11ª edição da fides

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11ª Edição da FIDES

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FIDES, Natal, v. 6, n. 1, jan./jun. 2015ISSN 2177-1383

Editoras-Gerais:Bruna Agra de MedeirosMaria Emília Freitas Diógenes

Diretoria de Editoração:Amanda Pontes Soares FernandesAnna Beatriz Alves de OliveiraBruna Brandl Cañete Carolina Faria Collier de OliveiraFlávia Monique da Silva VerasIzalúcia Lopes MedeirosJéssyka Byanca Basílio MoreiraMariana Rocha Sousa SeverinoRômulo Guilherme F. SantosYasmin Tomaz Cabral

Diretoria de Tradução para a Língua Inglesa:Bruna Brandl Cañete Jéssyka Byanca Basílio Moreira

Professores Orientadores:Morton Luiz Faria de MedeirosPatrícia Borba Vilar Guimarães

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CAPA: Direito à Cidade: Reflexões sobre o Desenvolvimento Urbano e Social

Fotografia:Catarina SantosEdição e Diagramação:Paulo André Magalhães

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EDITORIAL:

O presente periódico concretiza a 11ª edição da Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, caracterizada pela supremacia de seus três pilares primordiais: a con-fiança, a filosofia e a democratização do conhecimento. Sem dúvidas, o resultado de um esforço progressivo de acadêmicos e profissionais capacitados, em conjunto com os estimáveis consti-tuintes do nosso Conselho Científico, que há mais de cinco anos efetivam o saber por meio da publicação dessa revista eletrônica.

Nesse pórtico, faz-se mister fazer menção honrosa aos autores que elaboram seus tra-balhos nas categorias mencionadas, uma vez que, graças ao esforço de todos eles, frisando--se também a contribuição imensurável dos diretores de editoração, tornou-se possível efetivar mais um exitoso lançamento da Revista FIDES. À todos, dedicamos um agradecimento tenro com muito afeto por alcançarmos essa vitória. Salienta-se, ademais, a nossa intenção em con-tinuar esse trabalho pelas próximas edições, sempre em busca do crescimento acadêmico, do incentivo à pesquisa e da capacitação profissional de discentes e docentes.

Esse semestre, optamos por enfatizar a temática do Direito Urbanístico e o acesso à cidade, tendo em vista esse ser um assunto de interesse geral e, além disso, de exponencial im-portância para as sociedades contemporâneas. A edição ora em lançamento objetiva, portanto, trazer reflexões sobre temas que envolvem o desenvolvimento urbano e social, sua ocorrência e, sobretudo, trazer à tona a importância desse campo de conhecimento científico.

O Direito Urbanístico, embora seja um componente curricular recentemente integrado à nossa Universidade, merece o devido reconhecimento de sua importância e notoriedade, pois seu teor unifica a questão do acesso aos direitos fundamentais. Sem dúvidas, uma ciência inti-mamente atrelada à Constituição Federal de 1988 e à todos os ramos jurídicos dela decorrentes. Eis o porquê, então, de homenagearmos um pouco de suas particularidades nesse periódico, por meio da publicação de alguns artigos, que, embora em pequena quantidade, tem o mérito de suscitar a atenção para a necessidade de estudo desse novo e relevantíssimo ramo do conhe-cimento.

Por óbvio, o processo de êxodo rural e o consequente crescimento dos centros urba-nos, aliados ao incremento da atividade industrial em um primeiro momento e, posteriormente, do setor de serviços da economia, incitaram uma maior demanda por direitos sociais e, como consequência, uma pressão sobre a terra e a infraestrutura urbana, além dos recursos naturais. Esses fatores culminaram na necessidade latente de serem buscados, por parte dos Poderes Públicos, os meios necessários para garantir o acesso à tais direitos no meio urbano e, ainda, o enfrentamento das distorções causadas pelo crescimento urbano desordenado.

Desse modo, o maior desafio dessa ciência jurídica está em trazer as bases doutrinárias para possibilitar a devida atuação dos Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) no sentido de garantir os direitos urbanos inseridos no direito à cidades sustentáveis, compreendi-

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do como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gera-ções, nos termos postos no inciso I do art.2º do Estatuto da Cidade. De fato, uma complexa missão se coloca para a Administração Pública lato sensu.

Destarte, em decorrência da necessidade de viabilizar o direito à cidade sustentável, mediante o acesso aos direitos urbanos que o compõem, o Direito Urbanístico traz, dentre ou-tros, o princípio da função pública do Urbanismo, que revela a ideia de que o Poder Público deve atuar no meio social para ordenar a realidade urbana de modo a atender o interesse coletivo. A partir dessa compreensão, ganha sentido, por exemplo, a interpretação do artigo 6º da Constitui-ção Federal de 1988 (onde se encontra incluído o direito social à moradia) em harmonia com o artigo 21, incisos IX e XX, da mesma Carta, que estabelece, respectivamente, a competência da União de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e desenvol-vimento econômico e social e de instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

Em síntese, optamos por agraciar a ciência urbanística tendo em vista o fato de que seu arsenal normativo e doutrinário ter, primordialmente, o intuito de tornar acessível à população recursos que lhe permitam garantir o acesso universal a direitos fundamentais necessários para uma vida digna. Isso traduz a possibilidade de morar com dignidade, mover-se com segurança e condições mínimas de conforto, usufruir de recursos hídricos potáveis, desfrutar de condições sanitárias adequadas, entre outras condições essenciais ao gozo de uma vida de qualidade; ao que se acresce o direito da população de participar da construção das normas de planejamento e gestão urbanas e de monitorar a sua efetivação.

Desta feita, trazemos à baila do conhecimento, artigos científicos com projeção espe-cífica ao tema reverenciado nessa edição, além de contemplar produções textuais de temáticas jurídicas diversas, haja vista o nossa pretensão em propor uma vasta e permanente compreensão jurídica nas variadas nuances do Direito. Postas essas considerações introdutórias, com carinho e estima, desejamos uma excelente leitura e um potencial aproveitamento dos saberes então delineados.

Natal, 18 de maio de 2015.Conselho Editorial da Revista FIDES.

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SUMÁRIO

REFLEXÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO URBANO E SOCIAL

9 O DIREITO À CIDADE NA PERSPECTIVA DO USO DO SOLO E DO EQUIPAMENTO SOCIALAntônio GurGel Pinto Junior KrysnA MAriA Medeiros PAivA

15 O DIREITO À CIDADE E O DIREITO ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS NO BRASIL: O DIREITO À PRODUÇÃO E FRUIÇÃO DO ESPAÇO E O ENFRENTAMENTO DO DÉFICIT DE IMPLEMENTAÇÃOMArise CostA de souzA duArte

34 FACETAS DO DIREITO À CIDADEBrunA AGrA de Medeiros MAriA eMíliA FreitAs dióGenes

DIREITO URBANÍSTICO: ENTRE O DIREITO E O ACESSO À CIDADE

37 A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE COMO PARÂMETRO PARA TRATAMENTO DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOSHenrique BotelHo FrotA

53 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E O DIREITOdAniellA MAriA dos sAntos diAs

64 O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO FUNDAMENTAL DE PLANEJAMENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADESnAyArA oliveirA dA silvA

71 O PROBLEMA DO LICENCIAMENTO DE GRANDES EMPREENDIMENTOS PRIVADOS EM FACE DO DIREITO URBANÍSTICO: ANÁLISE DE UM CASO EMBLEMÁTICO NA PERIFERIA DA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIROAlex FerreirA MAGAlHães lAurA MArques dos sAntos FernAndes Alves AnGel CostA soAres JuliAnA leite de ArAúJo

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ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS

93 A EDUCAÇÃO PÚBLICA COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO SUSTENTÁVEL DO BRASILCArlos sérGio GurGel dA silvA ClAudoMiro BAtistA de oliveirA Jr.

105 A EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL WAlBer de MourA AGrA

119 A (IN)JUSTIÇA DO DIREITO BUROCRATIZADOPedro sAvi neto

135 A POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRASMArCyo Keveny de liMA FreitAs PAtríCiA BorBA vilAr GuiMArães

139 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO CONTINENTE EUROPEU: BREVES APONTAMENTOSAnnA PAulA Grossi luCiAno MeneGuetti PereirA

164 CRIMINALIDADE ORGANIZADA E JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA: DELAÇÃO PREMIADAluiz Flávio GoMes MArCelo rodriGues dA silvA

176 ECONOMIA CRIATIVA: CONCEITO E RELAÇÃO COM O DIREITOviCtor M. BArros de CArvAlHo Anderson s. s. lAnzillo PAtríCiA BorBA vilAr GuiMArães

187 NOTAS ACERCA DO CRIME DE FURTO DE COISA COMUMCHristiAno FrAGoso

199 O DISCURSO ENTRE O CÁRCERE E A SUA SUPOSTA GRANDEZA SISTÊMICA FáBio WellinGton AtAíde Alves

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ARTIGOS CIENTÍFICOS

208 A IMPORTÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES DE CONSUMOleonArdo AlBuquerque Melo

217 A RELATIVIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE NOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO: A IMPRESCINDIBILIDADE DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NA ANÁLISE DO CASO CONCRETOluCely GinAni Bordon rAFAel Bruno do CArMo diAs

231 A RELEVÂNCIA DO PRÉVIO ESGOTAMENTO DAS INSTÂNCIAS DESPORTIVAS E AS SANÇÕES AO SEU DESCUMPRIMENTOniCHolAs CAFé de Melo MorAis de MendonçA

244 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA TERCEIRIZAÇÃO: UM PARALELO ENTRE O DIREITO À VERBA ALIMENTAR DO TRABALHADOR E A PROMOÇÃO DO ESTADO SEGURADOR DO SEGMENTO PRIVADOPAulo vitor Avelino silvA BArros

257 DELIMITAÇÕES DO INTERESSE PÚBLICO NAS ATIVIDADES DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO E A IMPORTÂNCIA DE UMA EMPRESA ESTATAL NO SETORsânziA Mirelly dA CostA Guedes

272 JUIZ, FORMA E SUBJETIVIDADE: A IDEOLOGIA COMO IMPOSIÇÃO NA APLICAÇÃO DA PENA BASEindAléCio roBson PAulo PereirA Alves dA roCHA

288 MULTIPARENTALIDADE NOS CASOS DE RECONHECIMENTO DE FILHO JÁ REGISTRADO: UMA SOLUÇÃO À LUZ DACONSTITUCIONALIZAÇÃODO DIREITO CIVILrHAFAelA Cordeiro dioGo

300 O ESTADO DE DIREITO, A QUEBRA DO PARADIGMA POSITIVISTA E O SURGIMENTO DO ATIVISMO JUDICIALFáBio Antônio CorreiA FilGueirA FilHo

GABriel luCAs MourA de souzA

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316 O HUMANISMO NA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: PARA ALÉM DO SÓCIO-POLÍTICO-ECONÔMICOsHeylA yvette CAvAlCAnti riBeiro CoutinHo

331 O INJUSTIFICADO NÃO-RECONHECIMENTO DAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS:UMA ANÁLISE CONSTITUCIONALJessiCA PetroviCH Henriques

348 OS REFLEXOS DO DEBATE HART-DEVLIN NA TEORIA DO DIREITO DE HARTroGério CésAr MArques

364 O USO DOS DIREITOS HUMANOS COMO FUNDAMENTO DE INTERVENÇÃONA SOBERANIA DOS ESTADOSFernAndA Monteiro CAvAlCAnti

381 SOBRE O CONCEITO DE LIBER

DADE EM AMARTYA SENyAnKo MArCius de AlenCAr xAvierCristinA Foroni ConsAni

LITERATURA E DIREITO

396 POESIA: POBREZAJAir soAres de oliveirA seGundo

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Recebido em 01 maio 2015. Aceito em 01 maio 2015.

O DIREITO À CIDADE NA PERSPECTIVA DO USO DO SOLO E DO EQUIPAMEN-TO SOCIAL

Antônio Gurgel Pinto Junior*

Krysna Maria Medeiros Paiva**

RESUMO: O papper se propõe a analisar brevemente o contexto de urbani-zação das cidades, apontando os problemas que impedem avanços no exercí-cio pleno de direitos concedidos na Constituição Federal Brasileira de 1988. Outrossim, pontuar elementos capazes de modificar essa realidade de modo a propagar o universo de atuação do Núcleo Urbano do Programa Motyrum no bairro de Mãe Luiza, no município de Natal, conjecturando o fortalecimento do Direito à Cidade. Palavras-chave: Urbano. Cidade. Direitos.

“A vida urbana não começou.” (Henri Lefebvre)

1 INTRODUÇÃO

As cidades brasileiras, frutos de um processo de urbanização desenfreada e carente de organização, são severamente marcadas por problemas de ordem social, ambiental e urba-nística. Dessa forma, acabaram por serem criados centros urbanos zoneados, caracterizados por ampla desigualdade social como modelo de organização das cidades. As zonas urbanas são então marcadas por forte contraste entre as regiões habitadas pelas classes média e alta, e as pe-riferias, habitadas pelas classes de baixa renda, as quais acabam desprestigiadas pelas políticas

* Graduando de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 5º período.** Graduanda de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 2º período.

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públicas mal planejadas e executadas de modo falho. Dentre os inúmeros entraves enfrentados pelos seus cidadãos, é possível altear a falta

de equipamentos públicos de qualidade, causa de impedimento para grande parte de a popula-ção dispor das garantias estatais básicas – postos de saúde e escolas dotados de uma estrutura digna, por exemplo - além de tornar impalpável o acesso das classes mais baixas ao lazer e ao entretenimento, colocando em cheque uma série de Direitos Sociais elencados no artigo 6º, da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Busca-se então, através do presente trabalho, tratar da relevante questão do desenvol-vimento urbano nacional, cujas chagas afetam grande parte das cidades do país, fomentando o debate acerca do tema, de modo a possibilitar a tomada de conhecimento por parte da popula-ção. Para que tal objetivo possa ser alcançado, além das disposições iniciais acerca do direito à cidade e seus elementos, o trabalho contará com o exemplo do Arena do Morro, equipamento construído no bairro de Mãe Luíza, zona leste da cidade de Natal/RN, comunidade na qual o Núcleo Urbano do Programa de Educação Popular em Direitos Humanos - Motyrum, vem rea-lizando suas atuações durante o ano de 2015.

2 O USO DO SOLO: A GÊNESE DO DIREITO À CIDADE

Num apelo à historicidade, a década de 1970 foi fatalmente um marco para o desenvolvimento de políticas que atendessem às necessidades das aglomerações humanas prin-cipalmente quanto a sua relação com o uso do solo. Nesse sentido, em 1976, foi realizada a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos em Vancouver, no Canadá (Habitat I). Logo, apesar de certo distanciamento com a realidade em função de mu-danças de paradigmas do cenário mundial ao longo do tempo - comprometendo as projeções e metas trabalhadas nessa primeira conferência1 - ela compôs um alicerce referente às políticas de solo ordenadoras do território como um agente primordial na promoção da qualidade de vida nos aglomerados humanos numa escala mundial2.

Em convergência a essa ideia, de modo inovador no cenário nacional, foi criada a Lei n° 6.766 de 1979, ou Lei de Parcelamento dos Solos para fins urbanos3. A inovação decorrente

1 ALVES, José Augusto Lindgren. A Habitat II e as encruzilhadas de Istambul. In: ALVES, José Augusto Lindgren. Relações interna-cionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Ibri, 2001. p. 249. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=z2LLE3uEhOIC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f;=false>. Acesso em: 29 maio 2015.2 CORREIA, Paulo V. D.. Introdução: O Solo, as Políticas e o Planeamento Municipal. In: CORREIA, Paulo V. D.. Políticas de Solos no Planeamento Municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. Cap. 1, p. 15.

3 Artigo 1º. O parcelamento do solo para fins urbanos será regido por esta Lei.Parágrafo único - Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão estabelecer normas complementares relativas ao parcelamento do solo municipal para adequar o previsto nesta Lei às peculiaridades regionais e locais.Artigo 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem.

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da Lei abarca a revogação parcial dos Decretos-Lei 58/37 e 271/67 por uma ótica pública sobre o parcelamento do solo, mediante a figura do Estado como o maior interessado na ocupação ade-quada do espaço urbano, atribuindo direitos e deveres à relação entre a coletividade e o priva-do4. É importante ressaltar que desde 1934, a Constituição Brasileira já carregava a concepção de função social da propriedade, de modo que torna possível perceber que mesmo anterior ao ano de 1988, a legislação já dispunha de modo característico sobre a questão do uso e ocupação do solo.

Contudo, somente após a consolidação da Constituição Federal Brasileira de 1988 foi possível tal feito, sendo então implantados, no Capítulo II “Da política urbana”, do Título VII “Da ordem econômica e financeira” os artigos 182 e 183. Os dispositivos trazem encaminha-mentos no que diz respeito ao desenvolvimento urbano, à função social da cidade e à gestão democrática do espaço urbano dando margem ao desenvolvimento da Lei nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade que versa sobre as diretrizes gerais da política urbana, dando abertura à solidez do Direito à Cidade5.

Nesse aspecto, a Constituição Federal Brasileira de 1988 designada no cenário de esta-belecimento do Estado Democrático de Direito, no qual prevalecem os direitos de solidariedade e a grande influência dos direitos sociais, traz consigo um enraizamento da função social da propriedade inicialmente semeada em 1934.

Esse conceito, fortemente debatido nas discussões referentes à distribuição das ter-ras do país, abarca a função do solo como um vetor da vida em sociedade convergente a uma perspectiva de direitos fundamentais. Dessa forma, a nossa legislação considera as terras “im-produtivas” como um obstáculo aos cidadãos desprovidos de poder aquisitivo suficiente para adquirir uma propriedade, comprometendo a garantia do seu direito fundamental à moradia e da sua dignidade.

Aliada a essa ideia, perceber a função social da cidade, parte do entendimento de que o Estado deve dispor o solo à sua função, propiciando para além da moradia em si, o uso devido de terrenos públicos para a construção de equipamentos sociais visando o bem-estar coletivo. Por conseguinte, a construção desses equipamentos, deverá estar de acordo com as necessida-des e costumes dos cidadãos, assim como, com as potencialidades do espaço a ser utilizado (SANT’ANNA, 2011, p. 119).

Tais elementos podem ser aferidos a partir do planejamento urbano na personificação do Plano Diretor6, um instrumento de competência Municipal que visa discriminar a atuação do

§ 2º - Consideram-se comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares. (grifos nossos)4 CARDOSO, Fernanda Lousada. Lei do parcelamento do solo urbano: Histórico Legislativo. Disponível em: <http://www.editorajuspo-divm.com.br/i/f/13-22 Urbanistico 2ed.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2015.5 (LEFEBVRE, 2001). 6 Artigo 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (Regulamento)§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

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Estado no que diz respeito à alteração do espaço urbano, trazendo limites urbanísticos a serem observados, além de correlacionar concepções importantes, atribuindo uma “função social” para além da propriedade em si, enxergando o ambiente da “cidade”.

Nessa perspectiva, consonante a Habitat I, devido ao cenário de aumento da urbani-zação em todo o globo, a Habitat II, em 1996, foi realizada em Istambul, tendo como produto final a elaboração da Agenda Habitat. Visto a demanda do cenário internacional pelo reforço à primeira Conferência, em 1976, no objetivo de consolidar uma visão social sobre a cidade, foi estabelecida a Agenda como um plano estratégico contendo mais de 100 compromissos e 600 recomendações adotadas por 171 países7, sob dois pilares: garantir uma moradia adequada para todos, ao passo do desenvolvimento dos assentamentos humanos, mediante planejamento urbano, acesso a serviços e infraestrutura básicos.

3 O PLANEJAMENTO URBANO COLABORATIVO NA PERSPECTIVA DO ARENA DO MORRO

Fundamentalmente, uma gestão urbana progressista dentro da sociedade de classes precisa do reconhecimento das desigualdades sociais como inerentes a valorações histórico-e-conômicas enraizadas nas relações humanas. Nessa conjuntura, emana a necessidade angular de satisfazer demandas das aglomerações urbanas por meio da abertura de canais de diálogo e a superação de preconceitos na promoção da justiça social8.

Consoante ao exposto, em função das dificuldades encontradas na composição desses fatores supracitados que fomentam o planejamento urbano colaborativo, muitas vezes a socie-dade civil reage ao planejamento oficial com um contraprojeto9 propositando pleitear seus in-teresses, tendo em vista constituir-se como célula-máter da sociedade. Nessa perspectiva, agem os movimentos sociais que, mediante as mobilizações, conquistam direitos sociais, a politiza-ção das cidades e a possibilidade de humanização do urbano10 - fatores correlatos à perspectiva que atua na comunidade de Mãe Luíza, o Núcleo Urbano do Programa Motyrum.

Todavia, quando os canais de diálogo são abertos e preconceitos superados, equipa-mentos sociais podem ser dialogados e instalados em comunidades, como a natalense de Mãe Luíza, onde o escritório suíço Herzog & De Meuron junto à Fundação Ameropa e o Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora de Conceição11 construíram em congruência às expectativas dos moradores do bairro, o ginásio nomeado por “Arena do Morro” - inclusive ganhador do prêmio

7 UN Habitat. The Habitat Agenda. 1996.8 SOUZA, Marcelo Lopes de. Planejamento comunicativo/colaborativo. In: SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma crítica ao planejamento e a gestão urbanos. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. Cap. 7, p. 151.9 (SOUZA, 2010).10 (SOUZA, 2010).11 MEURON, Herzog & de. Arena do Morro. Disponível em: <http://www.herzogdemeuron.com/index/projects/complete-works/351-375/354-1-arena-do-morro.html>. Acesso em: 30 maio 2015.

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“Edificação do Ano 2015”12 na categoria esportiva em premiação promovida pelo portal britâ-nico Archdaily.

Importa ressaltar, assim, que a Arena do Morro conquista esse papel fundamental junto à comunidade, em virtude da Lei nº 4.663/95 que concebe o bairro de Mãe Luíza como Área Especial de Interesse Social (AEIS). Por conseguinte, a legislação vigente tendo em vista a produção, manutenção e recuperação de habitações de interesse social, permite aos cidadãos de uma localidade privilegiada na cidade de Natal, a proteção sobre o seu direito à moradia de forma plena.

Em suma, a disponibilização de uma comunicação prévia até a conclusão do projeto permitiu o surgimento de uma identidade dos cidadãos daquela localidade com a obra, de modo valorizá-la e cuidá-la pelo atendimento de seus anseios por direitos básicos inerentes a qualquer cidadão brasileiro. Por intermédio da Lei nº 4.663/95, é possível consolidar o Direito a Cidade dos moradores à medida que se fortalece o elo existente perante a sua propriedade, ao seu bairro e aos equipamentos sociais ali presentes.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da contextualização histórica apresentada, a temática urbana ganha evidência em períodos nos quais estão se firmando os efeitos da industrialização, o que faz desse fenôme-no item indissociável à urbanização, por sua vez objetivo do poderio industrial.

Dessa forma, o pensar sobre o meio urbano, não deve seguir a lógica industrial de larga expansão do consumo e crescimento econômico com fim em si mesma, considerando a necessi-dade de ponderação quanto os interesses do setor privado nos efeitos de uma urbanização sem a devida regulação do uso do solo para atender direitos, conforme explicitado pelas Conferências das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos de 1976 e 1996, paralelamente à legitima-ção dos artigos 182 e 183 na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Em agravo à primeira Conferência nos moldes explanados, houve uma dispersão das conclusões obtidas com a realidade fática, no que se referem às conjunturas sociais e temporais causadoras de impactos num sociedade sempre em modificação. Logo, é possível perceber que a ausência de correlação dos projetos que a sociedade civil tem para si com aqueles impostos, sugere um caminho para uma orientação do crescimento reorganizado durante a Habitat II, no propósito de se desenvolver uma sociedade urbana de fato, garantindo o Direito à Cidade de seus cidadãos.

Portanto, é notável que o meio urbano deva ser pautado pelo cumprimento da democra-cia em seu real sentido, abrindo margens ao diálogo entre pessoas e instituições. É nesse aspecto que “a vida urbana ainda não começou” (LEFEBVRE, 2001, p. 108) e que o Núcleo Urbano do Programa Motyrum se insere. Sumariamente, os valores de dominação que permearam a socie-

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dade por muito tempo estão forçosamente presentes na atualidade prejudicando a plenitude da consecução de direitos deliberados no ordenamento jurídico brasileiro; porém, valorações essas que não são definitivas.

REFERÊNCIAS

MEURON, Herzog & de. Arena do Morro. Disponível em: <http://www.herzogdemeuron.com/index/projects/complete-works/351-375/354-1-arena-do-morro.html>. Acesso em: 30 maio 2015.

SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma crítica ao planejamento e a gestão urbanos. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 556 p.

CARDOSO, Fernanda Lousada. Lei do parcelamento do solo urbano. Disponível em: <http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/13-22 Urbanistico 2ed.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2015.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001. 144 p.

CORREIA, Paulo V. D.. Políticas de Solos no Planeamento Municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. 401 p.

SANT’ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (Coord.). Direito urbanístico e ambiental. 2 ed. rev. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 117-136. ISBN 978-85-7700-449-2.

UN Habitat. The Habitat Agenda. 1996. Disponível em: <http://ww2.unhabitat.org/declarations/habitat_agenda.asp>. Acesso em: 10 maio 2015.

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Recebido em 03 maio 2015 Aceito em 03 maio 2015

O DIREITO À CIDADE E O DIREITO ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS NO BRASIL: O DIREITO À PRODUÇÃO E FRUIÇÃO DO ESPAÇO E O ENFRENTAMENTO DO DÉFICIT DE IMPLEMENTAÇÃO

Marise Costa de Souza Duarte*

RESUMO: O texto trata do direito à cidade, a partir de importantes visões teóricas e como objeto de debate internacional (anos 2000); impulsionado pe-las ideias sobre justiça social no meio urbano originada, no Brasil, no Gover-no João Goulart e retomada no contexto da redemocratização. Considerando que, a partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade, encontra-se substancioso arsenal normativo voltado à construção de cidades justas e sus-tentáveis, que não encontra expressão concreta nas cidades brasileiras, apon-ta-se trilhas para o enfrentamento do déficit de implementação desse novo direito, compreendido, em sua essência, como direito à produção e fruição do espaço. Palavras-chave: Direito à cidade. Direito à cidade sustentável. Estatuto da Cidade. Direito à produção do espaço. Déficit de implementação.

1 INTRODUÇÃO

O estudo sobre o direito à cidade não é recente e nem privilégio da doutrina jurídi-ca, constituindo-se objeto de análise por parte da Sociologia e da Geografia, como no caso do sociólogo francês Henri Lefebvre1 e do geógrafo inglês David Harvey2; que nos trazem ideias

* Doutora em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFRN (Área de concentração: Urbanização, Projetos e Políticas Físico-Territoriais), com estágio de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal; Mestre em Direito Público – DPU/UFRN; Graduada e Especialista em Serviço Social – DESSO/UFRN.1 Considerado pioneiro no estudo do tema, na obra Le droit à la ville, publicada em 1968. 2 Entendemos que os fundamentos da concepção de Harvey sobre o tema, sobre o qual vem tratando em entrevistas concedidas a partir de 2006, podem ser encontrados em sua obra Espaços de Esperança. Trad. De Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: Edições Loyola, 2004.

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essenciais sobre o tema, convergentes na compreensão de que o direito à cidade se coloca como uma construção coletiva, como um direito à produção do espaço.

No Brasil, a busca pela efetivação da justiça social no meio urbano, que impulsionou a luta pela reforma urbana (ainda na década de 60), teve frutos concretos ao final do período da Ditadura Militar, a partir da discussão da questão urbana no âmbito do Movimento Nacional pela Reforma Urbana – MNRU (criado em 1985), cujo ideário teve rebatimento na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988); vindo dar origem ao Capítulo da Política Urbana na Consti-tuição Federal de 1988.

O amadurecimento do ideário do direito à cidade ocorreu com a edição do Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), que trouxe diretrizes e instrumentos voltados a garantir a função social da cidade e da propriedade urbana, a regulação pública do solo, ao enfrentamento de distorções do crescimento urbano e à construção democrática das cidades; positivando um novo direito no ordenamento jurídico brasileiro: o direito às cidades sustentáveis.

A experiência brasileira de buscar o reconhecimento do direito à cidade, a partir de uma ação política em defesa da implantação da plataforma da Reforma Urbana, contribuiu para o debate internacional sobre o direito à cidade; que se materializou na Carta Mundial pelo Di-reito à Cidade, finalizada em 20053 e à qual o Governo Brasileiro aderiu em 2006.

Contudo, observando-se o cenário das cidades brasileiras em 2015 constata-se um gra-ve quadro de insustentabilidade urbana. Colapso de água em um expressivo número de cidades (com enfoque para São Paulo e várias cidades do Nordeste), risco de apagão elétrico, aumento do calor, explosão da violência urbana, enchentes e deslizamentos de terras, falta de mobili-dade, ausência de moradia digna e adequada para grande parte da população, insuficiência de saneamento ambiental, dentre outros graves problemas socioambientais urbanos, fazem parte da experiência cotidiana nas cidades brasileiras.

Paralelamente, nos últimos anos houve um gradativo aumento da renda das classes sociais de menor poder aquisitivo, com consequente e progressivo acesso ao consumo; o que, no entanto, não veio acompanhada do acesso ao direito à cidade sustentável e aos direitos urbanos que ele comporta (direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, aos transportes e aos serviços urbanos, ao trabalho e ao lazer)4.

Diante desse cenário e da percepção de que “algo está fora do lugar”, o presente artigo traz à tona alguns fundamentos doutrinários e legais que possibilitam compreender esse novo contexto em que se insere a busca pela garantia dos direitos urbanos e apontar trilhas para o en-frentamento do déficit de implementação do direito à cidade sustentável positivado na legisla-ção brasileira desde o ano de 2001 e, em sua essência, compreendido, como direito à produção e fruição do espaço.

3 No Fórum Social Mundial ocorrido em Porto Alegre – RS.4 Nos termos postos pelo art.2º, inc. I, do Estatuto da Cidade (Lei Federal n.10.257/2001).

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2 O DIREITO À CIDADE – IDEIAS ESSENCIAIS

Quando tratamos teoricamente do direito à cidade, emergem algumas ideias essenciais trabalhadas por alguns estudiosos da cidade e do urbano, sobre os quais iremos tratar, ainda que de modo sucinto, para conduzir nossa reflexão sobre o tema.

Por outro lado, embora ciente de que a abreviação de pensamentos doutrinários subs-tanciosos pode suscitar uma redução da profundidade dada por seus autores, a pontuação de ideias sobre o direito à cidade, a partir de doutrinadores com renome no estudo do tema5, se faz essencial nesse momento em que refletimos sobre um novo direito posto no ordenamento jurídico brasileiro.

Podemos dizer que a ideia de direito à cidade não é recente. Em 1968, Henri Lefebvre, filósofo marxista e sociólogo francês, suscitava a ideia do direito à cidade a partir de uma con-cepção crítica e inovadora (ao urbanismo positivista). Compreendendo que o direito à cidade não se realiza simplesmente pela construção de moradias e outros bens materiais por parte de um Estado autoritário planificador, Lefebvre considera que o direito à cidade deve ser com-preendido como um apelo, uma exigência, uma

forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar”; onde, segundo o mesmo, se encontram implicados o “direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade). (LEFEBVRE, 2008)

Nesse sentido, para Lefebvre (2008) a busca pelo direito à cidade se identifica com a luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social. Compreendendo o exercício da cidadania muito além do direito de voto e expressão verbal, o sociólogo francês defende uma forma de democracia direta, que se efetive pelo controle direto dos indivíduos sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva. Visto sob essa perspectiva ativa, o direito à cidade é posto como um direito à produção do espaço.

Em momento mais recente, David Harvey, geógrafo marxista, passa a tratar do direito à cidade, cuja busca pela efetivação deve se colocar, segundo o mesmo, como objeto de luta de vários movimentos sociais.

Constituído a partir da ideia do estabelecimento de um controle democrático sobre os excedentes do capital obtidos através do processo de urbanização, Harvey (2009) considera o direito à cidade como um direito coletivo (e não, individual) que consiste em um poder da so-ciedade sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização.

Considerando que historicamente as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas, entende, David Harvey, que o direito à cidade deve ser considerado como um direito progressista, constituindo-se como o direito de se fazer algo no futuro, de participar pro-ati-

5 Sem ignorar a existência de outros estudos sobre o tema.

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vamente. Assim, considera que “reclamar o direito à cidade é reclamar ter voz ativa sobre os processos de urbanização, por meio dos quais nossas cidades são feitas e refeitas de uma maneira fundamentalmente radical” (HARVEY, 2009)

Desse modo, para Harvey, “o direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente” (HAR-VEY, 2009). Integrada nessa percepção está a ideia de que a cidade deve ser vista “não como uma cidade de fragmentos, mas como um corpo político, como uma “entidade que tem um ca-ráter, um papel a desempenhar na divisão internacional do trabalho” (HARVEY, 2006) e que, portanto, pode (e mais ainda, deve) ser produzida coletivamente a partir das ideias e ideais dos sujeitos que participam ativamente dessa produção; não sob a visão do solo como mercadoria (como forma essencial de reprodução da lucratividade do capital) mas, a partir de uma visão de transformação humanizadora, como espaço de materialização dos princípios de justiça social e ambiental. Nessa construção teórica, importante compreender o pensamento de Harvey sobre dois modos diferentes de como a cidade pode ser produzida:

Em Nova York, por exemplo, temos um prefeito, Michael Bloomberg, que tem uma visão de conjunto da cidade e a está implementando. Aponta para fazer de Nova York uma cidade competitiva em relação ao interesse da classe capitalista transnacional. Não é exatamente autoritário, mas diz estar acima da política. Está investindo na cidade e tem muitos projetos de desenvolvimento; preocupa-lhe a qualidade de vida, ainda que não para toda a população. A está convertendo numa cidade muito atrativa para o capital financeiro e para os turistas. Sei que isto é um problema, mas o que quero dizer é que ao menos tem uma visão da cidade em seu conjunto e a está levando a cabo sob essa perspectiva de classe. Nosso problema é porque não podemos fazer algo similar desde uma perspectiva de classe alternativa. Há casos. Por exemplo: pode-se fazer muitas críticas a Porto Alegre, mas ali houve uma tentativa de olhar a cidade em seu conjunto. Através da elaboração participativa do orçamento podemos envolver toda a população nas decisões da construção da cidade. É uma boa ideia. Traz problemas, evidentemente, mas ao menos nessa instância não se tem um movimento social num bairro e outro num outro bairro, mas que diz: pensemos a cidade em seu conjunto, vejamos como ela funciona e nos encarreguemos dela6.

Tal compreensão da cidade (como corpo político), sob uma perspectiva alternativa, suscita a constatação de que:

Temos a oportunidade de criar espaço, de fortalecer criativamente as forças que trabalham para a diferenciação urbana. Mas, para agarrar essas oportunidades temos que defrontar as forças que criam cidades como ambientes estranhos, que impulsionam a urbanização em direções estranhas a novos propósitos individuais ou coletivos. (HARVEY, 1980, p.270).

6 HARVEY, David. Entrevista Clarín, 21 de out. 2006, Suplemento Revista.

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A partir de tais ideias, que consideramos essenciais para discutir o direito à cidade sustentável no ordenamento jurídico brasileiro, passamos a compreender a trajetória do tema no Brasil.

3 BRASIL: O IDEÁRIO DA JUSTIÇA SOCIAL NO MEIO URBANO. O MOVIMENTO NACIONAL PELA REFORMA URBANA, A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O ESTATUTO DA CIDADE7

A ideia sobre a efetivação da justiça social no meio urbano remonta à década de 1960, quando, no Governo do Presidente João Goulart, foi elaborado o Projeto de Reforma Urbana abortado com o regime militar instalado no país no período de 1964 a 1985, que veio impedir qualquer discussão pública desse projeto emancipatório.

A recomposição do campo da Reforma Urbana veio ocorrer a partir da perspectiva da elaboração da nova Constituição, o que ocorreu em meados dos anos 1980, ao término do governo do general João Batista Figueiredo, com a eleição do primeiro presidente civil desde o Golpe de 1964.

A concepção progressista da Reforma Urbana amadureceu entre meados e o fim da década de 1980, propiciado pela constituição do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, esta compreendida como:

conjunto articulado de políticas públicas, de caráter redistributivista e universalista, voltado para o atendimento do seguinte objetivo primário: reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano e promover uma maior democratização do planejamento e da gestão das cidades (SOUZA, 2006, p. 158).

Tendo sua agenda centrada no fortalecimento da regulação pública do solo, funda-mentada nos princípios da função social da propriedade, na gestão democrática da cidade e na inversão de prioridades no que tange à política de investimentos urbanos visando favorecer as necessidades sociais da população mais pobre da cidade (SANTOS JÚNIOR, 1995), a partir da percepção da lógica perversa de produção e apropriação privada do solo urbano, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana passou a ser o referencial da condução da questão urbana sob uma perspectiva crítica e transformadora.

Esse Movimento deu origem ao Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), impor-tante grupo de atores composto de intelectuais ligados à temática urbana, urbanistas, advoga-dos, professores universitários, estudantes e lideranças de movimentos sociais, com presença em várias partes do país, dando origem “a um novo sujeito coletivo, mais plural e heterogêneo

7 Grande parte da análise ora realizada é encontrada em nosso livro Meio Ambiente e Moradia: direitos fundamentais e espaços especiais na cidade. Curitiba: Juruá, 2012.

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que a maioria das organizações sociais até então existente.” (SANTOS JÚNIOR, 2008, p. 146). No contexto da elaboração da Constituição de 1988, cujos trabalhos ocorreram no

período entre 1986 a 1988, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana teve um papel funda-mental ao apresentar proposição de Emenda Popular com mais de 130 mil assinaturas, com a proposta de introdução de um capítulo sobre Política Urbana. Tal proposição foi parcialmente aproveitada pela Assembleia Nacional Constituinte, vindo dar origem aos artigos 182 e 183 da Carta Maior, que constituem o Capítulo da Política Urbana.

Ressalta-se que, em seu artigo 182, a Constituição Federal trata das funções sociais da cidade e da garantia do bem estar dos habitantes como objetivos da política de desenvolvimento urbano.

Ainda que não tenha acolhido integralmente o que propunha aquela Emenda Popular, a instituição de um capítulo específico para a “Política Urbana”8 foi considerado um enorme avanço no texto constitucional, aliado à expressa referência ao “direito urbanístico” (art.24, I), à imposição da responsabilidade compartilhada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art.23, IX); além da vinculação do direito de propriedade à sua função social (art.5º, incisos XXII e XXIII).

Merece destaque o fato de que, logo no início de seu texto (artigo 1°, III), a Carta Mag-na de 1988 estabeleceu que a dignidade da pessoa humana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Em seguida (no art.3°), a Constituição definiu os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais se inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e so-lidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluída qualquer forma de discriminação.

Coube ao Estatuto da Cidade, que entrou em vigor em 10 de julho de 2001 (Lei Federal n. 10.257), regulamentando o capítulo constitucional da Política Urbana, instituir um impor-tante arsenal normativo capaz de municiar a Reforma Urbana em muitos de seus propósitos, especialmente na implementação de políticas focadas na redução da desigualdade social (onde o acesso à terra urbanizada e bem localizada para produção de política habitacional se constitui elemento essencial) e na construção democrática das cidades.

Estabelecendo um regramento abrangente para a cidade, incorporando a questão am-biental, o Estatuto “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (parágrafo único do artigo do seu art.1°); e propõe como objetivo da Política Urbana “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da pro-

8 Com as importantes disposições ali contidas, incluindo instrumentos urbanísticos, como o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o IPTU Progressivo no Tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública; além da usucapião especial urbana e a concessão de uso especial.

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priedade urbana” (artigo 2º, caput). Tal assertiva se comprova logo ao tomarmos contato com as diretrizes gerais da Po-

lítica Urbana (art.2º) que estabelecem a garantia do direito a cidades sustentáveis; a gestão democrática; a integração de políticas públicas, privadas e sociais, visando o interesse social; o planejamento do desenvolvimento das cidades de modo a “evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e os efeitos seus efeitos negativos sobre o meio ambiente” (Lei nº 10.257, resumo do art. 2º); a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, serviços públicos e de transporte de qualidade e a ordenação e controle do uso do solo, visando principalmente que a propriedade cumpra sua função social.

Observando-se o conteúdo do referido artigo, vê-se que a articulação das temáticas ambiental e social no meio urbano (compatibilizando a “Agenda Verde”9 e a “Agenda Mar-rom”10) não expressamente tratada pela Constituição de 1988, foi amplamente considerada no Estatuto da Cidade; trazendo elementos essenciais de articulação, quais sejam: a função social da cidade, a função social da propriedade (em sua acepção socioambiental) e o direito à cidade sustentável.

Assim ocorreu, vez que durante a construção do Estatuto da Cidade aprofundou-se a problemática socioambiental nas cidades brasileiras, resultado de um modelo econômico que primou pelas reformas estruturais de caráter neoliberal, tendo início no governo Collor de Melo (1989) e consolidando-se nos dois períodos sucessivos de governo de Fernando Henrique Car-doso (1995/1998 e 1999/2002).

No contexto de um novo paradigma criado a partir da Constituição de 1988, denomi-nado, conforme Santos Júnior, de cidade-direito, “que tem se caracterizado pela construção de diagnósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégias de um pro-jeto alternativo de cidade” (SANTOS JÚNIOR, 2008, p. 146), foi criado, no âmbito federal, o Ministério das Cidades (2003) e o Conselho Nacional de Cidades (2004), voltados a colocar em prática no Brasil um novo projeto de cidade, na qual a sustentabilidade e a gestão democrática fossem elementos centrais.

Registra-se, entretanto, que, a partir de 2005, quando o então Presidente Lula precisou ampliar sua base no Congresso após a crise do mensalão, e trocou o comando do Ministério da Cidades (substituindo o Ministro Olívio Dutra11), essa Pasta, criada (sob o paradigma da Refor-ma Urbana) com objetivo de exercer papel coordenador do governo federal na formulação de políticas urbanas para melhorar a distribuição dos recursos aos municípios, teve seus objetivos limitados pela ausência de uma estratégia para as cidades, como analisa o Professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro12; passando a se colocar, essencialmente, como o órgão federal viabilizador

9 Como também foi denominada a Agenda 21, aprovada na Conferência do Rio (1992). 10 Denominação atribuída à Agenda Habitat aprovada na Conferência de Istambul (1996).11 Ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra (PT), escalado como o primeiro Ministro das Cidades. 12 In: RODRIGUES, Alexandre. Com dificuldades de responder a demandas, Ministério das Cidades atrapalha Dilma: Pasta foi esvazia-da ao ser entregue ao PP e perdeu força. O Globo, 02 ago. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/com-dificuldades-de-res-ponder-demandas-ministerio-das-cidades-atrapalha-dilma-13474201#ixzz3Y9cXcdXN>. Acesso em: 22 abr. 2015

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de grandes obras urbanas, como aquelas integrantes do Programa de Aceleração do Crescimen-to - PAC, especialmente em decorrência da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, e do Programa Minha Casa Minha Vida.

Contudo, permeando todo esse contexto destaca-se o direito à cidade sustentável, po-sitivado no sistema jurídico brasileiro através do Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º (inciso I), e compreendido como “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraes-trutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Destaca-se que o mesmo Estatuto estabelece que a Política Urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

Criado está um novo direito em nosso ordenamento jurídico que, nos termos contidos na definição legal, reúne direitos fundamentais (como moradia, trabalho, lazer e outros) aliados a importantes condições para a garantia do bem estar dos habitantes das cidades; tendo como base aquelas normas básicas e fundamentais contidas na Constituição Federal.

Nos termos postos por Cavalazzi, a cidade sustentável seria aquela onde se concretiza a compatibilização dos princípios de justiça distributiva com o equilíbrio das relações de todos os atores sociais; implicando o “desenvolvimento econômico compatível com a preservação ambiental e a qualidade de vida dos habitantes; em uma palavra, equidade”. (CAVALAZZI, 2007, p.69)

Considerando a abrangência do direito a cidades sustentáveis, de modo a albergar outros tantos direitos referentes à qualidade de vida nas cidades, podemos dizer que as normas destinadas a implementar, em todos os níveis da Federação, políticas públicas referentes à mo-radia e terra urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e serviços públicos, e ao trabalho e lazer, se constituem, em nosso ordenamento jurídico, instrumentos viabilizadores da efetivação daquele direito.

Merece destaque o fato de que todo esse ideário, inicialmente posto na Constituição de 1988 e após, no Estatuto da Cidade, teve um forte rebatimento nas constituições estaduais e leis orgânicas municipais editadas a partir de 1988, assim como nos planos diretores e leis de caráter local ou estadual, resultando em muitos avanços na produção normativa referente ao acesso ao direito à cidade (ainda que pontualmente) (SANTOS JÚNIOR, 2008). Importante destacar a campanha do Plano Diretor Participativo lançada pelo Ministério das Cidades, no ano de 2005, com o apoio do Conselho de Cidades, havendo um forte enfoque integrado das temáticas social e ambiental urbana, nos termos postos no Estatuto da Cidade.

Como consequência, um grande número de cidades brasileiras elaboraram seus Planos Diretores com fundamento nesse novo paradigma; trazendo, ao menos a nível normativo, im-portantes instrumentos para o tratamento da questão urbana (com destaque à democratização do acesso à terra e aos direitos urbanos).

No âmbito nacional, a partir de 2005 foram elaboradas várias políticas destinadas a garantir a efetivação de direitos urbanos; destacando-se: a Lei 11.124/2005 (Política Nacional de

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Interesse Social); a Lei 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana); Lei n°11.445/2007 (Política Nacional de Saneamento Básico); a Lei nº. 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mu-danças Climáticas) e Lei 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos). No campo da moradia foi instituído o Programa Minha Casa Minha Vida (através da Lei 11.977/2009); que, embora não tenha se apresentado como solução para garantia de moradia digna e adequada para uma grande parcela da população de baixa renda, traz como mérito um amplo regramento do instrumento da regularização fundiária.

Por outro lado, registra-se, até o momento, a realização de cinco Conferências Nacio-nais das Cidades (2003, 2005, 2007, 2010 e 2013); com os seguintes temas e lemas: 1ª. “Cidade para todos: “Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”; 2ª. “Construin-do uma política nacional de desenvolvimento urbano: Reforma Urbana: cidade para todos”; 3ª. “Desenvolvimento Urbano com Participação Popular: avançando na Gestão Democrática das Cidades”; 4ª. “Cidades para todos e todas com gestão democrática, participativa e controle social: avanços, dificuldades e desafios na implementação da Política de Desenvolvimento Ur-bano” e 5ª. “Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana Já. Todas essas Conferências Nacionais possuem eventos preparatórios (também em formato de Conferência) a nível estadual e municipal. Diante desse cenário, parafraseamos Ermínia Maricato (2013) na constatação de que “nunca fomos tão participativos”!

Recentemente, após vários anos de discussão, foi aprovado o Estatuto das Metrópoles (Lei Federal n. 13.089/2015), voltado a enfrentar os diversos problemas comuns que envolvem as regiões metropolitanas, através do estabelecimento de

diretrizes gerais para o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelos Estados, normas gerais sobre o plano de desenvolvimento urbano integrado e outros instrumentos de governança interfederativa, e critérios para o apoio da União a ações que envolvam governança interfederativa no campo do desenvolvimento urbano (art.1º).

Explicitado todo esse quadro normativo, que qualifica o ordenamento jurídico brasi-leiro no que se refere à disciplina legal da cidade e do urbano, é importante verificar o debate sobre o direito à cidade no âmbito internacional.

4 O DEBATE INTERNACIONAL SOBRE O DIREITO À CIDADE E A CARTA MUNDIAL SOBRE O DIREITO À CIDADE

A experiência brasileira de buscar o reconhecimento institucional do direito à cidade, a partir de uma ação política em defesa da implantação da plataforma da Reforma Urbana, contribuiu para que a luta pelo direito à cidade fosse introduzida, gradativamente, nos Fóruns Internacionais Urbanos e na pauta dos processos globais voltados a tratar dos assentamentos

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humanos. Nesse sentido, cabe destacar o Tratado sobre a questão urbana, denominado “Por Ci-

dades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis”, elaborado na “Conferência da Sociedade Civil Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, durante a ECO-92, e a “2ª Confe-rência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos” - Habitat II.

Naquele Tratado o direito à cidade é concebido como

direito à cidadania (direito dos habitantes das cidades e povoados a participarem na condução de seus destinos); incluindo o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, ao saneamento, à saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer, à informação; o direito à liberdade de organização; o respeito às minorias e à pluralidade étnica, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e o reconhecimento de sua plena cidadania; a preservação da herança histórica e cultural e o usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado, sem distinções de

gênero, nação, raça, linguagem e crenças. (SAULE JÚNIOR, 2006)

O mesmo documento também compreende, segundo Saule Júnior (2006), a gestão de-mocrática da cidade, como a forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades e povoa-dos, submetida ao controle e participação da sociedade civil, destacando-se como prioritários o fortalecimento e autonomia dos poderes públicos locais e a participação popular.

Importante considerar que, no referido Tratado, a função social da cidade (que no Brasil passou a ser princípio constitucional da Política Urbana) pressupõe: o uso socialmente justo do espaço urbano para que os cidadãos apropriem-se do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura, dentro de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientalmente sustentáveis. (SAULE JÚNIOR, 2006).

A ideia de internacionalização do direito à cidade foi objeto das discussões travadas no Fórum Social Mundial13, no ano de 2001; onde foi lançada a proposta de elaborar uma “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”14. O principal objetivo do processo de construção dessa Carta Mundial15 é disseminar a concepção do direito à cidade como um novo direito humano16 com base numa plataforma de reforma urbana para ser implementada pelos países, visando a modi-ficar a realidade urbana mundial mediante a construção de cidades justas, humanas, democrá-ticas e sustentáveis.

13 O Fórum Social Mundial surgiu, em 2001, como contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, que há mais de 20 anos reúne os representantes dos países mais ricos do mundo com o objetivo de discutir os rumos do capitalismo e reafirmar o modelo eco-nômico liberal. O Fórum Social Mundial constitui-se num “espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formu-lação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. Após o primeiro encontro mundial, realizado em 2001, se configurou como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais.” Carta de Princípios do Fórum Social Mundial obtida no site http://www.forumsocialmundial.org.br acessado em 18 de julho de 2008.14 A primeira versão da Carta teve como subsídios a “Carta Européia dos Direitos Humanos na Cidade”, elaborada pelo Fórum de Au-toridades Locais, em Saint Dennis, em maio de 2000, e o Tratado “Por Cidades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis”. 15 Discutida no Fórum Social das Américas (Quito-2004), Fórum Mundial Urbano (Barcelona-2004) e Fórum Social Mundial (Porto Alegre-2005). 16 Associado ao reconhecimento institucional desse pretendido novo direito humano, nos organismos das Nações Unidas (como a Agência Habitat, PNUD, Comissão de Direitos Humanos), bem como nos organismos regionais (como a Organização dos Estados Americanos).

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No V Fórum Social Mundial (Porto Alegre – 2005) foi aprovada uma última versão da “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”17 onde, podemos dizer, estão contidas prescrições fundamentais quanto ao direito à cidade nessa nova perspectiva18.

Em sua primeira parte (que prescreve disposições gerais) aquela Carta Mundial traz a compreensão do direito à cidade e seus princípios fundamentais e estratégicos, quais sejam: exercício pleno a cidadania e a gestão democrática à cidade; função social da cidade e da pro-priedade; igualdade e não discriminação; proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis; compromisso social do setor privado e impulso à economia solidaria e a políticas impositivas e progressivas.

Na segunda parte de seu texto, de forma bastante e democrática, a Carta trata dos “direitos relativos ao exercício da cidadania e da participação no planejamento, produção e gestão da cidade”; dispondo sobre o planejamento e gestão das cidades, a produção social do habitat; o desenvolvimento urbano equitativo e sustentável, o direito à informação pública, a liberdade e a integridade, a participação política, o direito à associação, reunião, manifestação e uso democrático do espaço público urbano, o direito à justiça, a segurança pública e a convi-vência pacífica solidária e multicultural.

Na terceira parte, cuidou a Carta de tratar do direito ao desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental das cidades, dispondo, dentre outros, sobre o direito à água, à mo-radia e ao meio ambiente.

Por fim, a Carta dispõe sobre as obrigações e responsabilidades do Estado na pro-moção, proteção e implementação do direito à cidade, sobre as medidas de implementação e supervisão do direito à cidade, sobre as formas de lesão do direito à cidade, assim como de sua exigibilidade; para concluir, com os compromissos provenientes do documento, tanto no que se refere às redes e organizações sociais, aos governos nacionais e locais e aos organismos inter-nacionais.

Da leitura das disposições contidas naquele documento, constata-se sua tendência a se tornar uma cartilha a ser seguida no caminho da construção, em caráter mundial, de cidades justas, humanas, democráticas e sustentáveis; confirmando a ideia do direito à cidade como o direito à participação no planejamento, produção e gestão da cidade; em outras palavras: o direito à produção e fruição do habitat (na concepção de Henri Lefebvre, 2008) e o poder da sociedade sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização (nos termos postos por David Harvey, 2004, 2009).

Isto posto, necessário se faz colocar em pauta algumas constatações que revelam o déficit de implementação do direito à cidade nas cidades brasileiras.

17 O texto da Carta pode ser encontrado em vários sites que tratam da questão urbana, dentre os quais destacamos http://www.conferen-cia.cidades.pr.gov.br/download/documentos/carta_mundial_direito_cidade.pdf. 18 Importante nesse tema é a análise de Saule Júnior, Nelson. O Direito à Cidade como condição para cidades justas, humanas e democráticas obtido no sítio http://www.polis.org.br acessado em 7 de julho de 2008.

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5 ALGUMAS CONSTATAÇÕES QUANTO AO DÉFICIT DE IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL

Na atualidade, grande parte das cidades brasileiras (com ênfase às capitais), se veem incapazes de enfrentar os graves problemas socioambientais que perpassam o seu território; o que revela uma evidente falta de implementação da legislação existente (garantidora de direitos urbanos) e a ausência de capacidade institucional por parte das gestões municipais.

Sem intenção de esgotar, nesse momento, a série de problemas de ordem institucional ou político-administrativa que influencia, direta ou indiretamente, para que as nossas cidades se tornem mais insustentáveis progressivamente, e ciente de que, nos termos considerados por David Harvey (2004, 2009), o solo urbano é, muitas vezes, considerado como mercadoria (es-sencial de reprodução da lucratividade do capital), é possível pontuar, ainda que em caráter preliminar e de modo não aprofundado, algumas constatações que nos permitem evidenciar o déficit de implementação do direito à cidade sustentável, a partir de fatos que demonstram a fal-ta de efetividade de alguns direitos urbanos, como: mobilidade, moradia, infraestrutura urbana e saneamento ambiental (todos inseridos no rol contido no art.2º, inc.I, do Estatuto da Cidade).

No campo do direito à mobilidade, a prioridade dada ao transporte individual e aos veículos motorizados (automóvel e motocicletas) nas cidades brasileiras19, revela uma baixa atenção, por parte das gestões (federal, estaduais e municipais), ao direito à mobilidade e aces-sibilidade universal e a vários princípios, diretrizes e objetivos postos na Política Nacional de Mobilidade Urbana, voltados ao desenvolvimento sustentável das cidades (nas dimensões so-cioeconômicas e ambientais), à redução das desigualdades e promoção da inclusão social e do acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais; o que coloca o país diante de uma notória crise de mobilidade urbana20.

No que tange ao direito ao saneamento básico21, ainda que nas cidades brasileiras se registre aproximadamente 91,9% dos domicílios ligados à rede de abastecimento22, segundo dados do Censo 2010, notória é a crise hídrica23 pela qual passam diversas cidades brasileiras (destacando-se São Paulo) ao mesmo tempo em que se registra estarmos muito longe da univer-salização quando se trata de esgotamento sanitário. Como resultado, temos graves problemas ambientais e sanitários vivenciados por uma grande parcela da população (notadamente de baixa renda, que possui sérios problemas de habitabilidade).

No âmbito da questão da moradia, embora se registre que uma parte dos empreendi-

19 Consequência da opção política do Governo Federal pela diminuição do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, associada ao aumento da renda de parte da população.20 Na atualidade, muitos tem sido os estudos realizados sobre a matéria. A esse respeito, ver RODRIGUES, Juciano Martin. Cri-se de mobilidade urbana: Brasil atinge marca de 50 milhões de automóveis. Observatório das metrópoles. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1772%3Acrise-de-mobilidade-urbana--brasil-atinge-marca-de-50-milhoes-de-automoveis&catid=34%3Aartigos&Itemid=124&lang=pt>. Acesso em: 22 abr. 2015.21 Que, nos termos da Política Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal n. 11.445/2007), abrange o abastecimento de água, esgota-mento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais e limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos22 Considerando o abastecimento de água por poço, a cobertura chega a aproximadamente 97,4% (CENSO, 2010)23 Que envolve a escassez de água tanto em termos de quantidade como de qualidade.

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mentos do Programa Minha Casa Minha Vida se destina à população de baixa renda, consi-derando ter sido o mesmo motivado pela opção do Governo Federal de oferecer apoio ao setor imobiliário em face da crise econômica de 2008, a destinação de projetos àquela população é bem inferior do que o necessário (considerando o enorme déficit habitacional desse segmento social), estando o Programa prioritariamente destinado à população que possui acesso formal ao mercado imobiliário.

Ademais, ainda com relação à moradia (digna e adequada), direito fundamental dessa população de baixa renda, muitas vezes não se observa uma devida atenção aos direitos à mo-bilidade, ao lazer, à infraestrutura e aos serviços públicos que, no âmbito do direito à cidade sustentável, possuem essa população desfavorecida socioeconomicamente, mantendo-se sua si-tuação (histórica) de segregação territorial; o que, muitas vezes, acaba por refletir no aumento dos índices de violência urbana.

Em paralelo, no âmbito da aplicação do princípio da função social da propriedade, não se observa, por parte das Gestões municipais, a implementação dos instrumentos urbanísticos, postos na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, voltados a evitar a subutilização e ociosidade de terrenos e imóveis urbanos, como o parcelamento, edi-ficação e utilização compulsórios; IPTU Progressivo no Tempo e desapropriação com títulos da dívida pública; dentre outros instrumentos previstos naquele Estatuto e Planos.

Também com relação ao princípio da função social da propriedade, abrangendo tanto a propriedade privada como a propriedade pública (o que exige a incorporação da nova con-cepção de cidade e de propriedade posta no ordenamento jurídico brasileiro), não se verificam maiores avanços no âmbito do Poder Judiciário; que, em geral, se mantém preso a uma visão patrimonialista, individualista e utilitarista do direito de propriedade24.

Nesse contexto, lembre-se que o valor do solo urbano (das propriedades urbanas) é determinado pela ação do Estado, a partir da infraestrutura construída, equipamentos comuni-tários, serviços públicos, definição de índices urbanísticos e de possibilidades de uso do solo. Na medida em que a cidade é construída e transformada, valores vão sendo agregados ao solo, beneficiando os proprietários, sem que seus titulares tenham contribuído financeiramente para tanto; o que, conforme dispõe o art.2º, inc.XI, do Estatuto da Cidade, exige do Estado a apli-cação dos instrumentos postos na legislação para recuperar essas mais valias25. Contudo, essa obrigação de recuperação dos investimentos públicos não tem merecido a atenção devida por parte dos Governos municipais.

Assim, se por um lado, é inegável que possuímos em nosso sistema jurídico um arse-nal de normas26 voltadas a possibilitar a efetivação da justiça social no meio urbano, evitando

24 Inúmeras decisões judiciais em conflitos fundiários no Brasil retratam essa realidade. O conhecido “Massacre de Pinheirinhos”, ocorrido em 2012 em São Paulo, se coloca como exemplo emblemático dessa realidade.25 A esse respeito, ver Gaio (2015, p.12).26 Como vimos, postas na Constituição Federal de 1988, regulamentadas pelo Estatuto da Cidade (através de seus princípios, diretrizes e instrumentos) e incorporadas aos Planos Diretores municipais.

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corrigir distorções do crescimento urbano e possibilitando que a cidade e a propriedade possam cumprir sua função social, de modo com que sejam atendidos os direitos urbanos (que possuem sua maior expressão no direito à cidade sustentável), e garantidos os canais de participação, através dos quais a sociedade pode (e deve) influenciar diretamente na construção de políticas públicas voltadas à efetivação desses direitos (o que coloca em prática a ideia do direito à cidade como produção e fruição do espaço urbano), por outro, o que se observa é que grande parte dessas normas continua aprisionada aos textos legais.

Constata-se, nesse contexto, que o planejamento urbano, em grande parte das cidades brasileiras, é substituído ora pela imposição de atender interesses pontuais e específicos volta-dos para a lógica mercadológica de utilização do espaço urbano27, ora por interesses pontuais da gestão da ocasião, ora pela conjugação de ambos os interesses. Nesse cenário coloca-se o processo de flexibilização da legislação efetivadora de direitos urbanos, a que denominanos flexibilização in pejus28, compreendida como o processo de fragilização de normas protetoras de direitos em favor de interesses econômicos privados (geralmente imobiliários). A isso se acresce a falta de capacidade institucional das Administrações municipais de regulamentar e aplicar a legislação urbana29.

Em suma, pode-se dizer que, em que pese estar presente, no ordenamento jurídico brasileiro, todo um arsenal legislativo necessário para que as cidades e propriedades (públicas e privadas) possam cumprir sua função social, e que seja garantida a efetivação do direito à cidade sustentável, evidencia-se, no âmbito dos Poderes Públicos um quadro de evidente desar-ticulação, desatenção e despreparo no sentido de garantir a efetivação desse direito.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: APONTAMENTOS PARA O ENFRENTAMENTO DO DESCOMPASSO DIREITO ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS X DÉFICIT DE IMPLEMENTAÇÃO.

Partindo desse forte arsenal de normas jurídicas que amparam o direito à cidade e o direito à cidade sustentável, que tem em sua essência o direito à produção e fruição coletiva do espaço social, ciente da lógica mercadológica que, em grande medida, guia a atuação do Poder Público sobre os espaços urbanos e visualizando o cenário atual das cidades brasileiras, onde

27 Tal quadro se coaduna, em âmbito global, com a mudança na orientação das políticas urbanas e planejamento para as cidades, ocorrida a partir da década de 1990 do século XX e início do século XXI (intensificação do processo de globalização da economia), que levou a uma retração de políticas voltadas para uma gestão pública, democrática e descentralizada, e a condução do planejamento e gestão urbana com base em preceitos neoliberais, que conduzem o gerenciamento da cidade conforme os mecanismos de controle da empresa urbana. Essa objetiva e sucinta visão é trazida por Façanha (2007, p. 199). Tratamos sobre a questão em nosso livro Meio Ambiente e Moradia: direitos fundamentais e espaços especiais na cidade, Juruá. 2012. 28 Expressão latina que pode ser traduzida como “para pior” ou “em prejuízo de”.29 Tais questões foram objeto de estudo de nosso tese de Doutorado intitulada “Espaços especiais em Natal (moradia e meio ambiente): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aos direitos fundamentais na cidade contemporânea”, defendida no mês de dezembro de 2010 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e com realização de estágio de doutoramento na Universidade de Coimbra, com apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Em nossos livros “Meio Ambiente e Moradia: direitos fundamentais e espaços especiais na cidade” e “Espaços Especiais Urbanos: desafios à efetivação dos direitos ao meio ambiente e à moradia” tratamos dessas questões; sendo, no segundo deles, tratado do caso específico da cidade de Natal.

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fica evidente que “distribuição de renda não resolve a injustiça urbana”30, aqui nos propomos a contribuir, lançando algumas ideias voltadas à construção de caminhos para enfrentamento do descompasso pontuado.

Diante da inevitável percepção de que a questão urbana e a participação popular na gestão das cidades não se incorporaram aos debates da classe política e da sociedade em geral, é imprescindível pontuar, em um primeiro momento, a urgente necessidade de enfrentar o anal-fabetismo urbanístico (nos valendo de expressão comumente utilizada por Ermínia Maricato) que assola a população brasileira (inclusive a classe política e jurídica). Impressiona que, após quatorze anos da vigência do Estatuto da Cidade31 e diante de todo um debate internacional sobre o direito à cidade, esse novo direito (e os direitos urbanos que o mesmo reúne), não tenha sido assimilado pela sociedade em geral, gestores, legisladores e operadores do Direito.

Tal constatação se revela, por exemplo, ao se observar a falta de discussão sobre a questão urbana no debate político eleitoral; tomando-se como exemplo as eleições ocorridas no ano de 2014, especialmente para o cargo de Presidente da República; e, mais recentemente, as grandes manifestações de rua ocorridas em todo o país em 2013 e 2015. Por outro lado, não se pode omitir alguns exemplos opostos, onde, ciente de seu direito à produção e fruição dos espaços urbanos, comunidades assumiram um papel protagonista em face de empreendimen-tos e iniciativas públicas consideradas ilegais e ilegítimas, como no movimento Ocupe Estelita (Recife)32 e nas ações promovidas pelos Comitês Populares nas cidades-sedes da COPA DO MUNDO DA FIFA 2014 realizada no Brasil33.

Nesse caminho, se coloca a ideia da construção de um Urbanismo Popular; tema que, perpassando as áreas de conhecimento inter-relacionadas com a cidade e o urbano, tenha como essência a facilitação da compreensão das questões urbanas (e normas correlatas) por parte da população em geral. É preciso que as pessoas tenham a clara compreensão quanto à relação dos problemas que enfrentam em sua vida cotidiana na cidade com a legislação existente, sua alteração e sua implementação (ou a omissão do Poder Público nessa tarefa). Por exemplo, é essencial que se compreenda que o aumento do coeficiente de construção (o “quanto” se pode construir) em determinada área da cidade, pode significar problemas de engarrafamento no

30 MARICATO, Ermínia. Cidades no Brasil: Sair da perplexidade e passar a ação! Aula inaugural da Pós Graduação Arquitetura e Ur-banismo na UFSC-201. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GPcrGAX_Dj431 E todo o arsenal de princípios, regras e instrumentos que o mesmo comporta, na direção de enfrentar o quadro de insustentabilidade urbana posto nas cidades brasileiras. 32 Movimento popular organizado em face do Projeto Novo Recife, empreendimento imobiliário (que prevê a construção de 12 edifícios com até 40 andares) do Consórcio Novo Recife (formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos) em uma área de 10 hectares (o Cais José Estelita, na bacia do Pina, no centro da cidade). O vídeo, “Recife, cidade roubada”, elaborado pelo Movimento Ocupe Estelita, apresenta bem o caso. 33 Em razão de fatos ocorridos nas cidades-sede para viabilizar as obras e ações desse megaevento esportivo (como remoções de famílias para realização de obras; repressão a ambulantes, trabalhadores informais e população de rua; endividamento público; violação de direitos de crianças e adolescentes; falta de transparência e acesso à informação; dentre outros), a partir de 2010, foram formados Comitês Populares em cada cidade-sede, integrantes da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), que passaram a realizar ações de en-frentamento a violações de direitos humanos. Informações sobre a matéria podem ser encontradas em http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=382&Itemid=288. Registra-se que, em Natal, as ações do Comitê Popular, obtiveram importantes resultados, onde destaca-se a modificação de projeto viário que previa a desapropriação e remoção de um grande número de famílias (denominado Corredor Estrutural Oeste) e a não realização, também de projeto viário, com fortes impactos ambientais, econômi-cos e sociais (popularmente conhecido como Projeto da Roberto Freire).

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trânsito, de extravazamento de esgotos, de falta de água ou de energia se a área não tiver a in-fraestrutura necessária para comportar essa sobrecarga. Que existem meios legais para obrigar o proprietário de terrenos vazios (que podem trazer problemas à comunidade vizinha) a dar o devido uso à área, e que a omissão do mesmo poderá levar à desapropriação do imóvel e sua utilização em prol da projetos públicos voltados à comunidade. Ou, ainda, que a realização de alguns projetos públicos ou privados, sem a realização de estudos legalmente obrigatórios (de impacto ambiental ou de impacto de vizinhança, por exemplo), podem causar danos ambientais e sociais irreversíveis. Nesse contexto, a discussão (em linguagem acessível, clara e simples) dos orçamentos e prioridades de investimentos públicos na efetivação dos direitos urbanos se colocam como aspectos centrais.

Indo além da participação da sociedade nos órgãos de controle social e nos orçamentos participativos (em geral, em ambos os casos, fragilizada por questões de legitimidade), mas sem menosprezar sua importância, o mecanismo de criação de assessorias técnicas voltadas à “po-pularização do conhecimento sobre as questões e direitos urbanos” (especialmente, por parte da Arquitetura e Urbanismo e do Direito), no âmbito das instituições de ensino e dos Poderes Públicos, se colocam como importantes iniciativas; sem descurar do papel das organizações e dos movimentos sociais na popularização desse mesmo debate34.

Nessa análise se suscita a compreensão da função social das profissões; que, notada-mente no âmbito das instituições públicas de ensino, deveria ser posta como princípio a guiar, especialmente, as atividades e projetos de extensão35.

No âmbito do Poder Executivo, é imperioso que seja dada a devida atenção e impor-tância a um planejamento urbano permanente e de longo prazo (como Política de Estado e não, de Governo), com a implementação de uma estrutura de gestão que possibilite a efetivação das normas (regras e princípios) e instrumentos contidos nos Planos Diretores e outras leis de uso e ocupação do solo. Nesse sentido, a Política Urbana, que deve ser executada pelos municípios segundo comando constitucional, tem que ser capaz de enfrentar as urgentes questões urbanas (visando, em sua essência, reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano); não ficando sob o âmbito da discricionariedade da Gestão local, cujos objetivos de Governo se alteram a cada quatro anos.

É preciso que a Gestão Pública tenha a capacidade e determinação de implementar os instrumentos urbanísticos, postos na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, voltados a fazer com que as propriedades cumpram sua função social, como determinado pela Constituição Federal de 1988. Diante de um grande número de imóveis urbanos não utilizados ou subutilizados, por exemplo, é cogente e urgente que as Administra-ções municipais deem efetividade aos instrumentos do parcelamento, edificação e utilização

34 Como exemplo dessa contribuição social citamos a produção do documento intitulado Carta de Natal, a partir do Seminário “Desenvolvimento Local e Direito à Cidade”, organizado, em 2015, pelo Centro Pastoral de Nossa Senhora da Conceição (Mãe Luiza), movimentos sociais organizados da cidade, moradores e entidades de bairros comprometidos com as lutas sociais coletivas. 35 Essa visão já é encontrada no Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos – Núcleo Urbano, Projeto de Extensão realizado no âmbito da UFRN.

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compulsórios; IPTU Progressivo no Tempo e desapropriação sanção. Por outro lado, considerando os investimentos públicos que ocorrem em determinadas

áreas da cidade e valorizam os imóveis ali situados, é obrigatória (nos termos postos no art. 2º, incisos IX e XI, do Estatuto da Cidade) a recuperação das mais valias urbanas a fim de benefi-ciar outras áreas da cidade ainda sem infraestrutura e àquelas voltadas a garantir moradia digna à população de baixa renda. Para tanto, o Estatuto da Cidade traz os instrumentos da outorga onerosa do direito de construir e da alteração de uso (quando se transforma uma área rural em urbana, por exemplo) e resgata a importância do instituto tributário da contribuição de melho-ria; cuja implementação é pífia na esmagadora maioria das cidades brasileiras. A isso se acresce o fato de que, muitas vezes, os valores obtidos da aplicação do instrumento da outorga onerosa do direito de construir, por exemplo, não são direcionados aos Fundos de Urbanização, instru-mentos financeiros voltados a gerir as mais valias urbanas em prol de projetos que beneficiem áreas mais carentes das cidades (do ponto de vista social e de infraestrutura urbana). Diante dessa realidade, cabe a população provocar a devida atuação dos Poderes Públicos.

Nesse cenário, destaca-se que o direito à cidade sustentável pressupõe o direito ao pla-nejamento urbano36, que se constitui obrigação/dever inarredável do gestor público e que, por-tanto, deve ser objeto de um amplo controle social. Nesse sentido, os segmentos da sociedade devem buscar os espaços de participação existentes (órgãos colegiados de política urbana, que devem estar em funcionamento e constituídos legal e legitimamente; a realização de audiências ou consultas públicas e conferências; tudo conforme prevê o art.43 do Estatuto da Cidade), de modo a contribuir diretamente tanto na construção coletiva das Política Urbana e políti-cas setoriais, como na sua implementação e acompanhamento; o que vem efetivar o princípio democrático e da participação (gestão democrática da cidade)37. Por outro lado, se impõe ao Poder Público o dever correlato de consideração das manifestações e proposições populares38, de modo com que a participação da sociedade no planejamento e gestão urbana não seja consi-derada apenas uma formalidade, mas que, através de uma efetiva participação, possa a mesma exercer o seu direito à produção dos espaços sociais.

Um outro aspecto que merece enorme atenção nesse debate (pela total correlação com a matéria em pauta) é a questão do financiamento privado das campanhas políticas; vez que, como é de conhecimento público, muitos legisladores e agentes políticos (do Poder Executivo), se elegem com grande apoio financeiro de empresas (geralmente empreiteiras de obras públicas, empresas de lixo e de transportes); que, após a eleição daqueles que apoiaram, buscam recupe-rar o “investimento” realizado.

Ainda com relação à eleição de membros do Legislativo e do Executivo, é essencial que seus aspirantes tenham, perante a sociedade, um claro e objetivo posicionamento sobre as

36 Que alberga o direito fundamental à boa administração (FREITAS, 2007) e o direito à continuidade das políticas pública (FERNANDES e DOLABELA, 2009).37 Ver DUARTE, 2012, p.179-182. 38 Idem

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questões urbanas e as normas e direitos relacionados; o que deverá se servir a uma posterior cobrança por parte dos eleitores (alfabetizados urbanisticamente); titulares do direito à cidade sustentável e aos direitos urbanos nele contidos.

No âmbito do Judiciário e da formação dos profissionais do Direito, que irão aplicar as normas jurídicas que amparam o direito à cidade sustentável, urge uma específica forma-ção. Sendo o Direito Urbanístico, um recente ramo jurídico, que não se constitui disciplina obrigatória nos cursos de Direito, é urgente e necessário, por parte dos operadores jurídicos, o conhecimento das regras, princípios e instrumentos voltados a garantir que a propriedade e a cidade cumpra sua função social, e que seja garantido a todos, incluindo as presentes e futuras gerações (como expressamente prescreve o Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, inc.I), o direito a cidades sustentáveis.

Ciente de que longo é o caminho a ser percorrido e grandes são os obstáculos a serem enfrentados, entendemos que o mérito de todos aqueles que saíram do analfabetismo urbanís-tico é ganhar novos parceiros na busca pelo direito à produção e fruição dos espaços urbanos de modo a possibilitar que a sociedade, através de seus diversos grupos sociais, exercem seu legítimo poder sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização.

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FACETAS DO DIREITO À CIDADE

Bruna Agra de Medeiros*

Maria Emília Freitas Diógenes**

O Direito Urbanístico possui a peculiaridade de conciliar preceitos jurídicos de áreas específicas, a exemplo de valores administrativos e econômicos e, por meio de seus mecanis-mos, anuncia a dupla face do acesso à cidade. A bilateralidade retratada faz menção ao conjunto de direitos e deveres atribuídos a toda a coletividade urbana, cuja observância tende a propor-cionar a efetividade desses direitos e, sobretudo, o atendimento às reais necessidades da vida cotidiana de todos os cidadãos.

Nesse sentido, revela o caráter mútuo das relações sociais na medida em que o aces-so aos direitos que se efetivam no território urbano decorre tanto da aplicabilidade de políti-cas públicas eficazes, por parte do Poder Público, quanto da respeitabilidade das normas de convivência e habitação pelas sociedades urbanas. Em síntese, esse fato indica como é impres-cindível a participação social sobre o espaço urbano no tocante ao uso, à ocupação, à constru-ção, à preservação, e outras formas de apropriação do espaço.

Dessa forma, as gestões governamentais contam com um aparato de instrumentos le-gislativos fundamentais à eficácia de algumas normas imprescindíveis, a exemplo do Estatuto da Cidade, que trouxe o direito difuso à cidade sustentável, além de outras normas federais, estaduais, municipais. O Plano Diretor, por exemplo, em seu âmbito municipal, demonstra, de maneira análoga, a pretensão em impor de uma política de desenvolvimento urbano justa e democrática.

Para o direito à cidade ser assegurado, é necessário um esforço coletivo. Ao Poder Pú-blico cabe à adoção de medidas voltadas a efetivar a função social da cidade e da propriedade,

assim como a promoção de políticas urbanas qualitativas de mobilidade, saneamento básico, segurança, estrutura educacional, centros de saúde, cultura, lazer, e demais direitos.

* Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cursando o 7º período. Editora-geral da Revista FIDES. Estagiária do Ministério Público Estadual.** Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período. Editora-geral da Revista FIDES. Estagiária do Ministério Público Estadual.

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Em contrapartida, à população cabe a busca pela efetivação dos direitos urbanos e atenção às normas de Política Urbana e Ambiental, na medida em que o território urbano deve ser utilizado de forma justa e democrática e o meio ambiente deve ser utilizado de forma sus-tentável e consciente em benesse da própria coletividade. Essa postura pode ser atendida com a ocupação regular do solo, a devida destinação do lixo produzido, consumo equilibrado de energia, a não contaminação dos recursos hídricos, bem como a contenção de desperdícios, entre outras condutas.

Observe-se, com efeito, que o Direito Urbanístico, através do acesso à cidade, traz à tona a concretização dos preceitos constitucionais já consolidados no texto normativo. Cabe ao Poder Público o papel protagonista no desenvolvimento urbano e o dever de garantir os direitos que se efetivam no território da cidade, a fim de que todos possam viver dignamente, com segu-rança e mínimas condições de conforto.

Assim sendo, imprescindível se faz a consagração das diretrizes asseguradas pela Constituição Federal de 1988 relativas à segurança, educação, assistência médica, mobilidade urbana, acesso a centros culturais e de lazer, além de centros de velório, creches para crianças, casas de idosos, entre outros direitos. Saliente-se, enfaticamente, que essas são garantias que apenas embasam as condições mais simplórias de vida - que se revelam em legítimos direitos sociais - não constituindo, nenhuma das áreas apontadas, em supérfluos.

No entanto, destaca-se que, apesar de serem direitos básicos e conferidos pela norma de maior importância no sistema jurídico brasileiro, percebe-se que as referidas garantias não são fornecidas como deveriam. Tal afirmação pode ser constatada pela ausência de saneamento básico em grandes partes da cidade, pela precariedade no transporte público, bem como pelos problemas de abastecimento de água. Sendo assim, é de fundamental importância a discussão e ampliação de conhecimento sobre tema para que a população obtenha maior compreensão das questões urbanas e, com isso, ganhe mais consciência dos seus direitos e deveres.

Portanto, toda a sociedade deve sempre buscar realizar debates e contribuir diretamen-te na construção das políticas públicas, bem como acompanhar o seu processo de efetivação. O Poder Público, por sua vez, se encontra obrigado a possibilitar a participação da sociedade, com o intuito de garantir a aplicabilidade de suas propostas e, em conformidade com a lei, buscar a concretização do direito à cidade para todos.

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“A CIDADE”

Chico Science e Nação Zumbi

O Sol nasce e ilumina as pedras evoluídas, Que cresceram com a força de pedreiros suicidas.

Cavaleiros circulam vigiando as pessoas, Não importa se são ruins, nem importa se são boas.

E a cidade se apresenta centro das ambições, Para mendigos ou ricos, e outras armações.

Coletivos, automóveis, motos e metrôs, Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs.

A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o debaixo desce.

A cidade se encontra prostituída, Por aqueles que a usaram em busca de saída.

Ilusora de pessoas e outros lugares, A cidade e sua fama vai além dos mares.

No meio da esperteza internacional, A cidade até que não está tão mal.

E a situação sempre mais ou menos, Sempre uns com mais e outros com menos.

A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o debaixo desce. (...)

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Recebido em 16 abr. 2015Aceito em 18 abr. 2015

A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE COMO PARÂMETRO PARA TRATAMENTO DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Henrique Botelho Frota*

1 INTRODUÇÃO

Desde a promulgação da Constituição de 1988, a produção legislativa no âmbito do Direito Urbanístico tem sido intensa. Nos últimos anos, o país aprovou marcos normativos referenciais sobre habitação de interesse social, regularização fundiária, mobilidade urbana e saneamento ambiental, o que, somado ao Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), aprofundou as bases da chamada “nova ordem jurídico-urbanística brasileira”.

Entretanto, essa ordem tem sido assimilada e aplicada de forma lenta e desigual, ca-recendo de maior efetividade especialmente no âmbito do Poder Judiciário. O tratamento cons-titucional da questão urbana sob a ótica do Direito Público, por vezes, entra em colisão com concepções privatistas, gerando dificuldades na aplicação da legislação urbanística.

No campo dos conflitos fundiários urbanos, experiências institucionais recentes têm revelado uma tímida abertura dos Tribunais. O Conselho Nacional de Justiça instituiu a temá-tica na lista classificatória dos litígios judiciais, sendo acompanhado por órgãos judiciais de todo o país. Entretanto, não existem parâmetros adequados para a identificação desses litígios e, menos ainda, mecanismos processuais para lidar com eles. No caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2014, foi instituído grupo técnico intersetorial que, recentemente, fina-lizou seus trabalhos com a proposição da criação de varas especializadas e câmaras reservadas para os conflitos fundiários. Enquanto não ocorre a criação desses novos órgãos, a matéria é tratada de forma difusa nas diferentes varas e câmaras.

Em muitas decisões, o fundamento ainda está baseado em uma concepção patrimo-nialista de defesa da propriedade privada em prejuízo do direito à moradia, mesmo quando

* Advogado. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor universitário (graduação e pós-graduação). Membro fundador do Ins-tituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS. Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU (gestão 2014/2015).

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demonstrado que a propriedade não atende às exigências de função social. Nesse cenário, o presente artigo tem por objetivo aprofundar o debate acerca da efetivação dos direitos à cidade e à moradia adequada nos casos de conflitos fundiários urbanos levados ao conhecimento do Poder Judiciário.

2 EXCLUSÃO TERRITORIAL E URBANIZAÇÃO DE RISCO COMO BASES DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Apenas recentemente a população mundial passou a ser majoritariamente urbana. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 54% (cinquenta e quatro por cento) das pessoas no planeta vivem em cidades atualmente. Em números absolutos, a popu-lação urbana passou de 746 milhões de pessoas em 1950 para 3,9 bilhões em 2014 (UNITED NATIONS, 2014).

Mas, essa é uma realidade já conhecida há décadas pelos países dos continentes euro-peu e americano, que passaram pela transição campo-cidade ao longo do século XX. As regiões mais urbanizadas do globo são a América do Norte, com um índice de 82% (oitenta e dois por cento) de população urbana; América Latina e Caribe, com 80% (oitenta por cento); e Europa, com 73% (setenta e três por cento).

O processo de urbanização tem sido historicamente associado com importantes trans-formações econômicas e sociais, de forma a proporcionar benefícios para a população. Fatores como a expectativa de vida, o acesso à serviços básicos de saúde e educação e redução da pobreza estão ligados ao crescimento das cidades. Assim, a vida urbana é frequentemente rela-cionada com níveis mais elevados de alfabetização e educação, melhor saúde, maior acesso aos serviços sociais e à cultura e melhores oportunidades de participação política.

No entanto, o rápido crescimento urbano não acompanhado por um adequado planeja-mento das cidades gerou sérios problemas sociais, econômicos e ambientais. Via de regra e par-ticularmente na América Latina, a precariedade da infraestrutura; a ineficiência dos serviços de saneamento, mobilidade, saúde e educação; a concentração de terras entre os mais abastados e a ausência de políticas de democratização do solo urbanizado, têm determinado um processo de exclusão territorial de significativa parcela da população.

Atualmente, as áreas urbanas são mais desiguais do que as áreas rurais e centenas de milhões de pobres estão distribuídos nas cidades do mundo em condições indignas de vida. A expansão urbana não beneficiou todos os habitantes de maneira igualitária. Isso faz com que existam profundos contrastes entre condições extremamente diferentes, convivendo e entrando em choque no interior da mesma cidade.

Estima-se que um terço dos habitantes das cidades está em favelas e assentamentos informais. O número de pessoas morando nessas condições aumentou de 760 milhões, em 2000, para 863 milhões, em 2012 (UNITED NATIONS, 2014). Portanto, o processo de urbanização mundial tem como marcas profundas a precariedade e a informalidade da ocupação do solo.

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No caso brasileiro, seguindo a tendência latino-americana, o processo de industrializa-ção e urbanização ocorre há mais de meio século, tendo motivado um intenso fluxo migratório do campo para as cidades. Como consequência, o país experimenta uma concentração de 84% (oitenta e quatro por cento) de sua população em áreas urbanas (IBGE, 2010).

O aumento da população urbana, entretanto, não teve uma resposta satisfatória em relação à oferta de solo urbanizado, com adequadas condições de infraestrutura, transporte e moradia digna. Assim, a ocupação desordenada do território passou a ser regra e a precarieda-de das condições de moradia, uma realidade bastante presente na vida dos habitantes de baixa renda. “Excluída do mercado e das políticas públicas, a maior parte da população brasileira ‘se vira’ ocupando terras que, em geral, são inadequadas para ocupação, construindo ali suas pró-prias casas, num processo lento, com parcos recursos” (MARICATO, 2009, p. 273-4).

O déficit habitacional no país, em 2012, era de 5,79 milhões de unidades, sendo 700 mil só na região metropolitana de São Paulo (IBGE, 2012). Mesmo com o Programa Minha Casa, Minha Vida, esses números não estão sofrendo uma redução significativa, o que revela que a problemática da moradia no país não é uma simples questão de falta de casas. Existem compo-nentes urbanísticos e fundiários definidores do déficit habitacional que não são afetados pelos programas governamentais de construção de moradias.

De acordo com os dados do Censo 2010, o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) identificou 6.329 (seis mil, trezentos e vinte e nove) aglomerados subnormais em todo o país, nos quais estão localizados mais de três milhões de domicílios1. Uma maior parcela desses aglo-merados está localizada na Região Sudeste do país – 49,8% (quarenta e nove vírgula oito por cento) dos domicílios nessa condição –, cujas cidades apresentam mais de 33% (trinta e três por cento) de seu território ocupado por tais setores. Mas, nesse ponto, também as Regiões Norte e Nordeste merecem destaque, com altos percentuais de áreas de ocupação informal, 27,5% (vinte e sete e meio por cento) e 26,7% (vinte e seis vírgula sete por cento), respectivamente (IBGE, 2010). Para ROLNIK, (2000, p.2):

O espraiamento em periferias precárias tem levado a uma necessidade absurda de viagens que atravessam a cidade, para conectar cotidianamente espaços de não-cidade às centralidades concentradoras de emprego, oportunidades econômicas, culturais, etc. Os efeitos urbanísticos decorrentes da persistência desta dinâmica são devastadores e ocorrem nas dois termos desta equação. Nas periferias (ou favelas, ocupações, invasões), o urbanismo é eternamente incompleto, e no mais das vezes, de risco.

1 Conforme a metodologia utilizada pelo IBGE, aglomerado subnormal “é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/ou densa. A identificação dos aglomerados subnormais é feita com base nos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuir pelo menos uma das seguintes características: urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos; ou precariedade de serviços públicos essenciais, tais quais energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto” (IBGE, 2013, p. 18).

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O urbanismo de risco, citado por Raquel Rolnik no trecho acima, é aquele que impõe uma condição de precariedade aos moradores de determinadas áreas, mas também à toda a cidade. Aos primeiros, em relação às condições inadequadas de ocupação do território, à in-segurança da posse, ao desconforto da casa, à ausência de espaços públicos para a prática de atividades de lazer, aos longos e demorados deslocamentos. E, em relação à cidade, esse tipo de urbanismo produz os elevados índices de violência, congestionamento, valorização excessiva da terra e desigualdades (ROLNIK, 2000).

Do ponto de vista fundiário, pode-se concluir que a maior parcela da população brasi-leira construiu sua moradia em imóveis que não estão registrados como sendo de sua proprie-dade. Em outras palavras, a posse tem sido um fator muito mais determinante do que a proprie-dade privada no estabelecimento da habitação.

Contudo, do ponto de vista jurídico, a propriedade privada ainda é o grande balizador das relações, orientando a atuação da Administração Pública e do Poder Judiciário. Assim, per-cebe-se um descompasso entre a realidade urbana brasileira e os institutos jurídicos manejados para solução dos conflitos.

Em pesquisa realizada pelo Instituto Polis em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e o Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES) no âmbito do projeto “Diálogos sobre a Justiça”, da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, foram analisados casos de conflitos fundiários em São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza. Os pesquisadores identificaram que todos os municípios possuíam em comum uma latente e constante atmosfera de conflito causada pela segregação espacial ou ambiental. Conforme o entendimento de Nelson Saule Junior e Daniela Libório Di Sarno (2013, p. 25) sobre o tema:

“Esta situação de constante exclusão sócio-territorial para boa parte da população que vive nas cidades pode ser configurada como situação de conflito sobre o uso e ocupação de seus territórios, que é formadora da tipologia do conflito fundiário amplo, que pode ser considerada como uma situação tipificada pela violação da ordem urbanística incorporada no ordenamento jurídico pátrio (grifos no original)”.

Esse olhar ampliado sobre os conflitos fundiários põe a cidade em perspectiva no seu todo, como em uma escala cartográfica menor. Por isso, não se refere a um caso específico, mas sim a um contexto geral de tensão social que reflete a disputa pela cidade.

O modelo de desenvolvimento urbano brasileiro é produtor de dualidades e contras-tes, tendo de um lado áreas valorizadas e dotadas de infraestrutura, serviços, grande oferta de empregos e concentração de renda, e, de outro, regiões com urbanização incompleta, carência de serviços e insegurança da posse. Esse cenário provoca inúmeras disputas entre segmentos sociais – população de baixa renda, classe média, comerciantes, mercado imobiliário, grupos econômicos etc. –, que reivindicam espaços para os usos de seu interesse. Essas disputas apre-sentam um forte componente fundiário, pois é a capacidade de acesso à terra que assegura as melhores oportunidades na cidade.

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Assim, a base das desigualdades sócio-territoriais urbanas está na questão fundiária. É ela que determina, por exemplo, a oferta de moradia para os diversos segmentos. O preço da terra funciona, dessa maneira, como um condicionante muito concreto na definição do lugar dos pobres e dos ricos. E, como a valorização imobiliária tem relação direta com a oferta de servi-ços e infraestruturas, restam para a população mais carente os espaços que não são apropriados pelos demais grupos, em geral, áreas com restrições ambientais e urbanização precária.

É esse o contexto amplo que impulsiona e motiva os casos de disputa pela terra. Cer-tamente, ele não explica todas as especificidades de cada situação, o que é compreensível dada a escala em que as leituras são realizadas. Mas, esse olhar tem relevância na medida em que permite uma visualização do conjunto, trazendo elementos e atores que não aparecem quando o foco é o conflito concreto.

3 CARACTERIZAÇÃO DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Ainda que existam milhares de casos envolvendo conflitos fundiários urbanos nos tribunais brasileiros, não há uma disposição legal capaz de caracterizá-los. A matéria é tratada apenas pela Resolução nº 87/2009 do Conselho Nacional das Cidades, que recomenda ao Minis-tério das Cidades a instituição de uma Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos.

Segundo seu art. 3º, essa Resolução define conflito fundiário urbano como sendo

“a disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade.”

A esse conceito corresponde aquilo que a pesquisa sobre Soluções Alternativas para Conflitos Fundiários Urbanos nominou de conflito fundiário em sentido estrito (SAULE JU-NIOR; DI SARNO, 2013). Tratam-se de situações concretas em que os sujeitos podem ser indi-vidualizados e identificados. Existe um bem em disputa por partes nomináveis em um determi-nado período. Em outras palavras, os elementos constitutivos do conflito não são abstratos nem hipotéticos, mas sim pessoas ou grupos reais que litigam por um espaço determinado.

Para a configuração de um conflito como fundiário urbano é preciso, pois, que exista uma disputa pela posse ou propriedade de um imóvel urbano. Essa relação se estabelece entre partes nomináveis, indivíduos ou grupos, devendo ser uma questão coletiva. Portanto, uma con-trovérsia envolvendo apenas um indivíduo em cada polo da relação caracteriza uma demanda em torno de direitos na esfera privada, o que não permite inferir que se trata de um conflito fundiário.

Ainda, a Resolução nº 87/2009 propõe um nítido recorte em relação aos sujeitos envol-vidos no conflito, estabelecendo que, em um dos polos, estejam famílias de baixa renda ou gru-

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pos sociais vulneráveis. Nesse último caso, fiam contemplados os segmentos discriminados por questão de gênero, raça, etnia, origem, orientação sexual ou outros fatores de vulnerabilidade.

Por seu turno, a outra parte, aquela que disputa a terra em oposição às famílias de bai-xa renda ou grupos vulneráveis, tanto pode ser constituída por pessoas físicas, pessoas jurídicas de direito privado ou pessoas jurídicas de direito público. Dessa forma, os conflitos tanto podem emergir de uma intervenção do Poder Público que resulte na necessidade de deslocamento com-pulsório de famílias, quanto de relações privadas. Mas, em todos os casos, existe um contexto urbanístico mais amplo que coloca a questão sob o ângulo da coletividade.

São diversas as vias processuais utilizadas para que o conflito fundiário urbano che-gue ao Poder Judiciário. Por vezes, a controvérsia se coloca no âmbito de ações possessórias ou petitórias, mas não é incomum que estejam revestidas sob a forma de ações civis públicas, desapropriações judiciais, ações demarcatórias, usucapião ou concessão de uso especial para fins de moradia. Em razão dessa variação de meios processuais, não há uniformidade de regras de competências entre os órgãos judiciais, de forma que a matéria é processada e julgada por diferentes varas e câmaras – direito privado, fazenda pública, meio ambiente.

Considerando a multiplicação de remoções forçadas, que não solucionam, mas acirram a violência urbana, urge a implementação de medidas pelo Poder Judiciário para melhor anali-sar, bem como prevenir e mediar tais conflitos.

4 O DIREITO À CIDADE E A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE COMO MARCOS JURÍDICOS PARA TRATAMENTO DOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Nas situações de conflito fundiário, a segurança da posse, que é um dos elementos do direito à moradia adequada, é ameaçada, gerando impactos adversos não apenas para as famí-lias em situação de vulnerabilidade, mas para o conjunto da sociedade e a ordenação da cidade. É neste sentido que os conflitos fundiários urbanos ameaçam e ordem urbanística.

A análise desses casos sob a ótica estreita do direito privado não permite que sejam percebidas as estruturas urbanas e fundiárias na base dos conflitos. Da mesma forma, essa visão é incapaz de chegar a soluções adequadas para a cidade, pois seu foco é tão somente o tratamen-to individual do litígio, ignorando que existe uma dimensão coletiva fundamental.

Portanto, é preciso constituir novas abordagens, a partir de uma concepção publicista proposta pelo Direito Urbanístico. Não se trata de inviabilizar a aplicação da legislação vigente, mas de compatibilizar a interpretação jurídica com os marcos constitucionais, incluindo ele-mentos que estão sendo sistematicamente ignorados pelos tomadores de decisão, tais como o direito à moradia adequada e as exigências de função social da propriedade.

4.1 O direito à cidade

No plano internacional, as declarações e tratados de direitos humanos estabelecem elementos relevantes para a conformação do direito à cidade, como é o caso da Declaração Uni-

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versal dos Direitos Humanos de 1948, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e da Con-venção Americana de Direitos Humanos de 1969, dentre outros. Entretanto, o direito à cidade só emerge explicitamente em um documento internacional na Carta Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos na Cidade (Saint-Denis, 2000), que concebe o espaço urbano como “um espaço coletivo que pertence a todos os seus habitantes que têm direito a encontrar as condições pra sua realização política, social e ecológica, assumindo deveres de solidariedade”.

Já pela via dos movimentos populares, organizações não governamentais, associações de profissionais, fóruns e redes da sociedade civil, merece destaque a Carta Mundial pelo Direi-to à Cidade, cuja redação foi consolidada no V Fórum Social Mundial em 2005.

Nas suas disposições gerais, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade traz o delinea-mento mais preciso do que se entende por esse direito, definindo-o como sendo “o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social”. Trata-se de um direito coletivo que viabiliza o pleno exercício do direito à livre autodetermina-ção e a um padrão de vida adequado. Assim, seus princípios norteadores são: o exercício pleno da cidadania e a gestão democrática da cidade; as funções sociais da cidade e da propriedade; o direito à igualdade e à não discriminação; a proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis; o compromisso social do setor privado; e o impulso à economia solidária e a políticas imposi-tivas e progressivas.

Ao tratar do conteúdo desse direito, Letícia Osório (2006, p. 195) afirma que:

[...] Esse direito busca reverter a predominância dos valores econômicos sobre as funções sociais da cidade. O direito à cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também o direito à liberdade de reunião e organização; o direito ao exercício da cidadania e da participação no planejamento, produção e gestão da cidade; a produção social do habitat; o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural. O direito à cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio, ao desfrute e preservação dos recursos naturais e à participação no planejamento e gestão urbanos.

No âmbito interno, a Constituição de 1988 estabeleceu que a política de desenvolvi-mento urbano deve ter como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182). A compreensão do que venham a ser as funções sociais da cidade não poderá prescindir da observância dos princípios fundamentais da república, em especial a soberania popular; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; e o pluralismo político (art. 1º).

Da mesma forma, a política urbana deverá orientar-se no sentido de alcançar uma so-ciedade mais livre, justa e solidária, na qual a pobreza e as desigualdades sejam minimizadas

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em prol do bem coletivo e sem qualquer forma de discriminação (art. 3º). Assim, é impossível conceber a realização de uma vida urbana digna sem a efetivação dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, como as liberdades individuais, a moradia adequada, a saúde, o lazer, o acesso à renda e ao trabalho e o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Como reflexo das normas constitucionais, o direito à cidade encontra previsão especí-fica na Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), cujo artigo 2º estabelece como diretriz da política urbana a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços pú-blicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Com isso, o Brasil confere juridicidade e exigibilidade a esse direito, obrigando a sua efetivação como diretriz primeira da política urbana. Na concepção de Nelson Saule Júnior (2007, p.50):

“Com o Estatuto da Cidade, ocorre um profundo impacto no direito à cidade, que deixa de ser um direito reconhecido somente no campo da política e passa a ser um direito reconhecido no campo jurídico. Com o Estatuto da Cidade, o direito à cidade se transforma num novo direito fundamental no direito brasileiro, integrando a categoria dos direitos coletivos e difusos.”

O direito à cidade passou a ser a pedra fundamental do Direito Urbanístico brasileiro. O Poder Público, particularmente na esfera local, deverá orientar sua atuação para a efetivação desses elementos, com a finalidade de estabelecer melhores índices de justiça social e equidade nas cidades, pois “quanto maior for o estágio de igualdade, de justiça social, de paz, de demo-cracia, de harmonia com o meio ambiente, de solidariedade entre os habitantes das cidades, maior será o grau de proteção e implementação do direito à cidade” (SAULE JUNIOR, 2007, p. 64).

No que concerne a sua justiciabilidade, como direito fundamental, o direito à cidade deve ser objeto de proteção por parte das instituições democráticas e, em último grau, pelo Po-der Judiciário. Tanto é assim que a Lei 7.347/85, que regulamenta a Ação Civil Pública, prevê expressamente a proteção à ordem urbanística em seu art. 1º, VI. Nesse sentido, o tratamento dos conflitos fundiários urbanos pelo Judiciário não poderá prescindir de uma análise sobre os impactos da decisão sobre o grau de satisfação do direito à cidade.

4.2 A prevalência da posse funcionalizada sobre a propriedade desfuncionalizada

A ideia de função social da propriedade foi introduzida no discurso jurídico no início do século XX pelo francês Léon Duguit sob influência do pensamento de Saint-Simon e de Augusto Comte. Para esses pensadores, por ser fonte de produção e riquezas a propriedade de-veria ser disciplinada pelo Estado a fim de assegurar as necessidades sociais, especialmente das classes proletárias (SALLES, 2014, p. 74).

Duguit entendia que, após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o Código Civil Francês de 1804, o sistema jurídico repousava em uma concepção metafísica de

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direito subjetivo e que o Direito Privado moderno se desenvolveu sob uma ótica puramente individualista. Compreendia o direito subjetivo como “o poder que corresponde a uma vontade de se impor como tal a uma ou várias vontades, quando quiser uma coisa que não está proibida pela lei” (DUGUIT, 1920, p. 26). No caso da propriedade privada, essa noção confere ao indi-víduo poderes para se opor aos demais e ao Estado, permitindo que utilize seu patrimônio em benefício próprio da forma que lhe aprouver. Nesse sentido, o Código Civil Napoleônico definia a propriedade em seu art. 544 como “o direito de gozar de uma coisa da maneira mais absoluta”.

A leitura feita por Duguit é corroborada por Paolo Grossi (2006), que aponta como uma das características marcantes da propriedade moderna a sua abstração. Para o autor, toda a lógica do pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX para justificar a livre iniciativa estava as-sentada na possibilidade de qualquer cidadão tornar-se proprietário, de forma que, aos poucos, já não havia grande diferença entre o “meu” e o “mim”. O conteúdo passou a ser um acidente, importando menos do que a relação em si. Estando desvinculada dos bens, a propriedade pas-sou a um plano de valor fundamental, direito inviolável e sagrado conforme estabelecido pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 42) destaca outro aspecto distintivo da proprie-dade moderna, qual seja a exclusividade ou, como prefere chamar, o monopólio do uso da terra.

De relação de produção, a propriedade fundiária foi-se gradualmente transformando num vínculo jurídico, num direito de propriedade que estabelece o monopólio legal do uso da terra e, nessa base, legitima a obtenção de um rendimento pela cedência do uso. Esta transformação é um dos vetores estruturantes da transição (ou das transições) do feudalismo para o capitalismo.

A propriedade é vista pela tradição moderna como o “puro direito subjetivo, ou seja, um interesse juridicamente protegido, que confere uma gama de poderes ao seu titular e corre-latos deveres, a serem prestados ou observados por terceiros não-proprietários” (LOUREIRO, 2003, p. 41). Nesse sentido, é um direito oponível a toda a sociedade - oponibilidade erga omnes – pois impede que os demais indivíduos interfiram nos direitos do proprietário. Ao exercício do direito de propriedade, portanto, não caberiam limites ou, quando houvesse, seriam muito excepcionais.

Tal concepção de propriedade, como um direito individual que confere amplos e ple-nos poderes a seus titulares, estabelece limites para o Estado no exercício da função de plane-jamento do território. Como lembra Peter Marcuse (2008, P. 13), “[a] proteção dos valores da propriedade historicamente tem sido uma das forças propulsoras do planejamento urbano: esta-va na raiz da legislação de zoneamento (zoning) nos EUA, e é sempre uma questão primordial nas audiências que tratam dos planos de uso do solo”.

Para Duguit (1920), contudo, essa noção de direito subjetivo individual não condizia com a realidade social, devendo ser superada. Defendia que o direito de usar determinado bem, na verdade, não decorre do poder, mas sim do dever de fazê-lo. Consequentemente, o abandono

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ou o uso contrário ao interesse geral não poderiam ser admitidos, devendo o Estado punir o proprietário omisso e obrigá-lo a dar uma destinação adequada ao bem. Trata-se não apenas de estabelecer imposições negativas ao exercício do direito, evitando os abusos e excessos pre-judiciais a terceiros, mas de verdadeiras imposições positivas, que inibem a não utilização e a especulação imobiliária. Para Duguit (1920, p. 184), com efeito:

Os que compram grandes quantidades de terrenos a preços relativamente baixos e que se mantém durante vários anos sem explorá-los, esperando que o aumento natural do valor do terreno lhes proporcione um grande benefício, não seguem uma prática que deveria estar proibida? Se a lei intervém, a legitimidade de sua intervenção não seria discutível nem discutida. Isto nos leva para muito longe da concepção de direito de propriedade intangível, que implica para o proprietário o direito a permanecer inativo ou não, segundo lhe agrade.

Esse pensamento coincide com o desgaste pelo qual passou o liberalismo no início do século XX e com a ascensão do Estado Social de Direito, cujas Constituições consagra-vam direitos sociais e coletivos. A propriedade privada, diante desse contexto, não ficou ilesa às transformações da época. A Constituição Alemã de 1919, por exemplo, estabeleceu que “a propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social” (art. 153, §2º).

No Direito brasileiro, os ideais do liberalismo levaram à edição da Lei nº 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras. A norma acabou com o sistema de sesmarias, legitimando os casos de ocupação existentes com títulos de propriedade. Aquelas terras não ocupadas ou cuja ocupação não fora legitimamente comprovada passaram ao domínio do Estado, sendo consi-deradas devolutas. Essa propriedade era inviolável, comportando apenas uma possibilidade de perda, nos casos de desapropriação, quando garantida a indenização.

Apenas com a Constituição de 1934 é que a propriedade passa a se submeter ao inte-resse social e coletivo (art. 113). Da mesma forma, a Constituição de 1946 estabeleceu que o uso da propriedade deveria ser condicionado ao bem-estar social (art. 147). E a expressão “função social da propriedade” foi utilizada pela primeira vez na Constituição de 1967 (art. 157, §1º). Em todos os casos, porém, o contexto social e os regimes políticos não permitiram a ruptura do paradigma da propriedade como direito individual pleno e absoluto.

Foi apenas com a Constituição de 1988 que o princípio da função social da propriedade ganhou o relevo que apresenta atualmente. Uma primeira inovação foi o fato de a função social da propriedade ter sido tratada no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º, XXIII), enquanto as constituições anteriores a previam apenas no capítulo referente à ordem econômica. Atualmente, ela é também um dos princípios orientadores da ordem econômica (art. 170, III), da política urbana (art. 182) e da política agrícola e fundiária (arts. 184 e 186).

Embora tenha mantido a concepção de propriedade como um direito individual, a Constituição de 1988 não a considera mais como sendo absoluto. Nesse sentido, ainda que não tenha substituído totalmente o paradigma do direito subjetivo individual pelo da função social,

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como propunha Duguit, a Constituição inaugurou novos paradigmas conformadores da pro-priedade, impondo uma conciliação entre o interesse individual e o interesse da coletividade.

No tocante à propriedade urbana, a Constituição, ao contrário do que fez ao disciplinar a propriedade rural, não estabelece parâmetros explícitos que caracterizem o cumprimento de sua função social. Delegou aos municípios, por meio de seus planos diretores o papel de estabe-lecer as condições que determinam a função social em cada caso.

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

É certo que, como princípio jurídico, a função social da propriedade apresenta uma tessitura aberta com grau de abstração e generalidade maior do que as regras, inexistindo uma fórmula rígida sobre seu conteúdo. Isso não significa que seja um conceito absolutamente vago e impreciso, sujeito a qualquer tipo de interpretação.

Por isso, não se pode afirmar, que as leis municipais gozam de liberdade absoluta no que diz respeito ao estabelecimento do conteúdo jurídico da função social da propriedade. É necessário considerar as diretrizes da política urbana, em especial o adequado aproveitamento do solo, o atendimento às demandas sociais por moradia digna, a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o combate à especulação imobiliária e a correção das distorções do crescimento urbano.

Como salienta Nelson Saule Junior (2007, p. 42), “como meio de atender a função so-cial da propriedade na formulação e implementação das políticas urbanas, deve prevalecer o in-teresse social e cultural coletivo sobre o direito individual de propriedade, e sobre os interesses especulativos”. Esse é o fundamento orientador da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade -, que regulamenta o Capítulo da Política Urbana da Constituição de 1988, estabelecendo “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art. 1º, § único).

Contudo, ainda que haja uma consolidada construção teórica sobre a função social da propriedade, ela ainda não tem sido um fator determinante nas decisões judiciais relativas aos conflitos fundiários urbanos.

Como bem assevera Marcos Alcino de Azevedo Torres (2010, p. 345), “não haverá choque entre propriedade e posse, se a primeira estiver cumprindo sua função social, uma vez que é pela posse que se cumpre tal função. Tal hipótese seria de posse-conteúdo do direito de propriedade regularmente exercido”. Mas, quando o titular da propriedade se mantém inerte, mantendo o imóvel apenas como um investimento, e terceiros, sem o seu consentimento, bus-cam efetivar a função social por meio da posse do imóvel, surgem os confrontos.

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A posse enquanto fenômeno social merece proteção estatal, pois é ela que “permite a proteção do ‘ser’ nas exigências mínimas da vida em sociedade, [sendo] instrumento essen-cial de satisfação de necessidades humanas, seja ela exercida em razão da titularidade ou não” (TORRES, 2010, p. 376). E, no conflito entre os direitos de posse e de propriedade, deve pre-valecer aquele que estiver cumprindo a sua função social, pois esta é a garantia de um sistema equânime na sociedade com visão para a efetivação do direito social de moradia (ALFONSIN, 2004).

Portanto, a propriedade sem função social perde a proteção do sistema jurídico, e a posse se destaca enquanto instrumento de erradicação de pobreza e das desigualdades sociais. Desse modo, para justificar a prevalência da posse funcionalizada sobre a propriedade desfun-cionalizada é necessário interpretar o direito civil à luz da Constituição (ROMEIRO; FROTA, 2015).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PARÂMETROS PARA VERIFICAÇÃO DO TRATAMENTO ADEQUADO NOS CASOS DE CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Um primeiro aspecto relevante em relação aos conflitos fundiários urbanos diz respei-to à excepcionalidade de qualquer medida que determine o deslocamento forçado das famílias envolvidas. A Lei 11.977/2009 reforçou a concepção já presente no Estatuto da Cidade de que a regularização fundiária é um direito da população. E, como princípio orientador, referida lei estabeleceu a “ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prio-ridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental” (art. 48, I).

O “princípio da permanência” deverá sempre ser considerado pela Administração Pú-blica e pelo Poder Judiciário nos casos de conflitos fundiários urbanos. Os deslocamentos in-voluntários jamais poderão ser a regra. E, quando necessários, deverão observar os preceitos da Política Urbana e assegurar a proteção dos direitos da população envolvida. Em hipótese alguma, o ordenamento jurídico brasileiro tolera a prática das remoções forçadas e violentas. Os deslocamentos e reassentamentos devem ser negociados democraticamente com a população envolvida e oferecer respostas adequadas do ponto de vista urbanístico.

Contudo, se imprescindível o deslocamento das famílias de baixa renda envolvidas no conflito fundiário, é fundamental que essa medida não acarrete violações de direitos humanos. Portanto, devem ser instituídos parâmetros para monitoramento e avaliação das medidas judi-ciais e/ou ações públicas que determinem o deslocamento dessa população.

Em primeiro lugar, há uma série de impactos sociais que deverão ser sopesados pelo magistrado na análise de cada situação, devendo verificar a repercussão de uma eventual deci-são de reintegração de posse ou similar. Nesse sentido, é importante considerar a extensão do impacto em relação à quantidade de famílias afetadas. Certamente, conflitos envolvendo gran-des coletividades possuem uma complexidade maior e demandam uma série de medidas para

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evitar que a remoção repercuta em novas ocupações precárias. Isso não significa que conflitos fundiários com um pequeno número de famílias seja facilmente solucionado, mas apenas que as repercussões da decisão terão outra magnitude, afetando a dinâmica da cidade de forma não tão profunda.

Ainda em relação à população envolvida nos conflitos fundiários, é preciso assegurar tratamento prioritário para crianças, adolescentes e idosos, conforme preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, respectivamente. Em muitas situações, o deslocamento de famílias resulta em graves problemas em relação ao atendimento nos equi-pamentos de saúde e de educação pública, provocando descontinuidade na prestação desses serviços. Isso faz com que surjam violações reflexas na vida de crianças, adolescentes e idosos.

Outro aspecto quase nunca considerado nas decisões judiciais diz respeito ao acompa-nhamento das famílias após a reintegração ou remoção. Em regra, os magistrados preocupam-se em decidir o litígio imediato, deixando de lado os conflitos criados pela própria decisão judicial. Ao determinar a desocupação de um imóvel, não se posicionam sobre o destino das famílias.

No caso de conflitos fundiários gerados por obras públicas, é preciso verificar se há previsão de reassentamento e se as unidades habitacionais contemplam a diversidade das for-mações familiares e as necessidades de grupos vulneráveis, como pessoas com deficiência.

Deve-se considerar também o grau de inserção urbana do novo local de moradia. Nes-se ponto, a localização do empreendimento que receberá as famílias é um aspecto importante. Grandes distâncias geram novos problemas em relação à mobilidade, acesso a serviços públicos e disponibilidade de emprego, o que é também uma violação do direito à moradia adequada.

Outra questão relativa ao reassentamento diz respeito ao cronograma das obras, de forma que haja uma coordenação entre o deslocamento das famílias e a solução definitiva. Isso evita medidas paliativas e provisórias, como o aluguel social, que impõe uma situação de inse-gurança e instabilidade para as famílias.

Do ponto de vista da adequação jurídica, é importante garantir que as famílias tenham amplo acesso à justiça, o que implica em assessoria técnica gratuita e oportunidade de defesa em todas as etapas das ações judiciais. Nesse aspecto, o deferimento de liminares sem a audição das famílias ou grupos implicados não é a melhor alternativa, gerando mais problemas do que soluções. Ademais, sob a ótima estritamente processual, uma medida liminar de reintegração de posse ou remoção não atende à exigência de reversibilidade imposta pelo art. 273, §2º, do Código de Processo Civil2.

Como fator de verificação da adequação da medida, é crucial que sejam analisados to-dos os argumentos em favor da permanência das famílias no imóvel. A remoção é, assim, uma medida extrema e que deve ser excepcional. Como regra, é preciso ponderar se os proprietários cumpriam as exigências da função social. Caso os imóveis não atendam a essa determinação, cabe concluir que a propriedade não teria força normativa suficiente para desconstituir a posse

2 O Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015, mantém a exigência em seu art. 300, §3º.

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exercida pelos ocupantes. Nesse caso, a regularização fundiária apresenta-se como solução mais correta e adequada na sistemática da ordem jurídico-urbanística respaldada pela Constituição de 1988. Essa é também a orientação do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas, por meio do Comentário Geral nº 7, que trata da proteção da moradia nos processos de remoções forçadas.

Por fim, uma medida importante é a constituição de instâncias e fóruns para negocia-ção coletiva. Nesse sentido, ainda que o Município não componha o litígio formalmente, deverá participar da sua solução, pois, como discutido acima, trata-se de uma tensão surgida pelo con-texto de exclusão sócio-territorial.

As vias de negociação – mediação e conciliação – permitem um diálogo mais ajustado à natureza dos conflitos fundiários, permitindo que se discutam todos os aspectos e repercus-sões das medidas. Isso assegura que as soluções contemplem diferentes interesses que não seriam sequer avaliados pelo magistrado em uma decisão monocrática.

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Recebido em 11 mar. 2015Aceito em 12 mar. 2015

A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E O DIREITO

Daniella Maria dos Santos Dias*

RESUMO: O artigo visa demonstrar a intrínseca relação entre o planeja-mento e a ordem jurídica e como se faz necessário uma mudança na forma como a administração pública vem gerenciando as políticas para o desenvol-vimento urbano, mudança que pressupõe a abertura democrática e a criação de espaços de participação política, o planejamento integrado e a vivência do federalismo cooperativo.Palavras-chave: Desenvolvimento urbano. Planejamento. Democracia par-ticipativa.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na atualidade, não se fazem necessários profundos conhecimentos para perceber os inúmeros problemas que são vivenciados nos espaços urbanos. As cidades e as áreas rurais enfrentam variados desafios.

A utilização inadequada do solo com a consequente degradação do meio ambiente; a falta de planejamento e de políticas públicas para enfrentamento de problemas como a falta de saneamento básico; a inexistência de políticas que tratem do trânsito, da circulação, da mobili-dade; a falta de previsão de áreas para o lazer; a incapacidade do Estado de planejar e de prever políticas alternativas para a população carente; as diferenças abissais que separam as áreas do-tadas de infraestrutura e as áreas periféricas,- que abrigam grande parte da população carente;

* Possui graduação em Bacharel Em Direito pela Universidade Federal do Pará (1991), Especialização em Direito Ambiental pela Univer-sidade Federal do Pará (1993), Especialização em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Pará (1996) e Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2001) e Investigação Pós-Doutoral na Universidade Carlos III de Madri na Espanha, junto ao Departamento de Direito Público Comparado e ao Instituto Pascual Madoz. Atualmente é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará e Professora da Universidade da Amazônia e da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-Graduação). Tem experiên-cia na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Ambiental, Direito Urbanístico, Direitos Humanos e Introdução à Ciência do Direito.

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a pobreza, a criminalidade e a insegurança são temas recorrentes e ainda sem solução quando se pensa a problemática urbana.

No entanto, ainda que passemos por uma crise conjuntural e complexa, fruto da glo-balização econômica, de um modelo de desenvolvimento transnacional que tem por consequên-cias sociais negativas o aumento das desigualdades, que se perfazem nos espaços urbanos sob as formas de desigualdades econômica, sócio espacial, política e ambiental, o Direito continua a ser importante instrumento para o combate às desigualdades, pois deve servir como “vetor” para a implementação de políticas que venham a garantir o acesso à moradia digna, à circulação digna, ao trabalho, aos serviços de infraestrutura essenciais à sadia qualidade de vida, o acesso aos equipamentos públicos e aos espaços de lazer, à proteção ao meio ambiente, ao patrimônio histórico-cultural, à biodiversidade, à sóciodiversidade.

Vale dizer que a promoção do bem-estar para os espaços urbanos pressupõe também a promoção do bem-estar para os espaços rurais, pois não há como existir melhor qualidade de vida sem um planejamento adequado e sem um ordenamento jurídico eficaz que possa abranger as intrínsecas e recorrentes influências que existem entre o binômio rural e urbano.

Segundo Carvalho (1988, p. 36):

“O planejamento é um processo, um conjunto de fases (subprocessos, processos) pelas quais se realiza uma operação. Sendo um conjunto de fases, um processo, a sua realização não é aleatória. O processo é sistematizado, obedece a relações precisas de interdependência que o caracterizam como um sistema, um conjunto de partes coordenadas entre si, de maneira a formarem um todo, um conjunto coerente e harmônico, visando a alcançar um objetivo final (produto, resultado) determinado, que não se sabe, ao longo do processo, exatamente qual, de forma absoluta, vai ser. O conjunto de fases da realidade (ou situação) decisão, ação, crítica” .

O presente artigo visa demonstrar a intrínseca relação entre o planejamento e a ordem jurídica e como se faz necessário uma mudança na forma como a administração pública vem gerenciando as políticas para o desenvolvimento urbano, mudança que pressupõe a abertura de-mocrática e a criação de espaços de participação política, o planejamento integrado e a vivência do federalismo cooperativo.

2 A NOVA ORDEM URBANÍSTICA E A IMPORTÂNCIA DE UM EFETIVO PLANEJAMENTO

Para o eficaz enfrentamento dos desafios que são vivenciados nos espaços urbanos e que possuem direta relação com os espaços rurais, é preciso de uma vez por todas abraçar os valores que a nova ordem urbanística, forjada no texto constitucional de 1988, traz.

Apesar do texto constitucional tratar da necessidade de concretização da dignidade, da igualdade, do desenvolvimento sustentável, da proteção ao meio ambiente, da utilização da propriedade consoante as funções sociais da cidade, da necessidade da criação de espaços polí-

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ticos participativos para a definição das prioridades e de políticas para as áreas urbanas e rurais, nenhum desses valores expressos no texto constitucional e no conjunto normativo infraconstitu-cional se tornará concreto nem garantirá a justiça social se os inúmeros problemas decorrentes da ocupação e da organização do solo urbano não forem solucionados a partir de um coerente planejamento que esteja concatenado com a nova ordem constitucional urbanística.

Significa dizer que a implementação do direito à cidade sustentável, a garantia do direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento, ao transporte, ao lazer, direitos expressos no Estatuto da Cidade (artigo 2º, inciso II, Lei 10.257/2001), marcos direcionadores para o desen-volvimento de políticas públicas, dependem de um eficaz planejamento.

Se o texto constitucional determina que as políticas públicas para os espaços urbanos dependem do planejamento e que o plano diretor é instrumento básico para a política de de-senvolvimento e de expansão urbana, os administradores municipais devem seguir o comando constitucional e utilizar-se do plano diretor como principal instrumento para a realização dos objetivos e das políticas públicas para os espaços urbanos.

O plano diretor é a “mola mestra” do processo de planejamento e desenvolvimento urbano no âmbito municipal, mas sua existência e finalidade não estão desconectados da reali-dade e dos interesses nacionais. Em verdade, a necessidade de que o plano diretor traga normas impositivas, cogentes, para o uso da propriedade privada, com critérios e obrigações para o cumprimento da função social da propriedade, tem direta relação com os interesses urbanísti-cos nacionais, pois o plano diretor, por meio de suas metas, de seus princípios, deve expressar as diretrizes e as normas que orientarão os programas e políticas no âmbito municipal.

