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ADEMILSON EDSON DOS SANTOS1
A POPULAÇÃO NEGRA E O PROCESSO SOCIAL DA CRIMINALIZAÇÃO
Artigo Científico apresentado ao curso de Pós Graduação em Gerenciamento Integrado de Segurança Pública, Universidade Tuiuti do Paraná. Orientadora: Prof. Débora Veneral.
CURITIBA 2012
1 Ademilson Edson dos Santos, Bacharel em Direito, Advogado, Especialista em Direito e Processo Penal, membro do Conselho Municipal de Política Étnico-Racial, Fundador e Presidente do Instituto 21 de Março – Consciência Negra e Direitos Humanos
RESUMO
O Direto Penal foi criado como meio de controle de atos infracionais, e que
impõe limites individuais atingindo a uma coletividade, e não apenas uma parcela da
população da sociedade brasileira. Porém, não é o que observamos a população
negra que ao longo da história social brasileira foi e é estereotipada e estigmatizada
pela sociedade e principalmente pelos órgãos de segurança pública, e pelo Poder
Judiciário.
Muito se diz sobre a prioridade em diminuir a miséria e as diferenças
sociais no Brasil, no entanto a miséria e a marginalização da maior parte da
população são fundamentais para o projeto de poder das elites racistas do país.
A superação da pobreza depende, fundamentalmente, do rompimento com
os interesses do grande capital, no Brasil representado por latifundiários e
empresários do agronegócio; por banqueiros, especuladores financeiros e empresas
multinacionais de diversas áreas. Somente uma mudança estrutural nas relações
políticas, sociais, raciais e econômicas será capaz de eliminar as desigualdades em
nosso país. Há sim uma histórica e permanente divisão de classes composta por um
lado pelos personagens já citados acima, por outro pela população negra
historicamente marginalizada, excluída da participação, em todos os níveis. A
população negra do Brasil é a segunda maior do mundo ficando somente atrás
apenas da Nigéria, que mesmo sendo a maior população do país, é
conseqüentemente a mais pobre. Não bastassem as mazelas sociais que afligem
historicamente a população negra por meio do subemprego, do desemprego, da
falta de moradia, dos serviços precários de saúde e educação, da falta de
oportunidades e do desumano e permanente preconceito e discriminação racial em
todo e qualquer ambiente social, percebe-se a vigência de um projeto de extermínio
da população negra, por parte do Estado brasileiro. O Estado e suas policias,
mantém uma atuação coercitiva, preconceituosa e violenta dirigida a população
negra. Desrespeito, agressões, espancamentos, torturas e assassinatos são
práticas comuns destas instituições. Cada vez mais explícitos, os casos de violência
policial furam o bloqueio da grande mídia, causando comoção e provocando a
atenção da opinião pública a cerca desta realidade. O genocídio negro já é admitido
e visível por todos, por meio da imprensa nacional, com as constantes chacinas nas
favelas, comunidades e com o cruzamento de dados com o Sistema Único de
Saúde. Pesquisas e estudos demonstram no campo da formalidade o que
vivenciamos no dia a dia de nossas comunidades. Presenciamos um momento de
ofensiva de opressões por parte do Estado Brasileiro que por sua vez, enxerga na
população empobrecida, em especial na juventude negra, seu principal inimigo.
Palavra-chave: Racismo, Preconceito, Discriminações, Estigmas e Estereótipos.
ABSTRACT
The Criminal Direct was created as a means to control infractions and imposing individual
limits reaching the community, not just a portion of the population of Brazilian society. But it is not
what we observe that the black population along the Brazilian social history was and is stereotyped
and stigmatized by society and especially by public safety agencies, and the judiciary.
Much is said about the priority to reduce poverty and social differences in Brazil, however the poverty
and marginalization of the majority of the population are fundamental to the design of power elites
racist country.
Overcoming poverty depends crucially on the break with the interests of big business in Brazil
represented by landowners and agribusiness entrepreneurs, bankers, financial speculators and
multinational companies in various fields. Only a structural change in the political, social, racial and
economic will be able to eliminate inequalities in our country. There is rather a historical and
permanent division of classes composed of one side by the characters already mentioned above, the
other by black people historically marginalized, excluded from participation in all levels. The black
population of Brazil is becoming the second largest, behind only Nigeria, but even with the largest
population, is therefore the poorest. Not enough social ills afflicting the historically black population
through underemployment, unemployment, homelessness, poor health services and education, lack
of opportunity and the inhuman and permanent racial prejudice and discrimination in any environment
social, realizes the lifetime of a project to exterminate the Negro population, by the Brazilian
government. The state and its police, maintains a coercive action, prejudiced and violent targeting
blacks. Disrespect, abuse, beatings, torture and murder are common practices of these institutions.
Increasingly explicit cases of police violence bore the mainstream media blockade, causing
commotion and causing the public's attention about this reality. The black genocide is already visible
and accepted by all, through the national press, with the constant killings in the slums, communities
and the cross-checking with the National Health System Research and studies in the field show of
formality we experience in everyday life of our communities. Witnessed a moment of offensive
oppression by the Brazilian government which in turn, sees the impoverished population, in particular
black youth, his main enemy.
Keyword: Racism, Prejudice, Discrimination, stigma and stereotypes.
INTRODUÇÃO
O escritor Nina Rodrigues, datado do início do século XX, analisa
basicamente a questão da responsabilidade penal com relação às raças branca,
negra e indígena. Questiona se essas duas últimas têm discernimento e livre arbítrio
para poderem ser julgadas no mesmo nível da branca.
Nina Rodrigues defende uma hierarquização entre as raças. A superior
(branca) teria a função de civilizar às outras. Porém ela encontra um problema; os
indígenas não aceitam a “civilidade” oferecida pelos colonizadores, através da
catequese. A solução para tal caso seria a de procurar outra raça para civilizar já
que, a dos índios, já havia sido praticamente extinta, logo, a única civilizável foi à
negra.
Como o autor assume uma posição apoiando a “raça branca” como mais
elevada, pode-se concluir que ele defende uma desigualdade entre as raças. O
autor tem papel importante na temática, por ter sido um contemporâneo de Cesare
Lombroso, e das teorias eugênicas pioneiro no estudo dos africanos no Brasil. Ele
foi o primeiro a estudar o negro como objeto de Ciência. Ratificava essa
desigualdade da raça negra com relação às outras através de comprovações
médicas, como por exemplo, medindo o tamanho do crânio do negro e constatando
que esse era menor do que o das outras progênies.
Nina Rodrigues, também observa a existência da mestiçagem. A definição de
“mestiço” seria através da posição social de tal indivíduo e pouco pelo seu fenótipo.
Além disso, dentre os mestiços existiria outra hierarquização baseada na
“quantidade de genes herdados do branco.”, explicitando até nisso a superioridade
deste. Propõe ainda, “um Código Criminal diferente para negros, mestiços e
brancos. Pode-se perceber com tal pensamento que Nina Rodrigues não é defensor
da miscigenação, pois acredita que esta seria sinônimo de degeneração. Apesar
disso, é importante informar que tal pensamento era novo no Brasil, mas já
ultrapassado na Europa.
