155884191 vaz henrique lima escritos de filosofia ii etica e cultura

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    HENRIQUE C. DE LIMA VAZ

    Escritos de Filosofia 11T ICA E CULTURA

    ~dkes Loyola

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    FttOSOFTA.Coleo dirigida pela Faculdade do Centro de Estudos

    Superiores da Companhia de JesusDiretor: Joo A. A. A. Mac Dowell

    Co-Diretores: Henrique C. Lima Vaz, SJ e Danilo Mondoni, SJInstituto Santo Incio

    Av. Dr. Cristiano Guimares, 2127 (Planalto)31720-300 Belo Horizonte, MG

    Edies LoyolaRua 1822 n 34 7 - lpiranga04216-000 So Paulo, SPCaixa Postal 42.33504299-970 So Paulo, SPFone (0**11) 6914-1922Fax (0**11) 6163-4275Home page e vendas: www.loyola.com.bre-mail: [email protected] os direitos reservados. Nenhuma parte desta obrapode ser reproduzida ou transmitida por qualquer formae/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindofotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistemaou banco de dados sem permisso escrita da Editora.ISBN: 85-15-00794-03 edio: setembro de 2000 EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1993

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    ANEXO I - A Histria em questo . . . . . . . . . . . . . . .ANEXO II - Poltica e Histria . . . o o ANEXO III - tica e Poltica o o ANEXO IV - Democracia e Sociedade . . . . . . . . . . . . .ANEXO V - Cincia e Sociedade o o o oANEXO VI - Cultura e Religio . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    ndice Onomstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    Aut igitur negemus quidquam rationeconfiei, cum contra nihil sine rationerecte .fieri possit aut, cum philosophiaex rationum collatione constet, ab ea, siet bani et beati esse volumus, omniaadjumenta et auxilia petamus bene bea-tec1 i e !'ivendi.

    M.T. Cicero, Tusc. Disp. IV, 38.

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    ADVERTENCIA PRELIMINAR

    Este segundo volume dos Escritos de Filosofia 1 renealguns textos que foram ordenados em torno de um mesmo tema central, a saber, o problema das relaes entretica e cultura ou, mais exatamente, o problema da origeme do destino da tica na cultura ocidental.Tendo sido aparentemente a nica civilizao conhecida a colocar decididamente a eptsthme, fruto da Razodemonstrativa, no centro do seu universo simblico, a ci-vilizao do Ocidente se v a braos, h 26 sculos, como ingente labor terico (ver infra Anexo 6.0 ) de transporos costumes e as crenas nos cdigos discursivos do logosepistmico. Os sistemas teolgicos e ticos so, ao longoda histria da nossa civilizao, o campo desse labor e nelea philosophia, inveno tipicamente grega, destinada a pensar o contedo das crenas e a normatividade dos costumes, encontra sua matriz c o n c e p t ~ l primeira e o espaoterico dos seus problemas fundamentais.

    Hegel foi o ltimo grande filsofo que reconheceu namatriz teolgico-tica o lugar de nascimento e a origem dascoordenadas do espao filosfico. Depois dele sucessivasgeraes de epgonos - de Marx a Heidegger - entregaram-se a um minucioso e pertinaz af de demolio do edifcio intelectual erguido pela civilizao do Ocidente e co-roado pela Filosofia. So os alicerces ontoteolgicos desseedifcio, sobre os quais se edificaram as estruturas da Ra-zo terica e da Razo prtica - a Metafsica e a tica -que mais fundamente so atingidos por esse furor destruens.

    1. Escritos de Filosofia: Problemas de fronteira (col. Filosofia,31, So Paulo, Ed. Loyola, 1986.7

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    Assim, no difcil perceber no seio das grandes tendncias do pensamento contemporneo uma notvel e inegvel correspondncia entre a crtica dos fundamentos da Metafsica e a crtica dos fundamentos da tica. O positivismo lgico no seno o paradigma mais conhecido dessacorrespondncia. Eis a, sem dvida, posta a descobertouma das razes do profundo paradoxo e da extrema ambigidade da nossa cultura, na qual a multiplicao das razes de toda ordem - desde as cientfico-tcnicas at asideolgico-polticas - acompanhada por um generalizadoe invencvel ceticismo que atinge as razes ltimas do sere da vida, justamente essas razes metafsico-ticas comas quais a civilizao da Razo comeou por estabelecero centro do seu universo simblico e a tentar traar asdirees possveis do seu caminho histrico.Os textos que aqui publicamos pretendem ser apenasuma contribuio, muito limitada e modesta, para a discusso desses grandes problemas, cingindo-se questo dosfundamentos da tica. Os trs primeiros captulos inspiram-se na introduo a um curso de tica Geral que foiministrado no Departamento de Filosofia da Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas da UF!viG em 1984 e tem sidorepetido na Faculdade de Filosofia do Centro de EstudosSuperiores de Filosofia e Teologia da Companhia de Jesus,em Belo Horizonte. Os captulos IV e V retomam, refundem em parte e ampliam dois artigos publicados respectivamente em 1977 e 1974. Os Anexos reproduzem com ligeiras modificaes, textos publicados na r e ' i l i s t ~ Sntesede 1974 a 1987. Alguns desses Anexos parecem afastar-se dotema central do livro, mas uma leitura atenta mostrar que,no fundo, est presente a mesma pergunta decisiva: uma civilizao que celebra a Razo, mas abandona a Metafsicae a tica semelhante, para lembrar uma comparao deHegel, a um templo sem altar; que outro destino lhe restaseno o de tornar-se uma spelunca latronum (Mt 21,13)?O plano inicial do volume previa um captulo sobre tica e liberdade. Mas a sua elaborao avanou muito almdos limites previstos e pareceu aconselhvel reserv-lo parapublicao parte.Dedico estas pginas, com emoo e carinho, minhaterra natal, Ouro Preto. Na austera Ouro Preto dos anos30, ainda toda impregnada do velho humanismo mineiro,8

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    apenas adolescente abri pela primeira vez, na bibliotecado meu av materno, uma obra de Plato e era justamentea Repblica na antiga traduo francesa de Dacier-Grou.Entrego, pois, minha terra algum fruto da semente deum destino de vida que germinou um dia em seu seio generoso:

    Salve! magna parens trugum Saturnia tellusMagna virum: t ibi res antiquae laudis et artisIngredior, sanctos ausus recludere fontes.Georg. II, 173-175

    H. C. DE LIMA V AZ, S.J. *

    (

    Fiquem aqui meus sinceros agradecimentos ao meu colegaProf. Marcelo Perine pelo seu interesse na publicao deste livro epelo sempre penoso trabalho de organizao do ndice Onomstico.9

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    Captulo PrimeiroFENOMENOLOGIA DO ETHOS

    1. PRELIMINARES SEMNTICOSPara Aristteles seria insensato e mesmo ridculo (ge-loion) querer demonstrar a existncia do ethos, assim como ridculo querer demonstrar a existncia da physis. 1Physis e ethos so duas formas primeiras de manifestao

    dQ ser, ou da sua presena, no sendo o ethos seno a transcrio da physis na peculiaridade da praxis ou da ao humana e das estruturas histrico-sociais que dela resultam.No ethos est presente a razo profunda da phiysis que semanifesta no finalismo do b e ~ e, por outro lado, ele rompe a sucesso do mesmo qtte caracteriza a phtysis comodomnio da necessidade, com o advento do diferente noespao da liberdade aberto pela praxs. 2 Embora enquantoautodeterminao da praxis o ethos se eleve sobre a physis,ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da natureza ao fixar-se na constncia do hbito (hexis) . Demonstrar a ordem da praxis, articulada em hbitos ou virtudes,no segundo a necessidade transiente da physis, mas se-

    1. Ver Fis. II , 1, 193 a 1-10. Sendo a physis um gnrimon ouum notum per se e, portanto, um princpio (arqu) da demonstrao,querer provar a existncia da physis seria uma apaideusa tn ana-lytikn, uma ignorncia dos procedimentos analticos. Ver Fis. II,1, 184 a 16-b 14, e W. D. Ross, Aristotle's Physics, a revised text withintroduction and commentary, Oxford, Clarendon Press, 1936, pp.456-458; 501.2. A physis dita tou aei (sempre) e o ethos tou pollkis (muitas vezes). Ver Aristteles, Ret. I, 11, 1370 a 7; t. Nic. VII, 9, 1152 a 31.

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    gundo o finalismo imanente do lagos ou da razo, eis opropsito de uma cincia do ethos tal como Aristteles seprope constitu-la, coroando a tradio socrtico-platnica. 3 A tica alcana, assim, seu estatuto de saber autnomo, 1 e passa a ocupar um lugar preponderante na tradio cultural e filosfica do Ocidente. 5O termo ethos uma transliterao dos dois vocbulosgregos ethos (com eta inicial) e ethos (com psilon inicial). importante distinguir com exatido os matizes peculiares a cada um desses termos. 5" Por outro lado, se a elesacrescentarmos o vocbulo hexis, de raiz diferente, teremosdefinido um ncleo semntico a partir do qual ser possvel traar as grandes linhas da tica como cincia docthos."A primeira acepf.o de ethos (com e a inicial) dec:;ignaa morada do homem (e do animal em geral) . O ethos acasa do homem. O homem habita sobre a terr?. acolhendo-

    3. Ver ~ t . Nic. I, captulos 1-4; I, 7, 1094 a 1-1098 b 8. Ver I . Dring, Aristoteles-Darstellung und Interpretation seines Denkens, Heidelberg, Carl Winter, 1966, pp. 435-437; sobre praxis e natureza ver igualmente M. Ganter, Mittel und Ziel in der praktischen Philosophie desAristoteles (Symposion 45), Friburgo na Brisgvia-Munique, Karl Alber, 1974, pp. 47-51. Ver infra, cap. II, nota 119a.4. Em Plato, com efeito, no obstante sua posio fundadorana histria do pensamento tico, a tica um captulo da ontologiadas idias e no alcana o estatuto autnomo que lhe conferir Aristteles. Ver Ganter, op. cit., pp. 11-13; infra, cap. III, 1.5. sabido como, a partir da Primeira Academia, a Filosofia sedivide em Lgica, tica e Fsica. Ver Xencrates, fr. 1 (Heinzel e otestemunho de M. T. Ccero Tusc. Disp., V, 24-25.5a. Ver P. Chantraine, Dictionnaire tymologique de la Zanguegrecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1968, pp. 327; 407--108 instrutiva, a propsito, a leitura dos dois verbetes sobre ethos no Ir.rie.rAristotelicus de H. Bonitz (Graz, Akademische Druck und Verlagsanstalt, 1955, pp. 216-217; 315-316). Os matizes de ethos so sugeridospor Plato enumerando as qualidades dos Guardies da cidade, "seucarter e seus hbitos"