As orientações contidas no plano diretor são direcionadas tanto ao âmbito público quanto ao âmbito privado. As normas referentes aos âmbitos econômico, educacional, à saúde, à assistência social, ao patrimônio cultural, à habitação, ao lazer, à infraestrutura, ao meio am-biente, ao esporte, ao lazer, à mobilidade urbana, à acessibilidade, ao ordenamento territorial, à criação e manutenção de áreas verdes, dentre outros temas, são verdadeiros compromissos. No entendimento de Nelson Saule Júnior (1998. p. 38)

“O Município, através de Lei Orgânica, deve dispor sobre o Plano Diretor, definindo as responsabilidades do Poder Executivo e Legislativo, em especial sobre o processo legislativo: prazo para sua elaboração e aprovação, procedimento nas Comissões permanentes, quórum para a deliberação, mecanismos de participação popular (por exemplo, audiência pública e iniciativa popular). A Lei Orgânica deve traçar as diretrizes gerais do Plano Diretor como normas condicionantes para a sua instituição e execução.O princípio da participação popular reforça essa posição, pois será através da Lei Orgânica que serão estabelecidos os mecanismos e as instâncias democráticas que deverão ser utilizados para a instituição e execução do Plano Diretor, uma vez que o respeito a esse princípio constitucional é requisito obrigatório para o plano ser legítimo e válido”.

Saule Júnior (1997, p. 230) argumenta que o plano diretor é ferramenta para a efeti-

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vação da cidadania e da dignidade humana, que são verdadeiros fundamentos do Estado De-mocrático de Direito. Nesse sentido, a concretização da dignidade humana em todas as suas dimensões pressupõe, quando se pensa na organização do espaço, a existência de processo de planejamento que tenha por finalidades precípuas o cumprimento das funções sociais da cidade e da função social da cidade, considerando que essas funções devem ser efetivadas consideran-do o princípio da igualdade.

O planejamento é a base para a atuação política nos espaços urbanos. Sem planejamen-to não há como se realizar a organização do espaço, não haverá parâmetros para intervenção do Estado na ordem econômica, de forma a moldar a utilização da propriedade tendo em vista o cumprimento de sua função social (artigo 170, CF). Somente por meio do planejamento é que se poderá concretizar os valores expressos no texto constitucional e se garantirá a justiça social por meio de políticas inclusivas que assegurem o desenvolvimento humano, o equilíbrio ecológico e a dignidade humana para todos os que habitam em espaços urbanos e rurais.

Ao tratar da obrigatoriedade de existência e de implementação do Plano Diretor, afir-ma Carneiro(1998, p. 40-1):

“Se o ‘plano diretor’ está inserido no ‘planejamento municipal’, por força, respectivamente, dos arts. 182, parágrafo 1º. e 29, XII, da Constituição Federal de 1988, posto que este ‘preceito’ é o mais amplo do que aquele ‘instrumento’, o Executivo Municipal, juntamente com a sociedade e esta, através de suas forças representativas e de forma cooperativa, deverão debruçar-se sobre tais misteres e fazê-los realidade, sob pena de, não os criando, inviabilizar a vontade insculpida no texto constitucional, tornando inócua, pois, qualquer perspectiva de uma concreta ‘Política Urbana’ (Cap. II, do Título VII, da CF/88)”.

No entanto, sabe-se que, apesar da obrigatoriedade da criação do plano diretor, con-soante às hipóteses fáticas descritas no artigo 41 do Estatuto da Cidade, grande parte dos mu-nicípios brasileiros não possuem plano diretor. Vale ressaltar que aqueles municípios brasileiros que possuem o plano diretor, muito poucos conseguem dar efetividade a esse importante ins-trumento de planejamento como plataforma política para a transformação da realidade de suas áreas urbanas e rurais.

Um dos maiores problemas relacionados à falta de efetividade do plano diretor diz respeito ao fato de que eles não expressam a verdadeira realidade social. Significa dizer que muitos planos diretores são verdadeiras “cópias” de outros planos, que servem tão-somente como conteúdo “formal” para a justificação da existência de uma política urbana, quando, na verdade, essa falta de correlação com a realidade é um problema político de grande monta, pois a falta de planejamento também é uma opção política!

O plano diretor – como lei e plano - deve expressar programas que revelem compro-missos para ações de governo, que tenham por objetivo planos e metas direcionados à realidade municipal, o que depende terminantemente de conhecimento da realidade, de diagnósticos, de análises sobre a realidade municipal e de busca de alternativas para as políticas municipais, tudo

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considerando os problemas, as potencialidades que o município apresenta, as características de sua população e os problemas crônicos que enfrenta. Não há possibilidade de qualquer sucesso para um plano diretor totalmente incongruente com a realidade municipal!

De nada adianta um belo plano diretor, com diretrizes e compromissos progressistas, se essas metas e diretrizes para o planejamento se mantiverem tão somente no âmbito do dis-curso político.

Outro problema que tem direta relação com a efetividade do plano diretor para a orga-nização do espaço é a necessária regulamentação dos institutos nele contidos.

No caso do município de Belém, a Lei nº. 8.655, de 30 de julho de 2008, que dispõe sobre o plano diretor, para sua plena efetividade, depende da regulamentação de grande parte dos instrumentos nele dispostos.

As diretrizes para a política habitacional, a criação e implementação de zonas espe-ciais de interesse social, inclusive as zonas especiais de interesse social de vazios urbanos, o direito de preferência, o parcelamento, urbanização e edificação compulsórios, a dação em pa-gamento, o consórcio imobiliário, a outorga onerosa do direito de construir, a outorga onerosa de mudança de uso, o estudo de impacto de vizinhança, as operações urbanas consorciadas são instrumentos que ainda estão dependendo de regulamentação para a sua aplicação.

O Ministério Público do Estado do Pará expediu recomendação para que o prefeito municipal envidasse esforços para, em caráter de urgência, enviar projetos de lei específicos para a implementação dos instrumentos urbanísticos previstos no Plano Diretor. Referida reco-mendação ressaltou a importância da democracia deliberativa para a criação, debate e imple-mentação dos institutos que ainda carecem de legislação específica para serem implementados.

A falta de efetividade do plano diretor e de seus instrumentos impossibilita a concre-tização de uma de vida digna. O município - em razão da falta de regulamentação dos instru-mentos acima citados - perde a oportunidade de intervir para definir o cumprimento da função social da propriedade e para o desenvolvimento das funções sociais da cidade; descura de sua precípua função de criar um projeto de cidade com maior justiça social, qualidade de vida e equilíbrio ecológico. Inúmeros direitos como direito à habitação, aos serviços básicos, à loco-moção, à existência de espaços públicos com qualidade, a proteção às minorias e aos hipossu-ficientes, o direito à circulação são valores que jazem nos textos legais pela falta de consciência e de vontade política dos órgãos públicos, o que gera, como consequência, verdadeira ingover-nabilidade do espaço no município de Belém.

Não é exagero afirmar que sem uma pauta para o planejamento e sem a concretização das metas e dos instrumentos dispostos no plano diretor do município de Belém, os espaços urbanos continuam a ser forjados de forma aleatória, submetidos aos eventos econômicos, polí-ticos, culturais, sociais. Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo social por meio do planejamento democrático. Esse é outro desafio!

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3 O DESAFIO DA DEMOCRATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS URBANAS PARA A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

Como bem ressalta Alckmin Filho (2002, p. 98), foi a Constituição de 1988 que veio consolidar as bases jurídicas para atuação dos poderes municipais. De fato, os municípios, a partir da Constituição Federal de 1998, passam a ter autonomia financeira, administrativa e organizacional.

O texto constitucional dotou os municípios de autonomia e capacidade de gestão, as-sim como criou as inúmeras atribuições e competências para o trato da questão urbana. A Carta Magna avançou significativamente no que pertineà participação popular e o fortalecimento do poder local. A partir da leitura do texto constitucional, o desenvolvimento urbano só pode ser realizado com a democracia participativa.

O desafio da democratização tal qual a regulamentação dos instrumentos dispostos no plano diretor, depende de vontade política dos governantes, de uma correta atuação do poder le-gislativo no sentido de fazer cumprir os mandamentos do texto constitucional, e acima de tudo, de um verdadeiro controle político a ser realizado pelos próprios cidadãos.

Há alguns anos, Sposati (2002, p. 73-80), ao tratar das dificuldades para a descentrali-zação municipal e para a democratização da gestão urbana do município de São Paulo, chamava atenção para a escassa participação popular no processo de planejamento e no processo de fis-calização das ações do poder público. A falta de controle social sobre as ações do poder público se dava justamente pela falta de regulamentação de mais de trinta e um artigos contidos na Lei Orgânica de São Paulo, todos eles referentes à democratização e à gestão da cidade.

Alertava Sposati (2002, p. 73-80) que o capítulo das disposições transitórias da Lei Orgânica Municipal determinava prazo de dois anos para a regulamentação de dispositivos que tratavam da participação no planejamento da fiscalização, para o plebiscito para obras de valor elevado, audiência pública para moradores atingidos por obras de grande vulto, possibilidade do contribuinte para questionar a legitimidade das contas do poder público, produção do plano diretor, criação de sistema de planejamento e sistema de informações, criação subprefeituras, preservação de áreas de riscos, relatório de impacto de vizinhança, criação de sistema de gestão de qualidade ambiental, dentre outros instrumentos. O prazo legal, à época de sua pesquisa, já havia se exaurido sem que os instrumentos tivessem sido regulamentados.

A pesquisa de Sposati ratifica o fato de que os óbices e as dificuldades relacionados à organização do espaço e ao planejamento urbano têm direta relação com a não implementação da democracia participativa. Na verdade, a falta de participação política é decorrente da falta de implementação de canais de participação que foram previstos e idealizados na Constituição Fe-deral. A participação política depende do engajamento maciço da população e de uma mudança de paradigma na atuação do poder executivo municipal.

O processo de criação do plano diretor do município de Belém iria ser feito sem o de-vido debate democrático junto à Câmara Legislativa municipal.

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O Ministério Público Federal, por meio de Ofício PR/PA/CHEFIA nº 072/2007, enca-minhou representação informando sobre possíveis irregularidades no processo de aprovação do plano diretor do município de Belém junto à Câmara Municipal. Diante do teor da denúncia que informava que o processo de elaboração do texto do plano diretor não estaria permitindo o debate democrático, no âmbito da Câmara municipal, e que se estaria subtraindo do texto mu-nicipal instrumentos importantes dispostos no Estatuto da Cidade, como o estudo de impacto de vizinhança, o IPTU progressivo, a outorga onerosa, o zoneamento especial, o macro-zonea-mento, o Ministério Público do Estado do Pará recomendou à Câmara Legislativa Municipal de Belém, na pessoa de seu Presidente, o fiel cumprimento dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, bem como os mandamentos expressos no Estatuto da Cidade, especificamente no que tange à abertura de debates dentro do processo legislativo, garantindo canais de participação a todos.

Face à recomendação, inúmeras audiências públicas foram programadas no município de Belém, tendo em vista propiciar o debate sobre o conteúdo existente no projeto de lei enca-minhado pelo Prefeito municipal, que tratava do plano diretor.

Sabe-se que a gestão democrática da cidade deve ser estruturante das políticas ur-banas, pois ao estar expressa em dispositivos federais, ratifica o sentido e a conformação do Estado Democrático de Direito que pretende a realização da igualdade, com base na vivência da democracia. Deve, portanto, o poder público municipal atuar para dar cumprimento ao ideal democrático por meio da implementação de políticas públicas, da proposição de projetos de leis, de planos e de programas para o desenvolvimento urbano, que dependerão desse diálogo entre Estado e sociedade, dessa “concertação de interesses” (Lei 10.257/2001, artigo 43).

Se o texto constitucional trata da cooperação de associações representativas da socie-dade civil no planejamento municipal, a lei orgânica municipal deve conter os instrumentos que possibilitem a gestão participativa, a participação popular no processo de desenvolvimento urbano (CF, artigo 29, inciso XII), estabelecendo ainda as regras de procedimento para que haja a cooperação da sociedade no planejamento local, na elaboração do plano diretor e de todos os demais planos municipais que fazem parte do processo de planejamento e desenvolvimento urbanos. Somente assim se poderá dar efetividade ao texto da Constituição Federal, pois nele a participação popular apresenta-se como requisito imprescindível, necessário para a validação e a eficácia dos atos do poder público.

Vê-se a intrínseca relação entre planejamento e participação política. Se o texto constitucional traz em seu cerne a necessidade de incorporação da igualdade

material por meio da garantia de condições mínimas de vida para todos, esse ideal - quando se trata da organização do espaço por meio de políticas para os espaços urbanos - deve se concreti-zar por meio da realização dos direitos e garantias expressos no artigo 2º do Estatuto da Cidade. As bases do Estado Democrático de Direito pressupõem a realização substantiva, em igualdade de condições, do direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento, ao transporte, ao trabalho, a lazer (artigo 2º, inciso I, Lei 10. 257/2001).

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Esses direitos só podem ser efetivamente garantidos com democracia. Consoante Mer-cado (1995, p. 113), a democracia é o regime político necessário para a introdução de formas de controle e de direcionamento sobre a economia de forma que a sociedade possa controlar as decisões econômicas em consonância com os interesses sociais. Nesse sentido, as instituições precisam forjar novos vínculos sociais, de forma que os indivíduos atuem em sociedade e pos-sam verdadeiramente participar dos projetos políticos estatais.

O Direito e o planejamento democrático se perfazem em proposta como forma de en-frentamento dos inúmeros problemas vivenciados nos espaços urbanos e rurais, o que depende da consolidação de espaços deliberativos, do acesso à informação e da transparência dos atos do poder público.

4 A INEXISTÊNCIA DE PLANEJAMENTO INTEGRADO E A FALTA DE VIVÊNCIA DO FEDERALISMO COOPERATIVO

Outro grande desafio quando se pensa na urbanização do espaço é a inexistência do planejamento integrado cumulado com a falta de vivência do federalismo cooperativo.

Os problemas urbanos não se limitam tão-somente aos aspectos locais. Os problemas decorrentes da urbanização se refletem para além dos espaços locais e nacionais, o que deman-da um planejamento integrado, que consiga refletir as interfaces local, regional e nacional.

A leitura que se realiza do texto constitucional, em seu artigo 182, leva a crer que seu comando normativo define tão-somente a atuação do poder público municipal quando da cria-ção e implementação de políticas para o desenvolvimento urbano. No entanto, não cabe tão-so-mente ao município o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade para garantia do bem-estar e da qualidade de vida dos habitantes.

Apesar de ter sido delegado ao município ampla gama de atribuições para tratar dos problemas decorrentes dos impactos da urbanização, os problemas urbanos não se limitam aos aspectos locais e como os problemas decorrentes da urbanização se refletem para além dos espaços locais e nacionais, urge que se pense em planejamento integrado, ou seja, num planeja-mento que consiga ter refletidas as interfaces local, regional, nacional.

Analisar o artigo 182 do texto constitucional como comando normativo definidor da atuação do poder público municipal não significa que só o município deve ordenar o pleno de-senvolvimento das funções sociais da cidade para garantir o bem-estar de seus habitantes. Em razão do interesse local e da possibilidade de resolver diretamente os problemas vivenciados pelos cidadãos, deve o poder local ter a possibilidade de buscar soluções e atuar de forma pre-ponderante, isto é, dando-se prioridade à atividade administrativa municipal em detrimento das atividades estatais e nacionais quanto ao tema objeto de conflito administrativo. Este raciocínio deflui de sua larga autonomia e da ampla gama de atribuições constitucionais que lhe foram conferidas (aos municípios), bem como da necessária descentralização de funções dispostas no texto constitucional em razão da necessidade de consecução do federalismo cooperativo.

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Neste sentido, no que tange à gestão comum de interesses nacionais, cabe ao órgão federal a cooperação administrativa, atuando suplementarmente ou subsidiariamente à atuação estatal. Essa atuação de órgão da administração federal não pode ser conflitiva, superposta, estando condicionada à atuação dos Estados para o trato da matéria. Objetiva tão somente su-prir as deficiências, falhas, omissões ocorridas na atuação administrativa, que originariamente pertencem aos Estados-Membros.

O artigo 23 da Constituição Federal, que tem por objetivo a cooperação e a interde-pendência de funções e atividades na Federação, expressa a necessária harmonia num sistema de repartição de atribuições e atividades de forma a que não exista conflito, superposição de atividades, simultaneidade de ações que podem ser contraditórias. O referido dispositivo objeti-va atuação lógica, racional, consentânea com os princípios e objetivos da República Federativa, por meio de atuação adequada de cada esfera federativa.

No que tange às políticas sobre saúde, desenvolvimento urbano e meio ambiente, ob-serva-se, no entanto, que essas políticas, estruturadas sob sistemas nacionais de distribuição de competências, não traduzem a necessária harmonia e integração de ações para resolução de questões comuns a todas as esferas federativas, dentre as quais também destacamos a neces-sidade de uma política de desenvolvimento urbano integrada, consubstanciada em objetivos, estratégias, parcerias e ações integradas em prol do desenvolvimento sustentável.

Em se tratando de políticas de saúde, de ensino, de proteção ao meio ambiente, nesta inserida a necessidade de consecução de espaços urbanos sustentáveis, não existe o estabe-lecimento de relações adequadas e congruentes entre distintas esferas federativas, elementos indispensáveis para a realização de políticas estáveis e coerentes à implementação de desenvol-vimento urbano que cumpra com as funções e objetivos dispostos no texto constitucional.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O planejamento integrado deve ser pensado em meio a um verdadeiro federalismo cooperativo, em que municípios, Estados e União possam fazer valer suas atribuições e compe-tências para definição, utilização e fiscalização do uso e do parcelamento do solo.

Esse planejamento precisa considerar as áreas urbanas e rurais, contemplando uma configuração mais equilibrada da questão rural-urbana e uma melhor distribuição do território, envolvendo, entre outras preocupações, a concentração excessiva das áreas metropolitanas, do contrário, nunca poderemos pensar em desenvolvimento urbano sustentável.

É sob a perspectiva da integração sócio espacial e da urgente integração sócioespacial do Brasil no que tange o processo de desenvolvimento e implementação de políticas urbanas que se objetivou realizar breves considerações sobre os desafios e perspectivas de efetivação do Direito urbanístico, ressaltando experiências no município de Belém, no Estado do Pará que, apesar de suas especificidades e particularidades, expressa, a partir de sua realidade urbana, problemas que certamente são recorrentes em toda a Amazônia.

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Alex Fiúza de Mello (2007, p. 16) afirma categoricamente que a região enfrenta o dilema amazônico. E de forma contundente, afirma o autor que o problema amazônico é um problema acima de tudo político. Para Alex Fiúza de Mello, a Amazônia se apresenta como um dos principais centros das atenções mundiais em razão de suas riquezas naturais, de sua biodiversidade, de suas jazidas minerais, de seus recursos hídricos. E é justamente em razão de sua importância estratégica para o Brasil e para o mundo que os desafios para o novo século precisam ser enfrentados pelos atores políticos e por instituições, “... sob pena do processo de transformação em curso resultar em mais um ciclo de exploração econômica concentradora de riquezas e socialmente excludente” (Fiúza de Mello, 2007, p. 19-20).

Para o autor, somente existirá um salto civilizatório e de exercício da soberania, “... se existir uma vontade política comprometida com um verdadeiro projeto de nação, com um democrático e inclusivo pacto federativo e com o futuro dos brasileiros que habitam o norte do país” (Fiúza de Mello, 2007, p. 21). E vaticina: “Não haverá futuro para a Amazônia sem desen-volvimento científico e tecnológico com inflexão e sustentação a partir de dentro da região”(-Fiúza de Mello, 2007, p. 16-17).

O Direito, portanto, deve ser importante aliado nesse processo de democratiza-ção e de inclusão social. Porém, os municípios brasileiros precisam assumir e exercer as atri-buições institucionais decorrentes do texto constitucional, das normas infraconstitucionais, de leis orgânicas, pois a construção do Estado Democrático é um processo, constante vir a ser, e deve ser o jogo democrático o mecanismo por meio do qual se busque dissipar as desigualdades sócio espaciais por meio de um planejamento coerente, integrado e compatível com a realidade de cada município.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2004.

BRASIL. Estatuto da Cidade(Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 ). São Paulo: Saraiva, 2001.

CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal. Organização da cidade. Planejamento municipal, plano diretor, urbanificação. São Paulo: Max Limonad, 1998.

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CARVALHO, Horácio Martins. Introdução à teoria do planejamento. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FIÚZA DE MELLO, Alex. Para construir uma universidade na Amazônia: realidade e utopia. Belém: EDUFPA, 2007.

MERCADO, Pedro Pacheco. Transformaciones económicas y función de lo político en la fase de la globalización. In: Mundialización económica y crisis político-jurídica (Anales de la Cátedra Francisco Suarez). Granada, n. 32, p. 101-138, 1995.

SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

SAULE JÚNIOR, Nelson. O tratamento constitucional do plano diretor como instrumento de política urbana. Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

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Recebido em 04 mar. 2015 Aceito em 10 maio 2015

O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO FUNDAMENTAL DE PLANEJA-MENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADES

Nayara Oliveira da Silva*

RESUMO: O presente estudo analisa as contribuições do plano diretor para a realização das funções sociais da cidade, conforme dispõe o art. 182 caput e §2º da CRFB/88. Inicia-se com uma abordagem sobre o fenômeno da ur-banização e seus reflexos no ordenamento jurídico pátrio, discorre acerca dos aspectos essenciais ao plano diretor, destacando a importância da gestão participativa e as implicações desse instrumento em relação à efetivação do princípio da função social da cidade, e reforça, também, a importância da participação popular na política urbana e na elaboração de um plano diretor com vistas a uma cidade sustentável. Palavras-chave: Direito urbanístico. Plano diretor. Cidade sustentável. Fun-ção social da cidade. Gestão participativa.

1 INTRODUÇÃO

Diante da notória rapidez do processo de urbanização no Brasil, percebido desde o recen-seamento brasileiro do ano 2000, afirma-se que mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades e suas periferias. Com isso, as inúmeras aspirações sociais e, acima de tudo, as inúmeras carências decorrentes desse processo, tem caracterizado uma constante e crescente urbanização da pobreza.

A migração em massa das pessoas que moram no campo para as cidades levou ao aumen-to de moradias informais e precárias, destituídas de mínimas condições de habitabilidade. Saltam aos olhos a proliferação de assentamentos sobre encostas, à beira dos rios, córregos, nas áreas de

* Técnica em Edificações pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte e Graduanda em Direito, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período.

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proteção ambiental, com precariedades urbanísticas, sem saneamento básico, com altas vulnerabi-lidades sociais e riscos ambientais, entre outros graves problemas.

Nesse contexto, a racionalização e organização dos espaços físicos e demográficos me-rece especial atenção do Poder Público, a fim de fomentar o planejamento do desenvolvimento da urbe como forma de garantir à grande população menos privilegiada o direito à uma moradia digna.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 182, ao atribuir aos municípios a responsa-bilidade na definição de suas políticas de desenvolvimento urbano, com a finalidade de ordenar o pleno incremento das funções sociais das cidades, a partir da implementação do plano diretor, deu um passo importante para enfrentar este desafio.

Em decorrência, surgiu o Estatuto das Cidades (Lei Federal n º 10.257/01), reforçando o papel do plano diretor como instrumento fundamental de planejamento sustentável das cidades (com observância da função social da propriedade e da cidade).

Considerando os dispositivos legais supra declinados, compreende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao traçar suas diretrizes para a política urbana, define, como ponto essencial, a garantia do cumprimento da função social da propriedade e aponta, como instrumento funda-mental para atingir essa meta, o plano diretor, cujas exigências irão indicar como será exercido o direito individual de propriedade dentro de um contexto que não inviabilize o acesso aos espaços habitáveis daquela expressiva maioria da população vulnerável economicamente.

Evidencia-se, assim, a importância do tema frente à imperatividade da norma legal que define a obrigatoriedade de aprovação do plano diretor para grande parte dos municípios do país.

Sem ter a pretensão de esgotar a matéria – evidentemente complexa – propõe-se, este texto, a fazer uma análise sobre as questões mais emergentes que dizem respeito ao plano diretor, trazendo à lume explanações sobre sua definição, conteúdo, forma de elaboração e como este pode servir de instrumento para o planejamento sustentável das cidades, que significa obter crescimento econômico necessário, garantindo a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento social para o presente e para as futuras gerações.

2 PLANO DIRETOR: DEFINIÇÃO E CONTEÚDO

O plano diretor é um instrumento de planejamento urbano que tem por finalidade orien-tar o desenvolvimento físico, econômico e social do território municipal, visando o bem-estar da comunidade local. É, por assim dizer, um documento que sintetiza e torna explícitos os objetivos consensuados para o Município e estabelece princípios, diretrizes e normas a serem utilizadas como base para que as decisões dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento urbano convirjam, tanto quanto possível, na direção desses objetivos. (SABOYA, 2007, p. 39)

A existência do plano diretor é condição básica para o Município dispor sobre as limi-tações urbanísticas à propriedade urbana, determinar as obrigações de fazer ou não fazer do pro-prietário de imóvel urbano, e estabelecer medidas visando o cumprimento da função social da

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propriedade. Do ponto de vista físico, incumbe ao plano diretor ordenar a utilização do solo municipal,

considerando o território do município como um todo (art. 40, § 2º, do Estatuto das Cidades). Isto significa que deve, o planejamento municipal, ser feito sobre o território global do município, tanto da área urbana quanto da rural, já que o crescimento da cidade geralmente ocorre em direção à zona rural.

Fazer planejamento territorial é definir o melhor modo de ocupar o território de um mu-nicípio, prevendo os pontos onde se localizarão atividades, e todas as formas de uso do espaço, presentes e futuros.

É primordial, em qualquer cidade, que se tenha conhecimento da estrutura fundiária local e suas tendências de desenvolvimento. Partindo deste conhecimento, cada município deve esco-lher, dentre os instrumentos oferecidos pelo Estatuto da Cidade, aqueles que mais venham a favo-recer a inclusão social, criando condições que viabilizem o financiamento do ordenamento urbano. Estes instrumentos jurídicos, são, por exemplo, a outorga do direito de construir, o exercício do direito de preempção, a utilização adequada de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), as operações urbanas consorciadas, a possibilidade de criação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para regularização fundiária, utilização compulsória de imóveis considerados subutiliza-dos, dentre outros.

Sendo assim, o plano diretor deve projetar, a longo prazo, a possibilidade de uso do solo para fins de edificações residenciais, para ruas e espaços livres, assim como o solo destinado a uso industrial e comercial. Poderá, inclusive, definir a formação de núcleos fabris, reservando área específica na cidade para construção de polos industriais, caso isso seja aconselhável diante da realidade local.

No que concerne às previsões definidas como “conteúdo mínimo” do plano diretor, há que se considerar que nem sempre o município sentirá necessidade de se utilizar dos instrumentos jurídicos elencados no inc. II, do art. 42 do Estatuto das Cidades (direito de preempção, operações urbanas consorciadas, etc.), especialmente se for ele de pequeno porte. No entanto, parece-nos que a determinação do Estatuto da Cidade é de ordem imperativa, sendo obrigatória a previsão da possibilidade da utilização de tais instrumentos quando da elaboração do plano, ao menos no que diz respeito à definição dos locais, dentro da política de zoneamento urbano, em que será viável sua aplicação, a qual poderá ser melhor explicitada, posteriormente, em lei municipal específica.

3 A FUNÇÃO DO PLANO DIRETOR NO PLANEJAMENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADES

3.1 Objetivos do planejamento

No que concerne aos objetivos a serem atingidos, o plano diretor estabelece normas de ordenação do território municipal a orientarem a realização das diversas atividades a serem execu-

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tadas no meio urbano, fixando as diretrizes do desenvolvimento e expansão urbana do Município. Sua principal proposta é construir cidades com qualidade urbana para todos, onde o acesso à terra urbanizada seja um direito dos que habitam na cidade. Trata, no seu contexto, de direitos como habitação, saneamento básico e transporte urbano, visando, sobretudo, a preservação da qualidade ambiental das cidades.

Com efeito, não pode este se afastar da população a que se destina. A concepção do Plano Diretor tem que ser fruto de mecanismos democráticos, que possibilitem a prática da gestão com-partilhada, com a participação direta do povo no planejamento urbano, fundamento constitucional que trouxe a possibilidade da participação da sociedade civil organizada na gestão democrática das políticas públicas, como poderosa forma de controle social.

Objetiva, ainda, ser uma ferramenta viva, verdadeira e legítima para enfrentamento das injustiças relativas ao acesso à cidade sustentável que o modelo de desenvolvimento econômico--social legou para parcela das atuais gerações e que não podem prosperar para as gerações futuras.

É, em suma, um instrumento através do qual o poder público municipal, agindo estritamente dentro de sua esfera de competência (art. 30, inc. VIII, e art. 182, § 1º, ambos da Constituição Federal), estabelece as regras para o adequado controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.

3.2 O princípio da função social da cidade

Respaldado constitucionalmente, o princípio da função social da propriedade tem abran-gência que extrapola a interpretação legal e atinge patamares de proteção ambiental inclusive no meio ambiente urbano. Talvez este seja o principal mister do plano diretor, qual seja, circunscrever em suas linhas o que seja primordial ao município e o que atende às peculiaridades de sua realida-de voltada ao princípio retro indicado.

A função social da cidade, por sua vez, conecta-se a nova tendência neoliberal de apoio e incentivo à iniciativa privada como meio de prover os centros urbanos de melhor infraestrutura e apoio no investimento privado. O plano diretor, nos municípios que tenham mais de vinte mil habitantes, traça os principais objetivos que devem ser atingidos para o pleno atendimento de “fun-ção social da propriedade”. Isso pode ser observado pela simples leitura do artigo 182, parágrafo segundo, de nossa Constituição.

Assim, a função social da cidade poderia ser alcançada, fundamentalmente, pela adoção das metas indicadas no plano diretor, bem como pela viabilização das propostas do Projeto de Lei 775/83, voltado a se constituir a Lei de Desenvolvimento Urbano. Em que pese tal projeto não ter sido aprovado; alguns de seus dispositivos foram incluídos no Estatuto da Cidade.

3.3 A participação popular NO PLANO DIRETOR e a gestão democrática das cidades

O Estatuto da Cidade consagra, em seu art. 2º, II, a gestão democrática da cidade como diretriz geral para a implementação da política urbana, além de dedicar um capítulo inteiro a este

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tema, disposto nos arts. 43, 44 e 45.Consagrando, assim, a prerrogativa de envolvimento da sociedade no processo de cons-

trução e controle dos instrumentos urbanísticos, o Estatuto da Cidade acaba por transformar a participação pública como preceito básico para a gestão do espaço urbano.

No art. 43 são descritos alguns dos mecanismos de garantia da gestão democrática das cidades, tais como: a) órgãos colegiados de política urbana, b) realização de debates, audiências e consultas públicas, c) realização de conferências sobre assuntos de interesse urbano e, d) iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

Sendo, o Plano Diretor, o instrumento de planejamento e expressão das políticas públicas urbanas, consolidando-se como um dos principais elementos para a consecução do desenvolvi-mento equilibrado das cidades, a concepção de gestão democrática acaba sendo a este incorporada.

Neste mesmo sentido, prescrevem Ribeiro e Cardoso (2003, p.96-97):

A tarefa de planejar a cidade passa a ser função pública que deve ser compartilhada pelo Estado e pela sociedade – co-responsáveis pela observância dos direitos humanos e pela sustentabilidade dos processos urbanos. A gestão democrática é o método proposto pela própria lei para conduzir a política urbana.

Nesse sentido, o art. 40, parágrafo 4º, do Estatuto da Cidade, contém os preceitos que irão concretizar a participação pública na elaboração e fiscalização da implementação do Plano Diretor, consolidando-o como um planejamento participativo.

As formas de participação descritas no mencionado artigo são:

“I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.”

De uma maneira geral, as formas de participação pública previstas para o Plano Diretor podem ser divididas em duas perspectivas, quais sejam: o envolvimento efetivo e intervenção nas decisões e o acesso às informações produzidas e conhecimento a respeito do processo. Na sua pri-meira vertente, a participação consagra aos indivíduos a possibilidade de influenciarem diretamen-te no processo de elaboração do Plano Diretor, o que resulta no direito de qualquer cidadão reque-rer a realização das audiências públicas a serem promovidas pelo Poder Público e delas participar.

Em contrapartida, a participação pública no âmbito do Plano Diretor pressupõe a apro-priação, por parte do cidadão, do conhecimento sobre as informações inerentes à vida na cidade, como atividades, serviços, planos, recursos, sistema de gestão, formas de uso e ocupação do espa-ço urbano.

Por este motivo é que o Plano Diretor assume o contorno de instrumento fundamental para a realização do direito à cidade. Construído de forma democrática e participativa é ele que irá trazer para a realidade os anseios e desejos da população das diferentes regiões da cidade e dos

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segmentos sociais que ocupam e desenvolvem suas atividades no espaço urbano.Devido a este fato, a participação é prevista (art. 2°, II, do Estatuto da Cidade) como dire-

triz geral da política urbana, devendo ser aplicada na formulação, execução e acompanhamento do Plano Diretor, bem como na própria gestão da cidade.

Deste modo, produzido coletivamente através da participação popular, o Plano Diretor serve como um catalisador dos anseios de todas as camadas sociais, abrindo possibilidade de solu-ções diversas que atentem às singularidades e necessidades de cada grupo social.

Para que atenda às reais necessidades do planejamento local, o plano diretor deverá ser elaborado após um detalhado trabalho de levantamento das atuais condições de ocupação do solo do município, que reflita um conhecimento de sua estrutura fundiária e demais particularidades geográficas e sociais, de sorte que, com base nesse levantamento, sejam deliberadas as estratégias aptas a transformar, para melhor, a realidade existente.

Como já exposto, é de fundamental importância, no processo de elaboração e discussão do plano diretor, que seja assegurada a participação da comunidade, através de audiências públicas previamente agendadas às quais deve ser dada a oportuna publicidade, garantindo o conhecimento de todos os segmentos da sociedade civil das discussões travadas no processo de definição das prioridades a serem consideradas pelo plano.

Esse processo participativo deve ser garantido tanto pelo Poder Executivo quanto pelo Poder Legislativo Municipal, sob pena de invalidade do respectivo processo legislativo, contra o qual pode ser suscitada a inconstitucionalidade e a ilegalidade (por ofensa ao disposto no art. 40, § 4º, do Estatuto da Cidade) do ato legislativo.

O gestor público municipal que, intencionalmente, deixar de proceder à elaboração do plano diretor (nos casos do art. 41, incisos. I e II, do Estatuto da Cidade), ou que deixar de proceder à sua revisão (art. 40, §3º, do mesmo diploma legal), estará incorrendo nas sanções cominadas no art. 12, inc. III, da Lei nº 8.429/92, por prática de ato de improbidade administrativa previstas no art. 11, inc. II, da Lei nº 8.429/92, combinado com o art. 52, inc. VII, do Estatuto da Cidade.

O Parquet, por sua vez, no exercício de sua atribuição de zelar pela proteção da ordem urbanística, visando assegurar o fiel cumprimento das obrigações impostas pelo Estatuto da Cida-de, deve manter rigoroso trabalho de fiscalização junto aos Poderes Legislativo e Executivo muni-cipais. Esta fiscalização deve ser orientada no sentido de observar-se a adequação da condução do processo de elaboração do plano diretor, naqueles municípios que ainda não o têm, bem como em acompanhar o processo de revisão dos planos diretores já existentes, a fim de que sejam garantidos também a publicidade dos atos praticados pelos agentes políticos locais, e a efetividade da partici-pação da sociedade local no curso desses processos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Das análises apuradas, compreende-se o plano diretor participativo como instrumento de definição da política urbana municipal capaz de assegurar a observância da função social da pro-

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priedade e da cidade, sendo, na essência, um instrumento de planejamento urbanístico que define a divisão e as formas de ocupação dos espaços habitáveis da cidade, considerando-se o território urbano e rural do município.

Conclui-se, portanto, destacando a importância do Estatuto da Cidade, que veio propor-cionar aos municípios uma melhoria na qualidade de vida de seus habitantes, buscando o cresci-mento urbano sem agredir o meio ambiente e considerando o objetivo de inclusão social. A cidade é o lugar onde reside grande parte da população, onde se desenvolvem atividades e funções nas quais vários segmentos sociais atuam como atores. É um espaço democrático no qual os direitos devem ser respeitados e garantidos pelo Poder Público, mas também defendidos pela comunidade que habita e desenvolve suas atividades na cidade.

Portanto, nesse processo de transformação da cidade, a população é parte fundamental na construção de um ambiente sustentável. Considerando que a elaboração das normas urbanas e suas mudanças têm o intuito de oportunizar melhores condições de vida e de realização das atividades sociais, a sociedade tem papel primordial nas etapas desse processo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2014.

BRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. 2 ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.

GENZ, Karin Sohne. O Plano Diretor como Instrumento de Política Urbana. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/urbanistico/doutrina/id492.htm>. Acesso em: 16 de set 2014.

RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lúcio. Reforma Urbana e Gestão Democrática: promessas e desafios do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

SABOYA, Renato. Concepção de um sistema de suporte à elaboração de planos diretores participativos. Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Engenharia Civil – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

SILVA, Carlos Henrique da. Plano Diretor: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

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Recebido em 21 abr. 2015 Aceito em 09 maio 2015

O PROBLEMA DO LICENCIAMENTO DE GRANDES EMPREENDIMENTOS PRI-VADOS EM FACE DO DIREITO URBANÍSTICO: ANÁLISE DE UM CASO EMBLE-MÁTICO NA PERIFERIA DA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO

Alex Ferreira Magalhães* Laura Marques dos Santos Fernandes Alves**

Angel Costa Soares*** Juliana Leite de Araújo****

RESUMO: O presente artigo apresenta reflexões a respeito de um caso de licenciamento de grande empreendimento privado no município de Duque de Caxias (RJ), tomado como exemplo ilustrativo das disputas em torno do planejamento das cidades brasileiras e do que se costuma definir como direito à cidade. Com base na análise da legislação, dos processos de licenciamento e de dados empíricos, discutem-se problemas envolvidos no caso, como o grau de compatibilidade do empreendimento com o Plano Diretor, as deficiências da avaliação de impactos, as irregularidades nos processos de licenciamento, a não observância do devido processo legal, a judicialização do conflito, e o papel do movimento social de resistência à implantação desse empreendi-mento.Palavras-chave: Grandes projetos urbanos. Licenciamento. Direito à cidade. Devido processo legal.

* Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e coordenador do grupo de pesquisa “Transformações estruturais do Direito Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico: [email protected]** Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – RJ e bolsista do grupo de pesquisa “Transformações estruturais do Direito Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico: [email protected].*** Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense e bolsista do grupo de pesquisa “Transformações es-truturais do Direito Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico: [email protected]**** Advogada. Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico, Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Mestranda em Plane-jamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ. Correio eletrônico: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Em maio de 2014, o movimento social intitulado FORAS – Fórum de Oposição e Resistência ao Shopping, composto de mais de 20 entidades sindicais e populares atuantes no município de Duque de Caxias, trouxe ao grupo de pesquisa (e à universidade, de modo geral) uma demanda de prestação de esclarecimentos técnicos acerca de um projeto de construção de um shopping Center – e outros estabelecimentos a ele associados – na área central daquele município.

Segundo a notícia trazida pelo movimento, trata-se de um empreendimento de grande porte, que coloca em risco a última área verde que restou no Centro duquecaxiense, além de ameaçar produzir impactos negativos significativos à vizinhança, resultantes do brutal aden-samento que o mesmo acarretará, caso seja implantado. Entre esses impactos, mencionaram aqueles relacionados ao trânsito na área central desse município, à visibilidade e à segurança de edificações de relevância histórico-cultural, como a Igreja Matriz de Santo Antônio e a Escola Municipal Doutor Álvaro Alberto, ao agravamento dos problemas já existentes com o abastecimento de água, além de afetar o tradicional “comércio de rua” do calçadão de Duque de Caxias. Isto sem falar no malogro de um projeto de criação de um parque urbano na aludida área, à semelhança do que ocorre no Rio de Janeiro, que dispõe de espaços como o Campo de Santana e o Passeio Público, dentre outros, equipamentos públicos tidos como “intocáveis” no contexto da capital.

A partir daí, o grupo de pesquisa dedicou boa parte de suas atividades do 2º semestre de 2014 ao estudo do projeto em questão, além de participar de inúmeras atividades de discus-são do mesmo, tendo respondido à demanda do movimento através da organização e entrega de um estudo técnico, além de contribuir com uma apresentação em audiência pública de iniciativa do mesmo FORAS e com a propositura de ações judiciais que questionam o aludido projeto.

Assim, o empreendimento aqui debatido consiste no que se pode chamar de um “com-plexo de multiatividades”, constituído por um shopping, duas torres comerciais, um hotel-resi-dência e um estacionamento para quase 1.300 veículos. Segundo o respectivo projeto, estima-se que contará com um mix de 303 lojas, voltadas ao segmento socioeconômico da chamada “clas-se C”, distribuídas em quatro pisos, além de espaço para lazer (cinema, rinque de patinação, etc.). O volume de investimentos anunciado é de cerca de R$ 218 milhões e inúmeras grandes lojas e marcas já teriam manifestado interesse em alocar-se no futuro shopping, que se situaria na Avenida Presidente Kennedy, uma das principais vias que cruza o centro da cidade caxiense, conforme ilustra a imagem abaixo, figurativa da construção projetada.

Através de análise dos documentos apresentados pela empresa ABL Shopping, res-ponsável pelo projeto do empreendimento, pelo movimento FORAS, e pela Prefeitura de Duque de Caxias, pudemos destacar alguns pontos para reflexão e problematização a respeito do caso. Assim, o presente artigo visa analisar as vicissitudes do processo do licenciamento do empreen-dimento aqui identificado, bem como discutir os meios e as técnicas utilizadas pela empresa

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construtora, a fim de concretizar o empreendimento, além de considerar o papel desempenhado pela chamada “sociedade civil”, no conflito suscitado pela tramitação dos pedidos de licença ambiental e edilícia para sua instalação. Trata-se de um conflito que consideramos bastante re-presentativo dos atuais dilemas que envolvem o desenvolvimento das cidades brasileiras, tema que alcançou status constitucional em 1988, quando a carta magna brasileira, pela primeira vez, recepciona um capítulo destinado à política urbana, sendo seguida, nos anos seguintes, pelas cartas estaduais e municipais.

2 IMPACTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO PROJETO SOB ANÁLISE

2.1 Impactos sobre atividades econômicas

Criado em 31/12/1943, o município de Duque de Caxias tornou-se um dos mais impor-tantes do estado do Rio de Janeiro. É um dos 21 municípios que integram a Região Metropoli-tana do Rio de Janeiro (cf. imagem abaixo), numa de suas sub-regiões conhecida como Baixada Fluminense, situada na fronteira norte do município do Rio de Janeiro, objeto de acelerada conversão de rural em urbana ao longo do período áureo da industrialização da região sudeste brasileira, que situaríamos entre as décadas de 1930 e 1970. A Baixada Fluminense concentra grande percentual de população oriunda do nordeste brasileiro, bem como dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, que migrou para lá no período acima assinalado, por força das transfor-mações socioeconômicas e territoriais pelas quais o país passava no período.

A formação dessa região apresenta, até os dias de hoje, um padrão de urbanização com grandes deficiências de infraestrutura, de acesso a serviços públicos e de adequação da moradia. De outro lado, concentra enorme contingente populacional,1 composto em geral de trabalhadores com baixo grau de qualificação, muitas vezes inserido em postos de trabalho precarizados, o que faz com que predomine na região um perfil socioeconômico que oscila en-tre classes médias inferiores e classes pobres, que foram fortemente impactadas, em termos de incremento de poder de compra, pelas políticas de transferência de renda do período 2003-2014.

Em que pese o fato de sua população ser tendencialmente pobre, o município de Du-que de Caxias ostenta o posto de 2º maior orçamento municipal do estado do Rio de Janeiro, somente superado pela capital.2 Cortado pela Rodovia Washington Luís (a BR-040), que liga o Rio de Janeiro a Brasília, e também favorecida por sua relativa proximidade em relação a capital fluminense, o município caxiense tem recebido expressivos investimentos industriais, públicos e privados, desde sua origem, passando pelas indústrias automobilística, petroquímica e mo-

1 Calculada em mais de 3 milhões de habitantes, sendo que mais de 800 mil destes residem em Duque de Caxias (o que corresponde a mais de 5% da população do estado), conforme dados do Censo / IBGE de 2010.2 O ORÇAMENTO fiscal de 2013, da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, estimou a receita bruta desse município em quase 2 bilhões de reais. Capital: mercado e negócios, São Paulo, 10 jun. de 2013. Disponível em:<http://www.jornalcapital.jor.br/materias/3970-ar-recadacao-de-duque-de-caxias-ja-passou-de-r-1-bilhao.html>. [acesso em 1º/03/2015]

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veleira. A Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), unidade da Petrobrás instalada em 1961, converteu o município em um dos mais importantes polos industriais do país. No entanto, seja em termos de acesso ao mercado de trabalho, seja em termos de acesso a serviços públicos e a equipamentos de educação, cultura e lazer, o município ainda depende fortemente da capital, o que permite a conclusão de que entre eles ainda vigora a clássica relação centro-periferia, não obstante as transformações que esta vem sofrendo.

O Centro de Duque de Caxias, onde se pretende implantar o empreendimento em ques-tão, é conhecido por sua grande área comercial, que atende não só aos moradores dessa região, como também aos de vários bairros vizinhos, e até mesmo de bairros do subúrbio do município do Rio de Janeiro, em busca das variedades e do bom preço.

Muito próximo ao sítio destinado ao empreendimento encontra-se o Calçadão, uma área exclusiva para pedestres, cercada de lojas e galerias comerciais, composto por segmentos da Avenida Nilo Peçanha, Rua Manuel Correia, Rua José de Alvarenga e Rua André Rebouças, e que tem como principal atrativo as atividades de serviços, alimentação e vestuário.

A preocupação dos comerciantes locais, com a chegada de um grande Shopping Cen-ter localizado tão próximo do Calçadão e das outras diversas ruas de lojistas, e ainda com a proposta de atingir o mesmo público – ou segmento socioeconômico – é que os consumidores se voltem em sua maioria para o Shopping, já que fatores “óbvios”, como o calor e o excesso de pessoas nas ruas do Calçadão, tornem o novo empreendimento mais agradável e atrativo. A des-vantagem competitiva dos lojistas tradicionais tende a se agravar em função de outros fatores como a propaganda, que inexiste para esse grupo, de forma unificada, ao contrário do shopping, diariamente glamourizado nos grandes veículos de marketing.

Um estudo realizado pelo Professor Marcelo Gomes Ribeiro (RIBEIRO, 2014),3 levan-tou uma breve caracterização do perfil regional do munícipio de Duque de Caxias, a partir da participação populacional, número de domicílio, renda média e renda mensal total, de modo a demonstrar o potencial econômico desse município. Nele, os grupos (ou as classes) de renda mais frequentes dentre a população são: C1 (26,5%), C2 (23,3%) e D (22,9%), cuja renda é apontada no quadro abaixo.

ClasseIntervalo de renda

(R$)Renda média

domiciliar mensal (R$)C1 De 1.709 a 3.416 2.425,00C2 De 1.142 a 1.708 1.412,00D De 652 a 1.141 943,00E Até 651 538,00

Há um total de 2.829 estabelecimentos distribuídos nos 9 diferentes polos comerciais que compõem o Calçadão, sendo que as atividades de serviços, alimentação e vestuário con-

3 Professor Adjunto do IPPUR/UFRJ.

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centram 61% das atividades existentes. Tais atividades também são o foco do novo empreendi-mento, que também oferecerá atividades de lazer e hotelaria.

Ainda de acordo com o estudo de Ribeiro (2014), seria possível a implantação de um shopping Center de pequeno porte, porém deve-se revisar a análise mercadológica apresentada pela empresa construtora, por ela ter desconsiderado estudos mais consistentes sobre o poten-cial construtivo, como:

• O município de Duque de Caxias participa com apenas 4,6% da renda total da Região Metropolitana, mesmo concentrando 7,3% de sua população;

• A taxa de crescimento anual da população de Duque de Caixas é de apenas 0,98%, abaixo, portanto, da taxa de reposição.

Como a análise do potencial de mercado não deixa clara a metodologia utilizada, fica difícil avaliar se a inserção desse empreendimento potencializa a dinâmica econômica da região onde se pretende que seja instalado ou se isso acarretará em fechamento de lojas e comércios de rua já existente, tal como já se verificou com relação a algumas atividades “de rua” na cidade do Rio de Janeiro, como é o caso emblemático dos cinemas.

2.2 Impactos sobre o sistema viário

Há uma situação de saturação do uso do espaço onde se propõe construir o empreen-dimento em tela, tendo em vista a precariedade das infraestruturas existentes, o que é assaz verificável quando consideramos a situação do sistema viário em toda a área central de Duque de Caxias, cuja avaliação de encontrar-se em estado de saturação é bastante antiga.

O edifício que abrigaria o empreendimento seria construído no perímetro definido pelas seguintes vias: Av. Presidente Kennedy, Rua 25 de Agosto, Rua Deputado Romeiro Júnior e Rua José de Alvarenga. No respectivo projeto, apresentam-se dois estudos de tráfico, porém, de acordo com análise realizada pelo Professor Jorge Antônio Martins (MARTINS, 2014),4 nos estudos apresentados observa-se grande disparidade de resultados. Tais como:

“Entre os três modelos de veículos adotados como referência para o estudo, a empresa consultora, alegando ser o modelo mais recente, preferiu considerar tão somente as estimativas do modelo da CET-SP (2011). Ressalte-se que o modelo escolhido foi desenvolvido para a capital paulista, cujos shoppings centers apresentam características distintas dos shopping centers cariocas, sobretudo no que concerne aos hábitos das populações das duas cidades.”

O estudo de autoria da empresa M2A - Engenharia e Consultoria5 foca apenas na en-trada dos veículos no estacionamento do Shopping, não levando em consideração os congestio-namentos que serão causados pela descida de carros da Rua Belisário Pena para a Av. Presidente

4 Professor Adjunto da UFRJ e pesquisador-líder do laboratório Mobile-LAB.5 Responsável por um dos estudos de impacto viário submetidos à Prefeitura de Duque de Caxias, no âmbito do processo de licenciamento do estabelecimento.

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Kennedy, que, como facilmente percebido pelos usuários que circulam no local, já tem uma movimentação normalmente muito lenta, mesmo sem o shopping.

A empresa apresenta o fluxo de carros do local e propõe uma mudança do mesmo, con-tudo nenhum deles estabelece uma solução para a absorção desse impacto negativo. Em ambas as opções ilustradas abaixo o fluxo vai para a Av. Presidente Kennedy.

Além dos problemas com congestionamentos, também deve ser considerada a altera-ção da qualidade do ar, pelo excesso de lançamento de monóxido de carbono (CO), gerado pela grande quantidade de veículos automotores retidos por longos períodos no entorno do empreen-dimento, alterando o clima e originando ilhas de calor.

2.3 Impactos sobre a morfologia urbana

No estudo de Martins (2014), ele concluiu que, do ponto de vista morfológico, o em-preendimento se revela com uma volumetria que contrasta significativamente com o seu entor-no.

Por exemplo, a lateral do empreendimento voltada para a Rua Belisário Pena, apesar de consumir quase todo o quarteirão, será ocupada por empena cega da fachada principal, não contendo sequer vitrines voltadas para o passeio público. Desse modo, não manterá nenhuma relação com seu entono imediato e, logo, o espaço público perde a função de acesso lindeiro (ao longo de sua extensão), concentrando-se o acesso de pedestres a dois únicos pontos do edifício, pontos esses distantes entre si.

Isto tende a diminuir a percepção de segurança pública ao longo da via por parte da população, não servindo o empreendimento para valorizar a vida comunitária em seu próprio perímetro.

2.4 Impactos sobre o patrimônio edificado

Um dos vizinhos e confinantes do estabelecimento questão consiste na Escola Muni-cipal Dr. Álvaro Alberto, estabelecida na mesma quadra em que se prevê a instalação daquele.

Essa escola foi vistoriada no dia 12/11/2014, devido ao recente aumento das rachaduras existentes na quadra de esportes localizada nos fundos do terreno. Estima-se que tais racha-duras estejam sendo provocadas pelas intervenções de preparação do terreno para a execução da obra, no âmbito das quais foi promovido corte de mais de uma centena de árvores que per-meavam o imóvel indicado para abrigar o empreendimento, realizado em junho de 2014, e com evidências de irregularidade.

O que ocorreu foi um progressivo afundamento do piso, verificado pelos buracos na quadra, que chegavam a aproximadamente 25 a 30 cm de profundidade. Da mesma forma, apareceu na extremidade de um dos muros, junto à quina dos fundos do terreno, uma trinca horizontal. A origem dessas rachaduras, assim como o “piso oco”, deve-se, provavelmente, ao rápido e recente afundamento do solo. Tanto a quadra quanto o muro estão perdendo sustenta-

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ção. Acredita-se que a poda da vegetação do terreno vizinho expôs o solo, que é de topografia inclinada, e agora há uma nova erosão, que não existia devido à proteção arbórea.

Na extremidade oposta do terreno encontra-se a Igreja Matriz de Santo Antônio, que também é outra edificação que provavelmente sofrerá danos físicos e paisagísticos, em função do tamanho desproporcional do empreendimento em questão, já que também ficará contígua a ele e que, em sua lateral também será erguida parede com empena cega, de altura superior ao topo da Igreja, o que bloqueará toda a sua visibilidade, oriundas de simulação elaborada a partir dos parâmetros construtivos de ambas edificações.

3 O GRAU DE COMPATIBILIDADE DO EMPREENDIMENTO COM O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO

A Lei Complementar municipal nº 01, de 31/10/2006, instituiu o 1º Plano Diretor de Duque de Caxias, já nos estertores do prazo fixado pelo Estatuto da Cidade, que vencera em 10/10 daquele mesmo ano.

Cumprindo uma das tarefas elementares dessa peça legislativa - e de planejamento urbano - o Plano fixa, em seus artigos 38 e seguintes, um macrozoneamento do território mu-nicipal, fracionando-o, basicamente, em três macrozonas (desconsiderando-se, aqui, as zonas especiais e áreas de reserva), a saber: Zona de Ocupação Controlada – ZOC, Zona de Ocupação Básica – ZOB e Zona de Ocupação Preferencial – ZOP.

A partir desse Plano, a região central do município, integrante do que se convencionou chamar de “1º Distrito” - isto com base no diploma legal que o criou (o Decreto Lei nº 1.055, de 31/12/1943) - passa a ficar contida no que ele define como ZOC, conforme, inclusive, é atestado no certificado de zoneamento, expedido pela municipalidade em favor dos responsáveis pelo empreendimento objeto de análise.6

No dizer do Plano Diretor, as “Zonas de ocupação controlada são as que apresentam restrições a uma ocupação mais intensiva do solo” (art. 41). As diretrizes para essa macrozona, estabelecidas no artigo seguinte, determinam: a reversão de processos acentuados de aden-samento urbano; a instalação de infraestruturas (em especial sistema viário, macrodrenagem, esgotamento e abastecimento d’água) antes da ocupação do solo e a graduação da intensidade da ocupação em áreas limítrofes de paisagens notáveis.

À luz dessas premissas, parece-nos forçoso reconhecer que o projeto de edificação pretendido pelo empreendedor situa-se na contramão da disciplina do macrozoneamento es-tabelecida no Plano Diretor, que, nunca é demais recordar, constitui “o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, conforme prescreve a Lei Maior brasileira. Isto porque:

6 Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº 018.363/13, fls. 10, certidão nº 650/2013, expedida a requerimento de Julio Cesar Vieira França.

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1. representa forma ultra-intensiva de aproveitamento do solo, com área edificada equivalente a quase sete vezes a área do terreno;

2. agrava o adensamento de área indiscutivelmente saturada, conforme tacitamente reconhecido no Plano Diretor;

3. substitui as poucas casas térreas - ou, no máximo, com sobreloja - e centenas de árvores existentes no terreno por uma edificação de mais de 20 pavimentos;

4. promove fortíssimo adensamento sem que tenham sido previamente ampliadas as redes de macrodrenagem, esgotamento e abastecimento d’água, além do sistema viário;

5. instala edificação de altíssima intensidade precisamente ao lado de uma das edificações mais emblemáticas do município - a Catedral de Santo Antônio - sobre cujo valor histórico, cultural, religioso, paisagístico e afetivo para o município e região também já foi reconhecido no Plano e na legislação municipal, e que restará inevitavelmente “escondida”, “diminuída” e “encurralada” por uma estrutura de volume excepcionalmente maior do que ela (e do que todo o entorno), tal como nas simulações apresentadas nesse estudo.

Tal ordem de coisas impõe a compreensão das licenças urbanísticas demandadas pelo empreendedor jamais como ato jurídico vinculado da administração, e, logo, direito líquido e certo do empreendedor, em função, por exemplo, da já certificada compatibilidade do uso pre-tendido com a legislação municipal que estabelece o zoneamento, mas sim como ato discricio-nário. Isto porque há um conjunto de outras circunstâncias, de hierarquia superior, a serem con-sideradas no processo decisório a cargo do município, tais como as diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor para as macrozonas em que se dividir o território do município, além daquelas outras sistematizadas no presente estudo. Nesse sentido, cabe invocar o magistério de diversos autores, desde o seminal – e já clássico! – estudo de José Afonso da Silva (SILVA, 1998) até a recente monografia de ROCCO (2009).

Tratam-se de normas que adquirem prevalência sobre as vetustas concepções do “direito de construir”, concebido aos moldes civilistas, uma vez que constituem “exigências fundamentais de ordenação da cidade”, estabelecendo o modo como “a propriedade urbana cumpre a sua função social” (art. 182, § 2º, da Constituição da República). O procedimento administrativo de licenciamento do empreendimento permite ao administrador público aferir os elementos de oportunidade e conveniência da obra no seu mister constitucional de regular e direcionar a ocupação urbana adequada, em especial quando a nova atividade pode gerar im-pactos significativos em sua vizinhança.

No entanto, mesmo se adotada uma concepção reducionista do licenciamento de obras e empreendimentos, vendo nele um puro e simples exame da adequação do projeto aos índices e parâmetros de uso e ocupação do solo definidos na legislação municipal - hipótese que ad-mitimos apenas por amor ao debate - ainda assim o projeto em questão não poderia atenderia aos requisitos para a sua aprovação, face aos dispositivos do mesmo Plano Diretor que visam

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estabelecer o controle do adensamento urbano.Nesse sentido, há que se atentar para o seu Anexo IX, que admite o coeficiente máximo

de aproveitamento do terreno de 2,4 na área do empreendimento em questão. Considerando--se que a área do imóvel que abrigará o referido estabelecimento é de 11.718,72 m², o máximo de área construída licenciável nessa macrozona seria de 28.124,93m², resultante da multiplica-ção da área do terreno pelo coeficiente máximo admitido no Plano. No entanto, observamos que o projeto de edificação do shopping, nos termos da licença de construção outorgada em 23/08/2012,7 possui uma A.T.C. de 71.880,69m², área que excede em mais de duas vezes e meia (255,6% para ser exato) o limite legalmente estabelecido, configurando um aproveitamento bruto do terreno de incríveis 6,13.

Como é de comum conhecimento, o coeficiente de aproveitamento máximo definido no Plano Diretor é insuperável, não podendo ser ultrapassado mesmo mediante pagamento de contrapartida por parte do interessado, limite acima do qual o espaço aéreo adquire a carac-terística de área non aedificandi. Admitir o oposto, seria flexibilizar todo o planejamento da cidade e ensejar a sua compra pelos agentes com poder econômico.

Por todas essas razões, parece inescapável a adequação do projeto em questão às nor-mas do Plano Diretor referentes ao controle do adensamento urbano excessivo, o que, aliás, é uma das diretrizes do próprio Estatuto da Cidade - art. 2º, VI, alíneas “b”, “c” e “d”.

4 AS DEFICIÊNCIAS DA AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS

Já houve tempo que causava certa estranheza, senão resistência, falar em avaliação de impactos ambientais no âmbito do processo de instalação de empreendimentos inseridos em áreas urbanas, visto que, em geral, tais áreas já se encontram bastante antropizadas, tomadas por construções e com pouquíssimas áreas verdes. As exceções ficavam por conta, logicamente, dos casos onde houvesse algum aspecto natural (como o relevo ou a existência de cursos d’água, por exemplo) que atraísse a proteção das normas ambientais “puras”, se é que assim podemos classificá-las.

Esse aparente afastamento, ou ao menos subsidiariedade, das normas ambientais em relação às atividades e relações desenvolvidas no meio urbano há muito já foi superado pela le-gislação, doutrina e jurisprudência, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, que criou as condições que, eventualmente, estariam ausentes, no sentido de que a tutela ao meio ambiente permeasse também toda a regulação da construção e desenvolvimento dos espaços urbanos e das relações de convivência social nas cidades.

Em outras palavras, a partir da Constituição Federal de 1988, a cidade passa a ter natureza jurídica ambiental, deixando de ser observada, pelo plano jurídico, tão somente com

7 Conforme Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº 35.803/2012, p. 107 e 108, alvará de licença nº 126, solicitado por Luis Carlos Jorge Romeiro.

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base nos regramentos adaptados aos bens privados ou públicos, para ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem ambiental de forma mediata, e de forma imediata, tudo isto em decorrência das determinações constitucionais contidas nos arts. 182 e 183 da CF (FIORILLO, 2010, p. 445).

A cidade hoje é compreendida dentro do próprio conceito de meio ambiente. É o meio ambiente artificial, que abrange o espaço urbano construído, consistente no conjunto de edifi-cações e equipamentos públicos (FIORILLO, 2010, p. 72). Pode-se dizer que o ambiente cons-truído consubstancia ainda os esforços e as conquistas da população e suas condições de vida e de trabalho, onde o desperdício ou mau aproveitamento do espaço, da matéria e da energia constitui um desajuste ambiental (FIORILLO, 2010, p. 347 e 355).

Nesse contexto, a variável ambiental vem sendo cada vez mais introduzida na realida-de municipal, a fim de assegurar a sadia qualidade de vida para o homem e o desenvolvimento de suas atividades produtivas. Exemplo disso é a inserção de princípios ambientais em Planos Diretores e leis de uso do solo, bem como a instituição de Sistemas Municipais de Meio Am-biente e a edição de Códigos Ambientais municipais (MILARÉ, 2011, p. 351).

Em relação ao cabimento e abrangência do licenciamento ambiental, a regra geral é que a implantação de qualquer atividade ou obra efetiva ou potencialmente degradadora do meio ambiente deve submeter-se a análise e controle prévios, para efeitos de autorização/licen-ciamento, onde serão verificados possíveis riscos e impactos ambientais a serem prevenidos, corrigidos, mitigados e/ou compensados.

O meio ambiente urbano, no entanto, tem sua dinâmica própria, de modo que as exi-gências ambientais que lhe são aplicáveis não são as mesmas que gravam os empreendimentos e as outras interferências do homem nas áreas com fortes características de elementos naturais (MILARÉ, 2011, p. 507). Da mesma forma, o licenciamento ambiental das principais atividades observadas nas cidades terá que observar e atender às particularidades intrínsecas a essa dinâ-mica, que é bem própria.

Isso não significa, porém, que, nas cidades, não possa haver empreendimentos com potencial de causar impactos ao meio ambiente de magnitude igual, ou mesmo superior, à ins-talação de uma unidade industrial, por exemplo. É o que ocorre justamente quando estamos diante da instalação de um grande shopping center, como no caso em comento, o qual não causa apenas uma alteração visual no local, mas traz outros importantes impactos ambientais agre-gados, tais como corte de vegetação, aumento da demanda por abastecimento de água potável, geração de grande quantidade de resíduos sólidos, impactos viários, etc.

A avaliação ambiental de empreendimentos próprios do meio urbano é um ponto no qual os órgãos licenciadores ainda têm muito a evoluir, posto que seu corpo técnico em geral é capacitado com foco na avaliação de impactos causados por atividades industriais, que não são muito comuns nos centros urbanos, até mesmo por questões de logística e segurança técnico--operacional.

Nesse contexto, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) se destaca como impor-

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tante instrumento de planejamento e controle que decorre do princípio jurídico da considera-ção do meio ambiente na tomada de decisões, comunicando-se com a elementar obrigação de obrigação de se levar em conta o fator ambiental em qualquer ação ou decisão que possa causar sobre ele qualquer efeito negativo. Vale destacar que a Avaliação de Impactos Ambientais, en-quanto instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), não se confunde com o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é uma ferramenta do licenciamento ambiental e uma modalidade de Avaliação de Impactos Ambientais (MILARÉ, 2011, p. 464-5).

Um desdobramento ou modalidade de Avaliação de Impactos Ambientais, e que tem papel fundamental na avaliação de impactos ambientais de empreendimentos desenvolvidos nos centros urbanos, consiste precisamente no Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), que também é um instrumento associado à PNMA (embora não conste explicitamente no texto legal com esse nome). O Estudo de Impacto de Vizinhança, então, se aplica para o estudo de impactos ambientais urbanos, cujos efeitos podem ser estritamente localizados no tecido urbano ou, ainda, podem se estender para um âmbito maior, impactando também sistemas viário e de tráfego urbano, por exemplo.

A elaboração do Estudo de Impacto de Vizinhança é fundamental no âmbito do licen-ciamento ambiental e urbanístico de empreendimentos urbanos, não apenas como alternativa de avaliação de impactos, mas também por seu caráter pedagógico e por ser um instrumento para a mobilização e a participação comunitária (MILARÉ, 2011, p. 507).

Seguindo a mesma lógica do Estudo (prévio) de Impacto Ambiental (EIA), que cer-tamente é o mais conhecido dos instrumentos de Avaliação de Impactos Ambientais, os docu-mentos relativos ao Estudo de Impacto de Vizinhança deverão ter publicidade e permanecer disponíveis para consulta de qualquer interessado, de modo a suscitar e possibilitar a mobiliza-ção da comunidade e a participação democrática desejada pelo Estatuto da Cidade (MILARÉ, 2011, p. 676).

Feita esta breve contextualização acerca da importância e, mais que isso, da impres-cindibilidade de uma avaliação de impactos ambientais adequada ao se analisar a viabilidade socioambiental de determinado empreendimento proposto para área urbana, serão apresentados a seguir alguns pontos do processo de licenciamento ambiental do empreendimento objeto deste estudo que, ao menos à primeira vista, se mostraram deficientes nesse fundamental aspecto.

O empreendimento em comento está sendo licenciado pelo órgão ambiental municipal em virtude de seu enquadramento como atividade de impacto ambiental baixo e local pela le-gislação vigente. Na forma do disposto no art. 1º, da Resolução CONEMA nº 42/2012, conside-ra-se impacto ambiental de âmbito local qualquer alteração direta ou indireta das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, que afetem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; e/ou a qualidade dos recursos ambientais, dentro dos limites do Município.

Nos termos da mesma norma, não se considera de âmbito local o impacto ambiental quando: (i) sua área de influência direta ultrapassar os limites do Município; (ii) atingir ambiente

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marinho ou unidades de conservação do Estado ou da União, à exceção das Áreas de Proteção Ambiental; (iii) a atividade for listada em âmbito federal ou estadual como sujeita à elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo relatório de impacto ambiental (RIMA).

Referido processo de licenciamento ambiental foi instaurado em outubro de 2012, me-diante requerimento direto de Licença de Instalação (LI), sendo apenas posteriormente con-vertido em requerimento de Licença Ambiental Prévia (LP), que é a licença adequada para a fase preliminar do planejamento do empreendimento, aprovando sua localização e concepção, atestando sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a se-rem atendidos nas próximas fases de sua implementação, nos termos da Resolução CONAMA nº 237/97.

Pela previsão contida no art. 28 da Lei Municipal nº 2.022/2006, o executivo municipal somente pode expedir alvará de localização e licença de construção e de funcionamento, ou quaisquer outras licenças solicitadas por atividades potencial ou efetivamente poluidoras, me-diante apresentação das licenças ambientais. Essa disposição, ao que parece, não foi observada no caso em tela, uma vez que o Alvará de Licença para construção do empreendimento foi con-cedida ao interessado quase dois anos antes da emissão da Licença Ambiental Prévia.

Pelo histórico de análise registrado no processo de licenciamento ambiental, até a con-cessão da Licença Ambiental Prévia, também não se verifica muita importância à efetiva ava-liação dos impactos ambientais relacionados à instalação do Shopping Center, muito embora o mesmo pretenda ocupar área central do município de Duque de Caxias, onde já são observados graves problemas de mobilidade urbana, abastecimento de água e grande fluxo populacional.

A dificuldade relatada pelo FORAS para ter acesso ao conteúdo do processo de li-cenciamento ambiental do empreendimento e a outros documentos que, a rigor, deveriam ser de acesso público, como o Estudo de Impacto de Vizinhança, por exemplo, bem como a não realização/convocação de audiência pública pelo ente municipal licenciador, igualmente sinali-zam deficiências no cumprimento da legislação, agora quanto à participação da comunidade na discussão e análise do projeto de instalação do empreendimento em questão.

Importante notar que a própria Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em parecer elaborado por sua equipe técnica em março de 2013, aponta diversos impactos do empreen-dimento que deveriam ser considerados na análise de sua viabilidade socioambiental. Nesse parecer, por exemplo, há registro de realização de vistoria onde foi constatada grande extensão ocupada por vegetação bastante densa e característica de sucessão média ou média avançada, o que demandaria a realização de vistoria confirmatória conjunta com o INEA, que não ocorreu até aqui.

Foi também observado no parecer que os danos ambientais relacionados à implantação do empreendimento podem vir a ser de média magnitude regional, tendo em vista que a su-pressão de vegetação interfere no microclima da região e o volume de resíduos a serem gerados pelo corte do terreno. A equipe técnica do órgão municipal destacou ainda o impacto viário na região a ser causado pela movimentação do solo, com previsão de constantes congestionamen-

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tos, sendo registrado que, após a conclusão do empreendimento, o impacto será causado pelo aumento de veículos.

Também vale mencionar a preocupação registrada no parecer em relação à drenagem pluvial e ao esgotamento sanitário da região do empreendimento, sendo destacado que a rede existente não suportará a vazão da água de chuva relacionada à área de impermeabilização, o que demandará um “forte investimento na área do Centro”, para macrodrenagem e até mesmo inclusão de caixa de retardo no projeto do Shopping; etc.

Em relação à área de grande extensão ocupada por vegetação (também citada no pa-recer), reside nesse aspecto uma das principais deficiências observadas quanto à avaliação dos impactos ambientais do projeto em questão. Isso porque a referida cobertura vegetal, que confi-gurava um espaço de área verde sem similar no centro do município de Duque de Caxias, já foi suprimida pelo empreendedor durante o período da Copa do Mundo de 2014, de forma ilegal e praticamente clandestina.

Pode-se de dizer que a supressão dessa vegetação se deu de forma ilegal e ilegítima em razão dos diversos vícios verificados no processo onde foi emitida a respectiva Autorização de Supressão de Vegetação. Dentre os vícios verificados, destacamos os seguintes: 1) a data do parecer de supressão é posterior à data de emissão da autorização; 2) o próprio órgão municipal emitiu Auto de Notificação, determinando a suspensão da Autorização de Supressão de Vege-tação, embora posteriormente tenha voltado atrás nessa decisão.

Alem disso, não consta no processo qualquer registro de que tenha sido solicitada a anuência prévia do INEA (órgão ambiental estadual) para a emissão da Autorização de Supres-são. Tal anuência prévia se fazia necessária no caso em razão de haver indícios da presença de resquício de Mata Atlântica no local, segundo os levantamentos de dados realizados na área antes da supressão. Nesse caso, a legislação vigente prevê que a supressão somente pode ser autorizada pelo órgão municipal mediante anuência prévia do INEA, fundamentada em parecer técnico, na forma do art. 5º, do Decreto Estadual nº 42.050/2009, com a alteração trazida pelo Decreto Estadual nº 42.440/2010, e do art. 14 da Resolução CONEMA nº 42/2012.

Outro ponto que merece atenção é a diferença de diagnóstico entre o primeiro Re-latório Técnico de Inventário Florestal, apresentado em agosto de 2012 pela empresa ideali-zadora do empreendimento, e o Censo Florístico – Parecer Técnico, contratado pela mesma empresa, datado de agosto de 2013. Tais documentos possuem inconsistências em aspectos importantes para a adequada caracterização e análise da relevância ambiental da área objeto do pedido de supressão de vegetação, tais como o tamanho da área afetada (de 9.722m2 passa para 11.587,73m2), a quantidade de espécimes arbóreos (de 124 passa para 167), e a avaliação fitos-sanitária do material vegetal (no Relatório esse aspecto foi classificado como “bom”, enquanto que no Censo foi apontado que cerca de 26,3% dos exemplares foram classificados em estado “ruim” ou “mortos”).

É importante destacar que o estado fitossanitário da vegetação foi um ponto crucial para a conclusão final alcançada no parecer técnico que embasou a emissão da Autorização de

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Supressão, de modo que a inconsistência de diagnóstico anteriormente relatada, sem dúvida, pode ter comprometido, também nesse aspecto, a avaliação realizada pelo órgão ambiental mu-nicipal quanto aos impactos ambientais do empreendimento.

5 AS IRREGULARIDADES NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE LICENCIAMENTO: A NÃO OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

A legislação em vigor não se contenta com a mera exigência de apresentação do Estu-do de Impacto de Vizinhança, tal como já exposto, e de que este atenda ao conteúdo mínimo por ela fixado. Uma vez satisfeitas essas exigências, há que se seguir o devido processo de análise desse estudo / relatório, que, com base no art. 10 da Resolução CONAMA nº 237/1997, deve obedecer, no mínimo, às seguintes etapas:

a. publicidade do EIV;b. abertura de prazo para que qualquer interessado apresente objeções;c. análise do EIV e das manifestações populares, por parte dos órgãos municipais;d. realização de vistorias técnicas, por parte dos órgãos municipais, quando

necessárias;e. solicitação de esclarecimentos e complementações, por parte do órgão licenciador;f. atendimento da solicitação, por parte do empreendedor;g. realização de audiência pública (ou, ao menos, abertura de prazo para que os

entes legalmente legitimados requeiram a sua realização), na forma estabelecida na legislação;8

h. solicitação de esclarecimentos e complementações, por parte do órgão licenciador, decorrentes da audiência pública;

i. emissão de parecer jurídico, por parte do órgão municipal competente;j. emissão de parecer técnico conclusivo;k. apreciação do pedido de licença, deferindo-o ou não, de maneira fundamentada;l. publicidade da decisão administrativa e abertura de prazo para recurso;m. apreciação do recurso, caso tenha sido apresentado;n. emissão das licenças.

Tais são as etapas a serem seguidas, sem falar em exigências específicas, contidas na legislação municipal. É o caso, por exemplo, da Portaria SMMAA nº 011, de 17/12/2012, cujo art. 2º, I, exige autorização do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (CONDEMA)

8 Com relação à exigibilidade de audiência pública no caso concreto em questão, não há como deixar de levar em consideração, na esfera tanto jurídica quanto de gestão pública, o fato da coleta de quase 6.000 assinaturas de moradores de Duque de Caxias, que se declararam contrários ao empreendimento em questão, comprovadas em juízo e junto ao MP/RJ pelo movimento FORAS. Trata-se de fato determinante da realização de audiência pública por iniciativa do próprio município, independente de qualquer solicitação expressa, uma vez que incontestável que não se trata de projeto consensual entre a população a ser impactada por ele, sem falar no caráter pedagógico, informativo e preventivo de futuros conflitos que a referida audiência pode desempenhar.

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para “supressão igual ou superior a dez indivíduos arbóreos, dentro dos limites do 1º distrito”, devendo, ainda, a compensação dessa supressão dar-se a uma distância de no máximo 300 me-tros do local onde ocorreu a supressão.

É o caso, ainda, do Plano Diretor de Duque de Caxias, cujo art. 9º, acima citado, acres-ce a exigência de oitiva do Conselho Municipal de Desenvolvimento da Cidade de Duque de Caxias (CONCIDADE), que deve ser notificado para manifestar a respeito da licença requerida, no âmbito do processo administrativo, antes da tomada de decisão por parte do órgão licencia-dor. Trata-se de providência inarredável, dados os termos do Plano Diretor, o caráter cogente de suas normas, o seu status constitucional, bem como a relevância constitucional dos princípios da transparência e da participação popular, que regem toda a gestão da coisa pública e que en-contram nessa exigência uma das formas de sua satisfação.

Reforça-se a exigibilidade de tal etapa do licenciamento na medida em que o Plano Diretor - art. 130, I - delegou poderes ao Prefeito para compor e instalar o CONCIDADE por meio de Decreto, bem como assinou-lhe, para tanto, um prazo de 90 dias, a contar da vigência do Plano, prazo já ultrapassado há mais de sete anos, sem que tenha sido atendido, induzindo-se à hipótese do não comprometimento do Poder Executivo municipal com a implementação do Plano Diretor, repita-se, “o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão ur-bana”, nos termos da carta republicana de 1988, e reiterada pela Constituição Estadual de 1989.

Em face da ausência desse Conselho, em virtude da injustificável mora do Poder Exe-cutivo quanto à sua instalação, a única conclusão que se nos afigura possível, diante dos fatos, é a da inviabilidade jurídica da concessão de licença ambiental pelo município, ao menos na hipótese prefigurada no art. 9º do Plano Diretor, que se aplica ao caso concreto sob exame, que, como já dito, é a das operações de movimentação de terra - tais como aterro, desaterro e “bota-fora” - para execução de obras públicas ou privadas. Nesse caso, a competência para o licenciamento se deslocaria para o Estado do Rio de Janeiro, em caráter supletivo, solução pre-conizada pelo art. 15, II da Lei Complementar Federal nº 140/2011.

Aliás, este é outro ponto em que resta ferido o devido processo legal no caso em ques-tão, uma vez que, em nenhum momento, foram ouvidos os órgãos ambientais dos demais entes federativos - Estado do Rio de Janeiro e União Federal - que não têm competência originária para o licenciamento em questão, podendo, no entanto, manifestarem-se no processo de ma-neira não vinculante (art. 13, § 1º, da LC 140/2011), o que a doutrina majoritária tem entendido como poder-dever do órgão licenciador competente, e não como faculdade discricionária, dada a relevância do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao prin-cípio da cooperação federativa.

Em síntese, constata-se, nos processos administrativos relacionados ao caso,9 o não atendimento dos procedimentos acima elencados, incidindo em grave violação da cláusula constitucional do devido processo legal, uma vez que em todos se encontra patenteada a emis-

9 O já citado processo 35.803/2012, além daqueles de nº 35.802/2012 e 39.393/2012.

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são de diversas licenças - de construção, prévia, de supressão de vegetação, de escavação e terraplanagem - antes da conclusão de todas as etapas inerentes e obrigatórias ao processo de licenciamento.

Isto sem falar a outros problemas dessa mesma ordem, como o não acesso público à integra dos processos em curso10, a não abertura de oportunidade para que a coletividade possa se manifestar formalmente no âmbito dos mesmos, além da inconsistência da numeração dos processos, que possuem folhas faltantes e em duplicidade, como verificado a partir da docu-mentação entregue aos representantes do movimento FORAS.

5.1 Irregularidade na regulamentação e no recolhimento da outorga onerosa do direito de construir

Outro aspecto do caso sob exame, que também consideramos atentatório à cláusula do devido processo, diz respeito ao modo como foi aplicado o instrumento da outorga onerosa do direito de construir.

Trata-se de instrumento previsto no Plano Diretor - artigos 79 a 81 - e regulamentado pelo Decreto nº 6.200, de 30/05/2012. Desde logo, diga-se que tal formato é incompatível com o disposto no Estatuto da Cidade, em especial em seu art. 30, que exige que tal regulamenta-ção - rectius, o regramento das condições da outorga, definindo fórmula de cálculo, modos de pagamento, casos de isenção e destinação dos recursos, o que, a rigor, excede o que costuma se definir como o exercício do mero “poder regulamentar” - se dê forçosamente mediante lei municipal específica. Assim, fica o Decreto municipal nº 6.200/2012, a despeito de seu conteú-do, exposto a ser arguída a sua ilegalidade, em face da lei nacional de desenvolvimento urbano.

Já no que tange ao conteúdo desse decreto, registre-se, apenas ad argumentandum, a obscuridade da fórmula de cálculo adotada em seu art. 5º, que não permite ao intérprete en-tender, com clareza, como se objetivam cada um dos seus respectivos componentes, sem falar no fato de que a definição de um deles fica delegada a ato da Secretaria Municipal de Obras, agravando ainda mais o problema que antes assinalamos, relacionado à violação do princípio da legalidade.

No entanto, no caso em questão, paradoxalmente, é um outro aspecto que mais nos causa espécie. Conforme informações extraídas do processo administrativo 17.113/2012, o em-preendedor solicitou o licenciamento do empreendimento em 14/05/2012 e, menos de um mês depois, em 06/06/2012, foi assinado um termo de recolhimento da outorga onerosa, no valor de R$ 3.100.000,00, termo esse redigido pela Procuradoria Municipal e assinado pelo Prefeito.11 O valor da OODC foi recolhido aos cofres públicos e, em 23/08/2012, foi expedido o alvará de licença para construção.

Trata-se de situação, em nosso sentir, absolutamente inusitada, na qual a outorga one-

10 Nos documentos repassados ao movimento FORAS faltam várias páginas dos processos em curso.11 Abstrairemos, aqui, da complementação de valores que ocorreu a posteriori, por irrelevante para o argumento ora desenvolvido.

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rosa foi recolhida antes mesmo da regular tramitação e apreciação dos competentes pedidos de licença urbanística e ambiental. Ora, em nossa compreensão, a legislação determina que suceda precisamente o oposto: o recolhimento da outorga onerosa pressupõe processo de licenciamento concluído, com decisão favorável e condicionantes atendidos, do contrário não há projeto viável a ser executado. Em não havendo projeto viável a ser executado, nada justifica o recolhimento da contraprestação devida à municipalidade pelo exercício da faculdade de edificar. Em outras palavras, antes que se constitua juridicamente um direito de construir em favor do empreende-dor, resta indevido o pagamento de qualquer contraprestação a administração a pretexto dessa mesma causa.

A outorga onerosa seria comparável, nesse sentido, à obrigação do loteador em trans-ferir ao município uma certa parcela da gleba objeto do projeto de loteamento, o que deve fazer, do mesmo modo, a título de contraprestação à coletividade, exigível em nome da qualidade de vida na cidade e como captura parcial da valorização que decorre do aproveitamento do terre-no, tal como facultado pela legislação. Ora, o loteador somente perde as áreas objeto de doação compulsória a partir do momento em que não somente o projeto de loteamento é licenciado pelo município, mas, também, levado a registro. Assim, não há hipótese do pagamento de qualquer contraprestação antes da regular análise e aprovação do projeto de loteamento e emissão de licença em favor do empreendedor.

Não há como suceder de modo diferente no caso da outorga onerosa. Somente após a conclusão, com êxito, do licenciamento poderia o empreendedor ser regularmente notificado a recolher a contraprestação devida, sendo possível, aí sim, atribuir à sua eventual mora o efeito de revogação automática da licença. Admitir a possibilidade de subversão dessa ordem - como, concretamente, o fazem os artigos 2º e 3º, caput, do Decreto 6.200/12 - seria solução incompa-tível com a finalidade e a função do licenciamento, no qual, como antes sustentamos, não há direito líquido e certo em favor do empreendedor à obtenção da licença requerida, a não ser que partamos de ultrapassadas noções de gestão da cidade em moldes privatistas, nos quais o ente público não passa de mero “carimbador” dos projetos privados de uso do espaço público urbano, como é o caso de seu espaço aéreo. A legislação brasileira em vigor, sabiamente, vai em outra direção, mandando, inclusive, aos órgãos licenciadores que considerem a chamada “opção zero”, isto é, a hipótese de não execução do projeto para o qual se requer a licença - vide art. 5º, I, da Resolução CONAMA nº 1, de 1986.

O recolhimento da outorga onerosa logo no início do licenciamento, como sucede no caso em exame, não somente fragmenta a análise do projeto de empreendimento, que se requer integrada sob os pontos de vista urbano e ambiental, admitindo que ele esteja licenciado numa esfera e não na outra, como também gera uma espécie de “ fato consumado” a favor do empre-endedor, que já pagou ab initio aquilo que devia a título de contraprestação, restando apenas no aguardo do mero cumprimento do ritual burocrático de outorga das respectivas licenças ambientais.

As preocupações acima relatadas veem-se reforçadas à medida que se percebe que o

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Decreto 6.200/12, ora questionado, foi editado poucos dias após o requerimento de licença por parte da ABL, induzindo-se à crença de que foi feito à vista especificamente do caso desse em-preendimento, vulnerando-se o crucial princípio da impessoalidade na gestão da coisa pública.

Em outras palavras, o procedimento institucionalizado pelo Decreto 6.200/12 sugere um processo de compra de licenças por parte do empreendedor ou, no mínimo, de substituição concreta do licenciamento pelo recolhimento da outorga onerosa, que acaba valendo como se fosse licença urbanística e ambiental. Ocioso arrematar que isso atinge as próprias noções de moralidade e de finalidade públicas, além de reafirmar o esvaziamento concreto do processo de licenciamento em sua função de avaliação e decisão, à luz do interesse público, a respeito de empreendimentos de impacto ambiental significativo.

6 A JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO EM TORNO DO LICENCIAMENTO

Uma das estratégicas políticas de atuação do FORAS foi a de buscar levar ao judiciário os questionamentos de ordem jurídica que tinha a respeito do projeto em questão. Neste senti-do, encontram-se em tramitação, na data da conclusão do presente estudo, três processos que judicializam o conflito.

A primeira medida tomada foi representar junto ao Ministério Público estadual, atra-vés do seu órgão de tutela coletiva, a fim de que se instaurasse um Inquérito Civil. Essa repre-sentação noticiava a intenção de construção do Shopping e as irregularidades de que se tinha conhecimento no processo de licenciamento. Deu-se mais ênfase à falta de publicidade dos atos administrativos, à concessão de uma licença e ao recolhimento de pagamento relacionado ao exercício do direito de construir (“outorga onerosa do direito de construir”, nos termos do Estatuto da Cidade) sem a apresentação dos estudos urbanos e ambientais previstos em lei e à necessidade de proteção da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto, edifício vizinho à futura construção, que é prédio de interesse histórico e tem sobre si pedido de tombamento em tra-mitação há algum tempo junto à Prefeitura de Duque de Caxias, porém, ainda não apreciado.

Ainda sem notícias de real providência por parte do Parquet estadual, ajuizou-se, atra-vés de uma associação integrante do FORAS, uma vez que este não possui personalidade ju-rídica, uma Ação Cautelar Inominada, com pedido de liminar, distribuída em 16/06/2014 para a 1ª Vara Cível de Duque de Caxias,12 em desfavor do Município de Duque de Caxias e da em-presa ABL Shopping. A ação pede, em sede de antecipação de tutela, a suspensão da eficácia da Licença de Constrição até a decisão do processo de tombamento da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto e até que sejam apresentados o Estudo de Impacto de Vizinhança, o Estudo de Impacto Ambiental e seus respectivos Relatórios. No mérito, o pleito é pela anulação da Licença de Construção. A ação aponta, como causa de pedir, os mesmos problemas relatados na Repre-

12 Processo nº 0034147-96.2014.8.19.0021, que pode ser acompanhado através do link: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaMov.do?v=2&numProcesso=2014.021.033071-5&acessoIP=internet&tipoUsuario=

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sentação. Intimado o Ministério Público Estadual, para atuar no processo como fiscal da lei, este entendeu ser o caso de abrir um Inquérito Civil Público para analisar melhor a existência das irregularidades ventiladas no processo judicial. Quanto à Ação Cautelar, determinou o juízo que o pedido liminar somente será apreciado quando da resposta de ambos os réus e de nova promoção ministerial, o que ainda não ocorreu.

O alhures citado Inquérito Civil (nº MMPRJ 2013.00467420) discutiu bastante o pro-cedimento de concessão da licença e a validade dos estudos prévios, sem, no entanto, chegar a qualquer conclusão. Importante citar que este IC mistura uma investigação já feita sobre um outro projeto de shopping que se pretende construir, diverso do empreendimento questionado pelo FORAS e localizado em região completamente diversa do município de Duque de Caxias, às margens da Rodovia Washington Luís.

Como mais um instrumento para tentar evitar o avanço das obras, o FORAS, nova-mente através de uma das associações que o integram, impetrou um Mandado de Segurança com pedido de liminar.13 A autoridade coautora apontada foi o Secretário do Meio Ambiente, Agricultura e Abastecimento, e o ato impugnado foi a supressão total de 167 (cento e sessenta e sete) árvores no terreno onde se pretende construir o shopping, sendo algumas destas árvores, espécies nativas da Mata Atlântica. A ilegalidade da supressão é latente e transparece nos as-pectos já elencados no capítulo anterior.

Assim, o mandamus distribuído no dia 07/11/2014 para a 6ª Vara Cível de Duque de Caxias,14 objetiva, liminarmente, a suspensão das próximas etapas de instalação do Shopping, pedido este a ser confirmado quando da apreciação do mérito. O juízo limitou-se, em um pri-meiro momento, a requerer comprovação dos requisites necessárias à concessão da gratuidade de justiça e, uma vez atendida essa exigência, a remeter os autos ao Ministério Público, sem se manifestar sobre a medida liminar requerida. O Parquet devolveu o processo com uma mani-festação que o juízo determinou que se atenda. No entanto, como este despacho não foi ainda publicado, não se sabe o teor da promoção ministerial15.

O processo (até aqui) mais eficaz, no sentido de ter permitido, ainda que timidamente, alguma apreciação do mérito do conflito, talvez seja a Ação Civil Pública proposta pelo Mi-nistério Público Estadual através de seu órgão de Tutela Coletiva.16 O objeto dessa Ação é a proteção da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto. Advoga-se que esta, mesmo sem ser um bem tombado, merece proteção. É que a Lei Orgânica duquecaxiense prevê, de maneira inovadora, proteção integral aos bens de valor histórico, mesmo que não haja processo de tombamento. Uma das medidas protetivas que então seria automaticamente estabelecida consistiria, preci-samente, na preservação do entorno desse bem, num raio mínimo de 50m (cinquenta metros),

13 O acompanhamento do processo pode ser feito através do link: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?-v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2014.021.066569-5 14 Processado sob o nº. 0068441-77.2014.8.19.0021.15 Dado atualizado em 15/12/20014.16 Esta ação corre sob o nº 0061989-51.2014.8.19.0021, perante a 7ª Vara Cível de Duque de Caxias.

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o que impediria, portanto, a construção de um grande edifício, que violaria o entorno do bem tombado e a ambiência cultural aí concebida.

Cabe ressaltar que um dos grandes motivadores da propositura desta Ação foi a pres-são popular liderada pelo FORAS, que insistiu para que o órgão estatal, na qualidade de fiscal da lei, se posicionasse diante deste conflito urbano. Uma vez marcada a data para a primeira audiência de conciliação no âmbito desse processo, envolvendo Ministério Público, ABL Sho-pping e o Município, o FORAS diligenciou no sentido de que outro de seus integrantes deman-dasse o ingresso no feito como terceiro interessado, habilitando-se assim a intervir no deslinde da ação. No entanto, para surpresa de todos, antes mesmo da audiência de conciliação, as partes se reuniram, sem a presença do FORAS ou de qualquer representante da sociedade civil, e fir-maram acordo com o propósito de encerrar a lide.

Tal acordo, feito na forma de um Termo de Ajustamento de Conduta, prevê, em aper-tada síntese, que a ABL Caxias Empreendimentos e Participações S.A.: (1) reparará qualquer dano que seja causado à Escola durante a construção; (2) custeará as obras de manutenção, res-tauração e conservação da Escola e; (3) submeterá ao Ministério Público o projeto de engenha-ria do Shopping. Já o Município de Duque de Caxias se comprometeu a não conceder qualquer nova licença – urbanística ou ambiental – que acarrete impactos negativos à preservação da Escola. Tendo em vista a Transação feita pelas partes, o processo foi retirado de pauta e o juízo determinou que as partes se manifestassem acerca do pedido de ingresso no feito do SEPE, es-tando os autos remetidos ao Parquet estadual. As petições do FORAS questionando a validade do Termo de Ajustamento de Conduta, por falta de oportunidade para que ele, e a sociedade civil em geral, se pronunciasse sobre a Transação, antes de sua homologação, ainda não foram juntadas aos autos.17

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de avaliação preliminar, os autores deste estudo entendem que o caso sob exa-me é bastante ilustrativo das grandes dificuldades e obstáculos à efetividade da política urbana traçada em sede constitucional, em que pese o fato de estar em vigor há mais de um quarto de século.

Muito embora tenha sido “decantada em verso e prosa” por juristas, juízes, autorida-des governamentais, lideranças políticas, etc., os seus resultados efetivos, no âmbito das políti-cas urbanas atualmente praticadas, ainda se mostram significativamente limitados, no sentido da realização de suas pautas fundamentais: o direito à cidade (amplamente compreendido), a função social da propriedade e a gestão urbana em bases justas, democráticas, transparentes, participativas e sustentáveis.

À luz do caso estudado, pode se afirmar que, no “ frigir dos ovos” da tomada de deci-

17 Dado atualizado em 15/12/20014.

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sões, acabam falando mais alto interesses não condizentes com os princípios e valores que vêm sendo consagrados no âmbito do “novo direito urbanístico brasileiro”, emergente no período pós-88. Os apelos relacionados ao desenvolvimento econômico, ao aumento de arrecadação, à geração de empregos, mesmo quando de muito discutível factibilidade e confiabilidade (como nos parece ser o caso!), acabam funcionando como imperativos absolutos. Ganham muito mais força quando a eles se articulam os símbolos de modernidade, progresso e “urbanidade” vendi-dos pelo mercado capitalista contemporâneo. E aqui não chegamos sequer a falar dos aspectos criminógenos que ainda envolvem a operação da administração pública, tais como os benefícios ilícitos oferecidos aos gestores de todos os níveis, pelos detentores do poder econômico interes-sados em grandes empreendimentos privados. Não é de se descartar a possibilidade da atuação desse fator, primeiramente, em função de sua generalização, e, em segundo lugar, em face das suspeitas que emergem do cipoal de graves irregularidades encontradas no caso estudado.

No dia-a-dia de muitas administrações públicas, ainda hoje, reproduz-se – lamentavel-mente! – a clássica relação autoritária entre Estado e sociedade, agravada quando, do lado da sociedade, apresentam-se movimentos populares, representativos de segmentos sociais subal-ternizados, com baixo capital político e/ou econômico.

Reproduz-se, também, a violação sistemática da ordem jurídica, que se mostra sem força suficiente para coibir os abusos de poder praticados pelos encarregados da gestão da coisa pública. Tais violações – insistimos, lamentavelmente! – não têm encontrado controle adequado por parte dos órgãos encarregados de sua fiscalização e sanção, desde órgãos do chamado “controle interno”, ou do poder legislativo (e órgãos de contas incumbidos de lhes auxiliar), chegando até o próprio poder judiciário, passando pelo Ministério Público. No caso aqui estudado, observa-se que, nem mesmo após a instauração de diversas medidas judicias e/ou de apuração dos fatos, se pôs cobro às inúmeras e graves irregularidades vislumbradas nos processos administrativos em andamento, que constituem a face visível da legitimação dos grandes empreendimentos, tais como aquele objeto do presente estudo. Ao contrário de coibir as irregularidades aqui escaneadas, e de exigir as respectivas responsabilidades, os aludidos órgãos parecem ratifica-las e legitimá-las, desestimulando a população a resistir aos interesses que movem o Estado e os agentes econômicos, de cuja articulação emerge um bloco hegemôni-co que parece desconhecer qualquer tipo de limite. Mais do que nunca, parecemos estar diante de evidências eloquentes do que há algum tempo vem sendo estudado sob o conceito de estado de exceção (cf. AGAMBEN, 2004).

Em que pese o cenário não muito alvissareiro vislumbrado pelo grupo de pesquisa, há que se reconhecer o fundamental papel do movimento social de resistência à implantação do empreendimento aqui debatido, o que nos suscita uma tênue esperança de ver concretizadas ao menos algumas das promessas de nossa constituição, outrora dita “cidadã”, nos idos da década de 1980. Não fosse a oportuna “provocação” trazida ao grupo de pesquisa por esse movimento, o presente artigo jamais teria sido possível, bem como todo o trabalho de pesquisa perderia uma oportunidade ímpar de vislumbrar os problemas, limites e contradições tanto da ordem

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jurídica quanto do aparelho do Estado, o que alguns designam como “mundo institucional”. Ao longo das atividades realizadas em parceria com o movimento FORAS, pudemos testemunhar o crucial papel pedagógico que este vem exercendo no município duquecaxiense – e, hoje, até mesmo fora dele! – servindo como canal para fazer despertar na população a percepção tanto da gravidade da questão urbana contemporânea, quanto dos direitos urbanos – e humanos! – que vem sendo violados.

Assim, se algum papel a universidade pública tenciona desempenhar no sentido da rea-lização do projeto constitucional, ao menos naquilo que ele tenha de efetivamente democrático e de justiça socioespacial, não nos resta dúvida de que o seu caminho é o de estreitar os seus la-ços com movimentos dessa natureza, desenvolvendo e repensando, a partir de uma interlocução renovadora com esses agentes sociais, os seus projetos de ensino, pesquisa e extensão.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

MARTINS, Jorge. Estudo preliminar de Impactos de Vizinhança de projeto de complexo multiatividades da ABL Shopping Empreendimentos e Participações S.A. para Duque de Caxias/RJ. Rio de Janeiro, UFRJ, 2014.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

RIBEIRO, Marcelo G. Parecer da pesquisa mercadológica sobre estudo de viabilidade mercadológica: Shopping Duque de Caxias. Rio de Janeiro, UFRJ, 2014.

ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

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Recebido em 22 abr. 2015Aceito em 23 abr. 2015

A EDUCAÇÃO PÚBLICA COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO SUSTENTÁVEL DO BRASIL

Carlos Sérgio Gurgel da Silva*

Claudomiro Batista de Oliveira Jr.**

1 INTRODUÇÃO

O Brasil vive hoje uma expectativa muito grande, de entrar para o rol dos países tidos como desenvolvidos. Ter ficado por décadas sob o rótulo de “país em desenvolvimento” sempre incomodou as elites e os governantes brasileiros. Sem sombra de dúvidas o Brasil hoje é uma grande potência econômica, tendo superado recentemente, em termos de PIB, a Inglaterra, ocupando atualmente o posto de sexta maior economia do mundo. No entanto, afastando-se dos principais centros econômicos e financeiros do país, percebe-se mais nitidamente que se trata de um país de desigualdades. Desigualdades estas que se manifestam em diversas frentes, tais como saúde, educação, moradia, previdência, meio ambiente, lazer, cultura, entre outras.

Serão abordadas neste breve ensaio questões relacionadas ao sistema público de educa-ção existente no Brasil, mostrando como este não está sendo apto a erradicar a pobreza, a mar-ginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais deste país, do modo que deveria fazer para dar cumprimento ao preceituado no artigo 3º, inciso III da Constituição brasileira. Na exposição que será feita a seguir, abordaremos inicialmente a questão dos direitos humanos e seu grande propósito, qual seja, a realização da dignidade da pessoa humana, para em seguida tratar do direito humano à educação e também da questão da educação, como instrumento de construção de valores éticos.

Na sequência será abordada a questão do desenvolvimento nacional, buscando-se a resposta para a seguinte pergunta: existe um direito subjetivo ao desenvolvimento? O ponto central deste ensaio se dará com a abordagem da questão do crescimento sustentável do Brasil,

* Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.** Aluno do Doutorado Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires (Argentina), Mestre em Direito Público pela Universida-de Federal do Rio Grande do Norte, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

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levando em consideração as perspectivas do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento social. No entanto o amadurecimento da discussão ocorre com a discussão final sobre as pers-pectivas para um Brasil com educação de qualidade.

2 DIREITOS HUMANOS E SEU GRANDE PROPÓSITO: A REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Sabe-se que as revoluções, americana (1776) e francesa (1789), além da segunda guerra mundial (1939-1945) foram os principais motores que levaram ao impulsionamento da positiva-ção dos direitos humanos nos principais textos constitucionais do mundo ocidental. Trata-se de direitos imprescindíveis para que se tenha um mínimo de dignidade humana1. Segundo amplo entendimento da doutrina, os direitos humanos, quando positivados nas Leis Fundamentais dos Estados recebem a denominação de direitos fundamentais2. Por esta razão, pode-se afirmar que os direitos fundamentais são, na verdade, direitos humanos positivados.

É possível também afirmar que todos os direitos fundamentais são direitos humanos (direitos dos homens), mas nem todos os direitos humanos são fundamentais, pois neste último caso dependerá de ser assim considerado por cada ordenamento jurídico (por cada Estado). Ademais, as normas de direitos humanos possuem um caráter universal, ou seja, é aplicável a todos os povos da Terra. Por esta razão chamam-na de normas supranacionais, e têm como base, Tratados e Convenções internacionais.

Sobre esta questão, o professor Jorge Miranda destaca que em direito internacional, tende a prevalecer o termo: direitos do homem – ou o termo proteção internacional dos direitos do homem – em parte, por assim, ficar mais clara a atinência dos direitos aos indivíduos, e não aos Estados ou a outras entidades internacionais, e, em parte, por ser menos extenso o desenvol-vimento alcançado e procurar-se um “mínimo ético” universal ou para-universal. (MIRANDA, 2008, p.15)

Não se vê propósito maior nos direitos humanos senão na proteção do indivíduo contra posições autoritárias do Estado e até mesmo de outros indivíduos em prejuízo de sua dignidade.

Outra característica dos direitos humanos é que são inalienáveis3, ou seja, os indiví-

1 Segundo Eliane Ferreira de Sousa, a categoria dignidade pode ser compreendida como qualidade daquele que é digno, superior, merece-dor de respeito e de consideração. A dignidade humana não pode ser mensurada em valor monetário, não pode ser substituída por qualquer outra coisa. Apesar disso, há dificuldade em se dar uma densidade jurídica ao conceito de dignidade humana. Qual seria seu conteúdo? Sem dúvida, respeito à vida, à integridade física e psíquica, à consciência, a intimidade, o direito de ir e vir, à liberdade de expressão, de pensamento, de criação, de associação, de opinião, entre outros. (SOUSA, 2010, pág. 32.)2 Sobre esta questão Ingo Sarlet explica: “Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fun-damentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de deter-minado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)”. (SARLET, 2006, p. 35 e 36.)3 Consta do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949 que: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, (...)”.

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duos beneficiários destes direitos não podem deles dispor em favor de quem quer que seja, sem que haja violação à sua dignidade pessoal. Este fato por si só revela a dimensão destes direitos no contexto de qualquer ordem estatal.

Neste país de desigualdades, uma das poucas opções lícitas para que um “excluído” possa ser incluído no sistema produtivo nacional é através do acesso a uma educação de quali-dade que possibilite a tal indivíduo a superação dos obstáculos que o separa de uma vida digna. Em face desta realidade, discorreremos nos itens a seguir sobre a importância vital da educação como instrumento capaz de transformar a realidade do país e de proporcionar o amadurecimen-to da democracia e da cidadania, indispensáveis para a garantia de uma ordem jurídica justa e sustentável.

3 EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento produzido pela Organiza-ção das Nações Unidas em 1949 dispõe em seu artigo XXVI que todo ser humano tem direito à instrução e que a instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Dispõe ainda que a instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personali-dade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades funda-mentais. Ainda o artigo XXIX aduz que todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.

A educação constitui um direito de todos, sendo, portanto, considerado como direito humano de segunda geração, na perspectiva dos direitos sociais. Este direito foi amplamente incorporado ao texto de inúmeras constituições contemporâneas. Na Constituição portuguesa de 1976, que influenciou sobremaneira a Constituição brasileira de 1988, consta como tarefa fundamental do Estado português [art. 9º, f)] assegurar o ensino e sua valorização permanente. A questão da educação ainda é tratada no art. 73 da Constituição portuguesa, como fator essen-cial para o desenvolvimento do Estado português4.

A Constituição brasileira de 1988 trata a educação como um direito social (art. 6º, caput), e destina um capítulo ao trato desta questão (Capítulo III – Da educação, da cultura e do desporto, que por sua vez está inserido no Título VIII, que trata da ordem social). Inserido neste contexto, o art. 205 dispõe que a educação constitui um direito de todos e dever do Estado e da família e que será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Segundo José Celso de Mello Filho, o conceito de educação é mais compreensivo e

4 Constituição da República Portuguesa – “art. 73: 1. Todos têm direito à educação e à cultura; 2. O Estado promove a democratização da educação e das demais condições para que a educação, realizada através das escolas e de outros meios formativos, contribua para a igual-dade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva”.

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abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exer-cício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático (MELLO FILHO, 1986, p. 533).

Diante das considerações feitas até então acerca da educação, percebe-se seu nítido formato de direito humano, uma vez que atrelada ao direito à educação estão outros direitos econômicos e sociais, o que faz deste um centro irradiador de conhecimentos que permitem às pessoas, de um modo geral, verem concretizados outros direitos, sociais ou econômicos.

Trata-se, pois, a educação, como um direito fundamental de segunda geração. Como se sabe, a ideia maior que subjaz à concepção dos direitos de primeira geração é liberdade. No caso dos direitos fundamentais de segunda dimensão (ou geração), a ideia central é a igualdade5. Através de intervenções estatais na ordem social, o Estado buscava equilibrar a balança que se desequilibrara sob a batuta do liberalismo pós-revoluções burguesas dos séculos XVIII e pós--revolução industrial. Entre as intervenções que se mostraram necessárias havia o investimento em um ensino público de qualidade, como forma de garantir a inserção de grupos e classes sociais menos favorecidos no mercado de trabalho.

A distinção doutrinária que se faz entre o que seriam direitos humanos e o que seriam direitos fundamentais está pautada em sua materialização ou não de seus comandos normati-vos. Os direitos fundamentais são aqueles direitos considerados como indispensáveis para uma determinada ordem estatal, e, por tal razão, são inscritos na normal fundamental do Estado, sua Constituição. Desta forma, direitos fundamentais são aqueles direitos positivados na ordem constitucional, ou seja, delimitados pela cultura e costumes de uma determinada sociedade, por intermédio dos responsáveis pela feitura deste documento. Já os direitos humanos consti-tuem todos aqueles direitos intimamente ligados ao valor dignidade da pessoa humana. Estes direitos são universais, ou seja, não estão vinculados aos costumes e cultura de determinadas sociedades. Por esta razão, os direitos humanos são inalienáveis, ou seja, não estão à disposição exclusiva do constituinte. Diante desta explicitação, percebe-se que os direitos humanos são mais amplos. No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 coloca de forma bem clara ser a educação um direito fundamental.

Neste sentido, como bem recorda Motauri Ciocchetti de Souza, o direito à educação constitui regra de conformação do sistema jurídico, ditando o conteúdo de toda normatização infraconstitucional, devendo ser objeto de máxima efetividade, assegurada por meio de leis, atos normativos e posturas administrativas, vedada qualquer limitação ao seu alcance. Seguin-do a linha de orientação traçada pelo artigo 6º da Carta Magna, o artigo 205 da Constituição de

5 “A igualdade passa a ser um elemento qualificador e essencial da democracia, e acima de tudo, sua acepção substancial, princípio de superação de obstáculos de ordem econômica e social. O princípio da igualdade reclama a ideia de responsabilidade social e integrativa dos titulares de direitos, a partir de uma concepção proporcional, sendo sua aplicação um elemento para o balanceamento das relações sociais e jurídicas, impedindo-se que as desigualdades, por não terem um tratamento diferenciado e proporcional à desigualdade, traduzam uma efetiva desigualdade nas relações jurídicas.” (SCHÄFER, 2005, pág. 27).

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1988 prescreve a educação como direito de todos e dever do Estado e da família. Em face destas considerações conclui este autor que o art. 205 contém uma declaração fundamental que, com-binada com o art. 6º eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem (SOUZA, 2010, p. 19-20).

Por se tratar de um direito humano fundamental, a educação deve ser promovida pelo Estado de modo que o mínimo existencial possa ser assegurado à população brasileira. Neste sentido, o mínimo existencial representa o conjunto de condições que propiciam a realização de uma vida digna, ou em outros termos, que proporcionam a satisfação das necessidades básicas da população de modo a se garantir um mínimo de felicidade. Inserida neste diapasão, a educa-ção se impõe como um dos elementos que constituem este mínimo existencial, na medida em que se coloca como pré-requisito essencial para a realização e aprimoramento de outros direitos fundamentais.

Sobre a questão do mínimo existencial, no que toca ao sistema educacional brasileiro, Eliane Ferreira de Sousa destaca que apesar de sua inquestionável importância se faz neces-sária a existência de condições materiais para sua efetivação. Segundo esta autora, no Brasil, por exemplo, o mínimo tem sido ignorado pelas autoridades estatais, como no caso do direito à educação fundamental, cuja parcela integrante do mínimo existencial não está somente para atender aos ditames da Constituição, mas porque a educação é pré-requisito para a concretiza-ção de outros direitos fundamentais (SOUSA, 2010, p. 30).

Ainda segundo a supracitada autora o direito à educação fica ainda mais latente quan-do se constata que a Carta de 1988 elevou o direito à educação ao status de direito público sub-jetivo. Nesse contexto, o sentido de realização deste direito é forte a ponto de afastar qualquer recusa do Estado em efetivá-lo. E não basta só a garantia do direito à educação, fazem-se neces-sárias ações paralelas que permitam à sociedade as condições de chegar até a escola e manter-se nela, bem como a asseguração de sua qualidade pelo Estado (SOUSA, 2010, p. 30).

4 EDUCAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE VALORES ÉTICOS

A prática educativa consiste no processo de transmissão do conhecimento adquirido por uma pessoa a outra pessoa, considerada em fase de aquisição do conhecimento. Em verda-de, todos nós, em qualquer tempo, estamos em fase de aquisição do conhecimento, pois nunca saberemos o bastante. O que pode existir, na prática, é que algumas pessoas são mais expe-rientes do que outras, seja em termos de termos de conhecimentos técnicos, seja em termos de convivência prática com determinadas áreas do conhecimento.

Na concepção de Paulo Freire ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as pos-sibilidades para a sua própria produção ou sua construção (FREIRE, 1996, p. 47). O conheci-mento não é transferido, e sim, produzido, sendo resultado da troca de experiências e de saberes entre professores e alunos. Neste diálogo entre educador e educando, o primeiro deve conduzir os debates no sentido de que sejam fixados valores éticos sobre o papel de cada pessoa na socie-

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dade e sobre a responsabilidade que deve permear a relação dos homens com seus semelhantes e com o meio ambiente.

A origem da palavra ética vem do grego “ethos”, que quer dizer o modo de ser, o caráter. Os romanos traduziram o “ethos” grego, para o latim “mos” (ou no plural “mores”), que quer dizer costume, de onde vem a palavra moral. Tanto “ethos” (caráter) como “mos” (costume) indicam um tipo de comportamento propriamente humano que não é natural, o ho-mem não nasce com ele como se fosse um instinto, mas que é “adquirido ou conquistado por hábito”. Portanto, ética e moral, pela própria etimologia, diz respeito a uma realidade humana que é construída histórica e socialmente a partir das relações coletivas dos seres humanos nas sociedades onde nascem e vivem (DHNet, 2012).

A ação educativa se concretiza através de um processo de troca de saberes e de inte-rações orientadas com vistas à construção do conhecimento. Neste contexto, as sementes da democracia e da ordem devem ser plantadas e cultivadas, com vistas à formação não apenas de um bom aluno, mas à formação de um cidadão consciente e atuante. Sobre o processo edu-cacional, Motauri Ciocchetti de Souza explicita que este consiste na transmissão de valores e de experiências entre as gerações, permitindo às mais novas alcançar perfeita interação social, propiciando-lhe meios e instrumentos para que possam manter, aprimorar e, posteriormente, retransmitir a seus sucessores o arcabouço cultural, os valores e os comportamentos adequados à vida em sociedade e indispensáveis para o processo de evolução social rumo a um efetivo Es-tado Democrático de Direito, que deve ter por premissa, a consagração da dignidade da pessoa humana. Ainda segundo este autor , a educação é o próprio pilar que justifica e mantém a estru-tura social ou qualquer núcleo de convivência humana, desde grupos de amigos até o próprio Estado (SOUZA, 2010, p. 09-10).

Diante destas considerações, comete-se ao educador o papel de trabalhar valores éticos a serem assimilados pelo educando, de modo que este perceba a sua condição e a sua função na sociedade, fato este que por si só trará inúmeros benefícios não só à pessoa do educando como para toda a sociedade. O povo brasileiro precisa despertar, abrir os olhos para a realidade na qual está inserido e somente a educação pode atuar eficazmente neste sentido. Quando isto, enfim, acontecer, os frutos reais de uma democracia madura e qualificada surgirão.

5 EXISTE UM DIREITO SUBJETIVO AO DESENVOLVIMENTO?

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso II dispõe que constitui obje-tivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, garantir o desenvolvimento nacional. O que seria tal desenvolvimento? Entende-se aqui que o desenvolvimento ali enuncia-do é aquele capaz de assegurar à população brasileira condições mínimas para a realização do princípio da dignidade da pessoa humana6.

6 Para Flávio Augusto de Oliveira Santos, “dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em cada ser

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Neste sentido, desenvolvimento seria a realização, no contexto social, de todos os prin-cípios, políticas e planos sociais e econômicos, com vistas à formação de um quadro geral de atendimento às necessidades básicas da população brasileira.

Os números recentes, diuturnamente apresentados nos meios televisivos e informacio-nais, revelam a dimensão do desenvolvimento econômico do Brasil. O país, classificado como potência emergente na década de 1980 hoje se firma entre os países mais desenvolvidos do mundo ao ponto de se sugerir (ideia levantada pela comunidade científica) o surgimento de um novo “bloco” econômico mundial denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este desenvolvimento aqui apontado, como se percebe, está inserido no contexto econômi-co, apenas e tão somente. As desigualdades sociais, apesar das melhoras observadas na última década, ainda são muito presentes na vida de milhões de brasileiros.

Neste sentido, pode-se afirmar que o país que atrai investidores do mundo inteiro, o país das oportunidades de negócios é também o país do analfabetismo (real e funcional), o país da violência (em seus principais centros urbanos), enfim, é o país campeão dos contrastes e das tensões sociais. Como então iniciar o processo de mudança? Cremos que a solução para estes problemas esteja no investimento em um sistema de educação pública de qualidade, que saiba identificar e valorizar os potenciais de cada pessoa, segundo suas virtudes e qualidades inatas. A valorização dos alunos, aliada a uma política de combate às drogas nas comunidades farão uma verdadeira revolução social no Brasil.

Sobre a questão da limitação da concepção de desenvolvimento à seara econômica, Amartya Sen chama a atenção para o fato de que os fins e os meios do desenvolvimento reque-rem análise e exame minuciosos para uma compreensão mais plena do processo de desenvol-vimento; é sem dúvida inadequado adotar como nosso objetivo básico apenas a maximização de renda ou de riqueza, que é, como observou Aristóteles – meramente útil e em proveito de alguma coisa. Pela mesma razão, o crescimento econômico não pode sensatamente ser conside-rado um fim em si mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo, com a me-lhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando este mundo (SEN, 2000, p. 29).

A esta altura, convém recordar que o Estado não existe como um fim em si mesmo. Deve antes assumir o papel de agente transformador das realidades fáticas com vistas à reali-zação do bem comum, sendo este o principal interesse a impulsionar o fenômeno estatal. So-mando-se a esta perspectiva Sahid Maluf assevera que o Estado, por sua natureza, não poderia ser admitido como instituição destituída de finalidade. Negar finalidade ao Estado seria negar o próprio Estado, descambando-se para o terreno das teorias anarquistas de Max Stirner, Bakuni-

humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um com-plexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.” (SANTOS, 2011. Pág. 29).

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ne, Jean Grave e outros. Este mesmo autor continua afirmando que o Estado é o meio pelo qual a nação procura atingir seus fins. Não pode, pois, possuir fins outros que não sejam os da nação, que lhe dá causa, que determina a sua organização e que traça as diretrizes de sua atividade (MALUF, 1991, p. 309).

Tratando da mesma questão, Dalmo de Abreu Dallari muito bem pontua que o Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim, segundo este dou-trinador, pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana (DALLARI, 1995, p. 91).

Nesta reflexão acredita-se que há sim um direito subjetivo ao desenvolvimento, uma vez que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento, entre outros, a dignidade da pessoa humana. Isto porque não há como garantir a realização deste fundamento Estatal sem que haja o desenvolvimento econômico e social proclamado no texto constitucional.

6 CRESCIMENTO SUSTENTÁVEL: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO X DESENVOLVIMENTO SOCIAL

O conceito de desenvolvimento sustentável é constante nos tratados e na doutrina do direito ambiental. Trata-se de um tipo de desenvolvimento econômico que esteja atento aos im-pactos que as atividades e empreendimentos podem gerar, e neste sentido, agindo previamente, possa sugerir ao Estado e à coletividade que adotem medidas necessárias ao controle de usos e formas de ocupação do território nacional, estadual ou municipal para que não só a geração presente possa desfrutar de um ambiente equilibrado, mas também as gerações futuras.

Segundo recorda Frances Cairncross, a ideia de que o crescimento econômico e a proteção ambiental podem ser compatíveis foi captada na expressão “desenvolvimento sus-tentável”. Trazida ao debate em 1980 pela Estratégia de Conservação Mundial e pelo relatório Brundtland, a expressão é atraente por significar muita coisa diferente a pessoas distintas. Se-gundo este autor todo político com consciência ambientalista é a seu favor, um indicador claro de que não compreende o que significa (CAIRNCROSS, 1992, p. 52).

O crescimento sustentável a que nos referimos neste ensaio é mais que um crescimento econômico que incorpore valores ambientais em seus processos produtivos e de reprodução do capital. Trata-se de um crescimento econômico apto a resistir às intempéries que se lançarão em um futuro próximo sobre as bases da economia brasileira, assim como aquelas que se lançaram nas mais fortes economias do globo recentemente.

Neste sentido, o país deve estar preparado para responder bem à competitividade im-posta pelo mundo globalizado, caso contrário estará fadado ao insucesso neste quesito. A histó-

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ria mostrou que todos os países que experimentaram acelerados processos de desenvolvimento econômico nos últimos anos tiveram investimentos maciços em educação. A China hoje, em fase de crescimento econômico acelerado, sabendo o que deve ser feito, tem investido grande-mente na qualificação de sua população. O resultado será um crescimento econômico sustentá-vel, ou seja, um crescimento econômico que se manterá por décadas e décadas, mesmo diante das oscilações naturais do mercado.

Neste sentido, percebe-se claramente que a educação constitui a base para que haja um desenvolvimento nacional sustentável. Para tanto, se faz necessário que os governos, federal, estadual e municipal abandonem a hipocrisia das estatísticas que mascaram a realidade do ensi-no no Brasil, as quais revelam apenas que um número considerável de alunos foram aprovados e conduzidos para séries seguintes, sem, contudo, haver um compromisso com a melhoria, em termos qualitativos, do ensino nos níveis fundamentais, médio e superior.

7 PERSPECTIVAS PARA UM BRASIL COM EDUCAÇÃO DE QUALIDADE

Com o estágio atual da globalização, a circulação de bens de produção e de consumo está em alta. A economia dita os rumos de um futuro de incertezas, em termos de riscos para as sociedades de hoje e de amanhã. O fato é que em um mundo tão competitivo quanto o de hoje, a educação e o conhecimento constituem o fator diferenciador no status econômico das potências mundiais. Em outras palavras: não há como fugir dos estudos, das pesquisas e dos conhecimentos tecnológicos se a ordem é o desenvolvimento econômico e social. Este, como se verifica, constitui um fator indispensável à reprodução do capital através da circulação de produtos e serviços.

O Brasil foi, até meados da década de 1950, um país de população predominantemente rural. Este fato refletia a realidade de que o Brasil era um país agrário, exportador de produtos com pouca ou nenhuma tecnologia. Este fato, segundo a concepção que se tinha em décadas passadas, representava uma das características dos países subdesenvolvidos ou “em desenvol-vimento”. Não ter indústrias, naquele tempo, era o mesmo que dizer, não tem desenvolvimento. Hoje a percepção é outra. O Brasil continua sendo um grande exportador de alimentos. No en-tanto a produção está quase que totalmente mecanizada e hoje se fala em agronegócio, agroin-dústria como algo extremamente lucrativo. Não precisamos apenas de indústria, precisamos também de alimentos. Neste sentido o Brasil é um dos grandes celeiros do mundo.

O fato é que em qualquer atividade econômica a condição de emprego está atrelada a condição técnica e profissional do trabalhador que pretende ser empregado. Cada vez mais o mercado está exigindo conhecimentos específicos de seus empregados. Neste sentido quais instituições públicas estão preparando os brasileiros para esta nova etapa do desenvolvimento econômico brasileiro? Como está a base (de modo geral) do ensino público no Brasil?7 A respos-

7 Quem conhece a sala de aula em escolas públicas no Brasil sabe que ali estão reunidas pessoas com as mais diversas bases familiares:

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ta a estas perguntas formam um quadro que revelará as perspectivas do país para as próximas décadas. Parece que a China entendeu bem este “dever de casa” e o resultado esta ai para todos verem, a China hoje é a maior economia do globo e experimenta as maiores taxas de crescimen-to econômico do mundo8.

