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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DAISY DAMASCENO ARAÚJO “AÊ MEU PAI QUILOMBO, EU TAMBÉM SOU QUILOMBOLA”: O processo de construção identitária em Rio Grande – Maranhão. São Luís 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DAISY DAMASCENO ARAÚJO

“AÊ MEU PAI QUILOMBO, EU TAMBÉM SOU QUILOMBOLA”:

O processo de construção identitária em Rio Grande – Maranhão.

São Luís

2012

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DAISY DAMASCENO ARAÚJO

“AÊ MEU PAI QUILOMBO, EU TAMBÉM SOU QUILOMBOLA”:

O processo de construção identitária em Rio Grande – Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho

São Luís

2012

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Araújo, Daisy Damasceno

“Aê meu pai quilombo, eu também sou quilombola”: o processo de

construção identitária em Rio Grande – Maranhão / Daisy Damasceno

Araújo. – São Luís, 2012.

156 f.

Impresso por computador (Fotocópia).

Orientador: Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa

de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2012.

1. Comunidades quilombolas – Maranhão. 2. Identidade – Luta por

reconhecimento. 3. Mobilização – Processos.

I. Título. CDU 316.334.55 – 054 (812.1)

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DAISY DAMASCENO ARAÚJO

“AÊ MEU PAI QUILOMBO, EU TAMBÉM SOU QUILOMBOLA”: O processo de construção identitária em Rio Grande – Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.

Aprovada em: ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho-UFMA (Orientadora)

_________________________________________________

Prof. Dr. Francisco José Araújo-UEMA

__________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva-UFMA

São Luís 2012

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A todos os moradores do Rio Grande, que me

permitiram compartilhar momentos importantes em

suas trajetórias e marcaram intensamente a minha

trajetória enquanto pesquisadora.

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AGRADECIMENTOS

Essa é a melhor parte: agradecer! Confesso que, para uma menina pobre (do

ponto de vista material), aluna a vida inteira de escola pública, nunca passou pela

cabeça um dia ser mestre. Nossa! Foi difícil chegar até aqui, mas parece que, enfim,

esse dia chegou! No entanto, essa conquista não é somente minha.

Primeiramente, eu gostaria de agradecer à pessoa que mais acreditou nos meus

esforços e no meu gosto pelos estudos: minha mãe, a famosa Tia Dora. Uma mãe (pai-

e-mãe) que criou sozinha suas quatro filhas, com esforços e desdobramentos diários

para mantê-las na escola. Essa conquista é sua, mãe!

Agradeço às minhas irmãs, que tanto acreditam no meu potencial e valorizam

meus estudos – Ale (a que mais acreditou), Eli e Helô - com a mesma intensidade.

Juntamente a elas, agradeço a todos os meus amados sobrinhos: Vinícius, Lívia,

Marcelinho, Mariana e João.

Ao meu pai que, mesmo ausente, sempre se manifestou orgulhoso e confiante

mediante as minhas conquistas.

A todos os moradores do Rio Grande, pela receptividade, disponibilidade e

carinho em todos os momentos.

A inserção no Mestrado teve o apoio especial de duas pessoas: 1. A minha

amada orientadora, professora Beta, que nas aulas da graduação em Ciências Sociais me

motivou a fazer a seleção do Mestrado e teve a iniciativa de me orientar. Essa produção

é nossa! Eu nunca esquecerei todos os esforços, apoio, conselhos e momentos de

aprendizado. Um começo tão difícil, ler, reler, refazer. E um final tão prazeroso. Sem a

Beta, muitos olhares permaneceriam no escuro. 2. A minha amiga (eterna professora)

Marivânia Furtado, que me inseriu nesse universo de pesquisa, contribuiu com dados da

pesquisa e que me permitiu olhar além do meu mundo. Obrigada, flor!

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA, em especial,

aos professores Igor Grill, Marcelo Carneiro e Maristela Andrade, pelas contribuições

teóricas nesse percurso. Ao professor Benedito Souza Filho, pelas contribuições

significativas na Banca de Qualificação, destacando elementos importantes nesse

diálogo entre História e Ciências Sociais. Aos professores Carlos Benedito e Francisco

de Araújo, por aceitarem compor essa banca, mesmo com o tempo corrido e com as

limitações que isso poderia acarretar.

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Gostaria de agradecer a CAPES, por oferecer as condições materiais para a

realização da pesquisa. Ao PROCAD, que me permitiu o diálogo com o Programa de

Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA. Em especial, aos professores Horácio

Antunes, Denise Cardoso, Maria José de Aquino e Pierre Teisserenc, que viabilizaram

essa significativa experiência de vida e de pesquisa em Belém, durante dois meses.

Aos anjos que Belém me deu: Seu Pedro e Dona Helena (e seus familiares), que

me receberam como filha e me propiciaram prazerosa estadia.

Agradeço a Raissa, que fez meus dias em Belém mais felizes!

Aos amigos do Mestrado, minha família por um ano, com quem partilhei

angústias, gargalhadas e aprendizados: Carol (com quem vivi as dificuldades e alegrias

da estadia em Belém), Emerson (e a sua esposa Larissa), Luciana, Poser (parceirão),

Joelma, Bruno, Thimóteo, Dora, João, Cristiane (a super mãe), Ingrid e Marcos. Em

especial aos companheiros Jorge (meu grande amigo de todas as horas - da História, das

Ciências Sociais, do Mestrado – tentaremos o Doutorado?) e à minha amiga, a linda

Carla Georgea, o presente que o mestrado me deu.

A todos os companheiros de pesquisa, do grupo LIDA, Josiane, Andréa, Hélia,

Leandro, Clara e, em especial, a Sérgio (pelas etnografias na minha ausência), Igor

(pelos longos debates) e Ana Nery (companheira desde o início).

Ao meu amigo Kleyton Rodrigues (e sua esposa, minha amiga Maxieyla), pela

paciência na elaboração da capa deste texto (pela sensibilidade dos detalhes), pela

sofisticação dos gráficos, pelas ajudas no word, nas imagens, nas páginas e,

principalmente, pela constante solicitude.

Aos amigos que acreditaram que essa conquista seria possível e que, durante os

dois anos do curso, souberam entender as ausências em festas, praias, bares,

aniversários e esbórnias afins, em razão de tantos textos a serem produzidos: em

especial a Iza Tereza, Renata, Arlin, Allanne, Paulo Roberto, Ricardo (e Louise),

Marco, Leandro, Fernando, Clenilson e as meninas: Nanda, Lili e Tetê.

Meu agradecimento TODO ESPECIAL, bem grande, ao meu “bem” maior,

Bruno Fernando, que foi paciente, dedicado e companheiro em todos os momentos do

curso: na produção dos artigos, na permanência em Belém, nas viagens ao Rio Grande e

na produção deste texto, contribuindo com todo o amor que ele é capaz de me dar. A ti,

meu bem, por me ensinar o verdadeiro significado da palavra companheirismo.

A Deus, por todas as bênçãos concedidas, por esta em especial.

Sozinha, impossível!

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“Por que tá na pele, a gente ver que a comunidade tem tudo pra ser uma comunidade quilombola, tá na história. Ser quilombola é se reconhecer, reconhecer a própria coisa que a gente é. Ver na pele da gente, ver no dia a dia da gente e também no passado dos nossos que já foram, das primeiras gerações que moraram aqui. (...) Eram pessoas que vieram de uma história que não tem pra onde esconder”. (Sr. Chita, 52 anos. 17.07.2011)

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RESUMO

Este estudo apresenta uma análise do processo de construção e reafirmação identitária, por parte dos moradores do Rio Grande, situado no município de Bequimão-MA, a partir do momento que se percebem e assumem a identidade de remanescentes das comunidades dos quilombos. Desta forma, analisa a dinâmica que caracterizou o processo de mobilização e os critérios de identificação, acionados por este grupo, no processo de luta por reconhecimento e afirmação como quilombola. Foram identificadas e analisadas as estratégias para obter o reconhecimento junto a Fundação Cultural Palmares e os significados que esse reconhecimento assumiu para os moradores. Dialogando com o decreto 4887/2003 e na tentativa de se legitimarem, alguns moradores do Rio Grande passaram a construir histórias relacionadas com o passado da escravidão, antes desconsideradas. A disputa conceitual em torno da categoria quilombo expressa o deslocamento de uma categoria que, antes negada, passa a ser reapropriada no processo de luta por reconhecimento. Essas histórias são associadas às formas de organização que visam o reconhecimento dos moradores como sujeitos de direito, demarcando o processo de construção identitária como uma questão política. A construção interessada como grupo étnico expressa, entre outros elementos, uma estratégia organizacional visando a regularização das terras em que vivem. A investigação que subsidia esse texto ocorreu de 2009 a 2011 e associou narrativas dos moradores com observações relacionadas às suas formas de organização, assim como fontes documentais. Palavras-chave: Comunidades quilombolas; Construção identitária; Trajetória comum;

Processos de mobilização.

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ABSTRACT

This study presents an analysis of the construction and reaffirmation of identity, by the residents of the Rio Grande, located in the municipality of Bequimão-MA, from themoment you realize and assume the identity of remaining of quilombo. Thus, analyzes the dynamics that characterized the mobilization process and criteria for identification, driven by this group, in the struggle for recognition and affirmation as quilombola. Were identified and analyzed the strategies to achieve recognition at the Palmares Cultural Foundation and the meanings that this recognition took to the residents. Talking with the Decree 4887/2003 and in an attempt to legitimize, some residents of the Rio Grande began to build stories related to the past of slavery, before discounted. The dispute around the conceptual category quilombo expressed as the displacement of a category before denied, shall be reappropriated in the struggle for recognition. These stories are associated with forms of organization aimed at the recognition of residents as subjects of law, marking the process of identity construction as a political issue. The building concerned as an ethnic group expressed an organizational strategy aimed at regularizing the land in which they live. The research that subsidizes this text occurred from 2009 to 2011 and associated narratives of residents with comments related to their forms of organization as well as documentary source. Key-words: Communities Quilombola; Construction of identity; Common trajectory; Processes of mobilization.

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LISTA DE SIGLAS

ACONERUQ Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

ABA Associação Brasileira de Antropologia

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

ANC Assembléia Nacional Constituinte

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CCN/MA Centro de Cultura Negra do Maranhão

CEUMA Centro Universitário do Maranhão

APEM Arquivo Público do Estado do Maranhão

FCP Fundação Cultural Palmares

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ITERMA Instituto de Terras do Maranhão

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

LIDA Lutas Sociais, Igualdade, Diferença

MOQUIBOM Movimento Quilombola do Maranhão

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MNU Movimento Negro Unificado

PROCAD Programa Nacional de Cooperação Acadêmica

PVN Projeto Vida de Negro

SMDH Sociedade Maranhense de Direitos Humanos

SIT Sistema de Informações Territoriais

UEMA Universidade Estadual do Maranhão

UFMA Universidade Federal do Maranhão

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ÍNDICE DE QUADROS

P.

QUADRO 1: Calendário das atividades da roça____________________________ 25

QUADRO 2: Municípios e povoados visitados pelos pesquisadores do Projeto

Vida de Negro - CCN/MA _____________________________________________

45

QUADRO 3: Povoado com o sufixo “dos pretos” __________________________ 46

QUADRO 4: Levantamentos realizados em fontes secundárias (livros, periódicos),

em documentação de sindicatos de trabalhadores rurais e de casas paroquiais e em

contatos com diversos_________________________________________________

47

QUADRO 5: Dados coletados a partir de entrevistas realizadas nos povoados, em

“Encontros” promovidos pelo Movimento Negro e nas Sedes Municipais________

47

QUADRO 6: Acesso à terra através da desagregação de fazendas ______________ 47

QUADRO 7: Acesso à terra através da desagregação de fazendas das ordens

religiosas___________________________________________________________

48

QUADRO 8: Acesso à terra por doação __________________________________ 48

QUADRO 9: Comunidades Quilombolas de Bequimão reconhecidas pela FCP (até

dezembro de 2011)___________________________________________________

48

QUADRO 10: Comunidades Quilombolas das regiões da Baixada e Litoral

Ocidental Maranhense, reconhecidas pela FCP (até dezembro de 2011)__________

50

QUADRO 11: Entrada de escravos no Maranhão, entre os anos de 1812 e 1820___ 79

QUADRO 12: Escravos exportados do Maranhão para províncias do sul do país__ 81

QUADRO 13: Primeira Diretoria Eleita (1994)_____________________________ 117

QUADRO 14: Diretoria Eleita em 2008__________________________________ 119

QUADRO 15: Nova Diretoria Eleita em 2008______________________________ 120

QUADRO 16: Diretoria Eleita em 2011__________________________________ 130

QUADRO 17: Calendário do Festejo de Santo Antônio______________________ 136

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ÍNDICE DE FIGURAS

P.

FIGURA 1: Mapa de localização do Rio Grande ___________________________ 23

FIGURA 2: Representação do Rio Grande feita pelos moradores ______________ 26

FIGURA 3: Mapa do Levantamento das “terras de preto” feito pelo CCN/MA em

1988 e 1989 ________________________________________________________

43

FIGURA 4: Mapa dos Municípios onde foi registrada a presença de quilombos no

século XIX no Maranhão ______________________________________________

44

FIGURA 5: Mapa dos quilombos no norte do Maranhão (Século XIX)__________ 82

FIGURA 6: Primeiras Ocupações: família de Sr. Luís Mariano (Provável ocupação

no século XIX)_______________________________________________________

91

FIGURA 7: Primeiras Ocupações: família de D. Canuta (Provável ocupação no

século XIX)_________________________________________________________

92

FIGURA 8: Primeiras Ocupações: família de Sr. Agnaldo (Provável ocupação no

século XIX)_________________________________________________________

93

FIGURA 9: Primeiras Ocupações: família de D. Elza e Sr. Chita (Provável

ocupação no século XIX)______________________________________________

94

FIGURA 10: Sr. Agnaldo______________________________________________ 95

FIGURA 11: D. Elza_________________________________________________ 95

FIGURA 12: D. Canuta_______________________________________________ 95

FIGURA 13: D. Eugênia______________________________________________ 96

FIGURA 14: Fabrício Rodrigues (Sr. Chita)_______________________________ 96

FIGURA 15: Sr. Carlos_______________________________________________ 96

FIGURA 16: D. Josefa________________________________________________ 97

FIGURA 17: D. Sônia________________________________________________ 97

FIGURA 18: D. Ildenê________________________________________________ 97

FIGURA 19: Dionísio (Sulim)__________________________________________ 98

FIGURA 20: Mapa do perímetro do território do Rio Grande (Construído de

acordo com as “pedras limites”) _________________________________________

101

FIGURA 21: Sede da Associação de Moradores do Povoado Rio Grande________ 122

FIGURA 22: Altar da Festa de Santo Antônio______________________________ 137

FIGURA 23: Igreja Católica do Rio Grande (Em dia de festa)_________________ 137

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FIGURA 24: Radiola de Reggae (Festejo de Santo Antônio – Rio Grande –

2009)______________________________________________________________

138

FIGURA 25: Festejo de Santo Antônio – Rio Grande – 2009__________________ 139

FIGURA 26: Tambor de Crioula________________________________________ 139

FIGURA 27: Forró de Caixa___________________________________________ 140

FIGURA 28 (A e B): Ensaio de Tambor de Crioula com as crianças____________ 141

FIGURA 29: Os mais novos aprendendo a tocar tambor______________________ 142

FIGURA 30: Escola Municipal Beira Campo – Anexo Rio Grande_____________ 143

FIGURA 31: Certidão de Autodefinição, emitida pela Fundação Cultural

Palmares____________________________________________________________

144

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SUMÁRIO P.