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    ..se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugarde estada permanente e habitual, de um abrigo protetor,constitui a raiz semntica que d origem significao doethos como costume, esquema praxeolgico durvel, estilode vida e ao. A metfora da morada e do abrigo indicajustamente que, a partir do ethos, o espao do mundo torna-se habitvel para o homem. O domnio da physis ouo reino da necessidade rompido pela abertura do espaohumano do ethos no qual iro inscrever-se os costumes oshbitos, as normas e os interditos, os valores e as a ~ s . 7Por conseguinte, o espao do ethos enquanto espao humano, no dado ao homem, mas por ele construdo ouincessantemente reconstrudo. Nunca a casa do ethos estpronta e acabada para o homem, e esse seu essencial inacabamento o signo de uma presena a um tempo prximae infinitamente distante, e que Plato designou como a presena exigente do Bem, que est alm de todo ser (ousa)ou para alm do que se mostra acabado e completo. 8, pois, no espao do ethos que o lagos torna-se compreenso e expresso do ser do homem como exignciaradical de dever-ser ou do bem. Assim, na aurora da filosofiagre2"Q, Herclito entendeu o ethos na sua sentena clebre:ethos anthrpo damn. " O ethos , na concepo heracltica, regido pelo lagos. ' 0 e nessa obedincia ao lagos quese do os primeiros passos em direJ;O tica como saberracional do ethos. assim como ir- entend-la a tradio filosfica do Ocidente. ''

    7. Ao invs, o ethos do animal o encerra no espao fechado doseu ecossistema, dando origem Etologia como estudo do compor-tamento animal. Ver Aristteles, Hist. An. 588 a 18.8. Epkeina ts ousas, Plato, Rep. VI, 509 b.9. "0 ethos o gnio protetor do homem" (D.-K., 22, B, 119).10. Sobre a interpretao da sentena de Herclito, ver W. K. c.Guthrie. A history ot greek Philosophy, Cambridge, Cambridge Unive_rsity Press. 1967, I, p. 482 e J. Lorite Mena, Du mythe l 'ontologie:glzssement des espaces humains, Paris, Tqui, 1979, pp. 633-637. conhecida a leitura heideggeriana desse texto em Brief ber den Humanismus, Berna, Francke Verlag, 2 ~ ed., 1954, pp. 106-110, onde oethos interpretado como morada do homem enquanto ek-sistnciaabertura ao Ser, cujo pensamento a tica original. Ver infra, cap:II, notas 48 e 49; cap. V, nota 74.11. Com efeito, alguns intrpretes apontam no dito de Hercli-to uma crtica figura mtica do Destino que pesa sobre a ao humana. Ver Guthrie. op. cit., p. 482, n. 1. Ver. no entanto. A. Magns, L'idea di destino nel pensiero antico, Udine, Del Bianco Editore, 1985, vol. I, p. 60.

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    pio objetivo e a ele retoma como a seu fim realizado naforma do existir virtuoso. 20Ao expor a circularidade dialtica do ethos, Hegel indica a diferena entre o costume (ethos) e a lei (nmos)

    como dupla posio do universal tico que o contedoprprio da liberdade: ou na forma da vontade subjetiva(o contedo da ao tica , ento, virtude), ou na formada vontade objetiva como poder legiferante vlido

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    ka areta) "'' pode ser considerada o captulo final da lonaaquerela que ops os Sofistas e Scrates em tomo da ensi;a-bilidade da virtude. Aristteles diz explicitamente que asv i r t u d e ~ intelectuais se _adquirem e se desenvolvem por obrado ensmamento (ek dzdaskalas). Quanto s virtudes morais, assim se denominam porque procedem do ethos comoc o s t u ~ e . ~ o exerccio constante (ethike pragmatea) que

    l h e ~ _da ongem e as fortalece. Na verdade, a distino aristotehca consagra a profunda transformao que tem lugarna estrutura histrico-social do ethos grego com a apariodo l ~ g ~ s r e f l e x ~ v o e demonstrativo no domnio da praxis. 2"T r a d 1 ~ o e razao: entre esses dois plos passar a oscilaro destmo do ethos na histria das sociedades ocidentaise a amplitude dessa oscilao ir assmalar igualmente 0 ~momentos de crise e transformao dos padres ticos dessas sociedades.Com efeito, a forma de existncia histrica do ethos a tradio _fitica, cuja origem no se assinala por um atofundador. l(omo a nomothesa do legislador no caso da leiescrita, mas referida a uma fonte divina, como no caso~ e s s a "lei no-escrita" (graphos nmos) invocada por Antlgona numa bem-conhecida passagem de Sfocles. 21 Elevando-se sobre a physis, o ethos recria, de alguma maneira, na sua ordem prpria, a continuidade e a constnciaque se. observam nos fenmenos naturais. Na ph'!Jsis, estamos d1ante de uma necessidade dada, no ethos tem l u ~ m ruma necessidade instituda, e justamente a tradio quesupofta: e garante a permanncia dessa instituio e se tor

    n ~ , a ~ s 1 m , . a estrutura fundamental do ethos na sua dimens ~ o ~ 1 s t n c a .. E_ntre a necessidade natural e a pura contingencla do arbltno, a necessidade instituda da tradio mostra-se como o corpo histrico no qual o ethos alcana suar ~ a l i ~ a d e . objetiva como obra de cultura. A prpria signi~ l c ~ a o literal do termo "tradio" (pardosis, traditio),mdicando entrel!a ou transmisso de uma riqueza simblica que as geraoes se passam uma outra, denota a estru-

    25. .t. Ntc., II, 1, 1103 a 14-17. Ver Summa Theol. Ia. IIae.q. 58, a.2.26. Ver infra, cap. n 2 e cap. IV.27. Antfgona, v.v. 450-460. Sobre a "lei no-escrita" ver J de~ o m i l l y , op. cit., p. 38. Sobre o conceito de "tradio" ~ a sua ~ e l a -

    ~ o com o ethos ver J. Messner, Kulturethik, Innsbruck-Viena-Mumque, Tyrolia Verlag, 1954, pp. 345-367.17

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    tura histrica do ethos e sua relao original ao fluxo dotempo. O fato incontestvel de que a religio se apresente,em todas as culturas conhecidas, como a portadora privilegiada do ethos, uma ilustrao eloqente do necessriodesdobramento do ethos em tradio tica. Com efeito, auniversalidade de fato do fenmeno religioso 28 estritamente homloga universalidade de fato do fenmeno tico. 29A sacralizao das normas ticas fundamentais ou sua sano transcendente 30 visam assegurar a eficcia da sua transmisso que tem lugar, no no tempo contingente do simples acontecer, mas no tempo axiologicamente estruturadodo dever-ser: no tempo propriamente histrico da tradiotica. luz do conceito de tradio, possvel descobrir nacomunidade tica, por ela vitalmente aglutinada, uma relao entre lei e tato rigorosamente inversa quela que vigora no mundo natural: neste se procede do fato lei,naquela a lei ou a norma antecedem inteligivelmente o fato,ou seja, o fato tal enquanto referido continuidade ou tradio normativa do ethos. Daqui a possibilidade paraa ao, dentro do fato fundamental que a prpria comu

    nidade tica, de se qualificar eticamente como m ou emoposio lei. "128. Ver a introduo de A. Brelich em Histoire des Religions(Encyclopdie de la Pliade), Paris, Gallimard, 1973, I, pp. 3ss.29. Ver G. Mensching, "Sittlichkeit (religionsgeschichtl ich. ", ap.Die Religion in Geschichte und Gegenwart, VI, pp. 64-66.30. Eis o que provoca, diante dessas normas, a atitude do respeito religioso (aids). Ver Homero, Ilada, XXIV, 33. Aristteles

    dar ao aids (respeito e pudor) o lugar do justo meio entre a timidez e a impudncia (t. Nic., 11, 7, 1108 a 3135). a atitude fundamental com a qual o indivduo participa da tradio tica. Segundo G. Vlastos, aids "sensibilidade para com os sentimentosdos outros respeito para com os direitos dos fracos, ateno paracom o bem' comum". Protagoras, ap. J. Classen (org.), Die Sophistik,(Wege der Forschung, 182), Darmstadt, Wissenschaftliche B.uchgesellschaft, 1976, pp. 270-289 (aqui p. 288). Sobre aids, ver amda M ~ xPohlenz L'Uoma Greco (tr. it . de B. Proto), Florena, La Nuova Itaha,1976, pp. 592-597; R. Stark, Aristotelesstudien, Munique, C. H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1954, pp. 64-86.31. Ver, a respeito, Marco Olivetti, Le problme de la communaut thique, ap. Qu'est-ce que l'homme? (Hommage A. deWaelhens) Bruxelas Facults Universitaires Saint Louis, 1982, pp.324-343 i d ~ m El problema de la comunidad tica, ap. J. C. Scannone ( ~ d . ) S ~ b i d u r i a popular, smbolo y filosofia, Buenos Aires, Ed.Guadalupe, 1984, pp. 209-222.18

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    tumes, e se torne um terminus ad quem para o presenteemprico, para o aqui e agora da praxis que a ele se referecomo instncia fundadora e julgadora do seu contedotico. 34 Na estrutura do tempo histrico do ethos, o passado, portanto, se faz presente pela 1radio, e o presenteretoma ao passado pelo reconhecimento da sua exemplaridade. Mas evidente que, nesse caso, passado e presenteno so segmentos de uma sucesso linear no tempo quantitativo. So componentes estruturais de um tempo qualitativo, que se articulam dialeticamente para construir otempo histrico propriamente dito, o tempo do ethos ouda tradio tica.Se levarmos em conta, por um lado, essa essencial relao entre ethos e tradio e, por outro, a estrutura dialtica circular do tempo da tradio tica, poderemos compreender melhor a profundidade da crise do ethos na moderna sociedade ocidental, na qual a primazia do tempoquantitativo transfere do passado para o futuro a instncia normativa do tempo ou o seu "centro de gravidade"(K. Pomian): o que significa conferir ao tempo por vir ospredicados axiolgicos que asseguravam a exemplaridadedo passado 36 na formao do ethos tradicionaL A relaodo conceito fundamental da eticidade 37 com o tempo histrico toma-se, assim, extremamente problemtica e aquireside, .sem dvida, uma das causas mais visveis desse niilismo tico que assinala dramaticamente, nas sociedadesocidentais modernas, a ruptura da tradio tica ou a de-

    34. Essa a funo desempenhada no tempo qualitativo da tradio pelo paradigma ou modelo tico, codificado nos mores maio-rnm. Ver as sugestivas reflexes de A. Prez de Laborda, "Memoria,Tlempo, Tradicin" in Pensamiento, 43 (1987): 207-220.35. Para a distino de "tempo qualitativo" e "tempo quantitativo" e para a polissemia, em geral, da noo de tempo, ver a importante obra de Krzystof Pomian, L'ordre du temps, Paris, Gallimard, 1984. A circularidade dialtica do ethos e da tradio ticapermite, portanto, distingui-los do que Nietzsche chama de conceitoda "eticidade dos costumes" (Sittlichkeit der Sittenl, segundo o qualse estabelece uma oposio insupervel entre "tradio" e "individuo". Ver Morgenrte, I, 9

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    sarticulao do processo dialtico que aqui chamamos tra-dio e que realiza a suprassuno da oposio linear dopresente e do passado na perenidade normativa do ethos. 38A primazia do futuro na concepo do tempo homloga primazia do fazer tcnico na concepo' da ao, do qualprocede o pressuposto utilitarista que, sob vrias denominaes e formas, subjaz a todo o desenvolvimento da ticamoderna.Que a constituio da tradio tica no traduza apenas um esforo persistente e, afinal, vo, para se deter airreparvel perda das crenas e dos valores ao longo dodesgastante fluir do tempo, mostra-o a prpria natureza doethos. Ele no se define, com efeito, em oposio ao tempo ou durao como o esttico oposto ao dinmico, 39mas se estrutura segundo um dinamismo prprio que ad-mite em seu seio conflitos, crises, evolues e mesmo essasprofundas revolues que se manifestam no fenmeno dacriao tica (ver infra n. 4). Em outras palavras, a tradicionalidade do ethos no deve ser pensada em oposio liberdade e1 autonomia do agente tico, no obstante o fato de qufl tal oposio se tenha constitudo numdos traos mais salientes do individualismo moderno. 403. ETHOS E INDIVDUO

    Se admitirmos que a sociedade um "conjunto deconjuntos". como quer Femand Braudel, 4 ' devemos enun-38. O. Hffe, loc. cit., pp. 288ss., distingue o niilismo, como ex

    perincia histrica ou acontecimento histrico, do nlismo tico. Este a negao pura e simples do ethos e s possivel dentro da percepo do tempo em que predomina a dimenso horizontal ou a purasucesso dos eventos. ao passo que o passado constantemente anulado e desvalorizado pela implacvel expectativa do futuro. assimcompreensvel o refgio de Nietzsche no seio do mito do "eterno retorno" em face do niilismo tico que acompanha a reviravolta de todos osvalores desencadeada pela proclamao "Deus est morto". Sobrea significao tica do nlismo, ver os estudos do volume coletivoInterpretazione. del nichilismo, organizado por A. Molinaro, Roma,Herder-Universtdade Lateranense, 1986.39. A distino bergsoniana entre "moral esttica" e "moral dinmica", til descritivamente. pressupe, no entanto, uma viso dualista inaceitvel na concepo do ethos.40. Ver O. Hoffe, op. cit., pp. 302-310.41. "Ensemble des ensembles": ver Civilisation matrielle, co-nomie et capitalisme II, Les jeux de l'change, Paris, Colin, 1979, pp.