A efetivação de políticas pública de ensino de qualidade constitui, como se observa, um imperativo para a inclusão social de milhões de brasileiros, dotando-os de capacidade técni-ca e científica que os oportunize bons postos de trabalho, o que por sua vez lhes garantirá uma vida digna.

O Brasil não pode se furtar a este dever, já que a Lei Fundamental do país, em diversas dispositivos proclama como essenciais a realização da dignidade da pessoa humana, a garan-tia dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, incisos III e IV), a garantia do desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, verifica-se que não há alternativa para o Brasil a não ser investir maciçamente em um sistema educacional de qualidade que possibilite ao povo brasileiro o acesso a um sistema de ensino de qualidade que valorize as potencialidades dos alunos, que pro-porcione uma vida digna aos professores deste sistema, que possibilite uma maior integração da família ao convívio familiar. Para tanto o Estado tem um extenso “dever de casa” para cumprir.

A questão da educação no Brasil perpassa por uma problemática muito mais ampla. A violência está embutida nas escolas públicas brasileiras. As estatísticas estão à disposição de quem queria comprovar. Em muitas escolas os professores não conseguem cumprir com seus cronogramas de atividades e com seus planos de ensinos, pois são ameaçados constantemente por alguns alunos. Em casos como estes não é incomum a relação entre consumo de drogas e tal indisciplina. O fato é que este o ambiente de estudo está se tornando um ambiente de hosti-lidades, onde o que menos se valoriza é o processo educativo como um todo.

O Brasil, ao romper com o regime ditatorial a que esteve sujeito por 20 (vinte) anos elaborou um texto constitucional onde a participação popular e da sociedade em geral repre-senta a razão de ser das políticas públicas estatais. Este constitui, como se observa, o principal

pessoas que querem estudar, pessoas que ainda não tem consciência da importância do ensino, pessoas desmotivadas, pessoas que estão ali, apenas e tão somente por uma questão de obrigação (para manter determinados benefícios como a bolsa escola, etc.), enfim, o quadro é de uma variedade de pessoas e de condições de vida que às vezes torna difícil a simples tarefa de conduzir uma aula.8 Segundo consta em matéria publicada na revista Veja, a China sacrifica as ideologias sempre que elas conflitam com a busca de resulta-do. Na educação, isso se expressa na definição do papel do professor. A China se deu conta de que precisava de professores bons e em grande quantidade. Dadas suas carências, montou um sistema em que o professor sai da faculdade mediano, e então é constantemente trabalhado e ajudado para que consiga ministrar aulas excepcionais. Um sistema em que os bons professores e as boas escolas subjugam os maus mestres das escolas ruins. Os chineses entenderam que é melhor ter quarenta alunos com um bom professor do que duas turmas de vinte, uma bem ensinada e outra sob a batuta de um incapaz. O professor é o centro gravitacional de todo o sistema. Pragmatismo, meritocracia, professores bem formados e premiados com dinheiro pelo bom desempenho, estudantes disciplinados e motivados por suas famílias. Essa é a fórmula do combustível da arma secreta chinesa para conquistar o mundo: a educação (Educação na China. Revista Veja. São Paulo. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/tema/educacao-na-china>. Acesso em 01 de fevereiro de 2012.).

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desafio do Estado brasileiro até o presente momento, pois não basta oportunizar a participação da população nos processos deliberativos das políticas públicas, mas aumentar o nível destes debates, das proposições e das cobranças. E isto só se faz a contento com uma melhoria no sis-tema educacional em geral.

Como já referimos em linhas passadas a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 205 dispõe que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família e deverá ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu prepara o para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Neste sentido, deve o Estado, a família e a própria sociedade fazer cada um a sua parte em prol da construção de uma sociedade mais esclarecida, que seja ciente de seus direitos e dos seus deve-res, que lute pela realização da justiça, enfim, que tenha voz ativa nos processos de elaboração e execução das políticas públicas que visam cumprir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, enunciados no artigo 3° da Carta de 1988.

Sem as transformações aqui sugeridas não há que se falar em democracia plena, nem em cidadania real, mas tão somente pode-se falar de uma democracia e de uma cidadania sim-bólicas, ou seja, tipos incompletos de democracia e de cidadania que não se prestam a viabilizar, em níveis aceitáveis e esperados, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e a realizar o princípio que constitui o fundamento de todo o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, a saber, o da dignidade da pessoa humana. Ademais, como já referido em linhas passadas, o Estado deve funcionar como um meio (e não como um fim em si mesmo) eficaz de realização dos direitos indispensáveis ao desenvolvimento da personalidade humana, dentre os quais a educação ocupa lugar de destaque.

REFERÊNCIAS

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DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

DHNet. O que é ética? 2012. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/textos/oque_e_etica.html>. Acesso em 06 de janeiro de 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

MELLO FILHO, José Celso de. Constituição federal anotada. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1986.

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SEN, Amatya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário – uma proposta de compreensão. Coleção Estado e Constituição – 5. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do país. São Paulo: Saraiva, 2010.

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A EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Walber de Moura Agra*

1 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO

A jurisdição constitucional é um instrumento indelével para a realização das finali-dades do Estado Democrático Social de Direito. Em todos os continentes, em maior ou menor grau, há um elastecimento das decisões judiciais para atender as demandas sociais. Não se pode mais pensar na divisão de poder nos moldes clássicos, para atender as cominações da Carta Magna, a jurisdição constitucional tem que ter um posicionamento mais atuante, muitas vezes entrando em searas que secularmente eram de competência de outros poderes. Daí a necessida-de imperiosa de se estudá-la.

A etimologia da palavra provém da soberania estatal, traduzindo-se na prerrogativa de concretizar o direito substantivo.1 A função da jurisdição é robustecer o princípio da soberania, que indiscutivelmente se configura como um apanágio inerente ao Estado. A soberania repre-senta a mais alta autoridade, o poder supremo dos entes estatais que é personificado nos dispo-sitivos legais, constituindo-se na “verdade específica” do Estado (PAUPERIO, 1979, pág.136). Explica o Professor Pinto Ferreira que a soberania é a propriedade de ser de uma ordem su-prema e, em razão dessa supremacia, se configura como independente nas suas relações com as pessoas de existência exterior (FERREIRA, 1998, pág. 122). Ao ser incumbido de garantir a efetividade de um ordenamento jurídico através da jurisdição, o Estado está manifestando a soberania que lhe é inerente (BARACHO, 1984, pág. 75).

O conceito de jurisdição constitucional, na acepção brasileira, ou giustizia costituzio-nale como preferem os italianos, ou constitution adjudication como a denominam os norte-a-

* Pós-Doutor pela Universidade de Bordeaux-Monstesquieu IV. Professor da Universidade de Pernambuco. Procurador do Estado. Advogado. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.1 Ensina Pontes de Miranda: “Anteriormente, nos comentários ao início do Código de Processo Civil, ao tratarmos do princípio da pretensão processual dirigida ao Estado, frisamos que a expressão “jurisdição”, no sentido de todo o poder público, seja legislativa, seja judiciária, seja executiva, revela conteúdo medieval. O sentido exato é o de poder dizer o direito (dicere jus),razão por que se há de exigir o pressuposto conceptual de julgamento, de “dizer” (dictio) qual a regra jurídica, o ius, que incidiu” (MIRANDA, 1997, pág. 78).

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mericanos, ou jurisdiccion de la constitución como denominam os espanhóis, ou verfassungs-gerichtsbarkeit, como denominam os alemães, configura-se de difícil definição, haja vista que já na sua formação abriga dois conteúdos semânticos de difícil precisão: jurisdição e Constitui-ção. No seu sentido objetivo a dificuldade é estabelecer o que é uma matéria constitucional, pois essa é ampliada por uma Lei Mater de extensão analítica como a brasileira, por motivo de se tentar garantir uma determinada estabilidade jurídica. Do ponto de vista subjetivo, a dificuldade consiste em delimitar a extensão de quem pode exercê-la, com a finalidade de evitar choques entre as instâncias diversas, em virtude de que o ordenamento brasileiro permite o seu exer-cício, tanto através do Supremo Tribunal Federal, quanto das instâncias judiciárias inferiores.

Biscaretti di Ruffia, que foi professor na Universidade de Milão, afirma que em senso objetivo a jurisdição constitucional abrange as funções constitucionais que têm a finalidade tutelar os direitos e interesses pertinentes à matéria constitucional; em senso subjetivo, está a indicar um órgão diverso da magistratura ordinária, para exercer essa função, geralmente com um procedimento diferente do utilizado pela jurisdição comum (afirmação válida apenas para os países que instituíram um tribunal constitucional) (RUFFIA, 1965, pág. 556).

Segundo Pedro Cruz Villalón, a jurisdição constitucional passou por um processo de desenvolvimento para assumir a sua atual feição. A derivação mais antiga da jurisdição consti-tucional é aquela política, denominada de jurisdição política, encontrada nos países europeus, que tem um nascimento anterior à jurisdição jurídica. Ela tinha a finalidade de pacificar as relações entre os sujeitos políticos, representantes de uma estruturação de poder, através do arbitramento das suas litigâncias por uma câmara ou uma assembléia. Em um segundo momen-to, ela se encontra preocupada em sedimentar a sua supralegalidade, estabelecendo que as leis infraconstitucionais devem se subordinar aos parâmetros da Constituição, firmando o controle de constitucionalidade. E em um terceiro momento, ela é associada à jurisdição dos direitos fundamentais, configurando-se como um instrumento para a sua concretização, realizando o reforço da tutela de determinados direitos (VILLALÓN, 1999, págs. 489-491).

O conceito de jurisdição constitucional, algumas vezes, é estabelecido com a mesma definição de garantias constitucionais, refletindo que o seu escopo maior é assegurar os direi-tos fundamentais. Nessa perspectiva, a extensão do conceito de jurisdição constitucional se resume a garantias constitucionais, para simbolizar a importância que os direitos fundamentais assumem no ordenamento jurídico. Essa perspectiva, ao restringir a amplitude do conceito de jurisdição constitucional, descura importantes esferas de sua atuação, o que não contribui para a sua integral percepção.

A jurisdição constitucional é a função estatal que tem a missão de concretizar os man-damentos contidos na Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas pos-sam normatizar a realidade fática. Esta exprime a intenção de estabilizar as relações sociais, de acordo com os parâmetros da Carta Magna, evitando o risco do arrefecimento de sua força normativa.

Esse conceito, como a terminologia já esclarece, tem como finalidade a concretização

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das normas contidas na Constituição Federal, impossibilitando a sua atuação na concretização de normas infraconstitucionais. Esta última função pode ser implementada pelas instâncias ordinárias do Poder Judiciário.

Destarte, seu alcance abrange toda a prestação jurídica compreendida nos dispositivos constitucionais, garantindo o princípio da universalidade de jurisdição e, conseqüentemente, resguardando o Estado Democrático Social de Direito. Se a jurisdição constitucional não for realizada segundo os parâmetros do regime democrático e dos direitos fundamentais ela deixa de ser um esteio do Estado Democrático Social de Direito e passa a ser uma chancela da arbi-trariedade.

Com o advento do Estado Social o conceito de jurisdição constitucional tem sofrido substanciais modificações, apartando-se de sua definição tradicional de jurisdictio, fundada no direito positivo, formatada dentro da distinção entre produção normativa e aplicação judicial. A jurisdição constitucional ganha novo relevo com as demandas sociais de um Estado cada vez mais complexo, que exige um direito principiológico, decretando a falência da exclusividade do Direito legislado, levando em conta princípios que mantêm a sincronia do ordenamento com a sociedade. Há um maior espaço de elaboração para as decisões judiciais, sendo os juízes le-vados muitas vezes a colmatar uma lacuna jurídica, para manter a eficácia da Constituição e a completude do ordenamento jurídico.

Apesar de a jurisdição constitucional ganhar mais força nos países que instituíram um Tribunal Constitucional específico, na sistemática adotada pelo Brasil, em que o Supremo Tri-bunal Federal tanto exerce a jurisdição constitucional, quanto funciona como última instância da jurisdição ordinária, ela também exerce uma importante função, no sentido de assegurar proteção para os dispositivos constitucionais, velando pela sua concretização.

A jurisdição constitucional compreende, além do controle de constitucionalidade, a regulamentação do processo de impeachment; os conflitos de atribuições; as garantias pro-cessuais contidas na Constituição; a tutela dos direitos fundamentais; a estruturação do Poder Judiciário; o delineamento do sistema federativo de Estado; a criação de partidos políticos; as normas do regime político etc. Dentre todas essas atividades, uma das mais relevante, de forma clara, é o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, com a finalidade de garantir a supralegalidade das normas constitucionais.

De forma esquemática, podemos dizer que a jurisdição constitucional compreende as seguintes atividades: a) proteção e garantia de concretização dos direitos fundamentais; b) con-trole de constitucionalidade das normas e atos normativos; c) controle e fiscalização do sistema eleitoral, englobando os institutos da democracia participativa, como o plebiscito e o referendo, com o escopo de velar pela lisura das eleições; d) funcionamento como instância judiciária, para assegurar o equilíbrio federativo, solucionando os litígios entre os entes componentes do Esta-do; e) demarcação dos limites de incidência das competências dos entes federativos; f) controle dos poderes públicos para que eles possam atuar com eficiência e atender ao bem comum da sociedade.

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2 DENSIFICAÇÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

A jurisdição constitucional representa um dos pilares básicos para o estabelecimento do Estado Democrático Social de Direito adquirindo um papel imprescindível para a concre-tização dos dispositivos constitucionais, ultrapassando, por causa desse motivo, os modestos limites de sua atuação atribuída por Montesquieu (BANDRES, 1997, pág. 10). Devido ao re-levante papel que ocupa no ordenamento jurídico, o aumento das prerrogativas da jurisdição constitucional representará o incremento nas funções da jurisdição ordinária.

Atualmente, assiste-se a um aumento no exercício das funções judiciárias e da jurisdi-ção constitucional em quase todos os países ocidentais. Afora os países que seguem o sistema do common law, pelas peculiaridades que lhes são inerente, essa preponderância de atuação não encontra um respaldo histórico de longa data, sendo forcejado mais por contingências fáticas, fruto do desenvolvimento do sistema econômico. A afirmação feita por Alexandre Hamilton, de que o Judiciário é o mais frágil dos três poderes, pois não dispõe nem da espada, nem da bolsa para garantir auto-executoriedade de suas decisões, por isso encontra-se ultrapassado pela evolução da sociedade.2 Tocqueville também não considera que o Poder Judiciário possa ser visto como um superpoder pois lhe faltam as condições necessárias para sobrepujar os demais poderes, uma vez que deve pautar as suas decisões pelos mandamentos legais.3

Para Neal Tate e Torbjörn são vários os fatores que contribuem para expandir a atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário. Em âmbito internacional, os citados autores elencam os seguintes fatores: a falência do socialismo totalitário do leste europeu e o desapare-cimento da União Soviética, deixando os Estados Unidos como a única superpotência, e como eles são o centro do judicial activism, a influência desse modelo foi avassaladora; o processo de democratização da América Latina, Ásia e África que possibilitou um maior desenvolvimento da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, alicerçando-se no princípio da legalidade; a influência da jurisprudência e da ciência política americana, que assumem grande importância por causa do sistema do common law; o significativo papel desempenhado pelas cortes interna-cionais, como a Corte de Direitos Humanos de Strasburgo (TATE; VALLINDER, 1995, págs.

2 “Qualquer um que analisar atentamente os poderes que formam um Estado poderá perceber que em uma Constituição em que eles sejam rigorosamente separados, o poder que apresenta um menor perigo para os direitos políticos sancionados pela Carta Magna será sempre o Judiciário, pela própria natureza das funções que ele desenvolve, haja vista que ele terá sempre as menores prerrogativas para obstacular ou afrontar os outros poderes. O Executivo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. O Legislativo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. Ele não apenas tem a bolsa, mas, absolutamente, estabelece as normas que delineiam os direitos e os deveres de cada um dos cidadãos. O Judiciário, ao contrário, não pode influenciar nem com a espada nem com a bolsa, não pode administrar nem a força nem a riqueza da sociedade e não pode proferir alguma decisão que seja verdadeiramente auto-executável” (HAMILTON, 1980, págs. 218-219).3 “Os americanos entregaram aos seus tribunais um imenso poder político; todavia, obrigou-os a atacar a lei apenas com meios jurídicos, dessa forma diminuíram em muito o perigo deste poder. Se os juízes pudessem se pronunciar contra uma lei de maneira teórica e geral; se pudessem tomar a iniciativa de censurar os legisladores, tornando-se partidário do interesse de algum partido, poderiam excitar todas as paixões que dividem o país e poderiam fazer parte dessa luta” (TOCQUEVILLE, 1999, pág. 104).

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2-4).O fator que mais força exerce para o alargamento da atuação da jurisdição constitucio-

nal é o fortalecimento dos direitos fundamentais, que ocorre de forma global, principalmente nas democracias ocidentais. Quanto maior for o recrudescimento dos direitos fundamentais, maior deverá ser a atuação da jurisdição constitucional para garantir a sua concretização. Ao mesmo tempo em que esta é uma de suas funções é uma forma de legitimar a expansão de sua atuação, além de garantir um direcionamento para a sua atuação.

Um maior aumento do âmbito de atuação da jurisdição constitucional também depen-derá do grau de preparo e do teor de reputação que gozam os seus membros. Quanto mais bem fundamentadas forem suas decisões e maior notoriedade de conhecimentos tiverem os seus componentes, maior serão a sua aceitabilidade no meio jurídico. De igual modo, no tocante à honorabilidade dos juízes, esta deve ser impecável, tanto na sua conduta pessoal como profis-sional.

A expansão da atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno res-trito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua esfera or-dinária. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte e a magistratura sempre desempenharam um papel ativo na sociedade, inclusive construindo a doutrina do judicial activism; na Alemanha, há vários posicionamentos do Tribunal Constitucional assegurando a concretização dos direitos fundamentais; na Espanha, além das firmes decisões do seu Tribunal Constitucional, pode ser mencionado o caso do pedido de extradição de Pinochet; na Itália, a campanha promovida nos anos noventa contra a corrupção política e a máfia; na França, o combate aos desmandos polí-ticos etc.

Na esfera penal a atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário tem se mostrado bastante desenvolvida, principalmente nos países europeus. Nessa função há uma recuperação de vetores éticos da política, como o princípio da moralidade, do interesse público etc. A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário nesses casos são chamados a intervir para assegurar a substancialização da seara política, mediante princípios ético-morais, ao mesmo tempo em que contribuem para suprir o déficit de legalidade que existe no gerenciamento da coisa pública.

Nos países periféricos, que não têm uma longa tradição de respeito às leis, a jurisdição constitucional nunca desempenhou o seu papel de forma autônoma. Na maioria dos países, ela sempre foi atrelada à elite política e econômica, servindo como um órgão que tem a missão de chancelar as decisões políticas. Todavia, mesmo com essa limitação, em virtude dos fenômenos anteriormente mencionados, tanto nacionais como internacionais, assiste-se nos países periféri-cos, de forma paulatina, ao fortalecimento da jurisdição constitucional como forma de propiciar uma maior proteção às disposições jurídicas, principalmente às normas constitucionais.

Essa extensão na atuação da jurisdição constitucional e do próprio Poder Judiciário tem gerado atrito com os demais poderes, o que motiva o Poder Legislativo a formular vários projetos legislativos com o desiderato de podar as prerrogativas dos tribunais constitucionais

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e da magistratura, em sentido geral. Mas, mesmo que os projetos de lei sejam concretizados, a amplitude da atuação das Cortes Constitucionais e dos Tribunais não será arrefecida, em pri-meiro lugar, porque há uma crise no arcabouço normativo, fruto da sociedade pós-moderna, que cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque diante da caótica e abundante produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma interpretação técnica para saber qual a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso concreto. Essa produção caótica esquece de uma parêmia clássica do processo legislativo: de que as leis devem ser simples e claras, construídas de maneira a mais precisa possível, a fim de evitar problemas na sua interpretação (CARBASSE, 1998, pág.293).

Como a tendência das disposições normativas é a de ser mais genérica e abstrata para atender às necessidades da coletividade, o alcance da extensão das decisões da jurisdição cons-titucional e do Poder Judiciário, de uma forma geral, não tenderá a diminuir, o que se leva a buscar uma limitação legal para essa atuação e uma fundamentação de legitimidade, que possa colocar essas importantes decisões sob o controle da população.

O aumento da atuação do Poder Judiciário, como um todo nas sociedades ocidentais, tem levado muitos autores a sustentar que está ocorrendo uma involução no Estado Democrá-tico Social de Direito, transformando-se em um Estado Jurisdicional, em decorrência de que o Judiciário e os tribunais constitucionais não adquirem sua legitimidade diretamente do sufrágio universal.

Outra conseqüência dessa tendência é uma maior regulamentação da esfera política, ou seja, uma jurisdicização da política, com o objetivo de atrelá-la ao bem comum e permitir uma licitude dos pleitos.4 Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se imiscuir em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em muitas de suas decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz política resta clarivi-dente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de acordo com as suas conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição.

O incremento na atuação do Poder Judiciário e, principalmente, da jurisdição consti-tucional não significa, por si só, em uma vantagem ou desvantagem. Se ele se transformar em um instrumento de produção normativa, sem o estabelecimento de parâmetros com a sociedade, através de uma legitimação auto-referencial, baseada em procedimentos judiciais, será uma atuação danosa, que afetará o regime democrático e os direitos fundamentais. Entretanto, se essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema de freios e contrapesos, com o escopo de garantir os direitos fundamentais e o aperfeiçoamento do regime democrático, será uma atividade benéfica e ensejará a real concretização de um Estado Democrático Social de Direito.

4 “A transformação da política em direito vem, digamos de forma paulatina, sendo criada não pelo legislador antecipadamente, mas pelos magistrados diante do caso singular, como lex specialis. É um tipo de produção normativa que se denomina de criação jurídica do Direito” (CALAMANDREI, 1965, pág.642).

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3 A TENSÃO ENTRE O POLÍTICO E O JURÍDICO

O exercício da jurisdição constitucional pelos tribunais constitucionais pode ocasionar uma tensão entre a esfera política e a esfera jurídica, pondo em evidência diferentes níveis de legitimação e suscitando algumas perguntas: as razões jurídicas devem preponderar em detri-mento das motivações políticas ou as motivações políticas devem preponderar em detrimento das razões jurídicas? Quais os limites para o exercício de decisões judiciais que contrariam o posicionamento dos agentes políticos? Como um órgão que não recebe legitimidade direta do sufrágio universal pode controlar um outro órgão que é estabelecido diretamente pelo povo ? A resposta a estas perguntas pode começar a ser delineada na análise das diferentes funções e dos diversos princípios que orientam essas duas searas.

O conflito entre a seara política e a seara jurídica esconde na verdade um conflito entre duas funções – a função fiscalizadora do órgão que exerce a jurisdição constitucional e a fun-ção de legislar por parte dos membros do legislativo5 – e dois princípios que, apesar de estarem em várias oportunidades em lados opostos por conjunturas fáticas – o princípio majoritário e o princípio da supralegalidade constitucional –, têm em comum a sua construção a partir do princípio da soberania popular, sendo que o segundo ostenta um valor mais densificado por ser oriundo do Poder Constituinte.

A dicotomia entre a esfera política e a jurídica não tem uma taxionomia antípoda na relação entre eles, variando muito de acordo com as condicionantes sócio-político-econômicas. Essa tensão existe porque a jurisdição constitucional exerce a função de adequar as decisões políticas as diretrizes estabelecidas pela Constituição. Todavia, algumas decisões judiciais ao invés de cercear as decisões política, maculando-as de inconstitucionais, pode solidificá-las, ao afirmar, por exemplo, a constitucionalidade de determinadas medidas imputadas como incons-titucionais por outros órgãos judiciais.

Os dois princípios são compatíveis e sincrônicos quando há um respeito pelas normas constitucionais, prevalecendo o princípio da supralegalidade constitucional todas as vezes que o princípio majoritário afronta a Constituição e não obtém legitimidade suficiente para o processo de transconstitucionalização (SALDANHA, 1986, pág. 78).

É inegável que o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal possuem estrutura-ção, composição e princípios diversos, o que não significa que não possam trabalhar de forma harmônica, com seus campos de atuação delimitados. O primeiro, como é legitimado direta-mente pelo princípio da soberania popular, tem a função de representar os interesses da maioria; o segundo, que não pode ser legitimado diretamente pela soberania popular, tem o escopo de concretizar os mandamentos constitucionais, protegendo os interesses da minoria que encontra respaldo na Constituição. Ambos devem exercer as suas atividades em sincronia para que tanto

5 “Em primeiro lugar, parto do princípio de que existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é um mero executor da Constituição” (VIEIRA DE ANDRADE, 1995, pág. 76).

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a maioria quanto a minoria tenham seus direitos preservados.Tanto o Poder Legislativo como o Supremo Tribunal Federal são órgãos importan-

tíssimos para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, ajudando a encontrar soluções que possam resolver o grave problema de exclusão social que aflige a sociedade brasileira. A grande conexão entre esses dois órgãos deve ser estabelecida no sentido da defesa dos direitos fun-damentais, que é o requisito essencial para a construção da sociedade desejada por todos os brasileiros.

O problema consiste em como delimitar o espaço de atuação da jurisdição constitu-cional e do Poder Judiciário para que o espaço político não seja arrefecido, porque de acordo com o posicionamento defendido por Oppenheim toda interpretação judicial é uma forma de criação normativa (OPPENHEIM, 1995, pág.293). Quando há uma decisão judicial, segundo o mencionado autor, há uma produção jurídica, que adentra na competência do Poder Legislativo, e, portanto, causa um arrefecimento da seara política, o que ocasiona um conflito entre essas duas dimensões.6

A função da jurisdição constitucional não é a de criar normas constitucionais, caben-do-lhe interpretá-las, se bem que é difícil distinguir quando há a realização de uma produção jurídica ou uma interpretação judicial, por isto, que a composição do órgão que exerce a juris-dição constitucional deve ser a mais democrática possível.

Embora seja oportuno frisar novamente que analisar a natureza da interpretação ju-dicial foge dos limites estipulados para o tema proposto, o que não quer dizer que toda inter-pretação judicial possa ser considerada como uma criação normativa, nem que o risco de se adentrar na esfera política esteja afastado. A função da jurisdição constitucional é aplicar os dispositivos normativos contidos na Constituição, o que, em decorrência da própria natureza da sua atividade, implica em um grande teor de discricionariedade, devido às várias possibilidades de aplicação da norma.

A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais tensas existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões tomadas pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua população, tendo como uma de suas principais característica a discricionariedade de sua escolha. O Direito tem como uma de suas principais características, de modo inverso, a previsibilidade de sua normati-zação. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais características, o Direito e a Política podem gerar atritos. 7

6 Também defende a mesma premissa Eugenio Bulygin: “A cognição legal é limitada pela determinação do conteúdo estipulado pelo princípio geral aplicado ao caso concreto, mas como existem várias possibilidades de aplicação, nas quais o juiz pode escolher uma para incidir no caso proposto, então, diversas normas podem ser criadas do mesmo princípio geral [...] desde que todas elas estejam se desenvolvendo dentro dos parâmetros da norma geral, o ato de escolher uma dentre essas possibilidades não é um ato de cognição, mas um ato de criação: é uma decisão política” (BULYGIN, 1995, pág. 14).7 “O problema política-direito no marco do Estado como forma política é insolúvel teoricamente. Não admite mais soluções do tipo prático. Pois, por uma parte, é inegável que o Estado é o ente criador do Direito e não é, portanto, possível a submissão do criador a criatura de forma integral. Por outro lado, tão pouco cabe dúvidas de que a sociedade civil sobre a qual se eleva o Estado é uma sociedade que tende

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Essa possibilidade de tensão entre a seara política e a seara jurídica tem gerado uma oposição contra uma maior atuação da jurisdição constitucional.8 Devido à experiência do New Deal, em que a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais várias de suas me-didas, setores políticos ligados mais ao espectro da esquerda, que defendem uma intervenção do Estado na economia para garantir o desenvolvimento econômico e assegurar direitos so-ciais, vêem com uma certa desconfiança o aumento da atuação da jurisdição constitucional, pelo fato de que esse órgão não conta com a legitimação direta da soberania popular, podendo se constituir em um órgão autônomo e passar a decidir independente dos anseios sociais. Na Grã-Bretanha, Suíça e nos países Escandinavos os partidos socialistas e trabalhistas apenas recentemente vêm admitindo uma maior atuação da jurisdição constitucional (VALLINDER, 1995, págs. 20-21).

A política, em uma concepção habermasiana, deve ser entendida como um locus onde se desenvolvem as relações vitais do senso ético, uma forma de reflexão sobre os nexos deon-tológicos da sociedade, impondo aos cidadãos a consciência de sua dependência recíproca. O espaço público deve se regulamentado no sentido de propiciar uma maior densidade dos prin-cípios éticos. A regulamentação da esfera política, assim, deve ser implementada pelos agentes políticos que foram votados pelo povo e não pelos membros que compõem o órgão que exerce a jurisdição constitucional.

Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser faci-litada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa, sem o recurso de termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá ser melhor definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu texto permite an-tever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto constitucional não for escrito de forma precisa, agasalhado muitas normas programáticas, haverá a ausência de uma definição para a atuação da jurisdição constitucional, o que ensejará a prática de decisões judiciais de cunho político.9

Esse tipo de afirmação, de que a demarcação entre a política e o direito pode ser rea-lizada pela construção de mandamentos constitucionais de forma precisa, padece de elementos fáticos para a sua fundamentação. Primeiro, porque qualquer texto normativo pode ser objeto de análise, podendo-se modificar o seu conteúdo normativo, mediante o método hermenêutico uti-

a se configurar como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas e tende , assim, inequivocamente à substituição do poder arbitrário e imprevisível por um poder regrado e controlável. Nenhum destes dois elementos podem ser suprimidos. Ambos coexistem mais ou menos de forma harmoniosa ou contraditória, mas sempre em tensão. Nesse contexto é que se instalam as relações entre a política e o direito. Sim, é possível submeter por completo o Estado ao Direito, também é possível estruturar inteiramente um Estado à margem do respeito às normas jurídicas. Todavia, o que interessa é ressaltar os seguintes extremos: 1) que as sociedades estatais têm oferecido ao longo da história da humanidade exemplos tanto de melhor controle do poder político pelo Direito, conhecido hasta la fencha (democracias ocidentais), como a subtração mais bruta do poder do Estado do controle das normas jurídicas (ditaduras fascistas); 2) que a justiça constitucional é o instrumento histórico mais desenvolvido que se tem conhecimento ate hoje para a justificação da política” (ROYO, 1988, págs. 14-15).8 Esclarece Pizzorusso: “Se analisarmos os problemas do Poder Judiciário em uma perspectiva não exclusivamente italiana, devemos nos interrogar, infelizmente, das razões por que muitos países apresentam, especialmente na segunda metade do século XX, um crescente papel exercido pelos órgãos jurisdicionais ou órgãos independentes e as reações que este processo determina”. PIZZORUSSO, Alessandro. Giustizia e Giudici. Disponível na Internet: http://www.associazionedeicostituzionalisti.it. Acesso em: 04/03/2004. 9 A exemplo de Danilo Zolo, Javier Perez Royo etc.

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lizado. A norma jurídica mais precisa pode ser modificada por recursos hermenêuticos. Depois, é praticamente impossível a elaboração de uma Constituição sem a utilização de princípios, que pela sua própria natureza, apresentam uma densidade semântica aberta. Por fim, a utilização de normas programáticas configura-se de suma importância, principalmente em países periféricos, onde esse instrumento jurídico se mostra eficaz para a concretização dos objetivos estabeleci-dos pelos legisladores constituintes, representando as mais legitimas aspirações da sociedade.

De forma precisa, Torbjörn Vallinder define o processo de judicialização da política: “A expansão da atuação dos tribunais e dos juízes acarreta a conseqüente redução de atuação das esferas política e administrativa, isto é, a transferência da produção normativa do Poder Legislativo, do Executivo e das agências administrativas para os tribunais; significa da mesma forma a expansão do método de produção normativa da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário para fora de sua seara de atuação específica. Portanto, pode-se dizer que o processo de judicialização da política essencialmente consiste em modificar o procedimento de alguma coisa para a forma de um procedimento judicial” (VALLINDER, 1995, pág. 13).

Torbjörn Vallinder elaborou um interessante quadro comparativo mostrando as dife-renças de resolução dos conflitos pela Suprema Corte norte-americana e pelo Poder Legislativo. Com relação aos participantes, no primeiro atuam duas partes e um terceiro que é o juiz, no segundo, atuam diversas partes. Referente ao método de trabalho, a Suprema Corte realiza um processo ouvindo os argumentos das partes para depois valorá-los; no Poder Legislativo o método é o da negociação, através de compromissos pactuados, geralmente efetuados fora do alcance da opinião pública. Quanto ao processo de produção normativa, o primeiro o realiza sob a decisão imparcial de um juiz, e o segundo através do princípio majoritário. Com relação ao modo de concretização de suas decisões, a Suprema Corte os realiza por intermédio da apreciação de um caso particular, prestando atenção aos precedentes judiciais, principalmente aos relacionados ao judicial review, já o Poder Legislativo concretiza suas decisões através de normas genéricas e abstratas. Inerente às implicações das decisões tomadas, o primeiro as es-tabelece diante dos casos concretos e dos dispositivos normativos inerentes à matéria, enquanto o segundo as estabelece de acordo com os valores preponderantes na sociedade (VALLINDER, 1995, pág. 14).

Como o regime democrático foi transformado em um dogma em grande parte dos paí-ses e a expansão da atuação da jurisdição constitucional não é sustentada de forma direta pelo princípio da soberania popular, a maior crítica que se faz contra o processo de judicialização é que ele afronta a democracia. Muitos doutrinadores, a exemplo de Ingeborg Maus, consideram o processo de extensão da jurisdição constitucional uma ameaça contra o regime democrático, o princípio majoritário e o princípio da responsabilidade popular, no sentido de que o povo pode escolher os seus representantes.

Acontece que em um Estado Democrático Social de Direito as decisões políticas, para serem aplicadas, devem contar com a legitimação da população, por intermédio de instrumen-tos, principalmente da democracia participativa. Já as decisões da jurisdição constitucional e do

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Poder Judiciário não se amparam de forma direta no sufrágio universal, mas de forma objetiva têm a missão de concretizar os dispositivos da Constituição Federal. O ponto em comum entre a seara jurídica e a política é o respeito pelos mandamentos constitucionais e pelas normas do ordenamento jurídico, de uma forma geral. Portanto, a relação entre a política e o direito não será sempre conflitiva porque as duas searas devem subordinar as suas atuações aos manda-mentos constitucionais.

Quanto maior forem a falta de sintonia dos representantes políticos com os anseios da sociedade, a presença de corrupção para a tomada de decisões e o imobilismo causado pelo antagonismo social, menor será a legitimação da classe política. Por outro lado, quanto maior for a reputação dos membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional e maior o grau técnico de suas decisões, maior será o seu grau de credibilidade e maior serão as possibilidades de legitimação de sua atuação. Como conclusão, depreende-se que a debilidade dos agentes incumbidos de proferir as decisões políticas pode favorecer uma maior atuação da jurisdição constitucional nesta seara.

Para que haja o desenvolvimento do Estado Democrático Social de Direito de forma harmônica, sem o conflito dos poderes estabelecidos, as decisões políticas têm que se ater aos parâmetros legais e as decisões jurídicas não podem extrapolar os seus limites e desempenhar o papel reservado aos atores políticos, principalmente, a jurisdição constitucional que exerce um grande poder pelo seu papel de intérprete máximo da Carta Magna. A jurisdição constitucional tem a importante missão, dentro de uma sociedade pluralista, de demarcar os limites de inci-dência das decisões políticas, para que os princípios almejados pelos legisladores constituintes sejam preservados. O que não quer dizer que ela não deva direcionar o desenvolvimento de suas atividades pelos dispositivos contidos na Constituição.

Uma das causas que mais influenciam a expansão da jurisdição constitucional no cam-po das decisões políticas é a paulatina perda de legitimidade do processo político. A complexi-dade do debate político, o poder econômico, a falta de locais para o debate público, bem como a concentração dos meios de informação são algumas das razões para a perda de legitimidade dos representantes populares. Como a classe política se apresenta distante da população, a atua-ção da jurisdição constitucional é vista como um avanço, principalmente se o seu objetivo for concretizar um direito fundamental.

Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara política e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos dispositivos constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e que tanto o Po-der Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função, pudessem fiscalizar a atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos ditames da Constituição.10

10 “E o que será no futuro? As perspectivas são claramente diferentes de país para país, dependendo da tradição constitucional e da situação política. Portanto, não se pode definir se o desenvolvimento do processo de judicialização será revertido ou mesmo paralisado. Apresenta, no momento, alguma expansão, como no leste europeu. A Hungria, por exemplo, promulgou uma declaração de direitos e instituiu um tribunal Constitucional. Em contra partida, regimes ditatoriais têm sido estabelecido fora do mundo ocidental. No final, em muitos países, um novo equilíbrio pode ser obtido entre os direitos dos cidadãos e os direitos e obrigações da maioria” (VALLINDER, 1995, pág. 24).

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A essência da crítica exposta contra a jurisdição constitucional é a falta de legitimida-de popular para amparar as suas decisões. O erro desse argumento é que a jurisdição constitu-cional não é ontologicamente contraditória ao regime democrático, muito pelo contrário, pode se constituir em um importante instrumento para o seu aperfeiçoamento. O órgão que exerce a máxima função judicante pode ser formado com a participação dos poderes estabelecidos, o que evita que ele perca o laço com os interesses da sociedade. Como sustenta Neal Tate, o princípio democrático se configura como um dos requisitos para o processo de judicialização, existindo uma relação bilateral entre o princípio democrático e a jurisdição constitucional (TATE, 1995, pág. 29).

A tensão entre o universo político e a jurisdição constitucional, em decorrência da taxionomia de cada uma dessas searas e da densidade de poder que representam, jamais pode ser prefixada de forma rígida, entretanto, essa indeterminação pode ser arrefecida pela revalo-rização da supremacia das normas constitucionais, pela especificação do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais e pela sua consolidação por intermédio do entrenchment. Atrelando essa maior atuação da jurisdição constitucional a missão de efetivar os direitos fundamentais, os confrontos entre a seara política e a jurídica será muito menor.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A jurisdicização da esfera política, considerada como uma tendência irreversível do Estado Democrático Social de Direito, provoca em várias searas um choque entre a atividade da jurisdição constitucional e o regime democrático, o que engloba as estruturas que representam a democracia representativa. O objetivo desta pesquisa é explicitar que a maior incidência da atuação da jurisdição constitucional, para garantir a concretização dos direitos fundamentais, não arrefece o regime democrático, muito pelo contrário, aprimora o seu funcionamento.

O princípio majoritário é um dos componentes da legitimação da jurisdição consti-tucional, mas não é o único. Um assentimento mais denso da tutela constitucional pode ser aferido pelos direitos fundamentais que formam invariáveis axiológicas mais consolidados do que o princípio majoritário que é muito cambiante. Não obstante, o princípio majoritário se configura em um elemento essencial para o funcionamento do regime democrático e não pode ser relegado.

A função da jurisdição constitucional como instrumento de garantia dos dispositivos constitucionais é uma realidade que paira acima de qualquer crítica, mormente em países cujas Constituições são rígidas, separando de forma nítida as normas constitucionais das normas infraconstitucionais. Indubitável o seu papel para o desenvolvimento de um Estado Social De-mocrático de Direito, fazendo com que a Lei Maior possa ser aplicada integralmente. Todavia, a Corte Constitucional não pode ser um órgão preponderante em relação aos outros poderes e até mesmo acima das leis constitucionais. A sua seara de atuação está circunscrita a um fator teleológico: a aplicação dos mandamentos constitucionais, densificando a concretude dos direi-

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tos fundamentais. A jurisdicização constitucional não é um mal em si, mal é a ausência de legiti-

midade de suas decisões, a afronta de postulados constitucionais ou o cerceamento dos direitos fundamentais. As decisões judiciais têm que ser tomadas a partir de um processo que promova amplas discussões na sociedade para que ela possa realizar a formação política de um consenso, tomando como parâmetro as normas jurídicas.

Como conclusão pode-se afirmar que a jurisdicização constitucional não é intrinseca-mente contrária ao regime democrático, seu funcionamento, tomando como parâmetro a Cons-tituição, ajuda a fortalecer a participação popular nas decisões políticas e incentiva a consoli-dação da democracia. Fazendo parte os direitos inerente à cidadania da quinta dimensão dos direitos fundamentais e sendo esses direitos uma das bases da legitimação da jurisdição cons-titucional, não pode haver anacronismos entre a tutela da Constituição e a participação política dos cidadãos, já que um constitui pressuposto do outro.

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Enviado em 16 mar. 2015Aceito em 30 abr. 2015

A (IN)JUSTIÇA DO DIREITO BUROCRATIZADO

Pedro Savi Neto*

RESUMO: O presente artigo objetiva proceder a uma reflexão filosófica sobre Direito, burocracia, processo e sobre as articulações entre essas con-struções racionais e a questão da justiça. É uma reflexão sobre a violência da burocracia processual e o sufocamento do instante presente, pensado como único momento possível para a construção da justiça, materialmente pensada. Palavras-chave: Justiça. Direito. Burocracia. Violência.

1 INTRODUÇÃO

Ancorado na mesma crença racional do método científico moderno, de caráter prepon-derantemente técnico e cada vez mais especializado, o Direito é entendido como sendo um pro-cedimento racional e burocrático de produção de justiça. Assim como a racionalidade burguesa se mostrou capaz de estabelecer regras para a produção de bens materiais em larga escala, ao preço da alienação dos produtores de tais bens do resultado de seu trabalho, o Direito é apre-sentado como um mecanismo de produção de justiça em escala, retirando de cada indivíduo a sua autêntica, e como se defenderá legítima e verdadeira, responsabilidade, ou seja, sua parcela de participação na viabilização de um momento justo, enquanto materialidade. Tal crença é facilitada pela referida tecnicização do Direito; assim como ao operário, no processo produtivo, bastava cumprir com a sua tarefa, descolada da fundamentação, do motivo e do resultado, os profissionais do Direito, cada vez mais tecnicamente especializados, funcionam como meros repetidores da lógica do sistema.

Movidos pela mesma lógica da produção de bens de consumo, a maioria dos chama-

* Professor de Filosofia da Educação do Curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coorde-nador e Professor de Ética da Especialização em Gestão da Educação da PUCRS. Advogado; Bacharel, Licenciado e Mestre em Filosofia, na área de Ética e Filosofia Política; Doutorando em Filosofia da Educação pela PUCRS. E-mail: [email protected].

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dos “operadores do Direito” realizam o seu “papel processual”. Todo o procedimento judicial já foi pensado. Todos os atos processuais já foram pré-vistos. Pelo princípio da legalidade, tão caro e efetivamente importante ao Direito e ao Estado Democrático de Direito, não poderia ser diferente. A pré-visão é uma segurança às partes no processo judicial. A burocracia, enquanto procedimento especializado, é apresentada como necessária.

Contudo, e esse é o ponto, a falta de capacidade, quiçá até mesmo de oportunidade, para a realização de uma verdadeira e efetiva crítica, de uma apropriada reflexão sobre o que é justiça e, talvez, principalmente, sobre o que não é justiça, permite que o processo e que a burocracia sirvam muito mais como um mecanismos de (re)produção de injustiça do que de produção da mais pálida representação de justiça.

Nesse contexto, no qual as relações mais concretas são esterilizadas e tratadas como se fossem um mero produto de uma racionalidade já pensada, o judiciário e o processo buro-crático, como inquestionáveis produtos prontos de uma razão instrumentalizada, efetivamente podem produzir algum resultado diverso daquele que foi concebido junto com eles? Qual o espaço que efetivamente existe no interior de um procedimento já pensado para a realização de alguma justiça? Ainda além, e essa talvez seja a questão sintética fundamental, o procedimento concebido racionalmente, capaz de fabricar tantos bens de consumo, pode, também, “fabricar a justiça”?

O presente artigo, portanto, é uma reflexão filosófica sobre Direito, burocracia, pro-cesso, e sobre o seu sentido e, por óbvio, sobre a questão da justiça. É uma reflexão sobre a violência da burocracia processual e o sufocamento do instante presente, pensado como único momento possível para a construção de alguma justiça.

2 O NASCIMENTO DO DIREITO BUROCRATIZADO E A SUA RELAÇÃO COM A JUSTIÇA

A obra de Max Weber (1864-1920) descreve detalhadamente o caminho entre o desen-cantamento do mundo e a concepção de um Direito burocratizado. A ideia de desencantamento do mundo está fortemente presente na obra de Weber:

A intelectualização e a racionalização geral não significam, pois, um maior conhecimento geral das condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber ou a crença em que, se alguém simplesmente quisesse, poderia, em qualquer momento, experimentar que, em princípio, não há poderes ocultos e imprevisíveis, que nela interfiram; que, pelo contrário, todas as coisas podem – em princípio - ser dominadas mediante o cálculo. Quer isto dizer: o desencantamento do mundo. (WEBER, 1917, p. 13)

Desencantar o mundo quer representar a eliminação dos mitos e a substituição da ima-ginação e da fé pelo saber racional. E, seguindo na mesma linha traçada por Weber, Adorno e

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Horkheimer vão afirmar que “O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).

No projeto do desencantamento do mundo, a racionalização passou a ser entendida como o processo que consistia em uma sistematização, intelectualização, especialização, tecni-ficação e objetivação crescentes em todos os âmbitos da vida. Racionalizar significaria produzir um processo calculável e previsível.

A submissão da realidade à calculabilidade e previsibilidade prometidas pela raciona-lidade despertou o interesse dos Estados, pois a burocracia poderia ampliar as suas esferas de atuação e de intervenção sobre as mais diferentes necessidades vitais, e do poder econômico dominante no então crescente capitalismo burguês moderno, visto que passou a haver a necessi-dade de racionalização dos recursos humanos e de sua utilização. Zygmunt Bauman vai afirmar sobre a aplicação universal da razão que:

A sociedade “principalmente coordenada”, talvez racionalmente projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a construir (...). A “principal coordenação” racionalmente projetada se ajusta igualmente bem a uma escola a um hospital, assim como se ajusta a uma prisão e a um asilo de pobres; e descobrimos que tal universalidade de aplicação faz com que mesmo a escola e o hospital pareçam uma prisão ou um asilo de pobres (BAUMAN, 1998, p. 102).

Apoiada na revolução industrial, a ideia de que a máquina seria superior a todos os métodos não mecânicos de fabricação de bens serviu de base para o argumento de que a buro-cracia, igualmente, seria a melhor forma de organização, pois ganharia em precisão, rapidez, univocidade, oficialidade, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação, economia de custos materiais e humanos.

Alegadamente na busca dos mesmos supostos benefícios propiciados pela burocracia, o Direito também foi-se tornando cada vez mais burocratizado. O que se afigurava plenamente razoável, pois um Direito exercido em conformidade com regras genéricas e abstratas, que ex-cluiriam a ação arbitrária do detentor do poder, tornando o exercício deste objetivo, impessoal, previsível e calculável, é racionalmente compreensível e defensável, conforme argumentado por Adorno e Horkheimer:

As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. “Não é a regra: ‘se adicionares o desigual ao igual obterás algo de desigual’(Si inaequalia addas, omnia erunt inaequalia) um princípio tanto da justiça quanto da matemática? E não existe uma verdadeira coincidência entre a justiça cumulativa e distributiva por um lado e as proporções geométricas e aritméticas por outro lado?” – Bacon – A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. ‘Unidade’ continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell. O que se continua exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades

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(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).

No processo de racionalização, a ação é entendida como racional na medida em que a calculabilidade dos meios aumenta a previsibilidade de consecução dos fins. E é exatamente nesse ponto que se enreda de maneira grave a relação que se pretende discutir entre Direito e justiça, pois na origem de qualquer Estado capitalista burocratizado os interesses econômicos representam o fator mais poderoso na formação do Direito, porque a criação e manutenção des-te sempre depende da adesão de grupos sociais, e estes, em geral, constituem-se em torno de um interesse econômico. Ou seja, a constituição (e a manutenção também) do Estado e do Direito está radicalmente ligada aos interesses econômicos dominantes.

Nessa medida, o capitalismo moderno burguês obrigou o Direito a racionalizar-se, pois a economia racional necessitava de um instrumento que lhe proporcionasse previsibilidade, e este não poderia ser outro senão um Direito racional e previsível. É evidente que na elabo-ração de uma legislação, que verse sobre Direito Material ou Direito Processual, é possível a atribuição de uma carga de previsibilidade dos seus resultados. Assim sendo, o processo buro-cratizado, tanto legislativo quanto judicial, pôde, desde sua origem, ser orientado para alguma finalidade: no caso, para o fortalecimento e manutenção do poder que o instituíra.

Ora, considerando-se que a empresa capitalista moderna, cuja participação afigura-va-se como preponderante no nascimento do Direito, baseava-se, internamente, sobretudo no cálculo, ela necessitava de um aparato jurídico cujo funcionamento pudesse ser calculado ra-cionalmente de acordo com normas gerais, da mesma forma que se pode calcular o rendimento previsto de uma máquina. As empresas modernas só conseguiram se estabelecer

“...onde o juiz como num Estado burocrático com suas leis racionais, é mais ou menos um autômato regido por artigos, ao qual se enfiam guoela abaixo as atas dos processos juntamente com os custos e honorários, e ele devolve a sentença junto com um arrazoado mais ou menos convincente, isto é, sua atividade é de toda forma, de um modo geral, previsível” (WEBER, 1993, p. 44).

O Direito passa a ser visto como algo desprovido de toda e qualquer santidade, na me-dida em que se assume como um aparato racional e técnico que pode ser orientado à busca de qualquer fim. E as inerentes especialização e tecnicização burocráticas contaminam o Direito de forma a cada vez mais torná-lo afastado e incompreensível para a maior parte dos leigos. Essa é uma das características da racionalização: a esterilização de qualquer ferramenta que se encontre fora da razão dominante.

Esse afastamento cada vez maior entre Direito, justiça e a massa de pessoas, repre-senta, desde a perspectiva que aqui nos interessa, a grande denúncia realizada por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento no sentido de que o esclarecimento se torna, nova-mente, mito.

Com efeito, o esclarecimento produziu seus próprios mitos: a ciência, o capitalismo, o

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positivismo, o Direito burocratizado etc. De acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 24), “o preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exer-cem o poder”. O esclarecimento, enquanto repetição, apresenta-se cada vez mais semelhante à mitologia, transformando o pensamento em mera tautologia, em razão instrumentalizada.

O mito grego poderia ser representado pela crença da realização da justiça pela deusa Diké. O esclarecimento, que veio para desencantar a mitologia e que prometeu a realização da justiça pela operação burocrática, apenas substituiu a deusa em sua tarefa mitológica de realizar a justiça. O tarefa ética de cada um foi terceirizada ao Estado com base na crença de um Direito burocratizado capaz de “fabricar” justiça.

3 O PROCESSO BUROCRÁTICO DE “FABRICAÇÃO” DA JUSTIÇA

Estendendo o argumento acima para a questão fundamental do presente artigo, temos que a justiça é uma qualidade, um valor, que foi imposta como sendo passível de realização e, sobretudo, da responsabilidade do Estado. Na elaboração de qualquer modelo de Estado, é criado um aparato racional, um procedimento ou diversos procedimentos, que, supostamente, se prestam à consecução da justiça.

A partir daí, a confusão e a falta de clareza conceitual, que nunca interessam à filoso-fia, se instauram, sendo amplificadas por denominações e expressões como: justiça eleitoral, o fato das pessoas possuírem causas na justiça, tribunal de justiça (praticamente um templo) etc. Tal confusão atinge a filosofia e os pensadores do Direito que se ocupam com complexas teorias da justiça, as quais, em sua maioria, tratam da justiça efetivamente como um resultado possível de um processo burocratizado.

Essa falta de clareza leva à crença de que o Direito é o limite e a única instância da justiça, conforme observado por Adorno e Horkheimer: “…tanto a justiça mítica como a escla-recida consideram a culpa e a expiação, a ventura e a desventura como os dois lados de uma única equação. A justiça se absorve no Direito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26). A esperança é encontrar no proferimento jurisdicional artificial a segurança para uma situação real de injustiça.

A burocracia processual, enquanto procedimento racionalizado, razão já pensada, se-duz o humano para uma tentativa de reconstrução de momentos passados por um caminho. O procedimento burocrático é apresentado como fórmula capaz da reconstrução da justiça ausente na relação humana injusta. A ausência da justiça na relação humana, que culminou com o ho-mícidio, com a fome, com o roubo, é apresentada como recuperável pelo processo burocrático. Como exemplo do afirmado, assistimos diariamente nos noticiários pedidos de vingança incor-retamente chamados de súplicas por justiça.

A crença na possibilidade da realização da justiça pelo Estado decorre da sensação de injustiça – percepção de não-ética – que marca as relações na contemporaneidade. A realidade se apresenta como sendo injusta. E, nessa medida, o Estado provedor de saúde, ensino, seguran-

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ça etc. também é a instituição que providenciará a justiça.Contudo, a justiça, da mesma forma que a vida, demanda uma resposta imediata e só

encontra sua possibilidade de ocorrência no tempo presente. Em contrapartida, a pesada es-trutura necessária ao Estado Moderno, por motivos óbvios sobre os quais não se faz qualquer juízo, mas apenas mera constatação, não permite que a emergência do instante presente seja prontamente atendida. A emergência da necessidade de justiça para o instante presente é gentil-mente (muitas vezes, mesmo sem gentileza) convidada a entrar na fila e aguardar o término do procedimento burocrático racionalmente instrumentalizado para atendê-la.

Se, por um lado, a burocracia representa o necessário estabelecimento de regras obje-tivas para a consecução de um determinado objetivo num Estado de Direito, por outro lado a burocracia representa o afastamento da solução das demandas no único momento de passível solução. E, na maioria das vezes, esse afastamento afigura-se como deliberado fator de dificul-tação da verdadeira justiça (e da própria vida) na medida em que transfere a responsabilidade dos indivíduos envolvidos na relação presente para uma resposta posterior de responsabilidade do Estado.

A responsabilidade de tratamento justo (ético) que deveria fundamentar a relação entre os indivíduos é substituída pela racionalidade representada pela técnica do Direito em estabe-lecer um procedimento supostamente capaz de produzir o mesmo resultado da relação singular em um momento posterior, qual seja, a justiça. Nesse contexto, a justiça se subsume ao Direito e o procedimento se justifica pelo procedimento. O espírito domesticado dos indivíduos e a limitação à técnica dos atores do Direito faz com que o procedimento assuma, mesmo sem que os envolvidos percebam, o papel de ator principal.

A expectativa dos leigos injustiçados é instigada ainda mais em função da crescente complexidade das demandas sociais contemporâneas que são diretamente refletidas em um aparato jurídico cada vez mais complexo, técnico, por consequência, afastado e de difícil com-preensão pelos cidadãos comuns que necessitam recorrer ao Direito.

O procedimento que promete transformar processo (quantidade) em justiça (qualida-de), ao mesmo tempo em que antecipa a relação presente pelos procedimentos burocratizados, substitui o acontecimento da relação singular do instante presente pela verdade/justiça dita pelo Estado ( jurisdictio).

Esse procedimento burocratizado é caracterizado pela inerente especialização das ta-refas, acompanhada pela substituição da qualidade humana pela posição ocupada na relação bu-rocrática, sufocando a ocorrência do instante e impedindo o estabelecimento da relação dialéti-ca qualificadamente humana e singular. A complexidade do humano é violentada à opacidade da razão instrumentalizada. O heterogêneo é igualado, homogeneizado e a relação humana se resume a atingir o objetivo da operação burocrática. Em Bauman:

Uma vez distanciados, graças à complexa diferenciação funcional dentro da burocracia, dos resultados últimos da operação para a qual contribuem, suas (dos burocratas) preocupações morais podem concentrar-se inteiramente na boa execução

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da tarefa à sua frente. A moralidade resume-se ao comando para ser um bom, eficiente e diligente especialista e trabalhador (BAUMAN, 1998, p. 126).

Conforme anteriormente argumentado, a atribuição de sentido às estruturas-produto da razão já pensada ocorre no seu momento original. A partir daí as relações humanas passam a ser forçosamente enquadradas nas estruturas já pensadas, ficando restritas aos limites da operação burocrática, como se toda a riqueza qualitativa do humano fosse capturável pelas formulações racionais. O espaço que o procedimento burocratizado permite aos seus atores coadjuvantes é limitado pela razão técnica.

Essa submissão do humano à opacidade da razão fechada, que pode ser representada no presente trabalho pelo judiciário, eleito pela sociedade como sendo o grande palco da justiça construído pela racionalidade instrumental, abarrotado por processos numerados, quantidade sem qualidade, produz muito mais violência do que qualquer pálida representação da justiça. A singularidade do encontro é sufocada e substituída pelo procedimento burocrático ao mesmo tempo em que a qualidade do humano é quantificada pelas técnicas legislativa e processual. A injustiça, singular por natureza, é homogeneizada pelo número (processo); o calor do sempre inusitado encontro humano, esfriado pela falta de oxigenação decorrente da absoluta previsibi-lidade do processo. Nas palavras de Bauman:

A desumanização começa no ponto em que, graças ao distanciamento, os objetos visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um conjunto de medidas quantitativas…Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade (BAUMAN, 1998, p. 127).

Uma vez que a injustiça passa pela grande máquina de produção da chamada justiça estatal, o heterogêneo é transformado pelo procedimento racionalizado em homogêneo. A pro-va de que a justiça estatal afirma promover tal transformação fica evidenciada, por exemplo, quando os danos físicos ou morais são indenizados pelo dinheiro e a sociedade despida de senso crítico aceita e repete, fortalecendo o mito, que a justiça foi feita. Ou seja, a dor, o sofrimento, a perda etc. das mais diversas origens e com as mais diversas causas são igualados pela máquina estatal de fabricação da justiça na medida em que se aceita que possam ser reparados por uma única substância mágica, que é sempre igual, variando apenas em sua quantificação.

Entretanto, a evidência cabal de que o judiciário não produz justiça (também de que não existe justiça restaurativa), reside no fato de que a verdadeira justiça só existe no evita-mento da ocorrência da injustiça. A verdadeira justiça seria a recomposição da exata situação antes do fato danoso, contudo, isso não é possível pela absoluta irrecuperabilidade do instante. As feridas saram, mas as cicatrizes permanecem, dando o indicativo de que a injustiça não foi simplesmente apagada e de que a justiça não foi produzida pelo processo burocrático.

Com base nos argumentos expostos, parece-nos razoável afirmar que o resultado do processo judicial não pode ser chamado de justiça. A falta de clareza conceitual quanto à pa-

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lavra justiça, parece-nos decorrente da manutenção de sua vinculação à ideia de justiça re-parativa, presente já em Aristóteles, por exemplo na Ética a Nicômaco. Contudo, o conceito de justiça reparativa, que em verdade não passa de mera expiação, de indenização do dano, é demasiadamente estreito para a riqueza e importância do significado de tal palavra para a so-ciedade contemporânea. Ou seja, o conceito, o anseio e a expectativa da sociedade pela maior abrangência de significado da palavra justiça é infinitamente maior do que a real possibilidade concebida, mas não assumida, pela própria razão técnico-burocrática. Isso se deve ao fato de que, firmemente defendida pela bandeira da produção da justiça, a operação burocrática esta-belece e justifica seus procedimentos desumanizados pelos quais se movimenta pretensamente em direção à realização da justiça.

Diante da realidade social injusta, a expectativa e os anseios da sociedade por justiça são habilmente conduzidos para a resposta estatal, apresentada como sendo a única possível. Os burocratas de plantão, esterilizados pela técnica e devotos do processo, respondem ao clamor social com mais Direito, em um movimento de retroalimentação tão sedutor quanto perigoso:

Quando o fascismo substituiu no processo penal os procedimentos legais complicados por um procedimento mais rápido, os contemporâneos estavam economicamente preparados para isso; eles haviam aprendido a ver as coisas, sem maior reflexão, através dos modelos conceituais e termos técnicos que constituem a estrita ração imposta pela desintegração da linguagem (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 166).

O que escapa tanto ao indivíduo desesperado e injustiçado quanto ao burocrata que julga o processo efetivamente o instrumento de fabricação de justiça, ambos despidos de senso crítico, ou, pelo menos, incapazes de analisar a fundo a situação que se apresenta, é apenas a informação fundamental de que o processo só começa após a ocorrência do fato.

Nessa medida, além de ser impossível à burocracia restaurar uma situação passada de injustiça, a velocidade do Direito-processo não tem qualquer relação com o fato que lhe serviu de impulso. Portanto, quanto mais rápido e simplificado o processo, mais pequenas porções de injustiça são praticadas em seu curso.

É imperativo frisar que se trata de substâncias e de tempos diferentes e, desta forma, o processo não pode ser movimentado com base no momento passado e irrecuperável que lhe deu causa, mas sim com base nos momentos presentes pelos quais se move. Reiteramos: não é racio-nalmente justificável que a velocidade do processo seja determinada pela gravidade do crime, pois, por mais rápido que seja, jamais alcançará o instante passado que lhe serviu de estopim.

E é exatamente nessa intercambialidade das substâncias, pela impossibilidade de transformar o tempo perdido em dinheiro, o sangue derramado em reclusão, que a burocracia revela sua violência. O pedido social por justiça é respondido com mais Direito; e quanto maior o Direito maior a possibilidade de controle social e injustiça. Nesse sentido, Bauman escreve sobre a utilização da violência dissipada na atividade burocrática:

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O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim, dissociados da avaliação moral dos fins… todas as burocracias são boas nesse tipo de operação dissociativa. Pode-se mesmo dizer que dele provêm a essência da estrutura e do processo burocráticos e, com ela, o segredo desse tremendo crescimento potencial mobilizador e coordenador e da racionalidade e eficiência de ação, alcançados pela civilização moderna graças ao desenvolvimento da administração burocrática. A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho (enquanto adicional à – e em suas consequências distinta da – linear graduação do poder e subordinação); e o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela técnica (BAUMAN, 1998. 122).

Fundamentado na recuperação de um momento passado, o procedimento racional--burocrático sufoca a ocorrência da singularidade dos instantes presentes, impedindo-os de acontecer e produzindo pequenas porções de injustiça. Entre o indivíduo e a justiça é interposto o procedimento burocrático, com todos os seus ritos, uniformes, instâncias etc.: “A tentativa procedimentalizada de produção racionalizada da Justiça nega a verdadeira justiça e, nessa medida, gera injustiça, gera violência, pela negação do particular, pela avidez burocrática de enquadrar o particular no sistema totalizante” (ADORNO, 2009, p. 27).

A fraqueza do indivíduo que admira o produto da racionalidade é recompensada pela sensação de inclusão no sistema e por todo o aparato que vem a reboque com a alienação da sua responsabilidade de pensar: as questões morais inerentemente mais complexas são substituídas por decisões técnicas que o “manual” contempla. O fraco, despido de juízo crítico, encontra no aparato estatal organizado espaço e conforto para os seus medos e limitações. Espaço que o torna forte, mas não tão forte a ponto de libertá-lo, mesmo porque a sua indigência intelectual e pusilanimidade não são suficientes para um desejo de libertação; forte o suficiente, apenas, para que sirva de agente reprodutor de mais violência em nome da bandeira que defende.

A violência aplicada de forma pulverizada pelos agentes da operação burocrática é resquício da violência fundadora do próprio Direito, conforme afirma Derrida: “Acabamos de ver que, afinal, em sua origem como em seu fim, em sua fundação e em sua conservação, o Direito é inseparável da violência, imediata ou mediata, presente ou representada” (DERRIDA, 2007, p. 112).

Da mesma forma que quando buscamos entender com maior clareza o significado de uma palavra recorremos à sua etmologia, quando procuramos entender o significado do Di-reito e, por consequência, sua pretensa intenção de realizar justiça, devemos buscar na origem de sua instauração o seu verdadeiro intento: “A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no Direito, mas que ele não nasceu da liberdade” (ADORNO; HORHEIMER, 1985, p. 27).

Uma reflexão comprometida sobre a origem do aparato processual burocratizado reve-la, sem maiores dificuldades, que o Direito não nasceu de um anseio por justiça, mas foi produ-

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zido por uma necessidade de controle:

…uma ambigüidade ‘demoníaca’ nessa instauração mítica do direito que é, em seu princípio fundamental, uma potência (Macht), uma força, uma posição de autoridade e portanto, como sugere o próprio Sorel, que Benjamin parece aqui aprovar, um privilégio dos reis, dos grandes e dos poderosos: na origem, todo direito é um privilégio, uma prerrogativa. Nesse momento originário e mítico, ainda não há justiça distributiva, não há castigo ou pena mas somente ‘expiação’ (Sühne), mais do que “retribuição”(DERRIDA, 2007, pp. 121-122).

Como falar em uma justiça construída e mantida por essa operação burocrática? Assim como os procedimentos burocratizados escondem o objetivo existente por detrás das condu-tas alienadas, mas tecnicamente especializadas, o conceito da justiça produzida pelo Direito pertence ao Estado e não é compartilhado, sequer entendido pelos indivíduos que compõem a sociedade.

4 POR UM TRATAMENTO JUSTO PARA COM O DIREITO

Reforçamos que não é a proposta do presente artigo simplesmente desmerecer todos os constructos racionais procedimentais, nem mesmo a burocracia. Pretendemos expor racio-nalmente o nosso sentimento de que o Direito e a sua inerente burocracia estão sobrecarrega-dos de responsabilidades para as quais são inaptos e que tal impropriedade permite que sejam utilizados como procedimento para atingimento de finalidades diversas daquelas declaradas. Também, que a palavra justiça merece um tratamento justo; uma verdadeira purificação, ou como diria Agamben (2007), uma profanação, livrando-se dos parasitas e aproveitadores que fazem dela uma bandeira mitológica para conservação de uma sociedade injusta mediante o uso da violência institucionalizada aplicada por um Direito inadequadamente utilizado, conforme argumentaremos a seguir.

Assim como a razão instrumental que lhe serve de fundamento, o conceito de justiça produzido pelo Direito, e em nome do qual se movimenta a burocracia estatal, tem algo de mito-lógico. Com os argumentos construídos anteriormente, pretendemos desmitologizar o conceito de Direito e de justiça e revelar a verdadeira face e as limitações do processo burocrático. A mesma ressalva que se faz com relação ao uso do modelo de racionalidade científico-matemá-tica que fundamenta a sociedade contemporânea, podemos fazer com relação ao Direito: assim com a matemática é uma ferramenta adequada para resolver problemas matemáticos, o Direito se afigura como uma ferramenta adequada para a resolução de questões jurídicas.

Assim como os deuses mitológicos possuíam habilidades sobre-humanas de criar subs-tâncias concretas, o Direito contemporâneo, produto da razão instrumental, roubou a espada empunhada pela deusa Diké (e a sua atribuição) para, assim, fazer justiça. Como forte evidência da correção do argumento de Adorno sobre o caráter mitológico da razão, temos que o Direito

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mitologizado é apresentado como capaz de solucionar questões que literalmente fogem de sua jurisdição, criando justiça. Sob a proteção de tal poder mitológico, que convém apenas àqueles que pretendem conservar a realidade social injusta, o verdadeiro Direito é violentado por um número cada vez maior de leis que se anunciam capazes de resolver, por exemplo, questões so-ciais e econômicas, fabricando justiça.

A sobrecarga decorrente dessa crença mitológica acaba por subverter o procedimento jurídico-burocrático para, falsamente, tentar contemplar situações que estão fora do seu âmbito. Quando os familiares e amigos de mais uma vítima da violência, de qualquer espécie, vão às ruas com faixas, pedindo justiça, será que seu pedido é realmente por justiça e o Direito tem alguma relação com a verdadeira solução de tal situação? O resultado do procedimento buro-crático (do Direito, em última análise) é capaz de responder ao clamor social por justiça? Se a relação humana subjacente não foi justa, o produto de um procedimento instrumentalmente racionalizado de (re)construção de um instante passado pode ser entendido como realização do valor “justiça”?

A injustiça presente na relação humana subjacente é utilizada como elemento justifica-dor da aceleração e da suposta simplificação do processo burocrático que visa à construção, à realização, de alguma coisa que se convencionou chamar de justiça. Nessa medida, o processo nunca se mostra tão rápido quanto o necessário para que a “justiça seja feita”. E tal sentimento é facilmente compreensível quando, mediante a desmitologização do Direito como deus criador da justiça, compreendemos que o processo jamais será tão rápido a ponto de “fazer a justiça”, pois tal fato decorre de uma impossibilidade ontológica: de um processo racionalizado (quanti-dade) produzir um valor (qualidade).

Quando se acredita que o processo é o instrumento pelo qual a justiça realmente será construída, realizada, a relativização de garantias individuais tem lugar, os ritos processuais são encurtados, a construção de escolas perde a prioridade diante da necessidade mais urgente da construção de presídios e a sociedade que clama por justiça recebe mais controle estatal. O sistema se alimenta dele mesmo. Quanto mais o Direito falha em sua impossível missão de produzir justiça, tanto mais a sociedade clama por um Direito ainda maior. Novamente: como se uma questão qualitativa pudesse ser resolvida quantitativamente.

Por isso a grande dificuldade das pessoas entenderem a “lentidão do processo”, pois elas esperam que a decisão judicial “faça justiça”, como se houvesse um processo racional de manufatura da justiça. Contudo, o processo cada vez mais quer-nos parecer um caminhão de bombeiros que somente sai às ruas depois de iniciado o fogo, parado no trânsito da hora do rush até o seu motor ferver, em ruelas semelhantes aos estreitos caminhos burocráticos, enquanto seu destino inevitavelmente é consumido pelo fogo.

Ora, a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. Ela é aquilo que não deve esperar. Para ser direto, simples e breve, digamos isto: uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível. Ela não pode se permitir a informação infinita e buscar o saber sem limite das condições, das regras

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ou dos imperativos hipotéticos que poderiam justificá-la (DERRIDA, 2007, p. 51).

A crença da construção da justiça pelo processo burocrático se constitui, segundo nosso entendimento, em mais um caso de inversão promovida pela razão instrumental: a razão é pensada como sendo a condição de possibilidade para a realização da justiça, quando, em verdade, percebe-se, numa investigação filosófica dos constituintes efetivamente humanos da humanidade, que a justiça é a condição de possibilidade para a realização da razão. Nesse senti-do, a justiça jamais será um mero produto da razão instrumentalizada; contudo, qualquer razão será bem-sucedida desde que a justiça figure dentre seus pressupostos.

O ser humano contemporâneo, atribulado pelo frenetismo, está inserto em um contexto social borbulhante, no qual tudo se movimenta, mas nada realmente acontece. E esta velocidade acelerada da vida choca-se diretamente com a lentidão dos processos burocráticos, concebidos por uma racionalidade pretensiosa no sentido do estabelecimento de procedimentos, anunciados teoricamente como capazes de recuperar fatos passados e produzir resultados sociais futuros, mantidos pela ausência de possibilidade e capacidade crítica da maioria, mas que, em verdade, mostram-se procedimentos esquizofrênicos e inaptos para realizar seus objetivos.

O choque entre a emergência do instante irrecuperável e a lentidão do processo racio-nalmente concebido é inevitável e com graves consequências às verdadeiras e limitadas pos-sibilidades do Direito. Mais do que isso: com graves consequências à preservação e à digna manutenção da vida. Representantes casuais da massa alienada, empurrados pela sensação de injustiça, exigem indenização por todo e qualquer ato que os tire momentaneamente de sua vida profissional, clamando por maior celeridade nos processos judiciais e relativização das garantias individuais, para prender mais rapidamente suspeitos, visando a uma pretensa realização da jus-tiça, como se o tempo perdido fosse indenizável com dinheiro e como se a justiça fosse passível de realização no processo pela racionalidade instrumentalizada. Honra, imagem, tranquilidade, e, inclusive, vida, são valores tratados como mercadorias mensuráveis e indenizáveis.

Desse modo, no contexto complexo da contemporaneidade, cada vez mais os processos burocráticos se mostram como instrumentos inaptos para a construção ou realização da justiça e pela compreensão das verdadeiras causas das limitações da legislação e do processo passa um tratamento justo com o Direito, pois enquanto os olhos ficam voltados para a capacidade mitoló-gica do Direito, as condutas mais graves, as realmente graves, entendemos, não são alcançáveis pelo processo, pelo Direito.

Com toda a flexibilidade e relativização já “conquistadas”, os crimes ambientais, por exemplo, são elucidados, mas os verdadeiros culpados, de uma forma ou de outra, se protegem na pesada burocracia. Pior do que isso: por mais rápido que seja o processo e por mais pesada que seja a pena, os danos causados na emergência do instante não são passíveis de recuperação. O dinheiro, abstração humana, que é resignadamente pago pelas empresas poluidoras como in-denização por um dano irreversível ao ambiente revela, mais do que em qualquer outro momen-to, sua verdadeira face: mero papel. Qual o tipo de sociedade aceita uma justiça que determina

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que a destruição de sua casa seja indenizada com papel e não entende que o mesmo poder de abstração que criou o vil metal não vai recriar a natureza destruída?

Tudo isso não nos quer parecer mera casualidade. Por um lado, a origem do Direi-to está fortemente arraigada à conservação de uma condição dominante. O Direito foi criado pela violência, enquanto força, e se mantém pela violência espalhada homeopaticamente nas diversas estruturas burocratizadas existentes. Por outro lado, as pessoas são empurradas pela sensação de falta de tempo na contemporaneidade. O dia que começa com o despertador, tem hora marcada para todas as atividades. Os encontros só acontecem com hora marcada e com o conteúdo previamente definido.

Nesse contexto, a ocorrência de um instante original tem sua possibilidade sufocada, e substituída pela ditadura do relógio e dos compromissos externos. Ninguém tem tempo para se preocupar com nada além do provimento das necessidades reais materiais de sustento próprio e da sua família e da realização das necessidades criadas no mercado de consumo. Um Direito viciado em suas origem e conservação acompanhado da esterilização das relações pela neces-sidade de provimento das mais básicas necessidades de sobrevivência é a fórmula perfeita para a manutenção da dominação da maioria pelos grandes poderios econômicos.

E a farsa é tão perfeitamente concebida que a maioria dominada não cansa de clamar por mais Direito. Quanto mais injustiça há, mais Direito pede a maioria dominada. E quanto mais Direito se produz, mais eficaz se torna a dominação, menos espaço resta para a vida não regulada pelo Estado, única oportunidade de ocorrência da verdadeira justiça – a ética funda-mental das relações verdadeiras entre humanos e entre esses e o mundo em que vivem – que evita o inútil acionamento do Direito.

O mito de uma justiça produzida pelo Direito perdurará enquanto os indivíduos que formam essa caricatura de sociedade permanecerem separados uns dos outros e alienados de si mesmos pela fulminante e inapelável necessidade impositiva da dependência e submissão de sua sobrevivência ao dinheiro, elemento abstrato relativizador do caráter ético que deveria imperar nas relações humanas. E nessa luta pela sobrevivência, a técnica se apresenta como o caminho a ser percorrido em busca do dinheiro que garantirá a sobrevivência. Aos indivíduos homogeneizados pela necessidade do dinheiro conquistável pela técnica, resta apenas a conve-niência de uma justiça tão artificial, opaca e sem graça quanto o conceito de pôr do sol quando comparado à experiência real, impossível de ser suficientemente representada, de um entarde-cer.

Despido o Direito de seu caráter mitológico e apresentadas as limitações de suas ver-dadeiras possibilidades, o encaminhamento para a questão da justiça, objeto do próximo capí-tulo, passa muito mais pela valorização do instante presente como sendo o momento do estabe-lecimento da verdadeira dialética com o encontro real, legítimo tribunal de justiça.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É pela tomada da verdadeira consciência e do exercício responsável do momento pre-sente que o ser humano pode encontrar a sua realização e a verdadeira justiça, o seu instante. Pensando na questão dessa maneira, o exercício da dialética (da crítica) no estabelecimento das relações propiciaria a possibilidade de se fazer justiça com o instante presente.

No dizer de Agamben, cumpre-nos profanar. No contexto do presente artigo, profanar mantém seu significado histórico-etimológico, sendo perfeitamente entendido como o ato de vociferar contra os deuses: no exercício dialético da razão ancorada na realidade concreta em busca da verdadeira justiça devemos profanar o deus mitológico do Direito. Mais do que isso, na contemporaneidade, podemos interpretar profanar como movimento de resistência contra as crenças e os mitos, contra a burocracia técnica do Estado. A profanação de Agamben se afigura como um momento de dialética, de crítica, contra o mito da justiça fabricada pelo Direito, vi-sando à superação da crença no aspecto mítico do Direito. Segundo Agamben:

Um dia a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação é a tarefa do estudo, ou do jogo. E esse jogo estudioso é a passagem que permite ter acesso àquela justiça que um fragmento póstumo de Benjamin define como um estado do mundo em que este aparece como um bem absolutamente não passível de ser apropriado ou submetido à ordem jurídica (AGAMBEN, 2004, p. 98).

E exatamente pelo fato de que nem o mundo nem a justiça são passíveis de sumbmis-são ao Direito, ou à ordem jurídica, que a responsabilidade é de cada indivíduo em realizar a crítica. Quanto mais emancipados, valendo-se de expressão de Adorno, forem os indivíduos, menos Estado, menos Direito e menos violência, serão necessários; pensamento ilustrado pelo pensamento de Henry Thoreau:

Eu aceito com entusiasmo o lema que afirma: “O melhor governo é aquele que menos governa”; e gostaria de vê-lo posto em prática de forma sistemática. Uma vez posto em prática, ele acabaria resultando em algo que também acredito: ‘O melhor governo é aquele que não governa’; e quando os homens estiverem preparados, será exatamente este o tipo de governo que irão ter (THOREAU, 1991, p. 5).

Entendemos pela possibilidade de articular o pensamento do autor da célebre obra Desobediência civil, quando se refere a homens preparados, com o que Adorno se referia à emancipação.

A justiça não é o Direito; sequer pode ser produzida por ele. O Direito está para a justiça assim como o corpo está para a vida. Por mais perfeito que qualquer uma das duas es-

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truturas seja, sem a outra, não tem sentido. Assim, nem mesmo a mais perfeita racionalização do primeiro produzirá o segundo. São substâncias diferentes que, conquanto só tenham sentido reunidos, não são intercambiáveis.

Com tudo isso, defendemos três argumentos: (a) que a justiça pode apenas ser cons-truída na imediata emergência do instante presente, na singularidade da relação não antecipada pelo preconceito da razão instrumental ou pelas fórmulas e regras burocráticas; (b) que nenhum procedimento racional pode (re)construir a justiça ausente na relação; e (c) que, além disso, a burocracia processual, na pretensa tentativa de (re)construir justiça, acaba por promover mais violência, além daquela que culminou com a instauração do processo.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

ADORNO, Theodor – HORKHEIMER, Max.. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti, São Paulo, Boitempo, 2004.

______. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2.ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1985.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

DERRIDA, Jacques. Força da Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. São Paulo. Ediouro: 1991.

WEBER, Max. Ciência como vocação. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf> Acesso em: 10 março 2015.

_______. Parlamentarismo e governo na Alemanha reordenada. Petrópolis: Vozes, 1993.

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THE (IN)JUSTICE OF BUREAUCRATIZED LAW

ABSTRACT: This article aims to make a philosophical reflection on law, bu-reaucracy, process and on the links between these rational constructions and the question of justice. It is a reflection on the violence of procedural bureau-cracy and the suffocation of the present moment, thought of as only possible moment to the construction of justice materially thought.Keywords: Justice. Law. Bureaucracy and violence.

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Recebido em 28 abr. 2015Aceito em 30 abl. 2015

A POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS

Marcyo Keveny de Lima Freitas*

Patrícia Borba Vilar Guimarães**

Muitos se revoltam e se assustam ao ouvirem a ideia de cotas para negros e índios em universidades públicas brasileiras. Os discursos contrários à política de cotas se pautam basica-mente em dois elementos que não se sustentam.

O primeiro seria que, ao invés do ingresso em universidades públicas de negros e ín-dios através de cotas, o fundamental seria a melhoria do ensino fundamental e médio no Brasil que garantiria uma equiparação de saberes para os alunos que pretendem ingressar em uma universidade através do vestibular.

O segundo, como um desdobramento do primeiro, estaria relacionado a temática que, no Brasil a diferenciação entre os ingressantes em uma universidade e aqueles que não con-seguem sucesso no vestibular estaria pautada na diferença econômica, ou seja, o ingresso em uma universidade pública dependeria exclusivamente do poder aquisitivo do aluno e a economia (dispêndio econômico) em sua formação escolar.

Todavia, estes dois argumentos fazem parte de um discurso comum e falacioso, daque-les que se pronunciam contrários ao sistema de cotas e não possuem muita coisa a acrescentar. O primeiro argumento de que é necessário uma melhoria do ensino do Brasil é um discurso de décadas, logo, aguarda-se uma melhoria a décadas, ao passo em que a exclusão permanece. Os que defendem tal argumento apresentam quais propostas efetivas para mudar essa situação? Desconhecemos medidas concretas nesse sentido.

Historicamente, o modelo de cotas raciais faz parte de um modelo de ação afirmativa instituído na década de 1960, nos Estados Unidos, que objetivava, primordialmente, amenizar o

* Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI-RN. Especialista em Direito Constitucional pela Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Advogado. E-mail: [email protected]** Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1997). Tecnóloga em Processamento de Dados pela Universidade Federal da Paraíba (1989); Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008). Mestre pelo Programa Interdisciplinar em Ciências da Sociedade, na área de Políticas Sociais, Conflito e Regulação Social, pela Universidade Estadual da Paraíba (2002). Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (2010). É Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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impacto da desigualdade social e econômica entre negros e brancos.Na atualidade, as políticas de cotas raciais são instituídas e caracterizadas como ações

afirmativas que visam à redução das desigualdades, sejam elas sociais, econômicas e educa-cionais, já que corrige injustiças históricas provocadas pela escravidão na sociedade brasileira, tendo em vista que negros e índios sempre tiveram menos oportunidades de acesso à educação superior e, consequentemente, ao mercado de trabalho.

Indiscutivelmente, não peçam aos movimentos de inserção de negros e índios que abandonem suas políticas efetivas em troca de espera. Não esperem a acomodação na espe-rança de equiparação da formação escolar dos alunos oriundos de escolas públicas em relação aos oriundos de escolas privadas. A exclusão de negros e índios nas universidades públicas é latente. A comunidade indígena e negra no Brasil necessita de aplicação de medidas imediatas, independente se for para reparação do mal que se faz até hoje a esta comunidade ou se para realmente começamos a dar um fim a exclusão dos mesmos no ensino superior brasileiro.

O segundo argumento que trata acerca da desigualdade social evidencia que o pobre não consegue ingressar em uma universidade pública, entretanto, mesmo entre os pobres, o número de negros e índios pobres está em 47% acima dos brancos, segundo dados do IBGE, ou seja, existem mais pessoas miseráveis negras do que brancas, e entre estas, os negros são os que percebem menor salário e possuem menor poder aquisitivo. A remuneração é diferente entre negros e brancos. A maioria (na realidade minoritária) dos alunos oriundos de escolas públicas que conseguem ingresso em uma universidade pública no Brasil são brancos, o que mostra que mesmo aqueles que conseguem vencer a diferença, ainda assim, os negros são minoria.

Nesse sentido, não se sustenta o falacioso discurso dos opositores de tal medida de que, alguns candidatos optam pelo sistema de cotas não para contornar a segregação racial, mas apenas para buscar um acesso mais fácil ao ensino superior, na medida em seria transferido para o ensino superior um problema de competência escolar que o governo deveria resolver na educação básica e profissionalizante, em escolas públicas.

Vocês que estão aí sentados e que estudam em uma universidade pública ou privada, repare a sua volta e vejam a gritante diferença entre o número de negros, índios e brancos. De-sigualdade social? Também, mas, sobretudo, muita desigualdade racial presente.

Em um Estado Democrático de Direito, as cotas raciais são tidas como uma reparação contra a condição histórica inferior do negro e do índio, não nos parecendo razoável nem mes-mo proporcional, a ideia de que biologicamente somos todos iguais e por isso não se poderia estabelecer as cotas, pois tanto o negro, quanto o índio, para ingressar em uma universidade pública só precisariam de um pouco mais de esforço e dedicação.

Assim, tal argumento soa ao absurdo, na medida em que dada essa injustiça histórica, nada mais justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o índio e o negro e uma necessidade urgente de que ela seja reparada.

É notório que somos muito parecidos geneticamente falando, entretanto, ao contrário da “democracia biológica”, o preconceito e o racismo no Brasil estão pautados pela cor que o

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índio e o negro traz em sua pele e não no sangue que corre em suas veias. Assim, o sistema de cotas raciais foi estruturado como uma forma de combater a herança escravagista do século XIX no país.

O direito fundamental à educação, consubstanciado no princípio da dignidade huma-na, foi inserido na Constituição como um dos direitos sociais a serem assegurados pelo Poder Público de forma ampla e igualitária, tendo em vista o dever de garantia do mínimo existencial.

Inegavelmente, para fazer valer prerrogativas constitucionais e para que o Estado aten-da aos anseios sociais em uma época de conflito de ideologias e representatividade, a sua atua-ção deve estar fundamentada na Constituição e nos princípios constitucionais que ajudam na sua interpretação e aplicação.

Dessa maneira, há a preocupação na criação e aplicação de normas materialmente justas e moralmente éticas. Não basta, pois, a criação da norma, esta deve estar vinculada a proteção da dignidade da pessoa humana.

Ademais, o princípio da isonomia deve ser aplicado e interpretado não sob a vertente da igualdade formal (todos são iguais perante a lei), mas sobretudo, sob o prisma da igualdade real, material e/ou efetiva, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida da sua desigualdade.

Realmente, devemos caminhar para a construção de um ensino de base (ensino fun-damental e médio) de qualidade. Todavia, não podemos esquecer da condição histórica inferior do negro e do índio em nossa sociedade, ao passo que estes, mesmo após a escravatura, ainda continuaram marginalizados, sendo negados acessos aos melhores postos de trabalho, sendo vítimas do preconceito velado da sociedade, possuindo, até hoje, indicadores sociais inferiores aos brancos.

Sem sombra de dúvidas, acreditamos plenamente que o ensino no Brasil deva ser re-pensado e reformulado com um todo, com o planejamento e execução de políticas públicas sociais e econômicas voltadas para a concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos, como a formulação e implementação de ações afirmativas no âmbito da educação voltadas aos negros, índios e grupos discriminados e menos favorecidos economicamente e culturalmente, garantindo, assim, uma melhoria na qualidade do ensino aplicado a comunidade menos favore-cida economicamente, que é maioria neste país.

Portanto, mudar essa triste realidade do ensino educacional público no Brasil é um ob-jetivo ou meta permanente. O Estado brasileiro tem a obrigação constitucional de implementar políticas públicas voltadas à classes discriminadas e menos favorecidas economicamente, pro-movendo a concretude dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a isonomia material (igualdade real).

Dessa forma, é essencial que o Estado se volte para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF), erradicando a pobreza e a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF), promovendo o bem de todos, sem precon-ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º,

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IV, CF). Assim, a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205, CF).

Na verdade, o que não podemos aceitar é que a espera da realização disto sufoque a questão da segregação racial nas universidades públicas brasileiras. Assim como os negros, os índios e minorias também discriminadas devem lutar pela concretização de seus direitos, reivindicando-os e fazendo valer suas vozes, sobretudo no que tange a concretização do direito fundamental e social à educação. Aqueles que insistem em perguntar, para seus padrões de cores, somos classificados como brancos e não estamos legislando em causa própria, mas, so-bretudo, em função daquilo que consideramos justo.

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Recebido em 04 maio 2015 Aceito em 04 maio 2015

A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO CONTINENTE EUROPEU: BREVES APONTAMENTOS

Anna Paula Grossi*

Luciano Meneguetti Pereira**

RESUMO: O presente texto busca analisar os contornos gerais da proteção dos direitos humanos no Sistema Europeu de Direitos Humanos, buscando enfatizar os órgãos componentes desse sistema, bem como o procedimento empregado nos casos de violação dos direitos humanos. Inicialmente é feita uma análise do surgimento e organização do sistema. Em seguida são anali-sados os principais aspectos da Convenção Europeia de Direitos Humanos e, por fim, analisa-se a atuação da Corte Europeia de Direitos Humanos e o pro-cessamento dos casos que a ela são submetidos, especificamente no tocante à eficácia de suas decisões. Palavras-chave: Sistema europeu de direitos humanos. Corte europeia de direitos humanos. Convenção europeia de direitos humanos.

1 INTRODUÇÃO

Uma análise produtiva da temática que se pretende tratar no presente texto requer, de início, que sejam verificados, ainda que de modo sucinto, o contexto histórico, a criação e o desenvolvimento do sistema europeu de proteção aos direitos humanos, implementado logo após o final da 2ª Grande Guerra, uma vez que restou cabalmente evidenciada a necessidade de mecanismos eficazes de garantia da vida e da dignidade da pessoa humana. Isto porque após o

* Graduada em Direito pelo Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO). Advogada.** Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP; Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar (UNP) – Natal/RN; Graduado em Direito pelo Centro Universitário Toledo (UNITOLE-DO) – Araçatuba/SP; Professor Universitário em Cursos de Pós-Graduação e Graduação; Professor de Direito Constitucional, Internacional e Direitos Humanos; Advogado.

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final deste triste episódio da história mundial, constatou-se, obviamente, que o genocídio e a ex-terminação maciça de povos e minorias deveriam ser amplamente combatidos, principalmente em relação ao continente europeu, palco dessa sangrenta passagem.

A compreensão do sistema europeu exige que se enfatize o contexto dentro do qual ele emerge, isto é, um contexto de ruptura e de reconstrução dos direitos humanos, marcado notadamente pela busca de integração e cooperação dos países europeus, bem como de consoli-dação, fortalecimento e expansão de seus valores, dentre eles a proteção dos direitos humanos.

Antes do aparecimento do sistema regional de proteção dos direitos humanos, a preo-cupação sistemática com a proteção desses direitos dá ensejo ao sistema global de proteção, que foi arquitetado e vem sendo desenvolvido e implementado pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde o final da 2ª Guerra Mundial até os dias atuais. O documento que lhe deu origem foi a Carta da ONU, de 1945, sendo desenvolvido posteriormente com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948.1 Referida Declaração foi comple-mentada ulteriormente, material e processualmente, por dois Pactos internacionais que foram concluídos em Nova Iorque, no ano de 1966, que foi o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse conjunto de textos internacionais tem sido referido como Carta Internacional dos Direitos Humanos, compondo o denominado sistema global de proteção de tais direitos.

O sistema regional de proteção dos direitos humanos, por sua vez, surgido logo após a instituição do sistema global, como o próprio nome sugere, está afeto a distintas regiões do globo, sendo que a sua estruturação fica a cargo de organizações continentais específicas. Atualmente, o Conselho da Europa (CE) estrutura o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos; a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Sistema Interamericano de Pro-teção dos Direitos Humanos; e a União Africana (UA) cuida do Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos, sendo três, portanto, os sistemas regionais de proteção existentes, que buscam internacionalizar a tutela dos direitos humanos no plano regional. (MENEGUETTI, 2013 p. 92)

Verifica-se então que na atualidade coexistem, numa relação de complementariedade, os sistemas globais e regionais de proteção dos direitos humanos.

Nesse contexto, são pertinentes as considerações feitas por Flávia Piovesan, uma vez que a autora, embora afirme que um sistema regionalizado de proteção aos direitos humanos deva estar integrado com o sistema universal de proteção desses direitos (que é o sistema insti-tuído no âmbito das Nações Unidas, abrangendo um grande número de países-membros), divi-

1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por repre-sentantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Desde sua adoção, em 1948, a DUDH foi traduzida em mais de 360 idiomas – o documento mais traduzido do mundo – e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/decla-racao/>. Acesso em 30 abr. 2015.

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sões regionalizadas com a finalidade de especificar a atuação protetiva são, consideravelmente, um meio muito mais eficaz a ser perseguido na busca de sua efetivação. (2014, p. 95-106). Nesse sentido, Rhona K. M. Smith, ao apontar as vantagens dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, quando comparados ao sistema global, destaca que

na medida em que um número menor de Estados está envolvido, o consenso político se toma mais facilitado, seja com relação aos textos convencionais, seja quanto aos mecanismos de monitoramento. Muitas regiões são ainda relativamente homogêneas, com respeito à cultura, à língua e às tradições, o que oferece vantagens. (2013, p. 84)

O que se verifica é que os sistemas regionais de proteção, quando comparados ao siste-ma global, apresentam significativas vantagens no sentido de facilitarem o consenso dos países no momento da criação e estruturação do próprio sistema, o mesmo ocorrendo no instante da elaboração de tratados de direitos humanos de âmbito regional; também no sentido de refletirem com maior autenticidade as inúmeras peculiaridades, bem como os valores culturais históricos de povos de determinadas regiões do globo, o que consequentemente redunda em uma maior aceitação do sistema e do conjunto de normas que o consubstancia.

Assim, diante do lamentável acontecimento histórico anteriormente mencionado, que foi capaz de dizimar a vida de milhões de pessoas, em total menoscabo da vida e dignidade hu-mana, notoriamente fixou-se a ideia da necessidade de se implementar um sistema de proteção dos direitos humanos, não apenas de âmbito universal, mas também de âmbito regional, isto é, sistemas afetos a regiões distintas do globo, que fossem capazes de se adaptarem às necessida-des específicas de cada região, facilitando a atuação dos órgãos componentes de cada sistema e propiciando uma melhor tutela dos direitos protegidos. Foi o que aconteceu, primeiramente no continente europeu, e, posteriormente, nos continentes americano e africano, sendo o primeiro o objeto de análise do presente estudo.2

Vale frisar então que os sistemas regionalizados de proteção dos direitos humanos são organizados paralelamente ao sistema de proteção global da Organização das Nações Unidas, sendo que a finalidade do sistema geral é atuar de forma ampla em todos os Estados sobera-nos, tendo os sistemas regionais uma atuação complementar àquele, buscando-se aperfeiçoar e fortalecer as determinações dos moldes gerais, bem como tratar das especificidades em cada âmbito regional.

Portanto, o presente texto busca focar, em linhas gerais, o estudo do Sistema Europeu de Direitos Humanos, analisando sua criação, evolução e aperfeiçoamento ao longo do tempo, bem como o funcionamento de seu principal órgão, a Corte Europeia de Direitos Humanos.3

2 Acerca das ainda incipientes iniciativas de criação de sistemas árabe e asiático de proteção dos direitos humanos, vide comentários de Flávia Piovesan in: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 55 e ss.3 Para um estudo aprofundado sobre o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos, onde são abordados de maneira ampla tanto a Convenção Europeia como a Corte Europeia de Direitos Humanos vide: FØLLESDAL, Andreas; PETERS, Birgit; ULFSTEIN, Geir. Constituting Europe: The European Court of Human Rights in a National, European and Global Context. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

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2 A CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS

Com todo o horror propiciado pela 2ª Grande Guerra e com a ruína do continente Eu-ropeu, buscou-se um modelo de proteção aos direitos dos povos, que foi entendido como uma esperança de união dos países em busca da reconstrução da Europa.

Assim, em 05 maio do ano de 1949, alguns países se reuniram na cidade de Londres para fundar o Conselho da Europa, uma organização europeia criada para promover e desen-volver a cooperação intergovernamental e interparlamentar no continente europeu. Na ocasião estavam presentes os representantes da Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido e Suécia. Foi escolhida como sede do Conselho a cidade francesa de Estrasburgo.

Dessa reunião nasceu o referido Conselho, bem como o seu estatuto que, contudo, não disciplinava como seria a atuação específica dos países na proteção à vida e à dignidade da pessoa humana, nem dispunha sobre os direitos e as garantias fundamentais a serem propi-ciados. Desse modo, sobreveio a ideia necessária de se criar uma convenção regional europeia, com o intuito de especificar detalhadamente os mecanismos de atuação na proteção dos direitos humanos, exercido por cada ente soberano no continente europeu.

Foi criada, portanto, a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais4, instituída na cidade de Roma, no dia 04 de novembro de 1950, que foi tida como o tratado internacional regente do Sistema Europeu de Direitos Humanos e como “documento constitucional da ordem pública europeia”. (SHAW, 2010, p. 266) Esse importante instrumento protetivo dos direitos humanos entrou em vigor no plano internacional em 3 de setembro de 1953, quando atingiu o número de dez Estados europeus que a ratificaram, uma exigência que foi prevista em seu art. 59, § 2º. Sua principal finalidade é disciplinar as diretrizes mínimas referentes à proteção dos direitos da pessoa humana, garantindo os instrumentos para sua aplicação.

A Convenção também institucionaliza um compromisso dos Estados europeus em cumprirem efetivamente as normas protetivas da pessoa humana, não adotando quaisquer con-cepções contrárias em seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. Também determina a submissão dos países europeus à Corte Europeia de Direitos Humanos, órgão criado para atuar caso haja o desrespeito às normas impostas pela Convenção. O espírito que norteia a Convenção parece ter sido bem captado por Clare Ovey e Robin White (2002, p. 114) ao afirmarem que:

a tônica geral da Convenção é inspirada nos princípios da solidariedade e da subsidiariedade. Solidariedade refere-se ao compromisso dos Estados-partes de assegurar os direitos enunciados na Convenção em suas ordens jurídicas internas. Já a subsidiariedade refere-se à atuação da Corte Europeia no sentido de situar-se

4 Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em 30 abr. 2015.

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como subsidiária das instituições do sistema nacional de proteção ao apreciar casos de violação a direitos humanos”. (livre tradução)

Não há dúvidas, portanto, de que a Convenção constitui o documento mais importante no tocante ao estabelecimento e salvaguarda dos direitos humanos no continente europeu, o que exige, para o atendimento dos propósitos do presente texto, sejam estabelecidas algumas impor-tantes considerações no tocante à sua estrutura, principais órgãos e funcionamento.

2.1 A estrutura da convenção

O Convenção Europeia de Direitos Humanos é estruturada basicamente em três partes. A primeira (constante do Título I, arts. 2º a 18) regulamenta os direitos e as liberda-

des fundamentais de natureza civil e política, que se baseiam no direito à vida, à proibição da tortura, na proibição da escravidão e do trabalho forçado, na garantia da liberdade, da segu-rança, da vida privada e familiar, do processo judicial equitativo e nas liberdades de expressão, pensamento, consciência e religião, na liberdade de reunião e de associação, na proibição da discriminação, dentre outros.

A segunda parte do texto (constante do Título II, arts. 19 a 51) diz respeito à estrutura interna e funcionamento da Corte Europeia de Direitos Humanos, que é o órgão responsável por julgar os casos de violação de direitos humanos consagrados e positivados pela Convenção.

Por fim, a terceira parte (contida no Título III, arts. 52 a 59) regulamenta as disposições gerais acerca das competências dos órgãos componentes da Convenção e da Corte.

O texto da Convenção foi modificado algumas vezes desde a sua edição original em 1950, sendo incluídas, por meio de Protocolos adicionais à Convenção, novas concepções e novos direitos a serem protegidos, v.g., o direito de propriedade, o direito de instrução e de su-frágio, a proibição da prisão civil por dívidas, a liberdade de circulação, a proibição da expulsão de nacionais e da expulsão coletiva de estrangeiros, a abolição da pena de morte em tempo de paz, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria penal, o direito à indenização em caso de erro do judiciário, o princípio do “ne bis in idem” e o direito à não discriminação. (MAZZUO-LI, 2010, p. 35-36)

Importante salientar que estas garantidas foram incluídas em respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, impor-tantes documentos criados no âmbito da ONU para a proteção dos direitos humanos no plano global, conforme já se enunciou.

De início, com a finalidade de monitorar os direitos previstos na Convenção e de-senvolver métodos eficazes na produção de resultados protetivos dos direitos consagrados, a Convenção instituiu três órgãos distintos, cada um com competências específicas previamente instituídas: a Comissão Europeia de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Comitê de Ministros (do Conselho da Europa).

Portanto, um dos órgãos da Convenção, criados inicialmente, foi a Comissão Europeia

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de Direitos Humanos, que tinha uma competência semijudicial. A sua função era analisar as queixas ou comunicações apresentadas pelos Estados-membros do sistema europeu e também pelos indivíduos (ONGs ou grupos de indivíduos), acerca de uma violação da Convenção, bus-cando resolver o problema de uma maneira mais informal e conciliatória, privilegiando-se a busca pela solução rápida. A Comissão realizava uma espécie de juízo de admissibilidade das petições protocoladas, atuando como instrumento de filtragem para decidir quais petições se-riam consideradas admissíveis. Também atuava propondo aos litigantes soluções pacíficas dos conflitos e também aplicando medidas protetivas de caráter preliminar. Caso restassem infru-tíferas as tentativas de conciliação e solução dos litígios, à Comissão cabia submeter o caso à Corte Europeia, outro órgão da Convenção.

Um dos órgãos mais importantes criados no bojo da Convenção foi a Corte Europeia de Direitos Humanos, instituída em 20 de abril de 1959, cuja função é jurisdicional (ou judi-cial), tendo como tarefa precípua, a aplicação das disposições da Convenção (julgando os casos lesivos à vida e à dignidade da pessoa humana que importem em violações de direitos humanos) e a cominação de eventuais sanções aos países violadores dos direitos humanos protegidos, realizando assim o juízo de mérito no tocante às violações de direitos humanos no âmbito do sistema europeu.

Contudo, conforme exposto adiante no tópico relativo ao aperfeiçoamento do sistema regional de proteção ora estudado, em razão do Protocolo n. 11, adicional à Convenção Eu-ropeia, profundas alterações foram realizadas no âmbito do Sistema Europeu de Proteção de Direitos Humanos, dentre eles a extinção da Comissão e da Corte inicialmente criados (que atuavam em tempo parcial) e o surgimento de uma nova Corte Permanente e agora única (art. 19 da Convenção, emendado pelo Protocolo n. 11), com competência obrigatória (art. 32) para a realização dos juízos de admissibilidade e de mérito dos casos que lhe são submetidos.

Atualmente essa nova Corte5, instituída a partir de 01 de novembro de 1998, é compos-ta por juízes6, cujo número é equiparado aos Estados partícipes da Convenção (art. 20). O tempo de mandato de cada juiz corresponde a 9 (nove) anos, não sendo reelegíveis (art. 23, 1 – com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo n. 14). Os juízes deverão gozar da mais alta reputação moral, bem como reunir as condições requeridas para o exercício das importantes funções judiciais a serem desempenhadas, devendo ser tidos como jurisconsultos de reconhecida com-petência (art. 21, 1). Vale destacar ainda que os juízes exercem suas funções a título individual (art. 21, 2) e, durante o respectivo mandato, não poderão exercer qualquer atividade incompatí-vel com as exigências de independência, imparcialidade ou disponibilidade, exigidas por uma atividade exercida em tempo integral (art. 21, 3). Embora a Convenção não tenha estabelecido nenhuma regra no tocante à idade mínima para a ocupação do cargo, dispôs que o mandato dos

5 Da forma como restou estruturada em razão dos Protocolos adicionais à Convenção, que alteraram a redação de diversos dispositivos originários, conforme comentado mais adiante no texto.6 De acordo com o art. 22 da Convenção “os juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar relativamente a cada Alta Parte Contratante, por maioria dos votos expressos, recaindo numa lista de três candidatos apresentados pela Alta Parte Contratante”.

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juízes cessará logo que estes atinjam a idade de 70 anos.7 Os juízes permanecerão em funções até serem substituídos, sendo que depois da sua substituição, continuarão a ocupar-se dos as-suntos que já lhes tinham sido cometidos (art. 23, 3).

A estrutura da Corte, envolvendo seus órgãos internos, bem como as respectivas atri-buições e competências de cada um está estabelecida pelos arts. 24 e ss. da Convenção, poden-do-se destacar a existência de uma Secretaria (art. 24), de uma Assembleia Plenária (art. 25), de Tribunais Singulares, Comitês, Seções e de um Tribunal Pleno (art. 26). Conforme explica Malcolm N. Shaw, “para examinar os casos a ele propostos, o Tribunal pode reunir-se em comi-tês de três juízes, em seções de sete juízes ou num tribunal pleno de dezessete juízes”. (SHAW, 2010, p. 267)

A Corte Europeia possui duas competências distintas. A primeira delas é de caráter consultivo (art. 47 e 48) e consiste na emissão de pareceres sobre questões jurídicas relativas à interpretação da Convenção e dos seus protocolos, sempre que assim for solicitado pelo Comitê de Ministros. A segunda função, de caráter contencioso (art. 32), diz respeito ao processamento dos casos que são submetidos à Corte para julgamento, tendo como ato final sentenças profe-ridas nos casos específicos, que terão caráter vinculante e natureza declaratória. Isto porque a Corte declara se o Estado feriu ou não os princípios da Convenção Europeia, devendo, depen-dendo do caso, serem aplicadas as sanções cabíveis.

Vale ainda ressaltar que, nos termos do art. 32 da Convenção, a competência do Tri-bunal abrange todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e dos respectivos protocolos que lhe sejam submetidas nas condições previstas pelos seus arts. 33, 34, 46 e 47, aduzindo-se que o Tribunal decide sobre quaisquer contestações à sua competência.

Em relação ao terceiro órgão, o Comitê de Ministros (do Conselho da Europa), trata-se de um órgão diplomático, nascido antes mesmo da Convenção Europeia e que foi por ela tido como um órgão de supervisão (art. 46).

Nesse sentido, o Comitê exerce uma função de supervisão das decisões da Corte, já que o entendimento que se tem no âmbito do Sistema Europeu é de que a supervisão das sentenças da Corte deve estar afeta a um órgão com composição política capaz de convencer os Estados a dar melhor cumprimento a tais decisões. (TRINDADE, 2003, p. 124-125) Essa função fica evi-denciada quando a própria Convenção dispõe que as resoluções amigáveis de questões que lhe são submetidas, deverão ser encaminhadas pelo Tribunal ao Comitê de Ministros, que “velará pela execução dos termos da resolução amigável tais como constam da decisão” da Corte (art. 39, 4), o mesmo ocorrendo em relação às decisões definitivas, que deverão ser transmitidas pela Corte ao Comitê, que velará pela sua execução (art. 46, 2).

2.2 O aperfeiçoamento do sistema europeu de direitos humanos

7 Nos termos do art. 23, 4 da Convenção, “nenhum juiz poderá ser afastado das suas funções, salvo se os restantes juízes decidirem, por maioria de dois terços, que o juiz em causa deixou de corresponder aos requisitos exigidos”.

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Desde a sua criação, o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos vem evo-luindo no intuito de oferecer cada vez mais, uma melhor proteção à pessoa humana e à sua dig-nidade no tocante aos casos de violações de direitos humanos perpetradas pelos Estados-parte da Convenção Europeia. Portanto, a partir desse ponto, cuida-se de analisar em linhas gerais a evolução e o aperfeiçoamento do sistema ora em estudo, demonstrando-se, inclusive, o apri-moramento ocorrido na esfera processual (Protocolos n. 8, 9 e 11), pertinente à restruturação dos órgãos da Convenção, bem como à resolução dos conflitos no âmbito da Convenção e da Corte Europeia, sempre com vistas a tornar mais eficazes os seus instrumentos e mecanismos de proteção.

Para atingir tal finalidade, importantes documentos foram editados desde a criação do sistema europeu, recebendo o nome de Protocolos, e que constituem instrumentos adicionais à Convenção. Acerca deles, é feliz a síntese de Mazzuoli (2011, p. 53-55), que em poucas linhas demonstra a evolução do Sistema por meio desses instrumentos, tecendo os seguintes comen-tários:

(...) a fim de alargar o seu rol normativo originário foram concluídos no sistema regional europeu (...) vários protocolos à Convenção Europeia que preveem direitos substantivos, a saber: direito de propriedade, à instrução e de sufrágio (Protocolo 1); proibição da prisão civil por dívidas, liberdade de circulação, proibição da expulsão de nacionais e proibição da expulsão coletiva de estrangeiros (Protocolo 4); abolição da pena de morte em tempo de paz (Protocolo 6); adoção de garantias processuais na expulsão de estrangeiros, garantia ao duplo grau de jurisdição em matéria criminal, direito à indenização em caso de erro judiciário, o princípio do non bis in idem e o princípio da igualdade conjugal (Protocolo 7); direito à não discriminação (Protocolo 12), e; abolição completa da pena de morte, mesmo em situações de exceção (Protocolo 13). Tais protocolos cumprem o papel de ampliar o corpo normativo da Convenção, a fim de deixá-la sempre viva e atualizada com a evolução dos tempos (...) Por sua vez, o Protocolo 2, dispôs sobre a função consultiva da Corte Europeia de Direitos Humanos (...) os demais protocolos (de números 3, 5, 8, 9, 10 e, especialmente, o de n. 11) vieram introduzir modificações de ordem processual e orgânica nos mecanismos de proteção da Convenção, a fim de fortalecê-los e torná-los mais operativos.

Em razão de sua importância, cabe destacar aqui os Protocolos n. 8, 9 e 11 à Con-venção, maiores responsáveis pelo aperfeiçoamento e criação de mecanismos de celeridade na processualística do Sistema Europeu de Direitos Humanos.

Em linhas genéricas, o Protocolo de n. 8, em vigor desde 1º de janeiro de 1990, teve como finalidade precípua tornar mais ágil o procedimento perante as instâncias componentes do Sistema Europeu, tendo alterado os arts. 20, 21, 23, 28, 29, 30, 31, 34, 40, 41 e 43 da Conven-ção Europeia. Sobre tais alterações não se faz necessário tecer maiores considerações, uma vez que restaram elas prejudicadas posteriormente, em razão da superveniência do Protocolo n. 11, comentado mais adiante.

Em 01 de outubro de 1994 entrou em vigor o Protocolo n. 9 que, segundo Cançado

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Trindade (2003, p. 131), consagrou “o direito de acesso direto dos indivíduos à Corte Europeia para a esta submeter determinados casos, já considerados pela Comissão”, ou seja, já filtrados por ela e que tenham sido objeto de relatório dela, o que sem dúvida foi “um passo significativo para o fortalecimento da posição do indivíduo no contencioso internacional dos direitos huma-nos, mediante a asserção do seu locus standi no procedimento perante a Corte Europeia”.

Apesar de o Protocolo n. 9 possibilitar ao indivíduo o peticionamento perante a Corte, o Sistema Europeu ainda carecia de aprimoramentos, o que ocorreu com a entrada em vigor do Protocolo n. 11, um marco para a evolução da Corte Europeia de Direitos Humanos.

São duas as principais modificações produzidas pelo referido Protocolo na estrutura do Sistema Europeu: a) conforme já mencionado anteriormente, houve a substituição, tanto da Comissão como da Corte Europeia (órgãos originários criados pela Convenção), por uma nova Corte, de caráter permanente, com competência para realizar os juízos de admissibilidade e de mérito dos casos de violações de direitos humanos previstos na Convenção que lhe forem sub-metidos (art. 19 da Convenção, emendado pelo Protocolo n. 11); b) e a autorização automática8 para que indivíduos, grupos de indivíduos e organizações não governamentais tenham acesso direto à Corte, sem a necessidade de um órgão intermediário para a análise da admissibilidade da petição – papel que era desempenhado pela Comissão (art. 34 da Convenção, emendado pelo Protocolo n. 11).

Nesse sentido, Cançado Trindade (2003, p. 139) afirma que com as referidas mudan-ças, “buscou-se fortalecer os elementos judiciais do sistema europeu de proteção e agilizar o procedimento (evitando os atrasos e duplicações que se mostraram inerentes ao regime jurídico anterior)”, alimentando-se a “esperança no sentido de que o novo mecanismo do Protocolo 11, tendo a Corte como órgão jurisdicional único, fomentaria o desenvolvimento de uma jurispru-dência protetora homogênea e claramente consistente”.

Assim, atualmente a Convenção Europeia admite petições interestatais e individuais, uma vez que, pelo seu art. 33, qualquer Estado-membro pode ajuizar ação contra outro Estado--membro.

Ainda sobre os mecanismos de aperfeiçoamento do Sistema Europeu, importante res-saltar o Protocolo n. 14, que entrou em vigor em 1º de junho de 2010, concebido com a finalidade de desafogar a sobrecarga de processos e trabalhos da Corte, bem como do Comitê de Minis-tros, visando-se uma melhor efetivação dos serviços prestados. Reforçando a capacidade de filtragem da Corte, o Protocolo permite que um juiz singular decida sobre a inadmissibilidade das petições e sobre seu arquivamento, decisão esta que passa a ser definitiva, nos termos do art. 27 da Convenção, com a redação que lhe foi dada pelo art. 7º do Protocolo.9

8 Conforme explica Malcolm N. Shaw, “originalmente, o direito de petição individual só era admitido se o Estado requerido houvesse declarado, em obediência ao antigo artigo 25, que reconhecia a competência da Comissão para receber tais petições. Depois da entrada em vigor do Protocolo XI, esse direito é automático”. (2010, p. 270) O autor também ressalta que “o sistema da Convenção não contempla uma actio popularis ou ação popular. Os indivíduos não têm o direito de suscitar questões abstratas; devem alegar ter sido vítimas da violação de um ou mais direitos previstos na Convenção”. (2010, p. 271)9 Para um estudo pormenorizado acerca das mudanças e inovações trazidas pelo Protocolo n. 14, v.g., a questão da filtragem dos casos,

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3 A PROCESSUALÍSTICA DAS PETIÇÕES PERANTE A CORTE EUROPEIA

O procedimento perante a Corte Europeia de Direitos Humanos tem início com uma petição estatual ou individual que lhe é apresentada. Denomina-se queixa estadual a comuni-cação de um Estado perante a Corte, sobre violações de direitos humanos praticadas por outro Estado (art. 33). Por outro lado, é chamada de queixa individual a comunicação promovida por um particular-vítima, grupo de particulares ou uma organização não governamental, a respeito da violação das normas da Convenção por parte de um Estado soberano (art. 34).

Para promover a queixa, o legitimado pode dirigir-se diretamente ao Tribunal sediado na cidade de Estrasburgo. O processo é público (art. 40, 1), devendo ser garantido o contraditó-rio e a ampla defesa (art. 38), salvo nos casos em que o Tribunal Pleno determinar, de maneira diferenciada, em virtude de conjuntura excepcional (art. 40, 1). Pelo fato de os processos serem públicos, é garantido a qualquer pessoa ou entidade o acesso aos documentos e petições (art. 40, 2).

É possível que a vítima, pessoa física, apresente sua própria queixa sem advogado, o que não é, no entanto, recomendado, em face das complexidades que determinados casos po-dem apresentar. Ademais, a representação por advogado será obrigatória para as audiências e para o momento posterior, depois de a queixa ser declarada admissível.

Importante frisar que os queixosos hipossuficientes podem utilizar-se da assistência judiciária, criada pelo Conselho da Europa. Este mecanismo tem a finalidade de proporcionar o devido acesso à justiça no âmbito do Tribunal, àqueles que não possuem condições de fazê-lo sem prejuízo de seu sustento ou de sua família. Assim, se o queixoso “considera que os seus di-reitos em matéria de assistência judiciária foram violados, tem assim a possibilidade, sob certas condições, de submeter a questão ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”.10 Ainda sobre a assistência judiciária, cumpre salientar que somente a Alemanha não é signatária do acordo europeu que proporciona este direito.

As línguas oficiais empregadas na sistemática dos trabalhos da Corte são o francês e o inglês, mas as queixas podem, perfeitamente, serem ofertadas nas línguas oficiais dos Esta-dos-membros. Admitida a petição da queixa, o processamento se dará perante o francês/inglês, salvo se o Presidente do Tribunal Pleno permitir a língua pátria do Estado.11

As condições de admissibilidade de um caso perante a Corte Europeia estão previstas no art. 35 da Convenção e, em síntese, são as seguintes: a) esgotamento de todas as vias de re-curso internas12 (no âmbito da jurisdição do Estado-parte), em conformidade com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos; b) respeito ao prazo de 6 meses, contados da

as novas Câmaras, o novo “terreno” da admissibilidade, as mudanças peculiares relativas aos casos repetitivos etc., vide: FØLLESDAL; PETERS; ULFSTEIN, 2013, p. 33-42. 10 A assistência judiciária é um direito fundamental reconhecido pelo Conselho da Europa. Disponível em: <http://ec.europa.eu/civiljus-tice/legal_aid/legal_aid_int_pt.htm>. Acesso em 30 abr. 2015.11 Direitos Humanos. Conselho da Europa, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: História, Organização, e Processo. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em 30 abr. 2015.12 A questão do esgotamento das vias recursais internas foi bem ventilada pela Corte no caso Akdivar e outros vs. Turquia.

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data da decisão interna (do Estado-parte) definitiva; c) não ser anônima a petição; d) não ser a petição idêntica a outra anteriormente analisada pela Corte ou já submetida a outra instância internacional de inquérito ou de decisão e não contiver fatos novos capazes de ensejar uma nova apreciação (requisito da inexistência de litispendência internacional); e) não ser a petição incompatível com o disposto na Convenção ou em seus Protocolos (inexistência de incompati-bilidade ratione temporis, personae e materiae); e f) não ser manifestamente infundada ou de caráter abusivo. (SHAW, 2010, p. 271-272; PIOVESAN, 2014, p. 122-123)

A petição inicial dirigida à Corte deverá constar no polo passivo o Estado-parte a quem se imputa a violação de algum dos dispositivos da Convenção ou de seus respectivos Protocolos. Se declarada inadmissível uma petição, contra essa decisão não caberá qualquer recurso, conforme se verá a seguir.

No tocante ao juízo de admissibilidade realizado por Juízes Singulares, a queixa po-derá ser recusada (declaração de inadmissibilidade ou determinação de arquivamento13) por decisão de um juiz singular, sempre que essa decisão puder ser adotada sem a necessidade de um exame complementar (art. 27, 1), caso em que será definitiva (art. 27, 2). Sendo admitida a queixa, ela será encaminhada a um dos Comitês ou Seções para apreciação do caso (art. 27, 3).

Em relação ao juízo realizado pelos Comitês, ao receber uma petição individual, de-terminado Comitê pode declará-la inadmissível ou arquivá-la, sempre que esta decisão puder ser adotada sem a necessidade de um exame complementar (art. 28, 1, “a”). Em havendo juris-prudência pacificada pela Corte ou se for um caso de simples solução, é possível a prolação de sentença de plano (art. 28, 1, “b”). O Comitê poderá ainda declarar a admissibilidade da petição e proferir uma sentença quanto ao fundo da questão que lhe foi submetida (decisão de mérito), sempre que a questão subjacente ao assunto e relativa à interpretação ou à aplicação da Con-venção ou dos respectivos Protocolos for já objeto de jurisprudência bem firmada do Tribunal (art. 28, 1, “b”). Em todos esses casos a decisão do Comitê será definitiva (art. 28, 2).

Em não havendo uma decisão de fundo pelo Comitê, na forma e nos casos descritos no parágrafo anterior, e em havendo a admissibilidade da petição, importa ressaltar que a Conven-ção estabelece que a Corte (Seção ou Tribunal Pleno) deverá proceder a uma apreciação contra-ditória do assunto que lhe foi submetido, em conjunto com os representantes das Partes e, se for caso disso, realizar um inquérito para cuja eficaz condução os Estados interessados fornecerão todas as facilidades necessárias (art. 38). As Partes poderão, em qualquer assunto sub judice, apresentar as provas que entenderem pertinentes e participar da audiência que será pública (art. 36, 1). É admitida a intervenção de terceiros (art. 36, 2), sendo facultado ao presidente da Corte, no interesse da boa administração da justiça, convidar qualquer Estado-parte da Convenção ou pessoa interessada, desde que não sejam partes no processo.

13 O art. 37 da Convenção trata do arquivamento de uma petição dispondo que “1. O Tribunal pode decidir, em qualquer momento do processo, arquivar uma petição se as circunstâncias permitirem concluir que: a) O requerente não pretende mais manter tal petição; b) O litígio foi resolvido; c) Por qualquer outro motivo constatado pelo Tribunal, não se justifica prosseguir a apreciação da petição. Contudo, o Tribunal dará seguimento à apreciação da petição se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção assim o exigir. 2. O Tribunal poderá decidir – se pelo desarquivamento de uma petição se considerar que as circunstâncias assim o justificam”.

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Não havendo decisão anterior sobre a admissibilidade (nos termos dos arts. 27 e 28) e nenhuma sentença tiver sido proferida nos termos do art. 28, uma Seção poderá decidir quanto à admissibilidade e à questão de fundo (mérito) das petições individuais (formulada nos termos do art. 34) ou estaduais (formulada nos termos do art. 33), podendo separar a questão de fundo da questão de admissibilidade (art. 29, 1). A Seção poderá ainda encaminhar a questão meritória à Grande Câmara (Tribunal Pleno), quando se tratar de caso que importe em interpretação da Convenção e seus Protocolos ou se a solução de um litígio puder conduzir a uma contradição com uma sentença já proferida pelo Tribunal (art. 30). Este é o órgão responsável por garantir a uniformização das decisões do Tribunal, servindo como um guardião da Convenção, sendo equiparado, v.g., às Supremas Cortes dos países. Nesse sentido Flávia Piovesan (2014, p. 120) esclarece que a “Corte simboliza hoje a Corte Constitucional da Europa, exercendo profunda autoridade jurídica e moral no que tange aos regimes democráticos do continente”.

