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Crescendo entre lendas Jéssica Socorro Costa dos Reis tem 11 anos. Tímida, responde às perguntas que lhe são feitas com os olhos “puxados”, revelando sua origem indígena: “Quero ser professora”, murmura a menina. Jéssica tem uma infância típica de menina ribeirinha da Amazônia: acorda, faz o café para toda a família, dobra a própria rede e a dos três irmãos menores, e ajuda a mãe no que é preciso. Ordenha uma das quatro búfalas, bebe leite fresquinho e vai para a escola. Quando não está estudando, toma o rumo do projeto Caruanas, em Soure, na Ilha de Marajó. Lá, em menos de três meses, formam-se bordadeiras e crocheteiras. Meninas que vivem em famílias com pouca ou nenhuma renda passam a ter como produzir um pouco de dinheiro, desviando-se do maior fantasma das famílias da região: a prostituição infantil. A menina já aprendeu a bordar e considera-se ótima fazedora de beiras de guar- danapo e capas de liquidificador. “Todo mês recebo alguma enco- menda”, diz. O dinheiro ajuda na magra economia da família. Na realidade, o que a faz vencer a timidez é o futebol. “Aqui temos um time só de meninas”. No resto do tempo, ouve as histórias de pajé contadas pelos adultos, toma banho nas praias do Marajó e embala o início da adolescência com as lendas que povoam aquela parte do Brasil. Jéssica tem apenas 11 anos: a mesma idade de Zeneida, protagonista de uma misteriosa história de desaparecimento na floresta. Zeneida Lima Zeneida Lima, assim como Jéssica, nasceu em um dos lugares mais exóticos do mundo: a ilha de Marajó, no Pará. É àquele lugar, o maior arquipélago fluvial do mundo, na foz do rio Amazonas, que remonta a cultura marajoara, uma das origens dos pajés amazônicos. Dona Zeneida tem hoje 76 anos. Conta que, aos 11, foi alvo de um acontecimento absolutamente extraordinário – tão singular que já foi tema de escola de samba do Rio de Janeiro e está prestes a virar filme. Jéssica Socorro Costa dos Reis Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia Soure, Ilha de Marajó, Pará 11anos

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Crescendo entre lendas

Jéssica Socorro Costa dos Reis tem 11 anos. Tímida, responde àsperguntas que lhe são feitas com os olhos “puxados”, revelando suaorigem indígena: “Quero ser professora”, murmura a menina.

Jéssica tem uma infância típica de menina ribeirinha da Amazônia:acorda, faz o café para toda a família, dobra a própria rede e a dos trêsirmãos menores, e ajuda a mãe no que é preciso. Ordenha uma dasquatro búfalas, bebe leite fresquinho e vai para a escola. Quando nãoestá estudando, toma o rumo do projeto Caruanas, em Soure, na Ilha deMarajó.

Lá, em menos de três meses, formam-se bordadeiras e crocheteiras.Meninas que vivem em famílias com pouca ou nenhuma renda passama ter como produzir um pouco de dinheiro, desviando-se do maiorfantasma das famílias da região: a prostituição infantil. A menina jáaprendeu a bordar e considera-se ótima fazedora de beiras de guar-danapo e capas de liquidificador. “Todo mês recebo alguma enco-menda”, diz. O dinheiro ajuda na magra economia da família.

Na realidade, o que a faz vencer a timidez é o futebol. “Aqui temosum time só de meninas”. No resto do tempo, ouve as histórias de pajécontadas pelos adultos, toma banho nas praias do Marajó e embala oinício da adolescência com as lendas que povoam aquela parte do Brasil.Jéssica tem apenas 11 anos: a mesma idade de Zeneida, protagonista deuma misteriosa história de desaparecimento na floresta.

