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A POPULAÇÃO NEGRA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Candida Soares da Costa – Doutoranda Profa. Dra. Iolanda de Oliveira – Orientadora Universidade Federal Fluminense – UFF Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Núcleo de Est. e Pesquisas Sobre Rel. Raciais e Educação – NEPRE RESUMO Sabe-se que o racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população brasileira com prejuízos singulares para toda a nação. Uma das causas desses danos advém do mito de que os índices inferiores em média de anos de estudos para a população negra são conseqüências de seu desinteresse pela escola, desconsiderando, portanto processos históricos de exclusão desse segmento populacional da educação formal. O presente texto é o resultado de uma pesquisa bibliográfica, sobre a educação do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social da Educação Brasileira. Faz uma abordagem sobre artifícios legais utilizados como impedimentos à escolarização da população negra e apresenta elementos que contribuem para a desconfiguração do mito sobre o desinteresse dessa população pela educação escolar. Palavras-Chave: História da Educação – População Negra – Racismo. O racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população brasileira no que se refere ao seu ser e estar no mundo: problemas relativos a identidades 1 , condições precárias e até subumanas de vida 2 , com prejuízos singulares para toda a nação. O presente texto, portanto, é o resultado de uma pesquisa bibliográfica sobre a educação do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social. Muitos são os autores que vêm empreendendo estudos sobre essa questão, disponibilizando trabalhos que têm fornecido argumentos sólidos sobre as conseqüências da discriminação racial na sociedade brasileira, que embora não haja 1 Cf. COSTA, Jurandir Freire. Prefácio “Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, 1983. 2 Cf. Oliveira, 1999.

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A POPULAÇÃO NEGRA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Candida Soares da Costa – Doutoranda

Profa. Dra. Iolanda de Oliveira – Orientadora Universidade Federal Fluminense – UFF

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Núcleo de Est. e Pesquisas Sobre Rel. Raciais e Educação – NEPRE

RESUMO

Sabe-se que o racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas

relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As

conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população

brasileira com prejuízos singulares para toda a nação. Uma das causas desses danos

advém do mito de que os índices inferiores em média de anos de estudos para a

população negra são conseqüências de seu desinteresse pela escola, desconsiderando,

portanto processos históricos de exclusão desse segmento populacional da educação

formal. O presente texto é o resultado de uma pesquisa bibliográfica, sobre a educação

do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social da Educação Brasileira. Faz uma

abordagem sobre artifícios legais utilizados como impedimentos à escolarização da

população negra e apresenta elementos que contribuem para a desconfiguração do mito

sobre o desinteresse dessa população pela educação escolar.

Palavras-Chave: História da Educação – População Negra – Racismo.

O racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas

relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As

conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população

brasileira no que se refere ao seu ser e estar no mundo: problemas relativos a

identidades1, condições precárias e até subumanas de vida2, com prejuízos singulares

para toda a nação. O presente texto, portanto, é o resultado de uma pesquisa

bibliográfica sobre a educação do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social.

Muitos são os autores que vêm empreendendo estudos sobre essa questão,

disponibilizando trabalhos que têm fornecido argumentos sólidos sobre as

conseqüências da discriminação racial na sociedade brasileira, que embora não haja

1 Cf. COSTA, Jurandir Freire. Prefácio “Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, 1983. 2 Cf. Oliveira, 1999.

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formalmente um apart-heid entre negros e brancos, a cor da pele dos sujeitos vêm sendo

elemento determinante de estratificação social, pois o acesso e usufruto dos bens

socialmente produzidos, inclusive a educação, tem acontecido de forma mais favoráveis

para aqueles, cuja tez se apresenta com menor concentração de melanina. Análise

cuidadosa dos dados oficiais (HASENBALG, VALLE SILVA E LIMA, 1999), de

livros didáticos (SILVA, 1995 e 2001, COSTA, 2004) do pensamento social brasileiro,

especialmente os do final do século XIX e início do XX que serviram de base aos

ideários de nação e de povo brasileiro (CARRARA, 1996), bem como das funções e

papel da escola na construção desses ideários (MÜLLER, 1999), permitem compreender

como se fabricou e se mantém a imagem da parcela populacional negra brasileira como

um tipo de outsiders3 em uma nação que por ela, também, é construída.