1. INTRODUÇÃO_______________________________________________ 16

2. QUILOMBO(S): a disputa por conceitos e suas implicações no processo de

luta por reconhecimento _________________________________________

40

2.1 Quilombos: dimensões históricas e oficiais _________________________ 51

2.2 Para além do quilombo histórico ________________________________ 58

2.3 O reconhecimento como remanescentes das comunidades dos quilombos 65

3. RIO GRANDE, UM ESPAÇO DE LIBERDADE NO CONTEXTO DA

ESCRAVIDÃO ________________________________________________

73

3.1 O município de Bequimão na história do Maranhão: a relação com o

passado da escravidão ____________________________________________

75

3.2 (Re)Construindo suas histórias: as memórias do Rio Grande e o contexto

da escravidão __________________________________________________

84

3.2.1 As narrativas documentais___________________________________ 99

4. “A COMUNIDADE TEM TUDO PRA SER QUILOMBOLA”: processos

organizacionais de identificação como novos sujeitos de direitos_____________

109

4.1 “É muito importante ter sido reconhecido como quilombola e ainda

poder levantar a associação”________________________________________

112

4.1.1 “No lugar da roça, dos trabalhos de casa, do ensinamento aos filhos,

temos que dar conta de toda a agenda quilombola”_____________________

125

4.2 “Tá na pele, tá na história”: quilombola vai deixando der ser “coisa feia”_ 131

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________ 146

REFERÊNCIAS _______________________________________________

151

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1. INTRODUÇÃO

“Aê meu pai quilombo, eu também sou quilombola”. Essa é a estrofe de uma

música muito cantada nas diversas ocupações da sede do Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na capital maranhense, realizadas no ano de

2011, por algumas comunidades quilombolas1 do estado do Maranhão. Nessas ocasiões,

os referidos grupos reivindicavam a regularização fundiária de suas terras e a solução

dos conflitos causados pela ausência destas mesmas regularizações. Na mística da

ocupação, músicas, tambor de crioula, forró de caixa e outras manifestações

enfatizavam a pertença étnica desses grupos.

Na referida estrofe, é importante destacar a presença da conjunção aditiva

“também”, que no contexto da frase aponta para a identificação atual com um elemento

histórico, demarcando um processo de identificação em construção. Essa parte da

música me possibilita estabelecer relações com o processo de identificação dos

moradores do Rio Grande como quilombolas, objeto desta pesquisa.

Na manhã ensolarada do dia 13 de dezembro de 2008, desloquei-me, com um

grupo de pesquisadores, para o município de Bequimão, localizado na microrregião do

litoral ocidental maranhense2, a convite da minha então orientadora do trabalho

monográfico, Marivânia Furtado. De lá, na boléia de uma caminhonete, fomos até o Rio

Grande, a cinco quilômetros da sede do município.

Era minha primeira vez por lá e eu mal sabia como iniciar minha pesquisa.

Também pela primeira vez na história do povoado, os moradores comemoravam a

inauguração da sede da associação de moradores do Rio Grande, fruto de um processo

de mobilização interna, que havia começado havia um ano antes, quando a comunidade

dava seus primeiros passos como sujeitos de direitos, na luta por reconhecimento como

remanescentes de quilombos.

1 De acordo com Andrade (2009), no artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição de 1988, o legislador institui os “remanescentes das comunidades de quilombos”, como se existissem indivíduos isolados nessas condições. Os movimentos sociais ligados às lutas desses camponeses por reconhecimento e titulação de seus territórios passaram a adotar a expressão “comunidades de remanescentes de quilombos”, enfatizando o caráter coletivo da existência desses indivíduos, em contraposição ao artigo 68 (ADCT). O uso do termo quilombolas representa um avanço das lutas por reconhecimento por parte desses grupos, que passaram a adotar a auto-denominação de quilombolas e não de remanescentes, de modo a não reforçar o caráter de restos, enfatizando sua existência no presente. Ver página 40. 2 De acordo com dados do IBGE. Ver: http://www.forumcarajas.org.br/portal.php?projeto&mostra&1929.

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Iniciavam-se, assim, meus primeiros contatos e vivências na pesquisa que

subsidiou essa dissertação. Para além de um texto dissertativo, o texto a seguir é parte

de uma história muito maior, que não se resume ao período do Mestrado em Ciências

Sociais e que aqui não se esgota, em razão de elementos que estão para além da

academia, nos quais estou envolvida. Desta narrativa que o leitor conhecerá sou, em

parte, uma personagem.

A data acima referida demarca os meus primeiros passos nesta pesquisa, mas,

anteriormente, desde fins do ano de 2007, um grupo de pesquisadores discutia,

conjuntamente com moradores do Rio Grande, os procedimentos que os moradores

deveriam cumprir para acessar o direito constante no artigo 68 dos ADCT da

Constituição Federal de 1988, que preceitua:

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

O início da pesquisa desenvolvida no Rio Grande se deu através da inserção da

professora Marivânia Furtado3, que atendeu o convite feito por um dos professores da

escola da comunidade. Na ocasião, novembro de 2007, a pesquisadora ministrava,

juntamente com outros especialistas, um curso sobre a História da África e Cultura dos

Afro-descendentes aos professores da rede municipal de ensino em Bequimão-MA. Ao

constatar que havia uma grande parcela de professores negros participantes e por ter

notícias de que o povoado de Ariquipá seria uma comunidade remanescente de

quilombo em processo de reconhecimento, a referida pesquisadora dirigiu-se a um dos

professores e perguntou se este poderia ensiná-la a chegar até a comunidade de

Ariquipá, pois a mesma gostaria de dar continuidade ao processo de formação de

professores, agora especificamente quilombolas, para tratar das questões étnicas em sala

de aula.

No encerramento do curso, em conversa com um professor participante, Seu

Agnaldo4, este teria informado à professora Marivânia que o povoado do Rio Grande,

vizinho ao povoado de Ariquipá, também teria “indícios de uma comunidade que fora

fundada por negros que haviam fugido da escravidão”.

3 Antropóloga do departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Maranhão, natural do município de Bequimão. 4 Professor da Escola Municipal Beira Campo - Anexo Rio Grande e morador do Rio Grande.

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A pesquisadora indagou se a comunidade já estava em processo de solicitação

do reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares; seu Agnaldo informou que um

representante da Igreja Católica de Bequimão havia feito uma reunião com algumas

lideranças negras, mas não tinha dado continuidade às discussões. Diante disso, eles não

sabiam como proceder. Considerou ser importante discutir esse assunto com os

moradores do Rio Grande e colocou-se à disposição para auxiliar no trabalho de

intervenção da Universidade, através do trabalho do grupo de pesquisa.

Como, diferentemente do Ariquipá, o Rio Grande não esteve presente em

nenhum levantamento feito pelos órgãos que realizavam esse processo de mapeamento

das comunidades quilombolas no Maranhão5, o olhar da professora Marivânia passou a

se direcionar ao Rio Grande. Assim, desde fins de 2007 e durante os anos seguintes, o

Rio Grande tem vivenciado um processo de discussão com pesquisadores e

representantes de órgãos específicos, como a ACONERUQ6, por exemplo, acerca do

direito destinado aos remanescentes das comunidades dos quilombos7. Essas discussões

motivaram a deflagração de um processo de construção de elementos de identificação

dos referidos moradores com a categoria quilombola, que expressam dinâmicas internas

do próprio grupo, que pretende o reconhecimento legal.

Com base na pesquisa iniciada em 2008, construí meu trabalho monográfico de

conclusão do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, no ano de 2009.

Nessa ocasião, abordei a tentativa de “construção” e discussão de elementos necessários

para que o Rio Grande fosse reconhecido e certificado pela FCP como remanescente de

quilombo, tomando como base, principalmente, alguns dos procedimentos presentes no

Decreto 4887/03. Nesse sentido, tentei abordar, em especial, a história comum do

grupo, mapeando, de acordo com a memória de seus moradores, as diversas formas de

ocupação do território, os possíveis detentores dos títulos da terra (pesquisando em

Arquivos e Cartórios) e a ancianidade de ocupação daquele espaço.

Em 2009, no mês de julho, minha monografia foi encaminhada à FCP,

juntamente com os documentos exigidos por este órgão, entre eles a Ata de

Autodefinição, onde os moradores se autodefinem enquanto remanescentes das

5 Exemplo: Levantamento Preliminar em 1988/1989 da Situação Atual das chamadas “Terras de Preto” localizadas no Estado do Maranhão – Projeto Vida de Negro, divulgado pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão – CCN/MA e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH. 6 Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão, fundada em 1997. 7 A utilização deste termo, remanescentes das comunidades dos quilombos, refere-se ao artigo 68, visto que são esses os termos, ipsis litteris, presentes no texto constitucional.

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comunidades dos quilombos. No dia 19 do mês de novembro deste mesmo ano, a FCP

publicou, no Diário Oficial da União, nota referente ao registro e certificação do Rio

Grande8, inclusa no Cadastro Nacional de Comunidades Quilombolas (Figura 31, p.

143).

Diversos trabalhos etnográficos têm sido elaborados sobre o Rio Grande. A

professora Marivânia Furtado, que coordena o grupo de pesquisa, elaborou sua tese de

doutorado, intitulada Aquilombamento no Maranhão: um Rio Grande de

(im)possibilidades. No ano de 2011, quatro trabalhos monográficos foram produzidos

sobre o Rio Grande. Três destes de alunas de Ciências Sociais da UEMA: Ana Nery

Lima faz uma abordagem sobre a dimensão sócio-cultural e política do Rio Grande, visando

construir um perfil da organização social no povoado; Andrea Maia trata do sincretismo

presente nas práticas religiosas desenvolvidas pelos moradores; Hélia Fernanda Chaves

analisa, com base na memória dos moradores, as práticas medicinais e culturais que

permaneceram ao longo dos anos. Por fim, o trabalho elaborado pela aluna de serviço

social do Centro Universitário do Maranhão (CEUMA), Josiane Cardoso, que analisa a

relação entre o Rio Grande e a política de assistência social executada pelo CRAS

(Centro de Referência em Assistência Social) no município de Bequimão.

Nas primeiras aulas no Mestrado, eu sempre comentava com meus colegas de

turma a dificuldade que tinha de “me afastar” do objeto de pesquisa. O professor Igor

Grill, nas aulas de Epistemologia das Ciências Sociais, costumava lembrar-nos da

necessidade que o pesquisador deve ter de “distanciar-se” do objeto de pesquisa. Duas

discussões em especial ficaram marcadas nesta disciplina: A primeira delas foi

impactante: Gaston Bachelard (2003) que, escrevendo com uma gramática das ciências

naturais, propunha-nos a difícil arte da objetivação. Ele foi a base para que eu pudesse

enxergar alguns dos meus “obstáculos epistemológicos”.

A segunda tem a ver com uma dúvida que perturbou minhas ideias ao longo de

quase todas as aulas. Sempre que eu pensava no meu problema de pesquisa essa questão

8 O Presidente da Fundação Cultural Palmares, no uso de suas atribuições legais conferidas pelo artigo 1º da Lei n.º 7.668 de 22 de agosto de 1988, em conformidade com a Convenção No - 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004, o Decreto No - 4.887 de 20 de novembro de 2003, §§ 1° e 2° do artigo 2º e § 4° do artigo 3º e Portaria Interna n.º 98, de 26 de novembro de 2007, publicada no Diário Oficial da União n.º 228 de 28 de novembro de 2007, Seção 1, f. 29, resolve: Art 1° REGISTRAR no Livro de Cadastro Geral n.º 11 e CERTIFICAR que, conforme as declarações de Autodefinição e os processos em tramitação nesta Fundação Cultural Palmares, as Comunidades a seguir, SE AUTODEFINEM COMO REMANESCENTES DE QUILOMBO: Comunidade de Rio Grande, localizada no município de Bequimão/MA. Registrada no Livro de Cadastro Geral n.º 011, Registro n. 1.168 fl. 184. Ver http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=19/11/2009&jornal=1&pagina=7&totalArquivos=112.

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vinha à mente: O problema era um problema social ou um problema sociológico? Era

possível fazer com que o primeiro viesse a se tornar ao mesmo tempo o segundo? Eu

conseguiria fazer com que isso acontecesse? Em uma das últimas aulas a “resposta”

veio: um trabalho ser cientificamente útil não significa que deva ser insensível

socialmente.

Lembro-me que essa era uma discussão constante direcionada a muitos dos

alunos e aos seus projetos. Havia a necessidade de objetivação dos nossos temas e do

distanciamento que, minimamente, deveríamos estabelecer entre o nosso lugar enquanto

pesquisador/sociólogo e as possíveis vinculações emocionais que tínhamos com o tema:

ligação com os movimentos sociais e com as causas sociais. Nossos problemas

pareciam se resumir a problemas sociais, que tínhamos a intenção de repará-los com as

nossas pesquisas; e não problemas sociológicos, como deveriam ser.

O processo de objetivação está baseado na ideia de que nas relações

estabelecidas com o objeto, com as teorias, com as demais posições do campo

científico, o pesquisador está sujeito a incorporar, como conhecimento científico, a

forma ordinária de ver o mundo. Sob essa perspectiva, Bourdieu (2004) propõe que o

pesquisador ao desconstruir a realidade, a fim de analisá-la, deve desconstruir a si

mesmo, rompendo com os juízos pré-formados que utiliza para explicar e classificar o

mundo social. Algumas vezes tentei fazer um exercício de reflexão dos problemas dessa

pesquisa, as limitações, os obstáculos, as possíveis respostas “já dadas”, a intenção da

pesquisa e o “caráter social” expresso na delimitação do objeto. Essa era uma das

questões principais e, com ela, desmembravam-se inúmeras outras.