Nina Rodrigues conclui seu texto afirmando, mais uma vez, a preponderância
do branco com relação às outras raças. Ele diz que os negros e índios,
irresponsáveis em estado selvagem, tem direitos incontestáveis a uma
responsabilidade superior, a branca; ou seja, confirma o fato de que os negros e os
indígenas não possuem consciência de seus direitos e deveres e que, devido a tal,
deveriam ser julgados de formas diferentes e civilizados pela raça branca.
A norma penal, através de seu caráter universal, é criada e positivada, com o
intuito de alcançar qualquer pessoa, seja ela rica, pobre, branca ou negra, porém,
percebe-se que, na realidade, os menos favorecidos estão sempre sobre
representados nas estatísticas do sistema penal.
O período, em que se vive está caracterizado pelo constante processo de
criminalização dos indivíduos, atingindo a classe e a raça mais vulnerável da
sociedade: a classe baixa e negra, diante da percepção de que os estereótipos em
primeira análise parecem orientar a atuação das agências do sistema penal,
objetiva-se, com o presente artigo científico, examinar de que maneira se
estabelece a seleção dos indivíduos estigmatizados pelo etiquetamento do sistema
penal, em função da cor da pele, assim como, também examinar,
conseqüentemente, o processo de criminalização da sociedade e do sistema penal
em relação ao negro.
Dessa forma, partindo da teoria do etiquetamento, torna-se necessário
estudar os processos de criminalização, de forma a compreender os motivos pelos
quais determinados indivíduos são mais perseguidos pelo sistema penal do que
outros. Os processos de criminalização devem ser estudados com seriedade, para
que se descubram as variáveis que orientam a seletividade do sistema. Nessa
perspectiva, procura-se esclarecer e examinar se a cor da pele é uma variável
importante no processo de criminalização, tendo em vista principalmente o
estereótipo de criminoso difundido pelo senso comum.
Este estudo é relevante para o Direito, porque é regido por uma normatização
de regras de abrangência universal, visando sempre a utilizar e aplicar a lei penal
com seu caráter isonômico frente a qualquer cidadão.
O Artigo Científico encontra-se relacionada ao estudo dos referidos princípios
para a investigação de qualquer problematizarão no âmbito do direito, conforme o
tema a ser examinado, inevitável passa a ser a pesquisa aprofundada em relação à
dignidade humana e à igualdade de tratamento entre todos os indivíduos, uma vez
que esses princípios relacionam-se diretamente ao que diz respeito à seletividade
racista do sistema penal e da sociedade, como também ao estudo de todo o
processo preconceituoso e discriminatório em relação ao negro, durante o período
escravista até os dias de hoje no Brasil. Já a teoria do etiquetamento e a
Criminologia Crítica relacionam-se à estrutura deste Artigo Científico no sentido de
se ter uma base teórica quanto às rotulações, estereótipos e estigmatizações do
indivíduo negro, tratado muitas vezes como criminoso por causa do preconceito
racial.
O método de abordagem utilizado neste Artigo Científico foi o dedutivo. O
referido método permite que se possa examinar o objeto para se chegar a uma
conclusão, ao passo que esta deverá resultar sempre da observação de fenômenos
que confirmem uma determinada resposta para tal problema. Ressalta-se que se
pretende fazer um estudo partindo-se do geral, ou seja, da teoria do etiquetamento,
embasada na teoria do labelling approach e da Criminologia Crítica, com o intuito de
examinar, especificamente, a seletividade do sistema penal brasileiro em relação à
estrutura social racista. No que concerne ao método de procedimento utilizado,
destaca-se o método, ainda que de maneira mais sutil.
A partir da teoria do etiquetamento, embasada no paradigma da reação social
ou da conduta desviada do labeling approach e da Criminologia Crítica, estuda-se a
atuação seletiva e estigmatizante do sistema penal e da sociedade no que diz
respeito aos processos de criminalização do indivíduo. Dessa maneira, investiga-se
de que forma se estabelece a seleção dos indivíduos estigmatizados pelo
etiquetamento e pela rotulação do sistema penal, em função de o cidadão ser negro.
Ressalta-se que este Artigo Científico tem como intuito relacionar a estrutura
social racista à seletividade do sistema penal brasileiro, analisando de que forma se
estabelece esta seleção em relação aos indivíduos estigmatizados, com essa
abordagem, o presente estudo insere-se na linha de pesquisa, do Curso de Pós
Graduação em Gerenciamento de Segurança Pública, já que tem como objetivo
demonstrar a seletividade da população negra, diante do sistema penal brasileiro.
O ideal de igualdade, perante a lei, propalado pelo direito penal liberal,
costuma cegar os juristas, diante da realidade operacional do sistema penal, que
contraria totalmente essa percepção. Isso porque se sabe que nem todos os crimes
cometidos são punidos, nem todos os autores de crimes são processados e
condenados. Diante dessa constatação, as décadas de sessenta e setenta do
século passado foram ricas em estudo acerca da seletividade do sistema penal.
A teoria do etiquetamento, embasada no paradigma da reação social que
sustenta a teoria de labelling approach são suas críticas sobre as condições sociais
do criminoso, seu etiquetamento social, o preconceito, o medo e os mecanismos de
seleção que norteiam o sistema penal (DUARTE, 2006 a), ou da conduta desviada
do labeling approach, que data da década de 1960, fez com que o significado da
seletividade do sistema penal esteja relacionado com o processo de estigmatização
e rotulação do indivíduo como criminoso.
Essa teoria foi base para a posterior análise dos teóricos da Criminologia
Crítica, que relacionaram a idéia da seletividade e do papel do controle social na
construção do delito à estrutura de classe. Nesse paradigma, a posição central dos
teóricos se estabelece no sentido de que o delinqüente não irá ser definido pela sua
conduta, de como se portou ou pelas suas fragilidades psíquicas. Mas, que será
rotulado como criminoso, pelo aparato das normas condicionadas a atingirem o seu
alvo específico, qual seja, o cidadão fragilizado pela exclusão social, assim como o
indivíduo de cor negra, pois este é visto, em geral, como raça inferiorizada e
discriminada. Além da normatização da legislação penal criada pelo poder
Legislativo e pelo poder Executivo, com o intuito de atribuir o status de criminoso ao
indivíduo mais vulnerável, encontram-se também, nesse processo de seleção, a
polícia, o Judiciário, o Ministério Público e a sociedade. Assim, “a estigmatização é o
resultado negativo atribuído pelos grupos representantes do poder que, ao se
aperceberem de um perigo, fazem diferenças entre delinqüente e não-delinqüente”
(NASCIMENTO, p. 70, 2003).