O Tribunal Pleno, por sua vez, deverá se pronunciar sobre as petições formuladas nos termos dos arts. 33 ou 34, sempre que a Seção tiver cessado de conhecer de um assunto nos termos do art. 30 da Convenção ou se o assunto lhe tiver sido cometido nos termos do artigo 43 (art. 31, “a”). Também deverá se pronunciar sobre as questões submetidas ao Tribunal pelo Co-mitê de Ministros, nos termos do artigo 46, 4 (art. 31, “b”), devendo ainda apreciar os pedidos de parecer formulados nos termos do art. 47 (art. 31, “c”).

Importa destacar que em qualquer momento do processo, a Corte poderá colocar-se à disposição dos interessados com a finalidade de se alcançar uma resolução amigável da questão que lhe foi submetida, inspirada no respeito aos direitos humanos, como tais reconhecidos pela Convenção e por seus Protocolos (art. 39, 1). Em sendo alcançada uma resolução amigável, em um procedimento que será confidencial (art. Art. 39, 2), a Corte arquivará o assunto, proferindo, para o efeito, uma decisão que conterá uma breve exposição dos fatos e da solução adotada (art. 39, 3). O cumprimento do acordo alcançado será supervisionado pelo Comitê de Ministros (art. 39, 4).

Obviamente, não se chegando à uma resolução amigável da questão, a Corte deverá, observado o princípio do devido processo legal e demais princípios de Direito Internacional, proferir uma decisão de fundo, resolvendo o mérito da questão que lhe foi submetida.

4 AS DECISÕES DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS: EFICÁCIA, CARACTERÍSTICAS E CASUÍSTICA

Em relação à questão de fundo, se a Corte entender que houve a violação de direitos humanos previstos na Convenção ou em algum de seus Protocolos, proferirá então uma decisão de mérito, de natureza declaratória. (PIOVESAN, 2014, p. 122)

As Seções decidem por maioria e qualquer juiz que tenha participado do exame do caso poderá juntar ao acórdão uma opinião em apartado – seja ela concordante ou dissidente – ou uma simples declaração de desacordo (arts. 42 e 45, 2). As decisões das Seções tornam-se

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definitivas a) se as partes declararem que não solicitarão a devolução do assunto ao Tribunal Pleno; b) três meses após a data da decisão, se a devolução do assunto ao Tribunal Pleno não for solicitada; e c) se o coletivo do Tribunal Pleno rejeitar a petição de devolução formulada nos termos do art. 43 da Convenção (art. 44, 2).

Conforme se vê, dentro do prazo de três meses a contar da data da decisão proferida por uma Seção, qualquer das partes poderá, em casos excepcionais, solicitar a devolução do assunto ao Tribunal Pleno. Nesse caso, um coletivo composto por cinco juízes do Tribunal Pleno14 aceitará a petição, se o assunto levantar uma questão grave quanto à interpretação ou à aplicação da Convenção ou dos seus Protocolos ou ainda se levantar uma questão grave de repercussão geral. Se o coletivo de juízes aceitar a petição, o Pleno deverá se pronunciar sobre o assunto, sendo que a decisão ocorrerá também por maioria e será definitiva (art. 43).

As decisões do Tribunal (Seção ou Tribunal Pleno) são definitivas (art. 44, 1) e juri-dicamente vinculantes e obrigatórias para os Estados requeridos (art. 46, 1), que deverão dar seguimento e cumprimento, no âmbito de seu direito interno, ao conteúdo da decisão prolatada, uma vez presente a coisa julgada. A decisões definitivas serão publicadas (art. 44, 3) e deverão ser fundamentadas (art. 45, 1).

No tocante às espécies de provimentos jurisdicionais emanados da Corte, um vasto rol de medidas gerais ou específicas podem ser determinadas, tanto de cunho pecuniário como de natureza extrapecuniária.

Se a Corte declarar que houve a violação da Convenção ou de seus Protocolos e se o direito interno do Estado requerido não permitir senão parcialmente remediar as consequências da violação ocorrida, a Corte atribuirá à parte lesada uma justa reparação, se assim entender necessário (art. 41). Portanto, embora a natureza da decisão seja declaratória – no sentido de afirmar se a Convenção e seus Protocolos foram violados ou não (DUPUY, 2004, p. 244), nos termos do referido dispositivo convencional, a Corte poderá proferir uma decisão determinando o pagamento de uma indenização pecuniária, que terá como finalidade compensar um dano material ou moral sofrido pela vítima, bem como ressarci-la pelos gastos que teve com o pro-cedimento judicial interno (ocorrido no âmbito do direito doméstico de seu país) e com aquele ocorrido no âmbito do sistema da Convenção.

No tocante aos comandos extrapecuniários contidos na decisão da Corte, o conteúdo das obrigações de fazer ou não fazer que podem constar da decisão é bastante abrangente e diversificado, v.g., a Corte poderá impor ao Estado a obrigação de promover adequações legis-lativas (criação, extinção ou modificação de leis internas) ou mesmo reformas administrativas no âmbito de seu direito interno; determinar alterações nas práticas dos órgãos jurisdicionais internos do país; impor ao Estado a obrigação de investigar fatos, julgar e, se o caso, punir os responsáveis por violações de direitos humanos no âmbito interno dos Estados; determinar a

14 Esse coletivo de cinco juízes do Tribunal Pleno é composto pelo presidente do Tribunal, pelos presidentes de Câmara, com exceção do presidente da Câmara à qual pertence a Seção que proferiu o acórdão, e por um outro juiz, escolhido, através de um sistema de rotação, entre os juízes que não participaram nas deliberações da Seção que proferiu o acórdão.

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realização de ato público de reconhecimento da responsabilidade estatal, com a presença de altas autoridades do país e das vítimas; determinar que o Estado promova programas de capa-citação de pessoal voltados ao aperfeiçoamento da tutela de direitos protegidos pela Convenção etc. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2014, p. 125) elenca algumas medidas que têm sido deter-minadas pela Corte, tais como:

a alteração da law on contempt of court no Reino Unido – Sunday Times vs. United Kingdom; mudanças afetas às regras de correspondências de presos – Silver e outros vs. United Kingdom; alteração em procedimentos criminais – Assenov e outros vs. Bulgária; abolição de punição corporal na Isle of Man — Tyrer vs. United Kingdom; abolição de punição corporal em escolas – Campbell e Cosans vs. United Kingdom; discriminalização da prática consensual homossexual na Irlanda do Norte – Dudgeon vs. United Kingdom; alteração de regras imigratórias discriminatórias – caso Abdulaziz, Cabales e Balkandali vs. United Kingdom.

Conforme se verifica, no âmbito daquilo que tem sido denominado pela doutrina como medidas de satisfação e garantias de não-repetição, reside a possibilidade de determinação de um vasto rol de medidas gerais ou específicas, consistentes em obrigações de fazer ou não fazer, visando a cessação da violação de direitos humanos, bem como a sua não-repetição e a satisfação dos direitos das vítimas lesadas.

Vale ressaltar que no entendimento da Corte, os Estados-partes são, em princípio, livres no tocante à escolha dos meios pelos quais deverão cumprir a decisão da Corte que entender no sentido de que houve violação a direito enunciado na Convenção. Esta discricionariedade, no que tange à forma de executar a decisão, reflete a liberdade de escolha concernente à primeira obrigação consagrada pela Convenção aos Estados-partes, que é a obrigação de assegurar os direitos e liberdades nela garantidos (art. 1º). Nesse sentido, acerca da obrigação prevista no art. 1º da Convenção Flávia Piovesan (2014, p. 112) destaca que

essa cláusula obriga os Estados a adotar todas as medidas necessárias no âmbito doméstico visando à implementação da Convenção, tendo em vista a necessidade de compatibilizar o direito interno com os parâmetros convencionais, o que pode envolver a adoção de medidas legislativas internas ou mesmo a revogação de normas incompatíveis com a Convenção.

Conforme já mencionado anteriormente, as decisões da Corte deverão ser transmitidas ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa, a quem caberá o desafio de supervisionar o seu cumprimento (art. 46). Eis aqui um perfil do modelo europeu de monitoramento do cumprimen-to das decisões da Corte Europeia, pois o Comitê “poderá considerar comunicação da vítima a respeito do pagamento de justa indenização ou de medidas adotadas em seu caso específico”. (PIOVESAN, 2014, p. 129)

No exercício de suas funções, sempre que o Comitê de Ministros considerar que a su-pervisão da execução de uma decisão definitiva está sofrendo um entrave por uma dificuldade

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de interpretação dessa decisão, poderá dar conhecimento à Corte, a fim que ela se pronuncie sobre essa questão de interpretação, sendo que a decisão de submeter a questão à apreciação do Tribunal será tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares (art. 46, 3).

Por outro lado, sempre que o Comitê considerar que um dos Estados-membros se recu-sa a respeitar uma sentença definitiva num litígio em que esta seja parte, poderá, após notifica-ção desse Estado e por decisão tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares, submeter à apreciação do Tribunal a questão sobre o cumprimento, por esse Estado, da sua obrigação, em conformidade com a responsabilidade que foi assumida ao ratificar a Convenção (art. 46, 4).

O art. 54 da Convenção estabelece que “nenhuma das disposições da presente Conven-ção afeta os poderes conferidos ao Comitê de Ministros pelo Estatuto do Conselho da Europa”. A importância e autoridade dada ao Comitê tanto pelo Estatuto do Conselho da Europa como pela Convenção, enquanto órgão político e diplomático, tem ensejado uma atuação muito sa-tisfatória no papel que lhe foi designado (PIOVESAN, 2014, p. 130), já que a pressão exercida sobre os Estados-membros da Convenção no tocante ao cumprimento das decisões emanadas da Corte tem produzido resultados. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2014, p. 131) esclarece que:

o sistema europeu tem revelado alto grau de cumprimento das decisões da Corte, seja por envolver países que tradicionalmente acolhem o princípio do Estado de Direito, seja por expressar a identidade de valores democráticos e de direitos humanos compartilhados por aqueles Estados na busca da integração política, seja ainda pela credibilidade alcançada pela Corte, por atuar com justiça, equilíbrio e rigor intelectual.

Por fim, conforme explica a autora, “em caso de não cumprimento da decisão da Corte, a sanção última a ser aplicada ao Estado violador é a ameaça de expulsão do Conselho da Eu-ropa, com fundamento nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho”. (PIOVESAN, 2014, p. 130)

4.1 A principiologia e a casuística na corte europeia de direitos humanos

Uma vez analisada a eficácia e as principais características pertinentes às decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, vale o estabelecimento de alguns comentários, ainda que sucintos, no tocante a alguns princípios jurídicos adotados pela Corte no bojo de seu pro-cedimento decisório, bem como alguns comentários acerca de alguns casos por ela decididos, a fim de que se possa aferir as principais características da sua atuação prática na proteção e salvaguarda de importantes direitos consagrados na Convenção.

No tocante à principiologia adotada pela Corte Europeia na hermenêutica dos direitos previstos na Convenção, Flávia Piovesan (2014, p. 114-118) destaca quatro princípios merecedo-res de destaque, em razão de sua relevância.

O primeiro princípio a ser destacado é o da interpretação teleológica da Convenção, que traduz a busca de realização de seus objetivos e propósitos. (OVEY; WHITE, 2002, p. 27)

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Nesse sentido, a Corte tem entendido que determinados artigos da Convenção devem funcionar como verdadeiros guias norteadores de sua interpretação, v.g., os arts. 31 a 33, que estabelecem as atribuições e a competência da Corte para análise de qualquer caso relativo à violação de todo e qualquer direito previsto na Convenção. No entendimento da Corte, torna-se necessária a obtenção da interpretação mais apropriada com vistas à implementação dos objetivos e alcan-ce dos propósitos da Convenção, o que implica no afastamento de leituras interpretativas que restrinjam o alcance das obrigações assumidas pelos Estados-partes. (OVEY; WHITE, 2002, p. 35) A própria Corte Europeia também já asseverou que a “Convenção deve ainda ser inter-pretada, tanto quanto possível, em harmonia com os outros princípios de direito internacional”. (SHAW, 2010, p. 266)

Um segundo princípio que merece destaque e assume importância na desempenho das tarefas da Corte é o princípio da interpretação efetiva, segundo o qual o Tribunal, no exercício de suas funções, deverá conferir aos dispositivos elencados na Convenção, a maior efetividade possível em cada caso concreto, buscando sempre assegurar à vítima de uma violação dos di-reitos previstos na Convenção, o pleno acesso a soluções e remédios práticos e efetivos e não apenas a soluções teóricas ou ilusórias, esvaziadas de conteúdo concreto. Conforme destacam Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein (2013, p. 10, 18), várias disposições da Conven-ção preveem a necessidade de uma implementação efetiva dos direitos nela previstos, inclusive o seu próprio preâmbulo clama pelo reconhecimento e pela observância efetiva desses direitos, que serão melhor preservados por uma “democracia política efetiva”.

O terceiro princípio que merece destaque em razão de sua relevância é o princípio da interpretação dinâmica e evolutiva da Convenção Europeia. Por ele, a Corte Europeia deverá sempre considerar as mudanças sociais e políticas ocorridas no âmbito do continente europeu, a fim de realizar uma adequada interpretação de todos os direitos e garantias previstos na Con-venção.

Nesse contexto, Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein (2013, p. 21) explicam que a Convenção é considerada pela Corte um “instrumento vivo”, razão pela qual em suas atividades, ela busca desenvolver as normas da Convenção, v.g., por meio da análise compara-tiva da lei e da prática dos Estados-membros, respeitando os limites de proteção dos direitos humanos protegidos, bem como os interesses dos Estados. A concepção que se tem é de que o real alcance e o significado dos direitos consagrados não podem restar confinados e estagnados às concepções relativas ao momento histórico em que a Convenção foi concebida.

Nesse sentido afere-se que uma das principais tarefas da Corte consiste no desenvol-vimento do próprio alcance e o sentido dos direitos humanos, à luz do contexto e dos valores contemporâneos. Malcolm N. Shaw também destaca que a própria Corte sublinhou que a Con-venção “é um instrumento vivo, a ser interpretado à luz das condições do presente”15, aduzindo

15 Para uma visão aprofundada acerca da Convenção como um organismo vivo, seu significado e legitimidade vide: FØLLESDAL; PE-TERS; ULFSTEIN, 2013, p. 106-141.

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o autor que “essa abordagem se aplica não somente aos direitos substantivos protegidos pela Convenção, mas também às disposições que regem o funcionamento dos mecanismos de garan-tia desses direitos”. (SHAW, 2010, p. 266)

Por fim, merece destaque o princípio da proporcionalidade, um quarto princípio de uso recorrente pela Corte Europeia no desenvolvimento de suas atividades. (FØLLESDAL; PETERS; ULFSTEIN, 2013, p. 10-11) Cabe aqui destacar-se que se trata de um princípio de aplicação comum tanto no âmbito do direito interno dos Estados como no plano internacional.

Genericamente, o princípio da proporcionalidade pressupõe existir uma razoável re-lação de proporcionalidade entre os meios empregados e o fim a ser alcançado, devendo-se sempre proibido os excessos. No contexto da Convenção, o que se busca por meio da aplicação desse princípio aos casos decididos pela Corte é o “justo equilíbrio entre as demandas do inte-resse geral da comunidade e as demandas de proteção de direitos fundamentais individuais”. (PIOVESAN, 2014, p. 116) Conforme explicam Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein (2013, p. 19), a proporcionalidade mede a intensidade das limitações aos direitos humanos indi-viduais e avaliam o equilíbrio entre os interesses de um determinado Estado-parte da Conven-ção e os interesses do indivíduo, no bojo de um caso concreto.

Obviamente o papel desse princípio será de maior relevância em áreas nas quais a Convenção expressamente permite restrições de direitos, pois nos casos em que a própria Con-venção permitir a restrição de direitos, essa “restrição deverá ser efetuada pelo Estado em prol de uma finalidade legítima, ser adequada em seus propósitos e estritamente necessária”. (PIO-VESAN, 2014, p. 117)

A atividade desenvolvida pela Corte Europeia de Direitos Humanos tem sido muito intensa nos últimos anos, principalmente após as reformas e modificações produzidas pelos Protocolos anteriormente comentados, que tiveram o condão de aperfeiçoar o sistema, facili-tando o acesso à Corte, que por sua vez tem decidido sobre uma ampla diversidade de assuntos envolvendo dos direitos protegidos pela Convenção Europeia.

Não caberia aos propósitos do presente texto proceder à uma análise exaustiva da imensa gama de casos que têm sido decididos pela Corte. Contudo, alguns sucintos comentários acerca da casuística que envolve a atividade do Tribunal na proteção dos direitos humanos no continente europeu são pertinentes.

No exercício de suas atividades, a Corte já foi chamada a lidar com diversos casos difíceis, envolventes de assuntos críticos.

Um dos pilares de atuação da Corte tem sido no tocante à proibição da tortura e de penas e tratamentos desumanos e degradantes (art. 3º da Convenção), fator responsável pela condenação de diversos países do continente europeu16, já que a norma prevista no referido dispositivo convencional (“ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamen-tos desumanos ou degradantes”) é entendida e caracterizada no plano do Direito Internacional

16 Por exemplo, o caso Al-Adsani vs. Reino Unido – 35763/97 [2001] ECHR 761 (21 November 2001).

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como uma norma de jus cogens, ou seja, uma norma imperativa de direito internacional geral.17

Em um caso entre Irlanda vs. Reino Unido, v.g., a Corte entendeu e julgou no sentido de que as técnicas de interrogatório (cinco técnicas) usadas pelas forças britânicas na Irlanda do Norte representavam um tratamento desumano e degradante, implicando em uma violação do art. 3º da Convenção.

Em um caso julgado em julho de 2013, entre Douglas Vinterm, Jeremy Barber e Peter Moore vs. Reino Unido, a Corte condenou o país em decorrência do rigor de sua legislação sobre a prisão perpétua. Decidiu-se que os três detentos submetidos a esta sanção padeciam de tratamento considerado desumano e degradante, tendo em vista a irreversibilidade da prisão.18 No julgamento, os juízes consideraram que todos os condenados têm de ter uma possibilidade clara de, algum dia, ter a sua punição revista.

Ainda sobre os tratamentos desumanos e degradantes, inclui-se a questão da pena de morte. O caso mais famoso, emblemático e controverso apreciado pela Corte foi Söring vs. Rei-no Unido19, que não apreciou a questão da pena de morte em si, mas in casu, entendeu-se que não haveria possibilidade de extradição de Söring para os Estados Unidos, levando em conside-ração as consequências que iria suportar se retornasse à América (v.g., o método de execução, as circunstâncias pessoais do detido, a desproporcionalidade da sentença para a gravidade do crime e as condições de detenção). A Corte decidiu que nesse caso a pena de morte seria um tratamento cruel. Mais tarde, Söring foi extraditado, entretanto, os Estados Unidos se compro-meteram a garantir-lhe uma vasta gama de direitos, a fim de que ele não fosse submetido à pena de morte. Na mesma linha a Corte decidiu, no caso Jabari vs. Turquia, que a deportação para o Irã de uma mulher que correria o risco de ser apedrejada seria violação do art. 3º da Convenção.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos também já apreciou a questão das penas de caráter corporal. O caso Tyrer vs. Reino Unido20 foi emblemático. O menino cometeu um crime aos 15 (quinze) anos de idade e foi condenado a uma pena corporal correspondente a 3 (três) chicotadas, que foram efetuadas em uma Delegacia de Polícia. A Corte decidiu, por 6 (seis)

17 A norma de jus cogens está prevista no art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT): “Art. 53. Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens). É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual ne-nhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. André de Carvalho Ramos (2011, p. 445-446) conceitua como norma imperativa de Direito Internacional (também denominada norma cogente ou norma de jus cogens) como “aquela que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo, o que lhe acarreta superioridade normativa no choque com outras normas de Direito Internacional”. Esclarece ainda o autor que “pertencer ao jus cogens não significa ser considerada tal norma como obrigatória, pois todas as normas internacionais o são: significa que, além de obrigatória, a norma cogente não pode ser modificada ou eliminada, a não ser que a tal modificação ou eliminação sejam oriundas de norma imperativa posterior”. Para uma melhor compreensão do tema, vide também: RODAS, João Grandino. Jus Cogens em Direito Internacio-nal. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66736/69346>. Acesso em 30 abr. 2015; TOMUSCHAT, Christian; THOUVENIN, Jean-Marc. The Fundamental Rules of the International Legal Order: Jus Cogens and Obligations Erga Omnes. Martinus Nijhoff Publishers, 2006; BAPTISTA, Eduardo Correia. Ius Cogens em Direito Internacional. Lisboa: Lex, 1997. Vide também decisão proferida no caso n. IT-95-17/I-T, (1999), in International Legal Materials, julgado em 10 de Dezembro de 1998.18 Reino Unido é condenado na Corte Europeia de Direitos Humanos por rigor em prisão perpétua. Disponível em <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/29902/reino+unido+e+condenado+na+corte+europeia+de+direitos+humanos+por+rigor+em+prisao+perpetua.shtml>. Acesso em 30 abr. 2015.19 Documento número 14038/88, julgado 07 de Julho de 1989.20 Documento número 5856/72, julgado no dia 25 de Abril de 1978.

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votos a 1 (um), pela ilegalidade da pena, que foi entendida como degradante. Por outro lado, na análise do caso Costello-Roberts vs. Reino Unido21, a Corte entendeu que a punição não feria, propriamente, o art. 3º da Convenção. No caso, a mãe denunciou o Reino Unido, tendo em vista que sua filha, de 7 (sete) anos, se sujeitou a uma pena corporal em uma escola privada, de acordo com as regras de disciplinas existentes.

A Corte também já apreciou diversos casos envolvendo a questão das condições dos presídios europeus. No caso Aleksandr Novoselov vs. Rússia22, a Corte entendeu, pela primeira vez, que a conjuntura apresentada pelo sistema prisional na cidade de Novorossiysk, onde o indivíduo cumpria pena, era considerado um tratamento degradante. Na decisão desse caso, a Corte também citou precedentes do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura acerca da superpopulação carcerária.

Em McCann vs. Reino Unido, a Corte, por apertada maioria, decidiu que a matança de três membros de uma unidade do Irish Republican Army (IRA) ou Exército Republicano Irlandês, pelas forças de segurança britânicas, por suspeita de estarem envolvidos na instalação de uma bomba em Gibraltar, constituía uma violação do direito à vida previsto no artigo 2º da Convenção. Em outro caso, o Tribunal julgou que o direito à vida, garantido pelo referido art. 2º, acarreta para os Estados a obrigação de tomar medidas adequadas para a proteção da vida dentro de sua jurisdição, conforme se vê no caso LCB vs. Reino Unido.

No caso Brogan e outros vs. Reino Unido, a Corte concluiu que o período de detenção de pelo menos quatro dias, sem oportunizar ao detento o direito de ter contato com um juiz ou outro órgão jurisdicional, determinado pela legislação antiterrorista britânica, constituía viola-ção da Convenção.

Cuidando de questões envolvendo a discriminação, no caso Marckx vs. Bélgica, a Corte ressaltou que a legislação belga que discriminava os filhos ilegítimos violava os arts. 8º (direito ao respeito à vida privada) e 14 (proibição de discriminação) da Convenção.

No tocante à discriminação quanto à orientação sexual, no emblemático caso Dud-geon vs. Reino Unido, a Corte considerou que a legislação aprovada no século XIX, para cri-minalizar atos homossexuais masculinos na Inglaterra, País de Gales e na Irlanda, também violava os referidos arts. 8º e 14 da Convenção.23 Como consequência dessa decisão, a prática consensual homossexual masculina foi descriminalizada na Irlanda do Norte, em outubro de 1982. Vale ressaltar que o comportamento homossexual feminino nunca foi considerado crimi-noso em qualquer lugar no Reino Unido.

Em igual direção, no caso Perkins e R. vs. Reino Unido e no caso Beck, Copp e Baze-ley vs. Reino Unido, a Corte decidiu no sentido de que a política de banir a presença de homos-

21 Documento número 13134/87, julgado no dia 25 de Março de 1993.22 Novoselov v. Rússia - 66460/01 [2005] ECHR 360 (2 June 2005).23 Nesse caso específico, a Corte entendeu que “a legislação da Irlanda do Norte acerca da proibição de condutas homossexuais entre adultos (maiores de 21 anos) era uma interferência indevida no direito ao respeito à vida privada, injustificada e desnecessária em uma sociedade democrática”. (PIOVESAN, 2014, p. 125)

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sexuais nas Forças Armadas, mediante investigação de sua vida privada e sexualidade, também constituía uma violação aos referidos arts. 8º e 14 da Convenção.

No caso Young, James e Webster vs. Reino Unido, a Corte julgou que a dispensa de fer-roviários de seus trabalhos, em razão da recusa de filiação a um sindicato no Reino Unido, cons-tituía fato passível de gerar indenização, outorgando esse direito aos trabalhadores demitidos.

A Corte também já decidiu que, em determinadas circunstâncias, um Estado teria a obrigação positiva de conduzir um inquérito ou investigação oficial eficaz em casos de morte de um indivíduo em decorrência do uso da força por parte de agentes do Estado, como se pode verificar no caso McCann vs. Reino Unido.

Em julgamento ocorrido em novembro de 2013, no caso Vallianatos e outros vs. Gré-cia, Corte Europeia apreciou um dos principais casos relativos ao direito dos homossexuais, concernente na possibilidade de pessoas do mesmo sexo constituírem união estável, sem que o Estado venha a interferir negativamente nesse sentido. Analisando a questão, entendeu a Corte que o direito de constituir família é universal e deve ser zelado pelo Estado em relação a todos os seus cidadãos, independente de condição sexual. A Corte asseverou ainda que o Estado deve aceitar e reconhecer esta maneira de formação familiar (família homoafetiva), de modo que, só pode, por lei, restringir direitos, caso constate-se argumentos razoáveis. Se não for o caso, estar-se-ia diante de um tratamento discriminatório. Importante acrescentar que a Corte funda-mentou em parte o seu entendimento, justamente em decorrência de posições distintas adotadas por países como a Grécia e a Lituânia, que restringem os direitos aos casais heterossexuais.24

Também no ano de 2013 a Corte foi chamada a se manifestar sobre a polêmica ques-tão que envolve o suicídio assistido, no caso Gross vs. Suíça. Apreciando o caso de uma idosa de 82 anos, que pleiteava o direito de internar-se em uma clínica para sofrer a eutanásia, sob a alegação de que, embora não estivesse doente, sua idade avançada era um percalço para suas atividades rotineiras e contribuía para as diversas limitações físicas que estava a experimentar, impedindo-a de gozar a sua vida com dignidade, a Corte entendeu que o direito de morrer deve-ria ser concedido a toda pessoa capaz de discernimento e consciente de sua conduta, restando o Estado a impossibilidade de intervir nesses casos, sob pena de violação do art. 8º da Convenção. A questão ainda deve ser julgada pelo Tribunal Pleno.25

Em 2014, a Corte foi chamada a decidir um importante caso envolvendo questões re-lativas à ofensas morais e o direito de reparação em razão dessas ofensas, veiculadas em sítios da internet que possibilitem comentários pelos usuários da rede mundial de computadores. No caso Delfi As vs. Estônia, o entendimento foi no sentido de que os portais eletrônicos da inter-net são responsáveis pela veiculação de conteúdo ofensivo à honra e à imagem do indivíduo, que partem de comentários de leitores do sítio. Diferentemente da concepção anterior, em que entendia que os sítios eram apenas responsáveis por comentários anônimos ou quando eram no-

24 Vallianatos and Others v. Greece (Applications nos. 29381/09 and 32684/09).25 Court agrees Grand Chamber hearing for Swiss ‘right to die’ complaint. Disponível em: <http://www.humanrightseurope.org/2013/10/court-agrees-grand-chamber-hearing-for-swiss-right-to-die-complaint/>. Acesso em 30 abr. 2015.

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tificados para retirar tais comentários e quedavam-se inerte, a Corte decidiu no sentido de que o portal deve sempre manter um filtro para os comentários feitos pelos usuários, com a finalidade de impedir certas manifestações que possam denegrir a imagem e a honra de alguém.

A era digital certamente ainda vai proporcionar à Corte o julgamento de questões bas-tante complexas, tais como o desafio de decidir se o impedimento dos presos ao uso da internet viola o direito de acesso amplo e irrestrito à informação e se a prisão justifica a limitação na liberdade de expressão, conforme previsto no art. 10 da Convenção. Nesse sentido, aguarda julgamento o caso Henrikas Jankovskis vs. Lituânia.26

Por fim, ainda quanto ao tema relativo às decisões emanadas da Corte Europeia de Direitos Humanos, importante acrescentar a situação peculiar ocorrente na Rússia, país esse que tem grande dificuldade em adequar seu ordenamento jurídico aos entendimentos exarados pelo Tribunal Europeu. Dentre os países submetidos à jurisdição da Corte, a Federação Russa é um dos que mais encontra complicações na efetivação das decisões, uma vez que possui regra-mento jurídico interno que muitas vezes entra em choque com os direitos humanos previstos na Convenção.27

No caso Kostantin Markin vs. Rússia, apreciado pela Corte em 2010, foi decidido que a lei russa que impede a licença paternidade aos pais militares é discriminatória, uma vez que a mesma regra permite a concessão da benesse às militares do sexo feminino, infringindo, assim, o artigo 14 da Convenção. Outro julgado digno de nota e que foi decidido pela Corte é o caso Shtukaturov vs. Rússia, apreciado em 2008. A decisão abordou a questão acerca da interdição de uma pessoa e sua submissão a um hospital de custódia, tendo a Corte decidido no sentido de que as diretrizes utilizadas pela Federação Russa no tocante a tais casos não eram compatíveis com os padrões europeus.

Evidente, portanto, a divergência de posicionamentos entre a Corte Europeia de Direi-tos Humanos e a Federação Russa, no que diz respeito às situações que envolvem a concepção da dignidade da pessoa humana, uma vez que, enquanto existe a atitude de se preservar cada vez mais sua essência, percebe-se que ainda há países que possuem sistemas arcaicos que em-pregam conjunturas medievais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou apresentar, ainda que sucintamente, um panorama da pro-teção dos direitos humanos no continente europeu. Para tanto, restou demonstrado que os hor-rores da 2º Guerra Mundial, com violações maciças de direitos inerentes aos seres humanos,

26 Corte Europeia julga se preso pode usar Internet. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-06/curte-europeia-julga-preso--direito-acesso-internet>. Acesso em 30 abr. 2015.27 Nesse sentido, vide interessante e elucidativo texto: ISSAEVA, Maria; SERGEEVA, Irina; SUCHKOVA, Maria. Execução das de-cisões da Corte Europeia de Direitos Humanos na Rússia: Avanços recentes e desafios atuais. In: Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos. Edição v. 8, n. 15, Jan/2011. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/15/1000166-execucao-das-decisoes--da-corte-europeia-de-direitos-humanos-na-russia-avancos-recentes-e-desafios-atuais>. Acesso em 30 abr. 2015

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constituiu a mola propulsora para o nascimento e o desenvolvimento de sistemas protetivos de direitos humanos fundamentais, tanto no plano global como em âmbito regional.

Assim, ao lado do sistema universal de proteção dos direitos humanos, arquitetado no âmbito das Nações Unidas, surgiram os sistemas regionais de proteção, sendo que o sistema regional europeu foi o primeiro a ser instituído, em 1950.

Em sendo o objeto de estudo do presente texto, o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos foi analisado, levando-se em consideração seus principais aspectos, sem obviamente pretender-se realizar um estudo exaustivo da temática proposta, o que não caberia dentro dos limites que se impõem à espécie de texto ora produzido.

Como tratado regente desse sistema, foi analisada a Convenção Europeia de Direitos Humanos, documento mais importante e a base de todo o sistema regional de proteção aos di-reitos humanos do velho continente, onde se pôde verificar a sua estrutura, os direitos que con-sagra, bem como os órgãos que a compõem, com destaque para a Corte Europeia de Direitos Humanos. Também foram tecidas várias considerações pertinentes, relativas aos importantes documentos internacionais, denominados Protocolos, que tiveram a importante função de aper-feiçoar o sistema europeu de proteção dos direitos humanos.

Em relação ao principal órgão da Convenção, restou analisada a estrutura da Corte Europeia de Direitos Humanos, onde foi possível se verificar os órgãos que a compõem, sua competência e aspectos relativos à processualística estabelecida pela Convenção para o trâmite dos casos que lhe são submetidos. Também foram analisados os princípios mais importantes utilizados pela Corte na interpretação da Convenção e dos direitos nela consagrados.

Por fim, por meio da análise ainda que perfunctória de alguns casos que têm sido de-cididos pela Corte, verificou-se a importância do Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos na atualidade. O que foi possível perceber por meio dos diversos julgados analisados é que o valor supremo do ser humano enquanto tal, bem como a sua dignidade, têm sido cada vez mais buscados em sua essência, ainda quando se trate de indivíduos que tenham sido con-denados criminalmente em seu país de origem ou em outros países.

Desta forma, verifica-se que a interpretação teleológica, efetiva, evolutiva e dinâmica da Convenção, que tem sido levada à efeito pela Corte, tem proporcionado uma grande abertura em sua natureza protetiva, ampliando-se a eficácia dos direitos protegidos, justamente com a finalidade de conter arbitrariedades estatais e, com a observância do princípio da proporciona-lidade, proporcionar a devida reparação nos casos de violações dos direitos consagrados pela Convenção.

Embora tenha sido o palco dos embates mais sangrentos da história da humanidade e das piores violações do direito à vida e à dignidade humana, parece que o continente europeu tem experimentado enfim, graças ao sistema regional de proteção de direitos que conseguiu instituir, um novo tempo! Um tempo onde as barbáries são coibidas, os abusos são reprimidos, a discriminação é amordaçada e a desigualdade é atenuada. Um tempo onde violações de direi-tos importam em justa reparação, ainda que não seja mais possível se alcançar o status quo. O

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importante mesmo é continuar progredindo!

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PROTECTING HUMAN RIGHTS IN THE EUROPEAN CONTINENT: BRIEF NOTES

ABSTRACT: This paper seeks to analyze the general contours of the human rights protection in the European Human Rights System, seek-ing to emphasize the components of this system organs, and the pro-cedure used in cases of violation of human rights. We begin with an analysis of the creation and system organization. Then the main aspects of the European Convention on Human Rights are analyzed and, final-ly, analyzes the role of the European Court of Human Rights and the processing of cases that are submitted to it, specifically as regards the effectiveness of their decisions.Keywords: European system of human rights. European court of human rights. European convention on human rights.

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Recebido em 15 abr. 2015 Aceito em 4 maio 2015

CRIMINALIDADE ORGANIZADA E JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA: DELAÇÃO PREMIADA

Luiz Flávio Gomes*

Marcelo Rodrigues da Silva**

1 MUDANÇA DE PARADIGMA (DA JUSTIÇA CONFLITIVA À JUSTIÇA CONSENSUADA)

Até 1990, a Justiça criminal brasileira seguia (ferreamente) o modelo conflitivo (clás-sico), que pressupõe investigação, denúncia, processo, ampla defesa, contraditório, produção de provas, sentença, duplo grau de jurisdição, etc. Praticamente, estava vedado qualquer tipo de negociação entre a acusação e a defesa. Não que um corréu não pudesse delatar seu comparsa; isso sempre foi possível; mas não se falava em novo paradigma de Justiça (mudanças pontuais não alteram o paradigma). Em 1990, com a lei dos crimes hediondos, foram ampliadas as pos-sibilidades de delação premiada (mas ainda não se falava em novo paradigma).

Mudança relevante no cenário aconteceu, verdadeiramente, com o advento da Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95), que rompeu o velho paradigma conflitivo nas infrações de menor potencial ofensivo (infrações com pena não superior a dois anos). Desde 1995, os dois subsistemas convivem, cada qual tendo validade num determinado âmbito da criminalidade. O importante é que o sistema de Justiça negociada nunca foi declarado inconstitucional pelo STF.

O oposto da Justiça conflitiva é a Justiça consensuada (que prega a resolução alterna-tiva do conflito penal). Dentro do guarda-chuva “Justiça consensuada” é necessário distinguir quatro subespécies: (a) Justiça reparatória (que se faz por meio da conciliação e da reparação dos danos – juizados criminais; crimes ambientais-TAC); (b) Justiça restaurativa (que exige um mediador, distinto do juiz; visa a solução do conflito, que é distinta de uma mera decisão); (c) Justiça negociada (onde se encaixa a plea bargaining, tal como nos EUA – 97% dos casos

* LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil (membro do MCCE).** MARCELO RODRIGUES DA SILVA, advogado, especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura e especialista em Direito Contratual pela PUC-SP.

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são resolvidos pela negociação, de acordo com o juiz federal norte-americano Jeremy D. Fogel, em entrevista para o Conjur) e (d) Justiça colaborativa (que é subespécie de Justiça negociada, caracterizando-se por premiar o criminoso quando colabora consensualmente com a Justiça criminal).

2 SISTEMA NORTE-AMERICANO

A Justiça consensuada (1) veio para ficar (nisso consiste o processo de norteamerica-nização da Justiça criminal), ou seja, pelo que é possível perceber vai se firmando a cada dia como novo paradigma da Justiça criminal; (2) implica necessariamente na existência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos (onde se permite a Justiça negociada há uma prolifera-ção de microssistemas jurídicos); (3) destaque merece, no sistema norte-americano, o instituto da plea bargaining, que exige a declaração de culpabilidade do agente - guilty plea; (4) a plea bargaining é diferente da plea of nolo contendere, que vale no Brasil para os juizados criminais: neste sistema o réu não admite sua culpabilidade, mas, ao mesmo tempo, não quer contender, não quer litigar, por isso aceita a transação; a plea bargaining tem como subespécie o approve-ment, que consiste na impunidade de um agente pelo testemunho dado, ou seja, pela colabora-ção dada; neste caso o sujeito não é sequer processado, tal como se permite agora na Lei 12.850, art. 4º, § 4º; (5) não se pode confundir a Justiça negociada (consensuada) com a mera confissão do crime (que no sistema nacional é circunstância atenuante, nos termos do art. 65, III, “d”, do CP); (6) a plea bargaining norte-americana se divide em charge bargaining (negociação sobre a imputação; troca-se uma acusação maior por uma menor, por exemplo), sentence bargaining (negociação sobre a pena e demais consequências do delito) e negociação mista (as duas coisas ao mesmo tempo); (7) a plea bargaining existe no sistema norte-americano desde o final do sé-culo XIX; (8) incontáveis razões levaram à sua adoção, destacando-se: o excesso de processos, amplo poder discricionário ao MP, complexidade do tribunal do júri, satisfação dos interesses dos atores processuais (excesso de trabalho com escassez de meios, pessoas e recursos, racio-nalização do trabalho; ganho de honorários mais rápido; evitar penas mais severas; excesso de trabalho dos defensores públicos, previsibilidade do resultado do processo, “crime wave” dos anos 60 nos EUA, reconhecimento da plea bargaining nos anos 70 pela Suprema Corte etc.); (9) dentre as razões da Justiça negociada nos EUA cabe destacar a ampla discricionariedade do MP (princípio da oportunidade extremada); (10) assim como a ampla disponibilidade do objeto do processo pelas partes.

São incontáveis (11) as críticas ao sistema de Justiça negociada nos EUA. Dentre os abusos praticados pelo MP destacam-se a overcharging (o MP se vale da sua posição privilegia-da para imputar mais crimes do que as provas permitem), a overrecomendation (o MP ameaça com pena maior que a recomendada pelos critérios de justiça) e a bluffing (o MP afirma menti-rosamente ter mais provas do que realmente possui). Para suavizar ou eliminar as vantagens do órgão acusatório, luta-se pelo respeito à (12) discovery (que consiste no recíproco conhecimento

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das provas, incluindo as das investigações paralelas, permitidas no sistema norte-americano); (13) à plea bargaining se aplica a teoria dos jogos, ou seja, se um delata, a posição mais favo-rável é a de todos delatarem; (14) a Justiça negociada dos EUA prevê uma série de garantias: documentação das negociações (em audiência aberta- in open court), presença de advogado, supervisão de um juiz (neste ponto nosso sistema é distinto); (15) quanto aos requisitos de va-lidade da negociação cabe elencar os seguintes: capacidade do acusado, declaração informada, declaração voluntária (nenhum tipo de coação ou ameaça), existência de base fática (que possa derrubar a presunção de inocência); (16) exige-se a homologação do juiz; (17) cabe revogação da negociação por vício da vontade (ameaça, constrangimento, violência) e impugnação por vícios precedentes (provas ilícitas, por exemplo); (18) outras críticas ao instituto da negociação crimi-nal são as seguintes: desjudicialização do conflito (o acordo se faz entre a acusação e a defesa, cabendo ao juiz a homologação), erosão do princípio acusatório (ou seja, do velho processo con-flitivo), erosão das garantias da defesa, aplicação desigual da lei penal, desconformidade com os fins da pena; (19) em virtude de todas as críticas, fala-se sempre em abolição do sistema ou regulação mais detalhada ou ainda em reforma (que significaria mais informação ao réu sobre as provas em poder do MP, novo papel para a vítima, mais participação do juiz, evitar o máxi-mo possível o acordo com réu em prisão preventiva, abolir qualquer tipo de coação, alteração do quadro punitivo em geral); (20) a plea barganining triunfou nos EUA, mas continua sendo muito complicado dizer que também triunfaram a Verdade, a Igualdade e a Justiça1.

3 SISTEMA BRASILEIRO

A colaboração premiada não é instituto exclusivo da Lei 12.850/2013. Este mesmo ins-tituto é também tratado em outros diplomas sob a denominação “delação premiada”, tais como:

a) Artigo 8º, parágrafo único da Lei 8.072/1990;b) Artigo 159, § 4º do CP (extorsão mediante sequestro);c) Artigo 25, § 2º da Lei 7492/1986 (crimes contra o sistema financeiro nacional);d) Artigo 16, parágrafo único da Lei 8.137/1990 (crimes contra a ordem econômica e

financeira);e) Artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/1998 (com redação dada pela lei 12.693/2012);f) Artigos 13 e 14 da Lei 9.807/1999;

1 Ver sobre o tema ALBERGARIA, Pedro Soares de. Plea bargaining: aproximação à justiça negociada nos E.U.A. Coimbra: Alme-dina, 2007; BITTAR, Walter Barbosa; PEREIRA, Alexandre Hagiwara (colaborador). Delação premiada: direito estrangeiro, doutrina e jurisprudência. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; GARCÍA ESPAÑA, Elisa. El premio a la colaboración con la justicia: especial consideración a la corrupción administrativa. Granada: Comares, 2006; GOMES, Luiz Flávio. “Delação é coisa de cana-lha?” Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano IX, n. 53, Porto Alegre: Magister, abr./maio 2013, p. 62-64; MAYNARD, Douglas W. Inside plea bargaining: the language of negotiation. New York: Plenum Press, 1984; PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada da Lei n. 12.850/2013. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano X, n. 56, Porto Alegre: Magister, out./nov. 2013, p. 24-29; QUEZADO, Paulo; VIRGINIO, Jamile. Delação premiada. Fortaleza: Gráfica Editora Fortaleza, 2009; RIQUERT, Mar-celo Alfredo. La delación premiada en el Derecho Penal: el “arrepentido”: una “técnica especial de investigación” en expansión. Buenos Aires: Hammurabi, 2011; RODRÍGUEZ GARCÍA, Nicolás. La justicia penal negociada: experiencias de derecho comparado. Salamanca: Universidad Salamanca, 1997.

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g) delação via acordo de leniência prevista nos artigos 86 e 87 da Lei 12.529/2011; h) Artigo 41 da Lei 11.343/2006 (tráfico de entorpecentes).

Antes do advento da Lei 12.850/2013, entendia-se que o instituto era previsto com con-tornos de norma geral na Lei de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas – 9.807/1999 (arts. 13 e 14)-, pois os requisitos gerais estavam previstos nesta lei, sendo que a temática espe-cial era tratada na Lei 9.034/1995, art. 6º (combate ao crime organizado); Lei 9.613/1998, art. 1º, § 5º (com a redação conferida pela Lei 12.683/2012) (lavagem de dinheiro); Lei 8.072/1990, art. 8º, parágrafo único (crimes hediondos); Lei 8.137/1990, art. 16, parágrafo único (crimes contra a ordem tributária); Lei 7.492/1986, art. 25, § 2º (crimes contra o sistema financeiro nacional); Código Penal, art. 159, § 4º (extorsão mediante sequestro); e Lei 11.343/2006, art. 41 (tráfico de drogas). Esta posição de que a Lei 9.807/1999 tratava-se de norma geral de regulação da delação premiada era inclusive a posição sufragada pela 4ª Turma do STJ2. Veja-se:

EMENTA PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA IMPETRAR HABEAS CORPUS. DELAÇÃO PREMIADA. EFETIVA COLABORAÇÃO DO CORRÉU NA APURAÇÃO DA VERDADE REAL. APLICAÇÃO DA MINORANTE NO PATAMAR MÍNIMO. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. [...] 2. O sistema geral de delação premiada está previsto na Lei 9.807/99. Apesar da previsão em outras leis, os requisitos gerais estabelecidos na Lei de Proteção a Testemunha devem ser preenchidos para a concessão do benefício. 3. A delação premiada, a depender das condicionantes estabelecidas na norma, assume a natureza jurídica de perdão judicial, implicando a extinção da punibilidade, ou de causa de diminuição de pena. 4. A aplicação da delação premiada, muito controversa na doutrina e na jurisprudência, deve ser cuidadosa, tanto pelo perigo da denúncia irresponsável quanto pelas consequências dela advinda para o delator e sua família, no que concerne, especialmente, à segurança. 5. Competindo ao Órgão ministerial formar o convencimento do juiz acerca da materialidade e autoria delitiva aptas a condenação, ficou consagrado o princípio do nemo tenetur se detegere. Apesar da ausência de previsão expressa do princípio da não autoacusação na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, ficou assegurada a presunção de inocência e o direito absoluto de não ser torturado. 6. O Pacto de São José da Costa Rica consagrou o princípio da não autoacusação como direito fundamental no art. 8º, § 2º, g, dispondo que ninguém é obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado. 7. A delação premiada, por implicar traição do corréu ao comparsa do crime, não pode servir de instrumento a favor do Estado, que tem o dever de produzir provas suficientes para o decreto condenatório. 8. Ao delator deve ser assegurada a incidência do benefício quando

2 STJ. HC 97.509-MG. 4ª Turma. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. j. 15.06.2010.

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da sua efetiva colaboração resulta a apuração da verdade real. 9. Ofende o princípio da motivação, consagrado no art. 93, IX, da CF, a fixação da minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação, ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração do paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso. 10. Ordem concedida para aplicar a minorante da delação premiada em seu grau máximo; a informação disponível não será considerada para fins de contagem de prazos recursais.

A delação premiada da Lei 9.807/1999 pode ser aplicável a quaisquer crimes, inclusive culposos, observados os requisitos legais, e ressalvada a legislação específica sobre delação/colaboração.

A Lei 12.850/2013 é muito mais detalhista quanto ao procedimento da colaboração premiada quando comparada à Lei 9.807/1999. A Lei 12.850/2013 disciplinou vários aspectos procedimentais, tais como: a impossibilidade de participação do juiz nas negociações realizadas entre as partes, a forma de homologação do acordo de colaboração pelo juiz, a possibilidade de retratação da proposta e suas consequências jurídicas, etc.

Assim, surge o seguinte questionamento: A Lei 9.807/1999 deixou de ser norma geral, abrindo-se espaço para a Lei 12.850/2013 ser o novo paradigma procedimental para a realização de delações premiadas?

Muito embora a lei 12.850/2013 não tenha revogado as demais leis 3, ela pode servir como norma geral de regulamentação do instituto no que diz respeito aos seus aspectos proce-dimentais. Neste mesmo sentido leciona Eduardo Luiz Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel Nahur (2014, p. 182):

“Entende-se que o advento da normatização da lei 12.850/13, além de não revogar os dispositivos anteriores, pode servi-los de complemento em suas respectivas áreas de aplicação, uma vez que o atual diploma legal normatiza de forma bem mais detalhada os procedimentos para a colaboração. Isso, aliás, era uma lacuna por demais prejudicial à devida aplicação do instituto por meio dos diplomas legais que antecederam à atual Lei do Crime Organizado”.

4 DIÁLOGO DAS FONTES

Há vários microssistemas de colaboração premiada (ou delação premiada) espraiados em nosso ordenamento jurídico (como listado anteriormente), sendo pertinente a aplicação (tam-bém no âmbito do direito interno) da Teoria pós-moderna do Diálogo das Fontes (idealizada pelo alemão Erik Jayme, e difundida no Brasil pelos professores Cláudia Lima Marques e Va-lério Mazzuoli) à multiplicidade de fontes legislativas que versam sobre delação premiada. Tal

3 Neste sentido: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Op. cit., p. 1289.

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“Diálogo” surge com o objetivo de fornecer ao intérprete uma nova ferramenta hermenêutica hábil a solucionar o conflito entre as leis de um mesmo ordenamento, ultrapassando os critérios tradicionais de solução de antinomias, sendo plenamente passível de utilização no âmbito penal (muito embora no Brasil só se tenha notícias de sua utilização no âmbito do direito privado).

O diálogo das fontes ampara o entendimento no sentido que quando duas regras de di-ferentes ramos no direito regem o mesmo fato, haverá possibilidades de o juiz, por meio de seu papel consolidador do sistema, escolher por aquela que mais ampara os direitos fundamentais, ainda que configure norma de natureza geral diante de norma de natureza especial.

Assim sendo, as normas de delação premiada devem complementar-se umas às outras, no que lhes forem compatíveis, mantendo-se um diálogo sistemático de coerência, ou seja, é necessário que essa complementação se dê de forma coerente com o sistema em que cada uma se encontra inserida.

Destarte, plenamente possível que, por exemplo, se aplique o procedimento de forma-lização do acordo da colaboração premiada da Lei 12.850/2013 (que deve ser escrito e obede-cer aos requisitos do artigo 6º desta lei) às outras normas que não disciplinaram tal procedi-mento4 (tais como as Leis 8.072/1990, 7.492/1996, 9.807/1999, 9.613/1998, 11.343/06, 8.137/1990, 12.529/2011 e artigo 159, § 4º do Código Penal), pois além do fato de trazer segurança ao réu colaborador/delator, respeita-se a garantia constitucional do devido processo legal.

De outro lado, como já afirmado, por certo que deve tal diálogo das fontes manter um sistema de coerência (diálogo sistemático de coerência). Destarte, se uma organização crimi-nosa pratica o crime de lavagem de capitais, não haveria que se falar em necessidade de obten-ção de algum dos resultados previstos no artigo 4º e incisos da Lei 12.850/13 para se falar em concessão do prêmio previsto no artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/98 com relação a este crime, pois a Lei de 9.613/98 exige como requisito do recebimento do prêmio que o delator leve ao resultado da identificação dos autores, coautores ou partícipes “ou” (conjunção alternativa) que leve à localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime, ao passo que a Lei 12.850/13 (artigo 4º, inciso I) exige a soma desses dois resultados para a obtenção do prêmio (identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa “e” das infrações penais por eles pra-ticadas).

Entende-se também que as outras legislações de delação premiada podem complemen-tar a Lei 12.850/2013. Veja-se que o artigo 4º da Lei de Organizações Criminosas (LOC) reza que o juiz poderá, em razão do acordo de colaboração (alcançado um dos resultados elencados), reduzir a pena em até 2/3, não fixando, portanto, um patamar mínimo de redução da pena (o que poderia levar ao absurdo de o juiz poder reduzir a pena em apenas 1 dia, por exemplo).

Salienta-se que todas as outras leis que tratam do instituto da delação premiada trazem um patamar mínimo de redução da pena (qual seja: 1/3). Desta forma, para se manter a coerên-

4 Neste mesmo sentido EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA (2014, p. 857): “Até por ausência de especificação das demais leis acerca da matéria, o procedimento de formação da homologação do acordo de colaboração previsto na lei 12.850/13 poderá ser aplicado àquelas hipóteses, desde que compatíveis com as regras de proteção à testemunha previstas na lei n. 9.807/99”.

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cia do sistema, é necessário que haja complementação da Lei 12.850/2013 pelas demais normas especiais sobre o instituto, devendo o quantum mínimo de redução da pena ser também de 1/3 na LOC (lei de organizações criminosas). Há controvérsia doutrinária neste ponto, que será abordada quando tratarmos dos prêmios relativos à colaboração premiada.

Alguns institutos preveem que a delação deve ser espontânea (ex vi, Lei 7.492/86, 9.613/1998 e 8.137/1990) e outros preveem que a delação deve ser voluntária (ex vi, Lei 12.850/2013, 8.072/1990, 9.807 etc.). A diferença é que o ato espontâneo é aquele em que a intenção de praticá-lo nasce exclusivamente da vontade do colaborador, sem interferência ex-terna. Já o ato voluntário permite que o agente colabore por interferência alheia. Neste ponto, também entendemos que deve haver uma uniformização dos institutos pelo intérprete, pois se até com relação à organização criminosa (socialmente mais grave) permite-se que a colaboração premiada seja voluntária, não há motivos para se exigir que as delações premiadas dos outros diplomas normativos sejam espontâneas.

Ademais, os direitos do colaborador previstos no artigo 5º da Lei 12.850/2013 devem ser aplicados a todos os outros diplomas normativos que cuidam de delação premiada.

O Diálogo das Fontes insere-se dentro do contexto de constitucionalização do direito penal (direito penal constitucional), pois possibilita que as leis penais respeitem a carta de di-reitos fundamentais.

5 ASPECTOS CRÍTICOS

A doutrina é dividida no que tange à admissibilidade ou não da colaboração premia-da no ordenamento jurídico brasileiro. Em sentido crítico encontram-se Alberto Silva Franco (2007, p.343) , Eugenio Raúl Zaffaroni (1996, p. 45), Juarez Cirino dos Santos (1994, p. 214-224), Silva Barona Vilar (1996, p. 85-106), Luiz Racovski (2011, p. 36), Gustavo H. R. I. Badaró e Magalhães Gomes Filho (2013, p. 36 citado por CUNHA; PINTO, 2013, p. 36) e Rômulo de Andrade Moreira (2014, p. 46). Favoravelmente opinam Carlos Fernando dos Santos (citado por FERRO, 2014, p. 93), José Paulo Baltazar Júnior (2014, p. 1290-1291), Renato Brasileiro de Lima (2014, 515-516), Roberto Delmanto et alii (DELMANTO; DELMANTO JÚNIOR; DELMANTO, 2014, p. 1031), Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2013, p. 36-39) e Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 602-603).

Com a Lei 12.850/13 o instituto da colaboração premiada (da qual a delação é uma mo-dalidade) recebeu tratamento jurídico meticuloso, sempre procurando preservar a autonomia da vontade, o que significa que ela necessariamente deve vir ancorada na liberdade de negociar ou não negociar, na presença de advogado. A ausência de liberdade para negociar constitui um dos motivos para se declarar a nulidade do ato colaborativo. De forma alguma se justifica qualquer tipo de coação ou extorsão para se obtê-la (sob pena de nulidade do ato).

Muito menos se justifica o uso da prisão ou de qualquer outro tipo de ameaça para essa

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finalidade5. Quando isso ficar comprovado é claro que a colaboração premiada não terá nenhum valor jurídico (gerando a nulidade de todos os atos fundados nela ou decorrentes diretamente dela). Pode-se extrair do bom humor de André Karam Trindade e Lênio Streck que o passarinho para cantar não precisa estar preso. A prisão não pode ser instrumento para o acusado “abrir o bico” 6.

Nada impede a decretação de prisão cautelar ou de medidas cautelares diversas da prisão se presentes os requisitos legais. A possibilidade de manter o colaborador na prisão está estampada no artigo 15 da Lei 9807/1999, que deve dialogar com a Lei 12.850/2013, pois esta última elenca em seu artigo 5º, inciso I como seu direito: “usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;”. A legislação específica que alude o dispositivo é o artigo 15 da Lei 9807/1999, que estabelece o seguinte: “Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, consi-derando ameaça ou coação eventual ou efetiva”.

O juiz deve funcionar como o semáforo do sistema: se der luz verde para arbitrarie-dades ou se ele mesmo é o responsável por elas, violado resulta o Estado de Direito; se usar a luz vermelha para as arbitrariedades estará convalidando o instituto da colaboração dentro dos contornos do Estado democrático de Direito (restando, nesse caso, apenas a discussão sobre a eticidade do instituto).

Verifica-se na prática que a colaboração premiada é utilizada como principal carta de um baralho, incrementando ainda mais a ideia de que processo penal seja um jogo, como prega Gregorio Robles (2014, p. 15), em que a sorte e a performance dos jogadores em face do Esta-do Juiz podem ser determinantes no resultado final do processo penal. Neste jogo processual, como bem leciona Alexandre de Morais da Rosa (2014, p. 33):

“de regra, o julgador e os jogadores tomam decisões maximizadoras de seus interesses a partir da análise de custos e benefícios individuais (payoffs) e não levam em consideração as consequências das consequências, a saber, as externalidades e prejuízos individuais (dos demais jogadores) e à coletividade”.

5 Vale lembrar triste episódio em que o Procurador da República MANOEL PASTANA afirmou servir a prisão preventiva de estímulo ao encarcerado para realizar o acordo de colaboração premiada, que será citado ipisis literis: Manoel Pastana (Procurador da República): “além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos”. Segundo declarou Manoel Pastana, em entrevista exclusiva ao sítio Consultor Jurídico, o direito precisa evoluir. “A figura da delação premiada é recente no direito penal brasileiro. Por isso, diante de uma regra que fala da conveniência da instrução de forma abstrata como causa para a prisão preventiva, é possível se interpretar que uma dessas conveniências seja forçar o réu a colaborar”, enfatizou. O procurador disse que seus pareceres corresponderam ao que chamou de “entendimento avançado” do artigo 312 do Código de Processo Penal e se baseou no item que autoriza a prisão preventiva para conveniên-cia da instrução criminal. Mas assegurou que não distorceu os fatos quando defendeu tal entendimento. Segundo o procurador Pastana, as prisões devem ser mantidas diante da “conveniência da instrução processual”. Diz ele: “A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos”. Pastana também discute a possibilidade de a prisão preventiva ser transformada em alguma das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Mas ele acredita que, “por razões óbvias, as medidas cautelares alternativas à prisão são inadequadas e impróprias”. (PASTANA, Manoel. Parecer da Procuradoria da República da 4ª Região no Habeas Corpus 5029050-46.2014.404.0000 – Caso “Lava-jato”).6 STRECK, Lênio; TRINDADE, André Karam. O passarinho para cantar precisa estar preso. Viva a inquisição! Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-nov-29/diario-classe-passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-inquisicao>, 29 nov. 2014. Acesso em: 02 mar. 2015.

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Nossas instituições (a exemplo da Polícia, Ministério Público e Judiciário) estão dando um tratamento matemático às investigações, adotando a Teoria dos Jogos (de John von Neu-mann e Oskar Morgenstern)7, o que torna sua atividade mais científica e menos intuitiva8. Ao oferecer a todos os investigados a possibilidade de redução de pena por colaboração premiada, as autoridades recorrem à teoria dos jogos, mais especificamente a algo parecido com a pro-blemática do “Dilema do prisioneiro” (originalmente formulado por Merrill Flood e Melvin Dresher)9. O dilema do prisioneiro dito clássico funciona da seguinte forma:

“Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. A questão que o dilema propõe é: o que vai acontecer? Como o prisioneiro vai reagir?”

A posição mais vantajosa para cada acusado, considerando as escolhas dos outros en-volvidos (equilíbrio de Nash10), passa a ser falar tudo o que sabe. Isso permite não só avançar mais nas investigações como também instruir melhor o processo. Sem a colaboração premiada, a posição de equilíbrio era ficar calado e contar com a incapacidade da polícia de coletar provas suficientes para a condenação 11. Muitos dos acusados na Operação Lava Jato (escândalo da Pe-trobras) continuam apegados a esta última perspectiva (até o momento deste artigo). Mas outros já delataram (como foi o caso de Paulo Roberto Costa, Youssef, ex-diretores da Camargo Corrêa etc.). O que se depreende da teoria dos jogos é o seguinte: se um dos implicados colaborarem/delatarem, o melhor resultado para todos é fazer a mesma coisa. Quem colabora/delata recebe prêmios; quem não colabora nem delata recebe o peso da lei sem diminuições de penas.

Não havendo nenhuma colaboração premiada, melhor é manter os acordos de silêncio (a omertà). Porque eles dificultam a descoberta de provas (gerando, em regra, a impunidade de todos). É a melhor estratégia para todos os investigados. Quando um dos participantes da

7 A formalização da Teoria dos Jogos ocorreu com a publicação da obra “Theory of Games and Economic Behavior” (Teoria dos Jogos e Comportamento Econômico), elaborada por John Von Neumann e Oskar Morgenstern, que alvitraram a existência de situações de conflito, tomada de decisões e desenvolvimento de estratégias. Neste sentido, os teóricos de jogos analisam o comportamento de determinados indivíduos e organizações, partindo do pressuposto de que as estratégias escolhidas por estes serão as mais racionais, e, por conseguinte, melhores.8 SCHWARTSMAN, Hélio. O dilema dos prisioneiros. Folha de São Paulo, 18 nov. 2014.9 Idem. 10 O equilíbrio de Nash representa uma situação em que, em um jogo envolvendo dois ou mais jogadores, nenhum jogador tem a ganhar mudando sua estratégia unilateralmente.Para melhor compreender esta definição, suponha que há um jogo com “x” participantes. No decorrer deste jogo, cada um dos “x” parti-cipantes seleciona sua melhor estratégia, ou seja, aquela que lhe traz o maior benefício. Então, se cada jogador chegar à conclusão que ele não tem como melhorar sua estratégia dadas as estratégias escolhidas pelos seus “x” adversários (estratégias dos adversários não podem ser alteradas), então as estratégias escolhidas pelos participantes deste jogo definem um “equilíbrio de Nash”.11 SCHWARTSMAN, Hélio. O dilema dos prisioneiros. Folha de São Paulo, 18 nov. 2014.

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organização criminosa delata, em busca de benefícios jurídicos (de prêmios), o jogo se inverte: é melhor também fazer acordo com a Justiça (porque nesse caso o silêncio será bastante preju-dicial). Na fase judicial (já iniciada) saberemos se as delações são ou não verdadeiras, se haverá mesmo recuperação ou não de dinheiro. Uma coisa é certa: se isso prosperar, haverá um “efeito dominó”, gerando colaborações premiadas sequenciais, pois todos os investigados vão querer delatar para também colher benefícios penais. Haverá um nítido efeito viral, apesar de todas as críticas (sobretudo contra os abusos nas prisões preventivas).

A Justiça criminal brasileira mudará de paradigma (sai do modelo conflitivo para en-trar de vez no modelo consensual, em todos os crimes, o que é juridicamente possível combi-nando-se a Lei 12.850/2013, da organização criminosa, com a Lei 9.807/1999, de proteção às vítimas e testemunhas), surgindo um processo penal colaborativo movido pelos interesses das partes, de forma a se chegar o mais próximo possível da verdade (sabendo-se que a verdade real é uma utopia).

A busca incessante da verdade (um dos postulados do garantismo) não resta prejudi-cada com a colaboração premiada, pois o artigo 4º, § 16 da Lei 12.850/2013 traz que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente cola-borador”. O fato de haver colaboração premiada não dispensará jamais uma atividade cognitiva exauriente que demonstre que a tese acusatória é infinitamente mais plausível que a tese defen-siva, pois do contrário deverá haver absolvição. Não será imputado ao delatado qualquer ônus sem que se tenha apurado minimante a pertinência do fato jurígeno ensejador daquele ônus.

É fundamental, portanto, que a colaboração prestada em sede de inquérito seja confirmada em juízo, porque do contrário haverá meros indícios que, por si só, não arrimam uma condenação, exceto se a colaboração permitiu carrear provas cautelares, antecipadas ou irrepetíveis (periciais), a fundamentar a condenação.

Neste mesmo diapasão, a máxima efetividade, contraditório e ampla defesa exauriente restam preservados. O fato de existir um acordo de colaboração premiada não afastará a diale-ticidade do processo, de modo que a sentença seja síntese do contraditório e da ampla defesa.

Por fim, a colaboração premiada pode ser amoral. Não é necessário que exista concor-dância absoluta entre preceitos morais e jurídicos – nem jurídicos-penais. Paulo Queiroz (2014, p. 62-63), brilhantemente, traz os seguintes argumentos para confirmar este raciocínio:

a. não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos (Nietzsche) e, pois, múltiplas formas de expressão da moral (12);

b. o direito é, no fundo, uma dimensão do poder, razão pela qual pode ser eventualmente imoral inclusive, relativamente a uma determinada perspectiva ou sistema moral, tal como ocorre com o instituto da colaboração premiada e a

12 A propósito, Kelsen (2003, p. 71) escreveu: “se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o direito deve ser moral, isto é justo, apenas pode significar que o direito positivo deve corresponder a um determinado sistema de moral entre os vários sistemas morais possíveis”

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figura do agente infiltrado; c. a moral pressupõe, em princípio, espontaneidade, diversamente do direito, que

não pode existir senão por meio da violência, isto é, por meio da possibilidade de recurso à força (coercibilidade). E mais: em razão de seu caráter subsidiário, a intervenção do direito penal só se justifica quando fracassam outras formas de prevenção e controle social, aí incluída a intervenção moral;

d. se a moral persegue o aperfeiçoamento ético do homem, o direito, como instrumento de controle social formal, objetiva tornar possível a convivência social, independentemente da adesão moral de seus destinatários.

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Recebido em 04 mar. 2015Aceito em 05 mar. 2015

ECONOMIA CRIATIVA: CONCEITO E RELAÇÃO COM O DIREITO

Victor M. Barros de Carvalho*

Anderson S. S. Lanzillo**

Patrícia Borba Vilar Guimarães***

RESUMO: A Economia Criativa é conceito que abrange tanto um modo de pensar a economia como também novas práticas econômicas - práticas essas que vêm se expandindo rapidamente, amparadas pela evolução das novas mí-dias e tecnologias, que disseminam com maior fluidez a produção intelectual e cultural. Ela apresenta novos processos, novas maneiras de tocar a econo-mia, bem como novas formas de encarar velhos paradigmas. Tais inovações repercutem na sociedade, e o Direito não pode ficar a isto indiferente – é preciso que acompanhe tais mudanças, ficando atento ao seu papel legiferante e regulatório. Este trabalho, assim, almejou investigar esta ampla temática, pesquisando conceitos de Economia e Economia Criativa, comparando o mo-delo tradicional com este mais recente e fazendo uma breve relação com os Direitos de Autor, na experiência brasileira, como exemplo de regulação den-tro da Economia Criativa.Palavras-chave: Economia Criativa. Direito. Economia. Direitos de autor. Regulação.

* Victor Miguel Barros de Carvalho. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista do Programa de Recursos Humanos ANP / PRH nº 36. [email protected]. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.** Anderson Souza da Silva Lanzillo. Professor Assistente do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. [email protected]. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.*** Patrícia Borba Vilar Guimarães. Professora Adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. [email protected]. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.

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1 INTRODUÇÃO

No atual momento histórico existe uma tendência cada vez maior de crescimento da chamada Economia Criativa (HOWKINS, 2007; FLORIDA, 2007). No Brasil, atividades eco-nômicas que se encaixam neste conceito têm dado grande impulso ao crescimento da econo-mia. São atividades que exploram os ramos da cultura, da inovação, dos produtos intelectuais (HOWKINS, 2013), que se baseiam no compartilhamento, na velocidade de transformação, na dinamicidade de seus processos (REIS, 2008).

Entretanto, tais atividades, imbuídas da marca da novidade, desenvolvem-se sem pos-suir leis ou marco jurídico específico que as regulem. Assim, por muitas vezes acabam inob-servando certos preceitos como o dos direitos autorais. É nítida a necessidade de revisão e recriação de tais marcos regulatórios (ORTELLADO, 2012).

Este trabalho pretende, então, de forma breve, tratar do conceito de economia criativa e sua relação com o direito. Ressalta-se a relação entre economia e direito para a rea-lização da pesquisa do tema em foco. Ambos os temas (economia e direito) vivem em uma in-trincada dinâmica de reciprocidade, e devem ser tidos como um todo, enxergados com um olhar mais amplo – olhar esse que não os afastem, mas os separem e definam apenas para melhor compreendê-los (NUSDEO, 2001). Assim, tentamos tratar destes assuntos tão criteriosamente for possível dentro da brevidade que nos propomos.

Iniciamos com a conceituação da Economia em sua concepção tradicional e também naquilo que se convencionou chamar de Economia Criativa, fazendo, logo após, um es-boço comparativo entre esses dois modelos, explicitando os pontos considerados mais relevan-tes. Tratamos, posteriormente, com mais atenção a situação da Economia Criativa, procurando expor a sua abrangência e suscitando a questão de esta ser uma extensão do modelo tradicional ou se a mesma configura, de fato, uma economia nova.

No capítulo seguinte, discorremos introdutoriamente sobre os Direitos de Autor e como este é um exemplo de regulação exercido pelo Direito dentro da Economia Criativa. Por fim, concluímos com as ideais auferidas ao longo do estudo.

2 ECONOMIA CRIATIVA E MODELO TRADICIONAL

2.1 Conceito clássico de economia

Na lição de Fábio Nusdeo (2001), pode-se compreender o conceito de Economia atra-vés do entendimento de duas ideias principais: a de necessidade humana e a de escassez. As necessidades humanas são incontáveis e infindáveis, tendo uma tendência cada vez mais veloz de multiplicação e desdobramento. A escassez revela-se no âmbito dos recursos para satisfazer as necessidades; estas são muitas e sem fim, sempre se renovando, ao passo que os recursos para sua realização são, em sua grande maioria, escassos e não renováveis. A atividade econô-

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Outro conceito importante delineado por Nusdeo é o de bem econômico, que é todo aquele dotado de utilidade e cujo suprimento seja escasso. Em poucas palavras, todo bem útil e escasso é considerado um bem econômico. É preciso, ainda, explicitar o conceito de valor na economia, que difere daqueles considerados como ético-filosóficos. Valor, tema fulcral da economia, relaciona-se à consciência de falta, de escassez. Os bens têm valor na medida em que cumprem um papel no mundo (ibid., 2001). O valor econômico condiciona-se, também, ao tratamento a ele dado pelas instituições vigentes em cada país e em cada época – leia-se, pelo tratamento dado a eles pelo Direito.

2.2 A economia criativa

Como prévia e brevemente denotado, a Economia Criativa é um conceito rela-tivamente novo, que tem, entre as suas características, a valorização dos produtos culturais e intelectuais, a dinamicidade de seus processos, a tendência em compartilhar, dentre outras que serão adiante melhor abordadas.

Richard Florida, um dos precursores do tema, apesar de abordar a Economia Criativa especificamente em termos de classe criativa e profissões criativas, a delineia como atividade que requer conhecimento, informação (utilizadas como ferramentas para a criatividade) e ino-vação, que se dá não apenas através de novos aparatos tecnológicos, mas também pelo surgi-mento de novos modelos de negócio (2011). Ela traz em seu bojo a junção de inovação tecnológi-ca e trabalho de conteúdo criativo como força motriz para o desenvolvimento econômico (ibid.).

John Howkins, outro eminente teórico da Economia Criativa, explica que a criativi-dade, por si só, não é necessariamente uma atividade econômica, mas poderia se tornar caso produza ideias ou produtos com implicações econômicas (2013); o resultado desta atividade (da Economia Criativa) seria o que ele chama de produto criativo – um bem ou serviço resultante da criatividade e que possui valor econômico (ibid.). Assim, para este autor, “a Economia Criativa consiste nas transações contidas nesses produtos criativos”.

Outros autores, ainda, apontam a Economia Criativa como sendo algo mais amplo e abrangente que o modelo tradicional; uma vertente que se encontra entre os setores da economia da cultura e indústrias criativas. Uma economia baseada em recursos intangíveis, que, além de cultura, conhecimento e criatividade, engloba os ativos intangíveis, a experiência e a diversida-de cultural (DEHEINZELIN, 2012).

Economia Criativa parece rimar ainda com ideias como as de conectividade, interação, compartilhamento, inovação; relaciona-se às novas mídias, novas tecnologias, ao empreende-

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dorismo e a mudança de padrões. Ela difere dos modelos tradicionais, no sentido de romper com velhas formas e fórmulas, dando um gás novo às dinâmicas. Como defende Florida (2011), a ascensão da Economia Criativa “alterou as regras do jogo do desenvolvimento econômico”.

Aparenta ser um marco, um ponto de mudanças, pois tem a chance de romper com a mentalidade mercadológica em vigência, tentando combinar as mais avançadas capacidades tecnológicas e de gestão com habilidades artísticas (ANNUNZIATA, 2012). É um momento singular da economia, no qual processos se dinamizam, se tornam mais céleres e eficientes; contam mais com a criatividade e inovação do que com fórmulas pré-definidas e processos engessados. Florida (2011, p. 56) é taxativo:

“Nós estamos embarcando numa era em que a criatividade permeia e domina todos os setores da economia e da sociedade. Estamos em meio a uma verdadeira

transformação com o nascimento da economia criativa”.

A Economia Criativa parece transpor barreiras de ordem técnica e burocrática, surgin-do mais dinâmica e fluida em seu desenvolver. Esta fluidez parece colidir com o modelo tradi-cional de controle e planejamento econômico. A Economia Criativa se apresenta como um mo-mento de mudança de paradigmas; mudança no modo como os atores econômicos passam a se comportar (HOWKINS, 2013), como as trocas são feitas e os demais processos se desenrolam.

Desta maneira, acreditamos ser a Economia Criativa um conceito oriundo da seara econômica, cuja natureza faz com que ela abranja atividades ligadas à valorização e comercia-lização de produtos intelectuais, tecnológicos e culturais; atividades estas dinâmicas, fluidas, relacionadas à inovação, ao empreendedorismo, ao compartilhamento; atividades que criam no-vos processos e bens, que inovam, buscam soluções, que evitam os padrões tradicionais de tocar a economia; atividades em consonância com o desenvolvimento tecnológico, comunicacional e relacional que vive o mundo hodierno.

2.3 A economia tradicional x criativa: elementos comparativos para construção de um novo paradigma

Parece ser necessário, antes de começar a tecer um quadro comparativo, atentar para os institutos nos quais se apoiam e as bases de sustentação de cada modelo de economia. O modelo tradicional, como já se viu, é baseado em princípios bem demarcados, de necessidades humanas, escassez e utilidade que, combinados, produzem o que se denominou de valor. Outros princípios, tidos por vezes como leis econômicas (NUSDEO, 2001), como da oferta e procura, têm ainda profunda influência no modelo econômico tradicional, bem como o instituto da pro-priedade privada, que denota traços de regulação e de exclusividade em suas dinâmicas.

Na Economia Criativa, estes pilares tradicionais parecem não dar a sustentação neces-sária frente às novas situações surgidas. Impulsionada pelas novas tecnologias, novas mídias e novas formas de relação interpessoal (HOWKINS, 2013), a Economia Criativa preza por princí-

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As organizações presentes no modelo tradicional foram desenhadas para obstruir, di-recionar, aprisionar e disciplinar a interação, não para deixá-la fluir – característica que surge essencial para a Economia Criativa. Esta tece redes e altera o padrão engessado de organização no sentido de mais distribuição, mas não de adotar um novo tipo de organização ou uma nova ferramenta (FRANCO, 2012). Um padrão de organização mais distribuído do que centralizado configura um ambiente mais favorável à interação. Um ambiente mais interativo aumenta as chances de inovação – e esse deveria ser o objetivo dos que querem estimular a criatividade e fomentar a Economia Criativa (ibid., 2012).

Assim, é perceptível uma nítida contraposição entre o modelo econômico tradicional e o que se chama de Economia Criativa. A propriedade privada e suas consequências econômicas e jurídicas vão de encontro à tendência de compartilhar, de cocriação e inovação; a regulação, a promoção do acesso exclusivo, choca-se com um espírito de liberdade frente às normas, de promoção ao livre acesso; a vontade de manter determinado bem ou produto em estado de es-cassez, incutindo-o valor, contrasta com a abundância e a capacidade de renovação de recursos na Economia Criativa – recursos estes, em sua maioria, culturais e intelectuais. Howkins (2013) exemplifica: enquanto que os institutos de propriedade intelectual fornecem um conjunto de critérios excludentes e protetores, o mercado, as atividades criativas na prática, apresentam outros diferentes.

Parece mesmo haver uma mudança de paradigmas em curso. Onde antes Economia e Política se organizaram em torno dos recursos materiais, finitos e escassos, como terra, ouro ou petróleo, se organizam agora em torno dos recursos intangíveis, como cultura, conhecimento e experiência, que são infinitos, renováveis e podem representar uma economia de abundância, baseada em modelos de colaboração (DEHEINZELIN, 2012). Citando Rifkin, Dowbor (2008) afirma que a Economia Criativa, a economia do conhecimento, vem para mudar a nossa relação com o processo econômico em geral. Estaríamos passando de uma era em que havia produtores e compradores, para uma era em que há fornecedores e usuários. Existe maior descentralização, maior compartilhamento e participação – uma mudança profunda no perfil dos atores econô-micos.

O modelo econômico tradicional, modelo de finitude, cria uma economia da escassez, baseada na competição. A Economia Criativa, como se viu, vai a sentido oposto: os recursos são intangíveis, imateriais, e podem se multiplicar e distribuir mais livremente – justamente por isso, a natureza de sua economia é diferente (HOWKINS, 2013). Logicamente, a concepção de valor que se tinha no modelo tradicional fica deslocada dentro do âmbito da Economia Criativa – o valor agora se baseia em outros princípios. Quando, no século passado, as batalhas se davam em torno da propriedade dos bens de produção, se deslocam agora para a área da economia da criatividade (DOWBOR, 2008).

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2.4 Abrangência da economia criativa

Um modelo pode ser encarado como uma simplificação radical da realidade, amparado por certos aspectos e variáveis com a finalidade de explicar um determinado fenômeno (NUS-DEO, 2001). Então, em que modelo se encaixa a Economia Criativa? Ou cria ela um novo? Seria a Economia Criativa um “braço”, uma vertente do modelo econômico tradicional ou seria mesmo um novo campo, uma nova forma de Economia, um novo conjunto de indústrias?

Esta é uma questão que merece um maior estudo para ser respondida. Há, na literatura, opiniões nos dois sentidos. Os posicionamentos estudados, entretanto, parecem sugerir que a Economia Criativa está lançando os alicerces de um novo modelo econômico.

Existem autores que dizem ser a Economia Criativa um conjunto formado pelas in-dústrias criativas (FONSECA, 2012), que possuem grande capacidade de dinamizar setores tradicionais e têm impacto direto na competitividade da economia como um todo. Indústrias criativas seriam aquelas que produzem riqueza, geram emprego e valor através da exploração da criatividade e da produção intelectual.

A Economia Criativa é definida ainda como uma forma de dar atenção ao processo de diferenciação e valorização da matéria para a informação, para o produto cultural (STANGL, 2012), como um processo de transição de modelos. Indo na contramão da tendência da Econo-mia Criativa, os representantes do modelo tradicional ainda tentam manter sua importância, através do controle do acesso à informação e cercando seus processos criativos sob a máscara da exclusividade (STANGL, 2012).

A Economia Criativa está associada ainda a um segmento altamente educado da força de trabalho (FLORIDA, 2011). Profissionais como artistas visuais, arquitetos, músicos e jorna-listas, mas também áreas ligadas às novas tecnologias, tais como a programação web e o design de interfaces (ANNUNZIATA, 2012). Apesar disto, ela não exclui profissões essenciais aos negócios nascentes, como a Administração, o Marketing e a gestão de capital.

Assim, poderia se dizer que a Economia Criativa seria um novo modelo de se fazer a economia, baseada em princípios diferentes daqueles do tradicional, sustentada por novas mí-dias, meios de comunicação e novas tecnologias; uma economia que valoriza o capital cultural e intelectual que se produz e reproduz de maneira fluida, dinâmica e abrangente.

3 REGULAÇÃO JURÍDICA NA ECONOMIA CRIATIVA: O CASO DOS DIREITOS AUTORAIS

É importante discutir o tema da Economia Criativa e suas implicações no mundo jurí-dico, uma vez que esta vem se mostrando cada vez mais presente e de grande importância para a economia brasileira – em 2010, os setores criativos correspondiam a 2,84% (R$ 104,37 bilhões) do PIB nacional (BRASIL, 2012). É preciso também apontar o fato de não haver legislação nem marco regulatório que reconheça e trate da Economia Criativa (WACHOWICZ, 2012). Há sim,

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um conjunto de normas de várias naturezas, tutelando bens jurídicos diversos, que precisa ser adaptado para o reconhecimento de situações e urgências que esse tema vem a requerer (OR-TELLADO, 2012).

A Lei brasileira de Direitos Autorais, a Lei Federal nº 9.610/98, nesse aspecto, encon-tra-se desatualizada e não oferece subsídios jurídicos suficientes às atividades da Economia Criativa – antes sendo um empecilho do que um fator de desenvolvimento desta. O Direito, portanto, não tem acompanhado as mudanças trazidas pela Economia Criativa e suas diversas implicações. Exemplo disto é o caso dos direitos de propriedade intelectual, regulados igual-mente pela Lei Federal nº 9.610/98, que não contempla, por exemplo, o compartilhamento on-li-ne de obras científicas, artigos e livros, prática esta promovida e valorizada no contexto atual. Howkins endossa: “muitos governos que foram rápidos na promoção da internet são lentos em ajustar suas leis de direitos autorais para tratar da cópia digital” (2013).

Segundo Dowbor (2008), a premissa básica quanto aos bens intelectuais é a de que se tratam de bens de domínio público, que devem circular para o enriquecimento da sociedade. Para este autor, a figura da apropriação privada, através de copyrights ou patentes, asseguraria apenas direito temporário, pois isso estimularia as pessoas a produzir inovações e enriquecer ainda mais a sociedade em termos culturais e científicos. Howkins (2013) explica que o uso de patentes demonstra a “predileção dos governos e indústrias pela privatização dos produtos cria-tivos” – a vontade de estender os direitos de propriedade privada sobre os produtos criativos.

Para Dowbor (2008) todo o conceito de propriedade intelectual deveria repousar, por-tanto, não no conceito de propriedade em si, mas na utilidade deste controle em termos de gerar mais riqueza cultural para todos.

Tendo em mente aquilo que já foi dito (que existe um momento de transição), podemos entender o conflito que existe neste âmbito da economia – conflito que merece atenção e estudo aprofundado.

O modelo tradicional, burocrático, busca travar a fluidez dos bens intelectuais, tecno-lógicos e culturais. Impedir a livre circulação de ideias e de criação artística tornou-se um fator, por parte das corporações, de pedidos de maior intervenção do Estado (DOWBOR, 2008). Por exemplo, a patente, uma vez concedida, não obriga o seu detentor a fazer nada em especial, mas impede que qualquer outro o faça – impede que se trabalhe em cima daquele ideia, que se inove (HOWKINS, 2013).

Assim, o Estado passa a intervir, seja através de leis ou regulamentos, para atender à vontade do poder econômico. Os mesmos interesses que levaram a corporação a globalizar o território para facilitar a circulação de bens, levam-na a fragmentar e a dificultar a circulação do conhecimento (DOWBOR, 2008), de forma que o controle sobre estas atividades seja maior, e, consequentemente, o lucro conseguido.

A evolução tecnológica, com suas novas mídias e novas formas de comunicação ins-tantâneas, torna os bens culturais cada vez mais acessíveis, rompendo barreiras de ordem espa-cial e burocrática; as leis, por pressão organizada dos intermediários, daqueles interessados em

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manter o controle sobre a produção intelectual, evoluem no sentido oposto, para cada vez mais dificultar o acesso aos bens intelectuais e culturais (ibid., 2008). Em vez de se adaptar às novas tecnologias e buscar outra forma de agregar valor, estes setores tradicionais buscam travar o seu acesso e formas de criminalizar o seu uso (ibid., 2008).

A capacidade de garantir a recompensa financeira por uma ideia é fundamental; o pro-blema é que a atual legislação de direitos de propriedade intelectual é profundamente criticável quanto ao balanço entre empresas e consumidores; entre países desenvolvidos e em desenvol-vimento; e inadequada a muitos dos negócios criados pelas tecnologias digitais (FONSECA, 2012).

A realidade é que ao aplicar à Economia Criativa leis derivadas do modelo econômico tradicional, que valoriza a propriedade privada e sua proteção exarcebada, desequilibra-se radi-calmente o processo de criação. Este conflito de ordem jurídica prejudica ambos os lados – tanto os ditos inovadores, quanto os detentores dos direitos autorais. É preciso enfrentar este hiato crescente entre o que as tecnologias permitem e o que a lei proíbe (DOWBOR, 2008).

Como exemplo disto, podemos esboçar a situação na qual determinado sujeito, preci-sando adquirir um exemplar de livro já esgotado, deve, para conseguir a reimpressão ou reedi-ção, a autorização expressa do autor ou detentor dos direitos sobre o referido livro. Não obtendo sucesso pela via legal, suponhamos que o sujeito então fotocopia o livro – prática essa consi-derada ilícita, como determina o inciso VII do artigo 5º da Lei Federal nº 9.610/98: configura a “contrafação – reprodução não autorizada”.

O que se vê na prática (e isto é notório) é a contrafação se dando não somente através da fotocópia, mas também por meio digital, através de compartilhamento pela internet e outros meios. Tal fato expressa a incapacidade da legislação autoral existente em atender as necessida-des surgidas com a Economia Criativa.

Muitos produtos criativos, embora não todos, qualificam-se como propriedade inte-lectual; ela, como a propriedade material, pertence a alguém, diferenciando-se desta última por ser intangível (HOWKINS, 2013). E um exemplo que demonstra claramente a Economia Criativa em curso, atendendo as demandas existentes e inobservando preceitos da propriedade intelectual de bens intangíveis é o caso das lojas de camisetas personalizadas online. Basta acessar a página na web de três lojas razoavelmente populares no Brasil (http://www.camisete-ria.com/, http://www.redbug.com.br/home e http://chicorei.com/) e observar a comercialização de camisetas contendo personagens, marcas e figuras advindas dos mais variados segmentos: cinema, séries de televisão, videogames, desenhos animados, bandas e conjuntos musicais, ato-res e músicos famosos, etc.. Nenhuma das três lojas apresenta sua política de direitos autorais, e dificilmente estão pagando alguma coisa para os detentores de copyright e direitos autorais das figuras que aparecem em suas estampas.

Isto é, de todo, ruim? As lojas estão, certamente, criando empregos, gerando renda e movimentando a economia do lugar onde tem sede física. Em duas delas (redbug e camiseteria), quem decide o produto a ser confeccionado é o próprio consumidor, ao votar em modelos “x”

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ou “y”; isto gera economia de recursos e certeza de vendas para a empresa e garantia de satis-fação por quem compra o produto. Uma delas (camiseteria) trabalha com uma política de envio e recompensa: um artista/designer/consumidor envia seu trabalho/desenho para o site e recebe, em troca, dinheiro e produtos da própria loja.

O fato é que existe uma demanda por produtos intelectuais e culturais e esta está sendo suprida, mesmo sem a devida regulação jurídica. Isto revela o problema de uma legislação pen-sada em um tempo que não abarcava a gama de possibilidades de acesso hoje existentes, tempo no qual o acesso a bens intangíveis era limitado e passível de maior controle.

Assim, percebe-se o conflito existente entre as leis existentes no âmbito do Direito Autoral e a dinâmica proporcionada pela Economia Criativa. O que se tem pela frente são menos apelos dramáticos à lei e à ética, e mais bom senso na redefinição das regras do jogo (DOWBOR, 2008).

Faz-se necessária uma análise mais detalhada e, porque não dizer, justa, dos processos regulatórios sobre a propriedade intelectual. É necessário buscar um equilíbrio entre o que a lei diz e o que a Economia Criativa proporciona. Faz necessário a ponderação sobre a proteção do autor de inovações, os diversos intermediários e, sobretudo, o interesse final de toda criação, que é o enriquecimento cultural e científico de toda a população.

O fato de bens culturais e educacionais tornarem-se quase gratuitos e muito mais aces-síveis graças às novas tecnologias não deve constituir um drama e sim uma imensa oportunida-de. O acesso a trabalhos científicos, a artigos, a vídeos, a músicas e a recursos em multimídia dos mais diversos tipos deveria ser enxergado não com os olhos de uma ditadura, que suprime o acesso, mas sim de forma ponderada, de maneira a facilitar seu acesso. Parece ser esse o desafio maior a ser enfrentado: a gestão da informação e do conhecimento, e a distribuição equilibrada dos direitos (DOWBOR, 2008).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho buscou trazer uma visão primeira sobre a relação Direito versus Eco-nomia Criativa, expondo a questão dos Direitos de Autor como um caso prático da regulação jurídica neste setor da economia.

Ficou claro em nosso entendimento, após a breve análise de conceitos sobre Economia em sua concepção tradicional e a que se chama de Criativa, que se vive um momento de mu-danças de paradigmas. Um momento no qual as velhas soluções não atendem aos novos pro-blemas e conflitos. A Economia Criativa traz consigo uma nova forma de encarar os processos econômicos e de atribuição de valor; novos atores econômicos e novos produtos. Faz-se lógica a necessidade de encontrar soluções apropriadas em face das questões daí advindas.

Pareceu-nos, também, que a Economia Criativa, seja ela um braço do modelo tradicio-nal ou uma nova economia, “veio para ficar”. Sendo um segmento que traz novas dinâmicas e, com elas, um potencial imensurável de novas possibilidades, influirá também no Direito. Este,

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por sua vez, deve buscar adaptar-se às novas realidades advindas a Economia Criativa. Adap-tar-se às novas tecnologias, aos fluxos e processos cada vez mais instantâneos e fluídos; talvez através da criação de leis e regulamentos que compreendam as novas tecnologias, as novas dinâmicas – novos paradigmas.

O Direito, assim, tem a difícil tarefa de buscar o equilíbrio entre lei e desenvolvimento dentro da Economia Criativa: é preciso atentar para a preservação do direito cabível a seus res-pectivos, sem, no entanto, segurar ou retesar o movimento fortuito promovido pela economia da criatividade. Deve atentar para a hipossuficiência do cidadão comum, do consumidor de propriedade intelectual, do indivíduo que busca o acesso à cultura, frente aos interesses dos setores tradicionais e grandes corporações, que buscam manter sua hegemonia e controle sobre tais produtos; assimilar o nascimento de novos atores econômicos e suas novas relações.

Talvez, para este impasse, a saída do direito seja “sair”. Deve, certamente, evitar o vácuo legislativo; mas não pode, para tanto, por a cabrestos a Economia Criativa e seus partici-pantes, sob pena de aleijar o desenvolvimento econômico por ela proporcionado.

REFERÊNCIAS

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NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

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WACHOWICZ, Marcos. A Construção de um Marco Regulatório para a Economia Criativa no Brasil In: BRASIL. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações, 2011 – 2014. Brasília: Ministério da Cultura, 2012. p. 126-128.

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NOTAS ACERCA DO CRIME DE FURTO DE COISA COMUM

Christiano Fragoso*

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

O art. 156 CP estabelece uma forma privilegiada de furto, quando a coisa subtraída é um bem comum ao agente e à vítima. Tal disposição, como admite Hungria (1958, p. 49), é “uma reprodução do art. 627 do Código Penal italiano” de 1930. Em nosso direito anterior, não havia tal privilégio; ao contrário, o art. 334 do CP de 1890 estabelecia que havia furto simples, mesmo que “a coisa pertença a herança ou comunhão em estado de indivisão”.

Um fragmento de Paulo (“rei hereditariae furtum non fit”, no Digesto 47, 19, 6) indica que, no antigo direito romano, o coerdeiro que subtraía bens da herança indivisa não cometia crime de furto; mas aos prejudicados cabia a actio expilatae hereditatis, para a reparação do dano. Essa modalidade de privilégio é desconhecida de diversas legislações.

Embora alguns autores, como Fiandaca e Musco (1996, p. 94), discutam a legitimidade do privilégio (entendendo que não haveria menor periculosidade social nem menor intensidade de dolo em quem furta coisa comum), é inegável a menor gravidade intrínseca à conduta de subtrair coisa de que se é, em parte, dono.1 Por isso, penso que, embora na operatividade prática do sistema penal as criminalizações secundárias por este tipo penal sejam pouco frequentes (o que parece denotar que, em regra, eventuais conflitos a ele possivelmente subsumíveis estejam sendo dirimidos por vias extrapenais), é salutar e justo que se mantenha um tratamento jurídico menos gravoso do que o do furto comum. Por sua proximidade com alguns crimes contra o pa-trimônio, esse tipo penal, ademais, permite, como se verá, importantes discussões dogmáticas e político-criminais.

* Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.1 No mesmo sentido do texto: “é manifesta a menor gravidade da subtração de coisa de que o agente é comunheiro” (HUNGRIA, 1958, p. 48); (FRAGOSO, 1995, p. 203).

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2 OBJETIVIDADE JURÍDICA

Os bens jurídicos que podem ser violados, com a prática da conduta típica, são a copropriedade, a posse legítima e a detenção legítima. Alguns autores (MIRABETE, 2003, p. 235; BITENCOURT, 2008, p. 61) falam apenas em propriedade e posse legítima, enquanto outros (GRECO, 2012, p. 50; PRADO, 2000, p. 384.), mantendo a propriedade e a posse, não mencionam o requisito de legitimidade desta última; e, por fim, há quem só se refira, generica-mente, a patrimônio (JESUS, 1997, p. 331).

Na medida em que o sujeito é, por igual, proprietário da coisa, não se poderia dizer que a conduta típica viola, pura e simplesmente, a propriedade; viola-se, mais precisamente, a copropriedade. O advérbio “legitimamente” impõe que se reconheça que a tipicidade da conduta exige que se trate de posse legítima: isto repercute, portanto, para delimitar o bem jurídico que pode ser violado. De outro lado, também há tipicidade se se trata de mera detenção legítima (eis que a lei usa o verbo “detém”, e não “possui”); assim, se alguém, por permissividade ou tolerância do proprietário ou do possuidor, detém legitimamente uma coisa (e, portanto, não tem a posse, CF. art. 1.208, Código Civil), essa relação fático-jurídica que se estabelece entre o detentor e a coisa também pode ser violada pela prática da conduta típica.

3 SUJEITOS ATIVO E PASSIVO

Tem-se, aqui, um crime próprio, eis que o tipo exige, do sujeito ativo, qualidades es-peciais. Somente o condômino, o sócio ou o coerdeiro pode ser sujeito ativo deste crime. Essa condição é elementar e indeclinável, transmitindo-se, todavia, ao partícipe que não a detenha (art. 30, CP). Correlatamente, o sujeito passivo será o condômino, sócio ou coerdeiro. O terceiro que legitimamente tenha a posse ou a detenção da coisa, mesmo que não detenha uma dessas qualidades (condômino, sócio ou coerdeiro), também pode ser sujeito passivo.

4 TIPO OBJETIVO

A conduta típica consiste em subtrair coisa comum, a quem legitimamente a detém. Subtrair, aqui, tem significado idêntico ao do crime de furto; portanto, tirar a coisa do poder de fato de alguém e submetê-la ao próprio poder de disposição. Como bem diz Heleno Fragoso, “é irrepreensível a lição de Mezger, que define a subtração como o rompimento do poder de fato alheio sobre a coisa e o estabelecimento de um novo. Constitui pressuposto do fato, evidente-mente, que o agente não tenha a posse ou a livre disposição da coisa, isto é, a disponibilidade não sujeita à vigilância do titular de direito patrimonial em relação à mesma” (FRAGOSO, 1995, p. 191).

Subtrair exige conduta ativa; assim, o crime é comissivo, só se comete por ação. Diver-sos autores (GRECO, 2012, p. 51) admitem que o crime seja praticado por omissão, “desde que

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o agente goze do status de garantidor”, muito embora ninguém forneça exemplos ou discuta ca-sos concretos (que, aliás, a jurisprudência também não contempla); não há, a meu ver, subtração por omissão: o que pode ocorrer, conforme o caso, é a configuração de outro delito patrimonial (p.ex., estelionato [art. 171 e seus parágrafos, CP]).

O objeto material deve ser uma coisa, ou seja, um bem. Uma pessoa viva não é uma coisa; portanto, a subtração de uma pessoa (ou de partes dela) não pode, jamais, constituir crime de furto. É, todavia, crime de subtração de incapazes o ato de “subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial” (art. 249, CP).

Embora o tipo não mencione expressamente, a coisa comum, como é da própria natu-reza do furto, deve ser móvel. Coisa móvel é aquela coisa que pode ser movida de um local para outro, desprezadas as ficções da lei civil. Bens imóveis não podem ser objeto de crime de furto. São imóveis “o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente” (art. 79, Código Civil); portanto, a árvore, o arbusto, a planta rasteira, ainda quando resultantes do trabalho do homem, são imóveis por natureza (PEREIRA, 2013, p. 349).2 Os Tribunais têm, todavia, acei-tado que árvores extraídas do solo ou frutos de árvores podem ser objeto de furto (RT 581/441, RTJ 86/791). A planta (ainda que de grande proporção), cultivada em vaso, não é bem imóvel. Bens móveis, por sua vez, são “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômica” (art. 82, Código Civil).

Em matéria penal, não valem as ficções jurídico-civis que transformam bens que, por natureza, são móveis, em bens imóveis: p. ex., “as edificações que, separadas do solo, mas con-servando a sua unidade, forem removidas para outro local”, ou “os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem” (CF. art. 81, I e II, CC) são, por ficção, para fins jurídico-civis, bens imóveis, mas continuam a constituir, para fins jurídico-penais, bens móveis. Assim, para o direito penal, é simplesmente “tudo o que possa ser transportado de um lugar para o outro” (FRAGOSO, 1995, p. 317), descartadas as ficções legais.

A lei civil ainda trata dos chamados bens móveis por determinação legal (PEREIRA, 2013, p. 355): para “efeitos legais”, seriam bens móveis, “as energias que tenham valor eco-nômico” (art. 83, I, CC), “os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes” (art. 83, II, CC) e “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações” (art. 83, III, CC). Os direitos autorais (art. 3.°, L. 9.610/1998 e os direitos decorrentes da direitos decorrentes de propriedade industrial (art. 5.°, Lei 9.279/1996) também são, por ficção, considerados bens móveis. Para fins jurídico-penais, essas ficções não prevalecem3 (PRADO, 2000, p. 202-203); para o Direito Penal, é indispensável que o objeto da conduta seja um bem corpóreo ou que, ao menos, seja e esteja fisicamente apreensível. Bens incorpóreos ou que não sejam e estejam pas-síveis de apreensão física não podem ser objeto de crime de furto. Gases são bens incorpóreos,

2 A retirada de árvores, todavia, pode constituir, como se sabe, crime ambiental (cf. art. 39, L. 9.605/98, se for “floresta de preservação permanente”).3 No mesmo sentido, referindo-se ao art. 83, II, CC.

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mas, se estiverem confinados a recipientes que possam ser apreendidos e deslocados, podem ser objeto de crime de furto de coisa comum.

A coisa deve ser comum, “isto é, deve pertencer a mais de uma pessoa, que pode so-bre ela exercer direito limitado pela propriedade dos demais” (FRAGOSO, 1995, p. 204). Se a coisa for alheia, o crime é, por evidente, o de furto simples — art. 155 CP (e não o de furto de coisa comum), desde que conjugado ao dolo próprio daquele crime. Se a coisa for própria, não há crime algum, salvo a possibilidade de configuração do crime do art. 346 CP.

Como leciona Caio Mário da Silva Pereira, “dá-se condomínio, quando a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma das partes” (PEREIRA, 2013, p. 1510). Herança é o patrimônio de um falecido que se transmite aos seus herdeiros. Com a morte de alguém, estabelece-se, entre os seus her-deiros, um estado provisório de comunhão, que só finda com a partilha, que conferirá, a cada herdeiro, sua cota individual e concreta (NORONHA, 1963, p. 305). Coerdeiro é aquele que tem direito a uma parte ideal de uma herança.

Sócio é uma pessoa física ou jurídica que detém cotas do capital social de uma pessoa jurídica; para fins de furto de coisa comum, interessa apenas a pessoa física. Esse é o conceito de sócio de direito. O dispositivo também abarca a sociedade de fato; assim, se duas pessoas são sócias, de fato, nos direitos de propriedade de algum bem móvel, também se aplica o presente artigo.

Discute-se, na doutrina italiana (cujo art. 627 tem redação idêntica), se é imprescin-dível, para a configuração deste delito, que a comunhão da coisa decorra especificamente da condição de “co-proprietário, sócio ou coerdeiro”, ou se tal comunhão poderia decorrer de outra relação jurídica (p.ex., co-legatário). Pagliaro, embora diga que incluir o “co-legatário” violaria o princípio da legalidade, opina, atento à equidade, no sentido de que, no direito penal, devem prevalecer, sobre a linguagem técnica, os significados que a linguagem comum atribui às expressões linguísticas; por tal motivo, considerando que “un ‘collegatario’ non è, nel linguag-gio comune, figura diversa dal ‘coeredere’”, admite caracterizar-se o furto de coisa comum, e não o furto simples (PAGLIARO, 1997, p. 515). Não me parece haver violação ao princípio da legalidade; a hipótese simplesmente não foi prevista, o que configura lacuna, que pode ser in-tegrada por analogia in bonam partem; admitir a prevalência da linguagem comum não parece ser a melhor técnica.

Se os bens pertencem a uma sociedade que não detenha personalidade jurídica, os au-tores, em geral, se pronunciam pela configuração do delito de furto de coisa comum. Candente controvérsia se estabelece se o furto é praticado por cotista de uma sociedade legalmente consti-tuída, contra o patrimônio da própria sociedade: discute-se se há furto de coisa comum (art. 156 CP) ou furto simples (art. 155 CP). A questão assume grande importância, eis que, na hipótese de prevalecer a interpretação de trata-se de furto simples, podem ser aplicadas as respectivas qualificadoras e majorante.

Nelson Hungria (1958, p. 438-449), um dos autores do Código Penal, defendia que se

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configura furto de coisa comum, assim se manifestando: “o direito penal, essencialmente rea-lístico, é infenso às ficções ou abstrações do direito civil ou comercial. Na realidade prática, não obstante o princípio de que societas distat a singulis, o patrimônio que serve ao fim comum é condomínio ou propriedade comum dos sócios. E isto mesmo reconhece o nosso próprio Cód. Civil (artigo 1.373). O artigo 156 (reprodução do art. 627 do Cod. Penal italiano) não distin-gue entre sócio e sócio. É inquestionável que, se quisesse fazer distinção, teria acrescentado à palavra sócio a cláusula ‘salvo em se tratando de sociedade com personalidade jurídica’. Não fez, nem podia fazer tal distinção, pois, de outro modo, estaria infringindo o ‘ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio’.”4 Rogério Greco defende que essa interpretação se impõe porque “o sócio se sente dono do patrimônio de sua empresa, que inclusive foi idealizada por ele” (2012, p. 53).

Embora com importantes restrições adiante esclarecidas, a razão está com a corrente dominante, inaugurada no Brasil por Magalhães Noronha, e que defende que a hipótese é de furto simples (art. 155 CP). Ainda que seja verdade que a lei se refere, sem distinguir, a sócio, também é verdade que a lei exige que se trate de coisa comum. Não há dúvida alguma de que, para fins extrapenais (civis, tributários, etc.), os bens formalmente incorporados ao patrimônio de uma sociedade legalmente constituída são bens próprios da sociedade; os sócios da socie-dade são meros proprietários de cotas ou de ações da sociedade (conforme a forma societária), não sendo proprietários (nem coproprietários) dos próprios bens. Esses bens são da sociedade, e são assim considerados pelos demais ramos do direito. Essas considerações, por implicarem que as coisas de uma sociedade são alheias em relação ao sócio, levam à conclusão de que o sócio que furta coisa da sociedade pratica crime de furto simples; nesse sentido se orienta a maioria da doutrina (NORONHA, 1963, p. 306; FRAGOSO, 1995, p. 204; MIRABETE, 2003, p. 235; BITENCOURT, 2008, p. 62; DUTRA, 1955, p. 149; PRADO, 2000, p. 384), e da jurisprudência (TJSP, 2.ª C. Crim., Ap. 16.087, des. Bernardes Junior, j. 24.04.47, RT 168/492).

Não me parece que essa solução necessariamente viole, como diz Hungria, a regra lógica da ‘ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio’: a sociedade formalmente constituída, a cujo patrimônio tenham sido formalmente incorporados bens, não está na mesma posição que a so-ciedade que não detém personalidade jurídica.

De lege lata, é possível adotar duas importantes restrições a essa interpretação: pri-meira, caso a coisa não tenha sido formal e expressamente — i.e., por um ato jurídico solene — incorporada ao patrimônio da pessoa jurídica, não se configura o crime de furto simples, mas o furto de coisa comum (a circunstância da transferência propriedade de bens móveis se dar pela mera tradição, não exigindo ato solene, não ilide o fato de que a incorporação de um bem móvel ao patrimônio de uma sociedade exige ato solene); e segunda, no caso de empresa individual de responsabilidade limitada (introduzida pela lei 12.441, de 2011, cf. art. 980-A e segs., Código Civil), não há crime contra o patrimônio, eis que o único sócio é dono da totalidade das cotas sociais. De lege ferenda, seria desejável que a redação do art. 156 CP fosse alterada para incluir

4 No mesmo sentido: (JESUS, 1997, p. 332); e (GRECO, 2012, p. 53).

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a subtração praticada por sócio contra o patrimônio de sociedade simples ou de responsabilida-de limitada de que faça parte.5

Na medida em que o tipo exige a legitimidade de quem detém, não há o crime de furto de coisa comum, se a posse ou detenção é ilegítima.6 Assim, se um condômino, coerdeiro ou sócio subtrair a coisa comum a quem não a detém legitimamente, não pratica este crime.

Se o próprio agente tiver a posse da coisa comum, não há o crime de furto de coisa comum. Na lição comum dos autores (FRAGOSO, 1995, p. 203-204; ESTEFAM, 2010 p. 381; GRECO, 2012, p. 54; MIRABETE, 2003, p. 235; BITENCOURT, 2008, p. 61; JESUS, 1997 p. 322; HUNGRIA, 1958 p. 49; DUTRA, 1955 p. 147) e para alguns julgados (TJRS, 1.ª Câmara Criminal, Ap. n.° 17.147, des. Oldemar Toledo, j. 10.06.59, RF 192/409), configurar-se-ia, nessa hipótese, o delito de apropriação indébita (art. 168 CP).

Não se pode concordar com essa lição: primeiramente, porque o art. 168 CP exige expressamente que se trate de coisa alheia, e coisa comum não é coisa alheia (a literali-dade da lei é o limite máximo de expansão interpretativa criminalizante); e, em segundo lugar, a hipótese se aproxima, muito mais, dos casos dos incisos I e II do art. 169 CP, eis que, nesses, trata-se de apropriação de uma coisa que cabe, em parte, ao agente (no caso de tesouro achado em prédio alheio, deve haver, por lei, divisão paritária entre o proprietário do prédio e quem o achou, cf. art. 1.264, Código Civil) ou cujo achado cria direito a recompensa de 5% do valor e indenização de despesas (no caso de achado de coisa perdida, quem restitui tem esses direitos, cf. art. 1.234, Código Civil).

Isso mostra que a lei trata, com menor severidade, apropriações de coisas co-muns, não se justificando uma equiparação de uma apropriação de coisa comum, aliás viola-dora do princípio da legalidade, ao art. 168 CP (por violar a vedação de analogia e por violar a literalidade da lei). A hipótese de apropriação de coisa comum é de atipicidade penal, por não haver criminalização específica, resolvendo-se a questão na esfera cível7; equiparar a um dos incisos do art. 169 CP ainda seria, por igual, analogia vedada, mas, certamente, menos pior do que — como a maioria dos autores — enquadrar a hipótese no art. 168 CP.

No caso em que o agente emprega violência ou grave ameaça para obter a posse da coisa comum, dizem os autores que a hipótese seria de roubo (art. 157 CP). Heleno Fragoso (1995, p. 204) chega a dizer que “essa solução é inteiramente pacífica”; e Bitencourt (2008, p. 61) defende essa posição, “independentemente da natureza comum do objeto material da sub-tração”.8 Não se pode concordar com essa solução. Coisa comum não é, repita-se, coisa alheia,

5 Quanto a sociedades anônimas (que, dos seis tipos de sociedades, está, junto com a sociedade simples e a sociedade de responsabilidade limitada, entre os tipos mais frequentes), não é razoável, mesmo de lege ferenda, que o mero fato de alguém ser acionista dessa pessoa ju-rídica, que apresenta peculiaridades importantes (tendo, p.ex., que publicar balanços e, se tiver capital aberto, tendo ações em Bolsa), possa fundamentar enquadramento do tipo penal autônomo menos grave. 6 No mesmo sentido: (NORONHA, 1963 p. 308); (JESUS, 1967 p. 332). 7 Weber Martins Batista entende que “o fato caracterizará o crime de apropriação indébita, previsto no art. 168 do Código Penal, pois não existe a figura da apropriação indébita de coisa comum”, embora diga que “no máximo, e se for o caso, poderá beneficiar-se o agente da regra do art. 170, que estende àqueles crimes o disposto no art. 155, § 2°, ou seja, que consagra a apropriação indébita privilegiada” (1995, p. 191-192). 8 WEBER M. BATISTA, justificando a solução, diz que “o bem é alheio, ainda que apenas em parte e, por outro lado, o Código não

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que o art. 157 CP também exige. Coisa alheia é a coisa que, nem mesmo em parte, é própria. O CP argentino, reconhecendo o problema, estabelece que há roubo quando a coisa é “total o parcialmente ajena” (art. 164), expressão que nossa lei não adota. A violência ou grave ameaça não ficará, por evidente, impune, mas não se pode sacrificar o princípio da legalidade; a meu ver, a hipótese é de concurso formal de crimes, entre o furto de coisa comum e o crime relativo à violência ou à grave ameaça (ameaça, lesão corporal etc.).

A majorante (§ 1.°), a minorante (§ 2.°) e as qualificadoras (§§ 4.° e 5.°) do furto simples (art. 155 CP) não se aplicam ao furto de coisa comum, pelo simples fato de que sua posição topográfica indica se referem tão somente àquele delito.9 O parágrafo § 3.°, do art. 155, CP, que equipara “à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico” não se aplica, pelos mesmos motivos topográficos, ao art. 156 CP; isto pode levar, sem dúvida, uma situação iníqua, que, todavia, não pode ser suprida pelo intérprete sem ferir o princípio da le-galidade.

5 TIPO SUBJETIVO

A tipicidade do delito de furto de coisa comum só se configura a título de dolo. Não há modalidade culposa. É indispensável que a consciência e a vontade de furtar do agente abran-jam diversos aspectos: (i) o fato de se tratar de coisa comum; (ii) a legitimidade da detenção da coisa comum (seja por parte do condômino, coerdeiro ou sócio, seja do mero possuidor); e (iii) a circunstância de fazê-lo “para si ou para outrem”.

Assim, se o agente, ao subtrair uma coisa comum, imagina estar a subtrair coisa pró-pria (e não comum), não há tipicidade subjetiva. Se o agente, ao subtrair coisa comum, imagina tratar-se de coisa alheia (e não comum), o crime, ainda assim, é o do art. 156 CP, eis que o dolo de furtar coisa alheia é um plus em relação ao dolo de furtar coisa comum. (BITENCOURT, 2008, p. 63; FRAGOSO, 2995, p. 204; GRECO, 2012, p. 51) Se, ao contrário, o agente, ao sub-trair coisa alheia, imagina estar a subtrair coisa comum, há, também, o crime do art. 156 CP.

Se o agente crê seriamente, ainda que por erro, que é ilegítimo o título da detenção da coisa comum, não se configura o crime de furto de coisa comum, eis que o dolo do agente deve abranger a legitimidade da detenção. Se o agente crê, seriamente (ainda que por erro), que sua pretensão é legítima, não há que se falar em furto de coisa comum, mas, eventualmente, de cri-me de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP); nesse sentido: TJRS, 1.ª C. Crim., des. Oldemar Toledo, Ap. 17.147, j. 10.06.59.

O agente deve subtrair a coisa comum, para si ou para outrem. Assim, se se prova que o agente furtou a coisa para uso momentâneo e pretendia imediata devolução, a hipótese é de furto de uso de coisa comum (que não constitui crime). Não se devendo aplicar, aqui, os rigores

contempla, como tipo especial, menos grave, a figura do roubo de coisa comum” (1995, p. 192).9 Assim, no mesmo sentido, mas referindo-se expressamente apenas às qualificadoras. (BITENCOURT, 2008, p. 63); (DUTRA, 1955, p. 151); (HUNGRIA, 1958, p. 49).

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da configuração do furto de uso para as hipóteses em que se trata de coisa alheia: é que o mero uso é, certamente, um dos poderes que o coproprietário inequivocamente tem.

6 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

O critério, aqui, tem de ser o mesmo do furto simples (JESUS, 1997, p. 332). A consu-mação do crime ocorre, a meu ver, quando o agente adquire, ainda que momentaneamente, a posse mansa e pacífica da coisa comum. Considerar consumado o delito pela mera retirada da possibilidade de disposição do bem por parte da vítima constitui tornar o furto de coisa comum um crime de perigo.

A questão do momento consumativo do furto ensejou, historicamente, diversas teo-rias, designadas por expressões latinas: a teoria da contrectatio, a teoria da amotio, a teoria da ablatio, etc., que muitas vezes são mencionadas sem que se tenha a noção de que se referem a outros ordenamentos jurídicos, nos quais o furto era conceituado diferentemente.

O furto, a meu ver, se consuma apenas com a posse mansa e pacífica da coisa. Essa era a orientação predominante da doutrina e de nossos tribunais, até fins da década de 1980. Pri-meiramente quanto ao roubo10 e só muitos anos depois quanto ao furto11, os tribunais, todavia, têm considerado que a consumação da subtração ocorreria no momento em que a vítima perde o poder de disponibilidade sobre a coisa ou de disposição da coisa. Essa nova orientação — clara-mente centrada na vítima — é altamente criticável, pois antecipa o momento consumativo (tor-nando, p.ex., consumado o caso em que há perseguição e recuperação da coisa) e transforma, como bem dizia Nelson Hungria, o crime de furto em um direito penal de perigo, endurecendo o sistema. Influenciados pelos tribunais, diversos autores passaram a endossar a nova orientação pretoriana. Na prática da maioria dos casos, isto representa, p.ex., reputar consumado o delito de furto, mesmo quando o furtador não saiu das vistas da vítima e está sendo perseguido.

A corroborar a tese de que o crime de furto só se consuma com a posse mansa e pa-cífica da coisa, podem ser trazidos, ainda, três argumentos: (i) primeiramente, uma das carac-terísticas da posse é a aparência de propriedade (que dificilmente pode-se dizer existente, se ao agente está sendo perseguido); (ii) se a consumação ocorre quando a vítima perde o poder de disponibilidade sobre a coisa, um terceiro que só adere à empreitada criminosa durante a perseguição não seria punido por furto, mas apenas por receptação, ou favorecimento real ou pessoal, conforme o caso (é que não há concurso de agentes se um dos agentes adere ao crime após a consumação); e (iii) se o furto se consuma com a perda, pela vítima, do poder de dispo-nibilidade sobre o bem, a agressão cessa nesse momento, dificultando inclusive a justificação, pela legítima defesa, de eventual conduta da vítima para recuperar o bem.

Ademais, especificamente quanto ao crime de furto de coisa comum, antecipar o mo-

10 Leading case, no âmbito do STF: Pleno, RE 102.490/SP, min. MOREIRA ALVES, j. 17.09.87.11 São diversos os acórdãos, tanto no STF quanto no STJ; ad exemplum: STF, HC 89.958, 1.ª T., rel. Pertence, j. 03.04.07; STJ, HC 152.051/MG, rel. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 5.ª T., j. 07.12.10.

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mento consumativo para o momento em que o outro condômino, sócio ou coerdeiro, que legiti-mamente detenha a coisa, não tivesse a possibilidade de disposição do bem representaria odiosa antecipação da consumação, levando à criminalização de hipótese em que não haveria ilícito algum. Lembre-se de que o coproprietário tem direito de uso da coisa.

Se o agente só tirar a coisa comum, sem deter a posse mansa e pacífica, haverá crime tentado.12 A tentativa se inicia, a meu ver, no momento em que o agente inicia o rompimento do poder de disposição da vítima sobre a coisa. Na medida em que o coproprietário tem direito ao uso da coisa, as hipóteses de início da execução devem, por igual, ser avaliadas com cuidado.

7 CAUSA DE ATIPICIDADE PENAL MATERIAL

O art. 156, § 2.°, estabelece que “não é punível a subtração de coisa comum fungível, cujo valor não excede a quota a que tem direito o agente”. Bens fungíveis são “os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade” (art. 85, Código Ci-vil). Se a coisa comum é fungível e seu valor não excede a quota legítima do agente, diz a lei que a subtração “não é punível”. A matéria é mantida na esfera exclusivamente cível; tem-se, aqui, claramente, uma manifestação dos princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima.

Há discrepância (embora não haja verdadeira discussão) acerca da natureza jurídica da hipótese instituída nesse dispositivo legal. A definição não é irrelevante, eis que pode ter importância para casos de concurso de agentes e de erro. Hungria dizia que “o fato deixa de ser punível (§ 2.° do art. 156), embora persista como objetivamente antijurídico, tanto assim que não desaparece como ilícito civil” (HUNGRIA, 1958, p. 49). Magalhães Noronha fala em isenção de pena (1963, p. 308). Heleno Fragoso e Julio Mirabete só afirmam que, nessa hipó-tese, “o fato será impunível”, sem esclarecer-lhe a natureza jurídica (FRAGOSO, 1995, p. 204; MIRABETE, 2003, p. 236).

Damásio de Jesus assevera que “não se trata de causa de isenção de pena, como pre-tendem alguns autores. Na verdade, a norma penal permissiva diz que ‘não é punível a subtra-ção’. Fato impunível em matéria penal é fato lícito. Note-se que o legislador não diz que não é punível o agente, mas sim que não é punível a subtração. Trata-se, em face disso, de subtração lícita. Temos, então, causa de exclusão da antijuridicidade e não de isenção de pena” (1997, p. 332-333). Cezar R. Bitencourt, sem tecer maiores considerações, a considera uma “espécie de ‘excludente de antijuridicidade especial’” (2008, p. 62); e Nucci uma “causa específica de exclusão da ilicitude” (2008, p. 693).

Não se pode concordar com a tese de que tratar-se-ia de causa de exclusão da ilicitude. Se assim fosse, não haveria, por igual, ilicitude para os demais ramos do direito (como bem diz Hungria), salvo se se admitisse haver uma ilicitude exclusivamente penal. A ilicitude, a meu ver, é una. Por outro lado, também não se pode considerar que seja uma mera causa de isenção

12 No mesmo sentido, PRADO, 2000, p. 385.

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de pena ou uma escusa absolutória, pelo fato de que, subjacentes à abdicação de punição penal, não se encontram motivos de impossibilidade ou de exigibilidade de comportar-se de acordo com o direito, nem de mera inconveniência de impor-se pena, mas sim razões que indicam falta de conflitividade e de lesividade. Ademais, considerar a hipótese uma mera causa de isenção de pena ou escusa absolutória poderia representar, com clara iniquidade, isenção apenas para o agente que tivesse direito à quota, mas não a um co-autor ou a um partícipe que o auxiliasse, além de dificultar sobremaneira o reconhecimento de hipóteses de erro.

As referências à fungibilidade da coisa e ao fato de o valor não exceder a quota legíti-ma do agente indicam que a lei reconhece a ausência de conflitividade e de lesividade contidas na conduta formalmente típica, não, podendo, portanto, ser elevada à condição de uma conduta típica. A hipótese aqui, a meu ver, é de ausência de tipicidade material ou, na dicção de Zaf-faroni, Batista, Alagía e Slokar, de ausência de tipicidade conglobante (2010, p. 212) Heleno Fragoso, em lição que favorece essa solução, diz que, na hipótese do art. 156, § 2.°, CP, “o dano é desprezível, relacionando-se apenas com o interesse do condomínio ou da sociedade” (FRA-GOSO, 1995, p. 204). Magalhães Noronha, citando Manzini, fala aqui em “mancanza di danno penalmente valutabile” (1963, p. 309). O próprio Hungria admite que não ocorreria, na hipótese, “dano relevante” ou não estaria presente “a gravidade que informa o ilícito penal patrimonial” (1958, P. 50). Só não há injusto penal por ausência de tipicidade, mas a ilicitude não está ex-cluída, permitindo consequências em outros ramos do direito. Essa solução favorece, ainda, a extensão do dispositivo ao co-autor e ao partícipe que não detenha a condição pessoal exigida pelo tipo, e permite tratamento mais equânime à hipótese de erro.

