1.1. portuguÊs - teoria - livro 1.pdf

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    1. AS RAZES DALITERATURA PORTUGUESA

    O aparecimento da LiteraturaPortuguesa coincide, a bem dizer,com o aparecimento de Portugalcomo nao livre. A primeira mani-festao literria portuguesa de quese tem notcia, a Cantiga da Garvaiaou Cantiga da Ribeirinha, de PaioSoares de Taveirs, de aproximada-mente 1198 (ou 1189), ou seja, cercade cinquenta anos apenas aps oano de 1143, data em que Portugalconseguiu sua independncia da Es-panha, ou, mais propriamente, dataem que foi reconhecida sua eman-cipao dos Reinos Catlicos (Leo,Castela, Navarra e Arago). Como aCantiga da Garvaia no o incio daLiteratura Portuguesa, mas apenas odocumento literrio mais antigo quechegou at ns, podemos conjec-turar que j se produzia li teratura emPortugal desde o comeo de sua vida

    como pas independente.

    2. O TROVADORISMO

    O primeiro perodo da LiteraturaPortuguesa denominado Trovado-rismo, e est compreendido aproxi-madamente entre os anos de 1198ou (1189) e 1418.

    So chamados trovadores ospoetas da fase final da Idade Mdia, os

    quais iniciaram um novo tipo de litera-tura o princpio das literaturas de ln-guas modernas, entre as quais o por-tugus. Os trovadores no eram ape-nas poetas, mas tambm msicos:eles compunham as melodias comque cantavam seus poemas. A poesiaera sempre associada msica e sefazia presente tanto nas reuniespalacianas da alta aristocracia quantonas festas populares. Os jograiseram executantes das composies

    dos trovadores, mas eles mesmos

    eram, muitas vezes, autores de poesiae msica.

    Pode-se mencionar ainda quenesse perodo, alm da produo lri-ca propriamente, houve tambmproduo literria em prosa, repre-sentada pelas novelas de cavalaria,pelos cronices e livros de linhagem.

    3. OS CANCIONEIROS

    O Trovadorismo anterior ao a-parecimento da imprensa. Por isso,as cantigas medievais eram manus-critas e, colecionadas, formavam oscancioneiros, nome que se d aoscdices (manuscritos antigos) queabrigam a poesia medieval.

    Os cancioneiros da fase trova-doresca so trs e foram descober-tos a partir do fim do sculo XVIII:

    Cancioneiro da Ajuda, o maisantigo, com 310 cantigas;

    Cancioneiro da Vaticana, quecontm 1.205 cantigas, distribudas en-

    tre as quatro modalidades (amigo,amor, escrnio e maldizer). Rene amaioria das composies de El-Rei D.Dinis, o mais notvel trovador por-tugus;

    Cancioneiro da Biblioteca Na-cional de Lisboa, que contm 1.647cantigas das quatro modalidades. tambm conhecido como Cancionei-ro Colocci-Brancutti.

    4. AS CANTIGAS DE AMOR

    As cantigas de amor so com-posies lricas em que o trovadorexalta as qualidades de uma mulher,a quem chama minha senhor (o fe-minino dessa palavra ainda no sehavia formado). Trata-a, portanto, se-gundo o siste ma hierrquico da so-ciedade feudal, como a algum decondio superior, a quem ele se sub-mete, a quem presta servio e dequem espera benefcio (ben). Nacantiga de amor, o poeta confessa a

    sua coita, ou seja, sua dor de amarsem ser correspondido. Muitas vezes,

    porm, esse amor ardente confes-sado encobre ora um apelo sexual,ora um conveniente galanteio deinspirao poltica. (O sistema pol-tico-social da Idade Mdia, chamadofeudalismo, reforava a necessi-dade de o vassalo agradar sempre aseu suserano seu senhor e sua famlia.)

    As cantigas de amor no nasce-ram em Portugal, mas na Provena(sul da Frana) e dali se espalharampor muitas cortes da Europa. A lnguaprovenal tambm havia provindo dolatim. Todo trovador que se prezassedeveria conhecer um pouco o proven-al. Nas canesprovenais que elebuscava inspirao para compor suascantigas em portugus arcaico. Quan-to ao portugus destas cantigas ochamado portugus arcaico , trata-se de uma lngua permeada de gale-guismos. Esse fato no surpreen-

    dente, dada a proximidade lingustica,geogrfica e cultural entre Portugal eGaliza e dado que diversos trovadores alguns entre os mais importantes eram galegos, no portugueses. Daser mais apropriado que se fale emtrovadorismo galego-portugus, ougalaico-portugus, em vez de tro-vadorismo portugus simplesmente.

    CANTIGA DE AMOR

    Estes meus olhos nunca perdern,senhor, gran coita, mentr1eu vivo for;e direi-vos, fermosa mia senhor,destes meus olhos a coita que han2:

    choran e cegan quandalguen non veen,e ora cegan por alguen que veen.

    Guisado teen de nunca perdermeus olhos coita e meu coraon3,e estas coitas, senhor, mias son,mais4os meus olhos, por alguen veer,

    choran e cegan quandalguen non veen,e ora cegan por alguen que veen.

    TEXTO I

    FRENTE 2 Literatura

    MDULO 1 A Lrica Trovadoresca

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    E nunca j poderei haver ben5,pois que amor j non quer nem quer Deus;mais os cativos destes olhos meusmorrern sempre por veer alguen:

    choran e cegan quandalguen non veen,e ora cegan por alguen que veen.

    (Joan Garcia de Guilhade, sculo XIII)

    Vocabulrio e Notas

    Mentr: enquanto.2 Han: tm.3 Meus olhos e meu corao tm o hbito de

    nunca deixar de sofrer (perder...coita).4 Mais: mas.5 Haver ben: ter prazer.

    5. AS CANTIGAS DE AMIGO

    Alm das cantigas de amor, osrovadores galego-portugueses dedi-caram-se a um outro tipo de compo-

    sio lrica: a cantiga de amigo.Esta originria da Pennsulabrica; ela no provm da tradiodo trovadorismo provenal, pois nose encontram, na obra dos trova-dores de Provena, poemas com ascaractersticas da cantiga de amigo.Nesta, em primeiro lugar, o emissor, oeu lrico, no um homem, masuma mulher. Isso, evidentemente,no quer dizer que os poemas eram

    compostos por mulheres. Os poetaseram os mesmos que compunham ascantigas de amor, com a diferenade que, nas cantigas de amigo, elesfingiam um eu lrico feminino.

    Uma segunda caracterstica im-portante das cantigas de amigo oseu ambiente familiar. Elas no socomposies que refletem o mundopalaciano, tpico das cantigas deamor. Ao contrrio, as cantigas de

    amigo pem em cena uma moa dopovo, que pode estar acompanhadade sua me ou de suas amigas, eque canta seu amor pelo namorado,o amigo (notemos que essa palavraem a raiz am, do verbo amar).

    Na cantiga de amigo, o amor damulher em relao ao homem desen-volve-se num plano concreto. O amor realizado e a mulher lamenta-seustamente por causa da ausncia do

    amado.

    Conforme o lugar ou as circunstn-cias em que ocorre o episdio senti-mental, a cantiga de amigo recebe ottulo de cantiga de romaria, ser-ranilha, pastorela, marinha oubarcarola, bailada ou bailia, albaou alvorada, serena, malmariadaetc. Essas configuraes das cantigasde amigo traduzem os vrios mo-

    mentos do namoro, desde a alegriada espera at a tristeza pelo aban-dono ou pela separao forada.

    As cantigas de amigo so mais pri-mitivas que as cantigas de amor; a pre-sena do paralelismo e do refro quase obrigatria e reflete mais a tra-dio potica e musical dos povos pe-ninsulares que a influncia provenal.

    CANTIGA DE AMIGO

    Ai flores, ai flores do verde pinho1,se sabedes novas2do meu amigo?

    Ai, Deus, e u3?

    Ai flores, ai flores do verde ramo,se sabedes novas do meu amado?

    Ai, Deus, e u ?

    Se sabedes novas do meu amigo,aquel que mentiu do que ps4comigo?

    Ai, Deus, e u ?

    Se sabedes novas do meu amado,aquel que mentiu do que ma jurado?

    Ai, Deus, e u ?

    Vs me preguntades pelo vossamigo?

    E eu ben vos digo que sane vivo5

    Ai, Deus, e u ?

    Vs me preguntades pelo vossamado?

    E eu ben vos digo que vive sano:Ai, Deus, e u ?

    E eu ben vos digo que sane vivo,e ser voscanto prazo sado6.

    Ai, Deus, e u ?

    E eu ben vos digo que vive sano,e ser voscanto prazo passado.

    Ai, Deus, e u ?

    (Dom Dinis, sculos XIII-XIV)

    Vocabulrio e Notas1 Pinho: pinheiro.2 Novas: notcias.3 U: onde.4 Ps: combinou.5 Sane vivo: so e vivo.6 E estar convosco quando terminar o prazo

    do servio militar.

    Comentrios Observa-se a existncia de duas solis-

    tas: a primeira (versos de 1 a 12) interroga as

    flores, e a segunda (versos de 13 a 24)assume o papel das flores para a resposta.

    Ambas se aliam s demais moas presentes

    para entoar o refro: Ai, Deus, e u ?, em queo suspirar de amor pelo amado ausente passa

    a ser compartilhado por todas.

    Observa-se tambm a tcnica parale-

    lstica, que consiste em ir repetindo a ideiacentral em duas sries de estrofes paralelas,

    isto , a segunda estrofe repete a primeira, s

    alterando a palavra final para efeito de rima,sempre com estribilho (refro):

    Ai flores, ai flores do verde pinho, Ase sabedes novas do meu amigo? B

    Ai, Deus, e u ? (Refro)

    Ai flores, ai flores do verde ramo, Ase sabedes novas do meu amado? B

    Ai, Deus, e u ? (Refro)

    6. AS CANTIGAS SATRICAS

    Do ponto de vista social e lingus-tico, as cantigas satricas so deextraordinria importncia, j quecompem um retrato de vrios usos ecostumes medievais, em linguagemmais popular, refletindo o falar dascamadas inferiores. Nem sempre

    fcil distingui-las, pois, s vezes, asduas modalidades (escrnio e maldi-zer) se misturam.

    A cantiga de escrnioA cantiga de escrnio continha

    stira indireta, realizada com sutile-za, valendo-se da ambiguidade, depalavras cubertas que ajam doisentendimentos para lhe lo nonentenderem ligeiramente. A stira

    era artificialmente arquitetada e nopermitia a identificao da pessoaatacada.

    CANTIGA DE ESCRNIO

    Ua dona, non digueu qual,non agoirou ogano malpolas oitavas1 de Natal:ia por sa missa oire ouvun corvo carnaal

    e non quis da casa sair.

    TEXTO III

    TEXTO II

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    A dona, mui de coraon2,ora sa missa entone foi por oir o sarmon,e vedes que lho foi partir3

    ouve sig4 un corvo acaron5

    e non quis da casa sair.

    A dona disse: Que ser?E i6o clrigu7est jrevestide maldizer-m-

    se me na igreja non vir.E disso corvo: qu, ac8,e non quis da casa sair.

    Nunca taes agoiros vi,des aquel dia que nasci,comaquestano ouvaqui9;e ela quis provar de sir10

    e ouvun corvo sobre sie non quis da casa sair.

    (Joan Airas de Santiago, sculo XIII)

    Vocabulrio e Notas1 Oitavas: missas.

    2 Mui de coraon: de muito boa vontade.3 Partir: acontecer.4 Sig: consigo.5 Acaron: colado ao corpo.6 I: ali (na igreja).7 Clrigu: padre.8 Qu, ac: aqui, vem c.9 Comaquestano ouvaqui: como aquele

    ano houve aqui.10 Provar de sir: tentar ir.