Conforme Fagundes e Rossot: O labeling approach nasce, com a virtude de
mudança, de superação da vertente criminológica etiológica, pois trata do crime
como processo de criminalização e não uma realidade ontológica pré-existente (um
objeto a ser estudado). O crime então passa a ser o meio de rotulação pelo qual o
Estado, instituição social, separa o cidadão do delinqüente. Todavia, em sua face
primeira, o etiquetamento se refere apenas a nível individual, ao comportamento
criminoso rotulado pelo Estado, ou o que é derivado da primeira criminalização. O
labeling approach assume relevante importância apenas quando incorporado à
Criminologia Radical, visto que assume sentido sociopolítico. Portanto, o objeto de
estudo passa a ser os mecanismos de distribuição social da criminalidade como
bem negativo, e não mais a relação entre o individuo e o Estado.
Alguns mecanismos de seleção estão na base do bem social negativo a ser
distribuído (em outras palavras, da criminalidade), mas de especial atenção,
ressalta-se a criminalização afeta ao poder econômico-político, em que a ausência
desse poder é limiar entre criminalizados e os não criminalizados (BARATTA 2007,
p. 9).
Ao dizer que a Criminologia crítica não trata o crime como possuidor de
qualidade ontológica, expõe-se que o estudo sobre o criminoso, como forma de
desvio para a criminalidade, não está ligado aos seus comportamentos psíquicos e
aos comportamentos naturais como ser humano, mas, no estudo dessa
Criminologia, procura-se demonstrar que existe “uma qualidade atribuída a
determinados sujeitos por meio de mecanismos oficiais e não-oficiais de definição e
seleção” (ANDRADE, 1997, p. 201).
Diante disso, a Criminologia Crítica estuda o processo da criminalização do
indivíduo sob dois enfoques distintos. Primeiro, estabelece-se a formação da
criminalização primária e, por conseguinte, a criminalização secundária. Está-se
diante da criminalização primária quando esta é dirigida e focada às condutas
penalmente tipificadas pela normatização da legislação penal, através dos órgãos
do Legislativo e do Executivo. Ocorre, nesse sentido, uma pré-seleção dos
indivíduos criminalizados através do conteúdo da lei penal. No que concerne à
criminalização secundária, esta é atribuída à aplicação da norma penal frente aos
órgãos de Segurança Pública, do Ministério Público, do Judiciário e dos
Departamento Penitenciários e da sociedade. Através do controle social informal, ou
seja, da sociedade desigual e elitista, constata-se que os estigmas e as rotulações
de criminosos e marginais surgem como fatores determinantes dessa
criminalização.
Assim: Ao afirmar que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas
social e definitorial e acentuar o papel constitutivo do controle social na sua
construção seletiva, o labelling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação
das “causas” do crime e, pois, da pessoa do autor e seu meio e mesmo do fato-
crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal
(ANDRADE, 2003, p. 42).
Verifica-se, então, que os atores principais desta teoria são a reação social e
o sistema penal, sendo que estes irão produzir a criminalização, através de seu
processo de etiquetamento. Ou seja, o comportamento desviante será marcado e
rotulado como resultado de repulsa e exclusão a determinados indivíduos
propensos a esse tratamento. Estes podem ser definidos como os moradores de
subúrbios, comunidades (antigas favelas), os sem escolaridade, os negros, pardos e
mulatos, enfim, todos aqueles cidadãos que não correspondem aos padrões
econômicos, sociais, estéticos e culturais de uma determinada sociedade. Diante
disso, “trata-se, ainda, a ‘criminalidade’, não apenas de uma realidade social
construída, mas construída de forma altamente seletiva e desigual pelo controle
social” (ANDRADE, 1997, p. 207).
Dessa forma, se fazem necessários, mais uma vez, os ensinamentos de
Andrade: Segundo a definição sociológica, a criminalidade, como em geral o desvio,
é um status social que caracteriza ao indivíduo somente quando lhe é adjudicada
com êxito uma etiqueta de desviante ou criminoso pelas instâncias que detêm o
poder de definição. As possibilidades de resultar etiquetamento, com as graves
conseqüências que isto implica, se encontram desigualmente distribuídas. Isto
implica que o princípio da igualdade, ou seja, a base mesma da ideologia do Direito
Penal seja posta em séria dúvida, eis que a minoria criminal a que se refere à
definição sociológica aparece, na perspectiva do labelling approach, como o
resultado de um processo altamente seletivo e desigual dentro da população total;
enquanto o comportamento efetivo dos indivíduos não é, por si mesmo, condição
suficiente deste processo (1997, p. 201-202).
Nesse sentido, tem-se, então, que a Criminologia crítica enfoca a realidade
comportamental do desvio e traz a realidade funcional ou disfuncional com as
estruturas sociais, junto com o desenvolvimento das relações de produção e de
distribuição. O que separa a nova da velha criminologia é a superação do
paradigma etiológico que, no caso, era o paradigma fundamental de uma ciência
entendida como teoria das causas da criminalidade. A superação deste paradigma
se insere, também, na superação de suas implicações ideológicas, como no que se
refere à concepção do desvio e da criminalidade como realidade ontológica
preexistente à reação social (BARATTA, p, 201/201, 1997).
O que se enfatiza na Criminologia Crítica é que o criminoso não é aquele que
possui características patológicas e comportamentais para cometer e exercer um
determinado crime, como era o foco do estudo da Criminologia Positivista. Mas, sim,
que ele será fruto da rotulagem da sociedade e do sistema penal, contribuindo para
esse processo a sua classe social e a sua cor. Assim, o que ocorre é que “tal
situação acarreta o domínio dos interesses de ordem econômica, ideológica, cultural
e política dos ricos sobre as classes pobres” (OLIVEIRA, 1992, p. 46).
Nesse sentido, são de suma importância os ensinamentos de Baratta: O
direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar
do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos
indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da
acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização,
principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas (1997, p.
165).
Evidencia-se que a classe dominante, a elite, irá estigmatizar os extratos
inferiores, fazendo com que estes sejam encaixados conforme a norma penal
positivada e direcionada para os indivíduos mais vulneráveis e excluídos da
sociedade. Por isso, dizer que todo o controle social, seja ele advindo do poder
estatal, do judiciário, da polícia ou simplesmente da sociedade, será revestido de
características discriminatórias. Com isso, “pode-se dizer que, de certo modo e em
determinados casos, a Criminologia Dialética ou Crítica apresenta o criminoso como
um protagonista do protesto social ao sistema dos valores dominantes”
(FERNANDES, 2002, p. 559).
Conforme Fernandes: Desse modo, à luz da Criminologia Dialética ou Crítica,
o Direito Penal seria um dos instrumentos de controle social, selecionando e
diferenciando facciosamente os bens e interesses jurídicos a serem tutelados por
via da incriminação das condutas desviantes que os ataquem ou coloquem em
perigo. Assim, o processo de criminalização seria escancaradamente elitista,
incriminando preferencialmente condutas típicas das classes sociais baixas e
privilegiando ou contemporizando, por outro lado, os comportamentos das classes
mais elevadas.