Para início de conversa

O emprego do conceito cidadão não é recente no Brasil. Formalmente, a

Constituição de 1824, a primeira do país, já o utilizava, afirmando que o “Império do

Brazil é a associação política de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma

Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união,

ou federação, que se opponha á sua Independência” (Art. 1).

O artigo 6º classificou como brasileiros os que no Brasil tivessem nascido,

fossem ingênuos4 ou libertos5, ainda que o pai fosse estrangeiro, visto não residir por

serviço de sua nação; os filhos de pai brasileiro e os ilegítimos de mãe brasileira,

nascidos em país estrangeiro que viessem estabelecer domicílio no império; os filhos de

pai brasileiro em serviço no exterior, embora não viessem a estabelecer domicílio no

Brasil; os portugueses residentes no Brasil por ocasião da proclamação da

independência e que aqui permaneceram; e os estrangeiros naturalizados.

A definição de cidadão brasileiro, naquele contexto escravocrata, sinalizava para

uma perspectiva não somente de exclusão social, como de eliminação do segmento

negro da população brasileira, tanto no aspecto físico quanto no que se refere, também,

3 Sobre essa temática, vide Elias, 2000. 4 Arethuza Helena Zero define ingênuos como “crianças nascidas livres de mães escravas após a ‘Lei do Ventre Livre’”. Essa afirmação se apresenta dissonante, haja vista de a Lei do Ventre Livre fora promulgada em 1871, 47 anos após a Constituição de 1824, quando esse conceito já havia sido empregado. 5 Segundo Souza: “ libertos eram os escravos alforriados, ou, usando-se a linguagem do direito romano, manumissos, e ingênuos eram os filhos dos ex-escravos”.

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ao simbólico. Embora a maioria da população fosse composta por negros6, Azevedo

(1975) argumenta sobre a dificuldade em precisar a quantidade de negros africanos

submetidos ao regime de escravidão no Brasil, em virtude da medida do governo

brasileiro em ordenar a destruição dos documentos relacionados ao regime escravocrata

em 1891, sob a alegação de “por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres

de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição

do elemento servil entraram na comunhão brasileira” (p. 12)7.

Se no que tange ao aspecto conceitual, cidadão brasileiro alcançava, entre os

negros, somente os ingênuos e os libertos, abria prerrogativas para práticas sociais e

elaboração de políticas para a nação sem a preocupação de se incluir a totalidade de sua

população, deixando excluída a sua maior parcela. Isso ficou evidente na contradição

instaurada na mesma Constituição de 1824: ao mesmo tempo em que assegurava aos

ingênuos e libertos o título de cidadão, formalizou-lhes a exclusão. Em seu artigo 94,

inciso II, impediu, formalmente, que todo o segmento populacional negro tivesse acesso

a direitos básicos como, por exemplo, o de votar e de ser votado. Os legisladores

definiram, constitucionalmente, três grupos de cidadãos que estariam impedidos de

exercer o direito de participar, mediante os pleitos eleitorais das decisões do país dentre

os quais estavam incluídos os negros. Não experienciariam, portanto, a materialização

simbólica do seu exercício de cidadania: “aqueles que não tivessem renda líquida anual

de duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego; os libertos; e os

criminosos pronunciados em querela, ou devassa”. Eliminavam-se, desse modo,

qualquer possibilidade de participação. Caso rompessem o impedimento econômico,

estariam amarados pelo racial e pelo. Embora apenas a instrução pública primária

estivesse legalmente assegurada às camadas populares, ao segmento negro da população

nem isso estava assegurado. O Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. Mais adiante, O Decreto nº 7.031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno dessa população aos bancos escolares (BRASIL, 2004, p. 7).

6 Considero nesta discussão o conceito negro como uma categoria política que abarca pretos e pardos, categorias utilizadas pelo IBGE, no que se refere à composição populacional brasileira. 7 Segundos dados do IBGE, em 1872, o ‘Recenseamento Geral do Império, primeiro censo demográfico do Brasil’, demonstrou que do contingente da população brasileira os submetidos ao regime de escravidão, na época, somavam-se apenas 15% de um universo populacional de 9.930.478 pessoas, sendo 1.510.806 ainda sob o regime de escravidão e 8.419.672 livres. Por cor, a população brasileira ficou assim classificada: brancos, 3.787.289; pretos, 1.954.452; e pardos, 4.188.737.