    Comentrio Na cantiga anterior, o poeta zomba de

    uma mulher que, ao se dirigir missa, ouviuum corvo em sua casa e, com medo do mauagouro (as pes soas na Idade Mdia erammuito supersticiosas), no quis sair de casa.Mas a cantiga toda baseada em duplossentidos, a partir do segundo verso, pois a ex-presso non agoirou ogano mal pode signi-ficar tanto teve bastante [mau] agouro esteano quanto no teve mau agouro este ano.Depois, a forma verbal ouve pode tanto cor-responder ao verbo haver como ao verboouvir. De incio, parece que a mulher ouviuumcorvo, mas logo percebemos que ela teve(ouve= houve) junto de si, colado sua carne

    (acaron), um corvo carnaal, que no umaave de rapina, mas um homem faminto decarne... E ela non quis da casa sair... Opoema atinge o clmax quando imita o crocitardo corvo (E disso corvo: qu, ac, ), comduas palavras do portugus arcaico quepodem significar aqui, vem c o corvosedutor chamando avidamente a sua presa.

    A cantiga de maldizerA cantiga de maldizer encerrava

    stira direta, agressiva, contundente,

    em linguagem objetiva, sem disfarce

    algum. Constitua a maioria das can-tigas satricas e era comum o empre-go de termos baixos e chulos, nomais das vezes a resvalar para oslimites da mais grosseira obsce-nidade. Mesmo os mais elevadostrovadores compunham cantigas demaldizer, consideradas ancestrais dastira palavrosa de poetas comoGregrio de Matos e Bocage. Elastestemunham a vocao luso-brasi-leira para o chiste e para o palavro.A referncia a atos fisiolgicos e escatologia frequente.

    CANTIGA DE MALDIZER

    Ai, dona fea! fostes-vos queixarporque vos nunca louven meu trobar;mais ora1 quero fazer un cantaren que vos loarei2 toda via;e vedes como vos quero loar:dona fea, velha e sandia3!

    Ai, dona fea! se Deus me perdon!e pois havedes tan gran coraonque vos eu loe en esta razon,vos quero j loar toda via;e vedes qual ser a loaon:dona fea, velha e sandia!

    Dona fea, nunca vos eu loeien meu trobar, pero muito trobei;mais ora j un bon cantar farei,

    en que vos loarei toda via;e direi-vos como vos loarei:dona fea, velha e sandia!

    (Joan Garcia de Guilhade, sculo XIII)

    Vocabulrio e Notas1 Ora: agora.2 Loarei: louvarei.3 Sandia: louca.

    Em linguagem atual, teramos:

    Ai, mulher feia! voc se queixoude que eu nunca a louvei em minha poesia;mas agora eu vou fazer uma cantigaem que eu a louvarei completamente;e veja como a quero louvar:mulher feia, velha e louca!

    Ai, mulher feia! Deus me perdoe!pois voc tem to grande esperanade que eu a louve por justia,quero agora louv-la completamente;

    e veja qual ser a louvao:mulher feia, velha e louca!

    Ai, mulher feia! nunca a louveiem minha poesia, e eu muito escrevi;mas agora farei uma bela cantigaem que a louvarei completamente;e vou lhe dizer como a louvarei:mulher feia, velha e louca!

    Comentrios Trata-se de uma stira individual, con-

    tundente e, ainda que o nome da ofendida noaparea, dada como cantiga de maldizer.

    A mesma mulher, idealizada nas can-tigas de amor, , nas cantigas de maldizer,rebaixada mais nfima condio.

    TEXTO IV

    A lrica provenal influenciou todas as literaturas da Europa, fazendo do amor e damulher o centro de uma inspirao potica e musical poderosa e refinada.

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    Capa dos Adgios, de Erasmo de Roterd,com retratos dos autores gregos e latinosraduzidos pelo humanista holands.

    1. HUMANISMO E

    PR-RENASCIMENTO

    Localizaohistrico-culturalO Humanismo (no sentido que

    aqui nos interessa) foi o movimentontelectual que precedeu ao Renasci-mento e constituiu um atento debruar-se do homem sobre sua prpriacondio. Se durante a Idade Mdia ohomem se voltou para Deus, agora ele

    se volta para si mesmo (antropocen-trismo), readquirindo a conscinciade que uma fora criadora, capaz dedominar o universo e transform-lo.Desenvolve-se a conscincia de que necessrio o saber e de que pormeio do conhecimento e da ao queo homem e o mundo se transformam.

    Esse novo homem identifica-secom a cultura clssica greco-roma-na, com o racionalismo, com a cin-

    cia, com o ideal burgus do lucro e

    da prosperidade, voltando-se para aterra, para a inteligncia, para o cor-po, para o prazer e para a aventura., portanto, oposto ao esprito medie-val, feudal e teocntrico.

    Historicamente, o Humanismo cor-responde a uma fase de profundastransformaes sociais: o desenvol-vimento do comrcio, o surgimento daburguesia e das cidades, a alianaentre o rei e a burguesia (fermento dasmonarquias nacionais), o aparecimen-to da imprensa, a divulgao da cultu-ra clssica e as Grandes Navegaes.

    Os primeiros anncios desse pro -cesso de transio foram registrados,na literatura, pelos italianos DanteAlighieri (1265-1321), FrancescoPetrarca (1304-1374) e GiovanniBoccaccio (1313-1375).

    A caracterstica central do pero-do humanista o bifrontismo: acoexistncia de resduos medievais einstituies antecipadoras do Renas-cimento. Teocentrismo e antropocen-trismo, feudalismo e mercantilismo,ideais cavaleirescos e pragmatismoburgus so simultneos.

    O contextoportugus (1434-1527)Em Portugal, o Humanismo ini-

    ciou-se em 1434, com a nomeaode Ferno Lopes para PrimeiroCronista-Mor do Reino, incum-bido por D. Duarte de escrever ahistria dos reis que o antecederam.

    A criao do cargo de cronista-

    mor e a nomeao de Ferno Lopesinauguraram, em 1434, o mecena-tismo oficial e os reis tornaram-seprotetores da cultura e da arte, abri-gando na Corte artistas e intelec-tuais, incentivados e subvenciona-dos pela prpria monarquia. O pero-do estendeu-se at 1527, ano emque se iniciou o Classicismo-Renascimento em Portugal, com aintroduo da medida nova por S

    de Miranda.

    A Revoluo de Avis (1383-1385) marcou a substituio da Di-nastia de Borgonha pela Dinastia deAvis. Esta iniciou o processo de cen-tralizao monrquica, aliando-se burguesia ascendente. Foi o

    princpio do Estado NacionalPortugus, orientado na direo doabsolutismo e do mercantilis-mo. O palcio tornou-se o centrovital das decises polticas, econ-micas e da atividade cultural e arts-tica. A expanso dos interesses eco-nmicos da burguesia e dos prpriospolticos da monarquia lanou o pasna aventura ultramarina, cujo marcoinicial foi a Tomada de Ceuta, em

    1415. Consolidou-se o nacionalis-mo portugus, e a nao comeoua ganhar uma fisionomia prpria naPennsula Ibrica. No perodo ante-rior, havia uma cultura mais ibricaque especificamente portuguesa.

    Alm do aparecimento do me-cenatismo oficial, outro fato culturalrelevante foi o surgimento de umalngua portuguesa, autnoma emrelao ao primitivo dialeto galego-

    portugus. A prosa ganhou exceln-cia literria com Ferno Lopes, oprimeiro bom prosador da lngua.

    O apogeu do Humanismo cor-respondeu aos reinados de D.Afonso V, D. Joo ll e D. Manuel,marcados pela intensa produocultural e artstica e pelo auge,tambm, das Grandes Navegaes.

    Literariamente, os trs fatos maisrelevantes do Humanismo portugusforam: a poesia palaciana, compi-

    lada no Cancioneiro Geral de Garciade Resende; a prosa historiogr-fica de Ferno Lopes e o teatromedieval e popular de Gil Vicente.

    2. A POESIA PALACIANADO CANCIONEIRO GERALDE GARCIA DE RESENDE

    A produo potica da fase doHumanismo, abrangendo os reina-

    dos de D. Afonso V, D. Joo II e D.

    CONCEITO E MBITOA POESIA PALACIANA

    FERNO LOPES

    MDULO 2 A Poesia Palaciana

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    Manuel, foi compilada em 1516, porGarcia de Resende, no Cancio-neiro Geralque leva o seu nome.

    Esse cancioneiro nada tem a vercom os primitivos cancioneiros trova-dorescos. Nele, observa-se umagrande amostra da chamada poesiapalaciana, ou poesia da Corte, quese praticou em Portugal no perodo

    imediatamente anterior ao chamadoClassicismo. uma produopotica que pode ser consideradapr-clssica, pois nela j seencontram alguns dos componentesque caracterizaro a poesia doperodo posterior. A poesia palacianarepresenta uma evoluo formalem relao ao perodo trovadoresco.A poesia separa-se da msica,e o trovador cede lugar ao

    poeta. Este escreve no mais paracantar, mas para ler e recitar nosseres da Corte. Como no dependemais da msica, os refros e oparalelismo so menos marcantes.

    Os poetas da fase palacianaconsolidaram a medida velha, nomegenrico que se dava s composiesem versos curtos os chamadosversos redondilhos. A estes, d-se onome de redondilhos menores,quando tm cinco slabas poticas,

    e de maiores, quando tm seteslabas. Esses versos so at hoje,em Portugal e no Brasil, os versosmais tradicionais e populares,dada a facilidade de memorizao, oritmo e a musicalidade envolventes. overso mais comum nas composiesfolclricas e populares (cantigas deroda, cantigas de ninar, acalantos,modinhas, desafios etc.); foi, e ainda ,o verso mais utilizado pelos autores que

    buscaram e buscam as razes mais tra-dicionais da poesia e da msica.No plano temtico, o carter po-

    pular e sentimental da poesia trova-doresca substitudo pela poesiafrvola e galante, composta para odeleite do pblico palaciano; dissodecorre certa afetao e artifi-cialismo.

    Poemas satricos, religiosos e nar-rativos coexistem com poemas detema amoroso. As influncias greco-

    latina e italiana comeam a aparecer.

    Dentre os 286 poetas que figu-ram no Cancioneiro Geral, os maisfamosos so Bernardim Ribeiro, Sde Miranda e Gil Vicente, que, po-rm, ir celebrizar-se, no comopoeta lrico, mas como o maior autorteatral de lngua portuguesa.

    TROVA MANEIRA ANTIGA

    Comigo me desavim1,sou posto em todo perigo;no posso viver comigonem posso fugir de mim.

    Com dor, da gente fugia,antes que esta assim crescesse;agora j fugiriade mim, se de mim pudesse.Que meio espero ou que fimdo vo trabalho que sigo,

    pois que trago a mim comigo,tamanho imigo2de mim?(Francisco S de Miranda)

    Vocabulrio e Notas1 Desavir: desentender, desencontrar.2 Imigo: forma arcaica de inimigo.

    Comentrios A trova de S de Miranda, composta na

    medida velha (versos redondilhos maiores), fo-caliza o desencontro do euconsigo mesmo, apartir do dilema viver comigo x fugir de mim,ambas as situaes impossveis para o poeta.Essa dilacerao do eu expressa as perple-

    xidades do homem diante das transformaesnos limiares da Idade Moderna e projeta apersonalidade grave e reflexiva do autor. Suapostura estoica, ctica e desiludida j seintegra nos quadros da cultura clssica, fun-

    dada no anseio de encontrar algo perdurvel,para alm da fugacidade csmica.

    Coube a S de Miranda trazer da Itlia,onde viveu de 1520 a 1527, a medida nova(versos decasslabos, a forma fixa do soneto,o terceto etc.), introduzindo em Portugalformas e temas caractersticos do Classicismorenascentista, que os italianos denominavamdolce stil nuovo (= doce estilo novo). ComoCames, foi grande sonetista e tem, tambm,parte de sua obra comprometida com a heran-a medieval, nas composies que fez na me-dida velha, como a trova em questo.

    O tema da ciso da personalidade, asutil explorao dos mistrios do eu, afragmentao do sujeito lrico, em tensoconsigo e por si, prestes a consumar a rupturainterior, o tema de um belssimo vilancete deBernardim Ribeiro. Observe a aproximaocom o poema de S de Miranda anteriormenteapresentado:

    Entre mim mesmo e mimno sei [o] que salevantou1

    que to meu imigo2sou.

    Uns tempos com grandenganovivi eu mesmo comigo,agora, no mor3perigo,se me descobre o mor dano.Caro custa um desengano,e pois meste no matou,quo caro que me custou!