A circunstância de a lei penal usar o termo “punível” não deve impressionar, por dois motivos. Primeiro, porque a tipicidade, no sentido que hoje a conhecemos, nasceu, no começo do século XX, de uma costela da categoria da punibilidade13 (“ameaçada com pena”), e tal con-ceito ainda não havia sido albergado pela maioria da doutrina italiana no momento da edição do Codice Penale de 1930 (que foi o modelo de nosso art. 156, e também se referia a non punibile); e, segundo, porque, à época da edição do Código Penal, a tipicidade ainda era um conceito for-mal, neutro e avalorado (i.e., ainda não havia se materializado14).

Se a coisa for fungível (mas seu valor exceder a quota-parte a que o agente teria direito) ou se for infungível (ainda que tal coisa não exceda tal quota-parte), não se aplica a excludente de tipicidade material. A fungibilidade não fica condicionada à vontade do agente, mas pode ocorrer fungibilidade em função de acordo de vontades. A doutrina tem considerado que, mes-mo em se tratando de bem fungível, se o agente escolhe a melhor parte, há crime (JESUS, 1997,

13 Antes da obra pioneira de ERNST BELING, os autores falam em ação antijurídica, culpável e ameaçada com pena, que englobava a previsão de pena e a possibilidade jurídica de imposição de pena.14 Apenas a antijuridicidade havia se materializado, a partir de 1905, na obra de FRANZ V. LISZT, que distinguia entre antijuridicidade formal e antijuridicidade material, ressaltando que aquele era o limite infranqueável desta. A perversão dessa relação pelos juristas nazis-tas levaria à compreensão do perigo de admitir-se a categoria da antijuridicidade material, levando a que houvesse uma materialização da tipicidade, que, como se sabe, é conceito umbilicalmente ligado ao princípio da legalidade, sendo, portanto, algo mais difícil — embora não impossível — sua perversão.

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p. 333).Tem, a meu ver, razão Heleno Fragoso, ao afirmar que: “A controvérsia sobre a cota

de cada sócio, condômino ou herdeiro, se não for de difícil solução poderá ser resolvida pelo juiz criminal, consoante a regra do art. 93 CPP. A dúvida sobre a condição de sócios, herdeiro ou condômino, porém, constitui questão prejudicial, que somente no juízo cível poderá ser resolvida, suspendendo o juiz criminal o curso do processo (art. 92 CPP). Se a ação for praticada em qualquer das circunstâncias que qualificam o furto, não haverá qualquer alteração na configuração jurídica do crime, devendo reconhecer-se, em qualquer caso, a infração do art. 156 CP”.15

8 PENA E AÇÃO PENAL

Comina-se pena sensivelmente inferior à do furto simples. Aqui, são cominadas, alter-nativamente, pena privativa de liberdade (de detenção), de 6 meses a 2 anos, ou pena de multa.

A ação penal é pública, dependendo, todavia, de representação da parte ofendida. Como bem lembra Magalhães Noronha, andou bem o legislador, eis que “no delito em espécie, a ação penal pode ser mais nociva ao lesado do que o próprio crime. A publicidade do processo pode abalar o crédito da sociedade, ou os interesses do condomínio, ou o nome dos coerdeiros” (1963, p. 308).

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15 FRAGOSO, 1995, p. 204. Em idêntico sentido, HUNGRIA, 1958, p. 50-51.

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Recebido em 07 abr. 2015Aceito em 29 abr. 2015

O DISCURSO ENTRE O CÁRCERE E A SUA SUPOSTA GRANDEZA SISTÊMICA

Fábio Wellington Ataíde Alves*

RESUMO: O presente ensaio reflete sobre a aparência dos discursos articu-lados dos agentes do sistema punitivo. Investiga indicadores que demonstrem que o aparente discurso de direitos humanos nada mais é do que um disfar-ce, que esconde a deslegitimação do cárcere e suas cifras de injustiça, como também demarca a seletividade penal e a precarização de garantias. Tudo isso será mais do que suficiente para aprofundar o desespero em torno das diferen-ças e radicalização dos discursos entre as diversas agências do sistema penal. Palavras-chave: Prisão. Homens em situação de privação de liberdade. Sis-tema carcerário. Discursos. Direitos humanos.

1 A DIMENSÃO SISTÊMICA DAS AGÊNCIAS PENAIS

O poder surge como uma grande agência administradora dos medos naturais do ser humano, que acabam assim por justificar o curso dos discursos criminológicos (ZAFFARONI, 2005, p. 4). Se fôssemos buscar o tronco-mãe de todas as agências penais modernas chega-ríamos até a inquisição, não apenas marcando o exercício do poder sobre um tipo de mulher perigosa, mas preparando terreno para domínio dos homens (ZAFFARONI, 2005, p. 18). Como primeira agência de controle, a inquisição instaura um discurso criminológico que cai sobre a mulher ainda de forma concentrada e não fragmentada.

A inquisição opera uma grande agência punitiva, que somente posteriormente vem a se fragmentar, dando cria a uma ninhada de agências que lutarão por desenvolver seus próprios es-paços para crescimento. É dizer, os inquisidores ainda reúnem as funções das agências médicas,

* Juiz de Direito e Professor de Criminologia e Teoria da Pena/UFRN.

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investigativas, instrutoras, policiais, julgadoras, legisladoras e acadêmicas. A partir da frag-mentação desse poder muitos novos órgãos menores com especialização e discursos próprios surgirão e assim conheceremos os órgãos acusadores, investigadores, julgadores, defensores e assim por diante, cada qual desenvolvendo seu próprio discurso.

Segundo Zaffaroni (2005, p. 9), que apresenta esse curso da evolução do poder puniti-vo, as agências não se orientam em torno de um discurso comum, mas se colocam em um palco de disputa, em que vencerá essa competição aquela agência mais funcional ao poder. Quanto mais funcional o discurso, mais poder adquire a agência, mas nenhuma construção teórica de-saparece na criminologia; continuam todas aí, mais ou menos praticadas, com maior ou menor audiência.

Mesmo assim, o criminólogo argentino antecipa que o poder punitivo nem sempre existiu como nós o conhecemos. Ao longo da história, ele apareceu e desapareceu como ferra-menta de solução de conflitos, tendo firmação definitiva apenas após o séc. XII, a partir do que chamou de confisco da vítima, ou seja, quando a vítima começa a desparecer como principal gestor do conflito para dar lugar a magistrados. No lugar da vítima, o poder político (Estado) passa a agir por si próprio, fazendo assim que o político também seja poder punitivo, dando o aspecto político ao que antes era apenas força (ZAFFARONI, 2005, p. 11).

Uma vez estabelecido o controle sobre as mulheres, o poder punitivo se assenta na missão principal de controlar os homens jovens e adultos, restando o controle de mulheres, crianças e idosos à contenção o poder patriarcal. Ainda que as relações de poder tenham se tornado infinitamente complexas na sociedade moderna, essa articulação principal se mantém com maior ou menor ênfase (ZAFFARONI, 2005, p. 17), tanto que a prisão ainda continua sen-do um espaço onde encontramos basicamente homens jovens e adultos.

2 A SIMBOLOGIA DA CRISE DO CÁRCERE

A partir dessa reflexão sistêmica, em que as agências são desenhadas em um processo de disputa de poder, proponho nesse ensaio uma breve abertura para pensar a expansão da pri-são a partir do momento de sua crise real, que assinala simbolicamente a ilegitimidade do dis-curso das agências penais por “mais prisões”, como também torna manifesta a ausência de uma política de segurança dos direitos (Baratta) que reverta a funcionalidade excludente do cárcere.

Desde essa perspectiva e já fazendo um contraponto, cumpre entender a ideia geren-ciamento apresentado por Anthony Bottoms (citado por ROSAL BLASCO, 2009, p. 49), para quem o sistema penal contemporâneo se caracterizaria por três dimensões. A primeira é a sistêmica, que compreende o sistema penal em sua totalidade e capacidade de cooperação das agências. A segunda é a consumidorista, segundo a qual a sua funcionalidade subordina-se aos índices de satisfação da sociedade como destinatária do serviço, estando consequentemente os presos excluídos dessa condição de “destinatários”. Finalmente, a terceira é a atuarial, pela qual a punição resulta de aplicação de cálculos projetados para os riscos futuros de novos delitos.

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Sabendo que essas dimensões se imbricam, pretendemos de início seguir o raciocínio investigando apenas a primeira dessas dimensões, numa perspectiva estritamente marginal, ou seja, entendendo o curso do poder punitivo e a sua incapacidade de articular um discurso único. A par disto, devemos entender que a convergência para o discurso repressor decorre mesmo de uma imbricação em que uns discursos prevalecem sobre os outros, decorrente de uma funcio-nalidade ao poder.

Assim, podemos afirmar que a grandeza sistêmica do cárcere em países como o Brasil congregam muitas agências sob um discurso destacadamente repressor, as quais não estariam exatamente articuladas para uma finalidade humanitária. Parece ser preferível tratar de “de-sarticulação sistêmica”, por meio de que se faz notável um propósito implícito. Nessa forma articulação invertida está a chave para entender a disfuncionalidade das agências para cumprir a realização dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, a funcionalidade para efetivamente en-tender a predominância dos discursos repressores.

3 A REBELIÃO NO CÁRCERE: AS MÁSCARAS CAEM

Nesse processo, aflui que o Estado levanta prisões como quem levanta sepulturas. Na América Latina, dentre as inúmeras causas por trás da administrativização do Direito Penal e expansão prisional, está um discurso autoritário de negação da autonomia dos presos em favor de explicar o problema da prisão sem o ser humano dentro dela, isto é, compelindo a gestão da matéria a partir da dimensão meramente consumidorista. Essa política de imposição de silêncio aos presos costuma aparecer limpidamente em momentos de críticos, como motins e rebeliões.

Uma rebelião pode ser uma ocasião ímpar para compreender as representações do sistema penitenciário em meio às dimensões sistêmicas, consumidoristas e atuariais. Nesses momentos de revolta em que autoridades e presos tomam o palco da disputa por poder, er-guem-se os discursos que negam as negociações verdadeiras como também surgem as falsas promessas de novos investimentos na humanização da prisão, como se isso fosse possível. No transcurso da onda de violência que transborda no sistema penitenciário durante o ápice das rebeliões, é preciso chamar a atenção para o despreparo com que os assuntos são levados sem nenhuma reflexão criminologicamente fundamentada. No estudo da gestão das rebeliões, a despeito da natural (des)articulação das agências punitivas, os discursos que são levados a cabo ajustam-se perfeitamente à única finalidade de controlar a crise, como se tudo aquilo fosse passageiro e existisse saída digna para o Estado que nunca deu ouvidos a quem historicamente negou direitos.

Antes de qualquer motim, a normalidade da prisão pode ser apenas uma aparência. Isso implica dizer que a crise no cárcere não tem transitoriedade. Os discursos consumidoristas que surgem em momentos de grande crise apenas ocultam a etiologia da violência estrutural na prisão. Não é necessário fazer distinção entre aspas da falsidade das ações dissimuladoras que ocorrem em momentos de rebelião, que fingem a articulação do sistema penal em torno de um

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único discurso. Chegam helicópteros; forças policiais externas são convocadas; comitês de ges-tão de crise fazem reuniões; secretários dão entrevistas; diretores de unidades prisionais entre-gam seus cargos, tudo para dar sinais aos consumidores que as agências estão meticulosamente unidas para conter a eventualidade de um combate disfuncional meramente momentâneo.

4 INDICADORES PARA DETERMINAR A ARTICULAÇÃO

Diante da ilusão do controle da rebelião, poderíamos investigar o grau de aperfeiçoa-mento das agências penais para entender como elas não se apercebem da própria desarticulação, ainda que isso esteja tão nu. É de admirar como a desarticulação sistêmica pode ser conhecida objetivamente, a partir de um conjunto de indicadores capazes de revelar a falsidade dos dis-cursos humanitários saído da boca de muitas autoridades. Esses indicadores poderão auxiliar a descoberta da maneira como as agências estão sem prumo em países marginais e como isso acaba se transformando em uma espécie de articulação (invertida) que neutraliza a humaniza-ção do cárcere, o que de fato abre espaço para uma desregulação da máquina para funcionar meramente reduzida ao modo de repressão como único expediente.

Para saber se efetivamente existe articulação sistêmica, poderíamos dessa forma en-contrar indicadores da relação entre (a) o cárcere e suas alternativas; (b) a execução penal e os órgãos externos indispensáveis; (c) os órgãos diretamente relacionados com a execução e (d) a execução penal e órgãos externos periféricos. Para fazer um esboço desses indicadores, elaborei um conjunto não exaustivo das seguintes questões:

1) O Estado possui alternativas concretas ao cárcere?

2) As alternativas que possui estão estruturadas para atender seus objetivos?

3) O Estado participa do Sistema Nacional de Acompanhamento de Penas (Lei 12.714/2012) e possui Sistema de Controle do Cumprimento das Medidas e Penas Alternativas?

4) O Estado participa ativamente, juntamente com o Poder Judiciário, da fiscalização das penas e medidas alternativas à prisão?

5) Existe atuação permanente e eficaz da Defensoria Pública?

6) Existem varas específicas para a execução penal, sem acumulação de competência?

7) Essas Varas de execuções são bem estruturas por pessoal multidisciplinar?

8) O Conselho Penitenciário e o Conselho da Comunidade cumprem adequadamente suas funções, inclusive sendo acomodados em instalações minimamente adequadas para a complexidade de suas tarefas?

9) Existe ouvidoria no sistema penitenciário e as reclamações existentes implicam pro-

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cessos reais para a resolução da questão?

10) O monitoramento eletrônico está funcionando adequadamente?

11) Os presos são conduzidos com regularidade para as audiências?

12) Existem sistemas de vídeo-conferência para agilizar audiências e diminuir custos em casos legalmente previstos?

13) Os relatórios dos órgãos judiciais de fiscalização e monitoramento estão implicando a produção de ações concretas para reverter as deficiências constatadas?

14) Os mutirões carcerários são realizados frequentemente?

15) Com que frequência ocorrem fugas de presos e rebeliões?

16) As rebeliões terminam satisfatoriamente, resolvendo as propostas acordadas?

17) A educação na prisão é efetivamente promovida?

18) As Metas do Conselho Nacional de Justiça estão sendo cumpridas pelos órgãos judi-ciais?

19) O Estado assegura condições para que Universidades Públicas participem a realizar ações de extensão na prisão?

20) O Estado participa do Sistema Nacional de Pessoas Desaparecidas e há articulação desse sistema com as autoridades que investigam homicídios?

Evidentemente não temos espaço para discutir todas essas perguntas, mas neste ins-tante precisamos saber apenas que as eventuais respostas serão suficientes para demonstrar não apenas a desarticulação das agências penais, mas sobretudo como inexiste um sistema penal verdadeiro pautado por valores humanos e protetivos dos direitos fundamentais.

De fato, a única articulação que existe passa pelos conceitos de segurança e ordem. Em momentos de rebelião ou atos de incentivo ao motim, quando as dimensões sistêmicas e consumidoristas acham-se sobrelevadas, todas as questões estruturais que envolvem a prisão são substituídas por um discurso agregador e funcional, quase que exclusivamente focado na re-tomada do controle e, em casos mais graves, sem qualquer chance para uma verdadeira negocia-ção com os rebelados. Nesses momentos únicos, conhecemos a política criminal sem máscaras, quando então as agências aparecem legitimadas apenas pela preleção de ordem e segurança, quase sem espaço para discutir direitos.

Em momentos de crise, o Direito que está ao lado do Estado brota pela força quase bruta, passando uma linha demarcatória entre a ordem e a negociação sincera que reconheça os rebelados como titulares de direitos. Nessa política de imposição do silêncio, negar a “nego-

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ciação” significa entregar-se à violência acreditando que o agressor não tem nada importante para dizer simplesmente por ser agressor. A chave para conhecer a negação de direitos está na maneira como a negociação desenvolve em uma ótica da ordem pela ordem, baseada no temor e ameaça de punições disciplinares e consequências após o término do motim.

Não quero dizer que rebelados devam ser isentos de responsabilidades ou que os danos e consequências de seus atos não devam ser apurados. A responsabilidade faz parte de um pro-cesso de conscientização coletiva, tanto para membros das agências, como para rebelados. De nossa parte, digo que em momentos de tensão, todo controle em excesso gera reação inversa, e quanto mais controlamos, mais criamos tuneis invisíveis para a incerteza e danos. Certamente será útil que o negociador perceba que todo sistema de controle é uma perda de tempo ou de di-nheiro quando ignora a realidade de que a prisão nunca esteve sob controle do Estado. Inexiste outra coisa a ser dita a não ser que de nada adianta encontrar culpados ou fazer bodes expiató-rios para retomar a ordem pela instalação do terror.

5 O DÉFICIT DE JUSTIÇA DO SISTEMA PRISIONAL

Independentemente de ser uma questão inerente à expansão punitiva, o problema da prisão encontra-se, acima de tudo, com o déficit de justiça do sistema prisional. Sem qualquer ilusão, o discurso “mais prisão” exigida pela dimensão consumidorista, sob o qual paira a su-posta certeza de “mais segurança”, está deslegitimado em sua fonte. Em última análise, o Estado desconhece o déficit de justiça da prisão, em função de que a dimensão atuarial simplesmente não contabiliza quantos estão ocupando a vaga injustamente e aqui não me restrinjo apenas aos casos de prisões ilegais, mas, sobretudo, aos de prisão ilegítima, entendida como aquelas que são resultado de processos penais seletivos com precarização de garantias.

Ferrajoli (2002, p. 168) explica que as cifras negras que entremeiam o sistema de jus-tiça penal abrangem as (a) cifras de ineficácia, demarcada pelo o universo de pessoas culpadas que ficam de fora do sistema, como também as (b) cifras de injustiça, das quais participam os inocentes indevidamente considerados culpados. A importância de delimitar esta distinção reside na capacidade que as cifras de injustiça possuem para aprofundar a deslegitimação do direito penal a um ponto de não ser aceitável falar em expansão da prisão. E somente por meio das garantias penais seria possível contornar os números da cifra de injustiça.

O direito penal é o lugar dramático em que Estado e indivíduos pelejam em um palco onde se encontra uma frágil linha que separa o poder punitivo da força. As cifras de injustiça resultante da inexistência de garantias não apenas confundem culpados e inocentes, mas desle-gitimam todo o direito, como muito bem esclarece Ferrajoli (2002, p. 168):

Refletindo sobre o peso destes custos, compreende-se a centralidade que o direito penal ocupa na caracterização de um ordenamento jurídico e do sistema político que através deste se expressa. No tratamento penal manifesta-se - em estado puro e na maneira mais direta e conflitual - a relação entre Estado e cidadão, entre poder

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público e liberdade privada, entre defesa social e direitos individuais. O problema da legitimação ou justificação do direito penal, conseqüentemente, ataca, na raiz, a própria questão da legitimidade do Estado, cuja soberania, o poder de punir, que pode chegar até ao ius vitae ac necis, é, sem sombra de dúvida, a manifestação mais violenta, mais duramente lesiva aos interesses fundamentais do cidadão e, em maior escala, suscetível de degenerar-se em arbítrio. A falta de correspondência entre culpados, processados e condenados, e, em particular, a “cifra da injustiça”, formada pelas, ainda que involuntárias, punições de inocentes, cria, de outra parte, complicações gravíssimas e normalmente ignoradas ao problema da justificação da pena e do direito penal. Se, com efeito, os custos da justiça e aqueles opostos da ineficiência podem ser, respectivamente, justificados em modo positivo, ou tolerados com base em doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça, por seu turno, são, neste diapasão, injustificáveis, consentindo ao direito penal que os produz apenas uma justificativa eventual e negativa, ancorada nos custos maiores que, hipoteticamente, a falta de um direito penal e das suas garantias acarretaria. Porém, a cifra da injustiça, como facilmente perceptível na análise até o momento realizada é principalmente, o produto da carência normativa ou da não efetividade prática das garantias penais e processuais, que acabam por prestar-se ao arbítrio e ao erro (grifamos).

Para começar a pesquisar essa cifra de injustiça ou esse déficit de justiça, será útil investigar não apenas as garantias penais e processuais asseguradas na lei, mas como o Estado monitora o sistema de execução penal para adequar o seu funcionalmente às garantias. Chamo atenção para a importância, v. g., do sistema de controle de penas, das correições, dos mutirões e inclusive do acesso às revisões criminais ou interposições de habeas corpus. Independentemen-te das garantias, são indicadores da existência de controles das cifras de injustiça no cárcere, por exemplo, o Sistema Nacional de Acompanhamento de Penas instituído pela Lei 12.714/2012 e a realização de frequentes mutirões carcerários, além dos diversos programas do Governo Federal e do Conselho Nacional de Justiça para área carcerária.

Para esse efeito, no âmbito das alternativas à prisão, é importante saber se existe em funcionamento um Sistema de Controle do Cumprimento das Medidas e Penas Alternativas, que permita o acompanhamento dessas sanções, corrigindo o déficit de injustiça, na medida em que faça acompanhamento e a fiscalização das garantias durante o cumprimento das medidas e penas alternativas. Também cabe dimensionar como acontece o controle das penas alternativas no âmbito das diversas Comarcas do Estado, na tentativa de investigar se há concretamente uma política para uniformizar procedimentos e qual o grau de participação do Estado nesse controle. O funcionamento dos Conselhos da Comunidade e a existência de Comissões de Acompanha-mento de Penas Alternativas também não exigências mínimas que não podem ser esquecidas como garantias da Execução Penal.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para resumir a problemática exposta até aqui, é preciso entender que o sistema penal germina na Inquisição, a partir de quando opera uma fragmentação contínua dos discursos criminológicos em torno das agências médicas, investigativas, instrutoras, policiais, julgadoras, legisladoras e acadêmicas, ou seja, o curso da evolução do poder punitivo não se dá sob a orien-tação de um discurso único. O aparente discurso prevalente nada mais é do que um disfarce, circunstancial na verdade, porque de fato nenhuma construção teórica desaparece no curso da criminologia.

A partir do confisco da vítima, o principal gestor do conflito passa a ser o Estado, cujas agências conferem aspecto político ao que antes era apenas força e é assim que o poder punitivo acaba por se estabelecer para controlar homens, fazendo isso por meio de inúmeros discursos, em que uns prevalecem sobre outros, conforme a funcionalidade de cada momento.

Em qualquer ângulo de vista sobre o assunto, a uma conclusão chegaremos: momentos de crise, especialmente as rebeliões carcerárias, são fundamentais para a disputa de poder das agências e a funcionalidade circunstancial dos discursos, tudo isso para fazer crer que elas estão unidas em torno de um saber cientificamente preparado. Isso cai por terra a partir de um conjun-to de indicadores capazes de revelar a falsidade dos discursos humanitários, triturados em uma máquina cujo funcionamento opera quase exclusivamente para transformar o homem em suco.

A deslegitimação do cárcere vem à luz com a cifra de injustiça do sistema, essencial-mente seletivo e precarizado em garantias, não somente confundindo ou transformando culpa-dos com inocentes, mas aprofundando o desespero em torno das diferenças e radicalização dos discursos.

REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paulo Zomer e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

ROSAL BLASCO, Bernardo del. ¿Hacia el Derecho Penal de la Postmodernidad? Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, Granada, n. 11-08, p. 1-64, 2009. Disponível em: <http://criminet.ugr.es/recpc>. Acesso em: 20.mar.2011.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. En torno de la cuestión penal. Montevideo, Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2005 [Colección Maestros del Derecho Penal n. 18].

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THE THEORY OF PRISON AND YOUR SUPPOSED SYSTEMIC GREATNESS

ABSTRACT: This essay reflects on the appearance of articulate speeches of the punitive system agents; investigates indicators showing that the apparent human rights discourse is nothing more than a disguise , hiding the delegiti-mization of the prison and its figures of injustice , but also marks the criminal selectivity and the precariousness of guarantees. All this will be more than enough to deepen the despair around the differences and radicalization of discourse between the various agencies of the criminal justice system.Keywords: Prison. Men in privation situation. Human Rights. Penitentiary system.

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Recebido em 15 fev. 2015Aceito em 30 abr. 2015

A IMPORTÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Leonardo Albuquerque Melo*

RESUMO: Apresenta considerações sobre a boa-fé e sua importância, sobre-tudo, nas relações jurídicas de consumo. Desde o aspecto histórico até a aná-lise de normas presentes no Código de Defesa do Consumidor, reiterando os ideais de honestidade e lealdade entre as partes e reafirmando a importância da boa-fé nas relações de consumo. Trata da diferença entre a boa-fé subjetiva e objetiva, indicando qual é a aplicada nas relações de consumo. Utilizou-se como procedimento metodológico a pesquisa em meios físicos e eletrônicos, valendo-se majoritariamente da doutrina consumerista, embasando, pois, o artigo como um todo.Palavras-chave: Boa-fé. Código de defesa do consumidor. Relação de con-sumo.

1 INTRODUÇÃO

A perspectiva para a solução de problemas e de simples inconvenientes que a vida nos apresenta varia de geração para geração. Novas ideias, meios e instrumentos vão surgindo e criando novas situações, que, por muitas vezes, o direito positivo não tem uma resposta precisa de pronto. Por isso, verifica-se a constante necessidade de o direito moldar-se às necessidades sociais, através de um mesmo dispositivo legal.

Nesse sentido, formulou-se um grande número de princípios gerais a fim de influenciar a formação moral do homem, orientando-lhe às criações jurídicas para que atendessem àquilo que era demandado.

Dentre os vários que surgiram, um dos princípios de maior relevância até hoje elabora-

* Bacharel em direito, graduado pela UFRN, e pós graduando em Gestão Empresarial pela FGV.

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do pelo Direito Romano é o da equidade, que consiste no tratamento justo mesmo em situações de ausência normativa. Com base nesse, o princípio da boa-fé se desenvolveu e hoje se mostra como um norte de suma importância para diversas espécies de relações jurídicas, como a rela-ção de consumo – objeto de estudo deste trabalho acadêmico.

2 BREVE HISTÓRICO

Destarte, para uma breve perspectiva histórica, pode-se inferir que a boa-fé tem in-fluência e origem na Fides do Direito Romano. Essa era uma qualidade imprescindível do bom romano e tem como base o cumprimento de um juramento ou um pacto (CASTRO, 2010).

Com o passar do tempo, a fides evoluiu em conformidade com a modificação dos instrumentos jurídicos e a evolução do pensamento por influências filosóficas que, por muitas oportunidades, veio a suprimir a lacuna entre o direito e os institutos normativos positivados. Assim surgiu a bona fides, princípio geral que norteia as relações interpessoais, cuja base eti-mológica remonta a lealdade e confiança.

Seguindo uma linha cronológica, mais precisamente na França do pós Revolução Fran-cesa, a boa-fé fora bastante desenvolvida, tendo como marco principal o Código Napoleônico de 1804, obra que o próprio Napoleão considerou como a mais importante de sua carreira como estadista (CASTRO, 2010). Esse código teve forte inspiração no Direito Romano e sua impor-tância pode ser verificada a partir dos vários códigos civis que o tiveram como modelo.

A título de exemplo, a boa-fé pode ser verificada no Código Civil francês de 1804 em seu artigo 550, que aduz: “o possuidor está de boa-fé quando possui como proprietário, em vir-tude de título translativo de propriedade cujos vícios ignore”.

Em seguida, temos o Direito Alemão como um grande contribuinte no desenvolvi-mento da boa-fé, cuja ideia fora formulada em treue und glauben (lealdade e confiança). Ainda, ressalta-se que o seu caráter objetivo que foi desenvolvido tem reflexos na Escola da Exegese do Direito Germânico (GOMIDE, 2009). Nesse sentido, tem-se o parágrafo 242 do Código Civil Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch) que traz: “o devedor está adstrito a realizar a presta-ção tal como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.

Na Common Law, estrutura de ordenamento cuja fonte primária do direito é a juris-prudência, a presença da boa-fé difere dos demais sistemas de Civil Law, cuja principal fonte do direito é o texto normativo. Isso se percebe quando, na fase pré-contratual, não há o dever geral de as partes negociarem com boa-fé (a desnecessidade de uma parte expor às outras ques-tões importantes) tendo como justificativa a autonomia privada caracterizada na liberdade de contratar.

No Brasil, o primeiro texto a trazer o princípio da boa-fé foi o Código Comercial de 1850. Naquele dispositivo era possível identificar um caráter interpretativo e integrador da boa--fé nas cláusulas contratuais, verificado, por exemplo, no artigo 131 que traz:

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Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: [...] 1.4 – a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.

Infelizmente tal regra caiu em esquecimento por falta de inspiração da doutrina e de seu desuso nos tribunais.

Contudo, a boa-fé se consagrou em seu caráter objetivo com o Código de Defesa do Consumidor de 1990, consistindo num “dever genérico de lealdade e transparência nas relações de consumo, devendo ser observada não apenas pelos fornecedores, como também pelos consu-midores” (NUNES JÚNIOR, 2009, p. 39).

Ademais, reforçando a ideia de consagração da boa-fé, é possível verificá-la no corpo do Código Civil de 2002, cujo teor está pautado nos princípios da socialidade, operabilidade e eticidade. Nele, há a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, valoriza-se a pessoa humana como fonte de valores e o direito é posto para ser efetivado, executado. Evidencia-se, pois, o contraste entre o Novo Código Civil e o Código de Beviláqua, pelo fato de este ser pau-tado no individualismo e desprovido de boa-fé (GONÇALVES, 2011).

Assim, verifica-se a existência de quatro etapas na recepção da cláusula geral da boa--fé. A primeira ocorreu com a acolhida do Direito Romano, por meio das Ordenações; a segun-da se deu por influência do Direito Francês, com o Código de Napoleão; a terceira, à aceitação do prestígio do Direito Alemão; e a quarta, com a incorporação do método e raciocínio da Common Law, bem como o seu acolhimento no Direito Brasileiro (AGUIAR JÚNIOR, 2011).

Quanto à quarta recepção, que muito nos influencia por tratar mais especificamente do Ordenamento Pátrio, tem-se uma transposição de uma técnica operativa judicial de um sis-tema jurídico aberto para um fechado, produzindo uma modificação da aplicação do Direito, porquanto “o uso da cláusula geral foge do parâmetro das normas tipificadoras de condutas e exige do juiz a prévia fixação da norma de comportamento adequada para o caso” (AGUIAR JÚNIOR, 2011, p. 377).

Além disso, no Brasil há uma compatibilização entre os princípios da boa-fé e da auto-nomia privada, traduzida, por exemplo, na relatividade contratual do pacta sunt servanda (que se traduzido brevemente, significa “os pactos devem ser respeitados”). Assim, a boa-fé acaba por relativizar a autonomia das partes, considerando a existência de efeitos para além do vínculo contratual formal, que devem ser destacados e protegidos.

Ainda, na cláusula geral há uma delegação, atribuindo ao juiz a tarefa de elaborar o juízo de valor dos interesses em jogo, firmando-se como uma realidade jurídica diversa dos princípios e regras, e ficando o seu conteúdo aplicável e determinável com base no caso concre-to (AGUIAR JÚNIOR, 2011).

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3 BOA-FÉ SUBJETIVA E BOA-FÉ OBJETIVA

De início, é válido dizer que a boa-fé é um dos princípios contratuais de maior desta-que no cenário atual. Por isso, é importante frisar que existem duas formas em que a boa-fé se expressa e que em nada se confundem; são elas a boa-fé objetiva e a subjetiva.

A boa-fé trazida pelo Código de Defesa do Consumidor é a objetiva, diversa da subje-tiva.

A boa-fé subjetiva trata da consciência ou não de um fato pela pessoa, sendo levada em consideração pelo direito para os fins específicos da situação regulada. É o que se tem, por exemplo, no artigo 1201 do Código Civil, que traz em seu caput: “é de boa-fé a posse, se o pos-suidor ignore o vício, ou obstáculo que impede a aquisição da coisa”.

Outrossim, diz-se que a boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa sobre um fato modificador, impeditivo ou violador de direito. É o que se tem no artigo 1561 do Có-digo Civil, quando trata dos efeitos do casamento putativo. Desse modo, segundo Nunes (2011, p. 658), “é, pois, a falsa crença de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua legitimidade porque desconhece a verdadeira situação”.

Assim, a boa-fé subjetiva remete a estado de consciência ou a convencimento indivi-dual da parte ao agir em conformidade ao direito. Diz-se subjetiva, pois, na aplicação da norma, o intérprete deve considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou de íntima convicção (GONÇALVES, 2011).

Por sua vez, a boa-fé objetiva é uma regra de conduta que, consiste no dever das par-tes agir com honestidade, lealdade, retidão e em consideração para com os interesses do outro contraente, sobretudo no sentido de não deixar de fornecer informações relevantes a respeito do objeto e conteúdo do negócio (GONÇALVES, 2011), a fim de se equilibrar as relações de consu-mo, por exemplo. Nesse mesmo sentido, Braga Netto (2012, p. 63) entende como sendo “o dever imposto a quem quer que tome parte em relação negocial, de agir com lealdade e cooperação, abstendo-se de condutas que possam esvaziar as legítimas expectativas da outra parte”.

Desse modo, a boa-fé objetiva funciona como um standard, um modelo jurídico que se reveste de várias formas para uma atuação refletida, na qual um age pensando no seu parceiro contratual e respeitando os seus interesses, expectativas e direitos, pautada na honestidade e lealdade, cooperando para o cumprimento do contrato e a realização do interesse de ambos (MARQUES, 2006).

Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel e leal e em respeito mútuo entre as partes contratantes. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem lesionar ninguém, cooperando sempre para atingir o fim pretendido do contrato, realizando os interesses das partes.

4 AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA

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A doutrina não é unânime em apontar as funções da boa-fé. Mas, em linhas gerais, identificam-se três: diretriz hermenêutica; criação de deveres jurídicos anexos; e limitação dos direitos subjetivos. Tais funções interligam-se e servem para melhor delimitar a aplicação do princípio.

Como diretriz hermenêutica, a boa-fé objetiva estabelece que se deva interpretar os contratos em consonância com uma esperada lealdade e honestidade das partes. Nesse ponto, verifica-se a influência direta da eticidade que se espera dos participantes da relação. Quanto a isso, merece destaque o artigo 113 do Código Civil, cujo teor põe que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração, e o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor, que trata da interpretação mais favorável ao consumidor das cláusulas contratuais.

Em relação à criação de deveres anexos, a boa-fé se constitui numa fonte autônoma, isto é: os deveres não decorrem exclusivamente da relação obrigacional, independem da mani-festação de vontade dos contratantes, levando-se em consideração também as circunstâncias e/ou fatos referentes ao contrato (AGUIAR JÚNIOR, 2011). Tais deveres estão relacionados com informação, cuidado, segurança e cooperação.

A título de exemplo, são deveres anexos das partes: indicar alteração de endereço, telefone e outros meios de contato, principalmente nos vínculos contratuais, de modo a evitar dificuldades de cumprimento das obrigações; evitar danos à integridade moral e física do con-sumidor; informar que haverá uma mudança substancial num modelo de carro, com potencial desvalorização do modelo antigo (BENJAMIN, 2012).

Quanto à terceira função, a boa-fé serve como limite para o exercício de direitos sub-jetivos. Tal função tem por escopo limitar o exercício do direito das partes para que estas não incorram em práticas abusivas. Esta função é disposta no artigo 187 do Código Civil, que aduz: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Dessa forma, funciona como parâmetro para verificar a conduta das partes de modo a concluir pela arbitrariedade e do abuso de direito (BENJAMIN, 2012), não podendo o con-sumidor valer-se das regras do Código de forma dissoluta, com intuito de locupletamento, por exemplo (NUNES JÚNIOR, 2009).

5 A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor inovou ao trazer em seu escopo o princípio da boa-fé, expressamente nos artigos 4º, III, e 51, IV, que trouxeram importantes modificações nas relações de consumo, mais precisamente no que trata da harmonização dos interesses econômi-cos e da proteção contratual.

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5.1 A norma do Artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor

O princípio da boa-fé constante no artigo 4º da Lei nº 8.078/90 tem como função via-bilizar os dispositivos constitucionais que versem sobre a ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente antagônicos, como a proteção do consumidor e desenvolvimento eco-nômico e tecnológico.

A primeira consideração a ser feita está pautada no fato de a boa-fé aparecer como princípio orientador da interpretação, e não como cláusula geral para a definição das regras de conduta. É uma referência para a interpretação e aplicação do Código, o que, segundo Aguiar Júnior (2011), seria até de certo modo dispensável, pois não se concebe sociedade organizada com base na má-fé, não fosse a constante conveniência de acentuar a sua importância.

Em seguida, o princípio da boa-fé destacado no inciso III é tido como um critério auxiliar para a viabilização dos ditames constitucionais sobre a ordem econômica. Com isso, promove a harmonização entre consumidores e fornecedores, entre prestação e contraprestação. Busca-se uma relação contratual justa e, segundo Nunes (2011, p. 660), isso quer dizer que “a boa-fé não serve tão somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princí-pios constitucionais do art. 170 sua razão de ser”.

Desse modo, a aproximação da ordem econômica e da boa-fé serve para realçar que esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico, relacionado com a funcionalida-de do contrato e sua finalidade socioeconômica.

5.2 A Norma do Artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor

Constata-se de pronto que a Lei nº 8.078 trouxe no rol exemplificativo das nulidades do artigo 51 a cláusula incompatível com a boa-fé no inciso IV, sendo nula de pleno direito a que estabeleça obrigações consideradas iníquas, abusivas que coloque o consumidor em desvanta-gem exagerada.

O entendimento do inciso completa-se com o disposto no §1º do referido artigo, por-quanto se presume exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico em que está inserida, que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato de modo a distorcer o equilíbrio contratual ou ameaçar o objeto do caso, e que onera em demasia o consumidor, levando em consideração a natureza e conteúdo contrato, bem como o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

Logo, é possível verificar que é um dispositivo muito importante relativo às nulidades de cláusulas contratuais nas relações de consumo. Nele, permite-se uma análise do contrato no caso concreto, da lealdade e transparência, das legítimas expectativas do consumidor, do equi-líbrio econômico, da configuração da lesão, dentre outros.

Trata-se, pois, “da cláusula de abertura do sistema de reconhecimento das cláusulas abusivas no CDC, a partir da qual se dá o desenvolvimento jurisprudencial em relação à viola-

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ção dos deveres decorrentes dos princípios da boa-fé, do equilíbrio ou da equidade”, segundo Miragem (2008, p. 224-225).

Nesse ponto, as funções da boa-fé objetiva (critério hermenêutico, criação de deveres anexos e limitação do exercício de direitos) têm enorme importância e devem ser trazidas a exame para verificar a nulidade, ou não, de cláusulas contratuais (BENJAMIN, 2011).

Ademais, em decorrência do princípio do equilíbrio econômico do contrato, veda-se cláusula que imponha desvantagem exagerada ao consumidor, buscando a justiça contratual e vedando abuso na fixação das obrigações do contratante.

Desse modo, observa-se que tal dispositivo depende de esforço hermenêutico para um devido cumprimento no caso concreto, cabendo ao magistrado a análise de eventual nulidade de cláusula contratual fundada no artigo 51, IV. A responsabilidade do Judiciário é, portanto, mais intensa, de modo a afastar as críticas de subjetivismo e arbitrariedade na análise de abusividade das cláusulas contratuais (BENJAMIN, 2011).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resolução de problemas da vida cotidiana influenciou diretamente o direito no sentido de fornecer o embasamento necessário para que este dê uma resposta positiva para a tal demanda.

Nesse sentido, é possível identificar uma série de princípios gerais que hoje nos dão fun-damentos e nos conduzem nas mais diversas demandas do homem, desde sua formação moral até mesmo a produção de orientações jurídicas, como é o caso da boa-fé que influencia hodiernamen-te uma série de relações no campo jurídico.

No curso do presente trabalho, focou-se na relação de consumo e na importância da boa-fé. Percebeu-se que a boa-fé concebe os ideais de lealdade e cooperação entre as partes, e que esta se divide em subjetiva e objetiva.

A boa-fé subjetiva trata da consciência, ou não, de um fato pela pessoa ao agir em con-formidade com o direito, enquanto que a boa-fé objetiva funciona como um standard, um dever de ambas as partes agirem com lealdade, honestidade, cooperando entre si para que a obrigação contratada seja cumprida da melhor maneira possível. Esta é a que influencia diretamente as rela-ções de consumo, de modo a equilibrar a própria relação.

Nesse sentido, pode-se identificar que a boa-fé objetiva apresenta algumas funções; são elas: a diretriz hermenêutica, a criação de deveres anexos e a limitação de direitos subjetivos – todas para proporcionar um equilíbrio nas relações de consumo sempre pautado na honestidade e lealdade entre as partes.

Embora o Código de Defesa do Consumidor traga explicitamente a boa-fé nos artigos 4º, inciso III, e 51, inciso IV, que modificaram as relações de consumo mais precisamente no que tange à harmonização dos interesses econômicos e à proteção contratual, diz-se que esta está pre-sente em todo o Código, uma vez que os consumidores não podem se valer das regras do Código de maneira dissoluta.

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Assim sendo, não restam dúvidas acerca da dimensão que alcança o aspecto da boa-fé, nomeadamente nas relações de consumo.

REFERÊNCIAS

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BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.

CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

GOMIDE, Alexandre Junqueira. Direito de arrependimento nos contratos. 2009. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3563/1/ulfd112529_tese.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. v.1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos; MIRAGEM, Bruno. Contratos no código de defesa do consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; MATOS, Yolanda Alves Pinto Serrano de. Código de defesa do consumidor interpretado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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THE IMPORTANCE OF THE GOOD FAITH IN THE RELATIONS OF CONSUMP-TION

ABSTRACT: This paper presents considerations about the good faith and its importance in the relations of consumption. Since the historical aspects to the analyses of Brazilian’s law in the Consumers’ Bill of Rights, reiterat-ing the ideals of honesty and loyalty between the parts and reaffirming the importance of the good faith in the relations of consumption. Also, it treats about the difference between the subjective good faith and the objective good faith, showing which one of them is used in the relations of consumption. The methodological procedure used was the bibliographic research in printed and electronic media, specially the consumers’ law literature, giving base to this entire paper.Keywords: Good faith. Brazilian consumers’ bill of rights. Relation of con-sumption.

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Enviado em 15 fev. 2015 Aceito em 30 abr. 2015

A RELATIVIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE NOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO: A IMPRESCINDIBILIDADE DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NA ANÁLISE DO CASO CONCRETO

Lucely Ginani Bordon*

Rafael Bruno do Carmo Dias**

RESUMO: Este artigo tem como escopo elucidar a problemática acerca do instituto da impenhorabilidade no que tange sua aplicação nos casos concretos e a necessidade de aplicá-la aos moldes da estrutura normati-va Constitucional, tendo como parâmetro a inafastável necessidade de ver tal situação na forma de uma contraposição de direitos fundamen-tais de ambas as partes no processo de execução; sendo estes a proteção da dignidade do executado e a tutela jurisdicional executiva do credor. Utiliza-se, para tanto, de conceitos encontrados na doutrina brasileira, além da clássica alemã, como identificadores da forma de vetor dos di-reitos fundamentais no instituto da impenhorabilidade.Palavras-chave: Impenhorabilidade. Tutela jurisdicional executiva. Colisão de princípios de Direito Fundamental. Mínimo existencial. Isonomia.

1 INTRODUÇÃO

O Estado Constitucional de Direito que vigora na atualidade foi consequência, dentre outras causas, do pós-positivismo e caracteriza-se, primordialmente, pela força normativa dada a Constituição. Nesse contexto, a Constituição tornou-se fonte nuclear do ordenamento jurídico, sendo dotada de eficácia imediata, de tal forma a exigir do juiz uma posição mais ativa, garan-

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiária no Ministério Público do Trabalho.** Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário no Ministérios Público Estadual.

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tindo-lhe certa discricionariedade na interpretação e aplicação das normas.A hermenêutica constitucional é, portanto, técnica indispensável para que o juiz com-

preenda as particularidades do caso concreto de modo que a interpretação e aplicação das nor-mas se coadunem com a Constituição e deem maior efetividade aos direitos fundamentais.

Nesse contexto neoconstitucional que dotou de força normativa a Constituição, os princípios nela estabelecidos consagraram-se como normas jurídicas. Em decorrência disso, surge o neoprocessualismo, corrente na qual o juiz passa a aplicar os princípios norteadores da Constituição ao processo de forma imediata.

Sendo assim, é preponderante o papel do magistrado na reconstrução do processo civil à luz da Constituição. Sua função é zelar pela efetividade da tutela do direito material de acordo com as normas constitucionais e pela proteção dos direitos fundamentais, garantindo, inclusive, um ideal sopesamento desses direitos no caso de conflito entre eles.

Dito isto, o direito a uma tutela jurisdicional não está relacionado, exclusivamente, ao direito de ter sua petição lida e apreciada pelo Poder Judiciário. O artigo 5º, inciso XXXV da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, deve ser entendido de forma ampla, como um direito, a todos conferido, de não somente ter acesso à justiça, mas da garantia de uma tutela adequada, efetiva e tempestiva, pautada no direito ao devido processo legal e, como dito supra, nos ditames constitucionais pertinentes. É por esta razão que a tutela do direito não deve se restringir ao seu aspecto formal, mas à sua realização material quando necessária. Destarte, o direito à execução é corolário ao direito de acesso à justiça, estando umbilicalmente interligados.

Nesse sentido, vislumbra-se a necessidade de relativização da impenhorabilidade, de modo a garantir a efetividade do processo executivo e consequentemente do direito de acesso à justiça do credor, embora se busque não interferir no mínimo existencial protegido pelas regras do instituto da impenhorabilidade.

Trata-se de uma ponderação dos interesses em análise, não menosprezando a proteção à dignidade da pessoa humana tutelada pelas regras de impenhorabilidade, mas garantindo o di-reito do credor no processo executivo de ver seus direitos de propriedade, de crédito e de acesso à justiça atendidos quando inescrupulosamente o devedor se utiliza da má interpretação norma-tiva para não cumprir com suas obrigações. As circunstâncias do caso concreto, para tanto, são imprescindíveis para aferir a necessidade de relativização da garantia da impenhorabilidade.

2 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL: OS LIMITES DA EXECUÇÃO

O processo de execução é meio de concretização do direito a uma prestação. O devedor pode cumprir voluntariamente a prestação – execução espontânea – ou o cumprimento pode se dar através de atos executivos estatais – execução forçada. Nesse sentido, no caso de inadim-plemento da obrigação, o Estado sub-roga-se nos direitos do credor para satisfazer o seu crédito por meios legais.

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A obrigação, quando não adimplida, gera a responsabilidade do devedor. Sendo assim, a responsabilidade só surge diante do não cumprimento voluntário da obrigação, sujeitando o patrimônio do devedor/terceiro, ou, em casos excepcionais, sua vontade/liberdade, ao cumpri-mento da prestação em legítima execução forçada (DIDIER JÚNIOR e outros, 2013).

O artigo 591 do CPC/73, agora na novel forma do artigo 789, do CPC/15 (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), contempla norma básica da responsabilidade executiva preceituando que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Destarte, o patrimônio do devedor é a garantia comum de seus credores. Para complementar essa regra fundamental, é necessária uma interpretação em conjunto com o artigo 790, inciso III do CPC/151 para se entender que os bens do devedor, ainda que estejam em poder de terceiros, respondem à execução.

Quanto à alteração textual e material contido no CPC/15 em face do CPC/73, no que tange a penetração no patrimônio atingido pela responsabilidade do devedor, observa-se que o legislador ampliou a proteção ao direito do credor, trazendo à baila mais coberturas legais contra tipos comuns de fraudes através de cláusulas de inalienabilidade, aquelas dispostas no artigo 790, inciso VI, e de responsabilidade da pessoa jurídica, inciso VII do mais atual CPC.

A responsabilidade do devedor é primária, posto que, como obrigado e responsável, o seu patrimônio é o primeiro a ser executado. Há situações, entretanto, que a responsabilidade da obrigação pode recair sobre bens de terceiro (responsabilidade secundária). Nesses casos o terceiro responde pela dívida, apesar de não a dever.

Chama-se atenção também ao fato dos bens do devedor tanto presentes como futuros responderem pela execução. Dessa forma, os bens integrantes do patrimônio do executado res-pondem pela execução ainda que eles não existam no momento da constituição da obrigação, sendo incorporados posteriormente. Mesmo que não haja na esfera patrimonial disponível do devedor nenhum bem que possa ser executado na fase de execução, o processo será suspenso2 e retomado se, dentro do prazo prescricional, surgir bens disponíveis à satisfação do crédito.

Assim, a execução é, em regra, real, pois recai sobre o patrimônio do devedor. A exceção a esse princípio é a prisão civil como coerção pessoal para a execução da prestação pecuniária de alimentos.

A penhora é o ato pelo qual se dá a satisfação direta ou indireta da pretensão do exe-quente. O crédito executado é satisfeito diretamente através da adjudicação de um bem como pagamento de dívida, ou indiretamente quando a satisfação se dá através da alienação do bem penhorado, convertido em dinheiro, e entregue ao exequente. A penhora é, portanto, a designa-ção de bens do patrimônio do devedor para garantir a satisfação do credor. A responsabilidade patrimonial que recai sobre esses bens irá afetar os atos de disposição do proprietário sobre eles, que se tornarão ineficazes para o processo executivo.

1 Art. 790. São sujeitos à execução os bens: III - do devedor, ainda que em poder de terceiros.2 À luz do disposto no art. 791, III, do antigo CPC/73, agora na redação ampliativa do artigo 921, inciso III do CPC/15 e art. 40 da Lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal).

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Entretanto, a submissão do patrimônio do devedor não é absoluta, uma vez que há os casos de impenhorabilidade definidos por expressa determinação legal que excluem certos bens da responsabilidade patrimonial. A impenhorabilidade de certos bens é uma restrição à tutela executiva, justificada pela proteção que se deve ter com alguns bens jurídicos relevantes, como a dignidade do executado e o direito ao patrimônio mínimo.

Tal instituto protetivo contido no artigo 649 do CPC/73 contempla, de acordo com Araken de Assis (2010), o benefício de competência, decorrente da proteção à dignidade da pessoa humana. Este entendimento merece respaldo na atualização feita na forma do artigo 833 do CPC/15, que obedece aos mesmos ditames constitucionais, mesmo com a ampliação do rol, redução dos valores impenhoráveis em poupança e expansão da penhorabilidade de vencimen-tos e congêneres que ultrapassem a soma de cinquenta salários mínimos.

A impenhorabilidade só poderá existir através das “restrições estabelecidas em lei”, conforme a parte final do artigo 591 do CPC/73, sendo este o princípio da tipicidade da impe-nhorabilidade (ASSIS, 2010). Tal dispositivo, com nova redação no art. 789 do CPC/15, mante-ve-se materialmente igual. Desta forma, o CPC/15 e a Lei 8.009/90, por exemplo, prescrevem um rol de bens que são considerados absoluta ou relativamente impenhoráveis, coadunando com a tipicidade apontada pelo ilustre doutrinador mencionado. Apesar de formal e material-mente possível, não se mostra viável a ampliação das regras de impenhorabilidade, de forma a tornar o que seria exceção em regra. Porquanto, a regra é a penhorabilidade de todos os bens do devedor, sem que haja discriminação entre eles, desde que haja valor econômico.

Neste ínterim, a proteção ao devedor conferida pelas regras de impenhorabilidade é, contudo, limitativa da satisfação do crédito pelo credor, que se vê cada vez mais em dificuldade para conseguir executar o devedor. Em decorrência disso, uma liberalização exagerada miti-garia o direito à tutela jurisdicional do credor que busca a satisfação do seu crédito e só pode contar com o patrimônio daquele que lhe deve (DINAMARCO, 2009).

A impenhorabilidade é um direito subjetivo do executado que pode ser renunciada se o bem impenhorável for disponível. Afinal, sendo o bem alienável extrajudicialmente, não haveria por que não sê-lo judicialmente, mesmo nos casos de benefício de competência (DIDIER JÚ-NIOR e outros, 2013). Nesse caso, o executado poderá abdicar do privilégio e nomear tais bens à penhora ou deixar de alegar a impenhorabilidade na primeira oportunidade que lhe couber falar nos autos ou nos embargos à execução (ASSIS, 2010).

Não obstante a redação do caput do artigo 833 do CPC/15 acerca da impenhorabilida-de dos bens arrolados, o próprio §1º admite a penhora de bens na execução de crédito concedido para sua aquisição, pois não poderia o devedor adquirir um bem com crédito concedido pelo credor e não ter como haver o preço do mesmo. Convém apontar que no CPC/73 o artigo 649 utilizava a terminologia “absolutamente impenhoráveis” no seu caput, apesar de seus parágra-fos já tratarem de exceções a esse caráter absoluto.

Aliás, as regras de impenhorabilidade acabam por abrir espaço para fraudes, onde os devedores utilizam o benefício da impenhorabilidade como instrumento para frustrar a execu-

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ção, conforme será mais bem ilustrado adiante.

3 DIREITOS FUNDAMENTAIS: A IRRADIAÇÃO DE SEUS EFEITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO E A POSSIBILIDADE DE COLISÃO DE NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

No contexto de predominância da normativa constitucional, com fins de aprimora-mento de sua força vinculante, há der ser esclarecido como esta normatividade se irradia nos demais frontes do corrente ordenamento, quais seus vetores de propagação e como estas forças indutivas interagem entre si diante da problemática ora analisada.

Para tal, é fundamental elucidar de que forma a norma constitucional se expressa, no caso, na relação de intersubjetividade de direitos, isto é, como a norma constitucional se insere no conflito indivíduo vs. indivíduo, cercando o debate à esfera do processo de execução.

Dessa forma, torna-se plausível incitar o questionamento se, realmente, em um Estado Democrático de Direito, existe resolução do conflito sem ser exigido do Poder Estatal prestação na dimensão positiva, na sua função de garantidor de direitos.

Faz-se indispensável compreender, como primeiro passo, que o estado constituciona-lizado possui em sua Constituição a materialização de seu posicionamento político-ideológi-co, usando-se desta positivação para tutelar aquilo que considera imprescindível a sua própria existência, não sendo logicamente admissível seu descumprimento, sob pena de instabilidade dos mais centrais pilares de sua construção. A essa proteção é denominado o termo de Direitos Fundamentais (MARTINS; DIMOULIS, 2012).

Peculiarmente, na contramão da história constitucional, nossa Constituição padece demasiadamente de densidade normativa quanto a este ponto, nos levando às benesses e male-fícios da abstração e generalidade na definição do que compreender-se-ia como Direitos Funda-mentais. Assim, a “vontade” Constitucional se expressa por todo o ordenamento jurídico pela ação das normas de Direito Fundamental (teoria normativo-material), sejam em sua natureza de regra ou princípio, devendo ser resguardadas em todos os âmbitos jurídicos, e a todo custo, tendo por penalidade a perda de validade de todo e qualquer procedimento.

Não obstante à unidade da normativa constitucional, percebe-se nas normas de Direito Fundamental a possibilidade de estarem, no caso concreto, em conflito ou colisão, sendo dispo-nibilizadas ao intérprete ferramentas para a solução do aparente embate. Tal necessidade surge na satisfação de diversos princípios intrínsecos à Constituição, ligados à não contradição e aos princípios da unidade e da máxima efetividade das normas Constitucionais, não devendo restar silente a jurisdição à luz da Constituição (DWORKIN, 2005).

Portanto, admitindo-se que a solução de conflito de regras se dá, primordialmente, pela preponderância de uma regra em detrimento da outra, em qualquer nível de controle de constitucionalidade, resta elucidar como se dá a colisão de princípios de direito fundamental.

Os princípios de Direito Fundamental nos remetem, de acordo com o gênero “princí-

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Imprescindível sedimentar que estabelecer a razão da norma a ser considerada no caso concreto é resultado de uma ponderação que tem como córtex a razoabilidade e a proporcionali-dade dos direitos em jogo. Imerge-se, desta forma, na teoria dos princípios e na máxima da pro-porcionalidade que, reciprocamente, tornam-se condições existenciais uma da outra (ALEXY, 2011). Convém destacar que a distinção nos institutos da razoabilidade e da proporcionalidade é tema que admite controvérsia, tendo na escola alemã e americana diversos contrapontos na definição e aprofundamento do assunto, principalmente no que se refere à proporcionalidade em sentido estrito e amplo. Trata-se de celeuma terminológica que não afeta diretamente a ponderação em si, apesar de dever ser encarada cientificamente com escopo de esclarecer suas singularidades no sistema hermenêutico, segundo Sarlet (2012).

Como conclusão, no caso concreto de colisão de princípios de Direito Fundamental, a princípio, será determinada a razão da norma através da ponderação dos princípios envolvidos, conformando-se a proporcionalidade nas suas vertentes de adequação, da necessidade e da pro-porcionalidade em sentido estrito. Contudo, ressalva-se o apontado por Bonavides (2011) quanto à prejudicialidade que os excessos dessa interpretação constitucional conferem à hermenêutica do juiz, tendo como consequência de um desprendimento da razoabilidade ou exagero político o enfraquecimento ou até mesmo a desintegração da Constituição.

4 O INSTITUTO DA IMPENHORABILIDADE: UMA GARANTIA FUNDAMENTAL DO DEVEDOR

As relações intersubjetivas dentro do Estado democrático de Direito, geram, ainda, por influência principal e manifesta do conceito de pacta sunt servanda, obrigações entre os indiví-duos das mais diversas naturezas, amparadas e reguladas na esfera cível do nosso ordenamento. Ocorre que, na realidade concreta, tais obrigações, incontáveis vezes, não são devidamente cumpridas – abstém-se aqui da discussão dos motivos do devedor –, ficando o credor sem a sua justa prestação em face da negativa de cumprimento por parte do devedor. Cabe, assim, ao detentor deste direito de receber, recorrer ao sistema judiciário, para que, restando comprovado seu crédito e a não quitação, possa existir a incidência do braço forte do Estado sobre o indiví-duo na forma do processo de execução.

Temos assim o contexto ao qual está intimamente ligado o instituto aqui em tela, qual seja, a impenhorabilidade. Tal instituto pode ser entendido como a previsão correta do legisla-dor de determinar no código de processo civil situações onde o braço do Estado, movido pela

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jurisdição provocada pelo credor, esbarrará em limitação posta por si mesmo. Isto é, o próprio ordenamento determina uma espécie de reserva a suas próprias ações, resguardando o mínimo de um rol de direitos amparados na Constituição.

Assim, expressam-se não só a proteção ao corolário máximo de nossa Constituição, qual seja, a dignidade da pessoa humana, como também diversos outros direitos fundamentais à liberdade dos indivíduos e a não intervenção do Estado, que garantem a manutenção do prin-cípio da igualdade. Não suficiente, contribui na tutela de outros direitos fundamentais sociais, estando todo este bloco protegido em função de se preservar o mínimo existencial para uma vida digna, reflexo de um Estado igualitário.

Em suma, o mínimo existencial se constitui como a presença sem a qual, à luz dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana está comprometida de tal forma que não se pode considerar as condições de vida do indivíduo como dignas, restando como afronta aos objetivos da Constituição e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito.

Percebe-se então que o mínimo existencial decorrente da impenhorabilidade, na ver-tente que convir ao caso concreto, reflete a tutela de um bloco de direitos fundamentais que, em nosso ordenamento, restam imprescindíveis. Em hipótese, caso reste frustrada a execução de um determinado bem, por razão de ser considerado, à luz do código já supracitado, impenhorá-vel, teríamos de fato a proteção do direito fundamental ao qual o referido bem está condiciona-do, de tal forma, o que resta protegido é a finalidade do bem em função da garantia mínima da norma de direito fundamental. Destarte, a não ação do poder Estatal reforça e resguarda, como estado de liberdade, outra vertente das normas fundamentais, as de status positivo.

Assim, resguardar o mínimo existencial é medida que promove maior efetividade a toda normatividade de direitos fundamentais, dos mais diversos gêneros. De tal modo, resta a impenhorabilidade como tutela de direitos fundamentais, seja na garantia mínima de manifes-tação da vontade das partes (artigo 833, inciso I do CPC/15), ou no resguardo de bens que estão vinculados a direitos fundamentais de outros sujeitos da esfera familiar do proprietário (artigo 1º da Lei nº 8.009/90), ou mesmo na proteção dos meios de desenvolvimento social, intelectual ou profissional do que está sofrendo os efeitos da execução (artigo 833, inciso V do CPC/15).

Deve-se pontuar, entretanto, uma distinção entre o mínimo existencial e o mínimo vital, uma vez que este é a composição de direitos mínimos que garantem tão somente a susten-tação do ser como unidade biológica de vida, sendo parte imprescindível na concessão de um mínimo existencial. Este último teria a concepção do indivíduo como ser social, que não pode ter uma vida digna somente com acesso àquilo que se mostra biologicamente indispensável, sendo necessários outros direitos, tais como educação, desenvolvimento cultural e social, direi-to à jurisdição, direito ao trabalho, dentre outros direitos que podem ser compreendidos neste rol de mínimas condições para o indivíduo existir e coexistir com dignidade.

Sedimenta-se assim, que o bem a ser protegido pela impenhorabilidade não representa em si só o objetivo deste instituto. Todavia, o que parece mais lógico e sensato é analisar-se a finalidade do bem como materialização de um direito fundamental, e este sim seria o objeto de

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proteção pelo instituto da impenhorabilidade.

5 A TUTELA JURISDICIONAL EXECUTIVA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO CREDOR

O direito fundamental à tutela executiva é garantido na execução por meio do princípio da efetividade inerente a este procedimento, no qual os direitos além de reconhecidos devem ser efetivados (DIDIER JÚNIOR e outros, 2013). Sendo assim, é necessário que existam meios executivos capazes de satisfazer o direito material do credor, proporcionando ampla e integral-mente a tutela executiva.

No entanto, é preciso ressalvar que a efetividade da execução não significa a satisfação do credor, mas presume-se para efeito desta análise a regularidade formal e material dos títulos executivos já admitidos na fase de conhecimento do processo.

A tutela jurisdicional executiva decorre do princípio da inafastabilidade, lastreada no já referido artigo 5º, inciso XXXV da Constituição, e trata-se de uma garantia material, não se subsumindo tão somente ao ajuizamento de um processo perante o Judiciário, mas da obtenção de uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz.

Nesse diapasão, o artigo 797 do CPC/153 garante o princípio do melhor interesse do credor, consubstanciado na ideia de que o credor espera ter sua pretensão atendida, já que a finalidade do processo de execução é exatamente concretizar as expectativas do credor de ter a tutela material do seu direito. Sendo assim, o processo deverá culminar na concretização da norma jurídica, resultando no pleno gozo do direito a que faz jus o credor.

Seguindo esse pensamento, a execução também deve ser específica, na medida em que irá propiciar ao credor a satisfação da obrigação da maneira mais próxima ao cumprimento es-pontâneo pelo devedor (DIDIER JÚNIOR e outros, 2013). Desta forma, o direito fundamental à tutela executiva deve basear-se no postulado da máxima coincidência possível, que consiste na maior proteção ao direito subjetivo tutelado, ou seja, a busca de um resultado concreto o mais coincidente possível com o cumprimento espontâneo das normas de direito material.

Nesse contexto, vale salientar que a reforma do processo de execução em 2006, bus-cou garantir o direito fundamental de ação, e por consequência, o direito fundamental à tutela executiva a partir de alterações que buscaram materializar a celeridade processual prevista na Constituição, artigo 5º, inciso LXXVIII4. Para tanto, o processo tornou-se único, sincrético, cabendo apenas falar em fases de conhecimento e fase de execução, de forma que a tutela juris-dicional seja obtida no bojo de um único processo. Assim, o processo de execução contempla o direito de ação que deve não só declarar o direito, como selecionar meios para que este seja

3 Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.4 Artigo 5º, inciso LXXVIII - A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

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efetivamente satisfeito.Portanto, o direito fundamental à tutela executiva decorre da garantia do devido pro-

cesso legal e dos princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e da razoável du-ração do processo, com o fim último de conceder efetividade à execução civil e consagrar o direito de ação a partir da garantia do procedimento, da espécie de cognição, da natureza do provimento e dos meios executórios adequados.

6 O CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA TUTELA DE BENS IMPENHORÁVEIS

Diante do tema ora estudado, é nítida a caracterização da impenhorabilidade como uma exceção que, ao garantir o direito fundamental ao mínimo existencial para o devedor, atinge o direito fundamental do credor à tutela executiva. Surge assim a necessidade de serem determinados critérios para a solução dessa colisão de direitos, onde há irrefutável interesse do Estado em garantir a maior efetividade das normas constitucionais, tanto para o devedor quanto para o credor.

À primeira vista pode-se parecer que a dignidade da pessoa humana, manifestada pelo princípio do mínimo existencial, prevalece sobre todos os demais princípios constitucionais por ser ela fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III, da Constituição5). Contudo, permite-se que na colisão desses direitos fundamentais seja analisado o caso concreto para que não haja um excesso de proteção no direito do executado, prejudicando desnecessaria-mente o direito do exequente (MAIDAME, 2007).

Outrossim, há que se fundamentar essa questão também no princípio da igualdade substancial garantido pela Constituição através de sua interpretação teleológica (MAIDAME, 2007). Isso porque o ordenamento jurídico deve estar voltado para tratar diferentemente os desiguais na medida de suas desigualdades, ou seja, a igualdade deve se dar perante os bens da vida e não somente dos direitos e deveres, isto é, prevalecer a igualdade material em detrimento da formal nos casos que couber.

Por isso, as regras de impenhorabilidade demandam uma análise mais aprofundada do caso concreto e de uma posição ativa do aplicador do Direito, na medida em que tais regras não podem ofender o direito de igualdade, beneficiando uma das partes de forma excessiva.

Nessa colisão de direitos fundamentais, resultante da aplicação das normas de impe-nhorabilidade, caberá o controle de constitucionalidade em concreto pelo juiz a fim de afastar a incidência dessas normas quando elas se mostrarem desarrazoadas e/ou desproporcionais na situação em análise.

Nesses casos, a norma torna-se materialmente inconstitucional, apesar da sua consti-

5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.

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tucionalidade em tese. É esse o entendimento esposado por Didier Júnior (2013) que acrescenta ainda a dimensão objetiva dos direitos fundamentais como justificadora da necessidade pelo magistrado do controle de constitucionalidade em concreto.

Destarte, manifesta-se a dimensão objetiva dos direitos fundamentais na sua segunda vertente que é a necessidade de irradiação de seus efeitos por todo o ordenamento (DIMOULIS; MARTINS, 2012). Vincula-se, dessa forma, a decisão do juízo a uma análise constitucional do caso concreto, não sendo coerente, à luz da própria constituição, afastar da resolução da lide todo o bloco de constitucionalidade que ampare os direitos fundamentais em tela.

Nesse mesmo sentido, Marcelo Lima Guerra afirma:

O primeiro dado que se impõe ao intérprete é que a impenhorabilidade de bens do devedor imposta pela lei consiste em uma restrição ao direito fundamental do credor aos meios executivos. (...) as restrições aos direitos fundamentais não são, em princípio, ilegítimas. Devem, no entanto, estar voltadas à realização de outros direitos fundamentais e podem, por isso mesmo, estar sujeitas a uma revisão judicial que verifique, no caso concreto, se a limitação, ainda que inspirada em outro direito fundamental, traz uma excessiva compreensão ao direito fundamental restringido.

(citado por DIDIER JÚNIOR e outros, 2013, p. 562).

Deste modo, entende-se que o problema não está na restrição legal do direito do credor, mas sim na utilização de uma regra abstrata e absoluta em um inquestionável conflito de direi-tos fundamentais. Isso porque haveria uma clara afronta aos preceitos constitucionais, negan-do-se a supremacia da Constituição e sua força normativa, ao solucionar um conflito de direitos fundamentais sem extrair de algum deles certo grau de efetividade, anulando-o por completo em decorrência do outro. Conforme já exposto, os princípios são mandamentos de otimização e devem ser cumpridos na maior medida possível de acordo com as condições do caso concreto, permitindo-se, assim, seu cumprimento em diferentes graus.

Nesse sentido, não se faz razoável a aplicação de forma absoluta das regras de impe-nhorabilidade contidas na Lei nº 8.009/90 que em seu artigo 1º giza que:

O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus

proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Dessa maneira, verifica-se que não há no dispositivo, nem ao menos na Lei, nenhuma restrição quanto aos imóveis de elevado valor, porém não seria concebível que o acesso à Justiça fosse obstado por um devedor que viva em uma mansão luxuosa e se esconde por trás de uma proteção ao bem imóvel de família. Nesse caso, o devedor estaria muito além do que se justifi-caria proteger, resultando em um privilégio inconstitucional para ele.

Da mesma forma, em outro exemplo está também a situação da impenhorabilidade dos

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salários disposta no CPC/15 em seu artigo 833, inciso IV que apregoa a impenhorabilidade dos vencimentos, subsídios, salários, remunerações, soldos, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios assim como quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas a prover o devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profis-sional liberal. Não se podia aceitar tamanho absurdo de se reconhecer a impenhorabilidade de salários de valores elevados em detrimento do direito do credor de receber o que lhe é devido. Dessa forma, estaria se permitindo o enriquecimento ilícito do devedor, o que foi combatido com considerável precisão por parte do legislador do CPC/15, na ampliação das exceções a essa modalidade de impenhorabilidade, prevendo a disponibilidade desses valores quando ultra-passem a quantia de cinquenta salários mínimos. Tal medida ajuda a promoção do direito do credor, mas não soluciona toda a problemática acerca deste tema.

Por outro lado, como destaca Didier Júnior (2013), as regras de impenhorabilidade contidas no CPC/73 estão repletas de conceitos jurídicos em branco como “médio padrão de vida” e “elevado valor”, que na confecção do CPC/15 foram mantidas praticamente na íntegra com a redação do art. 833, inciso II6. Correta a posição do legislador em manter a restrição des-sas regras sem precisar valores, cabendo ao magistrado, no caso em concreto, aferir quanto aos princípios em conflito qual se sobreporá.

O que se defende é o uso da técnica da ponderação na aplicação da regra da não exe-cução do bem em tese impenhorável (como por exemplo, o bem imóvel de família), quando este possuir um valor econômico que extrapole o limite do razoável, a fim de não se constituir um privilégio do devedor em detrimento do direito do credor. Isso porque afetaria sobremaneira os princípios éticos, morais e jurídicos a não efetivação do processo de execução quando se sabe que o credor tem reservas financeiras, mas não paga o credor por estar acobertado pelas regras de impenhorabilidade absoluta.

Nesses casos, entende-se que não estaria havendo a aplicação correta do princípio do mínimo existencial, na medida em que não existe, em concreto, razão ensejadora para utiliza-ção em absoluto da proteção abarcada pelas regras de impenhorabilidade. Deve haver nessa situação a aplicação do princípio da adequação, em que os direitos fundamentais para serem protegidos devem ser alcançados por meios aptos e necessários.

O valor do bem pode, no caso concreto, estar deveras desvencilhado de seu cunho finalístico, conferindo ao instituto da impenhorabilidade aspecto inconstitucional, por ferir de morte o princípio da igualdade, concedendo uma vantagem desmerecida a uma das partes. Esclarece-se através do seguinte exemplo: O executado “B” possui casa de luxo em valor exa-cerbado, que supre demasiadamente o seu direito e de seus familiares à moradia e à vida digna. Não seria uma casa com valor reduzido, obedecida as proporcionalidades e o juízo razoável, suficiente para a mesma finalidade? De forma tal a promover, pela diferença patrimonial dos

6 Art. 833. São impenhoráveis: II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.

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bens, a justa execução pretendida pelo exequente “A”?Não é despiciendo destacar que a dignidade da pessoa humana deve ser vista no caso

concreto de forma dúplice, ou seja, tanto para o devedor como também para o credor. A partir desse pressuposto, pode-se entender o direito a uma tutela jurisdicional efetiva como decorrente da dignidade da pessoa humana.

Diante disso, o artigo 805 do CPC/15 ao garantir que “Quando por vários meios o exe-quente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”, não se está obrigando que a penhora seja feita ao bem de valor menor para garantir a dignidade do devedor, mas sim que seja realizada, dentre todos os meios efetivos à satisfação integral do direito do credor, a que melhor proteja o direito do devedor ao mínimo existencial.

Sendo assim, primeiramente busca-se a penhora do bem que satisfaça à tutela executi-va e depois se escolhe, dentre estes, o de menor onerosidade à dignidade do executado, garan-tindo-se, portanto, a proteção da dignidade do executado, e não do seu patrimônio.

Ademais, a dignidade da pessoa humana do credor, assim como seu direito ao mínimo existencial, também serão atingidos quando se observar no caso concreto um prejuízo significa-tivo, material e/ou moral, causado pelo inadimplemento do devedor. Desse modo, haverá que se discutir o direito da dignidade da pessoa do credor, não podendo o mínimo existencial ser visto apenas pelo lado da parte devedora.

Portanto, o credor que não recebe o valor do seu título executivo e que ora pleiteia judicialmente o seu restabelecimento pela tutela executiva, também pode estar em situação que precise ter seu mínimo existencial garantido, devendo lhe ser assegurado a garantia de receber o que lhe é devido para, consequentemente, garantir a dignidade da sua pessoa humana.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a fundamentação supra, resta sedimentar que toda discussão de aplicação do instituto da impenhorabilidade remete, inexoravelmente, à discussão como um caso de colisão de normas de direitos fundamentais, tendo como centro a preservação da dignidade da pessoa humana e a maior efetividade possível de todo o bloco constitucional, tanto para resguardo do devedor, como também para a defesa do credor.

Destarte, desarrazoado estabelecer qualquer juízo absoluto sobre qual bem está total-mente protegido dos efeitos da execução, uma vez que a finalidade a qual este se vincula é o que nos remete ao direito fundamental arguido na colisão, isto é, não há de se conceber bem absolutamente não penhorável sem estabelecermos o seu valor diante de sua finalidade.

Portanto, tal temática extrapola o universo teórico, fincando-se no campo dos casos concretos, visto que a finalidade do bem em análise está, obrigatoriamente, atrelada à realidade da vida do executado, de como suas garantias fundamentais estão relacionadas aos fins do bem em tela, suas influências, e em suma, sobre o quão imprescindível é tal item na manutenção de sua vida digna.

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Ademais, prevê-se que a discricionariedade concedida ao julgador no comando legal já mencionado é, na sua real face, reforço da obrigação de aplicar-se a normatividade consti-tucional, sendo assim o magistrado age como vetor para se aferir a relação “valor do bem x finalidade de direito fundamental”, munido de sua subjetividade, mas guiado pelos preceitos constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade.

De tal forma, finda-se a presente abordagem reiterando a relatividade necessária na análise do instituto da impenhorabilidade, afastando toda e qualquer proteção desnecessária – aos critérios já mencionados – que, no que tange a relação processual e a relação extrajudicial, refletiria grave violação ao princípio da isonomia. Apontando-se que não foram suficientes os passos em direção ao maior equilíbrio dos direitos aqui em questão com a nova redação do CPC/15 quanto a esta temática, mas que muito do que se podia criticar no antigo código foi alterado.

Portanto, entender a impenhorabilidade como um instituto que protege toda a estrutura das relações dos indivíduos e, também, mecanismo de manutenção das obrigações estatais na concessão de direitos de status positivo e negativo é medida de maior equidade, sendo manifes-tação rica de princípios constitucionais, que permite o ordenamento incidir sobre os indivíduos, promovendo o que lhe é de mais fundamental e esperado: Justiça.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

ASSIS, Araken de. Manual da execução. 13. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2010.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

DIDIER JÚNIOR, Fredie e outros. Curso de direito processual civil. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2013. 5 v.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MAIDAME, Márcio Manoel. Impenhorabilidade e direitos do credor. Dissertação (Mestrado) - Fadisp, São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.fadisp.edu.br/download/Marcio_Manoel_Maidame.pdf>. Acesso em: 10 set. 2013.

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THE RELATIVIZATION OF UNSEIZABILITY ON THE PROCESSES OF EXECU-TION: THE CONSTITUTIONAL HERMENEUTICS INDISPENSABILITY IN THE-ANALYSIS OFTHE CONCRETE CASE

ABSTRACT: This article is scoped to elucidate the problem about the insti-tute of unseizability regarding its application in concrete cases and the need to have it as a reflection of the entire constitutional rules,taking as a parameter an unavoidable need to counteract the fundamental rights of both sidein the execution process: the protection of debtor’s dignity and the executive jurid-ical protection of the creditor.The article also uses concepts found in the bra-zilian doctrine and in the classic German doctrine, as identifiers of the form of fundamental rights in vector of unseizability Institute.Keywords: Unseizability. Judicial executive. Collision of Fundamental Right Principles. Existential minimum. Equality.

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Recebido em 13 fev. 2015Aceito em 30 abr. 2015

A RELEVÂNCIA DO PRÉVIO ESGOTAMENTO DAS INSTÂNCIAS DESPORTIVAS E AS SANÇÕES AO SEU DESCUMPRIMENTO

Nicholas Café de Melo Morais de Mendonça*

RESUMO: A Justiça Desportiva foi criada de forma apartada do Judici-ário para apreciar matérias jus-desportivas autonomamente. Nesse de-siderato, o constituinte assegurou a necessidade do prévio esgotamento das suas instâncias como condição imprescindível para a dedução em juízo comum de feitos atinentes à disciplina e à competição desportivas, mitigando até mesmo o princípio constitucional da inafastabilidade ju-risdicional. Destarte, o presente trabalho objetiva analisar a relevância dessa previsão constitucional, abordando os motivos que a ensejaram, bem como as sanções cominadas ao seu descumprimento. Por derradei-ro, ainda há a apresentação do debate sobre qual seria a última instância desportiva para o Direito pátrio. Palavras-chave: Justiça desportiva. Prévio esgotamento. Instâncias. Consti-tuinte. Motivos.

1 INTRODUÇÃO

O princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no art. 5º, XXXV da Cons-tituição Federal de 1988 é um dos direitos fundamentais mais valiosos aos seus titulares, visto que lhes assegura o tão proclamado acesso à Justiça. Em outras palavras, é mediante o seu exercício que o indivíduo pode instar o poder jurisdicional a tutelar direitos de caráter material que, porventura, tenham sido lesados ou estejam ameaçados.

* Graduando do curso de Direito, cursando o 5º período.

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Em regra, essa norma não comporta exceções - não se olvide como uma delas o modelo alternativo de resolução de controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis, introduzi-do no ordenamento brasileiro pela Lei nº 9.307/96, conhecida como Lei da Arbitragem-, e tem como destinatário não somente o legislador, mas todos, de modo geral, que não podem impedir ou dificultar sobremaneira o acesso ao Judiciário. Assim sendo, dessume-se desse princípio que o sistema constitucional brasileiro extirpou, por exemplo, a figura da jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, consagrada na EC nº 1/69 (art. 153, § 4º) que res-tringia o amplo acesso ao Poder Judiciário.

Com o advento da “cláusula de acesso à justiça”, não mais é possível se invocar a necessidade de prévio esgotamento das vias administrativas como obstáculo à provocação do Judiciário, conforme assentado pacificamente pela jurisprudência pátria. Em resumo, levar uma demanda à apreciação desse Poder para a obtenção de uma tutela preventiva ou repressiva se tornou tarefa menos complexa e burocrática na nova ordem constitucional vigente.

Entretanto, como típico no universo jurídico como um todo, esse direito individual de matiz constitucional, que inclusive ostenta a qualidade de cláusula pétrea, é mitigado por uma previsão também advinda do constituinte originário (não havendo, portanto, que se falar em inconstitucionalidade) constante do art. 217, §§ 1º e 2º, a qual se refere ao caso específico da Justiça Desportiva.

Vislumbra-se, assim, que o constituinte entendeu por bem resguardar a totalidade da atuação da Justiça Desportiva em detrimento do direito à provocação do Judiciário, o que pode ser justificado por uma série de motivos, os quais reivindicam uma análise mais pormenoriza-da das idiossincrasias dessa Justiça independente que rege as relações jurídicas existentes nas atividades do desporto.

2 O ESPECIAL CASO DA JUSTIÇA DESPORTIVA: PANORAMA HISTÓRICO

A temática da Justiça Desportiva é complexa e já desperta dificuldades aos seus estu-diosos, à primeira vista, no que se refere à sua própria conceituação. Nessa linha de intelecção, Pugliese e Gomes (2005, p.1) se esforçam em defini-la:

Não é tarefa fácil conceituar a Justiça Desportiva, principalmente por mesclar sua natureza e interesses públicos e privados e seu ônus notoriamente público. Mas, pode-se afirmar que a Justiça Desportiva é parte integrante da Justiça brasileira, constitucionalizada e insculpida com caráter administrativo, despida de personalidade jurídica, autônoma e independente das entidades de administração desportiva, competente para atuação anterior a eventual acesso ao Poder Judiciário, responsável por processar e julgar especificamente as questões de descumprimento de normas relativas à disciplina e às competições desportivas, cuja organização, funcionamento e atribuições estão definidos em códigos desportivos.

Trata-se, como se percebe, de uma definição extremamente densa e abrangente da

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Justiça Desportiva, com enfoque nas suas mais decantadas funções institucionais. Estas estão essencialmente conectadas ao interesse público ínsito ao desporto, enquanto direito constitucio-nal de cada indivíduo, muito embora seja ela absolutamente desvinculada do Estado.

A Justiça Desportiva foi criada, como já ressaltado, pela Constituição Federal de 1988, precisamente no art. 217, que reservou a sua disciplina orgânica e institucional à legisla-ção ordinária. Nesse sentido, observe-se sua redação:

Art. 217 É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:(...) § 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final

Desta feita, coube à Lei Federal nº 9.615/98- Lei Geral sobre Desportos (a famosa Lei Pelé) o estabelecimento de disposições sobre o funcionamento e a competência do “Poder Judi-ciário Desportivo”, o que foi realizado no capítulo VII do indigitado diploma.

A Lei Pelé reforçou a sua competência já atribuída pelo texto constitucional de apenas processar e julgar infrações disciplinares e às competições desportivas. Outrossim, descreveu as espécies de penas que podem ser aplicadas pelos órgãos componentes da Justiça Desportiva, enunciou vedações como a proibição de aplicação de penas aos menores de 14 anos, de que atle-tas não profissionais sejam condenados ao pagamento de penas pecuniárias, bem como definiu quais os órgãos judicantes desportivos e as respectivas formas de indicação e nomeação de seus membros, prazo máximo de seus mandatos e efeitos dos recursos, por exemplo.

De forma abreviada, a Justiça Desportiva pátria é composta por três órgãos, quais sejam: o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD- 3ª instância) que atua na jurisdição desportiva1 das entidades nacionais de cada desporto (a exemplo da Confederação Brasileira de Futebol) e detém competência recursal para os processos desportivos julgados pelos tribunais regionais ou estaduais; o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD- 2ª instância), o qual funciona junto às entidades regionais ou estaduais; e as Comissões Disciplinares (1ª instância) que exer-cem seus desígnios na jurisdição desportiva de entidades municipais e possuem a competência de julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva.2

Findas as considerações básicas sobre a organização e a função da Justiça Desportiva brasileira, percebe-se que o constituinte foi muito sagaz e arguto ao criar uma justiça absoluta-mente especializada, autônoma e independente, com competência exclusiva para conhecer das matérias afeitas à legislação esportiva.

1 Termo empregado para distinção em relação à jurisdição estatal comum exercida pelo Poder Judiciário2 O Código Brasileiro de Justiça Desportiva - CBJD, criado em 2003, é o diploma que define os processos desportivos (disciplinar ou especial), prazos, nulidades, provas, sessão de instrução e julgamento, recursos, medidas disciplinares, enfim, todo o procedimento a ser adotado por órgãos e membros da Justiça Desportiva.

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Mas, como se não bastasse isso, o constituinte foi além e dotou essa justiça pri-vada (de feição administrativa, ressalte-se) de uma garantia essencial que em muito facilitou sua atuação nas causas desportivas disciplinares e de competição: a necessidade do prévio esgota-mento das instâncias como condição sine qua non para provocação da Justiça Comum.

Conforme já abordado, essa prescrição constitucional entra aparentemente em des-compasso com a garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (art. 5, XXXV da CF), a qual tem como um de seus corolários lógicos a desnecessidade do exaurimento das vias ad-ministrativas, fenômeno, em regra, tido pacificamente como inútil pelos tribunais brasileiros.3

Todavia, a Justiça Desportiva não pode ser equiparada às vias administrativas ordi-nárias, porquanto sua especialização e exclusividade reivindicam um tratamento diferenciado. É dizer: a Justiça Desportiva goza da garantia do prévio exaurimento das suas instâncias por motivos próprios, inerentes à sua criação e funcionamento, os quais serão explicados indivi-dualmente nas epígrafes que seguem.

3 A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL

Um dos princípios norteadores da Justiça Desportiva é a celeridade dos julgamentos, visto que as causas relativas à disciplina e às competições esportivas devem ser julgadas antes do encerramento destas.

Sobre o assunto, bem pontua Schmitt (2004, p. 20):

[...] a celeridade se deve às peculiaridades e dinamismo do desporto, à medida que decisões tardias ou infrações não apreciadas em tempo acarretam prejuízos irreparáveis ao sistema desportivo e, particularmente, às competições em frontal desobediência ao ordenamento jurídico. Além disso, é preciso lembrar que o constituinte elegeu o prazo de sessenta dias para a solução definitiva do litígio desportivo.

Imagine-se o hipotético caso de um atleta que fosse denunciado por ofender o árbitro e os familiares deste em uma partida válida por campeonato nacional. Se o processo fosse dis-tribuído para a Justiça Comum a qualquer momento, isto é, independente do exaurimento das instâncias desportivas, e, dessa forma, fosse seguido todo um procedimento ordinário com pra-zo para contestação, produção de provas, audiência, fase de sentença e etapa recursal, ter-se-ia uma situação insustentável. Provavelmente a decisão judicial definitiva só seria proferida, para subsequente cumprimento, muito tempo após o término da competição, o que afastaria drasti-camente a efetividade da sanção aplicada ao atleta.

3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 839322/ MA. Primeira turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Data do julgamento: 07/10/2014. DJ 14/10/2014 ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO. EXAURIMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. PRESSUPOSTO INDISPENSÁVEL À AFERIÇÃO DO INTERESSE DE AGIR DO BENEFICIÁRIO – IMPROCEDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONHECI-MENTO E PROVIMENTO. 1. Não há previsão, na Lei Fundamental, de esgotamento da fase administrativa como condição para aquele que pleiteia o reconhecimento de direito ter acesso ao Poder Judiciário. Ao contrário da Carta pretérita, a atual não agasalha cláusula em branco, a viabilizar a edição de norma ordinária com disposição em tal sentido.

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Ainda como reforço ao princípio da celeridade, o constituinte se preocupou, como colocado pelo doutrinador e procurador do STJD do futebol e do voleibol Paulo Schmitt (p. 20, 2004), em delimitar o prazo de 60 (sessenta) dias para o deslinde da causa desportiva. Tra-ta-se essa delimitação temporal de medida de extremo valor, porque em não sendo observada, o constituinte entende que ocorre violação do princípio da prestação jurisdicional desportiva célere. Nesse caso, é perfeitamente cabível o ingresso de ação junto ao Poder Judiciário, não havendo que se falar em desrespeito ao art. 217 §1º da Constituição Federal de 1988.

Percebe-se, destarte, que a celeridade reivindicada para a resolução dos litígios despor-tivos é uma das principais razões pelas quais se faz necessário o esgotamento de toda a Justiça Desportiva antes de eventual acionamento judicial.4

4 COMPETÊNCIA MATERIAL DESPORTIVA E DESAFOGAMENTO DO JUDICIÁRIO

O constituinte, como é cediço, optou por estabelecer uma Justiça especializada na apreciação da matéria desportiva relativa à disciplina e à competição. Isto posto, seria paradoxal que ele coadunasse com a possibilidade de “fuga” dos órgãos competentes para se levar uma de-manda dessa natureza diretamente à Justiça Comum. Caso tamanho impropério jurídico pudes-se ser realizado ao livre talante dos sujeitos processuais, estaria em xeque um dos pressupostos processais mais elementares do direito pátrio: a competência de ordem material.

Em arremate, a Justiça Comum não pode simplesmente adentrar no conhecimento de matérias reservadas à Justiça Desportiva sem haver esgotamento dos órgãos desportivos, pois a competência desta é mais específica do que a daquela e naturalmente tem prevalência.

A criação de uma Justiça Desportiva apartada e especializada pela Constituição Fe-deral de 1988 explicita um escopo muito salutar do constituinte originário: desafogar o Poder Judiciário. Afinal de contas, ela consubstancia um autêntico marco do movimento de solução alternativa de controvérsias, livre dos custos judiciais exorbitantes e da morosidade caracterís-tica da Justiça Comum brasileira. Amiúde, nas palavras do exímio Paulo Schmitt (2004, p. 11):

Na realidade, a Justiça Desportiva revela-se como meio ideal para solução de conflitos estabelecidos no âmbito desportivo, pois permite a solução rápida e devidamente fundamentada, a custos mínimos e de maneira eficiente, respeitados os princípios inerentes ao devido processo legal.

É no mínimo questionável que, a título exemplificativo, um magistrado togado, asso-berbado de causas da mais alta complexidade, que requerem um vasto conhecimento do Direito e detêm implicações bem mais graves nas vidas dos indivíduos, tenha que gastar seu já limitado

4 Relevante não olvidar que o recurso ao Poder Judiciário não prejudica os efeitos desportivos das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça Desportiva, conforme dicção do art. 52 § 2º da Lei Pelé.

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tempo julgando casos de cartão vermelho de jogador, quando é cediça a existência de todo um aparato especializado, voltado para o desempenho de funções dessa natureza.

Uma das grandes mazelas do Direito brasileiro é exatamente a sobrecarga do Judiciá-rio, de modo que deduzir em juízo comum causas desportivas sem ao menos exaurir os órgãos criados unicamente com o intuito de apreciá-las só contribui para o agravamento dessa situação. É “nadar contra a maré” de desafogamento do Judiciário brasileiro, que tem recorrido a diversos meios recentemente, tanto legais quanto jurisprudenciais, como a conciliação, a mediação e as súmulas vinculantes para atenuar o excesso de processos sob apreciação judicial.

5 DEDICAÇÃO EXCLUSIVA AO TEMA PELOS JULGADORES DE PROCESSOS DESPORTIVOS

Assegurar o prévio esgotamento das vias desportivas de julgamento permite uma maior tecnicidade nas decisões referentes à disciplina e à competição desportivas, já que os au-ditores das Comissões Disciplinares, dos TJDs e dos STJDs lidam apenas com litígios de ordem esportiva, fato que naturalmente lhes possibilita maior embasamento teórico e prático para a apreciação das demandas dessa espécie.

Outrossim, o direito material aplicável aos casos (muito repetitivos, diga-se de passa-gem)5 de sua competência está, de modo geral, todo contido na legislação desportiva. Assim, torna-se bem mais simples aos seus julgadores (auditores, predominantemente) a sistematização dos seus julgamentos, favorecendo uma produção mais efetiva e célere de decisões.

Em contrapartida, os juízes comuns geralmente não detêm um conhecimento satisfa-tório para enfrentar questões estritamente referentes à temática desportiva, muito em função da ausência do Direito Desportivo nas grades curriculares das graduações e pós-graduações e nos programas das disciplinas para concursos da magistratura. Trata-se de uma questão lógica: se o juiz não é bem preparado para julgar determinada matéria, tende a proferir decisões mais propensas a anomalias e equívocos.

Ilustrando a problemática, o professor Álvaro Melo Filho (2003, p. 9-10) apresenta exemplos de tutelas jurisdicionais que consubstanciam verdadeiras aberrações jurídicas em face do Direito Desportivo, enquanto ramo autônomo detentor de um regime jurídico próprio:6

-Magistrado, em Rondônia, concedeu habeas corpus para que um jogador, suspenso por cinco partidas, pudesse atuar em jogo decisivo, alegando que se tratava da ‘liberdade de ir e vir dentro de campo’; -Um magistrado em Maceió, em processo cautelar, concedeu liminar impedindo que a Federação local escalasse árbitro ‘X’ para apitar jogo decisivo do campeonato alagoano de futebol, fundamentando seu despacho na ‘duvidosa e temerária’

5 Expulsões de atletas, condutas imorais durante ou logo após as partidas em relação ao adversário, os árbitros ou os torcedores, jogadas violentas etc.6 A existência de um regime jurídico desportivo independente é defendida por Paulo Schmitt (p. 2, 2004)

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imparcialidade do árbitro.

Percebe-se, a partir dos exemplos supramencionados, as graves consequências que o desconhecimento da legislação desportiva (bem como do regime jurídico desportivo como um todo), por parte de um julgador da Justiça Comum, podem causar. A aplicação de um raciocínio jurídico próprio de outras áreas, como o Direito Civil e o Processo Civil, em litígios concernentes a competições desportivas, os quais reivindicam uma lógica jurídica diferenciada daquele que os conhece e os analisa, tende a causar resultados desastrosos. Não obstante a boa vontade do magistrado no ato de julgar e seu desejo de fazer justiça, a desconsideração das peculiaridades do Direito Desportivo, sobretudo de seus aspectos teleológicos, dificulta sobremaneira uma prestação jurisdicional satisfatória. Dessa forma, extrai-se mais um motivo pelo qual o constituinte resolveu limitar, muito apropriadamente, o acesso ao Judiciário em benefício da criação do pressuposto processual obrigatório do exaurimento das instâncias desportivas. Entretanto, há que se lembrar que, uma vez tendo sido levada regularmente ao conhecimento desse Poder uma demanda desportiva, seja após o esgotamento dos órgãos desportivos ou com o término do prazo para a decisão final da Justiça Desportiva (60 dias), não cabe ao juiz togado adentrar no mérito da decisão emanada por tal justiça especializada. É o que se infere do art. 52, §2º da Lei 9.615/98 (A Lei Pelé), nestes termos:

Art. 52 (...)§ 2º O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente produzidos em consequência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça Desportiva.

O indigitado Paulo Schmitt (2007, p. 46) endossa essa tese ao pontificar precisamente que:

(...) o controle jurisdicional em matéria de competições e disciplina, em regra, deve restringir-se à análise da observância dos princípios que orientam a Justiça Desportiva e do devido processo legal, e não quanto ao mérito das demandas julgadas pelas instâncias desportivas. Comprometeria sobremaneira a autonomia e independência decisórias dos órgãos de Justiça Desportiva submeter ao crivo do Poder Judiciário a aplicação de determinada penalidade pela prática de infração disciplinar definida em Códigos visando, por exemplo, a minoração da pena.

Assim sendo, é forçoso destacar, em sintonia com o pensamento de Sérgio Santos Rodrigues (2008, p. 1), que, findas todas as instâncias desportivas, não é recomendado que o Judiciário proceda a toda uma reanálise dos autos, visto que isso iria de encontro com a espe-

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cialização e celeridade exigidas pelo processo jus-desportivo.

6 AS SANÇÕES AO ACIONAMENTO IRREGULAR DA JUSTIÇA COMUM

Sem embargo o texto constitucional já tenha sido enfático ao vedar a frustração do exaurimento das instâncias da Justiça Desportiva, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, criado a partir da Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Esporte no ano de 2003 (e reformado em 2009 pela Resolução nº 29 do CNE), introduziu sanções específicas para as pessoas-físicas ou jurídicas que levam causas referentes à disciplina e competição ao Judiciário sem o prévio esgotamento necessário. Tal prescrição se encontra precisamente no art. 231 da supracitada codificação, nestes termos:

Art 231 Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro. Pena: exclusão do campeonato ou torneio que estiver disputando e multa e multa de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Infere-se da presente disposição um salutar intento dos CBJD em conferir maior efe-tividade ao comando constitucional do art. 217 § 1º, mediante sua conversão em modalidade de infração referente à Justiça Desportiva7. A cominação de uma pena estritamente desportiva (a exclusão do campeonato ou torneio) cumulada com uma pena pecuniária às associações despor-tivas infratoras foi medida acertada, porquanto oferece meios perfeitamente compatíveis com os desideratos concomitantes de prevenção e reparação pugnados pela norma.

No entanto, muito embora seja extremamente elogiável a previsão do art. 231 do CBJD, como toda norma, ela está sujeita a descumprimentos. E, no seu caso em particular, eles têm sido frequentes. A título de exemplo, só no mês de agosto de 2014, cinco clubes de futebol foram a julgamento na primeira instância do STJD por irem à Justiça Comum na tentativa de reformar o resultado de decisões tomadas pela Justiça Desportiva: Icasa-CE, Tiradentes-CE, Botafogo-PB, CSP-PB e Cianorte-PR8. Destes, só o último foi absolvido, pois o Tribunal en-tendeu que o clube esgotou as instâncias desportivas. Os outros foram sumariamente punidos com a exclusão dos campeonatos que disputavam ao tempo do julgamento, cumulada com a aplicação de multas que variaram entre R$ 10.000,00 (dez mil reais) e R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) - Tiradentes e CSP não disputavam nenhum campeonato na época do julgamento e culminaram sendo punidos apenas pecuniariamente-. O caso do Botafogo paraibano, inclusive, é emblemático, porque o clube não ingressou com ação na Justiça Comum, mas se valeu de uma

7 As infrações dessa natureza se encontram tipificadas no Capítulo III do CBJD.8 MIRANDA, Sofia. Por acionar Justiça comum, Icasa é excluído da Série B pelo STJD, 29 ago. 2014 Disponível em: <http://globoes-porte.globo.com/futebol/times/icasa/noticia/2014/08/por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd.html>. Acesso em: 17 dez. 2014.

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ação protocolada por um vereador torcedor do clube.9 Tais exemplos não tiveram tanto destaque na imprensa, muito em função do fato de

não terem sido protagonizados por clubes de maior expressão no cenário nacional, como Fla-mengo e Fluminense, os quais igualmente contaram com ações de torcedores que acionaram a Justiça Comum para a obtenção de liminares em benefício dessas associações, porém, sem maiores explicações, não foram processados nem levados a julgamento, segundo matéria ele-trônica publicada na ESPN.10 Essa é uma questão bem polêmica e que suscita as mais diversas teorias em torno de seu debate. Entretanto, não é este o espaço mais adequado para as comple-xas reflexões que tal assunto demanda.

O certo é que a Justiça Desportiva brasileira não está sendo coerente na aplicação do art. 231 do CBJD, na medida em que não o tem aplicado de forma uniforme e isonômica a todas as associações desportivas. Se assim o fizesse, com o rigor que demonstrou em episódios espo-rádicos como tal os supramencionados, times de grande apelo popular, midiático e financeiro, como os cariocas destacados, poderiam sofrer consequências drásticas e as discussões sobre a necessidade de exaurimento da Justiça Desportiva seriam ainda mais potencializadas.

7 A PROBLEMÁTICA DA ÚLTIMA INSTÂNCIA DESPORTIVA

Enalteceu-se no presente artigo a relevância da necessidade de prévio esgotamento das instâncias desportivas para que a Justiça Comum possa conhecer de feitos da competência da Justiça Desportiva. Mas quando se exaurem tais instâncias desportivas? Trocando em miúdos: qual é a última instância da Justiça Desportiva?

Torna-se de fundamental importância responder tais questionamentos. Afinal, acionar o Judiciário sem tal efetivo exaurimento das vias desportivas implica em sanções extremamente gravosas às associações postulantes ou beneficiadas, como é o caso das previstas no já comen-tado art. 231 do CBJD.

Entretanto, não há consenso em torno da resposta correta a essas indagações. Isso porque há duas correntes que tentam definir qual seja a instância desportiva derradeira. A pri-meira entende que seria o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), também conhecido como Court of Arbitration for Sport (CAS)11 e tem supedâneo essencialmente no art. 67 do Estatuto da FIFA (Federação Internacional de Futebol e Associados), o qual estabelece que todo recurso contra decisões finais proferidas por órgãos jurídicos da FIFA e por Confederações, Membros ou Li-

9 TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014 Dis-ponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez. 2014.10 TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014. Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez. 2014.11 O TAS/CAS é um tribunal independente de qualquer organização desportiva, com sede em Lausanne (Suíça). Contando atualmen-te com 300 árbitros de 87 países, escolhidos por sua especialização em arbitragem e direito desportivo, ele tem como função facilitar a resolução de disputas jus-desportivas mediante a arbitragem ou a mediação, por meio de normas processuais adaptadas às necessidades específicas do mundo do esporte.

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gas, deverá ser remetido ao TAS/CAS, nestes termos:

Article 67 – Jurisdiction of CAS1. Appeals against final decisions passed by FIFA’s legal bodies and against decisions passed by Confederations, Members or Leagues shall be lodged with CAS within 21 days of notification of the decision in question.2. Recourse may only be made to CAS after all other internal channels have been exhausted. […]12

Com arrimo nesse dispositivo, a Procuradoria do STJD13 tem denunciado entidades de prática desportiva e Federações filiadas à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) como incursos na infração tipificada no indigitado art. 231 do CBJD, mesmo em casos em que o pleno do STJD já proferiu decisão final.

Os defensores dessa corrente (cite-se como raro exemplo Paulo Schmitt), também se fundamentam no art. 1º da Lei Pelé, que giza, nestes termos: “A prática desportiva formal é re-gulada por normas nacionais e internacionais (...) aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto”. Assim sendo, em função da previsão da Lei Pelé, a CBF, por exemplo, no caso do futebol, poderia adotar normas emanadas da FIFA como a que atribui, em última instância, a competência recursal de causas desportivas para o TAS/CAS.

É mister observar também, conforme oportuno apontamento de Tisi Ribeiro e Duc (2014), o prazo previsto no art. 67 do Estatuto da FIFA. Segundo esse dispositivo, o recurso para os TAS/CAS precisa ser interposto em 21 (vinte e um) dias a contar da notificação da decisão a ser impugnada, sob pena de não recebimento da peça recursal e do esgotamento das instâncias desportivas.

A outra teoria propugna ser o STJD (na sua composição plena) a última instância desportiva. Frise-se desde já que esse entendimento foi acertadamente abraçado pelo órgão máximo da Justiça Desportiva brasileira de modo pacífico em recente julgamento, datado de 13/11/2014, nos autos do Recurso Voluntário nº 216/2014, movido pela Procuradoria da Quarta Comissão Disciplinar do STJD contra o Cianorte Futebol Clube.

Na ocasião, o STJD entendeu que o Cianorte não violou o art. 231 do CBJD ao não ter recorrido ao TAS/CAS da decisão final da Justiça Desportiva brasileira, pleiteando já perante a Justiça Comum matéria desportiva14. Tal conclusão foi obtida a partir do art. 217, § 1º da Cons-tituição Federal de 1988, já colacionado supra, cuja redação é enfática em atribuir à lei a regu-lamentação da Justiça Desportiva. A lei em questão a que coube essa incumbência é a Lei nº

12 Artigo 67- Jurisdição do TAS1. Os recursos contra as decisões finais emanadas pelos órgãos jurídicos da FIFA e contra as decisões proferidas pelas Confederações,

Ligas ou Membros devem ser apresentadas ao TAS no prazo de 21 dias a contar da notificação da decisão em questão.2. O recurso só pode ser interposto ao TAS após todas as outras vias internas serem esgotadas.

13 Representada por Paulo Schmitt, um dos arautos dessa tese.14 TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014 Dis-ponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez. 2014.

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9.615/98 (Lei Pelé) que, ao instituir normas gerais sobre o desporto, dispôs em seu art. 52 que a Justiça Desportiva é composta apenas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Tri-bunais de Justiça Desportiva (TJDs) e pelas Comissões Disciplinares. A esse respeito, veja-se:

Art. 52. Os órgãos integrantes da Justiça Desportiva são autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema, compondo-se do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades nacionais de administração do desporto; dos Tribunais de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades regionais da administração do desporto, e das Comissões Disciplinares, com competência para processar e julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva, sempre assegurados a ampla defesa e o contraditório.

Nesse mesmo sentido, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) assim dispõe:

Art. 3º São órgãos da Justiça Desportiva, autônomos e independentes das entidades de administração do desporto, com custeio de seu funcionamento promovido na forma da lei:I – O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), com jurisdição desportiva correspondente à abrangência territorial da entidade nacional de administração do desporto;II – os Tribunais de Justiça Desportiva (TJD), com jurisdição desportiva correspondente à abrangência territorial da entidade regional de administração do desporto;III – as Comissões Disciplinares constituídas perante os órgãos judicantes mencionados nos incisos I e II deste artigo.

Percebe-se que não há nenhuma menção no ordenamento jurídico pátrio ao TAS/CAS como órgão componente da Justiça Desportiva, o que faz do STJD inegavelmente a última instância desportiva existente. Destarte, uma vez proferida decisão final pelo órgão máximo da Justiça Desportiva brasileira15, a causa poderá ser levada à apreciação do Judiciário em caso de irresignação da parte sucumbente. A este, no entanto, é importante ressaltar, não cabe uma atuação ilimitada, porquanto sua análise deve apenas se ater aos aspectos formais da decisão do STJD, conforme neste artigo já defendido.

8 CONSIDERÇÕES FINAIS

O constituinte originário teve uma boa razão para mitigar o famigerado e aclamado princípio da inafastabilidade da jurisdição ou do direito de ação, insculpido por ele próprio no rol dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Sim, ele, ao vislumbrar a necessidade e importância de criar uma Justiça especializada na apreciação das matérias con-

15 Decisão esta que precisa ser dada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias contados da instauração do processo, conforme o já abordado art. 217 §2º da CF.

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cernentes à disciplina e à competição desportivas, entendeu que para que ela pudesse exercer seus desideratos a contento, deveria contar com a garantia de seu prévio esgotamento, o que ine-vitavelmente, à primeira vista, confronta com o amplo direito de pleitear perante o Judiciário.

Entretanto, foi uma escolha sapiente do constituinte. Afinal, as peculiaridades da Jus-tiça Desportiva a diferenciam de todas outras vias administrativas comuns. A necessidade de celeridade nos julgamentos, o direito material aplicável bem específico que reivindica conheci-mento vasto e aprofundado de seus aplicadores e o concomitante escopo de desafogar o Judiciá-rio das altas cargas de processo fazem do direito desportivo um ramo do Direito especial, com um regime jurídico próprio e independente e que, assim sendo, requer uma Justiça Desportiva ampla e autônoma para a sua devida tutela.

Não obstante, a Justiça Desportiva não pode ser morosa, inerte ou relapsa. Suas deci-sões definitivas para os casos postos a sua apreciação precisam ser dadas em até 60 (sessenta) dias, em respeito ao comando constitucional- sob pena do feito poder ser levado à Justiça Co-mum- e em obediência ao dinamismo imanente às práticas e competições desportivas.

O prévio exaurimento das instâncias desportivas ganhou tanta notoriedade que seu descumprimento foi convertido em infração pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva, pre-cisamente no seu art. 231. A violação desse mandamento originalmente constitucional (art. 217 §1º) implica em sanções de grande impacto às entidades do desporto violadoras: a exclusão de competições e a aplicação de vultosas multas. E, mesmo assim, têm sido reiterados os casos de transgressões, os quais nem sempre têm recebido o mesmo tratamento por parte dos órgãos desportivos competentes, sobretudo do STJD o que, de certo modo, tem provocado certas dis-córdias e questionamentos.

Certo mesmo é que a Justiça Desportiva precisa fazer jus à enorme confiança que lhe foi depositada pelo constituinte originário, a ponto de lhe assegurar o exaurimento de todas as suas instâncias (o qual se dá após julgamento pelo pleno do STJD e não pelo TAS/CAS, como defendem alguns doutrinadores), e, por meio dos seus órgãos, julgar sempre as causas referentes à disciplina e à competição desportivas de forma coerente, uniforme e, acima de tudo, justa, como almejado pela Constituição Federal de 1988.

REFERÊNCIAS

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RODRIGUES, Sérgio Santos. Advogado também é indispensável no processo desportivo. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-abr-16/advogado_tambem_indispensavel_processo_desportivo>. Acesso em 17 dez. 2014.

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TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014. Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez. 2014.

THE RELEVANCE OF SPORTS JUSTICE RESOURCES’ PRIOR EXHAUSTION AND THE PENALTIES TO ITS NON-COMPLIANCE

ABSTRACT: The Sports Justice was created from apart the Judiciary to an-alyze jus-sporting matters autonomously. In this goal, the constituent assured the need of prior exhaustion of sports resources as an indispensable condition for the deduction in common courts of cases related to discipline and sport-ing competition, even mitigating the constitutional principle of non-keeping away jurisdiction. Therefore, the present study aims to analyze the relevance of this constituent’s choice, explaining its reasons, as well as the penalties to non-compliance. For last, there is the presentation of the debate around what would be the last jus-sporting court for Brazilian Law.Keywords: Sports Justice. Prior exhaustion. Instances. Constituent. Reasons.

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* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (DPE/RN).

Recebido em 12 fev. 2015 Aceito em 30 abr. 2015

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA TERCEIRIZAÇÃO: UM PARALELO EN-TRE O DIREITO À VERBA ALIMENTAR DO TRABALHADOR E A PROMOÇÃO DO ESTADO SEGURADOR DO SEGMENTO PRIVADO

Paulo Vitor Avelino Silva Barros*

RESUMO: A responsabilidade civil do Estado pelo inadimplemento traba-lhista das prestadoras de serviços públicos suscita acirrados debates. Em re-gra, a negligência da empresa indica, subsidiariamente, a responsabilidade estatal para a quitação dos débitos, protegendo-se o trabalhador, cujas verbas alimentares não podem ser olvidadas. Contudo, abarrotam-se indevidamente os cofres públicos, que funcionam como verdadeiro segurador do segmento privado. O presente trabalho, esmiuçando esse insubsistente quadro, estuda o instituto da responsabilidade civil do Estado na terceirização, com fulcro es-pecial na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, expondo, finalmente, alternativas para as mazelas hodiernas desse instituto.Palavras- chaves: Responsabilidade civil. Estado. Terceirização. Dívidas tra-balhistas. Medidas alternativas.

1 INTRODUÇÃO

Se na Idade Moderna vigia a máxima de que “The king can do no wrong” em um pe-ríodo em que o Estado não se responsabilizava por qualquer ato ilícito ou ingerência indevida da Administração Pública, hodiernamente, as condutas praticadas por agentes públicos no exer-cício de suas atribuições devem, certamente, ser imputadas ao Estado. Isto é, o Poder Público tornou-se, em regra, objetivamente responsável – leia-se, sem a necessidade de comprovação de dolo ou culpa – por qualquer dano advindo direta ou indiretamente da Administração, com

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fulcro na teoria do risco administrativo.Sem embargos, certas situações tomaram contornos distintos da regra geral. Há casos

em que, para responsabilizar a Administração, é necessária a comprovação da conduta culposa do órgão publico. Há também singularidades que ensejam a invocação do instituto da responsa-bilidade subsidiária: o Estado apenas responde pelo inadimplemento após a tentativa frustrada do cumprimento junto ao devedor principal.

Sob esse paradigma se arquiteta a responsabilidade civil do Estado por dívida traba-lhista contraída por empresa terceirizada pela Administração. Essa, antes objetiva, com fulcro no artigo 37, III, § 6 da Constituição Federal de 1988, transformou-se a partir do entendimento sedimentado com o atual teor da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, passando o Es-tado a figurar como responsável subsidiário pelos encargos laborais, desde que constatada sua negligência na fiscalização dos pagamentos do prestador de serviços.

Nesse cenário - a despeito das vozes que criticam a opção pela responsabilidade sub-sidiária, afirmando que esta se afina aos ideais da teoria da irresponsabilidade – não houve severas mudanças quanto à segurança e efetividade gozadas pelo trabalhador em relação ao cumprimento das obrigações empregatícias, seja através da classe patronal ou da pessoa jurí-dica de direito público. Houve, na verdade, a tentativa de desonerar o Estado que, muitas ve-zes, sem qualquer justificativa plausível, figurava na lide pelo abuso da empresa contratada. Nada obstante, a prática forense tem demonstrado que esse fim colimado pelo Poder Público - o erário - destoa dos resultados práticos obtidos. O Estado continua a ser grande responsável pelo inadimplemento, haja vista o conceito amplo da culpa in vigilando1 da administração, e as empresas continuam se valendo dessa prerrogativa para evitar o pagamento e, assim, esqui-var-se de suas obrigações empregatícias. Em síntese, objetivando um louvável fim, qual seja o adimplemento trabalhista, a jurisprudência elegeu meios inidôneos que, concomitantemente, garantem abrigo à má-fé de empresas e dão eco a um Estado ‘’segurador’’ do segmento privado.

O presente trabalho, partindo da premissa do valor substancial do crédito trabalhista, pretende debater sobre alternativas à problemática em questão, que permitam o pagamento dos trabalhadores sem a necessária intervenção estatal. Nessa esteira, será resgatado o conceito de responsabilidade civil, bem como suas ligações com o fenômeno da terceirização. Após tal exa-me, com fulcro no entendimento sumulado pelo Tribunal Superior do Trabalho, serão discutidos os motivos pelos quais as empresas continuam a negligenciar seus pagamentos. Mais que isso, serão ventiladas propostas de mudança que possam, efetivamente, amenizar a sobrecarga in-devida imputada ao Poder Público face ao notório abuso das empresas prestadoras de serviços.

2 NOÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

1 O vocábulo “in vigilando” tornou-se expressão frequente na prática forense, motivo pelo qual é mister fazer menção a sua nomenclatura latina originária. Neste caso, trata-se da responsabilidade de “vigia” do Estado em fiscalizar as atividades das prestadoras de serviços pú-blicos, em especial no tocante as relações trabalhistas envolvidas.

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Não restam dúvidas que certas condutas de agentes públicos no exercício de suas fun-ções desembocam em danos, de natureza patrimonial, aos administrados. Trata-se de situações lesivas que merecem o devido reparo pelas vias jurisdicionais ou mesmo por meios adminis-trativos. É sobre esse panorama que se desenvolve o tema da responsabilidade civil do Estado, estudado a seguir.

A compreensão do vocábulo responsabilidade, como explica Carvalho Filho (2014, p.551), indica a ideia de resposta. No âmbito da responsabilidade civil, essa resposta está inseri-da nas relações de direito privado, tendo como pressuposto um dano indenizável. Isto é, surge, a par de atitudes lesivas, a necessidade de contraprestações econômicas com o escopo de garantir o ressarcimento.

Nesse pórtico, desde já se faz também necessário tecer a diferença entre obrigação e responsabilidade. Nas lições de Sérgio Cavalieri Filho (2012, p.3), obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo consequente à violação do primeiro. De toda sorte, ambos se relacionam intimamente, haja vista a responsabilidade surgir essencialmente da obrigação frustrada.

Com efeito, o descumprimento de uma obrigação, por um indivíduo, garante o lastro jurídico necessário e suficiente para que o lesado ingresse com uma ação indenizatória judi-cial. É o que prescrevem os artigos 186 e 927 do Código Civil de 2002, os quais contemplam o instituto da responsabilidade entre os particulares. Porém, em se tratando de uma relação entre Estado e indivíduo, o dano cometido pela Administração ensejaria a mesma resposta que o pre-juízo oriundo de um particular?

De antemão, é imprescindível esclarecer que a responsabilidade estatal possui funda-mentos próprios, que a singulariza em relação à responsabilidade de particulares. Haurindo a temática, explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p.987):

Seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestações multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão própria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato onímodo e constante com os administrados lhe propicia acarretar prejuízos em escala macroscópica, o certo é que a responsabilidade estatal por danos há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamento dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e bens jurídicos.

Nesse contexto, insta consignar que o instituto da responsabilidade estatal, nos moldes supramencionados, perfez longa caminhada histórica até alcançar tal padrão. Sobre o tema, José Afonso da Silva (2005, p.349) remonta as origens do instituto: “O dever de indenizar pre-juízos causados a terceiros por agentes públicos foi por longo tempo recusado à administração pública. Predominava, então, a doutrina da irresponsabilidade da Administração, sendo que os particulares deveriam suportar os prejuízos.” É esse o cerne da teoria da irresponsabilidade do

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Estado, em que, conforme mencionado, os reis não cometeriam erros. O Estado não seria res-ponsabilizado por qualquer conduta, por mais que essa se mostrasse manifestadamente ilegal.

Gradativamente, a teoria da irresponsabilidade foi sendo substituída, e, ao Estado, foi imputado o dever de indenizar. Passou a vigorar a teoria da responsabilidade subjetiva, também denominada de teoria da responsabilidade com culpa ou teoria civilista.2 A despeito de algumas condutas ainda tidas por absolutamente intocáveis – como os atos de império – surgiu a figura do ato de gestão, cujos danos decorrentes deveriam ser arcados pelo Poder Público. (CARVA-LHO FILHO, 2014) No entanto, ainda mostrava-se árdua a distinção de ato de império e ato de gestão, o que, constantemente, gerava indignação dos particulares, movidos pela ânsia de verem seus direitos contemplados.

Nessa linha histórica, a partir de meados do Século XX, passou a prevalecer a teoria da responsabilidade objetiva, ou teoria da responsabilidade sem culpa. Essa, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 441), significa que, para pleitear eventual indenização pelo Estado, não há obrigatoriedade na verificação da culpa ou dolo, tampouco da licitude ou ilicitu-de da conduta. Basta a comprovação da relação causal entre o fato e o dano.

Não é demais ressaltar que essa teoria representa, até hoje, alicerce fundamental do Es-tado Democrático de Direito. Maximiza a proteção conferida aos particulares, ampliando subs-tancialmente as prerrogativas do administrado, hipossuficiente na relação com o ente estatal. Outrossim, a responsabilidade objetiva do Estado ampara-se na teoria do risco administrativo.3 Leia-se: porquanto as atividades normais da Administração gerem riscos de dano à comuni-dade, visto que as atividades são exercidas em favor de todos, não haveria condão em imputar a apenas alguns os ônus gerados, razão pela qual o Estado deveria suportá-los, a despeito de culpa. (CAVALIERI FILHO, 2012) A culpa é crucial, apenas, para eventual ação de regresso contra o agente responsável.

Em suma síntese, a Constituição Federal de 1988 dá vazão atualmente à teoria da res-ponsabilidade objetiva, com pontuais temperamentos. Fundamenta-se, em resumo, na posição hierárquica do administrado, inferior frente ao Estado, com fulcro na tese de que os órgãos públicos têm personalidade jurídica, sendo assim, responsáveis civilmente. Ademais, inexiste necessidade de comprovação de dolo ou culpa do agente, devendo ser constatadas apenas a conduta, o dano e o nexo causal, ressalvado o direito de regresso contra o agente. Por fim, as condutas podem ser comissivas ou omissivas que, a despeito de entendimentos em contrário do

2 Nesse contexto, o Código Civil de 1916 (Bevilácqua), em seu art. 15, aduzia: As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.3 É fundamental percebermos que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral. Essa, independente-mente da participação do lesado no dano, coloca o Estado como verdadeiro indenizador universal. Segundo os adeptos dessa teoria, em elucidativo exemplo dado por Carvalho Filho (2014, p.557) o Estado deveria indenizar até mesmo quando um indivíduo se atirasse delibe-radamente em uma viatura pública. As gritantes injustiças dessa teoria, contudo, não conseguiram abrigo no ordenamento brasileiro, que comporta uma série de exceções, a exemplo do caso fortuito, de força maior ou culpa exclusiva da vítima. Complementando, Yussef Cahali (1995, p.40) afirma que “o risco administrativo é qualificado pelo seu efeito de permitir a contraprova de excludente de responsabilidade, efeito que se pretende seria inadmissível se qualificado como risco integral, sem que nada seja enunciado quanto à base ou natureza da distinção.”

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Superior Tribunal de Justiça, parecem caminhar uníssonas pelos trilhos da responsabilidade objetiva haja vista os recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal.

3 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA TERCEIRIZAÇÃO: PECULIARIDADES DO INSTITUTO

Notadamente, a regra geral no ordenamento jurídico brasileiro é a responsabilidade objetiva do Estado. Todavia, surgem excepcionalidades em que a responsabilização da pessoa jurídica de direito público é invocada apenas subsidiariamente ao inadimplemento de um deve-dor principal. Em outros casos, é imprescindível que haja a conduta culposa do agente público responsável. Nessa perspectiva, exemplo claro desse panorama – e objeto de nossos estudos - é a responsabilidade do Estado no inadimplemento trabalhista por empresa terceirizada pela ad-ministração pública.

De antemão, faz-se mister esclarecer o que é o fenômeno da terceirização. No escólio de Alice Monteiro de Barros, terceirização é um fenômeno “que consiste em transferir para outrem atividades consideradas secundárias, ou de suporte, mais propriamente denominadas de atividades-meio, dedicando-se a empresa à sua atividade principal, isto é, à sua atividade-fim.” (citado por MORAES, 2003, p. 67).