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Tais medidas, bem como as que as sucederam, refletiram um ideal de

metamorfosear a população nacional em todos os aspectos, físico e culturalmente, de

modo a se distanciar de suas heranças negras e indígenas. No que se refere à população

negra, componente desta discussão, não é difícil constatar que, se não completamente,

tais medida foram de eficiência comprovada no que se refere, atualmente, ao

quantitativo de negros (pretos e pardos) no contingente populacional do país. Os dados

estatísticos têm demonstrado isso ao longo dos séculos, conforme pode se observar nas

tabelas 1 e 2, mediante as quais é possível efetuar comparações no que diz respeito aos

aspectos quantitativos entre os componentes da população brasileira, por cor, no

decorrer do período decorrido entre 1872 a 2000, tendo como base os dados censitários:

Tabela 1 Evolução da população brasileira, segundo a cor - 1872/1991

Cor 1872 1890 1940 1950 1960 1980 1991

Brancos 3787289 6302198 26171778 32027661 42838639 64540467 75704927

Pretos 1954452 2097426 6035869 5692657 6116848 7046906 7335136

Pardos 4188737 5934291 8744365 13786742 20706431 46233531 62316064

Amarelos ... ... 242320 329082 482848 672251 630656

Sem declaração ... ... 41983 108255 46604 517897 534878

Total 9930478 14333915 41236315 51944397 70191370 119011052 146521661

Tabela 2

População brasileira, segundo a cor – 2000

Cor 2000

Brancos 91 298 042

Pretos 10 554 336

Pardos 65 318 092

Amarelos 761 583

Indígenas 734 127

Sem declaração 1 206 675

Total 169 872 856

Disponível em http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros/popnegra.html. Acessado em 26/08/2007.

Do mesmo modo como esse ideário brasileiro de nação produziu efeitos

significativos na composição numérica por cor da população, também exerceu uma

eficiente produção de desigualdades sociais, gerando uma gama de não escolarizados

composta em sua maioria por negros. A reforma educacional de 1827, bem como as que

Disponível em http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros/popnegra.html. Acessado em 26/08/2007.

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a sucederam, incluindo as leis de diretrizes e bases da educação nacional, vão impingir

uma perspectiva educacional que não leva em conta as desigualdades, historicamente

construídas no país, propiciando, cada vez mais, insucessos escolares da parcela

populacional menos afortunada pelas políticas nacionais, configurando-se ao segmento

negro estigmas de inaptidão intelectual e de desinteressados pela educação formal.

A educação escolar brasileira

A primeira lei sobre instrução pública no Brasil data de 1827, portanto três anos

após a promulgação da Primeira Carta Magna do País, mediante a qual já se assegurava

a todos os cidadãos o direito à instrução primária e gratuita.

No século XIX, a imprensa era palco dos debates recorrentes sobre a

escolarização ou não das classes populares, bem como das finalidades da educação

escolar destina a esses segmentos populacionais. Faria Filho (2003) anuncia que “as

propostas educativas e de instrução para as classes populares”, vistas pelas elites como

classes inferiores, estavam relacionadas às “propostas de constituição de uma nação

civilizada nos trópicos”. Revestiam-se de uma perspectiva “autoritária e excludente do

outro: os pobres, os negros, as mulheres e os povos indígenas” (p. 171). O projeto de

desenvolvimento da nação tecido naquele período se pautavam em princípios advindos

do positivismo, do darwinismo social, do evolucionismo, associados aos ideais

eugênicos e higienistas. Como as elites intelectuais brasileiras tinham como objetivo a

extinção dos pretos no Brasil e vislumbravam os mestiços como etapa intermediária

necessária no processo de branqueamento da nação, mas que também desapareceriam

em no máximo um século8, não é difícil compreender o porquê do seu extremo interesse

em relegar a população negra a enfáticos patamares de excludência. A intelectualidade

científica brasileira se incumbiu, no final do século XIX e início dos vinte, de soluções

aos problemas nacionais, tomando como referência a diversidade racial9 da nação.