    De mim me sou feito alheio;entre o cuidado e cuidadoest um mal derramadoque por mal grande me veio.Nova dor, novo receiofoi este que me tomou,assi4me tem, assi estou.

    (Bernardim Ribeiro)

    Vocabulrio e Notas1 Alevantar: erguer. 2 Imigo: inimigo.3 Mor: maior. 4 Assi: assim.

    TEXTOS

    Capa da primeira edio do Cancioneiro Geral.

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    1. GIL VICENTEE AS ORIGENS DOTEATRO PORTUGUS

    Os antecedentesdo teatro vicentinoDurante a Idade Mdia, o teatro

    clssico greco-romano desapareceu.Ficaram ignoradas as tragdias e co-mdias, que expressavam, do subli-me ao grotesco, a densa visoclssica do homem, do mundo e dosdeuses.

    No se pode falar propriamentede teatro medieval, j que as encena-es que se faziam em Portugal,

    antes de Gil Vicente, no pressupu-nham um texto escrito, uma produ-o literria de natureza dramtica.Havia representaes cnicas, masestas eram, principalmente, figura-ivas. No havia o texto dramtico,

    que o que interessa Literatura.As encenaes, quela poca,

    dividiam-se em duas vertentes: pro-fanas (apresentadas nos palcios)e litrgicas (nas igrejas e abadias).

    No incio da carreira de GilVicente, a tradio teatral portuguesaque o precedeu foi irrelevante. Emsuas primeiras peas, o modelo foi ocastelhano Juan del Encina.

    2. O GENIAL CRIADORDO TEATRO PORTUGUS

    O pouco que se sabe a respeitodo primeiro e maior dramaturgo dePortugal reduz-se ao seguinte:nasceu por volta de 1465; encenousua primeira pea, O Monlogo doVaqueiro ou Auto da Visitao, em1502, sob proteo da rainha D.Leonor; foi colaborador doCancioneiro Geral de Garcia deResende; desempenhou, na Corte, amportante funo de organizadordas festas palacianas, como, por

    exemplo, a recepo, em Lisboa, da

    terceira esposa do Rei D. Manuel;alcanou uma situao de grandeprestgio junto Corte de Avis, o queIhe permitiu, em 1531, por ocasiode um terremoto, num discurso feitoaos frades de Santarm, censurarenergicamente os sermes terrficosem que estes explicavam a cats-trofe como resultado da ira divina.

    (In: LOPES, scar e SARAIVA,Antnio Jos. Histria da Literatura

    Portuguesa. 10.a ed., Porto: PortoEditora, p. 200.)

    Outra prova de sua influncianos meios palacianos a carta queescreveu ao rei, na qual se pronun-ciava contra a perseguio movidaaos judeus e cristos-novos.

    Suas encenaes alcanaramlargo sucesso na Corte e so referi-das por vrios contemporneos dodramaturgo. Sua ltima pea, Flores-ta de Enganos, foi encenada em1536 e, posteriormente a essa data,nada mais se sabe de seu autor.

    Supe-se que tenha morrido em1537, mas no h provas documen-tais.

    Em 34 anos de atividade teatral,da estreia, em 1502, ltima ence-nao, em 1536, escreveu, encenoue representou cerca de 46 autos efarsas, sendo 17 em portugus, 18bilngues (com uso do espanhol e dodialeto saiagus, falado em Sala-manca) e 11 em castelhano. Foi, aomesmo tempo, autor, diretor e ator demuitos de seus autos e farsas.

    Um de seus filhos, Lus Vicente,foi o organizador de sua obra, publi-cada em 1562, sob o ttuloCopilaam de Todalas Obras de GilVicente, com muitas falhas eomisses, devidas, pelo menos emparte, censura.

    considerado o maior dramatur-

    go ou teatrlogo da lngua portugue-

    sa. Foi cognominado O GenialCriador do Teatro Portugus,em aluso ao fato de ter sido oprimeiro autor a impor o texto escritos encenaes teatrais. Como para aLiteratura o importante o textoque se escreve para a representa-o, Gil Vicente considerado ofundador do teatro portugus.

    Quando Gil Vicente atinge aplena maturidade de sua arte,opera-se a secularizao com-pleta e definitiva de seu teatro. Agaleria de tipos alarga-se e enri-quece-se para nos oferecer umasubstancial reconstituio da

    sociedade de seu tempo: dosbeberres aos nobres, passandopelos camponeses, ciganos, judeus,alcoviteiras, bobos, padres moral-mente relaxados, fidalgos decaden-tes, burgueses gananciosos, artesosambiciosos, usurpadores, corruptos.Esses tipos so definidos no spelas aes, hbitos e vesturios,mas tambm pela linguagem pecu-liar a cada um deles. Gil Vicente

    revela toda sua fora dramtica,captando os flagrantes da vida real,tipos e ambientes, com grandepoder de evocao realista e relevocaricatural.

    A crtica social e a dramaturgiareligiosa revestem-se de forte inten-o moralizadora, pelas alegoriasque aproveitam temas bblicos,buclicos, cavaleirescos e mitol-

    gicos.Gil Vicente traz ao palco toda anao portuguesa. Apesar de ser, doponto de vista cnico, um teatrorudimentar, primitivo, baseado naespontaneidade e na impro-visao, est vazado em alta poe-sia dramtica. um teatro que revelao profundo pensamento cristo deum artista a servio de uma causa;sua obra uma arma de combate, de

    acusao e de moralidade.

    MDULO 3 Gil Vicente

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    3. AUTOS E FARSAS

    AutosInspirados no teatro religioso da

    Idade Mdia, nos mistrios, milagrese moralidades, os autos encerram umainteno moralizante e trazem perso-nagens alegricas (anjos, demnios

    etc.), que so personificaes devirtudes ou de defeitos humanos.

    Auto da Barca do Inferno

    Representada pela primeira vezem 1517, a pea de Gil Vicente fazparte de uma trilogia em que assisti-mos a um desfile de almas de mortosprestes a embarcar para a eter-nidade. Os ttulos das peas indicam

    os possveis destinos da viagem:Auto da Barca do Inferno, da Barcado Purgatrio e da Barca da Glria.Na primeira pea, os mortos so con-frontados com o Diabo, que, com finaironia ( um diabo muito bem-humo-rado e com grande presena deesprito), apresenta-lhes as razespelas quais devem embarcar no seubatel (navio), que vai para a terraperdida. Todos resistem e sedirigem ao Anjo, que guarda a barcado Paraso. O Anjo, em tom solene(ele no tem a graa do Diabo),mostra a quase todos (s h exceoem dois casos) que seu caminho irremediavelmente o inferno, tendoem vista a vida que levaram. E quemso os mortos? So figuras aleg-ricas que representam classes oucategorias sociais, como o Fidalgo,

    arrogante e falso, o Onzeneiro (usu-rrio), explorador dos outros, o Sapa-teiro, ladro de seus fregueses, oFrade, que vem acompanhado desua amante, a Alcoviteira (cafetina),que fornecia moas para homens dedinheiro e poder, o Judeu, contraquem at o Diabo demonstra pre-veno, o Corregedor (juiz), pompo-so e corrupto, o Procurador, deso-nesto como o juiz, o Enforcado, que

    acreditava que a forma por que

    morreu lhe garantiria a ida para ocu... S so aceitos pelo Anjo oParvo (idiota), campons explorado esofredor, e quatro cavaleiros que mor-reram em defesa da f de Cristo. Nes-se desfile de almas, temos um amploquadro crtico da sociedade portu-guesa da poca, apresentado em ver-

    sos de enorme encanto, pois so alta-mente refinados e no se afastam dalinguagem falada da poca, em seusvrios registros. Por tais motivos, GilVicente considerado, por crticosde importncia, como o poeta maisoriginal de Portugal e o maior drama-turgo europeu de sua poca.

    AUTO DA BARCA DO INFERNO

    Tanto que1 o Frade foi embarcado, veioua Alcouveteira2, per nome Brsida Vaz, a qual,

    chegando barca infernal, diz desta maneira:

    Br. Hou l da barca, hou l!

    Dia. Quem chama?

    Br. Brsida Vaz.

    Dia. Ea 3, aguarda-me, rapaz!

    Como4nom vem ela j?

    Com. Diz que nom h de vir c

    sem Joana de Valds5.Dia. Entrai vs, e remars.

    Br. Nom quero eu entrar l.

    Dia. Que saboroso arrecear 6!

    Br. Nom essa barca que eu cato7.

    Dia. E trazs vs muito fato8?

    Br. O que me convm levar.

    Dia. Que o quhavs dembarcar?

    Br. Seiscentos virgos9postios

    e trs arcas de feitios

    que nom podem mais levar10.

    Trs almrios11 de mentir,

    e cinco cofres de enlheos12,

    e alguns furtos alheos13,

    assi em joias de vestir,

    guarda-roupa dencobrir14,

    enfim casa movedia15;

    um estrado de cortia

    com dous coxins16dencobrir.

    A mor crrega17que :

    essas moas que vendia.

    Daquesta mercadoria

    trago eu muita, bof18!

    Dia. Ora, ponde aqui o p...Br. Hui! e eu vou pra o Paraso!Dia. E quem te dixe 19a ti isso?Br. L hei de ir desta mar20.

    Eu s ua mrtela21 tal,aoutes22 tenho levadose tormentos soportados23

    que ningum me foi igual.Se fosse 24 fogo infernal,

    l iria todo o mundo!A estoutra barca, c fundo,me vou, que mais real.

    Barqueiro mano, meus olhos25,prancha a Brsida Vaz!

    Vocabulrio e Notas1 Tanto que: assim que.2 Alcouveteira: alcoviteira, caftina, isto , mu-

    lher que serve de intermediria nas relaesamorosas (dicionrio Aurlio); prostituta.

    3 Ea: eia!4 Como: por que.5 Joana de Valds: alcoviteira conhecida.6 Arrecear: recear, temer.7 Catar: procurar.8 Fato: roupas e outros bens mveis.9 Virgo: hmen.10 Que nom podem mais levar: porque no

    se pode levar mais.11 Almrio: armrio.12 Enlheo: enredo, confuso.13 Alheo: alheio.14 Encobrir: disfarar, iludir.15 Movedio: mvel.16 Coxim: almofada.

    17 Mor crrega: maior carga.18 Bof: na verdade (em boa f).19 Dixe: disse.20 Mar: vez.21 Mrtelo: mrtir.22 Aoute: chicotada (punio dada s pros-

    titutas).23 Soportado: suportado.24 : ao.25 Meus olhos: meu bem.

    FarsasInspiradas no teatro profano (no

    religioso), as farsas visam a ca-racterizar, em simples episdios ouem narrativas mais complexas, tiposcaractersticos da sociedade portu-guesa, na transio da Idade Mdiapara o Renascimento.

    Alm das peas at aqui men-cionadas, podem-se destacar ainda:Auto da Alma, Farsa de Ins Pereira,Quem Tem Farelos?, Juiz da Beira,

    Auto da F, Auto da Lusitnia etc.

    TEXTO

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    1. O RENASCIMENTO

    Conceito e mbitoO Renascimento foi um dos pero-

    dos mais frteis da cultura ocidental:Dante, Cames, Petrarca, Sha-kespeare, Rabelais, Ronsard,Cervantes, Tasso, Ariosto, Miche-ngelo, Da Vinci alinharam-se

    como as mais portentosas figuras daarte em todos os tempos. Foi umperodo marcado pela supervalo-rizao do homem, pelo antro-

    pocentrismo, pelo hedonismo,em oposio ao teocentrismo, misti-cismo e ascetismo medievais.

    O interesse pelo homem e peloque ele poderia realizar de alto,profundo e glorioso (Humanismo)nspirou o conceito de homem in-tegral, senhor do mundo, sequiosopara conhec-lo totalmente.

    Caractersticascentrais do Renascimento Equilbrio e harmonia de

    orma e fundo. Clareza, mentalida-de aberta, intensidade vital, mpetoprogressista, euforia, nsia de glriae perenidade, apreo pelo humano.

    Universalismo, apego aosvalores transcendentais (o Belo, oBem, a Verdade, a Perfeio) e aossistemas racionais; simplificao porucidez tcnica, simetria.

    Culto da Antiguidade gre-co-latina. Deuses pagos usados co-mo figuras literrias e claras alegorias.