O compromisso primário da Criminologia Dialética ou Crítica é com a abolição
das diferenças sociais em termos de riqueza e poder, repisando seus cultores, e
todos aqueles que comungam de suas teses, que a solução para o problema do
crime depende da eliminação da exploração econômica e da opressão política sobre
as classes menos aquinhoadas (2002, p. 562).
Observa-se que existe, no Brasil, um sistema classificatório, elitista e seletivo
no âmbito social, político e econômico, ou seja, os mais privilegiados
economicamente e socialmente encontram-se no topo da pirâmide, enquanto os
menos afortunados encontram-se na base, inseridos na área da exclusão, do
preconceito, das limitações e das diferenciações. Nessa perspectiva, Baratta expõe
que “a criminalidade é um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a
hierarquia dos interesses fixados no sistema socioeconômico e conforme a
desigualdade social entre os indivíduos” (1997, pg.161).
Nesse âmbito, tem-se que, para os que se encontram no topo da pirâmide,
torna-se mais fácil e cômodo o controle de quem deve ou não ser tratado de forma
desigual e estereotipado de criminoso e marginal. Para a classe inferiorizada social
e economicamente, o que lhe resta é apenas lutar por um ideal de justiça e
igualdade de tratamento, conforme preceitua a Constituição Federal da República,
de 1988, o que, na realidade, não passa de completa ilusão. Ressalta-se que “as
contradições das classes subordinam o controle do crime às relações dessas
classes na produção econômica, determinando o relacionamento da criminologia
com a política e destas com a própria economia” (FERNANDES, 2002, p. 563).
Conforme ensina Santos: A Criminologia crítica se desenvolve por oposição à
Criminologia Tradicional, a ciência etiológica da criminalidade, estudada como
realidade ontológica e explicada pelo método positivista de causas biológicas,
psicológicas e ambientais. Ao contrário, a Criminologia Crítica é construída pela
mudança do objeto de estudo e do método de estudo do objeto: o objeto é
deslocado da criminalidade, como dado ontológico, para a criminalização, como
realidade construída, mostrando o crime como qualidade atribuída a
comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal, que constitui a
criminalidade por processos seletivos fundados em estereótipos, preconceitos e
outras idiossincrasias pessoais, desencadeados por indicadores sociais negativos
de marginalização, desemprego, pobreza, moradia em favelas etc.; o estudo do
objeto não emprega o método etiológico das determinações causais de objetos
naturais empregado pela Criminologia Tradicional, mas um duplo método adaptado
à natureza de objetos sociais: o método integracionista de construção social do
crime e da criminalidade, responsável pela mudança de foco do indivíduo para o
sistema de justiça criminal, e o método dialético que insere a construção social do
crime e da criminalidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado,
que define as instituições básicas das sociedades capitalistas (2005 p. 01-02).
No estudo da Criminologia Crítica, prepondera-se a desigualdade econômica
das classes, a estrutura racista, patriarcal e hierárquica da sociedade. Sendo assim,
designam-se atributos que pertencem à seleção do sistema penal em relação aos
indivíduos criminalizados. Em conseqüência do processo de criminalização do
indivíduo, em razão do preconceito racial, surge constantemente a ligação do
indivíduo de cor negra inserido no âmbito dos menos favorecidos e dos excluídos,
ou seja, o cidadão sem ascensão social e sem poder econômico. Além de o
indivíduo negro e pobre ser discriminado e rotulado muitas vezes de marginal pela
sociedade e pelo sistema penal, encontra-se também o cidadão negro bem
estruturado socialmente e economicamente, predominando, nesse sentido, a
discriminação racial.
Constata-se, então, que os fatores que contribuíram para o estudo da
Criminologia Crítica encontram-se intrinsecamente ligados ao controle pelas classes
dominantes, na sociedade capitalista em que se encontram. É por isso que,
partindo-se dessas afirmações, tem-se que a função principal do estudo da
criminologia é “buscar a abolição das desigualdades sociais em riqueza e poder,
afirmando que a solução para o problema do crime depende da eliminação da
exploração econômica e da opressão política de classe” (SHECAIRA, 2004, p.
328).
Portanto, o estudo do labelling, através do paradigma da reação social, e o
estudo da Criminologia Crítica estão estreitamente interligados com o interesse
social da classe dominante. Também estão relacionados aos interesses de uma
ordem política, pois estes criam mecanismos de seleção da criminalidade por
fazerem parte do poder estatal, com o intuito de proteger a classe mais favorável e
bem-sucedida da sociedade. Por outro lado, passam a estabelecer um status de
delinqüentes aqueles indivíduos bem distantes da hierarquia estética, econômica e
social elevada. Por isso, a criminalidade é um atributo que tende a atingir um grupo
específico da sociedade, como os indivíduos excluídos e vulneráveis, atribuindo-
lhes o estereótipo de delinqüente, uma vez que a criminalização diante do controle
penal e da sociedade passa a ser caracterizada por uma desigual distribuição de
indivíduos criminalizados.
A questão racial na construção seletiva e estigmatizante do sistema penal:
Diante das análises a respeito do ideal constitucional da igualdade e do respeito à
dignidade da pessoa humana podemos demonstrar contraposição do programa
normativo com a realidade da operacionalidade do sistema penal, a partir da teoria
do etiquetamento e da Criminologia Crítica. Agora, relacionam-se os resultados da
criminologia crítica à realidade brasileira, em especial, no que tange ao racismo e
suas várias conseqüências.
Os resultados dos estudos científicos que têm aquelas teorias como base
chegam à idéia de que o sistema penal tem como função real a reprodução das
desigualdades existentes em cada sociedade. No caso de sociedades que vivem
uma situação de racismo ou xenofobia, prioritariamente, as pessoas que são objeto
do preconceito serão recrutadas pelo sistema penal. Por isso, como o enfoque
desse trabalho é a relação entre o sistema penal e a estrutura racista da sociedade
brasileira, torna-se essencial o seu estudo.
A seguir, parte-se de um estudo histórico que compreende desde o período
escravista até os dias de hoje. E, por fim, analisa-se a construção seletiva e a
reprodução desigual do sistema penal em face do preconceito racial. Conforme
verificação anterior estabelece-se que foi através de toda a estrutura rígida,
hierárquica, patriarcal e elitista da sociedade colonial escravista que o indivíduo
negro passou a ser estigmatizado de diferente e inferior em relação ao restante da
população. Ao excluir, humilhar e tornar o negro um indivíduo inferiorizado, a
população e, consequentemente o sistema criminal denota-se com resquícios da
herança escravocrata, com preconceitos e desigualdades.
Por isso, é impossível compreender o quadro geral dos direitos humanos no
Brasil sem precisar historicamente a articulação do direito penal público a um direito
penal privado, a partir do regime escravocrata, na implantação de um sistema penal
genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de
homicídio, mutilação e tortura da população afro-brasileira.
É neste quadro que se estabelece a concepção de cidadania negativa,
enunciada por Nilo Batista, que se restringe ao conhecimento e exercício dos limites
formais à intervenção coercitiva do Estado. Esses setores vulneráveis, ontem
escravos, hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo avesso,
na “trincheira auto-defensiva” da opressão dos organismos do sistema penal (apud,
MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 102).
