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Sumário

Evolução Histórica do Direito do Consumidor Autores: Flávio Barbosa Quinaud Pedron e Viviane Machado Caffarate..........4

Proteção constitucional do consumidor

Autor: Cristian de Sales Von Rondow...............................................................15

Princípios nucleares do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor e sua extensão como princípio constitucional

Autor: Henrique Alves Pinto..............................................................................26

O princípio da vulnerabilidade e a defesa do consumidor no direito brasileiro: origem e conseqüências nas regras regulamentadoras dos contratos e da publicidade

Autores: Alírio Maciel Lima de Brito e Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte..........................................................................................................................57

O princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Francisco José Soller de Mattos..............................................................74

A relação jurídica de consumo: conceito e interpretação

Autor: Marcelo Azevedo Chamone....................................................................76

Pessoa jurídica consumidora

Autor: Alex Sandro Ribeiro..............................................................................105

Aspectos da responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor e excludentes

Autoras: Michele Oliveira Teixeira e Simone Stabel Daudt............................109

Vícios no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor: diferenças

Autor: Ricardo Canguçu Barroso de Queiroz...................................................127

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A responsabilidade civil do fornecedor por vícios dos produtos no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Fabrício Castagna Lunardi....................................................................129

A prescrição e a decadência no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Osmir Antonio Globekner.....................................................................145

Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Osmir Antonio Globekner.....................................................................157

Princípios gerais da publicidade no Código de Proteção e Defesa do Consumidor

Autor: João Bosco Pastor Gonçalves................................................................175

As cláusulas abusivas à luz da doutrina e da jurisprudência

Autores: Carlos Cavalcante e Karla Karênina Andrade...................................184

Inversão do ônus da prova no CDC e no CPC

Autor: Ranieri Eich...........................................................................................206

Alguns aspectos da dogmática processual para a defesa dos direitos do consumidor

Autora: Viviane Mandato Teixeira Ribeiro da Silva........................................230

Litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros nas ações coletivas para tutela do consumidor

Autora: Gláucia Kohlhase Marques..................................................................248

A competência nas ações coletivas do CDC

Autor: Renato Franco de Almeida....................................................................274

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A Evolução Histórica do Direito do Consumidor

Autores: Flavio Barbosa Quinaud Pedron e Viviane Machado Caffarate

I. A Evolução do Direito do Consumidor

O Direito do Consumidor é obra relativamente recente na Doutrina e na Legislação. Tem seu surgimento como ramo do Direito, principalmente, na metade deste século. Porém, indiretamente encontramos contornos deste segmento do Direito presente, de forma esparsa, em normas das mais diversas, em várias jurisprudências e, acima de tudo, nos costumes dos mais variados países. Porém, não era concebido como uma categoria jurídica distinta e, também, não recebia a denominação que hoje apresenta.

Altamiro José dos Santos destaca o Código de Hamurabi (2300 a.C.). Este já em seu tempo regulamentava o comércio, de modo que o controle e a supervisão se encontravam a cargo do palácio. O que demonstrava que se existia preocupação com o lucro abusivo é porque o consumidor já estava tendo seus interesses resguardados. Santos lembra que:

"consoante a" lei "235 do Código de Hamurabi, o construtor de barcos estava obrigado a refazê-lo em caso de defeito estrutural, dentro do prazo de até um ano (...)" (Santos, 1987. p. 78-79).

Desta norma podemos supor uma noção dos vícios redibitórios. Havia também regras contra o enriquecimento em detrimento de outrem ("lei" 48), bem assim a modificabilidade unilateral dos desajustes por desequilíbrio nas prestações, em razão de forças da natureza.

Os interesses dos consumidores já estavam resguardados na Mesopotâmia, no Egito Antigo e na Índia do Século XVIII a.C., onde o Código de Massú previa pena de multa e punição, além de ressarcimento de danos, aos que adulterassem gêneros ("lei" 967) ou entregassem coisa de espécie inferior à acertada ou, ainda, vendessem bens de igual natureza por preços diferentes ("lei" 968).

No Direito Romano Clássico, o vendedor era responsável pelos vícios da coisa, a não ser que estes fossem por ele ignorados. Porém, no Período Justinianeo, a responsabilidade era atribuída ao vendedor, mesmo que desconhecesse do defeito. As ações redibitórias e quanti minoris eram instrumentos, que amparadas à Boa-Fé do consumidor, ressarciam este em casos de vícios ocultos na coisa vendida. Se o

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vendedor tivesse ciência do vício, deveria, então, devolver o que recebeu em dobro.

"no período romano, de forma indireta, diversas leis também atingiam o consumidor, tais como: a Lei Sempcônia de 123 a.C., encarregando o Estado da distribuição de cereais abaixo do preço de mercado; a Lei Clódia do ano 58 a.C., reservando o benefício de tal distribuição aos indigentes e; a Lei Aureliana, do ano 270 da nossa era, determinando fosse feita a distribuição do pão diretamente pelo Estado. Eram leis ditadas pela intervenção do Estado no mercado ante as dificuldades de abastecimento havidas nessa época em Roma" (Prux, 1998. p. 79).

De acordo com os estudos de Waldírio Bulgarelli,

"pode-se encontrar antecedentes os mais antigos: Aristóteles já se referia a manobras de especuladores na Grécia Antiga, e em Roma atestam-no a Lex Julia de cemnoma, o Édito de Diocleciano e a Constituição de Zenon" (Bulgarelli, apud Prux, 1998. p. 79).

Há estudos que apontam depoimentos de Cícero (Século I a.C.) assegurando a garantia sobre vícios ocultos na compra-venda no caso do vendedor prometer que a mercadoria era dotada de determinadas qualidades e estas serem inexistentes.

"Pirenne, no comentário de sua obra cobrindo o século XIII, é bastante elucidativo no subtítulo - Proteção ao consumidor - ao escrever que a disciplina imposta ao artesão tinha naturalmente por objeto assegurar a qualidade dos produtos fabricados. Neste sentido – acrescenta textualmente o mestre gaulês - também favorecia o consumidor" (SIDOU, apud PRUX, 1998. p. 781).

A França de Luiz XI (1481) punia com banho escaldante aquele que vendesse manteiga com pedra no interior para aumentar o peso, ou leite com água para aumentar o volume.

O jurista português Carlos Ferreira Almeida afirma que no Direito Português:

"os códigos penais de 1852 e o vigente de 1886 (...), reprimindo certas práticas comerciais desonestas, protegiam indiretamente interesses dos comerciantes: sob o título genérico de crimes contra a saúde pública, punem-se certos actos de venda de substâncias venenosas e abortivas (art. 248º) e fabrico e venda de gêneros alimentícios nocivos à saúde pública (art. 251º); consideram-se criminosas certas fraudes nas vendas (engano sobre a natureza e sobre a quantidade das coisas – art. 456); tipificava-se ainda como crime a prática do monopólio, consistente na recusa de venda de gêneros para uso público (art. 275º) e alteração dos preços que resultariam da natural e livre concorrência, designadamente através de coligações com outros indivíduos, disposições revogadas por legislação da época corporativista, que regrediu em relação ao liberalismo consagrado no código penal" (ALMEIDA,1982. p. 40).

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Na Suécia, a primeira legislação protetora do consumidor foi em 1910.

Já nos EUA, em 1914, criou-se a Federal Trade Commission, que tinha o objetivo de aplicar a lei antitruste e proteger os interesses do consumidor. Também nos EUA, em 1773, em seu período de colônia, o episódio contra o imposto do chá no porto de Boston (Boston Tea Party) é um registro de uma manifestação de reação dos consumidores contra as exigências exorbitantes do produtor inglês.

A Revolução americana de 1776 foi uma revolução do consumidor. Pois nas palavras de Miriam de Almeida Souza, foi uma revolução

"contra o sistema mercantilista de comércio britânico colonial da época, no qual os consumidores americanos eram obrigados a comprar produtos manufaturados na Inglaterra, pelos tipos e preços estabelecidos pela metrópole, que exercia o seu monopólio. (...) Samuel Adams, uma figura marcante no episódio do chá no porto de Boston, que, já em 1785 na República, reforçou as seculares "assizes" (Leis do Pão), da antiga metrópole, apontando sua assinatura na lei que proibia qualquer adulteração de alimentos no estado de Massachusetts" (SOUZA, 1996. p. 51).

Pode-se notar que esta lei representa um marco histórico na luta pelo respeito aos direitos do consumidor.

No Brasil, o Direito do Consumidor surgiu entre as décadas de 40 e 60, quando foram sancionados diversas leis e decretos federais legislando sobre saúde, proteção econômica e comunicações. Dentre todas, pode-se citar: a Lei n. 1221/51, denominada Lei de Economia Popular; a Lei Delegada n. 4/62; a Constituição de 1967 com a emenda n. 1/69, que consagrou a defesa do consumidor; e a Constituição Federal de 1988, que apresenta a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica (art. 170) e no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que expressamente determinou a criação do Código de Defesa do consumidor.

II. O Surgimento do Direito do Consumidor do Prisma da Evolução do Estado Liberal

O Estado Liberal surgiu no século XVIII em contraposição ao Estado absoluto e veio assegurar o indivíduo em face do Estado. O Estado Liberal tem como características o poder limitado; os direitos individuais e políticos; a defesa da livre incitava e livre concorrência e a não intervenção do Estado na esfera privada. Adam Smith, um dos principais pensadores do liberalismo, afirmava:

"É suficiente que deixemos o homem abandonado em sua iniciativa para que ao perseguir seu próprio interesse promova o dos demais. O interesse privado é o

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motor da vida econômica" (SMITH, apud DERANI, p.32).

Assim, neste período, as leis eram feitas para dar sustentação ao liberalismo econômico. O Direito regia-se pelos Princípios da Autonomia da Vontade, do Consensualismo e da Obrigatoriedade Contratual.

No século XIX, com o advento da Revolução Industrial, houve uma substituição da maquinofatura pela máquina, as pessoas deixaram de trabalhar em casa e foram trabalhar nas fábricas e ao redor destas surgiram os centros urbanos. As fábricas, devido à automação incipiente das máquinas, não empregaram a grande parte da população, gerando o desemprego e a conseqüente a exclusão social daqueles que estavam desempregados. A grande procura por empregos gerou a desvalorização da mão-de-obra. A liberdade contratual, instituída na Revolução Francesa, aliada a grande oferta de trabalho, fazia com que as pessoas, para se manterem empregadas, se submetessem à exploração. Concomitante a estes fatos, a livre incitava e livre concorrência defendida pelos liberais não se concretizou, pois a concorrência não se iniciava em condições iguais e as regras do jogo não eram respeitadas. Com isso, algumas empresas que se enriqueceram, gerando uma concentração econômica.

O Estado Social surge no século XX como resposta à miséria e a exploração de grande parte da população. O Estado Social tem como características o poder limitado, a garantia os direitos individuais e políticos, acrescentando a estes os direitos sociais e econômicos. Logo, o Estado passou a intervir na Economia para promover justiça social. Nas Constituições promulgadas adotando esse modelo de Estado, os direitos individuais eram mais importantes que os direitos sociais. Estes foram regulados como normas pragmáticas, dependendo, então, de regulamentação. Assim acorreu com a Constituição brasileira de 1988 que dispõe que "o Estado promoverá na forma da lei, a defesa do consumidor". Portanto, a Constituição Federal de 1988 exigiu que o Estado abandonasse a sua posição de mero espectador da sorte do consumidor, para adotar um modelo jurídico e uma política de consumo que efetivamente protegesse o consumidor. Isso porque, o Código Civil, formulado segundo o pensamento liberal, trouxe o vício redibitório como meio de proteção do consumidor. Esse meio, no entanto, mostrou-se ineficaz para a proteção do consumidor.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, editado segundo os Princípios de um Estado Democrático de Direito, em muito inovou em comparação com o Código Civil. Façamos, aqui, uma comparação exemplificativa entre as regras deste e as do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. O Código Civil fala em coisas, objeto de contratos comutativos e em bens e imóveis. Já o Código de Proteção e Defesa do Consumidor fala em produtos, que seriam quaisquer bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, duráveis e não duráveis e em serviços. Outro ponto é que o Código Civil fala em defeitos ocultos que tornem a coisa imprópria para o uso ou diminuam o seu valor. Por sua vez o Código de Proteção e Defesa do Consumidor

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acrescenta que o defeito pode até mesmo ser de fácil constatação e que a coisa poderá ser enjeitada por não conferir com as especificações da embalagem, do rótulo, da propaganda, etc. Além disso, o prazo decadencial para substituir, devolver ou pedir abatimento do preço da coisa também foi ampliado no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

III. A Revolução Industrial e O Direito do Consumidor

O período da Revolução Industrial é de grande importância para o desenvolvimento do Direito do Consumidor.

"Antes da era industrial, o produtor-fabricante era simplesmente uma ou algumas pessoas que se juntavam para confeccionar peças e depois trocar os objetos (bartering). Com o crescimento da população e o movimento do campo para as cidades, formam-se grupos maiores, a produção aumentou e a responsabilidade se concentrou no fabricante, que passou a responder por todo o grupo" (SOUZA, 1996. p.48).

O advento da Revolução Industrial foi responsável pelo crescimento da chamada produção em massa. Devido a este movimento, a produção perdeu seu toque "pessoal" e o intercâmbio do comércio ganhou proporções ainda mais despersonalizadas, já que passaram a haver outros intermediários entre a produção e o consumo. Em conseqüência disto,

"o produtor precisava dar escoamento à produção, praticando, às vezes, atos fraudulentos, enganosos, por isso mesmo, abusivos. A justiça social, então, entendeu ser necessária a promulgação de leis para controlar o produtor-fabricante e proteger o consumidor-comprador" (SOUZA, 1996. p. 48).

Acrescenta-se, ainda, que "o produtor, via de regra, sempre se interessou mais pela parte monetária do que com o produto, ou mesmo em satisfazer o consumidor" (SOUZA, 1996. p. 48).

O crescimento e contínuos avanços das tecnologias fizeram com que fossem inseridas na mente do consumidor as idéias de que ele estava precisando de mais objetos que até o momento nunca sentira necessidade de adquirir em sua vida cotidiana. O produtor estava sempre interessado em formas para escoar sua produção e manter o fluxo de produção-consumo. Logo, sentiu necessidade de estimular o consumidor a uma necessidade, ainda que artificial, para manter o processo produtivo em funcionamento. Criou-se, desta forma, o que o professor Thierry Bourgoignie, da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, denomina de "norma social do consumo", que:

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"faz com que o consumidor perca o controle individual das decisões de consumo e passe a ser parte de uma classe, a "consommariat", conferindo claramente uma dimensão social ao consumidor e ao ato de consumir" (BOURGOIGNIE, apud SOUZA, 1996. p. 48).

IV. A Selva

O norte-americano Upton Sinclair, em 1906, escreveu um romance chamado The Jungle (A Selva). Este serviu para despertar no povo do seu país o mais vivo interesse pela problemática do consumidor. Sinclair era um jovem jornalista, dotado de idéias socialistas, que , no intuito de justificar e fundamentar suas reivindicações proletárias, consistentes de melhorias de salário e de condições de trabalho, disfarçou-se em operário para realizar suas observações na cidade de Chicago. Em seu romance, ele retrata em cores ousadas e dramáticas o impacto social do capitalismo industrial no começo do século XX.

"Os principais personagens eram de uma família de camponeses lituanos que vieram trabalhar pelos contos e fantasias de liberdade e pujança na América" (Souza, 1996. p. 52).

Sinclair demonstra os abusos cometidos pela industria da carne, ao descrever de forma bem realística os alimentos deteriorados. Um exemplo é o seguinte trecho de sua obra:

"a carne misturada com pedaços de tecidos esfarrapados e sujos, pães mofados, moídos juntamente com os enchimentos das lingüiças vendidas em Chicago, embora proibidas no comércio exterior" (SINCLAIR, apud SOUZA, 1996. p. 52).

O impacto da novela The Jungle foi de um modo tão avassalador, que logo sofreu traduções para 17 idiomas. O romance acabou, também, por inspirar a elaboração de duas leis federais nos EUA, que fortaleceram a fiscalização da pureza da carne, a Meat Inspection Act e a Pure Food and Drug Act, de 1906.

V. O Direito do Consumidor na Segunda Guerra Mundial e no Cenário do Pós-Guerra

Foi em plena Segunda Guerra Mundial, quando a produção estava a serviço e controle do Estado, que se despontava na América Keynesiasna o movimento em prol dos direitos do consumidor. Mas curiosamente, foram o surgimento da mídia e as conquistas tecnológicas que deram causa ao ressurgimento da defesa do consumidor.

"a guerra intensificou a produção industrial em massa, e contribuiu para as

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grandes invenções e o aprofundamento da produção em série. Todo o esforço da guerra resultou, inevitavelmente, em aumento substancial de produção no posterior tempo de paz. O know-how gerado para a guerra provocou, então um crescimento em vários segmentos industriais, gerando um arsenal de produtos surpérfulos e diversificados, em um mercado antes restrito somente ao essencial. Com o advento da televisão, resultou da propaganda informativa o marketing (desenvolvido em forma de propaganda de guerra), com o objetivo de escoar a produção no mercado. Com isso, aumentaram os problemas relacionados à produção e ao consumo, em face de uma competitividade altamente sofisticada por causa das novas mídias e das próprias complexidades dos mercados surgidos no pós-guerra, e do advento do marketing científico. Passou-se então a praticar uma concorrência desleal, fortalecendo a tendência da formação dos cartéis, trustes e oligopólios, o que sem dúvida, colaborou, dentre outros motivos, para o agravamento dos problemas sociais e conflitivos urbanos em decorrência da concentração de renda" (Souza, 1996. p. 54).

Podemos perceber que esses problemas influenciaram sensivelmente a vida dos consumidores, quer seja pela alta dos preços, queda na qualidade de vida ou aumento da poluição.

Após o período do pós-guerra acontece o ressurgimento da cláusula rebus sic stantibus, o que enfraquece o princípio da força obrigatória dos contratos. Esta restauração se deu sob o nome de "teoria da imprevisão" e visava a quebra do princípio do pacta sunt servanda. Esta quebra possibilitou o surgimento do Direito do Consumidor, que se fundamentava a partir da responsabilidade civil objetiva e do reconhecimento dos interesses e direitos difusos.

Orlando Gomes afirma que:

"o princípio da força obrigatória das convenções, pelo qual o juiz estava obrigado a fazer cumprir os efeitos do contrato, quaisquer que fossem as circunstâncias ou as conseqüências, está abalado. O legislador intervém, a cada instante, na economia dos contratos, ditando medidas que, tendo aplicação imediata, alteram os efeitos dos contratos anteriormente praticados, e vai se admitindo o poder do juiz de adaptar seus efeitos às novas circunstâncias (cláusula rebus sic stantibus), ou de exonerar o devedor do seu cumprimento, se ocorrer imprevisão. Por fim, desde que os contratos são fonte de obrigações e estas importam limitação da liberdade individual, entendia-se que os seus efeitos não deveriam atingir a terceiros. O contrato era res inter alios acta. Mas as necessidades sociais impuseram a quebra, ainda que excepcional, desse princípio da relatividade dos efeitos do contrato, para a satisfação de certos interesses coletivos privados" (GOMES, 1979. p. 105-106).

A partir das iniciativas do presidente americano John Fitzgerald Kennedy, na década de 60, houve a consolidação do Direito do Consumidor nos Estados Unidos. Dirigindo-se por meio de uma mensagem especial ao Congresso Americano, em

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1962, Kennedy identificou os pontos mais importantes em torno da questão:

"(1) os bens e serviços colocados no mercado devem ser sadios e seguros para os uso, promovidos e apresentados de uma maneira que permita ao consumidor fazer uma escolha satisfatória;

(2) que a voz do consumidor seja ouvida no processo de tomada de decisão governamental que detenha o tipo, a qualidade e o preço de bens e serviços colocados no mercado;

(3) tenha o consumidor o direito de ser informado sobre as condições e serviços;

(4) e ainda o direito a preços justos" (SOUZA, 1996. p. 56).

Seguindo o exemplo de Kennedy, a Comissão de Direitos Humanos das nações Unidas, na sua 29ª Sessão em 1973, em Genebra, também reconheceu os princípios e chamou-os de Direitos Fundamentais do Consumidor. Por sua vez, o programa Preliminar da Comunidade Européia para uma Política de Proteção e Informação dos Consumidores dividia os direitos fundamentais em cinco categorias:

"(1) proteção da saúde e da segurança;

(2) proteção dos interesses econômicos;

(3) reparação dos prejuízos;

(4) informação e educação;

(5) representação (ou direito de ser ouvido)" (SOUZA, 1996, p. 56).

Em 1985, as Nações Unidas, por meio da Resolução n.º 39/248, estabelece objetivos, princípios e normas para que os governos membros desenvolvam ou reforcem políticas firmes de proteção ao consumidor. Esta foi, claramente, a primeira vez que, em nível mundial, houve o reconhecimento e aceitação dos direitos básicos do consumidor. O Anexo 3 da Resolução mostra quais são os princípios gerais que serão tomados como padrões mínimos pelos governos:

"(a) proteger o consumidor quanto a prejuízos à sua saúde e segurança;

(b) fomentar e proteger os interesses econômicos dos consumidores;

(c) fornecer aos consumidores informações adequadas para capacita-los a fazer escolhas acertadas, de acordo com as necessidades e desejos individuais;

(d) educar o consumidor;

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(e) criar possibilidade de real ressarcimento ao consumidor;

(f) garantir a liberdade para formar grupos de consumidores e outros grupos e organizações de relevância e oportunidade para que estas organizações possam apresentar seus enfoques nos processos decisórios a elas referentes" (SOUZA, 1996. p.57).

Miriam Souza lembra, ainda, que:

"as Nações Unidas também entendem como medida para a proteção dos consumidores o Código de Conduta para as Firmas Transnacionais, projeto de ONU desde meados dos anos 60, ponto de vista compartilhado pela Organização Internacional das Associações de Consumidores (International Organization of Consumers Unions – IOCU), com sede em Haia" (Souza, 1996. p. 57).

O IOCU é amplamente respeitado entre as associações de consumidores no mundo. E sobre os direitos do consumidor enumera:

"(1) segurança – proteção contra produtos, processos e serviços nocivos à saúde ou à vida;

(2) informação – conhecimento dos dados necessários para fazer escolhas e decisões informadas;

(3) escolha – acesso a uma variedade de produtos e serviços com qualidade e preços competitivos;

(4) a ser ouvido – exposição e consideração das perspectivas dos consumidores na formação das políticas nacionais;

(5) indenização – solução justa de queixas justas;

(6) educação – aquisição dos conhecimentos e das habilidades necessárias para ser um consumidor informado ao longo da vida;

(7) ambiente saudável – ambiente físico apto a proporcionar melhor qualidade de vida agora e no futuro" (SOUZA, 1996. p. 58).

A proteção do Direito do Consumidor é de tamanha relevância, que muitos dos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro, pela Constituição Federal de 1988, já consagram, acolhendo a Resolução da ONU.

VI. A Constituição Brasileira e O Direito do Consumidor

A questão dos Direitos do Consumidor é tão importante que em três

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oportunidades distintas é tratada na Constituição Federal vigente. A primeira vez, já em seu Capítulo I do Título II, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos estabelece a Carta magna, no artigo 5º, XXXII que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" o que quer dizer, em outras palavras, que o Governo Federal tem a obrigação de defender o consumidor, de acordo com o que estiver estabelecido nas leis.

A segunda vez que a Constituição menciona a defesa do consumidor é quando trata dos princípios gerais da atividade econômica no Brasil, citando em seu artigo 170, V, que a defesa do consumidor é um dos princípios que devem ser observados no exercício de qualquer atividade econômica.

Finalmente, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), determina que o Congresso Nacional elabore o Código de Defesa do Consumidor.

Estes três dispositivos constitucionais são mencionados no artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor.

José Geraldo Brito Filomeno lembra que a sensibilização dos

"constituintes de 1887/88, foi obtida por unanimidade na oportunidade do encerramento do VII Encontro Nacional das (...) Entidades de Defesa Do Consumidor, desta feita realizado em Brasília, por razões óbvias, no calor das discussões da Assembléia Nacional Constituinte, e que acabou sendo devidamente protocolada e registrada sob n.º 2.875, em 8-5-87, trazendo sugestões de redação, inclusive aos então artigos 36 e 74 da Comissão "Afonso Arinos", com especial destaque para a contemplação dos direitos fundamentais do consumidor (ao próprio consumo, à segurança, à escolha, à informação, a ser ouvido, à indenização, à educação para o consumo e a um meio ambiental saudável)." (FILOMENO, 1991. p. 21-22).

Mas, o Código do Consumidor é só o início. É o que alerta o jurista Fábio Konder Comparato: "na verdade, a dialética produtor x consumidor é bem mais complexa e delicada do que a dialética capital x trabalho" (grifo nosso) (COMPARATO, apud SOUZA, 1996. p. 59).

Bibliografia

ALMEIDA, Carlos Ferreira. Os direitos dos consumidores. Coimbra: Almeida, 1982.

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DERANI, Cristiane. Política Nacional das Relações de Consumo e o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. n. 29.

FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 1991.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro:Forense, 1979. 6 ed.

PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade Civil do Profissional Liberal no Código de Defesa do Consumidor. Belo Horizonte:Del Rey, 1998.

SANTOS, Altamiro José dos. Direitos Do Consumidor. Revista do IAP. Curitiba, Instituto dos Advogados do Paraná, 1987. n. 10.

Souza, Miriam de Almeida. A Política legislativa do Consumidor no Direito Comparado. Belo Horizonte: Edições Ciência Jurídica, 1996.

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Proteção constitucional do consumidor

Autor: Cristian de Sales Von Rondow

Sumário: 1. As relações de consumo e o surgimento da tutela do consumidor. 2. Terminologia. 3. A proteção no direito alienígena (Direito Comparado e Internacional). 4. O por quê da tutela? 5. A evolução legislativa brasileira. 6. A tutela do consumidor a nível constitucional

As relações de consumo e o surgimento da tutela do consumidor

Antes de adentrarmos ao tema propriamente dito, necessário se faz explicitar como foi o caminho trilhado do "movimento consumerista" que teve nuanças

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próprias, embates acirrados e por fim uma difusão mundial da consciência de que o consumidor, diante do avanço tecnológico dos meios de produção passara a ser a parte fraca da relação de consumo necessitando de uma legislação que resguardasse não apenas os direitos básicos, mas também que punisse aqueles que o desrespeitassem.

Temos que a origem protecionista do consumidor se deu com as modificações nas relações de consumo, sendo esta, por seu turno difícil de precisar seu início. Não ficamos um só dia sem consumir algo, de modo que o consumo faz parte do dia-a-dia do ser humano. A afirmação de que todos nós somos consumidores é verdadeira. João Batista de Almeida(1) aduz que "independentemente da classe social e da faixa de renda, consumimos desde o nascimento e em todos os períodos de nossa existência. Por motivos variados, que vão desde a necessidade e da sobrevivência até o consumo por simples desejo, o consumo pelo consumo".

Hodiernamente as chamadas relações de consumo, outrora campo exclusivo do estudo da ciência econômica passou a fazer parte do rol da linguagem jurídica. E o fez, dado as alterações substanciais no panorama mundial, político, econômico e jurídico que permeavam época pretérita transportando-se para o cenário atual.(2) Para Maria Antonieta Zanardo Donato, estas alterações foram introduzidas pelo liberalismo emergente do século XIX, que infiltrou-se no Direito operando sua transformação.

Após a transformação do panorama econômico, nasce um capitalismo agressivo que impôs um ritmo elevado na produção, erigindo um novo modelo social, qual seja, a sociedade de consumo (mass consumption society) ou sociedade de massa. Instaura-se um novo processo econômico, causando profundas e inesperadas alterações sociais.(3)

Não há dúvidas de que as relações de consumo ao longo do tempo evoluíram drasticamente. Do primitivo escambo e das minúsculas operações mercantis tem-se hoje complexas operações de compra e venda, que envolvem milhões de reais ou de dólares.

Para trás ficou aquelas relações de consumo que estavam intimamente ligadas às pessoas que negociavam entre si, para dar lugar à "operações impessoais e indiretas, em que não se dá importância ao fato de não se ver ou conhecer o fornecedor. Os bens de consumo passaram a ser produzidos em série, para um número cada vez maior de consumidores. Os serviços se ampliaram em grande medida".(4) E essa produção em massa aliada ao consumo em massa, gerou a sociedade de consumo ou sociedade de massa.

Mas esta nova forma de vender e comprar trouxe em seu bojo o poderio econômico das macro-empresas de impor seus produtos e mercadorias àquele

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(consumidor) que ao que parecia seria "monarca do mercado"(5) ou o "rei do sistema".(6)

Dado a esta imposição, os consumidores começaram a enxergar que estavam mais para súditos do que para monarcas, bem como estavam desprotegidos e vulneráveis às práticas abusivas das empresas e para tanto necessitavam de proteção legal.

A partir dessa fundamental constatação, vários ordenamentos jurídicos do mundo todo passaram a reconhecer a figura do consumidor e, sobretudo a sua vulnerabilidade outorgando-lhes direitos específicos.

O caminho natural da evolução nas relações de consumo certamente acabaria por refletir nas relações sociais, econômicas e jurídicas do mundo. A partir deste evento, a tutela do consumidor ganhou espaço no seio jurídico, e os debates em torno da matéria iniciaram-se face às novas situações decorrentes do desenvolvimento.

Esse entendimento é corroborado por João Batista de Almeida(7) que citando Camargo Ferraz, Milaré e Nelson Nery Júnior aduzem que a tutela dos interesses difusos em geral e do consumidor em particular deriva das modificações das relações de consumo e evidenciam que: ‘o surgimento dos grandes conglomerados urbanos, das metrópoles, a explosão demográfica, a revolução industrial, o desmesurado desenvolvimento das relações econômicas, com a produção e consumo de massa, o nascimento dos cartéis, holdings, multinacionais e das atividades monopolísticas, a hipertrofia da intervenção do Estado na esfera social e econômica, o aparecimento dos meios de comunicação de massa, e, com eles, o fenômeno da propaganda maciça, entre outras coisas, por terem escapado do controle do homem, muitas vezes voltaram-se contra ele próprio, repercutindo de forma negativa sobre a qualidade de vida e atingindo inevitavelmente os interesses difusos. Todos esses fenômenos, que se precipitaram num espaço de tempo relativamente pequeno, trouxeram a lume à própria realidade dos interesses coletivos, até então existentes de forma latente despercebidos’.

Terminologia

Ponto interessante se mostra a terminologia jurídica de "consumidor", uma vez que vários autores advertem não ser tarefa fácil definir consumidor no sentido jurídico. O vocábulo consumidor, do verbo consumir, por sua vez oriundo do latim consumere, significa acabar, gastar, despender, absorver, corroer. Na linguagem dos economistas, consumo, seria o ato pelo qual se completa a última etapa do processo econômico.(8) Tal linguagem não se verificava no Direito Privado Brasileiro, passando a fazer parte quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor. Como

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mencionado eram expressões voltadas à ciência econômica, mas que passaram a fazer parte do universo jurídico e no Brasil, a conceituação legal ou o conceito standart de consumidor é dado pelo Código de Defesa do Consumidor em seu Artigo 2º aduzindo que "consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final", incluindo-se, também, por equiparação, "a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo" (art. 2º, § único).

A proteção do consumidor no direito alienígena (Comparado e Internacional)

O resguardo jurídico do consumidor não é tema exclusivo de um único país. Longe disso, é tema supranacional abrangendo a totalidade dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. É de Newton De Lucca a apresentação de quadro sintético desta proteção: No Direito Comparado (antecedentes legislativos) e no Direito Internacional.

Direito Comparado

- Discurso do presidente Kennedy ao Congresso Americano (março/62);

- Lei sobre documentos contratuais uniformes de Israel (1964);

- Lei fundamental de proteção aos consumidores no Japão (1968);

- Numerosos textos legais, a partir da década de 60, nos EUA: Consumer Credit Protection Act, Uniform Consumer Credit Code, Uniform Consumer Sales Act, Safety Act, Truth in Lending Act, Fair Credit Reporting Act e Fair Debt Collection Act;

- Lei de caráter geral ou específica no seguintes países: Inglaterra, Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Bélgica, França, México, Portugal e Espanha.

Direito Internacional

- A iniciativa de cinco países (Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica e Holanda), em 1969, no sentido de criar, no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, uma "Comissão para a política dos consumidores";

- A comissão das Nações Unidas sobre Direitos do Homem, considerou serem 4 os direitos de todo o consumidor:

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1.o direito à segurança;

2.o de ser adequadamente informado sobre os produtos e os serviços, bem como sobre as condições de venda;

3.o direito de escolher sobre bens alternativos de qualidade satisfatória a preços razoáveis;

4.o direito de ser ouvido no processo de decisão governamental.

- A aprovação de vários documentos pela Assembléia do Conselho da Europa – Diretiva 85/374, de 24.7.85, no tocante aos países membros do CEE;

- No Âmbito da ONU – Resolução 39/248, de 9.4.85, apontada como a verdadeira origem dos direitos básicos do consumidor.(9)

Conforme denota-se, os EUA foram o grande propulsor da mensagem protecionista do consumidor, de modo a influenciar grandemente diversos países com esta doutrina. Destaca-se, também, que o mesmo tema fora debatido em praticamente todos os países da Europa.

O por quê da tutela?

A justificativa que se tem para o surgimento da tutela do consumidor, é que esta nasceu fruto dos mais variados problemas sociais "surgidos da complexidade da sociedade moderna e os reclamos de indivíduos e grupos".(10)

Para João Batista de Almeida, esta tutela, "não surgiu aleatória e espontaneamente". (11) Ao contrário, surgiu "de uma reação a um quadro social, reconhecidamente concreto, em que se vislumbrou a posição de inferioridade do consumidor em face do poder econômico do fornecedor, bem como a insuficiência dos esquemas tradicionais do direito substancial e processual, que já não mais tutelavam novos interesses identificados como coletivos e difusos. (12) E termina o festejado autor: "a tutela surge e se justifica, enfim, pela busca do equilíbrio entre as partes envolvidas".(13)

Está assentado doutrinariamente que a vulnerabilidade do consumidor, que para alguns é um princípio(14) foi a pedra de mote para o surgimento da tutela do consumidor, reconhecendo-se ser este a parte fraca, vulnerável nas relações de consumo, originando a hipossuficiência deste.

Para João Batista de Almeida, Luiz Antonio Rizzatto Nunes e Cláudio Bonatto/Paulo Valério Dal Pai Moraes, alguns são os princípios orientadores desta tutela protetiva, vejamos: o da isonomia ou da vulnerabilidade; o da hipossuficiência;

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o do equilíbrio e da boa-fé objetiva; do dever de informar; o da revisão das cláusulas contrárias ou da repressão eficiente aos abusos; o da conservação do contrato; o do da equivalência; o da transparência e o da solidariedade.(15)

Cumpre esclarecer que não trataremos dos princípios acima mencionados, pois, esta não fora a intenção, mas apenas trazê-los à colação com o fito de demonstrar ser esta tutela orientada por princípio basilares do direito constitucional que se espraiaram para o direito do consumidor.

A evolução legislativa brasileira

A defesa do consumidor como tema específico é entre nós algo recente. João Batista de Almeida(16) aduz ser de 1971 a 1973 os discursos proferidos pelo então Deputado Nina Ribeiro, alertando para a gravidade do problema, densamente de natureza social, e para a necessidade de uma atuação mais enérgica no setor.

Somente em 1978 surgiu em nível estadual, o primeiro órgão de defesa do consumidor, o Procon de São Paulo, criado pela Lei nº 1.903, de 1978. Na esfera federal, só em 1985 foi criado o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, por meio do Decreto nº 91.469 que posteriormente foi extinto e substituído pela atual Secretaria Nacional de Direito Econômico (SNDE).

Todavia, embora não fosse a defesa do consumidor tratada como tema específico como é hoje, verifica-se a existência de referida defesa como tema "inespecífico"(17) em legislações esparsas que indiretamente protegia o consumidor, embora essa não fosse a intenção principal do legislador. Foi o Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei da usura) a primeira norma nesta seara que visava reprimir a usura. E assim, o evoluir não parou. A matéria ganhou status constitucional (Constituição de 1934, arts. 115 e 117), com a proteção à economia popular, que passamos a transcrever, verbis:

"Art. 115 – A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos exist~encia digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica".

"Art. 117 – A lei promoverá o fomento da economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos bancos de depósito. Igualmente providenciará sobre a nacionalização das empresas de seguros em todas as sua modalidades, devendo constituir-se em sociedade brasileira as estrangeiras que actualmente operam no paiz.

Parágrafo único: É proibida a usura, que será punida na fórma da lei."

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Posteriormente veio o Decreto-Lei nº 869, de 18 de novembro de 1938, e depois o de nº 9.840, de 11 de setembro de 1946, que cuidaram dos crimes contra a economia popular, sobrevindo, em 1951 a chamada Lei de Economia Popular que vige até hoje. Surge a Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico (nº 4.137 de 1962), que de maneira reflexa beneficiava o consumidor, além de haver criado o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, na estrutura do Ministério da Justiça, ainda existente. Em 1984 editou-se a Lei nº 7.244, autorizando os Estados a instituírem os Juizados de Pequenas Causas, atualmente Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/95). Com a Lei nº 7.492 de 16 de junho de 1986, passaram a ser punidos os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, denominado "crimes de colarinho branco".

Mas os passos mais significativos neste campo foram dados a partir de 1985, quando em 24 de julho daquele ano, foi promulgada a Lei nº 7.347 que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao consumidor, além de outros bens tutelados, dando início desta forma, à tutela jurisdicional dos interesses difusos em nosso país.

A tutela do consumidor a nível constitucional

Como já mencionado, a tutela do consumidor a nível constitucional foi posta na Constituição de 1934 (arts. 115 e 117), mas não como elemento contundente para a prática do Estado, mas apenas cuidou de forma indireta. Todavia, esta inserção não deixa de demonstrar ares de preocupação do constituinte com o tema, posto que brotava na nação a consciência da necessidade de proteção ao consumidor.

Mas sem dúvida ou medo de errar, num evoluir ascendente, a constituinte de 1988 curvou-se ante aos anseios da sociedade e ao enorme trabalho dos órgãos e entidades de defesa do consumidor, com ênfase ao VII Encontro Nacional das referidas Entidades de Defesa do Consumidor, realizado em Brasília, por razões óbvias, no calor das discussões da Assembléia Nacional Constituinte, e que acabou sendo devidamente protocolada e registrada sob o nº 2.875, em 8-5-87, trazendo sugestões de redação, inclusive aos então artigos 36 e 74 da "Comissão Afonso Arinos", com especial destaque para contemplação dos direitos fundamentais do consumidor, culminando assim, na inserção de quatro dispositivos específicos e objetivos sobre o tema. O primeiro deles e o mais importante por refletir toda a concepção do movimento está grafado no artigo 5º, inciso XXXII, no capítulo relativo aos "direitos e deveres individuais e coletivos", onde diz que dentre os deveres impostos ao Estado brasileiro, está o de promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Noutra passagem, é atribuída a competência concorrente para legislar sobre

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danos ao consumidor (art. 24, VIII). No capítulo da Ordem Econômica, a defesa do consumidor é apresentada como um dos motivos justificadores da intervenção do Estado na economia (art. 170, V). E, finalmente, ainda no bojo da Constituição de 1988, diz o artigo 48 do ato de suas disposições transitórias que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da data da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor", prazo não respeitado, mas o comando constitucional foi respeitado com a promulgação da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 o chamado Código de Defesa do Consumidor.

O mestre Newton De Lucca assevera que "não apenas o Código de Defesa do Consumidor tem base constitucional (art. 48 do ADCT) como, mais amplamente, todos os princípios da proteção acham-se constitucionalmente assegurados".(18)

O citado autor faz observação interessante ao afirmar que ‘a consagração constitucional dos direitos dos consumidores não constitui a regra em termos de direito comparado’. E em nota, aduz: "pelo que sei, apenas Portugal e Espanha possuem em suas Constituições dispositivos em favor da proteção aos consumidores. No primeiro deles, a Constituição de 2 de abril de 1976, estabeleceu, no art. 81, caber prioritariamente ao Estado ‘proteger o consumidor especialmente mediante o apoio e a criação de cooperativas e associações de consumidores’. Já o art. 51 da Constituição espanhola de 1978 declara que:

"1. Los poderes públicos garantizaran la defensa de los consumidores y usuarios protegiendo, mediante procedimientos eficaces, la seguridad, la salud y los legítimos intereses económicos de los mismos.

2. Los poderes públicos promoverán la información y la educación de los consumidores y usuarios, fomentaran sus organizaciones y oirán a éstas en las cuestiones que puedan afectar a aquéllos, en los términos que la ley establezca.

3. En el marco de lo dispuesto en los apartados anteriores, la ley regulará el comercio interior y el régimen de autorización de productos comerciales".(19)

Finalizando o estudo em apreço, encerraremos com a "questão para debate" proposta pelo Doutor Newton De Lucca, a saber: O advento da Lei nº 8.078, de 11.9.90 (Código de Defesa do Consumidor) terá representado o integral cumprimento da proteção constitucionalmente estabelecida em favor desse mesmo consumidor?(20)

Como resposta à questão o conceituado autor traz a lume a opinião do Prof. Fábio Konder Comparato (RDM nº 80, pp. 66 a 75, artigo intitulado "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de 1988"):

‘Por outro lado, a defesa do consumidor é, indubitavelmente, um tipo de princípio-programa, tendo por objeto uma ampla política pública (public policy). A expressão designa um programa de ação de interesse público. Como todo programa

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de ação, a política pública desenvolve uma atividade, i.e., uma série organizada de ações, para a consecução de uma finalidade, imposta na lei ou na Constituição. A imposição constitucional ou legal de políticas é feita, portanto, por meio das chamadas "normas-objetivo", cujo conteúdo, como já se disse, é um "Zweckprogramm" ou "Finalprogramm" (Cfr. 85 e ss). Quer isso dizer que os Poderes Públicos detêm um certo grau de liberdade para montar os meios adequados à consecução desse objetivo obrigatório. É claro que a implementação desses meios exige a edição de normas – tanto leis, quanto regulamentos de Administração Pública; mas essa atividade normativa não exaure, em absoluto, o conteúdo da policy, ou programa de ação pública. É preciso não esquecer de que esta só se realiza mediante a organização de recursos materiais e humanos, ambos previstos e dimensionados no orçamento-programa’.

Insta asseverar que o consumidor brasileiro está legislativamente equipado à altura, faltando-lhe, porém, apenas a proteção efetiva, vezes por falta de vontade política e outras por falta de recursos técnicos e materiais, mas há que se ressaltar que diante das nações mais avançadas do mundo, não ficamos aquém nesta seara.

Konrad Hesse, em sua célebre obra "A Força Normativa da Constituição" aduz que "a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)".(21)

Notas

1.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, p. 01.

2.Donato, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao Consumidor, Vol. 7, Ed. RT-1993, cit. P 15.

3.Donato, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao Consumidor, Vol. 7, Ed. RT-

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1993, cit. p. 17.

4.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, p. 02.

5.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, cit. P. 20.

6.Donato, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao Consumidor, Vol. 7, Ed. RT-1993, p. 18, Apud, Jean Calais-Auloy, Droit de la Consommation, 2ª ed., Dalloz, Paria, 1986, p. 6.

7.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, cit. p. 03. Apud, Antonio Augusto Camargo Ferraz, Édiz Milaré e Nelson Nery Júnior, A ação civil pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos, São Paulo, Saraiva, 1984, p.54-5.

8.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, cit. P. 19.

9.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, p. 25/30.

10.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, cit. p. 21.

11.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, cit. p. 22.

12.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, p. 22.

13.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, p. 22.

14.Bonatto, Cláudio. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor: principiologia, conceitos, contratos, 2ª edição, Ed. Livraria do Advogado-1999, Porto Alegre, cit. P.42.

15.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, cit. p. 45-6.

Bonatto, Cláudio. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor: principiologia, conceitos, contratos, 2ª edição, Ed. Livraria do Advogado-1999, Porto Alegre, cit. p. 30-56.

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16.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, cit. p. 10.

17.Almeida, João Batista. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Saraiva-2000, São Paulo, p. 10.

18.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, cit. p. 34.

19.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, cit. p. 34. Apud nota nº 20.

20.Lucca, Newton De. Direito do Consumidor, 2ª Edição, Ed. Edipro, São Paulo-2000, p. 34. Apud nota nº 20

21.Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Editor Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre-1991, p. 19.

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Princípios nucleares do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor e sua extensão como princípio constitucional

Autor: Henrique Alves Pinto

Sumário: Resumo. Introdução. 1. Dos Princípios Gerais de Direito. 1.1. Da constitucionalização dos princípios gerais. 1.2. Direitos do Consumidor - previsão constitucional. 1.3. A defesa do consumidor e sua extensão como princípio constitucional. 1.4. Legislação infraconstitucional: o momento da parturição do Código de proteção e defesa do consumidor. 2. A Política Nacional das Relações de Consumo e sua abrangência. 2.1. As diretrizes gerais da política e do direito do consumidor. 2.2. Consumo sustentável e o princípio da integração. 2.3. Princípios fundamentais da política nacional das relações de consumo. 2.4. Princípio da vulnerabilidade do consumidor art. 4°, I. 2.5. O princípio do dever governamental art. 4°, II, VI e VII. 2.6. O princípio da garantia da adequação art. 4°, II, "D" e V. 2.7. Princípio da boa fé nas relações de consumo art. 4°, III e VI. 2.8. Princípio da informação - art. 4°, IV e VIII. 2.9. Princípio do acesso à justiça. 3. Livre concorrência, Abuso do Poder Econômico e Consumidor. Conclusão. Bibliografia.

RESUMO

O presente trabalho retrata a enorme importância do estudo a cerca do tem, princípios gerais de direito, em que demonstra os caminhos por eles percorridos sob a ótica da Teoria Geral do Direito, desde a sua constitucionalização até a sua irradiação por entre outros ramos do Direito, e em particular, o sistema de proteção e defesa do consumidor brasileiro. A análise com maior grau de aprofundamento recai sobre a principiologia criada com a elaboração da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, contida de mandamentos nucleares tais como, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, o princípio da eqüidade e a cláusula geral de boa-fé, o princípio da proibição do abuso do direito e a função social dos contratos. Dentre estes, chama-se a atenção do leitor para um dos mais importantes, senão o mais importante dos princípios do sistema de proteção consumerista, que é o da vulnerabilidade do consumidor.

PALAVRAS-CHAVE

Consumidor; Princípio da Vulnerabilidade; Boa-fé; Teoria Geral do Direito

RESUMÉ

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Ce travail veut présenter l'' enorme importance de l'' etude concernant les principes généraux du droit dans le cadre des chemins parcouris par lui sous le sceau de la Théorie générale du Droit, depuis as constitution jusqu'' à sa penetration dans les autres branches du Droit et, en particulier, le système de protection et de défense du consommateur brésilien. L'' analyse plus approfondie retombe sur les principes créés par la loi 8.078/90, c'' est-à-dire, le code de defense du consommateur, où il y a des points fondamentaux tels que le principe de la vulnérabilité du consummateur, celui de l'' égalité et la rubrique générale de bonne foi - le principe de la prohibition de l'' abus de droit et la fonction sociale des contrats. Parmi ceux-là, on attire l'' attention du lecteur sur l'' un des plus importants ou peut-être le plus important des principes du système de protection du consomateur, celui de da vulnérabilité.

MOT-CLÉ

Consommateur; Principe de la Vulnérabilité; Bonne-foi; Théorie générale du Droit;

INTRODUÇÃO

Todas as conclusões advindas de um princípio que não é evidente, também não podem ser evidentes, mesmo que tenham seguido o processo correto da dedução. Daí que todos os raciocínios assentes sobre tais princípios, não podem dar conhecimento certo de alguma coisa.

O homem equipado de sabedoria percebe facilmente a fragilidade dessa estrutura, inclusive nos sistemas mais bem aceitos e com as maiores pretensões de conter raciocínios mais elaborados.

Princípios acolhidos com base na confiança, destituídos de um conteúdo científico, falta de coerência entre as partes, e de evidência no todo, danificam o sistema podendo até mesmo levá-lo a sua ruína.

Será essa necessidade, de se ter evidentes premissas para se erguer um concreto sistema à base de um forte princípio, uma das propostas de desenvolvimento deste trabalho, além do estudo das ingressões destes princípios no Código de Defesa do Consumidor de 1990, sendo este, no ato de sua criação, totalmente dotado de uma carga manifestamente principiológica em suas normas.

1. DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

Sobre os princípios gerais de direito importa citarmos Miguel Reale (1999, p.

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305):

deve começar pela observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou científico implica a existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem todo campo do saber.

Dessa abordagem lógica da palavra "princípio", pode-se dizer que "os princípios são ''verdades fundantes'' de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas." (REALE, 1999, p. 305)

Nesse sentido, de acordo com Miguel Reale (1999, p. 306), os princípios se dividem em três categorias:

a) PRINCÍPIOS OMNIVALENTES: quando são válidos para todas as formas de saber, como é o caso dos princípios de identidade e de razão suficiente;

b) PRINCÍPIOS PLURIVALENTES: quando aplicáveis a vários campos de conhecimento, como se dá com o princípio de causalidade, essencial às ciências naturais, mas não extensivo a todos os campos do conhecimento;

c) PRINCÍPIOS MONOVALENTES: quando só valem como âmbito de determinada ciência, como é o caso dos princípios gerais de direito.

Será essa categoria de princípios, a dos monovalentes, que a presente monografia irá demonstrar: a incidência deles no âmbito das relações consumeristas devido à alta carga principiológica contida no texto da lei de defesa do consumidor.

A expressão princípios gerais de direito é por demais ampla e um autor de grande autoridade como Rubens Limongi França (apud RODRIGUES, 2002), entende que é aos princípios de direito natural que o legislador manda recorrer na lacuna da normatividade. Todavia, há de se atribuir um sentido diferente a eles, uma vez que o legislador quer referir-se àquelas normas que o orientam na elaboração da sistemática jurídica, ou seja, àqueles princípios que "baseados na observação sociológica e tendo como objetivo regular os interesses conflitantes, impõem-se, inexoravelmente, como uma necessidade na vida do homem em sociedade." (RODRIGUES, 2002, p. 25)

A esse respeito reportemo-nos a Washington de Barros Monteiro (1997, p. 42), "Nada existe de mais tormentoso para o intérprete, que a aplicação dos princípios gerais de direito, não especificados pelo legislador."

Com base nessa posição, ressaltemos, aqui, a resolução para o eventual problema da aplicação dos aludidos princípios gerais, encontrada pelo direito suíço

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que dispõe no art. 1° do Código Civil deste país que "no silêncio da lei e não havendo um costume a regular uma relação jurídica, deve o juiz decidir ''segundo as regras que ele estabeleceria se tivesse de agir como legislador''." (RODRIGUES, 2002, p. 25)

Assim, ao se examinar o direito positivo pátrio, encontra-se, no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil a orientação a seguir, por força do qual, quando a norma jurídica for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Nas precisas palavras de Miguel Reale (1999, p. 306), isto significa que:

O legislador, por conseguinte, é o primeiro a reconhecer que o sistema das leis não é suscetível de cobrir todo o campo da experiência humana, restando sempre grande número de situações imprevistas, algo que era impossível ser vislumbrado sequer pelo legislador no momento da futura lei. Para essas lacunas há a possibilidade do recurso aos princípios gerais de direito, mas é necessário advertir que a estes não cabe apenas essa tarefa de preencher ou suprir as lacunas da legislação.

Note-se, porém, que para vários juristas essas lacunas não podem e nem verdadeiramente poderão existir, uma vez que o ordenamento jurídico oferece ferramentas para regular todos os casos possíveis, sejam eles previstos ou imprevistos, presentes ou futuros. Mas de maneira alguma se colocará em dúvida que as lacunas de fato existem no direito positivo, não merecendo acolhimento esse entendimento, posto que na própria há elementos para suprir essas lacunas; o certo é que tais elementos constituem uma breve resolução do problema, mas não a solução definitiva e concreta dele.

Diante desta exposição, temos a célebre noção atribuída por Miguel Reale (1999, p. 306), acerca do entendimento deste autor sobre os princípios gerais de direito em que ele nos revela o seguinte: "princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas".

Ora, é evidente, portanto, que tais princípios gerais são imprescindíveis ao direito. Concluamos este tópico, citando as palavras do constitucionalista Paulo Bonavides (2002, p. 232):

Todo discurso normativo tem que colocar, portanto em seu raio de abrangência os princípios aos quais as regras se vinculam. Os princípios espargem claridade sobre o entendimento das questões jurídicas, por mais complicadas que estas sejam no interior de um sistema de normas.

Daí infere-se que todo sistema se quiser adquirir a qualidade de um sistema que se completa e se relaciona por toda a extensão de seu corpo normativo, deve estar

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armado de princípios que emanam de um núcleo central, formados de postulados que seguem os preceitos do princípio da identidade que é comum a todos os campos do saber. Além disso, percebe-se também que dado esse rigor necessário do corpo principiológico central, todo e qualquer princípio que daí se irradiar por outros sistemas periféricos estará sendo amparado pela base.

Assim se fixarmos o pressuposto de que o direito positivo é uma camada lingüística de termos prescritivos dirigidos ao comportamento social das relações de intersubjetividade, nada mais justo que apresentarmos a proposta de interpretação do direito como um sistema de linguagem, nos seus três planos fundamentais: a sintaxe, a semântica e a pragmática.

Por plano sintático entende-se aquele formado pelo relacionamento que os signos lingüísticos mantêm entre si, sem qualquer menção ao mundo exterior do sistema. Por plano semântico, aquele que diz respeito ao modo de referência à realidade, ou seja, a qualificação dos fatos para alterar normativamente a conduta. Por plano pragmático, aquele "tecido pelas formas segundo as quais os utentes da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na comunidade social para motivar comportamento." (BARROS CARVALHO, 2002, p. 97)

E para se chegar ao conteúdo intelectual dos textos do Direito através da exegese, deverá o intérprete adotar o critério sistemático de interpretação, porque envolve os três planos fundamentais, ao realizar reiteradas incursões nos níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica. Neste sentido será a interpretação um ato de vontade e um ato de conhecimento e como ato de conhecimento não caberá à "Ciência do Direito dizer qual é o sentido mais justo ou mais correto, mas, simplesmente, apontar as interpretações possíveis." (BARROS CARVALHO, 2002, p. 99)

1.1 Da Constitucionalização dos Princípios Gerais

Em decorrência da alta instabilidade política percebida ao longo dos tempos na história do Brasil, sempre foi muito comum, pelo menos até pouco tempo atrás, a interpretação e aplicação dos mais variados ramos do direito tomando-se por base "a lei ordinária principal que o regulamentava." (NERY JÚNIOR, 2002, p. 19)

Isso acontece devido à falta de um forte regime democrático, de estabilidade política que possam contribuir com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Em vista disso percebe-se "porque não se vinha dando grande importância ao Direito Constitucional, já que nossas constituições não eram respeitadas, tampouco aplicadas efetivamente"(NERY JÚNIOR, 2002, p. 19).

Daí a alegação de que a ofensa à Constituição, nos países com estabilidade política e que se encontram num verdadeiro Estado Democrático de Direito, possui

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conseqüências catastróficas. No Brasil, quando este problema é declarado, ou seja, quando há ofensa à Constituição, "a alegação não é levada a sério na medida e na extensão que deveria", apresentando-se "como mais uma defesa que o interessado opõe à contraparte."(NERY JÚNIOR, 2002, p. 19)

Entretanto, essa situação vem apresentando uma grande mudança, em virtude do aumento significativo de trabalhos e pesquisas jurídicas que abordam o tema da interpretação e aplicação da Constituição Federal, ao declarar que o Direito Constitucional é a base fundamental do direito para o país.

De acordo com Nelson Nery Jr. (2002, p. 20): "O intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema."

Na verdade, o que podemos perceber dos ensinamentos deste jurista é que será na Constituição de determinado país que se encontrarão os mais altos valores do Direito Positivo, posto serem preservados pelos cidadãos orientados por uma carga principiológica que reside na base deste sistema. É da Constituição que se irradiam os princípios que irão se dispersar pelas mais variadas leis infraconstitucionais. Partindo desse pressuposto, Simonius tem razão quando afirma que "o Direito vigente está impregnado de princípios até suas últimas ramificações." (apud, REALE, 1999, p. 306)

Deste ponto de partida, o da função interpretativa e da aplicabilidade da Constituição, através dos princípios contidos em seu corpo, é que podemos chegar, segundo Paulo Bonavides (2002, p. 246), "numa escala de densidade normativa, ao grau mais alto a que eles já subiram na própria esfera do Direito Positivo: o grau constitucional".

Revela também, este constitucionalista, que "a constitucionalização dos princípios compreende dessas fases distintas; a fase programática e a fase não programática". (2002, p. 246)

Por fase programática deve-se entender que é uma fase de concreção, dotada de um alto teor de abstração e de perfeição, que demandam de operações integrativas em que se percebe a ausência de juridicidade.

Já a fase não programática é uma fase dotada de objetividade, por ser concreta e completa, suscetível de imediata aplicação, e ao contrário do que se pode perceber na fase programática, é dotada de incontrastável juridicidade.

Ressalta ainda Paulo Bonavides (2002, p. 246) o seguinte:

Na primeira, a normatividade constitucional dos princípios é mínima; na

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segunda máxima. Ali, pairam ainda numa região abstrata e têm aplicabilidade diferida; aqui ocupam um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata.

Apenas nesta última fase, a fase não programática, que se fará exeqüível "colocar no mesmo plano discursivo, em termos de identidade, os princípios gerais e os princípios constitucionais." (BONAVIDES, 2002, p. 246)

Portanto, o que se pode perceber deste tópico é que, salvo o empenho da Filosofia e da Teoria Geral do Direito ao construírem a doutrina da normatividade dos princípios em que se busca uma neutralidade na qual se possa superar antinomia Direito Natural/Direito Positivo, tema que não é o propósito desse trabalho. Ao se estudar a teoria dos princípios gerais de direito proposto por Del Vecchio nas lições de Vicente Ráo (1999, p. 275), chega-se à seguinte conclusão:

O perigo do que se chama aequitas cerebrina, isto é, o arbítrio do juiz em sentido contrário ao da lei, desapareceu com o nascimento do moderno Estado de direito. E se, em nossos dias, certa doutrina pretende restabelecer este arbítrio sob o pretexto especioso da liberdade do juiz ou da jurisprudência, doutrina é esta que, retrógada em sua substância e contrária à liberdade apesar de seu nome, deve ser repelida por se opor ao mencionado princípio e às próprias bases racionais do sistema atualmente em vigor.

Assim, nada mais imprescindível na história contemporânea do Direito Constitucional do que a solidificação dos princípios contidos em seus textos de leis, o respeito ao Direito Constitucional como lei basilar de todo o ordenamento jurídico dos Estados para a estabilização política e fortalecimento do Estado Democrático de Direito e, por fim, a conversão dos princípios gerais em princípios constitucionais, entre outras categorias de princípios, já que aqueles possuem maior ou menor incidência nos mais variados ramos do direito, para possibilitar uma maior objetividade e aplicabilidade no escopo de suprir as diversas lacunas encontradas entre as leis.

1.2 Direitos do Consumidor - Previsão Constitucional

A Constituição Federal Brasileira de 1988 considerou como fundamental o direito do consumidor. Tanto é que, no art. 5°, inc. XXXII, estabeleceu em "norma de notório conteúdo programático" (CARVALHO FILHO, 2001, p. 19): o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Como já comentamos a respeito da fase programática das normas, não é necessário entrarmos em maiores detalhes aqui. Percebe-se, pois, que não foi sem razão que o Constituinte inseriu o direito do consumidor no rol dos direitos fundamentais.

Fala-se em conteúdo programático neste inciso porque antes da Lei 8.078/90

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de 11/09/1990, que criou o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, o art. 5°, inc. XXXII da Constituição Federal, preestabelecia em si mesmo apenas um programa de ação, com respeito ao próprio objeto por se tratar de uma norma constitucional programática até então.

Sobre as normas constitucionais programáticas postula Crisafulli (1976, p. 75):

As normas constitucionais programáticas, como se viu, não regulam diretamente as matérias a que se referem, mas regulam propriamente a atividade estatal concernente a ditas matérias: têm por objeto imediato os comportamentos estatais e só imediatamente e por assim dizer, em segundo grau, aquelas determinadas matérias.

Acrescenta ainda Paulo Bonavides (2002, p. 222), "ostentam por igual uma dupla eficácia na medida em que servem de regra vinculativa de uma legislação futura sobre o mesmo objeto."

Além de caracterizada como direito fundamental, a defesa do consumidor "se qualifica também como um dos princípios da ordem econômica e financeira (art. 170, V, Constituição Federal)."

Por se tratar de uma sociedade capitalista, como é a brasileira, fundada na livre iniciativa na qual se verificam inúmeras formas de abuso de poder econômico, nada mais oportuno e justo do que se considerar o direito do consumidor como um direito fundamental.

No que diz respeito à competência normativa sobre a matéria, é da inteligência do art. 24, inc. VIII da Constituição Federal, serem competentes a União, os Estados e o Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre responsabilidade por dano ao consumidor.

O produto legislativo da União deverá ater-se à edição de normas gerais, sendo que os Estados e Distrito Federal possuirão competência suplementar (art. 24, § 1° e 2° da Constituição Federal).

Protege-se ainda, através da normatividade constitucional, o direito do consumidor (ALVIM, A.; ALVIM, T.; ALVIM, E.; SOUZA, J., 1995, p. 14):

No Título IV da Constituição Federal, destinado à tributação e ao orçamento, em sua Seção II, que se refere às limitações ao poder de tributar, o § 5° do art. 150 dispõe que ''a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços'', determinando que se ofereça o devido esclarecimento acerca dos tributos incidentes sobre bens objeto de relações de consumo, em clara preocupação com o grau de informação que deve

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receber o consumidor, o que, aliás, é a tônica deste Código de Consumidor.

Como será discutido mais adiante o princípio da transparência, vale adiantar brevemente, como se percebe pelo fragmento supra citado, que a necessidade da devida informação acerca do produto que o consumidor venha adquirir, é mais do que uma mera necessidade, mas sim um dever que se impõe a todos os fornecedores que oferecem produtos ou serviços no mercado consumerista. Além disso nota-se também que o dever de bem informar os consumidores, nada mais é do que uma irradiação de um princípio basilar residente no corpo principiológico nuclear da Lei 8.078/90 (reitere-se o Código de Defesa do Consumidor), que é o princípio da boa-fé, como veremos mais detalhadamente no tópico específico destinado à elucidação de sua aplicabilidade.

1.3 A Defesa do Consumidor e sua Extensão como Princípio Constitucional

Após todo este levantamento da trajetória dos princípios gerais de direito, da sua constitucionalização e irradiação por entre outros ramos do Direito, chega-se ao assunto fundamental do presente trabalho, que é o da carga principiológica contida na Lei 8.078/90. Todavia, antes de abordarmos os princípios específicos desta lei, apontaremos ainda a extensão da defesa do consumidor como princípio constitucional.

Dada esta destacada posição de defesa do consumidor, a de estar no ápice do nosso ordenamento jurídico, nos declara a importância do tema na órbita da economia brasileira, que possui grande parte de suas atividades baseadas nas relações de consumo, ou seja, entre fornecedor e consumidor que a partir do ano de 1990 devem estar, necessariamente, subordinadas aos ditames do Código de Proteção e Defesa do Consumidor no que chama a atenção pela necessidade de sua correta interpretação nos quadros normativos.

Daí percebe-se que os princípios que envolvem a defesa do consumidor são princípios jurídicos basilares, a partir do momento em que buscam introduzir uma nova forma de pensar nos postulados da consciência jurídica, e de acordo com os dizeres de José Joaquim Gomes Canotilho (1992, p. 177-178) será:

princípio político constitucionalmente conformador, na medida em que indica opção valorativa do constituinte; é princípio constitucional impositivo, pois que impõe aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de uma tarefa e um fim a ser atingido e; princípio garantia, visto que garante, ainda que indiretamente, uma série de direitos ao cidadão.

Diante disso fica declarada a magnitude de sua garantia constitucional que possui no mínimo, disposições imediatas e emergentes, difundido de seu estado de

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princípio geral da atividade econômica do país, erigido por nossa Lei Maior, a virtude de corromper de inconstitucionalidade qualquer norma que possa ser um obstáculo à defesa desta figura das relações intersubjetivas de consumo, que é o consumidor.

Assim, ao se tratar de interpretação constitucional dever-se-á identificar quais foram as normas que receberam do legislador constitucional a categoria de princípios orquestradores do sistema de valoração. É preciso, pois, identificar tais princípios, posto que são mais do que normas dado o seu caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito, ou à sua importância estrutural dentro do sistema jurídico, uma vez que irão servir "como vetores para soluções interpretativas." (TEMER, 1990, p. 37)

Da posição do constitucionalista acima citado, nota-se que ele atribui ser papel do legislador apontar quais normas este erigiu à categoria de princípios, na busca da solução das antinomias que são encontradas nos conflitos entre as normas do sistema. Percebe-se portanto que, mais uma vez, será do núcleo sistêmico de onde emanará toda orientação no intuito de se atingir a devida interpretação normativa.

Por fim, lembra ainda Fábio Konder Comparato (1990, p. 69):

De um lado, não pode, o legislador, ou a administração pública, editar norma conflitante com o objetivo do programa constitucional. De outro, os Poderes Públicos têm o dever de desenvolver esse programa, por meio de uma ação coordenada.

Após todas essas exposições, mais do que declarado, está comprovado que a defesa do consumidor é uma garantia constitucional que engloba uma vasta gama de direitos que estão envolvidos em toda a Carta Constitucional ou em outros regimes e princípios colhidos por ela. "Direitos que envolvem a obrigação positiva de atuar, legislar e decidir, na política, na lei e na justiça, pela defesa do consumidor" (ZAPATER, 2001, p. 187).

1.4 Legislação Infraconstitucional - O Momento da Parturição do Código de Proteção e Defesa do Consumidor Brasileiro

Apesar do amplo otimismo do Constituinte, ao revelar certa pressa para que fosse promulgada a lei de proteção do consumidor, de acordo com a determinação do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), quando consignou que o Congresso Nacional deveria elaborar, no prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, após quase dois anos da promulgação da Carta Magna é que foi instituída a Lei 8.078/90 de 11/09/1990, que criou o código brasileiro das relações consumeristas.

Este impôs aos órgãos estatais, sobretudo ao legislador, "a realização de uma tarefa e um fim a ser atingido" (ZAPATER, 2001, p. 185), ao buscar uma legislação mais eficiente e específica para tratar de tais situações jurídicas, enquanto o que se

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tinha antes era a adaptação interpretativa pelos juristas do Código Civil de 1916, nos mais variados casos em que eram envolvidos os sujeitos do consumo, no que quase sempre acabava numa decisão menos favorável aos consumidores.

2. A POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO E SUA ABRANGÊNCIA

Estabelece o caput do art. 4° do Código de Defesa do Consumidor, a definição dos objetivos que norteiam a política das relações de consumo, buscando um alcance substancialmente mais longo, ao estabelecer parâmetros que nortearão todo e qualquer ato do governo, seja na esfera do legislativo, do executivo ou do judiciário, a partir do instante em que se trata das "relações consumeristas" que é uma expressão declaradamente mais ampla do que a "defesa do consumidor".

Daí percebe-se o equívoco em se considerar que os incisos do art. 4°, correspondem apenas aos princípios da defesa do consumidor, uma vez que, traçam também os objetivos e princípios de toda a Política Nacional de Relações de Consumo.

Apesar de se confundirem os objetivos expressos da Política Nacional de Relações de Consumo com a defesa do consumidor, deve-se perceber que uma e outra não são a mesma figura, sendo esta uma importante faceta daquela, todavia com objetivo mais restrito.

Com o decorrer dos anos, a política e o direito do consumidor desenvolveram-se de forma cada vez mais autônoma, coerente e separada. Numa fase mais recente, uma nova abordagem é postulada "em que se exige a integração das considerações da política de consumo a outras políticas econômicas e sociais" (BOURGOIGNIE, 2002, p. 34).

À política de defesa do consumidor é dado um objetivo mais amplo de aplicação, e seus dados se tornam cada mais significativos à medida que ele vão se estendendo a outros ramos políticos.

2.1As Diretrizes Gerais da Política e do Direito do Consumidor

Antes de dissertarmos sobre a principiologia inserta no art. 4° do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, apontaremos abaixo os aspectos mais comuns de interesse da política tradicional de proteção ao consumidor:

a)Educação: uma importantíssima ferramenta de auxílio ao consumidor, busca torná-lo mais consciente de suas responsabilidades, direitos e obrigações, ajudando-o a exercer um papel atuante no mercado, protegendo-o dos enganos e

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fraudes, ao possibilitar o acesso efetivo à lei e aos mecanismos de reparação.

b)Informação e conselhos: detalhar cada vez mais as informações e formas de uso sobre produtos e serviços, riscos e acidentes relacionados a eles, cláusulas contratuais, preços e tarifas, leis e regulamentos entre outros; rotulagem e empacotamento dos produtos, avisos e instruções de uso, revelação das cláusulas contratuais, concessão de períodos de controle, proibição de propaganda enganosa, estabelecimento de uma rede de Centros de Conselhos para Consumidores, promovendo informações de consumo por meio de fontes independentes, desenvolvimento de campanhas públicas de conscientização etc.

c)Proteção dos interesses econômicos dos consumidores: prevenção de comércio, propaganda e métodos de venda desleais, impedimento de cláusulas abusivas em contratos de consumo, regulamentação da especulação de preços, do crédito, dos empréstimos e de outras transações financeiras do consumidor, obrigações de garantia pós-venda, instituição de padrões de qualidade, entre outros.

d)Segurança: proteção aos consumidores de produtos ou serviços, que são perigosos ou sem segurança, através de medidas preventivas, tais como exigências de informações, planos de garantia de qualidade, obrigações de controle sobre processos de produção e distribuição, retirada de produtos quando nocivos aos consumidores e a terceiros, a realização de recalls, intercâmbio de sistemas de informações e supervisão das reservas de mercado, assim como corretivas que dão aos consumidores, acesso a planos de compensação adequados e facilmente acessíveis, particularmente por meio de específicas regras de responsabilidade. Imprescindível que se destaque, que o objetivo de segurança sobre produto e serviços tais como, comida, drogas, cosméticos, brinquedos, automóveis, saúde, transporte, lazer, atividades esportivas etc.

e)Compensação ao consumidor: tem como objetivo armar o consumidor de meios rápidos e acessíveis de assegurar seus direitos, definindo reparações civis, criminais e administrativas mais adequadas, ao criar para os grupos de consumidores, personalidade jurídica ou o direito de ingressarem ações coletivas em cortes e tribunais quando se sentirem lesados, além de desenvolverem sistemas alternativos para solução de conflitos que sejam eficientes e independentes.

f)Representação dos interesses coletivos dos consumidores: para promover e dar suporte aos grupos de consumidores, aumentando a participação de representantes de consumidores no processo de tomada de decisões.

g)Satisfação de necessidades básicas: como possibilitar a todos, o efetivo acesso a mercadorias e serviços básicos, dentre eles, água, energia, telecomunicações, educação, saúde etc.