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    ciar como condio necessria e suficiente para que os subconjuntos sociais pertenam ao conjunto maior ou sociedade como um todo, a possibilidade de se definir essapertena no apenas como um jato ou descritivamente, mastambm como um valor ou axiologicamente, segundo aavaliao que a sociedade faz das prticas sociais que seexercem nos seus subconjuntos. Vale dizer que a pertenade uma determinada esfera de agentes e relaes ao todosocial se define primeiramente ao nvel da sua legitimaotica, da sua participao ao ethos fundamental que constitui o primeiro dos bens simblicos da sociedade.

    Entre os diversos aspectos sob os quais pode ser considerado o processo de socializao do indivduo e sua educao como "indivduo social", o mais fundamental , semdvida, aquele pelo qual a socialidade aparece ao indivduocomo um fim, como o lugar da sua auto-realizao, o campo onde se experimenta e se comprova a sua independncia, a sua posse de si mesmo (autrqueia). Na perspectivadesse fim, a vida social se ordena segundo uma estruturaaxiolgica e normativa fundamental que , exatamente, oseu ethos. Por sua vez, a teleologia imanente ao ethos fazcom que a realidade no seja experimentada pelo indivduocomo uma vis a tergo, uma fora exterior ou um destinocego e oprimente.

    Em cada uma das esferas de relaes que iro inscrever-se na grande esfera da sociedade, a praxis humana apresenta peculiaridades que se traduziro em formas particulares do ethos. O indivduo trabalha e consome, aprende ecria, reivindica e consente, participa e recebe: a universalidade do ethos se desdobra e particulariza em ethos econmico, ethos cultural, ethos poltico, ethos social propriamente dito. Essas particularizaes do ethos so outrastantas mediaes atravs das quais a praxis do indivduose socializa na forma de hbitos (ethos-hexis). Elas doorigem igualmente, no interior do mesmo ethos societrio,a tenses e oposies cujo mbito de possibilidade caracteriza exatamente a unidade social como unidade tica (verinfra, n. 4). Com efeito, uma ciso radical na esfera ticaou uma sociomaquia primordial dos valores excluiria a possibilidade de se definir a sociedade como "conjunto de408ss. Braudel distingue quatro conjuntos ou subconjuntos da sociedade: economia, cultura, poltica e hierarquia social.22

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    conjuntos" ou como grandeza histrica determinada e situada no espao e no tempo. Mesmo e sobretudo o niilismo tico, ou a negao do ethos como tal, s pensvelcomo ato eminentemente tico ou eticamente qualificadoe exercendo-se, por conseguinte, no interior de um mundotico determinado.Como notrio, do ponto de vista da estrutura social,o indivduo no se apresenta como molcula livre, movendo-se desordenadamente num espao sem direes privilegiadas e regido apenas pela lei da probabilidade do choquecom outras molculas - os outros indivduos. Uma cadeiacomplexa de mediaes ordena os movimentos do indivduo no todo social e ~ entre elas, desenrolam-se as mediaes que integram o indivduo ao ethos: os hbitos no prprio indivduo e, na sociedade, os costumes e normas dasesferas particulares nas }1\lais se exercer sua praxis, ouseja, trabalho, cultura, poltica e convivncia social.

    O advento de uma sociedade na qual o econmico alcanou uma dimenso e um peso enormes tornou agudae atual a questo da natureza e alcance do influxo exercidopela esfera da produo sobre as outras esferas e subconjuntos da sociedade. Segundo a concepo que comea avulgarizar-se a partir do sculo XVIII e qual Marx daruma formulao aparentemente definitiva, as restantes esferas da sociedade se organizariam e exprimiriam seu ethosprprio exatamente em funo da organizao e do ethosdominantes na esfera econmica. Assim, as formas doethos seriam relativizadas de acordo com o sistema de satisfao das necessidades materiais do indivduo em determinada poca. No obstante importantes matizes que recebe na tradio marxista e no pensamento econmico que,de uma maneira ou de outra, sofre a influncia dessa tradio, a idia de que a construo da realidade social assenta predominantemente sobre a base da produo materialdificilmente poderia evitar a conseqncia de que o econmico determinante em ltima instncia, no sendo asoutras esferas da sociedade seno superestruturas ou epifenmenos da estrutura e do fenmeno fundamentais daproduo. Ora, submetido instncia determinante do sistema de produo, o universo das formas simblicas teriasua unidade definida apenas em termos ideolgicos, ou se-ja, na medida em que todas as suas expresses se organizassem em ordem justificao dos interesses dominantes

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    na sociedade e cuja articulao fundamental se d no nvelde produo. Nesse caso, a pretensa universalidade do ethosno seria seno a transcrio ideolgica - e como talocultante - dos interesses econmicos d o m i n a ~ t e s na so-'ciedade.A extenso geogrfica, a racionalizao e a organizaoconcntrica da esfera econmica, dando origem ao que alguns historiadores denominam a "economia-mundo" nascaractersticas com que se apresenta no capitalismo moderno, conferem uma onipresena obsessiva ao problema daprioridade determinante da esfera econmica e da canseqente ideologizao das outras esferas da sociedade. Ora.a racionalidade que organiza em sistema a produo mate

    rial necessariamente uma racionalidade instrumental. ::pois a acumulao da riqueza no um fim em si. A riqueza se produz indefinidamente, circula e se consome: ,por excelncia, o reino do "mau infinito". u Assim, a ideologia que se estende como um vu sobre os interesses queorganizam em seu benefcio a racionalidade econmica exclui, por definio, qualquer objetividade dos fins do domnio tico, vem a ser, qualquer racionalidade intrnseca aoprprio ethos. Por conseguinte, a interpretao redutivamente ~ d e o l g i c a do ethos, que decorre da concepo doeconrmco como determinante em ltima instncia, contradiz o prprio conceito de ethos. Este, com efeito, s pensvel a partir da posio de uma finalidade imanente praxis humana e qual devem submeter-se, tendo em vistaa auto-realizao do indivduo, os bens exteriores, inclusivea riqueza. A estrutura dialtica do ethos que acima se des.creveu exprime justamente essa circularidade paradoxalmente teleolgica, na qual o indivduo se realiza eticamentecomo tendo alcanado o senhorio de si mesmo (autroueia)ou na qual a praxis individual exercida como perfeio

    42. Ver I. Wallerstein, Le systeme du monde du XVIeme siecle nos jours I, Capitalisme et conomie-monde (1450-1640) II Le mercantilisme et la consolidation de l'conomie europenne,' (tr. franc.l,P a ~ , Flammarion, 1980-1984. Para wna descrio clssica da econorma-mundo, ver F. Braudel, Civilisation matrielle, conomie etcapitalisme, III, Le temps du monde, pp. 11-55.43. Ou racionalidade abstrata do Entendimento, na terminologiahegeliw_m_. Ver Grundlinien der Philosophie des Rechts, 189; Enzyklopiid:ze der philosophischen Wissenschaften (1830), 525.44. G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts 191. ,24

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    no campo das esferas particulares da sociedade, cada qualparticularizando, por sua vez, o horizonte universal doethos. Mas justamente o movimento dialtico que retorna do particular ao universal, fazendo do indivduo emprico um universal concreto, 49 que repe o problema na forma da relao entre a liberdade do indivduo como livre-arbtrio e a universalidade normativa do ethos. Esse problema, no entanto, apresenta-se nas sociedades modernasenvolvido em densas nuvens ideolgicas que encobrem osol daquela que deveria ser uma das evidncias fundamentais na reflexo sobre o ethos: a evidncia da funo educadora do ethos e, por conseguinte, da direo imanente aoseu movimento dialtico e segundo a qual o indivduo devepassar da liberdade emprica ou da liberdade de arbtrio liberdade tica ou liberdade racional. A primeira designao indivduo no ser da sua individualidade emprica. A segunda designa o indivduo no dever-ser da sua singularidade tica.A estrutura do ethos, que nos mostra uma articulaodialtica ou um movimento circular imanente entre o ethoscomo costume e o ethos como hbito, desembocando napraxis, revela-nos igualmente que o momento terminal dapraxis como lugar da liberdade se constitui exatamente como termo da passagem contnua da praxis na forma delivre-arbtrio ou libertas inditferentiae - um ser ou no-serem face da necessidade objetiva do ethos - praxis comoliberdade propriamente dita ou libertas independentiae- umconsentir livremente universalidade normativa do ethos.No primeiro momento, a liberdade exterior ao ethos, queest diante dela como uma natureza primeira - costumes.No segundo momento, a liberdade interior ao ethos, queconstitui como seu corpo orgnico ou sua segunda natureza - hbitos. ""

    49. Um singular na terminologia dialtica ou uma pessoa moralna terminologia da tica.50. A essa interiorizao da liberdade no ethos convm aplicar aproposio estabelecida por Hegel ao fim da Lgica da Essncia, deque a liberdade a verdade da necessidade. Ver Enzyklopdie der philosophischen Wissenschajten (1830), 158. Em um Zusatz acrescentado por L. von Henning a este pargrafo na sua edio da Lgica daEnciclopdia (Werke, Ed. Moldenhauer-Michel, Suhrkamp, vol. 8, pp.303-304), a aplicao desta proposio ao ethos ilustrada com a oposio entre a liberdade abstrata e a necessidade abstrata, em face daliberdade positiva e concreta que supera em si mesma a necessidade,26