A dominação exercida pelo Estado, pela classe senhorial e pelo controle
penal da época colonial, através do uso da força física e da aniquilação dos
escravos negros, justifica a proliferação de indivíduos negros estigmatizados e
rotulados de criminosos. Essa massa de negros etiquetados como raça inferior a
partir do século XV, e com respaldo “científico” a partir do século XIX, teve início
com o processo de colonização pelos europeus. Até hoje, os negros foram e são
caracterizados como clientela assídua do sistema penal brasileiro. Isso ocorria, e,
ainda ocorre em face de o poder estatal, através das agências policiais e judiciárias,
atenderem à classe social dominante, pois o negro é considerado cidadão inferior e
diferente, por causa da estética, religião, cultos e de sua cultura, sendo assim,
tratados de forma oposta e repulsiva pelos indivíduos brancos.
Automaticamente, nota-se que isso contraria totalmente o preceito da Carta
Magna que, em seu art. 5°, caput,da Constituição Federal da República, de 1988,
normatiza o princípio da igualdade de direitos sem distinções de qualquer natureza.
Com relação aos padrões de detenção, as pesquisas de 1810 a 1821
demonstraram o critério da cor. São pouquíssimos os brancos presos. No Rio de
Janeiro da época (quase metade da população era negra), 80% dos julgados eram
escravos, 95% nascidos na África, 19% ex-escravos e somente 1% livres. No
sistema penal dirigido à escravidão, os principais motivos para a prisão eram fuga
de escravos ou prática de capoeira.
Na obra de Ribeiro (1995), é apresentado, no capítulo Cor e Criminalidade, o
estudo feito pelos autores Yvonne Maggie (1988), Sam Adamo (1983) e Boris
Fausto (1984) acerca do processo de seleção da polícia, dos juízes e dos jurados
do Tribunal do Júri, a partir de dados analisados por processos criminais
oficialmente julgados no início do século XX em relação aos negros.
Maggie, de início, em seu estudo pôde verificar que, de fato, havia tratamento
desigual para negros pelos representantes oficias da lei. Já, Sam Adamo procurou
demonstrar que negros eram tratados com maior severidade, em relação aos
brancos, pelo sistema jurídico-policial. Este autor verificou que negros e pardos
eram tratados com mais violência pela polícia, sem contar que eram presos com
mais freqüência que os brancos, através de seu estudo, Sam Adamo pôde constatar
que o que prevalecia para o enquadramento do estereótipo de criminoso e para o
julgamento dos brancos e negros era o status socioeconômico. Nesse sentido,
como os negros estavam inseridos em uma classe social e econômica inferior, eram
eles o alvo do sistema jurídico-policial da época. Ambos os autores afirmam que
representantes do sistema jurídico-policial utilizavam critérios diferenciados para o
julgamento de brancos e negros. Fausto utiliza processos criminais julgados por
juízes togados e pelo Tribunal do Júri. Ele demonstrou, através da análise dos
processos, que negros e pardos eram mais condenados que os brancos no Tribunal
do Júri de São Paulo. Para Fausto, esses dados eram desproporcionais em relação
aos brancos. Isso se estabelecia devido a um tratamento discriminatório e
preconceituoso por parte dos julgadores e das autoridades policiais em relação aos
indivíduos negros (RIBEIRO, 1995).
E, ainda evidencia-se que o período analisado por Ribeiro é caracterizado
pela repulsa e discriminação racial quanto ao cidadão negro. Segundo o estudo dos
referidos autores, ficou claro que as chances de negros e pardos serem vistos como
criminosos, e conseqüentemente sentenciados como culpados nos processos
criminais e também no Tribunal do Júri eram grandes em comparação ao
julgamento dos infratores brancos.
Diante desses fatos, o que preponderava para a decisão de julgamento dos
juízes e do corpo de jurados do Tribunal do Júri era a cor do acusado e sua posição
social e econômica. Em síntese, os negros, quando acusados, tinham maior chance
de serem condenados e os indivíduos brancos tinham maior chance de serem
absolvidos. Chega-se à conclusão, portanto, que, nesse período, negros, mulatos e
pardos continuavam sendo inferiorizados e maltratados pela sociedade e pelo
controle penal. Existem fortes indícios de que os cidadãos negros eram tratados
desigualmente e discriminatoriamente em face de todo o aparato julgador do início
do século XX.
Segundo os dados estatísticos do InfoPen, destacam-se, no quadro geral da
população prisional por Estados do Sistema integrado de informações penitenciárias
de 2006, os seguintes números de presidiários em relação à cor de pele/etnia:
91154 – 42,3% presos de cor branca, 35534 – 16,5% presos de cor negra, 88656 –
41,2% presos de cor parda, totalizando 215.344 presidiários em 1063
estabelecimentos penitenciários cadastrados no Brasil (BRASIL, 2006). Com
relação aos dados estatísticos do IBGE, no que diz respeito à pesquisa nacional por
amostra de domicílios de 2005, tem-se que 49,9% da população no Brasil são
indivíduos brancos, 6,3 negros e 43,2 dos cidadãos são pardos (BRASIL, 2005).
Conforme dispõe Ribeiro: Verifica-se que os acusados pretos têm 38 pontos
percentuais a mais de probabilidade de serem condenados no Tribunal do Júri do
que os brancos. Os pardos, apesar de terem uma probabilidade menos de
condenação em relação aos pretos, têm 20,5 pontos percentuais a mais de chances
de condenação do que os brancos. Inversamente, os acusados do homicídio de
pretos têm 15,3 pontos percentuais a mais de chances de absolvição do que os
acusados deste mesmo tipo de crime contra brancos, e os acusados de homicídios
contra pardos têm 29,8 pontos percentuais a mais de probabilidade de absolvição
do que os acusados do homicídio de brancos. Neste sentido, há uma base
estatística segura para admitir-se que havia discriminação racial nos julgamentos
dos processos criminais de homicídio. Ser preto ou pardo era o que mais
aumentava as probabilidades de condenação (1995, p. 78-79).
O sistema penal brasileiro do século XXI é caracterizado por um grande
arsenal de normas positivadas pelo Código Penal, a fim de selecionar os integrantes
das diversas penitenciárias espalhadas pelo Brasil. Isso, conseqüentemente, é
resultado de toda a herança preconceituosa e hierárquica em relação ao negro, que
se formou a partir do século XV com o período escravista. Pode-se dizer que os
personagens mais influenciadores do sistema penal em face da seletividade na
contemporaneidade são as agências de informação, com todo o aparato da mídia.
Assim como a sociedade capitalista e patriarcal com a tendência de discriminar e
rotular as minorias (pobres, negros, pardos e mulatos, desempregados, etc.), o
Legislativo, o Executivo, o Judiciário, o Ministério Público e a polícia também o
fazem.