Se por um lado, buscavam-se soluções aos problemas sociais que mantinham

estritamente relacionados à raça, tendo-a sob a perspectiva biológica, por outro, a elite

brasileira tinha como preocupação a construção de um ideário de nação. Para muitos

intelectuais “essa questão estava relacionada à instrução. [...] Assim, no legislativo, na

imprensa e em diversas outras instâncias sociais discutia-se a necessidade de educar e 8 Sobre a política de branqueamento, idealizada para tornar o Brasil um país branco, acabando assim com os pretos e mestiços, portanto os negros, vide Skidmore, 1976. 9 Considera-se aqui o emprego do conceito de raça não como uma categoria biológica, mas como uma construção social, que tem sido usada, a partir da percepção das características fenotípicas dos sujeitos, como critério de definição de lugares e de direitos nas interações sociais.

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instruir o povo para garantir a ordem social.” (FARIA FILHO, 2003, p. 172). Isso, no

entanto, não significava a garantia de acesso a uma educação de qualidade a todos; mas

assegurar um mínimo de instrução, sem que isso implicasse em ascensão social às

camadas populares, posto que as propostas de massificação da instrução elementar a

todas as camadas populares se enraizavam em princípios de predestinação dos

indivíduos ou grupos aos lugares de maior ou menor prestígio social. Representava, na

verdade, para muitos, oportunidade de se fazer chegar a todos, indistintamente, os

ideários de pátria, bem como a legitimação das hierarquias entre as raças; a

naturalização das diferenças fenotípicas como sinônimo de superioridade/inferioridade

no imaginário social da nação, como um eficiente instrumento de controle social.

Ao longo de um século, no entanto, não se deu conta de se efetivar no país uma

educação inclusiva e de qualidade. Vidigal e Faria Filho (2005) anunciam que,

juntamente às celebrações do “Centenário do ensino primário” (p.7), foram aprovadas,

em 1927, as reformas educacionais propostas por Francisco Campos, em Minas Gerais,

e Fernando de Azevedo, no Rio de Janeiro, que se justificavam pelo insucesso no qual

se encontrava mergulhada a educação. Ocupavam-se os debates de temas sobre o tipo de

educação que se operava no país. O analfabetismo ocupava índices alarmantes, que

atingiam cerca de 80% da população. Esses índices preocupavam deveras parte da elite

intelectual local, haja vista que via na escolarização mínima do povo uma necessidade

exigida pelos ideais desenvolvimentistas da nação.

A escola primária e os livros de leitura

No decorrer da primeira república, procurou-se expandir a escola pública

primária. A escola primária e os livros de leitura ocuparam papel importante na difusão

e legitimação dos ideais desse novo momento histórico do país. Essa expansão,

portanto, originou a criação de demandas para a produção de livro didático10. Duas

temáticas se faziam presentes no cotidiano escolar e nos livros didáticos, denominados,

então de livros de leitura: 1) as belezas naturais do Brasil e 2) o povo brasileiro. Sobre a

população, a questão racial foi enfaticamente tratada. As imagens de negros e negras

foram focalizadas em perspectivas intensamente negativas, dando sustentação às

práticas sociais discriminatórias que na atualidade ainda persistem na sociedade

10 Cf. Razzini, 2005.

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brasileira. Foi um intenso processo de fabricação11 de uma sociedade que rejeita sua

ancestralidade negra em favor do desenvolvimento de um ideal branco12 .

Dentre os livros publicados naquele período, Muller (1999) analisa os adotados

em escolas de Mato Grosso, Minas gerais e Distrito Federal. No que se refere à natureza

brasileira, destaca Por que ufano meu país, de autoria do Conde de Afonso Celso, o

qual classifica como o mais popular dos livros de leitura. Sua primeira edição é de 1901 e teve ampla difusão nas escolas brasileiras até o início da década de 30. O texto é quase todo referente às bondades do clima e da nossa geografia. Quando se refere à população do país, privilegia os feitos dos colonizadores e bandeirantes [...] (p. 72).