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2.2.Consumo Sustentável e o Princípio da Integração

Conforme a resolução da ONU, através do documento "United Nations Guidelines for Consumer Protection", ampliado no ano de 1999, o chamado "consumo sustentável", foi eleito como um dos direitos do consumidor universalmente considerado e será um objetivo comum a todos os governos a sua promoção, como bem observa José Geraldo Brito Filomeno (2003, p. 67), "enquanto as necessidades do homem são, em princípio, ilimitadas, sobretudo se se tiver em conta a ciência de marketing e a publicidade, são limitados os recursos naturais disponíveis".

Assim percebe-se que o consumo sustentável, nada mais é do que um grande cuidado que os homens devem ter no instante que exploram o meio ambiente através de suas atividades econômicas, no intuito de se buscar uma redução dos impactos causados por essas atividades, de maneira que os recursos naturais não se esgotem de forma irreversível.

É desse problema que surge "a necessidade de incutir no homem, desde a infância, a preocupação em proceder ao consumo responsável e, sobretudo sustentável, de produtos e serviços" (FILOMENO, 2003, p. 68).

Todavia, como se pode perceber, esta tarefa não é nada fácil, e para que a criação desta consciência de preservação ao meio ambiente possa vir a colher bons resultados, aponta a resolução acima citada, no seu art. 42, in verbis: "Sustainable consumption includes meeting the needs of present and future generation for goods and services in ways that are economically, socially, and environmentally sustainable." (O consumo sustentável deverá satisfazer às necessidades das presentes e futuras gerações por meio de benefícios e empreendimentos que contribuam pela higidez do meio ambiente, tanto no aspecto econômico, quanto no aspecto social. Tradução nossa.), devem ser observadas.

A responsabilidade pelo consumo sustentável deve ser compartilhada por todos os membros e organizações da sociedade, por consumidores informados, por governantes e empresários, por organizações do trabalho, além das associações de proteção aos consumidores e ao meio ambiente que irão desempenhar importante papel na divulgação da mais adequada informação, uma vez que da escolha dos consumidores por determinados produtos é que recairão os efeitos sobre os produtores. Se o consumidor, por exemplo, consome determinada marca de papel de uma empresa que não pratica o reflorestamento, ele estará incentivando cada vez mais a atividade comercial dessa empresa que depreda o meio ambiente no que implicará um forte desequilíbrio, entre os recursos naturais disponíveis e a atividade industrial, o que poderá trazer drásticas conseqüências.

Os preceitos desse artigo, referem-se a uma variedade de políticas, tais como:

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telecomunicações, sociedade de informação, saúde, nutrição, proteção ambiental e agrícolas, que devem ser desenvolvidas numa estratégia rumo à integração dos dados de consumo. É desta atividade que trabalha com a inter-relação que temos o princípio da integração, o qual se encontra consubstanciado no texto do art. 43, in verbis: "Governments should promote the development and implementation of policies for sustainable consumption and the integration of those policies with other public policies." (Os governantes devem promover a implementação e o desenvolvimento de políticas que tenham como objetivo o consumo sustentável além da integração dessas políticas a outras políticas públicas. Tradução nossa.), da diretriz geral de proteção ao consumidor editada pela ONU.

Diante disso, infere-se que "a qualidade de vida ou direito de viver num ambiente saudável tornou-se um dos direitos fundamentais dos consumidores" (BOURGOIGNIE, 2002, p. 36). A responsabilidade pela proteção ao meio ambiente, não recairá apenas aos produtores, aos fornecedores, entre outros entes da cadeia empresarial, mas também aos consumidores, que devem procurar consumir produtos menos nocivos ao meio ambiente, o que não é nada fácil já que implica numa mudança nos seus hábitos, daí observa-se que o processo de integração é extremamente complexo.

Portanto conclui-se que o consumo sustentável, como bem observa Thierry Bourgoignie (2002, p. 37), "colocará sua marca na política e no direito do consumidor".

A livre escolha dos consumidores, deverá ser limitada em prol do meio ambiente e que os interesses da coletividade e benefícios individuais a curto prazo, ao fazer com que todos tomem consciência da dimensão ecológica do processo consumerista em geral e de seu comportamento individual particular.

2.3.Princípios Fundamentais da Política Nacional de Relações de Consumo

Para melhor se compreender o corpo principiológico do art. 4° do Código de Defesa do Consumidor de acordo com a nova redação dada ao artigo pela Lei n.° 9.008, de 21 de março de 1995, in verbis:

Art. 4.° A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

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II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade;

I - harmonização dos interesses dos particulares dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

II - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

III- incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

IV - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

V - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VI- estudo constante das modificações do mercado de consumo.

De acordo com Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e Jaime Marins (1995, p. 44), pode-se dizer serem seis os princípios fundamentais da Política Nacional das Relações de Consumo, citados abaixo:

I-Princípio da Vulnerabilidade

II- Princípio do Dever governamental

III- Princípio da Garantia de Adequação

IV- Princípio da Boa-fé nas relações de consumo

V- Princípio da Informação

VI- Princípio do Acesso à Justiça

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Todos estes princípios supra citados, serão devidamente analisados nos subtópicos que se seguem, dado o propósito desse trabalho.

2.4 Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor - Art. 4°, I.

Este princípio, atua como elemento informador da Política Nacional das Relações de Consumo, e é tido como o núcleo base de onde se irradia todos os outros princípios informadores do sistema consubstanciado no Código de Defesa do Consumidor.

Isto acontece, a partir do momento em que se examina a cadeia consumerista, ao perceber que o consumidor é o elemento mais fraco dela, por não dispor do controle sobre a produção dos produtos, consequentemente acaba se submetendo ao poder dos detentores destes, no que surge à necessidade da criação de uma política jurídica que busque a minimização dessa disparidade na dinâmica das relações de consumo.

A vulnerabilidade, qualidade ontológica (essencial, nuclear, intrínseca) e indissociável do consumidor numa relação de consumo, de acordo com o conceito legal preceituado pelo art. 2° da Lei 8.078/90, independentemente da sua condição social, cultural ou econômica, seja ele consumidor-pessoa jurídica ou consumidor-pessoa física.

Deve-se notar também que, a vulnerabilidade do consumidor não se confunde com a hipossuficiência, que é uma característica restrita a determinados consumidores, que além de presumivelmente vulneráveis são também, em sua situação individual carentes de condições culturais ou materiais, como por exemplo, os analfabetos quando se encontram diante de uma situação em que podem assinar um contrato de plano de saúde sem os devidos esclarecimentos a respeito de suas cláusulas contratuais contidas no corpo contratual, ou então, crianças que são expostas diariamente aos diversos anúncios de chocolates, entre outros alimentos supérfluos em que o exagero no consumo destes podem levá-las a ter vários problemas no seu desenvolvimento natural, por estarem desprovidas de outros indispensáveis alimentos em sua dieta.

Com precisão, Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin (1991, p. 224-225) demonstra a diferença entre a vulnerabilidade e hipossuficiência:

A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educadores ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a alguns - até mesmo a uma coletividade - mas nunca a todos os consumidores.

Diante disso temos que, numa hipotética situação, determinado médico neurocirurgião de grandes títulos durante a carreira, ao levar um automóvel seu numa

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oficina mecânica para a realização de reparos no veículo, pode ser considerado vulnerável frente ao fornecedor (neste caso, a oficina mecânica prestadora do serviço), por não conhecer nada a respeito de mecânica de motores automotivos.

Além destas constatações, observa-se também que o princípio da vulnerabilidade de acordo com Nelson Nery Júnior (1991, p. 320) que "permeia as relações de consumo está em verdade a dar realce específico, ao princípio constitucional da isonomia, dispensando-se tratamento desigual aos desiguais". Todavia, esta expressão "tratamento desigual aos desiguais" de Aristóteles, é insuficiente para desate do problema. Sem fazer contestação ao teor do que nela se contém e reconhecendo, sua validade como ponto de partida, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo (2002, p. 11): "deve-se negar-lhe o caráter de termo de chegada, pois entre um e outro extremo serpeia um fosso de incertezas cavado sobre a intuitiva pergunta que aflora ao espírito: Quem são os iguais e quem são os desiguais?"

E de acordo com Hans Kelsen (1998, p. 207) têm-se as seguintes condições:

A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direito sem fazer distinção entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres.

Sob esta ótica, se percebe que é mister da Lei 8.078/90 colocar em equilíbrio jurídico o consumidor e fornecedor, já que este é a parte detentora dos mecanismos que induzem aquele, ao consumo tanto básico quanto exagerado, ao colocá-lo sob um intenso bombardeamento de anúncios, além de deter o processo tecnológico da fabricação de seus produtos.

Daí o porquê se parte do princípio da fraqueza manifesta do consumidor no mercado, não apenas sobre o aspecto técnico, mas também sob o aspecto econômico, para armá-lo de certos instrumentos para que ele possa melhor defender-se.

2.5 O Princípio do Dever Governamental - Art. 4°, II, VI e VII

Este princípio, elencado nos incisos II, VI e VII do art. 4° do Código de Defesa do Consumidor, dever ser compreendido sob dois principais aspectos. O primeiro é o da responsabilidade atribuída ao Estado, enquanto sujeito máximo organizador da sociedade, ao prover o consumidor, seja ele pessoa jurídica ou pessoa física, dos mecanismos suficientes que proporcionam a sua efetiva proteção, seja através da iniciativa direta do Estado (art. 4°, II, "b") ou até mesmo de fornecedores, dos mais diversos setores e interesses nas relações consumeristas.

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O segundo aspecto é o enfoque sob o "princípio do dever governamental", em que é dever do próprio Estado de promover continuadamente a "racionalização e melhoria dos serviços públicos" (art. 4°, VIII), ao surgir aqui a figura do Estado-fornecedor além de suas eventuais responsabilidades.

2.6 Princípio da Garantia da Adequação - Art. 4°, II, "D" e V

É o princípio que emana a necessidade da adequação dos produtos e serviços ao binômio, qualidade/segurança, atendendo completamente aos objetivos da Polícia Nacional das Relações de Consumo, elencado no caput do art. 4°, consistente no atendimento dos eventuais problemas dos consumidores, no que diz respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria da sua qualidade de vida.

A concretização desse princípio, diz respeito ao binômio, qualidade/segurança, que é o fim perseguido pelo sistema de proteção e defesa do consumidor, fica a cargo do fornecedor que será oficialmente auxiliado pelo Estado, a quem está incumbido o dever de fiscalização, que é uma outra atribuição do "princípio de dever governamental" o qual já se expôs.

Preocupadas com tais aspectos, várias empresas, têm criado os conhecidos "departamentos de atendimento ao consumidor", que demonstram uma dupla atribuição: - ao mesmo tempo que recebem reclamações de determinados produtos ou serviços, também recebem valiosas sugestões de consumidores, instruindo-os em como melhor servi-los, o que contribui de maneira inteligente para o desenvolvimento das próprias atividades empresariais.

Atualmente, fala-se muito na chamada "qualidade total", demarcando o Código que as empresas deverão ser incentivadas para a criação de mecanismos eficazes de controle de qualidade de produtos e serviços, uma vez que o Código do Consumidor é adepto do princípio da "responsabilidade objetiva", aliada à inversão do ônus da prova (como este assunto não é a proposta de discussão do presente trabalho, não irá se discuti-lo aqui), indica que a prevenção de danos é a política que deve ser prioritariamente buscada pelas empresas.

Por fim, vale ressaltar também que o princípio da garantia de adequação contido no art. 4°, II, "d" e V do Código do Consumidor encontra-se amparado pela inteligência dos art. 8° parágrafo único e art.10° §1°, §2° e § 3° do mesmo diploma, in verbis, respectivamente:

Art. 8° Os produtos e serviços no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar informações necessárias e adequadas a seu respeito.

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Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.

Art. 10° O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

§ 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores mediante anúncios publicitários.

§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço.

§ 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.

2.7 Princípio da Boa-Fé nas Relações de Consumo - Art. 4°, III e VI

Este princípio nas relações de consumo, que traz uma carga significativa de regra geral de comportamento, está expressamente referido no inciso III, do art. 4°, e, de certa maneira, encontra-se difundido em grande parte dos dispositivos do Código do Consumidor, desde a instituição de seus direitos básicos (art. 6°), percorrendo pelo capitulo referente à reparação por danos pelo fato do produto, e, orientando basicamente os capítulos referentes às práticas comerciais, a publicidade, e a proteção contratual, merecedora de especial destaque de acordo com o inciso IV do art. 51 do Código do Consumidor, que considera nulas de pleno direito cláusulas contratuais que "sejam incompatíveis com a boa-fé e eqüidade".

A harmonia das relações de consumo e a transparência, indicadas no caput do art. 4° como um dos escopos da Política Nacional das Relações de Consumo, serão o resultado da conduta geral da boa-fé, que deve ser buscada pelos dois pólos componentes das relações de consumo: consumidor e fornecedor, mesmo que ocupem posições antagônicas frente ao conflito de seus interesses.

Nesse sentido, os componentes da relação consumerista devem buscar o objetivo comum de melhor e com mais eficiência, fazer circular produtos e serviços com objetivo da geração de riquezas e benefícios a todos os integrantes do mercado de consumo.

Será a boa-fé, nos dizeres de Silvio Rodrigues (2002, p. 60): "um conceito

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ético, moldado nas idéias de proceder com correção, com dignidade, pautando sua atitude pelos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar."

Como se pode perceber, o primado básico da boa-fé será "o princípio máximo orientador do CDC" (MARQUES, 2002, p. 671), e é através deste princípio nuclear que não apenas os pólos atuantes da relação de consumo, devem se localizar no momento do ato de consumo, mas até a própria legislação consumerista sofre reflexos dele, como por exemplo, "o princípio da transparência (art. 4°, caput) que não deixa de ser um reflexo da boa-fé exigida aos agentes contratuais." (MARQUES, 2002, p. 671)

2.8 Princípio da Informação - Art. 4°, IV E VIII

Antes de se iniciar este tópico, necessário é citar a importância da informação de acordo com o jurista Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (2002, p. 255), em que este revela um importante pensamento a respeito da informação: "Não há sociedade sem comunicação de informação. A história do homem é a história da luta entre idéias, é o caminhar dos pensamentos. O pensar e o transmitir o pensamento são tão vitais para o homem como a liberdade física".

Como se vive num mundo globalizado em que a tecnologia a cada dia que passa caminha a passos cada vez mais largos, percebe-se que a informação circula com maior velocidade por estar difundida nos mais variados meios de comunicação que a massificam com muito mais intensidade, fazendo com que a informação passe "a ter uma relevância jurídica antes não reconhecida" (DE CARVALHO, 2002, p. 256).

Será deste interesse jurídico, o de saber melhor no ato da decisão, "para que o homem não seja levado a assumir comportamentos que não correspondam a uma perfeita compreensão da realidade" (DE CARVALHO, 2002, p. 256), que o direito de informação existirá expressamente no Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, com o objetivo de coibir que os cidadãos sejam levados a consumir pela ilusão, e não através da realidade.

Desse modo será a informação, o elemento regente da Lei 8.078/90 ao ter como corolário a educação.

Matérias que se referem a educação, divulgação, publicidade, informação dentre outros, são objetivos em parte do Código do Consumidor, com várias normas dispostas a destacar a extrema cautela com que tais temas devam ser encarados. Por um dos princípios adotados pelo Código de caráter acessório, o "princípio da veracidade", em que o fornecedor deve sempre prestar informações sobre produtos ou serviços de quaisquer natureza que ele ofereça no mercado, constata-se a presença

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deste princípio em inúmeros artigos do código, além do art. 4°, tais como; o art. 6° (dos direito básicos do consumidor); arts. 8° e 10° (citados no tópico referente ao princípio da garantia de adequação); arts. 18, 19 e 20 (vício do produto); arts. 30, 31 e 35 (oferta); arts. 36, 37 e 38 (publicidade e marketing); 43 e 44 (bancos de dados e cadastros); art. 56 (sanções administrativas); por fim, os arts. 60, 63, 64, 66, 67 e 72 (infrações penais).

Todavia há de ressaltar-se que, independentemente da preocupação que os redatores da lei consumerista brasileira tiveram com a informação, esta só poderá ser estendida aos cidadãos de maneira mais eficiente, se as autoridades derem mais atenção a educação básica, que é uma condição indispensável para o completo exercício da cidadania.

Uma proposta a esta problemática, seria a introdução, ou melhor dizendo, reintrodução da disciplina de educação moral e cívica nos currículos escolares de 1° e 2° graus, com o objetivo de fazer com que crianças e adolescentes comecem a criar uma cultura para melhor consumirem e orientarem seus pais, durante o ato de consumo, como por exemplo, saber avaliar a qualidade do produto além de suas condições de higiene, suas condições de exposição para venda, dos componentes artificiais, do valor calórico dos alimentos que devem estar dispostos numa tabela nutricional impressa no rótulo das embalagens, o prazo de validade para consumo dos produtos, dentre outros aspectos de cunho sócio-econômico.

Todavia Hélio Jaguaribe (apud, ALVIM, A.; ALVIM, T.; ALVIM, E.; SOUZA, J. 1995, p. 48-49) chama atenção desta questão social da seguinte maneira:

O Brasil tem demonstrado capacidade para mobilizar forças e enfrentar problemas sociais. Em tempos recentes, as comunicações, o programa do álcool, as hidrelétricas, a industrialização diversificada, a produção de grãos e a ampliação do comércio exterior, em diferentes setores, constituíram provas eloqüentes dessa afirmação. A educação do povo, entretanto, sendo questão da mais transcendente magnitude - pois dela também o equacionamento de todos os problemas, incluindo os políticos, sociais e econômicos - não tem acompanhado sequer as exigências mínimas do país, apesar de ser dever imperioso da nação para com seus filhos e garantia de seu próprio bem-estar.

Concluindo, independentemente do instrumento jurídico que se tenha, por mais avançado que seja, acabará sempre se esbarrando nos problemas sociais, ou seja, na carência cultural que acompanha a população brasileira. Daí que várias empresas, sejam elas multinacionais ou nacionais acabam, na maioria das vezes, se aproveitando da ignorância alheia ao construir seus mega impérios econômicos centralizadores de preços e extintores de quaisquer modalidades de concorrência nos mercados.

2.9 Princípio do Acesso à Justiça

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Primeiramente, far-se-á um breve relato deste princípio no campo constitucional do qual ele emana através do art. 5°, inc. XXXV da Constituição Federal de 1988 in verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", e segundo Nelson Nery Jr. (2002, p. 98) tem-se: "Embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão".

Isto significa que todos têm direito do acesso à justiça para pleitear a tutela jurisdicional reparatória ou preventiva, no que diz respeito a um direito. Contemplando-se aqui tanto direitos individuais quanto coletivos.

Todavia, este princípio não está expresso nos incisos do art. 4° do CDC, mas ele se reveste de suma importância, a partir do momento em que o legislador do diploma consumerista, teve como uma de suas grandes preocupações a busca pela criação de novos mecanismos, que pudessem facilitar ainda mais o acesso dos cidadãos à justiça, como um meio de defesa de seus direitos, daí se observarão consubstanciados em vários artigos do código alguns desses caminhos.

E para que o consumidor se atenha desta efetividade, conforme Arruda Alvim (1990, p. 31) ensina em termos processuais:

a palavra ''efetividade'' alcança uma conotação principalmente sociológica e não meramente jurídico-formal, mas no sentido de que o que conta, em última análise, não é tanto a existência de uma normatividade completa e lógica, em que todos os direito são protegidos pela letra da lei e pelo sistema, mas tão somente aparentemente funcional, pois na verdade, normatividade jurídica, ainda que exaustiva, não é suficiente para satisfazer às aspirações sociais dos segmentos numericamente predominantes e desprotegidos da sociedade.

Antes de se prosseguir com o estudo deste princípio, vale a pena diferenciar o que são as concepções jurídico-formais, das concepções jurídico-materiais, apresentadas pelos autores, Antônio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (1999, p. 40), em que a primeira é "o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado-juiz, ou seja, o complexo de normas e princípios que regem tal método de trabalho", já a segunda, é "o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo, comercial, tributário, etc.)".

A necessidade de se dar efetividade ao processo, e facilitação ao acesso à justiça, demandou que se fortalecesse o consumidor, ao inseri-lo numa ordem mais ampla a partir do instante em que se construiu mecanismos processuais que davam tratamento coletivo de pretensões individuais, que se agissem isoladamente pouquíssimas condições teriam de obterem um resultado mais satisfatório.

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E por mencionar o "tratamento coletivo", destaca-se brevemente as ações coletivas de modo geral, que visam a tutela dos interesses difusos (art. 81, parágrafo único, I do CDC), interesses coletivos (art. 81, parágrafo único, II do CDC) e os interesses individuais homogêneos de origem comum (art. 81, parágrafo único, III do CDC).

Como dissertado um pouco atrás, em que o princípio do acesso à justiça não se encontra expresso na redação do art. 4° do Código do Consumidor, mas sim exposto por outras normas do mesmo diploma, exemplo deste caso é o que acontece com o art. 6° inc. VII, in verbis: "Art. 6°, inc. VII: o acesso aos órgãos judiciários e administrativo com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;" do Título III do CDC que cuida da defesa do consumidor em juízo, ao oferecer a oportunidade de fazer valer seus interesses, inclusive, como já se observou no inc. VII supra citado, de natureza coletiva, e "mediante a ação de órgãos e entidades com legitimidade processual para tanto, sem prejuízo dos pleitos de cunho nitidamente individuais" (FILOMENO, 2001, p. 127).

Por fim, com a criação de instrumentos adequados para a proteção do consumidor, nascem dois planos distintos de incidência. O primeiro, se relaciona às possibilidades que se criam para a efetivação da proteção do consumo em juízo, ao contribuir para que se extraia resultados claros e objetivos pertinente ao direito de consumo. A segunda incidência não decorre do uso destes mecanismos em juízo, mas simplesmente de sua potencialidade de uso, ao clamar pela importância da mudança de mentalidade do consumidor, a partir do momento em que ele irá pressionar cada vez mais o Estado, no intuito de conseguir a tutela específica exigidas pelas relações de consumo, que demandam maior agilidade por parte dos órgãos públicos, armando o consumidor do seguinte slogan de que "quem reclama sempre alcança".

3. LIVRE CONCORRÊNCIA, ABUSO DO PODER ECONÔMICO E CONSUMIDOR

Conforme a posição de José Geraldo Brito Filomeno (2003, p. 69), diante de sua exposição acerca da defesa da ordem econômica, será esta a razão final "a proteção dos interesses e direito dos consumidores, eis que destinatários finais de tudo o que é produzido no mercado, seja em matéria de produtos, seja na de serviços".

Assim, diante de toda essa principiologia apresentada pelo texto do art. 4° do Código de Consumidor, tema deste trabalho, percebe-se que o diploma consumerista nada mais fez do que colocar na prática, durante o relacionamento entre consumidor e fornecedor, os preceitos constitucionais do Título VII (Da Ordem Econômica e

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Financeira), como um dos princípios que regem a atividade econômica (Capítulo I), ao destacar a importância da proteção ao consumidor, como sujeito mais fraco (vulnerável) da cadeia que compõe as relações de consumo.

De acordo com o art. 170 da C.F/88, expressamente referido pelo art. 4° do CDC, diz ele que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim assegurar a todos, existência digna, conforme ditames da justiça social", observados princípios bem delineados, dentre os quais figuram a livre concorrência e a defesa do consumidor (cf. incisos I e IV, respectivamente, ainda do citado art. 170 da CF/88.)

Mais adiante, o art. 173 da Carta de 1988, nos seus § 4° e 5° declaram o seguinte, in verbis:

Art. 173, § 4°. A lei presumirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5°. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Daí percebe-se, conforme foi observado pelos textos desses dispositivos constitucionais supra citados, a definição do que vem a ser abuso do poder econômico, ou seja, "qualquer forma de manobra, ação, acerto de vontades, que vise à eliminação da concorrência, à dominação de mercados e ao aumento arbitrário de lucros" (FILOMENO, 2003, p. 70).

Não obstante, está claro que a proteção e o incentivo às práticas leias de mercado, não interessam apenas aos consumidores, assim como aos fornecedores, que necessitam de uma livre concorrência entre os setores empresariais para que se obtenha uma melhoria da qualidade de produtos e serviços com o aprimoramento da tecnologia, além de melhores opções aos consumidores.

Assim observa-se que, se a livre concorrência não é garantida pelo Estado, o mercado será dominado por poucos, o que gera conseqüências drásticas aos cidadãos, tais como, o aumento de preços de produtos e serviços, a queda de sua qualidade, a falta de opções de compra e a obsolência tecnológica.

E para que se evite tais abusos, vários mecanismos jurídicos foram instituídos para protegerem os cidadãos, dentre eles a Lei 8.884 de 11 de junho de 1994, que transformou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE - em autarquia, dispondo sobre prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, através do que reza o seu parágrafo único do art. 21, incs. I, II, III, IV, in

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verbis:

Parágrafo único. Na caracterização da imposição de preços excessivos ou do aumento injustificado de preços, além de outras circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, considerar-se-á:

I - o preço do produto ou serviço, ou sua elevação, não justificados pelo comportamento do custo dos respectivos insumos, ou pela introdução de melhorias de qualidade;

II - o preço do produto anteriormente produzido, quanto se tratar de sucedâneo resultante de alterações não substanciais;

III - o preço de produtos e serviços similares, ou sua evolução, em mercados competitivos comparáveis;

IV - a existência de ajuste ou acordo, sob qualquer forma, que resulte em majoração de bem ou serviço ou dos respectivos custos.

Deve-se lembrar que para se caracterizar o aumento arbitrário dos lucros, há de se observar também o grau de concentração econômica do setor acusado de tal prática.

Diante disso, examine-se o que preceitua o § 2° do art. 20 da Lei 8.884/94, in verbis:

Art. 20 § 2°. Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.

"E o § 3° arremata essa ordem de idéias acrescentando que ''a parcela de mercado requerida no parágrafo anterior é presumido como sendo da ordem de 20% (vinte por cento)''" (FILOMENO, 2003, p. 71).

Ainda de acordo com José Geraldo Brito Filomeno (2003, p. 71), tem-se:

A infração de que ora se cuida, portanto, é tipificada pelo inc. III do art. 20 da Lei n° 8.884/94, complementada pelos seus três parágrafos, sobretudo os ora colacionados e suplementada, em termos de metodologia, pelos incisos também ditados do art. 21, no tocante à sua apuração.

Portanto, pode-se se conceituar o termo "aumento arbitrário de lucros" como aquele que exceder o limite razoável, levando em conta o teor da concentração de determinado setor da economia, diante o disposto da inteligência do art. 21 da Lei 8.884/94, além de outros dados socioeconômicos e a política das relações de

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consumeristas.

Com relação ao Capítulo V do Título I, "Das Práticas Comerciais" do CDC, em sua seção IV, diversas prescrições previstas no art. 39 se relacionam intimamente com algumas outras disposições legais, tais como, a Lei n° 8.158/91 e a Lei 4.137/62, sem mencionar os textos jurídicos que tipificaram os delitos contra a ordem econômica e as relações de consumo.

"Essas práticas", de acordo com Carlos Alberto Bittar (apud, FILOMENO, 2003, p. 71):

ao turbarem a livre possibilidade de escolha do consumidor, avançam em correspondência com uma necessidade real, em sua privacidade e em seu patrimônio, acrescendo-lhe ônus injustificados que em uma negociação normal não estariam presentes.

Bittar prossegue nesse raciocínio, por Filomeno desenvolvido, quanto a caracterizarem os abusos do poder econômico "prática abusiva manifesta", em detrimento do consumidor de produtos e serviços ao revelar que:

Residindo, no plano negocial, em investidas, ou em recusas, que excedem os limites normais da prática comercial e, no âmbito de serviços, em indefinição de preços ou condições, ou em cobrança de valores excedentes ao ajustado, ou ao realizado, merecem rigoroso regime repressivo no Código, através de leque diversificado de medidas protetivas e sancionamento (preventivos ou repressivos). (FILOMENO, 2003, p. 71).

Um outro comportamento abusivo que merece destaque é o disposto no inc. V do referido art. 39 do CDC, in verbis: "exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva", pois além dele, não apenas a Lei 8.078/90, mas também a Lei 8.884/94, que modificou o art. 39 do CDC, no seu inc. X ao dispor que, fica vedado ao fornecedor, elevar sem justa causa o preço de produtos e serviços, ensejam sanções pela Secretaria Nacional de Direito Econômico (SNDE) e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) quando declarado estiver o aumento abusivo dos lucros dos detentores da cadeia de produção.

Assim serão destas leis, as especulações no mercado, os acordos entre concorrentes dentre outros tipos de articulações os "exemplos típicos de abuso nesse campo de lesão aos consumidores" (FILOMENO, 2003, p. 72).

Por fim, outro aspecto que merece ser destacado é o art. 1° da Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública), inc. V, que diz o seguinte, in verbis:

Art. 1° Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

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[...]

V- por infração da ordem econômica e da economia popular.

Além disso, esta lei teve, por força do art. 88 da Lei 8.884/94, o inc. II do art. 5° modificado no que diz respeito às condições para a legitimação de entidades com vistas à propositura de ações coletivas, in verbis:

II - inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artistíco, estético, histórico, turístico e paisagístico;

Com relação aos aspectos processuais e procedimentais, diz o art. 83 da Lei 8.884/94, que, in verbis: "Aplicam-se subsidiariamente aos processos, administrativos e judicial, previstos nesta Lei as disposições do Código de Processo Civil e das Leis 7.347, de 24 de julho de 1985, e 8.078/90 de 11 de setembro de 1990". No que se refere à tutela penal a Lei 8.134/90 estatuiu que se considera consistente a conduta que "elevar, sem justa causa, o preço de bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado".

Assim conclui, José Geraldo Brito Filomeno (2003, p. 73):

[...] é crime contra a ordem econômica aquela conduta, exigindo-se do acusado que demonstre que houve justa causa para a elevação do preço, sempre tendo-se em vista, por óbvio, [...], constante do art. 21 da Lei 8.884/94, e a dominação do mercado.

Se o agente aumenta sem quaisquer fundamentos, os preços de seus produtos ou serviços, consequentemente aumentará sua margem de lucro, o que revela uma infração à ordem econômica, e não uma mera elevação de preços de seus produtos e serviços.

Por conseguinte, o delito será de mera conduta ou formal, pois: "[...] se verifica com a simples constatação de que houve a elevação de preços sem justificativa plausível, e em setor econômico no qual o infrator desfruta de posição dominante em virtude de monopólio ou oligopólios, por exemplo". (FILOMENO, 2003, p. 73)

CONCLUSÃO

1.Apesar dos princípios gerais de direito estarem enquadrados na categoria dos princípios monovalentes, em que só valem no âmbito de determinada ciência, não se pode deixar de levar em conta que eles também são princípios omnivalentes, dado ao fato desta categoria de princípios serem comuns a todas as formas de saber.

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2.Para melhor análise do corpo normativo de um sistema jurídico, deve se buscar a compreensão de seu princípios, para uma melhor aplicação e integração de seus textos, ou durante o ato da criação de novas normas.

3.Quanto maior a instabilidade política de um país, mais fraco será o respeito aos valores postulados pelo sistema constitucional do mesmo.

4.É tarefa do intérprete buscar o exame dos ditames constitucionais na busca de soluções aos fatos que se apresentam no seio da sociedade, num primeiro momento, para depois examinar as leis infraconstitucionais.

5.Os princípios gerais de direito atingem o seu apogeu, a partir do momento em que alcançam a mais alta posição do Direito Positivo que é o grau constitucional.

6.O art. 5°, inc. XXXII da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, que preceitua que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, antes do ano de 1990, que foi o momento da criação do Código de Defesa do Consumidor através do art. 48 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), se encontrava na sua fase programática.

7.A criação da Lei 8.078/90 foi uma extensão do princípio constitucional elencado pelo art. 5°, inc. XXXII da Carta Magna do Brasil.

8.A Política Nacional das Relações de Consumo, está prevista legalmente no caput do art. 4° do Código de Defesa do Consumidor.

9.São aspectos mais comuns de interesse da política tradicional ao consumidor, os seguintes tópicos: educação, informação e conselhos, proteção dos interesses econômicos dos consumidores, segurança, compensação ao consumidor, representação dos interesses coletivos dos consumidores e satisfação das necessidades.

10. O consumo sustentável é a necessidade de que o homem deve se policiar cada vez mais no hábito de seus consumos, no intuito de preservar o meio ambiente, para que este não se degrade de forma irreversível ao atender às suas necessidades básicas através do consumo exagerado.

11.O princípio da integração é uma estratégia política, de caráter interdisciplinar, que busca a união de vários setores políticos quanto econômicos, que buscam uma melhor forma de atender às necessidades básicas do homem aliada à proteção ao meio ambiente.

12.Os princípios basilares, ou melhor, a filosofia de ação da defesa do consumidor está esculpida no texto do art. 4° e seus incisos do CDC, ao fundamentar-se no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado, na ação

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governamental no sentido de protegê-lo efetivamente, na educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres com vistas à melhoria do mercado, incentivos à criação; ainda pelos fornecedores, de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo.

13.A boa-fé é um princípio basilar que está consubstanciado por todo corpo normativo do Código do Consumidor.

14.A informação é uma das maiores armas das quais os consumidores, podem se utilizar no intuito de se proteger contra os potenciais abusos de anúncios, contratos, marketing, propagandas, dentre outros meios de difusão da informação, do mercado fornecedor.

15.Apesar da grande falta de resultados mais concretos efetivos, pelos quais os cidadãos podem se beneficiar contra os abusos do poder econômico, a concorrência desleal e dos crimes contra a ordem tributária, o Brasil possui várias legislações esparsas que têm como objetivo a proteção contra tais atrocidades, tais como, a Lei 8.884/94, a Lei 8.158/91, a Lei 4.137/62, a própria Lei 8.078/90 e a Lei 7.347/85 que disciplina a Ação Civil Pública que viabiliza a proteção dos interesses difusos e coletivos.

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O princípio da vulnerabilidade e a defesa do consumidor no direito brasileiro: origem e conseqüências nas regras regulamentadoras dos contratos e da publicidade

Autores

Alírio Maciel Lima de Brito

Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte

"A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade" (Rui Barbosa).

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A tutela do consumidor como decorrência da sua vulnerabilidade nas relações de consumo. 3. A Vulnerabilidade e suas espécies. 3.1. Vulnerabilidade Técnica. 3.2. Vulnerabilidade Jurídica. 3.3. Vulnerabilidade Política ou Legislativa. 3.4. Vulnerabilidade Psíquica ou Biológica. 3.5. Vulnerabilidade Econômica e Social. 3.6. Vulnerabilidade Ambiental. 4. Vulnerabilidade X Hipossuficiência. 5. Efeitos da vulnerabilidade do consumidor na tutela legal da publicidade. 5.1 Conceito de Publicidade. 5.2 Natureza Jurídica: seria a publicidade compatível com o clássico conceito de oferta?. 5.3. Regras que vinculam a publicidade no CDC. 6. Vulnerabilidade nos contratos. 6.1. Do contrato de adesão. 6.2. Algumas formas de tornar o consumidor vulnerável nos contratos. 6.3. Regra da interpretação mais favorável ao pólo vulnerável da relação e integração contratual. 6.4 Controvérsia acerca da aplicação do CDC nos contratos bancários: ADI 2.591. 7.Conclusão.

1. Introdução

O presente trabalho visa analisar, pormenorizadamente, o princípio da vulnerabilidade no ordenamento jurídico brasileiro (Lei 8.078/1990, artigo 4º, inciso I: "reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo"), tendo em vista a sua utilização como fundamento filosófico de todo o movimento de Defesa do Consumidor. Por imperativo de sistematização, a abordagem, será disposta da seguinte maneira: a) faz-se um estudo dos fatos sociais que ocasionaram as disparidades nas relações entre fornecedor e consumidor; b) é realizada uma

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abordagem sistemática do princípio da vulnerabilidade; c) finaliza-se com um estudo sobre a publicidade e os contratos, tendo em vista que estes são uns dos principais focos de vulnerabilidade do consumidor.

2. A tutela do consumidor como decorrência da sua vulnerabilidade nas relações de consumo

As transformações havidas no processo produtivo desde a revolução industrial (segunda metade do século XVIII) e, principalmente, com a revolução tecnológica (fenômeno decorrente do grande desenvolvimento técnico alcançado no pós 2.ª Guerra Mundial) ocasionaram uma profunda alteração nas relações de consumo. A partir de então, a produção caracterizada pela elaboração artesanal de produtos e restrita ao âmbito familiar, passou a ser uma exceção. As relações de consumo deixaram de ser pessoais e diretas, fulminando com o relativo equilíbrio existente entre as partes.

Essa nova configuração do mercado baseada na produção em massa, pelo domínio do crédito, marketing, e práticas comerciais abusivas colocou o consumidor numa situação de extrema precariedade frente aos agentes econômicos, requerendo, dessa maneira, uma transformação ou amenização deste sistema predatório.

Diante dessa conjuntura percebeu-se que o consumidor estava desassistido, e por isso, necessitava de uma proteção legal, pois é utópica a possibilidade de autocomposição entre os integrantes das relações de consumo sem a intervenção estatal. Baseado nessa vulnerabilidade do consumidor, foi iniciado um movimento no âmbito internacional com o intuito de reequilibrar as relações entre consumidores e produtores. No ano de 1985 a ONU pela resolução 39/248 "baixou norma sobre a proteção do consumidor (...) reconhecendo expressamente ‘ que os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos econômicos, níveis educacionais e poder aquisitivo’" (Almeida, 2002, p.05).

No caso brasileiro a constituição de 1988 alçou a defesa do consumidor ao patamar de direito fundamental (art. 5º, XXXII: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"), bem como a princípio da ordem econômica, além de prever no artigo 48 do ato das disposições constitucionais transitórias a elaboração de um Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Assim visualiza-se a importância do princípio da vulnerabilidade como fundamento dessa nova disciplina jurídica. Segundo Antônio Herman V. e Benjamin ao prefaciar o livro de Moraes (1999, p.10):

O princípio da vulnerabilidade representa a peça fundamental no mosaico jurídico que denominamos Direito do Consumidor. É lícito até dizer

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que a vulnerabilidade é o ponto de partida de toda a Teoria Geral dessa nova disciplina jurídica (...) A compreensão do princípio, assim, é pressuposto para o correto conhecimento do Direito do consumidor e para a aplicação da lei, de qualquer lei, que se ponha a salvaguardar o consumidor.

3. A Vulnerabilidade e suas espécies

Vulnerabilidade, literalmente, significa o estado daquele que é vulnerável, daquele que está suscetível, por sua natureza, a sofrer ataques. No Direito, vulnerabilidade é o princípio segundo o qual o sistema jurídico brasileiro reconhece a qualidade do agente(s) mais fraco(s) na(s) relação (ões) de consumo. Logo podemos afirmar que a presunção da vulnerabilidade do consumidor é absoluta, isto é, independente da classe social a que pertença.

Iniciaremos agora o estudo dos tipos de vulnerabilidade para torná-lo mais aprofundado. Para tanto, utilizaremos a divisão dada por Moraes (1999, p.115 e ss): técnica, jurídica, política ou legislativa, biológica ou psíquica, ambiental, econômica e social [01].

3.1. Vulnerabilidade Técnica

A vulnerabilidade técnica decorre do fato de o consumidor não possuir conhecimentos específicos sobre os produtos e/ou serviços que está adquirindo, ficando sujeito aos imperativos do mercado, tendo como único aparato a confiança na boa-fé da outra parte.

Esta vulnerabilidade concretiza-se pelo fenômeno da complexidade do mundo moderno, que é ilimitada, impossibilitando o consumidor de possuir conhecimentos das propriedades, malefícios, e benefícios dos produtos e/ou serviços adquiridos diuturnamente [02]. Dessa forma, o consumidor encontra-se totalmente desprotegido, já que não consegue visualizar quando determinado produto ou serviço apresenta defeito ou vício, colocando em perigo, assim, a sua incolumidade física e patrimonial [03].

3.2. Vulnerabilidade jurídica

Esta espécie de vulnerabilidade manifesta-se na avaliação das dificuldades que o consumidor enfrenta na luta para a defesa de seus direitos, quer na esfera administrativa ou judicial.

Em sentido contrário encontramos a posição de Marques (2002, p. 120) que, assim, se manifesta: "é a falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia".

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Consoante os ensinamentos de Moraes (1999, p.120) discordamos da conceituação oferecida pela ilustre jurista, pois da maneira por Ela exposta estamos diante da vulnerabilidade técnica, tratada anteriormente.

3.3. Vulnerabilidade política ou legislativa

A vulnerabilidade política ou legislativa decorre da falta de organização do consumidor brasileiro, inexistem associações ou órgãos "capazes de influenciar decisivamente na contenção de mecanismos legais maléficos para as relações de consumo e que acabam gerando verdadeiros ‘monstrengos’ jurídicos" (Moraes, 1999, p.132).

Ao contrário, as associações de fornecedores possuem força no cenário político nacional, possuindo, inclusive, um grande lobby junto ao Congresso Nacional. Essa situação foi presenciada quando da tramitação do atual Código de Defesa do Consumidor:

... A dissimulação daquilo que era Código em lei foi meramente cosmética e circunstancial. É que, na tramitação do Código, o lobby dos empresários, notadamente o da construção civil, dos consórcios e dos supermercados, prevendo sua derrota nos plenários das duas casas, buscou, através de uma manobra procedimental, impedir a votação do texto naquela legislatura, sob o argumento de que, por se tratar de Código, necessário era respeitar um iter legislativo extremamente formal... (Pellegrini, 2001, p.09).

3.4. Vulnerabilidade Psíquica ou Biológica

O consumidor é atingido por uma infinidade de estímulos (visuais, olfativos, químicos, auditivos, etc.) que devido a sua própria constituição orgânica influenciam na tomada da decisão de comprar determinado produto.

Por isso nos dias atuais percebemos a importância desta motivação, capaz de criar desejos, necessidades e manipular manifestações de vontade como uma forma de influenciar o consumidor. Segundo Moraes (1999, p.151) "essa motivação pode ser produzida pelos mais variados e eficazes apelos de marketing possíveis à imaginação e à criatividade orientada pelos profissionais desta área" [04].

3.5. Vulnerabilidade Econômica e Social

A vulnerabilidade econômica e social é resultado das disparidades de força entre os agentes econômicos e os consumidores. Aqueles detêm condições objetivas de impor sua vontade através de diversos mecanismos. Podemos destacar como uma dessas formas a introdução dos contratos de adesão e os submetidos às condições gerais (ou condições gerais dos contratos – CONDGs) [05].

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Assim, surge a cada dia a necessidade de uma maior presença do Estado no âmbito econômico para harmonizar essas relações de consumo.

3.6. Vulnerabilidade Ambiental

Esta espécie de vulnerabilidade é decorrência direta do consumo em massa da nossa sociedade. Como parte do meio ambiente o homem fica sujeito a uma gama de alterações havidas neste, ocasionado pelo uso irracional dos recursos naturais de nosso planeta.

Segundo Mirian de Almeida Souza apud Moraes (1999, p.162):

... Uma visão sistêmica do direito do consumidor, em que todos habitam o mesmo planeta, faz deste direito o reverso da moeda do direito ambiental. Ou seja, o ‘consumerismo’ destrutivo do meio ambiente é inerente ao modelo vigente da indústria e agricultura, em que todos têm participação em diversos graus através da sociedade de consumo, e todos sofrem prejuízos biológicos em diversos graus por causa do abuso do meio ambiente.

4. Vulnerabilidade X Hipossuficiência

Para finalizar essa parte do trabalho iremos traçar os elementos distintivos entre a vulnerabilidade do consumidor e sua hipossuficiência no mercado de consumo, já que os conceitos apresentam realidades jurídicas distintas, bem como conseqüências jurídicas diversas. Embora haja essas diferenças é comum a utilização desses termos como sinônimos [06].

Conforme afirmado anteriormente o princípio da vulnerabilidade é um traço inerente a todo consumidor de acordo com o art. 4º, inciso I do CDC. Já a hipossuficiência [07] é uma marca pessoal de cada consumidor que deve ser auferida pelo juiz no caso concreto, tendo em vista o art. 6º, inciso VIII do CDC que assim dispõe:

São direitos básicos do consumidor: VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência (grifamos).

Portanto, é errônea a utilização dos termos como sinônimos, já que se assim o fosse, todo consumidor teria direito à inversão do ônus da prova.

5. Efeitos da vulnerabilidade do consumidor na tutela legal da

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publicidade

Passaremos, agora, a tratar das repercussões da incontroversa vulnerabilidade do consumidor no âmbito da publicidade e do contrato, assinalando quais são as condutas ilícitas e os meios através dos quais o direito assegura a proteção dos consumidores. Deteremo-nos inicialmente com a publicidade.

5.1 Conceito de Publicidade

Compete-nos conceituar publicidade. Lembraríamos ao leitor que não há no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor um conceito para o objeto de nossa análise. Limitou-se, o legislador, apenas a esboçar conceituação de publicidade enganosa e abusiva [08]. Para a economista Raimar Richers publicidade é:

A comunicação, através de meios impessoais (impressos e eletrônicos), destinada a informar, divulgar e promover a oferta de idéias, bens e/ou serviços por parte de um patrocinador identificado (Richers, 1985, p.66).

Existem conceitos dos mais diversos para a atividade que visamos descrever, e que acabam, invariavelmente, a fazer referência a dois elementos que reputamos serem essenciais: a informação e a divulgação [09]. E de fato, não há de se falar na existência de publicidade se não se fizer notar o mínimo de informação a respeito do produto/serviço que se quer vender ou divulgação dessa informação. Morais (1999, ob. cit.) se põe a diferenciar o conceito de publicidade do de propaganda. Não vislumbramos quanto à sua essência, distinção alguma, uma vez que em ambos os casos o que há é a divulgação de determinada informação. Na realidade, há uma distinção quanto ao uso desses termos: quando se objetiva a venda de um produto, se usa a expressão publicidade. Ao passo que quando se tem por objeto a propagação de idéias políticas ou religiosas se utiliza do termo propaganda. À conclusão muito semelhante chegou o doutrinador mencionado [10].

5.2 Natureza Jurídica: seria a publicidade compatível com o clássico conceito de oferta?

Conceituado o objeto de nosso estudo, nos lançaremos ao problema de sua natureza jurídica. Tentadora é a hipótese de considerarmos como sendo proposta [11]. No entanto, bastaria uma rápida leitura do CDC para concluirmos que tal possibilidade é com ele incompatível, vez que no seu capítulo V, que trata das práticas comerciais, existe uma seção dedicada à oferta e outra à publicidade, respectivamente a II e III. Mas não seria meramente o fato do CDC distinguir tais conceitos que nos daria base para não aceitar a classificação da publicidade como espécie de oferta. Eis qual a diferença principal entre os dois institutos: Com a proposta basta que se dê a aceitação do policitado para que se aperfeiçoe o contrato. Já a publicidade tem muitas vezes apenas o afã de mostrar que o anunciante está propenso a contratar, tendo por

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objetivo atrair o consumidor.

É exemplo de oferta ad incertam persona a exposição em vitrine de produto com seu respectivo preço. Nesse caso, os elementos essenciais do contrato a ser celebrado (de compra e venda) já estão determinados: a coisa e o preço. Exemplo de publicidade é o anúncio corrente em jornais e revistas nos quais apenas se veicula o logotipo do estabelecimento, a área de atuação e outras informações básicas tendo a intenção de atrair clientes e, não de estabelecer todas as condições de um futuro contrato, que para se aperfeiçoar necessitaria apenas da adesão por parte do policitado.

Diferenciados os dois institutos, descartamos de antemão a possibilidade de um ser gênero do outro [12], mas não solucionamos, ainda, o problema que anunciamos o qual será elucidado por Lôbo com o qual concluímos esse tópico: "Assim, não se pode considerar a publicidade como oferta, no sentido tradicional do termo, melhor se concebendo como modo de integração compulsória aos contratos de consumo" [13] (2000).

5.3. Regras que vinculam a publicidade no CDC

É do conhecimento de todos o tamanho poder que os meios de comunicação em massa (mass media) detêm. Não infundadamente se diz até que se trata de um quarto poder. Aquilo que é veiculado na televisão, rádio, revistas e jornais seja uma notícia, seja uma campanha publicitária, acaba por entrar na esfera das convicções do indivíduo sem que haja uma valoração crítica e analítica dos fatos.

Tal é a razão pela qual o Estado interveio, por meio do CDC, estabelecendo normas que possuem por objeto regular a publicidade e proteger o consumidor, posto que este se encontra em posição de vulnerabilidade psíquica frente àquela. A seguir, citaremos tais normas.

A) A identificação da publicidade: Em consonância com o artigo 36 do CDC a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal. O que se objetiva aqui é evitar que informes publicitários passem por jornalísticos ou educativos.

B) Vinculação contratual: por força dos artigos 30 e 35 do CDC não só a publicidade, como também a oferta [14] integram compulsoriamente o contrato que venha a ser firmado. Em decorrência disso, nos casos em que exista incongruência entre as cláusulas ou condições gerais presentes na publicidade e no contrato, é dada ao consumidor faculdade de proceder de três diferentes formas: 1. Exigir o cumprimento da oferta, apresentação ou publicidade; 2. Aceitar outra prestação equivalente àquela difundida; ou 3. Resolver o contrato em perdas e danos [15] obtendo o ressarcimento das parcelas então empenhadas.

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C) Regra da veracidade: Na cabeça do artigo 37 do CDC existe a proibição de toda publicidade enganosa, impondo-se, dessa forma, um compromisso de veracidade daquilo que é divulgado em campanha publicitária. É definida por enganosa qualquer modalidade de informação publicitária inteira ou parcialmente falsa, mesmo que por omissão [16].

D) Regra da não-abusividade da publicidade: Por força, também, do caput do artigo 37 se tem por proibida toda publicidade abusiva. Eis a segunda modalidade de publicidade ilícita. Entende-se, na doutrina, que o abuso é o uso irregular de uma faculdade que a princípio se apresentava como regular e legítima [17]. Ao tentar delimitar o que viria a ser abusividade o referido codex listou rol não taxativo, nos seguintes termos: É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória; que incite à violência; explore o medo ou superstição; que se aproveite da deficiência de julgamento da criança, etc.

E) Inversão obrigatória do onus probandi: Como é do conhecimento do leitor, no processo, a parte que alega a ocorrência de determinado fato é que suporta a carga de prová-lo. Acontece que se tal preceito fosse cruamente aplicado nas relações de consumo, teríamos que consumidores, possuidores de bons direitos, veriam seu pedido julgado improcedente por falta de provas graças a sua vulnerabilidade que o impede de produzi-las, tão bem quanto o fornecedor. Razão pela qual o CDC fez duas previsões de inversão do ônus da prova: uma ope legis (ao artigo 38) e outra ope judicis (ao artigo 6º, VIII). Enquanto que esta se opera mediante uma valoração, in casu, da existência de verossimilhança daquilo que é alegado ou de hipossuficiência do autor, aqueloutra se dá independentemente de qualquer análise por parte do magistrado pelo fato de derivar, em última análise, da presunção legal de vulnerabilidade do consumidor [18]. De tal inversão decorre que a prova da veracidade daquilo que é anunciado cabe ao fornecedor.

F) Transparência da fundamentação publicitária: O fornecedor deve ter consigo os dados fáticos que fundamentem a informação veiculada, é o que impõe o artigo 36, parágrafo único da lei em tela. Saliente-se que a inobservância desse dever por parte do fornecedor enseja a caracterização da já referida propaganda enganosa por omissão, assim, como a interpretação contra o mesmo.

G) Correção do desvio publicitário: Por imperativo do art. 56, inciso XII do CDC, o desvio da publicidade possuirá não só efeitos civis e penais como também publicitários. Leva-se em conta que para corrigir os malefícios causados aos consumidores o único meio eficaz é fazendo uso da própria publicidade sob o nome de contrapropaganda:

Trata-se de veiculação de outra publicidade para sanar os malefícios causados pela publicidade originária. Naquela, de caráter explicativo, o fornecedor, às suas expensas, informa corretamente ao consumidor, desfazendo os erros de anúncio

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original. (Gonçalves; 2002, tópico 10).

6. Vulnerabilidade nos contratos

Discorreremos, agora, a respeito dos contratos de adesão (muito usados nas relações de consumo); de alguns meios utilizados pelo fornecedor que tornam vulnerável o consumidor; das regras interpretativas das cláusulas contratuais e da questão, então em voga (pelo advento da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 2.591 -), da aplicação do CDC aos contratos bancários.

6.1. Do contrato de adesão

Desde a revolução industrial o mundo vem assistindo a uma gradual massificação da produção dos bens da vida. Tal processo trouxe-nos algumas conseqüências das quais destacaríamos: massificação das necessidades de consumo; difusão do modo de vida ocidental e (conseqüência que mais nos interessa) uniformização dos vínculos jurídicos entre fornecedor e consumidor. Daí, surge naturalmente a necessidade de uso de contratos-tipo, vindo a possibilitar uma dinâmica circulação de riquezas, uma vez que com instrumentos pré-formulados se vencia, com um único passo, toda a etapa pré-negócial, que envolve toda uma cadeia de ajustamentos. Podemos extrair do que foi exposto, os elementos essenciais dos contratos de adesão: 1. Uso em massa: no sentido em que regem as interações econômicas entre um fornecedor e seus distintos consumidores; 2. Textos pré-constituídos unilateralmente e 3. Formação dos contratos com a adesão (que só poderá se dá em bloco) do consumidor [19].

É de se frisar que a simples adoção da espécie contratual em comento não constitui, per si, um ato abusivo que mereça ser coibido; ao passo que é instrumento útil ao atual estágio de desenvolvimento capitalista, razão pela qual merece (sim) uma especial fiscalização e especial tutela legal (inserida no nosso ordenamento com o CDC) que sejam capazes de compensar a vulnerabilidade do consumidor e refrear os abusos contratuais que, via de regra, ocorrem em sede de contratos standart.

6.2. Algumas formas de tornar o consumidor vulnerável nos contratos

Podemos notar, estudando o instituto do contrato de adesão, que se trata de instrumento que confere ao fornecedor pujantes meios de abusar da boa-fé ou do estado de necessidade do consumidor, alguns dos quais passaremos a comentar infra [20]:

A) Tecnismo dos termos contratuais: Os instrumentos contratuais em geral devem ser escritos de modo a possibilitar a compreensão de seu conteúdo sob pena de comprometer a validade da vontade que ali se expressa e, conseqüentemente, a obrigatoriedade do pacto. Acontece que tal imperativo comumente é inobservado pelo elaborador do contrato, que usando de termos técnicos do meio econômico ou

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jurídico, deixa o texto nebuloso aos olhos do consumidor, tornando-o ainda mais suscetível a sofrer lesões.

B) Complexidade e extensão do contrato: Tanto o tecnismo como o uso constante de remissões a outras cláusulas do instrumento contribuem para torná-lo mais complexo. Fazendo de sua leitura e interpretação uma tarefa árdua mesmo para profissionais do meio. Moraes (1999, p. 227) relata que de certa feita precisou de mais de cinco horas ininterruptas para analisar contrato que além de complexo era deveras extenso pelo fato de conjugar, na verdade, em um único texto vários contratos distintos.

C) Cláusulas abusivas: O CDC, em seu art. 51 traz lista, não exaustiva, de cláusulas consideradas abusivas e que, como tais, são nulas de plenos direito. Tal rol é na realidade, uma consignação de entendimentos que foram consagrados em nossos tribunais ao longo das décadas que antecederam ao referido codex [21]. E por essa razão, ele pode ser complementado pela jurisprudência, assim como entendimentos dos Ministérios Públicos e decisões administrativas dos Procon’s, as quais serão consolidadas (através de portarias) pela Secretária de Direito Econômico, que pelo Decreto 2181 de 1997 recebeu essa atribuição.

6.3. Regra da interpretação mais favorável ao pólo vulnerável da relação e integração contratual

Preceito fundamental para uma eficaz proteção do consumidor, dentro de um contexto de disseminação do uso de contratos padronizados com texto nebuloso, extenso e cláusulas abusivas, é o da interpretação que lhe seja mais favorável (artigo 47 do CDC). É inconteste, na doutrina, o fato de decorrer dessa norma a possibilidade do magistrado declarar nulidade de cláusulas contratuais. O que não ocorre, no entanto, com a possibilidade de, no afã de buscar a solução mais favorável ao consumidor, vir o juiz a acrescentar, ao contrato, novas disposições. Acreditamos que tal possibilidade (de integração contratual pelo Judiciário) é legítima e prevista no artigo 51 §2º do CDC, verbis: "a nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes" (destacamos). Sendo que o entendimento em contrário nada mais é que o resquício de um tempo, não muito distante, no qual sob a alegação de proteção ao princípio da autonomia da vontade se impedia que o Estado interferisse nas relações privadas a fim de promover os ajustamentos necessários a colocar em igualdade de condições os naturalmente desiguais. [22]

6.4 Controvérsia acerca da aplicação do CDC nos contratos bancários: ADI 2.591.

Estaria incompleto o presente estudo se não fizéssemos referência, por mais

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pontual que seja, à controvérsia muito recentemente suscitada (ou ressuscitada) a respeito da consideração (ou não) das cadernetas de poupança, depósitos bancários, contratos de mútuo, cartões de crédito, de seguros, abertura de crédito e todas as operações bancárias ativas e passivas como relação de consumo. Justifica-se a assertiva anterior com a constatação de que são nos contratos bancários, feitos em série e muitas vezes elaborados de modo a lesionar o consumidor [23], que esses deixam mostrar de forma mais proeminente a sua vulnerabilidade; e com a constatação de que tais contratos estão de tal forma disseminados que é difícil encontrar quem nunca os celebrou [24].

Sobre o tema, o STJ firmou sólido entendimento no sentido de que o CDC, em sua parte propriamente consumerista, (imposição da boa fé, adoção do in dubio pro consumidor, regras sobre responsabilidade por fato e vício do produto e do serviço, etc) seria aplicável normalmente aos contratos bancários [25]. Não o sendo, no entanto, na parte que se refere à limitação dos juros reais em 12% ao ano, posto que tal matéria, de Direito Financeiro, muito embora possua previsão constitucional (art. 192, §3º), precisa de lei complementar que a regulamente.

A controvérsia, que parecia então pacificada, voltou à baila com o advento da ADI. 2.591 proposta pelo CONSIF – Confederação Nacional do Sistema Financeiro – cujo julgamento junto ao STF foi iniciado, e logo interrompido, em 17 de abril de 2002 graças a pedido de vista do Min. Nelson Jobim. O objeto dessa ação é o de declarar a inconstitucionalidade da expressão "inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária" em face do artigo 192 da CF. A pretendida inconstitucionalidade formal residiria no fato de que, por força do dispositivo constitucional, o sistema financeiro nacional só pode ser regulado por Lei Complementar e não por Lei Ordinária como o CDC.

Em parecer elaborado, mediante consulta do Instituo Brasileiro de Política e direito do Consumidor – BRASILCON, pela douta jurista Cláudia Lima Marques existe farta e elaborada contra-argumentação que leva à conclusão da improcedência do pedido. Inicia, a doutrinadora, por deixar clara a clássica distinção entre "normas de conduta" e "normas de organização", aquelas, destinadas de forma imediata a reger o comportamento dos indivíduos considerados isoladamente ou coletivamente; e estas, destinadas a regular a constituição e funcionamento de institutos publicamente relevantes como o sistema financeiro nacional, por exemplo. Segue afirmando que a premissa na qual se fundamentou o CONSIF para propor a ação, qual seja: a de que o CDC é uma norma de organização que regulamenta o sistema financeiro nacional; é falsa; posto que o CDC traz em seu seio normas de conduta destinadas a reger relações de consumo. Razão pela qual não vê, a jurista, incompatibilidade entre o referido dispositivo constitucional e a norma do artigo 3º, §2o do CDC. Deixando claro que o CDC se aplica aos contratos bancários, com a devida ressalva do campo de atuação da lei 4.595/64 que legitima a taxa de juros superior a 12% ao ano. Essa é

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a posição que nos parece mais acertada até porque se coaduna com o entendimento ao longo do tempo construído pelo STJ.

E de fato, o Min. Relator da ADI, Carlos Velloso, diferentemente do Min. Néri da Silveira que julgou improcedente o pedido, trilhou esse caminho (aberto pelo STJ) ao julga-lo procedente em parte para emprestar ao §2º, do art. 3º do CDC, interpretação conforme a Constituição para excluir da incidência a taxa dos juros reais nas operações bancárias ou sua fixação em 12% ao ano pelos argumentos já mencionados.

7. Conclusão

Os princípios em qualquer ramo do conhecimento são os pilares que alicerçam todas as vertentes do seu saber. No Direito não poderia ser diferente, os princípios são a base da Ciência Jurídica. Já se tem dito, e hoje a afirmação ganha cada vez mais relevo, que violar um princípio, é mais grave do que infringir um dispositivo legal. A assertiva é verdadeira em todos os sentidos, pois a sua violação é a tentativa de negação, de descumprimento, dos pilares de onde brotam, de onde se inspiram, as regras jurídicas.

Assim, percebemos a importância do princípio da vulnerabilidade como base de toda a Ciência Consumerista, configurando esta como uma conquista histórica em favor do consumidor, como decorrência dos tempos modernos. Dessa maneira, para um perfeito entendimento do Sistema de Proteção do Consumidor, impende a necessidade da análise do referido princípio para uma conseqüente aplicação equânime da lei, Tendo em vista que a vulnerabilidade é o alicerce (matriz) da defesa do consumidor.

No decorrer do trabalho, visualizamos as várias espécies de vulnerabilidade inerentes ao consumidor. Estas implicam inúmeras situações fáticas de exploração, que demonstram a importância dessa tutela legal.

No âmbito da publicidade e da contração em massa, constatamos a relevância dessa proteção, ao vedar determinadas práticas comerciais, que visem ludibriar o pólo vulnerável da relação de consumo, objetivando a observância da cláusula geral da boa-fé, que deverá ser buscada, inclusive, por meio de inserção de novas cláusulas pelo magistrado.

Quanto à aplicabilidade do CDC aos contratos bancários, filiamo-nos à corrente de que não há vedação alguma, no concernente às normas de conduta. Em logrando êxito a tese levantada na ADI 2.591, restará por fulminado todo o sistema de proteção ao consumidor.

8. Bibliografia

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1. ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.

2. BONATTO, Cláudio [et al]. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Consumidor: Principiologia; Conceitos e Contratos atuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

3. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 1998.

4. FILOMENO, José Geraldo. Manual de Direitos do Consumidor, São Paulo: Atlas, 2001.

5. GOMES, Orlando. Contratos. Atualizador: Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

6. GONÇALVES, João Bosco Pastos. Princípios gerais da publicidade no Código de Proteção do Consumidor. IN: Jus Navigandi, n. 58 [Internet] http:// www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3181, Capturado 15.set.2002.

7. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

8. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: RT, 2001.

9. INFORMATIVO DE JURISPRUDÊNCIA DO STF. n. 264. Brasília, 15 a 19 de abril de 2002.

10. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. In: Jus Navigandi, n. 51. [Internet] http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2216 [ Capturado 15.Set.2002 ].

11. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos Contratos no novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2002.

12. Marques, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4ª ed. São Paulo: RT, 2002.

13 MENESES, Daniel M. G. [et al]. A influência do CDC nos contratos bancários. IN Revista Jurídica Consulex, ano VI – n. 122 P. 34-38 de 15 de fevereiro de 2002.

14. MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de defesa do consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas

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comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999.

15. NOVAES, Elaine Cardoso de Matos. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor in Revista Jurídica IN VERBIS n. 02, p. 18-25. Agosto/setembro de 1995.

16. RICHERS, Raimar. O que é Marketing. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

17. ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992.

18. SOARES, Paulo Brasil Dill. Princípios básicos de defesa do consumidor. Leme: LED, 2001.

19. VIEIRA, Adriana Carvalho Pinto. O princípio constitucional da igualdade e o direito do consumidor. Belo Horizonte: Melhoramentos, 2002.

Notas

01 Para Marques (2002, p. 270) existem apenas três tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica e a fática ou sócio-econômica.

02 Exemplo esclarecedor sobre a vulnerabilidade técnica do consumidor nos é dado por Pasqualoto (1997, p. 33) "a questão do leite infantil ficou como um marco na luta contra os desvios da publicidade. Uma trintena de empresas multinacionais sugeriam, especialmente em países do Terceiro Mundo, a substituição da amamentação materna pela mamadeira. Mexiam com a vaidade feminina e com o conforto da mãe. O leite em pó, que substituiria o aleitamento materno, era mais caro e, sendo nutricionalmente menos valioso transformou-se em causa corrente de desnutrição. ..".

03 Essa situação também pode ser constatada nos inúmeros recalls ocorridos nos últimos anos na indústria automobilística em decorrência do desgaste ou defeito de fabricação em peças que colocam em risco a vida de inúmeros consumidores. Vícios esses que, pelo fato do consumidor comum não possuir conhecimento técnico, passaram despercebidos dos mesmos.

04 A título exemplificativo Miriam de Almeida Souza apud Moraes (1999, p.154) "... os apelos publicitários levam o indivíduo a considerar-se numa situação psicológica e social inferior, caso não adquira tais produtos prestigiados, por acreditar que todos devem ter e usar... as empresas... investem conjuntamente em comercias, e criam, dessa forma, no consumidor, a necessidade intolerável de manter-se em dia, andar na moda, e assim por diante, ou seja, o efeito demonstração a toda prova". Dessa maneira percebe-se mais uma vez o subjugamento do consumidor no mercado de consumo.

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05 Segundo Marques "entende-se como contratos submetidos a condições gerais aqueles contratos, escritos ou não escritos, em que o comprador aceita, tácita ou expressamente, que cláusulas pré-elaboradas pelo fornecedor, unilateral e uniformemente para um número indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o seu conteúdo específico" (2002, p.66).

06 Exemplo de confusão entre os dois conceitos existe no trecho do agravo de instrumento. n. 99.002927-1; 3a Vara Cível – Mossoró/RN. Relator: Des. Dúbel Cosme do TJRN, que citamos infra, no qual se argumenta que a norma do Art. 101, inciso I do CDC (que se refere à possibilidade do consumidor ajuizar ação de responsabilidade civil do fornecedor no seu próprio domicílio) deve ser aplicada in casu como conseqüência da presunção de hipossuficiência da consumidora. Quando, na verdade, tal norma decorre da presunção juris et de jure de vulnerabilidade. Verbis: "Embora a Agravante insista em desconsiderar a condição de hipossuficiente da Agravada, diante do cargo de juíza de direito ocupado pela mesma, a hipossuficiência a que alude o Código de Defesa do Consumidor é afirmada pela sua qualidade de consumidora frente ao fornecedor de serviço (sic). Portanto, não merece guarida referida alegação. São pacíficas a doutrina e jurisprudência pátrias, quando definem como competente o foro do lugar do dano ou do domicílio do consumidor, para as ações de indenização, ante o disposto no artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor que elenca dentre os direitos básicos do consumidor, a facilitação da defesa de seus direitos".

07 De acordo com os ensinamentos de Antônio Benjamin "... A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educados ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é uma marca pessoal, limitada a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores" (2001, p.325).

08 Preocupou-se, o legislador, com o desvio (publicidade ilícita) e não com o padrão.

09 Para corroborar o supra afirmado, disponibilizamos ao estudioso do assunto o conceito de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin, que também faz referência às noções de informação e de divulgação, citado por João Bosco Pastos Gonçalves: "Publicidade é toda informação dirigida a público com o objetivo de promover, direta ou indiretamente, uma atividade econômica" (Gonçalves, 2002, tópico 2).

10 Cf. Nesse sentido a referida obra à página 250 na qual escreve o autor: "não fala o código em contra publicidade, dado que o objetivo da publicidade é vender, enquanto o objetivo da propaganda é a implantação de idéias, na forma já vista".

11 Já que tanto a proposta (ou oferta) como a publicidade poderiam ser

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aprioristicamente definidos como atos pré-negociais. Cf nesse sentido: (Gomes, 1999). Em sentido contrário, considerando a proposta como negócio jurídico unilateral: (Lôbo, 2000).

12 Cf em sentido contrário, defendendo que a publicidade é espécie de oferta: (Filomeno, 2001, p. 251).

13 Compulsoriedade essa dada pela norma do artigo 30 do CDC.

14 Ao contrário do que ocorre no seio das relações regidas pelo Código Civil (vide art. 1.080 do Código de 1916, norma repetida no Código ora em vacatio legis ao artigo 427), nas relações de consumo a proposta sempre obrigará o fornecedor promitente. A nossa lei de proteção não vedou expressamente o uso de cláusula de retratabilidade na proposta, mas entendemos que tal vedação está subentendida, sendo totalmente aplicável a regra do artigo 7o, 5 da Lei Portuguesa de defesa dos consumidores, in fine: "As informações concretas e objetivas contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário". Grifamos.

15 Saliente-se que pelo fato do direito consumerista ser um direito de proteção ao consumidor e não de repressão ao fornecedor negligente, inexiste, em regra, a necessidade de comprovação de culpa por parte do fornecedor para responsabilizá-lo (regra que possui como exceção o caso dos profissionais liberais) de modo que para que haja a condenação em perdas e danos basta que se apresentem os demais requisitos: 1. Ocorrência de dano patrimonial positivo (dano emergente) ou negativo (lucros cessantes) e 2 – Nexo causal entre o dano e o inadimplemento daquilo que fora prometido em publicidade. Um estudo desses requisitos pode ser encontrado em (Diniz, 1998, p. 379).

16 Já se considerou como enganosa por omissão publicidade que dizia: "Hoje promoção inédita de Santana e Parati" posto que "basta um simples raciocínio para, de pronto, constatar isso, a ausência de qualquer esclarecimento acerca do que o fornecedor pretendeu com a expressão ‘inédito’, o que bem caracteriza o informe como obscuro" (TJDFT, 3ª Turma Cível. Apelação Cível e Remessa ex officio n º 8114/2000 e 7912/2000).

17 Cf nesse sentido: (Moraes, op. cit). e (Loureiro, 2002).

18 Maiores apontamentos sobre o tema poderão ser encontrados em: Elaine Cardoso de Matos Novaes (1995, p. 18 e ss).

19 Genovese apud Orlando Gomes ( 1999, p118 ) coloca os seguintes elementos, que se identificam com os mencionados supra, como características do contrato de adesão: 1) A uniformidade; 2) A predeterminação e 3) A rigidez.

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20 Lista pormenorizada contendo esses e outros meios pode ser encontrada em Moraes (1999, p. 226 e ss.).

21 Não há de se falar, nesse sentido, que o uso de cláusula que permita ao fornecedor, variação de preço de maneira unilateral não era procedimento abusivo antes do advento da Lei de proteção ao consumidor; uma vez que tal prática sempre foi considerada leonina vindo, com o CDC, apenas a se formalizar tal entendimento.

22 Corroborando a posição colocada a respeito da possibilidade de integração contratual por parte do Judiciário: Bonatto (2001, p. 193 e ss.).

23 Seja através do uso de tecnismo, complexidade ou cláusulas abusivas.

24 Sobre o assunto, diz Daniel M. G. Meneses (2002, p. 37): "(...) os contratos bancários alcançaram a tal nível de popularidade que mesmo o cidadão mais humilde não costuma escapar da ação (muitas vezes nefasta) dos tipos mais comuns, como: depósito bancário, o depósito em conta corrente, etc.".