Esse instituto, embora não estivesse expressamente consolidado com essa nomenclatu-ra, já encontrava suas primeiras linhas junto ao Decreto-Lei 200/1967, tendo sido resguardado por uma série de leis esparsas nas décadas posteriores. Sua maior finalidade seria, nesse sentido, a de garantir maior eficiência e celeridade aos serviços prestados pela administração. Assim, o dogma da contratação direta foi quebrado e o Estado passou a modificar suas concepções afetas à prestação de serviços públicos.4

Nessa linha de intelecção, a contratação indireta - conquanto sejam inúmeras as crí-ticas a seu respeito, no sentido de que solapam constantemente uma gama de direitos do em-pregado – se fez realidade inegável no sistema jurídico brasileiro. E, dessa relação, o Estado certamente faz parte. Assim, seria inadmissível que os entes federados responsáveis – União, Estados ou Municípios – permanecessem completamente alheios ao contrato de trabalho fir-mado entre a empresa prestadora de serviços e o trabalhador. Afinal, o Estado é o beneficiário direto dos serviços laborais prestados. Nessas sendas, Maurício Godinho Delgado (2012, p. 435) doutrina sobre esse fenômeno: “O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que se funda em relação de caráter essencialmente bilateral.”

Destarte, há um liame que vincula as três partes dessa relação: o Estado, tomador de

4 Pincelando rapidamente o instituto, é útil recordar que a terceirização tem como marco um processo de descentralização das atividades da Administração Pública, nitidamente presente a partir da década de 1980, no Brasil. Isso porque esse modo de contratação, sob o prisma do ente público, torna o aparato público, além de mais eficiente, menos custoso. É, segundo Di Pietro (2008), uma tendência à privatização, com a quebra dos monopólios estatais e delegação de serviços a particulares.

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serviços; a empresa privada contratada, prestadora de serviços, e o operário, objeto de todo esse complexo jurídico. Constatada tal relação, portanto, torna-se pujante a necessidade de estabe-lecer precisamente até que ponto será possível responsabilizar o Estado por eventuais danos acometidos pela empresa prestadora de serviços, no fito de que o empregado não permanece à míngua de seus proventos, de cunho eminentemente alimentar.

3.1 Análise da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho

A relação entre a responsabilidade do Estado e o da terceirização por muito tempo não esteve consolidada em âmbito jurisprudencial. Tinha-se uma vasta tessitura normativa afeta ao tema e diversas interpretações jurisdicionais colidentes, que impediam uma uniformização decisória sobre a matéria. Para solucionar essa celeuma, o Tribunal Superior do Trabalho fixou a Súmula de número 256, no fito de direcionar o posicionamento dos Tribunais trabalhistas brasileiros.5

De toda sorte, o pensamento sumulado não se mostrava claro quanto aos termos da responsabilidade estatal. Não delineava, sem obscuridades, em que casos e de que forma essa deveria ser compreendida. A fim de sanar tal problemática, o Tribunal Superior do Trabalho proclamou, em 1994, de melhor modo, a Súmula nº 331, cuja dicção normativa, originariamente, informava a opção jurisprudencial pela responsabilização objetiva e subsidiária do tomador de serviços.

O espírito por trás dessa modalidade de responsabilização seria o de garantir os pro-ventos do trabalhador a despeito de qualquer circunstância particular do litígio. Não havia qual-quer relevância na existência de dolo ou culpa da prestadora, pois o mero inadimplemento, por si só, já ensejava a responsabilização subsidiária. Reforçavam-se os ideais de Caio Mário (2012, p.9) que asseverava:

Em verdade, a culpa, como fundamento da responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente. O que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador, por influxo do princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeita à sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à culpa do agente.

O tema, contudo, foi palco de incisivas críticas. A doutrina afirmava, com razão, que esse modelo gerava situações absurdas, em que o Estado arcaria com a desídia da iniciativa privada, assumindo a responsabilidade da má-fé, negligência e dos danos oriundos da empresa terceirizada. Dessa maneira, a matéria voltou a ser analisada, com a Ação Declaratória de Cons-titucionalidade 16/2010, de modo que a referida responsabilidade singrou do mero dano para a necessária constatação de culpa do órgão público. Assim, conforme ensina Delgado (2012,

5 Súmula nº 256

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p. 447): “Com a decisão do STF, afastando a responsabilidade objetiva do Estado em casos de terceirização, o Tribunal Superior do Trabalho promoveu ajustes na Súmula 331.[...] que deu resposta a alguma das críticas que se faziam ao texto da Súmula 256.”

Com maior ênfase, o Min. Relator César Peluzo6 decidiu ainda esclarecer:

Quanto ao mérito, entendeu-se que a mera inadimplência do contratado não poderia transferir à Administração Pública a responsabilidade pelo pagamento dos encargos, mas reconheceu-se que isso não significaria que eventual omissão da Administração Pública, na obrigação de fiscalizar as obrigações do contratado, não viesse a gerar essa responsabilidade.

Isto é, a Ação Declaratória de Constitucionalidade não desonerou por completo o Es-tado na contratação indireta. Nada obstante ter sido convalidado o artigo 71, § 1º da lei de licitações (8.666/93), que retirava da seara pública o dever de adimplemento principal, foi esta-belecido que, quando o Estado fosse ausente na fiscalização, seria responsável pelos encargos trabalhistas devidos. Trata-se da reverberada responsabilidade in vigilando, a qual obriga o Estado a permanecer mais próximo ainda da prestação dos serviços e dos devidos pagamentos, fiscalizando a execução do contrato de trabalho7.

Em síntese, decidiu-se pela responsabilidade subsidiária condicionada à culpa do Es-tado. Porém, como mensurar essa culpa de fiscalização? Como proceder em relação ao Estado “vigia”? Não merece qualquer confiabilidade nos pagamentos da vencedora do processo licita-tório? Não há medidas alternativas mais justas e coerentes?

Para melhor compreensão desses questionamentos, é necessário estabelecer, doravan-te, certas considerações acerca do direito ao crédito do trabalhador e sobre a promoção de um Estado segurador do segmento privado, a fim de melhor desenvolver as conclusões alcançadas.

3.2 Confrontes hermenêuticos entre os direitos do trabalhador e a polêmica responsabilidade subsidiária do Estado.

O objeto de toda a controvérsia que orbita esse estudo é a prestação de um serviço for-necido por um trabalhador. Por óbvio, malgrado seja imprescindível observar o tema pela ótica do Estado, é ainda mais relevante proteger o operariado, que é, naturalmente, a parte menos favorecida na tríade estabelecida. Afinal, conforme é cediço na doutrina laboral, a Justiça do Trabalho deve verificar, no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. (DELGADO, 2012, p. 193)

Ora, se o trabalhador, usualmente, é vítima do poder imperial ainda arraigado na clas-se patronal, o solapamento de seus direitos e garantias é ampliado no processo de terceirização. O empregado é visto como uma ferramenta descartável e em abundância, cuja utilização é fruto

6 Supremo Tribunal Federal. ADC 16/DF. Pleno. rel. Min. Cezar Peluso, Julgado em 24.11.2010. Publicado no DJe em 09.09.2011

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único do fim lucrativo da atividade empresária. Não à toa o presidente da ANAMATRA, Rena-to Henry Sant’Anna, considera que a Constituição Federal de 1988, porquanto institui preceitos como a dignidade da pessoa humana e a valorização do emprego, deveria impedir o processo de terceirização. O magistrado afirma ainda que, em audiências, é usual que o prestador de serviços não mencione sequer o nome do trabalhador, limitando-se ao termo ‘’terceirizado’’, o que torna clara a relação unicamente mercantil então estabelecida.8

Diante disso, é necessário proteger sobejamente o trabalhador. Melhor: é primordial compreender o direito fundamental ao salário do empregado. Afinal, trata-se de um mínimo substancial a uma vida honrosa e decente para o trabalhador. Desta feita, não estão os dizeres de Maranhão (1978, p.182), nesses termos: ’’o salário é a contraprestação devida pelo empregador correspondente à prestação de serviço pelo empregado. Mas, sendo meio de subsistência de um ser humano e, dada, por isso, a concepção social do salário’’.9

Reside nesse caráter alimentar do crédito trabalhista a necessidade de ser considerado, inclusive, um crédito preferencial. Possui prioridade em caso de falências, bem como podem ensejar a quebra dos dogmas da impenhorabilidade. Isto é, tem forca para ir além dos obstácu-los jurídicos que possam surgir. É um bem que deve ser priorizado, sem desprezar as demais modalidades de crédito existentes.

Em razão disso, é certo que a verba alimentar deve prevalecer em detrimento da negli-gência do prestador de serviços. É um direito fundamental que deve, a todo custo, ser resguar-dado. Trata-se de uma garantia de sotaque social, cuja ausência pode destruir vidas e famílias. A título de exemplificação, a relevância do crédito trabalhista é tamanha que, conforme se depreende de aresto do Tribunal Superior do Trabalho10, a declaração da prescrição do crédito não pode ser feita de ofício pelo juiz, cabendo tal ônus a parte, como corolário da proteção à hipossuficiência do trabalhador.

Desse modo, é assaz compreensível a preocupação do Poder Publico, na esfera legisla-tiva e judiciária, de intensificar a sua proteção, levando a efeito a responsabilização subsidiária do Estado por eventual inadimplemento. Logo, por mais que o Estado venha a segurar os pre-juízos da contratada, é ainda mais relevante - no balizamento dos direitos - primar pela verba alimentar do trabalhador, cujos serviços foram fielmente prestados.

Não se nega, então, que o fim almejado é brilhante. Garantir ao operariado seus pro-ventos é um avanço na concepção de uma Justiça laboral com força social, que possa contem-plar tais direitos. Contudo, apesar de a responsabilidade subsidiária operar no desiderato de

8 BARBOSA, Rogério. Terceirizado deve ter os mesmos direitos do terceirizado. Conjur, São Paulo, 4 out. 2011. Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-out-04/terceirizado-mesmos-direitos-trabalhador-contratado, Acesso em 30 nov. 20149 O termo salário será utilizado de modo amplo, abrangendo todo o crédito trabalhista.

10 TST - RECURSO DE REVISTA RR 1269002220095120012 126900-22.2009.5.12.0012 Data de publicação: 01/07/2013Ementa: RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO - DECLARAÇÃO DE OFÍCIO - ARTIGO 219 , § 5º , DO CPC - INAPLICABILIDADE NO PROCESSO DO TRABALHO. A aplicação do artigo 219 , § 5º , do Código de Processo Civil não é compatível com o direito processual do trabalho, em face da natureza alimentar dos créditos trabalhistas, bem como da observância do princípio da proteção ao hipossuficiente. Precedentes da SBDI-1. Recurso de revista conhecido e provido

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promover maior equilíbrio na relação laboral, essa merece sérios temperamentos.Isso porque o conceito de culpa in vigilando é extenso e, por consequência, desemboca

quase sempre na responsabilização estatal. Em grande parte dos casos, sendo constatado o ina-dimplemento, de prontidão o Juízo já considera a culpa do órgão fiscalizador.11 Afinal, parte-se da premissa de que se inexiste pagamento, inexiste também o zeloso acompanhamento da exe-cução do contrato, conforme preleciona a Lei de licitações (8.666/93). Em termos pragmáticos, essa fiscalização, na verdade, reside apenas no mundo deontológico – “dever ser” – não sendo posta comumente em prática.

Entretanto, deixam de observar os juízes que há meios diversos que culminam no mes-mo resultado. Há alternativas que garantem o salário do contratado e, simultaneamente, deixam de “punir” o Estado pela má prestação do serviço e por sua falta de fiscalização. Quer dizer: não se trata de uma relação bilateral de exclusividade. É possível, em termos hermenêuticos, manter ambos os interesses vivos, de modo menos oneroso ao Poder Público, que seria indicado apenas em último caso.

Por fim, é crucial reiterar: não se pretende negar, com essa exposição, a necessidade de um Estado ativo na efetivação de direitos, tampouco negar a sua responsabilização em vias jurisdicionais. O que se pretende, por ora, é demonstrar que há soluções menos onerosas aos cofres públicos, que podem evitar o abuso das prestadoras de serviços. Essas, mais do que nin-guém, são responsáveis pelo inadimplemento. Sendo assim, o deslinde dessa controvérsia deve exaurir mais possibilidades para que, só então, seja possível atingir a enseada pública. Sob essa conjuntura, surge a necessidade de esgueirar-se em um estudo mais profundo sobre as medidas alternativas à responsabilidade subsidiária do Estado.

4 MEDIDAS ALTERNATIVAS À RESPONSABILIDADE ESTATAL

É pragmática a decisão que chama o Estado para a lide no fito de garantir o adimple-mento do trabalhador. Porém, antes de se chegar a tal ponto, é necessário extrair da prestadora de serviços o máximo possível para a quitação do débito, haja vista a sua posição de devedor principal no plano jurídico da terceirização.

Para tanto, é necessário ir além de certos obstáculos jurídicos impostos à execução dos créditos. Não deve o julgador, na análise do caso concreto, se limitar à figura da empresa prestadora de serviços cujas condutas, em muitos casos, estão eivadas de completa má-fé. Desse modo, entre as medidas alternativas mais arrazoadas, certamente, está a desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) da empresa prestadora de serviços.

11 A gestão de contratos é um serviço geral de administração dos instrumentos contratuais, a fiscalização remete-se à atividade mais pontual e especializada, para cujo desempenho é indispensável que a Administração Pública designe formalmente um agente, com co-nhecimento técnico suficiente. Tal agente - fiscal - com o auxílio das normas pertinentes à contratação, deverá desempenhar minuciosa conferência qualitativa e quantitativa dos serviços contratos objeto do contrato, bem como fiscalizar o pagamento dos encargos trabalhistas e seus consectários, em relação aos funcionários da contratada, evitando futuras condenações da Administração pública com base na res-ponsabilidade solidária/subsidiária. (CUNHA, 2011, p. 137).

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Grosso modo, a desconsideração da personalidade jurídica é a desconstrução de uma ficção jurídica – no caso, da atividade empresária – para que, com o objetivo de adimplir com certas dívidas, a execução de um crédito possa transpassar barreiras formais entre a pessoa fí-sica do administrador e a pessoa jurídica dirigida. Assim, conforme elucida Cavalcante Koury (2003, p.86):

A Disregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas de utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.

No caso, a possibilidade de desconsideração encontraria arrimo no artigo 28 do Códi-go de Defesa do Consumidor, que defende a Teoria Menor da disregard doctrine, sem a neces-sidade de comprovação de má-fé ou de abuso da pessoa jurídica por parte do devedor. O eixo fundante da teoria na esfera consumerista é o abuso ilegal e presumido do fornecedor face à vulnerabilidade do consumidor. Nas linhas precisas do Min. Luis Felipe Salomão, em preceden-te do Superior Tribunal de Justiça12:

É possível, em linha de princípio, em se tratando de vínculo de índole consumerista, a utilização da chamada Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, a qual se contenta com o estado de insolvência do fornecedor, somado à má administração da empresa, ou, ainda, com o fato de a personalidade jurídica representar um “obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (art. 28 e seu § 5º, do Código de Defesa do Consumidor).

Nessa perspectiva, em sendo o elemento central da desconsideração no âmbito do Có-digo de Defesa do Consumidor a vulnerabilidade do consumidor, reporta-se raciocínio símile à posição do trabalhador na esfera laboral. Ora, se o operário, mais do que o consumidor, sofre com a subordinação, a hipossuficiência e a vulnerabilidade, qual o motivo para que não fosse viável a desconsideração da personalidade da prestadora de serviços?

Trata-se de uma medida inovadora, brusca e, certamente, eficaz no combate à má-fé da empregada. É deveras provável que, ao sentir o ônus do inadimplemento em seu próprio bolso, o prestador de serviços, pessoalmente, tenha maior cautela para, em tempo certo, proceder ao pagamento de seus funcionários.

Com essa tese, repise-se, nada obstaria que – desde que não fosse suficiente o pa-trimônio pessoal do empregador – o Estado surgisse subsidiariamente para o adimplemento. Porém, a ordem preferencial seria primeiramente, com razão, o patrimônio da pessoa física do

12 Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1.111.153/RJ/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 06.12.2012/ Publicado no DJe em 04.02.2013

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empregador. Dessa forma, a responsabilidade estatal avançaria a passos largos para, de fato, uma posição subsidiária na lide, clamando-se, previamente, que o responsável direto pelo ina-dimplemento fosse desprotegido do falso véu da personalidade jurídica.

A outro giro, surge outra possibilidade, menos incisiva, mas que poderia, desde que bem modelada, ensejar grandes mudanças. Atualmente, a ação regressiva é o meio cabível para que o Estado cobre do agente público culpado o dano causado. No entanto, essa ação de regres-so é, de fato, suficiente?

A responsabilização pessoal do agente público, à primeira vista, poderia cultivar tam-bém benefícios. Diante dessa sanção, a atuação do funcionário estaria menos passível de con-luios com o prestador de serviços. Outrossim, caso a sistemática propusesse uma maior parti-cipação do agente público responsável, esse certamente prestaria seu serviço com mais zelo e atenção, porquanto figurar na lide fosse custoso e degradante para esse servidor.

Ademais, é necessário levar mais a fundo as sindicâncias contra os culpados pela au-sência de vigilância. É imprescindível que o agente público esteja ciente da sua função, sendo eficiente, efetivo, sem, literalmente, se escorar no Estado face de eventuais prejuízos.

Derradeiramente, eleve-se mais uma vez o valor substancial do crédito trabalhista. Saliente-se a necessidade de políticas mais enérgicas na tutela dos direitos sociais. Porém, nada disso impede as mudanças no instituto da responsabilidade do Estado. É crucial que o magistra-do perceba as minúcias do caso concreto e, protegendo o cofre da sociedade, evite que o Estado funcione como segurador do segmento privado ou de seus próprios funcionários.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma análise da responsabilidade civil do Estado em caso de inadimplemento traba-lhista de prestador de serviços públicos demonstra que, a despeito da exigência da culpa do órgão público responsável, constantemente o Judiciário recorre aos cofres públicos para a qui-tação do débito.

Esse quadro, na verdade, decorre bastante da negligência da prestadora de serviços em relação ao pagamento de seus funcionários. Ora, cientes de que o Estado, de todo modo, arcará com os prejuízos, não há motivos para que o prestador sinta-se compelido a adimplir. Destarte, tais condutas privam, primeiramente, os trabalhadores de verbas de cunho alimentar e, poste-riormente, oneram o Poder Público de modo indiscriminado.

Dessa maneira, é necessário levar a efeito discussões mais enérgicas sobre esse quadro e, simultaneamente, propor mudanças que possam, de fato, promover alterações na condição de segurador do Estado. Dentre essas medidas, conforme exposto, a adoção da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica seria fundamental para que o prestador de serviço fosse mais cauteloso com seus pagamentos, sem imputá-los ao Estado. De igual modo, a res-ponsabilização originária do agente fiscalizador também poderia ensejar modificações nesse quadro que é, certamente, insubsistente.

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Assim, a par de incisivas mudanças, o Judiciário poderia contemplar as verbas traba-lhistas do operário e, ao mesmo tempo, sancionar o maior responsável pelo inadimplemento. De todo modo, em última instância, o Poder Público continuaria figurando essa relação, de modo a não privar, em nenhuma circunstância, o devido pagamento do mínimo substancial ao trabalhador.

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THE STATE RESPONSIBILITY IN OUTSOURCING: A STUDY BETWEEN THE EMPLOYEE’S WAGES AND THE PUBLIC ROLE WITH THE PRIVATE SECTOR

ABSTRACT: The civil responsibility of the State by the wages of the em-ployees from providers of public services raises heated debates. As a rule, the company’s negligence indicates, alternatively, the state responsibility for the discharge of debts, protecting the worker, whose salary cannot be forgotten. On other side, the public coffers contracts a lot of debts, which should belong to the private sector. This paper, analyzing this situation, studies the institute of the responsibility of the State in outsourcing, with special fulcrum in Prec-edent 331 of the TST, exposing finally alternatives for today’s ills of the state responsibility.Keywords: Civil responsibility. State. Outsourcing. Labor debts. Legal alter-natives.

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DELIMITAÇÕES DO INTERESSE PÚBLICO NAS ATIVIDADES DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO E A IMPORTÂNCIA DE UMA EMPRESA ESTATAL NO SETOR

Sânzia Mirelly da Costa Guedes*

RESUMO: Visa, o presente trabalho, abalizar o conceito de interesse pú-blico, utilizando-se da análise de compreensões doutrinárias. Trata, ainda, da empresa estatal mais atuante nas atividades de exploração e produção da indústria de petróleo no Brasil, a Petrobras, para ressaltar sua importância histórica para o desenvolvimento do supracitado setor. Examina, então, se realmente há interesse público no mencionado setor, o qual sofre recorrentes intervenções do poder estatal, de modo a destacar, ao final, como se identi-fica o interesse público nas atividades de exploração e produção de petróleo nacionais.Palavras-chave: Indústria de petróleo. Interesse público. Petrobras. Pré-sal.

1 INTRODUÇÃO

A indústria de petróleo possui algumas peculiaridades e, entre elas, é possível destacar que, nas atividades de exploração e produção de petróleo, ao longo da sua história, a interven-ção estatal foi recorrente, em grande parte, através da Petrobras, empresa estatal que exerce o monopólio da União dessas atividades e, atualmente, ainda é a empresa mais atuante no setor.

Para fins de delimitação do presente estudo, importante destacar as atividades que formam o setor supramencionado. A Lei nº 9.479/97, em seu art. 6º, XV, delimita que a pes-quisa ou exploração de petróleo formam o “conjunto de operações ou atividades destinadas a avaliar áreas, objetivando a descoberta e a identificação de jazidas de petróleo ou gás natural”.

* Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora-bolsista pelo Programa de Recursos Humanos em Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (PRH-36) ANP no biênio 2012-2013.

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Já o inciso XVI do mesmo artigo aduz que lavra ou produção correspondem ao “conjunto de operações coordenadas de extração de petróleo ou gás natural de uma jazida e de preparo para sua movimentação”. As atividades então citadas compõem um setor específico da indústria de petróleo cuja dinâmica, quanto ao interesse público, aqui será analisada.

O presente artigo propõe-se, portanto, a analisar a presença do interesse público nesse setor, de forma a destacar se a intervenção estatal nele e a diferenciação do tratamento norma-tivo dado à Petrobras, em especial com a descoberta dos campos de Pré-sal, correspondem aos preceitos constitucionais.

Diante disso, inicialmente, cabe aqui analisar sucintamente o conceito de “interesse público”, de modo a esclarecer o que esse conceito representa na indústria do petróleo, desta-cando, ainda, quais ou qual interesse público procura-se defender nessa indústria.

Desde logo, enfatiza-se a dificuldade de conceituar o “interesse público” e que, aqui, não se pretende exaurir o conteúdo do referido conceito, mas, a presente pesquisa destina-se a, tão somente, delimitá-lo de forma a construir a ideia do que se pode entender por interesse público nas atividades de exploração e produção da indústria do petróleo nacional, de modo a identificar tais interesses nesse setor.

2 A INDÚSTRIA DE PETRÓLEO BRASILIERA E A INTERVENSÃO ESTATAL: A IMPORTÂNCIA DE UMA EMPRESA ESTATAL

Apesar de não ser o mercado mais importante da época, a Constituição de 19341, ao separar a propriedade do subsolo do solo, reservou ao Estado os direitos sobre os recursos mine-rais do subsolo, sendo possível haver concessão da exploração dessas riquezas aos particulares.

Somente com após a Revolução de 1930 e com a busca pela independência econômica, o petróleo passou a ser preocupação nacional (BERCOVICI, 2011, p. 91), passando o Estado a buscar a real efetivação do controle sobre seus recursos naturais e visando o desenvolvimento baseado no aproveitamento das riquezas do subsolo (MOURA, CARNEIRO, 1976, p. 169-172).

Cabe destacar que, até então, o combustível comercializado no Brasil era importado de refinarias norte-americanas e inglesas, de modo que o valor da gasolina oscilava de acordo com os interesses de cinco grandes empresas dessas nações. Para Bercovici (2011, p. 103), foram justamente as altas no preço da gasolina o fator essencial para que o abastecimento nacional de combustíveis fosse visualizado como um relevante problema nacional.

Assim, a distinção entre a propriedade do solo e do subsolo foi mantida na Constitui-ção de 1937, sendo na vigência dessa que surgiu a primeira norma que tratava exclusivamente sobre a indústria do petróleo: o Decreto-lei nº 395 de 29 de abril de 1938 declarava ser utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo2.

1 BRASIL. Constituição (1934) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1934.2 BRASIL. Decreto-Lei nº 395, de 29 de abril de 1938. Declara de utilidade pública e regula a importação, exportação, transporte, distri-buição e comércio de petróleo bruto e seus derivados, no território nacional, e bem assim a indústria da refinação de petróleo importado em

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Na mesma oportunidade, foi criado o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), que deve-ria assumir tripla função de (i) regular o setor de petróleo, (ii) formular a política nacional desse setor e (iii) executar diretamente a pesquisa no território nacional.

A primeira descoberta comercial de petróleo no país, em 21 de janeiro de 1939 em Lobato, Bahia, teve interferência direta do Governo Federal, com o auxílio do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

A ideia de monopólio nacional somente ganhou força durante a vigência da Consti-tuição de 19463, com o General Horta Barbosa em conjunto com o Centro de Estudo e Defesa do Petróleo, os quais desenvolveram a ideia da campanha “O Petróleo É Nosso”. Mais tarde, o presidente Vargas, ao voltar para a Presidência, continuou com a campanha e com a ideia de ampliar a intervenção estatal no setor.

Assim, Getúlio Vargas, em dezembro de 1951, enviou ao Congresso o Projeto de Lei nº 1.5164, recomendando a criação de uma sociedade por ações chamada “Petróleo Brasileiro S.A.”, a Petrobras.

Com base no princípio da indústria nascente5, a Lei nº 2004/1953 foi sancionada, crian-do a Petróleo Brasileiro S.A. - Petrobras, bem como instituindo o monopólio da União nas ati-vidades de exploração, produção, refino e transporte do setor de petróleo. A Petrobras nasceu como uma sociedade de economia mista, a qual cabia o exercício exclusivo do supracitado monopólio da União6

Como afirma Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 190-194), a sociedade de economia mista federal é uma pessoa jurídica dotada de personalidade jurídica de Direito Pri-vado, composta de recursos particulares e advindos de pessoas jurídicas de Direito Público ou de entidades da Administração indireta, devendo haver prevalência acionária com participação nos votos da esfera pública. Sua atuação está relacionada com ações e interesses estatais e é ne-cessária lei para autorizar sua criação. A intervenção estatal dava-se, então, fortemente através da Petrobras.

André Ramos Tavares (2011, p. 242) afirma que a criação de um monopólio estatal deve ser baseada na preservação ou na implementação do interesse público, e não objetivar meramente o lucro. Desse modo, afirma-se que a Petrobras, ao ser criada para exercer uma atividade monopolizada pela União, deve ter sua atuação voltada para satisfazer um ideal de

produzido no país, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 30 abr. 1938. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0395.htm#art4>. Acesso em: 09 abr.2014.3 BRASIL. Constituição (1946). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1946.4 4BRASIL. Projeto de Lei nº 1.516 de 1951. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 12 dez. 1951. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1951.pdf#page=58>. Acesso em 01 fev. 2014.5 “A racionalidade da nacionalização parece muito mais justificada pelo princípio da indústria nascente (construção da grande empresa nacional do petróleo para enfrentar os desafios necessários e fazer frente à ameaça potencial do capital estrangeiro) e pela percepção do caráter estratégico para a industrialização do país (a grande aspiração sociopolítica nacional) do que por motivação anti-imperialista” (TOLMASQUIM, PINTO JUNIOR, 2011, p. 248).6 BRASIL. Lei nº 2.004, de 3 de outubro de 1953. Dispõe sôbre a Política Nacional do Petróleo e define as atribuições do Conselho Na-cional do Petróleo, institui a Sociedade Anônima, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 04 out.1953. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L2004.htm>. Acesso em: 20 abr. 2015.

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interesse público.Ao ser criada, a Petrobras recebeu um patrimônio do CNP equivalente a US$ 165 mi-

lhões (cento e sessenta e cinco milhões de dólares), (SERPLAN/PETROBRAS, 1993, p. 3). O cenário do início de suas operações era caracterizado por ser restrito ao Recôncavo Baiano e corresponder a, tão somente, 2% (dois por cento) do petróleo processado no país, o que signi-ficava apenas 5% (cinco por cento) da demanda nacional (TOLMASQUIM, PINTO JÚNIOR, 2011, p. 246). Portanto, a Petrobras foi criada sendo incumbida de desenvolver o setor petrolífe-ro brasileiro (GUEDES, 2014).

O foco das atividades da Petrobras, em sua primeira década de existência, foi o de implantar o parque de refino no país (DIAS, QUAGLINO, 1993, p. 115-118). Com o passar dos anos e o desenvolvimento de suas atividades, a Petrobras pode, inclusive, galgar passos no mer-cado internacional de petróleo, competindo com diversas outras empresas. Diante dessa realida-de, não havia mais que se falar em “indústria nascente”, posto a força empresarial desenvolvida pela Petrobras.

Junto a isso, com a crise financeira brasileira em meados de 1980 e 1990, a manutenção do monopólio no setor foi perdendo sua justificativa econômica (FONTES, FONTES, 2013, p. 77). Assim, em 1988, a nova Constituição Federal7 prevê que é papel primordial do Estado atuar como agente normativo e regulador da atividade econômica, isto é, deve o Estado intervir na economia, mas não diretamente.

Pela redação da Constituição Federal, o Estado somente poderia explorar diretamente uma atividade econômica se previsto em texto constitucional ou definido por lei, desde que tal intervenção seja necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo.

O texto original dessa Constituição Federal previa o monopólio das atividades de ex-ploração e produção de petróleo no país, o qual deveria ser exercido por uma empresa estatal, vendo, inclusive, “ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural”.

Contudo, havia forte debate sobre o fim do monopólio exercido pela Petrobras, o que formou a apresentação, no governo de Fernando Henrique Cardoso, da proposta de flexibiliza-ção do monopólio da União sobre o petróleo, com base no argumento de insuficiência de recur-sos financeiros para se investir nas atividades de exploração e produção de petróleo e que fosse benéfico para Petrobras atuar em regime de concorrência com outras empresas8.

Mesmo após a Emenda Constitucional nº 09, de 09 de novembro e 1995, a qual alte-rou a redação do §1º do art. 177 da Constituição Federal, permitindo a contratação pela União de empresas estatais ou privadas para a realização das atividades de exploração e pesquisa de petróleo, a Petrobras continuou tendo a maior participação no setor e passou a ter significativa

7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.8 Adriana Campos (2007, p. 197) diz, ainda, que como consequência da atuação da Petrobras em regime de concorrência com outras empresas de petróleo, a estatal brasileira “não teria mais a responsabilidade de prover o abastecimento do mercado interno”.

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participação nos Leilões da ANP para concessão de blocos petrolíferos no país.A Lei nº 9.478/97 passou, então, a regulamentar a Emenda Constitucional nº 09/95,

permitindo, através da concessão, precedidas de licitação, as atividades de exploração, desen-volvimento e produção de petróleo e gás natural9.

As mais recentes alterações no marco regulatório da indústria do petróleo nacional ocorreram após o descobrimento e viabilidade de exploração das então chamadas de “camadas do Pré-sal”. Tais alterações ocorreram no sentido de ampliar a intervenção estatal nas atividades de exploração e produção dessa indústria, inclusive, com a criação de nova empresa estatal, a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) pela Lei nº 12.304 de agosto de 2010.

Ademais, a Lei nº 12.351, de dezembro de 2010, instituiu o regime de partilha da pro-dução para os contratos de exploração e produção de petróleo em campos do Pré-sal e em áreas consideradas estratégicas pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE10.

As novas leis destinadas à regular as atividades de exploração e produção de petróleo após a descoberta do Pré-sal garantem, assim, maior possibilidade de intervenção estatal no setor, bem como dão maior relevância a empresa estatal, Petrobras, já essencial para o desen-volvimento do setor desde a sua criação.

3 O CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO NA DOUTRINA: BREVE ANÁLISE

Deve-se ter em mente que o conceito de interesse público11 pode admitir diferentes entendimentos em função do “módulo constitucional” em que é encontrado (RODRÍGUEZ-A-RANA MUÑOZ, 2006, p. 13-14).

Desse modo, atualmente, os parâmetros de aferição do que é interesse público devem ter por base os princípios informadores do Estado Democrático de Direito (RODRÍGUEZ-A-RANA MUÑOZ, 2010 citado por CRISTÓVAM, 2013, p. 10), o que induz a assertiva que o interesse público, na realidade constitucional brasileira, deve ter como pilar os fundamentos

9 “Art. 23 As atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida nesta Lei, ou sob o regime de partilha de produção nas áreas do pré-sal e nas áreas estratégicas, conforme legislação específica”. Brasil. Lei 9.478/97. Dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 6 ago. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9478.htm>. Acesso em: 09 maio 2013.10 BRASIL. Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010. Dispõe sobre a exploração e a produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, sob o regime de partilha de produção, em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas; cria o Fundo Social - FS e dispõe sobre sua estrutura e fontes de recursos; altera dispositivos da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 23 dez. 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12351.htm>. Acesso em: 14 abr. 2014.11 Cabe destacar que parte da doutrina recente afirma que o princípio da supremacia do interesse público vem sendo repensado ou, até mesmo extinto. Neste trabalho, concorda-se com a professora Marina de Siqueira (2012, p. 16), no entendimento que a extinção do referido princípio parece incompatível com lógica de existência do Direito Administrativo, mas que repensar seu conceito parece ser razoável e coerente com as atuais diretrizes neoconstitucionalistas.

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previstos no art. 1º da CF/8812-13, bem como nos direitos e garantias fundamentais (art. 5º da CF/88), diante de sua importância para concretização do Estado Democrático de Direito14.

O interesse público, de forma ampla, pode ser visto, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 60,) como “a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado)”. Para o referido autor (2012, p. 59-62), não é verídico o antagonismo entre os interesses das partes e do todo, de modo que o interesse do todo não pode estar desvinculado dos interes-ses das partes que o compõe, sob pena de se concluir que o “bom para todos fosse o mal para cada um” (MELLO, 2012, p. 60).

Nessa perspectiva, deve-se inferir: mesmo que um interesse público seja contraposto a um interesse particular de um dado indivíduo, enquanto membro do corpo social, este mesmo indivíduo, visto como componente de uma coletividade, pode estar de acordo com aquele inte-resse público.

Utilizando-se o exemplo de Celso Antônio (2012, p. 61), explica-se: ainda que nenhum indivíduo tenha interesse em ser desapropriado, todos os indivíduos são favoráveis à existência do instituto da desapropriação, o qual pode ser utilizado em prol da sociedade na construção de ruas, estradas, etc. Assim, depreende-se a noção de que o interesse público é composto por interesses pessoais em comum de indivíduos enquanto considerados parte de uma coletividade, membros de uma sociedade.

Diante da referida compreensão sobre o conceito de interesse público, Marçal Justen Filho (2009, p. 62) alerta que não se deve conceber interesse público como o interesse da socie-dade, esta entendida como “mero somatório dos indivíduos”, tendo em vista a natureza antide-mocrática desta compreensão.

De igual modo, defende este autor (2009, p. 64) que não se deve, contudo, simplificar o entendimento do referido conceito a ideia de que o interesse público seria o interesse comum e homogêneo da maior parte da população, sob pena de se justificar a opressão e desqualificar interesses titularizados por minorias (OLIVEIRA, 2006, p. 237).

É preciso, portanto, que o conceito de interesse público seja, como proposto inicialmente, em conformidade ao entendimento de Rodríguez-Arana Muñoz, alicerçado nos fundamentos do Estado Democrático de Direito, estando, dessa forma, em consonância aos valores constitu-cionalmente defendidos.

Dessa forma, defende-se o conceito proposto por Celso Antônio, de que o interesse público é a dimensão pública dos interesses pessoais dos indivíduos enquanto partícipes da

12 Lembra-se que o Estado Democrático de Direito brasileiro tem como fundamento: “I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”.13 Entendendo “princípios informadores” como aqueles que constituem o alicerce de um instituto ou ramo do direito, depreende-se que os princípios informadores do Estado Democrático de Direito brasileiro, com base no próprio texto constitucional vigente, seriam aqueles considerados como fundamentos para a existência de tal Estado, segundo o art. 1º da CF/88.14 Da mesma forma afirma Gustavo Binembojm (2998, p. 49): “representando a expressão jurídico-política de valores basilares da ci-vilização ocidental, como liberdade, igualdade e segurança, direitos fundamentais e democracia apresentam-se, simultaneamente, como fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito” (grifos nossos).

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Sociedade15, mas, enfatiza-se que tais interesses tem como base os fundamentos do Estado De-mocrático de Direito e nos direitos fundamentais.

Em relação à intervenção do Estado na economia, merece atenção o que afirma Calixto Salomão (2008, p. 23), ao entender que “a definição de interesse público é multifacetada – ora política, ora econômica”, de forma que não se pode tê-la de maneira precisa, sendo devido a tal dificuldade a sua importância através do desenvolvimento jurídico.

Ainda assim, o autor (2008, p. 194) aduz que a noção de interesse público deve ter relação com a ideia de povo, sendo, portanto, o interesse da coletividade, estando, por isso, em conformidade com a ideia proposta por Celso Antônio. Diante disso, não se procura aqui um conceito cristalizado, mas uma noção do que é o interesse público, de forma a delimitá-lo e verificar sua existência no caso concreto.

Necessário destacar, ainda, que apesar de o Estado ser legitimado para a realização dos interesses públicos (MELLO, 2012, p. 66-67), nem todo interesse estatal corresponde a um interesse público, uma vez que, sendo pessoa jurídica, o Estado pode ter interesses que lhe são particulares, assim como as demais pessoas jurídicas16. Deve-se ter em mente que, apesar disso, o Estado somente poderá defender seus interesses privados quando a realização destes não for contrária aos interesses públicos “propriamente ditos” (MELLO, 2012, p. 67).

Nesse ponto, é possível diferenciar o interesse público primário do secundário. Segun-do Luís Roberto Barroso (2009, p. 581-590), enquanto o interesse público primário tem referên-cia nos anseios sociais, de forma a ser reconhecido como “a razão de ser do Estado”, sintetizan-do os fins que a ele cabem promover; o interesse público secundário é aquele próprio da pessoa jurídica de direito público, é, pois, o interesse privado do Estado17. Neste trabalho, trata-se com maior frequência do interesse público primário, havendo explicações caso seja abordado sobre o interesse público secundário.

Importante, ressaltar, assim, que o interesse público pode ser compreendido, sucinta-mente, como o ponto em comum entre os vários interesses públicos e privados, que convergem e se tornam a perspectiva pública das vontades privadas dos indivíduos que compõem uma sociedade. Ou seja, pode ser entendido como o ponto de afluência entre os direitos privados de membros de uma sociedade, ganhando caráter público e, devendo ser, por isso, providos pelo Estado.

15 Assim também entende Rosseau (1973 citado por BORGES, 2007, p. 08) que entende interesse público como “vontade geral” e defende que “só a vontade geral pode dirigir as força do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição que é o bem comum. [...] O que existe de comum nesses vários interesses [públicos e privados] forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que todos os interesses con-cordassem, nenhuma sociedade poderia existir”. Com isso, infere-se que a vontade corresponde às vontades individuais dos que formam uma sociedade.16 No mesmo sentido defende Marçal Justen Filho (2009, p. 60), o qual ainda aduz que “o interesse público não pode ser de titularidade do Estado, mas é atribuído ao Estado por ser público”. De igual modo, José Roberto Pimenta Oliveira (2006, p. 237) sustenta que “nem todo interesse do Estado tem, pois, o condão de revelar m interesse público”.17 O referido autor alude ainda que “em ampla medida, [o interesse público secundário] pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas”.

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4 INTERESSE PÚBLICO E A INTERVENÇÃO ESTATAL NAS ATIVIDADES DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO

Deve-se perceber, diante do então exposto, que há interesses públicos diversos a serem defendidos pela atuação Estatal. Cabe aqui destacar qual interesse é defendido com o aumento da intervenção estatal nas atividades de exploração e produção da indústria do petróleo, espe-cialmente, com as Leis nºs 12.351/2010 e 12.304/201018.

Relembra-se, por oportuno, que desde a sua origem, a Petrobras é uma empresa de sociedade de economia mista, tendo, portanto, o Estado como seu acionário principal. O art. 173 da Constituição Federal aduz que o Estado somente poderá exercer diretamente atividade econômica, como a exploração e produção de petróleo, em duas hipóteses: uma seria o caso de necessidade conforme imperativos de segurança nacional, a segunda tem como base o relevante interesse coletivo, o qual pode se equiparar ao interesse público (BONFIM, 2011, p. 66)19.

Diante disso, é possível compreender que a justificativa da criação da Petrobras se deu com base no interesse público. Por consequência, como sociedade de economia mista, represen-tando a intervenção direta do Estado nas atividades econômicas de exploração e produção de petróleo, a Petrobras deve atuar, também, com foco no interesse público, não levando em conta, somente, seus interesses particulares – o que ocorre com maior parte das outras empresas que atuam nas atividades em questão.

Mas, afinal, qual seria o interesse público que justifica a intervenção estatal sobre e nas20 atividades de exploração e produção de petróleo?

Necessário recordar que a intervenção estatal na indústria petrolífera começou a ser intensificada por volta de 1934, com o governo Vargas, tendo como objetivo primordial garantir o abastecimento nacional de combustível, o que possibilitaria o maior desenvolvimento econô-mico nacional, tendo em vista que com tal garantia interferiria diretamente em vários setores da economia brasileira, desde a cadeia produtiva industrial, passando por toda a rede de transporte, bem como pela utilização doméstica21, que se aprimorava na época.

A questão do abastecimento interno de petróleo é importante para um Estado, espe-cialmente, pelo fato de ele ser o principal insumo que move a produção industrial, como tam-bém por ser, internacionalmente, reconhecido como principal fonte de energia22 (ROOS, 2013,

18 BRASIL. Lei nº 12.304, de 24 de agosto de 2010. Autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) e dá outras providências. Diário Oficial [da] Repúbli-ca Federativa do Brasil, Brasília, 25 ago. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12304.htm>. Acesso em: 15 maio 2014.19 No mesmo sentido Emerson Gabardo em “Interesse público e subsidiariedade” (2009, p.227).20 Destaca-se que o Estado tanto regula as atividades do upstream da indústria do petróleo, quanto atua diretamente, através da Petro-bras.21 Para mais informações sobre a relevância do petróleo na sociedade atual, acessar o documentário: PETRÓLEO, combustível da vida moderna. Direção de Marcelo Bauer. [S.I.]: Cross Content, 2011. Disponível em: <http://www.webdocumentario.com.br/petroleo/>. Acesso em: 30 mar. 2014.22 Nesse sentido o autor (ROOS, 2013, p. 16) é claro ao afirmar que “a indústria do petróleo produz insumo básicos e de grande im-portância na estrutura produtiva de economias capitalistas. Desse modo, possui grande peso na matriz insumo-produto [...]. O petróleo é utilizado economicamente como insumo energético, através de seus combustíveis derivados, e também como um intermediário amplamente difundido na indústria química”.

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p. 16). Conforme documento produzido pela Agência Internacional de Energia (AIE, 2012, p. 08), o acesso à energia continua sendo uma questão fundamental para os Estado e, apesar das novas políticas e do desenvolvimento mundial, o petróleo continua sendo a fonte mais utilizada.

Desse modo, o acesso às fontes de petróleo deve ser reconhecido como uma importan-te variante na determinação do nível de crescimento e desenvolvimento de uma economia, no-tadamente por energia e transporte serem insumos essenciais à produção (ROOS, 2013, p. 16).

Os maiores exemplos da importância das fontes de petróleo para um Estado são vistos em marcos históricos da sociedade recente, como a Crise do Petróleo em 197323, e o caos instau-rado devido à exorbitante elevação no preço do barril de petróleo24, principalmente, nos países cuja indústria já era desenvolvida.

Outro exemplo histórico foi o ataque norte-americano ao Iraque em 2003, que, mesmo tendo sido apresentada outra justificativa para o referido ataque, tal atitude colocou o petróleo em pauta como uma preciosa fonte de interesse do governo norte-americano (ROOS, 2013, p. 39).

O acesso às fontes de petróleo, portanto, constitui uma questão da geopolítica interna-cional recorrente. O mercado do petróleo sofre interferências constantes e diretas das relações internacionais, a própria AIE (2012, p. 02) é clara ao afirmar que “nenhum país é um ‘ilha’ em matéria de energia”.

Inclusive, importante esclarecer que geopolítica “refere-se à combinação de fatores geográficos e políticos que determinam a condição de um Estado ou região, enfatizando o im-pacto da geografia sobre a política” (BRZEZINSKI, 1986 citado por EBRAICO, 2006, p. 35). Aqui, o fator geográfico em questão é a jazida de petróleo, cuja a existência num dado Estado interfere diretamente em suas relações econômicas internacionais.

Assim, diante da essencialidade desse bem para o desenvolvimento de uma nação, os Estados tendem a tentar diminuir a dependência externa do petróleo, sendo uma das soluções encontradas a dominação estatal dos reservatórios de petróleo através de empresas nacionais25, como a Petrobras.

Então, reduzir a dependência externa no mercado mundial de petróleo significa garan-tir à nação o suprimento de energia e combustível (principalmente) suficiente, contínuo e que cujo valor seja razoável (EBRAICO, 2006, p. 39). A necessidade do suprimento suficiente e con-tínuo decorre da essencialidade do petróleo para desenvolvimento econômico26 e social de uma nação, já que este bem constitui, como já explanado, insumo imprescindível a cadeia produtiva e ao uso doméstico (tanto nos objetos pessoais que o petróleo faz parte da composição quanto

23 John V. Mitchell (1997 citado por RODRIGUES DA SILVA, 1998, p. 06) enfatizou que uma das mais fundamentais liberdades de um Estado é ter a soberania de tolher restrições estrangeiras, sendo essa liberdade que o embargo árabe de 1973 tentou ameaçar.24 Segundo Roos (2013, p. 27) o preço do barril de petróleo passou de US$ 3 para US$ 12 em três meses.25 Estudos informam “que mais de 80% dos reservatórios de petróleo do mundo estão sobre o controle direto dos governos e de suas empresas nacionais de petróleo” (YERGIN, 2010 apud ROOS, 2013, P. 39).26 Entende Bercovici (2005, p. 45) que o desenvolvimento econômico nacional deve ser visto como “um processo de mudanças endógenas da vida econômica, que alteram o estado de equilíbrio previamente existente”. Isto é, não é mero crescimento quantitativo, mas deve haver alteração iniciada internamente numa sociedade e capaz de repercutir em diversos campos.

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como fonte de combustível de transportes de uso diário). A necessidade do seu valor ser razoável advém da grande quantidade de petróleo uti-

lizada diariamente por uma Estado27, fazendo com que a receita deste bem seja expressiva na economia nacional, de modo que um aumento exacerbado em seu valor pode gerar uma crise econômica num determinado país. No Brasil, por exemplo, segundo a ANP (2012, p. 03), houve expressivo aumento do consumo de derivados de petróleo no período de 2000 a 2011, chegando, em 2012, a consumir cerca de 64 mil barris de petróleo por dia (ANP, 2013, p. 32), de modo que qualquer alteração expressiva no preço do barril iria repercutir na balança comercial do país.

Diante do apresentado, o interesse público defendido na indústria do petróleo é o de-senvolvimento econômico nacional, que deve ser diferenciado do crescimento, uma vez que este constitui mero aumento quantitativo, enquanto desenvolvimento “pressupõe sempre a ocor-rência de mudanças que surjam de dentro para fora do sistema” (RISTER, 2007, p. 18). Ainda, é preciso ter em mente que a concepção de desenvolvimento pode ser caracterizada por três dimensões, com base nos ensinamentos de Celso Furtado (2000, citado por RISTER, 2007), fa-zendo referência ao aumento da eficácia do sistema de produção, à satisfação das necessidades básicas da população, e a realização de aspirações de grupos sociais.

Ante a apresentação de tais dimensões, é possível inferir a necessidade do petróleo, como principal fonte de energia da sociedade atual, para que seja impulsionado o desenvolvi-mento de uma nação, tendo em vista que ele, ao mover indústrias, transportes e, até mesmo, a vida cotidiana dos indivíduos, está diretamente ligado à eficácia do sistema de produção e às necessidades básicas da sociedade.

Cabe destacar, ainda, que o desenvolvimento pode ser entendido como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (SEM, 2000, p. 17), sendo as liber-dades humanas o fim primordial e o meio principal do desenvolvimento (SEM, 2000, p. 52), daí a importância de preservar e perseguir formas de garantir tal desenvolvimento.

A garantia do desenvolvimento nacional aqui vista como o interesse público defendido nas atividades de exploração e produção de petróleo pode ser relacionado, especialmente, com a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e os valores do trabalho e da livre inicia-tiva, reconhecidos como fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, como já afirmado. Explica-se.

A soberania nacional, vista sob seu viés econômico (enfatizado no art. 171, I, da Cons-tituição Federal), pode ser compreendida, em apertada síntese, como a “preferência por um de-senvolvimento nacional” (TAVARES, 2011, p. 140), não sendo absoluta, mas como uma forma de preservar a autodeterminação do Estado no campo econômico, de forma que este possa se relacionar com outros Estados e empresas sem a intromissão de entidades financeiras interna-cionais.

Nesse passo, o mercado internacional de petróleo pode gerar forte dependência esta-

27 Conforme dados da ANP (2013, p. 32) o consumo mundial de petróleo chegou a quase 90 (noventa) milhões de barris por dia.

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tal em relação às multinacionais produtoras – que controlam o preço do barril do produto-, de forma que a amenização da dependência do preço internacional do petróleo, através das ações estatais, constitui forma de preservar a soberania econômica de um país.

A dignidade da pessoa humana28, os valores sociais do trabalho29 e da livre iniciativa30 possuem íntima relação na abordagem apresentada, uma vez que, sendo o petróleo insumo im-portante, como já ressaltado, para a cadeia produtiva e para a vida cotidiana dos indivíduos, a garantia mínima de sua produção possibilita e fortalece a produção industrial num país, dando margem, assim, para que os referidos princípios e postulados sejam efetivados.

Ora, partindo de um raciocínio lógico, percebe-se que sem a possibilidade de desen-volvimento de qualquer atividade empresarial num Estado, há pouco espaço para o progresso da livre iniciativa. Sendo rudimentar o mercado desse Estado, com poucas possibilidades de geração de relações de trabalho, a exploração do trabalhador pode ocorrer com maior frequên-cia, sendo o valor social do trabalho avariado. Com isso, a dignidade da pessoa humana será dificilmente resguardada.

Dessa maneira, a intervenção estatal nas atividades de exploração e produção de pe-tróleo sempre esteve ligada à garantia do abastecimento interno de petróleo, a qual, por sua vez, relaciona-se com o desenvolvimento econômico nacional, reconhecido, aqui, como interesse público, comum a todos os indivíduos que compõe a sociedade brasileira.

Não é que a existência de fontes de petróleo em uma nação e a apreensão destas pelo Estado irá garantir o pleno desenvolvimento econômico de uma nação, mas o eficaz aprovei-tamento destas fontes pode assegurar ao Estado poder de barganha no mercado internacional, de modo a proporcioná-lo a possibilidade de efetivar e intensificar sua autodeterminação e sua soberania interna. Havendo, pois, essa vantagem geográfica numa nação, mais importante do que o seu simples apoderamento é seu eficiente aproveitamento.

A intervenção estatal faz-se importante nesse setor diante do baixo grau de confiabili-dade na iniciativa privada de que o desenvolvimento nacional será o interesse primordial dessa atividade até mesmo em prejuízo à obtenção desenfreada de lucros que corroboram, somente, com o crescimento econômico. Segundo Aguilar (2009, p. 255), o grau de concentração regu-latório dá-se, justamente, diante de maior ou menor confiança do Estado “em que os interesses públicos serão alcançados mediante outorga de liberdade à iniciativa privada”.

28 Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves (2010, p. 125) “serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida hu-mana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais, inclusive) mínimos para que possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade. Ou, ainda nas palavras dos autores (2010, p 127), a dignidade da pessoa humana “expressa uma gama de valores humanizadores e civilizatórios incorporados ao sistema jurídico brasileiro”.29 Segundo José Afonso da Silva (2009, p. 764), “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado”, ou seja, como forma de preservar a dignidade da pessoa humana na relações de trabalho, a constituição, mesmo preservando a economia de mercado, cuida em proteger o trabalhador, destacando seu valor social.30 Para André Ramos Tavares (2011, p. 234), a livre iniciativa representa a consagração constitucional da economia de mercado, revelan-do “a adoção política da forma de produção capitalista”. Complementa, afirmando (2011, p. 235) que a liberdade de iniciativa não deve ser entendida somente como liberdade econômica, mas também, como liberdade de desenvolvimento de empresa, “assumindo todas as demais formas de organização econômicas”. Ainda, tal princípio impõe a não intervenção estatal, “que só pode se configurar mediante atividade legislativa que, acrescenta-se, há de respeitar os demais postulados constitucionais e não poderá anular ou inutilizar o conteúdo mínimo da livre-iniciativa”.

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O papel da Petrobras, nesse cenário, incialmente, foi o de atestar ao Estado a proprie-dade das jazidas de petróleo e gás natural, tendo, assim, a atribuição de ampliar e aperfeiçoar a indústria petrolífera no país, visando, também, a redução da dependência externa do produto (relembra-se que o mercado de combustíveis nacional, por volta de 1930, era dominado e guiado por interesses de multinacionais).

Como visto, a estatal brasileira cumpriu sua função e a indústria brasileira evoluiu. Ocorreu que, ainda assim, o completo monopólio nas atividades de exploração e produção de petróleo mostrou-se não acompanhar a expansão do consumo nacional, dessa forma, ainda sem consolidado aparato normativo foram possibilitados os contratos de risco. Posteriormente, o monopólio foi mitigado constitucionalmente, e empresas internacionais puderam concorrer e participar dessas atividades. As atividades de exploração e produção continuaram em expansão, bem como a Petrobras, que passou a atuar internacionalmente, sendo uma empresa reconhecida não apenas no Brasil.

Com a descoberta do Pré-sal e a possibilidade tecnológica de explorá-lo, o Brasil pas-sou a ter maior relevância na geopolítica do petróleo (REIS, 2013, p. 03), não garantindo a com-plementa autossuficiência, mas adquirindo a possibilidade de melhor comercializar no mercado internacional. Em decorrência disso, depreende-se que há proteção do interesse público aqui em destaque.

Contudo, ressalta-se, por fim, que a intervenção estatal na defesa desse interesse públi-co não pode ir plenamente contra os demais preceitos constitucionais (como o da livre concor-rência e o da isonomia, por exemplo), esvaziando-os.

Por isso, a importância da ponderação: se o legislador optou por mitigar o monopólio das atividades de exploração e produção de petróleo, deve, pois, respeitar o ordenamento pátrio referente às atividades econômicas, não desrespeitando por completo outros princípios consti-tucionais em prol do interesse público que cerca o setor em comento.

Entende-se, pois, que não há esse completo desrespeito, havendo a mitigação de prin-cípios como o da livre concorrência em detrimento da preservação do interesse público de de-senvolvimento econômico através da garantia de abastecimento interno de petróleo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As atividades de exploração e produção da indústria de petróleo, especialmente, a partir de 1934, podem ser caracterizadas como uma aérea de forte intervenção estatal, seja atra-vés do completo exercício do monopólio das atividades desse setor pela União, seja através da regulação e da forte atuação da empresa estatal, a Petrobras.

Inclusive, a importância dessa empresa estatal no setor é tamanha que a sua história está entrelaçada e se confunde com o desenvolvimento do setor. Destaca-se que a atuação da empresa estatal é fundamental para que os ganhos advindos nas atividades de exploração e produção da indústria de petróleo sejam repassados a toda a sociedade.

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Do estudo apresentado, infere-se que, de forma simples, é possível entender interes-se público como a convergência entres os direitos privados comuns aos indivíduos enquanto membros de uma sociedade e que tais interesses devem ser não somente resguardados, mas, também, promovidos pelo Estado.

Por oportuno, destaca-se que a presente pesquisa destinou-se a destacar qual seria o interesse público alegado pelo Estado que o faz, desde 1934, apresentar justificativas para in-tervir numa atividade econômica, a exploração e produção de petróleo em território nacional.

Aplicando, nas atividades de exploração e produção da indústria de petróleo, os con-ceitos doutrinários então analisados sobre o que seria “interesse público”, compreende-se que o Estado, ao intervir nesse setor, objetiva resguardar o desenvolvimento econômico nacional que está diretamente relacionado à garantia do abastecimento interno de petróleo.

Tal desenvolvimento econômico pode ser visto como o desenvolvimento de atividades empresariais, de gerações de trabalhos e afins, o que pode ser facilmente entendido como inte-resse dos indivíduos que compõem a sociedade brasileira. Assim, o eficaz aproveitamento das fontes de petróleo nacionais pode, como explicado, favorecer o poder de barganha do Estado no mercado internacional, corroborando para o abastecimento interno de petróleo.

Ademais, foi esclarecido que a intervenção estatal no setor é importante devido ao baixo grau de confiabilidade de que iniciativa privada por si só irá preservar o abastecimento interno em detrimento da obtenção desenfreada de lucros.

Desse modo, enfatiza-se que as atividades de exploração e produção de petróleo, as quais podem ensejar no eficaz aproveitamento das fontes de petróleo nacional, contribuindo para garantir o abastecimento interno, merecem a atenção do Estado, por estarem ligadas ao desenvolvimento econômico nacional, o qual é caracterizado como interesse público, por ser algo valioso aos indivíduos enquanto membros da sociedade brasileira.

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PUBLIC INTEREST LIMITS IN UPSTREAM OF OIL INDUSTRY AND THE IM-PORTANCE OF A STATE-OWNED COMPANY

ABSTRACT: This research analyzes the concept of public interest. Also this article deals with the history of the most important state-owned company in the upstream oil industry and emphasizes the importance of this state-owned, Petrobras. Examines the state intervention in this sector and what is meant by public interest. The article concludes which public interest is present in the upstream oil industry.Keywords: Brazilian oil industry. Public Interest. Upstream.

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Recebido em 08 fev. 2015Aceito em 30 abr. 2015

JUIZ, FORMA E SUBJETIVIDADE: A IDEOLOGIA COMO IMPOSIÇÃO NA APLICAÇÃO DA PENA BASE

Indalécio Robson Paulo Pereira Alves da Rocha*

RESUMO: O presente texto tem por objeto a essência do art. 59 do Código Penal Brasileiro, relacionando a aplicação da pena base com uma problemá-tica de ordem subjetivista judicial. O tema adquire maior conotação ao passo que se relaciona com questões de interferências midiáticas, condições sociais modernas líquidas ou hipermodernas; com o mal estar e o medo social. A pesquisa teve cunho qualitativo, com abordagem dada igualmente, respalda-do pelo método dedutivo. Percebem-se influências ideológicas em aspectos de subjetividade judicial, sendo que os que figuram nesta função deveriam apresentar postura com maior contundência perante imposições dessa ordem. Palavras-chave: Subjetividade. Aplicação. Influências Ideológicas. Contun-dência.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto de estudo a aplicação da pena base em vista do art. 59 do Código Penal brasileiro, correlacionada com a temática da subjetividade e motivação judicial. Ainda, leva-se em consideração, neste sentido, o questionamento sobre a credibilidade da investidura na função judicial realizada por meio de concursos públicos que não cobram os subsídios propedêuticos necessários para consolidada postura jurisdicional. Baseiam-se essas temáticas num contexto de problemática institucional e epistemológica.

Primeiramente, cabe conceituar e dar corpo textual, brevemente, ao art. 59 do Código Penal brasileiro. Traçar objetivamente sua contextualização histórica, bem como, explanar a de-

* Acadêmico da 5ª fase de Direito do Centro Universitário Católica de Santa Catarina em Joinville. E-mail: [email protected]

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finição de circunstâncias judiciais, fazem-se necessários para melhor entendimento do trabalho. Nesse sentido, dá-se percepção à possibilidade de exercício da subjetividade judicial.

Num segundo momento, trata-se de elencar a problemática da aplicação da pena. Se o art. 59 promove maior objetividade e delimita a condenação, a qual já ganhou grandes contor-nos no enquadramento do modelo tipificado, a subjetividade judicial deverá individualizá-la ao caso concreto. Consequentemente, se espera que o juiz promova a adequação necessária para punir de forma justa o agente delituoso em sua especificidade. Isso em virtude da individuali-zação da aplicação da pena, instituto fundado por necessidades históricas, observando princípio que recebe mesmo nome.

Contudo, ao tratar-se de subjetividade, se discorre acerca de uma questão epistemoló-gica antiga, a qual remonta à problemática do sujeito-objeto. Nesse diapasão, tecem-se reflexões à aplicação da pena em virtude de uma subjetividade judicial pouco consolidada. Atenta-se que não se discute a legitimidade da possibilidade discricionária judicial, qual não é objeto do presente texto. O que se pretende, é sim, refletir sobre como pode ser dada a aplicação da pena e que incidências podem ocorrer em virtude da função jurisdicional e sua subjetividade.

Vê-se que, ao falar sobre consolidação subjetiva, pode-se incorrer em dúvidas. O que se quer referir é uma contundente, solidificada e prostrada subjetividade no sentindo de capa-cidade de reflexão do juiz na função jurisdicional. Tem-se que a reflexão poderia acrescentar numa posição mais solidificada do juiz.

Sem querer cair em paradoxos, foge-se da questão de representatividade da soberania popular em virtude da aplicação estritamente legal feita pelo juiz. Esta, condizente com a ver-tente formalista do Direito Penal, fruto do processo legislativo executado por representantes do povo, não é objeto do presente texto. Não se discute também a legitimidade da soberania po-pular e a sua existência, mas sim, influências que um populismo jurídico pode ter na aplicação da pena.

Nessa seara, cabe advertir que ao populismo jurídico acrescenta-se a ideia do senso comum jurídico, partilhado pela coletividade forense de uma possível classe média intelectual do Direito. Ao presente trabalho, equiparam-se senso comum e populismo jurídico. Talvez, ambas as condições de pensamento compartilhem de um mesmo medo, qual se apresenta como um tipo de caracterização da modernidade líquida ou, como consideram alguns, da Idade Hi-permoderna.

Cotejando-se a relação entre o dispositivo penal do art. 59 e as circunstâncias judiciais por ele apresentadas, bem como a subjetividade jurisdicional dada em caráter de aplicação da pena, objetivou-se a reflexão antes de tudo.

2 PENA BASE – ART. 59 E OS CRITÉRIOS DE DELIMITAÇÃO OBJETIVA DA PENA

Se no período medieval as penas eram arbitrárias e caracterizavam o Direito Penal como um instrumento de aplicação de penas sem limites, é no período moderno, principalmente

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no pós-iluminismo, que se consubstanciou a ideia da pena fixa. Nesse viés, o arbítrio judicial que era predominante na Idade Média caiu e começou-se a estabelecer limites para as sanções, reservando-se nas penas em estrita legalidade. Foi contra esse arbítrio judicial da aplicação da pena que se ergueu o princípio fundamental da legalidade, pois os juízes medievais representa-vam um dos maiores males do Direito Penal.

Foi nessa perspectiva de limitação da pena, que se iniciou o movimento liderado por Beccaria (2012, p. 30), que buscava na extrema legalidade a fundamentação do Direito Penal, cabendo ao juiz, a simples aplicação da norma penal sancionadora, deixando-se de lado até mesmo sua interpretação (ou, ao menos se tentava).

Dialeticamente falando, o movimento da história geralmente apresenta-se em uma ten-são de dois polos (tese e antítese) até que se chegue num meio termo (síntese). De tal forma se sucedeu com relação à aplicação das penas. Se na Idade Média a pena era aplicada arbitraria-mente, na Idade Moderna a rigidez do princípio da legalidade atrelada àquele instituto desvela a precariedade de um sistema positivista rígido. Não se sustentou então a extrema positividade da inserção da sanção, a qual ganha exemplificação no Código Penal Francês de 1791, que previa a mera aplicação mecânica do texto legal, mas que em momento não muito distante do século XVIII, flexibilizaria tal posição.

Nesse sentido se apresentou a fragilidade da inflexibilidade da aplicação penal. Deu-se conta cedo que “se a indeterminação absoluta não era conveniente, também a absoluta determi-nação não era menos inconveniente” (BITENCOURT, p. 766, 2013). Em ambos os momentos perdeu-se em quesitos de Direitos Fundamentais. No primeiro, o arbítrio judicial incidia direta-mente contra a dignidade humana ao passo que no segundo, a impossibilidade de ajustamento ou adequação da pena revelava o prejuízo da rigidez mecânica da aplicação normativa, con-substanciando ao sentenciado uma pena injusta.

Como já exposto, a dialética que é própria da história se apresenta inicialmente sobre uma tensão. Nesse caso ocorreu igualmente, pois se constatou a necessidade de relativa adap-tação da aplicação da pena. Não se atendo somente ao arbítrio do juiz, bem como não sendo determinada absolutamente pela simples aplicação mecânica de ordenamento jurídico positivo, desvelou-se a possibilidade de uma dosagem da pena. Dessa forma, deu-se grande crédito ao livre sopesamento judicial, qual foi previsto no Código Penal Francês de 1810.

Nesse diploma, existiam limites mínimos e máximos que possibilitavam a dosagem da pena, abrindo-se a adaptação entre a arbitrariedade e a estrita determinação positiva. A esse surgimento histórico, instituto do Direito Penal, chamou-se de individualização da pena, o qual revela estreita relação com o principio fundamental que recebe mesmo nome.

Essa diretriz ocorre em três momentos distintos, os quais são chamados de processo de individualização legislativa da pena, individualização judicial da pena e individualização executória da pena. A primeira está relacionada com a tipificação legislativa de fatos e condutas. A segunda, por sua vez, é pertinente a elaboração da sentença feita pelo juiz qual, através de cri-térios, apresenta a dosimetria da pena, sendo sua a aplicação concreta a culminante do processo

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de individualização legislativa A terceira está relacionada com a execução da pena já formula-da, ou seja, seu cumprimento. (BITTENCOURT, 2013, p. 599). Inicialmente, é importante diferenciar elementares do crime de circunstâncias do crime, pois estas serão cruciais para a individualização judicial da pena. O Direito Penal, em função do princípio da legalidade, pode punir somente condutas ou fatos tipificados em lei. Isso se resume em dizer que deve existir um tipo penal específico para cada conduta ou fato ilícito. Os fatores que integram o tipo penal são chamados de elementos essenciais do tipo penal, ou “elementos essenciais constitutivos do delito” (BITTENCOURT, p. 767, 2013). Os elementos (ou elementares) do crime por sua vez, são os “dados, fatos, elementos e condições que integram determinadas figuras típicas”. (BIT-TENCOURT, p. 767, 2013).

Elementos essenciais do tipo é uma parte que configura o tipo penal. Como a própria denominação esboça, trata-se da parte essencial ou substancial do tipo penal. Entretanto, a fi-gura típica pode receber colaboração de outros itens que não previstos expressamente em lei, os quais não alteram a substancia ou a essência do tipo penal, mas, que incidem na dosagem da pena. A essa possibilidade de levar em consideração itens que circundam os tipos penais, deu-se o nome de circunstâncias do crime. Por não serem circunstanciais que alteram substancialmente a estrutura do tipo penal, recebem a característica de acidental, pois não alteram a existência do tipo, influindo tão somente na medida final (dosagem) da pena (BITTENCOURT, 2013, p. 598).

As circunstancias do crime, segundo Aníbal Bruno (citado por BITTENCOURT, 2013, p. 588), são itens, fatos ou condições assessórias do tipo penal, que o acompanham, mas não penetram em sua estrutura conceitual, sendo assim diferenciados dos elementos essenciais constitutivos do crime. As circunstâncias são algo exterior à figura típica, que redundará e se acrescentará ao crime já configurado, o qual representará condições de possibilidade de valora-ção com maior ou menor grau de reprovabilidade de conduta ou do fato ilícito, culposo e típico.

Importante salientar que somente os tipos básicos contêm elementares do crime, já os tipos derivados contém circunstâncias especiais que, apesar de estarem geralmente expressos especificamente na lei, não fazem parte essencial, substancial ou constitutivo do tipo penal ou do crime básico. Isso porque o crime básico é mais genérico e abstrato do que o tipo derivado e, nesse sentido, este precisa de circunstâncias mais especiais no que diz respeito ao seu conteúdo, que por vez, é mais especifico do que o tipo básico. Dessa forma, as circunstâncias especiais do tipo derivado não descaracterizam o tipo básico, sendo ao contrário, pois o especifica.

Nos dizeres de Bittencourt (2013, p. 772), “as elementares são componentes do tipo penal, enquanto as circunstancias são moduladoras da aplicação da pena, e são acidentais, isto é, podem ou não existir na configuração da conduta típica”. Por sua vez, Capez, (2011, p. 475) escreve circunstâncias como sendo “todo dado secundário e eventual agregado à figura típica, cuja ausência não influi de forma alguma sobre a sua existência”.

Circunstâncias que não constituem nem qualificam o crime, são conhecidas na dou-trina como circunstâncias judiciais, circunstâncias legais e causas de aumento e de diminuição da pena. As circunstâncias judiciais são orientações estabelecidas pelo art. 59, as quais dão

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diretrizes ao juiz para adequação da pena ao delinquente.Nessa fase é que se inicia o processo de individualização judicial da pena. Trata-se de

circunstâncias judiciais e não circunstâncias legais pela razão de não estarem previstos critérios taxativos e restritivos legalmente expostos no texto positivo que estipulem a dosagem da pena especificamente. Assim, com base nas diretrizes do art. 59 do Código Penal brasileiro, o juiz estabelecerá a dosagem dentro dos limites da pena, dando o caráter objetivista da aplicação (GRECO, 2011, p. 153).

Esses critérios ou elementos que estão previstos no artigo supracitado, são, como apre-sentado, chamados de circunstâncias judiciais e estão positivados no Código Penal Brasileiro da seguinte forma:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Importante lembrar que não se trata de circunstâncias do crime, apresentado anterior-mente. Aqui, a ideia de circunstâncias está muito mais para critérios limitadores da discricio-nariedade ou criatividade do juiz. Não deixam de redundar o tipo penal e servem como formas procedimentais adotadas como instrumento da tarefa de individualizar a pena-base.

3 FIXAÇÃO DA PENA BASE PELA DISCRICIONARIEDADE DO JUIZ E IMPLICAÇÕES IDEOLÓGICAS

A pena que é fixada no art. 59 se atém na discricionariedade do juiz, permitindo que seja moldada e individualizada conforme os juízos proferidos pelo juiz. Por um lado, conforme a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, ao juiz cabe à aplicação da lei atendendo aos fins sociais a que ela se dirige, bem como contemplando as exigências do “bem comum”. Por outro, no Direito latino-americano, em função de sua formação história, há predominância do sistema Civil Law, o qual atribui ao jurisdicionado somente a aplicação da lei.

Nesse aspecto, dá-se a lei grande importância, consubstanciando assim a justiça na legalidade, considerando-se com maior relevância o aspecto normativo do Direito. Da abstração e generalidade normativa, ao Juiz cabe à aplicação legal aos casos concretos, pautando-se nos pressupostos da imparcialidade e neutralidade.

Entende-se nesse diapasão, que a sentença é uma emissão de juízo positivo, qual o juiz deve-se ater a lei para não correr em arbitrariedade. Ou seja, a função de juiz não tem a mesma

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conotação do que no Realismo Jurídico Norte-Americano, sistema que considera o judiciário como principal fonte criadora do Direito, enfatizando no sistema do Civil Law a predominação da lei. Esse aspecto originado de raízes romano-germânicas, o qual atualmente pode ser inter-pretado sob uma ótica um tanto quanto rudimentar, apresenta um problema da mecanização legal1.

A própria história demonstra que a mecanização da aplicação da lei não é possível, pois o Direito enquanto conhecimento cultural é produzido a partir do homem e para o homem, sendo a lei impossível de prever ou determinar a plenitude de atos, condutas e fatos humanos. A insuficiência legal é marca para a flexibilização da discricionariedade judicial e é nesse contexto que se apresenta o art. 59 do Código Penal.

A aplicação mecanizada não condiz com a realidade da vida do Direito. Essa insufi-ciência possibilitou ao judiciário, por uma atribuição do legislador, estabelecer juízos de valores que constituirão singularmente a pena-base. Além de o próprio tipo penal especificar e delimi-tar a sanção, o art. 59 vem a atender ao princípio da individualização da pena, visando melhor e mais eficaz atendimento tanto ao agente delituoso quanto à sociedade. Apesar de se basear no princípio supracitado, convém lembrar que os critérios estabelecidos pelo legislador no art. 59 proporcionam maior potencialidade de justiça na aplicação da sentença, se aproximando do princípio da proporcionalidade.

A individualização da pena passa por um processo de proporcionalização da fixação da pena, visto que dentro do campo de objetividade traçado pelo tipo penal, há ainda a pos-sibilidade de manutenção ao caso concreto, feito por um juízo de valor do juiz. Acreditar que existe juiz despido de ideologias, sendo ele um ser humano divinamente aquém de pensamentos e opiniões é um erro. Ao se inclinar sobre o Código Penal e aplicar a fixação da lei “objetiva-mente”, por força da natureza humana o magistrado não estará despido de pensamentos, ideias ou opiniões.

O jurisdicionado é um ser humano e ao passo que participa dessa condição de existên-cia, naturalmente pressupõe subjetividade. O debate entre objeto e sujeito, objetividade e sub-jetividade é antigo dentro do campo da epistemologia ou teoria do conhecimento, apresentando acentuadas posições diversas durante a história. Convém ressaltar que o problema é tão atual quanto já fora problematizado.

Se considerar a aplicação da lei formulada por um juiz despido de ideologias, se cairá em enganos. O jurisdicionado sendo alguém que mantêm relações em sociedade, com pessoas inseridas neste contexto, participará também de ideais coletivos e, assim sendo, dificilmente conseguirá exprimir algum tipo de signo qual não esteja interligado com alguma fundamenta-ção ideológica. Mesmo porque não há imparcialidade social, não existe pessoa aquém de opi-

1 Em Direito Penal essas duas vertentes denominam-se formalismo e realismo: “Apesar de inúmeras definições de direito que são con-cebidas na atualidade, existe a possibilidade de separá-las de acordo com duas grandes vertentes: a formalista e a realista. Aquelas pos-turas que recriam ou conservam os modelos jurídicos presentes em textos legais são vistas como formalistas, enquanto que as realistas distanciam-se das propostas legislativas, concentrando a busca de fortalecimento do poder judiciário. Os formalistas, portanto, relevam a segurança jurídica, enquanto que, para os realistas, a tônica se insere na equidade” (BIANCHINI, p. 23, 2013).

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niões (salvo exceções), pois caso o sejam, ou serão “portas”, ou serão dominadas por uns ou por outros. Conhecimento é pressuposto de contundência, evidentemente.

Parece que, ao atribuir-se toda a divindade ao magistrado, acredita-se que esse não en-tra nesse viés social. A formação jurídica, principalmente a necessária para poder ser investido na atividade jurisdicional é muito sólida e completa.

A investidura do cargo de magistrado pressupõe estudo. Dessa forma, isto é um crité-rio delimitador para competência na atividade jurisdicional. Entretanto, a pergunta se formula de tal forma: qual o este critério delimitador para o início do exercício da atividade jurisdicio-nal? Não se trata de questões processuais de competência. O debate vai além de questões mera-mente procedimentais. Com objetividade: a cobrança (critérios delimitadores) para se iniciar na magistratura fornece subsídios para a atividade jurisdicional?

A prestação jurisdicional está intimamente ligada com o acesso à justiça. Deve seguir princípios de Direito e promover o bem comum, como também, se atentar aos valores humanos e tentar alcançar a equidade. Entretanto, parece que os critérios, os requisitos “concurseiros” para que seja possível o ingresso à magistratura eleva somente uma dimensão do Direito: a nor-mativa. Posição esta um tanto quanto leiga.

Infelizmente, essa realidade não é específica da magistratura e de seus concursos. Posto isto, está impregnado quase que numa crise epistemológica contínua demonstrando-se nas academias, instituições de Direito e no pensamento coletivo jurídico. Os tribunais apenas adentram numa onda ontológica e deontologicamente inexperiente.

Ao passo que a magistratura deve ser preenchida por pessoas tão somente com domí-nio da legislação, há uma debilidade propedêutica a essa função, a qual se atribui a uma fra-gilidade do pensamento coletivo. Desse modo, as ressonâncias que essa postura proporciona a fixação da pena base só poderiam ser negativas. Partindo-se da ideia que a aplicação do art. 59 do Código Penal depende de uma análise essencialmente subjetiva fica ainda mais comprome-tido uma sentença justa.

Como já exposto no texto, o pensamento histórico se refaz numa contínua dialética e, nesse contexto, a aplicação da pena também se insere. O bom emprego do art. 59 não se ade-qua a dois pensamentos penalistas de extremidades: o abolicionismo penal e o movimento lei e ordem. O primeiro vislumbra a abolição do Direito Penal, não vendo nessa vertente jurídica a necessidade para regulação social. O segundo aborda a necessidade de uma legalidade jurí-dico-penal mais intensa e rígida, dando entonação à severidade das penas para delituosos. Per-cebe-se que o domínio do conteúdo propedêutico comporta ao aplicador melhor desempenho, alcançando dessa forma uma concepção equilibrada do Direito Penal, aproximando-se de uma pena mais justa (GRECO, 2009, p. 24).

Não se trata de querer expor argumentos a favor de delituosos, ou querer contrapor expressões de cunho popular como: “adota e leva para casa!”; “bandido bom é bandido morto”; “lei de talião para bandido”; “tortura contra bandido”; “não tem que prender; tem que mandar matar”, “direitos humanos para humanos direitos”. Essas expressões só diagnosticam a insegu-

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rança social que propõe um radicalismo penal baseado num populismo jurídico-penal líquido, derivado de influências midiáticas sensacionalistas. São expressões do populismo jurídico e não revelam sentido para o presente trabalho, a não ser pelo seu diagnóstico.

Tratar o Direito apenas sob o aspecto da normatividade é reduzir a existência da vida do Direito. Isso acarreta em negar fatos e valores que são próprios dos debates jurídicos em prol de alguma cientificidade ou pureza metodológica pouco consolidada. Importa nesse viés, lembrar que a norma em si, é um instrumento vazio.

Há uma reflexão bem relevante nesse sentido, qual remete à obra Filosofia do Direito, de Reale (1999, p. 475). Ao se pensar numa estrutura normativa dotada dos mais requintados e sistêmicos meios processuais e legislativos possíveis, se pensa numa estrutura super desenvolvi-da. Não é por menor pensar que um sistema normativo que apresente uma estrutura magnífica, será totalmente eficiente, pois não há motivos para que não seja. A norma está sistematizada em prol de todos e para todos e essa estrutura é a mais técnico-científica e mais bem desenvolvida há tempos e supera estruturas normativas de vários países. Isso seria o ideal.

Interessante notar que o Brasil, não raras vezes, é descrito pelos literatos do Direito como sendo uma nação que possui as técnicas e meios formais mais desenvolvidos e em prol dos Direitos Fundamentais. Entretanto, a efetividade da norma vigente não ocorre.

Num plano técnico, alega-se falta infraestrutural estatal, falta de recursos, meios, bu-rocracia e afins. O que não falta são justificativas. Entretanto, se propõe um pensamento um tanto diferente: será que a normatividade exposta, que está em busca de valores, de justiça, não os tem verdadeiramente porque os promulgadores de justiça não os têm também?

Nesse contexto, volta-se à estrutura normativa perfeita. De que adianta o melhor apa-rato técnico se os valores não conseguirem permear esses meios? Ao passo que o pensamento coletivo jurídico isola a norma jurídica, perdem-se em dimensões valorativas e de fato. Assim sendo, não havendo real importância dos valores, essa estrutura fica a exposição. Abertura esta que será vazia, pois tal extremismo revela uma insuficiência valorativa, a qual, em algum mo-mento, será preenchida por alguma ideologia.

Lembra-se aqui dos regimes totalitários e a exemplo, o nazismo. Kelsen fora acusado de trabalhar indiretamente para o Partido Nazista, atuando para que os interesses destes se fun-dassem numa teoria que conseguisse expor suas ideologias irrefutavelmente (COELHO, 2001, p. 17). Apesar de o jurista normativista não atuar com esse intuito, sua doutrina fora utilizada deturpadamente. Acontece que a Ciência do Direito, repudiando o sincretismo metodológico em busca de uma pureza e segurança jurídica fica propensa a conteúdos diversos.

O próprio postulado geral da Teoria Pura do Direito, qual propõe a objetividade das ciências naturais, é um juízo de valor, pois estamos a falar de humanos, de cultura. Não há como conceber o objeto do Direito como sendo uma pedra ou uma planta. O próprio objeto do Direito estabelece parâmetro para ser reconhecido, seja num ato jurídico, numa conduta jurídi-ca ou num fato jurídico, conforme expõe o próprio Kelsen (1999, p. 13). O objeto do Direito é permeado por atos, condutas e fatos humanos que, impreterivelmente são revestidos de valores.

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Sabe-se que o intuito dessa questão é promover a segurança jurídica. Entretanto, per-cebe-se que, enaltecer a objetividade normativa não é suficiente. A coletividade mental (aqui, engloba-se o magistrado) não adere à realidade do Direito, mas sim, à parcialidade do Direito.

Não se propõe a crítica de forma imatura. Não se trata de um problema de ordem técnico, ou uma acusação aos juízes, magistrados. Trata-se de uma verificação problemática epistemológica. Isso se constata, por exemplo, na forma como é cobrado no concurso público da magistratura (ou concursos, em geral), sendo um empecilho que injeta essa necessidade de sanar o intelecto formalmente (legalmente). Entretanto, suprir formalmente revela uma debili-dade, qual seja material.

Nesse contexto, obviamente quem se presta ao aprendizado conforme dita os concur-sos, acaba se obrigando a formar uma linha de estudos na dimensão normativa. Dessa maneira, relega em segundo campo a importância das propedêuticas jurídicas. Não que os concursos sejam condição para isso, mesmo por que existe uma minoria que vai além. Há quem descons-trói e ultrapassa a ideia do plano cartesiano, promovendo a atividade criadora Entretanto, um radicalismo nesse sentido promove a rigidez da capacidade de reflexão.

Streck (2013, p. de internet)2 já denunciava há anos a problemática dos concursos pú-blicos. Pesquisas da Faculdade Getulio Vargas (FGV) e da Universidade Federal Fluminense (UFF)3 demonstraram com estudos empíricos a problemática dos concursos públicos serem um fim em si mesmo, apresentando “ineficiência de fiscalização de competências reais” (TORKA-NIA, 2013, p. de internet)4. Os estudos para concursos formam profissionais “concurseiros” que, ao atuar na atividade pela qual prestou o concurso, atuará perante a formação que teve. A lógica se aplica a diversos outros tipos de exames, mas, não se faz necessário entrar no mérito destes, ao menos não aqui.

Seguindo o mesmo raciocínio, a má formação que os magistrados adquirem em fun-ção da necessidade dos concursos, projeta na atividade jurisdicional uma sequela. Percebe-se que o art. 59 e seus critérios estabelecem campos de subjetividade em quesitos antropológicos, psicológicos, filosóficos, históricos, sociológicos e que podem até mesmo ter ressonâncias re-ligiosas. Essas disciplinas raramente são levadas a sério pelos acadêmicos de Direito (também por diversos professores) e esse pensamento coletivo atinge as Instituições jurídicas (tribunais, ministérios públicos, além da própria academia). Interessante transcrever um excerto da Teoria dos Jogos, de Morais da Rosa (2014, p. 10):

Reconheço a complexidade que envolve o direito em face do necessário diálogo com

2 STRECK, Lênio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis! ConJur – Consultor Jurídico: 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-oerguntas-imbecis. Acesso em 20 set. 2014. 3 A pesquisa pode ser acessada no seguinte domínio: http://portal.fgv.br/sites/default/files/fgv_lanca_estudo_inedito_sobre_concur-sos_e_propoe_marco_legislativo_para_selecao_do_funcionalismo_publico.pdf. O estudo em pauta foi objeto de debate no evento “Brasil, o país dos concursos? Diagnósticos, perspectivas e propostas para o recrutamento no serviço público federal” promovido pelo Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV DIREITO RIO e a Universidade Federal Fluminense, que ocorreu no dia 22/02/2013. 4 TOKARNIA, Mariana. Estudo aponta falhas e propõe mudanças nos concursos públicos. Agência Brasil, Brasília, 23 fev. 2013. Dis-ponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-02-23/estudo-aponta-falhas-e-propoe-mudancas-nos-concursos-publi-cos>. Acesso em: 20 set. 2014.

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outras áreas e, também, que boa parte dos juristas de ofício são e serão incapazes de compreender a dimensão filosófica, linguística, sociológica, etc., do que fazem. Aí o sujeito encontra o paradoxo: se fala com base nos fundamentos da teoria que sustenta não será entendido, enquanto se facilita os fundamentos, muitas vezes, ganha o epíteto de impostor. O problema é que o discurso teórico sério não consegue entrar de maneira justa no círculo hermenêutico (simplificando, pelos ouvidos) da imensa maioria dos juristas. E essa forma de pensar causa muitas vítimas no processo penal.

Essa defasagem epistemológica prolifera-se através das instituições, demonstrando conforme já exposto, uma insuficiência para tratar de temas respectivos. Especificando-se e atendo-se à magistratura, a sequela do pensamento coletivo, associada com os critérios concur-seiros para o ingresso da magistratura, importa numa problemática que recai no Direito Penal brasileiro quanto à pena: inconsistência.

A fixação da pena base, qual está restrita aos limites do tipo penal, está dentro de um campo de objetividade. Esse campo de objetividade é atenuado ao passo que há consideração dos critérios elencados no art. 59. Não se defende aqui que esses critérios sejam inconsistentes ou que não deveriam o ser, dando arbitrariedade ao juiz, mas sim que, instala-se nesse sentido uma apreciação um tanto quanto vazia de quem está na função. Interessante notar a citação extraída da apresentação da 5ª edição do Manual de Direito Penal de Nucci (2011, p. 14).

Cuida-se [na 5ª edição], em particular, do primeiro momento, talvez o mais relevante, de dedicação do magistrado para o estabelecimento da pena-base, fundado nos vários elementos indicados pelo art. 59 do Código Penal. (grifo nosso). Ao longo de vários anos, participando de congressos, encontros, simpósios e seminários de Direito Penal, ouvimos dos operadores do Direito a existência de lacuna dificultosa no contexto da aplicação da pena, em seu estágio inicial. Como se distanciar da política da pena mínima, em busca da pena justa, se não há critérios para a utilização dos fatores legais existentes? Os critérios ou instrumentos não foram, de fato, fornecidos pelo legislador, mas a lei está em vigor e precisa ser aplicada devidamente.

Questiona-se se realmente a problemática se dá numa ordem normativa-legal. Que há uma problemática ficou evidente na exposição do autor, tanto é que na apresentação de tal traba-lho, se preocupou o autor em questioná-la logo na apresentação. Entretanto, incita-se à reflexão se o problema não seja, talvez, dado numa ordem material, ou epistemológico-institucional. A pena base geralmente não é analisada de maneira ideal, pois não há subsídios suficientes por parte do magistrado para tal. Isso é muito importante, pois voltamos ao tema da normatividade estrutural e sistêmica e a possibilidade da instalação de diversos conteúdos nela.

Como se fosse uma estrutura de canos, qualquer tipo de líquido que adentrasse no encanamento, tomaria a forma dele, mas seria em essência, a mesma substancia qual adentrou na estrutura. Vê-se que a forma independentemente de qual, servirá apenas como uma máscara para a substância ideológica. A analogia é relevante, pois ao tratar da formatação que a liquidez permite ter, lembra-se remotamente de um “medo líquido”, expressão que dá nome a uma das

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obras do sociólogo polonês Bauman5.O juiz, ao projetar suas especulações aos critérios de discricionariedade do art. 59, se

propõe numa verificação propedêutica e dessa maneira fixará a pena base, dando início ao cam-po delimitador da pena final. A apreciação sistêmica permite ao magistrado uma valoração dos critérios do artigo em totalidade, porém, qual subsídio possui para poder emitir tal juízo, visto que seus estudos foram dados numa ordem de decoro legal? Percebe-se, numa primeira vista, uma debilidade que não se restringe a um simples problema analítico-propedêutico, sendo pou-co palpável crer que essa apreciação não contém uma índole ideológica. Vale expor o seguinte trecho:

O juiz, como cientista, quer queira quer não, tem um engajamento pessoal com algum tipo de valoração [...]. É por isso que não há falar em neutralidade judicial. O juiz que escreveu um artigo de doutrina sobre determinado tema jurídico, não está impedido de atuar num feito em que o mesmo tema esteja em questão. Assim também um juiz negro pode julgar um caso de racismo, uma juíza pode julgar um machista. Por igual, um juiz homossexual não é suspeito em processo que envolva direitos e obrigações oriundas de uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo (PORTANOVA, 2003, p. 143).

Trata-se de uma questão simplesmente humana. Todo ser humano ou racional emite juízos de valor. Entretanto, esses juízos são mais sólidos ao passo que se pressupõe uma forma-ção consolidada. Nesse aspecto, chega-se ao ponto do presente trabalho, o qual demonstra que o magistrado, em função de uma má formação, da exaltada normatividade curricular e pouca atenção dispensada às dimensões valorativa e fática, nos aspectos propostos no art. 59, não tem capacitação para emitir esses juízos.

Esse fato é perigoso. Como já exposto, juízes são pessoas, humanas e físicas por óbvio. Pessoas vivem em sociedade e são, em certa medida, seres sociais. O magistrado por sua vez,

5 Para o autor, “o medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. ‘Medo’ é o que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou en-frenta-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance” (BAUMAN, 2008, p.8). A esse conceito de medo, liga-se a ideia de liquidez moderna, na qual a “vida líquida flui ou se arrasta de um desafio para outro de um episódio para outro, e o hábito comum dos desafios e episódios é sua tendência a terem vida curta. Pode-se presumir o mesmo em relação à expectativa de vida dos medos que atualmente afligem as nossas esperanças. Além disso, muitos medos entram em nossa vida juntamente com os remédios sobre os quais muitas vezes você ouviu falar antes de ser atemorizado pelos males que esses prometem remediar.” (BAUMAN, 2008, p. 15). Fechando o raciocínio, interessante a próxima citação: “O medo é seguramente o mais sinistro dos muitos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que criam e alimentam o mais aterrador e menos suportável de nossos medos. A insegurança e a incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência: não parecemos mais estar no controle seja sozinhos, em grupo ou coletivamente, dos assuntos de nossas comunidades, da mesma forma que não estamos no controle dos assuntos do planeta – e nos tornamos cada vez mais conscientes do que não é provável que nos livremos da primeira desvantagem enquanto permitirmos que a segunda persista. Para piorar ainda mais nossa situação, carecemos das ferramentas que poderiam permitir que nossa política se elevasse ao nível em que o poder já se estabeleceu, possibilitando-nos, assim, recapturar e recuperar o controle sobre as forças que moldam nossa condição com-partilhada, e portanto, redefinir o espectro de nossas opções assim como traçar os limites de nossa liberdade de escolha: o tipo de controle que atualmente escapou ou foi tirado – de nossas mãos. O demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente, construirmos) tais ferramentas” (BAUMAN, 2008, p. 167). O sociólogo polonês consegue dar a verdadeira entonação ao que se passa na atual sociedade. Apesar de muitas pessoas enxergarem no Direito Penal uma dessas ferramentas, ou mesmo um remédio para um tipo de medo, importante frisar que se entende aqui que não o é. Não é com legislações penais ou com políticas criminais mais rígidas que se terá o controle da situação, pois o problema escapa a eficácia do Direito Penal, tornando-o sem credibilidade se aplicado dessa forma. Há um ditado qual diz que a cada escola aberta, fecha-se uma prisão. Aqui se estabelece o mesmo raciocínio: a melhor ferramenta é a educação, em todos seus aspectos, dando ouvidos sempre a reflexão crítica.

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estará inserido numa classe social e, não raras vezes, em função da investidura, insere-se à elite social, partilhando da ideologia dessas.

Nesse ponto que importa então pensar e refletir, pois ao juiz que está inserido em de-terminada classe e partilha do pensamento coletivo dessa classe, certamente apresentará sua posição nas análises que o art. 59 permite fazer, por mais que se pense numa ordem formalista do Direito. Não se trata de críticas vagas de que à magistratura não se tem forte formação, mas sim que, ao passo que essas análises se dão num viés de pensamento de uma classe, abra-se caminho para uma imposição.

Talvez, a consolidada formação daria subsídios para que fosse possível uma análise racional por parte do estado - magistratura, Ministério Público, etc. Um dos mais recorrentes argumentos contra quem defende o garantismo penal é: “e se sua filha fosse “estrupada”? Você não iria querer vingança”? Essa situação fora levantada por Aury Lopes Junior, no XIII Con-gresso Brasileiro de Direito Penal & Psicologia Criminal – Grandes crimes, grandes mentes criminosas, o qual apresentou a seguinte resposta: “claro que eu iria querer vingança. Naquela situação, eu poderia ser irracional, mas o Estado não”. Entretanto, parece que a função jurisdi-cional quer promover um falso tipo de justiça.

Gomes (2013, p. 393), ao tecer algum tipo de aproximação com o populismo penal, acaba por considerar um tipo de “método (ou discurso ou técnica ou prática) hiperpunitivista que se vale (ou que explora) o senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas gera-das pelo delito e pelo medo do delito [...]”. Parece que o autor utilizou bem o termo “hiperpuni-tivista” quando comparado com a ideia de sociedade hipermoderna de Lipovetsky (2004, p. 53), autor este que diagnostica a existência de modelos cotidianos hiperintensificados:

O pós de pós-moderno ainda dirigia o olhar para um passado que se decretara morto; fazia pensar numa extinção sem determinar o que nos tornávamos, como se se tratasse de preservar uma liberdade nova, conquistada no rastro da dissolução dos enquadramentos sociais, políticas e ideológicos. Donde seu sucesso. Essa época terminou. Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto - o que não é mais hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa?

Nessa esteira, em virtude de uma má formação humanística, a falta de propedêutica à formação legal propícia ao investido da magistratura a inserção do populismo penal às deci-sões. O juiz, que era para apresentar solidificada postura perante as pressões de um populismo jurídico influenciado pela mídia, se enverga tendenciosamente, de maneira “líquida”. A esta afirmação, é importante lembrar que, “quanto maior o medo da sociedade, maior a legitimidade do Estado para agir e punir. Além de passar falsa percepção e aumentar a sensação de medo, dispersa na sociedade uma ideia de que ‘algo deve ser feito’, influenciando ainda mais a justiça Penal” (BAYER, 153, p. 153).

Sob esse prisma, por exemplo, que se vê um discurso do ódio indireto pela seletividade

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do Direito Penal e toda sua maximização6. O juiz, ao refletir sem os devidos subsídios, julga conforme o populismo jurídico que também faz parte de sua classe. A esse fato se soma a ques-tão do medo, pois ao se tratar dessa forma, o próprio juiz incorpora as ideias de sua classe nos juízos valorativos judiciais e isso se dá numa adequação ao pensamento coletivo de sua classe. Trata-se de uma “substância” ideológica que se insere na normatividade da magistratura e que, apesar de ganhar essa forma da normativa, expressa o ideal da classe em que o magistrado se encontra. Não raras vezes, juízes fazem parte de uma classe elitista, dominante na sociedade. Interessante apresentar o seguinte pensamento de Cirino dos Santos (2013, p. 379):

Em teoria do controle social, propostas científicas ingênuas produzem efeitos políticos perversos: a violência autoritária das elites de poder econômico e político das sociedades contemporâneas costumam existir sob a forma de primários programas repressivos de controle da criminalidade. Na atualidade, essa ingênua ciência do controle social oscila entre o discurso da tolerância zero, que significa intolerância absoluta, e o discurso do direito penal do inimigo, que significa extermínio de seres humanos [...].

Verifica-se então a existência estreita entre o discurso da tolerância zero com a capa-cidade de tratar o delituoso como um inimigo do Estado, pois ao dar essa perspectiva à pessoa delinquente, os Direitos Fundamentais não são importantes. O Direito Penal do inimigo desvela um verdadeiro raciocínio de estado de guerra (GRECO, 2009, p. 18), que pode ser aplicado aos delituosos numa tentativa legitimadora de ideologia.

Por isso a necessidade de reflexão e estudos reiterados, contínuos, tentando superar o senso comum penal, identificado por Wacquant (1999, p. 11) 7, ou mesmo ultrapassar a classe média intelectual, identificada por Streck (2014, p. de internet) 8. Em tese, talvez o que se deva pensar é numa mudança de encarar o mundo do Direito. Dessa forma, nota-se uma proble-mática também advinda das Instituições de Direito e ressalta-se aqui a academia com uma responsabilidade maior. Sendo uma agência de reprodução ideológica - o termo não é utilizado necessariamente com sentido pejorativo - conforme aponta Zaffaroni (2014, p. 33), a academia é o cerne desses debates e é nela que se deve iniciar a mudança.

Em geral, além de uma crise institucional, percebe-se uma crise epistemológica (NETO, MATTOS, 2007, p. 18) no campo do Direito. Para esse veneno, a academia é o melhor

6 A seletividade é um fato: “Como se sabe, o Direito penal é seletivo, e tem o seu público alvo, ou seja, a parcela miserável da população. Essa afirmação é muito fácil de ser comprovada. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem às classes média ou alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: Será que no Brasil ocorre, com frequência, o crime de corrupção? Será que existem sonegadores? As perguntas poderiam continuar até que abrangêssemos todas as camadas sociais. Contudo, só o pobre, só o miserável é processado e preso.” in: GRECO, Rogério. A quem interessa uma justiça penal sobrecarregada? 2010. Disponível em: < http://www.rogeriogreco.com.br/?p=104>. Acesso em 20. set. 2014. 7 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. de André Telles. Editora: Sabotagem, 1999. Disponível em:<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CCMQFjAB&url=http%3A%2F%2Ffiles.femadirei-to102.webnode.com.br%2F200000039-62f056357d%2FAs%2520Prisoes_da_Miseria%2520Loic_Wacquant.pdf&ei=B7A1VYrMD_O_sQTH7IHgAQ&usg=AFQjCNG95XoAZA6cuIo0RNoOxelZ90cA2w>. Acesso em: 2. out. 2014.8 STRECK, Lênio Luiz. Abandonar as próprias vontades para julgar é o custo da democracia. ConJur – Consultor Jurídico: 2014 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-10/entrevista-lenio-streck-jurista-advogado-procurador-aposentado. Acesso em: 23. set. de 2014.

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antídoto e a isso só o debate e a reflexão se apresentam como instrumentos. A liberdade de ex-pressão á um direito fundamental conquistado ao longo da história, com banho de sangue. Não há motivos para não aproveitá-lo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O instituto da pena sofreu diversas alterações durante a história. A necessidade de humanização das sanções permitiu que os literatos do Direito vislumbrassem a importância da justeza das penas. Estas, por sua vez, chegaram à Idade Hipomoderna com o ideal fortalecido: o da equidade e proporção.

Por mais que os textos constitucionais tenham previamente em seu espírito a justiça, a prática forense não demonstra a preocupação que os atuais diplomas trazem em seu bojo. Por diversas vezes, a função jurisdicional promove um justiçamento ideológico. A premissa da im-parcialidade e neutralidade jurisdicional não se sustenta. O juiz é um ser humano que participa de condições iguais aos demais e compartilha de pensamentos do seu respectivo grupo. Logo, está propenso ao mesmo modelo de existência.

Ao passo que sua condição permite ser social, a pessoa que está na função jurisdicional participa de um grupo social e jurídico. Social, pelo motivo de estar em sociedade e se relacio-nar com pessoas. Jurídico, pela razão de estar englobado na coletividade jurídica, partilhando do pensamento coletivo deste. Neste sentido, o juiz participa de um específico grupo social: o jurídico.

Num primeiro momento, parece haver alguma diferença muito clara entre esse grupo social e os demais. Entretanto, ao passo que se pauta a perspectiva numa análise em um mo-mento hipermoderno, num contexto popular penal e sobre a condição do medo penal-social, aquele que seria o emancipado está submerso nesse aspecto tanto quanto outros grupos sociais. Percebe-se que sociedade num todo sofre com o mesmo mal, inserindo-se nesse contexto a própria magistratura.

A função jurisdicional não pode se prostrar com pouca contundência perante aspectos ideológicos que afligem a população. Entretanto, essa posição mais consolidada é comprometi-da com a visão exacerbada unidimensional-normativa do Direito, pois atrofia a capacidade do pensar criticamente, seja num aspecto institucional, seja epistemológico.

Dessa forma, considera-se a reflexão como a única forma de escape. Percebe-se que a própria coletividade jurídica, na qual o jurisdicionado faz parte, está inserida no contexto acima mencionado. Dar-se conta dessa situação é a primeira atitude de mudança.

Até que não se perceba a situação, o instituto qual trata o art. 59 servirá de instrumento técnico-formal para legitimação de ideologias, atuando de forma a emitir sanções pouco justas, fazendo a manutenção do ideal da seletividade penal e da guerra contra os inimigos do Estado. Clamar por mais reflexão além de ser uma busca por humanização, também procura a melhora da capacidade jurídica de auto-desenvolvimento.

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JUDGE, FORM AND SUBJECTIVITY: THE IDEOLOGY AS THE LEVY ON AN APPLICATION BASE PENA

ABSTRACT: This paper’s purpose is the essence of art. 59 of the Brazilian Penal Code, relating to the application of the base penalty with a problem of judicial subjectivist order. The issue becomes more connotation while relates to issues of media interference, net modern social conditions or hypermod-ern; with malaise and social fear. The research was qualitative nature, with approach given also supported by the deductive method. Are perceived ideo-logical influences on aspects of judicial subjectivity, and those listed in this function should present posture with greater forcefulness before taxes of this order.Keywords: Subjectivity. Application. Ideological influences. Forcefulness.

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MULTIPARENTALIDADE NOS CASOS DE RECONHECIMENTO DE FILHO JÁ REGISTRADO: UMA SOLUÇÃO À LUZ DACONSTITUCIONALIZAÇÃODO DIREI-TO CIVIL

Rhafaela Cordeiro Diogo*

RESUMO: Trata da constitucionalização do direito civil que proporcionou uma mudança de paradigma do conceito de família, em prol dos princípios da afetividade e da igualdade. Procura demonstrar que o caráter instrumental das entidades familiares corrobora com a convivência harmônica e simultâ-nea dos três critérios determinantes para a paternidade, a saber: biológico, socioafetivo e presuntivo, restando a multiparentalidade como solução mais justa para os casos de reconhecimento de filho já registrado. Palavras-chave: Multiparentalidade. Filiação. Presunção de paternidade. Re-conhecimento de filho. Teoria tridimensional do direito de família.

1 INTRODUÇÃO

A família pertence à sociedade e o Estado regula essa última. Com isso, o conceito de família está acompanhado do conceito patrimonial que, ainda hoje, mesmo depois do Estado social estabelecido com a Constituição Federal de 1988 - a qual preleciona que todos são iguais, tendo em vista uma ordem que visa à liberdade equilibrada -, contém resquícios do liberalismo.

Metade do Código Civil que versa sobre direito de família apresenta texto normativo relativo ao patrimônio. No Estado liberal, a família possuía um viés econômico, consideran-do os direitos sucessórios do patrimônio. Observa-se a influência desse período nos deveres

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período. Estagiária da Advocacia Geral da União (PU/RN). Editora-geral da Revista Pesquisas Jurídicas. Integrante da Base de Pesquisa Direito, Estado e Sociedade. Bolsista do Projeto de Pesquisa Sistemas Alternativos de Resolução de Conflitos. Integrante do Projeto de Pesquisa Práticas Abusivas e Defesa do Consumidor. Membro da Simulação de Organizações Internacionais (SOI).

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impostos pelo Estado quando do matrimônio, determinando exatamente como a pessoa deve agir na família e como sair dela.

Por outro lado, o Estado social trouxe a proteção estatal para o âmbito familiar, princi-palmente dos hipossuficientes na família, haja vista o art. 226 da Constituição Federal de 1988 determinar que “a família terá a proteção do Estado”. Além disso, tal dispositivo traz a concep-ção de família plural que é uma cláusula aberta, de inclusão.

Tendo em vista a instrumentalização da família, que outrora fora instituição, para fins de proteção, o Estado trouxe a sua repersonalização. Nesse sentido, a afetividade apresenta-se como valor jurídico, visto que, hoje, a família não visa a patrimonialidade, mas, sim, a felicida-de e a solidariedade. Daí decorre a ampliação do conceito de família, que resulta nas famílias plurais.

Desse modo, há diversas formas de constituição da ligação de um ser humano a outro a partir do reconhecimento da paternidade ou da sua maternidade. Em face disso, este estudo inicia-se abordando os três critérios harmônicos, porém, não cumulativos, adotados pelo Códi-go Civil de 2002 para o reconhecimento da paternidade.

Em seguida, busca-se apresentar a influência da Lei Maior na interpretação sistemática do Código Civil, destacando os entendimentos doutrinários acerca do novo conceito de família e dos princípios que corroboram com a implantação da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Fixadas as bases sobre as quais estará fundado o estudo, este artigo se encaminhará para o cerne da discussão à qual se propõe, qual seja: o ser humano constitui-se dos seus laços afetivos, genéticos e biológicos, não fazendo jus à noção de justiça um destes critérios sobrepu-jar-se ao outro em se tratando das relações de filiação.

Por fim, realizar-se-á uma breve análise da decisão proferida na Apelação Cível nº 0006422-26.2011.8.26.0286-SP, à luz da teoria tridimensional do direito de família. Diante disso, o presente trabalho visa demonstrar, por meio de colações doutrinárias e jurisprudenciais, que o orde-namento jurídico fornece todos os requisitos para a adoção da multiparentalidade, desde a mudança de paradigma quanto à concepção de família ao tratamento prioritário no Estado Social e Democrá-tico de Direito destinado às crianças e adolescentes, limitando-se, no entanto, aos efeitos jurídicos (e patrimoniais) decorrentes de tal medida.

2 RECONHECIMENTO DE FILHO JÁ REGISTRADO

No direito brasileiro, a prova da maternidade vem da expressão latina mater is semper certus (a mãe é sempre certa). Desse modo, a maternidade é presumida pela gestação1. É valido salientar, no entanto, que tal presunção é relativa, tendo em vista os casos de “barrigas de alu-

1 Enunciado 129 – I jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014. p. 21.

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guéis” e a troca de bebês na maternidade por engano do hospital, os quais permitem a proposi-ção de ação negatória de maternidade quando provado “a falsidade do termo (do nascimento do filho), ou das declarações nele contidas” (art. 1608, Código Civil).

Por outro lado, no que tange o reconhecimento da paternidade, o Código Civil de 2002 adotou um tríplice critério determinante para a filiação: presunção legal (art. 1.595), biológica e socioafetiva (art. 1.593). Os três critérios são harmônicos e independentes, restando a cargo do juiz fixar no caso concreto a paternidade de acordo com o critério que se sobrepujar. Uma coisa, portanto, é certa: um critério exclui o outro.

Dessa forma, é eminente no ordenamento jurídico brasileiro os litígios nos casos de reconhecimento de paternidade de filho já registrado em nome de outrem, uma vez que tornou--se comum nas famílias plurais hodiernas o reconhecimento voluntário de filhos pelo caráter socioafetivo, seja nos casos de adoção à brasileira2 (conduta ilegal), seja nas situações em que o padrasto almeja reconhecer o filho da sua esposa já registrado no nome do pai biológico (con-duta atípica).

Nesse ínterim, há uma tese mais recente que traz a pluripaternidade ou multipater-nidade, também chamada de teoria tridimensional do Direito de Família – assunto que será detalhadamente abordado mais adiante no trabalho –, que trata da possibilidade de fixação da paternidade ou maternidade utilizando mais de um critério, simultaneamente. Assim, uma pes-soa pode ter até três pais: um biológico, um socioafetivo e um pai ontológico; tal como ocorre na vida real.

2.1 Critério presuntivo

O critério presuntivo, elucidado no art. 1.597, do Código Civil, está amparado na velha máxima latina mater semper certa est et pater is est quem nuptiae demonstrant (a maternidade é sempre certa, a paternidade é presunção que decorre da situação de casados).

Na letra fria do artigo supra, este critério é exclusivo do casamento, sendo, inclusive, inaplicável à união estável. Todavia, é razoável sustentar a presunção de paternidade na união estável devido ao seu caráter constitucional de entidade familiar3.

Dessarte, o Código Civil não apenas prestigiou a presunção de paternidade pelo ca-samento, mas a ampliou: ela incide tanto na concepção biológica (sexual) como na artificial (fertilização medicamente assistida4); isso em meio à possibilidade de prova em contrário – vide o exame de DNA que traz certeza absoluta quanto à paternidade –, que incentivou a perda da força da presunção pater is est (de paternidade dos filhos concebidos na constância do casamen-

2 “Reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de ado-ção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança”. STJ. REsp. 833.712-RS. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 16.05.2007. DJU 04.06.2007.3 STJ. REsp 1.194.059/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Massami Uyeda. j. 06.11.2012. DJE 14.11.2012.4 Se subdivide em fertilização in vitro e inseminação artificial. Na primeira o embrião é concebido no laboratório e, na segunda, o mé-dico trabalha apenas com o sêmen. Ambas podem ser, porém, homólogas (material genético do casal) ou heterólogas (material genético de terceiro).

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to) de outrora (TARTUCE, 2014).Entretanto, o estado de certeza decorrente de mera presunção da paternidade leva ao

estabelecimento de prazos para aquém e para além da constância do casamento. A presunção (sempre relativa) na fertilização sexual tem início 180 dias após o matrimônio e término 300 dias depois da sua dissolução (DIAS, 2013).

Também os filhos frutos de fertilização homóloga, mesmo que falecido o marido, ou mesmo que se trate de embrião excedentário, ou seja, os remanescentes que ficam guardados pelo prazo de 03 anos, conforme estabelece o art. 5º, da Lei nº 11.105/05; e de fertilização hete-róloga, com prévia autorização do marido (funciona como reconhecimento prévio de filho e de forma absoluta5), gozam da condição de filho por ficção legal.

Merece destaque a hipótese que versa sobre fertilização de marido falecido. A grande discussão gira em torno do direito hereditário dos filhos nascidos nessas circunstâncias, pois o art. 1.798, do Código Civil, possui uma redação genérica ao afirmar que terão legitimidade sucessória as pessoas nascidas e concebidas.

Segundo Flávio Tartuce (2014), o referido artigo diz respeito apenas à concepção ute-rina, de modo que o embrião de laboratório seria filho, mas não seria herdeiro. Obviamente, tal posição não poderia prosperar, haja vista o princípio constitucional de igualdade entre os filhos, disposto no art. 226, § 6º, da Lei Maior, sendo majoritariamente reconhecido que o embrião laboratorial (resultado da fertilização in vitro) será herdeiro.

2.2 Critério biológico

Se a paternidade não for definida pelo critério presuntivo (os pais não forem casados, por exemplo), o juiz utilizará o critério biológico, ou o socioafetivo. O critério biológico é a de-terminação da filiação a partir do exame de DNA.

Distingue-se, assim, do parentesco “civil”, em que não se verifica tal transmissão. O filho biológico tem com o pai um vínculo de parentesco natural, ao passo que o adotivo e o gera-do por fecundação assistida heteróloga (feita com espermatozoide fornecido por outro homem) vincula-se ao pai por parentesco civil, no entanto, na prática não há distinção alguma, uma vez que a Constituição Federal de 1988 preleciona a igualdade entre os filhos (COELHO, 2012, p. 26).

Em razão dos arts. 231 e 232, do Código Civil, o exame de DNA não é obrigatório, contudo, nos termos do art. 2º-A, da Lei nº 8.560/92 que consubstanciou a súmula 301 do STJ6, a sua recusa faz presumir relativamente a paternidade. Salienta-se que a recusa e a consequente presunção de paternidade não serão sanadas pelo arrependimento posterior, já que constituiria

5 Trata-se do único caso de presunção absoluta de paternidade. O enunciado 111 da I Jornada de Direito Civil consagra que o filho nascido por força de fertilização heteróloga não pode ajuizar ação de investigação de origem genética. Por fim, a doutrina vem admitindo a possibilidade de fertilização heteróloga para casais homoafetivos. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014. p. 16.6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.

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uma venire contra factum proprium (vedação do comportamento contraditório). Essa presunção, porém, não pode ser aplicada em outras ações que não seja a ação investigatória de paternidade.

No Brasil, segundo previsão legal do art. 3º, da Lei nº 1.060/50, o exame de DNA é gratuito para as pessoas beneficiárias da gratuidade judiciária. Todavia, em alguns estados da federação há uma obstacularização quanto à ausência do pagamento, muito embora esta obri-gação esteja compelida por lei. Nesses casos, o STJ entende que o juiz decidirá através de prova testemunhal, já que não houve recusa por parte do réu e não houve a realização do exame:

Verificada a recusa, o reconhecimento da paternidade decorrerá de outras provas, estas suficientes a demonstrar ou a existência de relacionamento amoroso à época da concepção ou, ao menos, a existência de relacionamento casual, hábito hodierno que parte do simples ‘ficar’, relação fugaz, de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual7.

A determinação da realização do exame de DNA e a conversão do julgamento em di-ligência, quando não foi realizado anteriormente, devem ser ex officio.

2.3 Critério socioafetivo

A posse do estado de filho, representada nas situações de adoção à brasileira, filho de criação, registro por erro, vem expressa no art. 1.593, do Código Civil, e se refere à filiação estabelecida pela convivência, ocorrendo quando as partes assumem, na prática, o papel de pai e filho. O STJ admite a posse do estado de filho como concretização da filiação socioafetiva:

O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil 8.

Com esse fato, houve um desatrelamento entre os conceitos de pai e genitor, de modo que podem ser pessoas distintas. Nesse sentido, é possível prospectar uma ação de investigação de paternidade socioafetiva em que não é preciso sequer que o afeto esteja presente no momento da ação, bastando que ele tenha sido a causa determinante da relação, como no caso de adoção à brasileira, na qual, no momento do divórcio, o pai negue a paternidade do filho.

Os efeitos jurídicos familiares e sucessórios (patrimoniais e pessoais) são fixados, au-tomaticamente, quando caracterizada a filiação socioafetiva. Se houve paternidade socioafetiva, o pai deve pagar alimentos, conforme determina o Enunciado 341 da IV Jornada de Direito Civil: “Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação

7 STJ . REsp 557.365-RO. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 07.04.2005. DJU 03.10.2005.8 STJ. REsp. 878.941-DF. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi.. j. 21.08.2007. DJU 17.9.2007.

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alimentar” 9.Ademais, quando estabelecida filiação pelo critério socioafetivo, o filho tem direito

de saber a sua origem biológica. A jurisprudência10 já vinha admitindo essa possibilidade e o art. 48, do ECA, sacramentou. Ela se dá por meio da ação de investigação de origem genética/ancestralidade que está fundada na personalidade e não na relação de família, sendo, portanto, personalíssima, e só podendo ser proposta pelo filho quando este estiver em plena capacidade.

Em suma, a ação investigatória de ascendência genética é a pretensão de obter a afir-mação da origem genética, sem qualquer efeito sucessório ou familiar (sempre estará fundada no elo biológico). Inclusive, se o réu se recusar ao exame de DNA, a consequência será a extin-ção do processo sem resolução de mérito por perda superveniente do interesse de agir. Se ele realizar o exame e der positivo, será decretada a procedência do pedido para declarar que ele é genitor, e não pai.

3 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E A MULTIPARENTALIDADE

Historicamente, o reconhecimento dos filhos, assunto disposto nos arts. 1.607 a 1.617, do Código Civil é visto sob a máxima de que os filhos havidos fora do seio familiar tradicional, isto é, do casamento, não têm os mesmos direitos dos legítimos.

Isto se deve ao fato das legislações civis brasileiras terem sido influenciadas pelo di-reito da França. A partir do primeiro Código Civil francês, a dimensão do chefe de família se expandiu em detrimento dos direitos inerentes a pessoa do filho, uma vez que a investigação de paternidade era proibida, tanto que o seu precursor, Napoleão Bonaparte, proferiu a frase céle-bre: “a sociedade não tem interesse em que os bastardos sejam reconhecidos”11.

Com essa frase é possível detectar um histórico de discriminação e certa relação entre filiação e casamento, de modo que a família constituída pelo casamento era a única a merecer reconhecimento e proteção estatal, denominada de família legítima por um longo período, tra-zendo para o conceito de filiação uma concepção à luz do casamento (DIAS, 2013).

Depois disso, passou-se a ter uma visão biológica da filiação: constituía-se o vínculo entre uma pessoa e aquelas que lhe deram origem. Todavia, esta visão não pôde se manter por muito tempo, visto que ela passou a sofrer influências da Constituição Federal de 1988, a qual reconheceu a igualdade entre os filhos, da biotecnologia e das novas formas de arranjos fami-liares.

Nesse sentido, hodiernamente, o conceito de parentesco e de filiação está situado mui-to mais no campo da cultura do que na biologia (LÉVI-STRAUSS, 1982), o que possibilitou, inclusive, a adoção homoafetiva sob o argumento de que:

9 IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: < http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014, p. 12.10 STJ. REsp 833.712-RS. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 17.05.2007. DJU 04.06.2007.11 SILVA, André Ribeiro Molhano; et al. Evolução histórica da paternidade no mundo. Disponível em: < http://www.domtotal.com/direito/pagina/detalhe/29385/evolucao-historica-da-paternidade-no-mundo>. Acesso em: 30 out. 2014.

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Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal12

A origem da filiação pode ser, portanto, socioafetiva, caracterizando-se no vínculo de parentesco no primeiro grau, na linha reta, determinado pela paternidade e/ou maternidade, ou seja, no vínculo entre uma pessoa e aqueles que o geraram ou que o acolheram, com base no afeto e na solidariedade.

Desta feita, o Código Civil de 2002, surgido após a Constituição Federal de 1988, trouxe consigo:

A convocação dos pais a uma “paternidade responsável” e a assunção de uma realidade familiar concreta, onde os vínculos de afeto se sobrepõem à verdade biológica, após as conquistas genéticas vinculadas aos estudos do DNA. Uma vez declarada a convivência familiar e comunitária como direito fundamental, prioriza-se a família socioafetiva, a não discriminação de filhos, a cor-responsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar, e se reconhece o núcleo monoparental como entidade família. (MÁRIO, citado por GONÇALVES, 2012, p. 30).

Com efeito, o conceito de família vem sofrendo mutações na medida em que este instituto vai se modelando a partir das diferentes necessidades sociais. Tais mudanças fizeram com que o seu conceito fosse visto mais como um fenômeno cultural e não biológico (LÉVI-S-TRAUSS, 1986).

Em se tratando dos tempos atuais, “a mais significativa mudança por que passou a família neste século foi a valorização do elemento afetivo nas relações familiares” (CANOTI-LHO, 2013, p. 12.199). Dessa maneira, ocorreu uma mudança de paradigma em que a família passou a ter uma visão instrumental, visando a proteção das pessoas e não o seu núcleo, valo-rizando, pois, a vontade do ser humano (ampliação da importância da autonomia privada) em prol da mitigação da intervenção estatal na família.

Em outras palavras, a família agora é instrumental, porque ela não almeja um fim em si mesma, ou seja, ela existe para proteger as pessoas que a compõem, fugindo da concepção tradicional cujo fim remetia ao casamento, sexo e patrimônio. Daí os dizeres de Paulo Lôbo (2011, p. 37):

A família é sempre socioafetiva, em razão de ser um grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta da transferência de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos.

12 STJ, REsp 889.852-RS. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. 27.04.2010. DJE 10.08.2010.

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Busca-se, então, a felicidade e a realização pessoal de cada um dos componentes fa-miliares que estão ligados por vínculos afetivos e por sua própria manifestação de vontade, impulsionando uma verdadeira (re)personalização do direito de família, isto é, a volta da prote-ção da pessoa, de modo que os princípios gerais do Código Civil de 2002 colaboram com essa proteção.

Assim sendo, a família, hoje, enquanto base de uma sociedade que se propõe a cons-tituir um Estado Democrático de Direito calcado no princípio da dignidade da pessoa humana, tem a função de permitir, em uma visão filosófica-eudemonista, a cada um dos seus membros, a realização dos seus projetos pessoais de vida (GACLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p.57).

É no momento em que se reconhece a família em nível constitucional que a sua função social remonta-se à realização existencial do indivíduo (GACLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p.57-58).

Nesse contexto, surge o direito de família mínimo que nada mais é a intervenção mí-nima do Estado na família. Dessa forma, o Estado só intervém na relação familiar para garantir direitos fundamentais, tais quais: dignidade da pessoa humana, afetividade e solidariedade. É o que dispõe Canotilho (2013, p. 12.199):

Assim, se a família, através da adequada interpretação dos dispositivos constitucionais, passa a ser entendida como instrumental, não há como se recusar a tutela a tantas outras formas de vínculos afetivos que, embora não previstas expressamente pelo legislador constituinte, se encontram identificadas com a mesma ratio, com os mesmos fundamentos e com a mesma função.