    O Renascimento portugusO Renascimento em Portugal

    correspondeu ao perodo de apo geuda Nao, cujo imprio, semelhan-a do imprio ingls do sculo XIX,abrangia do Oriente (China, ndia)ao Ocidente (Brasil), e marcou, comCames, a plena maturao da ln-gua portuguesa.

    Sob o reinado de D. Manuel, oVenturoso, Portugal gozou de mo-mentnea mas intensa euforia, gra-

    as a grandes cometimentos: des-coberta do caminho martimo paraas ndias, empreendida por Vascoda Gama em 1498; descobrimentodo Brasil em 1500; conquista de Goae de regies da frica entre 1507 e

    1513; Viagem de Circunavegaorealizada por Ferno de Magalhesentre 1519 e 1520.

    Desses fatos sobreveio uma ex-traordinria prosperidade econmi-ca: Lisboa transformou-se num impor-tante centro comercial; na Corte im-perava o luxo desmedido, na certezade que a Ptria houvesse chegado auma inaltervel riqueza material. Esteufanismo, contudo, foi declinandoat a derrocada final em Alccer-

    Quibir, em 1578, com a destruio doexrcito portugus e morte de D.Sebastio. A literatura comeou arefletir a comoo pica gerada peloprogresso nas primeiras dcadas dosculo XVI, mas refletiu tambm, vezpor outra, o desalento e a advertn-cia, lcidos perante a dbia e provi-sria superioridade.

    O Renascimento portugus norepresentou, como nos pases protes-tantes, uma revoluo cultural to

    extensa e profunda. Na faco pro-testante, as condies foram maisfavorveis liberdade de pensa-mento e difuso popular da cultu-ra, graas propagao da impren-sa, veculo privilegiado pela Refor-ma Luterana. Em Portugal, como naEspanha e Itlia, a Contrar-reformaCatlica inaugurou, precocemente,um perodo de recalque ideolgicoe de represso. Em 1547, o SantoOfcio visitou casas e livrarias

    procura de livros herticos. Gil Vicente,Cames, S de Miranda, AntnioFerreira, entre outros, foram consi-derados agentes contra a F e osCostumes.

    2. A ESCOLA CLSSICA RE-NASCENTISTA (1527-1580)

    Ainda que, j no fim da IdadeMdia, os autores da Antiguidade Cls-sica fossem conhecidos em Portugal,s se pode falar na existncia de um

    estilo renascentista expressivo apartir de 1527, quando o poeta S deMiranda regressou da Itlia, local emque viveu, entre 1520 e 1527, e ondeesteve em contato com a literatura daRenascena italiana, com o dolce stil

    nuovo, e iniciou a divulgao, em Por-tugal, das modalidades poticas cls-sicas. Esse conjunto de procedimen-tos artsticos, que, em territrio luso,chamou-se medida nova, consistia

    na utilizao do verso decas-slabo, em lugar dos redondilhos tra-dicionais;

    na predileo pelas formas fi-xas, inspiradas nos modelos latinos eitalianos: o soneto, o terceto, a sexti-na, a oitava, a ode, a elegia, a can-

    o, a cloga, a epstola, o epigrama,o epitalmio; alm do teatro clssico,com a tragdia grega e a comdialatina, regidas pela lei das trs uni-dades (de tempo, de lugar e de ao);

    na assimilao da influnciatemtica e formal de autores comoHorcio, Virglio, Ovdio, Plauto, Te-rncio, Homero, Pndaro, Anacreonte,Sannazzaro, Boccaccio, Boiardo, Tor-quato Tasso, Ariosto, Dante Alighieri ePetrarca, alm da releitura dos fil so-

    fos gregos Plato e Aristteles, filtra-dos pelo pensamento cristo de SoToms de Aquino e Santo Agostinho.

    Contudo, o esprito medieval nofoi completamente abandonado. Porisso, o Quinhentismo luso constituiuuma poca bifronte, pela coexistn-cia e, no raro, a interinfluncia dasduas formas de cultura: a medieval,popular, tradicional, materializada namedida velha, e a clssica, erudi-ta, renascentista, que se expressou

    por meio da medida nova. Essebifrontismo foi lugar-comum entre osautores portugueses da poca renas-centista, cujas aparentes contradi-es s podem ser explicadas quan-do se tem em vista a ambivalnciacultural da poca.

    No caso portugus, acresce noter havido um Renascimento tpico,pois, dada a prevalncia do catoli-cismo e do poder eclesistico, o ra-cionalismo e a ideologia burguesano vingaram de modo to expres-sivo como ocorreu em outros pases.

    CONCEITO E MBITOA MEDIDA NOVALUS DE CAMES

    MDULO 4 A Medida Nova Lus de Cames

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    3. LUS DE CAMES

    A biografia de Cames apre-senta problemas insolveis por faltade dados seguros. Lisboa, Coimbra,Alenquer e Santarm disputam o seunascimento. Mais provvel Lisboa ouCoimbra, por volta de 1525. Morreuem 1580, em Lisboa.

    Em 1552, num dia de CorpusChristi, numa rixa com um funcio-nrio do pao, Gonalo Borges, foiferido com um golpe de espada, ten-do sido recolhido priso do Tronco.No ano seguinte, como aventureiro,tomou parte em vrias expedies,refazendo assim toda a rota de Vascoda Gama, na viagem do descobri-mento do caminho martimo para asndias, que mais tarde se converteuna ao central de Os Lusadas.

    Em 1555, envolveu-se em traba-lhos de guerra em Goa, cujo gover-nador era Afonso de Albuquerque.Por volta de 1558, esteve em Macau(China), primeiro estabelecimentoeuropeu no Extremo Oriente. A foiProvedor-Mor de Bens de Defuntos eAusentes, impor tante cargo adminis-trativo. Acusado de irregularidades,voltou preso a Goa, para justificar-se. Durante a viagem (1559), naufra-gou s margens do Rio Mekong, no

    Camboja. Em Os Lusadas h umaaluso a este fato e ao seu salva-mento com o manuscrito de OsLusadas, o que faz ver que a obradevesse estar quase completa(Canto X, 127-128). da tradioque tenha perdido neste naufrgioseu grande amor oriental (Dina-mene), em memria de quem fez osoneto AIma minha gentil que tepartiste, alm de outros.

    Morreu miservel em 1580, aps

    o desastre militar de Alccer-Quibir,que antevia a anexao de Portugalaos domnios da Espanha. Poucosdias antes de morrer, em carta a umamigo, D. Francisco de Almeida,dizia: Enfim acabarei a vida e verotodos que fui to afeioado minhaptria, que no me contentei emmorrer nela, mas com ela.

    Cames lricoO tema central da lrica camo-

    niana o amor, concebido no sim-

    plesmente como um sentimento, mascomo uma fora vital, uma foracsmica que pode elevar o esprito.Cames celebrou amores, a belezafeminina, o prazer sensual (os versosem que descreve o encanto da es-crava negra, a menina dos olhos ver-des, a moa que vai buscar gua nafonte); mas celebrou tambm o amor

    espiritual (o amor dito platnico eque mais propriamente se deveconsiderar um sinal do neoplato-nismo camoniano). Neste ltimocaso, o amor visto como fora quepode libertar o esprito do mundo damatria e elev-lo a um plano mate-rial superior.

    Outros temas da obra lrica ca-moniana so a mudana constan-te de tudo, ou seja, a instabilidadeda vida humana, e o desconcerto

    do mundo, ou seja, a desordem e adesrazo que governam tudo. Dessascaractersticas, tambm decorre anecessidade de um mundo supe-rior, liberto deste mundo de aparn-cias enganosas, no qual o prprioamor no passa de fonte de desen-ganos e sofrimentos.

    Os livros didticos, sem muitorigor, abordam duas vertentes dalrica de Cames:

    a primeira, tradicional, popu-

    lar, de inspirao medieval, vazadaem trovas, vilancetes, cantigas e es-parsas, composta em versos redondi-lhos, na medida velha, com utiliza-o frequente de motes e glosas. uma poesia leve, galante, madriga-lesca, como as composies do Can-cioneiro Geral de Garcia de Resende;

    a segunda, clssica, erudita,de inspirao italiana, vazada emsonetos, canes, odes, oitavas,clogas, tercetos, sextinas e elegias,

    composta em decasslabos, na me-dida nova. a maturidade de Ca-mes, marcada pelo tom reflexivo,pela dialtica cerrada e pela reflexodensa sobre o tema lrico-amoroso,sobre os transes existenciais do poe-ta e sobre o desconcerto do mundo.

    Em ambas as vertentes, Camesfoi o maior poeta de seu tempo. Suaobra abrange as diversas correntesartsticas e ideolgicas do sculo XVIe reflete uma experincia pessoal

    mltipla.

    As redondilhas de CamesSem muita rigidez, pode-se dizer

    que a grande maioria das composi-es na medida velha, em versosredondilhos, ao gosto do pblico pa-laciano, e maneira do CancioneiroGeral de Garcia Resende, data damocidade de Cames. Em geral, asredondilhas so leves, brincalhonas,

    madrigalescas e destinam-se reci-tao na Corte. Revelam a habili-dade formal do poeta, que usa ima-gens, trocadilhos e ambiguidadesmais voltados para a magia verbal,para a demonstrao da habilidadena manipulao de palavras e con-ceitos, do que para a expressopessoal e individualizada.

    DESCALA VAI PARA A FONTE

    MOTE

    Descala vai para a fonteLianor pela verdura;1

    Vai formosa, e no segura.

    VOLTAS

    Leva na cabea o pote,O testo2nas mos de prata,Cinta de fina escarlata,

    Sainho de chamalote3;Traz a vasquinha4de cote5,Mais branca que a neve pura;Vai formosa, e no segura.

    Descobre a touca a garganta,Cabelos de ouro o tranado,Fita de cor de encarnado6,To linda que o mundo espanta!Chove nela graa tanta,Que d graa formosura;Vai formosa, e no segura.

    Vocabulrio e Notas1 Verdura: vegetao.2 Testo: tampa do pote.3 Chamalote: tecido de l e seda.4 Vasquinha: saia de vestir por cima de todaa roupa, com muitas pregas na cintura.5 De cote: de uso dirio.6 Encarnado: vermelho.

    Comentrio Trata-se de um vilancete, com mote e

    glosa, na medida velha (redondilha). Faz partede um ciclo de redondilhas em torno do temada donzela que caminha descala para algum

    lugar (para a fonte, pela neve etc.)

    TEXTOS

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    De inspirao medieval e popular (pelaorma, pela protagonista e pelo sentimentoamoroso expresso), a redondilha acentua aendncia para a elaborao engenhosa deconceitos, para o jogo de ideias e para a cons-ruo antittica e paradoxal, pressagiando avertente conceptista da poesia barroca.

    maneira das cantigas de amigo, aprotagonista, Leonor, uma mulher do povo,de hbitos simples. O poeta oscila entre a des-contrao e o realismo das cantigas, a expres-so direta do sentimento amoroso e a ex-presso elevada e conceitual do amor, que irmarcar a lrica clssica dos sonetos.

    ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO

    Os bons vi sempre passarno mundo graves tormentos;e, para mais me espantar,os maus vi sempre nadarem mar de contentamentos.Cuidando alcanar assimo bem to mal ordenado,fui mau, mas fui castigado.

    Assim que s para mimanda o mundo concertado.

    A lrica clssica camonianaSob influncia da escola renas-

    centista italiana, ou escola petrar-quista, Cames realizou a parcelamais densa e perfeita de sua lrica.Com os decasslabos da medidanovae com as formas fixas do Clas-sicismo (sonetos, canes, odes,elegias, clogas, oitavas e sextinas),o poeta conseguiu o mais altoequilbrio entre a disciplina, o virtuo-sismo formal e a reflexo profundasobre o sentido do amor e da vida.

    Amor um fogo que arde sem se ver;

    ferida que di e no se sente; um contentamento descontente;

    dor que desatina sem doer.

    um no querer mais que bem querer;

    um andar solitrio entre a gente;

    nunca contentar-se de contente; um cuidar que ganha em se perder.

    querer estar preso por vontade; servir a quem vence, o vencedor; ter com quem nos mata lealdade.

    Mas como causar pode seu favorNos coraes humanos amizade,Se to contrrio a si o mesmo Amor?