25 STJ, 3 º T : AG 448061 MG; AG 445664RS; AG 445314 RS; AG 424767 RS; AG 438114 RS; 4 º T : AG 444223 RS; AG 430435 RS; AG 430458 RS; AG 420203 RS; AG 425643 RS; RESP 325620 RS; RESP 293778 RS e RESP 213825 RS. Dentre tantos outros julgados. Já que o CDC, do art. 3º §2º, definindo serviço, faz expressa referência ao de natureza bancária, verbis: "Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista" (grifamos). Previsão legal que de tão explícita, ao nosso ver, descarta a necessidade de realizar maiores divagações teóricas sobre o assunto.

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O princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Francisco José Soller de Mattos

A boa-fé, como princípio, apresenta-se como pilar dos mais importantes na sustentação da teoria contratual moderna. Assim, muitos países, por seus sistemas de leis, contemplam, expressamente, este princípio, consignando que os contratos devem ter interpretação e também execução, atrelados ao "comportement réflechi à l’égard d’autrui, feixe de deveres que induzem a um mandamento bilateral de conduta. Nesse sentido, para ilustrar, vale trazer à colação o BGB - Bürgerliches Gesetzbuch - (Código Civil Alemão), mais especificamente a letra do § 242, que positiva o princípio em comento, aduzindo: "O devedor é obrigado a realizar a prestação do modo como o exige a boa-fé levando em conta os usos de tráfico".

Pois bem, o princípio da boa-fé, não foi contemplado, no Código Civil Brasileiro, com artigo expresso, ou seja, na legislação pátria não se traduz como regra geral, ao contrário de sistemas legais alienígenas como os da França, Espanha, Itália, Portugal, Suíça, Estados Unidos e Alemanha.

Porém, ante a importância do regramento de conduta nas relações obrigacionais, verifica-se o fenômeno de que, mesmo em face da não existência, no Código Civil, de artigo de teor próximo ao § 242 do BGB, o princípio em tela mantém vigência imperativa, dando o norte ético para todos os partícipes do vínculo jurídico, estabelecendo um elo de cooperação, em face do objetivo comum avençado.

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A inspiração legislativa brasileira para a consideração do princípio da boa-fé nas relações obrigacionais achava-se, quase que isoladamente consignada, na letra do art. 85 do Código Civil, de onde depreende-se a vontade Estatal que: " o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível" (Orlando Gomes).

Ocorre que, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a boa-fé, deixou de coadjuvar no plano legislativo para, em sendo positivada no art. 4º, inciso III do indigitado sistema legal, galgar, segundo Larentz, a sua importância de princípio supremo do direito civil.

Atualmente, após plena consolidação do CDC como um instrumento positivo e que efetivamente mudou o panorama contratual moderno do Brasil, verificamos, dentro desse conjunto legislativo, a prevalência da boa-fé como seu princípio de orientação máxima. E, muito embora o próprio caput do art. 4º do CDC consagre a autonomia do "Princípio da Transparência", não há como se negar que este nada mais é do que uma das mil faces da boa-fé, que, de tão abrangente, deixa escapar o seu sentido para uma conceituação aberta, indutora de uma nova postura no ambiente contratual.

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A relação jurídica de consumo: conceito e interpretação

Autor: Marcelo Azevedo Chamone

1. INTRODUÇÃO

A dicotomia entre relações jurídico-obrigacionais civis e comerciais já era ancestral quando, em 1866, Teixeira de Freitas propôs a sua unificação enquanto abandonava a elaboração do projeto de um Código Civil onde o Governo insistia em manter o cisma. O jurisconsulto baiano já visualizara a artificialidade dessa divisão – não havia qualquer diferença de essência entre as obrigações civis e as comerciais.

Tal proposta unificadora somente veio finalmente a se tornar direito positivo com a aprovação do Código Civil de 2002, resultado de um projeto de 1975, muito embora outros anteprojetos já tivessem trilhado a mesma linha, tal como os anteprojetos de Código das Obrigações de 1941 (redigido por Orozimbo Nonato, Hahnemann Guimarães e Philadelpho Azevedo), e de 1963 (de Caio Mário da Silva Pereira).

Em 1943 a repartição dicotômica se tornou tricotômica com a edição da Consolidação das Leis do Trabalho – às duas modalidades de relações obrigacionais acresceu-se a relação de emprego. Desde então se debate onde estaria a marca divisória entre as relações civis e as trabalhistas, o que só foi acentuado com a expansão da competência da Justiça do Trabalho – talvez esteja aí o germe de uma futura reunificação.

Já em 1990 essa divisão foi acentuada com a edição do Código de Defesa do Consumidor; surgiu uma nova modalidade de relação obrigacional, a de consumo. Mais uma vez surgiram acalorados debates sobre os limites dessa nova categoria, sobre o que seria relação de consumo e o que seguia sendo relação civil ou (até 2003) comercial.

Uns buscam ampliar a área de incidência da legislação consumerista, para abranger o maior número de relações no mercado, sob o argumento de ampliar ao máximo a proteção às partes vulneráveis – seja sob o aspecto técnico ou econômico – nas relações obrigacionais; enquanto outros querem restringir-la, pretendendo valorizar a proteção às situações em que o consumidor "seja realmente" a parte mais fraca da relação.

Com a edição do Código Civil de 2002 tal discussão perdeu um pouco de sua relevância, uma vez que a responsabilidade objetiva (carro-chefe da lei consumerista)

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foi elevada a padrão juntamente com a responsabilidade subjetiva, num sistema que vem sendo apelidado de "dúplice". Na verdade, em decorrência do art. 927, parágrafo único, a regra da responsabilidade subjetiva ficou praticamente reduzida às relações entre particulares.

Do mesmo modo, a ampliação das hipóteses de revisão contratual trazidas pelo novo Código Civil aproximou muito as relações civis das de consumo, deixando ainda mais embaçada a linha divisória entre elas.

A fragilidade dos conceitos se mostra aparente com a recente e ainda incipiente discussão surgida com a EC nº 45, onde vertentes da jurisprudência trabalhista defendem que todos os tipos de prestação de serviços, inclusive os regidos pelo CDC, estariam sob a competência da Justiça do Trabalho.

Esse breve panorama do tratamento legislativo dado às relações obrigacionais serve para mostrar a artificialidade e instabilidade de qualquer tentativa de compartimentalização. Sempre que o tratamento não for unificado haverá debates doutrinários e jurisprudenciais sobre a delimitação de cada um, ora tendendo para um lado, ora para o outro.

No que concerne às relações de consumo, o momento jurisprudencial indica que o pêndulo tende para a restrição da aplicação do CDC, limitando, como veremos abaixo, o conceito de consumidor.

Assim, passaremos a definir o conceito de cada um dos elementos da chamada "relação de consumo", atentando para as principais correntes doutrinárias, buscando identificar o estado-da-arte do tema.

2. RELAÇÃO DE CONSUMO

Por relação de consumo é de se entender toda relação jurídico-obrigacional que liga um consumidor a um fornecedor, tendo como objeto o fornecimento de um produto ou da prestação de um serviço.

Em geral há uma cumulação de prestação de serviço com fornecimento de produto. Assim, para se determinar qual o regime jurídico a ser aplicado ao caso, é preciso "averiguar qual é o elemento nuclear do vínculo obrigacional: uma obrigação de dar ou uma obrigação de fazer. Tratando-se daquela, a hipótese é de produto; no outro caso, o objeto é um serviço." [01]

Nem sempre a relação de consumo será um negócio jurídico; como veremos abaixo, a lei coloca sob a mesma denominação relações contratuais (negócios jurídicos) e não-contratuais, decorrentes de atos e fatos jurídicos.

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Deste modo, temos que o Código irá atuar de forma preventiva e repressiva nas relações de consumo tanto no âmbito contratual como no extracontratual, tanto no pré-contratual como no pós-contratual.

No plano do direito privado material, o CDC trata sobre os seguintes temas: da responsabilidade civil (arts. 6º, VI; 8º a 28); das práticas comerciais (arts. 6º, I a IV; 29 a 45); e da proteção contratual (art. 6º, V e X; 46-54).

Como veremos mais detalhadamente abaixo, o CDC traz quatro definições diferentes de consumidor: a duas delas (art. 2º, caput e parágrafo único) são aplicadas todas as disposições do Código; a outra (art. 17) as regras sobre responsabilidade civil extracontratual; e para a última categoria (art. 29) as regras sobre proteção contratual e práticas abusivas.

Temos, então, que a proteção do CDC recairá exclusivamente ao consumidor standard (art. 2º, caput) e aos "intervenientes" nas relações de consumo (art. 2º, parágrafo único) somente nas situações de responsabilidade civil contratual (vícios do produto ou serviço). Destarte, a princípio, todas as demais disposições do CDC se aplicariam quase que irrestritamente à coletividade em geral face a redação genérica dos artigos que ampliam o conceito de consumidor.

Essa conclusão leva à interessante reflexão sobre a quantidade de folhas que já foram escritas sobre a definição do conceito standard de consumidor, quando uma parte tão pequena do Código é dedicada exclusivamente a ele.

Não obstante, a fim de identificar claramente os limites de cada uma dessas esferas de proteção, delimitaremos a seguir os elementos básicos das relações de consumo, nos termos dos conceitos dados pelo próprio Código.

3. CONSUMIDOR

Em 1988 foi publicado pelo então promotor de justiça de São Paulo, Herman Benjamin, artigo já clássico onde o autor buscava, com o auxílio de textos de legislação e doutrina estrangeira, delimitar o conceito de consumidor.

Àquela época e ainda hoje o tema é tormentoso:

"Embora o vocábulo consumidor não esteja assentado com um conceito claro, já se podem identificar algumas áreas de disputa conceitual: a) quanto à natureza do sujeito protegido: pessoal natural ou jurídica; b) quanto à necessidade de vínculo contratual: só quando há contrato ou também nos casos de relações jurídicas extracontratuais; c) quanto à finalidade da aquisição do bem ou produto: para uso privado, pessoal, familiar, não

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profissional e comercial; d) quanto à qualidade do objeto da relação de consumo: apenas bens ou também serviços; e) quanto ao tipo de bens: só bens móveis ou também imóveis; f) quanto ao tipo de serviço: só serviços privados ou também serviços públicos." [02]

Na legislação estrangeira não é possível encontrar uma definição uniforme. [03]

Em alguns sistemas simplesmente não há definição legal de consumidor, ficando a cargo da doutrina e jurisprudência fazê-lo – nesses casos, de modo geral, tende-se para uma conceituação mais restrita; [04] nos demais, cada país adota um conceito diferente, de acordo com as suas peculiaridades sociais e econômicas. Onde não há uma legislação consumerista codificada chega a haver diversos conceitos de consumidor, um aplicável para cada situação específica regulada por aquela lei.

A nossa legislação, mesmo codificada, trás quatro definições diferentes de consumidor: uma chamada de ‘consumidor standard’, e outras três de ‘consumidor equiparado’. A que se mostra mais espinhosa é sem dúvida a primeira.

A existência de diversos conceitos no direito positivo se mostra necessária, pois não são somente aqueles participando efetivamente das relações de consumo que estão sujeitos a sofrer danos em decorrência dessas relações; há uma série de situações extracontratuais, bem como pré e pós-contratuais, onde sujeitos a princípio não classificados como consumidores são colocados numa posição semelhante, de modo que não seria justo nem eqüitativo dar-lhes tratamento legislativo diferenciado.

3.1 O consumidor standard

Inicialmente, consumidor é "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final" (art. 2º, caput); em outros termos, é consumidor "qualquer pessoa física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um serviço." [05]

Rizzatto Nunes acrescenta que "a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire (obtém) o produto ou o serviço como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome" [06], ao que, palavras de Roberto Senise Lisboa, resulta em "substancial modificação do princípio geral da relatividade dos efeitos" [07], possibilitando a proteção de terceiro estranho ao contrato – há uma prevalência da "relação de consumo" sobre o "contrato de consumo", na delimitação do âmbito de proteção oferecido pela lei.

Apesar de não haver disposição expressa, ao contrário do que ocorre em relação ao fornecedor, James Marins [08] entende que também o ente despersonalizado pode ser tomado como consumidor, citando como exemplo a entidade familiar. Maria Antonieta Donato [09] o acompanha em parte, discordando apenas da inclusão da

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família nessa situação, e cita como exemplos o condomínio edilício e o espólio – para a autora, cada um dos membros da família deveria pleitear seus interesses individualmente.

Muito antes da edição do CDC, Fábio Konder Comparato, buscando apoio na doutrina estrangeira, buscou delimitar o conceito de consumidor, dando especial atenção à finalidade da aquisição do produto ou serviço:

"O consumidor é, pois, de modo geral, aquele que se submete ao poder de controle dos titulares de bens de produção, isto é, os empresários. É claro que todo produtor, em maior ou menor medida, depende por sua vez de outros empresários, como fornecedores de insumos ou financiadores, por exemplo, para exercer a sua atividade produtiva; e, nesse sentido, é também consumidor. Quando se fala, no entanto, em proteção do consumidor quer-se referir ao indivíduo ou grupo de indivíduos, os quais, ainda que empresários, se apresentam no mercado como simples adquirentes ou usuários de serviços, sem ligação com a sua atividade empresarial própria." [10]

Antes da edição do CDC era comum encontrar esse tipo de definição, muito mais preocupada com a proteção do consumidor pessoa física. Porém, com a lei veio a superação desses conceitos baseados nas lições européia e norte-americana; a legislação brasileira veio com uma proposta muito mais ousada, buscando uma proteção mais ampla e generalizada.

Apesar da disposição inequívoca da lei, surgiu na doutrina, com reflexos na jurisprudência, dissenso sobre quem poderia ser classificado como destinatário final do produto ou serviço.

Duas correntes principais, e antagônicas, formaram-se: uma restringindo o conceito de consumidor, buscando aproximá-lo o mais possível da doutrina européia, enquanto a outra trata de dar maior aplicabilidade à lei, defendendo a sua incidência sobre o maior número de relações jurídico-obrigacionais.

3.1.1 O conceito objetivo de consumidor

Para os juristas que vêem no CDC uma regulamentação para o mercado de consumo em geral, o conceito de destinatário final não pode sofrer restrições, principalmente porque a própria lei não as faz.

Roberto Senise Lisboa [11] vê na expressão destinatário final a adoção pelo CDC da teoria da causa na relação jurídica de consumo, "tornando necessária a análise da causa da aquisição ou da utilização do produto ou do serviço"; a causa da formação da relação de consumo deverá estar relacionada "à transmissão definitiva ou provisória de produto ou de atividade humana remunerada, sem que outra destinação seja objetivada pelo beneficiado (adquirente ou usuário)".

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Não obstante, para a definição do conceito de consumidor deve-se tão somente analisar os critérios objetivos dados pela própria lei, não havendo qualquer necessidade de inquirir sobre aspectos subjetivos. Assim, consumidor é todo aquele que retira o produto ou serviço do ciclo produtivo-distributivo, i.e., aquele que não o revende nem o incorpora na produção de um novo. Podem ser citados como defensores dessa interpretação, com variações, Rizzatto Nunes, Nery Jr., Roberto Senise Lisboa, João Batista de Almeida e James Marins.

Assim, Rizzatto Nunes [12] define como consumidor, além do "destinatário final" que adquire o produto ou serviço para uso próprio (sem finalidade de produção), também quando há a finalidade de produção, "desde que o produto ou serviço (...) sejam oferecidos regularmente no mercado de consumo, independentemente do uso e destino que o adquirente lhes vai dar". Exclui as situações em que o produto ou serviço "é entregue com a finalidade específica de servir como ‘bem de produção’ para outro produto ou serviço e via de regra não está colocado no mercado de consumo como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum não o adquire". [13]

James Marins [14], João Batista de Almeida [15], e Roberto Senise Lisboa [16]

excluem do conceito de consumidor apenas o adquirente de produto que será objeto de transformação ou implementação com reinserção na cadeia produtiva-distributiva, ou simplesmente com o intuito de revendê-lo. Assim, se a implementação ou transformação é feita para o uso próprio do adquirente, ele será o destinatário do produto ou serviço e, portanto, consumidor [17] – não se discute se o bem é de produção (utilizado para implementar a produção) ou não. Mais, como a lei não faz qualquer restrição quando utiliza o termo pessoa jurídica, não caberia ao intérprete/aplicador fazê-lo.

É certo que dessa conceituação estaremos trazendo para a relação de consumo situações que vão contra o senso comum. Porém, bom ou mal, é o que nos é dado pela lei, não cabendo ao intérprete/aplicador impor suas opiniões sobre a norma.

3.1.2 O conceito subjetivo de consumidor

Cláudia Lima Marques [18], adepta da dita "corrente finalista", dá um conceito restritivo de destinatário final: ela o identifica com a pessoa física que retira o bem de mercado, o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, i.e., não pode estar adquirindo para revenda ou uso profissional, "pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu" [19]. Admite, porém, que o profissional pessoa física ou pequena empresa que tenha adquirido um produto fora de seu campo de especialidade, i.e., sem o intuito de obter lucro com a sua futura negociação, possam ser considerados consumidores – note-se que essa definição é intimamente ligada às qualidades econômicas do adquirente.

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Para Maria Antonieta Donato [20] o consumidor deve ser conceituado dentro do âmbito da relação de consumo, não sendo possível fazê-lo sobre o ato de consumo. Assim, "não se analisa o consumidor unicamente em relação à prática do ato, mas sim, em função da qualidade subjetiva daquele que pratica a relação de consumo e em função da destinação que ele dará ao produto", em outras palavras "a finalidade prática do ato e não o ato em si". Não basta que retire o produto do mercado; deve-se mesclar a qualidade do adquirente do produto com a finalidade para que o adquiriu.

Assim, para que a pessoa jurídica, ou a pessoa física em atuação profissional (‘consumidor-profissional’), possa ser considerada consumidora, haveria três fatores de discrímen: o primeiro estaria na aquisição de produto, "retirando-o da cadeia produtiva e, não se caracterizando a aquisição para o uso profissional", i.e., sua utilização para implementar o processo produtivo; o segundo estaria na configuração no caso concreto da vulnerabilidade, havendo, porém, presunção de vulnerabilidade em seu favor; e por fim, deve haver comprovação de que a contratação se deu fora do seu campo de atuação usual. [21]

De acordo com Filomeno [22], o Código teria adotado o conceito econômico de consumidor, é dizer: o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou contrata serviços, como destinatário final, em benefício próprio ou de terceiro, agindo com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.

Assim, somente se justificaria a inclusão da pessoa jurídica como consumidora na medida em que houver efetiva vulnerabilidade econômica em face do fornecedor a ser protegida, o que o citado autor identifica com as pessoas jurídicas que não tenham finalidade lucrativa, pois somente essas seriam "vulneráveis".

Quanto à "vulnerabilidade" utilizada como elemento do conceito de consumidor, Roberto Senise Lisboa [23] tece as seguintes considerações, que subscrevemos integralmente:

"A vulnerabilidade do consumidor é presunção absoluta no mercado de consumo, em face do fornecimento dos produtos e serviços e do domínio da tecnologia e da informação que o fornecedor possui sobre eles.

"É imperativo lembrar que a vulnerabilidade não se constitui, necessariamente, no critério legal para a definição do consumidor e da relação de consumo, pois é ela um posterius, que surge como conseqüência do reconhecimento da existência da relação de consumo. E, por decorrência, de que a aquisição do produto ou do serviço foi realizada por um sujeito de direito que se enquadra na definição legal de consumidor.

"Aquele que vier a ser considerado consumidor é quem se beneficiará

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da presunção de vulnerabilidade diante do fornecedor. E essa presunção é iure et de iure, ou seja, não admite prova em sentido contrário. Mas a vulnerabilidade não é pressuposto do reconhecimento de que um sujeito adquiriu determinado produto ou serviço como consumidor. Pelo contrário. Do reconhecimento da situação de consumidor do sujeito em dada relação jurídica é que se impõe o princípio geral da vulnerabilidade."

É interessante notar que com base no mesmo "conceito econômico de consumidor", Herman Benjamin afirma que o conceito de consumo final e intermediário estão unidos, de modo que, na teoria econômica, consumidor é:

"qualquer agente econômico responsável pelo ato de consumo de bens finais e serviços. Tipicamente, o consumidor é entendido como um indivíduo, mas, na prática, consumidores serão instituições, indivíduos e grupos de indivíduos." [24]

Destarte, não obstante essas considerações, para que a pessoa jurídica possa ser considerada consumidora, além dos requisitos acima, os bens adquiridos devem ser bens de consumo e não de capital (que integram a cadeia produtiva); "aquele que utiliza o bem para continuar a produzir ou na cadeia de serviço" não pode ser considerado consumidor, mas tão somente aquele que "retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (Endverbraucher), aquele que coloca um fim na cadeia de produção". [25] Em outras palavras, consumidor "seria toda pessoa situada no término da cadeia de consumo e que encerra a circulação econômica de um produto ou serviço em vez de sobre ele atuar com vistas a sua transformação, distribuição, fabricação ou prestação." [26]

A justificativa dessa posição mais restritiva é feita com base no argumento de que o consumidor deve receber tratamento especial e diferenciado, e a generalização da aplicação da legislação de proteção ao consumidor, estendendo o rol dos beneficiados por essa proteção, iria terminar por dar tratamento igual para todos, desvirtuando a finalidade do Direito do Consumidor de "proteger a parte mais fraca ou inexperiente na relação de consumo" [27].

Como já notado acima, os defensores desta corrente interpretativa usualmente fundamentam suas posições não tanto nas disposições do CDC, mas mais presos às definições elaboradas antes da publicação da lei, e de doutrina e legislação estrangeira, passando muitas vezes ao largo do texto legal.

Sobre esse ponto é relevante o pensamento de James Marins:

"Esclareça-se, apenas, como premissa para este estudo, nosso entendimento de que havendo no direito positivo conceito preciso de consumidor – como em verdade ocorre com o art. 2º aqui objeto do nosso

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estudo –, e que albergue conceito próprio induvidoso, não se pode pretender submetê-lo às teorias jurídicas informadoras de sistemas alienígenas, teorias essas ora textualmente recebidas pelo legislador, ora textualmente afastadas em prol da elaboração de um sistema próprio." [28]

"Condicionar-se o conceito de consumidor à constatação de sua hipossuficiência seria, em verdade, enfraquecer o sistema protetivo inaugurado pelo CDC, deslocando para o movediço critério subjetivo conceito que, no nosso sistema, é claramente e intencionalmente informado pela objetividade." [29]

3.1.3 As posições do STJ e STF

O STJ sempre buscou evitar a aplicação indiscriminada do CDC, evitando assim, segundo entendiam os ministros, um "desvirtuamento do sistema protetivo eleito pelo Código". Isso não impediu que de início houvesse uma interpretação objetiva do conceito de consumidor, com leves temperamentos, para excluir a incidência do CDC em situações em que fosse verificado o expressivo porte financeiro ou econômico: da pessoa jurídica tida por consumidora; do contrato celebrado entre as partes; de outra circunstância capaz de afastar a hipossuficiência [30]

econômica, jurídica ou técnica. [31]

Porém, recentemente, houve uma virada de entendimento, pacificando-se o conceito subjetivo de consumidor, praticamente excluindo as pessoas jurídicas consumidoras do âmbito de proteção do Código.

Neste sentido é o atual posicionamento da Min. Nancy Andrighi [32], outrora ardente defensora da corrente contrária: não basta que o consumidor (adquirente de produto ou serviço, ou utente do serviço público) seja "destinatário final fático do bem ou serviço; deve ser também o seu destinatário final econômico, isto é, a utilização deve romper a atividade econômica para o atendimento de necessidade privada, pessoal, não podendo ser reutilizado, o bem ou serviço, no processo produtivo, ainda que de forma indireta." E mais adiante afirma que a relação de consumo "não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro."

Mais uma vez, a jurisprudência tempera a posição doutrinária, admitindo exceções:

"Em relação a esse componente informador do subsistema das relações de consumo, inclusive, não se pode olvidar que a vulnerabilidade não se define tão-somente pela capacidade econômica, nível de informação/cultura ou valor do contrato em exame. Todos esses elementos podem estar presentes

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e o comprador ainda ser vulnerável pela dependência do produto; pela natureza adesiva do contrato imposto; pelo monopólio da produção do bem ou sua qualidade insuperável; pela extremada necessidade do bem ou serviço; pelas exigências da modernidade atinentes à atividade, dentre outros fatores." [33]

Se antes a demonstração da inexistência de vulnerabilidade fazia excluir a aplicação do CDC, agora somente a demonstração da vulnerabilidade convencerá os julgadores de que a pessoa jurídica é consumidora.

Chamado a decidir questão sobre o campo de incidência do CDC, o STF incidentalmente manifestou-se sobre o conceito de consumidor. Eis o trecho do voto condutor do Min. Eros Grau sobre a questão:

Como observei também em outra oportunidade [34], o Código define "consumidor", "fornecedor", "produto" e "serviço". Entende-se como "consumidor", como "fornecedor", como "produto" e como "serviço", para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, o que descrito está no seu art. 2º e no seu art. 3º e §§1º e 2º.

Inútil, diante disso, qualquer esforço retórico desenvolvido com base no senso comum ou em disciplinas científicas para negar os enunciados desses preceitos normativos. Não importa seja possível comprovar, por a + b, que tal ente ou entidade não pode ser entendido, economicamente, como consumidor ou fornecedor. O jurista, o profissional do direito não perde tempo em cogitações como tais. Diante da definição legal, força é acatá-la. Cuide apenas de pesquisar os significados dos vocábulos e expressões que compõem a definição e de apurar da sua coerência com o ordenamento constitucional.

O art. 2º do Código diz que "consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". E o § 2º do art. 3º define como serviço "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista". Assim temos que, para os efeitos do Código do Consumidor, é "consumidor", inquestionavelmente, toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. Isso não apenas me parece, como efetivamente é, inquestionável. Por certo que as instituições financeiras estão, todas elas, sujeitas ao cumprimento das normas estatuídas pelo Código de Defesa do Consumidor. [35]

Apesar de não haver um aprofundamento na definição de o que seria "destinatário final", ficou claro o dissídio entre a posição sufragada pelo STF, mais ligada à definição objetiva de consumidor, e aquela que vem sendo adotada pelo STJ.

3.2 O consumidor por equiparação

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Diversas pessoas, ainda que não possam ser consideradas consumidoras no sentido estrito, podem vir a ser atingidas ou prejudicadas pelas atividades dos fornecedores no mercado, vindo a intervir nas relações de consumo de outra forma a ocupar uma posição de vulnerabilidade; anda que não possam ser consideradas consumidores stricto sensu, a posição preponderante do fornecedor a posição de vulnerabilidade dessas pessoas justificam a equiparação feita pelo legislador. [36]

A conceituação legal não se ocupa apenas da aquisição efetiva de produtos e serviços, mas também com a sua potencial aquisição – assim, também estão protegidos os potenciais consumidores. [37]

3.2.1 O interveniente nas relações de consumo

"Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo" (art. 2º, parágrafo único).

Esse parágrafo é de difícil interpretação, e os comentadores, mais preocupados com o caput deste artigo, não se aprofundam no tema. A dificuldade está principalmente em construir uma interpretação desta norma de modo que não se confunda com as demais regras de abertura do Código, atribuindo-lhe conteúdo e significado próprios.

Rizzatto Nunes [38] afirma que "a hipótese dessa norma diz respeito apenas ao atingimento da coletividade, indeterminável ou não, mas sem sofrer danos, já que neste caso o art. 17 enquadra a questão", o que não diz muito.

Fábio Ulhoa [39] define as pessoas abrangidas por essa norma não como integrantes do grupo de consumidores em potencial, mas "as pessoas do relacionamento social do consumidor que podem sofrer eventuais efeitos indiretos da relação de consumo". Porém, parece-nos que essas pessoas estão mais bem colocadas nas demais definições trazidas pelo Código: quando forem consumidoras efetivas, ou quando forem vítimas de acidente de consumo, ou ainda estiverem expostas às práticas comerciais ou contratuais.

Pela leitura dos demais artigos, fica difícil enxergar um campo de incidência para o parágrafo único, do art. 2º.

Se a pessoa interveio na relação de consumo, ou será fornecedor ou será consumidor. Eliminando aqueles definidos no caput do art. 3º (fornecedores) e no caput do art. 2º (consumidores), não sobra ninguém!

Seguindo raciocínio semelhante, Mirella Caldeira [40] conclui que a função deste dispositivo é "reforçar a idéia da tutela dos interesses difusos e coletivos", que já têm previsão nos art. 6º, VI e 81.

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É dizer, enquanto o caput do art. 2º garante a proteção individual do consumidor, o parágrafo único do mesmo artigo garante a sua proteção coletiva.

3.2.2 A vítima de acidente de consumo

"Para os efeitos desta Seção [da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento" (art. 17).

Assim, qualquer vítima de um produto ou serviço receberá a proteção do CDC como se consumidor fosse, mesmo que não possa ser assim considerado com base na definição do art. 2º, aplicando-se integralmente as normas sobre responsabilidade objetiva pelo fato do produto [41], independente de haver qualquer relação prévia entre fornecedor e vítima, não se exigindo que a vítima seja consumidor final. [42]

Mesmo o adquirente intermediário poderá se valer das regras do CDC para buscar a recomposição de seus danos, pouco importando que seja pessoa física ou jurídica, privada ou pública, pequena ou grande empresa, com ou sem intuito de lucro. Nesse ponto o silêncio da doutrina confirma que distinção alguma há entre as vítimas do acidente de consumo. [43]

Tal argumentação permite concluir que até mesmo a pessoa jurídica de forma geral, inclusive aquele que adquiriu o produto para revenda, está acobertado por esta disposição legal.

Outrossim, tal equiparação somente é valida na responsabilidade civil decorrente de fato do produto ou serviço, i.e., responsabilidade extracontratual; quando houver vício no produto ou serviço, "não há dispositivo que autorize o intermediário que não adquira ou utilize o produto ou serviço como destinatário final a agir com base no Código do Consumidor", de modo que o "intermediário que adquirir produto sem que o faça na condição de adquirente ou usuário final" deverá se valer das disposições do Código Civil, "podendo, entretanto, lançar mão das normas do Código do Consumidor referentes à proteção contratual e às práticas comerciais" [44], com base no art. 29.

3.2.3 A pessoa exposta às práticas comerciais e contratuais

"Para os fins deste capítulo [das práticas comerciais] e do seguinte [da proteção contratual], equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas" (art. 29).

Assim, estão protegidos todos os potenciais consumidores, "sujeitos à mesma proteção que a lei reconhece aos consumidores no tocante às práticas comerciais e contratuais", pois a tutela nessas áreas "não se pode restringir ao momento posterior ao acordo entre o consumidor e o fornecedor", devendo antecedê-lo, para que tenha

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um caráter preventivo e mais amplo". [45]

"Uma vez existindo qualquer prática comercial, toda a coletividade de pessoas já está exposta a ela, ainda que em nenhum momento se possa identificar um único consumidor real que pretenda insurgir-se contra tal prática." [46]

Herman Benjamin esclarece ser "indiferente estejam essas pessoas identificadas individualmente ou, ao revés, façam parte de uma coletividade indeterminada composta só de pessoas físicas ou só de pessoas jurídicas, ou, até, de pessoas jurídicas e de pessoas físicas. O único requisito é que estejam expostas às práticas comerciais e contratuais abrangidas pelo Código." [47]

Cláudia Lima Marques [48] inclui entre as pessoas expostas às práticas abusivas também os agentes econômicos, sendo-lhes facultado o manejo "[d]as normas especiais do CDC, seus princípios, sua ética de responsabilidade social no mercado, sua nova ordem pública, para combater as práticas comerciais abusivas"; apontando como único limite a idéia de prejuízo, direto ou indireto, para os consumidores diante da prática comercial abusiva. Esse entendimento se faz possível pela não inclusão de qualquer tipo de limitação na definição do art. 29, ao contrário do que ocorre no art. 2º, caput, onde há referência expressa ao ‘destinatário final’. [49]

4. FORNECEDOR

Fornecedor, segundo a definição legal (CDC 3º), "é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". Assim, não se exige que o fornecedor tenha personalidade jurídica, e nem mesmo capacidade civil. Em suma, fornecedor é todo e qualquer participante do ciclo produtivo-distributivo. [50]

A definição que nos é dada pela lei não exclui nenhum tipo de pessoa jurídica, seja sociedade empresarial, com ou sem fins lucrativos, fundações públicas ou privadas, sociedades de economia mista, empresas públicas, órgãos da Administração direta, etc.. [51]

Atente-se que nem todo fornecedor é empresário. Assim, o art. 966, parágrafo único, do CC, exclui o profissional liberal do conceito de empresário, mas não há dúvidas de que ele é tratado como fornecedor pelo CDC, ainda que mereça tratamento diferenciado (art. 14, 4º, do CDC). As sociedades simples (CC 981 e 982) não são empresárias, mas isso não lhes afasta da incidência do CDC. Também o Estado, ostensivamente quando atua como agente econômico ou prestando serviços

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públicos mediante remuneração direta [52], está abrangido pelo conceito de fornecedor. [53]

Filomeno enquadra na definição de fornecedor todos que "propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título." [54]

Para Cláudia Lima Marques [55], o que caracteriza o fornecedor de produtos é o desenvolvimento de atividades tipicamente profissionais. Já quanto ao prestador de serviços, basta que a atividade seja habitual ou reiterada, não se exigindo que o prestador seja "profissional" da área.

Já as entidades associativas e os condomínios em edificações, diz Filomeno [56], não podem ser considerados fornecedores em face de seus associados e condôminos, pois "seu fim ou objetivo social é deliberado pelos próprios interessados, em última análise, sejam representados ou não por intermédio de conselhos deliberativos, ou então mediante participação direta em assembléias gerais que, como se sabe, são os órgãos deliberativos soberanos nas chamadas ‘sociedades contingentes’". Porém, se a entidade associativa tiver como fim precípuo a prestação de serviços, cobrando mensalidade ou algum outro tipo de contribuição, deve ser considerada fornecedora desses serviços. [57]

4.1 Elementos característicos do fornecedor

4.1.1 Atividade econômica

Por atividade se entende o "conjunto de atos ordenados em função de um determinado objetivo (...), devendo ser avaliada de forma autônoma em relação aos atos singulares de que é composta"; de onde se concluí não bastar a prática de atos isolados para que se caracterize a figura do fornecedor. "Qualquer ato singular deve poder ser reconduzido a uma atividade para ser considerado ato de fornecimento e submeter-se às normas do CDC". [58]

Ainda, pela análise do dispositivo legal que define quem pode ser considerado fornecedor, temos que não bastará o exercício de qualquer atividade, mas sim de uma atividade econômica.

4.1.2 Profissionalismo

Outrossim, tal atividade econômica deve ser desenvolvida com profissionalismo, i.e., com regularidade, objetivo de satisfação de necessidade alheia, e o propósito de obter um ganho. [59]

A regularidade consiste no exercício constante e estável da atividade, de modo que, como ressalta Flávia Püschel [60], não são considerados profissionais

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aqueles que exercem atividade econômica "acidentalmente e cuja organização exaure sua função no cumprimento do próprio ato para o qual foi criada". Porém, é importante ressaltar que não se exige a habitualidade da atividade – i.e., que seja ininterrupta – para que se configure uma relação de consumo; a atividade comercial sazonal ou eventual não obsta a incidência das regras do CDC. De acordo com Rizzatto Nunes, a atividade que ocorra com certa regularidade, ainda que não de forma contínua, com o objetivo de auferir lucros, basta para que se configure a relação de consumo. [61]

É indispensável que o desenvolvimento da atividade econômica seja voltado para a satisfação de necessidade alheia, pouco importando se para poucos ou para muitos, não sendo possível a caracterização de profissionalismo na pessoa que produz exclusivamente para a satisfação de necessidade pessoal.

Quanto ao último elemento, a obtenção de ganho, há divergência doutrinária.

Para alguns – como Giuseppe Ferri e Tullio Ascarelli [62] – deverá haver finalidade de obtenção de lucro, de incremento no patrimônio, de modo que as entidades que desenvolvem atividades sem fins lucrativos não seriam consideradas fornecedoras.

Porém, prevalece que basta ter "por objetivo buscar o reembolso dos fatores de produção empregados ou evitar perdas e gastos, sem procurar o incremento patrimonial propriamente dito." [63] Entender de outro modo poderia fomentar a concorrência desleal entre entidades sem fins lucrativos – sujeitas, à princípio, à responsabilidade subjetiva, e ressalvada a aplicação dos arts. 927, parágrafo único e 931, do CC – e as com finalidade lucrativa, que, tendo que incluir no custo de sua operação o ônus de responder objetivamente aos danos que der causa, não conseguiria competir com os preços da primeira. [64]

"Além disso, o objetivo de ganho deve referir-se à atividade em si, e não aos atos singulares, ou seja, não há necessidade de que cada ato singular seja praticado com o objetivo de obter ganho. O fornecedor é responsável, por exemplo, por produtos distribuídos gratuitamente como amostra, pois, embora não haja remuneração por tais amostras, tal distribuição gratuita faz parte do exercício da atividade econômica profissional do fornecedor." [65]

4.1.3 Autonomia

Por fim, para que se caracterize determinado ente como fornecedor, é preciso que exerça sua atividade econômica de forma autônoma, i.e., não-subordinada. A definição de atividade autônoma é obtida como contraposição de atividade subordinada: desenvolvida na dependência de outrem e cujos resultados se referem a bens alheios ou a serviços depois fornecidos por outrem. [66] Assim, aquele que exerce

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atividade na qualidade de empregado de outrem, não é fornecedor, mas está inserido na cadeia produtiva, e, portanto, é fornecedor, aquele que desenvolve suas atividades

4.2 Espécies de fornecedor

Estabelecida a amplitude do conceito de fornecedor (art. 3º), cabe agora traçar eventuais diferenças entre os diversos participantes da cadeia produtiva-distributiva. A princípio, todos são tratados de forma uniforme ao longo do Código, e referidos sob a denominação comum de fornecedor. Há uma exceção, porém: na seção que trata da ‘responsabilidade por fato do produto ou serviço’ (arts. 12-14), a lei dá tratamento específico e diferenciado para o produtor [67], o comerciante, e o prestador de serviços.

4.2.1 Produtor final e produtor de matéria prima ou parte componente

De acordo com as etapas da produção, é possível identificar três espécies de produto: a matéria-prima (materiais e substâncias destinados à fabricação de produtos), a parte componente (que se destina à incorporação a um produto final), e o produto final (pronto para servir ao uso a que se destina). [68]

Um mesmo produto pode, dependendo das circunstâncias, estar enquadrado em qualquer uma dessas categorias, dependendo, sobretudo, de uma análise da função do produto e do modo como é oferecido no mercado.

Perante o consumidor tal distinção não apresenta relevância prática nas questões relativas ao vício do produto, em razão da responsabilidade solidária imposta pela lei (CDC, art. 18). Mas quando adentramos no tema da responsabilidade pelo fato do produto mostra-se de grande importância, uma vez que, de acordo com Flavia Püschel [69], "cada produtor responde pelos defeitos surgidos durante o seu próprio processo de produção ou em fases anteriores", de modo que o "produtor final responde pelos defeitos da parte componente, bem como pelos defeitos da matéria-prima empregada na produção da parte componente (...), assim como por aqueles resultantes diretamente de sua própria atividade."

4.2.2 Produtor real, presumido e aparente

Produtor real é aquele que participa de maneira autônoma no processo de produção de um bem, contribuindo em qualquer medida "para a confecção de um produto apto para a distribuição, seja de um produto final, seja de uma parte componente, seja de uma matéria-prima." [70]

Produtor presumido é o importador. Tal ficção legal existe como concretização do postulado que determinada a facilitação da defesa do consumidor em juízo, evitando que ele tenha que buscar a reparação em face do produtor real estrangeiro.

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Produtor aparente é aquele que simplesmente apõe ao produto o seu nome ou marca, de modo a ocultar a indicação do produtor real do produto, criando a aparência de ter ele mesmo produzido o bem. Ainda que não tenha efetivamente participado da produção, o produtor aparente é tratado como se tivesse em razão da situação de aparência criada para o consumidor. Atente-se, porém, que não fica excluída a eventual responsabilidade do produtor real. [71]

4.2.3 Comerciante

Comerciante, na definição de Flavia Püschel [72], é todo sujeito que distribui produtos no âmbito de sua atividade profissional, sem exercer ele próprio atividade de produção.

Para diferenciar a atividade produtiva da mera distribuição, deve ser levada em conta "a influência da atividade em questão sobre a configuração e qualidades essenciais do produto". Assim, se há "influência sobre a estrutura ou qualidades essenciais do bem, trata-se de atividade de produção. Existindo, ao contrário, apenas uma manipulação insignificante, trata-se de atividade de simples distribuição" [73].

O tratamento dado pelo CDC ao comerciante é diferente dos demais fornecedores. Enquanto a responsabilidade pelo vício do produto é solidária de todos os participantes da cadeia produtivo-distributiva, o comerciante somente é responsabilizado pelo fato do produto direta e isoladamente quando houver má-conservação do produto, ou ainda, de forma subsidiária, quando o produtor final [74]

do produto não for suficientemente identificado, impedindo que o consumidor acione diretamente o produtor real.

4.2.4 Prestador de serviços

Prestador de serviços é aquele ator da cadeia produtiva-distributiva que presta qualquer tipo de atividade no mercado de consumo, envolvendo ou não o concomitante fornecimento de produto.

Quando houve fornecimento de produto juntamente com a prestação de serviços, deverá ser analisada qual a atividade preponderante para que se possa dar o tratamento legislativo adequado à relação de consumo.

4.3 O Poder Público como fornecedor

O Código, em seu art. 3º, diz que o fornecedor pode ser ente público ou privado, i.e., inclui-se no conceito de fornecedor o próprio Poder Público, "por si ou então por suas empresas públicas que desenvolvam atividade de produção, ou ainda as concessionárias de serviços públicos" [75].

Em face da redação explícita da lei, não há como negar a sua incidência em

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relação ao Poder Público, sempre que configurados os elementos acima expostos. Já quanto ao enquadramento ou não de todas as atividades exercidas pelo Poder Público veremos mais adiante quando for debatida delimitação legal do serviço.

5. PRODUTO

Produto, na econômica definição do CDC, "é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial" (art. 3º, §1º). Bens, por sua vez, são coisas úteis aos homens, que provocam a sua cupidez, sendo objeto de apropriação privada; assim, bens econômicos são as coisas úteis e raras, suscetíveis de apropriação. [76]

Filomeno resume, conceituando produto como "qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final". [77]

É de relevância a classificação dos bens com base em sua taxa de consumo (CDC 26): bens duráveis (bens tangíveis que normalmente sobrevivem a muitos usos), bens não duráveis (bens tangíveis que normalmente são consumidos em um ou em alguns poucos usos). [78] O simples fato de o produto não se extinguir numa única utilização não lhe retira o status de não durável – "o que caracteriza essa qualificação é sua maneira de extinção ‘enquanto’ é utilizado" [79].

Surge a dúvida de onde classificar os produtos descartáveis, que têm essência de duráveis, mas vida útil de não-duráveis. Rizzatto Nunes [80] defende que, não havendo tratamento legislativo específico, e como o produto não-durável tem características diversas, o descartável deve receber o tratamento dispensado ao durável.

Uma outra classificação se mostra relevante para fins de se determinar a incidência ou não da legislação consumerista: bem de insumo, e bem de custeio.

Bem de insumo, ou de produção, é aquele "utilizado para fins de transformação e posterior transmissão"; enquanto bem de custeio, ou de consumo, é "a coisa adquirida para desenvolvimento da própria atividade, como instrumento hábil para a consecução dos fins objetivados, sem qualquer transferência para a clientela". [81] Roberto Senise Lisboa [82] entende não ser razoável a exclusão pura e simples do bem de insumo da proteção do CDC, uma vez que a lei não faz qualquer ressalva; a limitação deve ser feita somente com base na finalidade (motivo) da aquisição do produto (consumo como destinatário final), de modo que "o bem transformado para uso posterior próprio não retira do adquirente ou utente a situação jurídica de consumidor". No mesmo sentido, Rizzatto Nunes [83] defende que o CDC é aplicado nos casos em que os produtos e serviços são oferecidos no mercado de consumo para a aquisição por qualquer pessoa como destinatária final, independente

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do uso que o adquirente faça, para a produção ou não de outros produtos ou serviços.

Outra classificação extremamente útil nos é trazida por Roberto Senise Lisboa [84] quanto à substituição das peças: entre produto compósito e produto essencial (não compósito). Produto compósito "é aquele resultante do justaposicionamento de peças e componentes que podem ser substituídos sem que se proporcione a sua inadequação", enquanto produto essencial "é aquele que não pode ter qualquer de seus componentes retirados ou substituídos, sob pena de comprometer a sua substância.", de modo que seus elementos são insuscetíveis de dissociação. Este "não pode ser reparado no caso de existência de vício intrínseco, cabendo ao consumidor, neste caso, a adoção das outras soluções propugnadas pelo legislador (redibição, estimação ou troca)", enquanto o produto compósito, apresentando vício em alguma peça, ao fornecedor será aberto o prazo legal para realizar os reparos necessários.

Por fim, é relevante ressaltar que o produto (assim como o serviço) gratuito, "amostra grátis", também está regulado pelo CDC (art. 39, parágrafo único), estando sujeito a todas as suas regras.

6. SERVIÇO

Serviço "é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista" (CDC3º, §2º).

Roberto Senise Lisboa [85] ressalta que a lei somente excepciona os serviços prestados em relações trabalhistas, e nenhum outro mais. Assim, haverá relação de consumo sempre que preenchidos os requisitos legais, pouco importando "que o serviço, como atividade remunerada, seja de natureza civil, comercial ou administrativa."

Por outro lado, estariam excluídos da aplicação do CDC, segundo Filomeno [86], as relações locatícias de imóveis, mesmo quando firmada entre pessoas jurídicas; justifica tal posição na existência de legislação própria (Lei nº 8245/91), que contém ainda dispositivo contra prática abusiva (denúncia vazia na vigência de contrato por prazo determinado, art. 4º). Tal posição se coaduna, outrossim, com o posicionamento reiterado do STJ [87], que tem, porém, aplicado CDC em relação à administradora de imóveis [88].

Outrossim, a utilização da expressão "mediante remuneração", ao invés de "oneroso", significaria abranger também os serviços remunerados de forma indireta – a lei se refere à remuneração do serviço e não à sua gratuidade. [89]

Assim, "os contratos unilaterais de prestação de serviços e os contratos

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gratuitos puros" [90] não são regidos pelo CDC, mesmo que prestados por sujeito que normalmente atua como fornecedor no mercado de consumo, pois não haverá a necessária onerosidade da relação obrigacional.

Classificam-se os serviços em "duráveis" e "não-duráveis"; estes são os que se esgotam uma vez prestados; aqueles são os que têm continuidade no tempo em decorrência de estipulação contratual, e os que deixam como resultado um produto. [91]

6.1 Serviços públicos

"Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses que houver definidos como próprios no sistema normativo" [92].

Filomeno [93] entende que "serviços" são atividades, benefícios ou satisfações que são oferecidas à venda; e que "mediante remuneração" não se refere a tributos, taxas ou contribuições de melhoria, pois aí haveria relação jurídica de natureza tributária, e não de consumo – "contribuinte não se confunde com consumidor". Admite apenas a inclusão dos serviços remunerados por tarifas em sua definição.

Já para Cintra do Amaral [94], sempre que se tratar de serviço público, seja ele prestado diretamente pelo Estado ou por concessionária, não há que se falar em aplicação do CDC; nos serviços públicos o Estado sempre figura como responsável pelos eventuais danos decorrentes do serviço, enquanto que nas relações de consumo não haveria responsabilidade estatal, mas tão somente a sua intervenção como regulador das relações privadas. Assim, não seria possível confundir o consumidor com o contribuinte.

Por outro lado, para Rizzatto Nunes [95] estão incluídas no conceito de serviço, além da atividade privada, "todas as atividades oferecidas pelos órgãos públicos diretamente ou por suas empresas públicas ou de economia mista, as concessionárias e permissionárias ou qualquer outra forma de empreendimento" – i.e., todos os serviços públicos, sem ressalvas.

Já para Regina Helena Costa [96], "é a exigência de remuneração específica pela prestação de determinado serviço público que vai determinar sua sujeição à disciplina legal das relações de consumo", de modo que somente a "prestação de serviços públicos, específicos e divisíveis" (CTN, art. 79, II e III), remunerados por taxa ou tarifa, estariam sujeitos à disciplina do CDC, com a exclusão de todos os demais.

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Num primeiro momento Roberto Senise Lisboa [97] defendeu que quando a lei excluiu expressamente as relações trabalhistas do rol das prestações de serviço por si reguladas, incluiu todas as demais, sem exceção, inclusive as de natureza administrativa, prestadas pela administração pública direta ou indireta.

Revendo sua posição [98], o referido autor passou a defender ser necessária a análise da forma de pagamento da remuneração e a natureza do serviço público desempenhado a fim de se aferir a incidência ou não da legislação de consumo, pois considera-se serviço, para fins da lei, "toda a atividade remunerada lançada no mercado de consumo pelo órgão público".

Destarte, somente haverá relação de consumo com a administração pública (direta ou indireta) quando a aquisição ou utilização do serviço se der mediante pagamento direito. Isso exclui "praticamente todas as relações jurídicas tributárias" da regulação do CDC, "uma vez que o pagamento de impostos e taxas é dirigido para o cofre público, sendo as verbas obtidas pelo Poder Público repassadas para cada setor da atividade pública, de acordo com o orçamento previamente elaborado pela Administração". Para o autor, os impostos, mesmo as taxas, não teriam a especificidade nem a divisibilidade necessárias para a caracterização de relação de consumo.

Por outro lado, afirma ser indiscutível a aplicabilidade do CDC aos serviços remunerados por tarifa, que é "genuína remuneração pelo serviço prestado pelo órgão público ou pela entidade da Administração indireta, porque o destinatário final se utiliza da atividade estatal a ele fornecida em razão do pagamento da prestação diretamente vinculada a essa atividade" [99].

Mais, Roberto Senise Lisboa [100] ainda defende que os serviços tipicamente estatais, que por natureza são uti universi (tais como segurança, justiça, e saúde pública), não estariam jamais sujeitos à regulação do CDC. Ainda, o Estado está isento de responsabilidade, seja por que regime for, em ralação aos atos de império e pelo exercício do poder de polícia.

Por outro lado, os serviços públicos impróprios, que podem ser prestados uti singuli, seriam invariavelmente submetidos ao regime do CDC. E resume: "a Administração Pública, direta ou indireta, deve se submeter às normas do Código de Defesa do Consumidor sempre que fornecer um serviço público uti singuli, mediante o pagamento diretamente efetuado pelo consumidor a título de prestação correspondente."

O entendimento do STJ [101], seguindo essa orientação, é de que a prestação de serviço público não configura relação de consumo. Segundo esse entendimento, somente quando os serviços e produtos são oferecidos no "mercado de consumo" poderia haver relação de consumo, de modo que a prestação de serviço público típico,

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aquele remunerado por tributo (em oposição ao atípico, remunerado por tarifa), ficaria excluída da incidência do CDC.

Semelhante é o entendimento do STF [102] sobre o tema, negando de forma peremptória que não há relação de consumo entre o poder público e contribuinte.

Outrossim, conforme se extrai de definição de fornecedor adotada neste trabalho, esta posição se encontra em perfeita harmonia com a legislação consumerista, uma vez que não há como considerar que o serviço público típico esteja colocado no mercado de consumo.

6.2 Atividades bancárias, financeiras e de crédito

Quanto às atividades bancárias, financeiras e de crédito, sobre as quais se discutia a possibilidade de regulamentação através de lei ordinária, o STF pacificou a questão – ADI 2591 – determinando a sujeição de tais atividades às regras do CDC, afastando, porém, do seu campo de aplicação

"a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros".

Afirmou-se ainda que somente é necessária a edição de lei complementar para a regulamentação da estrutura do sistema financeiro – CF, art. 192.

Ademais, tal decisão pouco contribuiu para a definição do conceito de consumidor, limitando-se a defini-lo, como a lei, como sendo o destinatário final dos serviços.

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Notas

01 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade, p. 189.

02 Herman Benjamin, ‘O conceito jurídico de consumidor’, p. 71.

03 V. Herman Benjamin, ‘O conceito jurídico de consumidor’, p. 71-78.

04 Cf. James Marins, in: Código comentado, p. 19-20 e notas.

05 Filomeno, in: Código comentado, p. 31.

06 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 88.

07 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 159.

08 James Marins, in: Código comentado, p. 21.

09 Maria Antonieta Donato, Proteção ao consumidor, p. 78-80.

10 Fábio Konder Comparato, ‘A proteção do consumidor’, p. 90-91.

11 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 6 e 29-32.

12 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 87-98.

13 Em sentido semelhante: "A lei é clara ao classificar como consumidor a pessoa jurídica, desde que possa subsumir-se no enquadramento normativo dos conceitos de consumidor que o CDC estabelece. Há polêmica no Brasil acerca do tema, havendo quem queira distinguir onde a lei não o faz, considerando consumidora

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a pessoa jurídica apenas quando adquira produto ou se utilize de serviço que não seja considerado insumo para sua atividade empresarial. Para essa corrente restritiva, indústria de automóveis que adquire computadores para seu escritório não seria consumidora, pois os computadores melhoram a sua produtividade e, nessa condução, são considerados insumos. Levada à sua última conseqüência, a tese restritiva nega vigência ao art. 2º, caput, do CDC, pois, para os que a defendem, praticamente nunca a pessoa jurídica seria consumidora." Nery Jr., in: Código comentado, p. 494.

14 James Marins, in: Código comentado, p. 29.

15 João Batista de Almeida, Manual, p. 35-40.

16 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 32, e Responsabilidade civil, p. 166-167.

17 É o que Roberto Senise Lisboa chama de ‘teoria da causa final’, isto é, o ‘para que’ o fato ocorreu, não tendo nenhuma relação com o seu ‘porquê’ (Responsabilidade civil, p. 169-183).

18 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 71-74.

19 Uma nota se faz imprescindível sobre esse argumento: todo e qualquer bem adquirido pela empresa está incluído no preço final ao adquirente de seus produtos, pouco importando que faça ou não parte da cadeia produtiva, ou alguém duvida sinceramente que o cafezinho do diretor da montadora de carros não esteja embutido no preço final dos veículos vendidos aos consumidores?

20 Maria Antonieta Donato, Proteção ao consumidor, p. 68 e 108.

21 "[P]oderá ser conferida a tutela protecionista dos consumidores às pessoas jurídicas ou aos consumidores-profissionais desde que fundada ‘na ausência de similitude entre o bem e o serviço que são objeto do ato para o qual o profissional reclama a sua qualidade de consumidor, e os bens ou serviço que são objeto de sua especialidade comercial ou profissional’." (Thierry Bougoignie apud Maria Antonieta Donato, Proteção ao consumidor, p. 108).

22 Filomeno, in: Código comentado, p. 27; 31-37.

23 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 165.

24 Cf. David W. Pearce, The dictionary of modern economics, p. 80 apud Herman Benjamin, ‘O conceito jurídico de consumidor’, p. 71.

25 Cf. Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 71.

26 Herman Benjamin, ‘O conceito jurídico de consumidor’, p. 72.

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27 Herman Benjamin, ‘O conceito jurídico de consumidor’, p. 77.

28 James Marins, in: Código comentado, p. 20.

29 James Marins, in: Código comentado, p. 23.

30 Note-se a utilização pouco técnica desse termo, uma vez que o CDC somente faz referência à hipossuficiência para fins processuais; o termo mais apropriado seria "vulnerabilidade", ainda que o Código tampouco o eleja como elemento definidor de consumidor – a vulnerabilidade é conseqüência de ser consumidor.

31 Cf. Nancy Andrighi, in: Conflito de Competência nº 41.056-SP

32 Nancy Andrighi, in: REsp 476.428-SC.

33 Loc. cit.

34 In: ‘Definição legal de consumidor’, p. 42-41.

35 Eros Grau, voto in: ADI nº 2591.

36 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 74-75.

37 Filomeno, in: Código comentado, p. 38.

38 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 99.

39 Fábio Ulhoa, in: Comentários, coord. por Juarez de Oliveira, p. 148-149.

40 Mirella Caldeira, ‘O conceito de consumidor no parágrafo único do art. 2º do CDC’.

41 Cf. Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 277.

42 Herman Benjamin, in: Comentários, coord. por Juarez de Oliveira, p. 80-81; Maria Antonieta Donato, Proteção ao consumidor, p. 195.

43 V. James Marins, in: Código comentado, p. 140.

44 James Marins, in: Código comentado, p. 27.

45 Fábio Ulhoa, in: Comentários, coord. por Juarez de Oliveira, p. 148.

46 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 100.

47 Herman Benjamin, in: Código comentado, p. 253.

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48 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 397.

49 No mesmo sentido: Herman Benjamin, ‘O código brasileiro de proteção ao consumidor’, nota 47, p. 19.

50 Cf. Denari, in: Código comentado, p. 174.

51 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 101.

52 Mas também quando há remuneração indireta: Rizzatto Nunes, Comentários, p. 112-113.

53 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 59-61.

54 Filomeno, in: Código comentado, p. 43.

55 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 93.

56 Filomeno, in: Código comentado, p. 45.

57 Filomeno, in: Código comentado, p. 46.

58 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 62.

59 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 63.

60 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 63.

61 Cf. Rizzatto Nunes, Comentários, p. 101-102.

62 Apud Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 65.

63 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 65.

64 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 66.

65 Flávia Püschel, Responsabilidade, nota 102, p. 65.

66 Tullio Ascarelli apud Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 67.

67 Utilizamos aqui a terminologia sugerida por Flávia Püschel (Responsabilidade, nota 77, p. 57-58), utilizando o termo produtor para referir a todos aqueles enumerados no art. 12, caput, uma vez que todos recebem indistintamente o mesmo tratamento legal, além de "remeter à idéia de produção, criação, isto é, de poder para influir sobre as características do produto."

68 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 71-72.

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69 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 73-74.

70 Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 77.

71 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 82.

72 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 82.

73 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 83.

74 Cf. Flávia Püschel, Responsabilidade, p. 86.

75 Filomeno, in: Código comentado, p. 43. No mesmo sentido: Rizzatto Nunes, Comentários, p. 101; Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 9-10.

76 Sílvio Rodrigues, Direito civil, v. 1, p. 119 apud Filomeno, in: Código comentado, p. 47.

77 Cf. Filomeno, in: Código comentado, p. 48.

78 Cf. Filomeno, in: Código comentado, p. 47; Rizzatto Nunes, Comentários, p. 107-108.

79 Cf. Rizzatto Nunes, Comentários, p. 107-108.

80 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 108.

81 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 25.

82 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 25-26.

83 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 92.

84 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 196-197.

85 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 198 e ss..

86 Filomeno, in: Código comentado, p. 57.

87 P. ex.: REsp nº 689266, e 575020; AgRg no Ag nº 363679, e 636897.

88 REsp nº 614981.

89 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 94; Rizzatto Nunes, Comentários, p. 111; James Marins, in: Código comentado, p. 37-38, nota 20.

90 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 199.

91 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 110-111.

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92 Celso Antônio, Curso, p. 612.

93 Filomeno, in: Código comentado, p. 48-49.

94 Cintra do Amaral, ‘Distinção entre usuário de serviço público e consumidor’.

95 Rizzatto Nunes, Comentários, p. 112-113.

96 Regina Helena Costa, ‘A tributação e o consumidor’, n. 6. Nesse mesmo sentido: Maria Antonieta Donato, Proteção ao consumidor, p. 122-123.

97 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 28.

98 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 211-213.

99 Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil, p. 213-214.

100 Roberto Senise Lisboa, Relação de consumo, p. 214-217.

101 STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 625.144-SP. Divergiram da fundamentação da maioria, entendendo que na prestação de serviço público típico há relação de consumo: Nancy Andrighi, e Castro Filho.

102 STF, 2ª T., Rel. Min. Carlos Velloso, AgRegAI 282.298-2/RS. V., ainda, os demais julgados lá referenciados.

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Pessoa jurídica consumidora

Autor: Alex Sandro Ribeiro

O enfrentamento da problemática envolvendo a pessoa jurídica qualificada com consumidora deu-se alhures, amplamente, em nossa obra Ofensa à Honra da Pessoa Jurídica (Ed. LEUD, São Paulo, 2004). Mas a questão permanece suscitando controvérsia e nos aguçou a tecer considerações a respeito, desta feita cingindo-nos à definição.

De efeito, a dicção legal do Código de Defesa do Consumidor é de clareza mediana. Verbera ele que toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final é considerada diretamente como consumidora. Afigura-se não haver a menor dúvida. Mas não é bem assim. O texto legal choca-se com o cotidiano. Os atos ordinários da vida se orientam para caminho diametralmente oposto, dada a incompatibilidade do preceito com a teleologia e a axiologia da norma, mesmo porque, em apertada e perigosa síntese, consumidor será o não profissional que de algum modo encontra-se vinculado com o fornecedor de produtos ou serviços.

Pois muito bem. Antes de qualquer coisa, devemos definir a relação jurídica de consumo. Donde vê-se necessário, de início, atentar para o significado de relação jurídica. Maria Helena Diniz, citando Del Vecchio, anota que "a relação jurídica consiste num vínculo entre pessoas, em razão do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada. Tal relação só existirá quando certas ações dos sujeitos, que constituem o âmbito pessoal de determinadas normas, forem relevantes no que atina ao caráter deôntico das normas aplicáveis à situação. Só haverá relação jurídica se o vínculo entre duas pessoas estiver normado, isto é, regulado por norma jurídica" (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 459).

Evidentemente, todas as relações jurídicas exigem a presença de alguns elementos. Estes, somados, compõem-na de forma a demonstrar sua extensão e seu conteúdo. Diversa não é a relação de consumo. Exige-se a presença de elementos de órbita subjetiva e, outros, de ordem objetiva. Em regra, faltante um único deles sequer, concluir-se-á pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Quanto aos elementos da relação de consumo, vêm eles arrolados nos artigos 2º e 3º da Lei n. 8.078, de 1990. São elementos subjetivos o consumidor e o fornecedor; e elementos objetivos o produto e o serviço.

Vejamos, pois, os elementos que constituem a relação jurídica subsumível ao Código de Defesa do Consumidor. O artigo 2º da Lei n. 8.078, de 1990, esboçou a pretensão legislativa de fornecer os elementos necessários à definição das pessoas envolvidas na relação de consumo. Considerou consumidor toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

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A exata definição, pois, exige um desmembramento do artigo, observando-o por quatro ângulos: 1) pessoa natural ou fictícia; 2) aquisição ou utilização; 3) produto ou serviço; 4) destinação final.

O item 1 estampa a intenção de aceitar a pessoa jurídica como consumidora. No item 2 vê-se que a utilização é quantum satis, porque a disjuntiva ou assim especifica e afasta a necessidade de aquisição para perpetuar a relação de consumo, encontrando-se aqui um dos fundamentos principiológicos da figura do consumidor por equiparação. O item 3 refere-se à contratação ou usufruição de um serviço e à aquisição ou utilização de um produto. Até aqui, pois, simples se mostra o estudo e pouco significa para qualificar um ente abstrato como consumidor.

É o item 4 o essencial. Aqui, reside o maior óbice à aplicabilidade irrestrita da do Código do Consumidor em favor da pessoa jurídica. Exigiu a Lei que a pessoa fosse destinatária final do produto ou do serviço, o "elo final da cadeia produtiva". Anote-se, enfim, que a vulnerabilidade, econômica e institucional, também merece especial atenção quando se tenta localizar a pessoa do consumidor em eventual interpretação do artigo 2º da Lei Consumerista.

Algumas decisões, lembra-o José Geraldo Brito Filomeno, "apegam-se às condições gerais dos contratos estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, já a partir do seu art. 30, e mais marcadamente no que tange às práticas e cláusulas contratuais abusivas, ainda que as partes não sejam, a rigor, consumidoras ..." (CDC Comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 33.), sendo que tal posicionamento já vem esboçado por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, quando observam que: "Dado que a ilicitude das cláusulas abusivas é matéria que não fica restrita às relações de consumo, pois pertence à teoria geral do direito contratual, o sistema do CDC 51 deve ser aplicado, por extensão, aos contratos de direito privado (civil e comercial). (Código de processo civil comentado. 4ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 1841)".

Nesse passo, será consumidor se obter ou usufruir real ou potencialmente o produto ou o serviço, em suas necessidades básicas empresariais, tais como a comodidade, o conforto, a segurança e, enfim, a manutenção ilesa da pessoa vinculada ao negócio e de todos aqueles que, de algum modo, haja intervindo na relação jurídica, ainda que a inferência destes na relação de consumo seja simplesmente de exposição às práticas comerciais e contratuais, e também das vítimas de eventos danosos por fato ou vício do produto ou do serviço.

A pessoa jurídica pode ser considerada consumidora. Basta que sua posição na aquisição do produto ou do serviço não o seja para fins de insumo. Até a teoria finalista, assim, há de sofrer um abrandamento, para uma posição mais teleológica, protegendo o mais fraco na relação de consumo. Quando houver aquisição para a soma de todas as despesas (matéria-prima, horas trabalhadas, amortização etc.) que

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ocorrem na obtenção de um produto industrializado ou semi-industrializado, será bem de insumo e não de consumo.

Afora isso, não se pode olvidar que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor sobreveio com o escopo de dar plena e irrestrita eficácia à norma ápice. Nessa senda, uma das células mais importantes da economia nacional é a pessoa do consumidor. É para ele que são destinados os produtos e os serviços. É para ele que se destina a publicidade. Sem o consumidor, não há giro da economia. Sem ambos, consumidor e economia, impossível a manutenção incólume da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da iniciativa privada; da sociedade livre, justa e solidária; do desenvolvimento nacional; e, enfim, difícil se mostra a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Todos esses fundamentos do Estado Democrático de Direito e da República Federativa do Brasil esvair-se-iam céleres com o vento. A defesa do consumidor e a função social da pessoa jurídica espelham fundamentais princípios erigidos a dogma de calibre constitucional. Ambos têm imediata aplicabilidade nas relações econômicas e, via de conseqüência, nos direitos sociais. Se não os houvesse no sistema jurídico posto, liberar-se-iam os abusos e o comprometimento da legitimidade jurídica, e afastar-se-ia a sapiência dos aforismos: odiosa sunt amplianda, favorabilia sunt restringenda (restrinja-se o odioso, amplie-se o favorável) e ubi eaden ratio legis, ubi eaden legis dispositio (onde existe a mesma razão fundamental prevalece a mesma regra de direito).

Eis a aplicação dos métodos teleológicos, axiológicos e sistemáticos. Todos, inegavelmente, prioritários aos métodos lógico e literal, sob pena de esvair a pretensão da lei e obstar que ela cumpra sua verdadeira finalidade. Mas também os métodos lógico e literal dão guarida à aplicação do Código de Defesa do Consumidor às pessoas jurídicas. Consumidor, semanticamente dissecando, é quem adquire ou utiliza bens (produtos, na linguagem do Código de Proteção e Defesa do Consumidor), ou serviços, que, em maior ou menor prazo, acabam sendo destruídos pelo ato de consumo, para a satisfação de necessidades ligadas à sua sobrevivência – lógica, psicológica ou social.

Esta a definição de consumo, ou de consumidor, que de forma léxica caminha junto como texto constitucional, porquanto a Constituição manda proteger o consumidor, e não o consumidor de produtos ou serviços. Aqui pode limitar o campo de proteção, coisa que não foi determinada pela Norma Maior. Não parece haver muita dificuldade, ainda, em se concluir que há muitas pessoas jurídicas técnica e institucionalmente inferiores ao fornecedor e, mais ainda, não é difícil localizar um ente abstrato destinatário final de certo produto ou serviço. Uma interpretação de norma jurídica deve guardar correspondência mínima com o texto legal. Mas também, deve-se ater ao bem comum, aos fins sociais que se destina a lei, à vontade

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da norma, a todo o sistema normativo e, enfim, a questões históricas.

Enfim, anote-se que são exemplificativas as hipóteses de aplicação do Código Consumerista, outorgando-se elastério ao intérprete, de vez que apenas a exceção esteve expressamente mencionada (v.g., relações trabalhistas). Ademais, todas as vezes que a interpretação for conduzida no sentido de excluir direitos, máxime as garantias fundamentais, tem ela de ser feita de maneira restrita. Ao fim e ao cabo, apenas a incompatibilidade manifesta afasta a incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor às pessoas jurídicas, quando então deverão prevalecer as regras do Código Civil, se em compasso com os preceitos virtuais consagrados na Constituição Federal de 1988.

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Aspectos da responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor e excludentes

Autoras:

Michele Oliveira Teixeira

Simone Stabel Daudt

Sumário:Introdução. 1. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor,1. 1 Responsabilidade subjetiva e objetiva. 1.2 Responsabilidade pelo fato do produto e do serviço. 1.3 Responsabilidade pelo vício do produto e do serviço. 2. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE. 2.1 Previstas no CDC. 2.2 Outras Excludentes. 2.2.1 Caso Fortuito e Força Maior. 2.2.2 Riscos do desenvolvimento. 2.2.3 Exercício regular de direito.Conclusões. Referências Bibliográficas.

Introdução

O presente artigo aborda a responsabilidade civil prevista no Código de Defesa do consumidor e analisa as excludentes previstas em referido diploma legal, bem como outras existentes no ordenamento jurídico brasileiro e aplicáveis às relações de consumo.

1. RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

1. 1 Responsabilidade subjetiva e objetiva

Dois são os fundamentos da responsabilização do agente: de um lado, a culpa, baseada na doutrina subjetiva ou teoria da culpa, e, de outro lado o risco, fundamentado pela doutrina objetiva ou teoria do risco.

O Código Civil, em seus arts. 186 e 187, adota como regra a responsabilidade subjetiva, ou seja, além da ação ou omissão que causa um dano, ligados pelo vínculo denominado nexo de causalidade, deve restar comprovada a culpa em sentido lato.

A essência da responsabilidade subjetiva como enuncia o insigne jurista Caio Mário [01] assenta-se fundamentalmente na pesquisa ou indagação de como o

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comportamento contribui para o prejuízo sofrido pela vítima.

Não é apto a gerar o efeito ressarcitório um fato humano qualquer. É preciso que este fato seja jurídico [02] e que seja ilícito.

Assim, a responsabilidade civil surge pela prática de um ato ilícito [03], que é o conjunto de pressupostos da responsabilidade civil [04].

Tratando-se de responsabilidade subjetiva a culpa integra esses pressupostos e a vítima só obterá a reparação do dano se comprovar a culpa [05] do agente.

Com isso, o principal pressuposto dessa responsabilidade é a culpa.

Carlos Alberto Bittar [06] entende que:

"Na teoria da culpa (ou "teoria subjetiva"), cabe perfazer-se a perquirição da subjetividade do causador, a fim de demonstrar-se, em concreto, se quis o resultado (dolo), ou se atuou com imprudência, imperícia ou negligência (culpa em sentido estrito). A prova é, muitas vezes, de difícil realização, criando óbices, pois, para a ação da vítima, que acaba, injustamente suportando os respectivos ônus".