Quando das primeiras aulas de epistemologia eu relia parte dos escritos da

monografia e pensava no contexto em que a havia escrito, para que fins, com que

propósitos. Bachelard (2003, p. 17) afirma que “o pensamento empírico somente torna-

se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retornar a um

passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento

intelectual”. As limitações daquela escrita me davam esse sentimento de

“arrependimento intelectual”, não pelo propósito da escrita, mas pelos problemas

daquela linguagem, infestada de conceitos reificados, concepções naturalizadas e frases

normativas, onde os autores são apresentados como “contra” ou “a favor” da proposta

discursiva. Foi com base nas pré-noções, frutos de uma rápida experiência de campo

(por volta de seis meses) que achei ter informações suficientes para construir o projeto

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de mestrado. Foi a partir deste contato que formulei respostas e não perguntas, como

deveria ser.

Ao mesmo tempo em que reconhecia os problemas daquela escrita e a ligação

desta com o projeto que apresentei na seleção do mestrado, eu pensava na possibilidade

de “dialetizar a experiência”, onde eu deveria sair da contemplação daquela experiência

anterior e buscar outra perspectiva. Mas seria possível partir do zero e anular de um só

golpe todos os conhecimentos habituais? (BACHELARD, 2003). Essa era a minha

“experiência primeira”. Era com base na pesquisa realizada no Rio Grande que eu

tentava delinear um problema a ser apresentado e discutido no projeto de pesquisa do

mestrado. O conhecimento anterior sobre a temática, acumulado durante a pesquisa,

estava ali, disponível.

Desta forma, esse texto dissertativo foi construído quase que em sua totalidade

com dados que acumulei desde fins do ano de 2008. Agora, para além de tomar este

objeto como um problema social, eu queria transformá-lo em um problema sociológico.

No texto monográfico eu havia afirmado que:

Construir ou reconstruir a história comum dos moradores do Rio Grande significa muito mais do que a tentativa de transformar em texto escrito os relatos orais desta comunidade; mais do que a tentativa de compreensão de uma memória coletiva construída ao longo dos anos; e muito além da busca por dados que dêem sentido aos interesses desta pesquisa. Escrever ou reescrever a história comum de um povo, seja ele negro, branco, indígena, imigrante, vai além do desejo de se fazer história através de palavras, interpretações, compreensões e indagações; neste caso, (re) escrever a história da comunidade do Rio Grande parece, portanto, se concretizar em um objetivo real: a garantia de um direito, e a consequente importância deste registro para o reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos. (ARAÚJO, 2009, p. 34)

Desta forma, visando superar um pouco o discurso da militância, julguei

necessário retomar algumas discussões, agora com um olhar “menos engajado”, mas

não menos sensível socialmente. Partindo desse pressuposto, a pesquisa buscava

perceber como os moradores acionavam elementos que os identificassem como

remanescentes de quilombo. De início tive receio das consequências desse enfoque,

com medo de cair no que Haesbaert (2011) chama de “autenticidade do grupo” ou

“verdade da identidade”, atentando para o fato de que alguns grupos (e aqueles agentes

que falam em seus nomes) invocam noções essencialistas em suas lutas por

reconhecimento, sem considerar as leituras múltiplas da identidade.

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Percebe-se aí, claramente, o valor estratégico de uma relativa essencialização identitária, especialmente nos momentos mais veementes de resistência e luta, ou quando a necessidade de uma institucionalização (garantidora de conquistas mais concretas) se faz presente. O reconhecimento jurídico (neste caso, de territórios como as reservas indígenas e as terras remanescentes de quilombos) acaba retroalimentando o sentimento identitário e muitas vezes se impondo sobre a (re)construção identitária do grupo, como aqueles que, por esse intermédio, “se descobrem” como indígenas ou como descendentes de quilombolas, condição que há muito ou às vezes nunca antes haviam assumido. Discutir aqui a “autenticidade” do grupo (ou a “verdade” da identidade) é uma questão que adquire profunda conotação política, muitas vezes estimulada a fim de desviar a atenção do principal embate, aquele que envolve a responsabilidade e a “dívida” social para com grupos historicamente subjugados e expropriados. (HAESBAERT, 2011, p. 65)

No caso do Rio Grande, no início da pesquisa, essas noções essencializadoras

ligadas ao conceito histórico de quilombo eram muito presentes. O grupo de pesquisa,

no qual estou inserida, orientou os moradores a tomar como base os dispositivos

presentes no decreto presidencial 4887/2003, perpassado de noções como

“ancestralidade negra”, por exemplo. No momento da inserção do grupo de pesquisa no

Rio Grande, a referência que tínhamos dos procedimentos de titulação era este decreto,

o que acabou induzindo a construção dos critérios a serem “comprovados”, visando o

reconhecimento pela FCP. No momento de diálogo com os moradores sobre as suas

histórias, na tentativa de construir uma história comum do grupo, eu tomei esses

critérios como base.

No início da pesquisa, ainda desconhecendo muitas leituras sobre o tema, eu

tinha dificuldades em entender como os moradores daquele lugar desconheciam a

existência da categoria quilombola. Para alguns deles, nos primeiros meses de pesquisa,

os quilombolas, ou carambolas éramos nós, os pesquisadores, que chegamos até lá com

toda essa história de direito quilombola. Ao longo dos anos, seus moradores foram

ressignificando o processo de identificação com esta categoria.

O Rio Grande, situado na microrregião do litoral ocidental maranhense, no

município de Bequimão (Figura 1), é um povoado identificado pelos regionais como

sendo um lugar ocupado “por pretos”. Possui mais de setenta famílias que se

reproduzem através do trabalho agrícola, da pesca e da criação de animais de pequeno

porte, mantendo manifestações culturais e saberes locais: festas de santos, forró de

caixa, tambor de crioula, dentre outras manifestações. Essas famílias ocupam esse

território secularmente, segundo a memória dos mais velhos. Diversos são os costumes e

formas de vida dos moradores, porém algo lhes é específico e fundamental: a posse

comum da terra.

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O povoado é banhado por alguns rios, dentre eles o rio Grande, rio do Peixe e

rio dos Fugidos, que enchem na época da chuva e secam no período de estiagem. O

povoado tem como base de sustento a roça (com o plantio de milho, arroz, mandioca e

legumes), a criação de animais, como galinha, porco, pato e gado (algumas famílias, em

menor número, criam gado para corte e venda da carne e cavalo para locomoção), e

extração de côco babaçu. Todas as atividades são voltadas para o sustento do grupo,

quando não é estabelecida a venda ou troca entre moradores de povoados vizinhos. A

pesca, em algumas épocas do ano, também é uma prática exercida para o sustento dos

moradores.

FIGURA 1: Mapa de localização do Rio Grande

Fonte: FURTADO, 2012. Organização: FILHO, J. 2011.

Não existem fossas sépticas dentro das casas, sendo os banheiros localizados na

parte externa. Algumas fossas são coletivas, dependendo da proximidade das moradias.

A água é coletada em poço, existindo poucas residências com água encanada. A coleta

de lixo não existe pelo serviço público, quando o lixo não é jogado em algum terreno, é

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queimado. Não há energia elétrica em todas as residências. O posto de saúde que atende

o povoado é o da sede do município.

As casas são feitas, em sua maioria, de barro e cobertas com a palha da palmeira

de babaçu, cuja edificação é coletiva. O dono da casa oferece como pagamento pelo

trabalho na construção, almoço e bebida para todos os envolvidos. Existe um campo de

futebol e um galpão de alvenaria (o barracão), construído para realização de festas.

A escola do Rio Grande é um anexo de uma escola municipal do povoado de

Beira Campo. Atendendo alunos do ensino fundamental (de 1ª à 4ª série), a referida

escola tem três compartimentos e dois professores. Os jovens deslocam-se diariamente à

sede de Bequimão percorrendo, a pé, cinco quilômetros para estudarem o ensino

fundamental maior e o ensino médio.

Cada família da comunidade possui, em média, de cinco a oito pessoas por casa.

A maioria da população é do sexo masculino. As mulheres participam ativamente das

atividades econômicas da casa. O trabalho nas lavouras é determinado segundo regras

próprias que determinam tanto o local a ser roçado, quanto o tipo de cultura. Na maioria

das casas verifica-se a presença de quintais nutritivos (pomares caseiros, hortas e

pequenos plantios de mandioca, milho e arroz).

A preparação para o plantio começa no mês de dezembro com a escolha do local

da roça e a limpeza do terreno. Essa “escolha” é feita pelos próprios moradores e os

mesmos marcam a terra que irão plantar com estacas de madeira, para que todos os

outros saibam que ali será utilizado para o plantio. Essa marcação é feita de forma

pacífica e todos os moradores respeitam os limites daquele que escolheu seu pedaço de

terra. Nem sempre a roça é feita de forma individual (por uma família apenas), existem

plantações coletivas onde mais de uma família se reúne para fazer a roça. A roça é feita

no sistema de coivara9.

Nos primeiros meses do ano é feita a queima e nas primeiras chuvas inicia-se o

plantio. Ao final de cada ano as famílias delimitam o “pedaço” da terra que vão plantar

no ano seguinte. A medida mais usada é a braça, que equivale aproximadamente a vinte

e cinco metros. O terreno é usado em média de cinco a vinte anos e reutilizado após o

“descanso” da terra. Os moradores reconhecem quando a terra está boa para o plantio 9 Técnica agrícola utilizada em comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas no Brasil. Conhecido também como o sistema de “corte e queima” onde o processo de plantação se dá através da derrubada da mata nativa, seguida pela queima da vegetação. Há, então, a plantação intercalada de várias culturas, como o arroz, o milho e o feijão, durante 1 ou 2 anos. Esse método é utilizado principalmente na chamada agricultura de subsistência, por pequenos proprietários de terra ou em áreas de plantio comum. (http://www.ecodebate.com.br).

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pelo tamanho do mato que cresce no terreno. O plantio se dá na seguinte ordem de

cultivo: maxixe, milho, mandioca, arroz. A roça é feita de acordo com o calendário que

consta no Quadro 1:

QUADRO 1: Calendário das atividades da roça

JUNHO AGOSTO NOVEMBRO JANEIRO

Início da

colheita

A terra é roçada

Limpeza e

queima da terra

Início do

plantio

Fonte: Furtado (2009)

O cotidiano do Rio Grande é marcado pela religiosidade. A maioria dos

moradores participa das atividades da igreja católica, professando e praticando um

catolicismo popular. A tradição religiosa da comunidade, segundo relatos dos

moradores mais antigos, existe há mais de cem anos, com a realização do Festejo de

Santo Antônio, realizado no mês de junho. De acordo com o relato do sr. Luis Mariano,

que hoje possui a “tutela”10 do Santo, não se sabe ao certo quando o santo foi trazido

para o povoado, ele foi sendo deixado de herança pela família dele, que hoje cuida da

organização do festejo.

O aspecto religioso aparece nesse contexto como um forte elemento de ligação

entre os moradores, visto que, durante o festejo, as atividades são realizadas de forma

coletiva, havendo divisão das tarefas entre homens, mulheres e crianças. Essa prática da

festa é entendida pelos moradores como obrigação de todos, e mesmo os que não

moram mais no povoado participam do festejo pelo sentimento de pertença ao lugar e a

essas práticas religiosas. Nesse período, todos colaboram com as atividades e toda a

comunidade é envolvida no processo. A vivência religiosa e o trabalho fortificam a

relação de pertença e de ligação daqueles que fazem o Rio Grande, e são acionados

como critérios de identificação étnica.

O reconhecimento do Rio Grande como remanescente de quilombo, tem

provocado processos internos de construção identitária articulados a esse novo

referencial. Nesse sentido, a investigação que desenvolvi no mestrado voltou-se para a

10 Seu Luís Mariano é considerado o “dono do santo”, sendo responsável por sua guarda e pela organização da festa, que acontece nas mediações de sua casa. A Igreja de Santo Antônio também fica nas mediações de sua casa, sendo a família de Seu Luís Mariano responsável, também, por cuidar e manter a igreja em funcionamento.

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compreensão da dinâmica que caracterizou o processo de mobilização e os critérios de

identificação como dos moradores a partir desse referencial. Para isso, busquei mapear o

processo de mobilização dos atores e as estratégias usadas para obter o reconhecimento

junto a FCP e, consequentemente, os benefícios que poderão advir desse

reconhecimento, especialmente o título da terra.

Busquei compreender os significados que esse reconhecimento assumia para os

moradores, considerando, especialmente, os aspectos simbólicos relacionados ao

reconhecimento e a legitimidade; aqui incluindo os critérios que os caracterizam como

“diferentes” em relação aos outros. Esse é um elemento constantemente demarcado

pelos moradores. No processo de construção da história de ocupação do Rio Grande,

alguns dos informantes costumavam chamar atenção para o fato de que os “de fora” (em

geral, os povoados vizinhos, com quem estão em constante contato) costumam se referir

aos “de dentro” como “os pretos do Rio Grande”. Esse elemento é bem demarcado pelos

moradores mais velhos, que afirmam ter sido esta característica (“os pretos”) um

elemento de pertença que perdura até os dias atuais.

FIGURA 2: Representação do Rio Grande feita pelos moradores

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011) - Representação da comunidade feita pelos moradores, pintada parede de entrada da escola, onde a identificação das casas é feita de acordo com o nome de cada aluno.

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Em Rio Grande, a construção interessada como grupo étnico expressa uma

estratégia organizacional visando, entre outros propósitos, a regularização das terras em

que vivem. Este é uma discussão que pretendo fazer, partindo do pressuposto de Weber

(1991), reforçado por Barth (1998), de que a “construção” de uma identidade é uma

questão política e, por assim ser, não ocorre de forma desinteressada. Como bem situou

Weber (1991), grupos étnicos são aqueles grupos humanos fundados na semelhança do

hábito exterior e dos costumes, ou de ambos, ou em lembranças da colonização e da

imigração. Abrigam uma crença subjetiva em uma procedência comum, de modo que a

crença é importante para a ampliação das comunidades. Acrescenta Weber, que o grupo

étnico não é em si mesmo uma comunidade, mas um momento que facilita o processo

de comunicação, nos mais diferentes tipos, sobretudo, na política.

Barth (1998) dá importância primordial ao fato de que os grupos étnicos são

categorias de atribuição e identificação, realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a

característica de organizar a interação entre as pessoas. Na medida em que atores usam

identidades étnicas para categorizar a si mesmos e aos outros, com objetivos de

interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional. Reforça que,

embora as categorias étnicas tomem em consideração as diferenças culturais, não

podemos deduzir disso uma simples relação de um para um entre as unidades étnicas e

as semelhanças e diferenças culturais. As características que são levadas em

consideração não são a soma das diferenças objetivas, mas somente aquelas que os

próprios atores consideram significantes.

O autor propõe que o critério fundamental na definição de um grupo étnico deve

ser a auto-atribuição e a atribuição por outros. Uma atribuição categórica é uma

atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica mais

geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente.

