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Educação Inclusiva no Sistema Regular de Ensino Cristina Nacif Alves O Caso do Município do Rio de Janeiro Educação Inclusiva no Brasil 1 Banco Mundial – Cnotinfor Portugal 1.1. Educação Inclusiva no sistema regular de Ensino: o Caso do Município do Rio de Janeiro Elaborado por: Cristina Nacif Alves 1.1.1. Apresentação O presente estudo foi levado a efeito a convite do Banco Mundial, com o objetivo de proceder à identificação de concepções e características gerais que vêm orientando a organização da Educação Inclusiva no Município do Rio de Janeiro e de indicar possibilidades de ação e de suporte teórico capazes de ancorar o pressuposto de que o sujeito portador de deficiência tem direito à educação escolar com a qualidade que garanta o seu pleno desenvolvimento. 1.1.2. O Caminho Teórico-metodológico O Banco Mundial, ao solicitar a realização dessa pesquisa sobre a situação da Educação Inclusiva no Município do Rio de Janeiro, tinha como preocupação a escolha de um aporte metodológico que se mostrasse adequado à escassez de tempo e, ainda, que se inscrevesse no rol das abordagens qualitativas. Ou seja, precisava-se escolher um caminho metodológico capaz de abarcar os limites de tempo e a complexidade de questões consideradas importantes nos campos político, ideológico e técnico em que a Educação Especial se encontra imersa. Optou-se por realizar um estudo de natureza exploratória, uma vez que sua principal característica é proporcionar “pistas” para um exame teórico consistente e permitir o levantamento de hipóteses de trabalho a serem enfrentadas em estudos posteriores. A escolha de uma metodologia encontra-se ligada a uma dada concepção teórica. No nosso caso, os princípios que vão ancorar o estudo denomina-se abordagem qualitativa. A expressão abordagem qualitativa se faz presente, no contexto desse Estudo Exploratório, com o objetivo de demarcar a importância da pesquisa não estar vinculada à identificação de fatos supostamente neutros a serem coletados, mas referida a valores, opiniões e concepções teóricas que informam a configuração da Educação Especial no Município do Rio de Janeiro. Para tal, os procedimentos técnicos adotados no curso do trabalho estão de acordo com a perspectiva qualitativa e incluíram: 1. a realização de entrevistas – com membros da equipe administrativa e com professores; 2. a análise de fontes documentais 3. o relato de experiências – de impactos para a inclusão dos alunos portadores de deficiências.

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Educação Inclusiva no Sistema Regular de Ensino Cristina Nacif Alves O Caso do Município do Rio de Janeiro

Educação Inclusiva no Brasil 1 Banco Mundial – Cnotinfor Portugal

1.1. Educação Inclusiva no sistema regular de Ensino: o Caso do Município do Rio de Janeiro

Elaborado por: Cristina Nacif Alves

1.1.1. Apresentação

O presente estudo foi levado a efeito a convite do Banco Mundial, com o objetivo de proceder à identificação de concepções e características gerais que vêm orientando a organização da Educação Inclusiva no Município do Rio de Janeiro e de indicar possibilidades de ação e de suporte teórico capazes de ancorar o pressuposto de que o sujeito portador de deficiência tem direito à educação escolar com a qualidade que garanta o seu pleno desenvolvimento.

1.1.2. O Caminho Teórico-metodológico

O Banco Mundial, ao solicitar a realização dessa pesquisa sobre a situação da Educação Inclusiva no Município do Rio de Janeiro, tinha como preocupação a escolha de um aporte metodológico que se mostrasse adequado à escassez de tempo e, ainda, que se inscrevesse no rol das abordagens qualitativas. Ou seja, precisava-se escolher um caminho metodológico capaz de abarcar os limites de tempo e a complexidade de questões consideradas importantes nos campos político, ideológico e técnico em que a Educação Especial se encontra imersa.

Optou-se por realizar um estudo de natureza exploratória, uma vez que sua principal característica é proporcionar “pistas” para um exame teórico consistente e permitir o levantamento de hipóteses de trabalho a serem enfrentadas em estudos posteriores.

A escolha de uma metodologia encontra-se ligada a uma dada concepção teórica. No nosso caso, os princípios que vão ancorar o estudo denomina-se abordagem qualitativa.

A expressão abordagem qualitativa se faz presente, no contexto desse Estudo Exploratório, com o objetivo de demarcar a importância da pesquisa não estar vinculada à identificação de fatos supostamente neutros a serem coletados, mas referida a valores, opiniões e concepções teóricas que informam a configuração da Educação Especial no Município do Rio de Janeiro.

Para tal, os procedimentos técnicos adotados no curso do trabalho estão de acordo com a perspectiva qualitativa e incluíram:

11.. a realização de entrevistas – com membros da equipe administrativa e com professores;

22.. a análise de fontes documentais

33.. o relato de experiências – de impactos para a inclusão dos alunos portadores de deficiências.

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1.1.3. Breve Histórico da Educação Especial no Município do Rio de Janeiro após a criação do Instituto Helena Antipoff

A Educação Especial tem seu início no Município do Rio de Janeiro em 1959, quando a Lei 953 é decretada, vinculando a atenção ao excepcional1 à Secretaria Municipal de Educação e Cultura, através da Assessoria de Educação Especial. Quando, então, Equipes Técnicas de Educação Especial são criadas em todo o Município do Rio de Janeiro.

Porém, não iremos nos deter à história da Educação Especial desde seu início; estabeleceremos um recorte a partir do marco iniciado pelo Instituto Helena Antipoff – IHA.

Numa 4ª feira, dia 14 de Agosto de 1974, o Diário Oficial do Estado da Guanabara faz a seguinte publicação: “Passa a denominar-se Instituto de Educação do Excepcional Helena Antipoff o atual Instituto de Educação do Excepcional, do departamento de Ensino de 1º Grau, da Coordenação de Ensino, da Secretaria de Educação”. E o Decreto nº 15 de 23/05/1975 regulariza a nova estrutura orgânica da Secretaria Municipal de Educação e Cultura: Departamento Geral de Educação / Assessorias Departamentais / Assessoria de Educação Especial – Instituto Helena Antipoff (IHA).

Em 1975, o IHA inicia sua gestão, privilegiando a integração do excepcional na comunidade, através de uma assistência médica e pedagógica, segundo as doutrinas da política educacional, ressaltadas na Constituição do Estado. Durante esse ano, a atenção ao portador de deficiência se resumia a três ações superpostas: Projeto Educação especial; instituto Helena Antipoff e Centro de Terapia da Palavra. Nessa época, havia pouca garantia de matrículas, tanto nas Escolas especiais quanto nos Centros Ocupacionais, além da falta de profissionais especializados e falta de materiais adequados ao trabalho. Justamente por isso, numa tentativa de resolução dos problemas encontrados, a estrutura da Educação Especial passa a centralizar suas ações num só órgão: o IHA – o que possibilitou o levantamento do número de alunos que esperavam por vagas nas instituições e os devidos encaminhamentos. A nova estruturação também provocou ações voltadas para a formação de profissionais – professores e técnicos –, a partir da realização de centros de estudos e cursos de atualização. Para a realização dessas ações o IHA contou com Equipes Técnicas nas seguintes modalidades:

deficientes visuais (DV);

deficientes da audiocomunicação (DA);

superdotados (SD);

serviço social (SS);

audiovisual;

deficientes mentais (DM);

deficientes físicos (DF);

aprendizagem lenta (AL);

avaliação;

centro de estudos.

1 Termo usado, na época, para designar o portador de deficiências.

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Educação Inclusiva no Brasil 3 Banco Mundial – Cnotinfor Portugal

Em 1976, a concepção de Educação Especial sofre uma mudança significativa, além da valorização da integração social do portador de deficiência, passa a visar ao processo de integração no Ensino Comum. A maior preocupação com a oportunidade de educação para os deficientes se traduz em ações voltadas para: o aumento de vagas no sistema de ensino; a atualização de profissionais (700 – entre professores, técnicos e supervisores); a pesquisa; o desenvolvimento de instrumentos de avaliação; e a instalação de equipamentos especializados.

O ingresso do deficiente na Educação Especial se dava ou por solicitação do responsável ou pelo encaminhamento feito pelos Postos de Saúde. Portanto, não havia, ainda, a existência de uma política pública voltada para a totalidade das demandas do educando, mas, apenas, uma preocupação de atendimento aos que de uma forma ou de outra chegassem à Educação Especial. Aqui, ainda, encontramos um serviço focado na visão clínica e na deficiência da criança e do jovem, a partir de uma concepção de carência, de falta, sem que os direitos individuais tivessem expressão. No plano das práticas sociais, pode-se citar as dificuldades de acessibilidade, permanência e qualidade em termos de Educação, uma vez que a política privilegiava uma ação assistencialista, em detrimento de uma prática educacional. O trabalho desenvolvido se resumia nas seguintes modalidades de ensino: profissionalizante e estágios em empresas do mercado de trabalho para jovens dos Centros Ocupacionais; inserção de alunos com aprendizagem lenta em classe comum – cujo professor era supervisionado pelo IHA; atendimento precoce, núcleos de atendimento diário e professor itinerante para os deficientes da audiocomunicação; classes hospitalares de recuperação pedagógica e psicomotora para os deficientes físicos, bem como atendimento precoce, domiciliar ou em turmas comuns, com supervisão do IHA ao professor; classes especiais, de no máximo 10 alunos, para deficientes mentais; classes especiais (máximo 10 alunos), salas de recurso, ensino itinerante para o deficiente da visão; núcleos de enriquecimento para os alunos com notável desempenho – superdotados – duas vezes por semana, durante 2h e meia, fora do horário de aula; atendimento especializado para os alunos com distúrbio de voz, fala e linguagem, em 15 unidades de Terapia da Palavra2.

Em 1977, uma Ordem de Serviço, a de n.º 13 de 30/09/1975, passa a ser cumprida, ampliando a estrutura básica para o atendimento educacional ao aluno multideficiente. Nessa ocasião, a partir dos estudos de casos realizados, uma preocupação com as atividades curriculares gera a necessidade da criação de um currículo específico para cada tipo de deficiência.

Em 1978, a Educação Especial tinha como objetivo geral atender à necessidade de compatibilização entre as ações desenvolvidas pelos profissionais dos Postos de Saúde e as das Unidades Escolares sob a orientação do IHA, caracterizando uma prática voltada para: a iniciação para o trabalho e formação profissional do jovem deficiente; o desenvolvimento pleno das potencialidades dos alunos superdotados; a realização de diagnósticos, estudos, pesquisas e experimentações para a melhoria do trabalho com o deficiente; a atualização e o treinamento de recursos humanos na área da Educação Especial; a promoção da integração efetiva do excepcional; e o apoio ao professor de classe comum com dificuldades a serem minimizadas pelos procedimentos compensatórios da política de Educação Especial.

2 Os conceitos usados neste parágrafo estão de acordo com as concepções teóricas que referenciavam a

proposta pedagógica da época.

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Em 1979, uma avaliação do currículo escolar vigente é proposta pela Secretaria de Educação com o objetivo de ampliar a produtividade do Sistema Educacional. A Educação Especial, então, propõe uma mudança do modelo pedagógico tradicional médico-psicológico adotado para o modelo comportamental, cuja prática recaía no diagnóstico prescritivo, na análise de tarefas e na individualização do ensino.

1980: um ano de grandes mudanças. O número de alunos da Educação Especial crescia: já eram 19.434, sendo 3.885 portadores de alguma deficiência, enquanto 15.549 alunos com dificuldades de aprendizagem. O que se pode aferir desses dados é que a Educação Especial estava sendo receptora de uma grande parcela do chamado fenômeno do “Fracasso Escolar”. Aqui, cabe um parêntese sobre o panorama nacional da Educação: as estatísticas nacionais do Censo de 1980 apontam que, de cada 1000 criança que entram na escola na 1ª série, menos da metade chega à 2ª, menos de um terço atinge a 4ª e menos de um quinto conclui o 1º grau. A repetência e a evasão escolares caracterizam uma política educacional insatisfatória, tanto do ponto de vista quantitativo como do qualitativo. O que, possivelmente, justificou a criação, nesse ano, de Pólos de Psicomotricidade e de Classes de Adaptação (CAD), cujo objetivo era o de favorecer a aprendizagem dos alunos, minimizando as dificuldades de alfabetização, através de atividades específicas e preventivas com esses alunos, na tentativa de apoiar o professor de classe comum.

Em 1981 e 1982, a Educação Especial desenvolve suas ações numa perspectiva preventiva, através de uma equipe denominada Dificuldades de Aprendizagem, que, com um trabalho sistemático de supervisão, se aproxima mais do professor, configurando um treinamento em serviço. Tal treinamento teve como base teórica o texto “Princípios de Normalização e de Integração na Educação dos Excepcionais”, cuja concepção revela que a intenção não era a de tornar o excepcional normal, mas a de oferecer condições de vida idênticas àquelas que as pessoas normais recebem. Aqui, duas importantes ações são estabelecidas: uma maior preocupação com a qualidade de ensino e uma articulação entre teoria e prática, na tentativa de superação das dificuldades e entraves da Educação Especial – o que, certamente, influenciou o desenvolvimento de novas metodologias e técnicas.

No ano de 1983, novas concepções de educação e de sociedade suscitam mudança na Educação Especial. Daí, então, emerge um questionamento: qual o conceito que se tem de aprendizagem? A resposta: “a aprendizagem é mudança de comportamento e quem opera essas mudanças é o ensino” (CUNHA, 1999). Até o presente momento, a não aprendizagem por parte do aluno era concebida como conseqüência da ausência de condições individuais básicas para tal, sendo a função da escola a de adaptar, ajustar esse aluno à sociedade, conforme suas aptidões e características pessoais. O fracasso escolar era explicado como conseqüência das condições inatas do próprio aluno para a aprendizagem. Assim, para esse tipo de ideologia, “não é a escola que se volta contra o povo, é este que se volta contra a escola, por incapacidade de responder adequadamente às oportunidades que lhe são oferecidas.” (SOARES, 1989: 10)

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Nesse momento, uma nova visão toma conta das práticas do IHA: a responsabilidade pela não aprendizagem passa da criança para a equipe escolar. A reflexão acerca dos referenciais de educação aponta para métodos e procedimentos inadequados à aprendizagem dos alunos. O IHA centra suas ações nos princípios da Integração, investindo maciçamente na produção de materiais e no acompanhamento pedagógico. Com isso, um grande avanço é conquistado, pois o IHA deixa de receber os alunos chamados deficientes mentais educáveis – vítimas do fenômeno do fracasso escolar –, permanecendo, apenas, na sua estrutura, a atenção aos deficientes mentais treináveis.

Em 1984, a Secretaria de Educação cria, na estrutura do ensino regular, as Classes de Alfabetização (CA), destinadas à criança de 6 anos que entrasse no sistema de ensino. É possível que isso tenha ocorrido em função de uma demanda gerada pela nova postura do IHA em não mais atender às dificuldades de aprendizagem ocorridas na 1ª série.

Em 1985, nova reestruturação marca a Educação Especial, a partir do término da Assessoria de Educação Especial, cuja função foi assumida pelo IHA, que cria o Grupo de Análise Institucional (GAI). A nova estrutura contou com Centros Ocupacionais, Classes em Cooperação, Unidades de Fonoaudiologia, Classes Hospitalares, Classes Especiais, Salas de Recursos e Escola Especial.

Nesse mesmo ano, o IHA lança mais um questionamento sobre a Educação Especial, cujo conteúdo se referia à competência social do deficiente. Então, publica um documento com sugestões de atividades para viabilizar comportamentos adaptativos – o que exigiu uma reorganização curricular voltada para situações reais de vida, com o objetivo de ampliar o desempenho do deficiente em seu cotidiano.

Em 1986, tanto a estrutura como a organização se mantêm, mas o planejamento anual se aproximou mais da Educação Regular. Ainda que os princípios educativos da Educação Especial continuassem sendo os da normatização, da integração e da simplificação, o IHA se volta para o desenvolvimento de pesquisas que pudessem garantir a qualidade do ensino aos deficientes. Emerge, então, um Projeto destinado a desenvolver procedimentos para a implementação de uma política de eqüidade, eficiência e efetividade no que tange à educação dos deficientes. Os objetivos desse projeto apontam tanto para o aspecto qualitativo da educação (aumento do número de vagas), quanto para o qualitativo (valorização do processo pedagógico).

Em 1987, pela primeira vez, o calendário de matrículas para as Escolas Municipais incluiu a matrícula para o deficiente na mesma época que os demais alunos. Outra mudança importante, que aproxima a Educação especial da Escola Regular, foi a transformação dos Centros Ocupacionais em Escolas Especiais.

Em 1988, em conseqüência das reflexões, do aprofundamento teórico e do desenvolvimento de projetos práticos, o IHA ampliou seu quadro técnico, criando Grupos de Trabalho por áreas específicas e caracterizando, cada vez mais, uma ação multidisciplinar para a atenção ao deficiente.