Zeneida Lima

Zeneida Lima, assim como Jéssica, nasceu em um dos lugares maisexóticos do mundo: a ilha de Marajó, no Pará. É àquele lugar, o maiorarquipélago fluvial do mundo, na foz do rio Amazonas, que remonta acultura marajoara, uma das origens dos pajés amazônicos. Dona Zeneidatem hoje 76 anos. Conta que, aos 11, foi alvo de um acontecimentoabsolutamente extraordinário – tão singular que já foi tema de escolade samba do Rio de Janeiro e está prestes a virar filme.

Jéssica Socorro Costa dos Reis

Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia Soure, Ilha de Marajó, Pará

11anos

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Ela passeava num açaizal, quando se sentiu tonta. A mãe, aseu lado, achou que a “tontura” era só uma desculpa para inter-romper a colheita da fruta e descansar por alguns instantes. “Entãosenta um pouco e, em vez de colher, fique debulhando o açaí”,aconselhou a mãe. Zeneida teria sentido seu corpo arder e nin-guém mais a viu. Onde foi parar, ou o que ocorreu, nos 17 diasseguintes, é até hoje um mistério, passados 65 anos.

O fato é que, após esse período, Zeneida reapareceu na mata,despida, com as mãos amarradas por cipós e o corpo queimado etatuado. A pele tinha imagens de flechas, árvores, pássaros eoutros animais. Sua única lembrança é a de três seres, levando-ado açaizal. O relato parecia um delírio. Por via das dúvidas, ospais, católicos fervorosos, resolveram trancá-la em casa. O paide Zeneida, advogado, fazendeiro e político, queria distância dequalquer bruxaria.

A vida deu reviravoltas. O desaparecimento de Zeneida virousamba-enredo da Beija-Flor, na Marquês de Sapucaí, e livro.Zeneida criou, na fazenda em que nasceu, o projeto Caruanas, queatende a crianças da comunidade próxima à fazenda.

Profecia

Depois que Zeneida reapareceu do açaizal, a família lembrou-sede uma antiga profecia feita pelo tataravô: haveria um pajé nafamília. Apesar de as tribos indígenas marajoaras estarem extintashá séculos, a prática da pajelança – a cura pelas ervas – sobre-viveu ao tempo. Zeneida passou dois anos sob as orientações deMestre Mundico de Maruacá, o último pajé da região. Do mestre,Zeneida recebeu instruções para esculpir em argila as imagensque via – as “caruanas”, energias que vivem sob as águas e sãoinvocadas para que apontem as plantas ideais para cada cura.

Quando se casou, Zeneida foi morar no Rio de Janeiro, devidoao trabalho do marido. Por 27 anos, ficou sem pisar em Marajó.Em 1981, ao voltar para casa, viúva, ficou desolada. Mal reconhe-ceu o local. O igarapé estava represado e a madeira de lei havia aca-bado. O ritual da pajelança estava influenciado por outras religiões.“A pajelança é canto e dança para a natureza, para que ela per-maneça viçosa e dando sustento e remédio para o povo”, explica.

Reconstrução

Zeneida comprou parte das terras que tinham pertencido a seupai e decidiu refazer tudo como era antes. Para ter certeza de queseus conhecimentos não morreriam com ela, em 1992 decidiuescrever um livro “O mundo místico dos caruanas”. Cinco anos

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depois, recebeu um telefonema do Rio de Janeiro. Era um representante da escola de samba Beija-Flor, pedindoautorização para fazer de seu livro o enredo do carnaval da agremiação de Nilópolis. Em fevereiro do ano seguinte,o intérprete Neguinho da Beija-Flor cantava, acompanhado pela multidão no Sambódromo: “Sou caruana, eusou/Patu-Anu nasceu do girador, obá/Eu trago a paz, sabedoria e proteção/Curar o mundo é minha missão”. Noúltimo carro alegórico da escola – que levou o título daquele ano –, o destaque era Zeneida.