Porém, em alguns casos, referido diploma adota a responsabilidade objetiva imprópria, também chamada da culpa presumida, bem como, a responsabilidade objetiva, como por exemplo nas hipóteses previstas nos artigos 931 e 936.

O Código de Defesa do Consumidor, ao contrário do Código Civil, como regra, a responsabilidade objetiva, dispensando, assim, a comprovação da culpa para atribuir ao fornecedor a responsabilidade pelo dano. Basta a demonstração da existência de nexo causal entre o dano experimentado pelo consumidor e o vício ou defeito no serviço ou produto.

A opção legislativa reflete a adoção feita pelo legislador da teoria do risco do negócio, segundo a qual aquele que explora atividade econômica deve arcar com os danos causados por essa exploração, ainda que não tenha concorrido voluntariamente para a produção dos danos [07].

Segundo a teoria objetiva quem cria um risco deve responder por suas conseqüências.

O fato danoso é que engendra a responsabilidade. Não se perquire se o fato é culposo ou doloso, basta que seja danoso.

Para a teoria objetiva interessa somente o dano para que surja o dever de reparação. A vítima deverá provar somente o dano e o fato que o gerou.

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Claudia Lima Marques [08] ensina que para ser caracterizada a responsabilidade prevista no art.12 é necessária a ocorrência comprovada e concorrente de três elementos: a) existência do defeito; b) o dano efetivo moral e/ou patrimonial; c) o nexo de causalidade entre o defeito do produto e a lesão.

Como restam especificados no caput do art. 12 que os danos indenizáveis são somente aqueles causados aos consumidores por defeitos de seus produtos observa-se ser necessária a existência de um defeito no produto e um nexo causal entre este defeito e o dano sofrido pelo consumidor, e não só entre o dano e o produto [09].

Wilson Melo da Silva [10] esclarece com propriedade a definição da responsabilidade objetiva:

"Pela teoria da responsabilidade objetiva ou sem culpa, como é denominada por muitos, o fator culpa seria de nula relevância. O autor do dano indenizaria pelo só fato do dano mesmo sem se indagar da sua culpabilidade, ou não, no caso. Bastaria que se demonstrasse apenas a relação de causalidade entre o dano e seu autor para que daí decorresse para o agente a obrigação de reparar".

Sérgio Cavalieri ressalta [11]:

"Este dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decore do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos."

Contudo, há uma exceção à responsabilidade objetiva, o artigo 14, § 4º [12]

trata da responsabilidade dos profissionais liberais, em suas atuações não ligadas a "obrigação de resultado", condição esta que, se verificada, os remete à responsabilidade objetiva.

É importante ressaltar que o tratamento diferenciado dado aos profissionais liberais se limita ao fundamento da responsabilidade, inexistindo incompatibilidade entre a norma e as demais regras protecionistas, inclusive a de inversão do ônus da prova [13].

Nesse sentido salienta Paulo Lobo [14] que caso o legislador pretendesse a exclusão da incidência do CDC aos profissionais liberais os mesmos não deveriam estar englobados no art. 3º.

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1.2 Responsabilidade pelo fato do produto e do serviço

Dispõe o artigo 12:

" O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos(...)"

Sérgio Cavalieri [15] define fato do produto como:

"(...) um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto. Seu fato gerador será sempre um defeito do produto; daí termos enfatizado que a palavra-chave é defeito."

Ou seja, aquele que sofrer acidente de consumo decorrente de defeito de concepção, execução ou comercialização de produto, tem o direito de ser indenizado por todos os danos decorrentes [16].

O art. 12 trata dos defeitos dos produtos, isto é, inadequações no produto que ocasionam uma lesão no consumidor.

O artigo 8º do CDC estabelece que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos á saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, sendo obrigado o fornecedor a dar informações necessárias e adequadas a seu respeito.

Assim, uma vez colocados no mercado, interessa verificar se há possibilidade de transmitir ao consumidor informações que capacitem o consumidor do fornecimento em questão ao seguro consumo do produto ou serviço [17].

Ressalte-se, por fim, que o art. 10º impede a colocação no mercado produto ou serviço com alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

Importante destacar que existe responsabilidade inclusive se o produto foi distribuído gratuitamente, conforme ensina Silvio Luíz Ferreira da Rocha [18]:

"O fornecedor que entrega seus produtos para exame ou prova não poderá subtrair-se da responsabilidade civil prevista, alegando que o produto ainda não foi colocado no mercado.

Outrossim, o fornecedor será responsável também por produtos

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distribuídos a título gratuito, como a entrega de bens a seus empregados, promoçõe publicitárias, ou, ainda, doação de bens destinados a vítimas de catástrofes".

Coaduna de tal entendimento Zelmo Denari [19]: "A circunstância de o produto ter sido introduzido no mercado de consumo gratuitamente, a título de donativo para instituições filantrópicas ou com objetivos publicitários, não elide a responsabilidade do fornecedor."

Portanto, para haver a responsabilidade do fornecedor é necessário, além é claro, do defeito e do nexo de causalidade entre este e o dano sofrido pelo consumidor, que o produto entre no mercado de consumo de forma voluntária e consciente.

1.3 Responsabilidade pelo vício do produto e do serviço

A responsabilidade por vício do produto ou serviço não está relacionada com aquela tratada pelos arts. 12 a 14. A falta de qualidade no fornecimento nem sempre é causa de danos à saúde, integridade física e interesse patrimonial do consumidor.

O art. 18 elenca as hipóteses em que há vício no produto, sem causar dano à saúde/integridade física do consumidor.

Os "vícios" no CDC são os vícios por inadequação (art. 18 e ss) e os vícios por insegurança (art.12 e ss.) [20].

Acentua Luiz Rizzatto Nunes:

"São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios [característica que impede seu uso ou consumo] ou inadequados [pode ser utilizado, mas com eficiência reduzida] ao consumo a que se destinam e também que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária." [21]

O CDC prevê três tipos de vícios por inadequação dos produtos: vícios de impropriedade, vícios de diminuição do valor e vícios de disparidade informativa [22].

Para Rizzatto os vícios são aqueles problemas que: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente; b) fazem com que o produto funcione mal; c) diminuam o valor do produto; d) não estejam de acordo com informações; e) os serviços apresentem funcionamento insuficiente ou inadequado [23].

Apresentando um vício existe a responsabilidade do fornecedor.

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2. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE

2.1 Previstas no CDC

O Código de Defesa do Consumidor estipula as causas excludentes, ou seja, as hipóteses que mitigam a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto e do serviço.

Tais hipóteses estão elencadas no artigo 12, § 3° e no artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor [24].

A primeira eximente, arrolada no inciso III, § 3° do artigo 12, segundo Zelmo Denari [25], diz respeito à introdução do produto no ciclo produtivo-distributivo de forma voluntária e consciente. Refere o autor:

"Os exemplos mais nítidos da causa excludente prevista no inc. I seriam aqueles relacionados com o furto ou roubo de produto defeituoso estocado no estabelecimento, ou com a usurpação do nome, marca ou signo distintivo, cuidando-se, nesta última hipótese da falsificação do produto. Da mesma sorte, pode ocorrer que, em função do vício de qualidade, o produto defeituoso tenha sido apreendido pela administração e, posteriormente, à revelia do fornecedor, tenha sido introduzido no mercado de consumo, circunstância esta eximente da sua responsabilidade.

Nesse sentido manifesta-se Antonio Herman de Vasconcelos Benjamin [26]:

"É até supérfulo dizer que inexiste responsabilidade quando os responsáveis legais não colocaram o produto no mercado. Nega-se aí, o nexo causal entre o prejuízo sofrido pelo consumidor e a atividade do fornecedor. O dano foi, sem dúvida, causado pelo produto, mas inexiste nexo de causalidade entre ele e quaisquer das atividades do agente. Isso vale especialmente para os produtos falsificados que trazem a marca do responsável legal ou, ainda, para os produtos que, por ato ilícito (roubo ou furto, por exemplo), forma lanaçados no mercado."

O inciso II do mencionado dispositivo legal, bem como o inciso I, § 3° do artigo 14, trazem como excludente da responsabilidade do fornecedor a inexistência de defeito.

Zelmo Denari [27] afirma que o defeito do produto ou serviço é um dos pressupostos da responsabilidade, de forma que se não ostentar vício de qualidade ocorre a quebra da relação causal ficando elidida a responsabilidade do fornecedor.

Ressalta-se que a inexistência de qualquer dos defeitos elencados no caput do

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artigo 12, deverá ser demonstrada pelo fornecedor, em havendo a inversão do ônus da prova, aplicável, quando o juiz considera verossímeis as alegações do consumidor, segundo as regras de experiência, nos termos do artigo 6º, inciso III.

Dessa forma, como o caput do artigo 12 dispõe que a responsabilidade é pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos, inexistindo estes não há que se falar em dever de indenizar.

E, por fim, o inciso III, § 3° do artigo 12 e o inciso II, § 3° do artigo 14, tratam da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

No entender de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Vasconcelos Benjamin e Bruno Miragem: [28]

"O sistema do CDC prevê a exoneração na hipótese do inciso III do § 3° do artigo 12, de culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, hipótese esta que no sistema da Directiva européia ficaria submetida ao ju´zio de valor do judiciário, mas que no sistema do CDC exonera os fornecedores, pois mesmo existindo no caso um defeito no produto, não haveria nexo causal entre o defeito e o evento danoso (cupla da vítima)".

Esclarece Zelmo Denari [29] que culpa exclusiva não se confunde com culpa concorrente:

"no primeiro caso, desaparece a relação de causalidade entre o defeito do produto e o evento danoso, disolvendo-se a própria relação de causalidade; no segundo, a responsabilidade se atenua em razão da concorrência de culpa e os aplicadores da norma costumam condenar o agente causador do dano a reparar pela metade do prejuízo, cabendo à vítima arcar com a outra metade"

Sustenta Luiz Antonio Rizzatto Nunes [30] que a responsabilidade do fornecedor permanece integral, em caso de culpa concorrente, ficando afastada tal responsabilidade no caso de culpa exclusiva do consumidor:

"Se for caso de culpa concorrente do consumidor (por exemplo, as informações do produto são insuficientes e também o consumidor agiu com culpa), ainda assim a responsabilidade do agente produtor permanece integral. Apenas se provar que o acidente de consumo se deu por culpa exclusiva do consumidor é que ele não responde".

Entretanto, embora permaneça integral a responsabilidade do fornecedor, em caso de culpa concorrente, haverá redução do montante indenizatório.

Alberto do Amaral Junior [31] salienta que "o concurso de culpa do consumidor lesado produz, como conseqüência, a redução do montante a ser pago a título de

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ressarcimento". Nessa mesma linha Carlos Alberto Bittar [32]: "havendo culpas concorrentes, poderão forrar-se à reparação na proporção em que provarem a culpa do consumidor".

Ressalta-se que a conduta culposa do consumidor, capaz de afastar a responsabilidade do fornecedor, deve por este ser provada, em havendo a inversão do ônus da prova.

Assim, apesar do Código de Defesa do Consumidor não fazer menção à culpa concorrente do ofendido, entende a doutrina que, apesar de não ser excludente de responsabilidade, deve ser considerada como atenuante no momento da fixação do montante indenizatório. Não admiti-la, seria o mesmo que permitir o beneficío da integralidade indenizatória aquele que veio a concorrer para o evento lesivo.

2.2 Outras Excludentes

O Código de Defesa do Consumidor, conforme mencionado, prevê a exclusão da responsabilidade do fornecedor nos artigos 12, § 3° e 14, § 3°. Contudo, a doutrina aponta outras eventuais hipóteses de exclusão de responsabilidade, tais como o caso fortuito ou força maior, riscos de desenvolvimento e exercício regular de direito.

2.2.1 Caso Fortuito e Força Maior

Pela análise das eximentes expressamente previstas nos artigos 12, § 3° e 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que este diploma legala silencia quanto o caso fortuito e a força maior, tradicionais excludentes da responsabilidade, descritas no artigo 393 do Código Civil.

Por essa razão discute-se na doutrina se o caso fortuito e a força maior podem ser considerados como excludentes para as relações jurídicas de consumo.

Luiz Antônio Rizzatto Nunes [33] entende que por ter o § 3º do artigo 12 utilizado o advérbio "só", o rol ali indicado é taxativo, e não autoriza a inclusão dessas excludentes: "o risco do fornecedor é mesmo integral, tanto que a lei não prevê como excludentes do dever de indenizar o caso fortuito e a força maior".

Para Roberto Senise Lisboa [34] se na interpretação das normas restritivas de direito não pode o interprete querer alargar a aplicação da norma, devendo se ater a sua forma declarativa ou estrita, não é possível aplicar as normas do Código Civil nas relações consumeiristas.

Antonio Herman de Vasconcelos Benjamin [35] afirma que a questão deve ser tratada de forma diversa:

"A regra no nosso direito é que o caso fortuito e a força maior excluem a responsabilidade civil. O Código, entre as causas excludentes de

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responsabilidade, não os elenca. Também não os nega. Logo, quer me parecer que o sistema tradicional, neste ponto, não foi afastado, mantendo-se, então, a capacidade do caso fortuito e da força maior para impedir o dever de indenizar."

João Batista de Almeida [36] salienta que "Apesar de não prevista expressamente na Lei de proteção, ambas as hipóteses possuem força liberatória e excluem a responsabilidade, porque quebram a relação de causalidade entre o defeito do produto e o dano causado ao consumidor".

Exemplifica o autor: "Não teria sentido, por exemplo, responsabilizar-se o fornecedor de um eletrodoméstico, se um raio faz explodir o aparelho, e, em conseqüência, causa incêndio e danos aos moradores: inexistiria nexo de causalidade a ligar eventual defeito do aparelho ao evento danoso".

No entender de Eduardo Gabriel Saad, José Eduardo Duarte Saad e Ana Maria Saad C. Branco [37] muito embora o artigo 12 especifique que o fornecedor apenas não será responsabilizado quando provar que não colocou o produto no mercado, que inexiste defeito ou que houve culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, trata-se de uma impropriedade de redação: "O Código não pode obrigar o fornecedor a indenizar se sua inadimplência contratual ou responsabilidade aquiliana originaram-se de caso fortuito ou de força maior".

James Marins [38]sustenta que o caso fortuito ou a força maior poderão afastar a responsabilidade do fornecedor ou não dependendo do momento em que ocorreram. Caso se manifestem antes da inserção do produto no mercado de trabalho, o fornecedor responderá pelos danos:

"Isto porque até o momento em que o produto ingressa formalmente no mercado de consumo tem o fornecedor o dever de garantir que não sofre qualquer tipo de alteração que possa torná-lo defeituoso, oferecendo riscos à saúde e segurança do consumidor, mesmo que o fato causador do defeito seja a força maior".

Contudo, se o caso fortuito ou a força maior ocorrerem após a introdução do produto no mercado de consumo, há a ruptura do nexo de causalidade, ficando, pois, afastada a responsabilidade do fornecedor.

Nesse sentido sustenta Fábio Ulhoa Coelho [39] que fica afastada a responsabilidade do fornecedor se demonstrar a presença de caso fortuito ou força maior, posteriores ao fornecimento:

"O fornecedor também é liberado do dever de indenizar em demonstrando a presença, entre as causas do acidente de consumo, da força maior ou do caso fortuito, desde que posteriores ao fornecimento. A força

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maior ou o caso fortuito anteriores ao fornecimento não configuram excludente de responsabilização, uma vez que o fundamento racional da responsabilidade objetiva do empresário, por acidente de consumo, se encontra exatamente na constatação da relativa inevitablidade dos defeitos no processo produtivo. (....) Com efeito a manifestação de tais fatores, posteriormente ao fornecimento, desconstitui qualquer liame causal entre o ato de fornecer produtos ao mercado e os danos experimentados pelo consumidor. Por exemplo, se o eletrodoméstico é inutilizado por um raio, não se responsabiliza o empresário pelos prejuízos do consumidor."

Percebe-se que a doutrina, nesse ponto, divide-se entre defensores e oposicionistas. Contudo, a maioria da doutrina parece consolidar o entendimento de que ocorrendo o caso fortuito ou a força maior, haverá a quebra do nexo causal, não se podendo responsabilizar o fornecedor por aquilo que não deu causa, nem tinha como prever ou evitar.

2.2.2 Riscos do desenvolvimento

Os riscos do desenvolvimento, segundo James Marins [40], consistem:

"(...) na possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível à época de sua introdução, ocorrendo todavia, que, posteriormente, decorrido determinado período do início de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito, somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar danos aos consumidores".

Antônio Herman de Vasconcellos Benjamim [41] conceitua os riscos do desenvolvimento como: "aquele risco que não podem ser cientificamente conhecidos ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto e do serviço.

Há divergência doutrinária quanto a caracterização dos riscos do desenvolvimento como hipótese de defeito dos produtos, ou seja, se discute na doutrina a adoção pelo CDC dos riscos de desenvolvimento como eximentes da responsabilidade do fornecedor. O centro dessa divergência é, pois, a interpretação acerca do disposto no inciso III do §1º do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.

Dessa forma, parte dos autores entendem que estão pressupostos da responsabilidade do fornecedor, quais sejam defeito, dano e nexo causal, enquanto outros afirmam inexistir um desses pressupostos, o defeito, restando, por isso, afastada a responsabilidade.

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Zelmo Denari [42] coloca-se entre os que defendem a não adoção da eximente dos riscos de desenvolvimento sutentando que "a dicção normativa do inc. III do artigo 12, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, está muito distante de significar adoção da teoria dos riscos de desenvolvimento, em nível legislativo, como propôs a Comunidade Econômica Européia"

Marcelo Junqueira Calixto [43] adota posicionamento contrário, afirmando que o inciso III do § 1º do art. 12 representa a adoção da teoria dos riscos de desenvolvimento.

Ensina o mencionado autor que para compatibilizar a os riscos do desenvolvimento com a responsabilidade do fornecedor devem ser analisados dois aspectos, os quais chama de requisito temporal e requisito técnico, sendo o momento a ser considerado para a verificação dos estado dos conhecimentos científicos e técnicos e o segundo o critério para avaliação do estado da ciência e da técnica:

"De início deve ser lembrado que a Diretiva 85/374/CEE expressamente faz referência à existência de um defeito que, entretanto, não era possível ser descoberto pelo estado dos conhecimentos técnicos e científicos contemporâneo à introdução do produto no mercado de consumo. Surge, então, a necessidade de se compatibilizar a excludente, prevista como regra, com a responsabilidade objetiva imposta ao fornecedor. Para essa compatibilização devemos considerar dois requisitos: a) o primeiro, que podemos chamar de "requisito temporal", diz respeito ao momento que deve ser tomado em consideração para a verificação do estado dos conhecimentos científicos e técnicos; b) o segundo, por nós chamado de "requisito técnico", diz respeito ao critério para avaliação do estado da ciência e da técnica."

Nesse mesmo sentido, James Marins [44], ao manifestar-se sobre o referido requisito temporal afirma:

"... é lícito ao fornecedor inserir no mercado de consumo produtos que não saiba nem deveria saber resultarem perigosos porque o grau de conhecimento científico à época da introdução do produto no mercado de consumo não permitia tal conhecimento. Diante disso não se pode dizer ser o risco de desenvolvimento defeito de criação, produção ou informação, enquadramento este que é indispensável para que se possa falar em responsabilidade do fornecedor".

Caso contrário, conforme sustenta João Calvão da Silva [45], seria responsabilizado o fornecedor por um defeito que não tinha como perceber no momento em que colocou o produto em circulação:

"teríamos uma aplicação retroativa do padrão ou de medida de

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responsabilidade, pois à luz do novo conhecimento e tecnologia responsabilizar-se-ia o fabricante por um defeito existente mais indetectável no estado da ciência e da técnica em momento anterior, o momento da distribuição do produto."

Posiciona-se, também, nesse sentido Fábio Ulhoa Coelho [46], ao referir:

"ao fornecer no mercado consumidor produto ou serviço que, posteriormente, apresenta riscos cuja potencialidade não pôde ser antevista pela ciência ou tecnologia, o empresário não deve ser responsabilizado com fundamento nem na periculosidade (pois prestou informações sobre os riscos adequados e suficientes), nem na defeituosidade (porque cumpriu o dever de pesquisar)".

No tocante ao requisito técnico, salienta Antônio Herman de Vasconcelos Benjamin [47] que a análise do grau de conhecimento científico não é feita tomando por base um fornecedor em particular, aquilo que sabe a comunidade científica em determinado momento histórico.

Verifica-se que a doutrina entende ter o Código de Defesa do Consumidor adotado a teoria dos riscos de desenvolvimento e ressalta a necessidade de avaliação do grau de conhecimento científico, de acordo com a comunidade científica, à época da introdução do produto ou serviço no mercado de consumo.

2.2.3 Exercício regular de direito

O inciso I do artigo 188 do Código Civil prevê que o exercício regular de um direito reconhecido não constitui ato ilícito, afastando a responsabilidade civil. Muito embora o Código de Defesa do Consumidor silencie quanto ao exercício regular de direito, entende a doutrina que por ser ele ato lícito, afastada estará a responsabilidade do fornecedor.

Realizar cobrança, enviar um título vencido e não para cartório de protesto, com a conseqüente inclusão do nome do devedor em banco de dados, mesmo que provoquem transtornos ao consumidor, são exemplos de exercício regular de direito do fornecedor e, portanto, de atos lícitos.

Contudo, vale ressaltar que, tais direitos devem ser exercidos pelo fornecedor atendendo aos ditames dos artigos 42 e 43 do Código de Defesa do Consumidor.

Conforme o entendimento de Luiz Antônio Rizzatto Nunes [48], o credor tem o direito de cobrar seu crédito do consumidor inadimplente, somente não podendo fazê-lo de forma abusiva. Tem a possibilidade até mesmo de ameaçar, "desde que tal ameaça decorra daquele regular exercício de cobrar; por exemplo, o credor remete carta ao devedor dizendo (ameaçando) que irá ingressar com ação judicial para cobrar

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o débito"

Assim, o exercício regular de um direito, por ser ato lícito, não dará ensejo a responsabilização do fornecedor. Somente haverá responsabilização caso o fornecedor viole os dispositivos que disciplinam a ação regular de cobrança e o cadastro de consumidores em bancos de dados, agindo de forma abusiva.

Conclusões

A responsabilidade civil prevista no Código consumeirista é objetiva, bastando ao lesado comprovar o dano e o nexo causal.

O dever indenizatório decorrente da responsabilidade comporta exceções. Tais excludentes são aquelas expressas no próprio CDC. Porém, entende a doutrina existirem outras aplicáveis, também, nas relações de consumo, como o caso fortuito, a força maior e o exercício regular de direito.

Referências Bibliográficas

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Notas

01 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, p. 29.

02 Os fatos jurídicos são aqueles que têm relevância jurídica e dividem-se em: naturais ( decorrem de acontecimentos da própria natureza) e voluntários (têm origem em condutas humanas capazes de produzir efeitos jurídicos). Os voluntários se dividem em: lícitos (fato praticado em harmonia com a lei) e ilícitos (fato que viola o dever imposto pela norma jurídica). Assim, a responsabilidade civil surge pela prática de um ato ilícito.

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03 Ressalte-se que há casos em que o ato lícito gera o dever de indenizar.

04 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, 2005, p. 28.

05 A culpa, no presente trabalho, deve ser entendida como latu sensu, isto é, dolosa e culposa.

06 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil – Teoria e Prática, p. 30.

07 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 150-51.

08 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor 3ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: RT, 1999,p.100.

09 Comentários ao Código de Defesa do Cosumidor: arts. 1º a 74: aspectos materiais/ Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 225.

10 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa.

11 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, p. 497.

12" §4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante verificação da culpa."

13 Nesse sentido: " Cirurgião – dentista – Direito do consumidor – Facilitação de defesa – ônus da prova – Inversão – Possibilidade – Profissional liberal – Responsabilidade Civil" (RSTJ 115/271).

14 LOBO, Paulo Luiz Netto. Revista de direito do consumidor. N.34, abril-junho, 2000.

15 FILHO, Sérgio Cavalieri. Ob. Cit., p. 498.

16 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. I. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 279.

17 COELHO, Fábio Ulhoa. Ob cit., p. 263.

18 A responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 104.

19 Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Grinover.. . {et. al.} – 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 188.

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20 Comentários ao Código de Defesa do Cosumidor: arts. 1º a 74: aspectos materiais/ Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003,p. 286.

21 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Ob. Cit., p. 278.

22 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: arts. 1º a 74: aspectos materiais/ Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 286.

23 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, ob. Cit., p. 213-4.

24 Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

(...)

3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

(...)

3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

25 Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Grinover.. . {et. al.} – 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 188.

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26 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 65.

27 Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Grinover.. . {et. al.} – 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 188.

28 Comentários ao Código de Defesa do Cosumidor: arts. 1º a 74: aspectos materiais/ Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 227.

29 Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Grinover.. . {et. al.} – 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 189.

30 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 170.

31 Proteção do consumidor no contrato de compra e venda. São Paulo: RT, 1993, p. 288.

32 Direitos do consumidor. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1990, p. 35.

33 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 169.

34 Responsabilidade civil nas relações de consumo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 271.

35 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor – Coordenador Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 67.

36 A proteção jurídica do consumidor, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 69.

37 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor e sua jurisprudência anotada: Lei n. 8.078/90/ Eduardo Gabriel Saad, José Eduardo Saad e Ana Maria Saad C. Branco. 6ª ed. ver. E ampl. São Paulo: LTr, 2006, p. 278.

38 Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: RT, 1993, p. 153.

39 Curso de Direito Comercial, vol I. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 281.

40 Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: RT, 1993, p. 128.

41 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. – Coordenador Juarez

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de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 67

42 Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Grinover.. . {et. al.} – 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 186-187.

43 A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 200.

44 Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: RT, 1993, p. 135.

45 Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Livraria Almedina, 1990, p. 509.

46 O empresário e os direitos do consumidor, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 84.

47 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor – Coordenador Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 67

48 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 506.

Vícios no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor: diferenças

Autor: Ricardo Canguçu Barroso de Queiroz

Em consequência da revolução tecnológica, a produção e a comercialização se

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dissociaram, resultando na evolução da produção em pequena escala para a produção em série. Assim, dada a grande diversidade de produtos no mercado, aumentaram os riscos ao público consumidor, provenientes de erros técnicos e falhas no processo produtivo.

O sistema do Código Civil, com berço no individualismo negocial, em que o mais importante era a preservação do contrato, passou, assim, a não mais corresponder às expectativas do mercado de consumo e do progresso tecnológico da produção em massa, sendo que tais problemas só foram suprimidos com o advento do Código de Defesa do Consumidor.

Ante a necessidade de uma proteção mais ampla do consumidor na relação de consumo, a noção de vício no CDC é bem mais eficiente do que a estabelecida pelo direito tradicional, senão vejamos:

a)Para o CC as expressões "vício" e "defeito" são equivalentes, enquanto que no sistema do CDC "defeito" é vício mais dano à saúde ou segurança, estando associado, portanto aos fatos do produto ou serviço e "vício" está associado à deficiência de qualidade ou quantidade do produto ou serviço.

b)Enquanto no CC vigora a responsabilidade subjetiva pura, baseada na culpa do fornecedor, no CDC a responsabilidade pelos vícios é subjetivo com presunção de culpa do fornecedor, além da inversão do ônus da prova em favor do consumidor.

c)O CC não prevê a solidariedade entre os fornecedores componentes da cadeia de produção e comercialização, assim, o consumidor só pode acionar o fornecedor direito, com quem contratou diretamente. Já no CDC o consumidor poderá acionar quaisquer dos componentes da cadeia de produção e comercialização, seja o comerciante, o fabricante, o distribuidor, ou todos eles conjuntamente.

d)Pelo CC, a responsabilização pelos vícios da coisa, só é permitida se esta tiver sido recebido em virtude de relação contratual (contratos comutativos ou doação com encargo). No CDC, por sua vez, não há necessidade de haver relação contratual entre o consumidor e o sujeito passivo demandado pelo vício do produto ou serviço, afinal como já falamos, há solidariedade entre os componentes da cadeia de fornecedores .

e)O CC não prevê responsabilização pelos vícios aparentes ou de fácil constatação, abrangendo, apenas, os ocultos. Além disso tais devem ser preexistentes ou contemporâneos à entrega da coisa. No CDC, como vigora a vulnerabilidade do consumidor, e com o objetivo de estabelecer-se o equilíbrio contratual, considera-se irrelevante que o consumidor tenha ou não conhecimento do vício e tenha ele surgido antes ou depois da tradição do produto, desde que dentro dos prazos decadenciais.

f)O CC não prevê proteção aos vícios ocorridos na prestação de serviços, mas

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tão somente do produto, enquanto que o CDC contempla ao consumidor as possibilidades de exigir a reexecução do serviço, a restituição da quantia paga ou o abatimento do serviço caso encontre-se responsabilidade do fornecedor de serviços pelos vício de adequação (quantidade e qualidade).

g)No CC caso comprovada a boa-fé (ignorância) do alienante será obrigado a restituir apenas a coisa viciada, ou seja, a culpa não enseja a responsabilização pelos danos materiais (lucro cessante + dano emergente) ou pessoais (morais), de maneira que somente quando comprovada a má-fé aquele será responsabilizados por perdas e danos. Já no CDC havendo relação de consumo, pouco importa o comprovação ou não de má-fé do fornecedor, para obter-se a reparação integral (danos materiais + danos pessoais).

h)O CC só prevê duas possibilidades de reparação: a ação redibitória (o contrato é levado a termo e o comprador é restituído integralmente pelo pagamento) ou a ação estimatória (o comprador obtém a redução do valor pago). No CDC as possibilidades estão ampliadas, estabelecendo dentre as hipóteses a substituição do produto, a restituição da quantia paga ou abatimento do preço, assim como, a possibilidade da troca do produto por outro de espécie, marca ou modelo diverso, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço.

i)No CC os prazos de prescrição e decadência são contados à partir da entrega da coisa (a prescrição é de 15 dias para bem móvel e 6 meses para bem imóvel). Por sua vez, o CDC tais prazos se iniciam a partir do momento em que o consumidor toma conhecimento do vício ou do dano (a prescrição é de 5 anos).

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A responsabilidade civil do fornecedor por vícios dos produtos no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Fabrício Castagna Lunardi

Resumo

O instituto da responsabilidade civil evoluiu rapidamente nas duas últimas décadas, tendo-se, hodiernamente, um novo conceito, que é assentado na solidariedade social e na efetiva reparação dos danos aos consumidores. Cria-se, assim, um novo modelo de responsabilidade, a responsabilidade civil legal. No âmbito das relações de consumo, a responsabilidade civil do fornecedor pode emergir em decorrência de diversas espécies de vícios dos produtos. Haverá, com isso, a responsabilidade civil por vícios de inadequação ou por vícios de insegurança, que recebem tratamento jurídico diferenciado pelo Código de Defesa do Consumidor. Ao fim, observa-se claramente que o regramento que é dispensado à matéria tem reflexo imediato na segurança dos consumidores, uma vez que impõe aos fornecedores o dever de colocar no mercado produtos indenes de vícios, sob pena de responsabilização.

Palavras-chave: Responsabilidade, Fornecedor, Consumidor.

1. Introdução

O produto adquirido pelo consumidor deve corresponder a exatamente aquilo que dele se espera. A justa expectativa dos consumidores e do público em geral frente aos produtos lançados no mercado é a de que eles funcionem regularmente, de acordo com a finalidade para a qual foram desenvolvidos e que, simultaneamente, ofereçam segurança aos seus usuários. [01]

Para proteger a legítima expectativa que tem o consumidor na qualidade e utilidade do produto, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90) adotou o Princípio da Confiança, [02] segundo o qual o produto deve proporcionar ao consumidor exatamente aquilo que ele esperava ou deveria esperar quando o adquiriu.

O fornecedor deve assegurar ao consumidor a correta utilização do produto, proporcionando-lhe as informações necessárias para tal, a fim de evitar que eventuais danos venham a ocorrer pela imperícia natural dos consumidores. [03] É o que a doutrina uruguaia chama de Principio de Autoresponsabilidad, [04] que informa que o

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fornecedor deve prestar informações de forma clara, precisa e sem ambigüidades, de modo a não induzir o consumidor em erro, pois é responsável por aquilo que informa na oferta.

Outrossim, tem o fabricante o dever de controlar o processo de produção e de conhecer todas as inovações tecnológicas, mantendo o produto sempre atualizado em matéria de segurança, a fim de prevenir a ocorrência de danos.

Dessa sorte, surge para o produtor uma dupla obrigação: fornecer produtos adequados às suas próprias finalidades; e não colocar no mercado produtos que ofereçam riscos, além dos que lhe são ínsitos e de conhecimento geral. [05]

No entanto, o modelo ideal de produção, baseado na inexistência de produtos com avarias, é utópico. Com o surgimento e alargamento do processo de industrialização, que tem como característica principal a produção em série, cresceu a incidência de vícios e defeitos nos produtos, à medida que não há um controle individual da adequação e segurança de cada unidade que é lançada no mercado. Os produtos defeituosos acabam sendo um resultado marginal e inexorável da produção industrial. [06]

A par disso, existem diferentes instrumentos jurídicos para reparar os danos e prejuízos causados aos consumidores, o que varia de acordo com a espécie de vício (ou defeito) que apresenta o produto, como adiantes se demonstrará.

2. Dos vícios de inadequação e dos vícios de insegurança

Os vícios de inadequação são aqueles que afetam a prestabilidade do produto, prejudicando seu uso e fruição ou diminuindo o seu valor. Ocorrem, ainda, quando a informação prestada não corresponde verdadeiramente ao produto, mostrando-se, de qualquer forma, impróprio para o fim a que se destina e desatendendo a legítima expectativa do consumidor. É o caso, por exemplo, da televisão que não tem boa imagem, do refrigerador que não mantém os produtos em baixa temperatura, da lata de extrato de tomate que não contém a quantidade informada na embalagem etc.

A inadequação, portanto, pode ocorrer na qualidade do produto, quando afetem sua prestabilidade e utilização, ou na sua quantidade, quando o peso ou a medida informada não corresponder à prestada pelo fornecedor ou à indicada na embalagem. Por isso, a classificação dessa espécie de vícios em vícios de inadequação na qualidade e vícios de inadequação na quantidade.

A constatação desses vícios se faz por um critério objetivo, bastando a verificação de que a informação sobre a qualidade ou quantidade não corresponde verdadeiramente ao que o produto proporciona.

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No Brasil, são os vícios de inadequação tratados nos arts. 18 e segs. da Lei n.º 8.078/90.

Os vícios de insegurança, por sua vez, são aqueles defeitos que fazem com que o produto seja potencialmente danoso à integridade física ou ao patrimônio do consumidor. Ocorrem quando o produto não apresenta a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração a sua apresentação, o uso e os riscos normais, a época em que foi colocado em circulação, dentre outras circunstâncias. Tem ínsito um perigo de dano patrimonial ou extrapatrimonial.

Os vícios de insegurança são tratados nos arts. 12 a 17 da Lei n.º 8.078/90. Podem ocorrer, segundo a doutrina brasileira, em face de defeitos de projeto (ou concepção), defeitos de construção (ou execução), defeitos de desenvolvimento e defeitos de informação. [07]

3. Responsabilidade civil no âmbito das relações de consumo

Na dogmática, a noção de responsabilidade implica sempre a violação de um dever, com a ofensa a um bem jurídico, [08] exprimindo a idéia de obrigação, encargo, contraprestação. A doutrina de direito civil costuma definir a responsabilidade civil com base numa conduta causadora de um dano, [09] com fundamento na obrigação de indenizar, [10] ou com supedâneo no inadimplemento contratual.

Com o passar do tempo, entretanto, o elemento sanção ou retribuição foi mitigado. Na nova definição de responsabilidade, não se pode mais dizer que a responsabilidade jurídica está "essencialmente ligada à retribuição." [11] O elemento central passa a ser a reparação ou prevenção do dano ou prejuízo, e não mais a punição do responsável.

Em um conceito sintético e geral, pode-se definir a responsabilidade civil como "um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário." [12]

Esse conceito, no entanto, não abrange todas as modalidades de responsabilidade civil, pois haverá casos em que surge a responsabilização sem a violação a um dever jurídico, mas em decorrência de ato lícito. Por razões como essa, dizer-se que não existe um conceito unitário que abranja todas as modalidades de responsabilidade civil. De qualquer sorte, é verdadeira a premissa de que, para haver responsabilidade civil, deverá sempre haver o dano jurídico, do qual exsurge o dever de reparação.

De outro lado, não se pode confundir as noções de obrigação e de responsabilidade civil. Obrigação é sempre um dever jurídico originário, enquanto a

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responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, corolário da violação do primeiro. [13]

Na dogmática, encontra-se que a responsabilidade civil pode ser classificada em contratual e extracontratual. Responsabilidade contratual é aquela que decorre diretamente e em função de um contrato, ou seja, de uma obrigação contratual originária, de modo que será responsabilizado civilmente aquele que inadimplir essa obrigação. A responsabilidade extracontratual, também chamada de aquiliana, deriva, geralmente, de um ato ilícito, de uma obrigação jurídica que decorre de uma norma legal, e não do contrato. Essa distinção, em relação à matéria de proteção do consumidor, entretanto, resta superada.

A responsabilidade civil é tema de permanente atualidade e vem ganhando importância e mutação à medida que a evolução industrial produz novas tecnologias, desafiando soluções jurídicas inéditas, em vista de situações que demandam regulamentação jurídica específica.

Em face das transformações sociais ocorridas pela constante evolução industrial e dos riscos gerados aos consumidores, deu-se entrada, paulatinamente, à consciência da necessidade de proteção das vítimas e das partes mais fracas nas relações sociais, o que determinou um redirecionamento dos princípios que regiam a matéria. [14]

A responsabilidade civil, na sistemática do direito do consumidor, ultrapassa as fronteiras da culpa, encontrando supedâneo na solidariedade social, base de uma responsabilidade sem culpa. O verdadeiro escopo dessa evolução é a preocupação de assegurar melhor justiça distributiva, [15] de modo que o prejuízo causado a um consumidor seja suportado por toda a sociedade.

O fundamento social da reparação do dano está arraigado nas noções de assistência, previdência e garantia. [16] Esse novo modelo de responsabilidade não se centra mais em apenas punir o autor de uma conduta antijurídica, senão no interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico alternado pelo dano, vale dizer, na necessidade de reparação ou prevenção do dano, patrimonial ou extrapatrimonial, causado ao consumidor pela existência de vícios de inadequação e de insegurança do produto. [17]

Com efeito, a responsabilidade civil objetiva do fornecedor é o sistema de reparação de danos mais adequado aos tempos modernos. Em primeiro lugar, porque oferece maiores garantias de proteção às vítimas; além disso, porque os custos de ressarcimento devem recair sobre o fabricante e o fornecedor, a quem cabe controlar a qualidade e a segurança dos produtos; por fim, porque, ainda que o consumidor seja diligente, o fornecedor tem melhores condições de suportar o risco do produto, mediante, por exemplo, seguro de responsabilidade, cujo valor do prêmio se incorporará ao preço de venda, distribuindo-se o custo entre os próprios

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consumidores. [18]

Acrescente-se que o fornecedor está em melhores condições de produzir a prova sobre o ocorrido, razão pela qual lhe é transferido o ônus de provar uma das causas excludentes de sua responsabilidade para que se exima de reparar o dano ou os prejuízos. Assim, "al no exigirse la prueba diabólica de la culpa, se facilita a la víctima el acceso a la reparación." [19] Efetivamente, as dificuldades que tinham os consumidores na busca da prova, decorrentes principalmente do desconhecimento do processo industrial e da crescente automação, acabavam por dificultar a imputação do fato lesivo ao seu autor. [20]

A responsabilidade civil passa, então, a ser uma relação entre a atividade empresarial e um sujeito, na chamada responsabilidade por risco da empresa. De acordo com a Teoria do Risco, todo aquele que exerce atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. A responsabilidade decorre do simples fato de realizar a atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinado serviço. [21] Se o fornecedor introduz um risco para a sociedade, deve responder pelos prejuízos que causar.

O acolhimento da teoria do risco e da responsabilidade objetiva é a tendência moderna nos países que possuem legislação específica sobre direito do consumidor. Alguns países, todavia, por motivos de política-econômica, e também, muitas vezes, por influência das grandes empresas, mantém-se fiéis ao dogma da responsabilidade civil baseada na culpa.

A doutrina brasileira, no entanto, foi além, criando uma nova modalidade de responsabilidade civil. Tendo em vista que a imputação decorre estritamente da lei, prescindindo da existência de culpa, e que a responsabilidade civil não deriva do contrato ou de ato ilícito, a doutrina brasileira tem chamado esse novo modelo de responsabilidade civil de responsabilidade legal, abrangendo nesse conceito tanto a responsabilidade do fornecedor que celebra o contrato com o consumidor, como a daquele fornecedor que tem vínculo contratual apenas com a cadeia de fornecedores. [22] Com efeito, a responsabilidade civil não deriva do contrato ou de um dano que alguém gera a outrem fora do contrato, mas, sim, de uma imputação que decorre estritamente da lei.

Essa responsabilidade legal dos fornecedores tem como fundamento a Teoria da Qualidade, segundo a qual a lei imporia a toda a cadeia de fornecedores um dever de qualidade dos produtos que são colocados no mercado e dos serviços que são prestados. [23]

De outro lado, há, no Brasil, a imputação de responsabilidade conjunta entre os fornecedores vinculados ou não por laços contratuais com o consumidor, o que

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demonstra a tendência moderna de ir além da responsabilidade contratual e extracontratual, centrando o dever de reparar na solidariedade social e na Teoria do Risco.

Com base nesses delineamentos, pode-se conceituar a responsabilidade civil, no direito consumerista brasileiro, como o dever jurídico que surge para o fornecedor em conseqüência de um vício de inadequação ou de insegurança do produto ou serviço, que cause um dano efetivo ao patrimônio, à integridade física ou à vida do consumidor. Os elementos identificadores e que geram a responsabilidade civil do fornecedor são, portanto, o vício (ou defeito) no produto, o dano ou prejuízo ao consumidor e o nexo de causalidade. Para obter a indenização, o consumidor somente precisa demonstrar a verossimilhança da existência desses três elementos, incumbindo ao fornecedor a prova de alguma das excludentes de sua responsabilidade.

3.1. A responsabilidade civil por vícios de inadequação dos produtos

Quando o produto não proporcionar a utilização que dele legitimamente se esperava, surgirá a responsabilidade civil do fornecedor por vícios de inadequação. Nesse caso, a responsabilidade está in re ipsa, pois a reparação diz respeito ao produto.

O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor trata da responsabilidade civil por vícios de inadequação do produto em seus arts. 18 e seguintes. Nos §§ 1.º ao 6.º do art. 18, trata da responsabilidade civil por vícios de inadequação na qualidade, enquanto, no art. 19, dispõe sobre os vícios de inadequação na quantidade.

Prevê, no art. 18, caput, uma solidariedade [24] entre todos os fornecedores da cadeia de produção em relação à reparação dos prejuízos causados ao consumidor em razão da inadequação do produto ao fim que se destinava. Destarte, poderá o consumidor demandar qualquer um dos integrantes da cadeia de fornecedores. Por ser o comerciante com quem contratou o responsável mais próximo, geralmente ele será o demandado.

Com isso, constata-se que a responsabilidade civil é extracontratual, pois não há relação contratual, ao menos direta, com os demais integrantes da cadeia de fornecedores, já que a relação contratual se estabelece somente entre o consumidor e o fornecedor direto.

De acordo com a lei consumerista brasileira, ocorrendo o vício de inadequação na qualidade do produto, e não sendo sanado esse vício num prazo máximo de 30 (trinta) dias, surgem para o consumidor as seguintes alternativas: a) a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; b) a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de

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eventuais perdas e danos; e c) o abatimento proporcional do preço (art. 18, caput e § 1.º). Esse prazo para o conserto do produto pode ser ampliado ou reduzido pelas partes, não podendo, contudo, ser inferior a 7 (sete) nem superior a 120 (cento e vinte) dias, sendo que, no caso de contrato de adesão, essa cláusula deve ser convencionada em separado (§ 2.º).

Se, em face da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou as características do produto, diminuir-lhe o valor ou no caso de se tratar de produto essencial, o consumidor poderá imediatamente se utilizar das alternativas referidas no § 1.º do art. 18, antes mencionadas, sem precisar obedecer a qualquer prazo. Caso o consumidor tenha optado pela substituição do produto por outro de mesma espécie e isso não seja possível, poderá optar pela substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante eventual restituição de valores ou complementação da diferença de preços (§ 4.º).

Os efeitos da responsabilidade civil por vícios de inadequação na quantidade do produto, por sua vez, estão previstos, como referido, no art. 19 do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Constatados os vícios de inadequação na quantidade do produto, surge para a cadeia de fornecedores o dever de reparar. Assim, poderá o consumidor optar por uma das seguintes alternativas: a) abatimento proporcional do preço; b) complementação do peso ou medida; c) substituição do produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios; ou d) restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de ressarcimento por eventuais perdas e danos (art. 19, incs. I a IV). Do mesmo modo do que ocorre na responsabilidade civil por vício de inadequação na qualidade, pode o consumidor, quando optar pela substituição do produto por outro de mesma espécie e esta não for possível, requerer a troca do produto por outro de espécie, marca ou modelo diversos, sem prejuízo da eventual complementação ou restituição de valores (§ 1.º).

O fornecedor imediato será responsabilizado quando fizer a pesagem ou medição e o instrumento utilizado não estiver regulado segundo os padrões oficiais (§ 2.º).

Cabe ressalvar que, em qualquer contrato de consumo, é vedada a pactuação de cláusula que impossibilite, atenue ou exonere o fornecedor da responsabilidade de indenizar em face da ocorrência de vícios de inadequação ou de insegurança, sendo que a garantia legal do produto independe de termo expresso (arts. 24 e 25).

3.2. A responsabilidade civil por vícios de insegurança dos produtos

A responsabilidade civil do fabricante por vícios de insegurança é efeito lógico de um acidente de consumo, que ocorre quando o produto não apresenta a

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segurança que dele legitimamente se espera e acaba por causar dano ao consumidor.

Tratam os arts. 12 a 17 do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor da responsabilidade civil por fato do produto. [25]

Para melhor defender os interesses do consumidor, o CBDC prevê uma solidariedade entre fabricante, produtor, construtor e importador (art. 12). Como se observa, regra geral, o comerciante é excluído em via principal, respondendo subsidiariamente quando não puderem ser identificados os demais sujeitos da cadeia de produção ou quando o produto fornecido não apresentar identificação clara daqueles; todavia, quando não conservar adequadamente os produtos, terá o comerciante responsabilidade direta. Essa distinção em benefício do comerciante se faz necessária porque ele não tem, nas relações de consumo em massa, controle sobre a segurança e qualidade das mercadorias.

Falta, contudo, no rol de responsáveis estabelecido no art. 12, menção expressa ao fabricante aparente, ou seja, àquelas redes de varejo que oferecem diversificada linha de produtos com sua própria marca, como se fabricantes fossem, quando, na verdade, o produto é fabricado por um terceiro oculto, a pedido da rede varejista. [26]

Levando em conta a sistemática moderna de proteção ao consumidor, é introduzido no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, como fora referido, um novo conceito de responsabilidade civil, a responsabilidade civil legal, que, na forma do art. 12, "independe da existência de culpa", o que facilita ao consumidor a busca por uma justa indenização.

Segundo a lei consumerista brasileira, são pressupostos para a responsabilidade civil do fabricante por defeitos nos produto: a) falha na segurança do produto; b) a colocação do produto no mercado; c) o dano; e d) a relação de causalidade (ou nexo causal).

Por produto inseguro, deve-se entender aquele que é potencialmente danoso, ou seja, que possui um defeito capaz de, pela sua utilização, lesionar o consumidor. A colocação do produto no mercado é ato humano de fazer ingressar em circulação um produto potencialmente danoso, capaz de causar lesões aos consumidores. Assim, a simples fabricação de um produto com um defeito não enseja, por si só, a responsabilidade civil, sendo necessária a sua colocação no mercado.

De outro lado, essa responsabilidade não beneficia somente o consumidor imediato, ou seja, aquele que celebrou o contrato com o fornecedor. O dever de segurança tem natureza ambulatorial, acompanhando o produto por onde ele estiver durante a sua existência útil, [27] de modo que a garantia inerente ao produto obriga o fornecedor em relação ao último consumidor e a todos aqueles que tenham alguma

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relação de fato com o produto. É irrelevante, para a configuração de responsabilidade, que as vítimas sejam parte da cadeia de circulação jurídica do produto, que mantenham com este mera relação de fato decorrente de uso ou consumo, ou que simplesmente tenham se exposto aos efeitos do seu campo de periculosidade. [28]

De outro lado, malgrado se trate de responsabilidade objetiva, essa regra não é absoluta, sendo que a própria lei admite excludentes de responsabilidade do fornecedor. São as causas de exoneração, que importam no rompimento do nexo de causalidade e acabam afastando a responsabilidade civil.

Assim, dispõe o § 3.º do art. 12 do CBDC que o fornecedor não será responsabilizado se provar: a) que não colocou o produto no mercado; b) que, embora tenha colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; ou c) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

A não colocação do produto no mercado pressupõe que o fornecedor-produtor prove que não é sua a autoria da fabricação do produto ou que o fornecedor não foi responsável pela sua circulação. À guisa de exemplo, excluirá a responsabilidade do fornecedor a sabotagem, o furto e o roubo, na hipótese de ser o infrator quem colocou o produto em circulação. Nesses casos, caberá ao fornecedor a prova de tal fato. A excludente não beneficia o fornecedor, todavia, nos casos em que o produto é posto no mercado por ato de preposto ou em decorrência da falta de diligência na guarda do produto.

A prova de que o vício de insegurança inexiste incumbe ao fornecedor. Ao lesado, cabe tão-somente demonstrar a verossimilhança do que alega, permitindo um juízo de probabilidade ao julgador, como, por exemplo, a demonstração de que já ocorreu outro acidente de consumo em relação a idêntico produto.

De outro lado, cabe salientar que o CBDC não prevê como causas de exclusão de responsabilidade o caso fortuito e a força maior, o que gera indagações a respeito.

O caso fortuito e a força maior constituem-se em um fato necessário, cujos efeitos não se pode evitar ou impedir. [29] Embora surtam idênticos efeitos jurídicos, é imperioso fazer a distinção. O que distingue basicamente os dois institutos é que a força maior resulta de situações independentes da vontade do homem, como um ciclone, um terremoto, uma tempestade, enquanto o caso fortuito é uma situação que decorre de fato alheio à vontade da parte, mas proveniente de fatos humanos, como uma greve, uma guerra, um incêndio criminoso provocado por terceiros. [30]

Para verificar se o caso fortuito e a força maior atuarão como excludentes de responsabilidade do fornecedor, deve ser analisado o momento de sua ocorrência. Caso ocorram na concepção ou na produção, ou, ainda, quando o produto está sob a guarda do comerciante, o caso fortuito e a força maior não devem funcionar como

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eximentes de responsabilidade do fornecedor. Entretanto, se o caso fortuito e a força maior sobrevierem depois da tradição (entrega) do produto ao consumidor, não terão os fornecedores qualquer responsabilidade.

Esses dois elementos atuam como fatores de ruptura do nexo causal entre o defeito e o dano, pois, se o defeito não está relacionado ao fornecedor, tendo sido produzido após o consumidor ter adquirido o produto, não haverá responsabilidade civil daquele.

Dessume-se, assim, que a responsabilidade do fornecedor, no direito brasileiro, decorre da violação do dever de colocar no mercado produtos isentos de vícios de insegurança.

4. Considerações finais

Com o surgimento e alargamento do processo de industrialização, que tem como característica principal a produção em série, cresceu a incidência de vícios e defeitos nos produtos, à medida que não há um controle individual da adequação e segurança de cada unidade que é lançada no mercado. Os produtos defeituosos acabam sendo um resultado marginal e inexorável da produção industrial. O modelo ideal de produção, baseado na inexistência de produtos com avarias, portanto, é utópico.

A par disso, houve uma preocupação mundial em reduzir ao máximo os acidentes de consumo e os vícios dos produtos, o que pode é possível com uma legislação rigorosa, que imponha a toda a classe de fornecedores normas imperativas no processo de produção e a obrigação de reparar eventuais danos decorrentes dos acidentes de consumo.

Surgiu, então, sobretudo nos países mais desenvolvidos, microssistemas protetivos ao consumidor, culminando em modificar o tratamento jurídico de vários institutos, dentre os quais o da responsabilidade civil e o dos vícios dos produtos. Criou-se novos modelos de reparação de danos que sobrepujaram a clássica teoria da responsabilidade civil, calcados, principalmente, na efetiva reparação do consumidor, na solidariedade social e na responsabilidade civil objetiva.

O Brasil codificou a matéria na Lei n.º 8.078/90, dando tratamento jurídico bastante proguessista em relação à efetiva reparação dos danos ao consumidor, mormente em relação à responsabilidade civil do fornecedor por vícios dos produtos. Impõe, assim, um dever de qualidade dos produtos colocados no mercado. Além disso, cria um novo conceito de responsabilidade civil, a chamada responsabilidade legal, que prescinde de elemento contratual ou da ocorrência de ilícito, e que decorre estritamente da lei.

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Por essa principiologia inovadora e moderna, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor é considerado uma das legislações consumeristas mais protetivas do mundo, servindo de modelo e paradigma para vários outros países.

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Notas

01 As normas do CDC brasileiro são imperativas no sentido de proteger a confiança que o consumidor depositou no produto que adquiriu.

02 O princípio da confiança está intimamente ligado ao princípio da boa-fé subjetiva, que se encontra no Código Civil brasileiro. Exemplo disso é a proteção aos contratantes de boa-fé quando celebram negócio jurídico com mandatário aparente (art. 689) ou com herdeiro excluído da sucessão (art. 1.817).

03 "O fabricante deve assegurar para o consumidor que o produto, adequadamente utilizado, conforme as instruções por ele mesmo expedidas e dando atenção às advertências cabíveis que também por ele devem ser feitas, não será um instrumento maligno nas mãos dos usuários desprevenidos, vulnerando sua integridade física ou de qualquer modo colocando em risco a sua segurança ou a dos circunstantes." (Adalberto de Souza Pasqualotto. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In: MARQUES, Cláudia Lima. (Org.). Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no MERCOSUL. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1994. p. 73-94. p. 75).

04 Dora Szafir. Consumidores: análisis exegético de la Ley 17.250. 2. ed. atual. Montevidéu : Fundación de Cultura Universitaria, 2002. p. 135.

05 Adalberto de Souza Pasqualotto. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. Op. cit. p. 74.

06 Adalberto de Souza Pasqualotto. Proteção contra produtos defeituosos: das origens ao Mercosul. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, SP, ano 11, n. 42, p. 49-85, abr.-jun. 2002. p. 49.

07 Paulo de Tarso Sanseverino. Responsabilidade civil no código do

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consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo : Saraiva, 2002. p. 134.

08 De acordo com o bem jurídico tutelado e a gravidade da lesão, surgirá a responsabilidade civil ou penal. Embora seja prevista a responsabilidade penal dos fornecedores, em determinados casos, tal questão não será tratada no presente trabalho.

09 Agotinho Oli Koppe Pereira. Responsabilidade civil por danos ao consumidor causados por defeitos dos produtos: a teoria da ação social e o direito do consumidor. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003. p. 242.

10 Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil: responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo : Atlas, 2003. p. 12.

11 Hans Kelsen. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998. p. 103.

12 Sergio Cavalieri Filho. Programa de Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. aum. e atual. São Paulo : Malheiros, 2003. p. 24.

13 Ibidem. p. 24.

14 "El aumento de las causas de dañosidad producidas por el industrialismo (accidentes de trabajo, riesgos derivados de actviades, de utilización de cosas, de productos elaborados, etc.), que exponen a la persona humana a mayores riesgos, ha revelado la insuficiencia e injusticia del principio tradicional e atribuición subjetiva basado en la culpa del autor del daño." (Carlos Alberto Ghersi. Teoría general de la reparación de daños. 2. ed. atual. ampl. Buenos Aires : Astrea, 1999. p. 157)

15 José de Aguiar Dias. Da Responsabilidade Civil. v. 1. 4. ed. rev. aum. Rio de Janeiro : Forense, 1997. p. 15.

16 Ibidem. p. 16.

17 "Para enfrentar a nova realidade decorrente da Revolução Industrial e do desenvolvimento tecnológico e científico, o Código do Consumidor engendrou um novo sistema de responsabilidade civil para as relações de consumo, com fundamentos e princípios novos, porquanto a responsabilidade civil tradicional revelara-se insuficiente para proteger o consumidor." (CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit. p. 473)

18 Adalberto de Souza Pasqualotto. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. Op. cit. p. 77.

19 Carlos Alberto Ghersi. Op. cit. p. 158.

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20 Adalberto de Souza Pasqualotto. Proteção contra produtos defeituosos: das origens ao Mercosul. Op. cit. p. 50.

21 Sergio Cavalieri Filho. Op. cit. p. 475.

22 "Assim, no sistema do CDC, da tradicional responsabilidade assente na culpa passa-se a presunção geral desta e conclui-se com a imposição de uma responsabilidade legal. O novo regime de vícios no CDC caracteriza-se como um regime de responsabilidade legal do fornecedor, tanto daquele que possui um vínculo contratual com o consumidor, quanto daquele cujo vínculo contratual é apenas com a cadeia de fornecedores." (Cláudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 984). Também nesse sentido, Odete Novais Carneiro Queiroz: "Não se faz necessária uma efetiva relação contratual, podendo a vítima reclamar face a quem com ela certamente não contratou, mesmo porque existe uma responsabilidade solidária entre o fabricante, o intermediário e o comerciante (distribuidor) (...)" (In: Da responsabilidade por vício do produto e do serviço: Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078, de 11.09.1990. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998. p. 111)

23 Pragmaticamente, o CBDC impõe aos fornecedores a obrigação de colocar no mercado somente produtos isentos de vícios ou defeitos. Portanto, o dever de qualidade é um dever anexo à atividade dos fornecedores.

24 Por solidariedade deve-se entender "um vínculo que conduz a impor o cumprimento de uma obrigação a várias pessoas." (Arnaldo Rizzardo. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro : Forense, 2000. p. 205)

25 Tal expressão, contudo, não goza de um tecnicismo apurado, sendo alvo de severas críticas pela doutrina. Isso porque "fato" é acontecimento alheio à ação humana, e, no caso dos vícios de insegurança, tem-se um dano decorrente da atividade de produção ou de comercialização, que é gerenciada pelo homem. Assim, é sempre a atividade humana, de forma direta ou indireta, que causa o dano. Melhor teria sido, portanto, que o legislador tivesse se utilizado, por exemplo, da expressão "responsabilidade pelos acidentes de consumo", como refere Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (In: Da qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos. In: Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo : Saraiva, 1991. p. 43-44.)

26 Adalberto de Souza Pasqualotto. Proteção contra produtos defeituosos: das origens ao Mercosul. Op. cit. p. 80.

27 Sergio Cavalieri Filho. Op. cit. p. 478.

28 Luiz Gastão Paes de Barros Leães. A responsabilidade do fabricante pelo

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fato do produto. São Paulo : Saraiva, 1987. p. 3.

29 O Código Civil brasileiro, em seu art. 393, parágrafo único, equipara o caso fortuito à força maior:

"Art. 393. (...)

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."

30 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das obrigações: 1.ª parte. 7. ed. rev. aum. São Paulo : Saraiva, 1971. p. 364-365.

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A prescrição e a decadência no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Osmir Antonio Globekner

Visa, o presente trabalho, a análise dos institutos jurídicos da prescrição e da decadência no que se refere ao Direito do Consumidor, tendo por base a previsão normativa do art. 26 e 27 da Lei 8.078/90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

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1. Introdução

As normas referentes à prescrição e decadência, possuem sua disciplina geral disposta no Código Civil, arts. 161 a 179. Tais institutos, no entanto, comportam regras específicas, a depender do campo específico do Direito em que se pretende sejam aplicadas. Assim ocorre que no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, temos a disciplina dos mesmos no que tange à relação de consumo.

Iniciemos com a transcrição dos artigos sob estudo.

SEÇÃO IVDA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO

Art. 26 - O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

I - 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto não duráveis;

II - 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto duráveis.

§1º - Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.

§2º - Obstam a decadência:

I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca;

II - (Vetado.)

III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.

§3º - Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

Art. 27 - Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

Parágrafo único - (Vetado.)

2. A Relevância Jurídica do Decurso do Tempo:

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O Fluir do tempo gera efeitos jurídicos relevantes para o direito. Constitui fato jurídico ordinário, constitui causa aquisitiva ou extintiva de direitos.

No aspecto extintivo, temos a "pretensão liberatória" no dizer de Orlando Gomes ("Introdução ao Direito Civil"12ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense, 1996). O fluir do tempo, aliado a inatividade do seu titular constitui fato jurisformizado pelo direito com vistas à estabilidade e segurança das relações jurídicas. Neste sentido, teremos a base da decadência e prescrição, os principais institutos dessa esta forma extintiva de operar o decurso temporal.

3. Decadência e Prescrição

Poderíamos citar um diverso número de características peculiares a cada instituto, e também inúmeras distinções entre um e outro; já que a doutrina, neste particular, é abundante. No entanto, fiquemos com algumas, de maior interesse no que adiante vamos discutir.

O Direito caduca, a pretensão prescreve. No caso específico do CDC, a decadência atinge o direito de reclamar, a prescrição afeta a pretensão à reparação pelos danos causados pelo fato do produto ou do serviço. A decadência afeta o direito de reclamar, ante o fornecedor, quanto ao defeito do produto ou serviço, ao passo que a prescrição atinge a pretensão de deduzir em juízo o direito de ressarcir-se dos prejuízos oriundos do fato do produto ou do serviço.

A decadência supõe um direito em potência, a prescrição requer um direito já exercido pelo titular, mas que tenha sofrido algum obstáculo, dando origem à violação daquele direito.

A prescrição não fere o direito em si mesmo, mas sim a pretensão à reparação. Segundo Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, vol. 1, 7ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1989), "o que se perde com a prescrição é o direito subjetivo de deduzir a pretensão em juízo, uma vez que a prescrição atinge a ação e não o direito."

O CDC separou as duas realidades. Tratou da decadência no art. 26 ("O direito ... caduca...") e da prescrição no art. 27 ("Prescreve ... a pretensão")

4. Prazos para Reclamar e Pretender a Reparação de Danos

Prazo é o lapso de tempo, período fixado na lei entre o termo inicial (dies a quo) e o termo final (dies ad quem), cujo implemento vem a constituir o fato jurídico, in casu, decadencial ou prescricional, extintivo de direito.

Convém salientar que os prazos decadenciais e prescricionais do CDC são de ordem pública e, portanto, inalteráveis pela vontade das partes.

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Há prazos gerais fixados no Código Civil e prazos especiais fixados nesse mesmo Código e na legislação extravagante em relação a ele, como é o caso do CDC..

5. Prazos Decadenciais no CDC, Suas Especificidades

O CDC nos apresenta alguns prazos, como:

•30 dias: para reclamar de vícios aparentes e de fácil constatação no fornecimento de serviços e produtos não duráveis. (art. 26, I)

•90 dias: na mesma hipótese para serviços e produtos duráveis. (art. 26, II)

Aqui, ocorre uma sensível ampliação em relação ao prazo para reclamar dos vícios redibitórios na forma como disciplinado pelo CC, o qual estabelece o prazo de 15 dias no art. 178, § 2º, e pelo Código Comercial, 10 dias, art. 211.

O tratamento também é diverso no que se refere ao dies a quo. Vejamos: O início da contagem do prazo decadencial se dá com a entrega efetiva do produto, ou término da execução dos serviços, ao passo que no Código Civil e Comercial o prazo se inicia com a mera tradição. Analisaremos adiante o conceito de "entrega efetiva".

O prazo decadencial que estudamos é o prazo para que o consumidor reclame, objetivando seja sanado o vício, junto ao fornecedor ou ao Poder Judiciário, como, também adiante, veremos.

5.1. Produtos e Serviços Duráveis e Não Duráveis:

O critério aqui utilizado para assinalar diferentes prazos decadenciais é mais consentâneo com o Direito do Consumidor do que o critério da mobilidade utilizado pelo CC (móvel, 15 dias art. 178, § 2º, imóvel 6 meses, art. 178, § 5º, IV).

A Classificação difere da do CC. Aqui durável guarda certa analogia com consumível (art. 51, CC). Não durável é aquele cujo uso ou consumo importa imediata destruição da sua própria substância, bens (produto ou serviço) se exaurem no primeiro uso ou em pouco tempo.. Serviço não durável é aquele que se extingue com sua própria execução (Ex. serviço de limpeza). Ao passo que duráveis são aqueles produtos, cujo consumo não importa destruição, serviços que persistem após sua execução.

5.2. Entrega Efetiva

A tradição efetiva se opera no momento em que o consumidor tenha recebido o produto e tenha condições de verificar a ocorrência do possível vício.

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Pode ainda restar dubiedade neste termo, no caso, por exemplo, do preposto receber na residência do consumidor impossibilitado de fazê-lo pessoalmente e só posteriormente ao decurso do prazo decadencial venha efetivamente receber o produto. São entretanto, casos para que a doutrina e a jurisprudência no caso concreto, possa deslindar.

Para nós importa compreender a mens legis, do dispositivo legal, ao utilizar a expressão "entrega efetiva", a qual parece-nos ser a de fornecer o contraponto entre a possibilidade do consumidor constatar o vício eventualmente existente versus a passividade do consumidor, sua inércia frente à constatação do vício. Uma ou outra hipótese só fica perfeitamente delineada, na prática, analisando-se o caso concreto.

5.3 Vício

Vícios de qualidade são aquelas características que tornam o produto ou serviço impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam, ou lhes diminuem o valor. Também constitui vício a disparidade entre produto e as indicações do recipiente, embalagem, mensagem publicitária ou do que deles normalmente se espera. Não esqueçamos que o vício de quantidade, via de regra mais facilmente constatável, também enseja a reclamação.

5.4. Vício Aparente

É o vício visível, perceptível sem maior dificuldade, assimilável pela percepção exterior do produto ou serviço, aquele em que o consumidor não encontra obstáculos em reconhecer. Não requer teste. Deve se ter em conta no caso concreto o grau de conhecimento do consumidor, ou da possibilidade de verificação de que o mesmo dispõe.

5.5. Vício Oculto

É o vício que não oferece facilidade de constatação.

Pode ser o defeito que está, quando da aquisição do produto ou execução do serviço, em germe, em potência, e vem a se manifestar posteriormente.

Não basta ser de fácil evidenciação o efeito do vício, mas sim o vício em si, isto é, é necessário ser fácil a identificação do vício como a causa sensível de seus efeitos. Por exemplo, não basta que seja fácil a identificação de um odor estranho de dado produto, é necessário que seja facilmente assimilável a relação de causa e efeito, isto é, o odor, como o fato do produto encontrar-se estragado.

O prazo decadencial se inicia quando da evidenciação do defeito. Defeito aparentemente sanado pelo fornecedor, equivale a ter o vício ficado novamente oculto, "sustando" o prazo decadencial até o momento em que venha novamente a se

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manifestar.

Para operacionalizar o acima exposto há a necessidade de se estabelecer uma presunção da anterioridade do vício nos produtos ou serviços novos. Nesse caso, a probalidade física favorece a presunção, um produto novo implica em menor oportunidade de que o defeito decorra de sua utilização anormal. Esta presunção funciona "a moda" de uma específica inversão do ônus da prova. Cabe ao fornecedor provar que o vício não estava presente ou ínsito ao produto ou serviço, quando do fornecimento ao consumidor.

A reclamação efetuada quanto a um dos fornecedores é plenamente válida para os demais responsáveis. Este é um dos efeitos da solidariedade de acordo com o art. 176, § 1º, CC, solidariedade esta, legal, por decorrer do art. 25, § 1º, CDC.

5.6. Óbices à Decadência

De acordo com o CDC, obstam a decadência:

A reclamação comprovadamente formulada. (da qual se tenha prova), até resposta negativa correspondente, a ser transmitida de forma inequívoca.

Instauração de Inquérito Civil até seu encerramento.

Caso 1:

A decadência é obstada, no primeiro caso, desde a data da entrega da reclamação, comprovada mediante recibo, cartório de títulos e documentos, ou mesmo judicialmente. Volta a seguir desde o dia seguinte ao da entrega da resposta negativa transmitida de forma inequívoca.

Negado o vício, resta ao consumidor, no prazo decadencial, ir a juízo propor a ação condenatória para que o fornecedor satisfaça as obrigações decorrentes do vício (art. 18), podendo ser o pedido cumulado com o de indenização, se houve dano.

"O prazo é de trinta dias para reclamar e não para ajuizar a ação. Isto é, não se exige que o consumidor, impreterivelmente, proponha a ação cabível em trinta dias ..." (Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin in Comentário ao Código de Proteção do Consumidor, coordenação de Juarez de Oliveira, Ed. Saraiva, 1991)

No caso da reclamação judicial, passam a concorrer as regras processuais que disciplinam a matéria.

Proposta a ação, o despacho que ordenar a citação impede que se consume a decadência, sendo a citação realizada no prazo estabelecido no art. 219 do CPC, que se refere à prescrição, mas é válido para a decadência à luz do art. 220. A decadência,

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em regra, não se interrompe, nem se suspende, portanto, extinto o processo, sem julgamento de mérito e já tendo escoado o prazo legal de decadência, o consumidor não poderá se valer da reclamação ou de ação que lhe seja correspondente. Este é, ao menos, um dos entendimentos sobre o assunto.

Note que, se a resposta do fornecedor não negou o vício, a decadência continua obstada, de forma que se não houver sanação, o consumidor continuará com direito de recorrer a outras instâncias, sem que haja perecimento do mesmo pela decadência.

Caso 2: Instauração de Inquérito Civil até seu encerramento:

A decadência fica obstada a contar do dia da instauração do inquérito e persiste assim até o dia do seu encerramento, inclusive, voltando a contar do dia seguinte ao mesmo.

O objetivo do Inquérito Civil, como de qualquer inquérito, é o de servir como instrumento legal para obtenção de dados, clarear um fato, determinar se um direito foi ofendido e em que grau ou extensão, qual o ofensor, etc. Natural, portanto, que suspenda a decadência, pois que os resultados advindos do inquérito, poderão servir ao consumidor subsídios para deduzir sua pretensão específica, em juízo.

6. O Debate Doutrinário sobre a Interrupção ou Suspensão da Decadência

O Brasil, de acordo com Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, vol. 1, 7ª ed. rev. e atual., Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1989), seguindo tradicionalmente a orientação francesa e italiana, só admitia a interrupção aos prazos prescricionais, negando-a aos prazos decadenciais.

O que podemos entender, então, pela expressão "obsta a decadência" inserta no art. 26 § 2º ? Interrupção, suspensão, Impedimento ao fluir... ?