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    Do ponto de vista da fixao histrica dos costumes,esta passagem se faz atravs do processo educativo quemostra assim, na relao do ethos com a sociedade, umaestrutura homloga da relao do ethos com o indivduo. passagem do livre-arbtrio liberdade tica no indivduocorresponde a passagem que conduz, atravs da prtica social da educao, os indivduos do ser emprico da sua existncia natural ao ser tico da sua existncia cultural, deacordo com as diferenciaes do ethos que acima foramenumeradas. oportuno lembrar aqui que a relao essencial entre ethos e paideia est no centro da concepo platnica de uma cidade da justia. 51A educao para o et.hos ou a funo educadora do ethosso descritas por Nietzsche numa pgina clebre, comoevocao da histria terrvel das crueldades que a sociedade humana imps a seus membros para educar o homemcomo um animal ao qual seja possvel prometer - um serde responsabilidade, um ser moral, em suma. 52 A teorianietzschiana da origem das noes morais atravs do longo curso histrico de uma educao, que no seno aimpiedosa e implacvel tarefa de submisso da animalidade no homem, 53 inspira, por sua vez, a tese, hoje vulgarizada, da origem da moral a partir da proibio e do interdito, acompanhados dos respectivos castigos e sanes. 54Nesse caso, a obrigao moral no seria apenas a metforado ligame fsico (ob-ligare), mas a sua continuao literalno domnio da conscincr.tal como a do homem do ethos (der sittliche Mensch) "que est consciente do contedo do seu operar como de algo necessrio e vlidoem si, mas com isto padece tanto menos um dano sua liberdadequanto, atravs dessa conscincia, o tornar-se uma liberdade efetivae plena, diferena do livre-arbtrio como liberdade ainda vazia esimplesmente possvel".51. Ver W. Jaeger, Paideia: the Ideals oj Greek Culture (tr. ingl.),Oxford, Blackwell, 1947, II, pp. 234-242; E. Riondato, Ethos: ricerche per la determinazione del valore classico dell'Etica, op. cit., pp.35-39.52. Zur Genealogie der Moral (Werke, Ed. Schlechta, II, pp.799ss.).53. Ver Jenseits von Gut und Base, V (Werke, Ed. Schlechta,II, pp, 643-662).54. Ver, por exemplo, G. Fourez, Choix thique et conditionnementsocial: introduction une philosophie morale, Paris, Le Centurion,1979, pp. 13-37.

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    A explicao nietzschiana da origem do ethos deixa,no entanto, sem resposta a questo decisiva sobre as razes que impelem a humanidade a trilhar esse imenso edoloroso caminho e a empreender esse inenarrvel esforopara escalar dolorosamente as escarpadas alturas da moralidade. A idia de uma prioridade dialtica do ethos sobreo indivduo emprico ou do contedo intrnseco do valorsobre a satisfao do indivduo 55 oferece uma resposta infinitamente mais aceitvel interrogao fundamental emtorno da presena constitutiva do ethos na estrutura dasocialidade humana. ;4. ETHOS E CONFLITO

    A universalidade e normatividade do ethos no se apresentam em face do indivduo segundo a razo de umaanterioridade cronolgica: vindo depois de constitudo oethos, o indivduo seria precedido por ele e, portanto, porele predeterminado. Nem segundo a razo de uma exterioridade social: vindo existncia no seio de um ethos jsocialmente institudo (costumes) o indivduo seria por eleenvolvido e extrinsecamente condicionado. Menos ainda atenderia natureza da relao entre ethos e indivduo pens-la segundo a anterioridade logicamente linear da causalidade eficiente: o indivduo tico seria produzido pelo ethuscomo o efeito pela causa.'' Mesmo considerada do pontode vista puramente fenomenolgico, - a relao entre o

    55. A respeito desse tema, um eco de toda a tradio ~ l ~ s s i c ~se faz ouvir neste texto de M. T. Ccero: " .. .etenim, omnes mn bomipsam aequitatem et jus ipsum amant, nec est viri boni errare et diligere quod per se non est diligendum; per se igitur jus est expetendum et colendum; quod si jus, etiam justitia ... ergo item justitia ni-hil expetit premii, nihil pretii; per se igitur expetitur, eademque omnium mrtutum causa atque sententia est" rDe Legibus, I 18; Ect. Ke-yes, Loeb Class. Lib., p. 350). _ _ .56. Convm lembrar, a propsito desta questao, a discussao classica de Max Scheler, Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, apudVom Umsturz der Werte

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    gao possvel), seja da ao eticamente m ou da falta,que uma recusa da normatividade do ethos. Na verdade,a falta tem lugar no interior do movimento que conduznormalmente ao eticamente boa: ela assinala uma ruptura no processo de interiorizao do ethos como costumeno ethos como hbito ou como virtude. 62O conflito tico se desenha, pois, como fenmeno constitutivo do ethos que abriga em si a indeterminao caracterstica da liberdade. 6 " No risco do conflito tico, manifesta-se a fluidez e a labilidade da socialidade humana, essencialmente distinta das rgidas formas associativas doreino animal. 64 O conflito tico atesta igualmente a peculiaridade da natureza histrica do ethos, em permanenteinterao como novas situaes e novos desafios que seconfiguram e se levantam ao longo do caminho da sociedade no tempo. Nesse sentido, o conflito tico no umaeventualidade acidental mas uma componente estrutural dahistoricidade do ethos. Ele se d propriamente no campodos valores e seu portador no o indivduo emprico, 65mas o indivduo tico que se faz intrprete de novas e maisprofundas exigncias do ethos. Somente uma personalidade tica excepcional capaz de viver o conflito tico nas

    62. o seguinte esquema complementa o esquema anterior danota 19:Nlismo tico Prxis {indivduo emprico)', /1',

    I '' I '(Sociedade l ~ I ~Costumes Ethos- - - - 1 - - - -Hxis

    " " : /rxis {indivduo tico)VirtudesConsentimentoRecusa

    (indivduo tico)Hbitos

    RealizaoConflito63. Ver H. H. Schrey, Einfhrung in die Ethik, Darmstadt, Wis

    senschaftliche Buchgesellschaft, 1972, pp. 153-163; Eric Weil, Philoso-phie morale, Paris, Vrin, 1 9 6 9 ~ pp. 22-27.64. Ver infra cap. V, n. 1.65. Pela r e c u ~ a de uma norma ou de um valor do ethos, o indivduo emprico bloqueia responsavelmente o movimento dialticoque nele levaria efetivao concreta da universalidade do ethos naprxis virtuosa.30

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    suas implicaes mais radicais e tornar-se anunciadora denovos paradigmas ticos, como foi o caso na vida e no ensinamento de Buda, de S c r ~ t e s e de Jesus.Seria, portanto, fixar-se em analogia superficial e, nofundo, enganosa, pretender aproximar o conflito tico daatitude sistematicamente contestatria da revolta contra osvalores e, com maior razo, desse imoralismo esttico preconizado por literatos como Andr Gide e outros, e queto profundamente penetrou a cultura ocidental no nossosculo. 66 Essas formas de crtica do ethos estariam maisprximas do niilismo tico sem, contudo, alcanar-lhe a radicalidade. Quanto ao permissivismo anmico que se difunde na sociedade contempornea, representa uma deteriorao do ethos e no poderia ser confundido com o conflito tico, que traz consigo a exigncia de uma criao ticasuperior. 67 Fenmenos como a contestao sistemtica dosvalores tradicionais, o amoralismo esttico ou o permissivismo oferecem elementos para uma diagnose da crise moral das sociedades ocidentais, mas no a partir deles quese podero descobrir os caminhos de um ideal tico superior ou de uma resposta positiva a essa crise.Sendo um momento estrutural do dinamismo histricodo ethos, o conflito tico deve, pois, ser caracterizado fundamentalmente como conflito de valores e no como simples revolta do indivduo contra a lei. n., Com efeito, den-

    66. Nos fins do sculo XIX, Maurice Blondel j levara a cabo,com profundidade e brilho, uma exposio e crtica do amoralismoesttico (sob o nome de "atitude esttica" em face da necessidade daao) e do niilismo tico, na sua tese L'Action: essai d'une critiquede la vie et d'une science de la pratique (1893), 2 ~ ed., Paris, PUF,1950, c. 1, pp. 1-22.67. foroso concluir que a contestao gratuita, o amoralismoe o estetismo permanecem no nvel do indivduo emprico e dos finssubjetivos da sua praxis (utilidade, satisfao), ao passo que o conflito tico tem lugar no nvel do indivduo tico. Utilizando-se categorias psicolgicas, poder-se-ia dizer que somente uma vivncia intensa e uma profunda experincia do ethos existente tornam possvel a descoberta de um novo ideal tico. Aplica-se aqui o ensinamento paulino: o amor no a negao, mas a plenitude da lei (Rm13,10).68. Ver N. Hartmann, Ethik, II, 2, Berlim, De Gruyter, 1949,.pp. 249ss. e Henri Bergson, Les deux soures de la morale et de lareligion (1932), Oeuvres (d. du Centenaire), Paris, PUF, 1959, pp.1023-1029. No entanto, como j se observou (nota 39 supra), a distino bergsoniana repousa sobre um dualismo mais profundo e pro-

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    tro da unidade de um mesmo ethos que, de um lado, sedimentam-se os costumes, normas e prticas que acabam porconstituir, atravs de causas histrico-culturais vrias, oconjunto daquela que foi denominada por Bergson "moralde presso", expresso do conformismo social e, de outro,irrompem novos ideais ticos, novas formas de convivnciae estilos de comportamento, abrindo caminho moral aberta ou "moral de aspirao", ainda na terminologia bergsoniana, e cujo aparecimento d origem, exatamente, ao conflito tico.

    A peculiaridade dos traos que compem a figura histrica do conflito tico, sobretudo quando se delineia comoconstelaes de valores situadas em plos opostos do universo social, inspira as explicaes redutivamente sociologizantes ou economicistas desse fenmeno, formulando-oem termos de transposio ideolgica dos interesses declasses dominantes e dominadas. 69 Conquanto apresentando elementos vlidos de observao, tais explicaes no escapam ao unilateralismo e ao simplismo. Elas pressupem,notadamente, uma concepo do homem pensado essencialmente como "ser de carncia", da qual decorre uma visopuramente instrumentalista e utilitarista do ethos, incapazde dar razo da sua irrecusvel originalidade fenomenolgica.O conflito tico , pois, um conflito de valores. Nocaso exemplar da crise do mundo grego e, particularmente,da democracia ateniense no sculo V a.C., que est nasorigens da civilizao ocidental, o a descoberta socrticada alma (psych) 71 , na verdade, uma reviravolta

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    concerto nos contemporneos de que nos do testemunhoas pginas de Xenofonte e de Plato. 72 Mais radical aindase apresenta o conflito tico, e mais nitidamente vem luza especfica n a t u r ~ axiognica desse fenmeno nessa que talvez a mais profunda revoluo moral da histria, levada a cabo no anncio da tica evanglica do amor. 73 E nesses casos paradigmticos que se mostra com definitiva clareza a insuficincia das explicaes reducionistas e a patente inadequao do esquema da luta ideolgica para traduzir a especificidade do conflito tico. Na verdade, o portador de novos valores ticos e o instaurador de um espaomais profundo e mais dilatado de exigncias do dever serno horizonte de um determinado ethos histrico (comoScrates no mundo grego e Jesus no judasmo palestinense) exerce implicitamente uma crtica da racionalizaoideolgica ao transgredir obstinadamente 74 os limites daesfera da utilidade e do interesse, e lanar seu apelo a partir da gratuidade de um absoluto do bem e da justia.