Situação expressa na vergonhosa expressão segundo a qual são clientes do
sistema penal a tríade dos três “pês”: preto, pobre e prostituta. Expressão
politicamente incorreta que traz à tona a seletividade racial e, mais do que isto, o
racismo cordial do povo brasileiro.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010),
declararam-se brancos 7.431.142 pessoas, negros 296.066 pessoas e pardos
1.642.146 pessoas. Percentualmente chega-se à constatação de que existem, no
Paraná, e tomando em conta a população total, 77.70% de brancos, 17.17% de
pardos e 3,09% de negros. Contudo, enquanto os brancos correspondem a 75,52%
da população carcerária do Estado do Paraná em 2005, os negros constituem
7,30%. A cada 100.000 brancos no Estado do Paraná, 81.69 encontram-se
recolhidos em penitenciárias estaduais. A cada 100.000 negros, 198.26 estão
detidos.
A situação que emerge desta análise não é nova. Perpassa praticamente
toda a história brasileira recente. E os argumentos utilizados a fim de digerir tais
dados, tradicionalmente, têm sido os mesmos: o de que os negros – por razões
intrínsecas -,são mais propensos à criminalidade (FAGUNDES; ROSSOT, 2007, p.
12-13).
Conforme os ensinamentos de Fagundes e Rossot (2007) são de se destacar
que a seleção do controle penal e da sociedade diante do negro está marcada
predominantemente pelo preconceito racial, mas, é claro, não deixando de lado que
o fator socioeconômico do indivíduo criminalizado, e, ainda mais se for negro,
contribuirá bastante para ser enquadrado como delinqüente.
O capitalismo exacerbado contribuiu muito para que o controle penal
operasse em defesa da classe alta e da classe média alta da sociedade moderna.
Com isso, ocasiona através da polícia, do poder Judiciário, do Ministério Público, do
Executivo e do Legislativo um enorme controle selecionador de normas e
procedimentos burocráticos processuais com o intuito de atingir os indivíduos mais
fragilizados economicamente, socialmente, esteticamente e culturalmente. Assim,
esses indivíduos excluídos estão presos em delegacias ou penitenciárias, por
transmitirem alívio e segurança para aquelas pessoas que se encontram no ápice
do poder social e econômico. Ou seja, a seleção criminosa parte do princípio de que
negro pardo e mulato são sinônimos de delinqüentes e de marginais, pois a
sociedade brasileira, em sua maioria, é desigual, hipócrita e preconceituosa.
A igualdade diante do sistema penal parece estar deteriorada, pois, diante
dos diversos estudos e estatísticas, chega-se aos dados de que a clientela
penitenciária está composta praticamente por indivíduos pobres, desempregados,
analfabetos, negros, pardos e mulatos. A igualdade pelo controle penal se define
pela forma universal com que as normas penais são positivadas, e não no sentido
desta positivação atingir determinados grupos vulneráveis, carentes e étnicos. O
processo de seleção que se presencia constantemente é caracterizado por ser o
oposto, violando o princípio da igualdade normatizado no art. 5°, caput, da
Constituição Federal, de 1988. Assim, não há que se falar em igualdade formal e,
sim, em estereótipos e rotulações para que aquelas pessoas que se enquadram nos
tipos penais pré-estabelecidos e estigmatizados sejam consideradas como
criminosos.
Nesse contexto, são relevantes os dados de Kahn: Se fizermos uma análise
sobre a cor dos presidiários no país, verificaremos que os negros estão presentes
nas prisões numa proporção maior do que a sua representação na população,
ocorrendo o inverso com a proporção de brancos. A taxa de encarceramento por
grupo racial em São Paulo, onde os dados são mais precisos, é de 76,8 por 100 mil
habitantes para os brancos e 140 por 100 mil para os pardos, elevando-se acerca
de 421 por 100 mil para negros. A probabilidade de um negro estar na prisão é,
portanto de 5.4 vezes maior do que a de um branco e 3 vezes maior que a de uma
pardo. Fenômeno semelhante ocorre em outros países com grande população
negra e fortes desigualdades sociais, como os EUA, onde as taxas, considerando-
se apenas os homens, são de 3.785 por 100 mil para negros, 1.773 para hispânicos
e 407 para brancos (2001 apud, SELL, 2002, p. 75).
Todo esse processo seletivo frente ao sistema penal é marcado pela
sociedade capitalista e preconceituosa, como explicitado anteriormente, pois o
processo de criminalização do indivíduo irá estabelecer-se mediante os estigmas
dos grupos excluídos dos extratos mais inferiores da sociedade brasileira.
Quanto aos estigmas e aos estereótipos produzidos por essa sociedade,
pelas agências de controle do sistema penal e pela mídia, é de se destacar que esta
última possui relevante papel para o processo de criminalização dos indivíduos mais
vulneráveis. Assim, tem-se que os “sistemas penais reproduzem sua clientela por
um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por
estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa” (ZAFFARONI,
1991, p. 133).
O processo de criminalização se estabelece a partir de dois momentos.
Primeiramente, ocorrerá a formação da criminalização primária e, posteriormente, a
criminalização secundária. A criminalização primária está ligada à atividade do
Estado na elaboração e criação das regras normativas no âmbito da lei penal,
sendo, dessa forma, originada através das esferas administrativas estatais, ou seja,
do poder Legislativo e do poder Executivo. Assim, tem-se que “a criminalização
primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimine ou
permite a punição de certas pessoas” (Zaffaroni; Batista; Alagia; Slokar, 2003, p.
43). No que diz respeito à criminalização secundária, esta se relaciona ao poder
punitivo dos órgãos policiais, judiciais e das agências penitenciárias e, sem sombra
de dúvida, aos critérios estigmatizantes e selecionadores da sociedade. Diante
disso, a “criminalização secundária se traduz na seleção [...] por fatos burdos ou
grosseiros [...], e [...] de pessoas que causem menos problemas (por sua
incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação
massiva)” (Zaffaroni; Batista; Alagia; Slokar, 2003, p. 46).
A seleção, através da criminalização secundária, é inevitável diante do fato
de que predomina, através do controle penal e da sociedade hierarquizada, a
constante presença dos estereótipos que estão ligados à raça, ao passo que esta
quase sempre se encontra relacionada ao aspecto socioeconômico do indivíduo, ou
melhor, aos grupos vulneráveis da sociedade brasileira.
Nesse sentido, refere-se Andrade: [...] Assim, o processo de criação de leis
penais (criminalização primária) que define os bens jurídicos protegidos, as
condutas tipificadas como crime e a qualidade e quantidade da pena (que
freqüentemente está em relação inversa com a danosidade social dos
comportamentos), obedece a uma primeira lógica da desigualdade que, mistificada
pelo chamado “caráter fragmentário” do Direito Penal pré-seleciona, até certo ponto,
os indivíduos criminalizáveis. E tal diz respeito, simultaneamente, aos “conteúdos” e
aos “não-conteúdos” da lei penal. Quanto aos “conteúdos” do Direito Penal abstrato,
esta lógica se revela no direcionamento predominante da criminalização primária
para atingir as formas de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais
débeis e marginalizados.