    * * *Alma minha gentil, que te partisteTo cedo desta vida, descontente,

    Repousa l no Cu eternamente,E viva eu c na Terra sempre triste.

    Se l no assento etreo, onde subiste,Memria desta vida se consente,No te esqueas daquele amor ardenteQue j nos olhos meus to puro viste.

    E se vires que pode merecer-teAlguma coisa a dor que me ficouDa mgoa, sem remdio, de perder-te,

    Roga a Deus, que teus anos encurtou,

    Que to cedo de c me leve a ver-te,Quo cedo de meus olhos te levou.

    1. EPOPEIA CAMONIANA

    Epopeia um poema do g-nero pico, poesia de tom elevado,heroica, que conta uma histria e

    celebra um heri, em aventuras ge-ralmente guerreiras, cujo sentidograndioso se liga vida da socieda-de a que pertence. Depois das gran-des epopeias da Antiguidade (aIlada e a Odisseia, de Homero, dosculo VIII a.C.), a poesia pica rarasvezes atingiu a altura a que seelevam Os Lusadas. Neste poema,os grandes ingredientes do gneropico estiveram presentes: um mo-

    mento grandioso, um assuntograndioso e um poeta grandioso.

    O momento foi o Renascimento,uma poca fervilhante, de expansodas fronteiras do mundo conhecido expanso no espao (descobriu-se grande parte do planeta), no tem-po (redescobriu-se toda a Antiguida-de) e no esprito (ampliou-se enorme-mente o conhecimento e iniciou-se anvestigao cientfica do mundo).

    (Hoje, procura-se lembrar que a ex-

    panso geogrfica custou caro paraos outros, os povos das terras des-cobertas, para os quais a chegadados europeus significou, na maioriados casos, dominao, destruio

    cultural, escravido e morte.)O assunto um grande epis-dio da conquista dos mares e avanosobre terras distantes e desconhe-cidas: o descobrimento do caminhomartimo para as ndias, realizado nofim do sculo XV por um portugus,Vasco da Gama, numa poca emque Portugal vivia seu apogeu eestava na vanguarda da aventuraconquistadora da Europa.

    com Os Lusadasque a lnguaportuguesa adquire, definitivamente,sua maioridade.

    Datadas do ano de 1572, h duasedies de Os Lusadas, praticamen-te idnticas. No se sabe se as duasforam feitas pelo poeta naquele anoou se uma delas (no se saberia qual) falsificao posterior, feita para iludira Inquisio (que fora tolerante quan-do da primeira edio do poema, mas

    exigiu alteraes em edio poste-

    rior). Alm de Os Lusadas, Camesno publicou nenhum outro livro.

    2. DIVISES FORMAIS:CANTOS E ESTROFES

    O poema divide-se em dezcantos (cantos so as principais divi-ses materiais ou partes de um poe-ma, correspondendo, na prosa, aoscaptulos). Cada canto contm emmdia 110 estrofes ou estncias. OCanto VII o mais curto, com 87estrofes; o Canto X o mais longo,com 156 estrofes.

    O poema compe-se de 1.102

    estrofes, com 8 versos em cada uma,dispostos em oitava-rima (esquemaABABABCC).

    3. AS PARTES DO POEMA

    A proposio (estrofes 1 e 2) parte obrigatria do poema pico. aapresentao do assunto. O ncleo daproposio est nos versos 15 e 16(Cantando espalharei por toda parte /

    Se a tanto me ajudar o engenho e arte):

    MDULO 5 Os Lusadas I

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    As armas e os bares1 assinalados,Que, da Ocidental praia Lusitana2,Por mares nunca dantes navegados3,Passaram ainda alm da Taprobana4,Em perigos e guerras esforadosMais do que prometia a fora humana,E entre gente remota5edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram6.

    E tambm as memrias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatando7

    A F, o Imprio, e as terras viciosas8De frica e de sia andaram devastando,E aqueles que por obras valorosasSe vo da lei da Morte libertando9:Cantando espalharei10por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

    Vocabulrio e Notas1 Armas: guerras; bares: vares.2 Portugal o pas mais ocidental da Euro-

    pa.3 Verso clebre, muito repetido.4 Taprobana: Ceilo (hoje Sri Lanka), pon-

    to-limite primeiro ultrapassado pelos por-tugueses.

    5 Gente remota: povos distantes.6 Sublimar: elevar, enaltecer.7 Dilatar: ampliar, ou seja, espalhar pelo

    mundo.8 A F, o Imprio: O Cristianismo e o Imp-

    rio portugus; terras viciosas: pases nocristos.

    9 Se vo da lei da Morte libertando: Vo-setornando imortais, porque sero semprelembrados.

    10 Cantando espalharei: nessa expressoest o verbo principal, do qual tudo o queveio antes objeto.

    Depois dessa proposio es-palhar pelo mundo, com seu poema,os grandes feitos dos portugueses, o poeta faz a invocao, nodas Musas (deusas que presidiam sartes), mas das Tgides, ou ninfasdo Rio Tejo, para que o inspirem.

    E vs, Tgides minhas, pois criadoTendes em mim um novo engenho

    [ardente1,Se sempre, em verso humilde, celebradoFoi de mim vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandloquo e corrente,Por que de vossas guas Febo2 ordeneQue no tenham inveja s de Hipocrene3.

    Vocabulrio e Notas1 Engenho ardente: refere-se inspirao

    pica (heroica).2 Febo: Apolo, deus do sol e aquele que presi-

    de as musas.3 Hipocrene: fonte que o cavalo alado P-

    gaso fez brotar no Hlicon. Quem bebessede suas guas se tornaria poeta.

    Em seguida, prope uma infla-mada dedicatria a D. Sebastio,estimulando-o a uma grande empre-sa de conquista que o elevasse altura de seus ilustres antepassados(sabe-se do desastre em que termi-naria, poucos anos depois, a aven-tura de D. Sebastio na frica):

    E, enquanto eu estes canto, e a vs no[posso,

    Sublime Rei, que no me atrevo a tanto,Tomai as rdeas vs do Reino vosso:Dareis matria a nunca ouvido canto.Comecem a sentir o peso grosso(Que pelo mundo todo faa espanto)De exrcitos e feitos singulares

    De frica as terras e do Oriente os mares.

    Na estrofe 19, inicia-se a nar-rao de Os Lusadas, a qual com-

    preende trs aes principais: aviagem de Vasco da Gama, ahistria de Portugal e a lutados deuses do Olimpo (Baco xVnus); so, portanto, duas aeshistricas e uma ao mitolgica.Essas aes so entremeadas de di-gresses (dissertaes) poticas deCames sobre a moral, sobre a des-considerao de seus contempo-rneos pela poesia, sobre o verda-

    deiro valor da glria, sobre a onipo-tncia do ouro e sobre o destino dePortugal.

    O incio da ao (I, 19) se d,no no incio da viagem de Vasco daGama, mas quando os navegadoresj esto em pleno Oceano ndico, nacosta leste da frica, altura da Ilhade Madagscar. S mais tarde quese iro narrar o incio da viagem, apartida das naus e os incidentes da

    navegao no Atlntico.Cames, na estrofe 19 do primei-

    ro canto, apresenta rapidamente osnavegadores j no ndico, para, a se-guir, apresentar a primeira ao mito-lgica, a primeira interveno domaravilhoso pago, no episdio doConslio dos Deuses no Olimpo:

    J no largo Oceano navegavam,As inquietas ondas apartando;Os ventos brandamente respiravam,

    Das naus as velas cncavas inchando;

    Dabrancaescuma1 osmares se mostravam

    Cobertos, onde as proas vo cortandoAs martimas guas consagradas2,Que do gado de Prteu3so cortadas,

    Quando os Deuses no Olimpo luminoso,Onde o governo est da humana gente,Se ajuntam em conslio4glorioso,Sobre as coisas futuras do Oriente.()

    Vocabulrio e Notas1 Escuma: espuma.2 Consagrado: sagrado, santificado.3 Prteu: deus marinho, guardador do gado

    de Netuno. Tinha o dom de tomar todas asformas possveis.

    4 Conslio: conselho, assembleia.

    No canto dcimo, a narrativa seencerra e o poema se fecha com umeplogo desalentado, em que o poe-ta lamenta a situao presente deseu pas e se dirige de novo a D.Sebastio, retomando a exortaoque a ele fizera na dedicatria dopoema.

    Contrapondo-se ao tom vibrantee ufanista do incio do poema, o des-fecho contm uma dolorosa crtica decadncia do pas, corrodo pelaambio desmedida de conquista ede riqueza. uma clara premonioda derrocada do pas, submetido Espanha, e de seu Imprio Oriental:

    Nomais,Musa1,nomais,que a Lira tenhoDestemperada2e a voz enrouquecida,E no do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida3.O favor com que mais se acende o engenho

    No no d a ptria, no, que est metidaNo gosto da cobia e na rudezaDuma austera, apagada e vil tristeza.

    Vocabulrio e Notas1 Musa: Cames dirige-se novamente a

    suas inspiradoras, as Tgides, parainform-las de que vai parar o poema, noporque tivesse se cansado do canto, masporque sente falta do maior estmulo suapoesia: o reconhecimento do povo, daptria.

    2 Destemperado: desafinado.3 Gente surda e endurecida: o povo portu-

    gus. Para alguns crticos, Cames refere-se apenas quela parcela corroda pelaganncia e pelo individualismo. Para ou-tros, o sentido da crtica mais amplo eatinge toda a Nao, entregue ao obscu-rantismo religioso (a Contrarreforma), aoautoritarismo poltico (o Absolutismo), decadncia econmica e retrica pedan-te e esterilizante da ignorncia e do medo.

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    Lus de Cames

    1. A NARRAO DO POEMA

    J vimos, na aula anterior, que anarrao da viagem de Vasco daGama inicia-se na estrofe 19 do Can -o I, com os navegadores j no meio

    da viagem, em pleno Oceano ndico.Vimos tambm que a narrao

    compreende duas aes histricas euma ao mitolgica. Dessas aesdestacam-se inmeros episdios de

    natureza simblica, proftica, lrica,naturista, histrica ou mitolgica.

    Particularizando melhor a nar-ao, temos

    a primeira ao histrica,que principia com os navegadores jem pleno Oceano ndico, prximosde Moambique.

    Vencidos os perigos do mar e asarmadilhas de Baco, em Quiloa eMombaa, os portugueses aportaram

    em Melinde.Do Canto lll ao V a ao (viagem) nterrompida, e Vasco da Gamaconta ao rei de Melinde a histria dePortugal, desde os heris primitivos,passando por todos os reis, heris eeitos relevantes, at a insero do

    prprio narrador (Vasco da Gama) nahistria, narrando, ele prprio, apartida das naus, os incidentes daviagem de Portugal a Melinde, aravessia do Cabo das Tormentas, ou

    da Boa Esperana.

    A narrao da Viagem de Melin-de at Calicute, na ndia, retomadapelo poeta no Canto Vl. Seguem-seos episdios da conquista do Oriente.No Canto IX inicia-se a viagem de re-gresso ptria, interrompida na Ilha

    dos Amores, onde os navegadoresso recebidos por Ttis e pelas Ninfas,que amorosamente os recompensamdos duros trabalhos do mar;

    a segunda ao hist-rica, o relato da histria de Portugal,com dois narradores: Vasco da Gamae seu irmo, Paulo da Gama. Vascoda Gama conta ao rei de Melinde afundao do Pas; os feitos dos reis eheris portugueses, as principais bata-

    lhas que venceram (Ourique, Saladoe Aljubarrota); o episdio lrico-amoro-so de Ins de Castro; o sonho profti-co de D. Manuel; o incio da viagem;o episdio do Gigante Adamastor, per-sonificao do Cabo das Tormentase smbolo da superao do medo doMar Tenebroso.

    A relao dos heris portuguesese de seus atos completada no CantoVlll, por Paulo da Gama, que conta aocatual, a pretexto de explicar o signi-ficado das bandeiras de Portugal, osfeitos heroicos da gente lusitana.