    E talvez a idia de transgresso que nos poder conduzir mais diretamente essncia mais ntima do conflitotico, e completar com um ltimo trao a fenomenologiado ethos. Originrio da Etnologia e da Psicanlise, o conceito de transgresso acabou acolhido no pensamento ticocontemporneo, mas num sentido predominantemente negativo. 75 A transgresso pensada imediatamente em oposio ao tabu, ao interdito e lei. Nesse sentido excludente, a transgresso se define como a ruptura dos limites impostos ao indivduo por um ethos entendido segundo a relao da exterioridade e da alienao: ela seria o reencontro do indivduo com a sua identidade verdadeira e com asua liberdade, rompidas as cadeias do ethos. Mas, semelhante conceito de transgresso no vai alm do nvel do

    72. Ver G. Reale, Storia deZ pensiero antico, op. cit., I, pp. 312-313.73. Ver Max Scheler, Die christliche Liebesidee und die gegen-wlirtige Welt apud Vom Ewigen im Menschen (Gesammelte Werke,V), Berna, Francke Verlag, pp. 353-401 (aqui, pp. 371-377).74. Segundo a invectiva indignada de Clicles a Scrates no Gr-gias - a mais admirvel expresso dramtica do conflito tico. VerGrg. 491 e-492 c.75. Ver Jacques Ellul, Les combats de la libert ( ~ t h i q u e de lalibert, t. 3), Genebra-Paris, Labor et Fides-Le Centurion, 1984, pp.70-85.33

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    indivduo emprico que se recusa a obedecer ao movimentode universalizao do ethos. Ela no , nesse caso, senouma sublimao da falta. Ora, a negatividade presente natransgresso no se exprime adequadamente na negaoprpria da falta ou da revolta, que empenha to-somenteo primeiro e mais exguo momento da liberdade, vem a ser,o livre-arbtrio do indivduo. Como manifestao da essncia da liberdade ou do seu "momento terminal", 7a a trans-gresso, como mostra excelentemente Jacques Ellul, 77 supe primeiramente a conscincia dos limites de uma liberdade situada. A partir desses limites reconhecidos e aceitos, o conflito tico coloca o indivduo em face do apeloque surge de exigncias mais profundas e aparentementeparadoxais do ethos: o apelo a sacrificar 78 o calmo reconhecimento dos limites e a segurana protetora das formastradicionais desse mesmo ethos, e a lanar-se no risco deum novo e mais radical caminho da liberdade. Tal a idiade transgresso que perpassa, como um motivo fundamental, a tica neotestamentria 79 e que encontra sua expresso definitiva na palavra de Jesus: "Quem quiser, pois,salvar sua vida a perder, mas quem perder sua vida porminha causa e da Boa Nova, a salvar". 80Conquanto imanente ao movimento do ethos, a trans-gresso no , porm, como quer P. Tillich, 81 o desenlacenormal desse movimento, mas como que o transbordamento de uma plenitude de liberdade que os limites do ethossocialmente estabelecido no podem conter. Ela d, assim,testemunho desse ethos do qual prorrompe e, ao mesmo

    76. Ver infra, cap. III, fim.77. Op. cit., pp. 71-73.78. O momento negativo da "transgresso" na sua verdadeiraacepo tica reside, portanto, nesse sacrifcio, conscientemente aceito, da segurana dos limites traados pelo reconhecimento histricoe social do ethos tradicional. Tem lugar aqui, na dialtica da liberdade tica, o princpio que Hegel enunciou na dialtica do saber doEsprito: seine Grenzen wissen heisst sich aufzuopfern wissen (Phii-nomenologie des Geistes, VIII; Werke, Suhrkamp, 3, p. 590).79. Ver Jacques Ellul, op. cit., pp. 76-85.80. Me 8,35; ver Mt 11,39; Lc 9,24; Jo 12,25. A pendncia entreFrancisco e seu pai na praa de Assis em tomo da pobreza constitui,na histria do cristianismo, um dos episdios mais sublimes de "transgresso" no sentido evanglico.81. Ver a. nota de J. Ellul, op. cit., p. 82, n. 1.34

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    tempo, anuncia o advento de um novo mundo de valores. nessa face positiva da transgresso que a fora criadorado conflito tico se apresenta ntida e irresistvel, descobrindo no seu fundo a prpria natureza do ethos. O ethos,afinal, no seno o corpo histrico da liberdade, e o traodo seu dinamismo infinito inscrito na finitude das pocase das culturas.

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    Captulo SegundoDO ETHOS A TICA

    1. ETHOS E CULTURAAfirmar que o ethos co-extensivo cultura significaafirmar a natureza essencialmente axiognica da ao humana, seja como agir propriamente dito (praxis), seja co

    mo fazer (poesis). O dualismo estrutural da ao mostrauma distncia ineliminvel que nela se estabelece entre ocontedo e a significao, entre o dado e a inteno, entreo determinismo imanente ao objeto da ao e o finaJismodo agente. Assumida na intencionalidade da ao, a ressobre a qual ela se exerce torna-se um opus (ergon) propriamente dito, a sntese realizada entre a natureza do objeto e a operao do sujeito. 1 Trata-se, convm t-lo presente, de uma sntese dialtica ou de uma identidade na di-

    1. Como termo da ao, o objeto prgma, expresso objetiva da praxis, ou ainda, se se tm em vista os fins subjetivos daao ou a utensilidade do objeto, ele chrema (o que til ou utilizvel). No prgma se d, pois, a sntese entre o finis operantis e ofinis operis: ver Lima Vaz, Trabalho e contemplao apud Escritosde Filosofia: problemas de fronteira, So Paulo, Ed. Loyola, 1986, pp.122-140. A polissemia do termo prgma revela uma significao fundamental em que prgma sempre referido ao domnio d linguagem e do sinal. Ver P. Hadot, Les divers sens du mot PRAGMA dansla tradition philosophique grecque, apud P. Aubenque (dir.), Conceptset catgories de la pense antque, Paris, Vrin, 1980, pp. 309-319. Sobre a elaborao do conceito de prgma por Aristteles ver G. Romeyer Dherbey, Les choses mmes: la pense du rel chez Aristote,Paris, L'Age de l'Homme, 1983.36

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    ferena: a estrutura da ao se constitui em permanentetenso com o seu objeto, e essa tenso que alimenta oque Maurice Blondel denominou o "crescimento orgnico"da ao, 2 o percurso do caminho entre o que o agente e o que o agente tende a ser. No objeto como termo daao, no opus ou ergon, a transcendncia do sujeito atestada exatamente pela forma simblica pela qual a formanatural do objeto integrada no sistema da cultura ou nosistema das significaes com que a sociedade e o indivduo representam e organizam o mundo como mundo humano. Assim sendo, o universo das formas simblicas no simtrico ao universo das formas naturais, e a dissimetria entre ambos se manifesta nesse excesso do smbolopelo qual a realidade submetida sua norma mensurante: ela deve ser para o homem tal qual o smbolo a significa. Enquanto produtora de smbolos ou enquanto portadora da significao do seu objeto, a ao manifesta destasorte uma propriedade constitutiva da sua natureza: ela medida (mtron) das coisas e, enquanto tal, eleva-se sobreo determinismo das coisas e penetra o espao da liberdade. 3Essa propriedade caracteriza de maneira original e nica a ao humana e Aristteles a pe em evidncia referindo-se ao smbolo fundamental da linguagem, 4 ao definiro homem como zon lgon chn 5 e ao fundamentar sobreessa definio sua reflexo sobre a ao poltica. Ora, aco-extensividade entre ethos e cultura se estabelece justamente a partir do carter mensurante da ao com respeito realidade. Com efeito, se considerarmos a praxis comoa face subjetiva da cultura e o seu objeto enquanto prgma

    2. L'Action: essai d'une critique de la vie et d'une science dela pratique (1893), ed. cit., pp. 144ss. Essas pginas, hoje injustamente esquecidas, constituem uma anlise inigualada, pelo vigor eamplitude, do fenmeno da ao humana.3. Na medida em que se estabelece entre a realidade e o smbolo a distino entre o "em-si" e o "para-ns", o homem comea portranscender a realidade ou objetiv-la: essa a raiz da liberdade eda possibilidade radical do ethos. Ver J. B. Lotz, Die Person, dasSein und das Gute, apud Sein und Ethos, op. cit., pp. 144-157; Walter Schulz, Philosophie in der veriinderten Welt, Pfllingen, Neske,1974, pp. 704-705.4. Para o estudo da linguagem como forma simblica fundamental, ver E. Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen Vol. IDarmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1964. ' '5. Pol. I, 1, 1253 a 7-19; ver infra, cap. IV.37

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    como a sua face objetiva, 6 veremos que a significao oua expresso simblica do prgma traduzem necessariamente a funo mensurante da praxis, o dever-ser por ela conferido ao seu objeto. E justamente na explicitao dessemtron prprio da praxis que o ethos se constitui e se mostra co-extensivo a todo o mbito da cultura. 7, pois, a partir da prpria origem do universo dasformas simblicas que se desdobra a dimenso do ethos:o homem habita o smbolo e exatamente como mtron,como medida ou norma que o smbolo ethos, moradado homem.No entanto, esse n originrio onde se entrelaamcultura e ethos tambm o lugar onde a experincia daao exigir a explicitao do seu carter normativo naforma de um ethos no sentido estrito que acabar mostrando-se como mtron ou instncia normativa transcendente prpria ao. como tal que ele penetrar o sistema inteiro das formas simblicas ou todo o corpo dacultura. Na verdade, a relao mensura-mensurado que seestabelece entre o smbolo e a realidade tende a inverter-se proporo em que a realidade, enquanto contedo dosmbolo, se apresenta como a realidade verdadeira ou significada como tal. A transcendncia do sujeito sobre o objeto ou da praxis sobre o prgma, atestada na prolao dosmbolo, tende a ser suprassumida na transcendncia doobjeto significado ou do contedo do simbolo que, enquanto tal, eleva-se sobre a contingncia e a precariedade doreal imediatamente dado ou do real emprico, ao qual osujeito e sua ao permanecem irremediavelmente ligados.Do mtron de Protgoras ao mtron de Plato, s o caminhopercorrido indica o sentido da transcendncia da medida,

    6. Entendendo-se a correlao praxis-prgma como extensiva a todo o campo da ao, pois mesmo na atividade do "fazer"(poesisJ e no seu objeto, existe uma intencionalidade especificamente humana que procede da praxis.7. Ver as reflexes de W. Thrillhaas, Bildung und Sittlichkeit,apud Handbuch der christlichen Ethik, Friburgo-Basilia-Viena, Herder-G. Mohn, 1978, II, pp. 492-505; e sobretudo R. Bubner, Geschichte-prozesse und Handlungsnormen, Untersuchungen zur praktischen Phi-losophie, Frankfurt, Suhrkamp, 1984, pp. 173-183.8. Foi justamente na discusso com Protgoras que Scratesdefiniu a virtude como "arte de medir" (metretike tchne, Prot. 356d-e). Na sentena de Protgoras referida por Plato (Teet. 151 e Crt.385 e 386 e Sesta Emprico (Adv. Math. VII, 60; ver D.-K. 80, B, 1) a38