Nesta perspectiva, o processo de criminalização secundária não faz mais que
acentuar o caráter seletivo do Direito Penal abstrato. Pois as maiores chances de
ser selecionado para fazer parte da população criminosa e ser sujeito de sanções,
especialmente as estigmatizantes, como a prisão, aparecem, de fato, concentradas
nos níveis mais baixos da escala social (subprolateriado e grupos marginais) (1997,
p. 279-281). Assim, pode-se afirmar que o sistema penal possui uma desigual
distribuição de seu poder coercitivo, uma vez que ele irá atuar em favor de
determinadas categorias elitistas.
A criminalização da população negra, passados os 123 anos da abolição da
escravidão em nosso país, a população negra continua sofrendo de maneira mais
intensa as mazelas do Capital, compondo a maioria dos que vivem na pobreza. São
também os jovens, pobres e negros os que têm sido, centralmente, assassinados.
De acordo com o documento “Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil”, os
negros têm aproximadamente três vezes a mais de risco de serem executados do
que um branco. Os dados são similares quando falamos de encarceramento, visto
que nas prisões e nos educandários o perfil é de uma maioria negra, moradora das
periferias da cidade, o que está em jogo é uma dimensão política elitista e racista
dos aparatos repressores, legitimado pelo Estado Brasileiro, que com um falso
discurso de progresso e de superação da pobreza, mantém a lógica do preconceito
e do massacre vivenciado no período escravocrata, em que os negros e negras são
tidos como suspeitos e inimigos em potencial, idéia a qual é fortalecida pelos meios
de comunicação.
A criminalização da juventude negra, passa neste processo, em que o
sentimento de medo é constantemente reproduzido e potencializado fundamentando
a demanda por práticas repressivas no controle da violência tem-se, como
demonstra Zaluar (2004a, p.43), "os sinais de um ódio violento e vingativo começam
a aparecer cada vez com maior intensidade", construindo uma guerra clandestina
do bem contra o mal. Ela comenta ainda que na confusão criada pelos preconceitos
dos agentes policiais, jovens (trabalhadores, estudantes ou bandidos) pobres passa
a ser o outro lado indiscriminado dessa guerra sem tréguas que pretende livrar-nos
do mal. Essa imagem do ‘menor’, isso é, da criança e do adolescente pobres é a
parte da estratégia para justificar a ação policial violenta e corrupta, na qual já se
tornou difícil distinguir o que é repressão ao crime do que é crime de extorsão
(ZALUAR, 2004a, p. 49-50). Temos aqui o indício da existência de um grupo social
tido como personagem privilegiado da violência urbana, objeto do medo difuso e
principal alvo das medidas repressivas: os adolescentes pobres. E, é neste contexto
que se torna mais compreensível medidas como a redução da maioridade penal:
aos adolescentes infratores é atribuído esse papel de encarnação do mal absoluto
que precisa ser combatido para restauração da ordem perdida.
Segundo Adorno (1999, p.67): [...] em conjunturas em que os sentimentos
coletivos de medo e insegurança diante da violência parecem exacerbados,
estimulando o pânico moral contra suspeitos de cometerem crimes, acirram-se e
radicalizam-se as posições pró e contra a adoção de políticas exclusivamente
repressivas, em especial destinadas aos adolescentes autores de infração penal.
Como já de conhecimento da sociedade o medo e a fala do crime produzem
preconceitos e estereótipos, reforçando assim o processo social de criminalização
de certos grupos, todos pertencentes às camadas pobres. Um dos grandes
consensos nas tentativas de explicação da criminalidade é a sua associação com a
pobreza. Tanto para a população em geral como para alguns analistas, são as
condições de pobreza e marginalidade que causam o crime. Esta constatação
poderia ser explicada com o argumento de que este é um grupo que, de fato, é mais
propenso ao crime, que de fato comete mais crime. Seja por seus atributos morais
ou sociais, existe grande consenso de que a população de baixa renda tem maior
probabilidade de cometer crimes. Ainda que escrito em um contexto distante do qual
nos encontramos, o artigo de Edmundo Campos Coelho (1978) "A criminalização da
marginalidade e a marginalização da criminalidade", apresenta interessantes
análises a esse respeito que acredito ainda serem válidas. Com o objetivo de
questionar a relação causal entre marginalidade e criminalidade urbanas, o autor
afirma que a forma como esta questão é tratada parte de um enfoque socialmente
contaminado sobre a criminalidade.
Neste sentido, o autor comenta sobre o caráter tendencioso das estatísticas
oficiais a partir das quais se tiram as conclusões a esse respeito. Além disso,
observamos diariamente a atuação da polícia é fortemente marcada pelo
estereótipo que estes possuem do criminoso, geralmente associado aos indivíduos
das classes populares que se tornam alvos privilegiados de repressão. A influência
dos preconceitos nas estatísticas faria delas uma definição cultural de crime que
diferencia o criminoso oficial dos que violam a lei, mas não se tornam legalmente
criminosos, ainda que o comportamento de ambos seja objetivamente o mesmo: os
crimes de colarinho branco, por exemplo, apesar de serem considerados ilegais,
não são considerados criminosos. No caso específico dos adolescentes, a
vinculação entre pobreza e criminalidade parece ser ainda mais presente e
significativa. Poderíamos dizer que, ao menos no caso brasileiro, essa associação
se comporta como paradigma tanto nas análises como na formulação de políticas
públicas. Concebidos como indivíduos em formação seriam, por este motivo, mais
vulneráveis aos efeitos do meio social, seja a família, a comunidade ou, e
principalmente, a rua, além disso, como argumenta Pedro Bodê de Moraes (2008),
como efeito de processos de controle social perverso percebem-se os jovens como
incompletos e instáveis e, por isso, perigosos: "Práticas e discursos que definem tal
grupo pela falta aprofundando a estigmatização ao considerar atributos étnicos e
raciais, de classe e/ou geográficos" (MORAES, 2008, p. 6).
O mapa da violência de 2012 mostra que de 2002 à 2010 a taxa de homicídio
de brancos vem caindo no país, enquanto que a de negros está subindo. Segundo
estudo, o número de homicídios de brancos caiu de 20,6 para cada 100mil
habitantes em 2002, para 15 em 2010. Já o dos negros subiu de 30 para cada 100
mil habitantes em 2002, para 35,9, em 2010. Os dados mostram que para cada dois
brancos vítimas de homicídios em 2002, morreram aproximadamente três negros.
Já em 2010, para cada dois brancos assassinados 4,6 negros forma vítimas de
homicídio. É um fato preocupante porque a tendência está aumentando. Nossa
mídia veicula o que acontece em famílias abastadas e há uma preocupação dos
órgãos de segurança, com isso. Mas, ninguém noticia que morreram dois negros em
uma favela, a não ser que seja uma chacina, diz o coordenador da pesquisa Julio
Jacob Waiselfisz. De acordo com ele, a maior violência contra os negros pode ser
explicada, também pela questão econômica e pela privatização da segurança.