O artigo 68 da CF/88 desencadeou ampla mobilização no sentido da

reivindicação do direito à titulação da terra aos remanescentes das comunidades dos

quilombos. Antes mesmo que o referido artigo fosse regulamentado, o que só ocorreu

em 2003 através do Decreto 4.887, algumas comunidades iniciaram um processo de

mobilização em direção à titulação das terras, mas se depararam com dificuldades de

interpretação do termo remanescentes das comunidades dos quilombos utilizado no

artigo. Em função dessa incompreensão, ocorreram diversos debates, na academia e nos

movimentos sociais, na tentativa de ressignificar o termo quilombo e dar conta da

pluralidade de situações sociais que poderiam pleitear esse direito. No texto do Decreto

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4.887/2003 já podemos perceber a incorporação do amplo debate desencadeado na

academia, tentando redimensionar o texto legal e trazendo o critério da auto-atribuição.

Desta forma, o decreto presidencial nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, veio

regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,

demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos de que trata o art. 68 do ADCT. De acordo com o Art. 2º deste Decreto,

consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos:

Os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

O Decreto dispõe ainda, no Art. 2º, § 2 que:

São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural

Ao estabelecer diálogo com a Convenção 169 da OIT, este Decreto define, em

seu § 1º, Artigo 2º, como critério de identificação dos remanescentes das comunidades

dos quilombos:

Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

Podemos perceber que este artigo traz alguns elementos considerados

importantes para a luta desses grupos pela titulação das terras que ocupam. A auto-

atribuição (BARTH, 1998) foi considerada uma conquista pelo movimento das

comunidades quilombolas, por levar em consideração a forma como os atores sociais se

percebem, dando-lhes voz nesse processo.

No que diz respeito à regulamentação do artigo 68, temos o papel de

antropólogos, historiadores e juristas enquanto mediadores no processo de

reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas. De acordo com as análises

feitas por O’Dwyer (2010), os antropólogos, por exemplo, tem o objetivo de contribuir

para uma compreensão da antropologia aplicada no Brasil, tomando como marco no

reconhecimento de direitos diferenciados de cidadania, a Constituição Federal de 1988.

No caso dos remanescentes das comunidades dos quilombos, os antropólogos têm

desempenhado papel decisivo ao rebater, por exemplo, o uso do termo quilombo na

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CF/88, colocando a necessidade de buscar a “referência social do termo na atualidade”,

visto que este termo fora pensado para a ordem escravocrata, ao designar “negros

fugidos”.

No que diz respeito mais especificamente ao reconhecimento das terras aos

remanescentes das comunidades dos quilombos, O’Dwyer (2010) chama atenção para o

papel da ABA no contexto dos debates sobre a aplicação do artigo 68 do ADCT:.

Tais tomadas de posição têm questionado a utilização de formas de identificação e classificação estranhas aos próprios atores sociais, baseadas em critérios “historiográficos”, “arqueológicos”, “raciais” e/ou “culturais”, em busca do sentido considerado “correto”, “válido” e “verdadeiro”, como diz Weber, sobre as “ciências dogmáticas” (1991:4). Ao contrário, os antropólogos têm insistido na compreensão dos novos significados que o uso de termos, como “remanescentes de quilombos”, adquire nas ações sociais orientadas pela existência do dispositivo constitucional. (O’DWYER, 2010, p. 14).

Os antropólogos e suas produções literárias, portanto, têm participado nas lutas

que se travam na definição de políticas públicas e de Estado, como na promulgação

deste Decreto, contra o qual o Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEM) entrou com

uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº 3.239-9/600 – DF), contestando o

direito à terra das comunidades que, uma vez tituladas, se tornam inalienáveis e

coletivas.

A Constituição Federal de 1988, intitulada Constituição Cidadã pelo então

presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, foi

por ele considerada um ponto chave do processo de afirmação dos direitos étnicos11,

trazendo para o debate as discussões acerca do reconhecimento dos direitos

diferenciados de cidadania no Brasil. Seu conteúdo apresenta um conjunto de princípios

que vinham sendo discutidos em torno da diversidade cultural do Estado brasileiro,

onde entravam em cena direitos pensados em função de grupos específicos, direitos que

afirmavam as diferenças, direitos ditos multiculturais.

11 “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra”. Estas foram as palavras do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, proferidas na tarde de 5 de outubro de 1988, em audiência histórica no plenário da Câmara dos Deputados, quando entrava em vigor a Constituição Federal da Republica Federativa do Brasil. In. http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/53372/constituicao+federal+completa+23+anos+de+promulgacao+nesta+quarta.shtml. Acesso: 06/11/2011

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Ao refletirmos sobre a plurietnicidade do Estado brasileiro, podemos perceber

que a Constituição Federal admite a sociedade brasileira dentro de sua pluralidade, mas

os princípios que lhe fundamentam não fazem referência à pluralidade étnica, remetem

a outros elementos, como dignidade humana, cidadania e pluralismo político, por

exemplo.

Segundo Coelho (2008), com a elaboração da Constituição Federal de 1988 a

hegemonia universalista foi rompida com a aprovação de direitos específicos em função

de determinados grupos. Esse rompimento teria sido fruto de lutas pelo reconhecimento

das diversidades étnicas, onde se manifestou a tensão existente entre a tradição liberal

dos direitos humanos (de caráter universalista) e o respeito a direitos específicos (de

caráter particularista). São apresentados direitos que visam dar suporte a determinados

grupos, que procuram afirmar a diferença em detrimento da igualdade, “igualdade que

oprime” ao distanciar os grupos de suas especificidades.

Conforme aponta Pacheco (2005), o processo constituinte, na figura da

Assembléia Nacional Constituinte (ANC), instalada pela primeira vez em fevereiro de

1987, representou um marco no âmbito jurídico no Brasil, apresentando-se enquanto

ruptura da ordem jurídica presente até o momento, pela participação de múltiplos atores

e agentes, uma variedade de movimentos sociais, um espaço onde os segmentos mais

mobilizados da sociedade puderam atuar principalmente no que diz respeito à questão

dos direitos étnicos, com destaque para a Subcomissão de Negros, Índios e Minorias.

Seus dispositivos surgem como reflexos de uma luta por direitos, demandados

por pessoas de diferentes condições sociais e diferentes mundos culturais, constituindo-

se na Declaração de Direitos do Estado brasileiro. Na Constituição, ainda que

formalmente, estavam configurados os desejos de amplos setores da sociedade: uma

assistência mais socializada através do SUS; uma educação universal, gratuita e

obrigatória; uma seguridade social mais ampla; direitos dos trabalhadores nas

participações dos lucros nas empresas; direito de acesso à propriedade como meio de

produção. E mais, direitos de segmentos sociais específicos, com dispositivos

específicos sobre direitos étnicos, envolvendo populações indígenas e comunidades

quilombolas. (PACHECO, 2005).

A questão étnica foi discutida na ANC de acordo com determinados temas, na

Comissão da Ordem Social, Subcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas

Deficientes e Outras Minorias. Alguns dos temas debatidos foram: negros, indígenas,

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deficientes físicos e mentais, idosos, minorias religiosas, homossexualidade, dentre

outros.

A plurietnicidade do Estado Brasileiro, sugerida no Anteprojeto desenvolvido

pela ANC, não é disposta na CF/88 da mesma forma, e parece ser reconhecida de forma

simplória nos dispositivos a seguir:

Artigo 215 § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Artigo 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. (BRASIL, 1988) § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Cabe atentar para o que ficou definido no anteprojeto da Subcomissão de

Minorias acerca dos remanescentes de quilombos e o que foi mantido no texto final,

promulgado em 1988. Conforme Pacheco (2005, p. 125), o artigo 7º do anteprojeto

afirma que “O Estado garantirá o título de propriedade definitiva das terras ocupadas

pelas comunidades negras remanescentes de Quilombos”. Entretanto, na CF/88 este

dispositivo se transforma no artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT), estabelecendo formalmente a garantia do direito territorial aos

remanescentes das comunidades dos quilombos. Houve uma inversão significativa dos

termos no enunciado da norma, na passagem do anteprojeto para o texto definitivo.

A gramática do anteprojeto sugere um direito coletivo – direito das comunidades; no texto definitivo sugere um direito individual – aos remanescentes das comunidades. De certo modo isso reflete a permanente tensão entre a lógica liberal e outras lógicas que a interrogam. Essa questão – do foco do direito, se individual ou coletivo – foi resolvida com o Decreto nº 4.887 de novembro de 2003, que estabelece uma cláusula de “titularidade coletiva e pró-indiviso”. (PACHECO, 2005, p. 126)

Assim, como afirma Pacheco (2005), a questão do foco do direito (se coletivo ou

individual) é resolvida com o Artigo 17 do Decreto 4887/2003. O que temos neste

artigo é o reconhecimento de um direito coletivo, limitando um direito individual.

Dispõe o artigo 17 da seguinte forma:

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A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

De acordo com Souza Filho (2008), a luta das comunidades remanescentes de

quilombos, amparadas no artigo 68 e nos outros dispositivos constitucionais, tem

contribuído para uma visibilidade do tema e dos problemas enfrentados por essas

comunidades. No entanto, esse processo de luta por reconhecimento não é um processo

simples de ser apreendido por aqueles que reivindicam esse status, em razão da lógica

que rege esse processo, a lógica do direito e do Estado, ser distinta daquela que rege a

organização social dos grupos pleiteantes.

Assim, a chamada questão quilombola12 tem configurado um campo de disputas

que não envolve apenas especialistas, mas membros das comunidades, de diferentes

instituições que prestam apoio e membros do próprio Estado. Para que a comunidade

inicie seus primeiros passos nessa luta por reconhecimento, é necessária uma mediação

por parte de outros atores sociais, num processo de “orientação” nos trâmites

necessários para o reconhecimento.

Andrade (2009), ao abordar mais especificamente o caso das comunidades

remanescentes de quilombos de Alcântara, afirma que para existirem publicamente, para

encaminhar suas reivindicações, os quilombolas passaram a depender de uma grande

diversidade de estruturas e agentes de mediação. Desta forma, a autora analisa questões

relativas à delegação, às formas de representação e às contradições advindas da

movimentação desses intermediários que se colocam entre os quilombolas e os

aparelhos de estado e outras instituições.

A ligação dos autodenominados quilombolas, ou seja, de famílias de camponeses, pescadores, artesãos, extrativistas, espalhados em povoados do interior, e até mesmo grupos em áreas urbanas, de estados de todo o Brasil, passou a se realizar com essas instituições nacionais e supra nacionais por meio de toda uma rede de mediadores, constituída por antropólogos, advogados, parlamentares, integrantes do Ministério Público, pesquisadores, clérigos, jornalistas e outros profissionais, que passaram a apoiá-los em suas reivindicações e a realizar a mediação entre eles e a sociedade mais ampla. Suas reivindicações passaram a alcançar as instituições nacionais por meio de uma série de porta-vozes, agentes sociais por sua vez também organizados em movimentos e associações, instituídos como os que passaram a deter a fala autorizada nos assuntos relativos aos quilombolas. (ANDRADE, 2009, p. 5)

12 Ver ANDRADE (2009).

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A constituição desse campo de disputa envolve interesses de natureza acadêmica

e política. No campo intelectual, existem antropólogos que têm se debruçado sobre a

importância de refletir sobre o conceito de quilombo e quilombola, cujo debate tem

contribuído para o aprofundamento da questão conceitual, o que tem reforçado a luta

pela garantia do direito territorial às comunidades remanescentes de quilombos.

(SOUZA FILHO 2008, p. 21),

Assim, é conveniente discutirmos sobre a carga “simbólico-conceitual”

(Pacheco, 2005) que o artigo 68 carrega. Quem são os chamados remanescentes das

comunidades dos quilombos cujos direitos são atribuídos pelo dispositivo legal?

Quilombo ou remanescente de quilombo, termos usados para conferir direitos

territoriais e que surgem no contexto da elaboração da CF/88, permitem, “através de

várias aproximações, desenhar uma cartografia inédita na atualidade, reinventando

novas figuras do social” (O’DWYER, 2002, p.13).

O termo quilombo e suas significações ressurgem no campo das disposições

legais e, em torno do texto constitucional, surgiam as indefinições, as ambiguidades e

críticas referentes à forma como o artigo utilizou, de forma genérica, o termo quilombo,

tomando como base o conceito jurídico construído na época colonial. O problema

amplia-se justo nessa construção semântica e na apropriação de um conceito histórico

para dar conta de uma realidade atual, expressa na reminiscência e na permanência de

caracteres do termo histórico.

Em seus estudos sobre este tema, Almeida (2003) apresentou diversas críticas ao

apego que ainda se mantém com a categoria quilombo da jurisdição colonial, propondo

a sua necessária ressignificação, visando dar conta de um maior número de situações

sociais que pleiteiam esse direito e propondo, de certa forma, um desprendimento em

relação ao passado das comunidades.

Com cem anos de atraso, se considerarmos desta forma, falar-se-á em remanescente, em vestígio! Ora, então parece que se abriu um campo muito forte para os juízes acreditarem que basta designar um arqueólogo. Ele registrará vestígios materiais daquilo que já foi. Ninguém mais mora na Serra da Barriga, onde existiu o Quilombo dos Palmares. Não sei se os senhores têm conhecimento deste fato. Se se reconhecerá o que já foi, o arqueólogo basta. Há vestígios materiais e o juiz é mais simpático a eles. Entretanto, o trabalho do antropólogo é mais complicado, por que para ele o quilombo não é o que foi. O quilombo é essa autonomia construída no tempo e que as pessoas estão dizendo também que é disso que se trata. Portanto é diferente. Há o elemento da auto-atribuição, o grupo é que se autodefine, não há um classificador da sociedade que se imponha. (ALMEIDA, 2003, p. 234-235)

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De acordo com O’Dwyer (2002), o texto constitucional não evoca apenas uma

“identidade histórica” que poderá ser assumida e acionada pelos atores que se

mobilizaram pela garantia do direito. De acordo com o artigo 68, é necessário que esses

“sujeitos históricos presumíveis” existam no presente e ocupem uma terra que, por

direito, deverá ser titulada. Desta forma, a partir do momento que elementos do passado

são evocados, estes devem corresponder a uma forma atual de existência.

Tal aspecto presencial, focalizado pela legislação, tem levado os antropólogos a seguir um princípio básico: “fazer o reconhecimento teórico e encontrar o lugar conceitual do passado no presente”. O fato de o pressuposto legal referir-se a um conjunto possível de indivíduos ou atores sociais organizados em conformidade com sua situação atual permite conceituá-los, numa perspectiva antropológica mais recente, como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um “tipo organizacional”, segundo processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora. Isso sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou social ao longo do tempo. (O’Dwyer, 2002, p.14)

Compreender o uso da categoria quilombo e sua referência social na atualidade

nos permite analisar as transformações na autopercepção das comunidades a partir da

sua inserção na categoria remanescentes de quilombos (ABA, 2006). As pesquisas nesta

área permitem, ainda, um “resgate” da memória coletiva, dos processos políticos de

construção da identidade étnica, além de abordarem o lugar da antropologia e de outros

atores sociais, como o próprio Estado brasileiro, nesses processos.