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    em torno da qual se desenvolver fundamentalmente a reflexo tica.A questo se coloca nos seguintes termos: se a praxis a medida das coisas, como ir estabelecer-se uma medidapara a prpria praxis, uma vez que, na sua contingncia eparticularidade, ela no pode ser medida para si inesma?A impossibilidade do subjetivismo tico patenteia-se na dimenso tica da cultura antes de encontrar sua expressoterica na refutao socrtico-platnica do relativismo sofstico. Com efeito, em todos os grandes domnios das formas simblicas, cuja articulao constitui o mundo da cultura, na linguagem, no mito, na arte, no saber, no trabalho,na organizao social, o ethos ir encontrar expresses dasua normatividade que se apresentam como transcendentes ao efmera do indivduo. Enquanto mundo objetivode realidades simbolicamente significadas e que tende, pelatradio, a perpetuar-se no tempo, a cultura mostra, assim,toda uma face voltada para o dever-ser do indivduo e noapenas para a continuao do. seu ser: nela o indivduoencontra, alm do sistema tcnico que assegura a sua sobrevivncia, ainda e sobretudo o sistema normativo quelhe impe sua auto-realizao. A cultura tem, portanto, umatradio leu a frmula acabada do relativismo gnosiolgico: pntonchremton mtron est'tn nthropos, tn mim nton s stin, tn de ouknton os ouk stin. Mtron se interpreta aqui, segundo Plato, nosentido de kritrion (ver M. Untersteiner, I Sofisti: testimonianze eframmenti, Florena, La Nuova Italia, 1949, p. 72 e nota). Q u ~ l q u e rque seja a interpretao que se proponha da sentena de Protagoras(ver a acurada discusso filosfica e filolgica de W. C. K. Guthrie,A history of Greek Philosophy, I, pp. 183-192; e, ainda, A. J. Festugiere,Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, Vrin, 1950,app. III, pp. 467-471 e G. Vlastos, Protagoras, supra, cap. I, n. 30), elaconstitui o primeiro momento terico da dialtica da medida queparte da submisso das coisas medida do homem ou medida doseu conhecimento e ao (as coisas so, ento, t chrmat, "o queserve ao homem") e termina, seja na submisso do homem e dassuas coisas a Deus (Plato, Leis, IV, 716 c, refere-se explicitamenteao dito de Protgor.as e retm o termo chrmata), seja na submissodo cognoscente medida da verdade das coisas (Aristteles, Met., X, 1,1053 a 30-b3 tambm com referncia a Protgoras). Ver ainda Met.x 1 1053 a '31-b3. A sntese entre a teologia platnica e a gnosiologiaa;istotlica ser operada por Toms de Aquino, que distingue entrea mensurao ativa da praxis (intellectus practicus), o ser mensuradodo conhecimento especulativo finito e a medida absoluta da Inteligncia divina criadora

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    dimenso axiolgica que constitutiva da sua natureza eem virtude da qual ela define para o homem no somenteum "espao de vida" (Lebensraum), mas outrossim, segundo a expresso de E. Rothacker, um "estilo de vida" (Le-bensstil). 9 Desse ponto de vista, as definies puramentedescritivas da cultura so notoriamente insuficientes paratraduzir a originalidade da viso do mundo e da idia dohomem subjacentes diversidade histrica das culturas.Desta sorte, seja no sentido restrito de "cultura do esprito", seja no sentido amplo da sua distino com a "natureza", a cultura inseparvel do ethos ou a cultura - todacultura - constitutivamente tica. 10

    Ao expormos os preliminares semnticos a uma fenomenologia do ethos (cap. I, n. 1), vimos como o primeiroe mais fundamental sistema de smbolos sobre o qual assenta a cultura, a saber, a linguagem, igualmente o lugarprimeiro de manifestao da normatividade do ethos e dapeculiaridade de uma estrutura lgico-dialtica que, no termo ethos e nos seus derivados, e na constelao dos termosque constituem o ncleo semntico fundamental da linguagem tica, 11 pe mostra o crculo dialtico constitutivodo ethos que une a universalidade do costume singularidade da praxis. 1 2 reconhecidamente na religio que o ethos encontrasua expresso cultural mais antiga e mais universal. Defato, o mito e a crena aparecem como "a linguagem maisantiga da conscincia moral", 1a e o caminho mais seguroencontrado pelas sociedades para fundamentar numa instncia transcendente a normatividade imanente ao humana e assegurar assim, com a garantia de um poder legislador e julgador revestido do prestgio do sagrado, aobjetividade e a fora obrigatria das normas e interditos.A origem religiosa das noes morais permanece uma ques-

    9. E. Rothacker, Probleme der Kulturanthropologie, Colnia, H.Bouvier, 1948, p. 191. Ou ainda uma "forma de vida" (Lebenstormlsegundo J. Messner, Kulturethik, op. cit., pp. 345ss.10. Ver J. Messner, Kulturethik, pp. 339-340.11. Tem-se em vista aqui, primeiramente, a lngua grega que a lngua filosfica kat' exochn.12. A atualidade dos problemas da relao entre ethos e linguagem evidencia-se na vasta bibliografia a respeito. Ver E. Riondato, Ricerche di Filosofia morale, op. cit., cap. I, n. 6. Ver infra cap.II. 13. N. Hartmann, Ethik, op. cit., pp. 66-68.40

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    to discutida, 14 e bem assim, a fundamentao do valor tico na sua relao com o sagrad0. 15 sabido, por outrolado, que a esfera do ethos, na sua linguagem e na suaexpresso conceptual, tende historicamente a se distinguirda esfera do religioso e do sagrado, no obstante a "motivao religiosa" permanecer, talvez, a mais universal dasmotivaes que alimentam o agir tico. 16 certo que a autonomia do domnio da moralidade constitui, sobretudo depois da crtica kantiana da Razo prtica, um dos pontossalientes da reflexo tica moderna. Ora, como em Kant,ela afirmada a partir da aprioridade formal da moralidade, ora, como em F. Schleiermacher e S. Kierkegaard, reconhecida como condio para se preservar a originalidade do sagrado e do religioso. 17Como quer que seja, a expresso do ethos na formado ensinamento e do comportamento religiosos um fatouniversal de cultura, 18 e impossvel separar, na histriadas grandes civilizaes, tradio tica e tradio religiosa.19 Desse ponto de vista, o processo histrico-culturalque se encaminha, na civilizao ocidental, para a sua autonomia recproca ou, mais exatamente, para a laicizaodo ethos, assinala igualmente uma das mais graves crises,entre as historicamente conhecidas, da tradio tica deuma grande civilizao. O desfecho dessa crise permaneceincerto, mas ela aponta com dramtica evidncia, para o

    14. Ver G. Harkness, The sources of western morality, NovaIorque, Charles Scribner's Son, 1954.15. Ver Theodor Steinbchel, Die philosophische Grundlegungder katholischen Sittenlehre, Dsseldorf, Schwann, 1939, II, pp. 219--241. 16. Ver H. H. Schrey, Einfhrung in die Ethik, op. cit., pp.22-34.17. Ver B. Hring, Le Sacr et le Bien: religion et moralitdans ses rapports mutuels (tr. fr.) Paris, Fleurus, 1963, p. 121. ParaSchleiermacher, o "sagrado" objeto do "sentimento", o "tico" davontade. Kierkegaard, por sua vez, distingue um "estdio tico" deum "estdio religioso" da existncia.18. Sobre as relaes entre o "sagrado" e o "valor" ver, entretanto a discusso clssica de Rudolf Otto, Das Heilige: ber dasIrrationle in der Idee des gttlichen und sein Verhiiltnis zum Ra-tionalen, 2 6 ~ ed., Munique, Biederstein Verlag, 1947, pp. 62-69; Th.Steinbchel, op. cit., II, pp. 225-236.19. Ver o artigo Sittlichkeit de G. Fohrer, E. L. Dietrich, e W.G. Kmmel in Die Religion in Geschichte und Gegenwart, VI, pp.66-80; e Paul Valadier, Morale et vie spirituelle, apud Dictionnaire deSpiritualit (Paris, Beauchesne), X, pp. 1697-1717 (v. 1705ss.).

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    fato de que a relao entre o ethos e as expresses simblicas de uma cultura - entre as quais singularmente areligio- constitutiva do prprio ethos. No campo dessarelao, traa-se o caminho trilhado at hoje pelas sociedades humanas para assegurar ao do indivduo, na suanecessria estrutura normativa, uma instncia reguladoraobjetiva e universal que a eleve sobre a contingncia emprica do seu acontecer. As tentativas de se suscitar umethos artificialmente anti-religioso em alguns estados do socialismo autoritrio revelam eloqentemente, luz dessaconcluso, a profundidade dessas camadas culturais ondeethos e crena religiosa entrelaam suas razes.A relao entre o ethos e essa outra forma fundamental de expresso da cultura que o saber apresenta-se, porsua vez, particularmente importante pois ser assumindo aforma do saber demonstrativo que, na tradio ocidental,o ethos ir constituir-se como linguagem universal codificada e socialmente reconhecida como tal, ou seja, comotica.

    As primeiras formas de saber em que o ethos se exprime so, de um lado, o mito e, de outro a sabedoria davida, estilizada em legendas, fbulas, parbolas e na sabedoria gnmica (mximas e provrbios) . 20 A essencial relao entre o mito e o ethos manifesta-se seja na funo didtica do mito enquanto ensinamento sobre a realidade, sejana sua funo educadora e ordenadora, enquanto assinalaao homem seu lugar e ao humana seus limites na ordemcsmica. O mito no somente descreve, mas igualmenteprescreve, e esse carter prescritivo ou propriamente ticose mostra com particular nitidez na passagem do "temamtico" narrao mtica como tal. 21 J a sabedoria davida aparece como o lugar privilegiado da formao dalinguagem do ethos. 22 Se acompanharmos a formao dovocabulrio tico na Grcia que ir constituir, juntamentecom os termos correspondentes do vocabulrio latino, ovocabulrio bsico da tica ocidental, veremos que atra-

    20. Ver H. H. Schrey, Einfhrung in die Ethik, op. cit., pp.112ss.21. Ver G. Mainberger, Sein und Sitte im Mythos, apud P. Engelhardt (org.), Sein und Ethos, Mainz, Mathias Grnewald, 1963,pp. 37-55.22. Ver. J. Ortega y Gasset, El hombre y la gente, Madri, Revista de Occidente, 1957, pp. 261ss.42

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    vs das formas literariamente estilizadas da sabedoria davida que tal vocabulrio nos transmitido. 23 atravs dosmatizes desse vocabulrio que iremos conhecer as constelaes tpicas de valores que estruturam em formas diversas o ethos arcaico grego: um ethos aristocrtico e guerreiro (Homero, Teognis de Megara, Pndaro . . . ) e um ethospopular e laborioso (sabedoria gnmica, Hesodo nos Tra-balhos e Dias, . .. ) . 24 Um dos traos importantes no ethosda sabedoria da vida o fato de que essa sabedoria seapresente como expresso da prpria natureza e faa apelo,portanto, a uma vontade que se mantm no terreno daquelas que se consideram exigncias essenciais da vida, acima das flutuaes do arbtrio individual. 25 Assim, atravsda sabedoria da vida, manifesta-se essa analogia entre aregularidade da natureza e a constncia e regularidade doethos, na qual a tica como cincia do ethos ir encontrarseu ponto de partida e seu motivo fundamental. 262. NASCIMENTO DA CINCIA DO ETHOS

    O aparecimento de uma cincia do ethos nas origensda cultura ocidental 27 constitui um dos aspectos mais notveis e de mais extraordinria significao dessa profundatransformao do mundo grego que teve lugar nos sculosVII e VI a.C., e da qual procede o ciclo civilizatrio noqual ainda hoje nos movemos. A cincia do ethos surge

    23. Ver Ed. Schwartz, Ethik der Griechen, op. cit., pp. 19-40;60-63. E ainda Max Pohlenz, L'uomo greco, op. cit., pp. 571-661.24. Ver, por exemplo, W. Jaeger, Paideia, the Ideals of Greekculture, vol. I, c. 4 e c. 10; J. Lorite Mena, Du mythe l'ontologie, op.cit., pp. 107-197 (sobre Hesodo).25. Segundo a conhecida distino de F. Tnnies entre a "vontade essencial" (Wesenswille) vigente na "comunidade" (Gemein-schaftJ, contradistinta da "vontade de arbtrio" (Willkrwille) dominante na "sociedade" (Gesellschaftl.26. A analogia que funda a "naturalidade" dos preceitos da "sabedoria da vida" tanto mais ntida quanto mais universal a formulao de tais preceitos, como acontece no caso da chamada "regra de ouro" (ver H. H. Schrey, Einfhrung in die Ethik, op. cit.,p. 127). Eis como essa regra enunciada por um autor medieval:" ... et legem illam naturalem qua nemini facere vult quid sibi fierinoluerit omnibusque facere vult inquantum potest quaecumque abaliis sibi vult fieri". (G. de Saint Thierry, Speculum fidei, 77, Sources Chrtiennes, n. 301, pp. 144-146.)27. Ver infra, cap. IV.