Vejamos algumas posições na doutrina:

Luiz Edson Fachin (Da prescrição e da decadência no Código do Consumidor, Revista da Procuradoria Geral do Estado- RPGE, Fortaleza, 10(12): 29-40, 1993) apesar de admitir que a "obstação", possa constituir uma realidade apartada do Código Civil, e que, sendo especial, sui generis, não requer mais explicações, defende, no entanto, a tese de que se trata de causa interruptiva da decadência, ainda que em descompasso com a sistemática geralmente aceita. Assim postula observando que as hipótese dos incisos I e III sob análise não se fundam no status da pessoa nem na situação especial dos sujeitos envolvidos. "... a reclamação comprovadamente formulada e a instauração do inquérito civil paralisam temporariamente o curso da decadência. Superado o fato interruptivo, quer pela resposta negativa, quer pelo

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encerramento do inquérito, o prazo flui novamente, mas é inutilizado por completo o lapso de tempo já iniciado. O prazo recomeça a contar." (grifo nosso)

Zelmo Denari (Código de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do Anteprojeto, Forense Universitária, São Paulo, 1991), considerando as expressões "até a resposta negativa", "até seu encerramento", pondera: "Resta saber se esses dois eventos (reclamação e inquérito civil), que o Código qualifica como obstativos da decadência, têm efeitos suspensivos ou interruptivos do seu curso. ... parece intuitivo que o propósito do legislador não foi interromper, mas suspender o curso decadencial. Do contrário, não teria estabelecido um hiato, com previsão de um termo final (dies ad quem) mas, simplesmente, um ato interruptivo." Não obstante, e dada, máxima venia, não conseguimos atinar com a relação de causa e efeito entre o fato de haver previsão de um hiato e a conclusão de ser o prazo suspensivo. O dies ad quem, esta simplesmente a indicar o momento em que volta a correr a decadência anteriormente interrompida ou suspensa, não podendo-se desse fato apenas se concluir por um ou outro caso.

A explicação, a nosso entender mais convincente é a de William Santos Ferreira (Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n 10, p 77 a 96, abril/junho, 1994), para quem efetuada a reclamação, "não há mais que falar em transcurso de prazo (suspensão ou interrupção), não é necessário tratar-se do prazo, o direito foi exercido." Cita Câmara Leal "A decadência tem um curso fatal, não se suspendendo, nem se interrompendo, pelas causas suspensivas ou interruptivas da prescrição, só podendo ser obstada a sua consumação pelo efetivo exercício do direito ou da ação, quando esta constitui o meio pelo qual deve ser exercitado o direito." O que ocorre no CDC (e isso justifica o que Ferreira chama de "dies a quo", "até resposta negativa..." e "até seu encerramento" §2º, I e III), é que o CDC reconheceu duas formas de exercício: extrajudicial e judicial do direito de reclamar. Sendo que a segunda forma de exercê-lo, se não exercido antes, inicia-se nos termos supra-citados. Verificados tais termos, novo prazo decadencial se inicia, agora, através da exteriorização da pretensão por uma ação judicial.

Releva a discussão acima exposta, inclusive pelas conseqüências práticas que decorrerão forçosamente de um e outro entendimento. Ao consideramos a suspensão ou interrupção ou ao admitirmos dois direitos sujeitos a distintos prazos decadenciais, resultará, obviamente, em lapso maior ou menor de tempo para que o consumidor exerça seu direito, resultará em maior ou menor oportunidade de fazer respeitar estes mesmos direitos.

A última, a de William Santos Ferreira, parece-nos ser a explicação mais consentânea, ainda que não de todo convincente, face aos termos utilizados na redação do dispositivo legal. Além de mais consentânea, vem a ser a que melhor protege o consumidor, portanto, a que mais se afina com o princípio da

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hipossuficiência do consumidor, princípio que norteia todo o código.

7. Prazos Prescricionais no CDC

Os prazos prescricionais referem-se à pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista no mesmo CDC.

Esclarece Arruda Alvim (Código Do Consumidor Comentado; 2. ED. rev. e ampl.; Revista dos Tribunais; 1995): "O objeto da reclamação é substancialmente diferente do pedido de reparação de danos." A reclamação é exclusiva do vício, a reparação se prende as perdas e danos, fato do produto ou do serviço.

Fato do produto é todo e qualquer dano, podendo este ser oriundo de um vício, que, por sua vez traz em si, intrínseco, uma potencialidade para produzir dano. Assim, caso o vício não cause dano, correrá para o consumidor o prazo decadencial, para que proceda a reclamação, vindo a causar dano (hipóteses do art. 12), deve se ter em mente o prazo qüinqüenal, sempre que se quiser pleitear indenização.

A posição de alguns doutrinadores estudados é no sentido de que se o consumidor tiver sido prejudicado, poderá haver perdas e danos (além da reclamação pelo vício) e estas, apesar de originadas no próprio vício do produto ou do serviço, não necessitam integrar a reclamação, ficando sujeitas o prazo prescricional fixado, em lei para estas, pois se constituem as perdas e os danos, em sentido lato, o fato do produto ou serviço, abrangendo o que o consumidor perdeu e o que deixou de ganhar em razão do vício

Arruda Alvim (Código Do Consumidor Comentado; 2. ED. rev. e ampl.; Revista dos Tribunais; 1995) esclarece, no entanto, que: não há diferença entre os danos advindos de vício do produto e o fato do produto. A interpretação diversa, ainda segundo ele, levaria a entender que a indenização pelo vício, restaria à margem das leis de consumo, e que sua prescrição se regeria pelo direito comum (15 dias CC, 10 dias Ccom havendo rescisão, ou 20 por ação pessoal, no caso de não se dar a rescisão contratual). Continua: "O vício do produto ou do serviço e sua sanação recebe um tratamento jurídico que não é dispensado ao dano; este importa em fato do produto ou do serviço. Nada obsta a que um produto ou serviço seja viciado e que, este vício ocasione prejuízo, devendo este ser considerado como fato."

Entendemos a propósito dessa discussão que fazer esta distinção entre fato do produto ou serviço e dano decorrente do vício é supérflua até mesmo para negá-la. Qualquer perda ou dano implica em fato do produto ou do serviço, que vem a ser precisamente o dano resultante do vício.

William Santos Ferreira (Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n 10, p 77 a 96, abril/junho, 1994), faz observação relevante ao observar que quando falamos do direito à incolumidade

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física-psíquica do consumidor falamos de direito não sujeito à decadência. Temos então que a prescrição tem início com o nascimento da pretensão. Da lesão ou violação de um direito faz nascer a ação. Ora, o direito a vida, segurança, saúde nunca deixaram de existir, ao haver o dano, este implica em direito resistido, enseja ação e enseja também a prescrição decorrente.

7.1. Termo Inicial

A partir do momento do conhecimento do dano ou de sua autoria. Isto é, a partir do momento em que se conheça o dano e possa-se relacioná-lo com o defeito do produto ou do serviço. Conhecimento dos efeitos do dano, não é conhecimento do dano, necessário que o consumidor tenha consciência de que aquilo que observa é, de fato, um dano, já que tal ilação pode não ser imediata em todos os casos.

Quanto à identificação do autor, o comerciante é responsável subsidiário. Inexistindo informação sobre fabricante, construtor, produtor ou importador, bem como quando o fato se deve exclusivamente ao comerciante. será diretamente responsável nos casos previstos no art. 13. Nada impede que o consumidor descobrindo demais fornecedores, venha ajuizar ação já que só a contar deste conhecimento individualizado terá início o prazo prescricional. Poderá o consumidor demandar um ou mais dentre os responsáveis (solidariedade legal). A propositura de ação contra um não libera os demais. Liberação que só ocorre se houver o pagamento integral.

No ajuizamento de ações coletivas: a citação válida interrompe a prescrição, que correrá novamente apenas da intimação da sentença condenatória, esta interrupção aproveita ao consumidor individualmente no ajuizamento da ação singular.

7.2. Causas Impeditivas, Suspensivas e Interruptivas

O parágrafo único prevendo interrupção foi vetado. Regerá portanto a matéria a disciplina do art. 172 e ss. do Código Civil, fonte subsidiária do Direito do Consumidor.

7.3. Danos Reparáveis

Os danos aos quais a pretensão se dirige a reparar atém-se a regulação jurídica da responsabilidade objetiva pelo fato do produto ou do serviço, matéria disciplinada pelo Código no art. 12 e ss.

8. Conclusão

Pudemos verificar que o Código De Proteção e Defesa do Consumidor, constituindo diploma especial, estabelece regras também especiais no que tange aos

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institutos da Decadência, Prescrição quando aplicados às relações de consumo.

Tais regras são atinentes aos prazos, mais dilatados, ao termo inicial e ao termo final, hipóteses de interrupção e suspensão, etc. Todas elas partindo do pressuposto fundamental da hipossuficiência do Consumidor nesta classe de relações. Portanto, sob este ângulo devem ser interpretadas.

Pudemos verificar que existe alguma controvérsia doutrinária, e também jurisprudencial, pelo menos em dois pontos principais. Primeiro, quanto a natureza jurídica, e conseqüente forma de aplicação, da "obstação" da decadência, inserta no parágrafo segundo do artigo 26 do CDC.

A segunda polêmica, versa sobre como deve ser entendido o dano sujeito à disciplina do CDC e por via de conseqüência, sujeito ao prazo prescricional do art. 27, se o derivado do vício ou o derivado do fato do produto ou serviço.

Com base nos autores estudados, e conforme exposto neste trabalho nos itens 6 e 7, nos posicionamos, no primeiro caso, a favor da identificação de dois direitos exercitáveis pelo consumidor, quando da ocorrência do vício. Um exercitável extrajudicialmente; outro, judicialmente. A cada direito corresponde um dies a quo para o prazo decadencial. Cada um, após exercitado, impede se volte a falar em decadência, pelo tão só fato de ter sido exercitado.

No segundo caso, nos posicionamos pela não distinção entre um e outro dano, considerando todos abraçados em uma mesma hipótese, qual seja, todo e qualquer dano que decorra do produto ou serviço, oriundo ou não do vício, resultará em fato do produto ou serviço, sujeitando-se às regras do CDC, inclusive no que concerne à responsabilidade objetiva.

Em assim fazendo, cremos que interpretamos a lei da forma, sistematicamente mais lógica e teleologicamente mais adequada ao espírito que preside o Código Protetivo.

BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Arruda, et al.; Código Do Consumidor Comentado; 2. ED. rev. e ampl.; Revista dos Tribunais; 1995

DENARI, Zelmo, Código de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do Anteprojeto, Forense Universitária, São Paulo, 1991.

FACHIN, Luiz Edson, Da prescrição e da decadência no Código do Consumidor, Revista da Procuradoria Geral do Estado- RPGE, Fortaleza, 10(12): 29-40, 1993

FERREIRA, William Santos, Prescrição e Decadência no Código de Defesa

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do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n 10, p 77 a 96, abril/junho, 1994.

GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, 12ª ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1996.

LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil, vol. 1, 7ª ed. rev. e atual., Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1989.

VASCONCELOS E BENJAMIN Antônio Herman de, Comentário ao Código de Proteção do Consumidor, coordenação de Juarez de Oliveira, Ed. Saraiva, 1991

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Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor

Autor: Osmir Antonio Globekner

1 - INTRODUÇÃO

Visa o presente trabalho a discussão do instituto da Desconsideração da

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Pessoa Jurídica no que tange à sua aplicação ao Direito do Consumidor, tendo por base a previsão legal insculpida no artigo 28 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8078/90.

2 - A PESSOA JURÍDICA, SEU CARÁTER INSTRUMENTAL

Abstraindo-nos no, presente trabalho, do aprofundamento sobre a questão da sua natureza jurídica, gostaríamos, no entanto, de, preliminarmente, fazermos menção ao elemento teleológico do instituto da personalização de entes abstratos.

No direito moderno, a pessoa jurídica somente pode ser entendida sob o prisma de uma instrumentalidade jurídico – formal para a consecução de interesses e fins aceitos e valorizados pela ordem jurídica.

Sob esse prisma, e se nos ativermos ao aspecto comercial, econômico ou ainda patrimonial do tema, poderíamos alinhar alguns desses fins colimados e aceitos pela ordem jurídica:

Conveniência ou viabilização de empreendimento econômico. A necessidade técnica dos grandes empreendimentos, necessidade de elevados investimentos, a exigirem conjugação de esforços. Cooperação que a ordem jurídica jurisformiza através da personalização.

Situações há em que a constituição de pessoa jurídica é imperativo legal. Por razões de política econômica, há certas atividades que a lei só autoriza às pessoas jurídicas, além de geralmente impor a espécie societária, é o caso, por exemplo da atividade financeira, de seguros, etc...

A limitação da responsabilidade dos sócios como instrumento de viabilização de empreendimentos. Por outro lado, o lado credor que contrata com tais sociedades, sabe que a responsabilidade dos sócios se limita ao capital subscrito, daí poderem se precaver, por exemplo, exigindo garantias adicionais.

Consoante tal linha de raciocínio, a personalização representa instrumento legítimo de destaque patrimonial para a exploração de certos fins econômicos, de modo que o patrimônio titulado pela pessoa jurídica responda pelas obrigações sociais, só se chamando à responsabilidade, os sócios, em hipóteses restritas.

Dado que o destaque patrimonial seja a principal característica nas sociedades comerciais, a autonomia da pessoa jurídica não tem, entretanto, o condão , de transforma-la em ente totalmente alheio às pessoas dos sócios. Senão vejamos: O patrimônio da pessoa jurídica é através da ação ou quota de capital, expressão

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também do patrimônio dos sócios. A vontade da pessoa jurídica é, não obstante o balizamento dos estatutos e dos órgãos de administração neles previstos, em grande medida, o reflexo da vontade de seus sócios.

Em síntese, podemos afirmar: a pessoa jurídica exerce uma função legítima, não representando abuso, a limitação de responsabilidade que propicia. Contudo, sua autonomia em relação as pessoas dos sócios é relativa, pois indiretamente, seu patrimônio a eles pertence, e sua vontade é, pela vontade deles, fortemente direcionada.

3 - RELATIVIDADE DA AUTONOMIA DA PESSOA JURÍDICA

O caráter de instrumentalidade implica em que a validade do instituto fique condicionada ao pressuposto do cumprimento ou do atingimento do fim jurídico a que este se destina, fique condicionada a que não se desvie a pessoa jurídica desse mesmo fim, defraudando-o.

Há situações em que a utilização da pessoa jurídica é feita ao arrepio dos fins para o qual o direito albergou o instituto. Quando o reconhecimento da autonomia leva à negação de ideais de justiça ou à frustração de valores por ela albergados, temos então o desvio de função. Ocorrendo a incompatibilidade entre o comportamento da pessoa jurídica e os valores que informam a ordem jurídica.

Podemos aqui invocar a construção de Tércio Sampaio Ferraz Junior e Maria Helena Diniz, citada por Marçal Justen Filho (in "Desconsideração da Personalidade Societária no Direito Brasileiro", p. 96), trata-se da "Lacuna Axiológica", descrita como a situação em que não há propriamente lacuna da lei, pois o direito posto fornece a solução em seus estritos termos; ocorre, porém, que a solução dada fere valores que o sistema jurídico tutela. O problema que então se apresenta em relação à lei é o de integrá-la, no aspecto axiológico, isto é, ao aplicá-la, ou deixar de aplicá-la, fazê-lo, de forma a que, sem que se destrua sua validade, se possa evitar seja a mesma utilizada para fins abusivos.

A desconsideração da pessoa jurídica, que adiante estudaremos, é o instituto que se encaixa como uma luva a construção teórica acima mencionada. Visa tal instituto à suplantação da barreira legal imposta pela instituição da pessoa jurídica, contornando-a de forma a manter íntegro os valores que inspiraram sua criação.

Na aplicação da desconsideração da pessoa jurídica, se visará tanto a proteção da própria pessoa jurídica da ação de seus sócios gerentes, quanto a proteção dos demais sócios, terceiros que com ela se relacionem ou que de qualquer forma sofram os efeitos de seu atuar.

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E mais do que o acima exposto, a desconsideração destina-se ao aperfeiçoamento do próprio instituto da personalização, pois determina a ineficácia episódica de seu ato constitutivo, preservando a validade e existência de todos os demais atos que não se relacionam com o desvio de finalidade, e nisto protegendo o própria existência da pessoa jurídica. A teoria ou doutrina da desconsideração assegura a finalidade da pessoa jurídica ao tempo em que protege os demais, dos prejuízos decorrentes da utilização dervirtuadora de seus fins.

Antes de adentrarmos no assunto específico da desconsideração, no entanto, devemos, ainda em uma preliminar, analisar os instrumentos que o direito posto oferece para limitar, ou relativizar a autonomia da pessoa jurídica.

4 - MECANISMOS LEGAIS DE CORREÇÃO DOS DESVIOS DE FUNÇÃO DA PESSOA JURÍDICA

Assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a conseqüente limitação da responsabilidade dos sócios, o próprio direito pode cercear os possíveis abusos, restringindo a autonomia de um lado e a limitação de outro. Pode o direito limitá-la, restringi-la, excepcioná-la e condiciona-la, enfim, pode regular seu exercício.

Vejamos, mencionando alguns mecanismos legais, como o direito posto trata do assunto, como, sem deixar de reconhecer a autonomia, deixa expresso ora a responsabilidade solidária, ora a responsabilidade subsidiária, ora a responsabilidade pessoal de terceiros:

Na CLT, temos a responsabilidade solidária das sociedades integrantes de um conglomerado econômico (art. 2º, § 2º)

A Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6404/76), para evitar prejuízos aos sócios minoritários, ao mercado imobiliário, etc., contempla situações de responsabilidade pessoal, solidária ou subsidiária de terceiros. (arts. 115 a 117, 233, 242).

A Lei do Sistema Financeiro (Lei 4.595/64, art. 34), veda determinadas operações com seus administradores e pessoas jurídicas de cujo capital estes participem. Também a Lei.. 7.492/86 no art. 17, dispõe de forma semelhante.

A Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico (Lei 4.137/62), em seu art. 6º, responsabiliza civil e criminalmente diretores e gerentes de pessoas jurídicas pelos abusos caracterizados na supradita lei.

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No Código Tributário Nacional o abuso do representante legal induz a responsabilidade pessoal (art. 135) e a responsabilidade subsidiária (art. 133, II, 134).

O art. 6º da Lei da Sonegação Fiscal (Lei 4.729/65) trata da responsabilização penal de "todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal."

A Lei de usura (Decreto. 22.626/33), no artigo 13, parágrafo único, também trata da responsabilidade penal: "Serão responsáveis como co-autores .... em se tratando de pessoa jurídica, os que tiverem qualidade para representá-la"

Além das restrições legais ao princípio da autonomia da pessoa jurídica, há também as limitações oriundas das obrigações convencionais, por exemplo, vedações de não fazer às pessoas contratantes, quando estendidas também as pessoas jurídicas de que elas participem, ou vice-versa, vedações à pessoa jurídica, que se estendam a pessoas físicas a ela relacionadas.

Nas situações acima não se cogita da desconsideração da pessoa jurídica. Não há nenhuma forma jurídica que deva ser desprezada pelo juiz. A lei prevê as conseqüências jurídicas, sem necessidade de desconsideração.

Trata-se que a solução equânime, justa, axiologicamente adequada corresponde ao ditame do preceito legal ou à convenção das partes. Não há lacuna jurídica, nem lacuna axiológica. O Direito fornece o meio legal que previne o abuso ou a fraude, cumprindo-se o fim ou valor juridicamente tutelado. Não é preciso desconsiderar a pessoa jurídica, porque, mesmo considerada, a responsabilidade do sócio emerge por força do preceito legal.

Não há que confundir hipóteses legais de responsabilidade dos sócios ou administradores com a desconsideração da personalidade jurídica. A Desconsideração independe do tipo de estrutura societária e de suas regras particulares de responsabilização patrimonial.

A teoria do ultra vires, nulos os atos praticados ultra vires, isto é, fora dos limites impostos à sociedade pela cláusula do objeto social, a doutrina dos atos próprios, a teoria da aparência, são teorias que tangenciam o instituto da desconsideração. Possuem tais teorias ou doutrinas, diferentes fundamentos e , em comum, o objetivo de preservação da boa fé. São distintas umas das outras, embora relacionadas no elemento teleológico.

Posto isto, passemos a conceituação do que podemos entender como Desconsideração da Pessoa Jurídica.

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5 - A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA

É, no dizer de Luciano Amaro (in "Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor", p. 74) :

"... uma técnica casuística (e, portanto, de construção pretoriana) de solução de desvios de função da pessoa jurídica,...".

Domingos Afonso Kriger Filho (in "Aspectos da Desconsideração da Personalidade Societária na Lei do Consumidor", p. 21), sintetizando a doutrina dominante:

"A desconsideração da pessoa jurídica significa tornar ineficaz, para o caso concreto, a personificação societária, atribuindo-se ao sócio ou sociedade condutas que, se não fosse a superação, seriam imputadas à sociedade ou ao sócio respectivamente. Afasta a regra geral não por inexistir determinação legal, mas porque a subsunção do concreto ao abstrato, previsto em lei, resultaria indesejável ou pernicioso aos olhos da sociedade."

De forma que podemos dizer que o instituto visa, para a pratica de certos atos, a obtenção de um regime jurídico distinto do preconizado no direito posto. Trata-se de aplicar em casos concretos, um certo raciocínio que afasta a incidência das regras gerais aplicáveis a matéria. Isto porque o problema da personificação, por sua especialidade, não encontra resposta satisfatória no sistema positivo do direito. Através da Desconsideração, atos societários são declarados ineficazes, e a importância da pessoa do sócio sobressai em relação à da sociedade, ficando esta em segundo plano.

Resulta a aplicação de tal técnica da ocorrência de situações concretas em que prestigiar a autonomia e a limitação de responsabilidade implicaria sacrificar interesse legítimo, albergado pelo Direito, sistematicamente considerado. Seria injusta, em tais casos, a solução decorrente da aplicação do preceito legal expresso. Há situações em que a pessoa jurídica deixou de ser sujeito e passou a ser mero objeto, manobrado à consecução de fins fraudulentos ou ilegítimos. Desta forma quando o interesse ameaçado é valorado pelo ordenamento jurídico como mais desejável ou menos sacrificável do que o interesse colimado através da personificação societária, abre-se a oportunidade para a desconsideração, sob pena de alteração da escala de valores.

"Sintomaticamente tal solução se desenvolveu nos países de Direito não escrito (common law), Estados Unidos e Inglaterra." (Luciano Amaro in "Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor", p. 75).

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Sintomaticamente, também, por muito tempo, a implantação da solução encontrou resistência nos países da tradição do direito escrito, entre eles o Brasil.

A grande dificuldade está em construir um modelo teórico que possa enfeixar, numa formulação abrangente, as várias situações em que essa técnica possa ou deva ser aplicada. Dificuldade mais séria nos países de direito escrito.

A desconsideração é um conceito ligado ao funcionamento da pessoa jurídica, tal fato deixa pouca margem para definições apriorísticas de casos. Nada correspondendo aos assuntos da validade de constituição, estrutura, legalidade dos atos; para estes; associados a defeitos tais como simulação, fraude, nulidade; o direito oferece remédios análogos a desconsideração; mas que não devem ser confundidos com a mesma. Cabe falar da desconsideração quando não haja uma solução legislada específica para os eventuais desvios de função da pessoa jurídica.

Nos setores onde vige a reserva absoluta da lei, no setor tributário, por exemplo, não há lugar para a desconsideração. Ainda nos demais setores, onde cabível, a solução jurisprudencial da desconsideração deve buscar apoio, se não na letra expressa da lei, ao menos nos princípios que a informam, dentro de uma visão sistemática e fundamentalmente teleológica do Direito.

Desta forma, podemos sintetizar enumerando os elementos que compõem a figura da desconsideração da pessoa jurídica:

Ignorância dos efeitos da personificação.

Ignorância para o caso concreto e período determinado.

Manutenção da validade dos demais atos jurídicos praticados.

Intenção de evitar o perecimento do interesse legitimo.

O instituto, que ainda podemos conceituar em palavras diversas como: o afastamento momentâneo da personalidade jurídica da sociedade, para destacar ou alcançar diretamente a pessoa do sócio, responsabilizando-o como se a sociedade não existisse, em relação a um ato concreto e específico, se desenvolveu ao redor do mundo, recebendo diferentes designações, como: Desconsideração, disregard of legal entity, desconsideração da entidade legal, no direito Norte Americano; Levantamento, lifting the corporate veil, levantamento do véu corporativo, na Inglaterra; Penetração, durghgriff der juristischen Person, penetração da pessoa jurídica , na Alemanha; teoría de la penatración, teoria da penetração, na Argentina; Superação, superamento della personalitá giuridica, superação da personalidade jurídica, na Itália.

O cabimento da desconsideração envolve sempre algo de ideológico e, certamente, algo de axiológico, de vez que haverá sempre, quando de sua aplicação,

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uma opção entre um valor ou um interesse específico, diante de outros valores ou outros interesses específicos.

Desconsideração não se confunde nem acarreta a nulidade dos atos que propiciaram a atuação judicial. Os atos praticados não são anulados; apenas outras medidas são tomadas para corrigir e compensar, "dis-torcer" as conseqüências do ato praticado, desfazer o que de fraudulento houver sido praticado em nome da pessoa jurídica.

6 - DISPOSITIVOS LEGAIS

O ser construção pretoriana, não afasta do instituto a possibilidade, ou mesmo a necessidade, de previsão legal, ao menos no que tange ao reconhecimento da possibilidade de sua aplicação, à outorga aos Órgãos Judiciários da capacidade de praticá-lo, ou, até e ainda, prevendo, genericamente, as hipóteses que ensejem sua aplicação.

Devemos citar a previsão legal inserta no projeto de Código Civil em tramitação no Senado, a título de melhor ilustrar a natureza do instituto, bem como a possibilidade de sua previsão normativo-positiva.

"Art. 50. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração."

Em nosso ordenamento jurídico positivo, a Desconsideração surge pioneiramente no Código de Defesa do Consumidor (art. 28), de resto diploma amplamente inovador, tanto do Direito Material, quanto do Direito Processual. Passemos, então, ao Código.

7 - A DESCONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

Vejamos o que diz a redação do art. 28 do CDC:

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"SEÇÃO V- DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Art. 28 - O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1º - (Vetado)

§ 2º - As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 3º - As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 4º - As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5º - Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

Podemos, a luz do quanto já acima discutido afirmar categoricamente: a Desconsideração da Pessoa Jurídica é objeto do caput e do § 5º do art. 28 do CDC, pois os §§ 2º a 4º, a despeito da rubrica aposta à Seção V, versam sobre a matéria da responsabilidade subsidiária ou solidária, que a própria lei determina, sendo desnecessária intervenção judicial no sentido de proclamar desconsideração. Esta não se faz necessária par o fim de fazer atuar aquela responsabilidade.

Podemos, para fins de análise, dividir em três grupos as hipóteses legais de incidência da desconsideração contidas no art. 28. Vejamos:

Abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação de estatutos ou contrato social. (caput, 1ª parte).

Falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocadas por má administração. (caput, 2ª parte).

Qualquer hipótese em que a personalidade da pessoa jurídica seja, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. (§ 5º)

Algumas considerações

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Primeira: o pressuposto de todas as hipóteses acima arroladas é o da lesão de interesses do consumidor. Na realidade é o elemento integrante de todas as hipóteses que requerem, para sua efetividade, que a pratica abusiva ou ilícita o seja em virtude da preterição do direito do consumidor. Não caberia, por motivos óbvios na aplicação em defesa de interesses outros, como os dos demais sócios, ou os da personalidade societária.

Segunda: a desconsideração há de supor a incapacidade da pessoa jurídica para reparar o dano. Quando tratamos de empresa com capacidade financeira para ressarcir o consumidor, não há razão para aplicar, prima facie o tratamento excepcional da desconsideração, tratamento excepcional e, portanto, de uso parcimonioso.

Terceira, a desconsideração, como de resto toda a disciplina de defesa do consumidor abraça as duas fontes da responsabilidade a da responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco, e a da responsabilidade subjetiva fundada em culpa. (fato que emerge claramente dos arts. 12 a 14 do CDC).

Analisemos separadamente cada um dos grupos acima nominados.

Grupo 1

No primeiro grupo de hipóteses, temos a prática de atos que implicam infração da lei, dos estatutos ou utilização de direitos além de sua órbita. Tais fatos, quando por si não acarretem a responsabilidade pessoal do agente, poderão servir de embasamento a desconsideração a fim de alcançar o patrimônio dos sócios. A desconsideração visa em tais casos a que os bens dos sócios infratores sejam também garantia do ressarcimento do prejuízo causado ao consumidor. Deve haver inafastável nexo de causalidade entre a conduta inadequada e o prejuízo causado ao consumidor. Conforme Arruda Alvim (in "Código do Consumidor Comentado", p. 181):

"O dano indenizável, a busca do responsável, etc., só podem ocorrer se e quando tiver havido desrespeito ao sistema jurídico, por responsável e, em razão disto, prejuízo ao consumidor."

Caracteriza-se o abuso de direito, nas palavras de Domingos Afonso Kriger Filho (in "Aspectos da Desconsideração da Personalidade Societária na Lei do Consumidor", p. 23)

"... com o uso anormal das prerrogativas conferidas à pessoa pelo ordenamento jurídico, objetivando, por dolo ou má-fé, auferir vantagem ilícita ou indevida".

Segundo Pedro Batista Martins (apud Rubens Requião in "Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica"):

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"sempre que um titular de direito escolhe o que é mais danoso para outrem, não sendo mais útil para si ou adequado ao espírito da instituição, comete um ato abusivo"

Arruda Alvim (in "Código do Consumidor Comentado", p. 182):

"Ocorre abuso de direito quando o fornecedor, por lei ou embasado no sistema jurídico, ou por força dos estatutos ou contrato social, puder praticar determinado ato, mas o faça de molde a prejudicar terceiro, a lesá-lo (consumidor)".

No excesso de poder a pessoa pratica ato ou contrai negócio fora do limite da outorga ou autoridade conferida. Infração de lei, fato ou ato ilícito ou violação do contrato social, representam, sempre, o não cumprimento das obrigações impostas às pessoas pela lei, ou pelo contrato social.

Frise-se que determinados autores não consideram, de desconsideração da pessoa jurídica, as hipóteses do parágrafo anterior. Consideram a teoria inaplicável in casu. Vejamos:

"No que se refere ao excesso de poder, infração da lei, fato, ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, não há desconsideração, pois aquele que excede o que lhe é permitido por lei, age contra a lei ou, dolosamente contra o estatuto ou contrato, responde por ato próprio. Já há previsão legal: no caso da sociedade de responsabilidade limitada (art. 10, Decreto. 3.708, e art. 16); no caso da sociedade anônima (arts. 115, 117 e 158, Lei 6404), demais casos, art. 159, CC.." (Alberton, Genacéia da Silva in "A desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor, Aspectos Processuais". Pag. 168 e 169)

"Excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social dizem respeito a um tema societário diverso, que é a responsabilidade do sócio ou do representante legal da sociedade por ato ilícito próprio, embora relacionado com a pessoa jurídica." (Coelho, Fábio Ulhoa in "Comentários ao Código de Proteção do Consumidor", p. 142)

Sobre o assunto, embora não se referindo especificamente ao CDC:

"Não podem ser entendidos como verdadeiros casos de desconsideração todos aqueles casos de mera imputação de ato." (Oliveira, J. Lamartine Corrêa de. In " A Dupla crise da Pessoa Jurídica", p. 610)

"Em determinadas circunstâncias, sócios, diretores, ou gerentes podem responder por dívidas da sociedade. Esta situação decorrente da lei e as conseqüências, no caso de desconsideração da pessoa jurídica são idênticas? Quer nos parecer que não. Apenas há um ponto comum .... a excepcionalidade. ... Qual, então a

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diferença ?.... Quando a lei brasileira ...impõe ao sócio, gerente ou administrador a responsabilidade por dívidas da sociedade, faz porque uma dessas pessoas agiu de maneira contrária à lei ou contrato, mas como pessoa integrante da pessoa jurídica. Não foi a pessoa jurídica que teve a sua finalidade desvirtuada, não foi a pessoa jurídica como ser que foi manipulada mas, sim, o diretor, o gerente ou o sócio que, na sua atividade ligada à empresa, andou mal. Quando se fala, por outro lado, em desconsideração da pessoa jurídica, é porque a própria entidade é que foi desviada da rota traçada pela lei e pelo contrato.... Assim, acreditamos que devemo separar bem estas duas hipóteses por não serem idênticas" (Casillo, João in "Desconsideração da Pessoa Jurídica")

Acatando o ponto de vista dos autores citados, restaria apenas a hipótese do abuso de poder, como ensejador da aplicação da doutrina da Desconsideração, ficando as demais hipóteses ainda no campo da previsão legal, externa à doutrina. O abuso do poder, por sua própria natureza, conforme acima referido, se amolda a hipótese de utilização da Desconsideração, vez que constitui, não violação clara da lei, caracterizando um "fato típico", previsto legalmente, mas antes, um uso abusivo da lei. Não havendo tal "tipicidade", impossível prévia previsão legal, imperativa então a atuação criadora judicial, através do instituto sob análise.

Parece-nos, entretanto, que há um certo excesso de rigor formal em tal posição. Nem sempre ao ilícito legal ou contratual corresponderá uma expressa cominacão de responsabilidade pessoal, civil ou penal. Ainda que ressalvadas as previsões genéricas da lei, como a do art. 159 do CC, citada por Genacéia, parece-me que o instituto da Desconsideração melhor cobriria esses casos de lacuna da lei no que tange a previsão expressa da responsabilidade, lacuna que poderia ao final acobertar o infrator. A ausência de tal expressa previsão legal, poderia ser agitada com o propósito de elidir a responsabilidade, em sendo o caso, o art. 28, sob comento, forneceria o respaldo legal para a atuação jurisdicional no sentido de alcançá-la.

Separar o ato do responsável pela pessoa jurídica do ato da pessoa jurídica, operação mental a que podemos ser induzidos pelo raciocínio de Casillo, pode resultar ser tarefa árdua, considerando as sutilezas que quase sempre cercam a situação concreta. Mais uma vez, o afastamento da figura da Desconsideração, poderia ser utilizada no sentido do acobertamento do infrator.

De forma que, a despeito do rigor formal que caracteriza o exposto pelos autores acima citados, considero mais prudente, estender o manto protetor do instituto que ora analisamos também aos fatos aos quais o autores negam sua incidência, como faz o diploma legal protetivo do consumidor.

Grupo 2

No segundo grupo o texto legal introduz um elemento não especificamente

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ligado ao interesse do consumidor: a má administração. É questionável esta inserção. Não há que se confundir a má administração com a prática abusiva citada na parte inicial do caput. A má administração poderia, isto sim, ensejar o uso do instituto para responsabilizar a gerência incompetente frente a própria pessoa jurídica ou frente aos demais sócios. É de se questionar, no entanto, a relevância deste fato frente ao direito do consumidor. É de se questionar se alguém administraria mal uma empresa com o fito exclusivo de fraudar os direitos do consumidor. E quanto à empresa bem administrada, que desativada, tenha lesionado consumidores. Ficariam imunes à regra?

Concluindo, parece mal posta a hipótese legal no que se refere a má administração, quer pela falta de nexo entre qualidade da administração e eventuais prejuízos ao consumidor, quer pela falta de isonomia entre o tratamento dado ao consumidor da empresa encerrada por má administração e o dado ao cliente de uma empresa bem administrada que encerrou suas atividades.

Certo é, em todos os casos, que o consumidor deve ser protegido na hipótese em a pessoa jurídica tenha cessado a atividade ou esteja extinta, e isto independentemente dos motivos que ensejaram tal encerramento de atividade.

Grupo 3

Finalmente no terceiro grupo, a hipótese contemplada no §5º, parece inconciliável com o caput. Expressões demasiadamente genéricas ("sempre", "de qualquer forma"), parecem inutilizar as hipóteses do caput. Tão genérico, abrangente e ilimitado é o parágrafo, que aplicado literalmente, dispensaria o caput, tornaria inócua a própria construção teórica do instituto da desconsideração, implicando derrogar a limitação da responsabilidade de toda e qualquer empresa no que diz respeito às relações de consumo. Frente a tal, pelo menos aparente, incongruência, posicionam-se os doutrinadores:

Zelmo Denari (in "Código de Defesa do Consumidor, Comentários pelos autores do Anteprojeto", p. 132), com a autoridade de ser um dos autores do anteprojeto da Lei 8.078/90, postula mesmo o "aberratio ictus da caneta presidencial". O parágrafo a ser vetado teria sido o 5º, e não o 1º, como apareceu no diário oficial, que segundo Denari é essencial para a aplicação do artigo. Para que se coteje com o texto do §5 e, à luz da razão do veto, aprecie-se assim a procedência da tese de Zelmo, transcrevemos abaixo o parágrafo vetado e as razões do veto:

"§ 1º. A pedido da parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da pessoa jurídica recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sócios-gerentes, os administradores societários e, no caso de grupo societário, as sociedades que a integram."

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Razão do veto:

"O caput do art. 28 já contém todos os elementos necessários à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, que constitui, conforme doutrina amplamente dominante no direito pátrio e alienígena, técnica excepcional de repressão a práticas abusivas."

Como claramente se vê, fortíssima pode parecer a evidência do equivocado fato pelo qual, propugna Zelmo Denari, se explicaria a aparente ininteligência do parágrafo que ora analisamos frente ao sistema em que se insere. Entretanto, é também óbvio que, para albergarmos tal tese, teríamos antes que admitir a ininteligência do legislador a exigir atuação da sancionadora caneta presidencial. Esta última parece-nos bem menos provável, dada a qualidade que pautou a produção legislativa do diploma que ora analisamos.

Vejamos, entretanto, outros posicionamentos:

Fábio Ulhoa Coelho (in "Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor", p. 143 e 144): censura o preceito no § 5º, concedendo apenas sua aplicação em matéria de sanções não pecuniárias (proibições de fabricação, suspensão temporária de atividade, etc...), apesar do contrário defluir do texto da lei: "ressarcimento de prejuízo do consumidor". Por fim salienta que no embate entre o caput e o § 5º, se um tiver que ceder será o parágrafo, não o caput. A interpretação meramente literal, no entanto não pode prevalecer e isto por três razões: Em primeiro lugar, porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração. ... Em segundo lugar, porque uma tal exegese tornaria letra morta o caput do art. 28. ... Em terceiro lugar, porque esta interpretação equivaleria à revogação do art. 20 do CC ("As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros") em matéria de defesa do consumidor. E se esta fosse a intenção do legislador, a norma jurídica que a operacionalizasse poderia ser direta, sem apelo à teoria da desconsideração.

Rachel Sztajn (in "Desconsideração da Personalidade Jurídica", p. 72): O parágrafo 5º deveria encimar o artigo: "Se o art. 28 tivesse por caput o § 5º, além dos §§ 2º e 3º, o consumidor estaria tutelado (apenas) em face da separação patrimonial utilizada de forma iníqua ou inadequada." A autora condiciona a aplicação do citado parágrafo aos pressupostos da teoria da desconsideração.

Américo Führer (in "Resumo de Direito Comercial", p. 74): "A teoria pode ser aplicada diretamente pela lei,...,independentemente de qualquer abuso ou má fé", parece que nestas palavras o autor admite o utilização literal do § 5º.

Genacéia da Silva (in "A Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor):

"No que ser refere ao § 5º do art. 28, é necessário interpretá-lo com cautela. A

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mera existência de prejuízo patrimonial do consumidor não é suficiente para a desconsideração. O texto deixou o significado em aberto na medida em que assevera que a pessoa jurídica poderá também ser desconsiderada quando sua personalidade ‘De alguma forma’ for obstáculo ao ressarcimento, ..., leia-se, quando a personalidade jurídica for óbice ao ressarcimento justo do consumidor." (grifo nosso)

A interpretação mais consentânea parece ser a de que o § 5º, constitui uma abertura ao rol de hipóteses do caput, sem prejuízo dos pressupostos teóricos da doutrina que o dispositivo visou consagrar. A aplicação do § 5º deve restringir-se às situações em que o fornecedor do produto ou serviço ao consumidor constitui a pessoa jurídica, ou a utiliza, especificamente para livrar-se da responsabilização de prejuízos causados ao consumidor. Aí justamente reside a carga axiológica do instituto, na análise judiciária da forma como a pessoa jurídica foi constituída ou utilizada relativamente à relação de consumo.

8 - A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA E SUBSIDIÁRIA PREVISTA NO ARTIGO 28 DO CDC

No presente trabalho pretendemos, no âmbito do Código de Defesa do consumidor, tratar apenas da Desconsideração da Pessoa Jurídica. Não obstante, por se encontrarem enfeixados sob tal rubrica no texto normativo, trataremos também do responsabilidade disciplinada pelos parágrafos 2º a 4º do art. 28 do CDC, que a nosso ver, como já exposto, não compõem o instituto da Desconsideração. Assim tratemos da:

Responsabilidade de Grupos societários e sociedade controladas

O § 2º, estatui responsabilidade subsidiária das sociedades integrantes de grupos societários e sociedades controladas. Aqui, como já dito, não se cuida de desconsideração, mas de hipótese legal de responsabilização de terceiro. A própria redação indica uma responsabilidade objetiva, não sujeita a análise de elementos outros, presentes no caso concreto. Basta o liame a unir as entidades societárias, para dele decorrer a responsabilização. Tal dispositivo previne que as obrigações sob estudo sejam concentradas na sociedade que tenha menor respaldo patrimonial.

Para Genacéia da Silva Alberton (in "A Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor), em seu trabalho já várias vezes citado, o Código foi tímido em estabelecer apenas responsabilidade subsidiária, concedendo o benefício de ordem e, consequentemente, impedindo que o consumidor ajuíze a ação desde logo contra as demais empresas. Para outros doutrinadores, no entanto, basta a prova da impossibilidade de ressarcimento pela empresa principal obrigada, para, já inicialmente, demandar a sociedade com responsabilidade subsidiária.

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No que se refere a sociedades controladas, o preceito parece conter alguma impropriedade. Obviamente a responsabilização subentende-se seja por obrigações da controladora (o texto não é explícito) que incidiria em caráter subsidiário sob o patrimônio da controlada. Temos a considerar que seria lógico que as ações ou quotas representativas do capital da controladora respondessem pelas obrigações da mesma, não o sendo, entretanto, que o patrimônio da controlada, que envolve o de terceiros (que podem deter até cerca de 83% do capital social, totalidade das ações preferenciais + 49% das ordinárias) o fossem, já que nada tem a ver com a conduta da controladora. Só podemos entender o dispositivo legal em sua literalidade, se o considerarmos conseqüência de prevalência especial do interesse de ordem pública da relação de consumo sobre os interesses de ordem privada; ou por outro, que sua aplicação dependa do pressuposto da concorrência da controlada na lesão ao consumidor., ou por outra de sua utilização pela controladora nesse intento.

Responsabilidade das Sociedades consorciadas

O § 3º, constitui também, em favor do consumidor, uma exceção a regra geral, já que a lei das Sociedades Anônimas, que rege esta esfera da ordem jurídica, não preconiza a solidariedade das sociedades consorciadas (art. 278, § 1º, Lei 6.404/76). Sabemos que a solidariedade não se presume, mas decorre da lei ou do contrato, aqui temos a hipótese legal, a proteger o consumidor.

Convém salientar, por ser lógica, a ressalva que faz Fabio Ulhoa:

"... a solidariedade existe apenas no tocante as obrigações relativas ao objeto do consórcio. Quanto às demais não há qualquer vínculo dessa natureza..." (Coelho, Fábio Ulhoa, in "Comentários ao Código De Proteção do Consumidor", p. 145)

Responsabilidade das Sociedades coligadas

O § 4º, estabelece a responsabilidade das coligadas, apenas na hipótese de culpa. Não poderia ser diferente, já que a mera participação da empresa no capital de outra (10% ou mais), sem controlá-la, não induziria, em si mesma, tal responsabilidade. A sociedade coligada é simplesmente sócia de outra e, como sócia, não tem responsabilidade pelos atos dessa outra a não ser que tenha participado do ato, caso em que será solidariamente responsável. Para alguns, supérfluo tal dispositivo, já que a responsabilidade seria deduzida de qualquer forma, sendo suficiente o art. 159 do CC.

- CONCLUSÃO

O CDC é diploma largamente inovador tanto no que se refere ao Direito Material, quanto no que se refere ao Direito Processual. Insere-se no contexto da evolução do Direito Moderno ao voltar-se à proteção e tutela de direitos

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personalísticos, individuais, coletivos, difusos, do hipossuficiente, etc... Nesse contexto inovador, tem relevância a introdução pioneira, no ordenamento jurídico pátrio, da Doutrina da Desconsideração da Pessoa Jurídica.

O art. 28 desse Estatuto representa o estendimento da longa manus do Estado, para alcançar aqueles atos que, apesar de conformarem-se ao figurino do estrito modelo legal, representam violação do ordenamento jurídico naquilo que possui de mais caro, seus valores e seus princípios asseguradores da paz, da boa fé, do convívio social harmonioso e da justiça.

A despeito de alguma impropriedade da redação, sob o aspecto dogmático ou doutrinário, conforme discutido neste trabalho, o art. 28 do CDC representa um grande avanço não só no campo específico do Direito Tutelar do Consumidor como também de todo o Direito Posto Nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMARO, Luciano; Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor; Ajuris, Vol 20; N 58; P 69 A 84; Julho; 1993.

CASILLO, João; Desconsideração da Pessoa Jurídica; RT 528/24.

COELHO, Fábio Ulhoa; Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor; Coordenação de Juarez de Oliveira; Ed. Saraiva; São Paulo; 1991.

DENARI, Zelmo; Código de Defesa do Consumidor, Comentários pelos Autores do Anteprojeto; Ed. Forense Universitária; Rio de Janeiro, 1991.

FÜHRER, Américo; Resumo de Direito Comercial; Malheiros Editores, São Paulo, 1996.

JUSTEN FILHO, Marçal; Desconsideração da Personalidade Societária no Direito Brasileiro; Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987.

KRIGER FILHO, Domingos Afonso; Aspectos da Desconsideração da Personalidade Societária na Lei do Consumidor; Revista Jurídica, Porto Alegre; Vol 42; N 205; P 17 A 27; Novembro ;1994.

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OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa; A Dupla Crise da Pessoa Jurídica; Editora Saraiva, São Paulo, 1979.

REQUIÃO, Rubens; Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica; RT, 528:16.

SZTAJN, Rachel; Desconsideração da Personalidade Jurídica; Revista de Direito do Consumidor; N 2; P 67 A 75; Junho; 1992.

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Princípios gerais da publicidade no Código de Proteção e Defesa do Consumidor

Autor: João Bosco Pastor Gonçalves

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Publicidade: Conceito e elementos essenciais; 3 – Princípios Gerais da Publicidade no CDC; 4 – Princípio da Identificação da Publicidade; 5 – Princípio da Vinculação Contratual da Publicidade; 6 – Princípio da Veracidade da Publicidade; 7 – Princípio da Não Abusividade da Publicidade; 8 – Princípio da Inversão do Ônus da Prova; 9 – Princípio da Transparência da Fundamentação; 10 – Princípio da Correção do Desvio Publicitário; 11 – Conclusão

1. Introdução

Com o objetivo de desenvolverem as suas atividades empresariais, o comércio e a industria necessitam divulgar os produtos e serviços por eles produzidos e prestados, a fim de que desperte interesse nos consumidores.

Em geral, produtos de primeira necessidade, (feijão, arroz, carne, leite, etc.), dispensam maior divulgação, entretanto, produtos mais caros (de luxo), como automóveis, equipamentos de áudio e vídeo sofisticados, telefones celulares ou uma casa de veraneio, não dispensam uma boa estratégia de marketing, e aí inclui-se a publicidade.

As pessoas compram coisas por dois motivos essenciais: necessidades e impulsos. As necessidades nem sempre são reais, elas são criadas pela publicidade, sem a qual não haveria como colocar no mercado cada vez mais produtos que, a rigor, ninguém precisa. 1

As mensagens publicitárias induzem as pessoas a comprarem por impulso. Quem resiste a um anuncio para comprar um presente em um shopping no dia das mães ou no dia dos namorados?.

Nosso ordenamento jurídico não obriga a ninguém a anunciar os seus produtos ou serviços, porém, se o fizer, a sua publicidade está sujeita a uma série de deveres impostos pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, (CDC).

O objetivo do presente trabalho é a análise do conceito de publicidade e dos princípios que a regem, á luz do referido diploma legal.

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2. Publicidade: Conceito e elementos essenciais

Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin2, citando o jurista português Carlos Ferreira Almeida, diz que publicidade ‘é toda informação dirigida ao público com o objectivo de promover, directa ou indirectamente, uma actividade económica’.

Prossegue afirmando que tal como acontece com o conceito de marketing, não é tarefa fácil definir o que seja publicidade em virtude do caráter complexo de suas múltiplas funções e das relações mútuas entre elas, e fornece a noção do Comitê de Definições da American Association of Advertising Agencies ( AAAA): ‘ publicidade é qualquer forma paga de apresentação impessoal e promoção tanto de idéias, como de bens e serviços, por um patrocinador indentificado’.

Trata-se sem dúvida, de uma forma de comunicação social, em toda publicidade há uma mensagem, um emissor que tem como objetivo alcançar um conjunto de receptores, transmitir-lhes uma idéia, incentiva-los a um determinado comportamento – comprar um bem ou, utilizar-se de certo serviço.

Porém, nem toda forma de comunicação integra o conceito de publicidade: fora desse campo ficam a informação cientifica, política, didática, lúdica ou humanitária, porque alheia á atividade econômica, mesmo quando seja produzida com a intenção de gerar certa convicção nos seus destinatários 3.

Dois elementos são essenciais em qualquer publicidade: a difusão e a informação. Um é o elemento material da publicidade, seu meio de expressão. O outro é o seu elemento finalistico4. Sem difusão não há publicidade, vez que a mesma precisa ser levada ao conhecimento de terceiros, da mesma forma sem um conteúdo mínimo de informação inexiste a publicidade.

Convém ainda esclarecer, que embora sejam usados indistintamente no dia-a-dia, os termos publicidade e propaganda não se confundem. Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin 5 afirma que a publicidade tem objetivo comercial, enquanto que a propaganda visa a um fim ideológico, religioso, político, econômico ou social, e que além de ser paga, na publicidade sempre identifica-se o seu patrocinador, o que nem sempre ocorre com a propaganda.

Na propaganda difunde-se uma idéia, ao passo que na publicidade divulga-se uma mercadoria ou serviço.

Estabelecidos o conceito de publicidade e seus elementos essenciais, bem como a necessária distinção entre os termos propaganda e publicidade, passamos a análise dos princípios que norteiam a elaboração da mensagem publicitária, á luz do Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) e da Constituição

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Federal.

3. Princípios Gerais da Publicidade no CDC

Princípio, conforme o excelente ministério do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello6 " [...] é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico". [...] Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao principio implica ofensa não apenas a um especifico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos".

Alguns princípios foram adotados pelo CDC para a elaboração da publicidade, com vistas á proteção do consumidor, parte mais fraca nas relações consumeristas.

Em função da tutela fornecida aos consumidores eles encontram-se assim distribuídos no Código de Proteção e Defesa do Consumidor: princípio da identificação da publicidade ( art. 36); princípio da vinculação contratual da publicidade ( arts. 30 e 35); princípio da veracidade ( art. 37 § 1º ); princípio da não-abusividade da publicidade ( art. 37 § 2º); princípio da inversão do ônus da prova ( art. 38); princípio da transparência da fundamentação publicitária ( art. 36, parágrafo único); princípio da correção do desvio publicitário ( art. 56, XII).

Observa-se7 que o Código optou por definir publicidade enganosa e publicidade abusiva, sem conceituar o que seja publicidade, preocupando-se com a definição do desvio ( abusividade e enganosidade), mas não com a do padrão.

Entretanto, o legislador preocupou-se com a tutela penal da publicidade, considerando crimes contra as relações de consumo a prática de publicidade enganosa ou abusiva, bem como a promoção de publicidade que induza o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança, apenando ainda o fornecedor que não mantenha em seu poder os dados fáticos, técnicos e científicos que embasaram a sua mensagem publicitária, cominando pena de detenção e multa (arts. 67, 68 e 69).

4. Princípio da Identificação da Publicidade

O artigo 36 do CDC está assim redigido:

Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil

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e imediatamente, a identifique como tal.

Parágrafo Único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação á mensagem.

Analisando a "cabeça" do artigo, vemos que o fornecedor ao veicular a publicidade de seus produtos e serviços, deve fazer de modo claro, inteligível, o consumidor deve compreender que está diante de um anúncio publicitário.

Previne-se8 assim contra as chamadas "publicidades ocultas" e "subliminares", através da técnica do Merchandising, de freqüente utilização em espetáculos, novelas, teatros, ou seja, a aparição dos produtos no vídeo, no áudio ou nos artigos impressos, em sua situação normal de consumo, sem declaração ostensiva da marca.

Um bom exemplo de comunicação subliminar é o uso constante de determinada marca de carros em uma novela, ou ainda, as aparições de produto, serviço ou marca, de forma aparentemente casual, em programas de televisão, filme cinematográfico, jogos de futebol televisionados, etc.

Pasqualotto9 observa que quando a publicidade não é de fácil e imediata identificação, "não é só o consumidor que pode estar sendo enganado. Também pode haver fraude á lei, pois a falta de identificação possibilita a transgressão de regras como a advertência necessária de restrição ao uso de alguns produtos (cigarros), o horário ou o local de exposição do anúncio (bebidas alcoólicas) ou a proporção de publicidade em relação á programação (rádio e televisão) ou o noticiário e reportagens (jornais e revistas)".

5. Princípio da Vinculação Contratual da Publicidade

Tal princípio decorre da inteligência dos arts. 30 e 35 do CDC :

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

Portanto, no plano contratual, o Código consagra o princípio da vinculação da publicidade. O consumidor pode exigir do fornecedor o cumprimento do conteúdo da comunicação publicitária.

A publicidade é um verdadeiro negócio jurídico unilateral, na medida em que obriga o fornecedor a cumprir com a promessa, desde a sua difusão. Confira-se a jurisprudência a seguir:

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COMPRA E VENDA – Erro – Entrega recusada sob alegação de erro na especificação do preço, no orçamento – Não pode a teoria do erro escusável favorecer o fornecedor – Negócio perfeito e acabado – análise das disposições do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor – Exame da doutrina – Ação para entrega da coisa – Procedência – Decisão mantida. ( AC. Um. Da 5ª Cam. Esp. Do 1º TAC, Ap. 562.425-3, Rel. Juiz Sílvio Venosa, j.6-7-1994) ( O Código de Defesa do Consumidor e sua Interpretação Jurisprudencial, Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Saraiva, 1997, p. 90).

6. Princípio da Veracidade da Publicidade

Aqui, (art. 37 § 1º), o legislador preocupou-se em coibir a publicidade enganosa, que pode ser apresentada de duas formas: por comissão ou por omissão. Na publicidade enganosa por comissão, o fornecedor afirma alguma coisa capaz de induzir o consumidor a erro, dizendo alguma coisa que não é verdadeira. Na forma omissiva o patrocinador deixa de afirmar o que é relevante, também induzindo o consumidor a erro.

Possível, também, que quanto á sua extensão a publicidade seja parcialmente enganosa, ou seja, contendo algumas informações falsas e outras verdadeiras, o que não a descaracteriza como publicidade enganosa. Quanto ao seu aspecto subjetivo10

não se exige por parte do anunciante a intenção (dolo ou culpa), sendo irrelevante a sua boa ou má-fé. Portanto, sempre que o anúncio for capaz de induzir o consumidor a erro, independentemente da vontade do fornecedor, está caracterizada a enganosidade da publicidade, o que justifica-se porque o objetivo é a proteção do consumidor, e não a repressão do comportamento enganoso do fornecedor.

7. Princípio da Não Abusividade da Publicidade

Está consagrado no art. 37, § 2º, do CDC, que proíbe de qualquer forma, dentre outras, a publicidade discriminatória, que incite á violência, que desperte o medo ou a superstição, que se aproveite da deficiência de julgamento e inexperiência da criança, atinja valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa á sua saúde ou segurança.

A locução "dentre outras", deixa transparecer que o elenco da publicidade abusiva é apenas exemplificativo, podendo existir outras formas de abusividade, cabendo aos aplicadores da lei – juízes e administradores adaptarem o texto da lei ás práticas do mercado.

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A publicidade é discriminatória quando distingue entre raça, sexo, condição social, nacionalidade, profissão, convicções políticas ou religiosas, etc.

Não se admite a publicidade que mostre a violência, seja entre homens, seja entre homens e animais, ou até contra bens públicos ou privados.

O meio ambiente, como direito fundamental dos seres humanos foi também motivo de proteção pelo legislador, que não admitiu nenhuma veiculação publicitária que fosse contra a proteção e conservação do mesmo.

Quanto á publicidade exploradora do medo ou da superstição11, não se exige que a mensagem aterrorize, realmente os consumidores, bastando que o anuncio faça uso desses recursos para que seja considerado ilegal.

Quanto ás crianças, por serem muito jovens não possuem o necessário entendimento para a compreensão do que é ou não verdadeiro nas mensagens publicitárias, razão pela qual o legislador dedicou-lhes especial proteção, considerando que qualquer publicidade dirigida a infantes não deixa de ter um grande potencial abusivo.

Quanto à responsabilidade pelo desvio publicitário, responde em regra, o anunciante ou a quem o anúncio aproveita, não se excluindo, porém, a responsabilidade da agência e do próprio veículo de comunicação.

8. Princípio da Inversão do Ônus da Prova

Tal princípio, (art. 38), decorre dos princípios da veracidade e da não abusividade da publicidade, bem como do reconhecimento opis legi, da vulnerabilidade do consumidor.

Trata-se de princípio básico para a facilitação da defesa do consumidor em juízo, cabendo ao fornecedor demonstrar que sua publicidade foi veiculada dentro dos princípios que estamos expondo, ou, nas palavras de Carlos Alberto Bittar12: trata-se, pois, de ação tendente a instruir, ilegitimamente, o consumidor, a respeito de bens ou serviços oferecidos, condicionando o seu comportamento para a respectiva aquisição ou fruição; daí por que se desloca para o patrocinador o ônus da prova da veracidade e da correção da informação ou da comunicação publicitária (art.38).

9. Princípio da Transparência da Fundamentação

Trata-se de verdadeiro dever, anexo ao princípio da boa-fé como norma de conduta, pois a publicidade constitui-se em verdadeira oferta (princípio da vinculação

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contratual da publicidade), e vem expresso no art. 31, do CDC:

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.

O artigo estabelece os requisitos da oferta, de maneira que o consumidor tenha uma idéia precisa do que lhe está sendo oferecido. A publicidade, por esta óptica, deve conter informações suficientes para esclarecer ao consumidor os elementos básicos que irão fundamentar a eventual formação segura e satisfatória de um contrato que atenda a seus interesses econômicos.

A ausência de informação essencial será sempre interpretada contra o fornecedor, pois é este que tem o dever legal de informar de modo preciso, claro, ostensivo e em língua portuguesa13.

10. Princípio da Correção do Desvio Publicitário

Ocorrido o desvio publicitário, além da sua reparação civil, e repressão administrativa e penal, necessário que sejam desfeitos o seu impacto sobre os consumidores, o que se faz através da contrapropaganda, sic,( melhor seria contrapublicidade), acolhida pelo Código em seu art. 56, XII.

Trata-se de veiculação de outra publicidade para sanar os malefícios causados pela publicidade originária. Naquela, de caráter explicativo, o fornecedor, às suas expensas, informa corretamente ao consumidor, desfazendo os erros do anúncio original.

É divulgada no mesmo veiculo de comunicação utilizado e com as mesmas características empregadas, no que se refere à duração, espaço, local e horário.

Nada mais é que uma publicidade obrigatória e adequada que se segue a uma publicidade enganosa ou abusiva, tendo como objetivo apagar a informação inadequada da percepção do consumidor, restaurando dessa forma, a realidade dos fatos14.

11. Conclusão

O legislador ao elaborar o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, não se limitou apenas ao regramento das

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relações contratuais de consumo.

Reconheceu que a proteção do consumidor deve iniciar-se mesmo em momento anterior ao da celebração do contrato de consumo – na fase da oferta, que surge através das técnicas de estimulação do consumo – a publicidade.

Instituiu para tal (proteção do consumidor), uma serie de normas e princípios para o controle da publicidade, coibindo todas as modalidades de anúncios enganosos ou abusivos, para resguardar a boa-fé dos consumidores.

Proibiu a propaganda clandestina e a subliminar, acolhendo o princípio da identificação da publicidade, referendou o principio da vinculação contratual que permite ao consumidor exigir do fornecedor o cumprimento do conteúdo da mensagem publicitária, inverteu o ônus da prova em favor do consumidor facilitando o seu acesso à Justiça, exigiu a transparência da fundamentação da publicidade e determinou a correção do desvio publicitário através da imposição da contrapropaganda.

Notas

1. Márcio Mello Casado, Princípios Gerais da Publicidade na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor. Revista Jurídica, novembro de 1999, nº 265, pp. 66,67.

2. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pellegrini Grinover...[ et al ]. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 264.

3. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, (op. Cit.), p. 265.

4. Idem, p. 265.

5. Ibidem, p. 266.

6. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, pp. 747, 748.

7. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pellegrini Grinover...[ et al ]. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 274.

8. Sônia Maria Vieira de Mello. O Direito do Consumidor na Era da Globalização: a descoberta da cidadania. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 82.

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9. Adalberto Pasqualotto. Os Efeitos Obrigacionais da Publicidade. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997, pp. 82 e 83.

10. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, op. Cit., p. 286.

11. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pellegrini Grinover... [ et al]. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 298.

12. Carlos Alberto Bittar. Direitos do Consumidor, 4ª ed., Forense Universitária, p. 51.

13. José Luiz Toro da Silva. Noções de Direito do Consumidor, 1ª ed., Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 46.

14. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, op. Cit., p. 303.

Referências bibliográficas

BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do Consumidor, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

CASADO, Márcio Mello. Princípios Gerais da Publicidade na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor, Revista Jurídica, novembro de 1999, nº 265.

GRINOVER...[ et al], Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

MELLO, Sônia Maria Vieira de. O Direito do Consumidor na Era da Globalização: a descoberta da cidadania, Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

PASQUALOTTO, Adalberto. Os Efeitos Obrigacionais da Publicidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

SILVA, José Luiz Toro da. Noções de Direito do Consumidor, Porto Alegre: Síntese, 1999.

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As cláusulas abusivas à luz da doutrina e da jurisprudência

Autores: Andrade Carlos Cavalcante

Karla Karênina

"Sem dúvidas, há contratos e contratos e estamos longe da realidade desta unidade de tipo contratual que supõe o Direito. Será necessário, cedo ou tarde, que o Direito se incline diante das nuanças e divergências que as relações sociais fizeram surgir. Há supostos contratos que tem do contrato apenas o nome, e cuja construção jurídica esta por fazer; para os quais em todo caso, as regras de interpretação judicial deveriam se submeter, sem dúvidas, a importantes modificações; poderiam ser chamados, na ausência de termo melhor, de contratos de adesão, nos quais a predominância exclusiva de uma única vontade, agindo como vontade individual, que dita sua lei não mais a um indivíduo mas a uma coletividade indeterminada, obrigando antecipada e unilateralmente, admitindo-se apenas a adesão daqueles que desejarem aceitar a lei do contrato".

trecho de Raymond Saleilles em De la déclaration de volonté, Paris, 1901

Sumário:1.Introdução; 2. Cláusulas abusivas, 2.1.A Competência da Secretaria de Direito Econômico,2.2.Da Aplicação das Portarias da SDE aos Contratos Utilizados no Âmbito do Sistema Financeiro Nacional, 2.3.O Controle das Cláusulas abusivas,2.4.Efeitos nos contratos, 2.5.Contratos de Adesão, 2.6.A recepção do princípio da predominância da ordem pública pelo CDC como meio de afastamento das cláusulas abusivas nos contratos de adesão; 3. A cobrança extrajudicial de honorários advocatícios como cláusula abusiva; 4. Conclusão; 5.Referências Bibliograficas; 6. Anexo- Sentença proferida em sede de ação de rescisão contratual; 7.Notas.

1.Introdução

As relações contratuais em curso na atualidade, mormente as relações de consumo, são fortemente influenciadas pela economia de mercado, reflexo do processo de globalização no qual se insere toda a sociedade contemporânea; como o Direito não é subsistema normativo ético isolado dos demais, recebe essas influências que o tornam apto a regular as novas relações que emergem do desenvolvimento da sociedade; nesse quadro, vê-se que economia é uma das maiores influenciadoras no

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desenvolvimento jurídico.

O aumento das relações entre fornecedores e consumidores advindo da nova economia de mercado tornou perceptível uma situação, não vislumbrada até então, de desequilíbrio entre as partes contratantes, o que acabou por franquear o questionamento de institutos outrora inabaláveis, como o pacta sunt servanda, a qual atualmente se admitem restrições; há juristas, como Nelson Nery Junior, que entendem não existir mais, em um contexto atual de nosso direito, o instituto da pacta sunt servanda "stricto sensu" não existe mais. Em se reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor no mercado de massa, fez-se indispensável a criação de aparatos jurídicos capazes de repor equilíbrio entre os pólos contratuais, embora fosse para isso preciso afrontar o posicionamento tradicional dos mestres civilistas a respeito da força obrigatória dos contratos:

"O princípio da força obrigatória no contrato contém ínsita uma idéia que reflete o máximo de subjetivismo que a ordem legal oferece: a palavra individual, enunciada em conformidade com a lei, encerra uma centelha de criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação, é tão imperiosa que, depois de adquirir vida, nem o Estado mesmo, a não ser excepcionalmente, pode intervir, com o propósito de mudar o curso de seus efeitos."(Caio Mário da Silva Pereira) (1)

"Essa força obrigatória atribuída pela lei aos contratos é a pedra angular da segurança do comércio jurídico. Praticamente, o princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos significa a impossibilidade de revisão pelo juiz."(Orlando Gomes) (2)

Com a crescente evolução de uma sociedade que prima pelo consumismo, surgiram os chamados contratos de adesão, largamente utilizados para a aquisição ou utilização de bens, destacando-se os de alienação fiduciária e o arrendamento mercantil, popularmente difundido como leasing. Trata-se de um contrato estandardizado, que dispensa a prévia discussão das bases do negócio instrumento, e onde vem sendo a praxe a inserção de cláusula abusiva onde se elege o foro do estipulante em detrimento do foro do domicílio do consumidor, de forma que, ao atrasar qualquer das prestações avençadas é o consumidor surpreendido com ação judicial promovida pelo estipulante no foro deste, o que significa uma verdadeira negação de acesso à justiça.

Antes do Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas abusivas eram disciplinadas de maneira esparsa no direito positivo pátrio; o Poder Judiciário recorria às regras gerais contidas nos arts. 4.º e 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil para suprir essa lacuna: decidindo de acordo com a analogia, valendo-se do direito comparado e atendendo aos fins sociais e às exigências do bem comum. O art. 85 do mesmo diploma legal era também aplicado (Art. 85 - nas declarações de vondade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem). Outros diplomas

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legislativos também tratavam do assunto, tais como o Decreto n. 24.038/1934, o Decreto-Lei n. 857/1969, o Decreto n. 59.195/1966 e outros. Há apenas dois artigos no Código Civil brasileiro que proíbem o uso das cláusulas leoninas (3): o art. 115 e o art. 1.372.

Com o advento do CDC (4) foram trazidos avanços ao tratamento da proteção contratual do consumidor, tais como: os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes foi dada a possibilidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo ou se os respectivos instrumentos foram redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance; é possível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor; como regra básica, no caso de dúvida as cláusulas contratuais gerais devem ser interpretadas em favor do aderente; dentro do período de reflexão de sete dias, pode o aderente exercer o direito de arrependimento, no caso de o contrato de consumo ter sido concluído fora do estabelecimento comercial, tendo direito à devolução imediata das quantias que eventualmente pagou, corrigidas monetariamente pelos índices oficiais; há penalização se o termo de garantia não for adequadamente preenchido e entregue ao consumidor; todo produto ou serviço deve ser obrigatoriamente acompanhado do manual de instalação e instrução sobre sua adequada utilização, redigido em português, em linguagem clara e acessível; apresenta, em seu artigo 51, uma lista exemplificativa das chamadas cláusulas abusivas, que são aquelas cláusulas contratuais não negociadas individualmente e que, frente as exigências da boa-fé, causam em detrimento do consumidor um desequilíbrio importante entre os direitos e obrigações das partes. A previsão de cláusulas abusivas pelo CDC, portanto, não é exaustiva, sendo o Secretário Nacional de Direito Econômico autorizado, pelo art. 58 do Decreto nº2.181/97 (regula o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor), autorizado a editar anualmente um rol exemplificativo do que são tidas por cláusulas abusivas

É objetivo do estudo ora encetado a análise da posição doutrinária e jurisprudencial no que concerne às cláusulas abusivas, e sua conseqüente declaração de nulidade, assim como as implicações decorrentes, posto que, como se pode depreender da observância dos fatos acima expostos, é inegável a importância da devida compreensão acerca do que sejam cláusulas abusivas, e do tratamento dado pela doutrina e jurisprudência a este assunto.

2.Cláusulas Abusivas

Dispõe o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor:

"Art.51º "São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

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(...)

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa fé ou a equidade;.".

Cláusulas abusivas, no conceito de Nelson Nery Junior:

"são aquelas notoriamente desfavoráveis à parte mais fraca na relação contratual de consumo. São sinônimas de cláusulas abusivas as expressões cláusulas opressivas, onerosas, vexatórias ou, ainda, excessivas...". (5)

Segundo Hélio Zagheto Gama:

"As cláusulas abusivas são aquelas que, inseridas num contrato, possam contaminar o necessário equilíbrio ou possam, se utilizadas, causar uma lesão contratual à parte a quem desfavoreçam". (6)

Assim, há que se entender cláusulas abusivas como sendo aquelas que estabelecem obrigações iníquas, acarretando desequilíbrio contratual entre as partes e ferindo os princípios da boa-fé e da eqüidade.

Conforme disposto no artigo supramencionado, tais cláusulas são nulas de pleno direito, e não operam efeitos, sendo que a nulidade de qualquer cláusula considerada abusiva não invalida o contrato, exceto quando sua ausência acarretar ônus excessivo a qualquer das partes; assim, somente a cláusula abusiva é nula: as demais cláusulas permanecem válidas, e subsiste o contrato, desde que se averigúe o justo equilíbrio entre as partes.

"Assim, a mais abalizada doutrina e atual jurisprudência, com os olhos postos no presente, têm decidido em casos tais que, cláusulas como essa do instrumento havido entre as partes ostentam-se indisfarçavelmente ineficazes e sequer possível o seu aproveitamento". (STJ – AG Nº 170.699 –MG (97/0088907-6) (Anexo II)

"Conflito de Competência. Competência Territorial. Foro de Eleição. Cláusula Abusiva O juiz do foro escolhido em contrato de adesão pode declarar de ofício a nulidade da cláusula e declinar da sua competência para o juízo do foro do domicílio do réu. Prevalência da norma de ordem pública que define o consumidor como hipossuficiente e garante sua defesa em juízo". (STJ, Processo N°: 21540, Órgão: Segunda Seção, Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ-24/08/1998)

"Competência. Código de Defesa do Consumidor. Cláusula de eleição de foro. Contrato de adesão. Cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, de que resulta dificuldade para a defesa do réu. Tratando-se de ação derivada de relação de consumo, em que deve ser facilitada a defesa do direito do consumidor (Art. 6º, VIII,

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do Código de Defesa do Consumidor), impende considerar como absoluta a competência do foro do domicílio do réu, não se exigindo, pois, exceção de incompetência. Conflito conhecido." ( S.T.J. - 2ª Seção - j. em 13.05.1998, DJU de 16.11.98 )

O CDC apresenta dois momentos distintos de proteção contratual ao consumidor: no primeiro momento, compreendido até a efetiva formação do vínculo contratual (fase pré-contratual), cria novos direitos para o consumidor e deveres para o fornecedor; no momento posterior, são criadas normas proibindo expressamente as cláusulas abusivas nesses contratos, garantindo, assim, uma proteção a posteriori do consumidor, através de um efetivo controle judicial do conteúdo dos contratos.