Na Apoteose, com o mundo inteiro olhando para ela, Zeneida percebeu que não existiria situação mais propíciapara chamar atenção para sua ilha, seu ambiente, sua cultura, suas tradições. Ali mesmo, decidiu criar a ONGCaruanas do Marajó, que hoje atende a 310 crianças, em 15 hectares da antiga fazenda de seu pai, bem pertode onde desapareceu por 17 dias. Conforme a tradição no projeto, ele segue o viés da sustentabilidade. “Nossotrabalho tem um lado ambiental. Afinal, sem as ervas, acaba também a cultura”, explica Josie Prazeres,coordenadora do projeto e neta de Zeneida.

Na instituição, funciona uma escola pública em parceria com a Prefeitura de Soure, município ao qual pertencea ilha do Marajó. Uma vez por ano, o projeto Caruanas recebe as visitas de profissionais de fora, que dão palestrase conduzem oficinas variadas durante uma semana. Fala-se de fotografia, artes, música, fabricação e manuseiode fantoches, contação de histórias, cinema de animação, além de palestras sobre doenças sexualmentetransmissíveis e informática.

Com apoio do Criança Esperança, foram realizados cursos de cerâmica marajoara, bordado e crochê. “A cerâmicanão era mais produzida na ilha, já tinha migrado para Belém, pela dificuldade de acesso”, conta Josie. Nas aulasde bordado, a ideia também era preservar as imagens típicas do Marajó.

Em breve, a ONG vai iniciar as classes de inglês. Enquanto isso, Zeneida vai afiando o francês: no fim do ano,ela vai expor as imagens dos caruanas em Paris. Depois, chega às telas o filme Amazônia Caruana, de TizukaYamasaki, baseado em sua história. A atriz Carolina Oliveira vai interpretar a senhora. No elenco, estarão tambémLetícia Sabatella, José Mayer, Dira Paes e algumas das crianças que, como Jéssica, desvendaram tantos segredoscom a última pajé do Marajó.

Zeneida, fundadora da Caruanas, diz ter sido iniciada nos ensinamentos da pajelança. Conta lendas histórias fantásticasda Amazônia e relata ter sido raptada por seres não identificados quando tinha 11 anos.

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Dois temas marcaram o ano de 1996: a

aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-

cação, que tramitou durante dez anos no

Congresso Nacional e já era chamada de nova

Constituição da Educação brasileira, e o en-

volvimento dos jovens com a criminalidade.

Varriam o país de norte a sul acalorados de-

bates sobre a redução da maioridade penal.

O Estatuto da Criança e do Adolescente,

aprovado anos antes, ainda nem havia sido

implantado em sua plenitude e já era visto nos

círculos mais conservadores da sociedade como

um instrumento de proteção aos adolescentes

infratores. Reduzir a maioridade e colocar cri-

anças e adolescentes que cometiam crimes na

cadeia seria, então, a solução para combater a

violência urbana, diziam os defensores desta

medida.

A temática da criança e do adolescente em

conflito com a lei tornou-se um dos pontos

de pauta prioritários do Conselho Nacional

dos Direitos da Criança e do Adolescente. O

Fórum DCA e outras entidades monitoraram

os intensos debates sobre o rebaixamento da

idade penal na mídia e no Congresso Nacio-

nal. A sociedade, embalada pelo lançamento

do filme “Quem matou Pixote?”, de José Joffily,

tomava a parte menos famosa da história de

Fernando Ramos da Silva como exemplo do

que estaria, há anos, marcando a realidade

dos meninos e meninas de rua brasileiros. “De

quem é a culpa?” era uma das perguntas mais

ouvidas entre os espectadores da película.

Educação

Após dez anos, o antropólogo Darcy Ri-

beiro, relator da LDB, viu promulgada a lei

que abriu caminho para o início da melhoria

1996

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)

é aprovada; país debate o

envolvimento dos jovens com o crime

O especial Criança Esperança tem como tema o Estatuto da Criança e do Adolescente;

Educação entra com mais força na pauta do país

da escola pública brasileira, depois de ter dei-

xado de ser um reduto de elite para se tor-

nar uma escola de massa. Entre os principais

pontos, a lei incorpora a creche na educação

infantil, defende a autonomia pedagógica e

administrativa das unidades escolares e per-

mite a flexibilização dos currículos, admitindo

a incorporação de disciplinas que podem ser

escolhidas por levar em conta o contexto e a

realidade dos alunos.