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    no contexto mais vasto de uma mudana radical no estatuto social do discurso (lagos) e que Mareei Dtienne designou como "laicizao da palavra". 28 Ela assinala a passagem do lagos mtico e sapiencial ao lagos epistmico ed incio ao ciclo histrico da cincia na cultura ocidental.A formao de um lagos que busca exprimir a ordemdo mundo na ordem das razes, que parte de um primeiroprincpio (arqu) e que, portanto, conduzido a elaborara primeira noo cientfica de "natureza" (physis), 29 repercute tambm sobre os diversos tipos de lgoi que falamda conduta da vida e do sentido da ao humana. Comefeito, como no tentar transpor para o registro do incipiente discurso demonstrativo a viso unitria do mito

    que submete a uma nica e suprema lei o universo, osdeuses e os homens? Esse o propsito que transpareceno clebre fragmento 1 de Anaximandro. 30 Mas essa transposio esbarra na noo de destino (moira) que essencialao mito, mas inassimilvel por um discurso sobre a aohumana que se pretenda racional. Anaximandro ponderou,sem dvida, essa dificuldade e da seu intento de unir ocosmos, os deuses e os homens, em virtude de uma gnesecomum, necessidade de uma mesma lei universal. 31 A analogia entre a physis e o ethos ser, assim, o primeiro terreno sobre o qual comear a edificar-se uma cincia doethos, acompanhando o brilhante desenvolvimento da cincia da physis que marca os primeiros dois sculos do pensamento grego. Tal analogia estimulada pelo fato de quea formao do vocabulrio tico, como foi observado, 32obedece lei da transposio metafrica das propriedadesfsicas do indivduo s suas qualidades morais, fazendo as-28. M. Dtienne, Les maitres de vrit dans la Grece archaique,Paris, Maspro, 1967, pp. 81-193.29. Ultrapassaria os limites previstos para estas pginas o aprofundamento do complexo problema das origens do pensamento filosfico-cientfico entre os gregos. Os grandes progressos recentesda historiografia filosfica no diminuem no entanto, a nosso ver, aimportncia do inspirador captulo de Werner Jaeger sobre a "descoberta da ordem do mundo", particularmente sugestivo para o nosso tema. Ver Paideia, the Ideals ot Greek culture, I, cap. 9, pp. 151--184. Ver ainda Max Pohlenz, L'uomo greco, VIII, pp. 305-361.30. D.-K. 12, B, 1.31. Sobre o pensamento de Anaximandro ver E. Wolf, Griechisches Rechtsdenken, I, pp. 218-234 e a minuciosa discusso de J. Lorite Mena, Du mythe l'ontologie, op. cit., pp. 318-327.32. Ver supra, cap. I, n. 1.

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    sim da analogia o esquema bsico do pensamento tico. 38De resto, a correspondncia analgica entre physis e_ e t h ~ satende ao objetivismo da tica grega, 34 na qual a pnmaziado fim do agir ou da conduta implica uma primazia daordem ou hierarquia das aes, o que permite pensar omundo do ethos segundo o modelo do kosmos ou ordemda natureza. sabido que o modelo csmico presidiu aos primeirosensaios pr-socrticos de uma cincia do ethos como se infere do fragmento 1 de Anaximandro. Observou-se igualmente que o esquema de ordenao do mundo e das almassubjacente ao mito da metempsicose o fundamento datica de Empdocles, 35 mas dificilmente tal tipo de pensamento poderia ser apresentado como um passo no caminhode uma cincia do ethos. Herclito , sem dvida, o primeiro a fundamentar na unidade do lagos a ordem do mun-do e a conduta da vida humana. 36 .Na verdade, a analogia entre physis e ethos, pressupondo-se a physis como objeto por excelncia do lagos demonstrativo ou da cincia, traz consigo uma revoluo conceptual na idia do ethos, cujas conseqncias sero decisivaspara o aparecimento da tica como cincia e se tornaropatentes ao longo da querela que ope os Sofistas e Scrates. O ethos verdadeiro deixa de ser a expresso doconsenso ou da opinio da multido e passa a ser o queest de acordo com a razo (kat lgon) e que , enquantotal, conhecido pelo Sbio. 87 O problema que se colocara partir de ento ser o da crtica do ethos fundado sobrea opinio e a justificao do et.hos segundo a razo: e nocontexto desse problema que Scrates pode ser considerado, como quer Aristteles, o verdadeiro iniciador da cinciado ethos.Com efeito, a introduo explcita do argumento teleolgico na concepo socrtica da virtude acaba favore-33. Ver Jos Vives, S.J., Gnesis y evolucin de ~ tica plat-nca:estudio de las analogias en que se expresa la t%ca de Platn,Madri, Gredos, 1970, pp. 7-35.34. Ver J. Vives, op. cit., pp. 32-34.35. ver Jonathan Barnes, The presocratic Philosophers, Londres Routledge and Kegan Paul, 1979, pp. 1 2 2 - 1 ~ .'36. Ver J. Barnes, op. cit., pp. 127-135.37. Ver. J. Vives, op. cit., pp. 40-41.

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    cendo a analogia com a competncia tcnica (tchne) ss nastentativas de formulao da racionalidade da conduta: aidia da virtude como tchne constituir o ponto de partida da reflexo tica de Plato. 30 Uma das formas da atividade cientfico-tcnica que alcanara na Grcia notveldesenvolvimento e prestgio, ou seja, a medicina, apresenta-se como referncia analgica privilegiada para a cinciado ethos. Plato estabelece explicitamente uma proporoentre a "justia" ou cincia do bem-estar da alma e a medicina 40 e a tica como cincia encontra na medicina, segundo Aristteles, um modelo para desenvolver o mtodoadequado 41 ao seu objeto. Por outro lado, a analogia teraputica pe em relevo essa caracterstica peculiar do agirhumano que o mostra oscilando, no seu movimento, entreos plos da razo e do desejo e oferecendo, assim, umcampo privilegiado para a formulao das noes de medida e de cura dos excessos do desejo. 42A partir da idade sofstica, os grandes temas sobre osquais se exerceria a reflexo tica esto definidos, e estotambm delineados os modelos epistemolgicos que iroguiar a formao de uma cincia do ethos. Segundo a enumerao de Lon Robin no seu livro magistral sobre a mo-

    38. Ver Terence Irwin, Plato's moral theory: the early and middle Dialogues, Oxford, Clarendon Press, 1977, pp. 71-72.39. Ver J. Vivs, op. cit., cap. I, pp. 36-60.40. Grg, 464 a-465 a; ver Robert C. Cushman, Therapeia Plato's Conception of Philosophy, University of North Carolina Press,1958.41. Ver W. Jaeger, Aristotl's use ot Medicine as model of method in his Ethics, ap. Scripta minora, Rom, Edizioni di Storia eLetteratura, 1960, pp, 491-509. Jaeger sublinha a diferena entre o modelo teraputico em Plato e sua aplicao na tica aristotlica, quese define como uma cincia prtica.42. Esse tipo de reflexo caracteriza primeiramente a sabedoria gnmica, tendo provavelmente como centro de difuso o templode Apolo em Delfos. O ne quid nimis

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    ral antiga, 43 trs grandes direes da reflexo unificam essestemas: 1) a lei e o Bem; 2) a virtude ou a existncia segundo o Bem e a eudaimona; 3) o sujeito da ao moral.Em torno desses temas, aguam-se os problemas queiro alimentar a reflexo moral at nossos dias. Tais interrogaes em torno do ethos supem justamente que o sculoV a.C. tenha sido um tempo de profundo desconcerto moral no mundo grego, tempo agitado por vivas querelas, nasquais era posto em questo tudo o que at ento se admitira a respeito da virtude, da justia e do bem. Um ecodessas querelas vamos encontr-lo nas Nuvens de Aristfanes, 44 mas sem dvida nos textos sofsticos que elas seexprimem com maior veemncia e, entre todas, a mais clebre, aquela que ope a natureza e a lei (physis e nmos).Seu carter dramtico vem do fato de que ela incide noprprio terreno da analogia entre ph'Jysis e ethos, no qualse tentava encontrar o caminho para a justificao racional do ethos. Talvez no se encontre expresso mais eloqente dessa oposio 45 do que o longo fragmento atribudo a Antifonte, o Sofista, e identificado num dos papirosde Oxirrinco. 46

    Na passagem do sculo V para o sculo IV, o relativismo moral na sua forma mais abrupta faz parte do fundocomum das idias que circulam atravs do ensinamentodos Sofistas. Assim o atestam esses curiosos Dssoi Lgoi(discursos duplos), transmitidos entre os escritos de SestaEmprico 47 e onde vemos dissolver-se, no jogo lgico dosopostos, alguns dos conceitos fundamentais do ethos grego:o bem, o belo, o justo, o verdadeiro, a sabedoria, a virtude.Tal o contexto social e cultural no qual uma cinciado ethos se tornava imperativa como resposta questo43. Lon Robin, La Morale antique, 21;\ ed., Paris, PUF, 1947.Robin divide sua exposio em trs grandes captulos que tratam respectivamente do bem moral, da virtude e da felicidade e da ao moral nas suas condies psicolgicas.44. As Nuvens, 1240-1244.45. Ver a bibliografia indicada infra, cap. VI, n. 8.46. D.-K., 87, B, 44; ver o sugestivo comentrio de J. Bames,The presocratic Philosophers, pp, 508-516 e tambm W. C. Greene,Moira: Fate, Good and Evil in Greek Thought, Cambridge Mass.,Harvard University Press, 1948, pp. 232-240.47. D.-K., 90, 1-8; ver o comentrio de J. Bames, op. cit., pp.516-522. Os Dssoi Logoi foram igualmente denominados Antilxeis;escritos em diltico drico provavelmente nos fins do sculo V a.C.