Conforme anteriormente exposto, a previsão de cláusulas abusivas pelo CDC não exaure as hipóteses com o elenco ali exposto; compete ao Secretário Nacional de Direito Econômico editar anualmente um rol exemplificativo de cláusulas abusivas.

2.1.A Competência da Secretaria de Direito Econômico

A Secretaria de Direito Econômico (SDE) foi criada pelo Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997 e atua por meio de seu Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), sendo órgão do Ministério da Justiça, que integra o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Compete à SDE, através do DPDC, a coordenação geral da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, conforme especificado no artigo 3o do Decreto 2.181/97. O DPDC deverá, dentre outras atividades, prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos, fiscalizar e aplicar as sanções administrativas previstas no CDC e solicitar a instauração de inquérito para apuração de delito contra o consumidor.

O artigo 56 do Decreto 2.181/97 estabelece que, a fim de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a SDE divulgará, anualmente, elenco complementar de cláusulas contratuais consideradas abusivas, em caráter exemplificativo, aplicando-se o disposto no inciso IV do artigo 22 do Decreto 2.181/97. São atos de natureza administrativa, que não têm força de lei, mas servem de roteiro para os operadores do Direito (advogados, promotores, Juízes) e de advertência, para os comerciantes.

Assim, as portarias publicadas pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, elencando as cláusulas abusivas, são editadas em cumprimento ao disposto no citado artigo 56 do Decreto 2.181/97, cabendo aplicação de multa ao fornecedor de produtos ou serviços que, direta ou indiretamente, inserir, fizer circular ou utilizar-se de cláusula abusiva, qualquer que seja a modalidade do contrato de consumo.

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2.2.Da Aplicação das Portarias da SDE aos Contratos Utilizados no Âmbito do Sistema Financeiro Nacional

Ante o exposto, se pode concluir que a SDE tem competência e legitimidade para orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e uma das formas por que se realiza esta orientação é a divulgação anual de cláusulas contratuais consideradas abusivas, em complemento à listagem constante do artigo 51 do CDC.

Contudo, há instituições financeiras que pretendem questionar a validade/aplicação das portarias da SDE; duas alegações possíveis de serem articuladas por tais instituições seriam: questionar o conteúdo das portarias editadas pela SDE, alegando que determinadas cláusulas tidas como abusivas pela SDE, na realidade não o são; e/ou alegar que o CDC, e conseqüentemente as portarias da SDE, não se aplicam a determinados tipos de contratos utilizados no Sistema Financeiro Nacional (caso em concreto), uma vez que a figura do cliente da instituição financeira não pode ser equiparada à figura do consumidor, pois o cliente não é destinatário final dos serviços e/ou produtos oferecidos.

Não obstante as penalidades administrativas que a SDE ou qualquer outro órgão integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor possam vir a aplicar, as instituições financeiras não podem ser impedidas de recorrer ao Poder Judiciário para solucionar os conflitos gerados em razão da aplicação ou não de regras referentes às relações de consumo.

Sendo caracterizada a relação como de consumo ou demonstrada, de forma inequívoca, a existência de cláusulas obscuras ou abusivas, ou ainda configurada a excessiva onerosidade das obrigações assumidas livremente pelos clientes, não há que se discutir a não aplicação do CDC aos contratos bancários, e, por conseguinte, a anulação dos referidos contratos ou das cláusulas abusivas contidas no bojo destes.

2.3.Meios de Controle das Cláusulas abusivas

O fundamento jurídico em que sedimenta a doutrina brasileira o posicionamento acerca das cláusulas abusivas é o abuso de direito, contemplado pelo direito brasileiro de forma genérica, ainda que indiretamente, quando não considerou como ilícito o uso regular de um direito (Código Civil, art. 160, I, segunda parte). Do cotejo desta disposição, se pode depreender que o abuso estaria incluído, pelo uso anormal do direito, na classe dos atos ilícitos, pré-excluindo-se a contrariedade (Pontes de Miranda). As cláusulas abusivas seriam, portanto, uma especialização do fenômeno do abuso.Destarte, se pode concluir que o fundamento do repúdio às cláusulas abusivas assenta no princípio da boa fé. O princípio da boa fé pode encontrar amparo legal inserindo-se como conceito indeterminado numa cláusula geral, ou vigorar como um princípio subjacente ao ordenamento jurídico, aflorando casuisticamente na construção do caso concreto. Nesta feição é que o princípio da boa

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fé se faz largamente presente no sistema brasileiro. Tanto que está presente no rol das cláusulas abusivas, uma cláusula geral que autoriza o repúdio das disposições que "... sejam incompatíveis com a boa-fé e equidade". Segundo Arruda Alvim, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor é explícito a respeito da boa fé, como regra cardeal (arts. 4º., caput, e III; art. 51,IV).

A proteção contra cláusulas abusivas é direito básico, à luz do disposto no art. 6º, IV do CDC:

"Art.6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;"(grifo que não consta do original)

A lei fala em nulidade de pleno direito; o sistema de invalidade no direito civil comum é dúplice: os autores tratam das nulidades absolutas e das relativas, cuja diferença seria o grau de intensidade do defeito que macula o ato. Pontes de Miranda discorda dessa terminologia, dizendo ainda que Código Civil versa a figura da nulidade e da anulabilidade; aquela é sempre ipso jure, sem necessidade de ação judicial, enquanto esta depende sempre da manifestação judicial. O fato de ter o CDC estabelecido a nulidade de pleno direito das cláusulas, estabelecendo que o vício é meramente parcial, gera discussões acerca da natureza deste vício, se de nulidade absoluta, ou relativa ou anulabilidade.

Cumpre destacar por oportuno a questão da decretação judicial de nulidade da cláusula abusiva não suscitadas pelas partes, e a inovação trazida ao tratamento desta questão pelo CDC. Veja-se o RESP nº 90.162-RS, que teve como relator o eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar, cujo voto é a seguir transcrito, in verbis:

"Esta Eg. 4ª Turma tem reiteradamente decidido, com ressalva de meu posicionamento, sobre a inaplicabilidade das regras do Codecon às relações de consumo celebrados antes de sua vigência. Sem o comando dessa nova diretriz, prevalece a norma geral do artigo do Código de Processo Civil, que veda ao juiz conhecer de questões a cujo respeito a lei exige (exigia) a iniciativa da parte".

É patente a diferença de tratamento por esta turma do STJ, antes e depois da vigência do CDC; para os contratos formulado anteriormente ao CDC, era aplicado a inteligência dos artigos 128 e 460 do CPC, a seguir transcritos:

"Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da

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parte".

"Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado".

Sobre o princípio da congruência e o princípio da adstrição do juiz, ensina Moacyr Amaral Santos:

"A sentença deverá ser a resposta jurisdicional ao pedido do autor, nos limites em que este o formulou. Afastando-se desses limites, a sentença decide extra ou ultra petita". (7)

Conforme esse entendimento, o juiz não pode declarar nulidade de cláusulas ex officio, independentemente de provocação das partes, não podendo a sentença extrapolar os limites da litiscontestatio. A causa deve ser julgada como proposta e contestada, para não ocorrer julgamento extra petita, violando os dispostos nos arts. 128 e 460 do CPC. Neste sentido:

"Código de Defesa do Consumidor. Proteção Contratual. Destinatário. Cláusulas abusivas. Objetivando a desconstituição de cláusulas, em homenagem ao princípio da congruência, deve a sentença ater-se ao pedido" (TARGS – APC Nº 193051216- 7ª Câm. Cív. – Relator Juiz Antonio Janyr Dall’Agnol Junior)

"Conflito de competência. Competência territorial. Foro de eleição. Clausula abusiva. Segundo a orientação predominante na 2a. seção, a incompetência em razão do lugar, por ser de natureza relativa, deve ser suscitada pelo reu (sumula 033), ainda quando se trata de foro de eleição estabelecido em clausula de contrato de adesão. ressalva da posição do relator. conflito conhecido e declarada a competencia do juizo suscitado.(STJ. Processo n°16253. Órgão: Segunda Seção. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. DJ, 29/10/1996)

Contudo, a maior parte da doutrina diverge dessa orientação, admitindo assim a decretação ex officio, quando observado o vício. Constatada a cláusula abusiva, impõe-se ao juiz a sua decretação, independentemente de provocação das partes, posto que é decretável de ofício, dado o seu cunho de ordem pública.

Assim também manifestou sua posição Nelson Nery Jr, durante o Congresso Paranaense de Direito Processual Civil, realizado no hotel Bourbon em Curitiba. O juiz constrói, ele revê as cláusulas, criando uma nova realidade, participando, sendo sujeito ativo, adequando o contrato. Ele sugere uma nova hipótese de classificação de sentença, chamada de "Sentença Determinativa", onde o magistrado não somente muda um estado, mas é também sujeito ativo, integrando e construindo as cláusulas no contrato de modo que se possa dar execução ao mesmo, criando uma nova relação. Para ele, as cláusulas consideradas absolutamente nulas, devem ser declaradas nulas,

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assim que o vício é detectado, não sendo isto defeso ao juiz. Há inúmeros exemplos de jurisprudência que convergem com esta doutrina:

"Assim, a mais abalizada doutrina e atual jurisprudência, com os olhos postos no presente, têm decidido em casos tais que, cláusulas como essa do instrumento havido entre as partes ostentam-se indisfarçavelmente ineficazes e sequer possível o seu aproveitamento". (STJ – AG Nº 170.699 –MG (97/0088907-6)

Resta inconteste que coaduna com a busca de equilíbrio na relação contratual a admissibilidade da intervenção judicial na base do contrato, com o fim maior de não se permitir a execução da onerosidade constatada em seu bojo, e que é na mais das vezes resultado direto da fragilidade econômica do consumidor, que concorda com todos os termos do contrato que lhe é apresentado, sem que tenha havido oportunidade de discussão do mesmo.

2.4.Efeitos nos contratos

A definição de cláusulas abusivas, e os efeitos dela decorrentes, são aplicáveis tanto aos contratos de adesão quanto aos contratos paritários e são sempre consideradas nulas, prevendo a norma geral a proibição de cláusulas contra a boa-fé. A teor do disposto no parágrafo 2º do multicitado artigo 51 do CDC, a nulidade de qualquer cláusula considerada abusiva não invalida o contrato, exceto quando sua ausência, apesar dos esforços de integração, acarretar ônus excessivo a qualquer das partes; o CDC adotou o princípio da conservação dos contratos ao determinar que somente a cláusula abusiva é nula, permanecendo válidas as demais cláusulas contratuais, subsistindo o contrato, desde que se averigúe o justo equilíbrio entre as partes.

Além do previsto no artigo 51, o CDC, em seu artigo 6º, institui como um direito do consumidor a possibilidade de modificação de cláusulas contratuais no sentido de restabelecer o equilíbrio da relação com o fornecedor. Destarte, o consumidor poderá solicitar ao juiz de direito que altere o conteúdo negocial de uma cláusula considerada abusiva. Aqui, o legislador baseou-se na chamada "redução de eficácia" da doutrina alemã, prevendo a ineficácia de uma cláusula abusiva e não simplesmente sua nulidade absoluta.

2.5.Contratos de Adesão

Os contratos de adesão surgem como forma de proporcionar maior uniformidade, rapidez, eficiência e dinamismo às relações de consumo, e sua importância em parte deriva da constatação que os contratos de consumo guardam intrínseca relação com a economia; o consumo depende do desenrolar da economia de mercado, e vice versa, tendo em vista que os contratos são instrumentos de circulação de riquezas.

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Assim, os contratos de adesão podem ser tidos como uma necessidade do mundo globalizado, não obstante existam antes do processo de globalização, mormente na Itália. Entretanto, como anteriormente salientado, o contrato de adesão, por suprimir a prévia discussão do conteúdo entre fornecedor e consumidor, traz, via de regra, cláusulas abusivas, nas quais apenas uma das partes, isto é, aquele que está propondo a aderência a toda a proposta, sai beneficiado em relação ao aderente. Uma das mais comuns cláusulas abusivas em contratos de adesão é a de eleição do foro do estipulante em detrimento do foro do domicílio do consumidor.

Define-se o contrato de adesão como o negócio jurídico no qual a participação de um dos sujeitos da relação sucede pela aceitação em bloco de uma série de cláusulas formuladas antecipadamente, de modo geral e abstrato, pela outra parte, para constituir o conteúdo normativo e obrigacional de futuras relações concretas. (8)

Segundo Orlando Gomes:

"O contrato de adesão caracteriza-se por permitir que seu conteúdo seja preconstruído por uma das partes, eliminada a livre discussão que precede normalmente à formação dos contratos". (9)

Em sua formação, esse tipo de contrato apresenta-se como a adesão alternativa de uma das partes ao esquema contratual traçado pela outra, inexistindo as negociações preliminares e modificação de cláusulas, próprias dos contratos paritários. Caracteriza-se por ser um negócio jurídico bilateral, formado pelo concurso de vontades (embora restrito). Segundo Ana Maria Zauhy Garms, "As grandes instituições utilizam-se dos contratos de adesão para praticarem abusos contra os consumidores, isto por que neste tipo de contrato não há oportunidade de negociações, e devido à necessidade de adquirir o bem ou o serviço o indivíduo acaba por aceitar as condições que lhe são impostas, e que na maioria das vezes não são esclarecidas ou informadas pelo funcionário da instituição responsável pela realização do contrato". (10)

Os contratos de adesão são unilaterais, o que gera grande desigualdade nas relações de consumo entre as partes contratantes.

O Código do Consumidor em seu art. 54 definiu o contrato de adesão:

"Art. 54 – Contrato de Adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo."

Nos contratos de adesão, uma das cláusulas mais comuns é a de eleição do foro do estipulante em detrimento do foro do domicílio do consumidor; conforme exposto, e segundo corrente dominante na doutrina, deve o juiz reconhecer de ofício a

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nulidade da cláusula abusiva, e conseqüente afastamento desta, assim como declinar da competência para o juízo do domicílio do réu, in casu, o consumidor. Essa decisão não conflita com a Súmula 33 do STJ, porque a nulidade da cláusula faz desaparecer a razão pela qual a ação foi proposta no juízo que se dá por incompetente, enquanto que a exigência de que a parte suscite a incompetência do foro está inviabilizada pelas mesmas circunstância que levaram ao reconhecimento da abusividade da eleição do foro.

O Código de Processo Civil e as normas de organização judiciária dos Estados estipulam as diretrizes básicas para a definição dos limites da competência a serem observadas na prestação jurisdicional, como imperativo de ordem pública. Dispõe o art. 86 do aludido diploma legal:

"As causas cíveis serão processadas e decididas, ou simplesmente decididas, pelos órgãos jurisdicionais, nos limites de sua competência, ressalvadas às partes a faculdade de instituírem juízo arbitral".

À luz desse dispositivo, as partes não podem escolher livremente o foro onde querem propor a ação, visto que devem submeter-se aos mandamentos insertos no Código de Processo Civil e nas leis de organização judiciária dos Estados. A única hipótese em que a ação pode ser proposta em qualquer foro do Brasil está estandardizada no artigo 94, § 3º "in fine" do CPC:

"Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer o foro".(grifo que não consta do original)

Isto posto, a propositura da ação no foro do domicílio do estipulante ou em qualquer outro que não seja a do domicílio do consumidor, torna o juízo absolutamente incompetente ante à flagrante violação ao "princípio do juiz natural", contido no comando do artigo 5º, LIII, da Constituição Federal:

"Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".

Cumpre salientar a lição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Maria Helena Diniz:

"Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra". (In NORMA CONSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS, pág. 116, 1989, Saraiva - São

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Paulo).

Assim, em se tratando de ação que tenha por objeto contrato de adesão, que se destaca pela superioridade da vontade do estipulante e reduzido âmbito de escolha do aderente, a validade da cláusula de foro de eleição deve ser de logo examinada, para que não sirva de invencível acesso à justiça. Ao receber a petição inicial ao juiz cumpre examinar a validade e eficácia de tal cláusula e impedir que, através de seu cumprimento, esteja sendo sobremaneira dificultada a defesa do réu, especialmente quando há possibilidade de deferimento de medida liminar.

Nesse sentido:

"Foro Regional e Declaração ex officio de incompetência. Ainda que se reconheça que na divisão do foro de São Paulo em diversos Juízos há forte componente territorial que marca a delimitação da competência de cada um entre si, em determinada área da cidade, não se pode afirmar tratar-se o caso de competência territorial relativa. A divisão da competência estabelecida por lei de organização judiciária, dentro da cidade de São Paulo, confere a cada um parcela de competência funcional dentro do foro de São Paulo, ganhando por isso contornos de competência absoluta, declinável ex officio (TJSP, Câm. Esp., Ccomp 24495-0, rel. Des. Nigro Conceição, j. 265.10.1995, v.u.)"

"COMPETÊNCIA - Foro de Eleição - Consórcio - Contrato de Adesão _ Prevalecimento do Código de Defesa do Consumidor para que o devedor tenha acesso aos órgãos judiciários e facilitação de sua defesa - Artigo 6º, incisos VII e VIII da Lei nº 8.078/90 - Hipótese que não se trata de declinação de ofício de incompetência relativa, mas sim de reconhecimento de normas de ordem pública a exigir a remessa dos autos à Comarca do domicílio do consumidor. m vista todo o exposto, emerge dos autos ser completamente incompetente o Juízo "a quo" e, por essa razão, nula de pleno direito a decisão objurgada, a teor do estabelecido no art. 113, combinado com o art. 122, ambos do Código de Processo Civil vigente. A decisão objurgada, sem sombra de qualquer dúvida tem cunho decisório, porquanto, determinou e ocasionou a apreensão do veículo pertencente a agravante e, à luz do que fora exposto, é nula de pleno direito por Ter sido editada por Juízo agora tido como absolutamente incompetente, o que impõe sua revogação".(Embargos de declaração nº 98.000181-3. Embargante: Suy Mey C.M. Gonçalves. Embargado: Banco Fiat S/A, 1ª Câmara Cível. Rel. Marcos Antônio Souto Maior. Decisão unânime. Julgado em 23 de abril de 1998)

"CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA. DECLINAÇÃO. "EX OFFICIO". CONTRATO DE ADESÃO. ADMISSIBILIDADE. Inaplicabilidade da súmula 33/STJ. Abusividade da cláusula de eleição de foro, prejudicial à defesa do consumidor. Com o devido respeito àqueles que se filiam a outro entendimento, a propositura da demanda perante foro diverso do domicílio do consorciado dificulta

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seu acesso à Justiça, quando não o impossibilita, não obstante esse direito seja garantido constitucionalmente (CF/88, art. 5º, XXXV), o que configura a abusividade da cláusula e a sua nulidade de pleno direito, à luz do CDC (Lei nº 8078/90). É essa a posição que vem prevalecendo na melhor jurisprudência. (TJSP, Ag. de Inst. 32959-4, Itú, Rel. Juiz Cesar, Julg. em 30/10/96).

"CONSÓRCIO. CONTRATO DE ADESÃO. COMPETÊNCIA. Direito do consumidor em ser demandado em seu domicílio. Competência absoluta. Lei 8.078/90 (CDC), art. 6º, VIII".. (TJSP, Ag de Inst. 29240, Linbs, Rel.: Des. Júlio Vidal, Julg. em 30/10/96).

Também no mesmo sentido o voto do magistrado Antônio Carlos Marcato, em Agravo de Instrumento nº 477.406-2, da 79 Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo:

"A cláusula eletiva de foro, estabelecida em contrato de adesão, pela parte economicamente mais forte, revela-se abusiva se e quando impuser, ao contratante mais fraco sérios (e por vezes insuperáveis) óbices ao pleno acesso à jurisdição e à sua defesa no processo, assim afrontando as correspondentes garantias constitucionais; e essa afronta, abstraídos outros aspectos processuais (de menor ou nenhuma importância em confronto com ditas garantias), seria suficiente, por si só, para justificar a pronta remessa dos autos ao foro do domicílio da parte hipossuficiente, na medida em que a existência e o exercício da técnica processual têm por objetivo, atender, precipuamente aos desígnos constitucionais e não, à evidência, impor ônus e gravames indevidos a um dos sujeitos processuais. No entanto, é justa e razoável a conclusão de que o reconhecimento e a proclamação afronta a preceitos constitucionais demandam exame, caso a caso, das circunstâncias que envolvem o contrato, não sendo lícita, nem jurídica, a pura e simples generalização de que toda e qualquer cláusula eletiva do foro seja, mormente quando não impõe ao réu maiores dificuldades para o pleno, exercício de seu direito de resposta, nem estabelece obrigação que possa ser considerada iníqua ou abusiva, colocando-o em desvantagem exagerada."

Os princípios constitucionais do juiz natural, de acesso à justiça, da ampla defesa e da supremacia do interesse público hão de ser preservados e aplicados em todas as situações processuais, ainda quando está a decidir sobre a competência de foro. Daí porque, em se tratando de foro de eleição favorável ao estipulante de contrato de adesão, quando desde logo evidenciado que o demandando terá extrema dificuldade para exercitar sua defesa, e assim caracterizada a abusividade da cláusula, incumbe ao juiz impedir que ela tenha eficácia, declinando da sua competência para o foro de domicilio do réu. É caso de nulidade de pleno direito, decretável de ofício.

A eleição de foro é tão somente a mais comum dentre as cláusulas abusivas comumente contidas nos contratos de adesão; todas elas, sejam quais forem, podem

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ser questionadas, uma vez que se amoldem ao disposto no art. 51 do CDC. Assim, "No que tange aos contratos de adesão o Código de Defesa do Consumidor é bem claro ao especificar que todos os contratos devem ser revistos quando tornarem-se excessivamente onerosos, e ainda, que as cláusulas abusivas devem ser desconsideradas pelo consumidor". (11)

Por fim, cumpre salientar que nem toda regulamentação contratual pré-formulada pode ser entendida como abusiva, cabendo ao julgador verificar a abusividade ou não das cláusulas pré-elaboradas. As cláusulas negociadas destes contratos deverão subordinar-se à interpretação comum dos contratos. (12)

2.6.A recepção do princípio da predominância da ordem pública pelo CDC como meio de afastamento das cláusulas abusivas nos contratos de adesão

Os princípios do juiz natural, da supremacia da ordem pública e da magnitude da defesa do consumidor, conforme exposto no presente estudo, são amplamente aplicados aos contratos de adesão, derrogando as cláusulas abusivas, por força dos dispositivos pertinentes à espécie contidos no CDC, pelo que pode e deve o juiz declarar de ofício sua competência para processar as ações de busca e apreensão, reintegração de posse decorrente de contrato de leasing, ou outra qualquer, quando a propositura da ação no foro de eleição, na sede da empresa estipulante, dificultará sobremaneira a defesa do réu em juízo; o juiz deve ainda de ofício reconhecer a nulidade de cláusula abusiva, tal como a que elege, em contrato de adesão, o foro do domicílio do estipulante, quando o seu cumprimento significar verdadeira negação de acesso à justiça.

A decisão judicial que reconhece a nulidade de cláusula abusiva e declara a incompetência de ofício, não ofende a Súmula 33 do STJ, porque a nulidade da cláusula faz desaparecer a razão pela qual a ação foi proposta no juízo que se dá por incompetente, enquanto a exigência de que a parte suscite a incompetência do foro está inviabilizada pelas mesmas circunstâncias que levaram ao reconhecimento da abusividade da eleição de foro.

3.A cobrança extrajudicial de honorários advocatícios como cláusula abusiva

A questão ora analisada concerne à cobrança de honorários advocatícios por escritórios de advocacia do consumidor, em razão de débitos em atraso com o fornecedor, sob o argumento de que o escritório que faz a cobrança só recebe o pagamento se houver o acréscimo dos encargos (juros de mora e multa) além de honorários advocatícios, que variam de 10 a 20% do valor devido.

O cerne da questão é a quem cabe arcar com o pagamento dos honorários devidos ao advogado; se o consumidor ou o fornecedor contratante. De início cumpre

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observar que o consumidor não celebrou nenhum contrato com o escritório de advocacia, pelo que resta óbvio que quem deve pagar os honorários é o fornecedor, que, entretanto, ao recorrer aos préstimos do advogado, deixa de aceitar receber a parcela vencida, a qual deve então ser paga diretamente ao advogado contratado.

O artigo 22 do Estatuto da Advocacia (lei 8.906/94) dispõe que há três possibilidades de cobrança dos honorários advocatícios: "quando há convenção entre as partes, arbitramento judicial ou sucumbência" Vê-se que nenhuma destas hipóteses legitima a cobrança de honorários da parte que não contratou, como é o caso do consumidor, o que corrobora a tese da abusividade da cobrança. E caso haja o consumidor assinado contrato que contenha cláusula prevendo que, em caso de inadimplemento, deverá ele, consumidor, arcar com o pagamento dos honorários advocatícios, cumpre perguntar se seria cabível aplicar-se o art. 22 do Estatuto da advocacia (convenção entre as partes).

Ora, se nos reportarmos à definição de cláusula abusiva, ver-se-á que o caso em tela enseja a aplicação da Teoria da Abusividade na Relação de Consumo em prol do consumidor, objetivando declarar a nulidade absoluta da cláusula. Arcar com os honorários de advogado para agir contrário aos seus próprios direitos/interesses é, indubitavelmente, um ônus imputado ao consumidor em desvantagem exagerada. Além disso, estatui o art. 51, XII do CDC que é nula a cláusula contratual que "obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor". O STJ já pronunciou a respeito da nulidade de cláusula contratual no caso da denominada cláusula mandato, que autoriza a emissão de título cambial por procurador, prescrevendo a Súmula nº 60 do STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante no exclusivo interesse deste".

A Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça editou a Portaria nº4/98 que tipificou como abusiva a cláusula contratual que obriga o consumidor ao pagamento de honorários advocatícios, sem ajuizamento de ação; esta Portaria adita ao elenco do art. 51 da lei 8.078/90 e do art. 22 do Decreto 2.181/97, outras cláusulas abusivas, prescrevendo como nula de pleno direito a cláusula contratual que obriguem o consumidor ao pagamento de honorários advocatícios sem que haja ajuizamento de ação correspondente. (item 9 da Portaria nº 4/98).

O Despacho nº 132 do Secretário de Direito Econômico, de 12/05/98 (13), expressou nota explicativa a respeito dos motivos da edição da Portaria nº 04 de 13.03.98, em conformidade com a decisão unânime extraída da 19ª Reunião do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, realizada em Brasília, esclarecendo em relação ao item 9, acima transcrito que "O consumidor não está obrigado ao pagamento de honorários ao advogado do fornecedor. Os serviços jurídicos contratados diretamente entre o advogado e o consumidor não se enquadram neste item".

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4.Conclusão

Do presente estudo se pôde com propriedade depreender que atualmente é grande, por vezes maciça, a presença dos contratos de adesão nas relações de consumo, pelo que passou o Direito do Consumidor a ser um dos principais elementos de afirmação da cidadania, ditando o tom do regime jurídico e legal das condições gerais dos contratos. Em virtude da importância conferida assim às relações de consumo, cumpre ao Estado tutelar a parte hipossuficiente da relação contratual, tutela esta que é feita no plano administrativo, com a instituição de órgãos próprios estatais; legislativo, por meio de leis específicas de proteção; e judicial, com a fixação de jurisprudência.

Da preocupação do Estado com os problemas da defesa do consumidor advieram grandes mudanças na elaboração dos contratos, assim como a compreensão e percepção desse instituo pelos juristas; já não se aplica mais indistintamente o pacta sunt servanda, o que denota o reflexo no âmbito jurídico do processo de evolução por que passou a economia; a crise do liberalismo refletiu no declínio do individualismo característico daquela realidade sócio-econômico.

Assim, dentro da proteção contratual estabelecida com o advento do Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas abusivas merecem um tratamento metodológico como tentativa de conter tais procedimentos, diante da configuração contratual.

É objetivo do Código de Defesa do Consumidor assegurar ao consumidor igualdade em face do fornecedor; como bem pontifica Ana Maria Zauhy Garms (14): "A proteção do consumidor surge pela determinação de se cumprir a igualdade contratual, independentemente da posição ou condição de cada parte envolvida". É o tratar de forma desigual as partes no momento em que elas se desigualam, e igualmente quando se igualam, ou seja, tratar de forma desigual os desiguais a fim de que se tornem iguais.

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SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. IV

6. Anexo

Sentença proferida em sede de ação de rescisão contratual

Processo nº0119539789

8ª Vara Cível - 2º Juizado

Comarca de Porto Alegre

Autores: Luís Fernando Klippert

Ré: Goettert - Engenharia e Construções Ltda.

Vistos, etc.

Luís Fernando Klippert e S/M. Michelline Oliveira Klippert ingressaram com ação de rescisão contratual contra Goettert - Engenharia e Construções Ltda., narrando que, no dia 03.0795, foram convidados, pelo telefone, para comparecerem no dia seguinte, às 21h, na Rua Luzitana nº597, tendo em vista um projeto turístico. Lá comparecendo, participaram de um coquetel e tiveram conhecimento de um

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projeto de construção com vendas de cotas para serem utilizadas em condomínio por diversos proprietários. Foi informado que o preço estava em promoção e que o contrato deveria ser assinado naquela mesma noite. Assim, seduzidos pelo "marketing" da requerida, firmaram o contrato. Ao retornarem para casa, analisando melhor o negócio, verificaram divergências entre o que foi dito na ocasião e o que constava no contrato. Não havia, por exemplo, a possibilidade de ser feita a cumulação de semanas não aproveitadas em um ano para o ano seguinte. Retornaram no dia seguinte, para rescindir o contrato, ocasião em que foram informados de que, para tanto, deveriam pagar multa no valor de 35% do valor do imóvel. Os autores não concordaram e enviaram correspondência, manifestando o interesse em desfazer a avença. Pretendem os requerentes a rescisão do contrato, invocando normas do Código de Defesa do Consumidor, sendo condenada a ré no pagamento dos encargos de sucumbência.

Contesta a ré. Sustenta ter agido corretamente, prestando todas as informações a respeito do empreendimento, o qual foi analisado pelos requerentes. O art. 49 do CDC não se aplica, pois o contrato não foi firmado fora do estabelecimento comercial. É possível rescindir o contrato, uma vez paga a multa estipulada, que corresponde ao ressarcimento de despesas. Aduz que o contrato deve ser respeitado, eis que firmado de forma livre pelos autores, sendo que a requerente é advogada. Requer a condenação dos autores no pagamento das despesas relacionadas com o contrato, bem como as parcelas vencidas.

Os autores responderam.

Realizada audiência, foram ouvidas as partes e testemunhas, proferindo-se os debates orais.

Relatados, decido.

Versam os presentes autos a respeito de uma forma totalmente abusiva, desrespeitosa e inaceitável de comércio, impondo-se a firme atuação dos órgãos encarregados de defender o consumidor, para coibir tais práticas.

O comércio não pode estar baseado no aliciamento, na preparação de armadilhas, ou arapucas, a fim de atrair o consumidor e, aproveitando-se de menor reflexão, fechar um negócio que não era de interesse do comprador.

Preocuparam-se os autores em demonstrar que o contrato e o regulamento para uso do empreendimento turístico estava em desacordo com o que havia sido dito na exposição da ré.

Não ficou demonstrada esta alegação dos requerentes, até porque seria muito difícil, as únicas pessoas presentes na ocasião eram os autores e funcionários da ré.

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Tenho, no entanto, como absolutamente irrelevante eventual divergência entre o que foi tratado inicialmente e o contrato firmado.

O fundamental é que toda a atuação da ré é inaceitável. Conforme restou perfeitamente esclarecido pelos documentos e testemunhas ouvidas, o aliciamento do consumidor começa com uma pretensa entrevista, ou pesquisa, ou qualquer outra forma de obter os dados pessoais e informações quanto ao patrimônio do comprador em potencial. É do conhecimento de todos que existem equipes de "recepcionistas" atacando as pessoas em lugares públicos, restaurantes, etc.

Identificado um cliente em potencial, vem o convite para o coquetel, no qual o consumidor será convencido a comprar tal empreendimento.

Conforme relataram as pessoas ouvidas, o cliente fica totalmente incapacitado de refletir sobre o que está comprando. Do início ao fim da exposição o casal é acompanhado de pessoa encarregada de afogar os incautos em informações excelentes sobre o empreendimento, existindo todo um cenário montado, com apresentação de filme, maquete, apartamento decorado. Ao fim de duas horas de aranzel monocórdio sobre as maravilhas do prédio, que nem existe, os clientes são encaminhados para as mesas dos vendedores, onde lhes é dito que, naquela noite, existe uma promoção "imperdível". Conforme ficou claro pela prova colhida, a ré faz os tais coquetéis todas as noites, com as mesmas "promoções". Ao cliente não é permitido levar o contrato para casa, para ler e refletir, nem é apresentado o regulamento, antes de ser assinado o contrato.

As irregularidades são tantas que o contrato não tem como subsistir.

Primeiro, é de referir o procedimento já aludido, de aliciar clientes sem que estes tenham pleno conhecimento da finalidade para a qual estão fornecendo os seus dados. Além disto, o convite para um coquetel configura nova forma de seduzir o comprador por via indireta, sub-reptícia, que, acreditando que vai para uma festa, termina enredado em uma enfadonha reunião comercial.

Por outro lado, sabe-se que os vendedores ou recepcionistas, em tais empreendimentos, são cuidadosamente treinado para falar continuamente e não deixar qualquer dúvida no espírito do cliente, apresentando solução para todas as eventuais objeções. À exposição oral soma-se o cenário cuidadosamente montado, e também os salgadinhos e bebidas servidos aos participantes. Não é difícil perceber que, com todos os sentidos ocupados em transmitir ao cérebro informações novas, a necessidade de processar todas essas informações acaba reduzindo a capacidade de raciocinar, avaliar criticamente o que está sendo dito.

O que parece um inocente coquetel, portanto, acaba tendo várias funções, primeiro, para servir de atrativo para o cliente, depois, para ajudar a distrair e criar

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um vínculo, um débito do convidado; como a ré fez questão de lembrar, teve gastos com o coquetel oferecido aos autores.

Ademais, a explanação de duas horas apresenta-se como um exagero com o visível intuito de cansar os clientes e vencer suas últimas resistências. Muitas superproduções de Hollywood fracassam por não conseguirem manter a atenção do público por duas horas.

Ao final deste bombardeio arrasador, o cliente é encaminhado ao vendedor, quando é instado a fechar o negócio, utilizando a empresa ré de dois artifícios. Primeiro, uma mentira, que o preço está em promoção "só naquela noite". Segundo, o desrespeito de impedir o cliente de levar o contrato para ler na sua casa. Fica evidenciado que todo o esquema está montado para induzir as pessoas a efetuarem o negócio sem a devida reflexão, daí ser "norma" da empresa que o contrato seja assinadona mesma noite.

Ora, o contrato está impresso em letras minúsculas, que causa dificuldade para qualquer pessoa de visão normal ler na totalidade. Agora imagina-se ao fim de um dia de trabalho, depois de duas horas de agradável explanação, tendo mais um vendedor à frente, convencendo sobre o insuperável empreendimento. Não creio que algum comprador pare para ler uma por uma das cláusulas. Por outro lado, duvido firmemente que, mesmo lendo o contrato, ao fim de toda a maratona, o comprador consiga atentar para o sentido de cada cláusula, fazer uma avaliação crítica e decidir pela aceitação da mesma.

Tem-se, portanto, todo um esquema montado para induzir o comprador a fazer um negócio que pode até não ser ruim, pode até ser bom o empreendimento oferecido pela ré. Não se discute este aspecto. Acontece que, independentemente das maravilhas de determinado produto ou serviço, não se admite a coação, por leve que seja, na obtenção da vontade do consumidor.

Discorreu eruditamente a ré a respeito dos contratos e da coação, sustentando a inexistência desta no presente caso. Na verdade, a coação existiu. Não na forma de violência, de ameaça. Mas de forma sutil, velada, a coação"moderna", preparada por profissionais de marketing com aprofundados conhecimentos de psicologia, sociologia, etc., aliados às técnicas de vendas. Resulta em um aparato de procedimentos mercadológicos que impõe sérias dúvidas a respeito da vontade livre e espontânea do consumidor, ao efetuar a compra. No caso em tela, não há dúvida quanto à falta de capacidade, ou a capacidade reduzida, para decidir, por parte do comprador, tendo em vista tudo o que já foi referido. O negócio teria sido livremente estabelecido, se os autores tivessem levado o contrato para casa e, após algum tempo, devolvido assinado. Mas isto a ré não aceita que seus clientes façam.

Se o que foi referido não bastasse, a cláusula que estabelece a multa de 35% é

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totalmente nula, pois não está redigida em destaque, facilitando a sua compreensão, como determina o art. 54, § 4º, do Código do Consumidor. Aliás, o contrato é um amontoado de ilegalidades, como a cláusula 4ª, § 5º, que estabelece mandato cambial em favor da vendedora, e também a cláusula 12ª, que "elege" o foro de Florianópolis para conhecer o contrato, apesar de as partes serem domiciliadas nesta Capital, e o contrato aqui ter sido firmado, acrescentando-se, ainda, que esta mesma cláusula estabelece que o contrato é irrevogável e irretratável, de execução obrigatória, mas a cláusula 4ª, § 6º, permite à vendedora, "em qualquer tempo, considerar rescindido, de pleno direito, o presente compromisso". Trata-se de cláusula abusiva, conforme previsão do CDC, art. 51, XI: "autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor."

Quanto à aplicação do art. 49 do CDC, tenho como razoável, na medida em que o espírito que norteia o citado diploma legal deve ser preservado, mesmo que eventualmente a situação concreta não se amolde perfeitamente à previsão legal. Alega a ré que a venda não ocorreu fora do estabelecimento comercial. No entanto, por todas as circunstâncias que envolveram o negócio, caracteriza-se a necessidade de uma especial proteção, como nos casos referidos nos casos referidos no aludido dispositivo, pois o consumidor teve reduzida a sua capacidade de decisão livre e conscientemente.

De qualquer forma, mesmo que fosse afastado o art. 49, teria aplicação o rt. 6º, que diz: "São direitos básicos do consumidor: IV) a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços."

Por fim, quanto às despesas alegadas pela ré, nenhum direito tem ao ressarcimento, pois se trata de contrato abusivo, obtido de forma coercitiva. Ademais, a requerida beira a má-fé, pois nenhum comprovante trouxe de que tenha realmente pago os valores referidos, a começar ela aludida semana na Praia dos Ingleses, para 4 pessoas. Quem aproveitou esta semana, já que os autores não foram até a referida praia? Além disto, as taxas de associação ao tal de RCI, bem como outras despesas, não foram comprovadamente pagas pela ré, de forma que estaria ela buscando enriquecimento sem causa, pois os autores, não permanecendo no empreendimento, não serão associados da RCI, logo, a ré irá embolsar este valor. De qualquer forma, além de o contrato ser abusivo, a desistência dos autores foi comunicada de imediato, de foma que nenhuma despesa poderia ter efetuado a ré para prejudicar os autores, pois tinha conhecimento da pretendida rescisão.

Isto posto, julgo procedente a ação, para declarar nulas as cláusulas 4ª, § 6º, e 12ª, do contrato, decretando a rescisão contratual. Arcará a vencida com as custas processuais e honorários advocatícios de cinco salários mínimos.

Publique-se e intimem-se.

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Porto Alegre, 15 de abril de 1996.

Bayard de Freitas Barcellos

Juiz de Direito

7.Notas

1. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil - Vol. III, p. 11

2. Orlando Gomes, Contratos, p. 37/38

3. "São elas chamadas de leoninas porque são impostas nos contratos com o objetivo de prejudicar as partes mais fracas, que ficam sujeitas ao bote do leão quando de suas aplicações"- Hélio Zaghetto Gama, Curso de Direito do Consumidor, p.108

4. Diz-se que a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) é dos mais avançados sistemas legais dessa natureza; Essa constatação, antes de servir à ufania dos legisladores, deve provocar reflexão: é tão avançado talvez porque, aqui, o que não é vedado em lei, passa a ser automaticamente permitido, mesmo que moralmente condenável.

5. Nelson Nery Junior. Código de Processo Civil Comentado, p. 1.379

6. Hélio Zaghetto Gama, idem, p.108

7. Moacyr Amaral Santos, Comentários ao Código de Processo Civil - Vol. IV, p. 441.

8. Marco Aurélio Ventura Peixoto, Cláusulas abusivas nos contratos de adesão

9. Orlando Gomes, Contratos, p.109

10. Ana Maria Zauhy Garms, Cláusulas abusivas nos contratos de adesão à luz do Código do Consumidor

11. Ana Maria Zauhy Garms, Cláusulas abusivas nos contratos de adesão à luz do Código do Consumidor

12. Ana Maria Zauhy Garms, idem.

13. Publicado no Diário Oficial da União, em 18/0598

14. Ana Maria Zauhy Garms, Cláusulas abusivas nos contratos de adesão à luz do Código do Consumidor.

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Inversão do ônus da prova no CDC e no CPC

Autor: Ranieri Eich

1.NOÇÕES PRELIMINARES

1.1 – Conceito de Prova

O conceito tradicional de prova adotado, ou, pelo menos repetido, por boa parte da doutrina jurídica, a tem, com algumas variáveis, reconhecido como o meio de obtenção da verdade dos fatos no processo.

Nesse sentido, a prova seria o instrumento pelo qual o juiz se utilizaria para definir a verdade dos fatos que efetivamente ensejaram a lide, e sobre os quais concluirá sua atividade cognitiva. Para COUTURE, considerada em seu sentido processual, a prova é, portanto, um meio de controle das proposições que os litigantes formulam em juízo (1).

Conforme os ensinamentos de CHIOVENDA, provar significa formar a convicção do juiz sobre a existência ou não de fatos relevantes no processo. Por si mesma, a prova em geral da verdade dos fatos não pode ter limites; mas a prova no processo, ao revés da prova puramente lógica e científica, sobre a limitação na necessidade social de que o processo tenha um termo; transitado em julgado a sentença, a investigação dos fatos da causa preclude-se definitivamente e, a partir desse momento, o direito não cogita mais da correspondência dos fatos apurados pelo juiz à realidade das coisas, e a sentença permanece como afirmação da vontade do Estado, sem que influência nenhuma exerça sobre o seu valor o elemento lógico de que se extraiu. (2)

O próprio Código de Processo Civil Brasileiro induz a essa conceituação à medida que coloca a prova como instrumento de obtenção da verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.

Observe-se que esses fatos somente dependem do procedimento probatório na exata medida em que sejam tidos como controversos. Os fatos aceitos, ativa ou passivamente pelas partes, não dependem, pois, da prova, e por isso, estão aptos a receber a avaliação judicial como suportes de sua decisão.

O texto legal determina que as provas têm a finalidade de obter a verdade dos fatos. Resta saber o que significa a palavra "verdade" sobretudo tendo em vista a finalidade e limitações do processo civil enquanto manifestação humana e cultural.

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Exatamente, por isso, é preciso verificar a priori se a verdade pode ser obtida pelo processo em si e mais, se é possível formular um conceito que explicite o que realmente contém o conceito da prova.

Para além da definição legal que parte do pressuposto de ser possível o alcance da verdade fática no processo, é preciso tentar sistematizar uma re-significação que efetivamente reconheça a complexidade do instituto.

OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA ressalta que, no ramo da ciência jurídica, nem sempre a prova de um fato demonstrará, necessariamente, a veracidade de sua existência (3).

A prova pode ser conceituada como o meio de representação dos fatos que geraram a lide no processo, tendendo essa representação a equivalência limitada e não à perfeita identificação entre o objeto representado e o objeto representante.

A prova também pode ser conceituada como todos meio de confirmação ou não de uma hipótese ou de um juízo produzido no curso do processo. Sendo, assim, um teste de coerência entre a formulação e o provável suporte fático da demanda.

Em qualquer dos conceitos por nós antes apontados, observa-se que a prova não é apresentada como meio de obtenção da verdade (e veremos que não há como pensar diferente) e sim como instrumento de formação de um raciocínio jurídico dotado de força em decorrência de seu proferimento por uma autoridade judiciária.

Nesse sentido, para introduzir o problema, conceituamos essencialmente a prova como a tentativa de demonstração objetiva dos fatos controvertidos com a intenção de facultar ao juiz a formação de uma hipótese razoável que possa ser adotada como suporte fático para a formulação de uma decisão.

1.2 – Princípios da Teoria da Prova

Dentre os princípios que informam a Teoria da Prova, podemos destacar dentre eles, o princípio dispositivo, o princípio da oralidade e o princípio da prova livre. O princípio do ônus da prova será estudado posteriormente com maior ênfase.

1.2.1 – Princípio dispositivo

Para PONTES DE MIRANDA, o juiz não pode levar em conta, na sua apreciação do feito, a qualquer momento, fatos que não foram alegados pelas partes, nem formar sua convicção com os meios que, propostos pelos litigantes, não se produziram com observância das regras legais (4).

Conforme o art. 130 e art. 132, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil, foi atribuído ao juiz determinar as provas necessárias à instrução do processo e ao mandar repetir, caso entender necessário, as provas já produzidas.

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1.2.2 – Princípio da oralidade

Pela determinação do art. 336 do Código de Processo Civil, salvo disposição em contrário, as provas devem ser produzidas em audiência. O que se busca e dar celeridade ao processo e produzir, quando necessário, as provas necessárias na audiência de instrução e julgamento.

SIEGMUND HEELMANN, tratando da oralidade do processo civil austríaco, reflete que a justiça rápida e barata só pode ser conseguida pelos princípios da oralidade, concentração, imediatidade e autoridade judicial, pondo termo aos abusos e rodeios do processo escrito. E complementa, dizendo que o processo oral influi inclusive na moral processual, principalmente por causa da disparidade entre as despesas do processo rápido e o proveito eventual oriundo da morosidade processual. (5)

No sistema brasileiro, o princípio da oralidade conduz à predominância da palavra, porém sem excluir a escrita, permanecendo em momentos culminantes do processo como em quando da produção da prova oral.

1.2.3 – Princípio da prova livre

O disposto no art. 332 do Código de Processo Civil, prevê que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados no Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa. Complementam esta disposição legal e o referido princípio, os incisos LVI (inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), X a XII (inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem, do domicílio, da correspondência, e das comunicações telegráficas e telefônicas).

Em vista disso, existindo legalidade e moralidade, o meio tido como hábil para o encaminhamento da verdade real e processual, não permitindo a utilização da ilicitude, pelo uso de meios moralmente ilegítimos, uma vez que essas situações seriam incompatíveis com a seriedade e segurança da justiça. (6)

1.3 – Destinatário da prova e motivação

Pois bem, vimos que o Juiz não precisa formular uma certeza acerca dos fatos controvertidos, mas lhe basta firmar um juízo de probabilidade que permita afastar as dúvidas razoáveis.

O que se vê na transição dos estados intelectuais do Juiz no processo é que ele parte de uma ignorância completa acerca dos fatos e à medida que o trâmite vai se desenvolvendo ele passa a forma juízos provisórios.

Desses juízos provisórios será extraído o mais conforme com o que foi

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produzido em termos probatórios, isto é, diante do que foi demonstrado pelas partes e pela própria ação instrutória autônoma do Juiz, caberá a este formar uma decisão que adote a hipótese mais provável como suporte fático.

Como estamos no campo das probabilidades, o juiz deverá motivar sua escolha, isto é, determinar porque selecionou racionalmente sua hipótese como a mais provável.

É evidente que, em se tratando de sistema processual regido pelo princípio do convencimento racional do juiz, caberá a ele motivar racionalmente a sua decisão, isto é, expor o seu raciocínio. Sem essa argumentação não se pode ter como cumprida a exigência constitucional e legal de motivação.

É de se observar que a exigência de motivação é outro dos conceitos cujo reducionismo tem levado a um grave efeito social. A motivação atende a necessidade das partes de entenderem os motivos pelos quais o Juiz foi levado a concluir desta ou daquela maneira, mas também, se posta como efetivo meio de controle jurisdicional e social.

Isso porque a motivação da decisão expõe o raciocínio judicial à validação social. É a partir da motivação que se pode avaliar em termos extrajurídicos se a sociedade concorda com o conteúdo axiológico da decisão. A motivação permite aos indivíduos avaliar o conteúdo moral, ético, econômico, entre outros aspectos, da decisão e formar o refluxo no senso comum do que é e o que não é justo.

Pode ocorrer, inclusive, de o juiz não ter condições objetivas de formular sequer uma hipótese que considere razoavelmente provável, e nesse caso surge a importância da atribuição do ônus da prova.

A atribuição do ônus da prova se constitui como instrumento de exteriorização de dois valores: o de facilitar a atividade jurisdicional e o da eqüidade.

Determinar o ônus probatório a cada uma das partes assegura ao juiz um modo de decidir quando enfrentando uma dúvida consistente. Isto é, em dúvida, após a instrução probatória, o juiz deverá julgar conforme a desincumbência de cada parte de seu ônus. É, assim, um meio de permitir o Juiz o cumprimento de seu dever legal de decidir a lide.

Em todo o caso, sempre, o raciocínio judicial está sob avaliação conforme o exposto na sua motivação, que, em última instância deve seguir um procedimento de coerência racional.

Com isto, impõe-se ao juiz não somente que exponha suas razões para julgar do modo como julgou, mas, e principalmente, que aponte a coerência de suas conclusões com os dados que foram obtidos no processo.

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Isso significa que a motivação judicial mais que tudo exige uma forma ordenada, coerente e justificável de raciocínio que adentra ao campo da argumentação jurídica.

Ao decidir, e, assim, valorar a prova, o juiz constrói um raciocínio que deve se apresentar correto sob o ponto de vista dos meios de avaliação do pensamento jurídico, tema que passamos a melhor analisar no item seguinte.

1.4 – Ônus da Prova: Etimologia da Palavra

Ônus deriva do latim ônus, significando carga, peso. Ônus probandi tem como tradução o encargo de provar, no aspecto de necessidade de provar. Leia-se encargo no sentido de interesse de fornecer a prova destinada à formação da convicção do magistrado, no que tange aos fatos alegados (7).

1.5 – Distinção entre Ônus e Obrigação

É imprescindível a distinção entre ônus e obrigação. Em regra a obrigação está ligada ao direito material, onde requer uma conduta de adimplemento ou cumprimento, certo que a omissão do devedor poderá resultar na sua coerção para que cumpra a obrigação. Já o ônus é uma faculdade que a parte tem, não sujeitando-se à coerção, mas aos efeitos que a passividade e a inércia resultarão.

ARRUDA ALVIM coloca outra distinção importante entre o ônus e obrigação, que "é a circunstância de esta última ter um valor e poder, assim, ser convertida em pecúnia, o que não ocorre no que tange ao ônus". (8)

Com precisão CARNELUTTI estabeleceu a distinção entre ônus e direito de provar, onde, para ele, "obrigação é o lado passivo a que corresponde do lado ativo um direito subjetivo. Pode dizer-se que o direito subjetivo é um interesse protegido mediante um poder de vontade ou um poder da vontade concedido para a tutela de um interesse. Obtém-se a noção de obrigação invertendo simplesmente a de direito subjetivo. É a obrigação um interesse subordinado mediante um vínculo; ou em outros termos, um vínculo de vontade imposto pela subordinação de um interesse". (9)

Para PONTES DE MIRANDA, "a diferença entre dever e ônus está em que (a) o dever é em relação a alguém, ainda que seja em sociedade; há relação entre dois sujeitos, um dos quais é o que deve; a satisfação é do interesse do sujeito ativo; ao passo que (b) o ônus é em relação a si mesmo; não há relação entre sujeitos; satisfazer é do interesse do próprio onerado".

E complementa "o ônus da prova é objetivo, não subjetivo. Como partes, sujeitos da relação jurídica processual, todos os figurantes hão de prova, inclusive quanto a negações. Uma vez que todos têm de provar não há discriminação subjetiva do ônus da prova. O ônus da prova, objetiva, regula conseqüência de se não haver

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produzido prova. Em verdade, as regras sobre conseqüência da falta dd prova exaurem a teoria do ônus da prova. Se falta a prova é que se tem de pensar em determinar a quem se carrega a prova. O problema da carga ou ônus da prova é, portanto, o de determinar a quem vão as conseqüências de se não provado; ao que afirmou a existência do fato jurídico (e foi, na demanda, o autor), ou a quem contra-afirmou (= negou ou afirmou algo que exclui a validade ou eficácia do ato jurídico afirmado), seja o outro interessado, ou, na demanda, o réu" (10).

Já GIUSEPPE CHIOVENDA ensina que "(...) somente quando o autor trouxe provas idôneas para demonstrar a existência do fato constitutivo de seu direito, tem o réu de diligenciar, de seu lado, a sua prova. Mas, isto, a seu turno, pode ocorrer em dois propósitos: a) ou o réu tende, somente como já foi dito, a provar fatos que provam a inexistência do fato provado pelo autor, de modo direto ou indireto (e dizem-se motivos) e temos daí a simples prova contrária ou contraprova; b) ou o réu, sem excluir o fato provado pelo autor, afirma e prova a inexistência do fato que lhe elide os efeitos jurídicos, e aí temos a verdadeira prova do réu, a prova da exceção". A questão do ônus da prova reduz-se, portanto, no caso concreto, a estabelecer quais os fatos considerados existentes pelo juiz devem bastar para induzi-lo a acolher a demanda (constitutivos)" (11).

Conclui-se que a inversão do ônus da prova deve ser deferido pelo juiz sempre que houver, para seu convencimento, algum fato ou prova que foi apresentado pelo autor ou pelo réu, independentemente de quem vai produzi-lo, necessidade de esclarecimento para decidir a demanda, sempre se levando em consideração as possibilidades que as partes possuem para produzir tais provas.

1.6 – Inversão do ônus da prova

O ônus da prova, no dizer de ECHANDIA é o poder ou faculdade de executar livremente certos atos ou adotar certa conduta prevista na norma, para benefício e interesse próprios, sem sujeição nem coerção e sem que exista outro sujeito que tenha o direito de exigir seu cumprimento, mas cuja inobservância acarreta conseqüências desfavoráveis. (12)

O princípio distributivo atinente ao ônus da prova tem base legal no Código de Processo Civil. De acordo com esse sistema, incumbe ao Autor a prova da ação e ao réu, da exceção. De modo mais simples, cada parte tem a faculdade de produzir prova favorável às suas alegações, o denominado ônus da afirmação.

Resulta óbvio que nenhuma das partes será obrigada a (ou terá interesse em) fazer prova contrária às suas alegações, a favor do demandante adverso, ficando o tema restrito à seara da prova negativa quanto ao fato constitutivo.

Em sede de responsabilidade civil, a Lei 8.078/90, atual Código de Defesa do

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Consumidor (artigo 6º,VIII), contém dispositivo que permite a inversão do ônus da prova, desde que verificadas a verossimilhança do direito e a condição de hipossuficiência do demandante.

A respeito, convém ressaltar que, ao contrário da opinião de alguns doutrinadores, a simples condição de hipossuficiência não autoriza, por si só, essa modificação, pois a total ausência de evidências do indispensável nexo de causalidade redundaria em esdrúxulas situações.

ANTONIO GIDI a respeito adverte que verossímel a alegação sempre tem que ser. A hipossuficiência do consumidor, de per se não respaldaria uma atitude tão drástica como a inversão do ônus da prova, se o fato afirmado é destituído de um mínimo de racionalidade. (13)

1.6.1 – Momento processual da inversão do ônus da prova

O doutrinador Moacyr Amaral Santos assinala qual o momento processual que considera o mais adequado para a aplicação da inversão do ônus da prova, devendo atentar-se que o doutrinador refere-se ao velho Código de 1939, conforme segue: "Na sistemática do Código, logo depois da contestação à ação, há o despacho saneador, no qual o juiz, saneando o processo, de maneira a prosseguir isento de vícios ou de questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa, ordena o processo, determinando providências de natureza probatória (Código Processo Civil, art. 294, IV). Será neste despacho, por então já ter conhecimento dos fatos alegados na inicial e na defesa, uma vez considere algum ou alguns fatos provados prima facie, o momento próprio para decretar a inversão do ônus probatório. Conhecidos os fatos alegados e havendo-os como verossímeis, tendo-os dada a sua natureza, por provados prima facie, cumpre ao juiz, no despacho saneador – escreve Pedro Batista Martins – para evitar o cerceamento da defesa daquele a quem os mesmos fatos se opõem, ´anulando-lhe pela surpresa a possibilidade de produção de prova contrária’, decretar a inversão do ônus probatório."

O emérito doutrinador complementa: "Tal deliberação se escora não só nos princípios que governam a prova prima facie como também nos que regem o sistema processual brasileiro, vale dizer, nos artigos 117 e 294, do Código de Processo Civil, os quais autorizam o juiz, de ofício, determinar as diligências necessárias à instrução do processo, sempre atento, todavia, à regra que lhe impõe não sacrificar a defesa dos interessados (Cód. cit. art. 112)". (1968, págs. 515 e 516)". (14)

A inversão do ônus da prova é direito de facilitação da defesa e não pode ser determinada senão após o oferecimento e valoração da prova, se e quanto o julgador estiver em dúvida. É dispensável caso forme sua convicção, nada impedindo que o juiz alerte, na decisão saneadora que, uma vez em dúvida, utilizar-se-á das regras de experiência a favor do consumidor. Cada parte deverá nortear sua atividade

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probatória de acordo com o interesse em oferecer as provas que embasam seu direito. Se não agir assim, assumirá o risco de sofrer a desvantagem de sua própria inércia, com a incidência das regras de experiência a favor do consumidor. (15)

CARLOS ROBERTO BARBOSA MOREIRA argumenta que as normas sobre a repartição do ônus probatório consubstanciam, também, regras de comportamento dirigidas aos litigantes. Por isso, a inversão no momento do julgamento, mudando a regra até então vigente, atentaria contra os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Se lhe foi transferido um ônus – que, para ele, não existia antes da adoção da medida -, obviamente deve o órgão jurisdicional assegurar-lhe a efetiva oportunidade de dele se desimcumbir. (16)

A posição de LUIZ EDUARDO BOAVENTURA PACÍFICO, citando inclusive KAZUO WATANABE é de que "a garantia do devido processo legal deve ser, sem dúvida, assegurada a qualquer custo. Contudo, não nos parece constituir ofensa aos cânones constitucionais a inversão no momento da decisão. A partir do conteúdo da petição inicial – com a exposição de causa de pedir e do pedido – às partes envolvidas no processo é perfeitamente possível avaliar se há a possibilidade de aplicação das normas do Código do Consumidor ao caso concreto. Se a pretensão estiver fundada em relação de consumo, protagonizada por consumidor e fornecedor, expressamente conceituados pelo Código (artigos 2º e 3º da Lei 8.078/90), este pode merecer incidência. Logicamente, a inversão do ônus da prova igualmente pode ser prevista, não implicando surpresa ou afronta aos citados princípios, caso efetivada". (17)

A jurisprudência vem entendendo que o momento da inversão do ônus da prova deve ser antes de prolatada a sentença, conforme jurisprudência a seguir:

INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - Inteligência do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Considerando que as partes não podem ser surpreendidas, ao final, com um provimento desfavorável decorrente da inexistência ou da insuficiência da prova que, por força da inversão determinada na sentença, estaria a seu cargo, parece mais justa e condizente com as garantias do devido processo legal a orientação segundo a qual o juiz deva, ao avaliar a necessidade de provas e deferir a produção daquelas que entenda pertinentes, explicitar quais serão objeto de inversão. (18)

Também em julgamento da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, prolatada no Acórdão n.º 0301800-0 Apelação Cível de 01/03/2000, tendo como relator o Juiz Alvimar de Ávila, decidiram por unanimidade, conforme segue:

INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - RELAÇÃO DE CONSUMO - OPORTUNIDADE - RESPEITO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA

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AMPLA DEFESA - MATÉRIA VENTILADA NAS RAZÕES RECURSAIS - IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO PELO TRIBUNAL.

A inversão do ônus da prova, como exceção à regra geral do art. 333, do CPC, depende de decisão fundamentada do magistrado antes do término da instrução processual, sob pena de não poder ser adotada na sentença, o que incorreria em cerceio de defesa, devendo ser decidida, de preferência, no momento do saneador, podendo, todavia, ser decretada no despacho inicial, após especificação das provas, na audiência de conciliação ou em qualquer momento que se fizer necessária, desde que assegurados os princípios do contraditório e ampla defesa.

Conforme ensinam doutrina e jurisprudência, resta impossibilitado examinar-se em grau de recurso matéria sobre a qual não houve manifestação da primeira instância, sob pena de supressão desta.

Recurso a que se nega provimento.

A aplicação do art. 6º, VIII, da Lei n.º 8.078/90, levando-se em conta a doutrina e a jurisprudência, é que sua aplicação deve submeter-se ao poder discricionário do juiz, pois a sua finalidade é formar a convicção do julgador. Desta forma, o magistrado escolherá a o momento para determinar a inversão do ônus da prova.

1.6.2 – Inversão do ônus da prova e despesas processuais

Conforme imposição legal do art. 19 do Código de Processo Civil (19), cabe às partes, em regra, suportar as despesas dos atos que realizem ou requerem dentro do processo, antecipando os pagamentos durante o curso processual.

Podemos classificar essa imposição legal como um verdadeiro ônus processual, cujo descumprimento implicará em não ser realizado o ato requerido, podendo advir daí possíveis conseqüências desagradáveis para quem o requereu e não adiantou as despesas.

Surge daí a questão: invertido o ônus da prova nas lides de consumo, a quem cabe o ônus de antecipação de despesas nos casos de atos probatórios requeridos pelo consumidor, determinadas de ofício pelo juiz ou requeridas por ambas as partes?

Nestas hipóteses, não há qualquer exceção às regras gerais estabelecidas no Código de Processo Civil, pelo simples fato de não se poder identificar o ônus de provar com o ônus financeiro de realização dos atos probatórios.

As normas consumeristas, pois, constituem exceção ao art. 333 do Código de Processo Civil, que trata do ônus subjetivo da prova, e não das normas do art. 19 e seguintes, que tratam do ônus financeiro da produção dos atos processuais.

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Assim, cabe ao consumidor arcar com os ônus financeiros de atos probatórios por ele requeridos, devendo arcar ainda, se for o autor da demanda, com as despesas prévias de atos ordenados de ofício pelo juiz ou pelo Ministério Público (art. 19, §2o.CPC) ou com as despesas de perícia requerida por si ou por ambos os litigantes (art. 33 CPC).

Caso seja o consumidor economicamente hipossuficiente, dispõe o mesmo da possibilidade de requerer a assistência judiciária prevista em nosso ordenamento pela já mencionada Lei 1.060/50.

1.6.3 – Responsabilidade do Estado e o ônus da prova

Quanto ao ônus probatório, a teoria do risco administrativo não submete o Estado a nenhum tipo de inversão apenas porque a vítima é dispensada da prova de culpa da Administração Pública.

É que a culpa, nesse caso, não se revela como pressuposto do reconhecimento da responsabilidade do Estado, sendo de todo irrelevante qualquer exigência de prova a respeito.

Resta todavia, ao Autor, o ônus da prova quanto ao fato constitutivo de seu direito, especialmente o nexo de causalidade entre a atuação estatal e o resultado apontado, bem como a anormalidade e especificidade da exigência pessoal decorrente da imposição administrativa.

Incumbe ainda ao demandante provar o dano e sua extensão, também como fatos constitutivos do direito reclamado.

Em se tratando de atos administrativos a respeito dos quais o reconhecimento da indenizabilidade tenha como pressuposto a culpa indireta da Administração, seja porque esse tenha sido o móvel da demanda, seja porque a natureza do ato não guarde equivalência com o risco da atividade pública, como nos casos de conduta omissiva e de atos praticados sem caráter administrativo, à parte incumbe o ônus da prova a respeito da ilicitude do ato, além do nexo de causalidade e do dano verificado. (20)

Também não se pode modificar o regime de apuração quando se discuta a responsabilidade do Estado com base em relação protegida pelo Código de Defesa do Consumidor, seja na hipótese de culpa, seja na de risco, porque, como antes demonstrado, a regra de inversão do ônus da prova a favor do consumidor não implica na revogação do sistema probatório do Código de Processo Civil, muito menos das regras atinentes ao Estado em juízo, garantidoras do interesse público.

A jurisprudência vem entendendo, na sua grande maioria, que o Estado tem presunção de legitimidade, cabendo a quem alegar contra o Estado, provar o que alegou. Mas há julgado em sentido diferente como o que abaixo descreve-se:

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TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL - ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO CONTRIBUINTE POR OCASIÃO DA LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - NULIDADE DA SENTENÇA - I - Tendo os embargos se fundamentado na inexistência de notificação do contribuinte por ocasião da lavratura do auto de infração, inverteu-se, nesse ponto, o ônus da prova, ficando a Fazenda Nacional com o encargo da prova de ter realizado a notificação. Precedentes deste Tribunal: ausência de notificação alegada pela embargante e não desmentida pela Fazenda, através da prova - afastamento da presunção juris tantum de certeza e liquidez do título executório'' (Apelação Cível 96.01.15745-0 /AP, Relatora Juíza Eliana Calmon). II - A sentença, ao julgar improcedentes os embargos sem a produção dessa prova, desprezou o fundamento do pedido de nulidade da execução, expondo-se conseqüentemente à nulidade, pois "o juiz proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor", nos termos do art. 459, 1ª parte, do Código de Processo Civil. III - Anulação do processo, a fim de que a prova da notificação, positiva ou negativamente, seja produzida e os embargos decididos como de direito. IV - Apelação provida. (TRF 1ª R. - AC 95.01.11165-2 - PA - 3ª T. - Rel. Juiz Jamil Rosa de Jesus - Unânime - DJU 17.09.1999, p. 29)(Grifo nosso)

2.INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO CIVIL

O núcleo da regulamentação do ônus da prova está inserido no art. 333 do Código de Processo Civil, como segue:

Art. 333 – O ônus da prova incumbe:

I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor;

Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:

I – recair sobre direito indisponível da parte;

II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

A distribuição do ônus da prova é casuística, estando sempre em estreita correlação com o que se alega. Como fato constitutivo da pretensão do autor, por exemplo, temos a prova da culpa nas ações de ressarcimento dos danos contratuais e extracontratuais. (...) Como fato extintivo temos a alegação de prescrição do direito

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do autor, que conseqüentemente deve ser provada pelo réu. (...) Desse modo, se forem os atos constitutivos produzidos com prova insuficiente, passível de discussão e de dúvidas, dependerão, de sua certeza definitiva, desde que especificamente contestados, de prova complementar. (21)

CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO nos ensina que "a teoria dos ônus processuais, sua conceituação, distinção de figuras afins, inserção no sistema do processo, constitui uma das mais lúcidas e preciosas contribuições que se aportaram à sua ciência no século XX, servindo para esclarecer muitos pontos de dúvida e ditar o correto direcionamento e justa medida das conseqüências dos possíveis comportamentos comissivos ou omissivos das partes". (22)

Para SÉRGIO SAHIONE FADEL, se o autor alegar o fato e o réu contestar, o ônus da prova é do autor; se ele mesmo alega e o réu não contesta, o fato se presume verídico; se o autor alega, e prova, ou não o provando, o réu admite, e, admitindo o fato, outro lhe opõem, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, o ônus probatório é do réu. (23)

As regras sobre o ônus da prova e sua distribuição constituem uma inerência do princípio dispositivo. Onde se tivesse um processo puramente inquisitivo, não se cogitaria em ônus probandi, nem das conseqüências de seu descumprimento, simplesmente por que ao juiz incumbiria a busca da verdade dos fatos e a cooperação das partes seria pelo menos dispensável e sequer haveria como sanciona-las pela omissão de provar.

Quando uma questão de fato se apresenta como irredutivelmente incerta dentro do processo, abre-se tecnicamente para o juiz o seguinte leque de alternativas: a) ou ele prescinde de resolver aquela questão de fato; b) ou insiste em resolve-la. A primeira opção importaria ao juiz de decidir a causa, pronunciando o non liquet (que não é admissível no direito moderno), ou em decidi-la de maneira tal que não exigisse a resolução daquela questão de fato (de que seriam exemplos o julgamento por sorteio e o julgamento salomônico).

A segunda opção implica: a) o adiamento do problema através da prolação de uma decisão provisória (no estado do processo); b) ou o uso de um meio mecânico de prova, necessariamente decisório (como o duelo e o juramento); c) ou, enfim, o emprego das regras da distribuição do ônus da prova. (24)

No processo civil inquisitório, o juiz mesmo tendo diante de si duas partes, está desvinculado, para a busca da verdade, da iniciativa e dos acordos entre elas (25). Num sistema que admitisse a pesquisa de ofício da veracidade dos fatos, não teria significação a repartição do ônus da prova. (26)

A intensidade do ônus da prova é problema relacionado com o modo como o

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processo se insere na vida dos direitos e no modo de ser da vida em sociedade. Aqui, a racionalidade dos critérios de julgamentos pela aceitação da probabilidade suficiente em vez da certeza absoluta nem se coloca em termos da tensão entre os princípios que apontam para soluções diferentes. Seja para a pacificação dos conflitos com justiça, seja para a fidelidade na declaração e atuação da lei, é preciso dispor a técnica processual (em sede legislativa ou na prática da jurisdição) de modo a não figurar como impedimento à fruição ou defesa de direitos.

O ônus da prova consiste na necessidade de provar, em que se encontra cada uma das partes, para possivelmente vencer a causa. Objetivamente, contudo, uma vez produzida a prova, torna-se irrelevante indagar quem a produziu, sendo importante apenas verificar se os fatos relevantes foram cumpridamente provados (princípio da aquisição).

O ônus da prova recai sobre aquele a quem aproveita o reconhecimento do ato. Assim, segundo o disposto no art. 333 do Código de Processo Civil, o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. (27)

Quanto à distribuição do ônus da prova se admitir que as partes convencionem, não pode ser aceito, pois seria tolhida ao juiz a liberdade na avaliação da prova. Para SANDRA APARECIDA SÁ DOS SANTOS, "O princípio dos poderes instrutórios do juiz prevalece obre a faculdade dispositiva dos contratantes, vale dizer, o juiz pode determinar a produção da prova (art. 130 do CPC) ainda que as partes tenham pactuado de maneira diversa". (28)

2.1 – Da prova negativa

Para analisarmos este aspecto, é importante ressaltar os ensinamentos de JONATAS MILHOMENS, que afirma que "Não é exato afirmar que a negativa não é prova, que o ônus da prova é sempre de quem afirma. O princípio da liberação do ônus da prova levaria (a) ou a uma direta oposição a textos legais ou (b) à conseqüência absurda de um julgamento sem prova".