Esse é o enfoque em direção ao qual quero conduzir minhas análises, partindo

das dinâmicas de construção da identidade com base no acionamento de critérios por

parte dessas “novas etnias” 13, “novos sujeitos de direitos” 14, que expressam outra

13 Ver ALMEIDA (2002, p. 72-73). De acordo com esse autor: “Se de um lado reconhece-se que há etnias permanentes, cujas origens são centenárias, de outro se reconhece também o advento de “novas etnias” conceituadas como uma tendência de grupos a se investirem, num sentido profundo, de uma identidade cultural com o objetivo de articular interesses e reivindicar medidas, fazendo valer seus direitos em face dos aparatos de estado. O critério político-organizativo ajuda a relativizar o peso de uma identidade definida pela comunidade de língua, pelo território, pelo fator racial ou por uma origem comum. Essa é uma discussão da ordem do dia das várias coletâneas que nas últimas décadas têm enfocado os deslocamentos no conceito de etnia. 14 Ver Andrade (2006), onde a autora dialoga com o conceito de etnicidade emergentes. Em outro texto (ver Andrade, 2009) a mesma autora apresentando os quilombolas como sujeitos de direito, afirma que milhares de grupos camponeses, em todo o Brasil, passam a adotar a identidade de quilombolas para interlocução com a burocracia estatal.

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maneira de se colocar diante dos aparatos de poder. A dinâmica de identificação desses

atores sociais com as categorias que lhes conferem uma nova identificação deve ser

entendida como uma identidade política, que lhes possibilita, entre outros fins, negociar

com o Estado a possibilidade de garantia de seus direitos.

ACEVEDO e CASTRO (1998), tratando da situação dos grupos Erepecuru e

Cuminá, no estado do Pará, reforçam a importância da ressemantização do conceito

antigo de quilombo, que permite a afirmação étnica e a organização/mobilização

política desses grupos.

A atualidade do conceito de quilombo é objeto de uma reinterpretação jurídica quando empregado para legitimar reivindicações pelo território dos ancestrais por parte dos denominados remanescentes de quilombos. A reatualização do termo ocorre, a partir da década de 80, como resultado das mobilizações de grupos rurais, do movimento negro e de entidades de apoio às lutas pelo reconhecimento jurídico de terras de antiga ocupação. O processo de ressemantização da categoria quilombo, tanto política quanto juridicamente, contribui à afirmação étnica e mobilização política desses segmentos camponeses, particularmente, as “comunidades negras rurais”. É no meio de situações de tensão e de enfrentamento que os processos de formação de identidades mobilizam fragmentos de história em comum, da memória social. (ACEVEDO; CASTRO, 1998, p. 9)

As autoras chamam atenção para o fato de que esses grupos, nesse processo de

afirmação étnica e organização política, acabam por resgatar o território e o significado

deste para suas vidas assumindo, assim, a identidade política de remanescentes de

quilombos, configurados nas estratégias desenvolvidas por esses atores para sustentar

esta nova identidade. Afirmam que a particularidade desse ato político é ressaltada pela

etnicidade, sendo esta traduzida pelo reconhecimento de uma origem comum e de

formas de coesão, constituindo, assim, do próprio processo de sua formação e

povoamento, uma peça jurídica, um argumento para proceder à titulação de suas terras.

Percebe-se a valorização dada ao reconhecimento de uma origem comum. Esse é

um ponto importante nessa discussão. No caso do Rio Grande, a valorização de uma

origem comum, atrelada ao “resgate/reconstrução” da história de formação e

povoamento do território, só veio à tona depois dos primeiros contatos do grupo de

pesquisa com a comunidade e da necessidade de acioná-lo. Até aquele momento, o

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elemento que o grupo de pesquisa possuía era o de que aquela comunidade teria

indícios15 para pleitear o direito destinado às comunidades remanescentes de quilombos.

Desta forma, e como veremos ao longo do texto, assim como os Negros do

Trombetas, os moradores do Rio Grande acionaram como peça jurídica alguns

elementos históricos que, segundo a memória de “seus filhos”16, fazem parte do

processo de formação e povoamento daquele território. Entretanto, como afirmei acima,

esses elementos só se configuraram durante o processo, quando a comunidade, tomando

conhecimento da importância de resgatá-los, assim o fez.

Nesse sentido, várias comunidades e os atores envolvidos neste processo aderem

ao processo de retorno às origens, baseando-se em identidades afirmativas politicamente

“lucrativas” (SAHLINS, 1997). Cabe destacar que as práticas de mobilização e

construção de histórias, contribuem, entre outros elementos, para o reconhecimento e a

própria existência desses grupos.

O reconhecimento é uma condição para conquista dos direitos sociais que

caracterizam o século XX e se torna um importante referencial teórico no cenário de

surgimento de novos movimentos sociais, que inserem na agenda política questões

sobre identidade, preconceito, invisibilidade, práticas sociais discriminatórias e falta de

acesso aos bens sociais.

A luta por reconhecimento social se faz importante neste contexto visto que

esses grupos, antes invisíveis na organização sociopolítica do Estado Brasileiro,

ausentes no âmbito do direito e dos debates públicos, passam a demandar seu

reconhecimento e o reconhecimento de seus direitos a partir da formação de identidades

específicas. Desta forma, a luta por reconhecimento traz à tona uma dimensão dual

neste processo: a igualdade e a diferença. Ao mesmo tempo em que se prega a ideia da

igualdade de direitos, aborda-se também a dimensão básica do direito à diferença.

De acordo com Mattos (2006), a luta por reconhecimento é uma afirmação da

diferença, quando reivindica a identidade específica de grupos. Honneth (2003) toma

como base a ideia de que os pilares da solidariedade moderna são as relações simétricas

existentes entre os membros da sociedade. Essas relações implicam na possibilidade de

15 No primeiro contato da professora Marivânia Furtado com S. Agnaldo, este lhe informou que o Rio Grande possuía indícios de uma comunidade quilombola. 16 Termo utilizado pelos moradores mais velhos para designar quem nasceu no Rio Grande, quem “é filho” da terra, “é filho do Rio Grande”. Esse é um elemento de afirmação usado pelos moradores para demarcar quem é e quem não é do Rio Grande.

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qualquer sujeito poder ter suas qualidades e especificidades reconhecidas como

necessárias e valiosas para a reprodução da sociedade.

As análises de Honneth (2003) acerca dos sentimentos de injustiça nos ajudam a

compreender um pouco deste contexto. Segundo o autor, os sentimentos de injustiça

podem levar a ações coletivas, na medida em que configurem experiências vivenciadas

por um conjunto de sujeitos numa situação social partilhada. No caso de uma concepção

baseada nos interesses, trata-se de uma luta por bens escassos. No caso da concepção de

conflitos baseada nos sentimentos morais, trata-se de uma luta pelas condições

intersubjetivas da dignidade. O modelo de conflito social, com base na lógica moral

proposta por este autor, sugere que o conflito é resultado de uma infração de

expectativas de reconhecimento. Sugere, ainda, que a simples ruptura social com o

consenso tácito não produz o conflito, sendo necessário que se produza uma semântica

coletiva capaz de reinterpretar a situação vivida.

Segundo Arruti (2006), a crítica feita por Honneth (2003) ao modelo de conflito

social baseado no interesse, parece particularmente útil no problema da identificação

étnica em um contexto como o quilombola, onde não apenas a adesão ao rótulo como o

próprio rótulo é recente, possibilitando-nos tecer análises que nos permitem superar

certos postulados acerca da “manipulação da identidade”.

Se os interesses são concebidos como orientações básicas dirigidas a fins, definidos conforme a condição econômica e social dos indivíduos e suas necessidades de, no mínimo, reprodução, mas também de conservação ou ampliação de poder; então, tais interesses tornam-se motivação coletiva na medida em que os diversos sujeitos da comunidade percebem-se igualmente confrontados com o mesmo tipo de tarefas, vinculadas às mesmas necessidades. Mas há, por outro lado, que se considerar a existência de motivações morais, baseadas no sentimento de desrespeito: uma experiência moral relativa à estrutura das interações sociais que frustra as expectativas de reconhecimento jurídico ou social dos sujeitos. Tais sentimentos de injustiça podem levar a ações coletivas, na medida em que sejam experenciados por um círculo inteiro de sujeitos, como algo típico de uma situação social compartilhada. No caso da concepção baseada nos interesses, trata-se de uma luta por bens escassos, no caso da concepção de conflitos baseada nos sentimentos morais, trata-se de uma luta pelas condições intersubjetivas da dignidade. (ARRUTI, 2006, p. 246).

Assim, o trabalho com a memória, fortemente realizado na comunidade

quilombola do Rio Grande, foi importante para a discussão do problema da

identificação étnica, que nos permite discutir um assunto bastante delicado nesses

processos de certificação e reconhecimento dos remanescentes quilombolas: a questão

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da invenção/manipulação da identidade, sempre questionada por sujeitos envolvidos nos

conflitos por terras travados com essas comunidades.

A história do Rio Grande e suas constantes mobilizações e luta por

reconhecimento, estão presentes na memória de seus moradores, expressas na

resistência à opressão histórica sofrida no passado e no presente. Muitos deles têm

assumido a luta e adotado para si a pertença étnica enquanto quilombolas, que aos

poucos vai ganhando força e fazendo sentido em suas lutas constantes para se manterem

na terra, expressas nas dinâmicas organizacionais desenvolvidas nos últimos anos.

Desta forma, a dissertação está organizada em três partes. Na primeira delas,

intitulada Quilombo(s): a disputa por conceitos e suas implicações no processo de luta

por reconhecimento, discuto os significados que o termo quilombo assumiu num

processo de mais de dois séculos, desde o século XVIII, quando da resposta do Rei de

Portugal à consulta do Conselho Ultramarino, até os dias atuais, a partir do artigo 68 dos

ADCT (CF/88). Abordo como uma categoria, negada anteriormente, é reapropriada e

inserida em um processo de luta por reconhecimento, com base em novos elementos e

significados, visando garantir o título da terra aos denominados remanescentes das

comunidades dos quilombos.

A promulgação da CF/88 provocou uma reação de movimentos sociais e da

academia visando desnaturalizar o uso do conceito histórico de quilombo, presente na

carta Constitucional, tentando dialogar e, quando necessário, romper, com esta definição

clássica, que vai assumindo novas dimensões na atualidade.

Na segunda parte, intitulada Rio Grande, um espaço de liberdade no contexto da

escravidão, busquei delinear as formas pelas quais os moradores do Rio Grande

construíram suas histórias, dialogando com o decreto 4887/2003, que regulamenta o

reconhecimento e certificação dessas comunidades. Com o objetivo de obter o

reconhecimento oficial como remanescentes das comunidades dos quilombos, junto a

Fundação Cultural Palmares, e visando atender ao requisito de presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida,

presente neste Decreto, o Rio Grande se mobilizou na tentativa de construção de suas

histórias, pautada em elementos que configurariam essa ancestralidade.

Por último, na terceira parte, “A comunidade tem tudo pra ser quilombola”:

processos organizacionais de identificação como novos sujeitos de direitos, me detenho

sobre a dinâmica dos processos organizacionais da comunidade de Rio Grande, a partir

do momento em que se percebem enquanto sujeitos de direito e iniciam um processo de

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identificação com base na categoria remanescentes das comunidades dos quilombos,

percebendo-se enquanto quilombolas. Desta forma, busquei analisar a dinâmica vivida

pelos moradores desde o ano de 2007, abordando alguns processos de organização

como, por exemplo, a reestruturação da Associação de Moradores do Rio Grande, o

processo de especialização de alguns desses atores nos assuntos referentes à temática

quilombola, a valorização de rituais de sua cultura que, em processo de

desaparecimento, passam a ser reapropriados enquanto elementos culturais importantes,

como o tambor de crioula (para adultos e crianças) e o forró de caixa, e o acionamento

da categoria quilombola para a garantia de políticas governamentais.

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2. QUILOMBO(S): a disputa por conceitos e suas implicações no processo de luta

por reconhecimento

Gostaria de iniciar minhas análises trazendo à tona um debate que no contexto

desta pesquisa é bastante perspicaz: os significados que o termo quilombo assumiu num

processo de mais de dois séculos, desde o Brasil colonial, no século XVIII, quando

surge formalmente, até os dias atuais, a partir do artigo 68 dos ADCT (CF/88). A ideia é

discutir como uma categoria, anteriormente estigmatizada e negada por aqueles a que

fazia menção, passa a ser reapropriada e inserida em um processo de luta por

reconhecimento, com base em novos elementos e significados, de modo a garantir

direitos para aqueles que se autodefinem enquanto remanescentes das comunidades dos

quilombos.

Tomando como base o uso deste termo no artigo 68, trago à tona uma longa

discussão posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que resultou da

dificuldade de entendimento dos significados deste termo na atualidade. Para isso,

movimentos sociais e academia se mobilizaram no sentido de desnaturalizar o uso deste

termo, tentando dialogar e, quando necessário, romper, com a definição histórica do

conceito de quilombo.

No artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição de 1988, o legislador institui os “remanescentes das comunidades de quilombos”, como se existissem indivíduos isolados nessas condições. Posteriormente, os movimentos sociais ligados às lutas desses camponeses pelo reconhecimento e titulação de seus territórios passaram a adotar a expressão “comunidades de remanescentes de quilombos”, enfatizando o caráter coletivo da existência desses indivíduos. Mais tarde ainda, com o avanço das lutas por aquele reconhecimento, esses grupos passaram a adotar a auto-denominação de quilombolas e não de remanescentes, de modo a não reforçar o caráter de restos, resquícios de uma situação anterior, enfatizando sua existência no presente. ANDRADE (2009, p. 2)

Desta forma, é importante chamar atenção para a reapropriação do termo

quilombo, um conceito jurídico-formal, construído historicamente no século XVIII, que

vai assumindo novas dimensões na atualidade. Os novos sujeitos de direito,

anteriormente identificados como comunidades negras rurais e/ou como camponeses,

dentre outros termos nativos17, agora assumem, conjugadas a estas últimas, a identidade

de quilombolas. Esta “nova” identidade, ainda que represente novos contornos

17 Como, por exemplo, terras de preto. Ver página 42, nota 18.

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interpretativos acerca do conceito de quilombo, encontra-se bastante relacionada ao

conceito histórico do mesmo, demarcando a relação destes grupos com o passado da

escravidão.

Neste sentido, é importante refletir como a categoria quilombo se configurou

historicamente e como foi apropriada pela Constituição Federal de 1988. Inicialmente,

cabe destacar que o uso do quilombo histórico faz parte de sistema de classificação

ligado a um tempo pretérito; conjugado a ele, elegemos, dentro desse mesmo sistema

classificatório, um conceito atualizado, ressignificado, em virtude do direito garantido

no artigo 68 aos remanescentes das comunidades dos quilombos.

