia de confidente para reflexões ditatoriais que nenhum outro ou-vido tinha o privilégio de escutar.

Naquele momento tenso, o copeiro foi peça fundamental para resol-ver o impasse. Percebendo que o ambiente estava soturno, fez o seu jogo. Disse ao ditador que conhecia uma piada nova sobre o regime, mas era muito pesada e ele não tinha coragem de contar na presença de um estranho.

Conte, ordenou o marechal. É até bom, porque esse ai deve pensar que eu sou um monstro e vai ver que eu sou, além de democrata, muito bem humorado.

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Cícero então arriscou. E narrou a piada do ônibus lotado que foi parar numa delegacia devido a uma confusão generalizada.

A causa do fuzuê foi o espancamento sofrido por um oficial do Exército, que estava fardado. O militar, muito irritado, disse ao delegado que foi agredido pelos passageiros e exigia uma punição exemplar para todos.

A autoridade policial começou, então, a ouvir os acusados. A primeira foi uma moça bonita e exaltada, que sem medo apontou para o militar. Relatou que estava no ônibus sentada no seu canto quando inespera-damente o milico passou a mão nos seus seios sem o menor respeito. Meti minha sombrinha nele com toda a força, confessou.

O próximo depoente falou que era noivo da moça. Confirmou a his-tória, admitiu que também tinha dado uns sarrabulhos no atrevido. Para azar do oficial, a família inteira da noiva estava no coletivo. Pai, mãe, irmãos, primos, todos admitiam o espancamento em função do desrespeito à donzela.

Lá por último vem um amarelinho, e o delegado, já de saco cheio, per-guntou: E o senhor, é o quê da moça? O sujeitinho fez cara de espanto: Eu não sou nada, seu delegado. Nem conhecia ela.

Surpreso, o delegado perguntou se ele também tinha agredido o ofi-cial. Mais surpreso ainda ficou quando o sujeitinho confirmou. Estava no ônibus, viu todo mundo metendo o pau no militar, pensou que a revolução tinha acabado, desceu o cacete também.

O marechal gargalhou, o chanceler deu um risinho amarelo, o clima desanuviou. Cícero foi convidado a se retirar, a palavra voltou ao mi-nistro, que, bem mais tranquilo, conseguiu engrenar a conversa.

Presidente, eu preciso de comandos urgentes. Já consultei o coronel che-fe do Serviço Secreto, não obtive resposta. O embaixador do país de Lincoln não quer entrar no assunto. A Santa Sé pede informações, os

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principais jornais querem entrevistas, as nossas embaixadas não sabem o que dizer. Administrei até aqui, agora fugiu da minha alçada.

A fala do ministro, soltando torpedos em doses homeopáticas, era fru-to da remota esperança de o marechal já estar informado de alguma coisa que facilitasse a sua missão. Mas tudo foi inútil.

Pela expressão do chefe, o ministro percebeu que ele estava completa-mente por fora do assunto. É o que dá intimidar a imprensa e encher de medo os auxiliares. Acaba-se sem saber de coisas importantes que deveriam ser bem conhecidas, pensou com os botões da sua casaca. O pior é que o destino o escolhera para ser o portador da má notícia.

Tentando num esforço supremo enrolar um pouco mais para preparar melhor o espírito do chefe, assumiu o risco e tergiversou: O senhor conhece a cidade pernambucana de Boi Pintado, antigamente denomi-nada Boa Vista, presidente?

O marechal conhecia. Fora lá uma vez, na época de comandante do IV Exército, cuja sede é no Recife. Fica a cerca de 130 km da capital per-nambucana, na região Agreste do estado. É aclamada, até hoje, como Capital Mundial da Vaquejada.

Foi exatamente para assistir a um desses eventos que se deslocou até a cidade. Reclamou da estrada ruim, achou tudo feio, detestou a festa. Vaqueiros derrubando bois pelo rabo, levantando poeira, o povo vi-brando em palanques que pareciam poleiros. Um esporte no qual não achava graça nenhuma, apesar de ser muito apreciado por seus conter-râneos nordestinos. Estar em Pernambuco e não conhecer a tradicio-nal vaquejada de Boi Pintado, que acontece todo mês de setembro, é como ir a Roma e não ver o papa.

Porém, nos últimos meses, a má impressão da visita desaparecera. E o marechal fez questão de registrar: Não apenas conheço, como de lá só tenho recebido boas notícias.

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Agora a surpresa foi do chanceler. Ocupado com as relações interna-cionais, não tinha tempo para se atualizar no noticiário interno. Por-tanto, não sabia de nada de bom acontecido em Boi Pintado, só estava informado da parte complicada.

O marechal encarou o chanceler, a expressão mais animada trazia ao mesmo tempo uma ordem inadiável. Agora que precisava ainda de al-gum tempo, o ministro não dispunha de mais nenhum.