E continua: "Quanto à primeira conclusão, basta lembrar que o Código Civil exige, por exemplo, prova de omissão culposa para a indenização por ato ilícito (art. 159), prova de inexistência da dívida para a repetição de indébito (art. 946), prova do não-uso, por 10 anos, da servidão, para que se considere extinto esse direito real (art. 710, III). Quanto segunda absurda conseqüência, ver-se-á que não é impossível, vale dizer, é possível fazer prova dos chamados fatos negativos. Note-se: não é impossível equivale à é possível, porque há duas negativas na primeira proposição". (29)

Na colisão de um fato negativo e de um fato positivo, quem afirma um fato positivo tem de o provar, com preferência a quem afirma um fato negativo. O fato

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negativo pode ser provado através de provas indiretas.

JOÃO BATISTA LOPES afirma que "a admissão do princípio dispositivo não significa, porém, que as partes possam orientar o processo a seu talante. Dono do processo (dominus processi) é o juiz e, se às partes se conferem certos poderes de disposição (indicar os meios de prova, fixar o objeto da demanda, etc.), tal se compreende fora da atividade própria do juiz, não sendo este obrigado, na formação das bases da sentença, aceitar a convenção das partes." (30)

3. O ÔNUS DA PROVA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor tem norma expressa a respeito da inversão do ônus da prova, constante e seu art. 6º, inc. VIII.

Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.

Fica clara e evidente a regra processual. Constatando-se a presença de verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor, o juiz deverá inverter o ônus da prova. Para tanto, é necessária a presença de um dos requisitos ali encontrados e não a presença de ambos.

Para SANDRA APARECIDA SÁ DOS SANTOS "a norma estabelecida no inciso III do art. 6º é clara, ou seja, é necessária a presença de apenas um dos requisitos, porque, se assim não o fosse, o legislador, à evidência, teria utilizado a conjunção aditiva ‘e’. É princípio basilar do direito que onde o legislador restringe, não é permitido ao intérprete ampliar". (31)

Esse mesmo posicionamento é corroborado por CARLOS ROBERTO BARBOSA MOREIRA, que afirma que "o ato judicial, devidamente motivado, indicará a ocorrência de um dentre essas duas situações: a) a alegação do consumidor é verossímil; ou b) o consumidor é hipossuficiente. O emprego da conjunção alternativa e não da aditiva ‘e’, significa que o juiz não haverá de exigir a configuração simultânea de ambas as situações, bastando que ocorra a primeira ou a segunda". (32)

A igualdade formal entre as partes é regra básica do processo civil. A facilitação de defesa não pode ser entendida como interpretação das regras

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processuais em favor do consumidor, pois este princípio é de direito "material". Não pode haver "facilitação" por interpretação; aquela só pode decorrer de expressa previsão legal. (33)

Quanto à segunda hipótese onde é possível a inversão do ônus da prova, reside na circunstância do consumidor ser hipossuficiente. Entenda-se por hipossuficiência os aspectos que abrangem o aspecto técnico e o aspecto econômico. O hipossuficiente tem dificuldade ou impossibilidade na produção da prova, seja porque não é acessível à parte ou estas informações estão em mãos da outra parte. Para LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES ensina que a hipossuficiência, para fins da possibilidade da inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício, etc (34).

Para FRANCISCO CAVALCANTI, no tocante à inversão do ônus da prova em função de hipossuficiência do consumidor, entendo que tal preceito "transferiu" a obrigação do Estado de assistir aos necessitados para as empresas. O Código de Processo Civil, em seu artigo 19, estabelece: "Salvo disposições concernentes à justiça gratuita cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhe o pagamento, desde o início até a sentença final". (35)

Quanto à insuficiência econômica, alega-se que esta não poderia servir de base para a alegação de inversão do ônus da prova, pois a parte poderia pedir assistência judiciária gratuita, com isenção de custas, despesas processuais, nestas incluídas as relativas às perícias e à obtenção de certidões, o que de certa forma, afastaria a hipossuficiência econômica como autorizadora da inversão do ônus da prova.

No entender de ARRUDA ALVIM, a critério do juiz, é outra norma de natureza processual civil com o fito de, em virtude do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, procurar equilibrar a posição das partes, atendendo critérios da existência da verossimilhança do alegado pelo consumidor. (36)

A inversão do ônus da prova poderá ser requerida pela parte, no que pode ser atendida ou determinada ex officio pelo juiz, uma vez que o diploma afeto ao consumidor é composto de normas de ordem pública. Importante frisar que o simples fato da inversão não tem o condão de pré-julgamento de mérito desfavorável ao demandado; ao contrário, cuida-se, somente de um ônus processual.

O momento da inversão do ônus da prova, defendido pelos autores do anteprojeto do Código de Brasileiro de Defesa ao Consumidor, juntamente com o jurista CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, é o da sentença, fundamentando para tal que os dispositivos sobre o ônus da prova constituem regras de julgamento. Contra

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este entendimento, usam-se dois motivos para caracterizar o equívoco: a) ofende, de maneira absoluta, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa; b) as regras, de distribuição do ônus da prova são de procedimento.

Assim, a finalidade do instituto do ônus da prova é de facilitar a defesa dos direitos do consumidor. Tudo dependerá do procedimento adotado, isto é, cada rito, necessariamente, deve ter um tratamento diferenciado, em respeito às características estabelecidas pela lei.

3.1 – Aplicação do art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor

Como já vimos, são necessários os requisitos normativos da verossimilhança das alegações feitas pelo consumidor e a sua hipossuficiência. Não é necessário para tanto que ambas atuem juntas, sendo necessário a presença de pelo menos uma delas.

O consumidor não está obrigado a comprovar antecipadamente o seu direito. Para HUMBERTO THEODORO JUNIOR a verossimilhança é juízo de probabilidade extraída de material probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor. (37) Para tanto, o art. 6º do Código de Defesa do Consumidor em seu inciso VIII, declara, entre outros, qual seria um direito básico do consumidor:

Art. 6º: São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Nos ensina FRANCISCO CAVALCANTI que a igualdade formal entre as partes é regra básica do processo civil. A facilitação de defesa não pode ser entendida como interpretação das regras processuais a favor do consumidor, pois este princípio é de direito material. Não pode haver facilitação por interpretação; aquela só pode decorrer de expressa previsão legal. E complementa: o fornecedor, por força de obrigações impostas pelas normas protetoras do consumidor, tem obrigação de manter em seu poder todos os dados, informações, fórmulas, planilhas, cálculos, etc. acerca de seus produtos e serviços, sendo bem mais fácil a comprovação de fatos referentes a esses bens e serviços pelo fornecedor que pelo consumidor, sobretudo quando se tratar de hipossuficiente. É forçoso reconhecer que alguns sistemas jurídicos não admitem essa inversão do ônus da prova. (38)

Parecendo ao Magistrado presentes os requisitos constantes do inciso VIII do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, deverá ele proceder no sentido de

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inverter o ônus da prova ao fornecedor.

É importante observar, entretanto, que a aplicação da inversão do ônus da prova no despacho saneador poderá ser objeto de agravo de instrumento por parte do fornecedor. Seu silêncio remeterá à preclusão a matéria impedindo novo pronunciamento, por força do contido na Súmula 424 do STF (39) e a jurisprudência a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO.AÇÃO REVISIONAL DE CONTRTO BANCÁRIO. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - PRESSUPOSTOS PRESENTES - AGRAVO DESPROVIDO. Os estabelecimentos bancários como prestadores de serviços, estão submetidos as disposições do código de defesa do consumidor. assim evidênciada a hipossuficiência do agravado em virtude do poderio técnico-econômico do banco agravante, bem como a verossímilhanca de suas alegações, e licita a inversão do ônus da prova, para que se proceda no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor e subordinado ao critério de prudente arbitrio do juiz. Improvimento do Agravo de Instrumento (TJPR - AC 18947500 - 2ª C.Cível - Rel. Des. Sidney Mora - Julg. 13.03.2002)(Grifo nosso).

É importante e imprescindível que o Autor prove através de fatos e alegações subsistentes o seu direito, para que possa ser invertido o ônus da prova a seu favor. Apenas alegações desprovidas de qualquer prova não são o suficiente para que seja concedido a inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Neste sentido o aresto que segue:

CIVIL. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CDC. AUSÊNCIA DE VEROSIMILHANÇA NA VERSÃO AUTORAL. PROVA DO PAGAMENTO INEXISTENTE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. 1. Embora incidentes as regras do CDC, inaplica-se a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, quando sua versão é por demais insubsistente, incrível e desprovida de qualquer prova a lhe dar algum suporte, o que justifica a improcedência da postulação inicial. 2. A prova do pagamento se faz consoante previsto nos arts. 939 e seguintes do Código Civil, inadmindo-se unicamente a mera assertiva verbal. 3. Recurso conhecido, com o seu improvimento, mantendo-se íntegra a r. sentença recorrida.(TJDF - AC Nº 20020710013023 - 2ª T - Rel.Des. Benito Augusto Tiezzi - DJU 14.08.2002)(Grifo nosso).

3.2 – Aplicação do art. 38 do Código de Defesa do Consumidor

O art. 38 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor trata da inversão do ônus da prova frente à publicidade enganosa, conforme segue:

Art. 38: O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou

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comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.

Como nos ensina STEPHAN KLAUS RADLOFF o ônus da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina. Nesse mister, caberá ao fornecedor a obrigação de comprovar que a informação publicitária de seu produto chegou ao consumidor, sem qualquer vício de origem ou distorção nas características apresentadas. (40)

Participa da mesma opinião FRANCISCO CAVALCANTI que afirma que a previsão resulta, na prática, em inversão do princípio previsto no Código de Processo Civil (art. 333) quanto ao ônus da prova, e justifica-se como meio para alcançar a verdade real, pelo fato de ser, aquele, detentor de fórmulas, dados, know-know, referentes ao produto e serviço objeto da comunicação ou da informação publicitária o mais habilitado para comprovar. (41)

O fornecedor de serviços, antes de tudo, tem intenção de auferir lucro. Portanto, atende pela teoria do risco onde deverá responder por ato ilícito independentemente da apuração de culpa, como no caso da propaganda enganosa, podendo para tanto distribuir tal responsabilidade.

No aspecto processual propriamente dito, deve-se levar em conta que a forma de aplicação do art. 38 do CDC difere daquela ínsita no art. 6º, do mesmo pergaminho legal. O Tribunal de Justiça de São Paulo tem julgado no sentido de que ao contrário do previsto no inciso VII do art. 6º do CDC, onde a facilitação da defesa do direito do consumidor com a inversão do ônus da prova depende do exclusivo critério do magistrado que, segundo as regras de experiência, deverá verificar a verossimilhança das alegações e/ou a hipossuficiência do mesmo, na hipótese contemplada no art. 38, a inversão do ônus da prova opera-se automaticamente, sem que haja necessidade de uma fase pré-cognitiva de critério subjetivo por parte do juiz. (42)

Esse mesmo raciocínio utiliza-se STEPHAN KLAUS RADLOFF que nos ensina que seria desnecessária a declaração taxativa no despacho saneador de que caberá ao fornecedor o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária, pois havendo estabelecimento da lide processual, antecipadamente e independentemente de qualquer pronunciamento jurisdicional interlocutório ou definitivo, por norma legal cogente,m está o fornecedor obrigado a provar a obrigação contida no art. 38 da Lei n.º 8.078/90. (43) o julgado do Tribunal de Justiça do Paraná abaixo transcrito:

CIVIL PROCESSO CIVIL. CDC. DEFEITO DE REPRESENTAÇÃO NÃO SANADO. REVELIA. OFERTA EM ANÚNCIO DE JORNAL INTEGRA AS CONDIÇÕES DO CONTRATO. VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. FORNECEDOR QUE APENAS ALEGA, SEM NADA COMPROVAR. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. 1.

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constatado, no grau recursal, que quem firmou a contestação foi outro advogado e não aquele constituído nos autos - o que passou desapercebido ao juiz sentenciante - e, intimada a ré, para sanar este defeito de representação, não o faz, torna-se revel, aplicando-se-lhe os seus efeitos para que sejam presumidos como verdadeiros os fatos alegados pelo autor em sua inicial. 2. empresa fornecedora de produtos e serviços, do ramo de compra e venda de automóveis, novos e usados, que anuncia, nos classificados de jornal, condições de venda de determinado automóvel, está obrigada a vender o bem nas condições do anúncio, segundo impõe a lei consumerista, em seu art. 30, onde prevê que as condições da oferta integram o contrato a ser celebrado. 3. constatada a verossimilhança das alegações do consumidor, inverte-se o ônus da prova, mormente quando a fornecedora não contesta articuladamente os fatos da inicial, limitando-se a alegar, sem nada comprovar. 4. recurso conhecido e provido, para reformar a sentença monocrática, julgando procedente o pedido inicial.(TJDF - ACJ nº 20010111219733 - 2ª T. - Rel. Des. Benito Augusto Tiezzi - DJU 06.09.2002)(Grifo nosso).

3.3 – Aplicação do art. 51, VI do Código de Defesa do Consumidor

A inversão do ônus da prova nos moldes estabelecidos no art. 51, VI do Código de Defesa do Consumidor, por sua própria natureza, tratar-se-á em hipótese de cláusula absolutamente nula, declarável de ofício pelo magistrado. Sendo nula, não produz qualquer efeito no campo jurídico, como se jamais tivesse existido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, João Carlos Pestana de Comentários ao Código de Processo Civil 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.

CAVALCANTI, Francisco Comentários ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor Belo Horizonte: Del Rey, 1991.

CHIOVENDA, Giuseppe Instituições de Direito Processual Civil Campinas/SP: Bookseller, 1988.

CINTRA, Antônio C. A.; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel Teoria Geral do Processo12ª Edição, São Paulo: Malheiros, 1996.

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THEODORO JUNIOR, Humberto Curso de Direito Processual Civil - Vol. I 27ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999.

Notas

1 COUTURE apud NUNES, Anelise Coelho. Apreciação Probatória no Processo Civil. Porto Alegre/RS: Verbo Jurídico, 2001, pág. 14.

2 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas/SP: Bookseller, 1998, pág. 109.

3 DA SILVA, Ovídio Baptista apud NUNES, Anelise Coelho. Apreciação Probatória no Processo Civil. Porto Alegre/RS: Verbo Jurídico, 2001, pág. 15.

4 PONTES DE MIRANDA apud NUNES, Anelise Coelho. Apreciação

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Probatória no Processo Civil. Porto Alegre/RS: Verbo Jurídico, 2001, pág. 16.

5 SIEGMUND HELLMANN apud NUNES, Anelise Coelho. Apreciação Probatória no Processo Civil. Porto Alegre/RS: Verbo Jurídico, 2001, pág. 18.

6 NUNES, Anelise Coelho. Apreciação Probatória no Processo Civil. Porto Alegre/RS: Verbo Jurídico, 2001, pág. 17.

7 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 65.

8 ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2000, p. 476.

9 CARNELUTTI, Francesco. Diritto e Processo. Padova, 1929 Apud A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 66.

10 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Vol. III, 2ª Ed., Rio de Janeiro, 1954.

11 Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II, p. 449. (REPETIR NOME DO AUTOR).

12 ECHANDIA, Hernando Devis apud CIANCI, Mirna. A responsabilidade do Estado e o ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor sob o enfoque da teoria do risco administrativo. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2159>

13 ECHANDIA, Hernando Devis apud CIANCI, Mirna. A responsabilidade do Estado e o ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor sob o enfoque da teoria do risco administrativo. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2159>

14 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no civil e comercial. Vol V, 3ª ed. correta e atual. São Paulo: Max Limonad, 1968. Págs. 501 a 521 apud FERRAZ, Luiz Carlos. Momento processual da inversão do ônus da prova. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2160>.

15 MATOS, Cecília. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Artigo in Justitia, São Paulo, 57 (170), abr./jun. 1995. apud FERRAZ, Luiz Carlos. Momento processual da inversão do ônus da prova. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2160>.

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16 Apud PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

17 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

18 (Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 121.979-4 - Itápolis - 6ª Câmara de Direito Privado - Relator: Antonio Carlos Marcato - 07.10.99 - V. U.)

19 Art. 19, CPC: Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhe o pagamento desde o início até a sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença.

§ 1º O pagamento de que trata este artigo será feito por ocasião de cada ato processual.

§ 2º Compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos, cuja realização o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público.

20 CIANCI, Mirna. A responsabilidade do Estado e o ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor sob o enfoque da teoria do risco administrativo. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2159>.

21 AGUIAR, João Carlos Pestana de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 86 e 87.

22 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª edição rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 201

23 FADEL, Sergio Sahione. Código de Processo Civil Comentado. 7ª Edição, rev. e atual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1988, p. 562.

24 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 12ª Edição, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 354.

25 CALAMANDREI apud DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª edição rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 248.

26 BUZAID apud DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª edição rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 248.

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27 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 12ª Edição, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 355.

28 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 71.

29 MILHOMENS, Jonatas. A prova no processo. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 123.

30 A prova no direito processual civil, p. 42. apud SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 71.

31 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 71.

32 BARBOSA MOREIRA, Carlos Roberto. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. RePro, n.º 86.

33 CAVALCANTI, Francisco. Comentário ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1991, p. 37.

34 Comentários ao Código de Defesa do Consumidor apud SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75.

35 CAVALCANTI, Francisco. Comentário ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1991, p. 39.

36 Código do Consumidor Comentado, p. 32 apud SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: RT, 2002, p. 80.

37 THEODORO JUNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor. "Dicionário Aurélio Eletrônico – V. 2.0". Ed. Nova Fronteira, junho: 1996.

38 CAVALCANTI, Francisco. Comentários ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Liv. Del Rey, Belo Horizonte: 1991, p. 31-38.

39 Súmula 424 do STF: "Transitada em julgado o despacho saneador de que não houve recurso, excluídas as questões deixadas, explícitas ou implicitamente, para a sentença."

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40 RADLOFF, Stephan Klaus. A Inversão do Ônus da Prova no Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 70.

41 CAVALCANTI, Francisco. Comentários ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Liv. Del Rey, Belo Horizonte: 1991, p. 90

42 Tribunal de Justiça de São Paulo – Ap. Cível n.º 255.461-2, de 06.04.1995 – Rel. Aldo Magalhães.

43 RADLOFF, Stephan Klaus. A Inversão do Ônus da Prova no Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 75.

Alguns aspectos da dogmática processual para a defesa dos direitos do consumidor

Autora: Viviane Mandato Teixeira Ribeiro da Silva

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Sumário: 1 – Introdução. 2 - Da legitimação ad causam. 3 – Da inversão do onus probandi. 4 - Da imposição de multa coercitiva ex officio.5 - A adoção do non liquet e do efeito secundum eventum litis. 6 - A sentença genérica como regra nas ações coletivas. 7 - Do regime jurídico da coisa julgada para as ações coletivas. 8 - Bibliografia

1.Introdução.

A perfeita intelecção da linha principiológica norteadora das normas processuais para a tutela de interesses categorizados como direitos metaindividuais demanda considerar alguns aspectos, como, por exemplo, a difusão e a vulnerabilidade de seus titulares.

As relações jurídicas de consumo, espécie dessa categoria de interesses, são as que patenteiam, com extrema clareza, tais peculiaridades. Por tal razão, analisaremos a sistemática processual considerando-se tais relações.

Com efeito, partindo da necessidade de atender a um mercado cada mais pujante e abrangente em sua feição quantitativa, como é o de consumo, exsurgiu a necessidade de uma mudança drástica nos meios de produção e comercialização de produtos e serviços. Não havia mais espaço para a produção artesanal. Impunha-se um sistema mecanizado e seriado para fomentar o consumo em massa. Na comercialização, revelou-se inviável o contato personalizado e individualizado entre os agentes da cadeia consumerista, ante o imenso contingente de utentes. O parceiro comercial transforma-se em um ente, um número.

Essa nova forma de produção e comercialização gerou desequilíbrio nas relações jurídicas de consumo, colocando o consumidor numa posição de franca vulnerabilidade e hipossuficiência, traduzidos na impossibilidade de exercer algum controle sobre a qualidade, segurança e quantidade dos produtos e serviços disponibilizados pelo fornecedor no mercado de consumo.

Nesse contexto, inferiu-se que seria mister criar um arcabouço legislativo a fim de preservar a esfera jurídica dos consumidores. Adveio daí, o rompimento com vários dogmas de direito substancial, como o da liberdade para fixar o conteúdo contratual; o do regime da responsabilização civil, só para citar alguns. Contudo, a reformulação de institutos de direito substancial não se mostrava suficiente. Impendia criar instrumentos apropriados, pois os cristalizados no Código de Processo Civil evidenciavam-se inoperantes para a tutela eficaz de direitos designados, no mais das vezes, por titulares não-identificáveis.

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Nessa esteira, alguns institutos processuais foram adaptados para imprimir à tutela jurisdicional a adequação, a presteza e a eficácia necessárias para a solução de conflitos em massa, e, dessarte, defender o consumidor, como determina o inciso XXXII, do artigo 5º, do texto constitucional.

No presente trabalho, abordaremos, de modo sucinto, alguns aspectos da sistemática procedimental introduzida pela Lei 8078/90, a qual, inobstante a denominação - Código de Defesa do Consumidor - não se adstringe apenas às relações jurídicas de consumo. Encerra verdadeira fonte normativa processual geral que, em conjunto com a Lei 7347/85, regulamenta a tutela de todo e qualquer direito metaindividual.

2. Da legitimação ad causam

A legitimação ad causam é a autorização legal para defender em juízo um direito material lesado ou ameaçado de lesão.

A sistemática sufragada pelo Código de Processo Civil, idealizada sob a filosofia liberal, é a da legitimação ordinária, segundo a qual, apenas o titular do direito material lesado ou ameaçado de lesão está autorizado a defendê-lo em juízo. Excepcionando essa regra, a lei processual civil admite, nos casos por ela enunciados, que alguém defenda em juízo em nome próprio um interesse alheio. É a denominada legitimação extraordinária.

Na Lei 8078/90, o regramento da legitimação para agir experimentou uma importante mudança. A legitimação extraordinária [01], exceção no Código de Processo, é regra na Lei 8078/90, a qual, em seu artigo 82, legitimou entes públicos e privados, subtraindo do indivíduo a possibilidade de defender em juízo interesses titularizados pela coletividade.

A opção legislativa em não investir o indivíduo da legitimação ad causam pode ser analisada sob três vertentes.

A primeira, é a de que o fato de o resultado benéfico da lide coletiva atingir, por via oblíqua, a esfera jurídica do indivíduo, tornou despiciendo legitimá-lo. Assim, de uma só vez e por intermédio de uma só lide, solucionar-se-iam conflitos que envolvessem, ao mesmo tempo e do mesmo modo, todo o grupo do qual o indivíduo integra. A segunda, é o de evitar a proliferação de ações individuais com pretensões idênticas, e o risco de soluções judiciais antagônicas para o mesmo conflito. Situação essa que certamente induziria ao desestímulo na busca da tutela jurisdicional, funcionando, por via transversa, como salvaguarda para a produção sistemática de lesão a direito. A terceira, reside na feição do Estado social, cujo desiderato é a busca do bem-estar social. Não mais se prestigia a visão liberal, cujo substrato era o de

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atender aos interesses individuais. A partir da Carta de 1988, sufraga-se a ideologia da preservação do interesse coletivo. E este, segundo o entendimento doutrinário, é melhor defendido em juízo por associações ou órgãos do próprio Estado, como é o caso do Ministério Público.

O Prof. Cappelletti, encetando estudo acerca da defesa efetiva dos direitos coletivos, elucida que essa gama de direitos "(...) são interesses fragmentados ou coletivos (...) O problema básico que eles apresentam – a razão de sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação. (...) Essa situação cria barreiras ao acesso". [02]

Se considerarmos as relações de consumo sob o aspecto pecuniário, concluiremos, com o Prof. Cappelletti, que a possibilidade de a produção massificada gerar lesão em escala difusa é expressiva. Sob a perspectiva do consumidor individualmente considerado, o dano pode ser inexpressivo, entretanto não o será numa perspectiva global. E tal circunstância denota a relevância e a imperiosidade do sistema processual coletivo introduzido pela Lei 8078/90.

Seja para reprimir condutas nocivas em nível difuso, seja para cominar ao fornecedor a sanção cabível, é que o legislador introduziu tantas inovações no sistema processual, dentre as quais, legitimar entes públicos e civis para a defesa judicial dos interesses transindividuais. Diga-se a propósito, que ao legitimar entes coletivos, o legislador infraconstitucional concretizou dois princípios constitucionais: o acesso à justiça e a isonomia.

De fato. Por meio da ação coletiva, o indivíduo tem sua esfera jurídica tutelada contra a prepotência do poder econômico, e aproveita, no mundo empírico, a tutela jurisdicional obtida por meio do processo coletivo. Concretiza-se, destarte, a ideologia do Estado social protetor dos mais fracos, evitando-se a perpetuação da lesão, ainda que incipiente sob o ponto de vista individual, e reprimindo-se a conduta lesiva do fornecedor. Daí o entrelaçamento da efetividade com o princípio constitucional do acesso à justiça e deste com o da legitimação ad causam. Pois, repise-se, o dano pecuniário de inexpressiva monta funciona como elemento desestimulante para o indivíduo ajuizar qualquer demanda, mas não para os entes privados ou públicos ao defenderem todo o grupo.

Sob a ótica do princípio constitucional da isonomia, podemos considerar que o fato de o consumidor ser vulnerável e hipossuficiente frente ao fornecedor, no mais das vezes, detentor de forte poder político e/ou econômico, resulta em franca desigualdade no campo processual. Essa situação não se repete para os entes públicos, notadamente para o Ministério Público que, pelo dever constitucional de defender os interesses da sociedade, pode litigar com causador do dano com igual força política.

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3 - Da inversão do onus probandi

Desdobramento dos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana, e como consectário lógico do reconhecimento da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor, a lei 8078/90 erigiu no inciso VIII, do artigo 6º, a inversão do onus probandi [03] como um direito básico.

Vislumbramos o aspecto pragmático dessa regra no campo da responsabilidade civil. Malgrado a adoção do regime objetivo, em que é prescindível o exame da conduta do fornecedor para imputar-lhe o dever de reparar o dano, a inversão do ônus probatório revela-se prestante, porquanto se o consumidor tivesse a desincumbência de fazer prova do nexo causal, certamente sucumbiria. Isto porque é o fornecedor quem detém a mais completa informação acerca do produto, logo só ele tem a possibilidade de produzir a prova necessária a fim de demonstrar se o produto é ou não defeituoso.

Se fosse mantida a sistemática preconizada pelo artigo 333, do Código de Processo Civil, em que o ônus da prova do fato constitutivo do direito cabe ao autor da demanda, o consumidor dificilmente obteria qualquer ressarcimento em razão de sua hipossuficiência em obter os elementos necessários para provar o nexo de causalidade.

Depreende-se, por conseguinte, que presente um dos requisitos elencados no artigo 6º, inciso VIII, qual seja, o reconhecimento da hipossuficiência ou da verossimilhança da alegação do consumidor, deve o julgador inverter os ônus da prova, carreando-o ao fornecedor.

4 - Da imposição de multa coercitiva ex officio

Vários institutos materiais e processuais foram matizados na construção da nova sistemática a fim de conferir efetividade à tutela jurisdicional na defesa dos direitos transindividuais e dar concretude a vários princípios constitucionais, como o da isonomia, do acesso à justiça, dentre outros.

No tema das obrigações, por exemplo, a Lei Civil em vigor, em seu artigo 389, impõe ao inadimplente o dever de arcar com as perdas e danos. A lei consumerista, ao tratar do direito material das relações de consumo, não sufragou a tônica civilista. O legislador entendeu, corretamente, aliás, que a pecúnia, no mais das vezes, não tem o condão de reparar a atividade nociva do fornecedor nem o de atender aos interesses econômicos do consumidor.

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Nesse diapasão e partindo da premissa de que o processo desempenha um papel instrumental para conferir à tutela jurisdicional efetividade, a Lei 8078/90 preconiza que se deva envidar todos os esforços para realizar concretamente o que fora contratado pelos litigantes, ou, àquilo que fora determinado na sentença, evitando-se remeter à parte inocente o recebimento de indenização. Desse modo, dar-se-ia à parte o direito in natura, forçando o fornecedor cumprir o pactuado.

Para concretizar essa ideologia, a Lei 8078/90 incorporou a multa coercitiva, consistente em cominar ao devedor recalcitrante uma penalidade pelo descumprimento da obrigação.

A adoção da astreinte mostra-se consentânea com a realidade social e com o objetivo legal de prevenir a lesão à esfera jurídica do consumidor, pois influindo no aspecto anímico do fornecedor, o consumidor obtém o objeto da prestação e satisfaz a expectativa gerada por conta do negócio jurídico firmado.

Sob o prisma da efetividade, a Lei 8078/90, ao incorporar a multa coercitiva no parágrafo 4º, de seu artigo 84, outorgou ao Estado-juiz maior campo de discricionariedade, autorizando-o a cominação da multa ex oficio.

Tal prescrição representou, quando da promulgação da lei consumerista, uma inovação legislativa por romper com o sistema processual tradicional, em que tal matéria era dispositiva, vale dizer, dependia de provocação do interessado, e, ensejou o questionamento em face do princípio da adstrição, consagrado no artigo 128 combinado com o 293, ambos do Estatuto Procedimental, segundo os quais os limites da atuação jurisdicional vêm traçados no pedido formulado pela parte.

Melhor explicitando, se o Estado-juiz não pode conceder à parte além, aquém ou diferente do que foi pedido; se o órgão julgador só pode conhecer ex officio matéria de ordem pública, indaga-se se haveria conflito entre a norma geral, consubstanciada no artigo 460 combinado com os artigos 128 e 293, todos do Estatuto Procedimental, as quais impõem ao juiz dar interpretação restritiva ao pedido, e a regra do parágrafo 4º, do artigo 84, da Lei 8078/90, em que o julgador está autorizado a cominar de ofício a multa coercitiva e outras medidas que se fizerem necessárias à execução da obrigação.

Para essa indagação, a melhor doutrina sustenta inexistir conflito normativo e esclarece que a imposição da multa coercitiva em nada ofende o princípio da adstrição. Isto porque a multa, egressa do direito francês denominada astreinte, tem natureza jurídica de medida de coerção e não de ressarcimento. Seu objetivo é o de constranger, o de esmaecer a resistência devedor em cumprir espontaneamente o contrato ou o comando emergente da sentença, de sorte que não repugna às normas procedimentais outorgar ao Estado-juiz o poder de impor a multa sem provocação do interessado.

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Neste ponto cabe uma observação. Conferindo ao juiz o poder de fixar a multa coercitiva de ofício, o legislador partiu de um enfoque publicista do processo. Com efeito, a função jurisdicional de pôr termo à controvérsia não interessa apenas a pacificação dos litigantes. Representa também a manutenção da paz social e da própria ordem jurídica, matérias de primeira plana para a manutenção do próprio Estado.

O exercício da função jurisdicional nos tempos modernos exige, por intermédio do método dialético, a participação do julgador na dinâmica processual, não só para melhor análise dos fatos que formarão o convencimento do julgador acerca da verdade, mas também para o desempenho da função política. Dessa forma, embora seja eminentemente jurisdicional, a função do juiz também resvala para o aspecto político, pois ao interpretar e dar corpo à vontade abstrata da lei estará, em última análise, fazendo valer a vontade popular, fruto da democracia.

Nesse diapasão, se é a própria lei quem permite ao julgador abandonar o papel passivo de "boca da lei" para desempenhar um papel mais ativo, sem, evidentemente, olvidar os princípios da imparcialidade e da preservação dos direitos fundamentais, forçoso é concluir que a imposição da multa coercitiva é simples reflexo da coadunação da atuação jurisdicional aos reclamos da sociedade moderna.

Por derradeiro, cabe destacar que o Código de Processo Civil, em seu artigo 461, também prevê a multa coercitiva. Entretanto, a tutela dos direitos metaindividuais, envolvendo ou não relações jurídicas de consumo, é normada pela lei especial - a 8078/90 -, do que resulta que a aplicação do Código só tem lugar em caráter subsidiário e naquilo que não contrariar a lei especial. Portanto, a aplicação da multa coercitiva deve observar o regramento instituído pelo parágrafo 4º, do artigo 84, da Lei 8078/90 e não a do artigo 461, do Código de Processo.

5- Adoção do non liquet e o do efeito secundum eventum litis

Antes de adentramos à abordagem da possibilidade do non liquet e da extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada com o temperamento do secundum eventum litis albergados pela Lei 8078/90, insta trazer à colação a definição dos direitos metaindividuais e de suas espécies para melhor intelecção do tema.

Direitos metaindividuais, como o prefixo grego indica, são direitos que transcendem a esfera individual. São direitos titularizados, ao mesmo tempo, por grupos, classes ou categorias de pessoas, ou, em dadas circunstâncias, por titulares indetermináveis. São interesses incindíveis por pertencerem, concomitantemente, a toda coletividade, como o direito à educação, à saúde, meio ambiente saudável, etc.

Essa nova categoria de direitos é classificada pela Lei 8078/90 em três

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espécies: difusos, coletivos e individuais homogêneos.

O inciso I, do artigo 81, conceitua como difuso o direito indivisível por pertencer, ao mesmo tempo, a titulares indetermináveis, vale dizer, são direitos titularizados por todos e por ninguém em particular. Para exemplificar, podemos mencionar o meio ambiente, a saúde. Quando estes interesses são afetados, toda coletividade sujeita-se aos efeitos prejudiciais, porquanto tanto o meio ambiente como a saúde são direito de todos os integrantes da sociedade.

O inciso II, do artigo 81, conceitua como coletivo o direito incindível por ser titularizado, ao mesmo tempo, pelo grupo ou classe de pessoas determináveis. Nesta espécie, os titulares são identificáveis por haver uma relação jurídica base preexistente à lesão, unindo determinado grupo de pessoas entre si ou com a parte causadora do dano. Pela dicção da lei, nota-se que o traço distintivo entre os direitos difusos e os coletivos consiste no fato de que nos direitos coletivos a relação jurídica foi a deflagradora da lesão, e é por isso que os titulares podem ser identificáveis. Exemplo notório é o contrato de adesão. Se houver alguma cláusula nula, todas as pessoas que aderiram àquele contrato experimentarão idêntica lesão.

Finalmente, o inciso III, do artigo 81, define os direitos individuais homogêneos como direitos individuais na essência, mas tratados coletivamente. São direitos individuais, porque é possível identificar cada titular. Ainda, não há entre os prejudicados qualquer relação jurídica que os una. A vinculação com a parte contrária decorre do fato de todos terem sofrido a mesma lesão. Cite-se à título de exemplo, produtos defeituosos. Todos os adquirentes daquele produto sofrerão a mesma lesão, nada obstante inexistir entre eles qualquer relação jurídica.

Visto o conceito e a classificação dos direitos metaindividuais, vejamos a mudança legislativa no que tange aos efeitos da sentença.

Partindo da premissa de que os interesses e as dimensões dos danos derivativos do consumo não se restringem apenas a consumidores perfeitamente determinados e identificados, o legislador consumerista introduziu um sistema totalmente diferenciado do vigente no Código de Processo Civil no que tange aos efeitos da sentença. Com efeito, o artigo 103, incisos I a III, da Lei 8078/90, ao tratar da matéria, adotou a possibilidade do non liquet - que é a possibilidade de o julgador rejeitar a pretensão ante a insuficiência probatória sem que tal sentença produza a coisa julgada material - e do julgado secundum eventum litis - é a possibilidade de estender subjetivamente os efeitos da sentença -, anotando-se que a incidência desses regramentos dependem da natureza da sentença, do direito litigioso e do resultado da lide coletiva.

Se a sentença ser meramente formal, ou seja, quando o processo for extinto sem julgamento do mérito, os efeitos são idênticos ao adotado pelo Código de

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Processo Civil. Forma-se a coisa julgada formal e seus efeitos ficam adstritos ao processo extinto, permanecendo a controvérsia incólume à apreciação judicial, o que faculta à parte interessada o ajuizamento de nova ação.

Se a sentença for definitiva, ou seja, quando o processo for extinto com julgamento do mérito, os efeitos da sentença ficam submetidos ao tratamento estabelecido pela Lei 8078/90, dependendo da natureza do direito litigioso e do resultado da lide coletiva.

Com efeito, se a natureza do objeto da lide for direito difuso ou coletivo, a sentença que acolher a pretensão produzirá a coisa julgada material e seus efeitos benéficos alcançarão a todos os titulares individualmente considerados, ainda que não tenham participado do processo. Incidirá, portanto, o regramento da extensão subjetiva dos limites da coisa julgada material secundum eventum litis. Se, entretanto, o juiz entender que não houve lesão, rejeitará o pedido. Nesta hipótese, não haverá extensão dos limites subjetivos da coisa julgada, porquanto tal julgamento não beneficia os titulares individuais. Neste caso, os efeitos da decisão interditam os legitimados coletivos de ajuizarem nova demanda coletiva, mas não impedem o ajuizamento de lides individuais.

Elucida o prof. Arruda Alvim [04] que "se ficar claro, aos olhos do juiz, que toda a diligência probatória foi realizada e que, apesar disso, não existiu a lesão ao bem jurídico que se pretendia proteger", formar-se-á a coisa julgada material, porém, com o temperamento do chamado efeito secundum eventum litis do julgado. Quer isto significar que os efeitos da coisa julgada material oriunda da sentença que julgou improcedente a ação em razão da ausência de lesão, cujo objeto seja direito difuso ou coletivo, não alcançarão os titulares individualmente considerados, ressalvando-se a possibilidade de ajuizarem suas ações individuais arrimados na mesma causa de pedir veiculada na coletiva que fora julgada improcedente.

Todavia, se o conflito versar sobre direitos individuais homogêneos não será aplicado o non liquet e só incidirá o secundum eventum litis se a lide for acolhida. Isto por serem direitos essencialmente individuais, mas que pela gravidade e repercussão social da lesão foram inseridos na categoria de direitos transindividuais. Assim, ao revés do que ocorre nas lides difusas e coletivas stricto sensu, se não houver prova bastante da lesão, o órgão julgador rejeitará a pretensão e a sentença produzirá coisa julgada material, alcançando todos os partícipes da ação, ficando, por corolário, impedidos de ajuizarem ações individuais para renovar a mesma pretensão, em razão de terem integrado o pólo ativo da lide coletiva na qualidade de litisconsortes. Idêntico efeito se produzirá se o julgador entender que não houve lesão ao direito individual homogêneo. Destarte, infere-se que o resultado negativo da ação individual homogênea só não prejudicará quem dela não houver participado.

Em vista do que prescreve a lei 8078/90, infere-se que o tratamento

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dispensado para as ações de direito individual homogêneo é idêntico ao constante do Código de 73. Vale dizer, seja pela inexistência de lesão, seja pela insuficiência de prova, a sentença proferida produzirá coisa julgada material inter alios. Quer nos parecer que a razão de a Lei 8078/90 ter repetido o tratamento trazido pelo Código de Processo reside no fato de o direito controvertido ter natureza individual e, nesse passo, vigorariam os mesmos efeitos produzidos para as hipóteses de formação litisconsorcial ativa facultativa unitária.

Para melhor visualização do que dissemos, sinopticamente, temos:

DIREITO DIFUSO:

Procedência: Faz coisa julgada material. Seus efeitos são extensíveis a todos titulares individuais (erga omnes)

Improcedência:

a) Por falta de provas = Incide o non liquet, não produzindo a coisa julgada material. Admite-se a repropositura da ação coletiva e o ajuizamento da ação individual

b) Ausência de lesão = Opera coisa julgada material apenas entre os legitimados coletivos. Não há extensão subjetiva, admitindo-se a propositura da ação individual

Direito COLETIVO

Procedência: Faz coisa julgada material e seus efeitos são extensíveis aos titulares determináveis do grupo ou classe (ultra partes)

Improcedência:

a) Por falta de provas = Incide o non liquet, mas não produz a coisa julgada material. Admite-se a repropositura da ação coletiva e nada interfere no ajuizamento da ação individual

b) Ausência de lesão = Produz coisa julgada material apenas entre os legitimados coletivos. Não há extensão subjetiva. Admite-se a propositura da ação individual

Direito INDIVIDUAL HOMOGÊNEO

Procedência: Faz coisa julgada material e seus efeitos são extensíveis a todos os titulares individuais (erga omnes)

Improcedência:

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a) Por falta de provas = Não incide o non liquet. Faz coisa julgada material, vedando-se a repropositura da ação coletiva. Não há extensão subjetiva. Só quem não participou da lide coletiva poderá ajuizar a ação individual.

b) Ausência de lesão = Produz coisa julgada material vedando-se a repropositura da lide coletiva. Não há extensão subjetiva. Quem não participou da lide coletiva poderá ajuizar ação individual.

Há que se ter presente que ao conferir tratamento coletivo às ações que tenham por objeto o direito individual homogêneo, a mens legis foi o de obter, mediante uma única relação processual, a solução de um conflito de grave e expressiva repercussão social, economizando tempo e recursos financeiros.

Em linhas gerais e pelas especificidades dos direitos metaindividuais, o tratamento dispensado pela Lei 8078/90 para os efeitos do julgado tinha que diferir da sistemática sufragada pelo Código de Processo Civil. Não apenas, ante a determinação constitucional de proteger essa nova categoria de direitos, cujo traço característico é a difusão dos titulares, mas, sobretudo, pelo fato de o legislador ter subtraído do titular individual a legitimação para agir. Nesse sentido, se a sistemática do Código de Processo fosse repetida pela Lei 8078/90 redundaria em flagrante inconstitucionalidade ante a negativa de acesso à justiça.

É oportuno destacar, para encerrarmos esse tópico, que a possibilidade do non liquet impõe ao julgador a necessidade de explicitar que a improcedência se deu em razão da insuficiência probatória, sob pena de viciar a sentença de nulidade e dar azo à rescisória, à lume do que preceitua o inciso V, do art. 485, da Lei de Rito.

6- A sentença genérica como regra nas ações coletivas

Destacamos que alguns princípios e regras processuais tradicionais foram moldados de modo a garantir a tutela eficaz dos direitos transindividuais.

Já analisamos a legitimação para agir, a inversão do ônus da prova, os efeitos da sentença judicial à luz de seu resultado. Verificaremos, neste tópico, a flexibilização da regra constante do artigo 286, da lei procedimental, segundo a qual o pedido deve ser certo e determinado.

Pedido "é a expressão da pretensão. É o que se pede em juízo. É a dedução da pretensão em juízo (...) No pedido se contém a suscitação de uma provisão jurisdicional (pedido imediato), na tutela de um bem jurídico (pedido mediato)". [05]

O pedido de prestação da tutela jurisdicional, por encerrar uma manifestação da vontade, deve receber interpretação restritiva à luz do princípio albergado no

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artigo 293, da Lei Procedimental Civil. Não por outra razão, é exigência legal que o pedido deva ser certo e determinado, entendendo-se por esta locução: delimitado quanto aos direitos e extensão quantitativa.

Por essa regra, o juiz fica vinculado àquilo que foi pedido, não podendo proferir sentença ilíquida quando o pedido for certo, nem conferir ao autor citra, ultra ou extra petita, sob pena de nulidade da sentença (parágrafo único, artigo 459, do CPC).

A regra constante do caput do artigo 286, do Código de Processo, no entanto, é excepcionada por seus incisos, ao enunciar hipóteses em que o pedido possa ser genericamente formulado, ou seja, admite-se que o autor decline o que quer sem deduzir o quantum quer.

Nas ações coletivas, o direito em conflito pertence a titulares determinados (direito coletivo stricto sensu) ou indetermináveis (direito difuso). Nessa linha, não seria possível repetir a regra prescrita no artigo 286, da lei do Rito, por absoluta incompatibilidade com os objetivos da Lei 8078/90. Daí o porquê de a exceção no Código de 73 ser a regra na Lei 8078/90.

De fato. A regra consubstanciada no artigo 95, da Lei 8078/90, é que a sentença deva ser certa quanto ao tipo de provimento jurisdicional pretendido, mas genérica ou ilíquida quanto à extensão quantitativa da pretensão. E assim é, para viabilizar aos lesados individuais a identificação e a apuração do quantum indenizativo, de acordo com a extensão do dano individualmente experimentado.

A profa. Ada Pellegrini Grinover [06] assevera que o aspecto teleológico da sistemática processual traçada pela Lei 8078/90 para a tutela dos direitos transindividuais é obter, por meio das ações coletivas, o reconhecimento judicial do dever reparatório e da condenação do agente causador do dano ao ressarcimento pelos prejuízos produzidos. Por essa razão, a sentença deve ser genérica, máxime em razão de a decisão proferida nas ações coletivas tutelar um bem jurídico ainda indivisível, vale dizer, a condenação se dá pelo prejuízo provocado e não pelo dano experimentado pelos titulares individualmente considerados.

Vê-se a completa distinção entre a ação coletiva e a que envolve direitos individuais regidos pelo Código de Processo e o porquê de o legislador, para a tutela dos direitos coletivos, ter rompido com a tradição.

Pensemos na relação jurídica de consumo. Na lide individual, a controvérsia fica adstrita entre o fornecedor - causador do dano - e o consumidor lesado. Desde o início da lide as partes são perfeitamente identificadas, tendo o autor, em linha de princípio, o ônus de demonstrar o dano e o nexo causal. Já no caso das lides metaindividuais, se pensarmos que os legitimados ativos estão defendendo os

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interesses daqueles que efetivamente experimentaram o dano e que não participam da relação processual, fácil é intuir que a sentença não poderia ser especificar o quantum debeatur.

Em primeiro, porque os lesados só serão identificados no momento da liquidação de sentença; em segundo, porque será na fase liquidatória que será aferida a extensão do dano causado por determinado produto ou serviço.

Como se nota, se fosse aplicada a regra do Código de 73, prescrevendo que a sentença deva ser certa e determinada, restaria impossível a indenização dos lesados, o que faria cair por terra todo o arcabouço da lei 8078/90.

Colhemos, ainda, da lição trazida pela doutrina, que o fato de a condenação ser genérica não significa dizer que a sentença seja incerta. Há certeza quanto ao dever de reparar o dano, portanto o decisum é certo por definir o direito, mas ilíquido por não precisar o quantum.

7 - Do regime jurídico da coisa julgada nas ações coletivas

Fizemos remissão às alterações legislativas que influíram nos efeitos emanados da sentença. Falar de efeitos da sentença remete à coisa julgada, e, neste tema, as inovações foram substanciais.

O legislador infraconstitucional, cumprindo o ditame constitucional de elaborar mecanismos instrumentais que garantissem a defesa efetiva dos direitos metaindividuais, concebeu a Lei 8078/90 e aperfeiçoou a Lei 7347/85.

Esses dois diplomas cristalizam normas que destoam da processualística tradicional, porquanto as regras do Código de Processo se revelaram inaptas para equacionar satisfatoriamente as exigências da nova ordem social. Não foi por outra razão que as regras da legitimação para agir, dentre outras medidas, sofreram tantas inovações.

A extensão dos limites subjetivos da coisa julgada, tema que nos interessa neste tópico, recebeu tratamento especial. O artigo 16, da Lei 7347/85 assim dispunha, in verbis:

"Art. 16 - A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

Pelo teor do dispositivo legal supra colacionado combinado com o artigo 103, da Lei 8078/90, observa-se que todos os titulares individuais do interesse coletivo

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(lato sensu) seriam alcançados pelo resultado benéfico do julgado. Como se nota, diferentemente do que sucede perante o Código de Processo, no âmbito dos direitos coletivos a sentença produz efeitos para além dos litigantes.

Com efeito, as Leis 7347/85 e 8078/90 prescrevem que o titular individual do direito, por não ter recebido legitimação para agir em juízo, só sofrerá influência do julgado em sua esfera jurídica se a decisão for benéfica. Caso a sentença rejeite a pretensão por entender que não houve lesão, ou, porque do conjunto probatório existente nos autos não se demonstrou a lesão, o titular individual nenhum prejuízo jurídico experimentaria, podendo, inclusive, demandar individualmente o agente ofensor para obter a reparação da lesão.

O fundamento jurídico para que o legislador tenha adotado o efeito secundum eventus litis reside no fato de ter conferido legitimação a quem não seja o titular exclusivo do direito lesado. Destarte, a autoridade da coisa julgada não poderia cingir-se aos litigantes, daí ter sido criado um mecanismo que garantisse a todos os titulares do direito controvertido os benefícios decorrentes do acolhimento da pretensão. Por tal razão, é que a doutrina assevera que os efeitos erga omnes da autoridade da coisa julgada se opera somente em relação ao legitimados ativos para a ação coletiva, uma vez que a improcedência da demanda em face da inexistência da lesão a direito impedirá tão-somente o ajuizamento de outra lide coletiva.

A Lei 9494/97, contudo, alterando a redação do artigo 16, da Lei 7347/85, limitou os efeitos subjetivos da coisa julgada ao determinar que, in verbis:

"Art. 16 - A sentença civil fará coisa julgada ‘erga omnes’, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova". (grifo nosso).

Subsumindo o dispositivo legal supra às disposições constitucionais que determinam a efetiva proteção aos direitos transindividuais, à natureza dessa categoria de direitos e à posição doutrinária, encampamos a corrente que propugna pela inconstitucionalidade da alteração legislativa. Isto porque as ações coletivas buscam tutelar direitos fundamentais expressamente reconhecidos em nosso ordenamento jurídico. E o fato de a Constituição ter tutelado os direitos metaindividuais quer significar que se tornou inadmissível ao legislador infraconstitucional restringir ou alterar, direta ou indiretamente, essa proteção. Disso resultou a implementação de uma série de inovações por meio das Leis 8078/90 e 7347/85, criando-se um sistema legislativo material e processual próprio e adaptado para concretizar a proteção constitucional.

Em última análise, a razão de ser das mudanças introduzidas no sistema

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jurídico prendeu-se à natureza dos direitos e da repercussão social dos conflitos em massa.

Nesse diapasão, quer nos parecer, que restringir a eficácia da coisa julgada nos moldes traçados pela Lei 9494/97, alterando-se a redação do artigo 16, da Lei 7347/85, acaba por desnaturar a tutela efetiva do direito coletivo e ferir outros mandamentos constitucionais.

A doutrina mais autorizada vem repudiando essa alteração legislativa sustentando sua inoperância, porque as ações coletivas são reguladas por dois subsistemas que atuam em conjunto - as Leis 8078/90 e 7347/85 -, de modo que seria mister alterar a ambos, mormente porque é a Lei 8078/90 que cuida do regime da coisa julgada.

Hugo Nigro Mazzilli, por exemplo, destaca que pelo fato de a restrição ter sido imposta apenas na Lei 7347/85, qualquer outra ação, v.g a ação popular, que busque a tutela a direito coletivo estará fora do alcance restritivo trazido pela Lei 9494/97. Ainda, o direito coletivo stricto sensu tem eficácia ultra partes e não erga omnes, de modo que as ações que versarem sobre tais direitos estariam fora do alcance da Lei 9494/97. Ada Pellegrini Grinover segue a mesma linha quanto à ineficácia da restrição territorial dos efeitos da decisão, embasando seu entendimento no fato de que os efeitos da decisão estão vinculados aos limites ínsitos ao pedido, logo não pode ficar adstrito à competência jurisdicional do órgão prolator da decisão.

Não obstante o repúdio doutrinário à alteração do artigo 16, da Lei 7347/85, os tribunais, ainda que não uniformemente, têm conferido à lei interpretação literal, relegando a um plano secundário não apenas a linha teleológica do sistema protetivo sufragado pela Lei 8078/90, como também as prescrições constitucionais, como o acesso à justiça, a isonomia, dentre outros, como se verifica das ementas infra colacionadas.

" PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LITISPENDÊNCIA - LIMITES DA COISA JULGADA.

1. A verificação da existência de litispendência enseja indagação antecedente e que diz respeito ao alcance da coisa julgada. Conforme os ditames da Lei 9.494/97, "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator".

2. As ações que têm objeto idêntico devem ser reunidas, inclusive quando houver uma demanda coletiva e diversas ações individuais, mas a reunião deve observar o limite da competência territorial da jurisdição do magistrado que proferiu a sentença.

3. Hipótese em que se nega a litispendência porque a primeira

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ação está limitada ao Município de Londrina e a segunda ao Município de Cascavel, ambos no Estado do Paraná."

(REsp n. 642462/PR. 2ª TURMA. j. 08/03/2005)

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO DE COMBUSTÍVEIS (DL 2.288/86). EXECUÇÃO DE SENTENÇA. EFICÁCIA DA SENTENÇA DELIMITADA AO ESTADO DO PARANÁ. VIOLAÇÃO DO ART. 2º-A DA LEI Nº 9.494/97. ILEGITIMIDADE DAS PARTES EXEQÜENTES.

1. Impossibilidade de ajuizamento de ação de execução em outros estados da Federação com base na sentença prolatada pelo Juízo Federal do Paraná nos autos da Ação Civil Pública nº 93.0013933-9 pleiteando a restituição de valores recolhidos a título de empréstimo compulsório cobrado sobre a aquisição de álcool e gasolina no período de jul/87 a out/88, em razão de que em seu dispositivo se encontra expressa a delimitação territorial adrede mencionada.

2. A abrangência da ação de execução se restringe a pessoas domiciliadas no Estado do Paraná, caso contrário geraria violação ao art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, litteris : "A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator".

3. Recurso especial parcialmente conhecido, e nesse ponto, desprovido."

(REsp n. 665.947-SC, 1ª TURMA. j. 02.12.2004)

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Notas

01 Há dissenso doutrinário acerca da natureza da legitimação para a defesa de interesses coletivos. Há quem sustente, que a legitimação é extraordinária, porquanto quem figura como autor da demanda, não é o titular do interesse. Outra corrente perfilha a tese de que a legitimação não é extraordinária, mas autônoma para conduzir o processo, pois os interesses defendidos pertencem, ao mesmo tempo, à coletividade e ao autor da ação.

02. Mauro Cappelletti e Bryan Garth. Acesso à Justiça. Passim.

03 . A Lei 8078/90 não estabelece o momento processual da inversão, o que deu azo a três exegeses doutrinárias. A primeira, propugna pela inversão no momento do julgamento da causa. O fundamento seria o de que as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo, e que, portanto, a inversão dar-se-ia quando do sentenciamento. A segunda, sustenta que a inversão deve ocorrer na petição inicial. E a terceira, perfilha o argumento de que o momento da inversão deve ocorrer no saneador ou durante a fase probatória. Entendemos que a terceira corrente é a mais compatível com o regramento constitucional do direito de defesa e as diretrizes protetivas da lei 8078/90. Isto porque, o contraditório e ampla defesa desdobramentos do princípio do devido processo legal, pensamos que o julgador deva prevenir as partes sobre a possibilidade da inversão na fase instrutória, a fim de não cercear, de algum modo, a defesa do réu, e, porque não dizer, os interesses do consumidor.

04 José Manuel de Arruda Alvim, op. cit., p. 31.

05. Moacyr Amaral dos Santos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 2º vol.p.150.

06. Ada Pellegrini Grinover. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Comentado pelo autores do Anteprojeto), p.784.

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Litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros nas ações coletivas para tutela do consumidor

Autora: Gláucia Kohlhase Marques

1. Litisconsórcio

1.1.Definição

Litisconsórcio é a pluralidade de partes litigando no processo, isto é, quando houver a cumulação de vários sujeitos - tanto no pólo ativo (autores), quanto no pólo passivo (réus). Gabriel de Rezende Filho define litisconsórcio como "o laço que prende no processo dois ou mais litigantes, na posição de autores ou de réus" [01].

1.2.Pressupostos para a formação do litisconsórcio

O litisconsórcio não se forma livremente, apenas com a vontade das partes. É necessário que haja uma ligação que os una para sua formação válida.

São pressupostos estabelecidos pelo artigo 46 do Código de Processo Civil: I – entre elas houver comunhão de direitos e obrigações relativamente à lide; II – os direitos e obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito; III – entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir; IV – ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.

1.3 Espécies

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Quanto à pluralidade de partes, o litisconsórcio pode ser ativo quando existirem vários autores, passivo quando existirem vários réus ou misto quando no processo litigarem vários autores e vários réus.

Quanto à obrigatoriedade de formação do litisconsórcio, este pode ser necessário ou facultativo.

O litisconsórcio será necessário sempre que a lei assim exigir ou, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver que decidir a lide de modo uniforme para todas as partes. De acordo com o artigo 47 do Código de Processo Civil, sua formação é obrigatória.

A lei, em muitos casos, impõe a formação de litisconsórcio. Alguns exemplos podem ser citados como ações que versem sobre direitos reais imobiliários, em que marido e mulher terão que se litisconsorciar como autores (art. 10, CPC); ações em que marido e mulher deverão ser citados como réus (art. 10, § 1º, CPC); ação de usucapião, em que o autor deverá pedir a citação dos interessados certos ou incertos, bem como a dos confinantes do imóvel (art. 942, CPC); ações de divisão de terras, em que todos os condôminos deverão ser citados (art. 946, II e 949, CPC); ação de demarcação promovida por um dos condôminos, sendo necessário que os demais condôminos sejam citados como litisconsortes (art. 952, CPC). Em todas as hipóteses relacionadas, a lei determina a formação do litisconsórcio tendo em vista a relação jurídica material existente.

Entretanto, a maioria dos casos não é expressamente prevista pela lei processual, mas sua formação também é necessária sempre que a comunhão de direitos e obrigações for una e incindível. Para isso, o direito material deve ser analisado para que se possa identificar a necessidade da formação do litisconsórcio. Alguns exemplos podem ser mencionados como nas ações de partilha, em que todos os quinhoeiros deverão ser citados; ação de nulidade de casamento, proposta pelo Ministério Público, em que serão citados ambos os cônjuges; ação de dissolução de sociedade, em que serão citados todos os sócios e, por fim, ação pauliana, em que serão citadas as partes do contrato.

Por outro lado, será facultativo quando a existência do litisconsórcio ficar a critério das partes, devendo ser formado no momento da propositura da ação. Entretanto, a vontade das partes não é arbitrária, condicionando-se aos pressupostos elencados no artigo 46 do Código de Processo Civil já mencionados alhures. Se aquele que poderia ser litisconsórcio facultativo não integrar a relação jurídica inicialmente e deixa para ingressar no processo posteriormente, neste caso, será assistente litisconsorcial, figura que será examinada mais adiante.

O litisconsórcio facultativo pode ser limitado pelo juiz sempre que houver um número excessivo podendo acarretar o comprometimento da rápida solução do litígio

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ou dificultar a defesa, regra esta consubstanciada no parágrafo único do art. 46 do Código de Processo Civil.

Quanto ao momento de formação, o litisconsórcio pode ser inicial ou ulterior. Como regra, o litisconsórcio deve sempre ser inicial, isto é, deve ser formado no início da relação processual. O litisconsórcio será ulterior quando surgir no curso do processo, depois de constituída a relação processual ou pela junção de duas ou mais distintas relações processuais. A única hipótese de litisconsórcio ulterior ocorre no caso de litisconsórcio necessário que não se formou no início da relação processual de forma que, conforme determina o artigo 47, parágrafo único, do Código de Processo Civil, o juiz deverá ordenar ao autor que promova a citação de todos os litisconsórcios sob pena de extinção do processo. Embora a disposição legal não deixe claro, trata-se não só de citação para formação do pólo passivo como também do ativo. Nas demais hipóteses em que aquele que poderia formar litisconsórcio inicialmente não o fez e ingressa posteriormente, não constitui caso de litisconsórcio ulterior e, sim, assistência litisconsorcial que será examinada mais adiante.

Quanto à eficácia da sentença, o litisconsórcio poderá ser unitário ou simples.O litisconsórcio unitário ocorre sempre que a lide, obrigatoriamente, tiver que ser decidida de maneira uniforme para todos os litisconsortes. Neste caso, a situação jurídica litigiosa deve receber tratamento uniforme, não sendo possível que a decisão da lide seja de forma diferenciada para cada um dos colitigantes. Já o litisconsórcio simples se dá quando a lide puder ser decidida de forma diversa para cada litisconsorte.

1.4. Autonomia dos colitigantes

Conforme se depreende do artigo 48 do Código de Processo Civil, cada litisconsorte tem autonomia dentro do processo, sendo considerado como parte distinta, podendo praticar todos os atos processuais. Os atos e omissões não prejudicam os demais litisconsortes.

A confissão e o reconhecimento são possíveis sem que prejudiquem os demais litisconsortes. Da mesma forma poderá ser feita a transação e a conciliação.

Assim, os litisconsortes podem constituir procuradores diferentes. Neste caso, os prazos para contestar, recorrer e falar nos autos serão contados em dobro, em consonância com a regra instada no artigo 191 do Código de Processo Civil.

Entretanto, a autonomia dos litigantes não é absoluta, comporta algumas exceções.

Pode ocorrer que um dos litisconsortes, na posição de réu, não conteste a ação, tornando-se revel. Neste caso, sendo os fatos alegados pelo autor comuns a todos, basta que um dos litisconsortes conteste para que a revelia não acarrete o efeito

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previsto no artigo 319 do Código de Processo Civil. Neste sentido leciona Calmon de Passos : " O art. 320, I, portanto, tem que ser entendido como restrito à impugnação de fatos comum a todos os litisconsortes, ou comum ao réu atuante e ao revel litisconsorte. Relativamente aos demais fatos, a sanção do art. 319 incide: eles serão reputados verdadeiros pelo juiz, eliminada a possibilidade de prova contrária do réu quanto aos mesmos".

O recurso também poderá ser interposto pelo litisconsorte, independentemente dos demais. De acordo com o que disciplina o artigo 509 do Código de Processo Civil, o recurso interposto por um dos litisconsortes aproveitará aos demais quando os interesses não forem distintos ou opostos. É o que ocorre nos casos de litisconsórcio unitário.

A prova produzida por um dos litisconsortes também poderá aproveitar ou prejudicar os demais, em decorrência do princípio da comunhão da prova e do artigo 131 do Código de Processo Civil.

1.5 Litisconsórcio nas ações coletivas

A legitimação nas ações coletivas, conforme se depreende do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, é concorrente e disjuntiva. Em decorrência disso os legitimados podem propor a ação coletiva conjuntamente, formando litisconsórcio inicial no pólo ativo.

O artigo 5º, § 2º, da Lei da Ação Civil Pública traz a possibilidade de o Poder Público e outras associações legitimadas habilitarem-se como litisconsortes. Trata-se não de litisconsórcio, e sim de assistência, pois o nosso ordenamento não admite a constituição superveniente de litisconsórcio facultativo.

Hugo Nigro Mazzilli entende que a regra do artigo acima citado é caso de litisconsórcio ulterior. Segundo ele, "procurando disciplinar o chamado litisconsórcio ulterior, o art. 5º, § 2º, da LACP admite que "o Poder Público e outras associações legitimadas" se habilitem como litisconsortes em ação já proposta". E ainda, "por absurdo, caso se entendesse que inexista possibilidade de litisconsórcio ulterior, bastaria que o segundo co-legitimado propusesse em separado outra ação civil pública ou coletiva, com pedido mais abrangente ou conexo, e isso provocaria a reunião de processos, e então ambos os co-legitimados acabariam sendo tratados como litisconsortes. Nesse passo, menos imperfeita foi a redação dada na Lei n. 7.853/89, ao tratar do mesmo problema: "Fica facultado aos demais legitimados ativos habilitarem-se como litisconsortes nas ações propostas por qualquer deles". Mas, mesmo esta redação não se livrou da incorreção de mencionar assistentes litisconsorciais em vez de litisconsortes" [02].

Com relação à eficácia da sentença, o litisconsórcio será unitário, pois a

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decisão deverá ser idêntica para todos os litisconsortes.

1.5.1 O indivíduo na posição de litisconsorte

A legitimação extraordinária tem como escopo possibilitar que os indivíduos lesados pela violação de seus direitos sejam substituídos no pólo ativo, em um único processo coletivo, pelos legitimados ativos elencados no artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública e do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor. Isto ocorre para que a prestação jurisdicional seja prestada de uma só vez, beneficiando, assim, todo o grupo de pessoas lesadas.

Pelo sistema vigente na legislação brasileira, o indivíduo não pode ser autor de ação que tutele interesses transindividuais, seja de forma isolada ou em litisconsórcio unitário facultativo, tendo em vista que os legitimados para a propositura da ação estão expressamente determinados pela lei.

Para que alguém figure como litisconsórcio é necessário que tenha a legitimidade para ser autor. Entretanto, há uma exceção que ocorre no caso de ação popular. Face o artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição Federal, a ação popular pode ser proposta pelo cidadão para anular ato ilegal ou ilegítimo lesivo ao patrimônio público, inclusive ao meio ambiente.

O indivíduo lesado, conforme já exposto, embora não possa ser autor, tendo processo individual em andamento com pedido idêntico ou conexo, após requerer a suspensão, poderá habilitar-se como assistente litisconsorcial na ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos, de acordo com a previsão do artigo 94 do Código de Defesa do Consumidor.

Tanto o CDC quanto a LACP não trazem regras processuais específicas quanto ao assunto do litisconsórcio. Assim, questiona-se se existiria limites com relação à quantidade de indivíduos que queiram ingressar na ação coletiva como assistente litisconsorcial. Neste caso, somos pelo entendimento de que se deve fazer a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. De acordo com o parágrafo único do artigo 46 do referido diploma legal, é possível a limitação pelo juiz quando houver excessivo número de litisconsortes podendo acarretar o comprometimento da rápida solução do litígio ou dificultar a defesa.

1.5.2 Litisconsórcio entre Ministérios Públicos

Em decorrência de melhor defesa do meio ambiente, surgiu a idéia do litisconsórcio entre Ministérios Públicos que acabou se concretizando no artigo 113 do CDC. O seu § 5º incluiu o § 5º ao artigo 5º da LACP.

Com o veto ao § 2º do artigo 82 do CDC, surgiu a discussão se teria ou não havido veto ao litisconsórcio inserido no CDC. O entendimento majoritário da

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doutrina é que o veto foi ineficaz, prevalecendo a possibilidade do litisconsórcio entre Ministérios Públicos por força do artigo 113 do CDC.

Outra polêmica diz respeito à constitucionalidade do dispositivo em questão. Entretanto, as argumentações invocadas para o veto não procedem já que o artigo 128 da Constituição Federal não impede que os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados atuem em conjunto. O Ministério Público é uma instituição informada pelos princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional estabelecidos pelo § 1º do artigo 127 da Constituição Federal. Esta autonomia é apenas administrativa. No que se refere à instituição, o órgão Ministerial é uno, de âmbito nacional. Para Kazuo Watanabe " haveria, assim, certa improbidade técnica em se falar em litisconsórcio entre os vários órgão de uma mesma instituição. Tecnicamente, mais apropriado seria, certamente, falar-se em representação da instituição. Ocorre que a própria necessidade de divisão do trabalho que levou à criação de vários órgãos do Ministério Público, com atribuição específica de tarefas diferenciadas a cada um deles, seja por razão territorial, seja por razão de matéria, fez com que, tradicionalmente, esses órgãos atuassem com a indicação do setor que lhe compete. Assim, o Ministério Público do Estado de São Paulo tem agido com a indicação da unidade da federação a que pertence, o Ministério Público do Trabalho, com a menção à área que lhe toca, e assim por diante" [03].

Assim, o Ministério Público pode atuar em qualquer das justiças e até em conjunto com outro órgão do Ministério Público quando a defesa dos interesses e direitos difusos e coletivos esteja dentro das atribuições que a lei lhe confere.

2. ASSISTÊNCIA

A assistência é uma forma de intervenção espontânea que ocorre com o ingresso do terceiro na relação processual já existente. Suas regras estão disciplinadas nos artigos 50 a 55 do Código de Processo Civil. A doutrina insere a assistência nas modalidades de intervenção de terceiros apesar de o Código de Processo Civil vigente a tratar separadamente.

A doutrina classifica a assistências em duas espécies: simples, ou adesiva e a litisconsorcial ou autônoma, as quais serão examinadas adiante.

2.1 Assistência simples ou adesiva

A assistência simples tem origem no processo extraordinário romano. O Código de Processo Civil italiano conceitua a assistência simples como sendo a intervenção de terceiro no processo entre as partes visando sustentar as razões de uma delas contra a outra.

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O assistente, ao intervir no processo, não formula pedido em prol de direito próprio, de modo que se torna sujeito no processo e não parte. Atua com a finalidade de auxiliar o assistido tendo em vista ter interesse em que a sentença seja favorável ao litigante a quem assiste. Segundo Liebman, o terceiro "não se torna parte; não se converte em litisconsorte; sua relação jurídica não é deduzida em juízo e a sentença não pode decidi-la nem conter disposições que lhes sejam diretamente pertinentes (exceto quanto às custas da intervenção); ele pode, contudo, como terceiro, e permanecendo nesse caráter, defender a posição da parte assistida, mesmo em contradição, se necessário, com a conduta que esta assume no processo" [04]. A última hipótese somente se aplica ao assistente litisconsorcial.

Assim, conforme dispõe o artigo 50 do Código de Processo Civil, a assistência ocorre quando o terceiro, com interesse jurídico em que a sentença seja favorável à parte por ele assistida, intervém no processo.

Segundo Nelson Nery Júnior, há interesse jurídico do terceiro "quando a relação jurídica da qual seja titular possa ser reflexamente atingida pela sentença que vier a ser proferida entre assistido e a parte contrária" [05].

A assistência pode se dar a qualquer tempo e graus de jurisdição, recebendo o processo no estado em que se encontra.

O assistente age como auxiliar da parte, exercendo os mesmos poderes, podendo produzir provas e praticar atos processuais desde que sejam benéficos ao assistido. Também estará sujeito aos mesmos ônus processuais. Entretanto, lhe é vedado formular pedido próprio, ou reconvir, alterar, restringir ou ampliar o objeto da causa, recorrer, quando o assistido haja desistido do recurso ou a ele renunciado, impugnar perito aceito pelo assistido ou testemunha por este apresentada etc.

Por outro lado, ex vi artigo 53 do CPC, o assistente encontra-se subordinado ao assistido que poderá reconhecer a procedência do pedido, desistir da ação ou transigir sobre direitos controvertidos.

Sendo o assistido revel, o assistente aturará como gestor de negócios, atuando com maior liberdade no processo, podendo formular pedido, reconvir, sempre em benefício do assistido. Mas não poderá praticar atos relativos à disposição de direitos, como confessar, reconhecer pedido ou transigir.

Como regra, a coisa julgada não atinge o assistente simples, pois a lide discutida não lhe pertence. Vincula-se aos efeitos da imutabilidade da justiça da decisão, isto é, o assistente não poderá discutir os fundamentos de fato e de direito em que se assentou aquela decisão em outro processo que venha a ser autor ou réu. Entretanto, o artigo 55 do CPC traz algumas exceções. O assistente não estará vinculado à justiça da decisão se alegar e provar que, pelo estado em que recebera o

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processo, ou pelas declarações e atos do assistido, fora impedido de produzir provas suscetíveis de influir na sentença ou desconhecia a existência de alegações ou de provas, de que o assistido, por dolo ou culpa, não se valeu.

2.2 Assistência litisconsorcial ou autônoma

A assistência litisconsorcial ou autônoma ocorre sempre que o terceiro for titular de uma relação jurídica idêntica ou dependente da deduzida em juízo que será atingida diretamente pela sentença. É o caso daquele que poderia ter sido litisconsórcio facultativo mas não o foi, tendo sido deixado fora da relação processual.