Na monografia de conclusão do Curso de História da Universidade Estadual do

Maranhão, intitulada “Nós já estamos em cima deste chão”: A questão da terra

quilombola do Rio Grande – Bequimão – MA, eu havia iniciado essa discussão em torno

da categoria quilombo em diferentes períodos de tempo. Na tentativa de reconstruir a

história do Rio Grande (o processo de ocupação do território e a relação com o passado

da escravidão) segundo a memória de seus moradores, para que fosse reconhecido e

certificado junto a Fundação Cultural Palmares, cheguei a algumas considerações sobre

a atual situação do povoado.

O povoado do Rio Grande apresenta características clássicas e ressignificadas de um quilombo: Clássicas no sentido de apresentar dados que comprovam a ocupação de uma área inicialmente isolada, próxima a rios, e por representar um lugar onde se tentava viver longe da lógica escravista e junto de iguais (sujeitos oprimidos pela escravidão e, posteriormente, a mistura com camponeses livres). E ressignificadas no sentido de não apresentar uma unidade, um consenso sobre a herança quilombola: sem casa de engenho, ou título de doação de terras, ou herança deixada por senhores, sem a denominação terra de preto e terra de santo (apesar de alguns moradores dos arredores se referirem ao Rio Grande como “terra da festa de santo Antônio”, e fazer menção aos moradores como “os pretos do Rio Grande”). (ARAÚJO, 2009, p. 56)

Tomei como base as produções (relatórios, levantamentos preliminares e estudos

afins) acerca das comunidades quilombolas no Maranhão, levando em considerações as

outros termos nativos existentes. De início, tentei mapear quais os grupos que já haviam

sido identificadas, tanto por pesquisadores quanto pelos órgãos que tratam da questão

(ACONERUQ, CCN/MA, Comissão Pró-índio, Fundação Cultural Palmares, dentre

outros), partindo do pressuposto de que esses grupos, em geral, desconhecem o direito e

a forma de garanti-lo, precisando da mediação de pesquisadores e movimentos sociais

para iniciar o processo de luta por reconhecimento. A partir da análise desses dados,

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constatei que o Rio Grande não esteve presente em nenhum dos levantamentos

analisados.

Juntamente a esta pesquisa, tentei identificar os critérios utilizados nestes

mapeamentos, em especial no mapeamento feito pelo CCN/MA, nos anos de 1988 e

1989, acreditando que os critérios elencados poderiam estar relacionados às concepções

clássicas/históricas de quilombo, em razão, inclusive, da data em que foi realizado. A

necessidade de atualização dessas concepções se daria somente alguns anos depois.

Nos anos de 1988 e 1989 o Projeto Vida de Negro (PVN), realizado no âmbito

da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e do Centro de Cultura Negra

do Maranhão (CCN/MA), realizou um levantamento preliminar da situação das

chamadas terras de preto18 localizadas no estado do Maranhão.

Segundo consta no relatório já publicado (Projeto Vida de Negro, 2002), as

informações contidas neste relatório, mesmo antes de sua publicação, serviram como

fonte de referência para reivindicações do movimento quilombola, que ganhou força no

processo de luta por reconhecimento e regularização fundiária. Propiciaram subsídios

que serviram de base para processos jurídico-formais, que resultaram no

reconhecimento das comunidades quilombolas como, por exemplo, as de Frechal e

Jamary dos Pretos, nos municípios de Mirinzal e Turiaçu, respectivamente. Serviram

como material pedagógico para os cursos de formação de lideranças quilombolas, além

de contribuir para a criação da Associação Nacional de Comunidades Quilombolas e

para a sua expressão maranhense, a ACONERUQ.

Entre os objetivos iniciais da pesquisa do CCN/MA estava o levantamento das

terras de preto e o resgate histórico das mobilizações dos negros: resistência, formas de

organização, estratégias de sobrevivência e manifestações culturais. Levaram em

consideração os conflitos observados no campo em relação à questão fundiária e o

artigo 68 dos ADCT, da CF/88, assim como o parágrafo 5º do Artigo 216, que dispõe

sobre o tombamento de documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos

antigos quilombos.

18 Terras de Preto é uma expressão nativa, e não uma denominação importada historicamente e reutilizada (O’DWYER, 2002). Um caráter importante apresentado por Almeida (1996) é a relação constante entre “terras de preto” e “remanescentes de quilombos”, constantemente encarados como grupos inevitavelmente associados. Essa aproximação constante pode ter sido fruto do caráter repressivo que marcou o termo quilombo. “Admitir que era quilombola equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas míticas: terras de herança, terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras”. (ALMEIDA, 1996, p.17, grifos do autor). Ver também discussão na página 64.

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Os levantamentos de campo abrangeram desde o Vale do Itapecuru, passando

pelas áreas que margeiam o Golfão de São Marcos e a Região da Baixada Oriental, até o

Noroeste do estado, conforme mapas (Figuras 3 e 4) a seguir.

FIGURA 3: Mapa do Levantamento das “terras de preto” feito pelo

CCN/MA em 1988 e 1989.

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002)

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FIGURA 4: Mapa dos Municípios onde foi registrada a presença de quilombos no século XIX no Maranhão.

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002)

O critério da participação de representantes dos “povoados de negros

maranhenses” nos encontros promovidos pelo CCN/MA, abrangeu os encontros

realizados em São Luís, nos meses de agosto de 1986 e abril de 1988. Os resultados

destes encontros ajudaram na composição de um fichário com informações relativas a

mais de 80 situações onde se afirmava existir “comunidades negras”19. Essas visitas

foram feitas pelos executores do levantamento.

19 Segundo consta no Relatório, a terminologia “comunidades negras” é usada com freqüência pelo movimento negro para se referir àquelas situações sociais que no Maranhão são designadas como “terras de preto”. A expressão veiculada pelo PVN nos encontros realizados remete sempre às “comunidades negras rurais”.

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QUADRO 2: Municípios e povoados visitados pelos pesquisadores do Projeto Vida de Negro - CCN/MA

Município Povoado Alcântara Cajueiro I

Bacabal

Piratininga Guaraciaba

Brejo Saco das Almas

Caxias Nazaré de Bruno

Mandacaru dos Pretos

Codó

Boqueirão Sto. Antônio dos Pretos Livramento do Sampaio

Eira dos Coqueiros Matões da Rita

Cururupu Sede do Município Cajari Sede do município

G. Eugênio Barros São Paulo dos Pretos Guimarães Sede do Município

Itapecuru-Mirim

Santa Rosa Oiteiro dos Pretos

Leite I Icatu Sede do Município

Lima Campos

São José dos Mouras Bom Jesus

Mirinzal Estiva dos Mafras Frechal Colônia

Matinha Sede do Município Nina Rodrigues Sede do Município

Pinheiro Sede do Município

Penalva Sto. Antônio Ludovico Achuí

Presidente Juscelino Sede do Município Porção das Pedras Sede do Município

Pedreiras Sede do Município

Rosário São Miguel São Simão Ipaissandu

São Bento Sede do Município

São Luís Gonzaga São Pedro Canaã

Turiaçu

Capoeira de Gado São Romão Brito Mutá Santa Rosa Cutias

Santa Rita Campina dos Roxos

Viana

São Cristóvão Ipiranga Vila Nova São Manoel Santa Rosa

Vargem Grande São Roque dos Martins Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p.23-24)

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Na tentativa de mapear as comunidades negras rurais e as terras de preto no

Maranhão (termos utilizados no levantamento) são elencados os seguintes critérios: a

participação desses grupos nos encontros promovidos pelo Movimento Negro no

estado; as entrevistas realizadas nos povoados; a presença do sufixo “dos pretos” no

nome dos povoados; levantamento de fontes secundárias e transcrição de documentos

sobre quilombos; informações dadas por sindicatos dos trabalhadores e casas

paroquiais; o acesso à terra através da desagregação de fazendas e por doação.

Como podemos perceber no Quadro 2, o município de Bequimão não fez parte

dos municípios e povoados visitados pelos pesquisadores do PVN, mas esteve presente

nos dados coletados a partir de contatos com membros dos povoados, em encontros

promovidos pelo movimento negro e em entrevistas realizadas na sede dos municípios,

o que permitiu o levantamento de 132 povoados, apontados como sendo “comunidades

negras”. Com relação à nomenclatura dos povoados, foram identificados, em pelo

menos doze povoados, o sufixo “dos pretos”, utilizado pelos moradores para denominar

o território onde vivem.

QUADRO 3: Povoado com o sufixo “dos pretos”

Município Povoado

1. Chapadinha Centro dos Pretos

2. Pinheiro Santana dos Pretos

3. Turiaçu Santa Rita dos Pretos

4. Itapecuru-Mirim Oiteiro dos Pretos

5. Eugênio Barros São Paulo dos Pretos

6. Caxias Mandacaru dos Pretos

7. Codó Santo Antonio dos Pretos

8. Icatu Jacaraí dos Pretos

9. Igarapé Grande Mandi dos Pretos

10. Presidente Juscelino Juçaral dos Pretos

11. Lima Campos Bom Jesus dos Pretos

12. Turiaçu Jamary dos Pretos

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 38)

O quadro a seguir resume as informações obtidas no levantamento de

documentos sobre quilombos, datados do período de 1820 a 1888, em fontes

manuscritas e impressas, no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM) e na

Biblioteca Pública Benedito Leite, assim como obtidas a partir do levantamento de

referências sobre as “terras de preto” realizado junto a entidades e/ou indivíduos,

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denominado como “levantamento a partir de contatos”. Vejamos que as informações

relativas ao município de Bequimão, não fazem referência ao Rio Grande.

QUADRO 4: Levantamentos realizados em fontes secundárias (livros,

periódicos), em documentação de sindicatos de trabalhadores rurais e de casas paroquiais e em contatos com diversos

Município/Povoado Fonte de obtenção da informação Data do levantamento

BEQUIMÃO

Santa Flor SMDDH 24.04.1989

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 46)

De acordo com informações obtidas através da participação dos grupos em

encontros promovidos pelo movimento negro, foram identificados os povoados

descritos no quadro abaixo:

QUADRO 5: Dados coletados a partir de entrevistas realizadas nos

povoados, em “Encontros” promovidos pelo Movimento Negro e nas Sedes Municipais

Município/Povoado Fonte de obtenção da

informação

Data do levantamento Pesquisadores/

Entidades

BEQUIMÃO

Boa Vista Participou do II Enc. De

Comunidades Negras – São

Luís

15 a 17.04.1988 CCN/MA

Santa Tereza “ “ “

Ariquipá “ “ “

Paricatiua “ “ “

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 57)

Considerando o critério do acesso à terra através da desagregação de fazendas de

leigos e das ordens religiosas, o PVN mapeou os povoados descritos nos quadros que

seguem:

QUADRO 6: Acesso à terra através da desagregação de fazendas

Região Município Nº do cadastro Povoado Baixada Ocidental Bequimão 04.04 Paricatiua

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 78)

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QUADRO 7: Acesso à terra através da desagregação de fazendas das ordens religiosas

Região Município Nº do cadastro Povoado

Baixada Ocidental Alcântara e Bequimão 27.04 Itamatatiua/Santa Tereza

Baixada Ocidental Alcântara e Bequimão e Peri Mirim

27.05 Outros povoados que fazem parte das terras de Santa

Tereza Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 80)

Tomando como referência o critério de doação de terras, o PVN identificou

somente o povoado de Paricatiua.

QUADRO 8: Acesso à terra por doação

Região Município Nº do cadastro Povoado

Baixada Ocidental Bequimão 04.04 Paricatiua

Fonte: Projeto Vida de Negro (2002, p. 82)

As informações atuais que constam no site da Fundação Cultural Palmares

acerca das comunidades quilombolas reconhecidas, conforme quadro abaixo, indicam as

lacunas existentes no levantamento do CCN/MA. Podemos destacar, por exemplo, a

ausência de Rio Grande, Ramal de Quindiua, Conceição e Mafra, povoados do

município de Bequimão, reconhecidos oficialmente como comunidades quilombolas

pela Fundação Cultural Palmares. Comparando as informações do quadro abaixo

(Quadro 9) com os dados do Projeto Vida de Negro (2002), das comunidades

quilombolas reconhecidas no município de Bequimão, apenas Ariquipá constava no

levantamento feito pelo PVN.

QUADRO 9: Comunidades Quilombolas de Bequimão reconhecidas pela FCP (Até

dezembro de 2011)

Estado Município Código do IBGE Comunidade Data de publicação

Maranhão Bequimão 2101905 Ariquipá 28/07/2006

Maranhão Bequimão 2101905 Rio Grande 19/11/2009

Maranhão Bequimão 2101905 Ramal do Quindíua 27/04/2010

Maranhão Bequimão 2101905 Conceição 22/12/2011

Maranhão Bequimão 2101905 Mafra 22/12/2011

Fonte: http://www.palmares.gov.br/?page_id=88&estado=MA#

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Segundo dados do PVN (2002), os municípios de Alcântara e Bequimão

compõem a micro-região da Baixada Ocidental Maranhense. No entanto, de acordo com

o IBGE, o município de Bequimão compõe a micro-região do litoral ocidental

maranhense. Na figura 3 (p. 43), no mapa do levantamento feito pelo próprio PVN

(2002), o município de Bequimão também faz parte do litoral ocidental maranhense.

Existe um conflito de informações.

No entanto, existem alguns debates que apontam para a discussão acerca dos

municípios que compõem a região da Baixada Maranhense, que vão desde as definições

oficiais, do IBGE, até análises de geógrafos e outros estudiosos acerca das similaridades

(geográficas, históricas e culturais) entre os municípios, além das interpretações dos

nativos, cada uma estabelecendo seus critérios de fronteira.

De acordo com o Sistema de Informações Territoriais20 (STI) do MDA, a

Baixada Ocidental Maranhense (termo usado pelo STI e pelo CCN/MA) é o território

11521 do sistema de classificação do MDA, do qual o município de Bequimão e

Alcântara fazem parte. Nos dados atuais do IBGE e de acordo com o Instituto

Baixada22, os municípios de Bequimão e Alcântara não estão presentes. Ainda assim,

tomando como base parte dos dados do CCN/MA e do SIT, além da auto-identificação

de alguns moradores da região como baixadeiros23, o município de Bequimão se inclui,

de acordo com essas referências, como um território da baixada ocidental maranhense.