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Nesse momento, as concepções de Educação Especial assumiam um discurso crítico em relação à escola, cuja função estava sendo a de legitimar as desigualdades sociais, negando a diversidade, favorecendo, assim, a exclusão. O IHA engajou-se, então, na defesa dos direitos fundamentais da educação, da emancipação e da cidadania – rumo à Escola Inclusiva.

Em 1989, nova estruturação administrativa e pedagógica foi realizada. A organização passa a funcionar com Programas de Atendimento Específico à pessoa portadora de deficiência. Os programas, em número de sete, se denominavam: Deficiência da Audiocumunicação, Deficiência da Visão, Superdotação, Precoce e Pré-escolar, Deficiência Física / Psicomotricidade, Escolas Especiais e Classes Especiais. A maioria desses programas funcionava dentro da Escola Regular como sala de recursos ou classes especiais, com exceção das Escolas Especiais, cuja clientela era o portador de graves comprometimentos.

Nessa época, a Educação especial vive uma contradição muito grande, ao passo que se aproxima da Educação Regular, recebe uma enorme quantidade de alunos indicados para as Classes Especiais de RM. Esses alunos, entretanto, em sua maioria, não eram deficientes mentais, mas vítimas do Fracasso Escolar, das chamadas “dificuldades de aprendizagem” que acabavam compondo as Classes Especiais, enquanto o deficiente nem sempre tinha acesso à matrícula. A procura pelo Ensino Especial se justificava pelo ótimo desempenho que os alunos que freqüentavam as Classes Especiais tinham na Alfabetização, pois acreditava-se que os grupamentos reduzidos é que davam conta de corrigir as dificuldades, em função de uma atenção mais específica e individualizada. Essa realidade impõe uma reflexão sobre as práticas educacionais.

Esse foi um ano de mudanças: o modelo Comportamentalista de educação deixa de fazer parte da proposta pedagógica, cedendo lugar ao modelo Construtivista fundamentado na teoria de Piaget. Isso marca uma nova concepção de desenvolvimento e de aprendizagem, que deixa de ser encarada como treinamento, passando a ser vista como processo individual. Com base no novo paradigma de educação, o IHA realizou estudos e capacitações intensivas com o intuito de transformar as práticas pedagógicas com o deficiente3.

Os anos de 1990 e 1991 corroboraram as perspectivas educacionais anteriormente propostas, resultando na preparação, no desenvolvimento e na publicação de documentos que objetivavam veicular informações sobre a proposta pedagógica para a realização da prática docente com o deficiente, ressaltando que a Educação Especial não era um sistema paralelo, mas integrante do sistema geral de Educação.

No ano de 1992, o IHA realizou o I Encontro Nacional de Educação Especial, promovendo a discussão de temas relevantes ao Ensino da pessoa portadora de deficiências, tais como: Especificidades da Educação Especial, Construção do Conhecimento, Construtivismo e Educação Especial, Saúde e Educação, Fracasso Escolar, Sistemas de Integração – Sociedade, Família e Escola, Alternativas Educacionais e Relatos de Experiências bem sucedidas no Brasil, entre outros. Tais discussões suscitaram novas inquietações e questionamentos que apontavam para uma nova concepção teórica, onde o desenvolvimento humano aparece descrito e valorizado como universal e global.

3 As referidas concepções serão mais amplamente discutidas em outra parte do texto.

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Esse período caracteriza-se pela transição política que irá nortear novas políticas públicas para a Educação Especial, aproximando-a ainda mais da proposta curricular da Secretaria Municipal de Educação.

O ano de 1993 foi o início de um novo ciclo que vem tomando forma e aperfeiçoando-se até os dias de hoje. O IHA passou por nova estruturação interna, administrativa e pedagógica, evidenciando que a antiga não mais se adequava às demandas geradas pela nova política educacional. Os chamados Programas de Atendimento foram extintos e criadas 10 (dez) equipes destinadas a estabelecer uma parceria de trabalho com as CRE(s)4, o que viabilizou uma descentralização das ações do IHA, conferindo-lhes maior responsabilidade e autonomia na busca por uma educação de qualidade.

Outro fato de grande importância na direção de novas políticas públicas da Educação Especial foi a criação da documentação escolar para o aluno portador de necessidades educacionais especiais, que passaram a contar, além da ficha de matrícula, com registros de avaliação do processo educativo, caracterizando, assim, um histórico escolar.

Nessa época, também, teve início o processo de desenvolvimento para a criação da proposta Curricular Básica de Educação, onde a Educação Especial passa a incorporar as mesmas diretrizes e orientações curriculares que o Ensino Básico. E, à medida que, as propostas político-pedagógicas passam a ser as mesmas, descaracteriza-se uma ação de reabilitação e de acomodação do sujeito portador de deficiência, priorizando uma prática eminentemente pedagógica por parte da Educação Especial, onde as diferentes formas de aprendizagem e conteúdos escolares são ressaltadas, dando ênfase aos conhecimentos científicos das diversas áreas do saber.

A partir de 1994, o IHA encontrava-se cada vez mais em consonância com as políticas públicas do Ministério da Educação e do Desporto, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), consolidando, pois, essa visão com estudos, pesquisas e divulgação dos princípios, política e práticas de uma Educação Inclusiva, abordada pela Declaração de Salamanca.

Nesse período, o IHA realizou a I Jornada de Educação especial: uma sala do tamanho do mundo, compartilhando com profissionais da educação temas atuais sobre uma política para a Educação Inclusiva.

A nova concepção de Educação Especial assumida, desde o ano de 1994 até os dias atuais, interferiu nos conceitos sobre desenvolvimento e aprendizagem, adaptações curriculares, avaliação, processos de integração/inclusão, qualidade de ensino, papel da escola, função do professor etc., criando duas demandas: a de investimento na área da formação profissional que, desde então, vem ocorrendo de forma continuada e em serviço; e a de reformulações administrativas.

4 Coordenadoria Regional de Educação (CRE): órgão criado para facilitar a interação e a comunicação

entre escolas e SME, em função do grande número de escolas e de localização variada nas regiões metropolitanas. São 10 (dez) CREs em todo o Município, cada qual numa região administrativa.

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Em cumprimento à Lei Orgânica (1990) do Município do Rio de Janeiro, art. 332, inciso VII, que ressalta a importância de todo aluno com direito à matricula ingressar na vida escolar numa classe regular, engendra-se a necessidade de analisar e de oferecer os recursos básicos indispensáveis à qualidade educacional. Por isso, uma série de adaptações físicas e curriculares passam a ser contempladas no âmbito da Educação Especial, interferindo na procura e na implementação de uma educação inclusiva.

1.1.4. A Actual Estrutura da Educação Especial no Município do Rio de Janeiro: uma política voltada para a educação inclusiva

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu capítulo I, art. 5º, garante a todo cidadão o direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre outros. Sabe-se que apesar de haver o reconhecimento do cidadão como um sujeito de direitos, materializado no fato do poder público assumir legalmente essa condição, não foi e ainda não é suficiente para garantir ao cidadão o real exercício desses direitos. Porém, políticas públicas e propostas de ação voltadas para a Inclusão caracterizam um grande avanço no exercício pleno desse direito. Ou seja, o fato de a lei suprema de um país ressaltar, em seu texto, os direitos do cidadão não significa a garantia desses – ainda vemos em nossa sociedade uma incoerência entre a igualdade proposta na Lei e a exclusão dos que vivem à margem do social. Porém, a verificação da contradição entre discursos e práticas já é um grande passo para a construção de uma sociedade inclusiva. Fechar os olhos à falta de uma práxis é o mesmo que compactuar com os níveis de elevada exclusão, ao passo que admitir a realidade tal como ela se apresenta é sair à procura de alternativas na luta contra a exclusão, como por exemplo: denunciar, criar, recriar, plantar e colher elementos fundamentais na busca da melhoria de qualidade de vida dos sujeitos e dos grupos sociais.

Entretanto, apesar de serem inúmeras as necessidades de acesso – ao trabalho, à habitação, ao transporte, à alimentação, à saúde, à educação, ao lazer etc. –, que a grande maioria da população tem de enfrentar, não enfocaremos nossa discussão nesses pontos. Trataremos, apenas, das questões referentes à garantia de acesso ao direito à Educação, principalmente, por parte daqueles que são portadores de necessidades educacionais especiais, mais especificamente da realidade do Município do Rio de Janeiro.

Põem-se diante de nossos olhos inúmeras idéias para a seleção e a sistematização dos elementos significativos para a construção efetiva de uma sociedade inclusiva. O que viabiliza essa demanda é, por um lado, o fato de percebermos que somos parte integrante de um grupo que almeja a mudanças e pode pôr em movimento, através de investigações e questionamentos, ações coerentes com a proposta. E, por outro, o reconhecimento da necessidade e da importância dos debates e das ações fora do âmbito específico da Educação Especial, fortalecidas pela história das políticas públicas nacionais.

A organização educacional no Brasil é norteada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 e pelas Diretrizes e Bases para a Educação Especial na Educação Básica (resolução nº 02/2001 do Conselho Nacional de Educação – CNE).

Conforme dados descritos no capítulo anterior dessa pesquisa, o Município do Rio de Janeiro já vinha trilhando a construção de uma escola inclusiva. Porém, o estabelecimento de documentações legais vem ratificar essa visão e essa meta.

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A LDB nº 9394/96, em seu art. 1º, do título I, ressalta que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organização da sociedade civil e nas manifestações culturais” e, no art. 2º, do título II, confere “por finalidade [da educação] o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E, ainda, salienta como princípios (art. 3º) a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e a garantia de padrão de qualidade, legitimando o acesso ao ensino fundamental como um direito público subjetivo (art. 5º) e como dever do Estado (art. 4º) a “oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades”.

Essa mesma legislação define como uma das responsabilidades dos Municípios (art. 11): “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados”, conceituando a Educação Especial como um dos níveis e das modalidades de educação e ensino (título V), que deve ser oferecida preferencialmente na rede regular de ensino para os educandos portadores de necessidades especiais (art. 58). Assegura, também, em seu art. 59, currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos para atender a essas necessidades, bem como professores capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns.

Nesse sentido, o papel e a função do IHA têm se mostrado de grande valor na conquista de uma educação inclusiva, ratificando em sua prática os pressupostos teóricos da Lei acima citada, uma vez que conta com um Projeto Político Pedagógico que leva em conta a diversidade do aluno e a necessidade de construir currículos capazes de garantir o acesso à qualidade de ensino por parte do deficiente.

A resolução nº 2, de 11 de setembro de 2001, institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, obrigando “os Sistemas de Ensino a conceber a demanda real de atendimento a alunos portadores de necessidades educacionais especiais, mediante a criação de sistemas de informação e o estabelecimento de interface com os órgãos governamentais responsáveis pelo Censo Demográfico, para atender a todas as variáveis implícitas à qualidade do processo formativo desses alunos”. Dessa forma, conforme palestra da Alicia Bercovich, do IBGE, na Oficina “Educação Inclusiva no Brasil: diagnóstico atual e desafios para o futuro”, os números estatísticos apresentados apontam o Município do Rio de Janeiro como o de maior abrangência na recepção das referidas demandas.

O Conselho Nacional de Educação concebe, em seu art. 3º, a Educação Especial como ”um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da educação básica”. Para isso, faz-se necessário refletir sobre os processos que geram as exclusões, buscando um novo cenário, onde a diferença seja a expressão de uma maneira própria de agir e de pensar o mundo, e não um motivo para se desvalorizar os sujeitos segundo padrões pré-estabelecidos. A SME do Rio de Janeiro e o IHA vêm multiplicando esforços nesse sentido, que podem ser expressos na:

identificação daqueles que apresentam necessidades educacionais especiais;

adaptação curricular para viabilizar o pleno desenvolvimento do aluno;

adaptação física das escolas;

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organização de ações que respondam às demandas de cada sujeito e de sua família (ônibus que pega a criança em casa para levar à escola; horário integral para os que precisam; abertura de atendimento próximo à residência; ações Macro Funcionais – ação integrada entre a SME e outras Secretarias).

O IHA vem implementando e implantando diversas ações que se direcionam à construção da Escola Inclusiva. Além de procurar garantir o acesso de todos os deficientes à matrícula escolar, acompanha o trabalho pedagógico realizado com o aluno deficiente, desenvolvendo estratégias voltadas para:

a formação de professores;

a avaliação de alunos;

a pesquisa;

a aquisição e a produção de materiais.

Para isso, conta com 10 (dez) equipes para o acompanhamento do trabalho realizado na Rede Pública de Ensino, fornecendo subsídios aos profissionais para atuarem junto ao aluno portador de necessidades educacionais especiais. Além disso, dispõe de um Centro de Referência em Educação Especial, destinado a produzir novos conhecimentos, a confeccionar recursos adaptados que contribuam para a prática pedagógica com o portador de necessidades educacionais especiais, a auxiliar no enfrentamento das dificuldades encontradas na prática pedagógica, realizando pesquisas na diferentes áreas da Educação Especial, de acordo com o art. 11, da Lei de Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. O trabalho desenvolvido pelo Centro de Referência é realizado com os próprios alunos portadores de necessidades educacionais matriculados na rede pública do Município e organiza-se em diversos serviços, conforme descrito no documento Estrutura e Funcionamento/IHA – 2003:

Oficina Vivencial de Ajudas Técnicas para a Ação Educativa – atende aos alunos com deficiência física, paralisia cerebral e síndromes que acarretem comprometimento motor, analisando cada situação e produzindo recursos alternativos, que constituem adaptações de acesso ao currículo. A equipe da Oficina, junto com as Equipes de Acompanhamento, os Professores Itinerantes e os Regentes discutem as adaptações curriculares propriamente ditas que precisarão ser feitas para atender as necessidades educacionais especiais desses alunos;

Oficina de Artes Plásticas – possibilita a experiência estética, explorando recursos, instrumentos e técnicas convencionais e não convencionais, utilizando os conceitos da arte e seus elementos no trabalho com alunos que apresentam necessidades educacionais especiais, principalmente, com alunos cegos e de baixa visão;

Oficina de Ginástica – desenvolve um trabalho de iniciação à prática da Ginástica Artística e acrobática, visando ao desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo a partir do conhecimento de sua estrutura corporal e suas possibilidades de movimento, valorizando sua auto-estima e a conscientização de suas possibilidades;

Oficina de Teatro – proporciona aos alunos com necessidades educacionais especiais o aprimoramento das capacidades de expressão, relacionamento, imaginação e percepção, ampliando as leituras do mundo, desenvolvendo as linguagens corporal, oral e escrita;

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Educação Inclusiva no Brasil 11 Banco Mundial – Cnotinfor Portugal

Oficina de Dança – realiza um trabalho de expressão corporal e auditiva, possibilitando discriminação de diferentes sons e ritmos da música, a partir de um trabalho contextualizado e significativo;

Oficina de Música – promove, junto ao aluno com necessidades educacionais especiais, o conhecimento dos valores essenciais da música, seja na aprendizagem de um instrumento ou do canto, impulsionando o desenvolvimento e ampliando as possibilidades de inserção e de expressão cultural, assim como a modificação das estruturas afetivo-cognitivas;

Oficina da Palavra – espaço de produção oral e escrita das diferentes linguagens presentes no mundo, destinado ao aluno com dificuldades no processo de sistematização da escrita. Este serviço atende aos alunos da rede regular de ensino, objetivando dar novos significados à prática de construção do processo de alfabetização;

Laboratório de Informática Educativa – utiliza recursos da informática educativa para construir, sistematizar e ampliar conceitos, tanto específicos da Língua Portuguesa como genéricos do interesse do aluno, referentes ao mundo escolar ou veiculados pela mídia, a partir da exploração e da produção das diferentes linguagens;

Brinquedoteca;

Centro de Transcrição à Braille – destinado à elaboração e produção de materiais pedagógicos multissensorial para as Classes Especiais, Salas de Recursos, Classes Regulares e Escolas Especiais que possuam alunos cegos ou com baixa visão. São produzidos livros ampliados, livros transcritos à Braille, matrizes com ilustrações táteis, maquetes e kits adaptados para facilitarem a formação de novos conceitos;

Sala de Leitura – espaço aberto para todos os profissionais e alunos da Rede Municipal para empréstimos de títulos, consultas e pesquisa. Possui um grande acervo, contando com livros de diversas áreas do conhecimento, sendo grande parte sobre a Educação Especial.

A Educação Especial do Município do Rio de Janeiro garante que a matrícula inicial do aluno portador de necessidades educacionais especiais pode ocorrer em qualquer nível de escolaridade, desde a Educação Infantil, incluindo-se as creches, até a 8ª série do ensino fundamental, expresso em sua Lei Orgânica e em conformidade com o art. 1º e parágrafo único e art. 7º, da Lei de Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.

A LDB 9394/96 determina, no art. 59, inciso III, que os sistemas de ensino deverão assegurar “professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para o atendimento especializado, bem como professores de ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns”. Nesse sentido, o IHA possui uma equipe de coordenação de Pólos de Atendimento Extra-escolar, atuando na orientação e capacitação do profissional que atende alunos matriculados na rede pública do Ensino Fundamental, que têm seu processo de escolaridade dificultado ou impedido por problemas de ordem psicológica, física, fonoaudiológica, mental ou social.