Diversamente da assistência simples, na assistência litisconsorcial são extraídos do artigo 54 do CPC dois requisitos necessários para a sua formação: a) relação jurídica entre o interveniente e a parte contrária ao assistido; b) essa relação ser normada pela sentença, isto é, faz coisa julgada material.

Seus poderes são de verdadeiro litisconsorte, podendo agir com total independência e autonomia relativamente à parte assistida. Em consonância com o art. 48 do CPC, o assistente não se subordina aos atos do assistido, atuando como parte distinta deste em suas relações com a parte adversa. Os atos e omissões do assistido não prejudicarão nem beneficiarão o assistente bem como os atos e omissões deste não influirão naquele.

2.3 Assistência nas ações coletivas

Caso os demais legitimados queiram participar do processo posteriormente à propositura da ação, poderão ingressar na qualidade de assistente litisconsorcial tendo em vista que o litisconsórcio inicial é facultativo.

O particular lesado que tenha processo individual em andamento com pedido idêntico ou conexo, após ter requerido a suspensão, poderá ingressar como assistente litisconsorcial na ação coletiva.

Para Hugo Nigro Mazzilli, nos casos de danos a interesses transindividuais, a intervenção do lesado a título de assistência processual não se parece adequar perfeitamente às figuras processuais conhecidas:

a) não seria caso de assistência simples, pois o lesado, em benefício do qual se move a ação coletiva, não poderia ser terceiro, se tem direito próprio a ser zelado, compreendido no pedido coletivo;

b) não seria a rigor nem mesmo caso de assistência litisconsorcial em sentido estrito, pois a sentença não influirá necessariamente na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido, já que o indivíduo sempre conserva o direito de acionar

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diretamente o causador do dano, em ação individual, não restando prejudicado pela decisão da ação coletiva;

c) também, em tese, seria problemático admitir sua intervenção a título de assistência litisconsorcial qualificada, pois o indivíduo na poderia ter participado de um litisconsórcio ativo unitário facultativo para propor ação coletiva. Entretanto, esta seria a melhor opção [06].

Com relação ao limite temporal para que o lesado habilite-se como assistente litisconsorcial nas ações coletivas, há divergência na doutrina. Parte dela entende que o lesado poderá ingressar na ação coletiva a qualquer tempo. Outra parte defende o ingresso do assistente até o saneamento para que não cause tumulto processual.

Entendemos no sentido de que, uma vez não disciplinada a questão no CDC nem na LACP, deve-se aplicar as regras processuais contidas no CPC. Dessa forma, face o art. 50, parágrafo único, do CPC, o assistente poderá ingressar a qualquer momento, recebendo o processo no estado em que se encontra.

Embora o assistente atue como auxiliar da parte, exercendo os mesmos poderes e sujeitando-se aos mesmos ônus processuais, não pode assumir diretamente a promoção da ação. Assim, em caso de desistência ou abandono pelo assistido, o assistente não poderá assumir a ação, pois lhe falta legitimação autônoma.

3. INTERVENÇÃO DE TERCEIROS

Transitando em julgado a sentença, produz coisa julgada, tornando-se imutável e fazendo lei entre as partes. Como regra, a sentença atinge aos que foram partes na demanda e não terceiros. Entretanto, tendo em vista a complexidade da relação jurídica, é possível que os efeitos da sentença recaia indiretamente sobre terceiros. É o que chamamos de "extensão subjetiva da sentença".

Com o objetivo de reduzir os perigos da extensão dos efeitos da sentença a terceiros não participantes da relação processual, o direito admite que terceiras pessoas, em razão do interesse que tenham na lide, nela intervenham em determinados casos, para que possam fazer a defesa de seus direitos, sujeitando-se, assim, à sentença proferida. É a chamada intervenção de terceiros.

Os terceiros que intervêm não são partes na relação processual originária. São pessoas estranhas à relação processual de direito material deduzida em juízo e estranhas à relação processual já constituída. São sujeitos de uma outra relação de direito material que se liga intimamente àquela já constituída, ou seja, são os que não são partes no processo pendente [07].

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São modalidades de intervenção de terceiros a oposição, a nomeação à autoria, a denunciação da lide e o chamamento ao processo. São disciplinadas pelo CPC nos artigos 56 a 80. Entretanto, nos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95), face o disposto no art. 10, não se admite a intervenção de terceiros e a assistência, pois o procedimento adotado orienta-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível, a conciliação ou transação. Como conseqüência disto, as sanções impostas pelo Código de Processo Civil para os casos em que a parte se omita no dever de provocar a intervenção de terceiro no processo não se aplicam nesta hipótese.

Da mesma forma o procedimento comum sumário não autoriza a intervenção de terceiro, salvo a assistência e o recurso de terceiro prejudicado por se tratar de um rito mais célere.

3.1 Oposição

3.1.1 Conceito

A oposição tem origem germânica. Diversamente do direito romano, em que a sentença produzia efeitos apenas entre as partes, no processo germano barbárico, o juízo era universal, os litígios eram decididos pela assembléia do povo, em praça pública. Em razão desse procedimento é que se dizia que a sentença produzia efeitos em relação a todos que dela participavam e conheciam, e não só entre as partes. Se terceira pessoa pretendesse a coisa ou o direito sobre a qual litigavam as partes, deveria intervir no processo para exclui-las.

O instituto acabou sendo incorporado pelo direito canônico e pelo direito italiano medieval com a denominação de intervenção no processo das partes. Pela influência do direito canônico, a oposição acabou se tornando ação autônoma. Com esta roupagem a oposição foi adotada pelo direito brasileiro, português e alemão.

A França e a Itália seguem o modelo germânico primitivo, no qual a intervenção se dá no processo principal.

Dessa forma, a oposição pode ser conceituada como sendo a intervenção de terceiro que pretende, no todo ou em parte, a coisa ou o direito sobre que controvertem autor e réu.

Moacyr Amaral Santos conceitua oposição "como a ação intentada por terceiro que se julgar, total ou parcialmente, senhor do direito ou da coisa disputada entre as partes numa demanda pendente, formulando pretensão excludente, total ou parcialmente, das de ambas. Ou, ainda, o pedido de tutela jurisdicional, ou ação, que terceiro formula na demanda entre as partes, deduzindo pretensão própria excludente, total ou parcialmente, das dos demais litigante" [08].

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3.1.2 Procedimento

O procedimento da oposição encontra-se previsto nos artigos 56 a 61 do CPC.

O opoente apresentará a petição inicial observando sempre os requisitos exigidos pelos artigos 282 e 283 do CPC, no mesmo juízo da causa principal. Serão réus em litisconsórcio necessário autor e o réu da ação principal [09].

Nesta modalidade de intervenção de terceiros forma-se uma outra relação processual. De acordo com o momento em que ocorrer sua propositura, correrá em apenso aos autos principais ou em apartado como demanda autônoma.

Se a oposição for oferecida antes da audiência de instrução e julgamento, esta será apensada aos autos principais, e correrá simultaneamente com a ação, sendo ambas julgadas pela mesma sentença, não se esquecendo que a oposição deve ser apreciada antes da principal.

Os opostos serão citados na pessoa dos seus respectivos advogados para oferecer contestação no prazo comum de quinze dias. Trata-se de uma exceção à regra de que a citação deve ser pessoal [10] [11]. Entretanto, se o processo principal correr à revelia do réu, este será citado por edital, na forma dos arts. 213 a 233 do CPC.

Após a audiência de instrução e julgamento da lide pendente, a oposição somente poderá ser proposta em ação autônoma, seguindo o procedimento ordinário. Neste caso, embora o Código de Processo Civil não faça referência à questão, somos pelo entendimento de que a citação deve ser pessoal, com prazo de quinze dias para contestar. Sendo advogados diferentes, o prazo será contado em dobro, nos termos do art. 191 do referido diploma legal.

A oposição em processo autônomo será julgada sem prejuízo da causa principal. Mas se o juiz entender necessário o sobrestamento do processo principal a fim de julgá-los conjuntamente, poderá fazê-lo por prazo nunca superior a noventa dias para que não retarde demasiadamente a marcha do processo principal.

Se um dos opostos reconhecer o pedido, contra o outro prosseguirá o opoente.

O limite temporal para o oferecimento da oposição é até a prolação da sentença (juízo de 1º grau) por ser uma questão prejudicial à ação principal. Se a sentença já foi proferida não é mais cabível a oposição, o interessado no objeto da lide entre o autor e o réu, deverá ajuizar demanda que entender necessária contra o autor ou o réu, ou ambos.

Diversamente, Moacyr Amaral Santos entende que "a oposição, como demanda autônoma, pode ser proposta entre dois termos: desde já iniciada a audiência

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de instrução e julgamento da lide pendente (termo a quo), até o momento em que essa lide tiver sido decidida definitivamente (termo ad quem), isto é, até o momento em que a sentença nessa lide se torne irrecorrível. Transitada em julgado a sentença proferida na ação, não mais se admite a oposição. Assim, a oposição pode ser proposta mesmo quando a causa entre autor e réu estiver em segunda instância, em grau de recurso. Mas, ainda nesse caso, a oposição deverá ser oferecida e processada em primeira instância, sujeita às normas que disciplinam o duplo grau de jurisdição" [12].

No mesmo sentido, Pontes de Miranda entende que a oposição pode ser ajuizada tanto antes da audiência, como depois dela e da prolação da sentença. Se o Código permite expressamente que a oposição tenha curso autônomo, e possa ser julgada "sem prejuízo da causa principal", nenhum óbice existe ao seu ajuizamento depois de proferida a sentença de primeiro grau de jurisdição, mas antes do seu trânsito em julgado [13].

A sentença que julgar procedente a oposição será declaratória com relação ao autor da ação principal, pois declara não ter ele direito ao objeto da causa; e será condenatória com relação ao réu que possui a coisa, devendo entregá-la ao opoente ou responder perante ele.

Da sentença que julgar a oposição, o recurso oponível será o de apelação, nos termos do art. 513 do CPC.

A oposição não será cabível em processo de execução, nos Juizados Especiais e nas demandas sob procedimento sumário [14].

3.2 Nomeação à autoria

3.2.1 Conceito

A nomeação à autoria consiste na correção da legitimação passiva, ou seja, substitui-se o réu parte ilegítima para a causa por um réu parte legítima. É, portanto, ato exclusivo do réu, visando livrar-se de demanda que lhe foi intentada.

3.2.2 Procedimento

O procedimento da nomeação à autoria encontra-se disciplinado nos arts. 62 a 69 do Código de Processo Civil.

Duas são as situações em que deverá ocorrer a nomeação à autoria: a) quando aquele que detiver a coisa em nome alheio, for demandado em nome próprio, deverá proceder a nomeação à autoria o proprietário ou o possuidor; b) na ação de indenização, intentada pelo proprietário ou pelo titular de um direito sobre a coisa, toda vez que o responsável pelos prejuízos alegar que praticou o ato por ordem, ou

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em cumprimento de instruções de terceiro.

A nomeação à autoria não é uma mera faculdade do réu, mas sim um dever. A sua inobservância resulta na responsabilidade por perdas e danos, pois estará dando prosseguimento a um processo inútil ao fim visado, acarretando dano ao autor e para a Justiça. Da mesma forma, se nomear pessoa diversa daquela em cujo nome detém a coisa demandada.

A nomeação deve ser requerida no prazo para a defesa, e uma vez deferido o pedido, o juiz suspenderá o processo e mandará ouvir o autor no prazo de cinco dias.

Aceita a nomeação pelo autor, a ele incumbirá a citação; se a recusar, ficará sem efeito a nomeação. Deixando o autor de se manifestar no prazo que lhe foi conferido, presumir-se-á aceita a nomeação [15].

O Código nada fala de qual será o prazo para o nomeado falar sobre a nomeação. Dessa forma, se o juiz não estipular o prazo, deverá aplicar o prazo de cinco dias, conforme preceitua o art. 185 do CPC.

Citado o nomeado, este poderá reconhecer a qualidade que lhe é atribuída, expressa ou tacitamente, correndo a demanda contra ele. O reconhecimento tácito se dá por presunção, tendo em vista que o nomeado não compareceu, ou se compareceu, nada alegou.

Se o nomeado negar a condição, o processo continuará contra o nomeante. Neste caso, o autor terá duas opções: assumir o risco de continuar litigando com o nomeante, que se afirma parte ilegítima; ou desistir da ação contra o nomeante, observando a regra contida no art. 267, § 4º, para, posteriormente, propor nova demanda contra o terceiro indicado pelo nomeante.

Assim, havendo recusa do autor com relação ao nomeado, ou se este negar a qualidade que lhe é atribuída, o nomeante terá novo prazo para contestar [16].

O nomeante poderá continuar na relação processual como assistente caso tenha interesse em que a sentença seja favorável ao nomeado.

3.3 Denunciação da lide

3.3.1 Conceito

No direito romano, a palavra auctor assume várias acepções. É tanto aquele que propõe ação quanto o antecessor na sucessão da coisa, o transmitente do direito (o causam dans, em relação ao adquirente do direito, o causam habens). É neste último sentido que foi usada a palavra autoria, no chamamento à autoria instituído pelo Código de Processo Civil de 1939.

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O direito brasileiro, acompanhando o direito tradicional português, adotou a denominação "chamamento à autoria", utilizando-se do vocábulo latino. Já o direito francês e o italiano preferiram o vocábulo de origem germânica, denominando o instituto de exception de garantie, chiamata in garantia. No direito alemão e austríaco tem como correspondente a litisdenunciação.

Mais tarde, o conceito de denunciação à autoria foi alargada, passando, então, a ser chamado de denunciação da lide.

Denunciação da lide é o instituto pelo qual autor ou réu chamam a juízo terceira pessoa, que seja garante do seu direito, a fim de resguardá-lo no caso de ser vencido na demanda em que se encontram. É uma ação secundária, regressiva, sendo citado como denunciado o terceiro contra quem o denunciante terá pretensão indenizatória caso seja sucumbente na ação principal.

Haverá duas lides que serão processadas simultaneamente, no mesmo processo, julgadas pela mesma sentença [17] [18].

O CPC traz em seu art. 70 os casos em que tem cabimento a denunciação da lide. São os seguintes:

I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;

II – ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direita da coisa demandada;

III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda [19].

Trata-se de ato obrigatório [20] [21] apenas nos casos de evicção e transmissão de direitos, pois se não fizer a denunciação perderá o direito de regresso contra aquele que é o garante do seu direito discutido em juízo. Já na hipótese dos incisos II e III, art. 70, a parte que não promover a denunciação da lide perderá apenas as vantagens processuais dela decorrentes, mas não perde a pretensão de direito material, podendo ajuizar a ação regressiva em processo autônomo.

3.3.2 Procedimento

Como já foi dito alhures, a denunciação da lide pode ser feita tanto pelo autor quanto pelo réu.

Quando o titular da eventual pretensão regressiva for o autor, este deve

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requerer a denunciação juntamente com a petição inicial, pedindo a citação do denunciado, a qual será feito primeiro, e do réu. Ordenada a citação, suspende-se o processo.

A diligência para a citação do denunciado deve ser feita no prazo de dez dias para o residente na Comarca, e de trinta para o residente em outra Comarca, ou lugar incerto. Se a citação não ocorrer dentro do prazo estipulado pela lei, a ação prosseguirá unicamente em relação ao denunciante [22].

Uma vez citado o denunciado, este poderá defender-se da denunciação negando a qualidade que lhe é atribuída. Neste caso, a demanda prosseguirá entre autor e réu. Da mesma forma se dará se o denunciado for revel. O denunciado também poderá aceitar a denunciação e assumir a posição de litisconsorte, podendo aditar a petição inicial no prazo de quinze dias (art. 241 c/c art. 297).

Embora haja na doutrina divergência quanto ao aditamento da petição inicial pelo denunciado, não há dúvidas quanto a essa possibilidade já que a lei é expressa. Cabe ao denunciado coadjuvar o autor uma vez que tem interesse na procedência da ação. Entretanto, não pode argüir fato novo, contrariando a defesa do autor [23].

Se o denunciado confessar os fatos alegados pelo autor, poderá o denunciante prosseguir ou não na defesa.

A denunciação da lide feita pelo réu deve ser oferecida no mesmo prazo para a contestação da ação principal. Questão que surge é se o réu, uma vez citado, apresenta apenas a denunciação, deixando de contestar o pedido do autor. Neste caso, sendo o denunciado citado dentro do prazo para a contestação, ficando suspenso o processo, poderá o réu e denunciante apresentar contestação, depois de reiniciado o andamento da ação principal ? Isso não nos parece correto, pois o denunciado precisa conhecer o posicionamento do réu com a inicial para poder apresentar sua defesa [24].

O prazo e as regras para a citação do denunciado serão as mesmas da denunciação feita pelo autor, como acima explicitado.

Citado o denunciado, este poderá aceitar e contestar o pedido, prosseguindo o processo contra o denunciante e denunciado em litisconsórcio; comparecer apenas para negar a qualidade que lhe foi atribuída, sendo, considerado revel, cumprindo ao denunciante prosseguir na defesa até o final; ou confessar os fatos alegados pelo autor, podendo o denunciante prosseguir na defesa.

A revelia do denunciado não desobriga o réu de sua defesa sob pena de perder o direito de regresso.

A decisão de rejeição liminar da denunciação é decisão interlocutória, sendo sua impugnação feita por meio do recurso de agravo.

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O Código de Processo Civil também permite a chamada denunciação "sucessiva". Isto ocorre quando o denunciado tem com relação a outrem a mesma posição jurídica do denunciante perante ele. É o que dispõe o art. 73 : " Para os fins do disposto no art. 70, o denunciado, por sua vez, intimará do litígio o alienante, o proprietário, o possuidor indireto, ou o responsável pela indenização e, assim, sucessivamente, observando-se, quanto aos prazos, o disposto no artigo antecedente".

Parte da doutrina tem entendido que a denunciação da lide sucessiva é cabível em todos os casos de ação regressiva. Isto porque constam do próprio texto legal as expressões "obrigação de indenizar em ação regressiva" (art. 70), "responsável pela indenização" (art. 72 e 73) e "responsabilidade por perdas e danos" (art. 75) [25].

Outra parte posiciona-se no sentido de que a interpretação dos dispositivos deve ser restritiva. As hipóteses de intervenção são excepcionais face o princípio da singularidade da jurisdição e da ação, de modo que a denunciação somente será possível quando, por força de lei ou contrato, o denunciado está obrigado a garantir o resultado da demanda, acarretando a perda da ação [26].

Todas essas discussões ocorrem principalmente no temor de que as denunciações sucessivas se eternizem no processo. Mas o próprio Código, já prevendo tal situação, determina a "intimação" e não a "citação". Dessa forma, o procedimento servirá apenas como forma de cientificar os eventuais denunciados, não se tornando réus na ação.

Moniz de Aragão sustenta a possibilidade de denunciação da lide não somente ao alienante mas também de todos os antecessores na cadeia dominial, na mesma oportunidade [27].

No mesmo sentido, posiciona-se Athos Gusmão Carneiro, em tese apresentada no Ciclo de Estudos de Processo Civil, realizado em Curitiba, (em agosto de 1983) : "As denunciações sucessivas, previstas no artigo 73 do CPC, poderão ser feitas ‘coletivamente’, ou seja, requeridas ‘em conjunto’ pelo denunciante, assim abreviando o processo e melhor se assegurando o êxito da demanda indenizatória de regresso, no caso de insolvência ou ausência de algum dos anteriores proprietários na cadeia dominial" [28].

Assim, somente após a última denunciação é que o processo retornará ao seu curso, pondo fim à suspensão preconizada pelo art. 70.

No que tange aos efeitos da sentença que julga a denunciação da lide, conforme o art. 76 do CPC, esta será declaratória. Entretanto, esta assertiva não coaduna com a parte final do artigo que diz "valendo como título executivo". Na verdade, o efeito da sentença é condenatório, pois, se assim não fosse, não haveria possibilidade de considerá-la como título executivo (584,I) [29] [30].

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Da mesma forma, Arruda Alvim leciona : "Outra observação que cabe fazer é a de que, sem uma maior análise, pareceria que a segunda decisão do juiz seria meramente declaratória, o que não é coerente, todavia, com as últimas palavras da própria norma em exame: valendo como título executivo. A palavra declarar no texto foi usada em seu sentido estrito de definir, reconhecer, e quer dizer condenar. Por outro lado, se a sentença fosse tão somente declaratória, não ensejaria execução, dado que o art. 584, I, coloca como título judicial apenas a sentença condenatória. A possibilidade de execução é, aliás, a vantagem do instituto; em um só processo, resolverem-se, em definitivo, com força de coisa julgada material, duas lides conexas, possibilitando duplo título executivo" [31].

A sentença que julga a denunciação da lide pode ser atacada por meio da apelação [32] [33].

A denunciação da lide não é cabível no procedimento sumário bem como nos Juizados Especiais por força da vedação do art. 280 do CPC e art. 10, Lei n. 9.099/95 respectivamente, tendo em vista ser um procedimento mais célere. A denunciação acabaria introduzindo fundamentos novos na relação processual acabando por procrastinar o feito [34]. Também não é cabível no processo de execução [35].

3.4 Chamamento ao processo

3.4.1 Conceito

O chamamento ao processo é uma das modalidades de intervenção de terceiro no processo pelo qual o devedor demandado chama os demais coobrigados pela dívida para integrar o mesmo processo daquele que o autor poderia ter trazido como litisconsorte.

Tem como finalidade alargar o campo de defesa dos fiadores e dos devedores solidários, possibilitando-lhes, diretamente no processo em que um ou alguns deles forem demandados, chamar o responsável principal, ou os co-responsáveis ou coobrigados, a virem responder pelas suas respectivas obrigações de modo a "favorecer o devedor que está sendo acionado, porque amplia a demanda, para permitir a condenação também dos demais devedores, além de lhe fornecer, no mesmo processo, título executivo judicial para cobrar deles aquilo que pagar" [36].

O chamamento ao processo foi trazido ao Código de Processo Civil por influência do Código de Processo Civil de Portugal que possui essa forma de intervenção de terceiros, denominada de chamamento à demanda.

É uma faculdade do réu em fazer o chamamento ao processo do terceiro e não uma obrigação, pois o texto legal diz que "é admissível".

Aquele que chama terceiro ao processo não tem pretensão a fazer valer em

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relação ao chamado. Apenas entende que este tem a mesma obrigação de responder perante o autor. Ambos, chamante e chamado, ocupam a posição de litisconsórcio facultativo no pólo passivo.

O chamamento ao processo é admitido nos seguintes casos:

I – do devedor, na ação em que o fiador for réu – visa garantir a possibilidade de o fiador utilizar-se do chamado benefício de ordem consubstanciado no art. 827 do Código Civil [37]. Isto porque, face o art. 568,I do CPC, somente poderá ser executado o devedor reconhecido como tal no título executivo.

Confere-se ao fiador o direito de não sofrer execução, decorrente de não pagamento de dívida pelo afiançado, até que exausto o patrimônio deste.

Sendo a sentença procedente, o afiançado chamado ao processo será abrangido pelos efeitos da decisão, isto é, será condenado da mesma forma que o fiador, como responsável pela dívida. E, instaurado o processo de execução, sendo o caso, poderá valer-se do já referido benefício de ordem, nos termos do art. 595 do CPC.

Mesmo que o fiador não tenha benefício de ordem a seu favor, poderá chamar ao processo o afiançado. Neste caso, o fiador também será principal devedor e, tendo satisfeito o credor, poderá exigi-la do afiançado, nos termos do art. 80 do CPC [38].

II – dos outros fiadores, quando para a ação for citado apenas um deles – consiste na hipótese de haver vários fiadores garantes da dívida, tendo sido demandado apenas um deles, facultando ao demandado trazer os demais fiadores ao processo. O fiador chamado ao processo, uma vez citado, torna-se litisconsórcio.

III – de todos os devedores, solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum – esta é a hipótese de solidariedade passiva em que o credor esteja exigindo apenas de um dos devedores solidários a dívida comum. Dessa forma, serão trazidos ao processo os demais devedores solidários passando a figurar como litisconsortes no pólo passivo.

3.4.2 Procedimento

O procedimento do chamamento ao processo encontra-se disciplinado nos arts. 77 a 80 do Código de Processo Civil.

O réu deverá requerer o chamamento ao processo na mesma oportunidade da contestação.

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Deferido o pedido do devedor e ordenada a citação, o processo será suspenso, observando as regras contidas nos arts. 72 e 74, quanto à citação e aos prazos [39].

Após a citação do chamado, este terá prazo para resposta, tornando-se litisconsorte do chamante.

O indeferimento do chamamento somente poderá ocorrer se o juiz verificar que o requerimento não se enquadra nas hipóteses elencadas pelo art. 77. Dessa decisão cabe agravo.

A sentença de procedência proferida no processo de conhecimento condenará os devedores e valerá como título executivo, em favor daquele que satisfizer a dívida, para exigi-la por inteiro, do devedor principal, ou de cada um dos co-devedores a sua cota, na proporção que lhes tocar.

O chamamento ao processo é cabível tanto em processo de conhecimento quanto no cautelar. Já no processo de execução não é possível o réu lançar mão do chamamento ao processo já que inexiste sentença sobre a pretensão executiva. Assim, para que o fiador se utilize do benefício de ordem é necessário que tenha requerido o chamamento ao processo do afiançado no processo de conhecimento.

No procedimento sumário (art. 280, CPC) e nos Juizados Especiais (art. 10, Lei n. 9.099/95) não é cabível o chamamento do processo por se tratar de procedimentos mais céleres.

3.5 Intervenção de terceiros nas ações coletivas

As ações coletivas são aquelas destinadas a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

O termo difuso tem sua origem doutrinária romanística tendo como titular cada um dos integrantes da comunidade. O perfil histórico do processo civil romano menciona as actiones populares como instrumento de proteção a esses interesses.

A construção doutrinária em torno da noção conceitual é recente em nossa legislação pátria. Os direitos metaindividuais têm a primeira referência na Lei da Ação Popular. Com a alteração dada pela Lei n.º 6.513/77 e com a Lei da Ação Civil Pública, Lei n.º 7.347/85 houve uma sistematização na defesa dos direitos difusos e coletivos ao meio ambiente e ao consumidor. A positivação dos direitos difusos e coletivos, chamados de direitos fundamentais de terceira geração, ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, consumando-se com o advento do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8.078/90.

Os interesses metaindividuias têm sua origem em regras previstas como garantias do tecido social. Os sujeitos são, em geral, indeterminados, ainda que

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determináveis, e o seu objeto e a forma de tutela possuem uma mutabilidade no tempo e espaço como característica. Foi a Lei n.º 8.078/90 que trouxe o conceito, em noção tripartite dos interesses metaindividuais, consubstanciado no art. 81, parágrafo único e seus incisos. Dividem-se em interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

São difusos os direitos cujos titulares são indetermináveis. A ligação entre os titulares se dá por circunstâncias de fato e o objeto é indivisível. Não há entre eles relação jurídica base. A tutela jurisdicional dos interesses difusos deve ser feita em benefício de todos os consumidores atingidos, sendo suficiente uma única demanda, cuja sentença fará coisa julgada erga omnes face o disposto no art. 103, I do CDC.

São coletivos quando os titulares são indeterminados, mas determináveis, ligados entre si, ou com a parte contrária, por relação jurídica base preexistente à lesão ou ameaça de lesão. Essa relação jurídica é diversa daquela que se origina da lesão. Seu objeto também é indivisível.

Os individuais homogêneos são aqueles direitos individuais cujo titular é identificável e o objeto é divisível. Não é necessário que exista entre as pessoas uma relação jurídica base anterior. É caracterizado pela sua origem comum podendo ser defendidos coletivamente. A relação jurídica que nasce da lesão é individualizada na pessoa de cada prejudicado, acarretando ofensa diferente na esfera jurídica de cada um de modo a permitir a identificação das pessoas atingidas. A efetiva identificação se dá no momento em que o prejudicado exerce o seu direito, seja através de demanda individual, seja por meio de habilitação por ocasião da liquidação da sentença na demanda coletiva.

Assim, em decorrência do desequilíbrio das forças econômicas e negocias nas relações de consumo, que acabou por deixar o consumidor em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência, o legislador se deparou com a necessidade de criar regras de proteção para que os princípios constitucionais de igualdade, ampla defesa, entre outros, fossem garantidos. Desse modo, o Código de Defesa do Consumidor trouxe uma sistemática peculiar, buscando o equilíbrio processual entre as partes. Neste aspecto é que os institutos processuais devem ser analisados, sempre à luz da vulnerabilidade do consumidor, buscando a facilitação e a rápida entrega da prestação jurisdicional.

O Código de Defesa do Consumidor deixou de tratar muitas questões processuais, de forma que, há necessidade de se fazer uma interpretação sistemática entre o CDC, o CPC e a LACP. Daí se conclui que em lides de consumo as figuras de intervenção de terceiros serão possíveis desde que não traga dificuldades na defesa e procrastinação no feito.

Com esses princípios em mente é que o legislador trouxe a vedação da

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denunciação da lide no art. 88 do CDC. Por se tratar de ação condenatória em que se discute dolo e culpa acaba por afrontar o direito do consumidor de ser indenizado em face da responsabilidade objetiva. Nestes casos deve ser proposta ação autônoma para a discussão da questão.

Neste sentido, Kzauo Watanabe entende que "a denunciação da lide, todavia, foi vedada para o direito de regresso de que trata o art. 13, parágrafo único, do Código, para evitar que a tutela jurídica processual dos consumidores pudesse ser retardada e também porque, por via de regra, a dedução dessa lide incidental será feita com a invocação de uma causa de pedir distinta. Com isso, entretanto, não ficará prejudicado o comerciante, que poderá, em seguida ao pagamento da indenização, propor ação autônoma de regresso nos mesmos autos da ação originária" [40].

Outra questão polêmica é quanto ao cabimento do chamamento ao processo em sede de lide de consumo. O art. 101, II do CDC traz expressamente a possibilidade do chamamento ao processo da seguradora quando existir relação de seguro. Neste caso, não há violação aos princípios básicos do microssistema do CDC já que o chamamento da segurado só amplia as garantias para o consumidor [41]. Uma vez julgada procedente a demanda, a sentença condenará o réu nos termos do art. 80 do CPC.

Esse chamamento deverá ocorrer no prazo para contestação, face o disposto no art. 78 do CPC. Nesta hipótese, tendo em vista que o segurador foi chamado como responsável em face do consumidor, em caso de procedência da ação, o juiz poderá julgá-la não só contra o réu, como também contra o seu segurador, face o art. 79 do CPC.

Notas

01 Rezende Filho. Curso de Direito Processual. v. 1. cap. XXIX.

02 Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo. P. 256.

03Kazuo Watanabe. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. P. 763.

04 Libman. Nota às Instituições de Chiovenda. trad. port. v. 2. p. 328.

05 Nelson Nery Júnior. Código de Processo Civil Comentado.

06 Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo. p. 226.

07 GIOVANNI NENCIO NI (L´intervento voluntário litisconsorziale nel processo civile) refere que " única è la definizione di terzo, ed è negativa: terzo di um

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giudizio è colui Che non è parte". Assim também SÉRGIO COSTA: " Il concetto di terzo può essei determinato solo per esclusione: è terzo chi non è parte" (L’ intervento in causa, Turim, 1953). V. GOMES DA CRUZ, Pluralidade de partes e intervenção de terceiros, Revista dos Tribunais, 1991, p. 27.

08 Moacyr Amaral Santos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 2. v.

09 "A oposição não pode ter objeto mais amplo que a coisa ou o direito controvertidos entre autor e réu; neste caso, deve o interessado propor ação autônoma" (TRF - 2ª Turma, AC 83.433-MS, rel. Min. Costa Lima, v.u., DJU 29.08.85, "apud" Em. da Jur. do TRF n. 74, em 1.295).

10 "O art. 57 do CPC manda citar os advogados dos opostos para apresentação de defesa, mas é perfeitamente válida a citação feita na pessoa dos referidos interessados" (1ª Câm. Do TJPA, AC. 3.598, de 7.06.77, Rel. Des. Lídia Dias Fernandes, Rev. Do TJPA, Belém, 15:137).

11 " A citação, embora na pessoa dos advogados, não pode ser feita mediante simples publicação na imprensa oficial, mas obedecerá ao disposto nos arts. 213 e 233" (RJTJSP, 107:247 e 115:168).

12 Moacyr Amaral Santos. Primeiras linhas do direito processual civil. 2. v. 18. ed.São Paulo: Saraiva, 1997.

13 Pontes de Miranda. Comentários ao Código de Processo Civil. 1974, v.II, p. 95 (nº 2) e 100 (nº 1).

14 Lei 9.099/95, art. 10 e CPC, art. 280.

15 "Ante o silêncio do autor sobre o pedido de nomeação à autoria feito pelo réu, presume-se aceita aquela, devendo os nomeados serem citados para manifestar-se sobre o pedido, podendo, além de impugnar a nomeação propriamente dita, discutir sobre possível ilegitimidade passiva ‘ad causam’" (STJ – 4ª Turma, REsp 104.206-SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 12.11.96, deram provimento, v.u., DJU 9.12.96, p. 49.285).

16 "O prazo começa a correr novamente, isto é, tem o réu 15 dias para responder à ação" (TRPR – Apel. 549/75, ac. 15.10.75, RT 486/160).

17 Sidney Sanches alude que a expressão "denunciação à lide" dá a idéia de simples notícia de existência do litígio, mas no Código de Processo Civil vigente, consubstancia uma ação incidental com pretensão de garantia e/ou indenização, do denunciante em face do denunciado (Denunciação da lide, RP, 34:50).

18 "...se converte na verdadeira propositura de uma ação de regresso antecipada, para a eventualidade da sucumbência do denunciante" (BARBOSA

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MOREIRA, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Ed. Líber Juris, 1974, p. 87-8).

19 "A denunciação da lide, ressalvados, insista-se, os casos de denunciação obrigatória, somente deve ser admitida quando o denunciante logre comprovar de plano, documentalmente, o seu direito de regresso ou quando tal comprovação dependa unicamente da realização de provas que, por força da própria necessidade instrutória do feito principal, serão de qualquer modo produzidas; quando, em outras palavras, não haja necessidade de dilação probatória pertinente exclusiva e especificamente à denunciação" (Max Guerra Kopper. Da denunciação da lide. Del Rey, cap. V. p. 87).

20 "Segundo entendimento doutrinário predominante, somente nos casos de evicção e transmissão de direitos (garantia própria) é que a denunciação da lide se faz obrigatória" (STJ – 4ª Turma, REsp 43.367-SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJU 24.06.96, p. 22.761).

21 "Em face de preceito expresso de lei, a denunciação da lide é obrigatória a todo aquele que estiver forçado pela lei ou por cláusula contratual a indenizar, por via de regresso, o prejuízo do que perder a demanda.Tornar facultativa a denunciação da lide importa no descumprimento explícito da lei (art. 70, III, do CPC) e na afronta ao princípio da economia processual" (REsp 196.321-PR – STJ – 1ª Turma, rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 23.02.99, DJU 26.04.99, p. 61).

22 "Esse prazo é estipulado em favor da parte contrária à que requereu, a denunciação, para evitar seu prejuízo de ficar com o processo suspenso indefinidamente. Por isso sendo ultrapassado, sem a consumação da diligência, poderá logo pedir a retomada do curso do processo. Se, porém, a citação for realizada além do prazo, mas ainda com o processo paralisado, não haverá motivo para negar-lhe efeito. Não poderá, por exemplo, o denunciado argüir a intempestividade como motivo para exonerar-se da responsabilidade de garantia ou do direito regressivo do denunciante. O § 2º, do art. 72 deve ser interpretado em harmonia com o respectivo caput, onde se estipula a suspensão do processo, in casu, em prejuízo das partes do processo principal, e não do terceiro denunciado" (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. I. v. 21. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997).

23 "Pode consistir, por exemplo, em acrescentar o denunciado, já agora como "litisconsorte" do autor, uma nova causa petendi, ou em trazer mais elementos e argumentos de fato ou de direito à petição inicial, ou quiçá em expungi-la de irregularidades que poderiam torná-la inepta. Mas não pode o denunciado, porque não é o dominus litis, alterar substancialmente o próprio pedido formulado pelo denunciante, ou cumular pedidos outros; nem teria interesse algum nisso, uma vez que o eventual direito regressivo do autor contra o denunciado exercer-se-á nos

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limites da sucumbência, que não pode ultrapassar o pedido" (CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de Terceiros. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996).

24 Na opinião de Athos Gusmão Carneiro " O denunciado, para habilitar-se à sua própria defesa, necessita conhecer a posição de denunciante relativamente aos fatos e pretensões apresentados na petição inicial. Ao limitar-se ao pedido de intervenção do terceiro, o réu implicitamente aceitou os fatos postos na inicial e permitiu a preclusão de seu direito de contestar. Todavia, se o denunciado vier a contestar não só a ação regressiva, como também o pedido formulado, na ação principal (pois nesta torna-se litisconsorte passivo), então não se produzirá o efeito da revelia, ante o disposto no art. 320, I, do Código de Processo Civil" (Intervenção de Terceiros, cit., p. 87).

25 Barbosa Moreira. Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, t. I. p. 85/86. 1978.

26 Vicente Greco Filho, artigo cit., Justitia 94/13; Sidney Sanches, Denunciação da Lide no Processo Civil Brasileiro, 1984, p. 121.

27 Moniz Aragão. Sobre chamamento à autoria. Artigo publicado na Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, 1979, n. 1; Ajuris, 25:22.

28 Athos Gusmão Carneiro. Intervenção de Terceiros. 8. ed. p. 92. São Paulo: Saraiva, 1996.

29 "A expressão "valendo como título executivo" evidencia o conteúdo condenatório da sentença que julga procedente a denunciação da lide" ( RSTJ 85/197).

30 "A sentença que julga procedente a denunciação da lide vale como título executivo (CPC, art. 76); o aparelhamento deste independe do andamento da execução da sentença proferida na ação principal, podendo o denunciado à lide ser obrigado a cumprir sua obrigação, antes que o réu o faça" (STJ – 3ª Turma, Ag 247.761-DF-AgRg, rel. Min. Ari Pargendler, 08/02/00).

31 Arruda Alvim. Manual de Direito Processual Civil. 2.v. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

32 "Pode ser rescindida a sentença que deixa de julgar a lide secundária objeto da denunciação" (RT 724/408).

33 "Decisão que exclui, antes da sentença, litisdenunciado é agravável de instrumento, porque o processo continua" (RT574/150).

34 "O art. 280, inciso I, do Código de Processo Civil, com redação da Lei 9.245/95, certamente pautado em preocupação maior com a concentração de atos

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processuais e, reflexamente, com a economia processual, dispõe que "não será admissível ação declaratória incidental, nem a intervenção de terceiro, salvo assistência e recurso de terceiro prejudicado". Como no sistema do Código de Processo Civil, a denunciação é forma de intervenção de terceiro (o Capítulo VI em que o instituto está inserido tem esta denunciação), com o advento deste dispositivo restou, pela literalidade de seu texto, vedada a denunciação da lide no procedimento sumário. O tema, entretanto, certamente dará ensejo a profundas controvérsias" (Arruda Alvim, cit. P. 197).

35 1º TACSP – 3ª Câm – Ap. 262.922 – Rel. Arruda Alvim; RT 504/173, 521/197 e 562/112.

36 Celso Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, 1. ed., v. I., t. II, n. 434, p. 359.

37 "Art. 827 – O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem o direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.

Parágrafo único. O fiador que alegar o benefício de ordem, a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver a dívida".

38 "Não se admite chamamento ao processo em execução" (JTA 103/354).

39 " Art. 72. Ordenada a citação, ficará suspenso o processo.

1º A citação do alienante, do proprietário, do possuidor indireto ou do responsável pela indenização far-se-á:

a) quando residir na mesma comarca, dentro de dez (10) dias;

b) quando residir em outra comarca, ou em lugar incerto, dentro de trinta (30) dias.

2º Não se procedendo à citação no prazo marcado, a ação prosseguirá unicamente em relação ao denunciante.

Art. 74. Feita a denunciação pelo autor, o denunciado, comparecendo, assumirá a posição de litisconsorte do denunciante e poderá aditar a petição inicial, procedendo-se em seguida à citação do réu".

40 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 7. ed. p. 782/783.

41 "Vedação da denunciação da lide. O sistema do CDC veda a utilização da denunciação da lide e do chamamento ao processo, ambas ações condenatórias,

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porque o direito de indenização do consumidor é fundado na responsabilidade objetiva. Embora esteja mencionada como vedada apenas a denunciação da lide na hipótese do CDC 13 par. ún., na verdade o sistema do CDC não admite a denunciação da lide na s ações versando lides de consumo. Seria injusto discutir-se, por denunciação da lide ou chamamento ao processo, a conduta do fornecedor ou de terceiro (dolo ou culpa), que é elemento de responsabilidade subjetiva, em detrimento do consumidor que tem o direito de ser ressarcido em face da responsabilidade objetiva do fornecedor, isto é, sem que se discuta dolo ou culpa" (Código de Processo Civil Comentado, p. 1402).

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A competência nas ações coletivas do CDC

Autores: Renato Franco de Almeida

Paulo Calmon Nogueira da Gama

Aline Bayerl Coelho

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Ação Civil Pública e Ação Coletiva – 3.

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Competência na Ação Civil Pública – 4. Competência na Ação Coletiva – 5. Conclusão – 9. Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

A defesa dos interesses/direitos transindividuais ou metaindividuais (1), com a chegada – verdadeira necessidade – do Estado Democrático de Direito, ganhou foros de cidadania. Atualmente, portanto, é fecunda a doutrina pátria, bem como a resposta firme e, na maioria das vezes, acertada da jurisprudência na defesa de interesses que, há bem pouco tempo, era impensável no Direito brasileiro.

Com a aparição de novos interesses/direitos, fez-se mister o surgimento de novas formas de proteção, sendo incumbência da Ciência Processual adequar os institutos do Direito processual clássico – inspirado ainda em princípios e institutos surgidos no século XVIII – para a defesa desses direitos coletivos.

Para tanto, foram editadas algumas leis, ao longo dos anos, que previram a defesa de alguns direitos coletivos lato sensu. Porém, é de se colocar em evidência a aparição das Leis nº 7.347/85 – que instituiu a Ação Civil Pública – e 8.078/90 – que instituiu o Código de Defesa do Consumidor – que, de seu turno, além dos aspectos materiais, deu maior desenvolvimento à defesa dos interesses coletivos em sentido amplo.

Não obstante a inegável importância que esses diplomas legais possuem hoje no cenário jurídico nacional – como verdadeiras concretizações do Estado Democrático de Direito no aspecto processual – muita celeuma foi criada durante os anos das respectivas aplicações, mormente no tocante ao redimensionamento de velhos institutos processuais que tiveram que ser readaptados à nova realidade das demandas coletivas, em razão, obviamente, da natureza dos novos interesses/direitos perseguidos no bojo da relação jurídica processual.

Dentre as muitas divergências que ainda causam os textos legislativos mencionados, a competência para apreciação e julgamento das demandas propostas pelo rito processual instituído no Cap. II, do Tít. III do CDC, entendemos, merece melhor reflexão, seja da doutrina, seja da jurisprudência.

Neste sentido, o presente trabalho tem por escopo precípuo a análise da competência instituída para as chamadas ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, que, a nosso sentir e apesar da dicção legal, possui semelhanças com aquela tratada pela Lei nº 7.347/85, mormente após o advento da Medida Provisória nº 2.180, como se tentará demonstrar na seqüência.

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2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E AÇÃO COLETIVA

Sem embargo da ocorrência de semelhança no que toca à competência, as ações sob comento – civil pública e coletiva – possuem particularidades que as distinguem, o que, por corolário, ensejará diverso tratamento interpretativo.

Consoante melhor doutrina, a denominação dada às ações é reminiscência do período imanentista da teoria do processo, segundo o qual para cada direito existe uma ação específica (legis actiones). (2)

Não obstante o acerto da afirmação, é cediço que os procedimentos são criados ante a necessidade de concretização dos direitos materiais, daí a aparição de diversos ritos processuais especiais que instrumentalizam a efetivação dos direitos de fundo, afinal, processo é meio de realização material da função jurisdicional do Estado.

É o que ocorre, a nosso aviso, com o procedimento previsto no Cap. II do Tít. III do CDC (arts. 91 usque 100) que prevê as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos.

Ao contrário do que ocorre na Lei de Ação Civil Pública (LACP) – art. 3º – a ação coletiva prevista no CDC tem por objeto imediato do pedido tão-somente a condenação do Réu – única providência jurisdicional admitida nesta seara – ao pagamento de quantia – objeto mediato – que deverá ser apurada em seu quantum no respectivo processo de liquidação (arts. 91 e 95 CDC).

Tem-se, pois, que o âmbito de abrangência da primeira (ACP) é maior que o da segunda, no momento em que aquela serve como instrumento à satisfação não só de condenação à determinada quantia, porém e ainda, à condenação referente a obrigações de fazer ou não fazer.

Mesmo que perfunctoriamente, somente por este ponto, vislumbram-se, cabalmente, diferenças intrínsecas entre uma e outra, que dão ensejo a tratamento diverso, no particular.

Ademais, somente após o advento do Código de Defesa do Consumidor, a Ação Civil Pública tornou-se instrumento eficaz, também, à defesa dos interesses individuais homogêneos, o que, antes do Código consumerista, consistia clara impossibilidade jurídica da demanda (cf. art. 21 LACP, posteriormente alterado pelo art. 117 do CDC).

Por outro lado, parece ser entendimento sedimentado doutrinariamente o fato de que a Ação Coletiva somente poderá servir de instrumento à defesa de interesses consumeristas, ao passo que a ACP, à de qualquer interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo. (3)

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"A condenação em ação civil pública ou coletiva por lesão ao consumidor só poderá ter como objeto o dano global e diretamente considerado (p. ex., o dano decorrente da aquisição em si do produto defeituoso ou impróprio para os fins a que se destina, ou sua substituição ou a respectiva indenização). A tutela coletiva não poderá alcançar danos individuais diferenciados e variáveis caso a caso, de indivíduo para indivíduo (p. ex., danos emergentes e lucros cessantes)." (4)

À guisa de ilustração, as diferenças sumariamente comentadas ensejam, a nosso ver, diferenças ontológicas entre as ações em cotejo, o que, no concernente à competência do juízo, traduzir-se-á em ponto de aproximação, desde que se dê interpretação consentânea aos seus objetivos.

3. COMPETÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Consoante dispõe o art. 2º da LACP, as Ações Civis Públicas serão proposta no foro onde ocorrer ou deva ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional, portanto, absoluta, para o conhecimento e julgamento da demanda.

Já em seu parágrafo único – introduzido pela MP 2.180 – dispõe a lei que a propositura da ação prevenirá a jurisdição (rectius: competência) do juízo para as demais demandas que sejam idênticas. (5)

Da assertiva pode-se inferir que definir-se-á o juízo competente para o conhecimento e julgamento das Ações Civis Públicas não pelos elementos subjetivos da demanda – domicílio do autor ou do réu – todavia por seu elemento objetivo, qual seja, o fattispecie que ensejou o surgimento do objeto litigioso: o dano.

Temos, assim, que os objetivos da norma jurídica, ao determinar a competência do juízo do local do dano, são claros: a prevalência da importância da res iudicium deducta sobre as partes em lide; a facilidade na colheita de provas.

Ocorre o primeiro em razão de se cogitar, em regra, nos processos coletivos, de interesses que não dizem respeito ao indivíduo, como ser atomizado (6), mas como membro de uma sociedade, cujos interesses – interesses sociais – em um Estado Democrático de Direito, sobrepujam os meramente individuais.

Por outro lado, a definição do local do dano como determinação da competência do juízo tem por fim, sob o aspecto prático, a facilitação na colheita de provas, visto que o Juiz estará mais perto – e por conseqüência terá maior facilidade na sua captação e entendimento – dos indícios oriundos da probabilidade da ocorrência do dano e dos vestígios deixados pelo dano efetivamente causado, surgentes da conduta delitiva. (7)

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Daí que, com a introdução do parágrafo único ao art. 2º pela MP 2.180, se os efeitos do dano (potencial ou efetivo) transbordarem dos limites de uma comarca, ou até mesmo de um Estado-membro, competente será – nas Ações Civis Públicas, repise-se – aquele juízo onde ocorrer a primeira citação válida, segundo as regras insertas no Código de Processo Civil sobre prevenção (art. 219).

Entretanto, ao lançar escólios sobre a matéria, afirma Hugo Nigro Mazzilli que:

"Se os danos se estenderem a mais de um foro mas não chegarem a ter caráter estadual ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta seguindo os critérios da prevenção; se os danos se estenderem ao território estadual, ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta na respectiva Capital." (8) (g.n.)

Com a vênia devida ao ilustrado Mestre, pensamos que tal raciocínio não possui supedâneo legal. De efeito, na lei (LACP) não há norma jurídica que franqueie tal entendimento. Isto porque, mormente após a inserção do parágrafo único ao art. 2º da Lei nº 7.347/85, é explícita a determinação da competência pela prevenção – que deverá subsidiar-se nas normas processuais gerais previstas no CPC sobre tal instituto – entre as comarcas envolvidas no evento danoso. Ademais, não existe texto legal expresso que determine a competência de outro juízo – que não o prevento – em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional (nem mesmo há previsão de dano de âmbito regional ou nacional), acolhendo a assertiva do jurista paulistano, ao contrário do que ocorre com o CDC, em seu art. 93, onde resta clara a determinação legal da competência do foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional, respectivamente, o que, se demonstrará, não pode ser interpretado, também, de forma estritamente literal.

Frise-se que, em se tratando de Ação Civil Pública, em hipótese alguma, não importando a dimensão que os efeitos do dano possam alcançar, será competente o foro da Capital do Estado ou o Distrito Federal, e sim, como dito, o juízo, dentre somente as comarcas envolvidas, que primeiro realizar citação válida, simplesmente por inexistir norma jurídica que de forma diversa o preveja, e, ao revés, haver comando legal que assim o determine.

Desta forma, um dano ambiental que envolva os Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro – como recentemente de fato ocorreu – competente será o juízo da comarca que primeiro realizou a citação válida para o conhecimento e julgamento da Ação Civil Pública eventualmente proposta, independentemente do Estado a que pertença tal comarca, não havendo que se falar em competência da Comarca da Capital de uma das entidades federadas, caso não esteja envolvida pelos efeitos do dano. E mesmo neste caso – de ser a Comarca da Capital de um dos Estados ou de ambos atingida pelos efeitos danosos – esta somente será sede do juízo competente se

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citação válida foi realizada antes de qualquer outro, o que a tornará preventa.

Não calha a argumentação segundo a qual a norma aplicável à espécie seria o CDC; a uma, porquanto o disposto no art. 93 do Codex consumerista somente poderá ser aplicado em se tratando de relações jurídicas materiais de consumo; a duas, porque na LACP há norma, como visto, que trata expressamente da competência nestas ações, não sendo lícito argumentar, portanto, com o artigo 21 da mesma LACP, haja vista que a incidência deste somente ocorrerá no que for cabível.

De qualquer forma, fazendo uma pequena digressão, em se tratando de relações jurídicas de consumo cujo objeto imediato do pedido seja a condenação ao pagamento de determinada quantia, aplicável, aí sim, o CDC, mais especificamente o seu art. 93 no que concerne à competência, em razão do princípio da especialidade, ficando afastada a incidência da Lei de Ação Civil Pública.

De efeito, sendo o Código de Defesa do Consumidor lei posterior e especial no cotejo com a norma que instituiu a Ação Civil Pública, pensamos que aquela derrogou esta no que diz respeito à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos nas relações jurídicas de consumo. Isto porquanto, segundo os ditames do parágrafo 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), lei posterior – acrescentamos, de mesma ou superior hierarquia – derrogará anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava esta.

Insta frisar, entretanto, como dissemos, que a inaplicabilidade da LACP somente ocorrerá quando se pleitear a condenação do Réu ao pagamento de determinada quantia. A contrario sensu, quando o pedido imediato da demanda for a condenação em obrigação de fazer ou não fazer será perfeitamente viável a utilização da Ação Civil Pública, consoante determina o artigo 83 do CDC.

Assim, tratando-se de relação jurídica material de consumo, aplicável sempre o CDC, devidamente subsidiado pela LACP e pelo CPC – nesta ordem – naquilo em que for omisso. Desta forma, inapropriada a utilização de Ação Civil Pública quando se tratar de violação a direito consumerista, ressalvado o que dissemos supra.

Tal raciocínio ficará mais patente no que diz respeito à competência, pois, como afirmado, não há na LACP, ao contrário do que ocorre no CDC, determinação daquela em razão do âmbito alcançado pelos efeitos do dano.

Em suma, forçoso admitir que, em se tratando de Ação Civil Pública, nos casos de competência concorrente entre dois ou mais juízos, determinar-se-á aquela pela prevenção em quaisquer casos, não havendo de se cogitar da amplitude dos efeitos do dano perpetrado.

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4. COMPETÊNCIA NAS AÇÕES COLETIVAS

Sem embargo, nas Ações Coletivas previstas no CDC, repete o legislador ser o dano causado o critério legitimador da competência do juízo, porém com algumas nuanças, verbis:

Art. 93 – Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

I – no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;

II – no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente

Divergindo do entendimento amplamente majoritário, tanto em doutrina, como em jurisprudência, algumas observações buscaremos fazer sobre o preceito legal transcrito, com vistas ao melhor tratamento hermenêutico que, a nosso sentir, o dispositivo exige.

4.1. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO LOCAL

Consoante o dispositivo transcrito, ressalvada a competência da Justiça Federal, será competente para o conhecimento e julgamento da Ação Coletiva a Justiça local do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano.

Tecendo comentários ao inciso I do art. 93 do CDC, assevera a Profª. Ada Pellegrini Grinover:

"Quando de âmbito local, a competência territorial é do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano (inc. I do art. 93).

Será o caso de danos mais restritos, em razão da circulação limitada de produtos ou da prestação de serviços circunscritos, os quais atingirão pessoas residentes num determinado local." (9)

Sem embargo, nos parece que, mesmo nos casos de dano em âmbito local, algumas ressalvas se impõem.

De efeito, a interpretação literal do preceptivo insculpido no inciso I do art. 93 do CDC poderá levar o intérprete à conclusão de que, transbordando os efeitos do dano dos limites de determinada comarca e alcançando outra, competente será o foro da Capital do Estado.

Não obstante, tendo em vista que a eleição pela lei do local da ocorrência ou

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da possibilidade de ocorrência do dano tem por escopo, dentre outros, maior aproximação do Juiz aos vestígios do dano causado, bem como a facilidade na colheita de sua prova, pensamos que será aplicável, por subsidiariedade, a norma insculpida no parágrafo único do art. 2º da LACP.

Assim, ocorrido o dano consumerista cujos efeitos ultrapassem as fronteiras de determinada comarca, alcançando outra ou outras, a determinação da competência será realizada pela prevenção, ou seja, competente será o juízo que primeiro realizar citação válida no processo (art. 219 CPC).

Urge ressaltar, entretanto, que, aqui, estamos tratando de dano de âmbito local cujos efeitos, não obstante, transbordaram dos limites de uma única comarca, alcançando outras. Em outras palavras, não estamos tratando de dano onde os respectivos efeitos ganharam foros de regionalidade ou nacionalidade, hipóteses expressamente previstas no inciso II do artigo sob comento.

Daí, com acerto no tocante à Ação Coletiva, Hugo Nigro Mazzilli asseverar que não será qualquer dano que ultrapasse os limites da comarca que ensejará a competência do juízo da Capital do Estado para conhecer e julgar ações coletivas.

"Assim, nas ações civis públicas ou coletivas, quando o dano ou a ameaça de dano ocorra ou deva ocorrer em mais de uma comarca, mas sem que tenha o caráter estadual ou nacional, a prevenção será o critério de determinação da competência." (10)

Com efeito, pensamos, na linha do raciocínio acima exposto, que, para que seja determinada a competência da Capital do Estado, o dano deverá ganhar foro de regionalidade e, evidentemente, o fato de serem atingidas uma, duas ou três comarcas não caracterizará tal aspecto, resolvendo-se, neste caso, pelas regras da Lei de Ação Civil Pública (art. 2º, parágrafo único) combinada com Código de Processo Civil (art. 219) a competência concorrente, quais sejam, as regras que prevêem a prevenção.

Em um caso concreto, poderemos imaginar um dano consumerista cujos efeitos restrinjam-se a duas comarcas contíguas, cuja localização diste quilômetros da Capital do Estado. Consequentemente, seguindo o disposto no inciso I do art. 93 do CDC, com a subsidiariedade da LACP e do CPC, competente será o juízo que primeiro realizou a citação válida para o processamento e julgamento da demanda.

Assim, em compêndio, para o dano de âmbito local cujos efeitos atinjam mais de uma localidade (comarca), sem que possuam dimensão de regionalidade, a determinação da competência restará condicionada à prevenção do juízo que primeiro realizou a citação válida no processo.

4.2. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO REGIONAL OU NACIONAL

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Em verdade, a par das observações que fizemos quanto ao inciso I do art. 93 do CDC – competência em caso de dano em âmbito local – a grande celeuma reside efetivamente no inciso II do mesmo preceptivo consumerista, daí tentarmos nos deter mais profundamente neste particular.

Com efeito, assevera Ada Pellegrini Grinover na 4ª edição do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, sobre o inciso ora estudado:

"Cabe, aqui, uma observação: o dispositivo tem que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal. Mas, sendo o dano de âmbito nacional, a competência territorial será sempre do Distrito Federal: isso para facilitar o acesso à Justiça e o próprio exercício do direito de defesa por parte do réu, não tendo sentido que seja ele obrigado a litigar na Capital de um Estado, longínquo talvez de sua sede, pela mera opção do autor coletivo. As regras de competência devem ser interpretadas de modo a não vulnerar a plenitude da defesa e o devido processo legal." (11)

Na 7ª edição da referida obra, a ilustre Professora paulistana ratifica seu posicionamento, reconhecendo, porém, a existência de alguns arestos em divergência às suas lições doutrinárias.

De seu turno, Hugo Nigro Mazzilli adere à posição majoritária quando ensina que:

"Nos termos dessa disciplina, portanto, e ressalvada a competência da Justiça Federal, os danos de âmbito nacional ou regional em matéria de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos serão apurados perante a Justiça estadual, em ação proposta no foro do local do dano; se os danos forem regionais, no foro da Capital do Estado; se nacionais, no foro do Distrito Federal, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil nos casos de competência concorrente." (12)

Sem embargo, estamos que, primeiramente, deve ser dispensado tratamento diverso quanto ao dano de âmbito regional e o de âmbito nacional, ousando divergir do entendimento majoritário, a despeito de sua mais alta autoridade.

4.2.1. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO REGIONAL

No particular, tratando-se de dano cujos efeitos sejam de âmbito regional, aplicável o que foi dito quanto ao dano de âmbito local.

Com efeito, somente será competente para conhecimento e julgamento da demanda coletiva a Capital do Estado quando os efeitos produzidos pelo dano consumerista ganharem foros de regionalidade, independentemente se a comarca da Capital do Estado sofreu ou não tais efeitos, visto que, nesta hipótese, ante o número

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razoável de comarcas atingidas por aqueles efeitos, traduzir-se-á em interesse da sociedade do Estado a resolução do conflito, importando que a Capital seja sede da demanda face à relevância configurada pelo vulto do dano.

Dessa forma, lícito afirmar que a grandeza do dano fará a distinção entre a incidência do inciso I ou do II (âmbito regional) do art. 93 do CDC, sendo que, para que ocorra a primeira hipótese (dano de âmbito local), independe o número de localidades atingidas – desde que o dano não ganhe interesse estadual – a competência será definida pela prevenção, havendo juízos concorrentes; já para que ocorra a hipótese do inciso II (dano de âmbito regional), mister se faz que o dano (rectius: os seus efeitos) seja de tal grandeza que interesse à maioria significativa da população do Estado-membro. (13)

Com este raciocínio, cremos que resta evidente que o Juiz da Capital – em caso de interesse regional – não terá dificuldades na colheita de provas – mesmo que o Município, Capital do Estado, não tenha sido atingido pelos efeitos do dano –, sendo que, com tal exegese, o escopo legal de facilitação naquela colheita não restará prejudicado.

4.2.2. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO NACIONAL

Em se tratando de dano cujos efeitos sejam de âmbito nacional, a solução para a concorrência de competências não será a mesma das hipóteses de dano de dimensão regional, explanada no tópico anterior.

De efeito, o fato de efeitos danosos ultrapassarem os limites territoriais de um Estado-membro alcançando outro ou outros, contíguos ou não, não dará ensejo, a nosso sentir, à competência do foro do Distrito Federal para o conhecimento e julgamento da demanda coletiva, consoante as lições doutrinárias acima transcritas.

E mais.

Nem mesmo quando os efeitos do dano tiverem amplitude tal que atinja todos ou quase todos os Estados da Federação – incluindo o Distrito Federal – a competência será deste, como Capital da República, para o conhecimento e julgamento de eventual demanda coletiva.

Inexiste, in casu, a simetria vislumbrada pela maioria dos autores.

Assim, é possível forjarmos exemplos para melhor elucidação: a) determinados produtos comercializados ou serviços prestados no chamado eixo Rio-São Paulo que venham causar danos às populações destes Estados, cujos efeitos ficaram restritos aos limites dos mesmos; em um segundo exemplo: b) os mesmos produtos ou serviços foram comercializados ou prestados em todo território nacional,

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causando os mesmos danos antes mencionados, agora por todo país.

Em ambas hipóteses, entendemos que, não atingindo os efeitos do dano âmbito nacional (exemplo "a"), ou, mesmo que tal amplitude seja alcançada por tais efeitos (exemplo "b"), a solução para a concorrência entre juízos competentes será a mesma: definir-se-á o juízo competente pelo critério da prevenção, qual seja, o primeiro a realizar citação válida no processo coletivo (art. 219 CPC).

Tal raciocínio tem por fundamento a inexistência de hierarquia entre as entidades federadas – Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 1º e 19, III da CF/88).

Explicamos.

A competência nas Ações Coletivas será, ressalvada a da Justiça Federal, da Justiça local.

Pois bem.

Por tal expressão entende-se a justiça estadual comum que, por exclusão, deterá competência para as causas não previstas na Constituição Federal como de competência da Justiça federal, comum ou especializada (art. 109 CF/88).

Em conseqüência, havendo dano de âmbito nacional, e, não sendo hipótese prevista dentro na competência da Justiça federal, caberá à Justiça local do foro da Capital de cada Estado ou do Distrito Federal que tenha sido atingido pelo evento danoso o processamento e julgamento da demanda coletiva.

Ora, os critérios de determinação de competência (ratione materiae, loci, personae, etc.) dos Juízos Estaduais são de mesma equivalência aos do Juízo Distrital, sendo que, cada qual, tem seu âmbito ordinário de incidência coincidente com os seus próprios limites territoriais. Na hipótese extraordinária de dano nacional, de competência da Justiça local, qualquer capital de Estado ou o Distrito Federal estará, em igualdade de condições, apta(o) a conhecer e julgar a causa.

Ou seja, para não dificultar a defesa do Réu, determina o CDC – havendo diversas demandas coletivas propostas – a concentração em um, e tão-somente um, foro, que poderá ser o da Capital estadual ou o do Distrito Federal, cuja decisão proferida terá efeitos em todo território nacional.

Para o desate da questão, a própria lei determina a utilização das regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente, qual seja, também neste caso, a prevenção, haja vista não ocorrer relação hierárquica entre as Justiças locais dos Estados e a do Distrito Federal.

Daí que, existindo diversas demandas já propostas, definir-se-á a competência

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da Justiça local no foro da Capital do Estado – ou no do Distrito Federal, se este for atingido pelos efeitos do dano e houver demanda coletiva aí proposta – em que tenha havido a primeira citação válida (art. 219 CPC).

Raciocínio diverso – como o esposado pela doutrina majoritária – levará à uma hierarquia entre as entidades federadas inexistente no texto constitucional, malferindo-o.

Com efeito, dispõe o inciso III do art. 19 da Constituição Federal ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar preferências entre si.

Em comentário ao referido inciso, Alexandre de Moraes assevera que:

"Criar preferências entre si – como corolário desse princípio, [...], sendo a federação uma associação de Estados, que se encontram no mesmo plano, não há que se falar em relação de súdito para soberano, de poder reciprocamente." (14)

Dessarte, pois, a lei federal (CDC), como produto da competência legislativa da União, não poderá criar distinções entre as entidades federadas, dando preferência, seja de que espécie for, ao Distrito Federal.

Via de conseqüência, impõe-se uma exegese da norma infraconstitucional que não implique violação do texto maior, sendo dever do exegeta optar por uma interpretação que mais aproveite o texto da lei, eis que a sua concordância com as cláusulas constitucionais deve ser presumida.

Lado outro, ademais, sob o aspecto prático, não convence o argumento segundo o qual a competência será sempre do foro do Distrito Federal em casos de dano de âmbito nacional para facilitar a plenitude de defesa, pois que em regra acontece do Réu não ter representação jurídica na Capital da República, sendo sua assessoria jurídica situada na sede da empresa.

A outro giro, sendo a concorrência de competências definida pela prevenção, ensejará maior facilidade na colheita de prova pelo Juiz, eis que sua comarca – da Capital – estará sofrendo os efeitos da conduta danosa, concretizando, assim, o objetivo precípuo da lei quando determina ser competente para a demanda o foro do local do dano.

Como seria possível facilitar a colheita de prova pelo Magistrado se, v. g., fosse definida a competência do Distrito Federal em quaisquer casos, mesmos naqueles em que a Capital da República não tenha sofrido os efeitos da conduta danosa?

Em últimas conseqüências, a tese majoritária pode nos levar a determinados absurdos como aquele em que haja demandas propostas em todos ou quase todos

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Estados, à exceção do Distrito Federal, porém, a se seguir o raciocínio da maioria, este – o foro do Distrito Federal – seria o competente para a apreciação e julgamento da demanda.

A nosso aviso, portanto, a interpretação mais viável – seja sob o aspecto teórico da inconstitucionalidade, seja sob o prático da facilitação na colheita de prova – seria aquela segundo a qual, ao se referir aos Estados e ao Distrito Federal, a norma legal quis tão-somente discriminar, e não hierarquizar, as entidades federadas que possuem Justiça local – o que não ocorre com os Municípios que, não obstante entidades federadas (art. 18 CF/88), não possuem Poder Judiciário – como, amiúde, ocorre no texto constitucional e em leis infraconstitucionais.

Destarte, para uma interpretação consentânea com os princípios da Nova Hermenêutica, bem como pela necessidade de se adequar os princípios e normas do processo civil liberal-burguês às demandas coletivas lato sensu – verdadeiras ações sociais dirimentes de desigualdades – devemos, ademais, sobrepor o interesse social como primeiro critério definidor da competência em litígios desse jaez. (15)

Somente assim, entendemos, poder-se-á chegar ao equilíbrio exigido pelo texto legal, onde a determinação da competência do foro da Capital do Estado e do Distrito Federal não ficará em divergência com a aplicabilidade de dispositivo constitucional (art. 19, III CF/88), bem como da parte final do inciso II do artigo 93 do CDC, posto concorrerem, em tom de igualdade, aquelas entidades federadas pela competência para conhecimento e julgamento das demandas coletivas, exsurgindo como critério técnico definidor a prevenção, pela primeira citação válida realizada.

5. CONCLUSÃO

À guisa de conclusão ousamos asseverar que, muito mais que uma defesa plena – que na realidade em nada será prejudicada –, traduzir-se-á em concretização do Estado Democrático de Direito sob o aspecto processual a preocupação, que necessita ser constante, na satisfação dos interesses sociais postos em litígios nas demandas coletivas, pois que somente assim poderemos almejar a realização efetiva de uma democracia material com o preenchimento, em todas as suas dimensões, do princípio do acesso à Justiça.

Ademais, viceja a necessidade de preenchimento axiológico da expressão Estado Democrático de Direito no sentido de que as normas legais produzidas deverão ter como limite os fatos que lhes ensejam a existência, direcionadas pelos valores predominantes à época de sua produção, assim como de sua interpretação, o que lhes poderá cambiar o comando.

Com efeito, sobrepuja a importância dos interesses sociais em detrimento

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daqueles individuais ou públicos hodiernamente, e, assim entendemos que as normas jurídicas devem ser interpretadas.

6. BIBLIOGRAFIA

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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. 1109p.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material (arts. 1º a 54). s/ed. São Paulo: Saraiva. 2000. 1 v.

MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 13ª ed. São Paulo: Saraiva. 2001. 576p.

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1995. 730p.

CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil, [trad. Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbiery]. s/ed. Campinas: Bookseller. 1999. 1 v.

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. s/ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.462p.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. [trad. Ana Prata]. 2ª ed. Lisboa: Editorial Estampa. 1994. 330p.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas. 2003. 836p.

BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise. [trad. João Ferreira] 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1999. 240p.

NOTAS

01. Para o presente estudo utilizar-se-á as expressões transindividuais e metaindividuais em sentidos distintos, significando aquela a que ultrapassa os interesses dos indivíduos, e esta a que representa interesses fora dos individualmente considerados. Assim, seriam transindividuais os interesses individuais homogêneos,

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enquanto metaindividuais, os difusos e coletivos, em razão de sua indivisibilidade.

02. Cf.: José Marcelo Menezes VIGLIAR, In Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 – 15 anos. coord. Édis Milaré. p. 400/416.

03. No particular, entendemos que a MP 2.180, que amputou a expressão "a qualquer outro interesse difuso ou coletivo", do inciso IV do art. 1º da Lei 7.347/85, é inconstitucional por malferir o art. 5º, XXXV, bem como o art. 129, III, todos da CF/88.

04. Hugo Nigro MAZZILLI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, p. 150.

05. A identidade das ações coletivas lato sensu sofre mitigação nos seus elementos, visto que não há de se falar em identidade de partes, diferentemente do que ocorre com as ações individuais. Trata-se de um redimensionamento da matéria para adaptação à Teoria Geral do Processo Coletivo que, em outro estudo, falaremos.

06. Michel MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, passim

07. Cf.: Ricardo de Barros LEONEL, Manual do Processo Coletivo, p. 220. "As peculiaridades dos interesses metaindividuais dificultam a produção de provas no curso da demanda judicial. A fixação da competência no local do dano tem por escopo facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração."

08. Hugo Nigro MAZZILLI, Ob. Cit. p. 211.

09. Ada Pellegrini GRINOVER, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 808.

10. Hugo Nigro MAZZILLI, Op. Cit., p. 211

11. Ada Pellegrini GRINOVER, op. cit., p. 551-2.

12. Hugo Nigro MAZZILLI, Ob. Cit. p. 211-2. No mesmo sentido: Ricardo de Barros LEONEL, ob. Cit., p. 221.

13. Para a definição do que seja dano cujos efeitos possuam âmbito regional poderá ser aplicada a norma do § 1º do art. 82 do CDC: § 1º - O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

14. Alexandre de MORAES, Direito Constitucional. p. 286.

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15. Entretanto, não podemos esquecer o efeito contrário. Cf.: Norberto BOBBIO, As Ideologias e o Poder em Crise, p. 33: "Constato, entretanto, que não foi retomada a referência que fiz à sociedade policrática, ou seja, ao aspecto negativo do pluralismo que consiste não na impotência do Estado, mas na prepotência do grupo sobre o indivíduo."

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