Um outro livro apontado por Muller e Minha terra e minha gente de Afrânio

Peixoto, médico higienista. Esse livro foi editado pela primeira vez em 1914. Segundo a

autora, nele Peixoto se demonstra muito “rigoroso e pessimista com a composição

étnica da população, principalmente com nossa mestiçagem” (p. 73). Evidencia seu

desprezo pelos negros e mulatos e sua descrença no povo devido às suas características

mestiças. No entanto “Acredita na força da educação para conformar as mentalidades,

ainda que estivesse convencido da ‘inferioridade’ dos brasileiros” (p. 74), mas confia no

branqueamento como solução para os problemas do país.

Estudos recentemente realizados (COSTA, 2007) dão conta de que a escola

continua servindo de mediação aos ideais racistas que imperaram no pensamento social

brasileiro entre as últimas décadas do século XIX e grande parte do século XX, tanto

mediante práticas docentes que desconsideram os efeitos da discriminação racial na

sociedade brasileira, quanto por intermédio dos materiais e conteúdos didáticos

escolhidos para subsidiar as práticas educativas escolares. Ainda persistem, nos livros

didáticos, enfoques depreciativos da população negra semelhante aos apontados por

Muller, embora em formas de apresentação menos evidentes.

Novos horizontes e perspectivas

As lutas empreendidas pelo Movimento Negro têm sido das mais complexas,

dentre as quais as de reconstruir o imaginário social sobre a importância da população

negra que também constitui este país e por ele é, ao mesmo tempo, constituída. Entre as

conseqüências mais recentes desse movimento, podem ser apontadas o reconhecimento

oficial da existência de práticas racistas no Brasil e da equiparação dessas práticas a

11 Tomo esse termo de empréstimo do título do livro de Peter Burke, A fabricação do Rei, 1994, no qual o autor analisa o processo de criação da imagem pública de Luís XIV no decorrer do seu reinado, e que o transformou no Rei Sol. 12 Sobre os efeitos da violência social racista sobre o sujeito negro cf. Costa, 1983.

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crimes puníveis pela lei13 e, mais recentemente, a alteração das Leis de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, mediante a Lei nº. 10.639/2003, “[...] para incluir no

currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura

Afro-Brasileira" e no calendário escolar o 20 de Novembro como “Dia Nacional da

Consciência Negra”, dando como conseqüência mais imediata, a instituição das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A Resolução nº

001/CNE/CP/2004, que institui as diretrizes, regulamentam a alteração mencionada,

visando a assegurar o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, mediante

a garantia do direito de acesso às múltiplas fontes de histórias e culturas de que o Brasil

se compõe. O Art. 3º, Parágrafo 3º dessa resolução, em consonância com o disposto na

Lei objeto de sua regulamentação, assegura que: O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil.

Embora a expressão em especial retire a exclusividade dessas disciplinas sobre a

matéria em pauta, é inegável que é sobre elas que recai a responsabilidade pela

materialização, na práxis escolar, do que, a partir da alteração, passa a integrar a LDB nº

9394/1996. Pode-se afirmar que a indicação dessas disciplinas constitui uma restrição

lamentável, pois, constituindo o racismo um problema nacional, o seu combate deve

constituir-se uma política educativa e, como tal, integrar todo o currículo educacional

em todas as esferas de ensino.

A promulgação da Constituição de 1988 trouxe novas perspectivas, embora se

saiba que, na história do Brasil, marcadamente no que se refere à primeira constituição,

pode haver uma significativa distância entre a forma, as políticas e as práticas sociais.

Apontou para possibilidades de novos rumos nas formas como se configuram as

relações sócio-raciais no Brasil.

No que se refere especificamente à educação, os legisladores da Lei nº 9394/96

que instituiu as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional parecem não terem

levado em conta o fato de, mediante a Constituição de 1988, o Brasil reconhecer-se um

país racista, sinalizando para a necessidade de se lidar com as problemáticas

relacionadas à discriminação racial como um problema a ser enfrentado pela nação. Em

nenhum momento essa questão foi diretamente focalizada, exigindo mais quase uma

13 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

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década de luta do Movimento Negro para, em 2003, ter-se aprovada no país a Lei nº

10.639/03.

A LDB vigente, ao incorporar essas modificações, aponta para novos ângulos na

produção de conhecimentos ao que tange à Educação no Brasil, numa perspectiva em

que o negro também possa figurar como agente na história, contribuindo para a

desconstrução dos estigmas que lhe foram impostos.