    As narrativas so entremeadas deintervenes do poeta, principalmen-te no final dos cantos, em que Cameslana suas reflexes morais, invectivascontra o desprezo dos portuguesespela arte, consideraes sobre o ver-dadeiro valor da glria, sobre a sub-misso dos homens ao dinheiro esobre a decadncia do pas;

    a ao mitolgica, que prin-cipia no Canto I, 20, com o episdiodo Conslio dos Deuses no Olimpo.Baco contrrio aos portugueses:Vnus favorvel a eles, e acaba con -vencendo Marte e Jpiter. A interven-o de divindades mitolgicas (ma-ravilhoso pago) desdo bra-se em ou-tros episdios: as ciladas de Baco,as intervenes de Vnus e das Nerei-das, o Conslio dos Deuses Marinhos

    no Palcio de Netuno, desembocan-dona llha dos Amores, onde os planoshistrico e mitolgico se fundem.

    Resumo dos cantos

    CANTO IProposio, invocao, de-

    dicatria, incio da narrao(rpida referncia a que os portugue-ses j navegavam no Oceano ndico);Conslio dos Deuses no Olimpo; emMoambique, Quiloa e Mombaa,ciladas de Baco contra os navegado-res e intervenes de Vnus e dasNereidas a favor dos portugueses;reflexes morais do poeta.

    CANTO IIEm Mombaa, narram-se as ma-

    quinaes de Baco e as interven-es de Vnus e das Nerei das;Vnus sobe ao Olimpo e queixa-se aJpiter, que profetiza os feitos lusos;chegada a Melinde, onde os portu-gueses so bem recebidos.

    CANTO III

    Vasco da Gama invoca a inspira-o de Calope e inicia a narrao dahistria de Portugal, destacando: osprimeiros heris (Luso e Viriato), a fun-dao do Pas e os reis de Portugal, asbatalhas de Ourique e Salado e o epi-sdio lrico-amoroso de Ins de Castro.

    CANTO IVVasco da Gama prossegue a nar-

    rao da histria de Portugal: a Bata-

    lha de Aljubarrota (centralizao mo-nrquica incio da Dinastia de Avis).As primeiras conquistas, a Tomada deCeuta, o sonho proftico de D. Manuel,que confia a Vasco da Gama o des-cobrimento do caminho martimo paraas ndias. A partir desse ponto, Vascoda Gama passa a narrar a prpria via-gem, a partida das naus e a adver-tncia do Velho do Restelo (censuras navegaes, representando asobrevivncia da ideologia medieval,feudal e conservadora).

    MDULO 6 Os Lusadas II

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    CANTO VVasco da Gama conclui a nar-

    rao da sua viagem. Fala do Cruzeirodo Sul, do fogo-de-santelmo, datromba martima, do episdio cmicode Veloso e do Gigante Adamastor(monstro de pedra que personifica oCabo das Tormentas, simbolizando asuperao do medo do Mar Tene-

    broso). De novo em Melinde, Vascoda Gama exalta a tenacidade portu-guesa. Aqui se encerra o primeirociclo pico. Cames recrimina os por-tugueses pelo desapego poesia.

    CANTO VlCames retoma a narrao da via-

    gem de Melinde para a ndia. Os deu-ses renem-se no Palcio de Netunopara o Conslio dos Deuses Marinhos.

    A bordo das naus, os portugueses seentretm com a narrativa cavaleires-ca do episdio dos Doze da Ingla-terra (inspirada nos torneios da cava-laria medieval). Meditaes do poetasobre o verdadeiro valor da glria.

    CANTO VIIOs portugueses chegam a Cali-

    cute, na ndia. Cames descreve oOriente extico.

    CANTO VlllPaulo da Gama, atendendo a umpedido do catual (autoridade re-gional da ndia), explica o significadodas bandeiras de Portugal e refere-se aos heris portugueses e aosseus feitos. Cames narra os perigosenfrentados no Oriente. Vasco daGama feito prisioneiro e res-gatado em troca de mercadoriaseuropeias. Cames tece conside-raes sobre a onipotncia do ouro.

    CANTO IXOs portugueses iniciam a viagem

    de regresso. Vnus e as Ninfas prepa-ram a llha dos Amores, prmio e re-pouso para os navegadores. a fusodos planos histrico e mitolgico.

    CANTO XNa llha dos Amores, Ttis e as

    Ninfas oferecem um banquete aosnavegadores. Ttis mostra a Vasco

    da Gama uma miniatura do Universo

    (a Mquina do Mundo), apontan-do os lugares onde os portuguesesiriam praticar grandes feitos. Camesnarra o episdio de So Tom, emque se fundem o maravilhoso cris-to (bblico), o maravilhoso pago(mitolgico) e o plano histrico. Ttisdespede-se dos portugueses. Re-gresso ptria. Cames lamenta a

    decadncia de Portugal (Eplogo),faz exortao a D. Sebastio e va-ticina as futuras glrias.

    2. EPISDIOS NOTVEIS

    Os episdios de Os Lusadasso aes acessrias s aesprincipais. Alm das aes histri-cas, reais, narradas diretamente pelopoeta, por Vasco da Gama, ou porseu irmo, Paulo da Gama, h epi-sdios mitolgicos, profticos, lricose naturistas (descries da natu-reza), entremeados uns aos outros,de forma que um mesmo episdiopode ter vrios significados.

    O Conslio dosDeuses no Olimpo (I, 20-41)Reunidos sob a presidncia de

    Jpiter, os deuses discutem o futurodas navegaes portuguesas e da

    viagem de Vasco da Gama. Baco contrrio aos portugueses, pois temeque eles suplantem seus feitos noOriente. Tambm Netuno (deus domar) far depois oposio aos nave-gadores, invejoso de seus sucessosmartimos. Vnus (deusa do amor) eMarte (deus da guerra) tomam par-tido dos lusos, considerados pela deu-sa como os maiores amantes e, por-tanto, seus protegidos, e tidos por

    Marte como os guerreiros mais valen-tes. Aps o debate, Jpiter decide afavor dos portugueses. Baco, incon-formado, desce Terra e tenta im-pedir o xito da viagem, armando ci-ladas e ataques traioeiros.

    Essa ao mitolgica, a disputaentre Vnus e Baco, interfere no planohistrico, e tem o claro propsito de ele-var os navegadores altura dos deu-ses olmpicos. Inspiradas na tradioclssica, essas alegorias cons tituem

    alguns dos pontos altos do poema.

    Ins de Castro (III,118-135)Episdio de natureza Irico-amo-

    rosa, simboliza a fora e a veemnciado amor em Portugal.

    Valendo-se de fontes medievais(as Trovas, de Garcia de Resende) eclssicas (a tragdia A Castro, deAntnio Ferreira), Cames, pela bocade Vasco da Gama, inscreve na

    epopeia a narrativa lrica da jovemcondenada pelo crime de amar. Ins,jovem da pequena nobreza deCastela, apaixonou-se pelo PrncipeD. Pedro (depois D. Pedro I, de Por-tugal). A corte portuguesa opunha-sea tal unio, e o Rei D. Afonso IV, mes-mo reconhecendo a inocncia damoa, no impede sua morte. Pedro,na poca em trabalhos de guerra nafrica, regressa a Portugal e encon-

    tra a amada morta (de onde vem aexpresso popular agora Ins morta). Diz a lenda que, treslouca-do, o prncipe teria desenterrado Ins,coroando-a rainha aps a morte, e teria,ainda, obrigado a corte a beijar a moda rainha-defunta. O certo que, as-sumindo o trono, foi um dos reis maiscruis do pas, obcecado pela vingan-a contra os algozes da amada.

    O Velho do

    Restelo (IV, 94-104)Quando as naus de Vasco da

    Gama se despediam do porto de Be-lm, um velho, o Velho do Res-telo, elevando a voz, manifestou suaoposio viagem s ndias. A suafala pode ser interpretada como asobrevivncia da mentalidade feudal,agrria, oposta ao expansionismo es navegaes, que configuravam osinteresses da burguesia e da monar-

    quia. a expresso rigorosa do con-servadorismo. Certo que Cames,mesmo numa epopeia que se propea exaltar as Grandes Navegaes,d a palavra aos que se opem aoprojeto expansionista.

    O GiganteAdamastor (V, 37-60)Quando a esquadra de Vasco da

    Gama atravessava o Cabo das Tor-mentas, passando do Oceano Atln-tico para o ndico, um monstro disfor-

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    me e ameaador interpela os navega-dores, condenando sua ousadia, pro-etizando desgraas e misria. O Gi-

    gante narra, a seguir, a causa de suaransformao na figura monstruosa

    que guarnecia o Cabo das Tormentas:endo-se apaixonado por Ttis (filha

    de Dris e Nereu), foi por ela repudia-do e tentou tom-la fora. Derrota-

    do e punido pelos deuses, foi transfor-mado num monstro de pedra. Inspi-ada na mitologia clssica (Homero e

    Ovdio), uma das alegorias maisicas do poema. Simboliza, no plano

    histrico, a superao, pelos portu-gueses, do medo do Mar Tenebro-so, das supersties medievais. Noplano lrico, desenvolve o tema doamante infeliz e desenganado (Ttisera esposa de Peleu, e enganou o

    Gigante); o amor-trag dia. Curiosa-mente, o primeiro navegante a atraves-sar o Cabo das Tormentas, Bartolo meuDias, morreu exatamente ali, quando,12 anos depois, em 1500, comanda-va uma das quatro naus que Pedrolvares Cabral perdeu na costa afri-cana, num naufrgio. Era avingana do Gigante, ou do Caboda Boa Esperana, como o batizouBartolomeu Dias, em 1488.

    A llha dosAmores (IX, 18 a X, 143)Aps a conquista do Oriente, lan-

    adas as sementes do Imprio Por-ugus que a surgiria, os navegado-es esto voltando a Portugal. Vnus,

    entretanto, prepara-lhes uma surpre-sa, como recompensa aos seus es-oros e sacrifcios. Numa ilha para-

    disaca, os navegadores so recebi-dos pelas ninfas do mar, que Cupido,

    por ordem de Vnus, fez enamora-das dos portugueses. Emolduradospor uma natureza exuberante, vivemnstantes de prazeres ilimitados.Homenageados por Ttis com umbanquete, uma ninfa profetiza osuturos feitos portugueses. Aps,

    Ttis, do alto de um monte, mostra aVasco da Gama a Mquina doMundo, espcie de miniatura doUniverso. Particularizando o globo

    errestre, aponta os lugares onde os

    portugueses iriam fincar sua ban-deira, incluindo aqui o Descobri-mento do Brasil.

    Esse longo episdio riqussi-mo em sugestes e significados.Simboliza a elevao dos navega-dores condio de semideuses,interseccionando os planos histricoe mitolgico. Na exibio da M-quina do Mundo, os portugueses tor-nam-se senhores dos segredos doUniverso, e Vasco da Gama triunfamais uma vez sobre Adamastor, tor-nando-se amante de Ttis, ninfa domar. Inspirado em Virglio, Horcio eOvdio, o episdio um hino ao amore sensualidade.

    EPISDIO DE INS DE CASTRO(fragmentos)

    Passada esta to prspera vitria1,Tornado Afonso Lusitana Terra,A se lograr da paz com tanta glriaQuanta soube ganhar na dura guerra,O caso triste e digno da memria,Que do sepulcro os homens desenterra,Aconteceu da msera e mesquinhaQue depois de ser morta foi Rainha.

    (III, 118)

    Tu, s tu, puro Amor, com fora crua,Que os coraes humanos tanto obriga,Deste causa molesta2morte sua,Como se fora3prfida inimiga.Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lgrimas tristes se mitiga4, porque queres, spero e tirano,Tuas aras5banhar em sangue humano.

    (III, 119)

    Estavas, linda Ins, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruito6,Naquele engano7da alma, Iedo e cego,Que a Fortuna8no deixa durar muito,

    Nos saudosos campos do Mondego9,De teus formosos olhos nunca enxuito10,Aos montes ensinando e s ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.

    (III, 120)

    Do teu Prncipe ali te respondiamAs lembranas que na alma Ihe moravam,Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus formosos se apartavam;De noite, em doces sonhos que mentiam,De dia, em pensamentos que voavam;E quanto, enfim, cuidava e quanto viaEram tudo memrias de alegria.