A região da Baixada Ocidental Maranhense se constitui em uma área de

ocupação antiga, onde as famílias estão estabelecidas secularmente, desde o tempo das

grandes fazendas monocultoras. Segundo dados do PVN (2002), a micro-região da

Baixada Ocidental é apontada na pesquisa como uma área onde o acesso à terra por

parte dos atuais moradores se deu através da desagregação das fazendas, antes e depois

da Lei Áurea, e por doação. Como percebemos no quadro a seguir, temos um número

20 Sistema de Informações Territoriais (http://sit.mda.gov.br), que disponibiliza dados sobre os Territórios Rurais organizados por tema, tais como: Demografia e Aspectos Populacionais, Economia, Saúde, Educação e Outros. 21 Além de Bequimão, este território é composto pelos municípios de Alcântara, Apicum-Açu, Bacuri, Bacurituba, Bequimão, Cajapió, Cedral, Central do Maranhão, Cururupu, Guimarães, Icatu, Mirinzal, Palmeirândia, Penalva, Peri Mirim, Pinheiro, Porto Rico do Maranhão, Presidente Sarney, Santa Helena, São Bento, Serrano do Maranhão, Turiaçu, Turilândia e Viana. 22 Recorte geográfico - Instituto Baixada e IBGE: Anajatuba, Arari, Bela Vista do Maranhão, Cajari, Conceição do Lago-Açu, Igarapé do Meio, Matinha, Monção, Olinda Nova do Maranhão, Palmeirândia, Pedro do Rosário, Penalva, Peri Mirim, Pinheiro, Presidente Sarney, Santa Helena, São Bento, São João Batista, São Vicente Ferrer, Viana e Vitória do Mearim. (Ver. http://www.institutobaixada.org/) 23 Adjetivo utilizado para designar moradores da região da Baixada Maranhense.

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significativo de comunidades quilombolas, nas regiões da Baixada e Litoral Ocidental

Maranhense, reconhecidas pela FCP.

QUADRO 10: Comunidades Quilombolas das regiões da Baixada e Litoral

Ocidental Maranhense, reconhecidas pela FCP (até dezembro de 2011)

Município Número de comunidades

reconhecidas pela FCP

Alcântara 155

Alcântara/Bequimão 1

Anajatuba 3

Bacuri 1

Bequimão 5

Cajari 3

Cedral 3

Central do Maranhão 4

Cururupu 9

Guimarães 8

Icatu 5

Matinha 3

Mirinzal 4

Monção 3

Olinda Nova do Maranhão 3

Palmeirândia 1

Penalva 2

Pedro do Rosário 1

Peri Mirim 2

Pinheiro 6

Porto Rico do Maranhão 2

Presidente Sarney 10

Santa Helena 9

São Bento 2

São Vicente Ferrer 3

Serrano do Maranhão 17

Turiaçu 1

Turilândia 1

Total 267

Fonte: http://www.palmares.gov.br/?page_id=88&estado=MA

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Quando iniciei as pesquisas no Rio Grande e tentei mapear os dados referentes a

esse povoado, deparei-me com a ausência de informações nos levantamentos feitos

pelos órgãos responsáveis. As informações presentes no quadro 8, que apresenta o Rio

Grande como reconhecido pela FCP, são posteriores à minha pesquisa inicial, entre

2008 e meados de 2009.

O mapeamento do Centro de Cultura Negra, aqui apresentado, foi realizado nos

anos em que o debate sobre a inserção do artigo 68 na CF/88 estava no início. Pude

perceber que alguns critérios utilizados nesse levantamento estão relacionados às

concepções clássicas/históricas de quilombo enquanto outros já demonstram um olhar

diferenciado.

No desenrolar deste capítulo veremos que o termo quilombo esteve intimamente

ligado aos séculos que marcaram o processo de escravização no Brasil, percebendo o

significado que este termo foi capaz de carregar desde o século XVIII até a

promulgação da atual Constituição Federal. Nesse processo de reconhecimento das

comunidades quilombolas estaremos o tempo todo nos deparando com as variações

dadas ao conceito de quilombo, tanto pelos próprios sujeitos de direito, quanto por

pesquisadores, movimentos sociais e órgãos estatais.

Desta forma, é importante destacar que “o conceito de quilombo não pode ser

territorial apenas ou fixado num único lugar geograficamente definido, historicamente

documentado e arqueologicamente escavado”. As novas conotações que este termo

assume, visando dar contas das múltiplas situações sociais que pleiteariam o direito

expresso no artigo 68, nos permitem entender o percurso e a sematologia deste conceito

face a novas identidades. (ALMEIDA, 1996: 18, grifos do autor).

2.1 Quilombos: dimensões históricas e oficiais

O processo de escravização compôs a história brasileira por mais de trezentos

anos. Segundo dados apresentados por Gomes e Reis (1996), estima-se que para o

Brasil vieram perto de 40% dos africanos, quase metade do número de africanos

escravizados que chegaram às Américas. Homens e mulheres que, obrigados a

abandonar o “mundo livre” seguiram viagem ao “mundo da escravidão”, recepcionados

com maus tratos, açoites, penas, fome e exploração do trabalho.

Esse sistema, no entanto, era complexo e permeado por relações de conflitos e

negociações constantes entre escravos e senhores. Tais relações não foram unicamente

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de dominação e submissão. O Brasil viveu mais de trezentos anos de escravidão e viveu

também com sujeitos que nem sempre assistiram ao empreendimento escravocrata como

meros espectadores. Foram capazes de criar e recriar estratégias necessárias para a sua

libertação e para a construção de histórias de luta pela liberdade, a exemplo dos diversos

quilombos existentes durante o auge do regime escravocrata, e mesmo no seu período

de declínio.

Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. [...]. Houve, no entanto, um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como a mais típica da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e formação de grupos de escravos fugidos. (GOMES; REIS; 1996, p. 9).

Gomes e Reis (1996) apontam para os diversos nomes e lugares que se referiam

à formação de grupos de escravos fugidos.

A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outros personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palanques, cumbes, etc.; na inglesa, maroons; na francesa grand marronage (para diferenciar da petit marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. (GOMES; REIS; 1996, p. 10, grifos dos autores).

A primeira definição de quilombo no Brasil demarca um termo jurídico-formal.

Em 2 de dezembro de 1740, segundo resposta do Rei de Portugal à consulta do

Conselho Ultramarino, quilombo era “toda habitação de negros fugidos, que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem

pilões nele” (MOURA, 1981, p. 16). O significado dessa definição abarcou as

disposições legais vigentes no período colonial e as leis provinciais postas em prática

pelas políticas repressivas do período imperial, permeando as produções históricas

acerca do tema.

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De acordo com Almeida (1996),

Quilombo, enquanto categoria histórica, usufrui de um certo consenso em termos jurídicos-formais. Apoiado num senso-comum douto, seu significado compreende tanto as disposições legais vigentes no período colonial, quanto as leis provinciais postas em prática pelas políticas repressivas do período imperial, que ganham força com o esmagamento das chamadas rebeliões de “autonomia regional” e “insurreições populares”, tais como a Cabanagem (PA), a Balaiada (MA) e a Guerra de Canudos (PE). Todos os textos de especialistas que foram compulsados, num vasto elenco que se estende de Perdigão Malheiro, em 1866, a Clóvis Moura, 1994, remontam à resposta do Rei de Portugal à consulta do Conselho Ultramarino, em 2 de dezembro de 1740. A conceituação de quilombo tem nesta manifestação jurídica uma referência básica. As implicações teóricas e as traduções práticas do conceito envolvem o que estaria “fora” do sistema escravocrata característico do modelo de plantation (imobilização da força de trabalho e sistema de monocultura agrário-exportador) e o que estaria idealmente além de seus domínios territoriais. Mais exatamente se referem à periferia das plantações algodoeiras e açucareiras e a atividades econômicas consideradas “marginais”. (ALMEIDA, 1996, p. 12, grifos do autor).

Ainda segundo Almeida (1996), “os elementos constitutivos da conceituação de

quilombo abrangeriam ações em grupo, que deliberadamente negariam a disciplina do

trabalho, localizadas às margens do circuito de mercado”. Sob essa ótica, o autor

apresenta cinco características que sempre aparecem de forma combinada, como se

fossem partes integrantes de uma “totalidade definitória de quilombo”. São elas: a)

fuga; b) quantidade mínima de fugidos; c) localização marcada por isolamento relativo

– “parte despovoada”; d) moradia consolidada ou não; e) capacidade de consenso

traduzida pelos “pilões” ou pela reprodução simples que explicitaria uma condição

marginal aos circuitos de mercado. O autor analisa essa representação jurídica da

seguinte forma:

A representação jurídica se volta para enunciar o que estaria “fora” do mundo do trabalho legalmente instituído. Estabelece um divisor de águas, separando os lugares ermos, despovoados e com domínio absoluto da natureza, daqueles onde o processo e povoamento e colonização estabeleceu unidades produtoras orientadas pela política colonial. A menção aos “pilões” evidencia a classificação como crime das atividades de autoconsumo, que consolidariam, de maneira mais duradoura, pela capacidade reprodutiva, o ato de fuga, enquanto recusa dos mecanismos coercitivos de disciplina do trabalho e negação do império da grande propriedade monocultora. (ALMEIDA, 1996, p. 13).

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Pensar a categoria quilombo, utilizada na contemporaneidade, remete a reflexões

relativas ao seu uso pela historiografia e as definições jurídico-históricas. Primeiro

poderíamos nos ater à gênese do seu uso expressa na análise travada por Munanga

(2001) que aborda a relação deste termo no Brasil com as situações nas quais teria

surgido, na África. Segundo levantamento histórico feito por ele,

O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas bantu (Ki-lombo, aportuguesado Qui-lombo). Sua presença e seu significado no Brasil tem a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros foram trazidos e escravizados nesta terra. Trata-se dos grupos Lunda, Ovimbundu, Mbundu, Congo, Imbangala, etc... cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire. Embora o quilombo (Ki-lombo) seja uma palavra de língua umbundu, de acordo com Joseph C. Miller, seu conteúdo enquanto instituição sócio-política e militar é resultado de uma longa história envolvendo regiões e povos aos quais já me referi. É uma história de conflitos pelo poder, de cisão dos grupos, de migrações em busca de novos territórios e de alianças políticas entre grupos alheios. (MUNANGA, 2001, p. 21).

Sob a perspectiva de permanências e comparações, Munanga (2001) refere-se às

adaptações e aproximações que possivelmente aconteceram no Brasil:

O quilombo brasileiro é sem dúvida uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma outra estrutura escravocrata, pela implementação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos (...). Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade: negros, índios e brancos, prefigurando um modelo de democracia pluriracial que o Brasil ainda está a buscar. (MUNANGA, 2001, p. 30).

Analisar a escrita de Munanga (2001) e as aproximações que o autor faz entre

quilombo na África e quilombo no Brasil remete à outra análise historiográfica.

Pegando o fio de discussão de Arruti (2006), poderíamos dizer que a análise de

Munanga (2001) aproxima-se de uma corrente historiográfica voltada para o viés

culturalista (denominada por Arruti como resistência cultural). Tendo como tema

central a persistência ou a produção de uma cultura negra no Brasil, alguns autores

tentam aproximar, ou mesmo encontrar “africanismos” e “sobrevivências africanas” no

modo de vida dos quilombos brasileiros, como expressão maior de resistência cultural.

(ARRUTI, 2006).

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A perspectiva das sobrevivências africanas teria surgido na primeira década do

século XX, quando Nina Rodrigues, em 1905, caracterizou Palmares como uma forma

de persistência da África no Brasil (ARRUTI, 2006, p. 72). Outros nomes da

historiografia brasileira, marcadamente reconhecidos por estudos pioneiros sobre

quilombos no Brasil, seguiriam os estudos de Nina Rodrigues e se destacariam na

historiografia propondo uma escrita com viés culturalista. Entre eles poderíamos

destacar Arthur Ramos, Edison Carneiro e Roger Bastide, em meados do século XX,

cada autor propondo especificidades e análises teóricas no sentido de ver o quilombo

“como um projeto restauracionista, no sentido de que os fugitivos almejariam restaurar

a África neste lado do Atlântico” (GOMES, REIS, 1996, p. 11).

Segundo essa perspectiva, “a organização social dos aquilombados era

identificada a um esforço “contra-aculturativo”, uma resistência à aculturação européia

a que eram submetidos os escravos nas senzalas” (GOMES, REIS, 1996, p. 11). Esses

estudos foram, e continuam a ser, de suma importância para a historiografia. Ainda que

nas últimas duas décadas do século XX as produções históricas apresentem novos

olhares, não deixaram de expressar continuidades em relação à perspectiva da

resistência cultural.

Os estudos sobre quilombos vão além do viés culturalista. Ainda segundo a

discussão feita por Arruti (2006) e por Gomes e Reis (1996), os estudos sobre

quilombos enfatizaram, também, em meados do século XX, o caráter da resistência

política, buscando identificar as formas pelas quais as classes populares se comportaram

frente à ordem dominante, com foco para as relações de poder representadas pelos

quilombos. Os estudos dos quilombos brasileiros sob essa perspectiva se configuram

através dos protestos políticos de alguns intelectuais marxistas, como Aderbal Jurema,

que escreveriam sobre revoltas escravas como exemplificação da luta de classes no

Brasil (GOMES, REIS, 1996, p. 12).

Em fins do século XVII, alguns cronistas coloniais destacavam a resistência

expressa nos quilombos e as dificuldades para erradicá-las. Segundo a análise de Gomes

e Reis (1996), os cronistas abordavam os quilombos em suas escritas, principalmente

para exaltar o poder que as autoridades tinham de reprimir essas organizações

consideradas subversivas. O Quilombo dos Palmares, por exemplo, teria lugar nas

linhas da história militar no Brasil; no século XIX poucos seriam os avanços na escrita

sobre este tema. A partir dos anos 30 do século XX surgiriam reflexões mais

sistemáticas relativas aos quilombos nos estudos afro-brasileiros.

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Nesse sentido, estariam os estudos de Clóvis Moura, José Alípio Goulart e

Décio Freitas e algumas análises propostas por Roger Bastide e Edison Carneiro. Este

último teria sido influenciado pela sua forte ligação com o Partido Comunista

Brasileiro, propondo uma interpretação classista da luta de Palmares. Muitos desses

estudos visavam romper a idéia propagada nos anos 30, por Gilberto Freyre, de que

teria existido no Brasil uma sociedade escravocrata permeada por relações escravistas

harmoniosas.

As análises revisionistas propostas pela chamada Escola Paulista (incluem-se

aqui Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso) haviam

enfatizado o processo de “coisificação” do escravo, enquanto outros autores abordaram

a questão da resistência política.

Em fins da década de 1970 e início da década de 1980, o uso do termo quilombo

seria novamente reapropriado pelo movimento negro brasileiro, como expressão da

resistência negra. As referências a esse “uso político” dos quilombos, destacadas por

Arruti (2006), seriam primeiramente representadas pela criação do Grupo Palmares, em

Porto Alegre-RS, na redescoberta de Palmares como evento histórico representativo da

“raça negra”, em 1971 (ARRUTI, 2006, p. 76). Em seguida, o autor destaca Abdias do

Nascimento, que publicou em 1980 o livro O Quilombismo. Dando um caráter

“histórico-humanista” ao sentimento e à experiência nos quilombos, Abdias propôs que:

O ‘quilombismo’ fosse adotado como um projeto de ‘revolução não violenta’ dos negros brasileiros, que teria por objetivo a criação de uma sociedade (o ‘Estado Nacional Quilombista’) marcada pela recuperação do ‘comunitarismo da tradição africana’, aí incluída a articulação dos diversos níveis de vida com vistas a assegurar a realização completa do ser humano e a propriedade coletiva de todos os meios de produção (ARRUTI, 2006, p. 76).