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A criança com deficiência precisa e pode, desde o nascimento, receber atendimento educacional especializado, visando ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades e sua efetiva participação na sociedade. A fim de garantir tal direito, a Educação Especial do Município do Rio de Janeiro está organizada da seguinte forma:

Creches para a atenção à criança de 0 a 3 anos e 11 meses, que conta com o apoio e orientação de um professor itinerante, no sentido de capacitar os recreadores a privilegiarem a interação com a criança, criando possibilidades reais de aprendizagens que irão impulsionar seu desenvolvimento;

Pólos de Educação Infantil, modalidade de atendimento voltada para a criança de 0 a 3 anos e 11 meses, que desenvolve ações com o objetivo de ampliar as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagens da criança com deficiência;

Educação Infantil para crianças a partir de 4 anos, que tenham ou não freqüentado creche ou Pólo de Educação Infantil, cuja matrícula é, prioritariamente, garantida em turma comum, com apoio de professor itinerante e / ou sala de recursos. Porém, outras possibilidades de acesso são a Classe Especial ou a Escola Especial. Sendo a escolha entre essa ou aquela modalidade baseada na avaliação pedagógica realizada pelas equipes de acompanhamento do IHA e da Coordenadoria Regional de Educação (CRE), em conjunto com a unidade escolar.

As outras modalidades de atendimento a crianças e jovens portadores de necessidades educacionais especiais oferecidas pela política pública de Educação Especial do Município do Rio de Janeiro são:

Sala de Recursos – espaço destinado a um trabalho pedagógico específico com alunos portadores de necessidades educacionais especiais que estejam integrados em turmas regulares, tendo como objetivo ampliar e complementar o trabalho realizado pelos professores do ensino regular. A freqüência à Sala de Recursos se dá em horário diferente ao da turma comum, podendo o profissional atender os alunos individualmente ou em grupos, segundo os critérios de avaliação necessários ao melhor aproveitamento por parte dos envolvidos.

Professor Itinerante – serviço de orientação e de supervisão pedagógicas às escolas que possuem alunos incluídos. O profissional itinerante atua junto ao professor e demais envolvidos no processo, inclusive aos alunos, dando suporte prático e teórico à aprendizagem dos mesmos. O atendimento, geralmente, se dá no interior da sala de aula;

Professor Itinerante Domiciliar – serviço realizado por um professor da Educação Especial com o objetivo de atender alunos, deficientes ou não, que se encontram impossibilitados de freqüentar as aulas em razão de tratamento de saúde ou outros problemas que impeçam sua locomoção até a escola;

Classes Especiais – espaço de produção pedagógica para atender alunos que precisam de ajudas e apoios intensivos e contínuos, necessitando-se, assim, de adaptações curriculares muito significativas e próprias que não poderiam, no momento, ser realizadas na turma comum com um número maior de alunos;

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Escola Especial – espaço escolar e pedagógico para o aluno portador de necessidades educativas especiais que requerem um alto grau de adaptabilidade que não pode ser viabilizado pela escola regular, prioritariamente, destinado aos alunos que necessitam de uma atenção constante e individualizada nas atividades da vida autônoma e social, podendo esse aluno ser encaminhado para a escola regular sempre que as avaliações indicarem um benefício para ele;

Classe Hospitalar – serviço educacional e pedagógico que funciona em hospitais conveniados com a secretaria Municipal de Educação, com o objetivo de promover a aprendizagem da criança e do adolescente, da Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, que estejam impossibilitados de freqüentar as aulas, em razão de tratamento de saúde que implique em internação hospitalar ou atendimento ambulatorial sistemático.

A matrícula do aluno portador de necessidades educacionais especiais faz-se, preferencialmente, na rede regular de ensino. Após o que, a escola pode solicitar uma avaliação pedagógica ao IHA, no sentido de verificar a exigência de apoio ou de modalidades de atendimento que melhor se adeqüem ao aluno em questão, visando a seu pleno desenvolvimento.

Os procedimentos de avaliação da Educação Especial são:

44.. observação do aluno pelo professor da turma e elaboração posterior de relatório – procedimento que implica no conhecimento do aluno e no foco sobre suas necessidades para a aprendizagem, assim como no registro escrito da história do aluno;

55.. encaminhamento de relatório para a DED – o que possibilita a reflexão, por parte da equipe, sobre as questões suscitadas e sobre as possíveis ações para o enfrentamento do problema;

66.. visita do profissional da DED à escola com o objetivo de observar o aluno em sala de aula, levantando o contexto pedagógico, as necessidades educacionais e as estratégias para melhor atender os envolvidos (professores, alunos, família etc.) – nesse momento, os profissionais estão estabelecendo uma prática de pesquisa-ação, pois à medida que se faz o diagnóstico, visando à ação, a conseqüência é a produção de conhecimentos, o que, certamente, irá interferir nas práticas subseqüentes e no desenvolvimento de ações mais apropriadas à solução dos problemas questionados;

77.. em caso de dúvida quanto ao melhor encaminhamento, um estudo de caso com o Agente de Educação Especial deverá ser posto em curso: entrevistas com o responsável, visita e observação de campo e avaliação individual do aluno – novas pesquisas em andamento, novas possibilidades de solução;

88.. em caso de persistirem as dúvidas, a equipe do IHA deverá ser acionada – o processo de investigação permanece, fortalecendo e recriando possibilidades para a implementação de uma Educação Inclusiva;

99.. todo o processo de avaliação do aluno deve ser vivido em parceria com o cenário educacional mais amplo – o que possibilita a reflexão dos envolvidos na participação e na construção da sociedade, bem como a formação de recursos humanos adequados à criação de uma Educação Inclusiva.

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Uma Educação Inclusiva pressupõe educação para todos, não só do ponto de vista da quantidade, mas também do da qualidade, onde os sujeitos possam apropriar-se tanto dos saberes já disponíveis no mundo quanto das formas e das possibilidades de novas produções que, através de sua participação e de sua atuação cotidianas, irão criar, disponibilizando-as aos outros sujeitos, numa interação dialógica e dialética com a vida.

A construção de uma Educação Inclusiva não é simples, requer o envolvimento de todos os sujeitos na busca de uma qualidade de vida. E isso, implica em qualidade na educação, acesso de fato ao que a vida exige para uma efetiva participação social: saber ler, escrever, contar, mas também, reler, rescrever, recontar as diversas histórias que habitam nosso universo e fazem dele o cenário para novas histórias, que emergirão como conseqüência do agir sobre o mundo.

Como diz Leila Blanco, diretora do IHA, é preciso trazer a vida para a escola: “acredito que para a vida fazer parte da escola é urgente ouvir o outro, compreendendo a trama cultural que possibilita sua identidade, a imersão no caldo de valores que inclui os éticos, os estéticos, os morais, tudo o que é prestigiado pelo grupo social e visto como consumo desejado” (Entrevista: 25/04/2003). Assim, de fato, estaremos voltando nossos olhos para opções de vida e de sociedade mais conscientes, fruto do pensar e do agir com base no respeito à diversidade e na construção de práticas inclusivas.

1.1.5. Subsídios para a Fundamentação de uma Política Educacional voltada para a Construção da Escola Inclusiva

O conceito de necessidades educacionais especiais5 (n.e.e.) surge em oposição ideológica aos trabalhos pedagógicos que centram na deficiência do aluno a organização do currículo, seus conteúdos, metodologias e atividades práticas.

O termo n.e.e. se originou de uma proposta curricular elaborada, em 1992, pelo MEC da Espanha. Em 1993, o termo foi assumido pelo IHA, almejando a uma concepção eminentemente pedagógica para as práticas da Educação Especial, marcando a importância de transformação das referidas práticas para o suporte e a construção de uma Educação Inclusiva.

O conceito de necessidades educativas especiais desloca o foco centrado na deficiência para um olhar dirigidos às diversidades do pensar e do agir, concebendo o novo sujeito que emerge dessa visão como sendo aquele que possui necessidades, necessidades específicas e especiais, em função de sua identidade, de sua maneira própria de atuar e experimentar o mundo.

O trabalho pedagógico que se impõe a partir desse termo, constitui-se como ponto de partida e de referência para não mais a simples identificação das dificuldades do aluno – “foco na deficiência” –, mas para uma avaliação que busque compreender o aluno tanto no que ele já sabe, na sua autonomia, como no que ele pode vir a saber, a fazer, a produzir, apesar de suas dificuldades. Essas são as bases para um processo de intervenção pedagógica, dirigindo o trabalho de maneira prospectiva para as possibilidades do aluno. O que exige, por parte dos envolvidos no processo, uma avaliação constante da relação entre desenvolvimento e

5 No caso do Município do Rio de Janeiro, o termo é consolidado, em 1996, no lançamento da

MULTIEDUCAÇÃO, para designar o caráter eminentemente pedagógico da Educação Especial, visando à elaboração das metas pedagógicas junto ao aluno portador de deficiências.

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aprendizagem, assim como da identificação das necessidades educacionais do aluno, a fim de que as metas para a educação de qualidade possam ser atingidas.

Encarar as necessidades educacionais especiais é, portanto, não apenas estar atento às características pessoais de cada aluno e de sua deficiência, como também antever a forma como a escola organiza o processo educativo. Ou seja, as necessidades não são estabelecidas de forma definitiva, mas se constituem na pragmática do fazer pedagógico cotidiano, buscando caminhos e respostas, indo além das dificuldades, possibilitando ao aluno um desenvolvimento pleno, norteado pelo horizonte da participação social, e não mais pelo patamar dos limites de sua deficiência – o que gera a sua exclusão social.

Para que as necessidades educacionais do aluno portador de deficiências possam ser garantidas de forma a se apropriarem dos conhecimentos e habilidades escolares, impõem-se adaptações de diferentes tipos, a saber:

adaptações de acesso relativas às condições físicas, materiais e de comunicação necessárias para que o aluno possa participar do processo educacional com autonomia;

adaptações curriculares em relação ao currículo regular estabelecido para o conjunto dos alunos, envolvendo modificações nos objetivos, conteúdos, atividades e estratégias de avaliação, tendo o objetivo de atender às necessidades educacionais dos alunos portadores de deficiência, permitindo-lhes, através de estratégias diversas, a ampliação de suas possibilidades e a construção de seu conhecimento. O que não se caracteriza como um rebaixamento de metas ou de objetivos, mas sim como uma ação pedagógica ajustada às necessidades que se impõem, em função da identidade do aluno.

O conceito de necessidades educacionais especiais, visto dessa forma, harmoniza-se com os pressupostos teóricos do referencial sócio-histórico proposto por Vygotsky.

Vygotsky apontou a necessidade de avaliarmos o desenvolvimento sobre os seus aspectos qualitativos, e não mais centrando o olhar sobre os quantitativos. E, em relação ao desenvolvimento da criança portadora de alguma deficiência, afirma que ela não é uma criança menos desenvolvida do que as demais, é uma criança que se desenvolve de modo qualitativamente diferente, porém, com as mesmas leis gerais do desenvolvimento – as quais serão abordadas a seguir.

1.1.5.1. O Modelo e o Referencial Teórico de Vygotsky: uma nova abordagem para a Educação Especial

O panorama educacional revela – apesar dos esforços na luta contra a exclusão social e na busca da qualidade na educação – a presença de modelos metateóricos mecanicista e organicista nas práticas pedagógicas correntes, fornecendo uma visão reduzida e limitada do processo de desenvolvimento e de aprendizagem do aluno e, ainda, contribuindo, no caso daqueles que são portadores de alguma deficiência, para um enfoque pedagógico baseado ora na “deficiência primária” do aluno, ora no seu “platô evolutivo”. Com isso, os referidos modelos acabam por determinar práticas educativas preparatórias ou compensatórias, baseadas em condicionamentos e formação de hábitos ou em atividades lúdicas ou

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estimuladoras, em ambos os casos, esvaziadas de conteúdos significativos e de metas pedagógicas propriamente ditas6.

Essa perspectiva, trazida por Vygotsky, assumiu, nos anos vinte, contornos bem definidos na Psicologia e, na atualidade, ressurge com vigor nos meios acadêmicos na área da Educação.

A concepção de homem adotada é a do sujeito compreendido como ser social, que se constitui na e pela cultura, em um dado momento e contexto históricos. Sendo os modos de ação, a consciência e a subjetividade humanas produto das relações interpessoais, a partir de determinadas condições sociais, culturais e históricas.

As bases para um novo enfoque curricular e para novas práticas pedagógicas podem ser estabelecidas pela adoção do modelo e do referencial sócio-histórico.

A história é produzida pela forma como os sujeitos pensam, agem, conservam ou transformam o sentido dado pelas relações sociais estabelecidas nas interações com o meio e com outros sujeitos, produzindo idéias e representações, a partir das quais procuram explicar a realidade. Assim, a história só pode ser compreendida no plano das relações sociais entre os sujeitos, em função das condições concretas de sua realização. Então, cada atitude individual foi, um dia, uma atitude entre sujeitos.

A compreensão do plano individual humano reside no âmbito das relações sociais enquanto processos históricos. Entretanto, o aspecto histórico ressaltado não corresponde a uma concepção histórica de sucessão de fatos no tempo ou de evolução das idéias, mas ao modo como os homens concretos, em condições objetivas, criam os mecanismos de ação e as expressões culturais de sua existência social, podendo criar e recriar, reproduzir e transformar o social, o político, o econômico e o cultural.

O modelo sócio-histórico de Vygotsky estabelece uma nova relação entre sujeito e objeto no processo de construção dos conceitos e dos conhecimentos, fornecendo em bases inteiramente novas uma teoria do desenvolvimento cultural do psiquismo humano.

Para Vygotsky, os fenômenos tipicamente humanos, como a consciência e a linguagem, só podem ser explicados como produto das relações que se estabelecem num processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas histórias individual e coletiva. O psiquismo humano, as formas de pensar e agir, então, são concebidos como uma produção social, resultante da apropriação, por parte dos sujeitos singulares, das produções culturais.

Nessa abordagem, o homem é o produto da relação dialética entre o corpo e a mente, entre o biológico e o social. Assim, as funções psíquicas superiores emergem no plano das relações entre os sujeitos: elas são internalizadas, singularizadas, consolidadas e transformadas dialeticamente. O que é individual, foi um dia coletivo.

1.1.5.2. A Relação entre o Inter e o Intrapisíquico Para Vygotsky, os processos psíquicos do indivíduo são constituídos a partir da

internalização de relações entres os sujeitos sociais. A ação humana está baseada na

6 Em função do tempo e da natureza, a presente pesquisa não se deterá nas concepções citadas nesse

parágrafo, optando por aprofundar-se nas concepções propostas pelo referencial sócio-histórico.

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cooperação entre os indivíduos. E a forma como os homens participam e atuam na vida determina o que pensam. A partir da experiência social, conceitos são internalizados, permitindo identificações e diferenciações que constituirão a singularidade, a identidade do sujeito.

“Todas as funções do desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos”. (VYGOTSKY, 2000: 75)

A internalização não é um processo mecânico de transposição da ação externa para o interior do indivíduo, mas mediada por ações partilhadas.

“A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. O processo, sendo transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente” (VYGOTSKY, 2000: 75).

Portanto, o homem é um ser social e a linguagem, o instrumento das interações sociais que possibilita ao sujeito pertencer a uma cultura. A linguagem, aqui, não é compreendida como sendo um sistema abstrato de normas ou, apenas, atividade verbal. A linguagem vai muito além: é toda e qualquer forma de expressão. E está presente na arte, na pintura, na música, no cinema, no folclore, nos gestos, no olhar, na emoção, na respiração e, inclusive, no silêncio.

“Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ideológico ou vivencial. É assim, que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida” (BAKHTIN, 1992:95).

O ato expressivo transita entre o conteúdo interior do sujeito e sua objetivação exterior em direção ao outro. Assim, a expressão determina-se tanto pelo fato de que procede de alguém, quanto pelo fato de que se dirige a alguém, revelando-se como o produto da interação entre os interlocutores, ambos sujeitos singularizados a partir de muitas e diferentes interações sociais. Através da palavra, da expressão, nos definimos em relação ao outro: “se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre meu interlocutor” (BAKHTIN, 1992: 113).

1.1.5.3. A Relação entre Pensamento e Linguagem A linguagem possui duas funções básicas: a de intercâmbio social e a de pensamento

generalizante. Ela fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento.

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O pensamento e a linguagem têm origens diferentes e desenvolvem-se segundo trajetórias diferentes, até que ocorra a unidade entre esses dois fenômenos, quando o pensamento se torna verbal. Para Vygotsky, a relação entre pensamento e linguagem deriva de duas raízes genéticas diferentes: há uma fase pré-verbal do pensamento e uma fase pré-intelectual da fala no desenvolvimento da criança.

A fase pré-verbal do pensamento pode ser descrita como aquela em que o pensamento associa-se à utilização de instrumentos. Já a fase pré-intelectual da fala aponta para a função social da linguagem. Pois, desde muito cedo, a criança reage à voz humana, demonstrando que sons inarticulados, risadas, movimentos etc. são meios de contato social.