    (III, 121)

    De outras belas senhoras e PrincesasOs desejados tlamos enjeita,Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,Quando um gesto suave te sujeita.Vendo estas namoradas estranhezas,O velho pai sisudo, que respeitaO murmurar do povo e a fantasiaDo filho, que casar-se no queria,

    (III, 122)

    Tirar Ins ao mundo determina,

    Por lhe tirar o filho que tem preso,Crendo com sangue s da morte indina11

    Matar do firme amor o fogo aceso.Que furor consentiu que a espada fina,Que pde sustentar o grande pesoDo furor Mauro12, fosse alevantadaContra hua fraca dama delicada?

    (III, 123)

    (...)

    A corte, contudo, exige a mortede Ins (nobre, mas bastarda), comquem o prncipe tinha filhos e de

    quem no queria se afastar. Levada presena do rei, Ins suplica a cle-mncia de D. Afonso IV, no por ela,ou pela sua vida, mas por seus filhos.Observe a elegncia e conciso dopoeta na estrofe que se segue:

    tu, que tens de humano o gesto e o peito(Se de humano matar uma donzela,Fraca e sem fora, s por ter sujeitoO corao a quem soube venc-la),A estas criancinhas tem respeito,Pois o no tens morte escura dela;

    Mova-te a piedade sua e minha,Pois te no move a culpa que no tinha.(III, 127)

    Vocabulrio e Notas1 Esta... vitria: refere-se vitria dos cris-

    tos na Batalha do Salado.2 Molesto: lastimoso, lamentvel.3 Fora: fosse.4 Mitigar: abrandar.5 Ara: altar.6 Fruito: fruto.7 Engano: xtase, enlevo.8 Fortuna: na crena dos antigos, deusa que

    presidia ao bem e ao mal; destino, fado.

    9 Mondego: rio que banha Coimbra.10 Enxuito: enxuto.11 Indino: indigno.12 Mauro: mouro.

    EPISDIO DO VELHO DO RESTELO

    Mas um velho, de aspecto venerando,Que ficava nas praias, entre a gente,Postos em ns os olhos, meneandoTrs vezes a cabea, descontente,A voz pesada um pouco alevantando,Que ns no mar ouvimos claramente,Cum saber s de experincias feito,Tais palavras tirou do experto1 peito:

    (IV, 94)

    TEXTOS

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    glria de mandar, v cobiaDesta vaidade, a quem chamamos Fama! fraudulento gosto, que se atiaCumaaurapopular, que honra se chama!Que castigo tamanho e que justiaFazes no peito vo que muito te ama!Que mortes, que perigos, que tormentas,Que crueldades neles exprimentas2!

    (IV, 95)

    Condenando a temeridade dese lanarem os portugueses na con-quista do Oriente, adverte para o pe-rigo representado pelos rabes eamaldioa as navegaes:

    No tens junto contigo o Ismaelita3,Com quem sempre ters guerras sobejas?No segue ele do Arbio a Lei maldita,Se tu pola4de Cristo s pelejas?No tem cidades mil, terra infinita,Se terras e riqueza mais desejas?No ele por armas esforado,Se queres por vitrias ser louvado?

    (IV, 100)

    Deixas criar as portas o inimigo,Por ires buscar outro de to longe,Por quem se despovoe o Reino antigo,Se enfraquea e se v deitando a longe!Buscas o incerto e incgnito perigoPor que a Fama te exalte e te lisonjeChamando-te senhor com larga cpia,Da ndia, Prsia, Arbia e Etipia.

    (IV, 101)

    Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,Nas ondas vela ps em seco lenho5!Digno da eterna pena do Profundo6,Se justa a justa Lei que sigo e tenho!Nunca juzo algum, alto e profundo,Nem ctara sonora de vivo engenho,Te d por isso fama nem memria,Mas contigo se acabe o nome e glria!

    (IV, 102)

    Trouxe o filho de Jpeto7 do CuO fogo que ajuntou ao peito humano,Fogo que o mundo em armas acendeu,Em mortes, em desonras(grandeengano!).

    Quanto melhor nos fora, Prometeu,E quanto para o mundo menos dano,

    Que a tua esttua ilustre no tiveraFogo de altos desejos que a movera!

    (IV, 103)

    No cometera o moo miserando8

    O carro alto do pai, nem o ar vazioO grande arquitector como filho9, dando,Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.Nenhum cometimento alto e nefandoPor fogo, ferro, gua, calma e frio,

    Deixa intentado a humana gerao.Msera sorte! Estranha condio!(IV, 104)

    Vocabulrio e Notas1 Experto: experiente, sbio.2 Exprimentas: experimentas.3 Ismaelita: referente a Ismael, filho de

    Abrao, segundo o Velho Testamento.4 Pola: pela.5 Seco lenho: embarcao, navio.6 Profundo: inferno.7 Filho de Jpeto: Prometeu.8 Miserando: digno de pena.9 Grande arquitector com o filho: Ddalo

    (da mitologia grega) e seu filho, caro.

    MDULO 7 Barroco

    1. CONCEITO E MBITO

    A apreciao do Barrocooscila entre a recusa e a posi-o negativista dos crticosque acusam o estilo de rebuscado,

    artificial e vazio de contedo e aapologia entusiasmada de ou-tros, maravilhados com a engenho-sidade e sutileza da linguagem arts-tica barroca, voltada para a novida-de, para a aluso, para a suges-to e para a iluso, entendida comofuga da realidade convencional.

    Em sentido amplo, tomado comoconstante universal, no homem e naarte, barroco designa um conjunto de

    caractersticas estticas e formais que,aparentemente, ressurgem em certaspocas, como no Helenismo, noGtico flamejante, no sculo XVII, noRomantismo e no Impressionismo, mar-cadas pela tendncia intensifica-o, ao exagero, e pela nsia de ex-pressar a tenso e a irregularidade.

    O Barroco designa as caracters-ticas que assumem a arte e a culturaseiscentistas, condiciona das, de incio,pelo Absolutismo e pela Contrar-

    reforma, incluindo, depois, manifes-

    taes liberais do protestantismo eracionalismo na Inglaterra, Holanda eFrana. Nessa dimenso, o Barrocodesigna um certo nmero de estrutu-ras formais que tendem a fundir e aconciliar atitudes opostas, correspon-

    dentes coexistncia e interdepen-dncia, mesmo conflituosa, de formassociais profundamente diferentes naEuropa. Essa nsia de fuso dos con-trrios fornece os principais elemen-tos para a cosmoviso do Barroco:

    1) na Filosofia, a passagem deuma concepo finitista e esttica domundo para uma concepo infini-tista, energtica e dinmica, comPascal, Newton e Giordano Bruno;

    2) nas Artes Plsticas, essansia de expressar o movimento, aprofundidade e a irregularidade pro-jeta-se em Michelngelo, Bernini,Rubens, Velsquez, El Greco, Cara-vaggio, Rembrandt, Tintoretto eZurbarn, na criao de um espaotumultuado que busca sugerir atmos-feras ora msticas, ora imprecisas,repletas de elementos ornamentais epormenores significativos;

    3) na Msica, esse mesmo sen-

    tido de profundidade labirntica e dilui-

    o do espao perceptvel em Vitria,Palestrina, Bach e Haendel, no vir-tuosismo dos esquemas polifnicos,geradores do contraponto e da fuga.

    Em sentido mais restrito, es-pecialmente espanhol, Barroco a

    expresso artstica e literria da Con-trarreforma catlica e do absolutismodas cortes dos Habsburgos. Expres-sa a dualidade cultural da Contrar-reforma: Humanismo renascentista(valorizao da cultura pag domundo greco-latino) mais a religiosi-dade tridentina, gerada na estufa danobreza e do clero romano, espanhol,austraco e portugus (valorizaoda cultura crist do mundo medieval).

    A dualidade, o bifrontismo (Teo-centrismo x Antropocentrismo, F xRazo, Cu x Terra, Alma x Corpo,Virtude x Prazer, Ascetismo x He-donismo, Cristianismo x Paganismo),faz do Barroco ibrico-jesutico a ex-presso de um sentimento de dese-quilbrio, de frustrao e de instabili-dade, relacionado com a repressoinquisitorial, com o terror poltico e re-ligioso e com a decadncia do mun-do catlico, abalado com a derrota

    da invencvel Armada, em 1588.

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    A transio do ideal clssico parao barroco definida por HeinrichWlfflin, em termos de uma passagem

    1) do linear ao pictrico,ncluindo o pitoresco e o colorido;

    2) da viso de superfcie viso de profundidade, implican-do o desdobramento de planos e mas-sas;

    3) da forma fechada for-ma aberta, denotando as perspec-ivas mltiplas do observador;

    4) da multiplicidade uni-dade, subordinando vrios aspectosa um nico sentido;

    5) da clareza absoluta dosobjetos clareza relativa, a su-gerir formas de expresso esfuma-das, ambguas, no finitas.

    2. CARACTERSTICASESTTICO-ESTILSTICAS

    O dualismoO Barroco a arte do conflito, do

    contraste, da contradio, do dilema,e da dvida, que se expressam peloacmulo de antteses, parado-xos e oxmoros.

    O fusionismo

    O artista barroco no se limita aexpor os contrrios; quer concili-los,undi-los, integr-los por meio das fi-

    guras de linguagem:Incndio em mares de gua dis-

    arado; / Rio de neve em fogo con-vertido.

    O fesmoExpressando uma poca de in-

    certeza, de represso, de obscuran-ismo, o homem barroco tem acen-

    uada predileo pelos aspectoscruis, dolorosos e sangrentos, pelobelo horrendo, pelo espetculo tr-

    gico, deformando as imagens peloexagero, a resvalar o grotesco.

    O pessimismoVivendo na rbita do medo e da

    dvida, o Barroco manifesta-se poruma viso desencantada do mundo.Como na Idade Mdia e no Roman-

    ismo, a morte uma constante preo-

    cupao, ao lado da conscincia dafugacidade do tempo, e da incertezae inconstncia da vida.

    A religiosidadeProjetando uma poca de intensos

    conflitos espirituais, o tema religiosoaparece muitas vezes mesclado coma sensualidade; as alegorias bblicas

    do Antigo e do Novo Testamento mis-turam-se com a mitologia pag; a fcrist e o misticismo aliam-se ao racio-nalismo, no arrependimento e na bus-ca do perdo. Os argumentos lgicossobrepem-se revelao mstica ea conscincia do pecado no inibe aesperana de salvao. uma reli-giosidade tensa e conflituosa.

    Atitude ldica

    O propsito da arte barroca ,muitas vezes, o de surpreender o lei-tor pelo virtuosismo, pela engenhosi-dade, enredando-o em verdadeiroslabirintos de imagens e ideias. Mani-pulando as palavras, abusando dasfiguras de linguagem, privilegia o as-pecto formal, o significante, emdetrimento do significado. Assim,alguns textos barrocos parecemvazios de contedo, meros pretextospara o artista exibir a sua habilidadena explorao de sutilezas, detrocadilhos e de construesinusitadas. Esse niilismo temtico,essa pobreza de contedo maisfrequente no aspecto gongrico oucultista do Barroco.

    3. O BARROCOCULTISTA OU GONGRICO

    Denomina-se cultismo ou cultera-

    nismo o aspecto do Barroco voltadopara o jogo de palavras, para orebuscamento da forma, para a orna-mentao estilstica, para o precio-sismo lingustico, para a erudio mi-nuciosa. Retrata-se a realidade demodo indireto, realando mais a ma-neira de representar que propriamen-te o apresentado. Constitui o aspectosensual do Barroco, voltado para adescrio do mundo por meio das

    sensaes (analogias sensoriais =

    metforas), num estado de verda-deiro delrio cromtico, apoiado emsugestes intensivas de cores e desons. Esse processo de identificao(ilusria, sensorial, no racional)apoia-se nos jogos de palavras, nostrocadilhos, nos enigmas, nas met-foras e nas perfrases ou circunl-quios (= torneio em redor do termo

    prprio e adoo de muitas palavraspara evit-lo). Assim, em vez de l-grima, o barroco diz o cristal dosolhos; em vez de dentes, as prolasda boca; em vez de leque, o zfiromanual. O abuso artificioso da fan-tasia no campo psicolgico da repre-sentao sensvel faz do poeta gon-grico um verdadeiro alquimista, quebusca extrair do real uma naturezasupranatural, imaterial e arbitrria.