3.1 A teoria tridimensional do direito de família na filiação

A teoria tridimensional do direito de família se utiliza dos princípios constitucionais, sobretudo da dignidade da pessoa humana, igualdade jurídica de todos os filhos, afetividade, solidariedade, pluralismo das entidades familiares e da convivência familiar, para embasar a impossibilidade de um vínculo afetivo, sociológico ou biológico excluir o outro, encabeçando a ideia de que juntos operem efeitos.

Todos esses princípios se revelam na tridimensionalidade dos laços genéticos, afetivos e ontológico relatados por Welter (2009, p. 47), o qual destaca que, apesar do ser humano estar unido por eles, constituindo seu único mundo, a família, base da sociedade, sempre foi “(des) cuidada” tão somente pelo prisma da normatização do mundo biológico.

Deveras, a normatização do direito de família recolhe apenas uma amostra do conceito de família, qual seja, o biológico, visto que decorre desse preceito a fixação do parentesco, do direito de herança, da filiação, o poder de família, da guarda, das visitas, enfim, de todos os direitos do ser humano, e não somente os de família (JULIANI, 2013, p. 30).

No que tange à afetividade, Welter (2012, p. 130) ressalta que:

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O ser humano deve derrubar esse teto preconceituoso que o encobre (de que na família há apenas afeto), para que possa obter uma paisagem e uma passagem à compreensão do ser humano como humano, que, às vezes, está afetivo, mas, outras vezes, desafetivo.

Isso resulta na importância da análise da tutela efetiva que se busca no ordenamento jurídico hodierno, isto é, uma tutela adequada, tempestiva e eficaz, tendo em vista que é o di-reito que deve se adequar à realidade, e não o contrário, como ocorria no Estado Liberal. Com isso, há necessidade da produção do direito voltada à realidade da vida, buscando o sentido do texto do direito de família no exame das circunstâncias concretas da questão jurídica (WEL-TER, 2012, p. 131).

Considerando a instrumentalização do conceito de família e a sua função social volta-da à possibilidade de desenvolvimento da personalidade do indivíduo neste ceio, de modo que cada membro familiar desempenha sua função – como explicitado no tópico anterior –, resta nítido que considerar apenas o pai consanguíneo como o único pai de uma criança, quando há outro socioafetivo, que na prática já exerce esta função, é ir de encontro ao princípio do plura-lismo das entidades familiares (JULIANI, 2013).

Mais que isso, “é furtar o direito de vivenciar a relação afetiva e duradoura exercida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, ou seja, é violar o princípio da convivência fami-liar, também consagrado pela Carta Magna” (JULIANI, 2013, p. 43).

Diante disso, reconhecer a multiparentalidade é retificar os preceitos constitucionais, bem como conferir a tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des)constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstituídas13.

4 ANÁLISE DA DECISÃO PROFERIDA NA APL Nº 0006422-26.2011.8.26.0286-SP À LUZ DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

A teoria tridimensional do direito de família acaba por sugerir não apenas a pluripaternidade, mas também a plurihereditariedade, vislumbrando-se a patrimonialização da relação filiatória.

“É que os Tribunais pátrios ainda veem com certa estranheza a possibilidade de um indivíduo ter mais de um pai/mãe, sobretudo a de manifestação de todos os efeitos dessas pa-rentalidades” (JULIANI, 2013, p. 51) Daí os resquícios da visão patrimonialista presentes no Código Civil atual ser um óbice a este entendimento e talvez o principal motivo para a jurispru-dência relutar em adotar tal medida.

Todavia, pequenos passos já foram dados, a começar pelo precedente do TJ/SP que

13 RODRIGUES, Renata de Lima. Multiparentalidade e a nova decisão do STF sobre a prevalência da verdade socioafetiva sobre a verdade biológica na filiação. Disponível em: <http://www.ibijus.com/blog/12-multiparentalidade-e-a-nova-decisao-do-stf-sobre-a-preva-lencia-da-verdade-socioafetiva-sobre-a-verdade-biologica-na-filiacao> . Acesso em: 30 out. 2014.

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permitiu que a filha tivesse o nome da mãe que morreu no parto e o da sua madrasta, possuindo, portanto, duas mães, conforme decisão proferida na Apelação Cível nº 64222620118260286-SP, ementada da seguinte forma:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido.14

No caso em apreço, a mãe biológica foi vítima de um acidente vascular cerebral, vindo a falecer três dias após o parto. Posteriormente, o pai biológico conheceu a autora desta ação decla-ratória de maternidade socioafetiva, que passou a cuidar da criança como se filho dela fosse. Em meio às circunstâncias, o Relator Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, suscitou que não haveria qualquer tipo de reprovação social em se declarar legalmente a maternidade socioafetiva conco-mitantemente com a biológica15.

Ademais, por entender que o artigo 1593 do Código Civil estipula que a filiação não decorre unicamente do parentesco consanguíneo, que “a formação da família moderna não-con-sanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF), e a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º, CF).”; além de considerar a equiparação da multiparentalidade à dupla adoção, tendo em vista a decisão em que o próprio STJ reconheceu a adoção por duas mulheres, diante da existência de “fortes vínculos afetivos”, o relator da Apelação deu provimento ao recurso e declarou reconheci-da a maternidade socioafetiva da recorrente16.

A partir do caso em comento, vislumbra-se a consagração dos princípios da dignidade humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial com a proteção ao patrimônio, voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção17.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

14 TJ-SP. APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286. Primeira Câmara de Direito Privado. Rel. Alcides Leopoldo e Silva Júnior. j. 14.08.2012. DO. 14.08.2012.15 PIOLI, Roberta Raphaelli. Multiparentalidade: é possível ter dois pais ou duas mães no registro civil. Disponível em: < http://dp-am.jusbrasil.com.br/noticias/100300099/multiparentalidade>. Acesso em: 10 nov. 2014.16 Atualidades do direito. TJSP reconhece dupla maternidade. Disponível em: < http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2012/08/17/tjsp-reconhece-dupla-maternidade/>. Acesso em: 10 nov. 2014.17 ZAMATARO, Yves. O reconhecimento da multiparentalidade no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI185307,21048O+reconhecimento+da+multiparentalidade+no+Direito+brasileiro>. Acesso em: 12 nov. 2014.

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Distante de esgotar a questão, este trabalho buscou analisar a possibilidade de reco-nhecimento de mais de um pai ou mãe no registro civil, com a produção de todos os seus efeitos jurídicos, à luz da recente constitucionalização do direito civil, por meio do fenômeno denomi-nado de instrumentalização da família, no qual importa cada membro cumprir o seu papel no âmbito familiar.

Por essa ótica, chega-se à conclusão de que a multiparentalidade configura-se como um instrumento encontrado pelo Estado-Juiz capaz de tutelar todos os laços inerentes ao mun-do do ser humano, a saber: socioafetivo, biológico e ontológico. Apresentando-se, pois, a teoria da tridimensionalidade do direito de família como uma solução justa sob a égide dos preceitos constitucionais.

Tanto é assim que as decisões dos tribunais, aos poucos, vêm se posicionando no senti-do de reconhecer a multiparentalidade. Ser contrário a isto seria admitir que os efeitos jurídicos e patrimoniais de tal medida prevalecem sob a proteção do interesse do menor. E pior, seria menosprezar as situações corriqueiras, deixando-as desamparadas da tutela jurídica.

Desta feita, resta clarividente que a aplicação da teoria da tridimensionalidade do di-reito de família no âmbito da filiação, por meio do reconhecimento da multiparentalidade e da coexistência da paternidade socioafetiva com a paternidade biológica representa um avanço significativo no Direito de Família e alcança o senso de justiça almejado pelo Estado Social e Democrático de Direito.

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JULIANI, Maihara Gimena. A teoria tridimensional da paternidade aplicada ao reconhecimento de filho: uma leitura a partir dos princípios constitucionais da igualdade

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e da afetividade. Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, fev., 2013. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/104296/TCC_Maihara_Gimena_Juliani.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 30 out. 2014.

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MULTIPARENTALIDADE IN ALREADY REGISTERED SON OF RECOGNITION OF CASES: A SOLUTION IN THE LIGHT OF CIVIL RIGHTS CONSTITUTIONAL-ISATION

ABSTRACT: It analyses the constitutionalization of civil law that provided a change of family concept of the paradigm, to the principles of affection and equality. Seeks to show that the instrumental character of family entities corroborates the harmonic and simultaneous coexistence of the three decisive criteria for parenthood, namely, biological, socio-emotional and presumptive, leaving the multiparentalidade as fairest solution for cases of child recogni-tion already registered.Keywords: Multiparentalidade. Affiliation. Presumption of paternity. Son of recognition. Three-dimensional theory of family law.

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O ESTADO DE DIREITO, A QUEBRA DO PARADIGMA POSITIVISTA E O SURGIMENTO DO ATIVISMO JUDICIAL

Fábio Antônio Correia Filgueira Filho*

Gabriel Lucas Moura de Souza**

RESUMO: O presente artigo objetiva fazer uma análise do surgimento, da evolução histórica, dos motivos e dos efeitos do fenômeno, comum não só no Brasil como também no exterior, do ativismo judicial. Para tanto, estuda-se o nascimento e transformação do Estado Democrático de Direito, a influên-cia do Positivismo e a tripartição dos Poderes, com base nos ensinamentos de doutrinadores modernos e contemporâneos. Percebe-se que, atualmente, o referido fenômeno é fruto de demandas sociais não atendidas pelo Estado que acabam sendo pleiteadas ao Poder Judiciário, o qual, a princípio, não deveria intervir nas ações ou omissões do Legislativo e Executivo.Palavras-chave: Ativismo judicial. Estado de direito. Tripartição dos pode-res. Demanda social não atendida. Judiciário.

1 INTRODUÇÃO

O estudo do Poder Judiciário encontra lugar de destaque no atual contexto democrá-tico. Tal afirmação é atestada pela simples observação da conjuntura político-social que nos cerca, na qual – visivelmente – o papel da Justiça é tema central, preenchendo cotidianamente os debates dentro e fora das academias.

Nessa conjuntura, deposita-se, nas chamadas “democracias modernas”, grande espe-rança, respeito e confiança no papel do magistrado como representante fidedigno do Poder

* Graduando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período.** Graduando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período.

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Judiciário, fato que culmina em verdadeiro crescimento do seu papel político-social. Ademais, atribui-se ao Poder Judiciário um estigma heroico, do qual duas básicas problemáticas são ex-traídas: i) seus limites ii) sua legitimação.

No presente escrito pretende-se perquirir algumas das nuances que versam sobre os limites de atuação do Poder Judiciário em confronto com o seu papel de destaque na constru-ção, concretização e efetivação do Estado Democrático de Direito. Além disso, cumpre destacar alguns argumentos da (in)existência de legitimidade democrática quando da prática daquilo que se alcunhou de “ativismo judicial”.

Inicialmente, far-se-á uma análise genérica acerca do surgimento do Estado de Direi-to, afinal, como será demostrado, é a partir dessa construção política que o papel do Judiciário passa a merecer acuidade na análise. Posteriormente, baseando-se na construção teórica de Locke e Montesquieu, situar-se-á o Poder Judiciário quando do início do Estado de Direito. Dessa forma, tal divagação histórica culmina na análise atual do Judiciário sob a ótica do Es-tado Constitucional e o consequente enfrentamento das problemáticas acerca da legitimação e limites do “ativismo judicial”.

2 A INFLUÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO NO JUDICIÁRIO

Desde que organizada socialmente, sempre consistiu uma inquietude humana a inda-gação: “é melhor o governo das leis ou o governo dos homens?” (BOBBIO, 2007, p. 95-96).

Nessa perspectiva, máximas como the king can do no wrong (o rei não pode errar), quod principi placuit leges habet vigorem (o que agrada ao príncipe tem vigor de lei), princeps a legibus solutus (o príncipe está livre da lei) demonstram que a resposta da questão que inau-gura o presente tópico, historicamente, consistiu na primazia do “governo dos homens”, em quase absoluto desrespeito às leis. O monarca encarnava a soberania, não lhe sendo ninguém superior, “seja por sua alegada origem divina, seja por sua qualidade régia e soberana” (FER-NANDES, 2010, p. 233-252).

É nesse contexto de demasiada opressão política – no qual a segurança jurídica ine-xistia, como consequência da concentração de todo poder pelo Estado – que os pensadores da modernidade estavam inseridos, fato que desembocou numa produção teórica cuja diretriz mostrava-se voltada à formulação e defesa de formas de governo que impedissem o despotismo.

Nesse sentido, a insegurança promovida por esse tipo de governo arbitrário fez com que os pensadores da época reformulassem a resposta para a pergunta retromencionada. É a partir de então que a opção do governo das leis materializou-se, fundamentada nos escritos, dentre outros, de Locke e Montesquieu.

Assim, com a ascensão das correntes filosóficas que inaugurariam o iluminismo, co-meça-se a notar a busca racional pela legitimação e pelo exercício do poder. Notadamente, a partir do século XVIII, as consequências desse racionalismo político já se erigem, inclusive, no plano jurídico, com a formação das primeiras Constituições escritas no sentido moderno do ter-

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mo, especialmente nas colônias inglesas na América (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2012, p. 39).

E, com o surgimento dos Estados Modernos, a figura do monarca todo poderoso dei-xou de existir, uma vez que essa forma de governo já não mais agradava à burguesia liberal, a qual impulsionou a criação do modelo institucional com os poderes tripartidos e regidos pelas normas constitucionais (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2012, p.47).

Em que pese desde Platão e Aristóteles ser possível encontrar claras manifestações de adesão ao império legal, é na tradição jurídica inglesa de subordinação à lei que se encontra a materialização da gênese do Estado de Direito, tal concepção conduz à doutrina do “rule of Law”, ou governos das leis, consistente na mais pura representação em sentido estrito do Esta-do de Direito, isto é, o “Estado cujos poderes são exercidos no âmbito de leis preestabelecidas” (BOBBIO, 2007, p. 96). Acerca desse fenômeno, com primazia atentam Sarlet, Marinoni e Mi-tidiero (2012, p. 39):

Dentre tantos outros aspectos dignos de nota, enfatiza-se aqui a afirmação do primado da lei em detrimento do costume como fonte do direito (movimento de codificação), além da alteração da concepção até então vigente de soberania, como centrada na figura do príncipe, para um conceito de soberania nacional, onde a lei era concebida como a expressão máxima da vontade geral.

Com efeito, o nascimento do Estado de Direito está simbioticamente atrelado à ideia de constitucionalismo moderno, afinal, esse Estado é subordinado ao império da lei, que – por sua vez – encontra representação máxima no documento constitucional. A Lei Magna referida con-siste na concepção ocidental de Constituição, cuja origem remete à Revolução Inglesa, evento histórico marcante na formação do Estado de Direito.

Sobre o tema, Manuel Gonçalves Ferreira Filho (2012, p. 653): “de fato, a ‘gloriosa revolução’ pôs no mesmo pé a autoridade real e a autoridade do parlamento, forçando um com-promisso que foi a divisão do poder, reservando-se ao monarca certas funções, ao parlamento outras e reconhecendo-se a independência dos juízes”.

Nasce, assim, um novo paradigma de organização do poder. O Estado de Direito, por-tanto, inaugura – basicamente – três elementos que lhe conferem originalidade, conforme le-ciona José Afonso da Silva (2012, p. 112-113): i) a submissão ao império da lei, consistente em sua mais elementar característica; ii) a divisão dos poderes, técnica voltada, precipuamente, a extirpar chances de concentração demasiada de poder; e iii) o enunciado e garantia dos direitos individuais, cujo exemplo latente é o Habeas Corpus Act de 1679.

Como consequência dessa primazia legal, além da garantia daquilo que a lei entoava enquanto veículo de imperatividade da vontade social, mister seria a institucionalização da estrutura que assegura tais premissas. Nesse diapasão, o Judiciário sobressai como Poder a ser analisado para – assim – entender-se o fenômeno jurídico.

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3 O JUDICIÁRIO NA MODERNIDADE

O perfil do Judiciário na modernidade deve ser entendido de forma reflexa. Isso sig-nifica que, para se compreender a forma em que o Poder Judiciário se apresenta no referido contexto histórico, faz-se necessário entender o Poder Legislativo, a dimensão e importância conferidas à função legiferante.

A princípio, após a queda do sistema monarquista e consolidação do pensamento re-publicano dos iluministas, sobre a atuação do Poder Judiciário, defendia-se que a possível dis-cricionariedade do magistrado era sinônimo de tirania, estabelecendo-se, portanto, uma relação entre liberdade frente à lei como causa e consequência do rejeitado despotismo. Nota-se tal en-tendimento na passagem de Montesquieu (2000, p. 38) ao afirmar que: “nos Estados despóticos, não há lei: o juiz é ele mesmo sua própria regra”.

Com esse viés interpretativo dos Poderes, inaugura-se a ideia de um Poder Judiciário, que – frente ao caráter absoluto que a lei assume – passa a adotar a garantia de imparcialidade e a extirpação da discricionariedade. Para um aprofundamento de tais aspectos, pontuar-se-ão, doravante, as principais concepções de John Locke e Montesquieu com o escopo de expor a construção teórica que em muito influenciou a criação de um dogma sobre a imparcialidade do juiz.

Nesse cenário, John Locke é considerado por escritores proeminentes da literatura especializada1 como o primeiro autor moderno que se debruçou no “desenho institucional do Estado”. Para o pensador inglês (LOCKE, 2001, p. 37), deveria haver: um Poder Supremo, que é o Legislativo, cuja função é a de constituir leis; o Poder Executivo, destinado a executar aquilo pensado pelo Legislativo e formalizado em leis; e o Poder Federativo, cuja função voltava-se para as relações internacionais (guerra e paz, alianças, tratados). Nota-se que, pela teoria loc-keana, o Legislativo é o poder responsável por assegurar aos homens o desfrute de sua liberdade (vista como usufruto da propriedade e de sua vida), objetivo este que os leva a abandonar o Estado de natureza.

Apesar de, na leitura de seus escritos não se encontrar referência direta ao Poder Ju-diciário, Locke (2001, p. 69) fornece-nos algumas ideias no que tange a sua concepção do sis-tema judicial. Primeiramente, o mencionado pensador atribui à “inexistência de um árbitro imparcial” como uma das causas de insegurança e violência no estado pré-político (Estado de natureza). Essa assertiva deixa claro que – na concepção lockeana – a resolução dos conflitos insurgidos na sociedade civil deve se dar mediante a atuação de um árbitro imparcial, sob pena de cometer-se o erro do Estado de natureza, qual seja, a existência de parcialidade quando dos julgamentos. Extrai-se daí a busca pelo magistrado politicamente inerte e tolhido de discricio-nariedade.

Nesse sentido, elucidativa e incontroversa é a passagem da obra de John Locke ao

1 Norberto Bobbio (2007) considera a teoria política lockeana desenvolvida no segundo tratado a primeira e a mais completa formulação do estado liberal.

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afirmar que a igualdade só é alcançada “por juízes imparciais e íntegros, que irão decidir as controvérsias conforme estas leis” (LOCKE, 2001, p.70). Nessa visão clássica, o Judiciário con-trapõe-se ao Poder Legislativo. Enquanto este é criativo e proativo, aquele é passivo e inerte. Resta ao juiz, em resumo, dizer o direito existente com vistas à solução do caso concreto. O temor de Locke é evidente: a lei é a medida que divide a legítima atuação da autoridade e o tão temido despotismo.

O outro pensador que deve ser lembrado é Charles-Louis de Secondat, ou – como de conhecimento geral – Barão de Montesquieu. A doutrina de Montesquieu parte da premissa de que o homem tem natural propensão para abusar do poder quando nele se encontra investido. Sua concepção afirma ser a concentração do poder um fator determinante para a instalação do governo despótico, ao passo que sua fragmentariedade, exercido por diversos atores, torna im-provável a tirania, equilibrando a sociedade e tornando-a livre. “Tudo estaria perdido”, afirma o pensador referindo-se ao despotismo, “se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes” (2000, p. 75).

Essa concepção que o pensador francês ora em tela detinha do Legislativo sofreu ma-ciça influência de John Locke. Montesquieu (2000) na sua obra, “O espírito das Leis”, ainda que considere o Legislativo a expressão da vontade popular, reconhece, que assim como os outros Poderes, deve ser controlado.

Sobre o Judiciário, Montesquieu (2000, p. 78) foi direto: “os juízes da nação são ape-nas a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados (...)”. Nota-se, novamente, o repúdio à atividade criativa do magistrado que é mero componente de um Poder “politicamente nulo”. À guisa de ilustração, vale a menção à obra de Cesare Beccaria (2011, p. 29-30), que – contemporâneo de Montesquieu, compartilhava dessa desconfiança dos juízes:

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não a lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro. (...) Nada mais perigoso que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal máxima é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões.

Além disso, da famosa ideia de equipotência ou equivalência dos Poderes formulada por Montesquieu não se erige uma igualdade ou paridade entre eles. Há, tão somente, uma or-ganização de funções. Embora esse entendimento seja contestado por parcela dos estudiosos, parece claro, ao afirmar que a expressão política do Judiciário é nula e a ele cumpre apenas apli-cação estéril da lei, a intenção de Montesquieu em retirar os juízes do panorama político, como bem sintetiza Ferraz Júnior (2007, p. 15): “ao sublinhar a subsunção como método de aplicação do direito, neutraliza-se para o juiz o jogo de interesses concretos na formação do direito (se esses interesses serão atendidos ou decepcionados não é problema do juiz, que apenas aplica a lei)”.

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Em síntese, enquanto Locke defende de forma suprema o Legislativo, Montesquieu, temendo que esse Poder possa se sobrepor ao Executivo (e tão somente ao Executivo, pois, ao afirmar ser nulo o Judiciário – reitere-se – o pensador desconsidera seu papel político) defende que este último tenha poder de veto sobre a legislatura, sempre que isso for necessário, o que permite uma negociação constante entre os dois Poderes.

Nota-se, portanto, que o Poder Judiciário na Modernidade (SOUSA, 1995, p. 9-10) tem caráter reativo (devendo, sempre, agir somente quando provocado); caráter casuístico (atuando no plano concreto, específico e individualista); presta veneração absoluta à segurança jurídica (com extrema observância aos formalismos processuais e total sujeição à coisa julgada). Essas características, não poderia ser diferente, tornaram politicamente estéreis os tribunais, reduzin-do (ou mesmo anulando) o peso político do Judiciário frente aos demais Poderes.

4 A NOVA VISÃO SOBRE A FUNÇÃO DO JUDICIÁRIO

O constitucionalismo positivista pós-revolução francesa, cujas premissas alcançaram até a metade do século XX, não permitia aos juízes nada além de reafirmar o que dizia a lei (criada exclusivamente pelo Legislativo), pois só assim seria afastada a insegurança jurídica e a parcialidade características do sistema monárquico.

De acordo com essa linha de pensadores, a tripartição deveria configurar-se estática, uma vez que, segundo o Barão francês (MONSTESQUIEU, 2000), em “O espírito das leis”, com uma delimitação recíproca e precisa dos Poderes, tornando-os, ao mesmo tempo, harmô-nicos e independentes, garantir-se-ia a desejada impossibilidade de retorno à concentração de poder, contrária ao pensamento então em voga. Essa é a essência do que cunhou-se de cheks and balances (freios e contrapesos).

Contudo, hodiernamente, a herança de Montesquieu não se mantém inalterada. É o que se extrai do pensamento do constitucionalista José Afonso da Silva (2012, p. 109-110) o qual adota viés diferente da doutrina da época das luzes, uma vez que não considera a divisão completamente estática:

A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.

Ademais, o início da mutação nos ensinamentos dos estudiosos franceses quanto à or-ganização dos Poderes do Estado se deu a partir das críticas dos pensadores norte-americanos federalistas. Segundo Limonge, analisando os textos dos artigos de “O federalista” (LIMON-

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GE, 2000, p. 243-286), para James Madison e Alexander Hamilton, era inegável que o Poder Le-gislativo possuía uma preponderância nessa forma de divisão e, mais clara ainda, era a posição inferior do Judiciário que não detinha instrumentos para, de fato, controlar eventuais abusos dos Legislativo e Executivo.

Sendo assim, destaca o supracitado autor (2000, p. 249-250), parafraseando Madison em “Federalista nº.48”, “não se nega que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados”. A limitação do Poder na forma desejada só pode ser obtida pela contraposição equânime de um pelo outro, no qual um apresenta reais capacidades de frear os demais.

Para tanto, a concretização dessa reformulação deveria ser inserida à Constituição de forma que, paritariamente, fossem distribuídas atribuições aos Poderes, conferindo-lhes ins-trumentos e prerrogativas capazes de impedir possíveis excessos alheios. E uma das inovações propostas concederia ao antes atrofiado Judiciário foi a capacidade de, proativamente, limitar o exercício dos outros Poderes com base no texto constitucional.

A partir desse pensamento dos federalistas, o Judiciário recebeu, tendo em vista a sua ausência de poder de iniciativa (presente nos demais), cuidados especiais para que sua partici-pação no sistema de freios e contrapesos fosse garantida. É a conclusão que se chega da leitura do “Federalista nº 78”, no qual, com ênfase, Hamilton atribui à Corte Suprema o poder de in-terpretação final do texto constitucional (2000, p. 252).

Nesse mesmo diapasão, o mencionado vanguardista também inovou ao defen-der a inamovibilidade dos juízes, bem como a já mencionada prerrogativa de controle de constitucionalidade. Assim, a institucionalização do controle de constitucionalidade contribuiu decisivamente para a politização do direito, ampliando a atuação do Judiciário que deixou de ser um poder nulo e limitado à aplicação silogística da lei. A partir daí (HAMILTON; MADISON; JAY, 1979, p. 164): “(...)os tribunais de justiça devem ser considerados como baluartes de uma Constituição limitada contra as usurpações do poder do corpo legislativo”

Outros dois momentos merecem destaque para demonstrar como o Poder Judiciário rompeu os dogmas positivistas e traçou sua caminhada para a situação atual. São, pois, os even-tos históricos da Segunda Guerra Mundial e do Estado de bem estar social.

4.1 Da segunda guerra

É praticamente consenso na doutrina especializada (BARROSO, 2012, p. 120; GUER-RA FILHO, 2007, p. 143; PÉRES LUÑO, 1999, p. 122) que o pós-guerra foi o período que mar-cou o início das críticas à teoria positivista, predominante na Europa. Até então, o juiz ainda era limitado a ser “a boca da lei”; o Legislativo continuava fonte quase exclusiva do direito e as constituições eram tratadas como planos políticos que deveriam influenciar o sistema legislati-vo, mas não podiam ser invocadas em juízo.

Essa divisão estática terminou possibilitando o desequilíbrio entre os Poderes quando líderes do Executivo, muito influentes, aproveitaram-se do formalismo liberal positivista para

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legitimar seus regimes totalitários. Observando tal fenômeno, o constitucionalista Rodrigo Pa-dilha em seu “Curso de Direito Constitucional” (2014, p. 40) muito bem demonstra, o quanto Hitler agiu legalmente na execução de suas atrocidades:

Através de Decreto expedido em 7/4/1933 os Judeus foram afastados do funcionalismo público, do exército e das universidades; através de Lei publicada em 14/7/1933 foram retirados os direito de cidadão dos Judeus imigrantes no Leste Europeu; a chamada “Lei da Cidadania” tirou aos judeus alemães a cidadania alemã; a “Lei da Proteção da Honra e Sangue Alemão” proibia os casamentos dos Judeus com não Judeus, proibia o emprego de Judeus na Alemanha e proibia os Judeus de exibirem a bandeira Alemã entre outras medidas. Por fim através de Decreto assinado pelo então presidente Paul Von Hindenburg foram suspensos sete seções da Constituiçãode 1919 da República de Weimar que garantiam liberdades individuais e civis ao povo.

Portanto, a aplicação das regras sem uma interpretação crítica, parcial, moral e huma-nista da situação fática foi instrumento responsável pela legitimação de diversas barbáries como o extermínio das minorias pelos nazistas. A partir desse momento, ressurge a preocupação de se evitar a repetição de atrocidades patrocinadas pelos próprios Estados. Novamente, é enaltecido o papel da Constituição, entretanto, dessa vez é defendida sua aplicação mais concreta tornando os direitos fundamentais nelas elencados balizadores da atividade estatal.

4.2 Do Estado de bem estar social

O Estado de bem-estar social é uma forma de organização político-econômica que im-põe ao Estado o papel de agente responsável pelos avanços e melhorias públicos. Essa política social, conforme acentua Aquino (2010, p. 462) foi bem acolhida por grande parte da Europa no período pós Segunda Guerra, tendo em vista a situação de grande pobreza e desigualdade que o conflito acarretou.

Sobre essa nova roupagem estatal, bem discute o civilista Nelson Rosenvald (2012, p. 34) que, se no Estado liberal o bem estar da população só dependia da caridade dos particulares, no Estado social a caridade virou um dever estatal que buscava garantir a igualdade material e o acesso ao mínimo existencial para todos.

Nesse sentido, a nova posição de ator do Estado na busca do respeito à dignidade humana, introduzida pela institucionalização do Estado de bem estar social foi uma inovação legislativa, que a princípio tratou sobre o direito do trabalho, saúde e segurança social. Com o passar do tempo, o intervencionismo cresceu na esfera econômica, com o objetivo de eliminar monopólios, “garantir” a livre concorrência, incentivar a agricultura e melhorar a infraestrutura dos transportes. As medidas estatais chegaram, então, ao nível de assumirem responsabilidades na criação de empregos, elaboração de planos de assistência social e financiamento de eventos artísticos, obras públicas, etc.

Por outro lado, mesmo com a adoção do Estado de bem estar social em muitos países, a concretização de todas as suas promessas, que foram constitucionalizadas (como aconteceu

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no Brasil em 1988), não foi tão ampla. Esse é, na verdade, um fenômeno que está bem longe de ser resolvido e, como grande

parte desses direitos estão previstos nas Constituições, o Judiciário passou a ser buscado pelos cidadãos como meio de exigir do governo o que a constituição consagrou mas os demais Pode-res não regulamentaram ou implementaram.

Assim, o pensamento anterior se coaduna com as conclusões dos estudos do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2007, p.17). O Judiciário passou a assumir funções rela-tivas à prestação social que deveriam ter sido espontaneamente executadas pela administração pública, tanto é que, em países onde a questão social era efetivada, não aconteceram aumentos das demandas no Judiciário.

Por esse motivo, a discussão que surge com esse novo papel da Justiça, acarretado pelo Estado-providência, é até que ponto os juízes podem ser inovadores na interpretação das leis de cunho garantista, uma vez que, em sua maioria, elas são “programáticas” (no sentido de que determinam um fim mas não o meio, não no sentido de que elas são apenas planos políticos ideais), com conceitos vagos e indeterminados, o que exige dos magistrado uma “interpretação criativa”, nos termos do italiano Mauro Cappelletti (1993, p. 20-21), que, dependendo da sua intensidade, pode ser equivalente a criação de uma lei.

5 ATIVISMO JUDICIAL

É nesse contexto de um exercício funcional do Judiciário mais politizado enquanto Poder que – paritariamente aos demais – é imbuído de deveres e obrigações no que tange à con-cretização e à garantia do Estado (Constitucional) de Direito, em que se erigem as vicissitudes do ativismo judicial.

Desse modo, pode-se caracterizar o ativismo judicial como o fenômeno da invasão (para alguns, indevida) do Judiciário no âmbito dos demais Poderes, em especial no tocante à criação normativa (incumbência específica e típica do Legislativo) e à designação orçamentária referente à imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público (atribuição não só do Legis-lativo, como – principalmente – do Executivo) (APPIO, 2006, p. 150-152).

Nesse sentido, o professor Barroso preleciona (2008, p. 6): “A ideia de ativismo judi-cial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes.”.

Por isso, é importante ressaltar que a origem desse “fenômeno jurídico-político” intitu-lado de ativismo judicial remonta à já analisada quebra do paradigma positivista e concomitante intervenção estatal em prol do cidadão (Estado de bem estar social). Contudo, ao contrário do que se extrai de uma visão imediatista do tema, a gênese do ativismo não está atrelada à con-cretização, fundamentação e garantia de direitos fundamentais.

A proatividade do Judiciário ora em análise lançou suas bases iniciais no território

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norte-americano. Nesse primeiro momento, o ativismo mostrou-se conservador, respaldando os desejos das camadas reacionárias a partir da legitimação da segregação social e da invalidação de medidas sociais (BARROSO, 2008, p. 7).

O ativismo judicial, destarte, consiste numa forma atuante de interpretar o texto cons-titucional. É esse o entendimento de Ronald Doworkin (1999, p. 451-453), para quem o ativismo tem umbilical relação com a concretização dos valores constitucionais. O referido jurista norte--americano pontua que a aplicação direta da constituição independentemente da manifestação do legislador ordinário; a declaração de inconstitucionalidade com base em critérios menos rígidos; e a imposição de condutas ao Poder Público são claros exemplos do ativismo.

Assim, essa forma ativa do Judiciário interpretar a Constituição, estabelecendo polí-ticas públicas e garantindo a preponderância constitucional frente às ações (e principalmente inações) dos outros Poderes, seria irrestritamente benéfica, não fosse o risco que o mau uso dela representa ao Estado de Direito.

Por outro viés, o próprio Estado de Direito poderia ser afetado caso, mediante a auto--contenção judicial, diretrizes e garantias constitucionais restassem ignoradas e transgredidas por ações ou abstenções dos outros Poderes, sendo sobre essas inquietudes acerca da legitimi-dade e dos benefícios/malefícios do ativismo que o presente escrito debruçar-se-á doravante.

6 OBJEÇÕES AO ATIVISMO JUDICIAL

O ativismo judicial não pode ser considerado lugar comum no contexto de uma demo-cracia representativa que funcione de forma eficaz. Assim, é sempre elencada a preocupação de que ocorra uma potencializada “queda de braço” entre os Poderes, fato que – malgrado seja constatado no contexto político atual – pode criar danos ao Estado Constitucional de Direito e à sociedade.

De plano, a crítica se apresenta frente à “ultratividade” judiciária que gravita entorno da tripartição do poder, alegando-se que o Judiciário ativista transpassa a sua esfera de atuação, interferindo – ilegitimamente – nas atribuições, inclusive constitucionais, dos demais Poderes. Para os adeptos dessa crítica – portanto – é extremamente perigoso permitir a intervenção judiciária (ativismo judicial) na competência de outros poderes, havendo – hodiernamente – verdadeira mácula ao Estado Constitucional de Direito disfarçada pelo discurso da “efetivação dos direitos”. Para tal concepção crítica (a conhecida doutrina da “questão política”), conforme atenta Costa (2010, p. 59), os juízes, sob o esteio de aplicar a Constituição, negam a ela própria.

Outro argumento contrário à atividade criativa dos juízes, em demasia, permeia o ponto da legitimidade democrática para a tomada de decisões de políticas públicas. Essa con-cepção considera que o fato de os magistrados não serem agentes públicos eleitos, não terem sido – portanto – “batizados pelo voto popular” (BARROSO, 2008, p.18), deslegitimá-los-ia de tomar decisões negando medidas políticas dos representantes escolhidos democraticamente, ou impondo deveres a esses.

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Tal tese se justificaria, pois, quando do proferimento de uma sentença de viés ativista, restaria suprimida a vontade popular que é representada pelas decisões dos outros dois Poderes, seja na atividade legislativa, seja na coordenação de políticas públicas. A essa falta de legitimi-dade democrática para tais ações do Judiciário cunhou-se o termo “dificuldade contramajoritá-ria” (BARROSO, 2012, p. 38).

Baseada na mesma ideia, surge outra condenação ao ativismo a qual alega que, com sua ocorrência, o direito torna-se política. A vontade popular (representada pelos poderes elei-tos) fica subjugada à ideologia respaldada pelo subjetivismo típico do ativismo judicial.

Nesse sentido, é precisa a crítica do professor Lenio Streck (2009)2:

Os juízes (e a doutrina também é culpada), que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer filtragem das leis ruins, quer dizer, aquelas inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos, assim, de uma estagnação para um ativismo, entendido como a substituição do Direito por juízos subjetivos do julgador.(...) Por isso é que cresce a necessidade de se controlar a decisão dos juízes e tribunais, para evitar que estes substituam o legislador. E nisso se inclui o STF, que não é — e não deve ser — um super poder.

Observa-se que o pensamento dos que criticam a atual situação ativista do Judiciário ou é lastreado numa ideia antiga, menos fluida, que supervaloriza a tripartição dos Poderes, semelhante ao defendido pelos iluministas. Ou é demasiadamente positivista e esquece que qualquer interpretação, inevitavelmente, exige uma criação dos juízes.

7 NECESSIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL

Num posicionamento contrário aos elencados anteriormente, poder-se-ia considerar a jurisdição intervencionista lastreada nos preceitos fundamentais mais uma garantia à democra-cia do que um risco.

Certamente, um ponto positivo do ativismo é que ele é mais uma forma de serem concretizadas as demandas sociais, como foi atestado no julgamento da ADPF número 453. Na referida arguição, o Ministro Celso de Mello, em seu voto, advogou que a intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas não pode ser por completo arbitrária e desmedida. Segundo o arresto, existem três situações em que caberia a intervenção: a) quando a omissão ou a políti-ca já implementada não oferecer condições mínimas de existência humana; b) se o pedido de intervenção for razoável, e; c) do ponto de vista administrativo, a omissão ou a política seja desarrazoada.

Concluiu o Ministro em seu voto que:

2 STRECK, Lenio Luiz. Ativismo judicial não é bom para a democracia. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entre-vista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul>. Acesso em: 04 abril 2015.3 STF. ADPF Nº45/DF. Rel. Min. Celso de Mello. j. 29.04.2004. DJU 04.05.2004. Notícia veiculada pelo Informativo/ STF nº 345/2004.

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[...] implementar políticas públicas não está entre as atribuições do Supremo nem do Poder Judiciário como um todo. Mas é possível atribuir essa incumbência aos ministros, desembargadores e juízes quando o legislativo e o executivo deixam de cumprir seus papeis, colocando em risco os direitos individuais e coletivos previstos na constituição.

Por outro lado, um aspecto negativo do ativismo seria o fato de sua existência atestar uma clara necessidade de uma reforma política com o objetivo de que os outros Poderes efeti-vamente reaproximem-se da sociedade.

Além disso, poderia erigir um pensamento crítico ao ativismo afirmando que ele seria contra a democracia, pelo fato de um Poder não político e sem representantes eleitos pelo povo estar tomando decisões, regulando as escolhas dos próprios representantes dos cidadãos. Ocor-re que, no exercício do ativismo, há sim um controle social, pois a Justiça é regida pelos prin-cípios da publicidade e necessidade de fundamentação, ou seja, as sentenças de cunho ativista passam por instrumentos de controle constitucionalmente definidos.

É por isso que a literatura processualista especializada (DIDIER, 2013, p. 321-322; MARINONI; ARENHART, 2013, p. 407) afirma ser a motivação um dos requisitos essenciais da sentença com função extraprocessual, uma vez que essa viabiliza o controle das decisões do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo, afinal, é em nome deste que a sentença é pronunciada.

Ainda, ao lado da motivação das decisões, a publicidade das mesmas figura como outra fonte de legitimidade que proporciona o controle pelas partes e pela sociedade dos pro-nunciamentos judiciais. Fenômeno esse intitulado por Ferrajoli (2002, p. 492) de garantia de segundo grau ou garantia de garantia, isto é, a participação popular atua como mecanismo de controle, cobrando a manutenção dos institutos jurídicos garantidores do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, a importância de tais requisitos do pronunciamento judicial é tamanha que, como foi dito, o legislador constituinte sedimentou-os como direitos fundamentais os quais devem ser respeitados sob pena de nulidade, o que se observa na intelecção do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988.

Todavia, ao negarmos o atentado à democracia com base na publicidade e na necessá-ria fundamentação das sentenças dos magistrados, já esperamos o inevitável contra argumento que defende ser o problema do ativismo, ainda, o subjetivismo presente na fundamentação dos juízes (STRECK, 2013. p. 62). Sendo assim, para responder a esse questionamento, é necessário adentrar na etimologia de uma das condutas principais do juiz, a interpretação, e entender que tal ato é indissociável de uma influencia subjetiva de quem a executa.

Segundo Cappelletti (1993, p. 22), por exemplo, interpretação “significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-los e - no caso do juiz, não menos que no do musicista, por exemplo - reproduzi-los, “aplicá-los” e “reali-zá-los” em novo e diverso contexto, de tempo e lugar”.

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A interpretação do juiz, entretanto, deve observar sempre as normas constitucionais, considerando que o Direito posto é formado por um sistema no qual a Constituição Federal de 1988 encontra-se no topo da hierarquia de importância, não só com relação às suas regras como também aos seus princípios.

Por estar nessa posição proeminente, a Constituição Federal de 1988, além de servir como norma diretamente aplicável aos casos concretos, representa um conjunto de valores elei-tos como fundamentais para a coesão social. Assim, pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988 exprime uma ética no sentido de agrupamento de valores voltados para o melhor rela-cionamento em sociedade.

Por isso, é possível dizer que o juiz está fadado a mostrar seu subjetivismo em suas de-cisões, mas, quando se utiliza de elementos abstratos na sua fundamentação, ele está vinculado a uma ética/moral, todavia, não a uma ética/moral subjetiva, criada a partir de sua própria inter-pretação do que seria moralmente aceito e melhor para a sociedade, mas à ética/moral extraída da interpretação axiológica e sistemática da Constituição Federal de 1988.

Portanto, se existirem normas jurídicas em desconformidade com a moral, o parâme-tro para aferir tal desconformidade deve ser os valores constitucionais, valores esses que tam-bém devem ser aplicados para sanar tal desacordo.

Mostra-se, assim, inevitável e até positivo o subjetivismo limitado pela Constituição Federal de 1988 quando esse é utilizado para afastar a frieza da regra e aplica a nova norma formulada com base na interpretação constitucional do caso concreto.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar dessas posições antagônicas, capazes de gerar acalorados debates com convin-centes argumentos para ambos os lados, a experiência demonstra que, sempre que houver dois radicalismos, é preciso construir um ponto de equilíbrio.

Assim sendo, o “meio termo” deve ser a permissão da atuação “ativista” do Judiciário visando sanar uma política já implementada que não se mostrou suficiente na concretização de direitos fundamentais ou uma omissão dos outros dois Poderes que esteja desrespeitando dire-tamente garantias constitucionais.

Então, inserido no presente contexto jurídico neoconstitucional, o qual enaltece a apli-cação direta da Constituição e a irradiação dos seus princípios na interpretação das normas de todo ordenamento, pode-se afirmar que é mais do que necessária a atuação da Justiça constitu-cional interventora nas situações onde se identificam opções políticas omissivas ou insuficientes para a proteção dos direitos dos cidadãos.

Todavia, isso não deve servir como justificativa para que toda escolha política tenha que passar por um filtro de aprovação do Judiciário. Reafirma-se: devem os juízes agir estrita-mente quando direitos constitucionais estiverem sendo ofendidos por políticas desarrazoadas ou omissivas.

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Nessa esteira teórica, não há como olvidar-se dos avanços trazidos pelo fenômeno do ativismo judicial. A consciência de um Estado de Direito que consagra e efetiva a nova con-cepção constitucionalista (e a consequente ampliação das conquistas sociais) é suficiente para justificar a postura atual do Judiciário, que, por sua vez, não pode nem deve restar absolutamen-te limitado por concepções vetustas da separação de Poderes, dentre outras críticas puramente teóricas que desconsideram a realidade prática que preserva e oportuniza o exercício de direitos e garantias fundamentais.

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THE STATE OF LAW, BREAKING THE POSITIVIST PARADIGM AND THE EMERGENCE OF JUDICIAL ACTIVISM

ABSTRACT: This article aims to analyze the emergence, the historical evo-lution, the reasons and the effects of the phenomenon, common not only in Brazil but also abroad, called judicial activism. Therefore, studying the ori-gins and the transformation of the State of Law, the influence of positivism and the State’s tripartition, based on the teachings of Modern and contempo-rary scholars. It is noticed that, currently, that phenomenon is the result of so-cial demands unmet by the State to end up being pled to the Judiciary which, in principle, should not intervene in the actions or omissions of the Legislative and Executive. Keywords: Judicial activism. State of law. Tripartition of powers. Social un-met demand. Judiciary.

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Recebido em 09 set 2014. Aceito em 30 abr. 2015.

O HUMANISMO NA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: PARA ALÉM DO SÓCIO--POLÍTICO-ECONÔMICO

Sheyla Yvette Cavalcanti Ribeiro Coutinho*

RESUMO: A Ilustração está em crise. A confiabilidade no método científico “coisificou” as relações inter-humanas. O homem, afastado de si, objetifica-se. A racionalidade científica instrumental exigiu que se olvidasse das dimensões subjetivas e normativas. Impõe-se o homem contra o Outro, a despeito dos valores fundamentais, isolando-se no “Eu” individual. Neste trabalho, ultra-passar-se-á a contextualização da guinada paradigmática “de oposição”, atra-vés de um produtivo diálogo entre o Materialismo Dialético e as Filosofias de Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer.Palavras-chave: Materialismo dialético. Martin Heidegger. Hermenêutica filosófica. Hans Georg Gadamer.

1 INTRODUÇÃO

O homem medieval submisso à natureza, ao mítico, ao despotismo dos Reis e dos Deuses, agora, soergue-se, através da racionalidade, da escravidão de seu habitat. Dominar o mundo, subvertendo-o ao seu controle, por ocasião da ação racional-instrumental, representou o sinônimo de Progresso e Liberdade. A Ilustração trouxe consigo o jargão da modernidade Razão = Igualdade = Liberdade = Paz. Beneficiando-se da incessante aquisição do domínio especializado e da maximização dos processos de intervenção, o homem julga-se no caminho

* Mestre em Filosofia da Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Hermenêutica Filosófica. Especialista em Meto-dologia do Ensino Superior pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e em Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Professora de Hermenêutica Jurídica na UNIRB/CESAMA (Faculdade Regional da Bahia RB - Campus de Arapiraca). Analista Judiciária na Justiça Federal de Sergipe.

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da mais verdadeira liberdade.De posse de uma razão instrumental, o homem, em detrimento da inicial proposta con-

tida na supracitada equação iluminista, produziu, através dos tempos, uma crescente perda de liberdade. Talvez tenha sido essa a mais emblemática das crenças do Aufklãrung (Iluminismo/ Ilustração): aquela segundo a qual, pela aplicação crescentemente especializada da ciência, da técnica e da razão, o homem tornar-se-ia cada vez mais autônomo e feliz.

À Luz do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, teria sido Kant quem propria-mente inaugurou a modernidade quando, em 1784, no seu “Que é esclarecimento?” iniciou um discurso da filosofia como um discurso da Modernidade. Kant entregava ao homem a res-ponsabilidade de alcançar a sua liberdade através da própria razão. A maioridade somente era atingida pelo homem através da ação da faculdade da razão. Porém, o “esclarecimento” levou, contrariamente às promessas de uma humanidade envolta pela “paz perpétua” eloquentemente formulada por Kant, à escravização do homem ─ déspota de seus semelhantes e cativo de si mesmo. Tal situação expressa o que Weber chamaria de Sinnverlust ou perda de sentido. A pro-posta de uma unidade ética, o estabelecimento de uma sociedade equitativa a partir do jargão kantiano — “Sapere aude!” — terminou por se encaminhar à atomização do homem, separado dos outros homens e desmembrado, ele próprio, de si.

Nessas palavras iniciais, fica-se inquieto, a partir daquilo que está apresentado no es-tado de coisas das atuais sociedades, diante de questionamentos como estes: até que ponto as promessas da modernidade podem ou não ser cumpridas? Que compreensão de ethos pode ser “recuperada” diante de todo este pathos social? Qual o futuro da humanidade diante de tudo isso?

Como entender, quiçá explicar, que uma única pessoa, das mais ricas do mundo, dentre as divulgadas pela revista Forbes, em 2009, como Bill Gates, com um patrimônio somado em 40 bilhões de dólares, tenha uma fortuna pessoal próxima ao PIB da grande maioria dos países latinos, asiáticos e africanos? Ou, considerar que apenas 44 países dos 192 reconhecidos pela ONU possuam um PIB superior a 50 milhões de dólares, enquanto todo “o resto” está fadado a viver com uma soma de riquezas inferior aquelas grandes fortunas particulares? Desemprego, miséria, inexistência de Sistemas de saúde e de previdência são apenas alguns dos problemas que os afligem.

Se, no âmbito político das nações desenvolvidas, aumentou o número de bens, valores e tutelas individuais sob a égide dos “direitos humanos1”, nos países latino-americanos o que vemos é um enfraquecimento crescente das liberdades individuais, dos Estados Nacionais, bem como, do reconhecimento dos direitos mínimos necessários às populações integrantes.

Nessa inquietude inicial, questiona-se quais são os descortinares históricos na con-substancialização de um paradigma pós-moderno, que supere as antigas certezas modernas,

1 Usa-se a indicação “direitos humanos” em minúsculo para expressar o conceito “desvirtuado”, da compreensão de humanidade que desenvolvemos ao longo do texto.

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as quais não mais acompanham o ritmo das atuais sociedades, angularizadas pelo consumo desenfreado de bens voláteis e por realidades tão antagônicas.

2 A OBSCURIDADE SOBRE A ILUSTRAÇÃO: A CRISE DA RAZÃO LIBERTÁRIA E A EMEGÊNCIA DE UM “NOVO ILUMINISMO”

A Ilustração está em crise: os sonhos modernos de que, através da Razão, da Ciência ou da Tecnologia poder-se-ia encaminhar o homem à Felicidade, ao Progresso, à Liberdade e à Paz parecem ter encontrado grandes barreiras na “realidade”. A confiabilidade do método cien-tífico “coisificou” as relações inter-humanas. O homem cada vez mais afastado de sua condição humana (demasiadamente), objetifica-se. A Ilustração e a desmistificação do mundo exigiram, por consequência da racionalidade científico instrumental, que o homem destituísse as dimen-sões subjetivas e normativas que o atravessavam. Voltando-se, cada vez mais, para si mesmo, impõe-se, o homem, contra seu semelhante e, a despeito de todo arcabouço de valor, isola-se no “seu mundo” individual, privado de sentido.

A equação Iluminista Razão = Igualdade = Liberdade = Paz, acenada no seio da mo-dernidade, aponta para uma guinada paradigmática. Essa transição de paradigma, SANTOS (1995, p.34) esclarece, aparece mais “evidente no domínio epistemológico: por baixo de um brilho aparente, a ciência moderna, que o projeto da modernidade considerou ser a solução privilegiada para a progressiva e global racionalização da vida social e individual, tem-se vindo a converter, ela própria, num problema sem solução, gerador de recorrentes irracionalidades”. Influindo sobre as mentes de forma efetiva, instituindo os conceitos soberanos e as relações lógicas, os paradigmas governam, implicitamente, as teorias científicas. Por isso, em contra-partida, há uma fileira científica, que expõe a premência da emergência de um novo paradigma cognitivo, que possibilitará as interconexões, ora imprescindíveis, entre as ciências e as demais disciplinas “complementares”, inicialmente apartadas pela Modernidade, que dissociou a rela-ção sujeito-objeto.

O antigo paradigma determinista mecanicista do Universo, ao longo do tempo, sofreu profundas fissuras nas suas pilastras de sustentação. As noções de ordem e de desordem e suas intrínsecas dificuldades de concatenações lógicas são, cada vez mais, concebidas sob a égide da complementaridade e não do antagonismo. Tal fato deu-se, desde a teoria dos átomos reproduto-res de Neumann e von Foerster (Ordem e caos), perpassando pela termodinâmica de Prigogine, chegando até a teoria do caos organizador, a partir dos trabalhos de David Ruelle.

Dessa forma, a tarefa científica não deve ser a de afastar a desordem de suas teorias, mas sim, estudá-la. Para além, a concepção de organização não deve ser excluída, entretanto, deve-se concebê-la e introduzi-la no conteúdo das demais disciplinas. Uma nova consciência é fatalmente necessária, aquela chamada por Piaget de “o círculo das ciências”, que estabelece de fato a interdependência das diferentes ramificações científicas. A via de articulação entre as ciências físicas, biológicas e humanas é um caminho sinuoso, dado que, cada uma delas

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empreende não apenas uma linguagem própria, mas também, conceitos fundamentais que não devem ser transferidos de uma linguagem a outra. É, por conseguinte, necessário conservar as noções chaves que implicariam a interarticulação, através do estabelecimento de um sistema de cooperação, para mais, de um projeto comum.

Aproximando-se mais do plano sociopolítico que da crítica epistemológica da ciência moderna, SANTOS (1995, p. 35) afirma que “a transição paradigmática tem vindo a ser enten-dida de dois modos antagônicos”. O primeiro modo, designado por ele de “pós-modernismo inquietante ou de oposição” reside numa dupla verificação: a primeira diz que no momento em que a proposta moderna deixou-se reduzir pelas exigências do capitalismo, sua tarefa (não cumprida) não alcançará via de realização concreta (SANTOS, 1995, p. 35); a segunda verifica-ção versa sobre a impossibilidade de se alcançar o cumprimento das promessas modernas em termos modernos ou segundo os mecanismos desenhados pela modernidade após dois séculos de relações, promíscuas, entre modernidade e capitalismo (SANTOS, 1995, p. 35). O segundo modo de tratamento da transição paradigmática, “pós-modernismo reconfortante ou de cele-bração”, aceita que: o que efetivamente está em crise é a “ideia moderna de que há promessas trans-históricas a cumprir e, ainda mais, a ideia de que o capitalismo pode ser obstáculo à rea-lização de algo que o transcende” (SANTOS, 1995, p. 35). Essa segunda versão da transição paradigmática, na opinião de SANTOS, não tem nenhuma contribuição a receber do Marxismo.

Na feitura deste trabalho, estar-se-á “ultrapassando” a contextualização sociológica da guinada paradigmática “inquietante ou de oposição” apresentada por SANTOS, consubstan-cializando-se um produtivo diálogo com o materialismo dialético de Marx e sua compreensão da humanitas. A “guinada” aqui apresentada dá-se no caminho Ético-Ontológico, na escuta da colocação heideggeriana [utiliza-se a expressão “Ético-Ontológico”, em letras maiúsculas, por, como será visto, tratar-se de uma Ética e Ontologia originais]:

Pelo fato de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história, a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia. Mas porque nem Husserl, nem Sartre, nem quanto eu sabia até agora, reconhecem que a dimensão essencial do elemento da história reside no ser, por isso, nem a Fenomenologia, nem o Existencialismo, atingem aquela dimensão, no seio da qual é, em primeiro lugar, possível um diálogo produtivo com o marxismo. Mas, para isto, é naturalmente necessário que a gente se liberte das representações ingênuas sobre o materialismo e das refutações mesquinhas que pretendem atingi-lo. A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria; ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo ente aparece como material para o trabalho. (HEIDEGGER, 1979, p.162)

No caminho hermenêutico-filosófico, partir-se-á de Marx dirigindo-se, de certa forma, para além dele. Diz-se isso, pois que não se tratará do materialismo histórico-dialético na sua versão “mais fraca”, determinismo /reducionismo econômico (SANTOS, 1995, p. 36-38). A

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conversação com o marxismo, estabelecer-se-á em um sentido especial2, encaminhar-se-á na direção da “afirmação-condicionada” de SANTOS (1995, p. 39): “se é verdade que o marxismo procura um equilíbrio estável entre estrutura e ação, penso que hoje, sendo incorreto abandonar de todo a ideia de estrutura, é necessário abertura dos horizontes de possibilidades e a criativi-dade da ação”. Visto que, é na natureza do que GADAMER chamava de tensão ─ a polaridade entre a familiaridade, que a tradição ocupa junto a nós, e a estranheza do novo que se baseia a tarefa hermenêutica. Constituindo o entremeio dos dois polos, supostamente antagônicos, o verdadeiro locus da hermenêutica. (GADAMER, 1999, p. 442).

3 A TAREFA HERMENÊUTICA: RESIGNIFICANDO A HUMANITAS DO HOMO HUMANOS

Marx, na 6ª tese sobre Feuerbach, adverte que a essência humana é o conjunto das relações sociais e não uma abstração inerente ao individuo singular, dessa maneira, a essência humana somente pode ser apreendida como “gênero” (MARX,1991, p. 13). O curso histórico não se entende como algo fixo, inexorável, mas algo que está em constante vir-a-ser na curva do tempo. Dessa maneira, Marx “supera” as considerações metafísicas da História, vinculando o “SER DA HISTÓRIA” à própria ação humana. A história não é uma abstração “oca”, “rare-feita”, mas a legítima atividade de um sujeito, de um sujeito especial - o homem:

Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. (...) a moral a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a ela correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não tem história, nem desenvolvimento, mas os homens ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (MARX, 1991, p. 37)

Nessa perspectiva de Marx, o homem “socializado” é o homem “natural”. Na socieda-de o homem encontra a sua essência, assim a humanitas do homo humanus é a sociedade huma-na ou humanidade social, conforme diz na 10ª tese sobre Feuerbach (MARX, 1991, p.14). O es-forço hermenêutico vai “alguns passos para além” de Marx, porque “reconhece” a humanidade do homem em uma dimensão “mais suprema” que a social (embora não a exclua), a dimensão do Ser3. Como propriamente alude GADAMER (2002, p. 18), o caminho de sua Filosofia Her-menêutica procura manter-se no caminho do Heidegger “tardio”. Assim, precisa-se esclarecer que compreensão do humano em Heidegger apresenta nessa “viravolta” de sua filosofia. Nesse

2 O que trataremos, através da Filosofia Hermenêutica, como estrutura, não se detém apenas ao âmbito empírico das “determinações” (ordens) sócio-político-econômicas, mas alcança “dimensões mais supremas” de realidade que ainda não se converteram ao âmbito das relações/ experimentações históricas, como veremos no decorrer deste trabalho.3 Apesar dessa dimensão do Ser jamais poder ser clarificada como um todo: “O ser enquanto ser que destina verdade permanece oculto” (HEIDEGGER, 1979, p. 162).

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momento, para HEIDEGGER (1979, p. 157) o “homem é enquanto ec-siste. A substância do ho-mem é a ec-sistência, ou seja, a essência do homem é a sua constante abertura ao Ser: “a ec-stá-tica in-sistência na verdade do Ser”. O que nos faz seres humanos é notadamente essa condição ec-sistencial, ou seja, este estar postado na clareira do ser: “O homem é o pastor do ser. (...) O homem é homem enquanto é o ec-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do ser, que é o modo como o próprio ser é” (HEIDEGGER, 1979, p.163 -168).

Por essa ocasião, no caminho dessa essência humana, a condição de estar postado na clareira do ser (HEIDEGGER, 1979, p. 168), descortina a andança que é ético-ontológica: “Se, (...) de acordo com a significação fundamental da palavra ethos, o nome Ética diz que medita a habitação do homem, então aquele pensar que pensa a verdade do ser como elemento primor-dial do homem enquanto alguém que ec-siste já é em si a Ética originária” (Ibid., p. 170). Nesse momento, cabe-nos uma reflexão fundamental: O projeto do humanus supõe o acordo previsto (correspondência) do Dasein4 com o ser, isto é, pressupõe a fidelidade do homem com relação ao ser no pensamento essencial, ec-sistencial, resultando na “possibilidade de devolver à palavra humanismo um sentido historial que é mais antigo que seu mais antigo sentido, sob o ponto de vista historiográfico” (HEIDEGGER, 1979, p.165).

Para HEIDEGGER (1979, p. 162) o marxismo, a partir de Hegel, deu um passo impor-tante ao reconhecer a apatridade como destino do homem. A historiografia marxista, enquanto percebe a alienação, atinge uma dimensão essencial da História, torna-se uma historiografia superior a qualquer outra:

A apatridade torna-se um destino do mundo. É por isso que se torna necessário pensar este destino sob o ponto de vista ontológico-historial. O que Marx a partir de Hegel reconheceu, num sentido essencial e significativo, como alienação do homem, alcança, com suas raízes, até a apatridade do homem moderno (...) Em face da essencial apatridade do homem, mostra-se ao pensamento, fiel à dimensão ontológico-historial, o destino futuro do homem, no fato de ele achar o caminho para a verdade do ser, pondo-se a caminho para este encontrar. (HEIDEGGER, 1979, p.162 -163)

Cabe, agora, uma interessante reflexão: Quando o homem da racionalidade iluminista (culminando no método cartesiano-instrumental, até hoje preponderante no círculo científico) diz “eu faço isso” ou “eu não faço isso” ― o que ele entende por essa palavrinha “eu”? A imen-sa maioria dos homens entende esse “eu” como sua personalidade física, material. Analisando a “realidade”, segundo os caracteres efêmeros da corporeidade, frequentemente, o homem atenta contra sua própria condição de dasein, ou aquele que está na clareira do ser. Esse critério de ava-liação não funciona como fonte “suficiente” de valoração para as ações humanas, “autênticas”.

4 Dasein (Ser-no-mundo, eis-aí-Ser, Ser-aí, representam traduções equivalentes) é, em Heidegger, uma entrada, toda inspirada de cuidado e de sacrifício na felicidade e na alegria da unidade. Para que um ente possa estar presente e mesmo para que possa haver um ser, a condição de abertura do ser, é necessário o estar do homem já no aí, na clareira, na claridade do ser, modo este como o homem existe, ec-siste. Não pode haver ser do ente, sem o homem.

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Esse “homem” é joguete dos caprichos e sensualidades do ambiente físico. Ele não governa sua alma, mostrando-se inteiramente a mercê dos ventos e das correntezas alheias (exteriores a si mesmo). Pergunta-se, então: Como poderia ser solidamente “formado” o homem que faz depen-der a sua formação de algo que não depende (autenticamente) dele?

Há também os que identificam o seu “eu” com a parte psíquica ou mental de sua natu-reza humana, confundindo o seu verdadeiro “eu” com a zona psíquica, intelectual e mental do seu ser. Assim, se a sua tela mental estiver sendo influenciada pelos ditames de uma sociedade que segue determinados tipos de valores, a sua coerência formativa estaria baseada neste alicer-ce do ambiente social e da própria opinião pública.

De forma resumida, tanto os homens que compreendem o seu “eu” sob o primeiro es-quema ― da condicionalidade do habitat físico ― tanto aqueles apresentados no segundo mo-mento — que compreendem seu “eu” em dependência de suas capacidades psico- intelectuais, incessantemente, aturdidas pelas influências sociais — fazem depender sua “formação” de uma instância exterior e afastada deles mesmos, dos “seus interesses e perguntas condutoras” (GA-DAMER,1983, p. 75). A verdadeira formação não é alguma quantidade externa, algum objeto que o homem aprende externamente; a formação aqui é pensada, através do método hermenêu-tico, enquanto uma qualidade interna, um sentido que o homem cria dentro de si: “Só teremos alguma probabilidade de compreender os enunciados que nos preocupam se reconhecermos neles nossas próprias perguntas. (...) quando alcançada, a compreensão significa uma interiori-zação que penetra como um novo experimento no todo de nossa própria experiência espiritual” (GADAMER, 1983, p. 73, 75).

Se a experiência ou o método hermenêutico é o que nos constitui como pessoas, es-tabelecendo um certo tipo de relação cognoscitiva e moral com o nosso “eu espiritual” ela é, também, por outro lado, aquilo que, autenticamente, permite desatravancarmo-nos desse “eu” ou desse ser “Eu”. Esse método torna-nos o que somos ao reconhecer a simultaneidade entre os nossos sentidos e valores pessoais e o sentido e valores universais e, reconhecendo nossa in-completude, seres-no-mundo (dasein), em plena jornada evolutiva. Sobre isso, Gadamer (1999, p. 506) vai dizer que:

Por muito que acentuassem [alguns pensadores da corrente empirista] a individualidade, a barreira da estranheza que a nossa compreensão tem que superar, a compreensão só alcança, em definitivo, sua perfeição, e a idéia da individualidade só encontra sua fundamentação, numa consciência infinita. É a inclusão panteísta de toda individualidade no absoluto o que torna possível o milagre da compreensão.

Assim, também aqui o Ser o saber se interpretam mutuamente no absoluto.

Seres-na-relação (com o ser), ontologia fundamental, “irmãos em Deus”, nós estamos convivendo no fluxo vital do pensamento essencial, instaurando novas formas de pensar nós mesmos e o ser. As regras do método hermenêutico são, por essa ocasião, simultaneamente, estéticas (permitem o surgimento do novo, a criação) e éticas (são atravessados por um sentido

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de direcionamento, por uma tarefa reguladora que orienta o bem agir comum). Não se trata de determinar jeitos, formas, meios de ação, ou regras coercitivas e dominadoras, paralisando-se em modelos de ação que devem ser seguidos e copiados, a fim de garantir o sucesso na atividade envergada. Mas, implica na criação de novos e diferentes modos de ação e possibilidades diante das situações existenciais, imersas em um espaço-tempo determinado e que suscitam diferentes gerenciamentos e estratégias. A dimensão ética do método diferencia-se da moral, enquanto conjunto de regras que coagem a ação, julgando-a segundo valores / imperativos transcendentes fixos: O certo, o errado. A ética, aqui, diz respeito a nossa relação com o ser, pode-se utilizar, inclusive, a igualdade Ética originária = Ontologia Fundamental (HEIDEGGER, 1979a, p. 171).

O mundo da técnica usurpou do humano essa abertura à característica ontológica fun-damental, que nos une a um todo indissociável. Entregou-se a saberes parciais e às especializa-ções vinculando o poder-fazer humano ao corpo sociopolítico-econômico e suas deliberações. O conceito de formação e método, nesse escopo, vai além das configurações cognitivo cultu-rais domésticas. Representa uma ontologia essencial, que não se expropria da condição de lei, regulando o agir ético da humanidade, sem o qual estaríamos fadados à completa anarquia e ao niilismo. Somente dentro de uma conjuntura ética universal (ontológica) poder-se-á falar de uma necessidade fundamental ao humano, de grande representatividade às questões (atuais e de sempre) da fome, do desemprego, da miséria, da dominação, exclusão, discriminação etc: o saber ouvir. GADAMER tenta explicar o que significa, no âmbito da sua filosofia essa acurada “capacidade auditiva” (2002, p. 240-241):

Independentemente de todas as distinções da escrita, diria que, para se compreendido, cada escrito exige uma espécie de ouvido interior. Onde se trata de poesia e de matérias similares, isso é evidente. Também na filosofia costumo dizer aos meus estudantes: Vocês devem afinar o ouvido, devem saber que, quando pronunciam uma palavra, não empregam uma ferramenta qualquer, que se pode colocar de lado se não servir a vocês. Vocês, na verdade, tomaram uma direção de pensamento que vem de

muito longe e os leva para muito além de vocês mesmos.

O homem, imbuído do método hermenêutico, percebe que deve tentar resistir à tenta-ção de substituir essa “postura universal por uma conduta relativa marcada pelas convenções aturdidas da conveniência social, fechando a porta para aquela serenidade d’alma. Sobre isso GADAMER (2002, p. 154) vai falar da relação entre fé (certeza firme e inabalável) e a com-preensão (autêntica, hermenêutica), na qual “pode-se dizer que o si-mesmo dos indivíduos, seu comportamento e sua autocompreensão mergulham numa relação superior que é o verdadeiro fator dominante”. Contudo, tão bem sabe ele que “é difícil, (...), manter essa visão teológica e essa experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver sob o domínio da ciência moderna e de sua metodologia” (GADAMER, 2002, p. 155).

A Ilustração trouxe consigo o jargão da modernidade Razão = Igualdade = Liberda-de = Paz. O homem medieval submisso à natureza, ao mítico, ao despotismo dos Reis e dos

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Deuses, agora, soergue-se, através do seu exercício racional, da escravidão do habitat natural. Dominar o mundo, subvertendo-o ao seu controle, por ocasião da ação racional instrumental (subjetivista - intencional), representou o sinônimo de Progresso e Liberdade. Beneficiando-se da incessante aquisição do domínio especializado e da maximização dos processos de interven-ção, o homem julgava-se no caminho da mais verdadeira liberdade. A modernidade, de uma forma geral, constituiu-se na mais alta crença humana no seu poder “livre” (autônomo) e in-tencional de intervenção no mundo. De outro lado, no “método hermenêutico”, a liberdade não se apresenta nos ditames de um arcabouço subjetivista intencional da racionalidade moderna (Ilustração). Remete a um sentido “pós-moderno” de direcionamento, que prevê “profundas” consequências éticas. A verdadeira relação humana está viva na entretecida vivência ente-ser. A grande empreitada de nossa condição humana é reconduzir o olhar do ente para o ser, re-constituindo a “união” dilacerada pela falta de atenção para com as coisas mais importantes. Vive-se, pela nossa condição mesma de seres humanos, na relação de proximidade com o ser. Mas, o dilaceramento da relação causa-efeito distancia a proximidade ontológica. Diminuir a distância entre homem e ser remete ao método traçado pela filosofia de Hans-Georg Gadamer. Esse o sentido de pós –moderno expresso nas linhas, que perfazem este texto. Esse “pós” de pós – moderno remete aquilo que VATTIMO (2002), na introdução (p. VIII) de sua obra “O fim da modernidade”, entende como uma despedida da modernidade, que volta a tratar a questão do Ser “como evento, sendo portanto decisivo (...) compreender ‘em que ponto’ nós e ele próprio estamos. A ontologia nada mais é que interpretação da nossa condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu ‘evento’, que acontece no seu e no nosso historicizar-se”.

Dessa sorte, no contexto do método gadameriano, não é o sujeito que decide autono-mamente sobre o seu destino, mas a grande responsabilidade do sujeito humano, enquanto “ente dos entes”, reside em se ver na relação de correspondência com o ser. Essa correspondência ontológica foi “usurpada” do humano pelo mundo das relações mais imediatas. Considerando o divino como a morada do homem, caracteriza-se uma ligação com algo fora dele, mas destinado a ele (Röhr, 2001, p. 08). Sobre isso, escreve Gadamer, em nosso auxílio:

Nem as extensões do apriorismo kantiano para lá dos limites da “ciência natural pura” por obra dos neokantianos, nem a nova interpretação das ciências experimentais modernas podem anular a concepção fundamental de Kant: somos cidadãos de dois mundos. Estamos, não só do ponto de vista sensível, mas também “supra-sensível”, destinados a liberdade — embora estes conceitos da tradição platônica só designem a posição dos problemas e não possam fornecer a solução da tarefa proposta com o primado da razão prática. Enquanto o facto da liberdade se deve pensar, com Kant, como um fato da razão, a teoria da evolução inscreve-se no âmbito da razão “teórica”. A liberdade, pelo contrário, não é objeto da experiência, mas antes pressuposto da razão prática. (1998, p. 90)

O existir do homem, no bojo das relações concretas, é remontado pela correspondência com uma instância que o ultrapassa e que o “impede” (de forma essencial) de pensar a questão

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da liberdade com o “L” maiúsculo das metanarrativas iluministas. Para experimentar-se a liber-dade, necessita-se de uma experiência plena e significativa (no sentido de desvelamento do ser), partindo-se (estando) nas contingências de mundo. Há no interior do homem ― ser-no-mundo ― uma força natural no sentido de pertencer, de ser próprio a alguma coisa, impulsionando-o a agregar-se a ela: destino significa “atingir e reunir, através do pensar, o que agora é do ser, num sentido pleno” (HEIDEGGER, 1979, p. 163). Sobre isso, escreve Hans-Georg Gadamer:

Aqui reside, ao fim e ao cabo, a última raiz da liberdade que faz do homem um homem: a escolha Ele tem de escolher e sabe (...) o que assim pretende fazer: escolher o melhor e, como tal, o bem, a razão e a justiça. Uma reivindicação desmedida – e, no fim de contas, sobre humana. O homem, no entanto, deve aceitá-la,porque tem de escolher. Tal é o abismo da liberdade. O ser humano pode perder o melhor – e mais ainda: pode fazer o mal em vez do bem, pode confundir o mal com o bem, o injusto com o justo, o crime com uma boa ação. Eis o que há de verdadeiro na frase de Sócrates ninguém pratica o mal voluntariamente. (GADAMER, 1998, p. 102)

Pensar essa forma própria do ser-no-mundo implica trazer a questão da liberdade e do destino a uma lógica interna do homem que reconduz o olhar humanus para a autêntica essencialidade do enigma de nossa existência: o de estar posicionado em ação (concreta) no interior do ser, participando de forma inexorável do seu destinar-se. Nesse momento, ilustra GADAMER (1998, p. 80), em exaustiva, porém, elucidativa citação; escrevendo sobre um de-sejo “profundo”:

Gostaria, por isso, de encontrar a solidariedade que vincula ambos os grupos científicos [“ciências naturais” e “ciências do espírito”] não só na sua metodologia, mas, sobretudo em algo que, mas do que qualquer método susceptível de se aprender e transmitir, se me impõe, pois é o seu pressuposto moral. Gostaria de chamar-lhe “disciplina”. É disciplina o que devemos exercer, hora após hora, no esforço cheio de desenganos da investigação, tanto no laboratório como à mesa de trabalho; é a disciplina que a nós, investigadores, nos força à suspeita contra nós mesmos e contra as opiniões que em nós se formam, a resistir à tentação da “publicity”, a qual gostaria de divulgar os nossos conhecimentos como o último resultado da sabedoria; é a disciplina que a nós, investigadores, nos impele a nunca perder de vista as fronteiras do que sabemos e que, no fim de contas, nos obriga a permanecer fiéis à própria história do Ocidente, o qual, com a infinda sede de querer-saber, já presente no seu começo, assumiu ao mesmo tempo a responsabilidade de defender a natureza humana, mediante o poder sempre cada vez mais fortalecido dos homens.

A liberdade é a interrelação dasein – Ser, ou seja, é o pertencimento original na ver-dade do ser. O destino representa o traçado de um caminho que se vê nessa cooriginalidade e apatridade fundamentais, “disciplinando” (regulando, ordenando) a ação enquanto seres-no--mundo. Volta-se os ouvidos, com atenção, para um daqueles soube perceber a união original. Faculdade de percepção muito peculiar à “classe dos poetas”. Lembra-se com ele que “amar se

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aprende amando” e “Ama-se” amando o mundo; seguindo o “destino” (que é essencialmente Amor5); “livres”, para segundo a inteireza do verbo “intransitivo” AMAR, caminhar amando:

“O amor que move o sol, como as estrelas” O verso de Dante É uma verdade resplandecente, e curvo-me ante a sua magnitude.

Ouso insinuar, sem pretensão a contribuir para que se desvende o mistério amoroso:

Amar se aprende amando. Sem omitir o real cotidiano, Também matéria de poesia.

Carlos Drummond de Andrade, 1987.

O método hermenêutico, dessa maneira, implica uma “formação”, que é ontologica-mente amalgamada à ética, revelando uma verdadeira consciência da condição humana (herme-nêutica), contribuindo para uma vida cada vez mais “humana, ec-sistencial, demasiadamente”.

Pensar a ética, como condição ontológica da existência, ou como forma mesma do homem ser, é trazê-la de volta ao tópos perdido pelo pensamento maquinizante e ideológico de uma razão desumanizadora. A superação da objetificação do conhecimento e de sua fria mensurabilidade das potencialidades humanas, resgatando-se uma lógica da vida capaz de re-conduzir o olhar do homem para o grande enigma da compreensão, ser partejante da ontologia fundamental, na qual todos nós falamos a mesma língua: a linguisticidade do ser. Na “morada” do ser, no mundo, o homem tem, ao longo do seu caminho, um “fio condutor”, que lhe permite posicionar-se, diante das diversas flutuações da mundaneidade histórica, jogando com a estra-nheza e questionando antigas certezas e verdades. Gadamer (2002, p. 241) vem dizer que: “Rea-lizamos sempre uma espécie de reciclagem. Num sentido bem amplo, gostaria de chamar a isso “tradução”. Ler já é traduzir e traduzir é traduzir mais uma vez. Pensa-se um instante sobre o que significa traduzir, isto é, trazer algo morto para uma nova realidade pela leitura compreen-siva ou quiçá trazer algo que fora expresso numa língua estranha”. Esse sentido de “tradução” é

5 Amor aqui não se refere ao amor romântico, ou qualquer parcialidade do Ser. Amor aqui significa a síntese original na dialética do Ser. Remete aquela dimensão ontológica que é fonte de todas as formas de entificação ou presentificação no mundo; entende-se como a totalidade. Dele, diz-nos BUBER (1977, p. 22-23): “Os sentimentos acompanham o fato metafísico e metapsíquico do amor, mas não o constituem: aliás estes sentimentos que o acompanham podem ser de várias qualidades. (...); mas o amor é um. Os sentimentos, nós os possuímos, o amor acontece. Os sentimentos residem no homem, mas o homem habita em seu amor”. Nele, no AMOR “se encontra o berço da verdadeira vida” (BUBER, 1977, p. 16).

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a base do método hermenêutico ancorado na Filosofia de Hans-Georg Gadamer.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inserida na discussão de Hans- Georg Gadamer, a categoria participação vivifica a questão da unificação, da universalidade do ser-no-mundo (dasein). O homem é ontologicamen-te “ser com”, cuja identidade está no “além de si mesmo”, em unidade com o Todo. A existência, ec-sistência — no conceito de ser-no-mundo, admite a liberdade6; logo é uma “inconstância na constância” perfazendo o ato da criação. Poderíamos arriscar a dizer que todo criar é um recriar, não em um mero conceito de reprodução, mas uma ação ampliada pelo ser-mais. Dessa forma, não se orienta na perspectiva do “eterno retorno do mesmo” (NIETZSCHE, 1996, p. 442), como também, não implica reconhecimento de um Todo previamente dado (HEGEL, 2001, p.301). Hegel que, em sua obra, Fenomenologia do Espírito, apresentava o fenômeno como um conhecimento sistemático do ser. Para aquele, o absoluto é cognoscível e, ele mesmo, empreende uma Filosofia do Absoluto. No Parágrafo 20 dessa obra diz: “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através do seu desenvolvimento. Sobre o absoluto deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é”.

Somos individualização e participação, componentes e substância, homem e ser não são elementos separados, mas representam a mesma substância, pois que não estão dissociados e um não existe sem o outro. Paulo, o apóstolo, diz, com sabedoria, na sua Epístola aos Corín-tios, Cap. 12, versículos 15-21:

Se o pé disser: Porque não sou mão, não sou corpo; não será por isso do corpo? (....) E se a orelha disser: Porque não sou olho não sou do corpo; não será por isso do corpo?(...) Se todo corpo fosse olho onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? (...) Mas agora Deus colocou os membros no corpo cada um deles como quis. (...) E, se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? (...) Assim, pois há muitos membros, mas um corpo. (...) E o olho não pode dizer à mão: Não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: Não tenho necessidade de vós. (1987, p. 345)

O que se vê é uma interrelação entre diferentes horizontes de sentido que “mutua-mente” complementam-se, como diz Paulo, no giro teológico, o eu tem sua autoafirmação, sua função específica e necessária, assim como, participa de um todo e essa participação é impres-cindível à harmonização ecológica. Segundo, Pelizzoli (1999, p. 69-70):

Para entender um possível paradigma ecológico, emergente, devemos ter conhecido as linhas do (s) paradigma (s) que sustentam a situação atual e sua construção histórica.

6 Entre o ser humano e o Ser escancara-se um espaço, esse espaço é a Liberdade. A liberdade é a ligação, a relação efetiva com o ser, sendo a angústia, o acordo fundamental do ser humano com sua experiência possível ou realizado do ser, enquanto “projeto” (móvel) na abertura ao ser.

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O paradigma da tradição a ser questionada como antiecológica é igualmente o que trouxe problemas éticos ─ problemas de relação e ethos─ pois situa-se desde uma “grande teoria” que se enquadra como “vontade de domínio” do Outro (mesmo desde o logos grego) e como afirmação absoluta de um sujeito pretensamente autônomo e livre (ego) diante da realidade circundante e dos outros (estranhos, fracos, excluídos...), e se vale do processo de objetificação. No contexto do ecólogo isto é dito como antropocentrismo exacerbado, não longe da justificação da aristocracia ou da burguesia. Destoando disto temos outro grande paradigma, que retoma uma visão mais biocêntrica e ética (...).

Na esperança de que aprender-se-á a se deter “perante o Outro como Outro, em face da natureza e das culturas orgânicas dos povos e dos Estados, e a experimentar o Outro e os Outros como os Outros de nós mesmos, para conseguirmos uma participação recíproca. (...) Ei o máximo e o mais elevado a que podemos aspirar e chegar: participar no Outro, conseguir a participação no Outro” (GADAMER, 1998, p. 28).

A humanidade necessita, a fim de trazer uma alternativa de consenso para as grandes divergências atuais da humanidade, essas responsáveis por catástrofes cada vez mais constantes no acontecer da história (guerras religiosas, atentados como os de onze de setembro, divergên-cias étnico-religiosas, acirrada discrepância econômica, etc.) que o eu autoafirmado amplie-se e vá ao encontro do Outro que o habita. Tratar-se-á de encontrar as interrelações entre objetivi-dade e subjetividade ─ unidade na diversidade.

Sendo assim, a abordagem gadameriana, possui uma “estrutura” (substancialidade), que orienta o movimento da compreensão humana, ec-sistencial: A relação de correspondência entre homem e ser, que aqui se denominará de ecologia ampla.

Ecologia, nessa categorização ec-sistencial, seres-no-mundo, traz a dimensão funda-mental da humanidade. Em sentido especial ─ ético-ontológico ─ que o ultrapassa, concorda-se com SANTOS (1995, p. 43): “a única utopia realista é a utopia ecológica e democrática”.

REFERÊNCIAS

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GADAMER, Hans Georg. Herança e futuro da Europa. Trad. António Hall. Lisboa: Edições

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THE HUMANISM IN PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS: BEYOND THE SO-CIO-POLITICAL-ECONOMIC

ABSTRACT: The illustration is in crisis. The reliability of the scientific method “became an object” the inter-human relations. The man away from you, objectifies itself. The instrumental scientific rationality demanded that was forgotten of subjective and normative dimensions. It must be man against another, in spite of the fundamental values , isolating the “I” individual. In this paper, the context of the paradigmatic shift “opposition” will be over-come, through a productive dialogue between Dialectical Materialism and the philosophies of Martin Heidegger and Hans Georg Gadamer.Keywords: Dialectical materialism. Martin Heidegger. Philosophical herme-neutics. Hans Georg Gadamer.

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Recebido em 17 fev. 2015. Aceito em 30 abr. 2015.

O INJUSTIFICADO NÃO-RECONHECIMENTO DAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL

Jessica Petrovich Henriques*

RESUMO: As famílias simultâneas sofrem um enorme, e injustificado, pre-conceito jurídico, pois, apesar de preencherem todos os requisitos atuais para serem consideradas famílias legítimas, a jurisprudência majoritária se nega a reconhecê-las. O presente trabalho irá apontar que tal postura jurisprudencial é juridicamente injustificável, bem como explanará os problemas causados pela supervalorização da monogamia, que não é princípio constitucional, mas que recebe status de primazia pela jurisprudência.Palavras-chave: Famílias simultâneas. Constitucionalização do direito de família. Monogamia.

1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, tem-se um momento constitucional extremamente importante no Bra-sil; a Constituição Federal adquiriu não só inegável força normativa, como seus princípios as-sumiram posição de supremacia no ordenamento jurídico. É interpretação uníssona da doutrina de que todos os ramos do direito devem ser interpretados à luz da Constituição Federal.

A Constituição de 1988, ao ser promulgada, inseriu intensas e importantes mudanças em todo o ordenamento jurídico ao mudar seu cerne, que agora passou a ser o indivíduo e sua dignidade, através do princípio da dignidade da pessoa humana. Todos os ramos do nosso orde-namento passaram por um processo de constitucionalização, isto é, de adaptação da interpreta-ção de suas normas para que passassem a estar em conformidade com os princípios, explícitos ou implícitos, presentes na Constituição.

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.

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Um dos princípios reconhecidos pela Constituição Federal, importante para o presen-te trabalho, foi o do pluralismo familiar, que, basicamente, passou a aceitar como unidades familiares não só aquelas constituídas pelo casamento, mas também as formadas por união estável e aquelas constituídas por quaisquer dos pais e seus descendentes; ademais, os Tribu-nais Superiores, impulsionados pelo princípio constitucional do pluralismo familiar, passaram a reconhecer outros tipos de famílias, como, por exemplo, as famílias anaparentais1 e as famílias homoafetivas2.

O alargamento do conceito de família inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal não foi inovação aleatória forçada, mas sim, algo provocado pela mudança social da acepção de família. O papel do Direito é ser reflexo daquilo que é realidade na socie-dade em que está inserido em determinada época, por isso, o conceito jurídico de família tam-bém se transforma com as diversas mutações sociais, de modo a tentar tutelar todas as formas de organização familiar.

O Direito das famílias, atualmente, considera como requisitos principais para a for-mação de uma família a afetividade, a estabilidade e a ostensividade. Valorizando mais o in-divíduo e a intenção do casal do que a formalidade, como ocorria em momentos passados do ordenamento.

As famílias simultâneas, entretanto, ainda sofrem não só com o preconceito social, mas também com o preconceito jurídico, uma vez que não são reconhecidas como entidades familiares, apesar de apresentarem todos os requisitos para que assim fossem.

O não-reconhecimento das famílias simultâneas provém, principalmente, da primazia dada pela doutrina e pela jurisprudência ao “princípio” da monogamia, meramente infraconsti-tucional, em detrimento dos princípios do pluralismo familiar e da dignidade da pessoa huma-na, consagrados pela Constituição Federal.

O presente artigo objetiva explanar a falta de justificativa jurídica para o não-reconhe-cimento das famílias simultâneas como entidades familiares, bem como apontar a problemática causada ao alçar algo como a monogamia à categoria de princípio supremo do Direito das fa-mílias.

2 AS TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE FAMÍLIA

O conceito de família sofreu intensas modificações ao longo do tempo e, ainda nos dias de hoje, sofre transformações e amplificações de acordo com as realidades fáticas que a sociedade vai apresentando e desenvolvendo com a sua evolução.

Mudanças políticas e econômicas, as conquistas dos diversos movimentos sociais, a introdução de novos princípios ordenadores do sistema jurídico e as constantes mutações com-

1 STJ. REsp 159.851/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. j. 19.03.1998. DJ 22.06.1998. 2 STF. ADI 4277 e ADPF 132. Pleno. Rel. Min. Ayres Brito. j. 05.05.2011. DJ 14.10.2011.

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portamentais, típicas da vida em sociedade, são fatores que influem diretamente na forma na qual os indivíduos escolhem se relacionar uns com os outros.

O papel do Direito é servir de reflexo das situações que ocorrem na sociedade em que está inserido. Ainda que acompanhe tais mudanças lentamente, a legislação e a jurisprudência de uma determinada época tendem a demonstrar o tipo comportamental das pessoas daquele período.

Far-se-á a um breve apanhado das modificações sofridas pelo conceito de família, le-gislativa e socialmente, bem como dos principais acontecimentos que as inspiraram.

2.1 O Código Civil 1916

O Código Civil de 1916 legitimava o casamento como única forma de constituição de família. O vínculo era indissolúvel e criava desigualdades entre seus membros, deixando clara a existência da hierarquia dentro da família. No tocante às relações extraconjugais e à prole oriun-da dessas relações, os chamados, na época, de “filhos ilegítimos”, observa-se que as referências do Código Civil eram todas no sentido de exclusão e discriminação.

Dias (2013, p. 30), sobre as referências do Código Civil de 1916 às relações extracon-jugais, ensina serem sempre “punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa de preservação do casamento”, isto é, o Código Civil de 1916, que ainda possuía con-siderável influência do Direito Canônico, no intuito de forçar um comportamento moralmente cristão na sociedade, não definia nenhum direito àquelas relações extraconjugais ou à prole de-las decorrentes, reforçando a ideia da monogamia – ainda que meramente voltada ao “exterior”, uma monogamia de aparência.

Tínhamos, portanto, à época, uma legislação que representava uma família matrimo-nializada, hierarquizada, patriarcal, patrimonializada, monogâmica, heterossexual, com base na incapacidade civil mulher e na completa imoralidade e reprovação do concubinato.

Sobre a indissolubilidade do casamento, diz-se que “tal manutenção do vínculo con-jugal interessava não só à Igreja, mas também ao Estado, que considerava a manutenção da sociedade marital necessária para consolidar as relações sociais” (MACHADO, 2012, p. 72); o que deixa claro que a separação entre Estado e Igreja ocorreu teoricamente, mas não de fato; muito do direito canônico mantinha-se na legislação que regia a vida da sociedade – situação que se estende até os dias de hoje.

Nesse sentido, Machado (2012, p. 72-73), novamente, com muita propriedade, explica que “mesmo a legislação brasileira atual continua impregnada pelas concepções religiosas e interferência do Direito canônico, que traz consigo uma moral sexual dita “civilizatória”, por tal razão é que durante todo o período de vigência do código de 1916 – e por considerável período de tempo de vigência do atual código civil de 2002 – ainda tínhamos como única família reco-nhecida juridicamente aquela formada através do casamento.

Socialmente, o casamento, àquela época, servia como forma de concretização de inte-resses patrimonialistas e de aparência, de status social. A família era uma instituição, protegida

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em sua forma, mas sem qualquer maior preocupação com seus membros.

2.2 O Código Civil 2002

A dinamicidade intrínseca à sociedade fez com que, aos poucos, houvesse importantes mudanças normativas no que diz respeito ao Direito das famílias. As mudanças sociais ocorri-das mundialmente, nas décadas de 60 e 70 – ilustra-se com o advento e popularização da pílula contraceptiva, a crescente emancipação feminina e os movimentos pela liberação sexual – pro-vocaram uma necessidade de modificação legislativa. Nesse contexto de mudanças sociais e crescente globalização, Dias (2013, p. 29) explica que “a sociedade evolui, transforma-se, rompe com tradições e amarras, o que gera a necessidade de oxigenação das leis.”

No Brasil, em 1962, a mulher emancipou-se de seu marido, com o Estatuto da Mulher Casada, que garantia a plena capacidade civil da mulher, que a partir daí não mais estava – ju-ridicamente, ao menos – subjugada à vontade de seu marido.

Em 1977, ocorreu importante afastamento dos dogmas da Igreja e dos ensinamentos do Direito canônico no que se refere à indissolubilidade do casamento. Em decorrência das mudanças sociais, com a existência de diversos casais separados de fato e que não encontravam no Direito o reflexo dessas transformações, foram editadas a Emenda Constitucional de n° 9 e a Lei 6. 515, que regulamentavam o divórcio.

O Código Civil atual, apesar de ter entrado em vigor em 2003, tem projeto que data de 1975, anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe consigo um turbilhão de mudanças para todo o sistema jurídico, mudando o foco do ordenamento e trazendo uma nova gama de princípios com força normativa e eficácia horizontal. Assim, diz-se que o Novo Código Civil já estava, em sua feitura, antiquado.

Neste sentido, foram feitas adaptações aos princípios constitucionais em forma de emendas, que, não raras vezes, modificaram o código superficialmente, mas não em sua essên-cia, tornando-o uma grande colcha de retalhos, que possui, ainda nos dias atuais, dispositivos que não coadunam com as normas constitucionais.

Entre esse período, com o advento da pílula contraceptiva, deu-se à mulher o poder tanto de escolha, como de controle quanto à concepção, enfraquecendo, assim, não só o outrora absoluto poder patriarcal, como também a antes necessária ligação entre casamento e reprodu-ção. Iniciou-se, então, um fenômeno social de autonomia entre o casamento, a reprodução e a expressão da sexualidade e da afetividade, podendo todos esses elementos misturarem-se em um relacionamento ou não.

Dessa forma, a expressão da sexualidade passou a ser bem mais clara e livre, aumen-tando o número de pessoas que, publicamente, viviam sua sexualidade em seus mais amplos arranjos, ainda que o código civil não tivesse – ou tenha – elementos suficientes para servir de reflexo dessa sociedade atual.

Com propriedade, Dias (2013, p. 31) assinala sobre o atual diploma civil que “inúmeros remendos foram feitos [ao projeto de 1975], o que, ainda assim, não deixou o texto com a atua-

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lidade e a clareza necessárias para reger a sociedade dos dias de hoje”, e, por essa falta de har-monia do Código Civil de 2002 com a sociedade, e também com a Carta Magna, que podemos dizer que “após a Constituição, o Código Civil perdeu o papel de lei fundamental do direito de família” (FACHIN citado por DIAS, 2013, p. 30).

3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUA INFLUÊNCIA NO DIREITO DAS FAMÍLIAS

Com o advento da Constituição Federal de 1988 e sua proteção à organização familiar plural em seu art. 226, §3º §4º, houve um despertar dos entes ocupantes de um espaço comum – não propriamente físico – para o autoconhecimento como integrantes de uma unidade familiar; em antagonismo à família instituição; aqui a família é instrumento para a realização de seus membros.

Da mesma forma, foi igualmente importante para o paulatino respeito do direito à au-tonomia do indivíduo à sua liberdade de autodeterminação, apesar de, nesse quesito, seja ainda tímido e insuficiente.

Após tantas mudanças no conceito de família, sua acepção hodiernamente tende, cada vez mais, a focar no respeito à autodeterminação de seus membros, objetivando a promoção – e proteção – da realização de cada indivíduo participante da entidade familiar.

3.1 A Constitucionalização do Direito Civil

A Constituição Federal de 1988 veio trazendo profundas e significativas mudanças ao ordenamento jurídico brasileiro, ao ponto que mudou completamente o foco de todo o sistema jurídico vigente. O indivíduo, sua dignidade e a primazia pela concretização dos direitos funda-mentais se torna base indispensável para a aplicação de toda e qualquer norma.

Presentemente, as normas constitucionais são ponto de início da interpretação de todas as normas da legislação infraconstitucional; é inaceitável e anacrônico que não se observe o ordenamento jurídico como um sistema, que deve ser analisado harmonicamente com os prin-cípios defendidos pela Constituição Federal.

3.1.1 A interpretação conforme a Constituição

Esse método de interpretação decorre da hierarquia das normas de um ordenamento jurídico, admitindo possuir a Constituição Federal de 1988 uma hierarquia superior às outras, sendo, assim, inadmissível que se adote uma postura baseando-se em legislação infraconstitu-cional se tal postura for contrária às regras e princípios que constam na Constituição Federal de 1988.

Nas precisas palavras de Herzog-Schick enfatizadas por Bonavides, a interpretação conforme “em rigor não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um

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Essa forma de interpretação decorre da ideia de que uma norma pode ter diversas interpretações; entretanto, o intérprete que prime pela Constituição e pela sua concretização, deve sempre escolher a interpretação que mais se coadune com as normas previstas pela Carta Magna.

3.1.2. O reconhecimento de novas formas de família

Explicitamente, o já citado art. 226 da Constituição Federal reconhece a união estável e a família monoparental como entidades familiares, sem qualquer forma de hierarquia entre essas e as famílias formadas por casamento.

Entretanto, a doutrina e a jurisprudência vêm considerando esse rol presente no men-cionado artigo como numerus apertus, isto é, como um rol exemplificativo, não exaustivo, não taxativo.

Considerando que a Constituição Federal de 1988, ao reconhecer plurais formas de constituir famílias, auxiliou a concretização de direitos fundamentais e de princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, como o da dignidade da pessoa humana, aplica-se uma interpretação ampliativa do artigo constitucional e uma interpretação conforme a Constituição Federal de 1988 ao Código Civil, culminando na possibilidade de reconhecimento de outras formas de organização familiar, que, caso fossem excluídas do ordenamento, tenderiam a uma violação aos direitos dos membros daquela entidade familiar marginalizada, culminando numa afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Temos que, com a constitucionalização do Direito Civil, através da necessária inter-pretação constitucional, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo das famílias passaram a ser parâmetro para a reinterpretação do Código Civil, de modo a respeitar, reconhecer e tutelar as novas formas de organização familiar.

Utilizando-se do método de interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, bem como de formas de interpretação e aplicação idôneas para a efetiva concretização dos prin-cípios constitucionais, permitiu-se o reconhecimento de diversos outros modelos familiares, tais como: as famílias homoafetiva, as famílias anaparentais e as famílias pluriparentais3.

As famílias simultâneas, entretanto, ainda são marginalizadas pela maioria da juris-prudência e não são reconhecidas como entidades familiares, apesar de preencherem todos os requisitos de uma família, tais como:

(i) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do intuito econômico e escopo indiscutível de constituição de uma família; (ii) a

3 STJ. REsp 159.851/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. j. 19.03.1998. DJ 22.06.1998. STF. ADI 4277 e ADPF 132. Pleno. Rel. Min. Ayres Brito. j. 05.05.2011. DJ 14.10.2011.TJ/SP. APL 64222620118260286. Primeira Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior. j. 14.08.2012. DJ 14.08.2012.

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estabilidade, o que exclui relacionamentos casuais, episódicos ou descompromissados, sem comunhão de vida; e (iii) a convivência pública e ostensiva, o que pressupõe uma unidade familiar que assim se apresenta publicamente. (VECCHIATTI; MARTA, 2007 citado por FIGUEIREDO; MASCARENHAS, 2012, p.10).

O principal argumento para o não-reconhecimento das famílias simultâneas como en-tidades familiares é a supremacia do “princípio” da monogamia, defendido em detrimento da dignidade da pessoa humana de cada um dos membros da família, bem como do princípio da pluralidade familiar. Trataremos da problemática de a monogamia ser alçada à categoria de princípio em capítulo próprio.

4 O “PRINCÍPIO” DA MONOGAMIA

A monogamia é ponto de intensa discussão doutrinária, principalmente acerca de sua natureza ou não de princípio. Indubitavelmente, não se trata de princípio constitucional, haja vista que a Constituição Federal de 1988 não fez nenhuma menção à monogamia; e, ademais, adotou posturas em suas normas que são contrárias ao que prega a monogamia, como, por exemplo, a vedação de tratamento diferencial entre filhos oriundos de relações matrimoniais e filhos frutos de relações adulterinas; ora, se objetivasse dar primazia à monogamia nas relações interpessoais, não faria sentido dar tratamento de igualdade às proles frutos de relações para-lelas.

Sendo apenas citada em legislação infraconstitucional, a monogamia é defendida não apenas como princípio, mas como princípio dotado de primazia por doutrinadores e, principal-mente, pela jurisprudência4. Observemos:

Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Casamento válido dissolvido. Peculiaridades. O dever de lealdade implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural (Veloso, Zeno citado por Ponzoni, Laura de Toledo. Famílias simultâneas: união estável e concubinato. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=461. Acesso em abril de 2010).

Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade que integra o conceito de lealdade para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.

4 STJ. REsp 1157273/RN. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 18.05.2010. DJ 07.06.2010

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Na doutrina, um dos maiores nomes defensores da monogamia como princípio é Ro-gério Cunha Pereira, que a considera “ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais” (PEREIRA citado por FRISON, 2012, p. 88).

Tanto doutrina como jurisprudência pró-supremacia da monogamia a defendem com as bases supracitadas, como sendo “elemento estrutural” da sociedade e “elemento moral” das relações conjugais. Não demonstram, entretanto, quais as bases fáticas e jurídicas para alçar a monogamia a tal nível.

Socialmente, já foi discutida, com a conquista da autonomia entre afeto, casamento, reprodução e sexualidade, a sociedade passou a organizar suas relações de formas distintas, com objetivos distintos; e o Direito passou a proteger não mais a família-instituição, mas a fa-mília-instrumento, aquela que serve como meio de realização dos interesses e desejos daqueles que dela fazem parte.

A descriminalização do adultério – que se consubstancia em grave violação à acepção de fidelidade utilizada por doutrina e jurisprudência – é um dos fatos que comprova que a so-ciedade atual não mais vê a monogamia com tanta sacralidade e importância como a maioria dos operadores do direito.

No mesmo sentido, a falta de consequências jurídicas para o descumprimento dos de-nominados “deveres do casamento” serve de comprovação de que, atualmente, apesar de ter-mos o relacionamento monogâmico como o mais usual entre as pessoas, a sociedade não mais clama pela sua defesa prioritária.

No tocante à função de “elemento moral” da monogamia, entendemos que o direito não deve ser palco de defesa de teses unicamente morais, já que o conceito do que é moral ou não, é extremamente amplo, mutável e plurifacetado; sendo assim não-razoável punir ou negar direitos a alguém com base unicamente em algo moral, cujo conceito não se consegue delimitar. Ademais, usar o direito como instrumento para a defesa da moralidade já foi causa de inúmeras injustiças – ilustramos com os recentes casos das uniões homoafetivas e das uniões estáveis, que, até recentemente, eram marginalizadas pelo direito com diversos argumentos que perpas-savam a esfera da “moral” e da supremacia da monogamia. Nesse diapasão:

Acredita-se que a inclusão do concubinato no conceito de entidade familiar produzindo efeitos jurídicos destruiria a lógica do sistema monogâmico e acabaria gerando grande instabilidade nas relações familiares, incentivando a proliferação das relações concubinárias. Esse era o mesmo argumento anteriormente utilizado para não permitir efeitos jurídicos à união estável. (FERRAZ, 2008, p. 16)

Por fim, devemos ressaltar que a monogamia não é princípio constitucional e, como tal, não deve ter primazia quando colidir com princípios que foram consagrados pela nossa Constituição Federal, como o do pluralismo familiar e o da dignidade da pessoa humana. No momento constitucional em que estamos inseridos é impensável que se prefira uma regra infra-constitucional, que, não raro, fere a dignidade da pessoa humana, que tem clara raiz cristã, além

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de não refletir as necessidades da sociedade moderna, a um princípio de status constitucional.

4.1 Breve relato acerca das origens religiosas da monogamia

No ano de 1234, a Igreja Católica encarregou Raimundo de Peñafort da organização e compilação das leis canônicas nas Decretales Extra Decretum Gratiani Vacantes, documento no qual “o casamento tornou-se algo sagrado, principal requisito da coesão familiar, o matri-mônio foi elevado à instituição divina como um dos sacramentos, tendo, ao mesmo tempo, na-tureza contratual (...) e de indissolubilidade do vínculo (...)”. (FACHIN citado por MACHADO, 2012, p. 60).

A Igreja, desse modo, absorveu para si a competência de regulamentação do matri-mônio. Ademais, criou o Concílio de Trento, que, com seus decretos, teve vultosa importância nos países católicos, especialmente em Portugal, que “foi um dos primeiros países a adoptar e integrar no corpo legislativo nacional os decretos conciliares, confirmados em 26 de janeiro de 1564 pelo Papa Pio V (...)” (SILVA, 1990, p.1), havendo, portanto, a aplicação desses decretos conciliares em todo o território do país.

Fica extremamente clara a influência da Igreja no que diz respeito ao casamento, em suas formas e configuração, especialmente nas ideias de indissolubilidade do vínculo e da mo-nogamia.

É inegável, portanto, a origem cristã do princípio da monogamia, que foi inserida no território brasileiro com a chegada de Portugal. Apesar, portanto, de ter-se tornado o modelo mais usual de forma organizacional de relacionamentos, é preocupante permitir que um país laico negue direitos a parte de seus cidadãos tendo como base um princípio religioso, como demonstraremos a seguir.

4.2 A entrada e permanência da monogamia no Brasil

Fazer um apanhado histórico acerca da evolução de qualquer ramo do Direito no Brasil exige que tratemos do Direito Português, ao menos até o momento em que passamos a ter legis-lação própria – essa, amplamente influenciada pelas normas portuguesas, como se verá a seguir.

É mister que se tenha um contexto da realidade brasileira pré-chegada dos explorado-res portugueses e da consequente colonização, para que se tenha ideia de como a colonização suplantou os costumes vigentes e implantou os seus próprios – inundados de institutos e costu-mes cristãos, uma vez que Portugal era, à época, um país extremamente católico e que possuía em sua legislação pátria vários decretos oriundos do Concílio de Trento, organizado pela Igreja Católica.

Pois bem, o Brasil anterior à chegada dos portugueses era constituído basicamente de tribos diversas. Ponto comum dessas tribos era sua forma de organização; dava-se por comu-nidades, obedientes a um chefe determinado e com economia baseada no escambo e na sub-sistência. No tocante à união de duas pessoas, observa-se, dava-se de maneira muito simples,

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assim como para separação dessa união, bastava a declaração de vontade de ambas as partes. Era aceita a poligamia e, em algumas tribos, também a poliandria. Nesse diapasão:

Antes do casamento, em muitas tribos não havia a concepção de virgindade, entretanto, depois de realizado, a fidelidade da mulher era mais cobrada que a do homem. Casar-se era tão simples quanto divorciar-se: após a declaração de ambas as partes estava feito. A poligamia era permitida e o homem com mais de uma esposa tinha seu prestígio reforçado. (...) Mas a poliandria também existia em algumas tribos (...) principalmente as matrilineares, havia a possibilidade de uma mulher ter vários maridos. (CASTRO citado por MACHADO, 2012, p. 66)

A ideia de fidelidade era, portanto, distinta da ideia cristã, que é a acepção utilizada pela maior parte dos juristas ainda nos dias de hoje– que parte do princípio da monogamia – sendo assim, o comprometimento de nenhuma das partes ter relações afetivo-sexuais com outrem. Diferentemente, a fidelidade se baseava no dever de não relacionar-se intimamente com pessoas distintas daquelas com que se tinha um compromisso. Assim, se casado apenas com uma pessoa, o indivíduo não deveria relacionar-se intimamente com mais ninguém; porém, caso a situação fosse de poligamia ou poliandria, esse dever era de não manter contato íntimo com pessoas que não aquelas com a qual se era casado.

Foi nesse contexto que ocorreu a chegada dos exploradores de Portugal para iniciar a colonização do Brasil. Através da influência das Ordenações Filipinas na população local e com a intensificação da presença dos portugueses em condição hierárquica superior aos colonos e a forte presença pessoal e de costumes da metrópole – com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil com Dom João – pode-se dizer que “foi uma vontade monolítica imposta que formou as bases culturais e jurídicas do Brasil colônia” (WOLKMER citado por MACHADO, 2012, p. 66).

Os ideais cristãos nos quais se baseava a cultura portuguesa foram inteiramente força-dos em território brasileiro aos colonos e aos escravos trazidos como mão-de-obra. Aos escra-vos era negado o casamento, mas era imposta a religião católica. A família da época era rural, hierarquizada, patrimonializada e patriarcal; ademais, havia forte conexão entre o casamento e a procriação.

À época da Revolução Industrial, a Europa começou a passar por um momento de transformação, que teve grandes impactos na estrutura familiar – que seriam refletidos no Bra-sil, posteriormente. A família que antes era hierárquica, com o pai como uma figura de autori-dade absoluta e como único provedor, perdia espaço para um novo arranjo; mulheres e crianças começaram a trabalhar nas fábricas, tirando a exclusividade de prover da figura paterna, a mu-lher e os filhos passavam a ter mais direitos dentro do núcleo familiar. Entretanto, permanece a ideia da monogamia como única forma de organização possível, ainda que dessa forma ocorra apenas formalmente, uma vez que a realidade fática nos mostra que arranjos que fogem dos moldes monogâmicos – com ou sem o consentimento do companheiro – não são raros.

É no contexto de término da Revolução Industrial que o Brasil se torna independente

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de Portugal, em 1822, e inicia o processo de elaboração da sua Constituição, autorizada por D. Pedro I; até sua outorga, o conjunto normativo português continuou a ser aplicado no território nacional.

Em 1861, através do Decreto nº 1.144, a hegemonia da Igreja Católica começou a ser relativizada com o reconhecimento do casamento realizado por autoridades de religiões diver-sas da católica. Essas religiões necessitavam, entretanto, ser “toleradas” pelo Estado, que era católico.

Apenas após a Proclamação da República, em 1889, o casamento civil passou a existir, através do Decreto nº. 181/90. Isso porque a Proclamação da República foi um marco na separa-ção da Igreja e do Estado, ao menos teoricamente.

Mesmo após a separação formal entre o Estado e a Igreja, os ideais cristãos continuam sendo mantidos pelos operadores do Direito e pela legislação infraconstitucional. Os valores que foram inicialmente forçados sobre a população brasileira, passaram a servir como o “pa-drão” do qual qualquer conduta desviante é jogada à marginalidade. A monogamia é um desses valores e ainda hoje permanece na jurisprudência brasileira como absoluta, ainda que nossa Constituição Federal atual não tenha dado nenhum vestígio de reconhecimento da superiorida-de de tal forma de organização de relacionamentos.

4.3 A insustentabilidade e inconstitucionalidade da imposição da monogamia

Muito da argumentação a favor da manutenção e primazia do “princípio” da monoga-mia como padrão imposto a todos os cidadãos advém da esfera moral.

Esse argumento é dotado de considerável ingenuidade, discriminação e de autoritária violação aos direitos fundamentais.

A ingenuidade do argumento decorre da defesa de que, ao negar tutela específica e adequada ao concubinato, estar-se-ia agindo em defesa da estabilidade familiar – como se a negação ao reconhecimento de legitimidade, alguma vez, tenha servido como freio para que o ser humano não haja de determinada maneira; ilustra-se com o adultério, que até 2005 constava em nosso ordenamento como crime tipificado, fato que não impedia as pessoas de serem infiéis aos seus companheiros; ou ainda a indissolubilidade do casamento, que não impediu diversos casais de, uma vez desejando, separarem-se de fato.

Em suma, o Direito, ao escolher não tutelar alguma conduta humana – principalmente aquelas relacionadas com as esferas mais íntimas do indivíduo – objetivando coibir sua prática, não só falha miseravelmente, como causa injustiças a todo um grupo de pessoas fadadas a viver na ilegitimidade.

A discriminação do argumento de manutenção da monogamia como única forma acei-tável está em negar direitos fundamentais a determinada forma de organização familiar que possui todos os requisitos para que seja reconhecida como entidade familiar; tenta restringir o princípio constitucional do pluralismo familiar, em benefício de uma regra citada apenas na legislação infraconstitucional e com claras origens religiosas. Nesse sentido, Ferraz argumenta:

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Não é justo reconhecer o princípio do pluralismo constitucional, ampliando o conceito de entidade familiar desde que preenchidos certos requisitos para uns e negar para outros baseado apenas em um juízo moral de valoração, visto que infringiria o princípio da igualdade. Na maioria dos casos concretos levados ao Judiciário, as relações concubinárias preenchem os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibilidade, merecendo, portanto, proteção jurídica como entidade familiar. (2008, p. 11).

O autoritarismo de apenas tutelar uniões monogâmicas se funda na intromissão estatal na esfera mais íntima dos indivíduos e na imposição de um modelo pré-determinado e único de organização familiar.

Dias (2013, p. 30) explica que “talvez não existam mais razões, quer morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem esta verdadeira estatização do afeto, excessiva e indevida ingerência na vida das pessoas”, ou seja, o interesse estatal na proteção da família não pode ser abusivo ao ponto de invadir a privacidade do casal, pois (i) sendo a relação simultânea desconhecida pelo outro parceiro, o Estado estará sendo incoerente em seu objetivo, uma vez que, se a ideia é a proteção da família – e sendo a família atualmente conceituada através da afetividade – estará marginalizando uma família em benefício da outra por mero formalismo, isto é, a família que foi apresentada ao Estado primeiro é digna de toda proteção, enquanto à outra resta, no máximo, a ficção jurídica da “sociedade de fato” e o preconceito; (ii) sendo a relação simultânea conhecida e consentida pelo outro parceiro, a postura do Estado é ainda mais esquizofrênica, já que tenta impedir que as pessoas sejam livres para expressar sua se-xualidade, negando às pessoas que se identificam como poliamorosas, às pessoas que possuem relacionamentos abertos e às pessoas cujas crenças permitem a poligamia e poliandria, o direito de ter suas relações interpessoais legitimadas simplesmente por ter adotado a monogamia como padrão. Nesse sentido, Gagliano:

Com isso, no entanto, não se conclua que, posto a monogamia seja uma nota característica do nosso sistema, a fidelidade traduza um padrão valorativo absoluto. O Estado, à luz do princípio da intervenção mínima no Direito de Família, não poderia, sob nenhum pretexto, impor, coercitivamente, a todos os casais, a estrita observância da fidelidade recíproca. (2010, p. 443)

Por fim, o argumento de negação das famílias simultâneas em benefício da monoga-mia é legitimador da violência aos direitos fundamentais da família não-tutelada, pois essa, além de sofrer violação à sua dignidade por ter que viver em uma entidade familiar marginali-zada pelo Direito, ainda permite que o companheiro que tem a relação simultânea – geralmente o homem – saia de tal relacionamento sem que haja o dever de prestar auxílio àquele núcleo já hipossuficiente, por não ter status de família.

O Direito, portanto, legitima que o companheiro abandonado fique sem direito à su-cessão, à meação, a alimentos, e outros tantos direitos que são negados a um núcleo familiar

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que já era fragilizado em comparação aos outros que o ordenamento e a jurisprudência acham por bem tutelar.

Ao combater a ideia de que a negação de reconhecimento às famílias simultâneas coíbe sua prática, Ferraz aponta que a legitimação não traria estímulo à prática, mas o contrário:

Ao contrário do que pregam, se forem reconhecidos direitos ao concubinato, não haverá estímulo, mas sim mais responsabilidade na formação de famílias paralelas. Isso poderia coibir muitos homens, já que pensariam em uma futura divisão patrimonial com a concubina. (FERRAZ, 2008, p. 17).

5 A INOCUIDADE DO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS

Ao contrário da adoção da monogamia como padrão imposto pelo Estado, que, como discutimos anteriormente, legitima os mais variados prejuízos às pessoas envolvidas em rela-ções não-monogâmicas, tem-se que ao reconhecer a possibilidade das uniões simultâneas – e, consequentemente, ao deixar de defender a monogamia como princípio dotado de primazia – as consequências diretas e indiretas são inócuas, não causam danos ou prejuízos a nenhum dos envolvidos, ao contrário, traz benefícios à sociedade em geral.

É uníssono na doutrina atual o reconhecimento que o Estado, em sua ânsia de proteção da família, acaba, por muitas vezes, adentrando de forma exagera na esfera íntima e na liber-dade dos indivíduos, não raro sufocando a autonomia privada para a formação e organização das famílias. Nesse sentido, Pereira (citado por Dias, 2013, p.29), ensina “é preciso demarcar o limite de intervenção do direito na organização familiar para que as normas estabelecidas não interfiram em prejuízo da liberdade do “ser” sujeito”; ainda, no mesmo sentido, Dias retoma com muita propriedade questionando que “talvez não existam mais razões, quer morais, religio-sas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem esta verdadeira estatização do afeto, excessiva e indevida ingerência na vida das pessoas”.

É imprescindível, portanto, que o Estado recue em suas imposições e controle de modo a permitir que as pessoas possam, de fato, viver em suas esferas íntimas com liberdade; deven-do o direito preocupar-se não em oferecer modelos e padrões pré-definidos por dogmas cristãos, mas proteger e garantir a dignidade da pessoa humana de cada um dos membros das mais varia-das formas de família. Pois, na lição de Dias (2013, p. 29), “ainda que tenha o Estado interesse na preservação da família, cabe indagar se dispõe de legitimidade para invadir a auréola da privacidade e de intimidade das pessoas.”.

Defensor da superação da monogamia como princípio estruturante do direito das fa-mílias, Silva (citado por FRISON, 2012, p. 35) afirma que “decretar o fim da monogamia como princípio jurídico é tornar as relações afetivas mais responsáveis”, isto é, ao retirar do Estado o papel de decidir qual a forma de organização possível para a constituição de uma família, dá-se ao casal a liberdade e a autonomia para determinar qual a forma de organização familiar que

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melhor vai de encontro com seus interesses.Ainda sobre as vantagens de colocar mais responsabilidade às relações afetivas, temos

que, como muito bem apontado por Ferraz (2008, p.17), “ao contrário do que pregam, se forem reconhecidos direitos ao concubinato, não haverá estímulo, mas sim mais responsabilidade na formação de famílias paralelas”, isto porque, nos dias atuais, a pessoa que escolhe iniciar uma união paralela, geralmente o homem, sabe que, quando houver a dissolução dessa união, não haverá maiores consequências para ele, pois, ainda que tal relação tenha gerado prole; de acordo com a jurisprudência majoritária, será reconhecida, no máximo, uma “sociedade de fato” que traz consequências patrimoniais muito inferiores do que o reconhecimento de uma unidade familiar, além de ser meramente uma ficção jurídica, uma vez que não se trata de relação obri-gacional, mas de relação afetiva. Nesse diapasão:

É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. (VILLELA citado por DIAS, 2013, p. 42)

Portanto, ao reconhecer as uniões simultâneas como unidades familiares, traz-se uma maior responsabilidade para o indivíduo que decide iniciar uma relação paralela, haja vista que as consequências se alargam.

No que tange ao patrimônio, autores dão diferentes soluções para divisão patrimonial, uma vez cessada uma das relações simultâneas. Dias (2013, p. 51) acredita que se deve preservar a meação da esposa – já que geralmente as relações simultâneas são firmadas pelos homens; ou seja, a parte do patrimônio que representa a meação da esposa se torna bem reservado e não se comunica com a divisão do patrimônio entre o marido e a companheira da relação simultânea. Separada a meação da esposa, faz-se a meação do restante do patrimônio entre o marido e sua companheira.

Outra parte da doutrina, entretanto, defende que faz parte dos riscos de firmar rela-cionamento com alguém a possibilidade de que o seu companheiro não cumpra com o dever de fidelidade; não fazendo sentido a existência de um “seguro” ao cônjuge traído, por isso, a divisão do patrimônio dar-se-ia por triação, ou seja, o patrimônio seria dividido em três partes, ficando um terço para cada um dos envolvidos.

Portanto, ao reconhecer a possibilidade das famílias simultâneas, o direito estaria dan-do mais um passo no sentido da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que estaria tirando da posição de hipossuficiência os núcleos familiares simultâ-neos, igualando-os às unidades familiares já reconhecidas. Ademais, com tal reconhecimento, dar-se-ia ao indivíduo mais liberdade de viver sua vida íntima como melhor lhe aprouver, sem a limitação do seu direito de escolha pelo Estado. E, por fim, haveria melhor adequação do país com seu status de laico, além de maior força à Constituição, que faria valer seus princípios em

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detrimento de regras desarmônicas infraconstitucionais.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito, como produto social, sofre diversas influências provenientes de variadas fontes que acabam por modificar a sociedade; assim, a dinamicidade da sociedade força as nor-mas e as formas de interpretação do Direito a se adequarem à realidade social.

O conceito de família é um dos temas que mais sofre mutação com as modificações sociais, especialmente por se tratar de algo tão caro e íntimo do indivíduo, e, ao mesmo tempo, tão complexo e com tantos reflexos jurídicos. Passou-se da família-instituição, protegida pelo Estado e pela Igreja, formada unicamente pelo casamento, para a família-instrumento, onde o foco é em seus membros e na realização dos interesses e desejos desses indivíduos dentro de suas famílias.

A essência da formação da família não é mais o formalismo e a religião, mas o afeto. A Constituição de 1988 consagrou o princípio do pluralismo familiar, de modo que, hodiernamen-te, se aceita diversas formas de organização familiar, sem que haja qualquer tipo de hierarquia entre essas novas unidades familiares e aquelas formadas pelo casamento.

A constitucionalização do direito permitiu que diversas famílias saíssem da “ilegiti-midade” e passassem a contar com o reconhecimento de entidades familiares, bem como com todos os direitos provenientes dessa legitimação.

As famílias simultâneas, ou “concubinatos adulterinos” como os tribunais costumam chama-las, ainda não foram reconhecidas como entidades familiares, apesar de preencherem todos os requisitos atuais para que lhes fossem dadas o status de família.

Esse não-reconhecimento das famílias simultâneas não possui justificativa jurídica válida, uma vez que decorre, principalmente, de uma supervalorização dada à monogamia, que é alçada à categoria de princípio constitucional, um absurdo jurídico, uma vez que não só a Constituição Federal de 1988 não citou a monogamia em nenhum artigo, como adotou posturas que ignoram completamente tal forma de organização, como, por exemplo, com a possibilidade de reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento.

É inaceitável e inconstitucional que, em um Estado democrático e laico, haja a nega-ção de tutela jurídica específica e adequada a toda uma parcela de seus cidadãos em benefício da preservação de uma regra infraconstitucional anacrônica e com fortes raízes no cristianis-mo. Ademais, é igualmente inaceitável que princípios constitucionais não sejam aplicados em detrimento de uma regra infraconstitucional, que não contou com a consagração explícita ou implícita da Constituição Federal.

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THE UNJUSTIFIABLE NON-RECOGNITION OF SIMULTANEOUS FAMILIES: A CONSTITUTIONAL ANALYSIS

ABSTRACT: Simultaneous families suffer a huge, and unjustifiable, juridi-cal prejudice, since althought they fulfill all the requirements to be considered legitime families, the majority jurisprudence denies to acknowledge them. This work will point out that this jurisprudencial stance it’s juridically unjus-tifiable, as well as it will explain the problems caused by the overvaluation of monogamy, which is not an constitutional principle, although the jurispru-dence gives it a primacy status.Keywords: Simultaneous families. Constitutionalization of family law. Mo-nogamy.

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Recebido em 09 fev. 2015 Aceito em 30 abr. 2015

OS REFLEXOS DO DEBATE HART-DEVLIN NA TEORIA DO DIREITO DE HART

Rogério César Marques*

RESUMO: A partir da publicação, em 1957, do relatório final do Comitê Wolfenden, Hart e Devlin travaram um embate acerca de até que ponto o Direito deve agir de sorte a impor a moral compartilhada de determinada sociedade. Não obstante o objeto deste debate não tenha sido a tese da sepa-rabilidade entre Direito e moral, traz elementos importantes da teoria de Hart sobre o assunto, bem como ilustra sua linha teórica desenvolvida em suas obras posteriores.Palavras-chave: Direito. Separabilidade. Moral. Debate. Conceitos.