Porém, há um momento em que as curvas da evolução do pensamento e da fala se unem, dando origem a uma nova forma de comportamento: “a fala começa a servir ao intelecto e os pensamentos começam a ser verbalizados” (VYGOTSKY, 1989: 37). Nesse momento, a criança não mais precisa estar diante do objeto para se relacionar com ele, basta sua representação para que isso ocorra. Assim, inicia-se uma nova forma de funcionamento psicológico – a fala torna-se intelectual, com função simbólica e o pensamento torna-se verbal, mediado por significados dados pela linguagem – o significado das palavras.

O significado é um componente essencial da palavra e é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento, pois o significado de uma palavra já é em si a generalização de um conceito. É no significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os significados que possibilitam a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no filtro através do qual o sujeito é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele.

Os significados são construídos ao longo da história dos sujeitos com base nas suas relações com o mundo físico e social, encontrando-se, portanto, em constante transformação, tanto na história de uma língua e como na história do sujeito, segundo o processo de aquisição da linguagem pelo sujeito.

“O problema do pensamento e da linguagem estende-se, portanto, para além dos limites da ciência natural e torna-se o problema central da psicologia humana histórica, isto é, da psicologia social” (VYGOTSKY, 1989: 44).

A perspectiva sócio-histórica de Vygotsky informa, no que se refere à percepção, memória e atenção dos sujeitos, que o desenvolvimento dessas funções psíquicas superiores caminha do social para o individual, do genérico ao particular.

O bebê humano nasce com suas possibilidades de percepção definidas pelas características biológicas do sistema sensorial humano. Ao longo do desenvolvimento, entretanto, principalmente através da internalização da linguagem e dos conceitos e significados culturalmente desenvolvidos, a percepção deixa de ter uma relação direta entre o indivíduo e o meio, passando a ser mediada por conteúdos culturais. A relação perceptual com o mundo não se dá em termos de atributos físicos isolados, mas em termos de objetos, eventos e situações categorizados pela linguagem e pela cultura. A função dos objetos, as situações concretas em que interagimos com estes objetos, o lugar que ele ocupa nas nossas atividades, irão interferir na forma como percebemos esse ou aquele fato ou objeto. Ao se perceber elementos do mundo real, faz-se inferências baseadas em conhecimentos adquiridos

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previamente e em informações sobre a situação presente, interpretando os dados perceptuais à luz de outros conteúdos psicológicos.

A atenção, inicialmente, baseada em mecanismos neurológicos inatos, gradualmente vai se tornando voluntária e fundamentada na mediação simbólica. Há uma seleção de elementos relevantes e essa relevância está relacionada aos significados construídos nas relações do sujeito com o meio.

A memória pode ser natural ou mediada. A memória natural apóia-se em mecanismos inatos, numa relação direta entre estímulo e resposta, ao passo que a mediada ancora-se nos instrumentos e nos significados.

A cultura é a condição essencial para a existência humana, a principal base de sua especificidade. Ou seja, não existe natureza humana sem cultura. Nesse sentido, a cultura funciona como um centro produtor de mecanismos de controle para conduzir comportamentos. Nas palavras de Geertz, se não fosse ''dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais''. O homem não só cria signos como também é controlado por eles. Os sistemas de símbolos significantes (linguagens, arte, mito, rituais, mídias e sistemas de signos da cultura contemporânea) tornam-se sistemas de retroalimentação, de controle e de organização do próprio sistema biológico. Logo, não existe natureza humana sem cultura: “somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura” (GEERTZ, 1989: 35).

O homem é um ser inacabado, em constante devir e em busca de acabamento. Se é verdade que o homem precisa aprender para poder funcionar, ver e sentir, é igualmente verdade que ele precisa aprender a pensar para se desenvolver e transformar o mundo e a si próprio. Essa noção interfere em campos conceituais consolidados, desfazendo crenças e distinções, como a polêmica oposição entre o que é natureza e o que é cultura.

1.1.5.4. A Relação entre Desenvolvimento e Aprendizagem Para Vygotsky, os fenômenos tipicamente humanos só podem ser estudados tendo em

vista a compreensão de que as funções psíquicas superiores são o produto das relações entre sujeitos sociais e da apropriação das produções culturais, oriundo da ligação estreita entre história individual e coletiva.

Procurando explicar os modos de participação do outro na construção dos processos individuais e na transformação do funcionamento psíquico interpessoal em intrapessoal, Vygotsky introduz uma nova explicação sobre o processo de desenvolvimento, a partir do conceito de zona de desenvolvimento proximal, oferecendo uma nova concepção que irá ocupar uma posição fundamental nos debates sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem da criança.

Para Vygotsky, o desenvolvimento ocorre em dois níveis: o desenvolvimento real que se refere ao desenvolvimento já alcançado – caracterizado pela independência nas ações – tudo aquilo que a criança faz de forma autônoma; e o desenvolvimento potencial que se relaciona às competências em via de serem conquistadas – aquilo que o sujeito ainda não é capaz de realizar de forma independente, necessitando da participação e da colaboração de outras pessoas.

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O conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) indica a distância entre os dois níveis de desenvolvimento humano – o real e o potencial. Mas para transformar o que é potencial em real, faz-se necessária a instauração de um espaço de ações partilhadas, pois, é na interação com outros sujeitos que se adquire a capacidade de internalização de conceitos, de organização do real e de regulação interna das ações.

O desenvolvimento da criança é visto, aqui, de forma prospectiva, uma vez que a zona de desenvolvimento proximal define as funções psíquicas superiores que ainda não se concretizaram no plano da independência, embora estejam presentes em estado embrionário.

O conceito de ZDP traz implicações decisivas e transformadoras para os critérios de avaliação diagnóstica e para a ação pedagógica, enfatizando que é na interação – e através dela – que a criança consegue solucionar os problemas que, ainda, não tem condições de resolver sozinha. É, justamente, nesse momento – o da interação com o outro – que o desenvolvimento potencial aparece, colocando em movimento vários outros processos de desenvolvimento que, sem a ajuda de um interlocutor, seriam impossíveis de se perceber.

“Aquilo que é zona de desenvolvimento proximal hoje, será desenvolvimento real amanhã – ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (VYGOTSKY, 2000: 113).

A partir dessas colocações, é possível pensar uma psicologia social, fundada e elaborada na compreensão de que o comportamento humano é fruto da ação educativa – seja no campo da educação formal das escolas, no da formação iniciada no seio familiar ou no da prática terapêutica – inserida no momento da interação e da interlocução entre os sujeitos.

O espaço dialógico, pensado por Vygotsky, baseia-se no pressuposto de que não há essência humana imutável. Investiga a construção da identidade do sujeito na interação com o mundo, na relação com outros sujeitos, explicando como a cultura torna-se parte da natureza humana a partir de um processo histórico que influencia o funcionamento psicológico.

Assim, a relação com o mundo é sempre mediada, não há acesso imediato aos objetos, mas sim a sistemas simbólicos que os representam. Por isso, à linguagem é atribuído papel de destaque, como sendo o instrumento que se interpõe entre o sujeito e o objeto, a partir da experiência significativa.

De acordo com a teoria em questão, os fenômenos de transição do desenvolvimento perpassam por todo o território intermediário entre o externo e o interno, tal como percebido por um território comum: o da cultura.

1.1.5.5. O Processo de Formação dos Conceitos Diferentemente dos animais, os comportamentos humanos não conservam apenas

ligação com os motivos biológicos, mas, sobretudo, são frutos de um processo de desenvolvimento que envolve a interação do sujeito com o meio físico e social em que vive. Tal interação não se dá diretamente, como no caso do animal, mas através da mediação possibilitada por dois tipos de elementos: os instrumentos e os signos. Os instrumentos regulam a ação do homem sobre os objetos e os signos, a ação sobre o psiquismo.

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Ao longo do processo de desenvolvimento, os indivíduos passam a utilizar signos internos – representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Dessa forma, assim como um bilhete ajuda a lembrar um compromisso, a idéia de “mãe” representa a mãe real que temos dentro de nós, com quem passamos a lidar mentalmente, mesmo quando ela não está presente.

Quando pensamos em um objeto ou coisa, não temos na mente o próprio objeto, mas uma idéia, um conceito, uma imagem, uma palavra, ou melhor, algum tipo de representação, de signo, que, na realidade, substitui o objeto real sobre o qual pensamos. Essa capacidade de substituir o real por representações é o que possibilita ao homem abstrair-se do tempo e do espaço presentes - lembrar-se das coisas mesmo na ausência das mesmas, fazer planos, imaginar, ter intenções. Essa relação indireta travada com o ausente é proporcionada, mediada pelos signos internalizados. Os signos não são marcas isoladas que as coisas adquirem, mas conceitos apreendidos, ao longo do processo de desenvolvimento do indivíduo, num determinado grupo social, permitindo a comunicação entre os sujeitos e o aprimoramento da interação social.

Os sistemas de representação da realidade são socialmente construídos. É o grupo cultural que fornece as formas de se perceber e de se organizar o real. Os sistemas simbólicos permitem, além da comunicação entre os homens, a internalização de significados, a percepção e a interpretação de objetos, situações e fatos presentes no mundo.

A partir de sua inserção num dado contexto cultural, das relações que estabelece com os membros de seu grupo familiar e de sua participação em práticas culturais, a criança incorpora as formas de comportamento e vai constituindo-se como pessoa, formando sua identidade e, assim, orientando sua ação no mundo.

O texto Pra que é que presta uma menininha?7 nos possibilita “visualizar” o quanto a relação com outros sujeitos é de suma importância para a formação de nossas personalidades e para a regulação de nossas atuações no mundo.

Em “Pra que é que presta uma menininha?”, a autora relata a força que o conceito imprestável exerceu em sua vida, desde a infância – época em que foi formulado – até a vida adulta – onde o “peso” do significado ainda guia sua operacionalização no mundo. A reflexão sobre o significado dessa palavra perpassa toda a narrativa do texto. A autobiografia é iniciada:

Pra que é que eu presto? Pra que serve uma menininha? As respostas podem ser variadas, de acordo com o ângulo e a visão

do mundo do respondedor. É possível afirmar, liricamente, que ela enfeita e dá alegria à vida dos pais. Ou, cientificamente, buscar explicações nas leis biológicas de preservação da espécie e sua futura e provável incidência. Nada disso, porém, respondia à angústia da menininha nascida no Natal de 1941 e que desde muito cedo era brindada constantemente com o adjetivo de imprestável, coisa meio difícil de entender, palavra que se revirava na cabeça sem sentido claro, mas evidentemente negativa, pelo tom de voz que era insistentemente pronunciada.

7 ANA MARIA MACHADO, In: ABRAMOVICH, FANY. O Mito da Infância Feliz. São Paulo, 1985:

Summus. Este texto é uma autobiografia da infância de Ana Maria Machado.

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Dá para retraçar com certa objetividade a primeira grande dúvida semântica suscitada por esse imprestável. A menina tinha por volta de quatro anos (...)

Sua imprestável! Vê se aprende com a Rita Maria (prima mais velha, linda e parecida com a mãe da menininha) ser uma menina boazinha e prestativa (...)

Por mais que a menina tentasse, não conseguia ser linda e parecida com a mãe, como queria. Vai ver até que não era mesmo filha dela, era filha de um bugre, achada no mato pelo avô que abria estrada de ferro, como todos gostavam de contar e brincar. Vai ver, era por isso que queriam se livrar dela, emprestar para alguém, passar adiante aquela menina emprestável.

Os fragmentos do texto acima apontam para a importância da interação e da interlocução entre os sujeitos no processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança, bem como para a formação dos conceitos que serão os mediadores da referida relação. A infância é uma fase de grande relevância para a formação da identidade, pois, mesmo antes do nascimento, a criança já carrega o peso das expectativas que os pais têm em relação a ela. A partir daí, estabelecem-se as inter-relações que irão dar forma ao sujeito, configura-se o interjogo de papéis que definirá cada sujeito, cada família, cada grupo social. Todos – pai, mãe, criança, professores... sujeitos sociais – cada qual desempenhando seu papel na estruturação de seu grupo, contribuindo para a construção de significados que constituirão a esfera cultural e o mundo interno de cada um.

Os conceitos não contêm apenas um significado, mas entrelaçam-se numa multiplicidade de vozes e sentidos. Ana Maria Machado, em sua brilhante narrativa, nos presenteia com uma exemplificação do que diz respeito à polifonia e à polissemia dos conceitos.

Mas todos os adultos que se aproximavam podiam ser, em potencial, candidatos ao empréstimo. E essa idéia não costumava ser das mais agradáveis.

Um dia (...) ouviu o pai dizer com profundo desprezo a respeito de alguém:

_ Esse sujeito não presta! (...) podia ser que imprestável não fosse alguém a ser

emprestado, mas alguém desprezível, que não tem jeito, não serve nem para emprestar aos outros. Daí a algum tempo, a confirmação:

_ Mas esta menina é incapaz de fazer uma coisa direito, não presta para nada...

(...) por essa época (...) pescou a expressão prestar atenção. E (...) captara admirações elogiosas a um tal de Prestes.

_ Essa menina vive no mundo da lua, está sempre distraída, não presta atenção em nada...

(...) além do Prestes, entrou em cena outro personagem. A menina foi levada a um comício dele (...) ouvindo a multidão gritar:

_ Brigadeiro! Brigadeiro! Brigadeiro! Não é de espantar que o ideal de briga tenha encontrado alguma

ressonância. E começou uma oscilação que ia se estender pelos anos a fora, na alternância dos adjetivos da definição familiar:

_ É uma imprestável! (...) _ Sua malcriada! (...)

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_ Você é mesmo uma imprestável! Não é capaz nem de fazer uma limonada...

(...) Imprestável, não. Vinha sempre uma angústia nebulosa, machucando injusto, inesperado na maioria das vezes, humilhante. Acompanhava outra constelação qualificativa:

_ Desmazelada! Desleixada! Relaxada! (...) _ Porca! (...) _ Sem-jeito mandou lembrança...

Apesar da frustração da “menininha” ter sido ressaltada até então, não significa, portanto, que ela não a tenha elaborado de forma a resignificá-la. A autora aponta alguns instrumentos de salvação: a divisão do peso com os outros irmãos; o carinho que, apesar da rigidez, nunca faltou; os momentos de prazer quando, no colo dos pais, ouvia histórias com temas diversos – momento em que a ansiedade era dissolvida na esperança trazida pela fantasia.

Mas não era tudo horrível, claro. E há um outro lado. O que salvou. Primeiro, a consciência de que a desgraça era coletiva. (...) O peso, quando se distribuiu pelos nove filhos, ficou mais fácil de carregar. Acontecia com os outros também. E o convívio fraterno foi sempre uma coisa de uma carga tão positiva nesses tempos de infância que dava força para segurar qualquer barra. Apesar dos ciúmes e rivalidades naturais, das brigas eventuais, o carinho era muito grande e muito bom. Dava para ir em frente numa boa. Garças à repetição do processo, que o atenuava. A história se repetia. (...) Mas outro instrumento de salvação foi o era uma vez...

(...) E as histórias ensinavam tanto... Traziam a certeza da esperança, garantiam a vitória do mais fraco, aplacavam as angústias difusas, davam forma às bruxas fora da gente. (...) Um dia põem a bruxa no fogo e quando ela grita:

_ Água, meus netinhos... Eles podem ser malcriadíssimos e gritar: _ Azeite, minha vozinha...

As histórias da vida, também, trazem em si a possibilidade de redenção. Através das histórias, da fantasia – exercício de reflexão e de pensamento – a criança supera a frustração, transformando-a numa certa liberdade em aceitar ou recusar as coisas, discriminando-se enquanto sujeito de suas ações. Não se trata apenas de um caminho para tornar-se “senhor” da experiência, mas, sobretudo, de poder superar as marcas provocadas pelas ressonâncias das múltiplas vozes que ecoam em nós, advindas dos conhecimentos e dos conceitos apreendidos.

O indivíduo introjeta os significados, a partir dos vínculos que estabelece com dois tipos de experiência: o da gratificação e o da frustração. O mundo interno é constituído por um processo de progressiva internalização dos objetos e dos vínculos, cujo processo encontra-se em permanente interação com o mundo exterior e interfere, constantemente, na constituição da identidade e da autonomia do indivíduo.

O vínculo é sempre um vínculo social, fruto das interações entre os sujeitos. Portanto, a relação com o outro será pautada na repetição de vínculos fundados num tempo e num

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espaço, onde o papel que se desempenha no grupo, o lugar que se ocupa e a comunicação que se estabelece irão influenciar a elaboração e o desenvolvimento de novas possibilidades na formação dos conceitos e, certamente, de vínculos posteriores.

A “menininha” descreve as frustrações experimentadas desde a primeira vez que ouviu a palavra imprestável. Mesmo quando não sabia bem o que queria dizer, já compreendia que nada de muito bom poderia ser, pois a entonação com que era articulada sugeria algo de ruim, “evidentemente negativo, pelo tom de voz em que era insistentemente pronunciada”. A menina passa por um longo e árduo trabalho na formulação do conceito que mais pesou na constituição de sua identidade. Essa marca a acompanhará por toda a vida – ainda que tudo seja re-significado, jamais será esquecida. Quando ela fala sobre si, já adulta, ressalta o quanto ainda age sob a influência do vínculo que estabeleceu a partir da palavra imprestável. Diz que “levou algum tempo para descobrir que podia errar (...). Ninguém via o tamanho da doença que isso representava. Só ela, que convivia com essa dor desde menina”.