    O aspecto exterior, imediata-mente perceptvel, no Barroco cultis-ta ou gongrico, o abuso no empre-go de figuras de linguagem.

    A serpe1, que adornando vrias cores2,Com passos mais oblquos3, que serenos,Entre belos jardins, prados amenos, maio errante de torcidas flores4;

    Se quer matar da sede os desfavores5,Os cristais6bebe coa peonha7menos,Por que no morra cos mortais venenos,Se acaso gosta8dos vitais licores9.

    Assim tambm meu corao queixoso,Na sede ardente do feliz cuidado,Bebe cos olhos teu cristal10 fermoso11;

    Pois para no morrer no gosto amado,Depe logo o tormento venenoso,Se acaso gosta o cristalino agrado12.

    (Manuel Botelho de Oliveira)

    Vocabulrio e Notas1 Serpe: cobra, serpente.2 Adornando vrias cores: perfrase de co-

    lorida.3 Passos ... oblquos: coleante, como o movi-

    mento da serpente.4 maio errante de torcidas flores: multico-

    lorida, a serpe to colorida quanto aprimavera (maio, na Europa); torcidasflores sugere a imagem de cores emespiral, pelo movimento coleante daserpente (passos oblquos).

    5 Se quer matar da sede os desfavores: perfrase de se quer beber gua.

    6 Cristais: metfora de gua.

    TEXTO I

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    7 Peonha: veneno; os cristais bebe coapeonha menos bebe gua, mas sem oveneno que nela se deposita.

    8 Gostar: beber, provar.9 Vitais licores: gua.10 Cristal: brilho, beleza.11 Fermoso: formoso.12 Gosta o cristalino agrado: aqui o verbo

    gostar est em lugar de ver: v o rostoamado.

    4. O BARROCO CONCEPTISTA

    O conceptismo, ou concep-tualismo, o aspecto construtivodo Barroco, voltado para o significa-do, para ojogo de ideias, para aargumentao sutil, para a dia-ltica cerrada. Configura a atitu-de intelectual do Barroco, o seumodo de reconhecer e conceituar osobjetos. Opera por meio de trocadi-

    lhos, de associaes inesperadas edos mecanismos da Lgica: o silo-gismo, o sofisma e o paradoxo. Hum constante esforo dialtico orien-tando a organizao convincentedas ideias. A um certo caos plstico(cultismo) ope-se a ordem raciona-lista (conceptismo). H uma tese ademonstrar e o interlocutor tem deser convencido.

    Enquanto o cultismo (gongoris-

    mo) procura apreender o como dosobjetos, por meio da captao (des-crio) de seus aspectos sensoriaise plsticos (contorno, forma, cor, vo-lume), num verdadeiro frenesi crom-tico e imagtico, o conceptismo pes-quisa a essncia dos objetos, bus-cando saber o que so, buscandoapreender a face oculta das coisas,apenas acessvel ao pensamento, ouseja, aos conceitos. O cultismo e o

    conceptismo no podem ser vistoscomo polos construtivos opostos.Como observou Dmaso Alonso,esta paixo barroca, podera-mos dizer que o Gongorismo aexpressa como uma labaredapara fora e o Conceptismo co-mo uma reconcentrao paradentro. So como duas faces deuma mesma moeda chamada Bar-roco. Costuma-se dizer que oconceptismo predomina na prosa e o

    gongorismo, na poesia. Esta noo

    falsa. H conceptismo, por exemplo,na poesia sacra e reflexivo-filosficade Gre grio de Matos, uma varianteda poesia a lo divino, dos msticosespanhis, em que o Homem divinizado e Deus humanizado, pormeio de sutilezas conceituais, naesteira de Quevedo, modelo concep-tista muito reproduzido em Portugal e

    no Brasil.O conceptismo a vertente bar-

    roca mais diretamente influenciadapela viso de mundo da Companhiade Jesus, pela f inaciana e contrar-reformista: os recursos da lgica aris-totlica e tomista postos a servio doconvencimento religioso; a expres-so da angstia de ter ou no ter f,de amar a Cristo e revoltar-se contrasuas determinaes. Evitando a apa-

    rncia brilhante do cultismo, o con-ceptismo procura economizar pala-vras e imagens. Mas tm em comumo desejo de surpreender pela novida-de, pela excentricidade, requerendoambos do leitor um elevado grau deateno, dado o obscurantismo deli-berado, a propor verdadeiros labi-rintos de imagens e ideias.

    ACHANDO-SE UM BRAO PERDIDO DOMENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS,

    QUE DESACATARAMINFIIS NA S DA BAHIA

    O todo sem a parte no todo;A parte sem o todo no parte;Mas se a parte o faz todo, sendo parte,No se diga que parte, sendo o todo.

    Em todo o Sacramento est Deus todo,E todo assiste inteiro em qualquer parte,

    E feito em partes todo em toda a parte,Em qualquer parte sempre fica o todo.

    O brao de Jesus no seja parte,Pois que feito Jesus em partes todo,Assiste cada parte em sua parte.

    No se sabendo parte deste todo,

    Um brao que lhe acharam, sendo parte,Nos diz as partes todas deste todo.

    (Gregrio de Matos)

    Vocabulrio e Notas1 Parte: nada.

    Comentrio A propsito do achamento de um brao

    de uma esttua perdida de Cristo, o poeta,partindo de constataes bvias (versos 1-2: otodo depende da parte e a parte, do todo),desenvolve um raciocnio sutil e paradoxal(versos 3-4: se a parte que faz o todo, a parte tudo essencial para que haja o todo),exemplifica com um artigo de f (Deus estinteiro em cada hstia, que parte de seucorpo), chegando concluso de que o brao

    da imagem de Cristo vale no apenas comoparte, mas como a imagem toda.

    VOS ESTIS SAL TERRAE Math., V, 13

    Vs, diz Cristo Senhor nosso, falando comos Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que faam naterra o que faz o sal. O efeito do sal impedira corrupo, mas quando a terra se v to

    corrupta como est a nossa, havendo tantosnela que tm ofcio de sal, qual ser ou qualpode ser a causa desta corrupo? Ou por-que o sal no salga, ou porque a terra se nodeixa salgar. Ou porque o sal no salga, e osPregadores no pregam a verdadeira doutrina;ou porque a terra se no deixa salgar, e osouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhesdo, a no querem receber; ou porque o salno salga, e os Pregadores dizem uma coisa efazem outra, ou porque a terra se no deixasalgar, e os ouvintes querem antes imitar o queeles fazem, que fazer o que dizem: ou

    porque o sal no salga, e os Pregadores sepregam a si, e no a Cristo; ou porque a terrase no deixa salgar, e os ouvintes, em vez deservir a Cristo, servem a seus apetites. No tudo isto verdade? Ainda mal. ()

    (Padre Antnio Vieira,Sermo de Santo Antnio aos Peixes)

    Comentrio A partir de um conceito predicvel,

    extrado da citao bblica, Vieira desenvolveo raciocnio explorando as possibilidadessugeridas pelo tema, por meio de antteses eassociaes de ideias que, dispostas emmovimento circular, vo sendo retomadas eampliadas. A estrutura paralelstica revela-seem vrias oraes Ou porque o sal nosalga, ou porque a terra se no deixa salgar.

    O ttulo, Sermo de Santo Antnio aosPeixes, indicia o fato de que, alegoricamente,Vieira ir falar aos peixes, que agrupam, se-gundo ele, categorias humanas. Parte da lendamedieval segundo a qual o franciscano SantoAntnio, numa de suas pregaes, no sendoouvido pelos homens, lana a sua palavra ilumi-nada na praia deserta, e os peixes levantam acabea superfcie das guas, como sinal da

    fora da palavra do santo pregador.

    TEXTO III

    TEXTO II

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    1. PADRE ANTNIO VIEIRA(Lisboa, 1608 Bahia, 1697)

    Pregador da Companhia de Jesusque exerceu intensa atividade comomissionrio no Brasil, nas diversas

    vezes em que aqui esteve. A servioda Coroa Portuguesa, foi como embai-xador Frana, Holanda e Itlia. NaEuropa, foi perseguido pela Inquisiopor suas ideias favorveis em relaoaos judeus. Chegou a ser expulso doMaranho por opor-se aos colonosque queriam escravizar os ndios.Brilhou como pregador na Itlia, nacorte da rainha Cristina da Sucia. Noim da vida, dedicou-se a compilar ossermes que havia pronunciado.

    Alm dos sermes, sua obra in-clui trs volumes de cartas e obrasprofticas, como Histria do Futuroe,em latim, Clavis Prophetarum(Chavedos Profetas), ainda indita.

    Estrutura dos sermesOs sermes de Vieira tm estru-

    ura tradicional: proposio do tema, em ge-

    al trecho da Bblia; introito, em que expe o pla-

    no segundo o qual se desenvolver osermo;

    invocao, geralmente, Nossa Senhora;

    argumentao, que consis-e no desenvolvimento do tema e in-

    clui exemplos e sentenas; perorao ou eplogo.

    2. SERMO DA SEXAGSIMA

    Pregado na Capela Real de Lis-

    boa, em 1655, o Sermo da Sexag-sima uma teorizao sobre a artede pregar, um sermo sobre o ser-mo, uma aula de oratria sacra. Porsso, Vieira o escolheu para abrir suaobra, como um prefcio, ou uma de-clarao de princpio. uma defesado conceptismo, um ataque aos exa-geros do barroco cultista ou gon-grico. O tema do sermo extradode uma passagem bblica escolhidapara a ocasio: Semen est verbum

    Dei(So Lucas, Vlll, 11), ou seja, A

    semente a palavra de Deus. Trans-formando o tema em pergunta, opregador indaga: E se a palavra deDeus to poderosa e to eficaz, co-mo vemos to poucos frutos dapalavra de Deus?

    Depois de considerar todas ascondies pelas quais a palavra deDeus no pode frutificar, passa a de-finir as qualidades exigveis de umpregador:

    Mas como em um pregador h tantasqualidades, e em uma pregao tantas leis, eos pregadores podem ser culpados em todas,em qual consistir essa culpa? No pregadorpodem-se considerar cinco circunstncias: a

    pessoa, a cincia, a matria, o estilo, a voz.

    No quinto captulo inicia o ata-que ao preciosismo da oratriagongrica, investindo contra os exa-geros or namentais praticados pormuitos sermonistas, especialmente odominicano Frei Domingos de S.Toms: O estilo culto no escuro, negro, e negro boal e muito cer-rado. condenao do gongorismosegue-se a defesa do conceptismo e

    do primado da lgica, da clareza, dorigor da sintaxe e do pensamento:

    H de tomar o pregador uma s matria,h de defini-la para que se conhea, h dedividi-la para que se distinga, h de prov-lacom a Escritura, h de declar-la com a razo,h de confirm-la com o exemplo, h deamplific-la com as causas, com os efeitos,com as circunstncias, com as conveninciasque se ho de seguir, com os inconvenientes

    que se devem evitar; h de responder sdvidas, h de satisfazer s dificuldades, hde impugnar e refutar com toda a fora daeloquncia os argumentos contrrios, e depoisdisso h de colher, h de apertar, h deconcluir, h de persuadir, h de acabar.

    (...)

    As razes no ho de ser enxertadas, hode ser nascidas. O pregar no recitar. Asrazes prprias nascem do entendimento, asalheias vo pegadas memria e os homensno se convencem pela memria, seno pelo

    entendimento.

    Encaminhando-se para a pero-rao (ou eplogo), lembra que ospregadores pregam palavras deDeus, mas no pregam a palavra deDeus e finaliza advertindo:

    Semeadores do Evangelho, eis aqui oque devemos pretender nos nossos sermes,no que os homens saiam contentes de ns,seno que saiam muito descontentes de si; noque Ihes paream bem os nossos conceitos,mas que Ihes paream mal os seus costumes,as suas vidas, os seus passatempos, as suasambies e, enfim, todos os seus pecados.

    3. SERMO DE SANTOANTNIO AOS PEIXES

    Pregado em So Lus do Mara-nho, em 1654, revela fina ironia, rique-za nas sugestes alegricas e agudosenso de observao sobre os vciose vaidades do homem, comparando-o, por meio de alegorias, aos peixes.

    Critica a prepotncia dos gran-des que, como peixes, vivem do sa-crifcio de muitos pequenos, os quaisengolem e devor