Embora por muito tempo foram atribuídos aos negro supostos desinteresse e

inaptidão pela educação escolar, a história social da educação brasileira vem oferecendo

elementos que desqualificam esses mitos. Um exemplo de estudos nessa perspectiva são

os realizados por Silva (2000). Dão conta de que, em meados do século XIX, um

professor negro, Pretextato dos Passos Silva, reivindicava, às autoridades competentes,

reconhecimento de uma escola para meninos pretos, que fora criada por reivindicação

de famílias negras desejosas de um ambiente onde seus filhos pudessem estudar sem

serem coagidos pelo racismo corrente nas escolas da corte.

Isso demonstra quão infundáveis são os estigmas impingidos aos negros e às

negras no Brasil. Tais estigmas têm sido, favorecidos pelo fato de os currículos

escolares não contemplarem a história e a cultura do povo negro. Os conteúdos, quando

muito, fazem rápidas alusões sobre o tema, sem aprofundamento ou problematizações

consistentes. As problemáticas relacionadas à educação de negros e negras no Brasil

têm, quando muito, sido timidamente abordadas. Geralmente, tais currículos têm

ignorado ou diluído as questões relacionadas à luta da população negra por acesso e

permanência no sistema educativo de modo a obter educação de qualidade, justa a todos

os brasileiros.

Embora haja estudos que ofereçam elementos para melhor compreensão de

como se tem construído a exclusão da população negra do sistema de educação formal,

e de como, apesar dos entraves essa população tem insistido na busca pela educação

escolar, esses estudos não vêm sendo contemplados em cursos de formação de

professores em âmbito de graduação ou de pós graduação. Também aí, as questões

relacionadas à discriminação racial continuam sendo vistas como um problema de

negros, não como um problema nacional e que, como tal, compete a busca de soluções

por todos os segmentos sociais, especialmente às instituições educativas14 que tanto

contribuiram para a construção da realidade de discriminação corrente no país. No

14 Sobre o papel das instituições na consolidação dos ideários racistas no imaginário social brasileiro, cf. SCHWARCZ, 1993.

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entanto, podem contribuir, eficientemente, para a sua desconstrução. Para tanto, faz-se

necessário compreender que os efeitos da racionalidade científica sobre a composição

da humanidade em raças diversas, desenvolvida, mais enfaticamente no século XIX,

ainda tem encontrado lugar nas práticas cotidianas, tendo a educação seu maior palco. A

atualidade, no entanto, exige um “processo de descolonização epistêmica e de

socialização do conhecimento” (MIGNOLO, 2004, p. 668) e nesse contexto, do

abandono tanto de um tipo de educação que, historicamente, vem se demonstrando

excludente; quanto de um modo de produção de conhecimento que não considera ambos

os lados de uma mesma “moeda”, sem levar em conta os seres humanos negros no que

se refere a sua história, suas produções culturais, enfim, seu ser e estar no mundo.

Referências bibliográficas AZEVEDO, Thales de. Democracia racial: ideologia e realidade. Petripolis: Vozes, 1975. BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm. Acessado em 24/08/2007. BRASIL. População negra no Brasil. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros/popnegra.html. Acessado em 26/08/2007. BRASIL. A decadência da escravidão. Disponível em: http://www1.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/abolicao/decadencia.html. Acessado em 24/08/2007. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/Sepir, 2004. BRASIL. Lei nº 10.639/2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.639.htm. Acessado em 27/08/2007. COSTA. Jurandir Freire. Prefácio - Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983. FARIA FILHO. Luciano Mendes de. Educação do povo e autotitarismo das elites: instrução pública e cultura política no século XIX. In: MAGALDI, Ana Maria; ALVES, Cláudia; GONDRA, José Gonçalves (Orgs.). Educação no Brasil: história, cultura e política. Bragança Paulista: EDUSF, 2003, p. 171–182. MIGNOLO, Walter D. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004, p. 667-709. RAZZINI, Márcia de Paula G. Livros e leitura na escola brasileira do século XX. In: STEPHANOU, Maria e bastos; CAMARA, Maria Helena (orgs.). História e memória da educação no Brasil. Vol. III – século XX. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 113. SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças:cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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