Sob tal perspectiva, é impossível pensar as relações humanas fora daquilo que as caracteriza: o grupo social.

A família se coloca como a base da estrutura dos vínculos com o outro, cujo material básico é a comunicação. Por exemplo, o bebê que não sabe falar, comunica sua fome, dor e mal-estar com o choro; se a mãe entende a mensagem, prontamente, volta-se para atendê-lo na satisfação de suas necessidades. Estabelece-se aí um vínculo, uma troca: o bebê sente-se feliz por ter sido saciado, a mãe recompensada por tê-lo atendido. Mas como nem toda experiência tem como resultante a gratificação, o vínculo pode ser de dois tipos: o bom e o mau. O fato de ambos os conceitos – bom e mau – serem opostos não quer dizer que se possa estabelecer, apenas, vínculos bons ou maus. Ambos estão presentes em todas as experiências (como no caso da “menininha”, que, apesar do sofrimento, acabou fazendo uma síntese positiva – o que só foi possível a partir de outros vínculos, como a relação com os pais através da literatura, a “divisão do peso” com os outros irmãos etc.).

Dessa forma, o desenvolvimento humano sempre enfrentará obstáculos que impedem o alcance de uma harmonia plena. O conflito, a busca de soluções, a adaptação se inserem como necessidades específicas que resultarão na aprendizagem da realidade. O real, entretanto – e, em tempo algum –, será compreendido de uma só maneira, não conterá apenas uma ótica ou exprimirá uma única verdade: a diversidade, tanto dos sentidos quanto das ações, precisa ser levada a efeito, no sentido de que cada sujeito é singular na sua forma de sentir, de ver e de agir no mundo, podendo, no entanto, transformar e ampliar suas possibilidades reais de intenções e de interações, de forma a alcançar melhor qualidade de vida e maiores possibilidades de ação.

1.1.5.6. Implicações Educacionais na Formação dos Conceitos

Vygotsky explica o papel da escola no desenvolvimento da criança, firmando uma distinção entre conceitos cotidianos e conceitos científicos. Os conceitos cotidianos instalam-se no psiquismo a partir da experiência pessoal, concreta e cotidiana das crianças. Ao passo que, os científicos são os elaborados e fundados na sala de aula, por meio do ensino sistemático.

Os conceitos científicos aludem-se àqueles que não estão, diretamente, acessíveis à observação ou à ação imediata da criança, mas dependem da sistematização das práticas

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pedagógicas propriamente ditas. Incluem-se num sistema conceitual gradativo de abstrações, adquirindo cada vez mais abrangência e complexidade.

O processo de formação dos conceitos, sejam cotidianos ou científicos, abarca operações intelectuais guiadas pela utilização e pelo partilhar das palavras. Para a internalização de um conceito, faz-se necessária uma grande atividade mental, além das informações externas recebidas. Ou seja, “o desenvolvimento dos conceitos ou dos significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar. Esses processos complexos não podem ser dominados apenas através da aprendizagem inicial”. Portanto, “o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante a um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo” (VYGOTSKY, 1989: 72).

Segundo essa perspectiva, o espaço escolar, então, deve funcionar de forma a desafiar e a exigir do intelecto da criança e do adolescente. A escola proporciona ao aluno um conhecimento sobre coisas e fatos que não estão disponíveis à percepção ou à experiência diretas, fornecendo as bases para o acesso ao conhecimento construído e acumulado pela humanidade, ao longo do tempo, possibilitando, assim, a criação de novos conhecimentos, que farão a história posterior.

“O aprendizado escolar induz o tipo de percepção generalizante, desempenhando assim um papel decisivo na conscientização da criança dos seus próprios processos mentais. Os conceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter-relações, parecem constituir o meio no qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros conceitos e a outras áreas do pensamento. A consciência reflexiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos” (VYGOTSKY, 1989: 79).

1.1.5.7. Contribuições de Vygostky para a Educação Especial

Tomando o referencial sócio-histórico como concepção de educação, torna-se possível ultrapassar a visão naturalística de homem, passando-se a conceber o signo lingüístico como produção cultural que afeta radicalmente a natureza biológica do psiquismo. Para Vygotsky, no processo geral de desenvolvimento, há duas linhas qualitativamente diferentes do desenvolvimento, que diferem quanto à origem: de um lado, os processos elementares, de origem biológica; de outro, as funções psíquicas superiores, de origem sócio-cultural. Mas é do entrelaçamento dessas duas linhas que a história do comportamento da criança emerge.

Considera-se que o entrecruzar do desenvolvimento natural e o do histórico-cultural pode resignificar, radicalmente, a noção sobre a deficiência. Vygotsky afirma que o desenvolvimento cultural se constitui no maior desafio para a Educação Especial, pois o desenvolvimento orgânico se realiza em um meio cultural, onde um defeito originado do desenvolvimento biológico altera o percurso do processo de inserção na cultura. Porém, a cultura está preparada para as interações típicas da “normalidade”8, dificultando ou impedindo as crianças com desenvolvimento atípico de usufruírem das produções culturais.

8 O termo normalidade encontra-se entre aspas para evidenciar sua contradição e ambigüidade.

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O uso do termo “desenvolvimento atípico” se aplica ao limite imposto pelo biológico, o que não significa conceber o desenvolvimento dessas crianças como se fosse regido por leis diferentes – abordagem biológica do desenvolvimento. Ao contrário, Vygotsky enfatiza que o desenvolvimento da criança portadora de deficiência é governado pelas mesmas leis gerais do desenvolvimento da criança “normal”, ressaltando a importância dos aspectos sociais e culturais – a aprendizagem – para a superação das dificuldades apresentadas por essas crianças.

Vygotsky faz uma crítica ao uso de testes de QI para a triagem de crianças, uma vez que estes podem apenas detectar o nível de desenvolvimento real – aquilo que a criança realiza de forma independente –, argumentando que os referidos testes se ancoram no ponto fraco da criança. Por isso, propõe que se leve em conta não só a gravidade da deficiência, mas também a incorporação de estratégias pedagógicas capazes de distinguir entre deficiência e dificuldade, visado à superação desses problemas, através de práticas eficientes. Dito de outra forma, Vygotsky apresenta uma teoria que salienta a forma de levar a criança de um estado atual de aprendizagem e de desenvolvimento para um ponto no futuro – nível de desenvolvimento potencial –, acentuando que o papel do professor e de outros sujeitos mais competentes é indispensável na mediação do mundo para a criança.

Isso caracteriza, segundo Vygotsky, a lei psicológica que aponta que qualquer função psíquica aparece duas vezes no desenvolvimento humano: primeiro, entre pessoas, no plano social; depois, no interior da própria criança, no plano psicológico. A manifestação dessa lei se dá no domínio do conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, lugar onde as ações educacionais devem ancorar-se para que não o passado, mas o futuro do desenvolvimento, o desenvolvimento potencial, possa vir a se fazer presente, transformando-se em desenvolvimento real e, assim, abrindo novos horizontes ou novas zonas de aprendizagens.

Vygotsky aponta que as crianças portadoras de deficiência desenvolvem mecanismos compensatórios de suas funções, cuja nova organização orienta o funcionamento psicológico na superação dos limites impostos pela deficiência. Mais uma vez, ressalta-se a importância da eficácia da estratégia pedagógica utilizada com o objetivo de fornecer condições adequadas e ajustadas às necessidades educacionais especiais da criança.

As condições adequadas e ajustadas dizem respeito às adaptações – no caso da escola, as curriculares – que contribuam para o desenvolvimento dos mecanismos de compensação, que são não apenas os caminhos alternativos (o uso de língua de sinais; o Braille; etc.) que permitem o acesso aos conhecimentos, como também a interação com outros sujeitos, agentes impulsionadores do desenvolvimento.

À medida que a criança portadora de deficiência passa a ser vista como aquela que usa e precisa usar diferentes instrumentos para ter garantido o seu desenvolvimento pleno, a Educação Especial precisa desempenhar a tarefa de colocar à disposição do aluno a diversidade de instrumentos peculiares, de forma a viabilizar o desenvolvimento de seu processo social e cultural. Ou seja, a criança portadora de deficiência tem o direito ao acesso a instrumentos especialmente desenvolvidos para ela e a Educação Especial, o dever de criar esses instrumentos. Assim, a concepção teórico-prática do trabalho pedagógico move-se do lugar onde o aluno portador de deficiência não é capaz de fazer, para o do realizar com a colaboração do outro em condições adequadas de interação e interlocução, num contexto permanente de diálogo e de significação no uso de diferentes linguagens.

Surge, aqui, a prática pedagógica que compreende o desenvolvimento e a aprendizagem da criança portadora de deficiência, orientada para a reorganização da personalidade do aluno como um todo, criando recursos adicionais de forma a permitir que

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alunos e professores se envolvam na tarefa educativa de modo significativo. Mas para que a tarefa significativa tenha lugar, é fundamental que a ação educativa não “abra mão” do conceito de zona de desenvolvimento proximal – distância entre os níveis de desenvolvimento real (aquilo que a criança põe em prática sozinha) e potencial (aquilo que a criança só consegue realizar com a colaboração de outro sujeito) – para que as interações entre adulto e criança, ou entre criança e criança, aconteçam de forma a impulsionar o desenvolvimento sempre para um estado futuro (potencial) – visão prospectiva.

De modo geral, a avaliação do aluno portador de deficiência só se preocupa com o nível de desenvolvimento real, inferindo a partir daí as possibilidades de aprendizagem da criança. Uma prática de avaliação desse tipo absorve-se em tabular, quantificar e descrever as fraquezas ou as deficiências, pois se baseia no platô evolutivo9 (no atraso) do desenvolvimento da criança (visão retrospectiva).

A visão vigotiskiana de desenvolvimento potencial fornece subsídios fundamentais para a definição da prática pedagógica adequada às necessidades educacionais especiais do aluno, uma vez que aponta na direção do que a criança pode realizar em colaboração com outras pessoas. Essa mudança de olhar – da visão retrospectiva para a visão prospectiva –, frente ao desenvolvimento da criança, traz implicações impactantes sobre o currículo, as práticas pedagógicas, as relações interpessoais, o papel do educador e o do aluno, a função da escola e a avaliação na Educação Especial.

O desenvolvimento do currículo deve indicar objetivos de colaboração e de tomada de decisões estruturadas, enfatizando o planejamento, a implementação e a avaliação como um modelo de sistema, cuja finalidade é interferir nas práticas que irão garantir a qualidade do ensino e a real inserção do aluno nas práticas sociais.

Como os professores podem criar zonas de desenvolvimento proximais (ZDP) com os alunos e que implicações isso teria para o sistema escolar? Como proceder as adaptações curriculares para a Educação Especial? Como desenvolver uma prática pedagógica para o aluno com necessidades educacionais especiais?

“Isso significa que o professor começa a ensinar à criança com um determinado objetivo em mente e, em seguida, modifica esse objetivo por meio de uma série sistemática de interações, durante as quais a aprendizagem da criança é monitorada, até que se possa observar que a criança está fazendo progressos. Quando o sucesso é alcançado, um novo objetivo é selecionado e o processo recomeça” (EVANS, 1994: 79).

O destaque dado ao papel dos aspectos sócio-históricos nas práticas educacionais e ao papel do professor com mediador da cultura pode responder às questões acima formuladas. A educação tem como função fundamental levar a criança a organizar o conhecimento e as experiências numa ação que faz sentido para todos os parceiros envolvidos no seu processo de desenvolvimento.

9 Em momentos como esse, o tão anunciado direito à Educação é negado: por um lado, liga-se à baixa

expectativa com relação às possibilidades de aprendizagem; por outro, converge-se para conteúdos curriculares específicos que valorizam, na maioria das vezes, a formação de hábitos e atitudes, a socialização. Certamente, a Educação não pode se resumir a esses termos, pois o acesso ao currículo “formal” é uma das prerrogativas para a Inclusão.

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Um sistema estruturado que objetiva a aprendizagem bem sucedida, não apenas para o aluno, mas também para o professor, precisa ser realimentado por um processo de avaliação constante, o que irá permitir que sejam feitas modificações sistemáticas e eficazes na direção das metas traçadas. Determina-se o currículo, aperfeiçoando-se os programas de ensino que melhor conduzem a concretização das metas.

O currículo move-se para melhor atender às necessidades dos alunos. Para isso, faz-se necessário que professores (e demais agentes do universo educacional) envolvam-se, através da pesquisa-ação, na tarefa criativa de desenvolvimento do currículo, compreendendo sua natureza pedagógica, flexibilizando-o para perceber e alcançar os processos de aprendizagem dos alunos.

“(...) os objetivos derivados da pesquisa de ação pelos professores, a partir do processo de ensino e debate, têm funções especiais. Uma delas é estimular a comunicação entre professores e alunos, mas serve, também, como uma base sólida para a comunicação entre os professores, e entre professores e outros. Dessa forma, servem como instrumentos de aprendizagem para alunos, professores e terceiros” (EVANS, 1994: 82).

A orientação filosófica, os fins e metas, o conteúdo curricular, bem como as ações práticas referem-se a essa tomada de decisões, acima citadas, que a Educação Especial quer ver concretizadas.

Para que esse contexto possa ser vislumbrado na prática, não se pode deixar de ressaltar dois importantes aspectos: a) todo o professor necessita de formação constante para atuar junto aos alunos; b) os sistemas educacionais precisam tomar para si a responsabilidade de adaptar-se para atender ao grupo de alunos como um todo – passos fundamentais na direção da Educação Inclusiva.

Visto isso, professores e instituições de ensino incorporando a luta pela inclusão, como algo de relevância para a melhoria de vida no planeta, e como fundamental função da escola a garantia de acesso ao conhecimento e a construção de práticas cidadãs, as contribuições da perspectiva sócio-históricas se fazem presentes na concretude das relações pedagógicas e educacionais.

Segundo a concepção sócio-histórica, a Educação Especial tem a tarefa de criar formas de trabalho que correspondam às peculiaridades do educando, não significando com isso posicionar-se como mero instrumento facilitador de alívio e de superação das dificuldades impostas pela deficiência, mas como possibilidade real e concreta sobrelevação das conseqüências da deficiência no processo de constituição da personalidade e do desenvolvimento da criança.

1.1.6. A<Proposta Curricular da Educação Especial no Município do Rio de Janeiro

O Município do Rio de Janeiro consolida, com a publicação da MULTIEDUCAÇÃO, em 1996, uma nova concepção de organização curricular, refletindo sobre o que é um Currículo, procurando vinculá-lo à realidade e aos sentidos da vida.

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Quando se pensa o conceito de currículo no contexto da educação, revelam-se os referenciais teóricos que orientam ou orientaram seus autores, assim como suas concepções de educação, de conhecimento, de desenvolvimento, de aprendizagem, de escola, professor e aluno, de infância etc.

A organização curricular proposta pela MULTIEDUCAÇÃO nos interroga “sobre a natureza dos conteúdos a serem incorporados aos currículos, sobre o contexto social e histórico em que ocorre a educação e sobre que tipo de conhecimento está em sintonia com o tempo em que vivemos e com os alunos que temos” (MULTIEDUCAÇÃO: 107).

Nessa perspectiva, a política educacional do Município do Rio de Janeiro busca uma escola capaz de desenvolver um currículo comum de experiências, onde o local e o universal – o múltiplo10 – têm destaque, transformando a escola num espaço democrático de produção cultural.

Seguindo essa visão de educação, o Núcleo Curricular Básico tem que estabelecer o que é fundamental na interação entre escola e vida. E, quanto a isso, a Multieducação revela sua essência: “propiciar ao aluno a apropriação de meios para se situar no mundo em que vive, entendendo as relações que nele se estabelecem, criticando e participando de sua transformação” (MULTIEDUCAÇÃO: 108).

A proposta é poder lidar com a escola tal como ela é: plural, não só pelas possibilidades de ação, como também pela variedade de contextos sociais e culturais de pessoas de diferentes lugares, idades, valores, crenças, idéias, hábitos e, sobretudo, necessidades.

Aqui, também se faz presente, além do respeito às diferenças, a garantia a TODOS do direito a uma educação de qualidade, voltada para o pleno exercício da cidadania, lendo, escrevendo, calculando, entendendo as relações com o mundo e estabelecendo outras novas, transformando e recriando a realidade para a melhoria da vida no planeta.

1.1.6.1. Um Norte: a escola cidadã As transformações sociais são inegáveis. Se as sociedades mudam, a escola tem que

acompanhar essas mudanças, senão acaba por perder sua função social, que é a de ambiente privilegiado para a constituição de conhecimentos, conceitos e valores pertinentes para o pleno desenvolvimento do sujeito.