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    de cuja soluo pendia a sobrevivncia do prprio ethos edo mundo de cultura do qual ele era a expressao maisgenuna. Deste ponto de vista, soa como um paradoxo acrtica heideggeriana constituio da tica como cincia,tornada possvel a partir do esquecimento do ethos original, assim como a Metafsica se constitui a partir do esquecimento do ser. 48 Nada permite supor que uma ticaoriginria no sentido heideggeriano se apresentasse comoalternativa vivel crise do ethos no sculo V. a.C., ameaado pelo poder dissolvente do logos sofstico. Convm,de resto, perguntar-se se esse "declnio do pensar" em facedo advento da filosofia como cincia, de que fala Heidegger, 49 um fato histrico perceptvel na literatura filosfica do sculo V a.C., ou traduz apenas a leitura heideggeriana daqueles textos fragmentrios. Na verdade, considerado luz das evidncias textuais, o movimento do pensamento grego nos tempos imediatamente anteriores a Scrates e nos tempos socrticos aponta inequivocamente nadireo de uma cincia do ethos como nica respostahistoricamente vivel crtica destrutiva dos Sofistas.Os primeiros passos em direo cincia do ethos sero dados no campo da reflexo sobre a lei. A prpriaevoluo do vocabulrio caracterstica da indicao deum caminho que leve a uma fundamentao racional doagir humano, como fcil observar a propsito dos vocbulos thmis e dke. 50 Mas so, sem dvida, as transformaes sociopolticas, das quais emerge a polis como estado democrtico, que impem a necessidade de uma explicitao do ethos como lei, segundo os predicados da igualdade ( sonoma) e da correspondncia com a ordem das

    48. Ver supra, cap. I, nota 10. Sobre o problema da relaoentre humanismo e tica na Carta sobre o Humanismo e apreciaoda bibliografia a respeito, ver Robert H. Cousineau, Humanism andEthtcs: an introduction to the Letter on Humanism Paris-LouvainNauwelaerts, 1972. ' '40. Brief ber den Humanismus, ed. bilnge Munier, p. 138.50. Themis, "ordenao", no vocabulrio homrico remete aplicao da justia sob a gide de Zeus Dke "justia" prprio dov o ~ a b u l r i o hesidico, personalizada nma d ~ u s a todo-poderosa, expnme atravs do conceito de igualdade a racionalidade do direito.Ver W. Jaeger, Praise ot Law: the origin of law philosophy and theGreeks, apud Scripta minora, II, Pt> 319-351; ver igualmente o captulode Erik Wolf, Griechisches Rechtsdenken I Vorsokratiker und trheDichter, Frankfurt a.M., V. Klostermann, H50, pp. 22-45.48

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    coisas (eunoma). Na poesia poltica de Solon, o grandelegislador ateniense, contemporneo dos primeiros filsofos, a celebrao da Dke e da Eunoma (que Solon figuraigualmente sob a forma de uma deusa), 51 oferece-nos oprimeiro ncleo conceptual sistemtico do que ser umacincia do ethos. 52 Na lrica de Solon, com efeito, Dke oua Justia apresenta-se como imanente ao tempo (identificada, alis, ao prprio tempo, Cronos). Assim, pela primeira vez na histria do pensamento poltico grego, a Justia emerge como uma fora histrica no horizonte dodestino poltico da plis. 53 A Dke a fonte da legitimidade da lei (nmos) e, a partir dela, o justo (dkaion) podeser igualmente definido como predicado da ao do verdadeiro cidado. Seus opostos so manifestaes de umamesma desmesura fundamental (htybris), que ambiodo poder (pleonexa), do ter (philargyra) e do aparecer(h)yperephana). A hybris traa, desta sorte, o perfil dohomem injusto (aner dikos), que se mostra como o homem insensato e destitudo de razo. A ele se contrapeo homem justo (aner dkaios), que se situa sob a gideda "medida" (mtron). 54 Com a idia de "medida" aplicada ao agir, e essencial idia de lei, est posto o fundamento racional sobre o qual ser possvel edificar umacincia do ethos.Alguns textos clebres iro construir sobre esse fundamento a grandiosa analogia entre o ethos e a ordem universal que encontrar uma expresso grave e solene noGrgias de Plato, no momento decisivo da discusso comClicles. 55 Essa analogia est subjacente s celebraes da

    51. Ver W. Jaeger, Praise ot Law, art. cit., p. 327, n. 3. A grande elegia 3 dedicada Eunomia e termina com a celebrao dos seusbenefcios. Ver Lricos griegos I (ed. Adrados), Barcelona; AlmaMater, 1956, pp. (188)-(190):52. O belo e celebrado ensaio de W. Jaeger, Solons Eunomie,(Scripta minora I, pp. 314-337) apresenta-se aqu como referncia obrigatria. E igualmente o seu capitulo sobre Solon como criador dacultura poltica ateniense em Paideia, the Ideals of Greek culture,I, c. 8 (pp. 136-149). Ver igualmente E. Wolf, Griechisches Rechtsdenken, I, c. 9 (pp. 187-219) e Eric Voegelin, Order and History, IIThe World o! Polis, pp. 194-199.53. Ver E. Wolf, op. cit., I, pp. 194-195.54. Ver. E. Wolf, op. cit., I, pp. 207-210. o dito meden gan atribudo a Solon (D.-K. 10, 3, B, 1).55. Ver Grg 507 e-508 a: "Os sbios, 6 Clicles, afirmam queo cu e a terra, os deuses e os homens conservam a comunidade e

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    lei que se tornam um tpos clssico nos trgicos, 56 noslricos, 57 na oratria poltica 58 e na reflexo filosfica sobre a cultura, da qual o exemplo mais clebre nos transmitido por Plato no mito sobre as origens da cultura atribudo a Protgoras. 59, de resto, no domnio da filosofia da cultura e dafilosofia poltica que a transcrio do ethos no lagos epistmico alcana uma amplitude e uma profundidade inigualadas, e tal se d na obra de Plato, na qual o ncleo dareflexo racional sobre a praxis ainda no se dividiu naquelas que sero as classificaes aristotlicas e o pensamento tico , ao mesmo tempo, filosofia e prtica cultural e poltica. na obra de Plato, como observa justamente W. Jaeger, 60 que o problema da justia e da lei searticula ao problema da natureza da realidade enquantoa amizade, a boa ordem, a sabedoria e a justia e por isso companheiro, chamam a esse universo de ordem (ksmos), e no de desordem e desregramento. Mas tu, sendo sbio, pareces no aplicartua mente a estas coisas e, ao invs, te esqueces de que a igualdadegeomtrica pode muito entre os deuses e entre os homens. Pensasque preciso esforar-se para se poder sempre mais. que te descuidas da geometria". Sobre a tica platnica no Grgias ver o excelente capitulo de J. Vivs, op. cit., pp. 94-125.56. Assim no final das E u m ~ n i d a s na Orestada de squilo (Eum.681-710) e no coro em louvor do homem na Antgona de Sfocles(Ant. 332-373).57. Como no clebre fragmento de Pndaro sobre o nmos basileus citado por Plato, Grg. 484 b. Ver E. des Places, Pindare etPlaton, Paris, Beauchesne, 1949, pp. 171-175; Guthrie, A history ofGreek Philosophy, III, pp. 131-134; J. de Romilly, La loi dans la pense grecque, pp. 63-71. A significao do fragmento de Pndaro discutida, mas impossvel no enumer-lo entre os textos celebratrios da lei.58. Ver a orao fnebre pronunciada por Pricles sobre osmortos de Atenas, Tucdides, Hist. II , 35-46.59. Plato, Prot. 320 c-322 d. Sobre a interpretao dessa passagem famosa ver W. Jaeger, Praise of Law, art. cit., pp. 335-338.Plato provavelmente utiliza e refunde livremente uma obra de Protgoras "Sobre o estado do homem no princpio" (per'i tes en a r c h ~katastseos) mencionada por Digenes Larcio (D.-K., 80, B, 8 ble que coloca no centro da cultura a instituio da ordem polticaatravs das virtudes da reverncia e da justia (aids e dke). VerW. K. C. Guthrie, A history of Greek Philosophy, III, pp. 63-68. Todo o magistral captulo de Guthrie sobre a anttese nmos-physisna moral e na poltica (ibidem, pp. 55-134) deve ser lido na perspectiva da constituio da cincia do ethos a partir da idia de lei.60. Ver In Praise of Law, art. cit., p. 341.50

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    tal. Plato edifica a c1encia do ethos como cincia da justia e do bem e, conseqentemente, como cincia da aojusta e boa que a ao segundo a virtude (aret), sobreo fundamento de uma cincia absolutamente primeira, deuma Ontologia. A concepo platnica do ethos repousasobre essa relao originria e originante entre o homeme o ser, que se exprime no lagos do ser (Ontologia). Nessesentido, permitido dizer que ela se constitui, por suavez, como princpio (arqu) da tica ocidental, alm doqual no possvel remontar. Observe-se, alis, que o caminho do pensamento platnico, da Repblica s Leis, antecipa e como que descreve de antemo aquele que ser opercurso conceptual clssico da reflexo tica na histriada filosofia ocidental. O ponto de partida oferecido pelaontologia do Bem na Repblica, qual corresponde a paidea filosfica e a cincia do Bem, operando a perfeita interiorizao da lei na alma e tornando suprflua a lei escrita; 61 o ponto de chegada ~ l c a n a d o com o vasto painel legislativo das Leis. A legislao das Leis poderia serargda de casusmo ou de autoritarismo legiferante se nofosse justamente o instrumento adequado para a prticada cincia do Bem e para o exerccio da justia. 62 Assim,a cincia do ethos dotada de uma estrutura fundamentalnessa dialtica que se estabelece entre a norma paradigmtica e a ao reta, pela mediao da lei adaptada s circunstncias concretas. 63 Ela se constitui, na obra de Pla-

    61. Rep. IV, 423 e; cf. 425 a-e; Plato esclarece que uma boaeducao e instruo (paidea ka't troph) tornam intil a legislao minuciosa sobre pequenos pormenores da vida de cada dia. Verigualmente a depreciao da lei escrita no Poltico (292 d-297 b) emfavor da arte suprema de governar. Ver Romilly, La loi dans lapense grecque, pp. 188-194.62. Ver Leis, IV, 713 e-714 a. E. w. Jaeger, Paideia, the Ideals ofGreek culture, III, pp. 217-230; Praise of I:_aw, a r ~ . cit., p. 345. A. J. F ~ s -tugiere insiste fortemente na fundamentaao ter1ea do nmos nas Lezs:Contemplation et vie contemplative selon Platon, pp. 425-447; sobreas Leis ver ainda na perspectiva que aqui nos interessa, J. Vivs,Gnesis y evolucin de la tica platnica, pp. 289-309; E. Voegelin,Order and History III, Plato and Aristotle, pp. 215-223.63. Ver J. de Romilly, La loi dans la pense grecque, p. 195; verainda a bela celebrao da lei como fonte de civilizao em A. J.Festugire, Libert et civilisation chez les grecs, Paris, Revue desJeunes, 1947, pp. 81-91.51

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    to, "4 como um ktema eis ae, 65 uma aqms1ao da civilizao do Ocidente que permanece para sempre.Se a cincia do ethos no pode ser estritamente homloga cincia da phJysis, conquanto ambas se edifiquem nomesmo espao do logos epistmico, que a praxis humanano se pode conceber racionalmente como movida pela visa tergo de uma necessidade exterior. A constituio deuma cincia do ethos s se tornaria possvel com uma crtica radical da noo de destino, com a interiorizao danecessidade no sujeito agente atravs da descoberta