“Quem pode pagar, paga a segurança privada, que protege melhor”. Como a
população negra é em média, mais pobre, explica Jacob passa a depender dos
órgãos de segurança pública, que geralmente não conseguem atender
adequadamente a população. Essas evidências nos levam a postular a necessidade
de reorientar as políticas nacionais, estaduais e municipais, em torno da segurança
pública, para enfrentar de forma real e efetiva essa chaga aberta na realidade do
país. O mapa da violência 2012, divulgado pelo Instituto Sangari, mostra ao
contrário do restante do país, que o Paraná não teve uma interiorização da
violência: os crimes estão concentrados em Curitiba e sua região metropolitana. O
Estado passou de uma taxa de 10,8 para 34,4 assassinatos a cada 100 mil
moradores.
CONCLUSÃO
O medo da violência e o preconceito, no que diz respeito à criminalidade,
estão fortemente voltados a grupos socialmente excluídos, como pobres, favelados,
desempregados, grupos raciais (negros, pardos, mulatos e estrangeiros). Sabe-se
que o sistema penal não persegue todos os crimes cometidos diariamente, bem
como não recruta todos os criminosos. É nesse contexto que se evidencia a
necessidade de se estudar os princípios que orientam a seletividade do sistema
penal. O racismo é apenas um dos mecanismos que fazem esse papel, ao lado das
estruturas de classes e patriarcal.
Os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, por se
tratarem de normas máximas e fundamentais na Constituição Federal, de 1988, são
caracterizados por zelar pelo tratamento igualitário, sem distinções de qualquer
natureza entre os indivíduos. Além disso, estabelecem direitos, deveres, garantias,
respeito e proteção a todos os cidadãos de uma sociedade. O princípio da dignidade
humana é caracterizado pela qualidade de ser intrínseco e inerente ao indivíduo, ou
seja, sua dignidade jamais poderá lhe ser tirada, uma vez que ela é indispensável,
insubstituível, inalienável e irrenunciável. Por isso, a proteção a que se refere esse
princípio em relação ao cidadão deve ser garantida pelo sistema estatal, pelo
controle penal e pela sociedade sempre que houver violações de sua dignidade.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que esses dois princípios estão
estreitamente ligados, uma vez que são caracterizados por se tratarem de normas
universais, além de definirem tratamento igualitário entre os indivíduos, a fim de
vedar qualquer tipo de relativismo e preconceito diante da sociedade, do Estado e
do sistema penal. No que diz respeito ao racismo em relação aos negros no Brasil,
examinou-se que o mesmo retrocede ao período da colonização, principalmente no
que se refere ao tráfico negreiro, de 1550 a 1850, e da escravidão de africanos, que
durou até 1888. Destacou-se que foi durante a colonização européia ocorrida no
Brasil que se desencadeou todo o processo de desarticulação social, cultural e
étnica em relação aos negros, diante da dominação exercida pela classe senhorial.
Os negros, naquele período, não eram considerados seres humanos, pois eram
tratados de forma humilhante. Eram apenas vistos como objetos de trabalho, ao
passo que sua estética, cultura e religião pela classe senhorial eram consideradas
degradantes e inferiores. Conseqüentemente, diante de todo esse processo
desigual durante o período escravocrata, pode-se afirmar que aí se desencadeou o
preconceito e a discriminação racial do indivíduo negro nos dias de hoje. Constatou-
se que ainda prevalece a hierarquização do branco em relação ao negro, devido ao
fato de este ser rotulado e estigmatizado, na maioria das vezes, como cidadão
portador de deficiências intelectuais, sociais, econômicas, estéticas e culturais.
Historicamente, os negros são identificados como quem não tem status social e
econômico privilegiado, pelo número mínimo que chega à universidade e, em sua
maioria, porque não conseguem concluir o ensino médio. Ou seja, os negros são
relacionados a um estereótipo de pobreza e marginalidade pelo restante da
sociedade branca. Nesse sentido, observou-se que se está diante de uma
sociedade elitista, patriarcal e hierárquica, ao ponto de quase sempre se identificar o
indivíduo negro como ser humano inferior. Assim, examinou-se que o Brasil é
considerado um país racista, porém não ao extremo, mas com características que
tornam os negros, de uma forma ou outra, discriminados e excluídos da sociedade
devido ao preconceito ligado à sua cor.
Verificou-se que a teoria do etiquetamento, embasada no paradigma da
reação social do labelling approach, assim como o estudo da Criminologia crítica,
enfocam que a rotulação e a estigmatização do criminoso estão constantemente
ligadas ao poder da classe dominante. Diante da teoria do labelling e da
Criminologia Crítica, prepondera o estereótipo de criminoso direcionado quase
sempre aos extratos inferiores e mais vulneráveis da sociedade. O controle do
poder estatal e do poder penal está fortemente influenciado pelas pessoas que
detêm o poder, ou seja, a classe social e econômica hierarquicamente superior que
fará de tudo para proteger os seus bens juridicamente tutelados. Assim, observa-se
que a reação social e o sistema penal irão produzir a criminalização através do
processo de etiquetamento e do comportamento desviante do criminoso, sendo que
este comportamento alcançará indivíduos propensos à rotulação de delinqüentes.
Dentre eles, encontram-se negros, pardos, mulatos, pobres, desempregados,
favelados, etc. Nesse sentido, entende-se que a forte influência da posição social,
cor e raça, determinará quais serão os indivíduos submetidos e julgados como
delinqüentes e infratores pelo poder Judiciário, pela polícia ou pela sociedade. Essa
situação fará com que sejam criados mecanismos de seleção e de desigualdades
diante da esfera do controle penal em relação aos indivíduos criminalizados.
Referente à construção seletiva e à reprodução da criminalidade diante do
preconceito racial exercido pelo sistema penal, chega-se à conclusão de que,
através do processo de interiorização dos escravos pela classe senhorial, o
preconceito e a falta de tratamento isonômico em relação aos negros
permaneceram até os dias de hoje, pois o escravo negro, no período colonial, era
tratado desumanamente, sem respeito e sem consideração, era essencial apenas
para o trabalho, e nada mais. O medo das revoltas e das doenças dos negros era
constante, fazendo com que o controle penal da época se tornasse cada vez mais
severo e seletivo. Com este processo degradante de discriminação da raça negra,
constata-se que, desde o período colonial até os dias atuais, predomina o controle
da classe capitalista e hierárquica da sociedade, a fim de rotular alvos específicos
para a clientela do sistema penal. Portanto, o que se conclui é que há, no Brasil, a
existência de um tratamento desigual em relação ao negro, vítima da sociedade,
das normas penais, da polícia, do poder Legislativo, do poder Executivo, do poder
Judiciário e do Ministério Público, contrariando totalmente os preceitos
constitucionais que normatizam a dignidade humana e a igualdade de tratamento
entre todos os indivíduos de uma sociedade.
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