Para que uma articulação entre escola e vida cidadã possa ser feita, é necessário o reconhecimento de que alunos e professores, e também os demais profissionais da educação, são sujeitos de direito e de deveres a serem respeitados e reconhecidos. Porém, para que isso se concretize na prática, faz-se necessário uma estreita ligação entre os conhecimentos escolares e o cotidiano vivido pelos atores da instituição escolar. Aqui, o termo currículo ganha novo peso e significado, visto como processo contínuo de análise e reformulação, num movimento constante de problematização e questionamentos.

E, por isso, o Núcleo Curricular Básico da Multieducação propõe Princípios Educativos e Núcleos Conceituais capazes de nortearem o repensar e o replanejar dos

10 O próprio termo MULTIEDUCAÇÃO por si só revela esse compromisso.

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envolvidos no cenário educacional, visando a uma sociedade mais justa e democrática para seus cidadãos.

Os Princípios Educativos são: meio ambiente, trabalho, cultura e linguagens. E os Núcleos Conceituais: identidade, espaço, tempo e transformação. Um quadro esquemático dos objetivos do Núcleo Curricular Básico, retirado da proposta curricular do Município do Rio de Janeiro – a MULTIEDUCAÇÃO –, pode ser consultado no Anexo [1].

1.1.6.2. A Multieducação e a Educação Especial A Multieducação pretende assegurar o Núcleo Curricular Básico para todo e qualquer

aluno, incluindo os portadores de deficiência, uma vez que quer vê-los participando da sociedade de forma plena, permitindo-lhes o exercício de seus direitos como cidadãos.

A Educação Especial visa a garantia dos mesmos princípios fundamentais e núcleos conceituais do Ensino Básico a todos os alunos portadores de necessidades educacionais especiais, ressaltando a necessidade de serem promovidas as devidas adaptações, de forma que todos os alunos sejam atendidos nas suas especificidades.

A Multieducação nos possibilita refletir sobre os caminhos e alternativas a serem traçados para que o aluno portador de deficiência possa ter acesso à qualidade de ensino.

Porém, para que a qualidade do ensino seja alcançada, propõe-se que cada professor analise os objetivos resultantes da articulação entre Princípios Fundamentais e Núcleos conceituais, cuja finalidade é a atenção às especificidades de cada sujeito para seu desenvolvimento como um todo.

Os objetivos suscitados pelo Núcleo Curricular Básico requerem a relevância e a observação de dois aspectos interagentes:

do quanto o aluno já conseguiu de conquistas, apesar das especificidades;

das propostas apresentadas – o planejamento, a organização em sala de aula – e das metas que pretendemos alcançar.

Se tomarmos o objetivo da articulação entre o princípio educativo Linguagens e o núcleo conceitual Tempo como exemplo: “estabelecer interação com as linguagens de seu tempo, analisando criticamente o poder das tecnologias de comunicação, tornando-se não apenas um receptor, mas um produtor de significados”. Então, estaremos viabilizando o contato e a apropriação por parte dos envolvidos com as variadas linguagens presentes no mundo, através do sentido e do significado que as ressonâncias das mesmas podem surtir em nós.

Entende-se como Linguagem11 toda e qualquer manifestação que provoque a interação entre dois ou mais agentes, que não apenas agem sob a perspectiva de receptores ou emissores de mensagens, mas principalmente, como produtores de significados e provocadores de novas demandas de interação. Ou seja, “trata-se de um processo a ser construído com os alunos concretos que temos diante de nós e não uma proposta abstrata onde alguns entram e outros ficam de fora, devido ao grau de deficiência” (MULTIEDUCAÇÃO: 99).

11 O termo refere-se à multiplicidade de expressões: o olhar, o gesto, o movimento, a fala, a moda, a

música, o teatro, a mídia, as artes plásticas, da literatura, do cinema, da TV, da Internet, o silêncio etc.

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O múltiplo está presente em toda a concepção da Multieducação, que propõe respeito à diversidade, considerando as variedades de situações e as diferenças no agir e no pensar, como a possibilidade de transformação da educação excludente em Educação Inclusiva – para todos.

“Daí vale repetir que para que esta prática possa acontecer é importante que façamos da escola um grande espaço social, um lugar onde caibam a ousadia, a criatividade, sonhos e diferentes falas. Lugar onde se possa assumir a liberdade de saltar as cercas; quando as exigências desafiadoras do conhecimento forçarem e, especialmente, onde o trabalho solidário entre direção, professores, alunos e suas famílias passem a ser uma prática efetivamente vivenciada. Para tanto, é necessário rever o que nos parece seguro e certo, desconfiando de verdades estabelecidas e também dos nossos preconceitos, procurando investir de modo ousado nas possibilidades dos alunos, mesmo daqueles que apresentam problemas mais complexos.”(MULTIEDUCAÇÃO: 192, 193)

1.1.7. Práticas Pedagógicas Inclusivas e suas Implicações Curriculares

Neste capítulo, a intenção é discutir o papel da escola na organização das adaptações necessárias ao sucesso do aluno portador de deficiência incluído na rede regular de ensino. Para isso, privilegiaremos algumas produções e práticas pedagógicas de sucesso, no âmbito do ensino especial, baseadas no modelo e no referencial teórico sócio-histórico, cujas concepções de educação, de currículo, de conhecimento, de desenvolvimento e aprendizagem, de professor e de aluno são assumidas nesse trabalho.

A visão tradicional de currículo que, de modo geral, orienta a organização escolar, pauta em procedimentos, técnicas e métodos preocupados com a transmissão de “conhecimentos” e com a fixação destes, através de atividades meramente mecânicas por parte tanto do professor como do aluno. Os conteúdos são selecionados de forma acrítica, sem uma contextualização com a realidade e, na maioria das vezes, desprovidos de sentido para os alunos, concebidos como meros receptores do conhecimento.

Entretanto, apesar da prevalência das práticas pedagógicas tradicionais e instrumentalizadoras, pode-se perceber um esforço, cada vez maior, por parte das políticas públicas e dos educadores, em instituir uma prática pedagógica voltada para a qualidade do ensino, amparada numa visão crítica de currículo.

A perspectiva crítica de currículo dá um passo importante em relação ao como ensinar – ênfase do currículo tradicional –, pois, apesar de admiti-lo como um importante componente curricular, relaciona-o ao por quê, para quê e a quem se dirige o ensino, analisando e discutindo essas questões nas suas relações com o processo ensino/aprendizagem.

A função da escola é ensinar, cuja concretização se dá no processo de aprendizagem e de apropriação de conhecimentos e habilidades acumulados na história da humanidade, bem como no de criação de novos conhecimentos que emergem dessas relações sociais, incorporados na história futura, por parte dos envolvidos – professores e alunos. Quando o

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ensino é concebido dessa forma, rejeita-se a visão de escola como simples transmissora de conteúdos prontos e acabados, desvinculados das realidades dos sujeitos e desprovidos de sentido e significação.

O saber, numa visão crítica de currículo, é compreendido na sua amplitude cultural e histórica, onde alunos e professores são sujeitos interativos, orientados por princípios, propósitos e metas, intencionalmente, voltados para a dialética dos saberes. Como nos aponta SAVIANI (1991: 21), “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.

Outro aspecto importante na organização do currículo diz respeito à relação entre conteúdo e método. Na orientação tradicional, o conteúdo está submetido ao método, reduzido a técnicas, recursos e procedimentos didáticos. Porém, para o currículo criticamente organizado, as relações entre conteúdo e método constituem uma unidade de entrelaçamento da função educativa e da participação social, supondo uma trajetória de mediação entre o objeto e o sujeito do conhecimento, ou seja, entre o conhecimento e o uso deste, por parte dos agentes sociais.

Assim, algumas questões fazem relevantes:

Em que se constitui o ensino escolar?

Que conteúdos privilegiar?

Como organizá-los?

De que forma garantir as aprendizagens?

O currículo deve ser o produto da seleção da cultura onde a escola está inserida. Aqui, compreende-se que a escola não transmite de forma didática os saberes, mas converte os saberes históricos e culturais em saberes escolares. O conteúdo, então, será fruto dessa seleção que entende os conhecimentos e os valores como o fio condutor da ação pedagógica numa atividade objetiva de relevância social e humana, norteada pela estrutura particular de cada disciplina ou área de conhecimento, visando a captar os processos psicológicos pelos quais alunos e professores se apropriam dos saberes e os processos pelos quais a mediação entre o objeto e sujeitos do conhecimento se faz presente.

No entanto, para que objeto e sujeitos do conhecimento possam ser concebidos histórica e socialmente, pressupõe-se uma ação educacional específica: aquela que viabilize e garanta uma atitude prática significativa. Nesse contexto, o professor assume o papel de mediador dessa relação, onde a interação e a intervenção constantes possibilitem o avanço do aluno no seu processo de desenvolvimento e de conhecimento do mundo, garantindo, assim, uma participação social plena.

De modo geral, as questões levantadas sobre o contexto escolar se estendem ao currículo da Educação Especial, que deve ser o mesmo para todos os alunos, ressalvadas as devidas adaptações às necessidades especiais do portador de deficiências. Faz-se importante ressaltar que os conteúdos não podem e nem devem ser selecionados a partir do rebaixamento das metas e dos objetivos a serem atingidos – prática comum e recorrente do ensino especial frente à baixa expectativa de aprendizagem do aluno portador de deficiência.

A expressão da baixa expectativa que afeta o aluno do ensino especial, diz respeito, principalmente, ao portador de deficiência mental, considerado incapaz de alcançar um

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pensamento abstrato; com isso, as praticas pedagógicas se limitam ao uso de métodos que privilegiam o trabalho concreto junto ao aluno, eliminando qualquer experiência de exercício e de desenvolvimento do pensamento abstrato. Porém, se é justamente o desenvolvimento das habilidades de pensamento abstrato o que o portador de deficiência mental mais precisa para impulsionar o seu desenvolvimento, então, não se justifica sua eliminação. Ao contrário, uma prática dessa natureza apenas reforça a deficiência, ao invés de possibilitar o avanço na direção da construção de conceitos.

Cabe à escola levar o aluno portador de deficiência na direção do pensamento abstrato, transformando o seu nível de conhecimento concreto num nível superior de conhecimentos, ou seja, a transformação do desenvolvimento potencial em desenvolvimento real, abrindo novas zonas de desenvolvimento proximal.

Uma prática pedagógica mediadora, onde o professor atua na ZDP (zona de desenvolvimento proximal) do aluno, pode ser exemplificada com a situação que se segue, observada numa classe de RM, que funciona numa Escola Pública da Cidade do Rio de Janeiro12.

São oito alunos portadores de deficiência mental, em processo de letramento (alfabetização). A professora inicia a atividade de sala de aula contando uma fábula de Esopo13 – “A raposa e as uvas”. Ao final, pergunta: Pr.: Vocês gostaram da história? A maioria não responde. Ela insiste: Pr.: Rafael, o que você achou da história? Rafael permanece em silêncio. Pr.: Rafael, eu estou falando com você (aproximando-se dele)... O que você achou da história? Rafael: Gostei! Pr.: Gostei não é resposta... Gostou de quê? Rafael: Da história. Pr.: E você, Natasha? Natasha: Eu queria que ela tivesse comido. Pr.: E por que a raposa não comeu as uvas, Victor? Victor: Não quis. Pr.: Não quis? Olhem, vou ler novamente e quero que todos prestem atenção... A professora relê a fábula e, logo após, propõem atividades diversificadas para o grupo. Então, reúne dois alunos, Natasha e Rafael, dando segmento ao processo de interlocução: Pr.: Vou ler de novo a fábula para vocês. E sei que podem prestar atenção. Natasha você sabe o que é uma raposa? Natasha: Um bicho. Pr.: Isso mesmo. E você Rafa, já viu uma raposa? Rafael: Mas que que é isso...?!! Ela pega a gente.

12 Todas as situações relatadas nesse trabalho foram observadas na rede pública de ensino do Município

do Rio de Janeiro. Portanto, as denominações das modalidades dizem respeito à estrutura de ensino do referido município (capítulo 3).

13 “A Raposa e as Uvas – Morta de fome, a Raposa viu um vinhedo carregado de cachos enormes. Mas por mais que tentasse, não conseguia alcançá-los. Depois de tantos esforços inúteis, foi embora dizendo: — Quem quiser essas uvas pode pegar, estão verdes, estão azedas. Se alguém me desse essas uvas, eu não comeria”.

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Com esse material, podemos pressupor que tanto Natasha quanto Rafael possuem um conceito de “bicho”, sendo que Rafael amplia seu sentido quando aponta para os perigos de sua natureza. Então, o trabalho da professora não pode permanecer centrado no que essas crianças já conhecem, mas sim levá-las a se apropriarem de algo novo.

Pr.: Rafa, você tem medo de algum bicho? Rafael: Eu não, eu sou forte. Pr.: Mais forte que qualquer bicho? Natasha: Que leão, não. Rafael: Que tubarão, não. Pr.: Vocês viram o tubarão que apareceu na praia de Copacabana? Natasha: Eu vi. Na televisão. Pr.: E você Rafa? Rafael: Eu vi. Na televisão. Bateram nele... Mataram. Pr.: Esse não foi o que apareceu na praia de Copacabana, mas na praia de Grumari. E as pessoas bateram tanto no tubarão que acabou morrendo... (Alunos e professora permaneceram por algum tempo falando sobre diversos assuntos, até que o objetivo da atividade proposta fosse, novamente, resgatado). Mas eu ainda não consegui contar a fábula... Eu gostaria que vocês prestassem bem atenção, porque a raposa faz uma coisa e diz outra. Quero ver quem vai saber o que é?

A professora, preocupada em não perder de vista seu objetivo principal, levar ao conhecimento das crianças variadas formas de linguagem e possibilitar a competência para interpretá-las, insiste na atividade, demonstrando acreditar na capacidade de seus alunos para compreenderem o sentido presente no texto, considerando importante que os alunos desenvolvam o senso crítico frente às situações de vida. Uma fábula contém informações nas “entrelinhas”. Nessa forma de discurso, o que se quer dizer, está dito de forma implícita: o explícito nada mais é que o seu oposto. A professora explicita isso para os alunos (“a raposa faz uma coisa e diz outra”), desafiando-os a descobrirem o que está encoberto. Essa atitude da professora movimenta o pensamento das crianças que, para “desvendarem o mistério” (o desafio), têm que questionar, investigar, refletir, enfim, exercitar a plasticidade do pensamento.

Pr.: E aí, quem descobriu porque a Raposa não comeu as uvas? Natasha: Ela não gostou das uvas. Pr.: Como você sabe que ela não gostou? Ela provou? Natasha: Não, ela viu que a uva estava verde. Pr.: Você já comeu uva? Alguma uva verde? Rafael: Eu já, minha mãe compra. Pr. E a uva verde que sua mãe compra é azeda? Rafael: Não, é docinha. Pr.: Então, se a Raposa não provou as uvas, por que ela disse que estavam ruins? Olha, prestem atenção a esse pedaço: “Mas por mais que tentasse, não conseguia alcançar”. Por que ela não conseguia alcançar as uvas? Rafael: Porque estava alto. Pr.: E você, Natasha? Natasha: Estava longe, no alto. Pr.: Mas você não disse que a raposa não comeu porque as uvas estavam verdes? Natasha: Não, foi ela que falou. Pr.: Sim, foi ela, mas você acreditou... E era verdade que a raposa não comeu por causa da acidez das uvas?

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Rafael: Não, ela não conseguiu. Pr.: O que que a Raposa falou e não era a verdade? Natasha: Ela falou que não queria uva e queria. Rafael: Ela não conseguiu pegar a uva e falou que não quis. Ela quis, foi o alto que não deixou. Pr.: Isso mesmo... Muito bem! Será que a gente pode brincar de falar uma coisa e fazer outra? Professora e alunos, então, se envolveram num jogo de faz de conta. Depois de algum tempo, a professora deixa Rafael e Natasha “jogando”, brincando e dirige-se aos outros alunos com novos objetivos em mente.

Analisando a situação acima citada, pode-se deduzir que caso o olhar da professora fosse guiado pela baixa expectativa, sua prática não teria avançado para além do concreto, rumo à formação de conceitos. Um olhar focado na deficiência limita o ensino em função das dificuldades dos alunos, não permitindo que os alunos avancem no seu desenvolvimento real, configurando-se como uma atitude paralisante. No entanto, a situação relatada demonstra que a professora vê nos alunos possibilidades de ultrapassarem aquilo que já sabem, por isso busca formas de interação e estratégias de ação para alcançar, junto com os alunos, formas mais complexas de pensamento, tornando possível a construção de pensamentos generalizantes e a aprendizagem de novos conhecimentos, forçando caminhos para que os alunos progridam e, ao mesmo tempo, para que novas metas possam ser definidas e novas conquistas alcançadas.

A dificuldade de abstração precisa ser superada, inclusive para que o aluno possa compreender e respeitar os limites impostos pala própria vida social, no exercício da cidadania e na internalização dos conhecimentos produzidos e sistematizados pela humanidade. Nesse contexto, a professora instaura um processo dialógico com os alunos, não desiste de sua meta, elevando-a a cada momento.