Conformado, engatilhou frase: Não sei se o senhor está a par, presidente...

O mandatário, não estava a par de nada ruim vindo de Boi Pintado. E não gostou de saber que estava desinformado. Pior ainda, achou muito constrangedor ter que passar recibo da sua ignorância para um auxiliar com o qual não tinha qualquer intimidade. O seu desconhecimento era prova de que ou o Serviço Secreto - o já temido SS - não funcionava ou omitia notícias ao chefe supremo.

O ministro percebeu a situação, atrapalhou-se num gaguejado inter-minável. Foi preciso que o presidente perdesse a linha pela segunda vez, desse uma tapa na mesa, para o homem cair em si, novamente se recompor e desembuchar de uma vez por todas: Não sei se o senhor sabe, presidente, falou rápido e nervoso, mas Deus vai ser julgado em Boi Pintado, e o assunto já ganhou o noticiário internacional.

A mudança na expressão do mais alto mandatário do País foi tão grande que o ministro teve a impressão de que o marechal tinha ficado verde, amarelo, azul e branco ao mesmo tempo. Se enfiassem um cabo de vas-soura no seu ouvido, naquela hora, podiam balançar que seria confun-dido com uma bandeira nacional. Além disso, da boca que emitia uma baba parecida com espuma, saiu um urro quase animal: Deus o quê?

Nesse momento, o ministro tinha atingido quase os limites da co-vardia. Segurou-se a custo para não urinar ali mesmo. Para sua sorte,

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lembrou de uma expressão calhorda que muito ouvira na época de es-tudante, mas que excluíra completamente do seu vocabulário elegante.

Naquele instante de agonia, ele, que nunca utilizara expressão grossei-ra, se agarrou silenciosamente com a frase como uma tábua de salva-ção: Já que passou a cabecinha, o resto vai de qualquer jeito.

Recomposto, passou a se expressar com inesperado vigor e até uma pontinha de atrevimento: É isso mesmo que o senhor ouviu, presidente. O julgamento de Deus está marcado para se realizar em Boi Pintado, agora, no próximo dia 7 de setembro. O núncio apostólico, representante direto do Papa e do Espírito Santo, quer uma audiência urgente com o senhor. E a imprensa internacional, abusada como sempre, está exigin-do uma entrevista coletiva para saber a posição oficial do País sobre esse inusitado acontecimento.

O alívio opera milagres. A cada palavra que proferia, o ministro ia re-cuperando a sua habitual impertinência, nunca exercitada diante dos poderosos do regime. Percebeu que a fraqueza mudara de lado. Agora quem tremia nas bases era o ditador. Mudava de cor como uma árvore de Natal, parecia que ia ter uma convulsão a qualquer momento.

O chanceler sentiu-se inesperadamente tomado de tranquilidade e sa-tisfação. Passou a saborear cada palavra como uma espécie de vingança pela intimidação que o superior lhe infundia. Mandou falar, ia ouvir.

E prosseguiu: Além disso, presidente, existem diversos outros problemas acontecendo por lá. Temas polêmicos e complexos, que despertam o in-teresse não apenas da Santa Sé, como também dos serviços de inteligên-cia estrangeiros e da comunidade científica internacional. Questões que desafiam a nossa gloriosa e vitoriosa Revolução Redentora, que o senhor tem conduzido com tirocínio perfeito e generosa mão de ferro. Finalizan-do, repetiu, dessa vez gratuitamente, por pura maldade: Deus vai ser levado ao banco dos réus em Boi Pintado, Excelência.

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Foi a vez do marechal quase engolir a língua. Articulou as palavras com dificuldade, fazendo pausas entre cada uma delas, procurando ar.

Quer dizer que, no meu governo... católico, apostólico, romano, ociden-tal e cristão... defensor da fé, da tradição, da família e da propriedade privada... resultado da Revolução Redentora de 31 de Março contra o comunismo ateu...

Quando se referiu ao comunismo ateu, foi dominado pela emoção. Perdeu o fôlego, parecia asfixiado, o multicolorido do rosto foi subs-tituído pelo roxo monocromático. O chanceler, apavorado, gritou por socorro.

O coronel médico de plantão, que sempre estava no gabinete contí-guo, entrou às carreiras e, quando viu o quadro, diagnosticou um pos-sível enfarto em andamento. Desconsiderou a hierarquia e, de acordo com o manual de medicina de combate, desferiu um murro violento no peito do marechal, para garantir o coração em funcionamento.

A autoridade desabou de costas, meio desacordada. Para sua sorte e felicidade geral do mundo ocidental e cristão, estava diante do sofá, caiu no fofo e não se feriu.

Na verdade quem saiu machucada foi a mão do médico, que naquela agonia não percebeu e esmurrou diretamente a estrela de metal que sobressaía no meio da faixa estendida sobre o peito ditatorial.

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