Isso quer dizer que alunos da região ama-

zônica, por exemplo, podem ter uma disci-

plina específica sobre cultura indígena; que

alunos do Rio de Janeiro poderão estudar o

samba, e assim por diante. Assim, o saber

torna-se mais interessante na medida em que

é mais significativo. Depois da lei, as redes

públicas precisaram adaptar-se para atender

alunos deficientes ou com necessidades espe-

ciais de aprendizagem.

A LDB foi além e determinou percentuais

mínimos do orçamento público para serem

aplicados em educação. Alterou também a rea-

lidade dos professores – estabeleceu a for-

mação continuada, o licenciamento periódico

remunerado e um piso salarial profissional.

Destacou a importância de encontrar o equi-

líbrio adequado entre o número de alunos e o

de professores em sala de aula, o que mais

tarde viria a ser discutido pelo Brasil como um

dos itens da escola pública de qualidade.

Exploração sexual

Em 1996, foi realizado na Suécia o I Con-

gresso Mundial contra a Exploração Sexual Co-

mercial de Crianças. O encontro resultou na

Declaração de Estocolmo e na Agenda para a

Ação, que foi adotada por 122 países. Estes

comprometeram-se a desenvolver estratégias

e planos de ação com diretrizes combinadas

para combater o problema.

Mortalidade Infantil

Em 1996, ficou ainda mais explícito que

o Brasil estava no caminho certo na luta

contra a mortalidade infantil. Segundo a

Fundação Nacional de Saúde, naquele ano,

de cada 13 mortes ocorridas no país, uma

era de criança com menos de 1 ano de idade.

Dezesseis anos antes, essa relação era de

uma para quatro. Para chegar a tal resultado

positivo, foi reconhecido o papel funda-

mental da Pastoral da Criança, que levou o

soro caseiro e as orientações sobre nutrição e

higiene para as populações menos assistidas

por instrumentos convencionais de saúde e

educação. O cenário, apesar de tudo, ainda

estava longe de ser o ideal: embora doenças

infecciosas e parasitárias não causassem

mais tantas mortes como antes, continuavam

a vitimar meninos e meninas Brasil afora, tor-

nando-os mais vulneráveis e, muitas vezes,

comprometendo seu futuro.

Ainda naquele ano, o governo brasileiro

criou o Programa de Erradicação do Trabalho

Infantil (Peti), com o objetivo de retirar crian-

ças e adolescentes de 7 a 15 anos do trabalho

perigoso, penoso, insalubre e degradante.

Em 1995, 5,1 milhões de brasileiros de 5 a

15 anos eram usados como mão de obra – o

correspondente a 13,74% dos indivíduos

nesta faixa etária.

No ano em que foi comemorado o aniver-

sário de 30 anos do programa “Os Trapalhões”,o especial Criança Esperança enfocou o Esta-

tuto da Criança e do Adolescente.

CO

NTEXTO

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“Nos mais de 10 anos em que fui representante do UNICEF no Brasil, constatei que o Criança Esperançarepresentava uma enorme alavanca para disseminar novos assuntos na mídia, como a discussão sobreo Estatuto da Criança e do Adolescente e a implantação dos Conselhos Tutelares. O programa tinha forçapara fazer uma mobilização social que não se compara a nenhuma outra experiência  em todo o mundoem favor dos direitos da infância. Muitos avanços foram conquistados para a infância brasileira a partirda soma dos esforços do UNICEF e do poder de mobilização da TV Globo. Hoje, vejo o  Criança Esperançana UNESCO. Seu foco foi ampliado para a juventude. Cresceu em qualidade, conteúdo e em capilaridade,com projetos apoiados em todo o Brasil. Parabéns pelos 25 anos! Eu me sinto parte desta história.”

Foto

: Zar

eh K

assa

rjianAgop Kayayan

Representante do UNICEF no Brasil de 1990 a 1999

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