Se analisarmos o discurso impresso entre a professora e seus alunos, pode-se ver claramente que a ação pedagógica não se prende ao texto, ao que o texto quer dizer, ao contrário, os interlocutores vão lendo e produzindo sentidos nas condições determinadas pela aula e pelos sujeitos que ampliam os assuntos, relacionando-os à realidade vivida e sentida por eles. A concepção de leitura da professora não é a de codificação e decodificação de letras e fonemas, mas a de participação no processo de produção de sentidos, a partir de um lugar social (o da interlocução) e de uma direção (objetivo e metas) historicamente determinados, resultando em implicações e conseqüências, definindo a formação discursiva como móvel e aberta, cuja relação com as várias outras formações se articula com a ideologia operante, com as visões de mundo dos agentes do diálogo.

Segundo Orlandi (1988: 115), o sujeito se relaciona com a significação sob três aspectos: o inteligível, sentido atribuído pela codificação / decodificação; o interpretável, levando-se em conta o contexto lingüístico, sua coesão; o compreensível, considerando o processo de significação no contexto da situação, relacionando-se enunciado/enunciação. O processo de interação e interlocução citado abarca essas três vertentes para a produção de sentidos, uma vez que vai além da superfície do texto: os sujeitos precisam saber ler tecnicamente (codificar / decodificar), precisam pressupor o que o autor quer dizer (interpretar), mas precisam refletir sobre o texto, saber que o sentido pode ser outro, dependendo de como, onde e por quem vai ser lido (compreender o processo de significação) – exigência para o exercício pleno de cidadania.

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Para garantir o pleno exercício da cidadania, o portador de deficiência mental precisa conhecer e analisar as situações e os fatos da vida cotidiana: locomover-se com autonomia na comunidade; freqüentar os espaços públicos; utilizar dinheiro de forma a não ser enganado; saber ler tecnicamente e criticamente; reconhecer que os sentidos são dados nas relações; refletir sobre o que faz e suas conseqüências práticas etc. Assim, conhecer preço e quantidade de produtos não seria fundamental para o aluno com deficiência mental? Mas para isso, o professor precisa, primeiro, acreditar na potencialidade dos alunos para tal, e, depois, organizar o currículo de forma a superação das dificuldades. Vejamos outro exemplo de prática significativa, numa classe de letramento, de RM:

Uma professora organiza com sua turma um passeio ao supermercado próximo à escola. Antes, porém, procura dar suporte significativo para que o “passeio” se concretize na apropriação de conhecimentos. Em aulas anteriores, propôs que eles executassem uma receita de biscoito, pedindo que os alunos trouxessem de casa uma receita, que fora escolhida dentre as disponíveis. A professora leu a receita para eles, sugerindo que fizessem uma lista dos produtos necessários à confecção do biscoito. Pediu para que os alunos fossem registrando no quadro, em forma de palavras ou desenhos, de acordo com o conhecimento deles. Após, leram a lista e discutiram sobre os produtos, marcas e quantidades.

A professora, aproveitando a situação, lança mão de embalagens de diversos produtos e marcas de uso comum na vida diária: sabão em pó, manteiga, achocolatados, refrigerantes, biscoitos. Muitas marcas e produtos são conhecidos pelos alunos, que incluem os conceitos de produto e marca numa mesma categoria. Ela chama atenção para a diferença e para as possibilidades de leitura dos variados textos presentes nas embalagens: nome do produto, da marca, quantidade e peso, endereço postal e eletrônico, lista de ingredientes, datas de fabricação e validade, informações de uso, receitas, código de barras. A proposta percorre vários caminhos e a professora procura não deixar que a turma se afaste do objetivo: a compreensão e a apreensão de várias linguagens. Assim, viabiliza diversas atividades significativas para o desempenho dos alunos: pesquisa em revistas e jornais, confecção de slogans, de textos, de desenhos, brincadeira de faz de conta simulando um supermercado, onde os alunos compram e vendem produtos, recebem dinheiro e dão troco14.

No dia do passeio, a pesquisadora não esteve presente, porém, o resultado pode ser previsto a partir das atividades desenvolvidas pelos alunos e professora, onde o significado e o conteúdo das mesmas serviram de base para que os sujeitos envolvidos ampliassem suas possibilidades de ação e de compreensão do mundo. A professora assegurou a construção de conhecimentos, pautada na diversidade que constitui a realidade, fundando as relações de ensino na reorganização e na ampliação dos conhecimentos consolidados pelos alunos. A professora adota uma relação de ensino, tendo como ponto de partida os conhecimentos consolidados pelos alunos, assentando,assim, novas bases para o desenvolvimento destes. No entanto, é importante ressaltar que, tanto a relação pedagógica como a organização do ambiente, podem favorecer o acesso ao conteúdo curricular. A saber: os alunos tiveram o olhar atento da professora durante todo o tempo da aula; o intercâmbio de idéias foi uma

14 Na sala de aula, há grande quantidade de brinquedos e materiais que são usados para simularem os

produtos expostos no supermercado. Além de contar com várias cédulas, em miniatura, de dinheiro com valores diferentes.

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constante; o zelo pelo material pessoal e coletivo é uma regra cobrada e estimulada pela professora; as tarefas propostas foram significativas para os alunos, que desempenharam-nas de forma prazerosa e com interesse; nenhuma atividade mecânica – cobrir pontinhos, colorir figuras, ligar objetos, cópia de letras – se fez presente.

Outro exemplo de prática pedagógica, voltada para a superação das dificuldades acarretadas pela deficiência, é o de uma professora de uma Sala de Recursos – DV. Os alunos estão incluídos no sistema regular de ensino e freqüentam a sala de recurso em turno alternativo ao das atividades de sala de aula regular.

Fábio é um jovem de dezessete (17) anos, DF, e que, atualmente, apresenta um quadro de baixa visão. Ele está na quarta série do ensino regular, é ótimo aluno, sua participação social na escola vai além do seu papel de aluno, ele é o presidente do grêmio estudantil. Mas, à medida que sua visão diminui, limita sua ação no mundo, por isso, precisa aprender o sistema Braille de leitura. A escola onde estuda, em turma regular, não oferece a modalidade de SR-DV, então, a professora da sala de recursos de uma outra escola iniciou o trabalho de ensino do Braille. A referida professora recorre a vários recursos técnicos e humanos, que em sua concepção abarcam as necessidades do aluno: desloca-se de seu local de trabalho até à escola dele, duas vezes por mês, para dar suporte ao professor da turma regular – nesses dias, realiza também atendimento individualizado ao aluno; transcreve todo o conteúdo dos livros didáticos para o Braille e de forma ampliada; grava em fita cassete livros de leitura; conversa com os alunos e com os professores da classe, sobre as necessidades de Fábio – localização de carteiras, leitura dos assuntos escritos no quadro, explicação verbal; confecciona materiais didáticos necessários ao aprendizado do aluno; disponibiliza máquina braille, lupa, sorobã, reglete para o uso do aluno; orienta a prática dos coordenadores pedagógicos da escola, para que busquem, junto aos professores, saídas para os impasses encontrados no cotidiano da sala de aula e da escola de forma geral. Nos outros dias, Fábio freqüenta a SR-DV sob a responsabilidade da referida professora, cuja localização é a mais próxima de sua residência.

O que podemos apreender dessa experiência? Que, apesar das dificuldades, um ensino produtivo e eficiente pode se concretizar; para tanto, deve-se levar em conta as peculiaridades de cada situação e de cada indivíduo, direcionando as respostas educacionais apropriadas, no sentido de adotar os suportes indispensáveis às aprendizagens. Com as intervenções feitas pelo sistema escolar, o aluno tem seu acesso ao currículo garantido, sua participação social no grupo elevada, suas necessidades específicas atendidas.

Uma das expressões mais significativas no processo de inclusão do aluno portador de deficiência no sistema educacional diz respeito ao papel do professor e suas implicações práticas. Outras duas observações, numa mesma turma, podem auxiliar a reflexão dessa questão. Natasha, 15 (quinze) anos, 7ª série, portadora de uma visão subnormal desde os 3 (três) anos de idade, está incluída numa turma regular. O prédio da escola é vertical e foi totalmente reformado de forma a garantir o aceso físico de seus usuários a todos os espaços – elevador, corrimão nas escadas, rampa de acesso à cadeira de rodas na entrada, banheiros acessíveis etc. A escola conta também com outros equipamentos de suporte às aprendizagens dos alunos – DOSVOX, lupa mecânica, máquinas braille, livros transcritos à braille, computadores e programas adaptados para o uso do DV etc.

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As situações descritas a seguir ilustram o quanto a concepção de educação e de ensino do professor interfere no processo de aprendizagem do aluno. Ambas as situações ocorreram numa mesma turma – da qual Natasha faz parte – e traduzem visões diametralmente opostas sobre o que seja ensinar e aprender.

Situação 1

Aula de Artes Cênicas, cinqüenta minutos de duração: a professora inicia a aula fazendo a chamada, dirige-se ao quadro dispondo à matéria, pára e pergunta: Prof.: quem tem escala15 com Natasha, hoje? Thiago: é a Carolina, mas ela não veio. Posso fazer. Prof.: ok. Natasha, você pode se sentar ao lado de Thiago, que ele vai ler para você? Eu não vou ditar a matéria, porque é um resumo e vamos precisar dele no quadro, e além do mais hoje nosso tempo será mais curto e assim é mais rápido. A professora escreve no quadro: “Dicionário Teatral (cont.) Letra D”, dispondo abaixo os seguintes conceitos (diretor, dicção, dramaturgia, dramaturgo) e os respectivos significados dicionarizados. Enquanto a professora escreve no quadro, Thiago copia e dita para Natasha, ao mesmo tempo, ambos executam a tarefa de copiar, praticamente, junto com a professora. Ao mesmo tempo em que copiam, conversam sobre vários outros assuntos. A maioria dos alunos demora a finalizar a tarefa que se estende por quase toda a aula. Vez ou outra a professora dirige-se aos alunos, dizendo: “terminaram?”; “fiquem quietos, com essa barulheira não dá para dar aula; “será que vocês podem parar de falar?; “escutem, o barulho já está demais, assim vou apagar o que está no quadro e vocês não vão poder copiar, vão perder a matéria”. Os alunos parecem não ouvir a professora e continuam conversando, gritando, movimentando-se pela sala. Thiago e Natasha conversam entre si, o ambiente da sala vai se tornando cada vez mais barulhento, os alunos realizam a tarefa de forma mecânica. A pesquisadora aproxima de Thiago e Natasha e trava uma comunicação com eles. Pesquisadora: para que vocês estão aprendendo essa matéria? Natasha: ela já deu as outras letras (referindo-se às palavras iniciadas por A, B e C). Thiago: é a continuação. Pesq.: o que é dramaturgia, Natasha? Natasha, aproximando o olho do caderno, lê o que está escrito. A pesquisadora, então, colocando o braço sobre o significado de dramaturgo, pergunta: o que é dramaturgo? Tanto Thiago quanto Natasha tentam olhar no caderno para responder. A pesquisadora insiste: “não olhem, tentem lembrar”. Pesq.: vamos ver. O que é escrita? Natasha: é escrever! Thiago: é uma forma de registrar.

15 A professora da SR-DV, em conversa com os alunos e professores sobre as necessidades de Natasha,

produziu uma escala de atenção mais individualizada à aluna. Participa quem quer, não é uma imposição, mas, como a escola foi toda reformada e adaptada há pouco tempo, parece que os usuários da mesma estão mais sensibilizados quanto à inclusão.

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Pesq.: e o que é escritor? Natasha e Thiago: é quem escreve... Pesq.: então, sem ler, o que é dramaturgia? Natasha: é a arte de escrever para o teatro (repetindo exatamente o significado dado pela professora). Pesq.: sem ler, o que é dramaturgo? Natasha : não sei. Thiago: não lembro. Pesq.: o que é cozinha? Natasha: lugar onde se faz a comida. Pesq.: e o que é cozinheiro? Natasha: quem faz a comida. Pesq.: vamos ver se acertam agora. O que é dramaturgia? Thiago: escrever para o teatro. Natasha: arte de escrever para o teatro. Pesq.: e o que é dramaturgo? Natasha: não! É quem escreve? Cara, nunca mais esqueço isso, que fácil, não vou nem precisar estudar para a prova. A professora permanece sentada em sua mesa, esperando que todos acabem a cópia. Cinco minutos antes de terminar a aula, diz: estamos quase na hora, na próxima aula a gente continua, pega suas coisas e sai.

Situação 2:

Aula de História, cinqüenta minutos de duração. A professora entra em sala, pede que os alunos se acalmem (todos estão agitados, conversam, movimentam-se pela sala – a aula anterior havia sido a da situação 1) e abram o livro didático. Prof.: abram o livro na página 122, capítulo 7. Hoje, nós vamos falar da relação entre religião e política, no regime capitalista. O que é religião para vocês? Alunos: (muitas vozes ao mesmo tempo). Prof.: um de cada vez: você Sabrina. Sabrina: é uma crença. Thiago: é fé. Marcelo: é aquilo que a gente acredita. A professora vai apontando e ouvindo as respostas. Os alunos se agitam, todos querem falar, dar suas opiniões... Prof.: calma! Alguém nessa aula já ficou sem falar. História só se aprende pensando, falando. Todo mundo vai dar sua opinião, mas cada um na sua hora, porque senão não adianta, ninguém ouve ninguém. A religião trata de que questões? Aluno 1: das coisas da alma. Aluno 2: do espírito. Aluno 3: na Assembléia de Deus tudo é pecado, tudo é errado. Aluno 3: na igreja católica também tem pecado. Aluno 4: no espiritismo tem carma. Prof.: e que relação tem a religião com a política? Thiago: acho que tem toda, porque, dependendo da crença, eu não vou ter crítica nenhuma. Natasha: é, tem religião que deixa a pessoa toda bitolada.

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Aluno 6: é! Eu tenho uma tia que acha que o marido bebe e apronta por causa do encosto, aí vive rezando e ele continua aprontando. Puxa! Não tem nada a ver, ele é malandro mesmo. Aluno 7: e minha irmã que agora entrou para a Assembléia. Não faz mais nada, ela era da pá virada, mas agora parece uma freira. Só que ela era super legal, agora tá dedo duro, tudo ela conta prá mãe. Outro dia eu saí com uma amiga que minha mãe não gosta e ela contou e eu levei a maior bronca. Isso por acaso é legal? Ser fofoqueira é legal? Se tudo é pecado, isso devia ser também. Prof.: ah! Vocês estão me dizendo que a religião interfere nas condutas dos homens, é isso? Vocês conhecem aquela música chamada Romaria? ‘Sou caipira, pirapora nossa Senhora de Aparecida. Ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida...’ Alunos e professora cantam a música, depois a professora lê a letra. Prof.: o que acharam? Natasha: parece que tudo acontece porque Deus quer. Se o cara está desempregado, é porque Deus quis assim. Aluno 8: é se está doente, porque Deus quis. Não tem dinheiro... culpa de Deus. Aluno 9: por isso que os empresários se dão bem, porque o povo acha que eles têm dinheiro porque Deus decidiu assim. Então, ninguém se revolta com a exploração. Professora e alunos dão continuidade ao diálogo e a matéria vai sendo internalizada de forma crítica, cada um podendo revelar o que pensa, confrontar-se com os outros. Outras músicas com relação ao tema são lembradas. Prof.: na página 124 tem um questionário, respondam em casa e tragam na próxima aula. Natasha, esse capítulo já foi ampliado? Natasha: já, a professora da SR-DV já me entregou. Prof.: ok. Então agora quero que vocês façam uma poesia, uma letra de música relacionando religião e política, mas com uma visão crítica.

As Situações 1 e 2, acima relatadas, foram vivenciadas pelo mesmo grupo de alunos; a diferença, portanto, em relação à ação educativa, fica por conta da atuação pedagógica de cada professora. A primeira situação revela uma prática pedagógica mecanicista, baseada num referencial teórico comportamentalista; enquanto a Segunda, baseia-se numa relação dialógica, decorrente de um modelo de educação sócio-histórico.

Segundo o modelo mecanicista de educação, o sujeito é concebido como um ser passivo, controlado por forças externas, a conduta humana é compreendida a partir das respostas provenientes dos estímulos recebidos pelo meio externo. As práticas pedagógicas decorrentes do referencial teórico comportamentalista são marcadas pelo condicionamento, cuja relação pedagógica se caracteriza pela hierarquia, cabendo ao professor transmitir os conteúdos, através de treinamentos de funções. O aluno não passa de um mero receptor e reprodutor desses conteúdos e comportamentos previamente selecionados pelo professor. Do ponto de vista mecanicista, o aluno tem um papel passivo no processo de construção do conhecimento. O produto da ação educacional é a repetição do objeto do conhecimento, decorrente de uma ação mecânica, de um treinamento.