1 INTRODUÇÃO

Uma das discussões que sempre se fez presente quando da análise da intrínseca relação entre o Direito e a moral diz respeito à delimitação de um limite até o qual é legítimo a uma sociedade impor sua moral vigente por meio do ordenamento jurídico. Sem se afastar da tese da separabilidade, o presente trabalho se propõe a analisar um debate entre dois importantes auto-res ingleses do século XX sobre a questão, o Professor Herbert Lionel Adolphus Hart e Lorde Patrick Devlin.

A origem do debate entre Hart e Devlin remete ao ano de 1954, quando foi criado o Comitê de Transgressões Homossexuais e Prostituição, presidido pelo Lorde Wolfenden (Co-mitê Wolfenden), com o intuito de analisar a conservadora legislação penal da Inglaterra então em vigor. Em 1957, o comitê apresentou seu relatório final, sugerindo reformas na lei criminal

* Advogado em São Paulo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo (USP) em 2009. Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (GV-Law) em 2012. Mestrando em Direito Financeiro pela Faculda-de de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo (USP). Membro da Ordem dos Advogados Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP) desde 2010.

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inglesa, sendo que, dentre as propostas de alterações apresentadas, destacava-se a descriminali-zação das práticas homossexuais privadas, realizadas, consensualmente, entre adultos, conside-radas inofensivas para a sociedade, não mais justificando a coerção penal.

Na análise do relatório Wolfenden, Devlin apresenta seus argumentos no sentido de que a sociedade tem o direito de impor sua moral compartilhada, bem como deve legislar para proteger seus institutos sociais valiosos, como forma de preservar seu tecido social de desin-tegração e decadência. Hart, por sua vez, critica a teoria devliniana por entender não caber ao sistema jurídico limitar a liberdade individual, punindo imoralidades as quais não gerem danos efetivos a terceiros.

Não obstante o fato de que o elemento central do presente debate não foi a separabilida-de entre Direito e moral, nele Hart apresentou importantes aspectos teóricos de seu pensamento acerca deste assunto, ilustrando sua linha teórica, de cunho mais liberal. Esta linha de raciocínio foi muito importante no desenvolvimento de sua teoria.

A par deste cenário, no presente trabalho serão tecidas considerações dos argumentos de Devlin e Hart acerca da discussão em tela, bem como serão analisados alguns conceitos im-portantes presentes neste debate, os quais também foram desenvolvidos por Hart em suas obras posteriores, em particular naquelas relacionadas à sua contenda com Lon Fuller.

2 A IMPOSIÇÃO DA MORAL PARA LORDE PATRICK DEVLIN

Lord Patrick Devlin desenvolveu seus principais argumentos a favor da imposição de certos preceitos morais pelo Direito em sua notória palestra Maccabean Lecture, em 1958, na qual ele analisou os principais argumentos apresentados no relatório Wolfeden.

A principal premissa desenvolvida por Devlin quando da apresentação de sua teoria foi a seguinte:

“we should ask ourselves in the first instance whether, looking at it calmly and dispassionately, we regard it is a vice so abominable that its mere presence is an offense. If that is the genuine feeling of the society in which we live, I do not see how society can be denied the right to eradicate it.”1 (Devlin, 1965, p. 17)

Assim, é importante destacar, inicialmente, que Devlin não discorda do relatório Wol-fenden no que diz respeito à descriminalização do homossexualismo consensual privado entre adultos, concordando que a moral compartilhada da Inglaterra, à época, tolerava tal prática. A insatisfação de Devlin refere-se às premissas adotadas pelo referido comitê para se chegar nesta conclusão, qual seja, a existência de ações as quais se encontram fora do alcance da lei, não devendo ser tuteladas pelo direito, em particular pelo Direito Penal.

1 Em tradução livre: “nós devemos nos perguntar em primeiro lugar se, analisando com calma e desapaixonadamente, consideramos um vício tão abominável que a sua simples presença já é, pura e simplesmente, uma ofensa. Se este for um sentimento genuíno da sociedade em que nós vivemos, não vejo porque a sociedade não possa ter o direito de erradicar este comportamento.”

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Para se entender o motivo da discordância de Devlin, bem como seu entendimento acerca do assunto, é importante ter em vista que, para ele, um dos elementos estruturantes da sociedade são os preceitos morais comuns nela existentes. Acerca desta ideia devliniana, cha-ma-se atenção para o trecho a seguir: “every society has a moral structure as well as politician one: or rather, since that might suggest two independent systems, I should say that the structure of every society is made up both of politics and morals” 2 (Devlin, 1965, p. 9).

Esta moral compartilhada a qual Devlin se refere configura-se tão importante para a manutenção da ordem social quanto as instituições políticas, sendo função do Estado agir para protegê-la, bem como preservar os seus institutos sociais valiosos. Ela é a estrutura, o cimento da sociedade, devendo ser protegida pelo Direito, sob pena de por em cheque toda a estrutura do corpo social, ameaçando assim a sua existência.

A partir daí, conforme bem apontado por Ronald Dworkin (1966, p. 988), Devlin de-senvolve dois argumentos centrais acerca da imposição da moral, entendendo que esta pode ser considera adequada: i) como forma de autodefesa da sociedade, uma vez que a sociedade não pode sobreviver sem a preservação e preceitos morais que estão, para a maioria, além da tole-rância, devendo ser impostos aos que discordam.

No que diz respeito a este primeiro argumento, merece destaque a afirmação de Devlin (1965, p. 15) de que é função do Direito Penal impor preceitos morais e nada mais; ii) como meio de proteção de condutas desaprovadas pelos seus membros, com base na moral comum, defendo seus institutos sociais valiosos.

Da mesma forma, Devlin entende que não são todos os preceitos morais que devem ser impostos pelo direito, mas apenas aqueles cuja conduta adversa não seja tolerada pela socieda-de. No processo de determinação dos elementos da moral compartilhada que devem ser objeto de tutela, é necessária a tolerância da máxima liberdade individual possível, não obstante não deva haver restrição apriorística do direito da sociedade legislar contra atos imorais, quando verificada a indignação pública.

Para se aferir a existência de um preceito moral, o método devilinano para tal aferição não é a realização de uma pesquisa majoritária ou uma consulta popular, mas sim o comporta-mento do homem apto a compor o júri, ou seja, como um homem padrão, médio e razoável, apto a compor o júri (Devlin, 1965, p. 15), reagiria à conduta oposta ao comportamento apresentado. Um preceito moral, segundo Devlin (1965, p. 90), somente pode ser imposto pelo Direito quando este homem razoável não apenas aprovar, mas levar tão a sério o comportamento proposto que vislumbrar necessária a aplicação de sanção para a conduta adversa.

Interessante notar a influência que a carreira de Devlin nas cortes inglesas em sua teoria, principalmente em relação à construção de um consenso moral acerca de preceitos sem os quais, a sociedade teria sua existência, em tese ameaçada. Esta ideia, presente em toda sua

2 Em tradução livre: “toda a sociedade tem uma estrutura moral ao lado de uma estrutura política: assim, ainda que isso possa sugerir dois sistemas independentes, eu diria que a estrutura de cada sociedade possui uma estrutura política e moral”.

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teoria, é reconhecida como positiva por outros autores, tais quais Dworkin.

3 A CRÍTICA DE HERBERT LIONEL ADOLPHUS HART

A primeira crítica importante diz respeito ao fato de que Hart, não obstante aceite a existência de uma moral comum na sociedade, a qual denomina moral positiva, discorda do entendimento de que estes preceitos morais comuns constituam um elemento sem o qual a so-ciedade não subsistiria.

O cerne desta crítica é a afirmação de Hart (1963, p. 51) de que o ponto central do pensamento de Devlin oscila entre o aceitável entendimento de que existe uma moral comum importante para a sociedade, para a inaceitável proposição de que uma sociedade é idêntica à moral que reflete. Para Hart (1963, p. 52), este entendimento remete a absurda ideia de que mu-danças na moral da sociedade equivaleriam à sua extinção e surgimento de outra no seu lugar.

Ademais, este argumento de Devlin, ainda de acordo com a crítica de Hart, não se baseia em quaisquer evidências empíricas e, mais do que isso, parte de um conceito equivocado de sociedade. Neste sentido, Dworkin (1966, p. 980) afirma que, para Hart, a teoria devliniana fracassaria: i) na hipótese de se adotar um conceito parecido com uma noção convencional de sociedade, porque é absurdo sugerir que toda a prática que a sociedade considera profundamen-te imoral e repulsiva ameaçaria a sua sobrevivência; ii) caso seja adotado um conceito artificial de sociedade, tal como a de que esta consista em um complexo particular de ideias defendidas por seus membros em um dado momento histórico, tornando-se, aqui, intolerável que estes pre-ceitos morais devam ser preservado pela força decorrente de sua imposição jurídica, o que de certa forma imobilizaria a moral vigente.

A segunda crítica importante é a discordância de que o Direito Penal deva ser utilizado como um meio de preservação da moral positiva, não sendo correta a assertiva de que a função do Direito Penal é de somente impor preceitos morais e nada mais. Importante destacar que, de acordo com MacCormick (1981, p. 186), esta é a principal crítica que Hart dirige à teoria de Devlin: “But his more fundamental case is against any version of the view that it is right for criminal law to be considered as or used as an instrument for upholding the ‘positive morality’ of a society at large, that is, of the dominant section(s) of it, or even of the majority within it” 3.

Hart inicia o desenvolvimento desta crítica afirmando que há duas formas possíveis da lei penal tutelar a moral: i) pela coação gerada pelo medo da penalidade, ou seja, pela interfe-rência que a ameaça da punição tem na conduta humana; ii) ou pela própria aplicação da sanção, que aqui estaria relacionada com a teoria retributiva da pena. Neste sentido, Neil MacCormick (1981, p. 187), chama a atenção para a assertiva de Hart de que os indivíduos sobre os quais é aplicada a lei penal sofrem prejuízos que, caso sua ação não vitime terceiros, podem ser despro-

3 Em tradução livre: “mas a sua crítica mais contundente é contra a versão de que é função do Direito Penal ser utilizado como instru-mento de manutenção da moral positiva da sociedade, ou seja, de seus setores dominantes ou de sua maioria.”

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porcionais aos causados com a prática do ato imoral.Dessa forma, quando analisada a tutela da moral sob a óptica da coação legal, nos

casos em que não está presente a figura da vítima, a imposição termina gerando insatisfação e infelicidade em razão da inibição dos instintos daqueles sob os quais seria destinada a coação normativa, havendo prejuízo para aqueles que não pudessem agir segundo a moral comum. Ademais, para Hart, nestes casos, não há necessariamente valores morais envolvidos, mas sim noções de tabu e autodisciplina.

No que diz respeito à imposição da moral pela sanção, Hart entende não ser este um meio adequado para tal, uma vez que não faz sentido a aplicação de sanção sem que haja risco real de prejuízos ou danos efetivos a terceiros. Esta hipótese seria, de acordo com Hart (1963, p. 59 e 60), apenas justificada pela teoria retributiva da pena, o que levaria a punição a causar um sofrimento desproporcional para aqueles que sofrem a sanção.

Outra questão que se faz presente dentro desta crítica hartiana é o fato de que Hart entende que a coibição da prática de ações consensuais que envolvam danos físicos e mentais às pessoas, não é, necessariamente, resultante de apelo à moral positiva, podendo ser justificada pelo paternalismo. De acordo com este preceito, o direito deve ser utilizado como meio de se impedir que alguém atente ou consinta com práticas que, de alguma forma, sejam prejudiciais à sua integridade física ou psicológica.

4 A RESPOSTA DE LORDE PATRICK DEVLIN

Em sua defesa, Devlin (1965, p. 13), refuta o argumento de falta de evidências empíri-cas de que mudanças na moral compartilhada representam ameaça à sociedade, afirmando ter havido equívoco interpretativo por parte de Hart, já que ele nunca sustentou que qualquer desvio moral ameaçasse a existência da sociedade, mas sim que são capazes de pô-la em risco, devendo estar ao alcance do direito.

Já para Dworkin (1966, p. 991 e 992), esta resposta demonstra que o entendimento do Comitê Wolfenden, de que existe um domínio da moralidade privada que o direito não deve intervir, trata-se de uma barreira que não deve ser levantada, uma vez que não deve haver limi-tação apriorística do direito da sociedade de legislar sobre ações imorais.

Por sua vez, a segunda crítica de Hart, qual seja, sua discordância de que o Direito Penal deva ser utilizado como um meio de preservação da moral compartilhada, também é refutada. Devlin (1965, p. 110) entende que a dissuasão e a punição não são as únicas formas de ação da lei, a qual também confere a oportunidade de mudança no comportamento, dando a opção do indivíduo escolher agir conforme os padrões moralmente aceitos.

Ademais, de acordo com Devlin (1965, p. 104), o entendimento de Hart acerca do pa-ternalismo incorre em dois equívocos: i) o primeiro que o confunde com obrigações morais, das quais é distinto uma vez que, enquanto este se relaciona com a imposição de atitudes considera-das benéficas aos indivíduos, aquelas se relacionam com a necessidade da sociedade se prevenir

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contra danos que vícios de seus membros podem ocasionar; ii) resume o paternalismo à prote-ção, pelo Estado, do bem-estar somente físico das pessoas, enquanto, na verdade, este tem por essência a preocupação com o bem-estar integral, abarcando também o seu bem-estar moral.

Por fim, Devlin afirma que Hart, ao escolher os exemplos que servem à sua crítica, o fez de forma conveniente, escolhendo tão somente aqueles aplicáveis à sua tese, sem analisar aqueles os quais poderiam ser desfavoráveis ao seu entendimento.

5 CRÍTICA DE DWORKIN À TEORIA DE DEVLIN

Segundo a análise de Dworkin, Devlin, ao apresentar sua teoria com base no Relatório do Comitê Wolfenden conclui que o homossexualismo trata-se de um vício que tende a gerar repulsa social, sendo que a sua mera existência, por si só, representaria não apenas uma ofensa aos membros da sociedade, mas contra a sua própria existência, não podendo ser negado o di-reito que o corpo social tem de erradicar tal fato. A posição devliniana, contudo, é apresentada como hipotética, porque, não obstante tal posicionamento, ele se colocou a favor da alteração da lei que criminaliza o homossexualismo.

Ainda, Dworkin (1966, p. 989 e 990) entende que Devlin apoia a sua conclusão em dois argumentos essenciais: (i) existe um padrão moral comum sem o qual a sociedade não pode so-breviver, sendo seu direito, assim, zelar pela sua própria manutenção por meio da tutela destes preceitos morais; e, (ii) considerando que existe tal direito por parte da sociedade, a tutela dos atos que afrontam tais preceitos morais comuns deve dar-se por meio do Direito Penal, positi-vando-se como criminosas as condutas contrárias a esta moral comum.

Ademais, ainda encontra suporte na tese de que o direito da sociedade de punir as prá-ticas que afrontam a moralidade não deve ser exercida contra todo e qualquer ato imoral, mas tão somente contra aqueles que afrontem os valores fundantes de determinada sociedade, ha-vendo a necessidade de um certo teste empírico para se verificar se a conduta gera na sociedade intolerância, indignação e repulsa.

Em relação ao primeiro argumento, Dworkin (1966, p. 990 e 991) afirma que a con-clusão apresentada por Devlin não apresenta evidências empíricas de que o homossexualismo representa um risco para a sociedade, bem como no que tange a outras questões tidas como imo-rais, este mesmo teste pode falhar. Tal crítica se aproxima da crítica apresentada por Hart quan-do analisou o alinhamento de Devlin à corrente moderada da tutela da moral, afirmando que a sua interpretação neste sentido configurar-se-ia como um utilitarismo sem embasamento fático.

Por sua vez, no que tange ao segundo argumento que sustenta a corrente devliniana, Dworkin entende que tal argumento pode ser sintetizado como o direito da sociedade seguir as suas próprias diretrizes. Neste aspecto, devem ser consideradas as seguintes ideias: (i) as alte-rações que a prática reiterada e generalizada de determinados atos podem gerar na sociedade, devendo haver a sua análise no sentido de se entender tais alterações como aceitáveis ou não; (ii) deve ser conferido à sociedade o direito de se decidir se tais práticas devem ou não ser aceitas,

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devendo haver o risco de dano pela prática da imoralidade para justificar a sua tutela. Assim, considerados os riscos existentes para a sociedade, coibindo a liberdade individual de sua prá-tica para se manter a estrutura social; (iii) existe uma responsabilidade moral, decorrente da fé moral dos membros da sociedade, desta se preservar, conservando seus preceitos estruturantes de forma a possibilitar a sua existência.

Com relação a esta argumentação de Devlin, Dowrkin (1966, p. 990 e 991) afirma que sua conclusão com base nestes argumentos não é válida, uma vez que se funda em uma inter-pretação incorreta do que pode ser considerado como uma afronta à moral, configurando-se um equívoco insanável em sua teoria, uma vez que a moral convencional é mais complexa do que foi apresentado por Devlin em seu trabalho. Neste sentido, é interessante notar que tal crítica guarda certa semelhança com a que Hart apresenta a Devlin na hipótese de sua teoria estar alinhada com a tese extremada, uma vez que esta pressuporia uma visão utópica da sociedade, não estando os seus requisitos presentes na moral sexual, como se trata a hipótese do homosse-xualismo.

É interessante destacar de que, ao analisar este ponto do debate, Dworkin (1966, p. 991 e 992) identifica dois problemas na tese de Devlin. O primeiro deles é o de que a partir da resposta devliniana, a afirmação de que a sociedade tem o direito de fazer valer a sua moral por meio da lei seria limitada à proposição negativa de que a sociedade nunca possuiria tal direito, ou seja, em algum momento do argumento, a indignação pública, como um limite ao direito da sociedade de impor a moral, deixa de existir, passando a não haver mais qualquer limitação para a tutela da moral.

Já a segunda questão diz respeito ao fato de que não é correta a determinação do posi-cionamento moral da sociedade somente com base na expressão da maioria acerca de questões de relevância moral, uma vez que desconsidera o próprio conceito de posicionamento moral compartilhado, deixando de se embasar em um elemento racional necessário para tal, embasan-do-se apenas em reações emocionais.

Dworkin está correto ao afirmar que a resposta de Devlin para a crítica de Hart de fato termina obscurecendo o limite vislumbrado para a tutela da moral, evidenciando uma confusão conceitual de sua teoria. Também lhe cabe razão no que diz respeito à sua segunda assertiva, uma vez que, de fato, o método devliniano de determinação dos preceitos morais confundiria dois conceitos os quais a teoria dworkiniana entende distintos, a saber, convenção e consenso público, sendo que a moral não é constituída por convenções públicas, mas sim por um consen-so, ideia esta que se encontra presente na teoria de Devlin.

6 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DEBATE HART-DEVLIN

Inicialmente, cumpre destacar que o ponto central do debate entre Hart e Devlin é a definição de um critério para determinar até que ponto é legitima a imposição da moral pelo direito e até que ponto este processo é, mais do que legítimo, democrático. Tal identificação é

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importante para um posicionamento adequado frente aos argumentos em análise.O cerne do argumento devliniano deve ser aceito com parcimônia, isto porque, confor-

me bem apontado por Hart, não se pode negar a existência de uma moral comum na sociedade, devendo-se questionar, porém, se esta é de fato necessária à manutenção do tecido social. Da mesma forma, esta primeira crítica hartiana deve ser vista com cautela, uma vez que atribui a Devlin um entendimento de que, para este autor, a moral compartilhada se confundiria com a própria sociedade.

Isto porque, Hart, nesta sua crítica, parte do correto entendimento de Devlin de que a moralidade é um elemento estruturante da sociedade, para a equiparação desta teoria à tese do rigor extremo, segundo a qual os preceitos morais são idênticos a esta. Contudo, para Devlin os preceitos morais são elementos importantes para a sociedade, mas não idênticos a esta, como faz crer a crítica hartiana.

Desse modo, essa diferença é importante uma vez que afasta a teoria devliniana da tese do rigor extremo e a aproxima da tese moderada. Prova disso é a aceitação, por Devlin, de alterações na moral comum, sendo que a tutela dos preceitos morais estruturantes deve ser vista como um meio de se dificultar, mas não impossibilitar, alterações. Eventual mudança deve ser acompanhada por modificações na lei, sendo função do legislador verificar se de fato houve a alteração da moralidade comum. A postura de Devlin diante do relatório Wolfeden, tal qual o teste da reação do homem apto a compor o júri, ilustram este seu entendimento.

Contudo, ainda que a crítica de Hart não tivesse ido por este caminho, ainda assim está correta em um aspecto crucial, qual seja, a falta de evidências empíricas de que práticas imo-rais possam, ainda que potencialmente, ocasionar risco à sociedade. Como bem apontado por MacCormick (198, p. 188), para Hart não há provas de que a tolerância jurídica de atos imorais privados, bem como de um pluralismo moral, seja apto a dissolver o tecido social.

Neste sentido, não apenas não há evidências empíricas do fato de que a alteração da moral positiva ocasione crises sociais, como, pelo contrário, podem ser observadas socieda-des nas quais os preceitos morais vigentes foram questionados e alterados e se fortaleceram, adequando-se a novos contextos históricos. O conceito hartiano de moral crítica é importante instrumento de fortalecimento da sociedade, pois a moral positiva é dinâmica, alterando-se con-forme o momento histórico, podendo ser fortalecida por meio de uma avaliação crítica.

Outra questão que surge é acerca da função do Direito Penal na sociedade, uma vez que se faz evidente que para Devlin este ramo do direito serve, principalmente, para a imposição de preceitos morais. Hart, contudo, discorda, afirmando que, não obstante não ser a lei penal o meio mais adequado para a imposição da moral, existem outros aspectos que servem para justificar sua aplicação, tal qual o paternalismo, que pode ser utilizado para explicar a tutela do Estado em relação a ações prejudiciais praticadas com consenso mútuo não se relacionando, necessariamente, com a noção de moral.

Da mesma forma, é correto o cerne da crítica de Hart de que a imposição da moral pela lei penal, pela coação ou pela sanção, nos casos em que não pode ser identificada uma vítima,

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nem a presença de prejuízos reais a terceiros, não gera resultados positivos para a sociedade. O potencial ou intangível dano à sociedade, vislumbrado por Devlin, não serve como justificativa de sanções penais em situações nas quais não há a figura da vítima. Ademais, uma repressão das minorias, que se fazem inofensivos para a sociedade, gera insatisfação e infelicidade nestes grupos, os quais também são parte da sociedade.

Por fim, entende-se que, com relação ao ataque devliniano de que Hart teria sido sele-tivo nos exemplos utilizados para ilustrar suas críticas, entende-se correto o ponto de Devlin. Contudo, este aspecto não macula o cerne das críticas hartianas, uma vez que os problemas apontados na tese de Devlin podem ser verificados mesmo sem estes exemplos por referirem-se a equívocos conceituais de sociedade e de posicionamento moral.

Portanto, não obstante algumas críticas à teoria devlinina tenham-lhe atribuído um sentido equívocado, expuseram, em sua essência, alguns problemas os quais Devlin não conse-guiu rebater. Deve-se entender como mais correta a teoria de Hart, pois não é apropriada a utili-zação do sistema jurídico como forma de punir imoralidades as quais não gerem danos efetivos a terceiros, sob o risco de gerar resultados mais graves negativos na sociedade.

7 TEORIA DA MORALIDADE DE FULLER

O debate envolvendo Devlin e Hart possui uma interessante relação com a discussão teórica entre Hart e Fuller, sendo a referida relação importante para delimitar alguns preceitos teóricos da noção hartiana da separabilidade entre Direito e Moral. Cumpre analisar algumas questões importantes acerca dos debates envolvendo Hart e Devlin, no que diz respeito à impo-sição da moral, bem como entre Hart e Fuller, envolvendo a separabilidade entre direito e moral. Inicialmente, antes de analisar a relação entre estes debates, insta destacar alguns comentários sobre a teoria fulleriana da relação entre Direito e moral.

De logo, Fuller (1964, p. 5) demonstra que uma das razões de sua insatisfação com a literatura existente refere-se à falta de clareza ao se definir moralidade, a qual, contrariamente ao conceito de Direito, cujas teorias são diversas, carece de correta e cuidadosa conceituação.

Segundo a teoria fulleriana (1964, p. 6), para se compreender corretamente o conceito de moral deve-se inicialmente ter em mente a existência de duas moralidades distintas, a mo-ralidade do dever (“of duty”) e a moralidade da aspiração (“of aspiration”): i) a moralidade do dever relaciona-se a moral religiosa, tal qual presente no Antigo Testamento e nos Dez Manda-mentos, que condena a conduta humana que desrespeita os preceitos básicos de convivência em sociedade, podendo ser entendidas como as regras básicas para que seja viável o convívio social; ii) a moralidade da aspiração é aquela da vida virtuosa por excelência, estando bem exemplifi-cada na filosofia grega.

Assim, é na moralidade da aspiração em que podem ser localizadas conotações de uma noção, muda, que se aproxima da do dever, mas que com este não se confunde, uma vez que aqui vige a concepção de que o ser humano deve agir de forma a demonstrar o seu melhor, ten-

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do, não obstante seus princípios sejam de certa forma vagos e indeterminados, uma intrínseca noção de perfeição e infalibilidade que se almeja alcançar.

O que se verifica é que enquanto a moralidade do dever se relaciona com a vida em so-ciedade, a moral da aspiração refere-se à relação do homem com ele mesmo, ou até mesmo entre o ser humano e Deus. Analisando a figura da aposta, Fuller (1964, p. 8 e 9) afirma que, enquanto que sob a ótica da moral do dever o jogo pode ser visto como algo danoso à sociedade, inclusive passível de proibição por parte da lei, na ótica da moral da aspiração não haveria motivos para que o Direito se preocupasse com o jogo, olhando os apostadores mais com desdém do que com reprovação propriamente dita, uma vez que a aposta deve ser entendida não como uma violação de algum dever moral, mas como uma subutilização das capacidades humanas.

Ademais, segundo Fuller (1964, p. 15 e 16), a moralidade do dever está mais relaciona-da ao direito do que a moral da aspiração e, em um paralelo econômico, enquanto aquela se re-laciona com “economia de troca” (“economy of exchange”), esta se relacionaria com a “utilidade marginal” (marginal utility”). O autor relaciona muito a moral do dever com a “economia de troca” (“economy of exchange”)̧ e a moral da aspiração com o conceito de “utilidade marginal” (“marginal utility”) inclusive quando traça suas diferenças.

Contudo, ainda de acordo com Fuller (1964, p. 21 e 22) a moralidade do direito, descrita pelo autor como a moralidade interna da lei, não deve olvidar-se da moralidade da aspiração sob pena de não ser reconhecido pela sociedade como tal. Isto porque, a moralidade interna da lei, muito embora deva ser a resultante de uma conjugação da moralidade da aspiração com o dever, está mais relacionada à primeira, a qual deve servir como um balizador do sistema jurídico, possibilitando o seu reconhecimento pela sociedade.

Ao tratar da relação entre a moralidade de aspiração e a moralidade do dever, Fuller

(1964, p. 27) sugere a existência de uma escala, tendo seu início mais baixo, na relação social entre os indivíduos, ascendendo até o topo, as aspirações mais elevadas em relação ao que o ser humano entende por excelência.

Por outro lado, deve-se ter bem delimitado estes conceitos de moral, pois, caso a mo-ralidade do dever ultrapasse sua esfera apropriada, pode haver o sufocamento da inspiração e espontaneidade humanas. Da mesma forma, se a moralidade da aspiração invadir a província do dever, os homens podem começar a pesar e qualificar as suas obrigações conforme os seus próprios padrões, o que poderia inviabilizar o convívio em sociedade. Portanto, verifica-se que na moralidade do dever a noção de sanção se faz muito mais presente do que na moralidade da aspiração, porém, não podendo invadir a seara da aspiração.

Não obstante entender que a noção de moral de dever está mais próxima do conceito de direito do que a moral da aspiração, Fuller (1964, p. 33) alerta que, para fins de moralidade interna da lei, faz-se mais presente a ideia de moralidade da aspiração, uma vez que esta deve estar presente como um balizador do sistema jurídico, possibilitando o seu reconhecimento pela sociedade.

Ainda segundo Fuller, a moralidade interna da lei pode ser compreendida como uma

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visão procedimental do Direito Natural, que, na concepção fulleriana, deve ser entendida como uma expansão do conceito ordinário de Direito Natural. Aplicando este conceito à noção de lei e do próprio Direito, o autor refuta os defensores da teoria do Direito como forma de regramen-to coercitivo das condutas sociais, embasadas em comandos de autoridades. Isto porque, para a teoria fulleriana do Direito, este conceito de ordenamento jurídico termina por servir mais à estrutura de poder do Estado do que à sociedade.

Aqui se faz presente o ponto fulcral da teoria fulleriana, qual seja, a moralidade interna do direito, composta por oito princípios que devem ser observados para que as normas possam ser aceitas pela sociedade, quais sejam: i) generalidade; ii) publicidade por meio da regular promulgação para que seja dado conhecimento para a sociedade; iii) prospectividade e não retroatividade, sendo a retroatividade apenas aceita ocasionalmente; iv) clareza, de maneira a serem compreensivas; v) coerência sintética, ou seja, serem livres de contradições; vi) coerência lógica, ou seja, não exigir o que não é possível; vii) estabilidade, não sendo modificadas com muita frequência; e, viii) congruência entre o Direito e a ação oficial.

De acordo com Fuller, não obstante a qualidade inerente da obra de Hart, esta termina a se alinhar à corrente criticada por aquele autor no texto em análise, uma vez que, ao analisar o que este autor entende por conceito de Direito, termina por excluir as questões acerca das no-ções de moral, tanto de dever quanto de aspiração.

Fuller, de tal sorte, entende que um dos elementos necessários para o reconhecimento do ordenamento jurídico como tal relaciona-se, intrinsecamente, a moralidade interna do di-reito, bem como da aproximação, o máximo possível, dos oito princípios por ele apresentados. Conforme será visto a seguir, e neste ponto reside talvez o principal ponto de discordância des-tes autores.

8 DEBATE ENTRE FULLER E HART ACERCA DA REGRA DE RECONHECIMENTO

Exposta, sinteticamente, a teoria de Fuller, cumpre agora analisar a “regra de reconhe-cimento” hartiana. Esta é talvez, uma das mais importantes críticas que Fuller faz a Hart, afir-mando que a regra de reconhecimento nada mais seria do que os preceitos morais que tornam o Direito possível e aceito pela sociedade.

Hart, em sua obra, entende o Direito como um plexo de normas, primárias e secun-dárias, sendo as primeiras as responsáveis por impor dever à sociedade, enquanto as segundas relacionam-se às ideias de reconhecimento, modificação e julgamento, sendo responsáveis pela atribuição de competência aos agentes estatais para agirem no sentido de criarem e aplicarem as normas primárias. É neste contexto que surge a norma de reconhecimento.

Fuller (1964, p. 133 e 134) afirma que, em sua análise da regra de reconhecimento, Hart aparentemente cai em uma armadilha contida no campo da jurisprudência, ignorando questões fundamentais que embasam o sistema jurídico e que não tem, necessariamente, relação com a norma de reconhecimento, uma vez que não podem ser simplesmente expressos em termos de

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dever, ou de capacidade e competência, ignorando questões de cunho sociológico existentes no Direito.

A questão aqui é que o conceito hartiano deveria ser embasado em uma correlação dos elementos que embasam o reconhecimento do sistema jurídico pela sociedade às noções intrín-secas à ordem social, tal qual a moralidade de aspiração. Esta crítica é similar à realizada por Fuller em outro texto, no qual crítica a teoria de Hart por não se alinhar ao conceito fulleriano de fidelidade ao direito, que representa outro aspecto ao qual deve servir como reconhecimento de validade de um determinado sistema jurídico.

Ao rebater esta crítica de Fuller, Hart (2010, p. 397 e 398) retoma o conceito de regra de reconhecimento, afirmando que esta seria a última no sentido de que fornece uma série de cri-térios pelos quais, em última instancia, avalia-se a validade das regras subordinadas ao sistema, sendo a sua existência manifestada no reconhecimento e uso do mesmo conjunto de critérios de validade jurídica pelos operadores do Direito, bem como da conformidade geral com o Direito assim identificado. Hart não afasta, porém, a possibilidade da regra de reconhecimento ser ob-jeto de crítica moral, explicação histórica ou sociológica e outras formas de exame.

No que diz respeito à afirmação de Fuller de que a teoria de Hart incorreria em um “erro básico” por não se mostrar apta em explicar como é possível manutenção, após a revolu-ção, de grande parte do Direito privado pré-revolucionário, Hart (2010, p. 402 e 403) responde que não se se preocupou na análise do fenômeno da revolução, uma vez que, não pretendia tratar da “persistência do Direito”, mas sim, a intenção de sua obra era a de exibir inadequações da teoria austiniana segundo a qual o Direito era o comando soberano “habitualmente obedecido”.

Rebatendo a crítica, Hart afirma que a persistência do Direito poderia ser facilmente explicada se fosse pensada em termos não de hábitos de obediência, mas em termos da regra de reconhecimento, sendo esta a responsável para apontar o cargo de legislador e não, individual-mente, para o seu ocupante atual. Assim, a legislação anterior seria aceita como Direito porque identificada como tal pela regra de reconhecimento aceita. Este fato, contudo, não lida com a possibilidade de uma ruptura revolucionária do tipo que Fuller vislumbra, no qual há a recepção de grande parte do Direito privado pré-revolucionário.

Embora Hart não trate desse caso, o autor acredita não haver dificuldades em analisar estas questões apontadas por Fuller com base na regra de reconhecimento, isto porque, após uma ruptura revolucionária, sempre ficará incerto quais os critérios que serão usados para de-finir o direito, sendo que somente o transcurso do tempo fará com que surja uma uniformidade na prática de tribunais e legisladores.

Tal desenvolvimento é necessário para permitir a redefinição do direito pós-revolu-cionário por meio de uma nova regra de reconhecimento. Se não tivesse havido a revolução, a regra de reconhecimento teria sido identificada como base na provisão geral que qualificava a sucessão ininterrupta de legisladores. Portanto, após a quebra de regime, a validade da legisla-ção passa a se basear numa regra de reconhecimento distinta da anterior.

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9 RELAÇÕES ENTRE OS DEBATES HART-DEVLIN E HART-FULLER

Superadas estas questões iniciais, cumpre analisar a relação conceitual existente entre os debates Hart-Devlin e Hart-Fuller. A primeira questão cinge-se à crítica dirigida por Hart (1963, p. 28) à Devlin e Fuller no sentido de que estes autores incorrem no equívoco de argu-mentar sobre o que direito é, ao invés de fazê-lo sobre o que um sistema jurídico deveria ser, misturando estas duas esferas as quais deveriam se manter separadas para dar força argumenta-tiva ao que o direito deveria ser. Esta noção de dever ser deveria ser somente, para Hart (2010, p. 74 e 75), utilizado nos casos de penumbra, fornecendo um critério, nem sempre moral, para que se atribua um sentido o qual a norma originalmente não possuía.

O segundo ponto de conexão é o conceito dicotômico de moral adotado por Hart, para criticar a teoria de Devlin, pois segundo Carla Piccolo (2011, p. 40), há uma distinção entre moral positiva e crítica, sendo aquela referente às condutas aceitas comumente pela sociedade, e esta um conjunto de padrões de condutas os quais passaram por uma análise crítica racional, servindo como um ideal a que a moral positiva deve aspirar.

Conceituação similar se faz presente em Fuller (1964, p. 5 e 6) quando distingue a mo-ralidade do dever da moralidade da aspiração. A questão aqui é que, tanto Hart, quanto Fuller, se utilizam deste conceito de moral para rebater as teses de Devlin e Hart, respectivamente, nos debates protagonizados. Esta similitude entre Hart e Fuller cinge-se apenas a este conceito dicotômico de moral, pois ambos defendem teses opostas no que diz respeito à separabilidade entre direito e moral.

Além disso, outras duas conexões podem ser ilustradas através da argumentação a qual os autores podem traçar a partir dos seguintes questionamentos: a incorporação da moral pelo Direito facilita a aderência das condutas sociais às normas jurídicas? E, esta incorporação evita, de alguma forma, a criação de sistemas jurídicos injustos ou imorais?

Para Devlin a moral é elemento importante para dar legitimidade ao direito, uma vez que, a proteção da moral compartilhada, bem como a proteção de institutos sociais valiosos, transforma a aderência do comportamento social à legislação algo natural. Por sua vez, no que tange a possibilidade da incorporação da moral pelo direito evitar a criação de sistemas jurídi-cos injustos ou imorais, Devlin não apresenta uma resposta, sendo possível inferir, contudo, que a imposição da moral não afastaria a criação de sistemas jurídicos injustos ou imorais. Neste sentido, chama-se atenção para o seguinte trecho “There are, have been, and will be bad laws, bad morals, and bad societies (...) bad societies can live on bad morals just as well as good so-cieties on good ones” 4 (Devlin, 1965, p. 94).

Fuller afirma que existem preceitos morais, os quais denomina moralidade interna, ne-cessários para se entender o sistema jurídico possível. Verifica-se que a aderência da sociedade às regras jurídicas e, mais do que isso, a própria legitimidade do direito, esbarram, para Fuller,

4 Em tradução livre: “Existem, existiram e existirão um mau direito, má moral e má sociedade (...) más sociedades podem conviver com mau direito assim como boas sociedades convivem com bom direito.”

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na observância desta moralidade interna, ou seja, a moral é elemento fundamental para tal. No que diz respeito ao segundo aspecto, Fuller entende que a não observância da moralidade inter-na talvez não impedisse a criação de leis imorais, mas impediria sua eficácia. Não seria possível, assim, um direito imoral, uma vez que a moralidade seria inerente à sua própria validade.

Tanto Devlin, quanto Fuller entendem a moral como elemento importante, se não ne-cessário à validade do sistema jurídico e, mais do que isso, deve haver a incorporação de de-terminados preceitos à ordem jurídica como forma de proteção da sociedade. Contudo, Devlin distingue-se de Fuller na medida em que aceita aquilo que chama de mau direito e má moral dando a impressão que entende que a incorporação não necessariamente evita o surgimento de sistemas jurídicos injustos.

Portanto, a tese de Hart responde negativamente ambas as questões, uma vez que, não obstante aceite a existência de uma relação entre direito e moral, entende se tratarem de campos distintos. Conforme apontado por MacCormick (1981, p. 195), Hart defende que as regras jurí-dicas, como regras sociais que são, têm origens nas práticas sociais dos membros da sociedade, não sendo a moral uma condição necessária para a validade jurídica. O elemento necessário, para Hart, é a denominada regra de reconhecimento.

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate entre Hart e Devlin, originado em 1954, quando foi criado o Comitê Wolfen-den, foi um dos mais importantes debates acerca de uma das grandes problemáticas de teoria geral do direito, qual seja, até que ponto é legítimo a uma sociedade impor sua moral vigente por meio do ordenamento jurídico.

Desse modo, os argumentos de Devlin são no sentido de que a sociedade tem o direito de impor sua moral compartilhada, bem como deve legislar para proteger seus institutos sociais valiosos, como forma de preservar seu tecido social de desintegração e decadência. Hart, por sua vez, critica a teoria devliniana por entender não caber ao sistema jurídico limitar a liberdade individual, punindo imoralidades as quais não gerem danos efetivos a terceiros.

Ante o exposto, o entendimento mais correto, é o de que o sistema jurídico não deve ser utilizado como forma de limitação à liberdade individual, salvo quando a conduta vitimar terceiros. Esta foi o cerne da linha argumentativa de Hart em seu debate com Devlin, o qual, embora não tenha tido como objeto a tese da separabilidade entre direito e moral, foi importante porque ilustrou alguns conceitos relevantes que Hart desenvolveria posteriormente, principal-mente nas obras relacionadas ao seu debate com Fuller.

Não obstante o fato de que o elemento central do presente debate não foi a separabilida-de entre direito e moral, nele Hart apresentou importantes aspectos teóricos de seu pensamento acerca deste assunto, merecendo destaque: i) separabilidade entre direito e moral, não obstante exista uma relação entre direito e moral, refletida inclusive no compartilhamento de um voca-bulário normativo comum; ii) existência e o teor do direito podem ser determinados sem uma

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necessária referência à moral; e, iii) existência de uma moral positiva, que reflete a moral aceita em determinada sociedade, bem como de uma moral crítica, fruto de um processo de análise crítica, que refere-se a um ideal que a moral positiva deve aspirar.

REFERÊNCIAS

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FULLER, Lon. The morality of law. Revised Edition. New Haven and London: Yale University Press, 1964.

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GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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HART, Hebert Lionel Adolphus. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a moral in HART, Hebert. Lionel Adolphus. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

HART, Hebert Lionel Adolphus. The concept of law. 2. ed. NY: Oxford University Press, 1994

MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. California: Stanford University Press, 1981.

PICCOLO, Carla Henriete Bevilacqua. A moral e o conceito de direito em H.L.A. Hart. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. FADUSP, São Paulo, Inédita, 2011.

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THE REFLEX OF THE DEBATE HART DEVLIN IN THE TEORY OF LAW OF HART

ABSTRACT: After the publication, in 1957, of Wolfenden Committee’s final report, Hart and Devlin waged a debate about until which point Law must act to enforce shared moral of a specific society. Notwithstanding the object of this was not the thesis of the separation between Law and moral, it brought elements of the Hart’s theory in respect to this issue, as well illustrates his theoretical way of thinking developed in his later works.Keywords: Law. Separation. Moral. Debate. Concepts.

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Recebido em 13 fev. 2015. Aceito em 30 abr. 2015.

O USO DOS DIREITOS HUMANOS COMO FUNDAMENTO DE INTERVENÇÃO NA SOBERANIA DOS ESTADOS

Fernanda Monteiro Cavalcanti*

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo levar à reflexão sobre a pos-sibilidade da utilização do instituto dos Direitos Humanos como fundamen-tação para a intervenção nas soberanias dos Estados. Para tanto, valer-se-á primeiramente das contribuições de Hugo Grotius para a racionalização dos institutos utilizados nas relações interestatais, bem como das ideias de John Rawls, e será mostrado como este último põe os Direitos Humanos como ins-tituto racional, dando-o natureza tanto de princípio quanto de direito. Palavras-chave: Direitos humanos. Soberania. Direito internacional.

1 INTRODUÇÃO

O Direito Internacional, ramo de grande importância no estudo do Direito, versa sobre a definição das responsabilidades legais dos Estados em suas condutas uns com os outros e so-bre o tratamento dos indivíduos dentro das fronteiras do Estado. Dentre as questões de interesse mundial abrangidas por este regimento internacional está o instituto dos Direitos Humanos, sendo este abordado atualmente em situações como nas de sua violação por parte dos Estados, bem como nos debates sobre seu caráter abstrato, discutindo-se largamente sua subjetividade frente à sua adequação e aplicabilidade em Estados de diferentes culturas.

No entanto, pouco se tem discutido sobre a natureza racional, geradora do caráter le-gitimador dos Direitos Humanos para intervenções estatais, dadas as devidas circunstâncias. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo refletir sobre a legitimação da utilização dos Direitos Humanos como fundamento de intervenção na soberania Estatal, tomando primor-

* Graduanda no curso de Direito pelo UNI-RN, cursando o 9º período.

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dialmente como base o pensamento e as contribuições científicas do pensador Hugo Grotius. Deter-se-á, sobretudo, no uso da razão nas relações interestatais, sua maior colaboração para o Direito Internacional, incluindo o uso dos Direitos Humanos como um elemento racional, logo, legitimador de intervenção nas soberanias dos Estados.

Na sequência, será analisado o trabalho do filósofo americano John Rawls, influente por meio de seus estudos sobre as políticas internacionais, observando a sua proposição dos Direitos Humanos como princípio regulador da “sociedade dos povos”. Por fim, será traçado um paralelo no pensamento dos dois autores, evidenciando, assim, o caráter legitimador dos Direitos Humanos nas relações entre as soberanias.

Além disso, no primeiro tópico se discorrerá sobre alguns institutos grocianos de gran-de destaque no meio acadêmico, como o direito da guerra, a sociedade internacional grociana e seu conceito de soberania. No segundo, serão apresentadas as influências grocianas na produ-ção acadêmica atual, sobretudo nos estudos das relações internacionais, incluindo os trabalhos do filósofo John Rawls, sobre quem se abordará a partir do referido tópico até a conclusão do presente artigo. Será traçado, ainda, um paralelo entre Rawls e Grotius em questões referentes às suas concepções de sociedade internacional e sociedade dos povos, bem como seus devidos conceitos de soberania.

Posteriormente, será apresentada a aplicação prática do que foi dito, analisando-se a Convenção de Viena, e, por fim, postos os devidos argumentos, se concluirá o pensamento res-saltando a legitimação dos Direitos Humanos como instituto racional para a intervenção estatal.

Finalmente, observa-se a devida relevância que este trabalho tem para contribuir com os estudos do Direito Internacional, tendo em vista que, inúmeras vezes, os Direitos Humanos são somente refletidos quando se fala sobre a sua violação por Estados mais influentes em es-cala global, seja financeiramente ou em qualquer outro aspecto, situações nas quais se discute apenas qual a sanção mais adequada ao Estado infrator. No entanto, pouco se fala a respeito do seu caráter racional e, consequentemente, legitimador das devidas intervenções nas relações interestatais.

Desse modo, acredita-se que no estudo realizado através do presente trabalho, fiquem esclarecidos e comprovados ao leitor a racionalização deste instituto e os possíveis fins da sua utilização como justificativa da intervenção estatal.

2 NOVOS PARADIGMAS GROCIANOS NO DIREITO INTERNACIONAL

De acordo com o avanço de seus estudos, Grotius trouxe novos paradigmas a serem amplamente abordados nas pesquisas sobre as relações internacionais, tanto em sua época quanto na atualidade, sendo três os de maior destaque, a saber: o direito da guerra, a sociedade internacional e o conceito de soberania. Neste tópico, tratar-se-á de cada um, individualmente, a começar pelo conhecido direito da guerra.

Primeiramente, é válido salientar que Grotius abordou esse tema com muito mais ên-

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fase em sua obra principal, De Jure Belli ac Pacis (1625), na qual tratou de temáticas como a justificação da guerra, de como a mesma poderia ser feita, e em quais condições poderia ser decretada, dentre outras observações deveras válidas. Dessa forma, a principal contribuição de De Jure Belli ac Pacis foi a concretização de uma análise sistemática no que tange ao tradicio-nal Direito da Guerra, organizado mediante os princípios do direito natural. Na referida obra, Grotius discorre tanto sobre a guerra pública, feita sob a autoridade do soberano, quanto sobre a guerra privada, decretada sem o consentimento ou determinação do Estado, e, assim, discute a validade de tais guerras em ambos os casos.

Nesse sentido, é notável a proeminência dada por Grotius aos Estados e às autoridades soberanas, em detrimento do indivíduo particular e dos não-Estados. Por esse motivo, ele decla-ra que guerras consideradas públicas somente podem ser decretadas por autoridades soberanas, enquanto que, guerras particulares, decretadas pelos demais, só são propostas em circunstân-cias anormais. Tais discussões eram bem convenientes numa época em que as nações ainda buscavam sua homogeneidade e as convenções que estabeleciam direitos para as soberanias estavam ainda em processo de desenvolvimento (DAGIOS, 2012).

2.1 Direito da guerra

Sobre o direito da guerra, é aduzido que o único motivo para se recorrer à decretação de uma guerra é a busca por direitos. Nesse contexto, Grotius destaca três motivos de promoção dessa busca: a autodefesa, a recuperação da propriedade e a punição, cada um deles baseado na lei natural. Aqui é possível inserir o conceito do jus in bello, presente também na obra de John Rawls, sobre a qual se debruçará adiante. O citado instituto, presente nos tratados de Direito Internacional, versa sobre as normas que os soldados devem cumprir em casos de guerra (JOR-DÃO, 2008, p. 77), definindo quando uma conduta de guerra é louvável, mediante o cumpri-mento das normas. Os princípios previstos no jus in bello se embasam na ideia de um soldado em batalha apresentar uma conduta verdadeiramente justa (JORDÃO, 2008, p. 74).

Sobre o jus in bello, aduz Jordão:

Assim como dois adversários em qualquer esporte ou em qualquer disputa justa que há na vida, os soldados profissionais em guerra, ou até mesmo nos treinamentos nos quartéis, criam vários tipos de restrições das mais variadas formas. Estas restrições surgem com naturalidade até pelo respeito e pelo “se colocar no lugar do outro”, já que ambos partilham da mesma profissão. (2008, p. 75)

Além disso, o direito de autodefesa parte do pressuposto de que cada ser humano tem o direito de preservar sua integridade física contra possíveis lesões. Se a nossa principal preocu-pação é a de autopreservação, não poderíamos correr o risco de estar entre outras pessoas sem nos ser garantida a permissão de nos proteger delas. O direito de defesa não abrange somente a vida, mas o próprio corpo e a propriedade.

Nesse cenário, Grotius aduz que matar em defesa do próprio corpo é justificável, mes-

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mo se o objetivo do agressor não é matar, mas mutilar sua vítima ou estuprá-la. A afirmação é feita por não se saber a motivação do agressor, existindo sempre a possibilidade de homicídio, em qualquer ataque. Para que se possa agir em autodefesa, é dito que se deve observar a seguin-te condição: de que a agressão é eminente e certa1.

Assim, a propriedade pode ser defendida com força letal, com a restrição adicional de que tal força seja, de fato, necessária para mantê-la. A recuperação da propriedade não se aplica somente a bens móveis ou territórios, mas também a direitos sobre pessoas (escravos), direitos de ações (tais como cumprimento de contratos) e indenizações por perdas e danos2.

Além da autodefesa e da recuperação da propriedade, a guerra pode ser travada a fim de recuperar direitos ou punir o infrator. Grotius argumenta que esta violação da paz não é uma providência antissocial (e, portanto, uma violação do direito natural), uma vez que o iniciador da medida bélica só está exigindo o que a outra parte já deve, logo, não há violação, mas defesa do sistema de direitos.3

No que tange às conhecidas concepções de guerra justa e injusta no estudo das rela-ções internacionais, sabe-se que ambas concebem sua evidência pela razão humana, motivo pelo qual é rejeitada a ideia de que a guerra pode ser justa de ambos os lados, reafirmando-se, assim, que a mesma pode também ser injusta de ambos os lados. Segundo Grotius, travar guer-ras justas inclui a defesa da integridade do próprio indivíduo, a proteção da propriedade privada e a punição por acordos violados, conforme foi dito.4

Além disso, o embate não precisa ser necessariamente travado pelo indivíduo ofen-dido, mas também pode ser concretizado através de terceiros interessados no bem-estar social daquele que teve seus direitos violados, caracterizando a noção de ajuda mútua conferida pela ideia do mútuo parentesco de todos os homens. No direito natural, a conduta justa de guerra deriva da guerra justa, a qual não tem validade se não tiver por objetivo um motivo justo. Logo, qualquer ação se torna válida se o objetivo é, de fato, justo. Por fim, a doutrina da guerra justa foi minimizada e posteriormente excluída do direito internacional, nos séculos XVIII e XIX (DAGIOS, 2012).

Dando continuidade à análise dos novos paradigmas trazidos por Grotius para o estudo das relações internacionais, discorre-se agora sobre um instituto utilizado com enorme frequên-cia: a sociedade internacional grociana.

2.2 A sociedade internacional grociana

A noção de sociedade internacional não foi exclusiva de Grotius, sendo antecedida, nesses termos, por autores como Francisco Suarez (1548-1617) e Alberico Gentili. No entanto, a

1 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.2 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014. 3 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014. 4 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.

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concepção grociana de sociedade internacional ganha destaque na medida em que é a primeira a ser organizada de maneira sistemática, considerando uma ampla variedade de conceitos, des-de o direito privado e público internacional, as relações de Estados independentes, até questões da paz e da guerra.

Assim, o conceito de sociedade internacional grociana se baseia no chamado solida-rismo, o qual aduz que os Estados compartilham de uma responsabilidade comum em manter a sociedade e as instituições contra os desafios que possam ser impostos contra elas. A ideia de Grotius era a de uma sociedade baseada em normas estabelecidas por seus próprios Estados--membros através da deliberação entre estes sobre o que seria considerado mais benéfico para a sociedade como um todo (DAGIOS, 2012, p. 81). Procedendo desta forma, os integrantes da sociedade internacional cooperavam para a preservação da paz entre si, além de prevenir as possíveis interferências lesivas ao direito natural de seus membros.

Nesse sentido, conforme aduz Dagios, “em outras palavras, a sociedade internacional de Grotius não objetivava o bem para toda humanidade como um todo, mas apenas o bem daqueles que pertencem a essa comunidade, e o bem da comunidade é pensado apenas quando isso favorece os próprios interesses” (2012, p. 75), sem se estender em escala global. No entanto, a sociedade internacional grociana se mostra consideravelmente tolerante com diferentes reli-giões, bem como com diferentes culturas.

Igualmente, é fundamental relembrar que o conceito de sociedade internacional para Grotius é de uma sociedade governada por leis estipuladas por seus integrantes, e que tanto os Estados-membros quanto seus governantes se obrigam baseados nessas normas. Conforme Dagios (2012, p. 76), “o papel das leis como uma instituição na sociedade internacional foi sis-tematicamente melhor conduzida por Grotius do que os autores antecessores”.

Dessa forma, Grotius afirma que, mesmo com a independência dos governos centrais, os Estados integrantes da sociedade internacional não se encontram no estado de natureza, mas constituem uma comunidade entre si, indo de encontro às ideias de autores que defendem dou-trinas realistas, que firmam que os Estados se encontravam em estado de natureza, e se achavam livres para utilizar-se do que fosse necessário para atingir seus objetivos.

Ainda em relação à sociedade internacional, também se pode citar seu caráter univer-sal, não podendo selecionar seus participantes. A sociedade internacional não seria composta somente por católicos ou protestantes, mas de toda a humanidade, mediante a ideia de que o di-reito natural obriga todos os indivíduos racionais, sem distinção. Logo, tanto governantes quan-to príncipes participavam de sua formação, porém, não eram os únicos integrantes. Homens racionais se encaixavam na comunidade, de forma que os mesmos poderiam tranquilamente requerer direitos que lhe fossem justos baseados nos critérios do direito natural, caso o mesmo fosse violado de alguma forma.

Aqui se pode ver a clara semelhança da sociedade internacional grociana com a socie-dade dos povos desenvolvida por John Rawls, por essa também deter caráter universal e tratar os homens de forma igualitária. Essa questão e outras semelhanças nas obras de Rawls e Grotius

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serão tratadas, mais detalhadamente, na seção seguinte.Com isso, vê-se a fundamental importância do trabalho de Hugo Grotius para o desen-

volvimento do Direito Internacional atual, em variados pontos, mas mais precisamente na sua inserção da fundamentação jurídica e da racionalidade entre as soberanias como fatores regula-mentadores das relações interestatais.

2.3 Soberania

A concepção grociana define soberano como sendo aquele cujos atos “não dependem da disposição de outrem, de modo a poderem ser anulados a bel-prazer de uma vontade humana estranha” (CARISTINA; DOMINGOS, 2013, p. 23). Ao soberano é atribuída a observância de aspectos advindos do direito natural, do direito civil e do direito das gentes ( jus gentium), tendo como fim a devida proteção do povo em seu estado social. Dessa maneira, forma-se a base para seu governo, ou, ainda, para o exercício de sua soberania.

Assim, em Grotius, o soberano é um representante legítimo do povo, não sendo consi-derado superior aos demais por se encontrar em seu cargo. Logo, suas decisões não devem ser tomadas a seu alvedrio, mas pautadas nos princípios do direito natural, do qual deve possuir amplo conhecimento, sempre visando o bem comum da comunidade. Vale salientar que o poder soberano de governar é denominado, por Grotius, de poder civil (DAGIOS, 2012).

Além da definição da gestão ideal do soberano, convém mencionar a formação desta sociedade, a qual não advém da vontade do soberano, mas da vontade dos indivíduos em esta-belecer um governo justo que lhe imponha restrições e lhe conceda direitos dentro da razoabili-dade. Sendo assim, na concepção grociana, há um interesse comum primário na constituição do Estado e outorga de poder ao soberano por parte de cada um de seus membros. A formação de seu Estado não se pauta no medo, como afirma Hobbes, mas na própria vontade dos governados pelo soberano (DAGIOS, 2012, p.4).

Dessa forma, a união dos indivíduos em prol da formação do Estado suscita a abdi-cação do bem individual em favor do bem comum por parte dos integrantes da comunidade, estando suas atitudes pautadas na cooperação mútua e amizade entre os mesmos, o que ilustra exatamente a figura que Grotius idealizou para o modelo ideal de sociedade, assemelhando-se às proposições de São Tomás de Aquino e Locke, tendo como pressuposto da vida em socieda-de a lei do amor, a qual promove a união dos homens como verdadeiros irmãos (CARISTINA; DOMINGOS, 2013, p.11).

Por fim, é mais do que válido ressaltar as contribuições práticas do conceito de sobe-rania do pensador de Delft nos estudos das relações internacionais, conforme se verá a seguir.

Dessa forma, a integração magistral de Grotius quanto à independência e à autonomia do Estado soberano, e os desafios de desenvolver relações juridicamente ordenadas entre os Es-tados em períodos de guerra e paz demonstram a significativa evolução do Direito Internacional com um trabalho através dos imperativos do poder soberano e autoridade, com suas devidas restrições sugeridas pela utilização da razão, e expressos sob a forma do Direito Internacional.

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Nessa perspectiva, uma das suas maiores contribuições para a compreensão da sobera-nia foi a introdução da racionalidade através do pensamento jurídico e fundamentação jurídica, e de que esses podem ser a forma ideal de regulação entre as relações internacionais, o que trouxe a razão como meio de relação de soberanos entre si.

Finalmente, vê-se o devido reconhecimento dado a Grotius na formação do Direito Internacional, vez que o pensador inseriu na relação entre os Estados a utilização de elementos como a razão e a fundamentação jurídica, fatores de enorme importância para o desenvolvimen-to da regulamentação do campo do Direito entre as soberanias.

3 A EXPANSÃO METODOLÓGICA GROCIANA

Apresentados os novos paradigmas trazidos por Grotius para o estudo das relações internacionais em um momento mais antigo, serão tratadas neste tópico as contribuições grocia-nas aplicadas a estudiosos atuais em suas respectivas obras. Abordar-se-á, por último, a obra de John Rawls, a quem se dará mais ênfase, mediante sua importância no desenvolvimento deste trabalho, quando tratar-se de temas como sua conhecida sociedade dos povos e seu conceito de soberania, relacionando-o com Grotius. Por fim, baseado na concepção grociana do uso da razão nas relações entre soberanos, dissertar-se-á sobre a noção dos Direitos Humanos como princípio legitimador de intervenção na soberania dos Estados.

3.1 Influência da academia atual de Grotius

Inicialmente, trata-se sobre o trabalho de Donald Puchala e Raymond Hopkins, os quais, seguindo uma linha de pensamento grociana das relações internacionais, em sua obra, enfatizam que as normas internacionais, além de se encontrarem sempre presentes nas relações internacionais, tendem a prevalecer independentemente da conjuntura em que se encontrem, seja ela de paz ou de guerra entre os soberanos, de acordo com Fernandes (2012).

É válido salientar que a influência acadêmica grociana contemporânea não se resume só aos autores citados, mas também é exercida sobre estudiosos como Stephen Krasner, além de Keohane e Nye, sobre os quais não se discorrerá no presente trabalho.

No entanto, finalmente, conforme Nay:

John Rawls (1931-2002) é a figura central da filosofia liberal do final do século XX. Desde que apareceu, sua Teoria da justiça suscitou admiração e rejeição, e reabriu o debate sobre o lugar dos direitos na sociedade liberal. Rawls propõe um quadro de reflexão teórico que tenta superar a antinomia clássica entre igualdade e a liberdade. O sucesso de sua obra está, em grande parte, na sua vontade de encontrar uma via política média, próxima da social-democracia, que se oponha ao mesmo tempo aos excessos do “liberalismo selvagem” e aos desvios do “socialismo autoritário”. A melhor maneira de melhorar a sorte dos indivíduos, para ele é a do reformismo (2007, p. 496).

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Ademais, o referido estudioso de suma importância, não só no meio acadêmico mas também na construção do presente trabalho, John Rawls, autor do “Direito dos Povos” (1999), conforme afirma Sérgio Sérvulo da Cunha, revisor técnico da referida obra,

Rawls estende a ideia de um contrato social à Sociedade dos Povos, e lança os princípios gerais que podem e devem ser aceitos por sociedades liberais e não-liberais, como padrão para regulamentar a conduta recíproca. Em particular, traça uma distinção crucial entre direitos humanos básicos e os direitos de cada cidadão de uma democracia constitucional liberal. Explora os termos sob os quais tal sociedade pode adequadamente guerrear contra uma “sociedade fora da lei”, e discute os fundamentos morais para prestar assistência a sociedades não-liberais oneradas por condições políticas e econômicas desfavoráveis. (RAWLS, 2004, preâmbulo).

Portanto, uma das mais conhecidas ideias desenvolvidas por John Rawls em sua obra é a da “sociedade dos povos”, a qual será explorada na próxima subseção, e com a qual será traça-do um paralelo em relação à concepção de sociedade internacional de Hugo Grotius.

3.2 A sociedade de John Rawls e a sociedade internacional grociana: um breve paralelo

Rawls inicia seu raciocínio atribuindo à sociedade dos povos um caráter democrático constitucional razoavelmente justo, ou, simplesmente, liberal. A referida sociedade seria com-posta por dois povos distintos, como preceitua Jordão:

Ele [Rawls] chamará esse tipo de sociedade de Povos bem ordenados, que por sua vez serão divididos em dois, a saber: a) Povos Liberais Razoáveis, cujas características são estas: democracias constitucionais ocidentais e que seguem aos princípios do Estado democrático de direito; b) Povos Decentes: estes são povos “não liberais”, mas que tem como base de suas ações políticas os direitos humanos, além do mais, permitem que os seus cidadãos tenham o direito de serem consultados em decisões primordiais do Estado. (JORDÃO, 2008, p. 68)

Entretanto, apesar de suas diferenças, os povos que compõem a sociedade dos povos devem ser razoavelmente justos e decentes, além de honrarem o direito dos povos (também de-vidamente desenvolvido na obra de Rawls).

Além disso, Rawls também afirma que os membros da sociedade dos povos eram li-vres e, sobretudo, iguais, sendo esta a primeira conexão que podemos fazer com o pensamento de Grotius, no sentido de que, em sua sociedade internacional, os indivíduos eram tidos como iguais perante as normas formuladas pelos membros da sociedade, sendo sua visão sempre de proporcionar o bem comum para a comunidade como um todo, e não somente para deter-minados indivíduos. Como Dagios (2012, p. 75) prescreve: “em outras palavras, a sociedade internacional de Grotius não objetiva o bem da humanidade como um todo, mas apenas o bem daqueles que pertencem a essa comunidade, e o bem da comunidade é pensado apenas quando isso favorece os próprios interesses.” (grifo nosso)

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Ademais, a obra rawlsiana também aduz sobre o caráter evidentemente pluralista da sociedade dos povos, vez que afirma que um direito dos povos razoável deve ser aceitável para povos razoáveis que assim são diversos (RAWLS, 1999, p.15).

Dessa forma, constrói-se uma relação direta com a sociedade internacional de Gro-tius, uma vez que a mesma não possui restrições quanto à integração dos povos em seu meio, visto que, conforme Dagios (2012, p. 7), “a sociedade internacional não é composta apenas de católicos ou protestantes, mas de toda a humanidade, mediante a ideia de que a doutrina moral abrangente obriga a todas as pessoas racionais, sem distinção”5.

Assim, justamente por possuírem esse caráter pluralista, tanto a sociedade dos povos, quanto a sociedade internacional grociana não exigiam uma unidade religiosa, mas prezavam pela tolerância entre os povos-membros de cada sociedade (RAWLS, 1999).

Por último, que se faça menção aos “princípios de justiça” elaborados por Rawls para a sociedade nacional, primeiro passo para o desenvolvimento do direito dos povos (RAWLS, 1999, p. 47-48), dado seu papel crucial como regulamentadores da sociedade dos povos. Nesse sentido, afirma Jordão (2012, p. 62-63):

Eis os princípios dos Direitos dos Povos, que serão basilares para a Sociedade dos Povos:1. Os povos são livres e independentes, e sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos, ou seja, esse é o princípio da autodeterminação: um Povo é livre para resolver seus próprios assuntos sem a intervenção de forças exteriores;2. Os povos devem observar tratados e compromissos;3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam;4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção;5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa;6. Os povos devem honrar os direitos humanos;7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra;8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos que vivem sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente.Tais princípios são apenas formulações gerais que podem sofrer acréscimos, pois eles são princípios mínimos que norteiam o Direito dos Povos e, assim sendo, não é permitida nenhuma supressão deles, vindo a se formularem de acordo com a realidade de cada povo. Além do mais existem alguns princípios que foram colocados por Rawls apenas para que haja uma descrição mais detalhada de outros princípios, de sorte que eles já seriam autoevidentes numa Sociedade dos Povos.

Após fazer referência à fundamental elaboração dos princípios de justiça, Rawls afirma que não considera relações com outras sociedades quando se traça a ideia de uma sociedade dos povos, mas a vê como fechada: os indivíduos entrariam apenas pelo nascimento e sairiam com

5 No entanto, isso não enfraquece o argumento de que Grotius e Rawls partem de um mesmo raciocínio.

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a morte (1999, p.34).Nesse sentido, pode-se traçar um último paralelo com a sociedade internacional de

Grotius, que também era idealizada como fechada, fazendo parte dela somente Estados-mem-bros que tivessem os mesmos interesses e pretensões, auxiliando-se através do solidarismo. A sociedade internacional grociana não detinha caráter global, conforme Dagios (2012, p. 75), “a sociedade internacional de Grotius não objetivava o bem da humanidade como um todo, mas apenas o bem daqueles que pertencem a essa comunidade”.

3.3 O conceito de soberania rawlsiano e grociano: similitudes e distinções

Outros dois institutos são as diferentes concepções de soberania presentes no pensa-mento de John Rawls e de Hugo Grotius, visto que, apesar de serem consideravelmente seme-lhantes em sua base ao conceituar a soberania, também diferem notavelmente em suas aplica-ções práticas, o que será analisado no presente subtópico.

Inicia-se este estudo com o conceito filosófico clássico de soberania, sendo esta, a qua-lidade do poder supremo do Estado de não ser obrigado ou determinado senão pela sua própria vontade, dentro da esfera de sua competência e dos limites superiores do Direito.

Dessa forma, aduz-se que a presença de soberania pressupõe a existência de uma in-dependência Estatal de forma externa, e de certa supremacia de forma interna, de modo que, da mesma forma que o Estado não é obrigado a se subordinar a quaisquer outros Estados, ele impõe certa limitação interna às vontades do povo. Em suma, quanto ao posicionamento do Estado perante os demais, afirma-se que Estado soberano é aquele que não se encontra adstrito a ordens e interferências de outro Estado (OLIVEIRA, 2009, p.8).

Posto isto, passa-se à análise do conceito rawlsiano de soberania e como este autor idealizava sua aplicação. Rawls afirma que a sociedade dos povos deveria, sobretudo, seguir os princípios e normas estabelecidos pelo direito dos povos. Sendo assim, aduz que os de sobera-nia, entendida como o direito de guerrear, em nível externo, e de autonomia em relação ao seu povo, no âmbito interno, devendo, portanto, ser restringida à luz do direito dos povos.

No entanto, o pensador discorda da ideia de uma soberania absolutista e da autonomia derivada do poder soberano, explicitando isso no direito dos povos, quando diz que um governo, como organização política do seu povo, não é necessariamente o autor de todos os seus poderes (RAWLS, 1999, p.34).

Assim, observa-se o pensamento rawlsiano em relação ao conceito tradicional de so-berania também conforme Oliveira (2009, p. 811), “Rawls, ao afirmar que o Direito dos Povos restringirá o poder soberano interno, nega a concepção de soberania imposta pela tradição filo-sófica, segundo a qual o poder soberano não pode ser restrito nunca”.

Dito isto, façamos agora um paralelo com a soberania rawlsiana e a grociana, aduzin-do, primeiramente, que ambas as concepções são baseadas no conceito filosófico tradicional de soberania, possuindo como diferença somente sua forma de aplicabilidade.

Como vimos anteriormente, na sociedade internacional de Hugo Grotius, a instauração

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de um governo soberano partia da vontade do povo, e não do próprio soberano como indivíduo autoritário. Da mesma forma, na sociedade dos povos de Rawls, vê-se seus membros se unindo por afinidades comuns em prol de seu próprio benefício, porém, sem a presença de qualquer soberano. Como aduz Jordão:

Mas, é preciso antes esclarecer, e Rawls chama a atenção para isso, que esses princípios não serão defendidos por um Estado mundial, e ele acredita que se assim fosse haveria ou uma tirania global, ou uma insegurança permanente e os povos viveriam num estado permanente de guerra, na busca de sua liberdade e autonomia (2008, p. 62).

No entanto, nota-se uma nítida semelhança entre ambas as teorias, no sentido de que, tanto a formação da sociedade internacional de Grotius, quanto a sociedade dos povos de Rawls, apesar de diferirem no seu conceito de soberania e no próprio modo de aplicação da mesma, têm o mesmo objetivo final: o de proporcionar o máximo de bem-estar para os povos-membros das sociedades, através dos recursos disponíveis, dadas as devidas circunstâncias.

3.4 A racionalização dos direitos humanos e sua legitimação como meio de intervenção estatal

A partir dos estudos feitos para o presente artigo, nota-se, por meio das contribuições grocianas para os estudos das relações internacionais, no sentido da fundamentação jurídica e racionalização de institutos pertencentes às relações interestatais, que seu pensamento exerceu influência também nas ideias de Rawls quanto ao adequado tratamento que deve ser dado aos Direitos Humanos como instituto. Como consequência desses pressupostos de Grotius6, Rawls também tratará os Direitos Humanos como instituto racional, discorrendo sobre seu tratamento dentro da sociedade dos povos.

Assim, tanto a influência grociana, quanto a abordagem racional atribuída aos Direitos Humanos também por Rawls, acarretam na razoável afirmação de que os Direitos Humanos po-dem ser utilizados como fundamento para a intervenção estatal, sendo este o assunto principal do presente subtópico, e sobre o qual se discorrerá.

Nesse contexto, a partir de seus estudos sobre o Direito Natural, Hugo Grotius afirma-va que o mesmo constituía um princípio basilar, definidor da justiça e da ordem social. Assim, Grotius sintetizou a teoria da universalidade do Direito Natural e da igualdade entre os homens, abrindo um precedente no que viria a constituir os hodiernos Direitos Humanos. Por mais que os mesmos ainda não existissem formalmente, por terem sua base no Direito Natural grociano, adquiriram caráter racional face à construção do pensamento grociano.

6 Vale ressaltar que os direitos humanos não existiam como instituto formalizado nos tempos de Grotius, mas que sua desenvoltura no estudo do Direito Natural foi de fundamental importância para a formação do conteúdo dos Direitos Humanos que conhecemos hoje.

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Dessa forma, conforme supracitado, além de diversas outras colaborações de Hugo Grotius para os estudos das relações internacionais, fez-se presente a introdução da racionalida-de no trato entre os Estados, baseada na fundamentação e pensamento jurídicos, o que, em seu pensar, seria a regulamentação ideal para as relações interestatais. É a partir desse pressuposto que Rawls constrói seu raciocínio em relação aos Direitos Humanos como instituto racional, desenvolvendo seu conceito, sua função basilar quanto aos “princípios de justiça” da sociedade dos povos, bem como sua função limitadora das condutas dos membros da sociedade e seu papel final numa sociedade dos povos razoavelmente justa.

Em sua obra “O Direito dos Povos”, Rawls conceitua os Direitos Humanos: “Os direi-tos humanos são uma classe de direitos que desempenha um papel especial num Direito dos Povos razoável: eles restringem as razões justificadoras da guerra e põem limites à autonomia interna de um regime” (grifo nosso) (1999, p. 103).

No decorrer de sua obra, Rawls se refere aos Direitos Humanos reiteradas vezes como “direitos”, o que comprova sua introdução destes como instituto racional das relações interna-cionais, base do pensamento de Grotius neste sentido, conforme dito anteriormente. Segue-se o presente estudo ressaltando o papel basilar dos Direitos Humanos frente aos demais “princípios de justiça” postos por Rawls na sociedade dos povos. Inicie-se pela análise do que são tais prin-cípios dentro da obra rawlsiana:

Destarte, os princípios de justiça é que irão proteger os interesses, como ele [Rawls] mesmo diz, ‘de ordem superior dos cidadãos’. Toda ideia de bem será moldada pelos princípios que darão a base e a fundamentação da constituição liberal e da estrutura básica da sociedade bem ordenada. Serão as instituições que formalizarão como os cidadãos deverão se comportar dentro de uma situação limite, como no caso de uma guerra. Sendo assim, não haverá disputa entre as doutrinas abrangentes, pois os cidadãos terão apenas que segui-las segundo a sua concepção moral (a primeira como afirma Rawls), mas sem ferir os princípios de justiça propostos não apenas pelo Estado doméstico, como também pelos Estados que fazem parte da sociedade dos povos, pois já fora definido na posição original (JORDÃO, 2008, p. 71).

Assim, concorda-se com Jordão, quando este preceitua que “Rawls coloca como base de uma sociedade bem ordenada o ideal dos Direitos Humanos. É nele que se fundamentam todos os oitos princípios de justiça que devem ser obedecidos pelos povos e cujo objetivo maior é fazer parte de uma sociedade bem ordenada” (2008, p. 63).

Entre os direitos humanos estão o direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade (à liberação de escravidão, servidão e ocupação forçada, e a uma medida de liberdade de consciência suficiente para assegurar a liberdade de religião e pensamento); à propriedade (propriedade pessoal) e à igualdade formal como expressa pelas regras da justiça natural (isto é, casos similares devem ser tratados de maneiras similares)A partir dessa definição percebe-se que os direitos humanos abarcam uma boa parte dos princípios formulados por Rawls para o seu Direito dos Povos e a partir dele podemos destacar o direito de igualdade, o direito de

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liberdade, e o direito à vida. E quando se fala no direito de guerrear ( jus ad bellum), é que, comparado aos demais conceitos, os direitos humanos têm um maior destaque. E isso não é só no sentido de ter preferência, mas também de conduzir os demais: “(...) a guerra não é mais um meio admissível de política governamental e só é justificada em autodefesa ou em casos graves de intervenção para proteger os direitos humanos”. (JORDÃO, 2008, p. 66, 67)

Dar-se-á agora relevância às funções dos Direitos Humanos na sociedade dos povos rawlsiana, quais sejam, as de limitação do Direito nacional de acordo com os ideais dos Direitos Humanos, bem como de estabelecimento de um padrão necessário às instituições. Conforme Rawls aduz em sua obra:

Os direitos humanos são distintos dos direitos constitucionais ou dos direitos da cidadania democrática liberal, ou de outros direitos que são próprios de certos tipos de instituições políticas, individualistas e associativas. Eles estabelecem um padrão necessário, mas não suficiente, para a decência das instituições políticas e sociais. Ao fazê-lo, limitam o Direito nacional admissível de sociedades com boa reputação em uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. (1999, p. 104)

Por fim, no que tange aos Direitos Humanos na obra rawlsiana, o autor estabelece “três papéis”, entendidos aqui como finalidades, que os mesmos detêm, quais sejam:

Portanto, a classe especial de direitos humanos tem estes três papéis:1.Seu cumprimento é condição necessária da decência das instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica (§§ 8-9).2.Seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva de outros povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas ou, em casos graves, da força militar.3.Eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos. (1999, p. 104-105)

Dessa forma, estabelecidos o conceito, a importância, as funções e finalidades que os Direitos Humanos têm para John Rawls em uma sociedade dos povos razoavelmente justa, observa-se a utilização da racionalidade em relação aos Direitos Humanos para que todas estas observações fossem formuladas.

Finalmente, aqui conclui-se a construção do raciocínio em relação à proposta inicial. Passou-se primeiramente pelo ideal grociano da fundamentação jurídica e da racionalidade sen-do utilizados para a devida regulamentação das relações internacionais, influência que vem sendo exercida até hoje pelos estudiosos das relações internacionais, para enfim relacioná-la ao pensamento de John Rawls.

Assim, a obra de Rawls foi razoavelmente influenciada pelo pensamento de Hugo Gro-tius neste sentido, não somente nos conceitos rawlsianos de Soberania ou de Sociedade Interna-cional, mas também na utilização dos institutos reguladores das relações internacionais como regimes baseados na razão.

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Desse modo, finda-se este estudo comprovando, através dos pensamentos grocianos até os filósofos atuais, de que o instituto dos Direitos Humanos, por deter caráter racional, pode ser um instrumento utilizado como fundamento de intervenção na soberania Estatal.

4 DO USO DOS DIREITOS HUMANOS EM TERMOS PRÁTICOS

Atualmente, vê-se um número considerável de produções acadêmicas envolvendo pro-blemáticas diversas sobre os Direitos Humanos. No entanto, observa-se que a maioria delas trata de questões de cunho diplomático, como em ocasiões em que determinados Estados ferem os Direitos Humanos, por razões diversas, buscando-se e discutindo-se a devida sanção ao Estado infrator, ou de cunho filosófico, em debates relacionados ao caráter subjetivo dos Direitos Hu-manos, discutindo-se sua validade e aplicabilidade para todos os Estados, tendo em vista que diferentes Estados em diferentes partes do planeta possuem culturas e valores também distintos.

No entanto, pouco se fala dentro do Direito Internacional sobre a função legitimadora dos Direitos Humanos para a intervenção Estatal, seja em contextos de conflitos ou de paz.

Para expor melhor a presente tese, pode-se trazê-la para um contexto mais prático e atual, falando sobre a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ratificada pelo Brasil e incorporada ao Direito nacional em 2009.

Em primeiro lugar, atenta-se para sua menção à observância dos Direitos Humanos no preâmbulo, sendo, na verdade, o Direito Internacional seu real campo de atuação, vez que obje-tiva obrigar todos os Estados integrantes da Convenção.

Adiante, no artigo 26, se vê: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumpri-do por elas de boa fé.”7 Aqui está presente o princípio do pacta sunt servanda, através do qual as partes se obrigam pelo instrumento contratual consentido, além da boa fé presumida no cum-primento do que foi estipulado pela Convenção em razão da anuência dos Estados signatários.

Após, no artigo 27, verifica-se: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado (...)”8. Logo, confere-se que os Estados nacionais não podem utilizar seu Direito interno (até mesmo a Constituição Federal), para justificar uma quebra dos tratados internacionais, como uma possível intervenção ilícita na soberania de outros Estados. Da mesma forma, uma vez pactuado um tratado internacional, o Direito interno deve harmonizar-se com o Direito externo, a fim de evitar contradições (antino-mias) entre esses dois sistemas (interno e externo).

Nesse cenário, com a devida análise dos artigos da Convenção apresentados fica com-provado que o legislador nacional não é plenamente soberano, pois o Direito Internacional con-diciona o Direito nacional dos países ao estipular normas internacionais limitadoras das ações

7 BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dez. 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. 8 BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dez. 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66.

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dos Estados anuentes com as mesmas. A soberania nacional, aqui representada pela atividade legislativa, é relativa, uma vez que as obrigações assumidas pelo Estado perante a sociedade internacional não permitem que o legislador nacional legisle ao seu bel-prazer.

No entanto, vê-se que, apesar de os países não deterem de plena soberania para intervir nos demais Estados, tendo em vista sua obrigação de estar sempre de acordo com as normas es-tipuladas nos tratados e convenções internacionais, observa-se que os mesmos podem utilizar-se de outros meios para intervir nas demais soberanias, sem que haja quebra dos tratados. É o caso do uso dos Direitos Humanos como um fundamento racional e legitimador para a intervenção de outras soberanias, como foi posto ao longo do raciocínio no presente artigo.

Dessa maneira, como afirma Jordão (2012, p. 4): “Devemos [...] defender que os Direi-tos Humanos são a base dos princípios de justiça e, com isso, o principal a ser defendido, pois ele abrange todos os outros. Em seguida, mostrar-se-á que é ele que serve de justificação para as intervenções [...] no mundo hodierno” (grifo nosso).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, observa-se que, por ser um assunto de considerável importância no âmbito atual, as relações interestatais necessitam de institutos e normas racionais baseados na funda-mentação jurídica, como afirma Grotius, para se regularem plenamente. Nos referidos institutos incluímos os Direitos Humanos, instrumento legitimador de possíveis intervenções nas sobe-ranias dos Estados, seja para questões de paz ou de guerra, sem que haja violação de normas internacionais estabelecidas, graças a seu caráter universal e racional.

Como já foi dito, o Direito Internacional é um instituto de enorme importância, haja vista que regula as relações interestatais, impondo limites às soberanias em inúmeras questões, sejam de cunho econômico, político, ou qualquer outro, e assim regulamentando o comporta-mento dos Estados e a devida organização das relações internacionais entre as soberanias.

À vista disso, foi visto que, segundo Grotius, para que haja um devido regimento uni-versal com o fim de regularizar as relações entre os Estados, o uso da racionalidade e da fun-damentação jurídica se faz essencial. Também foi falado que, partindo do pressuposto de que os institutos utilizados para a regulamentação das relações interestatais devem deter caráter racional, essa característica também está presente no instituto dos Direitos Humanos, tratados do mesmo modo racional por John Rawls.

Seguiu-se afirmando e comprovando através de trechos da obra de Rawls que o mesmo trata o instituto dos Direitos Humanos como direito concreto logo, dotado de uma construção baseada na razão. A partir da afirmação de que os Direitos Humanos detêm natureza racional, aduziu-se que os mesmos teriam plena condição de fundamentar uma medida interventora na soberania Estatal.

Finalmente, com o presente trabalho espera-se ter levado o leitor à reflexão sobre esta temática, partindo da contribuição e racionalização grociana para os estudos das relações inter-

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nacionais; em seguida fazendo uma ponte com o pensamento rawlsiano em relação ao mesmo tema, e a forma como os Direitos Humanos são tratados como instituto naturalmente racional. E, justamente por ter essa nova natureza racional, enxergamos os Direitos Humanos nitidamente como instituto legitimador de intervenções Estatais, seja para quais fins forem.

REFERÊNCIAS

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ABSTRACT: This article has the objective of reflecting about the possibility of using the institute of Human Rights as the basis for a intervention in the sovereignty of the States. To do so, first we will take the contributions of Hugo Grotius in the rationalization of institutions used in the interstate relations, as well as the ideas of John Rawls, and show how he puts the Human Rights institute as rational, giving to this the nature of principle and right at the same time.Keywords: Human Rights. Sovereignty. International law.

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Recebido em 23 fev. 2015 Aceito em 24 abr. 2015

SOBRE O CONCEITO DE LIBERDADE EM AMARTYA SEN

Yanko Marcius de Alencar Xavier*

Cristina Foroni Consani**

RESUMO: O tema da liberdade é central para os Estados Democráticos de Direito contemporâneos. A proteção e a promoção da liberdade, nas várias acepções que esse conceito tem recebido ao longo da história, estão estreita-mente atreladas à legitimidade do Estado de Direito e à possibilidade de sua caracterização como um Estado democrático. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é apresentar as principais concepções de liberdade que se tornaram referência para a Filosofia Política e do Direito, dando ênfase à concepção de liberdade de Amartya Sen em razão de sua forte conexão com um modelo de desenvolvimento individual, social e econômico. Palavras-chave: Liberdade. Amartya Sen. Desenvolvimento.

1 INTRODUÇÃO

Liberdade é, nas sociedades hodiernas, um tema central. A proteção e a promoção da liberdade, nas várias acepções que esse conceito tem recebido ao longo da história, estão estrei-tamente atreladas à legitimidade do Estado de Direito e à possibilidade de sua caracterização como um Estado democrático.

Há, porém, muitas formas de abordar o conceito de liberdade. Por essa razão, a dis-cussão acerca da liberdade aqui apresentada tem por objetivo analisar os conceitos de liberdade

* Professor Titular Livre do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenador doPrograma de Recursos Humanos em Direito do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (PRH-ANP/MCTI nº 36) e do Grupo de Pesquisa em Direito e Regulação dos Recursos Naturais e da Energia. Email: [email protected]** Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-tarina (UFSC). Professora colaboradora voluntária vinculada ao Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-doutoranda em Direito – UFRN – PNPD/CAPES. Email: [email protected]

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que se tornaram canônicos na filosofia política e jurídica moderna e contemporânea, apontando para as limitações de cada um desses conceitos quando relacionados à proteção ou promoção de direitos fundamentais.

Sendo assim, a análise ora proposta será realizada em dois momentos. Primeiramente, serão apresentadas as concepções de liberdade que se tornaram, em certa medida, clássicas para se pensar a liberdade, notadamente, o conceito de liberdade dos antigos e dos modernos de Benjamin Constant, o conceito de liberdade negativa e positiva de Isaiah Berlin, e o conceito de liberdade como ausência de dominação da teoria republicana.Concomitantemente, serão tecidas considerações críticas em relação a tais conceitos de liberdade no que diz respeito ao seu potencial de promoção ou proteção de direitos fundamentais.

A seguir, será apresentado e analisado o conceito de liberdade vinculado ao desenvol-vimento de Amartya Sen, cotejando-se este conceito com os anteriormente apresentados a fim de verificar em que medida ele pode ser mais adequado à promoção dos direitos fundamentais.

2 AS CONCEPÇÕES CLÁSSICAS DE LIBERDADE

O conceito de liberdade, na modernidade, assume uma importância central para o Direito, principalmente a partir do desenvolvimento da noção de liberdades individuais, noção está diretamente vinculada àquela de direito subjetivo e à ideia de vontade livre, que servem como bases, respectivamente, para a oposição dos indivíduos ao Estado e para as relações con-tratuais.

No século XIX, uma célebre caracterização dessa liberdade é feita por Benjamin Constant no ensaio “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”. Nesse texto, a li-berdade dos modernos é definida basicamente como independência privada e como o exercício dos direitos individuais. Assim, trata-se do direito que os indivíduos possuem de manifestar sua opinião, de escolher sua religião e seus negócios, de dispor livremente de sua propriedade, de ir e vir e de exercer influência sobre o governo por meio de petições, reivindicações ou repre-sentações que devem ser consideradas pelo governante; mas, não abarca o direito de exercer as atividades de governo e de legislador diretamente.

Esse ideal de liberdade, cujo foco principal é a proteção do espaço privado dos indi-víduos, é contraposto ao ideal antigo, ou à liberdade dos antigos, cuja principal característica é o exercício coletivo e direto das atividades concernentes aos poderes legislativo, executivo oujudiciário. Trata-se do direito de deliberar diretamente, de votar as leis, de decidir sobre ques-tões de Estado como a declaração da guerra e da paz, de celebrar tratados e alianças, de realizar julgamentos.

Nesse sentido, para acentuar as diferenças entre o modo de vida antigo e o moderno, Constant ressalta que os antigos eram soberanos nas questões públicas, mas escravos em seus assuntos privados, uma vez que a inexistência da noção de direitos individuais permitia à co-munidade política invadir esferas da vida privada dos indivíduos.

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Os modernos, por outro lado, a partir da afirmação dos direitos individuais, são consi-derados independentes em sua vida privada tanto da autoridade do Estado quanto da autoridade de outrem, mas justamente em razão de sua dedicação aos seus interesses particulares deixaram de lado as questões públicas, relegando-as a representantes, de modo que uma importante esfera da liberdade – a liberdade política – passa a ocupar um segundo plano (CONSTANT, 1861, p. 536-560).

Ao chamar a atenção para a distinção entre esses dois tipos de liberdade – a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos – Constant, que não estava muito distante de todos os eventos da Revolução Francesa, haja vista o texto ser de 1819, buscava apontar para os proble-mas que podem surgir da tentativa de aplicação de um determinado modo de vida e de deter-minados valores de uma época à outra, principalmente desconsiderando-se valores e contextos políticos, geográficos e econômicos. Não se trata, pois, de negligenciar a liberdade política, mas de fazê-la compatível com outros valores, tais como as liberdades individuais.

Após o ensaio de Constant, o conceito de liberdade dos antigos passa a ser associado à liberdade política ou ao exercício dos direitos políticos, ao passo que o conceito de liberdade dos modernos associa-se à liberdade do indivíduo e ao exercício dos direitos individuais.

Já no século XX, em 1958, Isaiah Berlin, de certo modo retomando a discussão trazida por Constant, mas também tendo em vista o embate no âmbito da teoria e da práxis travado entre o liberalismo e o marxismo, cunha novos conceitos de liberdade que também se tornaram clássicos em sua relação com os direitos. Berlin aborda o conceito de liberdade em sentido ne-gativo e de liberdade em sentido positivo (2002, p. 226-272).

A liberdade em sentido negativo significa não sofrer interferência dos outros, ou seja, é uma liberdade como não interferência. Assim, quanto mais ampla a área de não interferên-cia, mais ampla é a liberdade dos indivíduos. Contudo, considerando que a vida em sociedade exige uma certa intervenção do Estado e do Direito no âmbito da liberdade dos indivíduos para que a convivência seja possível, o que se discute, desse modo, são os limites dessa área de não interferência. Surge então a necessidade de traçar uma fronteira entre a área da vida privada e a autoridade pública. Essa fronteira é representada pelos direitos individuais. Logo, o conceito de liberdade negativa de Berlin pode ser equiparado ao conceito de liberdade dos modernos de Constant.

A liberdade em sentido positivo, por sua vez, refere-se ao ideal de autogoverno. Visua-liza-se, novamente, muita semelhança com o conceito de liberdade dos antigos apresentado por Constant. Mas aqui a equiparação ao conceito de liberdade dos antigos não pode ser feita sem chamar a atenção para algumas modificações importantes. O ideal de participação no governo e de liberdade política, no entendimento de Berlin, não pode ser completamente desconectado da liberdade em sentido negativo, isto é, da liberdade como não interferência.

Isso porque a ideia de autogoverno reflete justamente o desejo dos indivíduos de que sua vontade esteja contida no Direito, ou seja, na autoridade que delimitará o campo deixado livre de interferência, o campo de sua liberdade e de seus direitos individuais. Resguarda-se

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aqui a esperança de que a participação dos cidadãos na elaboração da lei e na vida pública possa evitar intervenções indevidas em sua vida privada.

Berlin, por sua vez, não pensa que os conceitos de liberdade negativa e positiva podem ser conciliados, mas sim que há ao menos um entrelaçamento entre eles, de modo que não po-deria haver um ideal de participação política ou de autogoverno que desconsiderasse os direitos e liberdades individuais.

Os conceitos de liberdade negativa e positiva são também utilizados, no âmbito da teoria constitucional, quando se analisa as funções desempenhadas pelos direitos fundamentais. Como sabido, os direitos fundamentais exercem a função de defesa e de prestações.

A função de defesa é desempenhada ao se exigir a obrigação de abstenção, por parte do Estado e de seus agentes, correspondente a um dever de respeito a determinados bens e in-teresses dos indivíduos assim como de omissão de interferência na esfera da liberdade pessoal em determinados casos, ou seja, trata-se dos direitos e liberdades individuais, também conside-rados direitos de primeira geração ou dimensão.

Já a função de prestação é desempenhada quando se impõe ao Estado o dever de colo-car à disposição dos indivíduos prestações de natureza material e jurídica, como, por exemplo, os denominados direitos sociais – saúde, educação, trabalho, assistência social, entre outros, isto é, os direitos de segunda geração ou dimensão. (SARLET, 2001, p. 01-46; CANOTILHO, 1993, p. 541-547; ALEXY, 2008, p. 180 e ss).

De acordo com o jurista português Joaquim José Gomes Canotilho, a função de defesa dos direitos fundamentais é desempenhada de dois modos, a saber: num plano jurídico-objeti-vo, os direitos funcionam como normas negativas para os poderes públicos, proibindo a ingerên-cia destes no campo da vida privada dos cidadãos; e num plano jurídico-subjetivo, os direitos servem ao exercício positivo dos direitos fundamentais, ou seja, consistem na liberdade para exercer o direito de ir e vir, na liberdade para exercer o direito de propriedade, de expressão, entre outros.

Nesse sentido, Canotilho encontra dentro da função de defesa dos direitos fundamen-tais uma liberdade positiva. Mas ele considera ainda, dentro do plano jurídico-subjetivo, que a função de defesa dos direitos fundamentais realiza-se também na medida em que esses direitos permitem aos indivíduos exigirem omissões dos poderes públicos a fim de evitar violações de seus direitos. Nesse sentido, fala-se em liberdade negativa (1993, p. 541-547).

O sentido atribuído por Canotilho aos conceitos de liberdade positiva e negativa não coincide com aquele de Berlin. No que diz respeito à liberdade positiva, Canotilho faz uso do conceito para referir-se, no âmbito de um direito subjetivo, ao exercício de direitos fundamen-tais com função de defesa protegidos constitucionalmente, ao passo que Berlin se refere à liber-dade de ação ou de participação política. Quanto ao conceito de liberdade negativa, Canotilho o localiza no âmbito dos direitos subjetivos, enquanto na definição de Berlin os direitos indivi-duais conectados com a liberdade negativa, isto é, com o direito de não interferência, podem ser entendidos tanto no âmbito de um direito objetivo quanto subjetivo.

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Em síntese, os conceitos de liberdade positiva e negativa, conforme apresentados por Canotilho, são mais restritivos do que aqueles apresentados por Berlin, haja vista estarem atre-lados à função de defesa dos direitos individuais, excluindo, em primeira análise, os direitos políticos. Por essa razão, a associação feita por Berlin, por um lado, entre liberdade negativa e direitos individuais, e, por outro lado, entre liberdade positiva e direitos políticos, torna-se mais adequada para a análise da proteção e promoção de direitos fundamentais em geral. Por essa razão, doravante, os conceitos de liberdade negativa e positiva serão utilizados no sentido a eles atribuídos por Berlin e não por Canotilho.

Os conceitos definidos por Berlin são pensados principalmente a partir do contexto das sociedades ocidentais após a II Guerra Mundial. Já era de conhecimento público os excessos co-metidos tanto pelo nazismo na Alemanha quanto pelo stalinismo na União Soviética, excessos de governos que objetivaram por meio da política estabelecer ideais de fraternidade/identidade étnico-racial ou de igualdade de classes, em ambos os casos violando direitos individuais.

É nesse contexto que Berlin afirma não ser admissível a restrição da liberdade indivi-dual em nome de uma suposta ampliação da liberdade social ou econômica. Ele define a liber-dade em sentido negativo e positivo como dois conceitos correlacionados, haja vista visualizar que a própria liberdade em sentido negativo dependerá da possibilidade de participação dos cidadãos no governo. Governo este responsável por estabelecer normas às quais estarão sub-metidos os cidadãos, traçando assim, o campo de interferência na vida privada da população.

Assim como as definições de Constant, os conceitos de liberdade negativa e positiva de Berlin funcionam, respectivamente, para se tratar dos direitos individuais (liberdades de pensa-mento, expressão, religião, iniciativa, empresa, propriedade, locomoção, integridade física, etc.) e direitos políticos (direito de participação nos atos de governo, direito de votar e de ser votado, democracia, etc.), mas não são apropriados para se enfrentar reivindicações de outras espécies que despontam nas sociedades contemporâneas, sobretudo na segunda metade do século XX.

Tais reivindicações têm como pano de fundo a exigência, para a manutenção das liber-dades negativas ou mesmo da liberdade positiva, da realização, por parte dos Estados, de um ideal de igualdade mais substancial, necessário para enfrentar, por exemplo, as questões relacio-nadas à discriminação em razão de gênero, de etnia, de classe, de credo, entre outras presentes em sociedades multiculturais e plurais.

Nesse sentido, a promoção de uma igualdade em sentido material pode gerar, em al-guma medida, uma redefinição do campo individual deixado livre de interferência e, isso, na opinião de Berlin, não é uma troca desejada, haja vista considerar que a liberdade individual não pode ser trocada por igualdade social ou econômica (2002, p. 226-272).

Em resumo, os conceitos de liberdade negativa e positiva, conforme definidos por Ber-lin, podem ser utilizados para analisar a proteção oferecida pelo Estado, respectivamente, aos direitos individuais e políticos, mas são insuficientes para se abordar questões relacionadas a direitos sociais, econômicos e culturais.

Um conceito mais abrangente de liberdade, que pode ser associado à proteção de di-

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reitos sociais, econômicos e políticos, é o de liberdade como ausência de dominação. Essa concepção, retomada do republicanismo clássico, volta à cena no final dos anos de 1990 e será aqui apresentada a partir da obra de Philip Pettit.1

A liberdade como ausência de dominação é apresentada como uma terceira via entre a liberdade positiva e a liberdade negativa, uma vez que pode carregar em si elementos de ambas, sendo que o elemento negativo consistiria na ausência de dominação e o positivo, na necessida-de de resistência diante da interferência arbitrária.

A dominação é definida como uma capacidade de interferir, de modo arbitrário, em de-terminadas escolhas que o outro pode realizar. A interferência, por sua vez, é algo que sempre torna a situação do sujeito pior, e ela é arbitrária quando desconsidera a opinião daqueles que se-rão afetados pelo ato. A dominação consiste na aplicação de uma força ou poder arbitrário sobre o outro. Aquele que sofre essa força ou poder encontra-se numa posição de vulnerabilidade em relação à arbitrariedade do outro, como por exemplo, o empregado que sofre abusos e não ousa reclamar do empregador; ou o devedor que depende da benevolência do agiota ou banqueiro para não ir à bancarrota; ou ainda, os beneficiários dos programas assistenciais que dependem da ajuda do Estado para sua própria sobrevivência. A liberdade existe, pois, quando nenhum ser humano goza do poder de interferência arbitrária sobre o outro (PETTIT, 1999, p. 80 e ss).

A ausência de dominação deve fazer-se valer nas sociedades através de mecanismos instituídos pelo próprio Estado. Pettit trabalha com duas possibilidades de limitação da domi-nação. Primeiramente cuida para que a prevenção à dominação seja assegurada constitucional-mente, através do estabelecimento de limites ao poder de interferência arbitrária dos indivíduos uns sobre os outros e também do próprio Estado sobre os indivíduos. Pensa ainda que devem ser estabelecidos poderes recíprocos, de modo que as possibilidades de dominação ou não do-minação sejam as mesmas entre os indivíduos (1999, p. 87-97).

A partir dessa definição de liberdade, Pettit critica o ideal liberal de liberdade como ausência de interferência sob o argumento de que se for considerado apenas o desejo do in-divíduo de “ser deixado sozinho e em paz, em particular por parte do Estado” (1999, p. 177), estar-se-á beneficiando aqueles que pertencem à categoria dominadora – o patrão, o marido, o proprietário – e deixando sem voz aqueles que pertencem à classe dominada – o trabalhador, a mulher, os pobres.

A liberdade definida como ausência de dominação, por outro lado, exige do Estado, do Direito e das instituições político-jurídicas a criação de canais para a contestação, para a inclusão e para o oferecimento de respostas adequadas aos problemas apresentados.

Nesse sentido, as instituições públicas devem estar abertas para o recebimento de con-

1 No final dos anos de 1990, principalmente após a publicação do livro de Philip Pettit “Republicanism: the theory of freedom and government” em 1997, os conceitos centrais da teoria republicana clássica, tais como o de “virtudes cívicas”, “império do direito”, “supremacia do interesse público” “liberdade” são revisitados e repensados à luz dos problemas das sociedades contemporâneas, principalmente a partir de questões concernentes à relação entre indivíduo e Estado, indivíduo e sociedade, democracia e direitos individuais e coletivos. No âmbito da filosofia e da teoria política podem ser mencionadas as obras de Philip Pettit, Maurizio Viroli, Quentin Skinner, Iseult Honohan e Richard Dagger. No âmbito da filosofia e teoria constitucional destacam-se os trabalhos de Frank Michelman e Richard Bellamy.

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testações e denúncias acerca de situações em que um indivíduo ou um grupo se coloque em uma relação de dominação com o outro. Devem também estabelecer medidas inclusivas e que assegurem a paridade, como por exemplo, reservar uma porcentagem de vagas em instituições e cargos públicos e/ou privados para mulheres, negros ou indígenas, ou qualquer outro grupo que necessite de inclusão social. Por fim, as instituições públicas devem ser responsivas no sentido de que não basta assegurar às pessoas uma base ou um canal para a contestação sem que seja também assegurado um foro em que as reclamações recebam a audiência apropriada (PETTIT, 1999, p. 254).

Uma república democrática deve estar aberta às transformações profundas pleiteadas pelos diversos grupos e, ainda, permitir que as identidades grupais se organizem e coloquem publicamente seus pontos de vista. É imprescindível que esteja apta para contemplar as contes-tações rotineiras às decisões legislativas, administrativas e judiciais.

A importância do conceito de liberdade como ausência de dominação pode ser melhor visualizada a partir de uma situação concreta. Tomando-se como exemplo o acesso ao ensino superior público no Brasil e a questão racial. Nos termos do artigo 208, V, da Constituição Fede-ral brasileira, o Estado deve garantir o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.” O critério que define o acesso às vagas ofertadas na rede pública, por conseguinte, é o meritório.

Desse modo, o acesso às vagas ofertadas em instituições públicas estaria aberto a todos os brasileiros, não haveria, em tese, nenhuma discriminação ou privilégio. Na realidade, contudo, estudos revelam que a maioria dos estudantes das instituições públicas é de cor/raça branca e pertence às classes sociais mais abastadas.2Ou seja, constata-se na área da educação que, em razão de injustiças históricas relacionadas aos negros e pobres, estes se encontram excluídos do direito à educação em nível superior, não obstante este direito ser oferecido como uma prestação por parte do Estado.

É nesse sentido que se pode visualizar uma dominação de um grupo (os brancos com melhores condições socioeconômicas) sobre o outro (os negros e pobres), mesmo que formal-mente seus direitos sejam protegidos pelo Direito e promovidos pelo Estado.

Sendo assim, a partir da perspectiva da liberdade como ausência de dominação é pos-sível analisar o modo como estão sendo protegidos direitos sociais, econômicos e culturais de minorias ou de maiorias sem voz e sem força política, isto é, reconhece-se a possibilidade de haver grupos dominantes e grupos dominados, não obstante a proteção do Estado e do Direito aos direitos individuais e políticos.

A partir dessa perspectiva de liberdade é possível discutir questões como a discrimi-nação pautada no gênero, na orientação sexual, em classes sociais, em raça ou etnia e, de modo geral, qualquer situação em que o direito à igualdade e os demais direitos individuais e políticos

2 Perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação das Universidades Federais brasileiras. ANDIFES. Julho/2011. Disponí-vel em: <http://www.prace.ufop.br/novo/pdfs/publicacoes/Relatorio%20Nacional.pdf> Acesso em 14 mar. 2014.

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estejam sendo cerceados por uma relação de dominação.Na esteira dessa discussão, Philip Pettit, em um texto de 2001, aproximou o conceito

republicano de liberdade como ausência de dominação do conceito de liberdade vinculado ao desenvolvimento de Amartya Sen.3 De acordo com Pettit, a teoria da liberdade de Sen coincide com o enfoque republicano de liberdade como ausência de dominação porque ambos exigem mais do que a mera ausência de interferência (como no conceito liberal de liberdade) e avançam no sentido de explorar as demandas para uma concepção mais inclusiva de cidadania (2001, p.1-20).

Contudo, os autores neo-republicanos, e entre eles Pettit, têm recebido críticas em seu resgate dos ideais republicanos justamente por não terem considerado de modo suficientemente apropriado um ponto central para os autores republicanos clássico, a saber, a necessidade de se evitar a concentração do poder político e econômico nas mãos de uma minoria, o que se torna essencial para que os indivíduos possam exercer suas liberdades. (PINZANI, 2010, p. 267-288).

A partir da perspectiva do enfrentamento dos problemas causados pela concentração de poder político e econômico, o conceito de liberdade de Amartya Sen talvez seja o mais apro-priado para se analisar os direitos sociais, econômicos e culturais e os correlatos deveres que surgem para o Estado com relação aos cidadãos, principalmente tendo-se em mente direitos como: redução da pobreza, eliminação da fome, instituição de uma renda mínima4, democrati-zação do acesso ao trabalho, entre outros, que se encontram abarcados em uma concepção de liberdade estreitamente conectada ao desenvolvimento (REGO; PINZANI, 2013).

3 O CONCEITO DE LIBERDADE EM AMARTYA SEN

A discussão promovida por Amartya Sen a respeito do conceito e dos papéis da liber-dade insere-se no contexto de uma discussão bastante ampla e, talvez, a mais importante da fi-losofia política contemporânea, que é aquela das teorias da justiça. Essa discussão tem início na segunda metade do século XX, com a publicação por John Rawls, em 1971, de Uma Teoria da Justiça, obra que tem como objetivo principal desenvolver uma concepção liberal e igualitária de justiça social (2008). Desde então, teóricos de vieses teóricos bastante distintos (liberais, li-bertários, comunitaristas, neorrepublicanos, etc) ao travarem um diálogo com as teses de Rawls oferecem importantes contribuições para o tema da justiça social.

Em seu livro A ideia de Justiça, Sen identifica, desde o Iluminismo até a atualidade, duas principais linhas de argumentação racional sobre a justiça, a saber: a abordagem do insti-tucionalismo transcendental e a abordagem da comparação focada em realizações.

3 Pettit denomina a liberdade na teoria de Amartya Sen como “liberdade como independência.” Embora a nomenclatura seja pertinente, não se adotará essa nomenclatura e se fará referência ao conceito de Sen, de forma mais abrangente, como um conceito de liberdade vinculado ao desenvolvimento.4 A respeito da teoria da liberdade de Sen e a implementação de uma renda mínima no Brasil (Programa Bolsa Família) ver: REGO e PINZANI, 2013.

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A abordagem do institucionalismo transcendental foi inaugurada por Thomas Hobbes no século XVII e seguida pelos demais filósofos denominados contratualistas, notadamente, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e, hodiernamente, John Rawls. Segundo Sen, essa abordagem busca encontrar arranjos institucionais justos para uma sociedade e, na esteira desse objetivo, pretende encontrar a natureza do “justo” ao invés de buscar critérios para identificar que a alternativa “x” pode ser menos injusta que a alternativa “y” (2011, p. 35 e 36).

A abordagem da comparação focada em realizações, por sua vez, pode ser encontrada na obra de filósofos como Adam Smith, Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, Karl Marx e John Stuart Mill. A metodologia utilizada por essas teorias consiste em efetuar comparações focadas em realizações, tendo como interesse a remoção de injustiças evidentes do mundo em que seus idealizadores viviam.

Sen reconhece que a maioria das teorias da justiça modernas e contemporâneas (por exemplo, aquelas de John Rawls, de Ronald Dworkin ou de Robert Nozick) filia-se à abordagem institucional transcendental, mas esclarece que a sua teoria da justiça, por outro lado, filia-se à abordagem da comparação focada em realizações, tendo como objetivo “investigar compa-rações baseadas nas realizações que focam o avanço ou o retrocesso da justiça” (2011, p. 39).

Desse modo, enquanto uma teoria da justiça de abordagem institucional transcen-dental busca respostas para a pergunta “o que seriam instituições perfeitamente justas?”, a abordagem da comparação focada em realizações tenta responder à pergunta “como a justiça pode ser promovida?”. A diferença principal entre as abordagens, segundo Sen, é que em vez de focar apenas em instituições e regras, o modelo por ele escolhido concentra-se também nas realizações que ocorrem nas sociedades envolvidas.

É exatamente na tentativa de responder à pergunta “como a justiça pode ser promo-vida?” que Sen defende uma concepção de liberdade ampla, na qual a liberdade em uma dada questão consiste em gozar de preferência decisiva, ou seja, de oportunidade de decidir algo (não necessariamente de escolha decisiva) em relação a esta questão.5

Tal concepção de liberdade é delineada em vários de seus textos e pode ser melhor compreendida dentro do que o próprio autor denominou Perspectiva das Capacidades (Capa-bility Approach), que consiste em uma estrutura para a avaliação do bem-estar individual e da liberdade para que o bem-estar seja buscado. Essa abordagem proporciona uma base teórica para a análise das desigualdades, da pobreza e das políticas públicas a partir de dois conceitos centrais, a saber: funcionamentos ( functionings) e capacidades (capabilities).6

Funcionamentos são definidos por Sen como aquilo “que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter”, podendo ser elementares (como, por exemplo, estar devidamente nutrido,

5 Essa interpretação do conceito de liberdade em Sen é feita por Philip Pettit (2011, 1-20).6 Capability Approach tem sido traduzido para o português como “perspectiva das capacidades.” Embora os tradutores das obras de Sen para a língua portuguesa tenham optado pela tradução dos termos “capability” e “functionings” respectivamente por “capacidade” e “ funcionamentos”, é importante acrescentar ao lado da tradução o termo em seu idioma original a fim de preservar o sentido atribuído pelo próprio autor a esses termos, tendo em vista que ambos possuem um significado específico e distinto do uso corrente das palavras “capacidade” e “funcionamentos” na língua portuguesa.

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ter boa saúde, conseguir evitar a morte prematura) ou complexos, (tais como ser feliz, ter autor-respeito, tomar parte nas decisões políticas da comunidade, etc.). Elementares ou complexos, funcionamentos são considerados constitutivos para o bem-estar individual. (SEN, 1992, p. 39; SEN, 2000, p. 95).

Capacidades, por sua vez, consistem em combinações alternativas de funcionamentos, configurando propriamente uma espécie de liberdade das pessoas para opinar ou para preferir entre modos de vida possíveis. Se funcionamentos são constitutivos do bem-estar dos indiví-duos, capacidades podem ser entendidas como a liberdade dos indivíduos para alcançar o bem--estar (SEN, 1992, p. 40-41; SEN, 2000, p. 95).

Andar de bicicleta, por exemplo, pode ser uma espécie de funcionamento. Um executi-vo que vai de bicicleta ao trabalho por consciência ecológica ou por lazer e um operário que vai ao trabalho de bicicleta porque não há um sistema de transporte público disponível ou porque este é ineficiente estão compartilhando o mesmo funcionamento, mas ambos possuem razões e contextos bastante distintos. O executivo que vai ao trabalho de bicicleta poderia ter feito outras escolhas para se locomover (como utilizar seu carro ou tomar um taxi), já o operário possui um leque mais restrito de opções ( funcionamentos). No exemplo dado a liberdade do executivo é maior que a do operário, justamente porque aquele tinha mais opções do que este. (REGO; PINZANI, 2013, p. 60).

Na esteira desse raciocínio, podem também ser pensadas questões sociais relevantes: é diferente quando alguém passa fome porque está fazendo uma greve de fome (uma atitude política para a qual o grevista teve a oportunidade manifestar sua preferência) e quando alguém passa fome porque não tem recursos financeiros e nem outros meios de adquirir alimentos, como no caso da pobreza estrema ou das fomes coletivas em que não há a possibilidade de ma-nifestação de preferência. Ou, ainda, é diferente quando uma mulher tem inúmeros filhos por-que não tem condições de evitar a concepção, por imposições sócio-culturais como a religião, ou por completa ausência de conhecimento de métodos contraceptivos, ou quando os filhos resultam de uma decisão na qual se pôde preferir ter muitos filhos em detrimento de poucos.

Segundo Sen, a perspectiva das capacidades permite avaliar tanto os funcionamentos realizados (o que uma pessoa realmente fez) quanto o conjunto de capacidades (suas oportuni-dades reais, isto é, o que a pessoa é substancialmente livre para fazer).

Mas o que significa ser substancialmente livre? Como pode ser definida a liberda-de em sentido substantivo conforme pensada por Sen? A liberdade substantiva não pode ser equiparada aos conceitos de liberdade anteriormente analisados, isto é, a liberdade substantiva não é meramente a liberdade em sentido negativo ou positivo conforme pensada por Berlin (e também por Constant) e, embora guarde alguma semelhança, vai além do conceito de liberdade como ausência de dominação da teoria republicana.

Com efeito, é certo que a liberdade substantiva abarca o conceito negativo de liberda-de, isto é, os direitos e liberdades individuais estão inseridos na concepção seniana de liberdade substantiva. Em Desenvolvimento como liberdade, Sen afirma que a liberdade está relacionada

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à expansão das capacidades, ou seja, à ampliação das possibilidades de escolha das pessoas para levarem a vida que valorizam (2000, p. 32).

Isso não implica, contudo, apenas ausência de interferência do Estado na vida priva-da dos indivíduos a fim de permitir a liberdade de iniciativa e de empresa, de consciência, de credo, etc. Significa também que as liberdades políticas de participação nas decisões públicas devem ser proporcionadas, abarcando, também, uma concepção positiva de liberdade. Segundo o autor, trata-se de uma “relação de mão dupla”, haja vista que as capacidades “podem ser au-mentadas pela política pública, mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas do povo”. (2000, p. 32).

A visão da liberdade de Sen envolve processos que permitem a liberdade de ação e de decisão e exatamente por essa razão ele manifesta uma preocupação central em analisar as oportunidades reais que as pessoas possuem, considerando suas circunstâncias pessoais e so-ciais.

Nesse sentido, para avaliar as oportunidades reais deve ser levada em consideração uma série de contingências que podem afetar a vida das pessoas, tais como heterogeneidades pessoais (idade, gênero, deficiências, saúde, etc), diversidades no ambiente físico (condições ambientais, climáticas, inundações, secas, etc), variações no clima social (saúde pública, condi-ções epidemiológicas, ausência ou presença de violência e criminalidade, ensino público, etc), diferenças de perspectivas relacionais (padrões de comportamento de uma sociedade como padrões mais ou menos elevados de vestuário e consumo) (SEN, 2011, p. 289 e 290).

A liberdade seria então aquilo que o desenvolvimento deve promover (SEN, 2000, p. 17). Nesse sentido, Sen entende que a liberdade desempenha dois papéis cruciais no conceito de desenvolvimento, papéis estes relacionados à avaliação e à eficácia.

No que diz respeito à avaliação, o autor entende que o êxito de uma sociedade deve ser avaliado “primordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa so-ciedade desfrutam” (2000, p. 32). As liberdades substantivas, por sua vez, podem ser definidas como capacidades elementares, tais como “ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão, etc.” (SEN, 2000, p. 52).

Tais liberdades são importantes tanto porque aumentam a liberdade global das pes-soas, quanto porque favorecem a oportunidade de se alcançar resultados considerados valiosos (utilizando-se como exemplo o problema do controle de natalidade em sociedades superpopulo-sas, uma sociedade pode ser considerada mais desenvolvida se homens e mulheres decidem por escolha própria ter menos filhos do que se são coagidos por alguma meta imposta pelo Estado, como no caso da China).

No que diz respeito à eficácia, Sen considera que a liberdade substantiva não é somente “a base de avaliação de êxito ou fracasso, mas também um determinante principal da iniciativa individual e da eficácia social”, uma vez que o aumento da liberdade “melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo”, e isso, por sua vez, é uma ques-

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tão central para o desenvolvimento. (2000, p. 33).Nesse contexto, o autor interessa-se pela “condição de agente” do indivíduo, considera-

do como um “membro do público e como participante de ações econômicas, sociais e políticas (interagindo no mercado e até mesmo envolvendo-se, direta ou indiretamente, em atividades individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas)” (2000, p. 33).

A condição de agente dos indivíduos, o desenvolvimento e a expansão da liberdade substantiva estão estreitamente relacionados, uma vez que a condição de agente pode ser incen-tivada e promovida pela ampliação das liberdades substantivas, as quais, por sua vez, dependem do aumento do leque de opções ( funcionamentos) disponíveis para os indivíduos a respeito de uma determinada questão relevante. Trata-se, mais precisamente, de aumentar a autonomia dos sujeitos de direito em questões relevantes para suas vidas.

A condição de agente, assim como a liberdade substantiva, pode ser fomentada a partir de um conjunto de liberdades chamadas por Sen de liberdades instrumentais, quais sejam: a) liberdades políticas (trata-se dos direitos relacionados à participação política, desde direitos básicos como liberdade de expressão e de imprensa, de voto, até oportunidades de participação mais concreta nas decisões políticas que as afetam); b) facilidades econômicas (consiste na pos-sibilidade das pessoas terem acesso a crédito e de poderem utilizar recursos econômicos para propósitos diversos, tais como consumo e produção); c) oportunidades sociais (tais como acesso ao sistema educacional ou ao sistema de saúde, acesso ao trabalho, etc); d) garantias de trans-parência (garantias associadas à publicidade e à clareza nos negócios públicos, à possibilidade de que os cidadãos desempenhem um papel na prevenção da corrupção e na fiscalização dos investimentos públicos); e) segurança protetora (uma rede de segurança social, com a adoção de medidas tais como seguro desemprego ou renda mínima, que impedem que as pessoas che-guem a uma condição de pobreza extrema) (2000, p. 55-57).

Sendo assim, a concepção de liberdade substantiva proposta na obra de Amartya Sen é mais abrangente que as concepções vistas anteriormente, haja vista abarcar as liberdades negativas, as liberdades positivas, um ideal de ausência de dominação (de um indivíduo sobre o outro ou de um grupo sobre o outro) e uma série de medidas que devem ser adotadas pelosgovernos a fim de ampliar as oportunidades reais para que as pessoas alcancem aquilo que va-lorizam.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se, neste artigo, apresentar e analisar o conceito de liberdade de Amartya Sen, cotejando este conceito com outros conceitos clássicos da Filosofia Política e do Direito moder-na e contemporânea, tais como a liberdade dos antigos e dos modernos delineada por Benjamin Constant, a liberdade negativa e positiva de Isaiah Berlin e a liberdade como ausência de do-minação da teoria republicana.

O conceito de Sen, justamente por ter sido delineado a partir de uma análise mais de-

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talhada da economia, é mais apropriado do que o conceito de liberdade republicano para tratar de questões que envolvem, principalmente, desigualdades socioeconômicas.

A liberdade considerada deste modo, como manifestação de uma preferência decisiva, não é excludente em relação aos demais conceitos de liberdade acima mencionados. Essa con-cepção de liberdade abarca a liberdade negativa (os direitos individuais), a liberdade positiva (os direitos políticos) e certamente a liberdade como ausência de dominação (direitos sociais, econômicos e culturais), consistindo numa concepção substancial de liberdade. como o próprio Sen a define.

Tomando-se como referência o conceito substancial de liberdade de Amartya Sen, pode-se sustentar a responsabilidade do Estado no estabelecimento de um certo nível de igual-dade, pois sem que seja assegurado aos indivíduos independência, seja em relação a situações naturais como a fome ou a fecundidade, seja em relação a situações socioeconômicas e culturais como a dominação de um indivíduo por outro, de uma classe por outra, de um grupo por outro, não há possibilidade de se gozar uma preferência decisiva.

Desse modo, muitos direitos podem ser associados ao que Amartya Sen chama de liberdade instrumental, isto é, uma série de direitos e de oportunidades que contribui ou para promover a capacidade geral de uma pessoa ou para complementar outros direitos e oportuni-dades.

Em suma, a concepção de liberdade de Amartya Sen, a qual é vinculada à noção de desenvolvimento, justamente contrapondo-se a uma visão restrita de desenvolvimento atrelado ao crescimento meramente econômico, mostra que uma sociedade apenas pode ser considera-da desenvolvida quando promove uma série de liberdades, as quais, por sua vez, demandam a concretização de uma gama de direitos, tais como ter acesso a alimentação, saúde, educação, uma renda mínima, entre outros que garantam aos indivíduos a possibilidade de fazer escolhas. Esses direitos são interdependentes e devem ser realizados concomitantemente. Sua concreti-zação, entretanto, passa necessariamente pelo enfrentamento da questão da concentração de poder político e econômico, o que exige uma postura ativa do Estado e do Direito.

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SEN, Amartya. Inequality Reexamined. New York: Oxford University Press, 1992.

ON THE CONCEPT OF FREEDOM IN AMARTYA SEN

ABSTRACT: The issue of freedom is central to contemporary democratic societies. The protection and the promotion of freedom, in the various meanings that this word has received throughout history, are closely linked to the legitimacy of the Rule of Law and also to the possibility of characterization of a State as a democratic one. Thereby, the aim of this paper is to present the main concepts of freedom that have become ref-erence for the Legal and Political Philosophy, emphasizing Amartya Sen’s concept of freedom because of its strong connection with an individual, social and economical development model.Keywords: Freedom. Amartya sen. Development.

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POBREZA

Jair Soares de Oliveira Segundo*

nestas lentessobressalentes

não passam navios nem aviõesque perturbam o sono das cidadeselas registram o passado presente

de nossas paisagensalgo comum de tão diferente

revelam o amor a tempo esquecidono baú dos sonhos de todos os livrosreferendam o Simples por excelência

que divaga nos morros desta eranestas lentas

sonolentas lentesvejo o mundo insensato

cheio de suas coisas

* Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Pesquisador nos Grupos de Pesquisa “Constituição Federal brasileira e sua Concretização pela Justiça Constitucional”, e “Direito, Estado e Sociedade”, ambos da UFRN.

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