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A atuação da professora da Situação 1 exemplifica a visão mecânica de educação. Aqui, o sujeito é comparado a uma máquina que recebe as informações e executa as tarefas. Assim, o aluno é visto como um mero objeto a ser moldado pelo professor. E, quando a aprendizagem não é realizada, a culpa recai sobre o aluno, cuja capacidade de assimilação e reprodução do conhecimento falhou. O professor se considera o centro do processo, revestido de uma autoridade inquestionável, transmitindo os conteúdos de forma pouco significativa, baseados na memorização e na repetição, privilegiando o treinamento e, assim, afastando as possibilidades de interação, de diálogo e de colaboração entre os sujeitos que compõem a sala de aula. O ensino reduzido a treinamentos e a cópias, sem que o interesse e o prazer pelo conhecimento estejam presentes, gera um desânimo em relação às atividades por parte dos envolvidos, tornando-se forte candidato ao fracasso escolar. Quando os alunos conseguem corresponder às expectativas do professor, suas produções não passam de reprodução mecânica dos conteúdos decorados que em pouco tempo são esquecidos, tornando-se inúteis ao processo de desenvolvimento do aluno e à interação com o mundo que o cerca.

A professora da Situação 1 não consegue despertar o interesse dos alunos pela atividade, tenta controlar a conduta deles por intermédio de gritos e ameaças – “escutem, o barulho já está demais, assim vou apagar o que está no quadro e vocês não vão poder copiar, vão perder a matéria”. As interferências para regular a conduta dos alunos, a morosidade dos alunos em efetuarem a cópia do quadro, o ambiente tumultuado demonstram que a professora não soube organizar a rotina da sala de aula de modo a incentivar o interesse pelo conhecimento e a participação de todos na construção do saber. A professora confunde conhecimento com informação, disciplina com silêncio, aprendizagem com repetição mecânica das informações transmitidas, enfim, supõe que educar seja a mesma coisa que treinar. Tais concepções em nada contribuem para garantir ao aluno o pleno desenvolvimento e o acesso aos conhecimentos curriculares, ao contrário, transforma o espaço escolar num ambiente estéril; afastando o aluno do desejo pelo conhecimento.

Analisando a Situação 2, pode-se dizer que a relação travada entre a professora e os alunos está baseada no respeito, onde cada um tem um papel definido, porém interdependentes. Parece claro que para que alguém aprenda, alguém deva ensinar: e é o que acontece nesse grupo. A professora, através de uma relação dialética e dialógica com os alunos, garante que o conhecimento seja aprendido com base no significado e na compreensão do que está sendo dito, refletido, pensado por todos. A professora concebe seus alunos como agentes sociais, capazes de produzirem conhecimentos a partir das relações travadas com a cultura e a história. Quando inicia a aula, dirige-se aos alunos como sujeitos, onde cada qual tem um nome e uma identidade a ser respeitada e ressaltada, sabe ouvi-los, valoriza o que já conhecem, acredita na capacidade deles e investe na conquista de novos saberes.

A relação pedagógica travada na Situação 2 reveste-se de uma autoridade que requer o trabalho sistemático da professora, que concebendo-se como mediadora do conhecimento, é criativa na condução não somente do saber curricular, mas também da consciência de si, de seus deveres, direitos e responsabilidades, contribuindo para a formação de sujeitos capazes de pensar/repensar, fazer/refazer o amanhã. Assim, o aluno é visto como um ser que se constitui a partir da relação com os outros sujeitos sociais.

Portanto, para que o sucesso escolar seja alcançado, a educação precisa situar-se num espaço de interação e de diálogo, concebendo o aluno como um ser eminentemente social, sendo o processo de desenvolvimento e aprendizagem o produto de uma construção coletiva, decorrente dos conhecimentos e das intervenções da cultura e da história, cujo curso é móvel e dinâmico e sofre modificações constantes.

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Vimos, no capítulo 4, que a linguagem possui duas funções: a de comunicação, intercâmbio de idéias e pensamentos; e a intelectualizante. À medida que falo, comunico minhas idéias, ao mesmo tempo em que organizo meu pensamento. Ou seja, no momento da interlocução, o sujeito compreende melhor os conceitos, ampliando-os e, assim, concretizando o próprio pensamento. Por isso, a formação do sujeito tem que ocorrer num espaço de múltiplas vozes para que os sentidos e significados possam ganhar força e serem internalizados pelos sujeitos em formação. A postura da professora da Situação 1 se baseia no treinamento, onde um fala e os outros ouvem e executam – quem mais se beneficia dessa ação é o próprio professor que, quanto mais fala e expõe seu pensamento, mais se apropria de um conhecimento. Já na Situação 2, o conhecimento é algo que pertence a todos, é provisório e flexível, que se renova a cada expressão. A professora dialoga com seus alunos, dando sentido para a aprendizagem e criando significados para o conhecimento curricular. Essa atuação pedagógica localiza-se entre o sujeito e o objeto do conhecimento, caraterizando o que Vygotsky denomina de zona de desenvolvimento proximal – espaço intermediário entre o que os alunos já dominam e aquilo que precisam dominar.

No entanto, para que o professor possa agir dessa forma, ele tem que dominar o conhecimento, tem que assumir um compromisso com a aprendizagem do aluno, responsabilizando-se pelo acesso dos alunos aos conhecimentos escolares e fornecendo-lhes as bases para o pleno exercício da cidadania. Nesse caso, se o aluno não aprende, é porque o professor não está exercendo sua função, então, faz-se necessário mudar as estratégias de ensino – o que só é possível mediante a reflexão, o questionamento e as investigações, que irão fornecer as bases para o refazer pedagógico.

Portanto, as visões sobre o desenvolvimento e a aprendizagem determinam: os métodos e processos de ensino; o tipo de relação professor/ aluno; a seleção dos conteúdos a serem ensinados; os procedimentos de avaliação; os critérios de seleção e enquadramento de alunos por turmas.

O modelo mecanicista contribui para a ilusão de que o professor ensina quando transmite a informação, ao passo que o sócio-histórico articula-se com os conhecimentos através do diálogo, transformando-os em veículo de reflexão da própria prática, privilegiando a autonomia sobre o fazer/agir, que se traduz no como, no por quê e no para quê se aprende e se ensina.

O cotidiano da sala de aula deve promover a colaboração e a ajuda mútua, pois é na e pela interação com o outro que o aluno aprende e se desenvolve. O espaço da sala de aula é um local de encontro de saberes, de diferentes conhecimentos, onde todos os envolvidos têm o direito de expressão e de construção de novas maneiras de perceber o mundo.

Outro aspecto que a educação deve contemplar no seu curso, trata-se da relação com a comunidade e as famílias. Essa relação situa-se no âmbito dos movimentos sociais, tendo como eixo o conceito de cidadania e sua expressão plena, num exercício de movimentos sociais que mobilizam, pressionam e engendram mudanças no rumo da história.

“A cidadania não se constrói por decretos ou intervenções externas, programas ou agentes pré-configurados. Ela se constrói como um processo interno, no interior da prática social em curso, como fruto do acúmulo das experiências engendradas. (...) se constrói no cotidiano, através do processo de identidade político-cultural que as lutas cotidianas geram” (GOHN, 1992: 16,17).

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O caráter educativo dos movimentos sociais pressupõe uma concepção de educação que não se limita à transmissão dos conteúdos curriculares, mas também implica na criação de mecanismos capazes de elaborar estratégias de ação no enfrentamento das demandas e das necessidades da coletividade.

Um exemplo dessa dimensão educacional foi observado numa escola pública do Município do Rio de Janeiro. A cada dois meses, a educação especial reúne pais e responsáveis pelos alunos portadores de deficiência para uma avaliação dos processos de aprendizagens e de desenvolvimentos dos alunos, bem como para a discussão e a reflexão de temas sobre as necessidades dos alunos em questão.

A Reunião

Os pais foram recebidos pela coordenadora da equipe do IHA, da 8ª CRE, por três representantes da CRE, lotados no ensino especial, e por dois professores itinerantes. 1º momento – recepção dos responsáveis; distribuição de crachás para identificação nominal de cada participante; oferecimento de um lanche. 2º momento – apresentação dos profissionais. 3º momento – realização de uma dinâmica e apresentação dos pais, sendo incentivados a falarem sobre suas angústias, expectativas e dúvidas. 4º momento – leitura de uma mensagem sobre XXXXXXX. 5º momento – Informações sobre aspectos legais – Constituição Federal, Estatuto da criança e do adolescente, Núcleo Curricular Básico (Multieducação), Lei Orgânica – inclusão social e educacional, bem como das responsabilidades da família e da instituição escolar na construção desse processo. 6º momento – Discussão sobre o papel do professor itinerante, a importância dos atendimentos especializados e da garantia de freqüência dos alunos na escola. 7º momento – avaliação da reunião. 8º momento – distribuição de declarações informando sobre o dia, o local e o horário da reunião para os responsáveis que necessitarem justificar a ausência no trabalho.

A interação com as famílias e a comunidade por parte da instituição escolar reverte-se em formas de ação coletivamente organizadas, onde cada sujeito tem consciência de seus deveres e direitos, tornando-se mais forte para a luta por melhores condições de vida e mais resistente em relação ao descumprimento das leis e das práticas excludentes.

“Trata-se, como se vê, de uma concepção essencialmente prática e historicista, que rompe com as concepções metafísicas e abstratas, pois não existe um ‘ordenador’ fora das praticas humanas, nem mesmo uma natureza independente da relação com o homem; como também não é concebível o indivíduo humano fora da sua classe social ou fora das lutas entre as classes. É no interior das lutas, na forma que modernamente se desenvolvem, que acontece o processo educativo do novo cidadão” (NOSELLA, 1988: 89).

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Os portadores de deficiência, suas famílias, a comunidade a que pertencem e suas formas de organização e de participação social dão sustentação à luta pelo reconhecimento de seus direitos como cidadãos. A história dessas mudanças, referenciadas nas resoluções, leis e declarações, tem surgido de encontros, manifestações, reuniões e eventos em prol da defesa dos direitos da pessoa portadora de deficiência e sua conseqüente inclusão social. O conceito de inclusão introduz uma nova dimensão política, cuja abrangência não se refere ao indivíduo apenas, mas a toda a sociedade.

Esse novo enfoque conduz à reformulação de normas, de regulamentos e de leis referenciados na valorização da pessoa portadora de deficiência e na sua plena inclusão social. A prática dialógica voltada para o planejamento de ações instrumentaliza as famílias, as associações representativas e os próprios indivíduos para desempenharem um novo e significativo papel como agentes de transformações do processo histórico.

O resultado dessa prática social, como ressalta a Declaração de Salamanca, significa a libertação dos estigmas e rótulos, a aceitação da diversidade e a real inserção no contexto sócio-educacional, que garante o atendimento da pessoa portadora de deficiências no sistema educacional regular, garantido-lhe acesso ao currículo básico, através dos suportes necessários ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades.

1.1.8. Considerações Finais

A inserção do aluno portador de necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino tem sido objeto de reflexão e de angústia para a Educação Especial. Muitos educadores não recebem com bons olhos tal proposta, por acreditarem que um espaço específico – segregado – seja mais adequado para garantir a esses alunos o acesso ao conhecimento. Muitas vezes, a rejeição ao processo inclusivo justifica-se pela idéia de que a Educação Regular não prima pela qualidade nem quando o foco é o aluno “normal”.

O Ensino Especial, de modo geral, está marcado por procedimentos especiais centrados no indivíduo portador de deficiência com o objetivo de integrá-lo à sociedade, através da “formação de hábitos e atitudes”, ficando o acesso ao conteúdo escolar prejudicado.

Porém, a partir dos princípios da Constituição Federal, que demarcam a Educação como um direito social, assegurando-a como “direito de todos e dever do Estado e da família, (...), visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205 – CF), e do estabelecimento de que é dever do Estado o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 208, inciso III – CF), o cidadão portador de deficiência torna-se aluno, sujeito do fazer pedagógico específico da Educação. A condição de aluno, para o portador de deficiência, ganha maior peso com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Porém, somente em 2001, as políticas públicas nacionais instituem uma Lei (Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica) específica para a Educação Especial, cujo teor reforça o acesso e a qualidade de ensino para todos, concebendo: “por Educação Especial, modalidade da Educação Escolar, entende-se um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da educação básica” (art. 3º, da Resolução nº 2, de 11 de Setembro de 2001).

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As novas diretrizes e bases para a Educação Especial representam anseios no sentido de se alcançar metas educacionais democráticas, para todos os sujeito, na Educação Básica. No entanto, conceber a Educação Especial como modalidade da educação escolar significa ressaltar o caráter pedagógico da Educação Especial, implicando a definição de uma proposta pedagógica que garanta a qualidade do ensino para todos.

Embora a Educação Especial do Município do Rio de Janeiro – desde quando assumida pelo Instituto Helena Antipoff (IHA) – venha conquistando avanços significativos para a qualidade do ensino e para o atendimento das necessidades dos alunos portadores de deficiência, ainda, revela-se de forma contraditória, apresentando expressões baseadas tanto no modelo mecanicista – ênfase na formação de hábitos e atitudes para a integração do aluno à sociedade – quanto no sócio-histórico – privilégio para a construção social da aprendizagem e do desenvolvimento.

O presente trabalho, em função do tempo, destacou algumas experiências bem sucedidas, tentando estabelecer um diálogo que pudesse apontar saídas para os entraves encontrados na prática pedagógica cotidiana dos professores, cujas salas de aula possuem portadores de deficiência. O referencial teórico, aqui, assumido encontra-se em consonância com as políticas educacionais da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, cuja expressão vem ganhando força na luta por uma escola inclusiva.

“(...) a educação deve estar voltada para uma reflexão e redefinição de sua prática, de modo que possamos superar as posturas excludentes, em nome de uma escola para todos, uma escola para a diversidade – A ESCOLA INCLUSIVA.

(...) Não se trata, portanto, de uma proposta encaminhada isoladamente pela Educação Especial. A educação inclusiva pressupõe o atendimento a todos os alunos, onde um mesmo currículo esteja aberto às diferenças, garantindo o direito à construção de conhecimentos e valores e da qual participem todos os profissionais da Educação” (BLANCO e FERNANDEZ).

Acredita-se que o referencial sócio-histórico possa fornecer os subsídios necessários para uma proposta educacional democrática, crítica e ampliadora das potencialidades dos sujeitos portadores de necessidades educacionais especiais, bem como daqueles que direta ou indiretamente fazem parte desse processo.

A SME/RJ tem destinado esforços e recursos, técnicos e humanos, para a implementação de uma proposta pedagógica capaz de significar e ressignificar as práticas de sala de aula de forma a garantir uma efetiva participação social a todos os alunos. Muitos cursos de formação, pesquisas de campo, pesquisa-ação têm sido objeto de preocupação e investimento por parte da política educacional do Município. Da mesma forma, um movimento de reelaboração da MULTIEDUCAÇÃO está sendo engendrado junto a todos os profissionais da educação, com vistas à participação e ao engajamento de todos no processo de construção de uma Educação Inclusiva.

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É muito importante que uma perspectiva metateórica unificada seja alcançada, a fim de que as práticas educacionais dêem sentido ao trabalho docente, e também ao discente, para refletir a articulação da Educação Especial à política social. Dessa forma, os princípios éticos estarão sendo consolidados e novos rumos históricos constituídos. No entanto, essa meta só será alcançada quando a Educação abranger:

a democratização do acesso e da qualidade do ensino para todos os alunos, incluindo os portadores de necessidades educacionais especiais;

a organização necessária para a inclusão dos alunos p.n.e.e. na rede regular de ensino;

a garantia das adaptações, físicas e curriculares, que os alunos p.n.e.e. demandam para a efetiva participação social;

a garantia de recursos técnicos e humanos indispensáveis ao acesso com qualidade ao ensino escolar;

a consolidação das metas e objetivos, proposta pedagógica e curricular;

a continuidade de uma política de formação de recursos humanos capaz de alavancar as mudanças necessárias à garantia da qualidade da Educação;

a articulação com os diversos setores da sociedade para a garantia da inclusão social;

a promoção de projetos e práticas que favoreçam a interconstituição de saberes voltados para o enfrentamento dos problemas que afetam a Ensino Especial;

a legitimação do espaço escolar como lugar de negociação e exercício de cidadania, que valorize ações partilhadas que visem à superação dos problemas encontrados.

Para que a Educação Inclusiva deixe de ser uma meta, “para concretizá-la, é necessário a reflexão continuada de todos os aspectos que fazem uma escola viva, desde suas instalações às concepções de criança, desenvolvimento e aprendizagem, às relações para tomadas de decisões e ao currículo em ação dentre os múltiplos aspectos” (BLANCO e FERNANDEZ).

A história da Educação no Município do Rio de Janeiro não está definida, mas vem ganhando força e contornos nos novos valores e crenças internalizados a partir das reflexões e questionamentos suscitados pelas metas e objetivos impostos pelo compromisso político em superar as práticas excludentes.

“Mais do que integrar, estamos definindo políticas e estratégias que materializam os princípios definidos na Confederação Mundial de 1994, que resultou na Declaração de Salamanca, onde é reafirmado o compromisso com a Educação Para Todos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e da Confederação Mundial sobre Educação Para Todos em 1990.

É pensando e agindo com respeito à diversidade, rediscutindo a função, as práticas e os objetivos da educação escolar, que vivenciamos a construção de uma sociedade presente e futura que seja melhor para todos” (BLANCO e FERNANDES).

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Educação Inclusiva no Brasil 47 Banco Mundial – Cnotinfor Portugal

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1.1.10. Anexos