As análises mais recentes sobre quilombos e escravidão no Brasil, nas décadas

de 1980 e 1990, buscam ampliar os olhares e as concepções sobre a formação dos

quilombos no Brasil, visando superar as interpretações historiográficas que enfatizavam

a “coisificação do escravo”, as relações de “dominação e submissão”, ou mesmo a

busca por africanismos (expressos na problemática cultural) e a resistência política,

fruto de uma influência marxista.

Para Gomes e Reis (1996),

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Esse novos olhares renovaram a discussão do fenômeno por que desistiram da busca frenética de sobrevivências africanas e, ao mesmo tempo, da rigidez teleológica do marxismo convencional, atualizando o debate a partir de novas perspectivas da historiografia recente, em particular aquela que vem inovando nas últimas três décadas os estudos da escravidão dentro e fora do país. Estudos que, de resto, muito devem à renovação da historiografia marxista, que procurou incorporar a seu universo de preocupações, via antropologia social, os aspectos simbólicos e rituais da vida em sociedade, contextualizando-os historicamente. Mas, acima de tudo – e ponha ênfase nisso –, reflete-se nesses novos estudos a preocupação pela pesquisa documental, com a descoberta e análise de fontes manuscritas e orais que ampliam bastante nosso conhecimento sobre quilombos em várias regiões do Brasil e apontam para uma complexa relação entre os fugitivos e os diversos grupos da sociedade em torno de nós. (GOMES; REIS, 1996, p. 13-14)

Em fins da década de 80, o artigo 68 dos ADCT recolocou em cena a categoria

quilombo no Brasil, agora sob a justificativa de assegurar um direito tardio, se levarmos

em considerações os danos e consequências causadas ao negro brasileiro. A abolição da

escravatura trouxe consigo uma contradição expressa na forma de inserção do ex-

escravo no mundo do trabalho livre. No entanto, mediante as novas barreiras e formas

de dominação em novas bases, o negro manteve-se marginalizado e inferiorizado.

O direito constitucional visa garantir a titulação das terras ocupadas pelos

remanescentes das comunidades dos quilombos. Ressignificar o conceito histórico para

abarcar a diversidade passou a ser uma das alternativas encontradas para o problema

gerado pelo texto legal. Em função disso, os problemas em torno do uso deste termo na

atualidade não tardariam a surgir.

Antropólogos, historiadores e cientistas em geral têm desenvolvido estudos que

incluem na caracterização dos quilombos não apenas o binômio fuga/isolamento, com

ocupação de terras livres, mas também as heranças, doações, recebimento de terras

como pagamento de serviços prestados ao Estado, a permanência nas grandes

propriedades, engenhos e casas-grandes e, ainda, a compra de terras durante o regime de

escravidão e após sua suposta extinção formal. Essas novas perspectivas tem

acompanhado a lógica proposta pela historiografia brasileira nas últimas duas décadas

do século XX, que vem apresentando estudos que visam ampliar as análises referentes à

dualidade das relações entre escravos e senhores.

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O direito constitucional expresso no artigo 68, ao garantir o território para os

remanescentes das comunidades dos quilombos trouxe a categoria quilombo à cena

novamente. Com a ampliação dos debates políticos e acadêmicos, e da mobilização

conjunta entre os novos sujeitos de direito e os movimentos sociais, a categoria

quilombo foi ganhando novos contornos.

A crítica à apropriação de um termo histórico, seguindo as concepções coloniais

e/ou imperiais para englobar novos sujeitos de direito, surgiu logo após a promulgação

da CF/88, quando se tornou perceptível a dificuldade de englobar num só termo

diversas possibilidades de situações sociais. Em virtude de sua complexidade, fazia-se

necessário o redimensionamento do termo quilombo para abarcar a pluralidade de

situações sociais existentes no Brasil que pleiteariam o direito territorial; ocupações

seculares que vinham sofrendo constantes expropriações de suas terras.

2. 2. Para além do quilombo histórico

O texto exposto na Constituição Federal Brasileira apresenta a garantia de um

direito: o reconhecimento e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos. Este mesmo texto provocou uma série de interrogações.

Quais critérios definem quem são os remanescentes das comunidades dos quilombos?

Como as referidas comunidades dos quilombos teriam conhecimento deste direito? A

questão central, inicialmente, colocou-se em torno dos termos quilombo e

remanescente, que expressavam o caráter de permanência e preservação de uma

organização social teoricamente pertencente há um tempo pretérito.

Como vimos na discussão historiográfica apresentada anteriormente, o termo

quilombo foi objeto de diversos estudos sobre a resistência escrava no Brasil. Os novos

escritos, sob novos olhares e perspectivas, ainda que permeados por permanências e

rupturas com antigos paradigmas, serviriam de base para as novas concepções,

instigadas pelas indefinições do artigo 68 do ADCT. Nesse sentido, de acordo com

Almeida (2003), o termo quilombo, agora como construção jurídica, acabaria sendo

encarado como uma conversão simbólica do próprio quilombo como metáfora.

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Embora esse art. 68 seja de uma disposição constitucional transitória, obriga-nos a pensar sobre a estrutura de uma sociedade escravista. Esse é o problema. Essa é a dificuldade. Temos que ter instrumentos para repensar essa sociedade. É a nossa dificuldade enquanto profissionais. Como pensaremos, com instrumentos totalmente defasados, essa sociedade escravista? E vejam que o quilombo deixa de existir a partir de 1889. As Constituições de 1891, 1933, 1934, não o mencionam mais; a de 1967 tampouco. É como se o problema houvesse acabado após a abolição. Um problema que sequer foi tocado. Com cem anos de atraso, se considerarmos desta forma, falar-se-á em remanescente, em vestígio! Ora, então parece que se abriu um campo muito forte para os juízes acreditarem que basta designar um arqueólogo. Ele registrará vestígios materiais daquilo que já foi. Ninguém mora mais na Serra da Barriga, onde existiu o Quilombo dos Palmares! Não sei se os senhores têm conhecimento deste fato. Se se reconhecerá o que já foi, o arqueólogo basta. Há vestígios materiais, e o juiz é mais simpático a esses. Entretanto, o trabalho do antropólogo é mais complicado, porque para ele o quilombo não é o que foi. O quilombo é essa autonomia construída no tempo e que as pessoas estão dizendo também que é disso que se trata, no caso do nascedouro desse movimento quilombola. Portanto, é diferente. Há o elemento da auto-atribuição: o grupo é que se autodefine; não há um classificador da sociedade que se imponha. ALMEIDA (2003, p. 234-235, grifos meus).

Segundo Almeida (1996), a maior dificuldade na realização dos trabalhos em

comunidades remanescentes de quilombos estaria na autoevidência que envolve o

significado de quilombo e na reprodução atual do suposto significado “original” deste

termo, atrelado aos marcos jurídicos instituídos no século XVIII. Nesse sentido, o autor

afirma que existiu um duplo desafio colocado à pesquisa: “recolocar os termos de uma

questão autoevidente e chamar a atenção para os novos procedimentos interpretativos”.

Está-se diante de um ato dissimulado de imposição, que precisa ser colocado em dúvida e classificado como arbitrário para que se possa alcançar as novas dimensões do significado atual de quilombo e as redefinições de seus instrumentos interpretativos. Para tanto, importa depurar o mito em torno da definição jurídica congelada e tomar como objeto os elementos que configuram um significado de quilombo para além da etimologia e das disposições legais filipinas ou manuelinas. A construção do campo conceitual de quilombo, compreendendo inúmeras noções operacionais correlatas, tem como ponto de partida situações sociais específicas e coetâneas, caracterizadas sobretudo por instrumentos político-organizativos, cuja finalidade precípua é a garantia da terra e a afirmação de uma identidade própria. Em outras palavras, parte de realidades factuais, localizadas e do que hoje os agentes e movimentos sociais, a elas referidos, representam como sendo quilombo. Para esses agentes sociais o reforço da conceituação adquire sentido ao viabilizar o reconhecimento de suas formas próprias de apropriação dos recursos naturais e de sua territorialidade. (ALMEIDA, 1996, p. 11 e 12, grifos do autor)

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Almeida (1996) refere-se a essa dinâmica de apropriação do termo quilombo

pelos agentes sociais que se dão conta de que ele expressa suas formas de apossamento

e ocupação:

O novo significado expressa a passagem de quilombo, enquanto categoria histórica e do discurso jurídico formal, para um plano conceitual construído a partir do sistema de representações dos agentes referidos às situações sociais assim classificadas hoje. Está diante de uma ruptura teórica. Além disto, observa-se que os agentes sociais que se auto-representam ou são definidos, direta ou indiretamente, através da noção de quilombo, evidenciam que ela adquire sentido ao expressar o reconhecimento de suas formas intrínsecas de apossamento e uso dos recursos naturais e de sua territorialidade, descrevendo uma nova interlocução com os aparatos do poder. Os elementos de contraste envolucrados nesta relação explicitam o advento de uma identidade coletiva. (ALMEIDA, 1996, p. 13-14, grifos do autor).

Para Almeida, o fato do termo quilombo, a partir de 1988, deixar de referir-se a

expressão de um crime contra a ordem dominante para ser atribuído como categoria de

autodefinição, já implica num processo de ressemantização de seu significado. A

mudança é expressa, inicialmente, na redefinição de quem fala. Se na perspectiva

histórica de quilombo os sujeitos sociais que compunham essa organização apenas eram

relatados pela fala oficial, geralmente daqueles que os reprimiam, o direito

constitucional de 1988 propunha uma inversão dos discursos. Essa inversão se deu

principalmente com o decreto 4887/03, que trouxe o critério da auto-definição para o

debate. Apesar da mudança de posição de onde é produzida esta categoria, ainda é

muito comum relacioná-la como parte de um tempo pretérito. (ALMEIDA, 1996, p. 17).

Poderíamos inserir nessa discussão o dado apresentado por Arruti, que analisa a

gênese do direito destinado aos remanescentes dos quilombos como uma construção

jurídica fruto do improviso e do impasse entre seus segmentos criadores no momento de

sua formulação.

É fundamental, porém, compreender que os formuladores da lei não dispunham de elementos suficientes para prever seus efeitos criadores. A intenção do legislador, fantasmagoria e recorrentemente citada nos textos de hermenêutica jurídica, dificilmente pode ser reivindicada como chave de compreensão dessa nova realidade. Ao tentarmos dar conteúdo sociológico a essa suposta “intenção” no caso do “artigo 68”, encontramos pressupostos obscuros e confusos, um conhecimento muito limitado da realidade que nele se faria representar e uma discussão que, em momento algum, apontou para o futuro, mas sempre para o passado. (ARRUTI, 2006, p. 67).

O mesmo autor nos apresenta dados significativos para a compreensão desse

impasse. Partindo da idéia divulgada por um constituinte integrante da Comissão de

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Índios, Negros e Minorias, “o artigo 68 dos ADCT teria sido incorporado à Carta ‘no

apagar das luzes’, em uma formulação ‘amputada’ e, mesmo assim, apenas em função

de intensas negociações políticas levadas por representantes do movimento negro do

Rio de Janeiro” (ARRUTI, 2006, p. 67).

O Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN/MA), em sua cartilha de

comemoração pelos vinte anos do Projeto Vida de Negro (PVN), afirma que o

CCN/MA e o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), com o apoio

da Associação Afro-Brasileira do Rio de Janeiro, articularam-se e na 1ª Convenção

Nacional de Negro pela Constituinte (realizada em Brasília/DF, no dias 26 e 27 de

agosto de 1986), convocada pelo Movimento Negro Unificado (MNU). Na ocasião,

apresentaram a proposta de uma norma que garantisse os direitos das comunidades

negras rurais no Brasil.

Segundo dados do próprio CCN/MA, essa proposta constitucional foi

encaminhada à Deputada Federal Constituinte Benedita da Silva, que a teria apresentado

ao Congresso Nacional Constituinte. Depois de aprovada, essa proposta deu origem ao

artigo 68 do ADCT, em 05 de outubro de 1988.

Arruti (2006) nos apresenta o relato de um militante do movimento negro no

Maranhão – Ivo Fonseca – que teria sido consultado na época da introdução do artigo na

Carta, mas não pôde contribuir com nenhuma sugestão. “Assessores da deputada

Benedita da Silva teriam entrado em contato com o Centro de Cultura Negra para

recolher propostas, ‘mas foi coisa muito de repente [e] eu mesmo não tinha nenhuma

discussão preparada para isso.” A seguir, o autor apresenta um dado interessante:

Segundo Flávio Jorge, do Fórum Estadual de Comunidades Negras de São Paulo, a militância negra na época tinha, de fato, mais dúvidas que certezas com relação ao artigo e o seu texto final teria sido resultado de um esgotamento do tempo e das referências de que o movimento dispunha para o debate, mais do que de qualquer consenso. A decisão teria passado, principalmente, pela avaliação de que seria necessário lançar mão do ‘momento propício’, mesmo que não se soubesse ao certo o que se estava fazendo aprovar. Tanto o desconhecimento sobre a realidade fundiária de tais comunidades por parte dos constituintes quanto o contexto de comemoração do Centenário da Abolição (“nós vinculamos que quem votasse contra o “artigo 68” poderia levar a pecha de racista”) formaram o caldo ideológico que permitiu o surgimento do “artigo 68”. Só uma coisa parecia estar fora de discussão, segundo o deputado Luís Alberto (PT/BA) – coordenador nacional do MNU: que o “artigo 68” deveria ter um sentido de reparação dos prejuízos trazidos pelo processo de escravidão e por uma abolição que não foi acompanhada por nenhuma forma de compensação, como o acesso à terra. (ARRUTI, 2006, p. 68, grifos do autor).

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A partir desse dado, podemos compreender o cenário que originou as

indefinições presentes no texto constitucional. Metaforizar o termo quilombo permitiu

que sua simbologia pudesse ganhar voz no plano nacional e oficial, sem fazer

inicialmente distinções entre sua contemporaneidade ou sua historicidade, em razão de

que o termo quilombo do artigo 68 estava fortemente ligado ao passado.

O consenso construído e reproduzido pelas autoridades, pela historiografia e

pelo próprio imaginário social acerca dos quilombos começava a se desfazer com as

propostas de atualização. Para Almeida, este é o ponto: “O reconhecimento legal do que

está (esteve) “fora”, do que sobrou, do “remanescente” ou do que perdeu o poder de

ameaçar” (ALMEIDA, 1996, p. 17).

Cada grupo tem sua estória e construiu sua identidade a partir dela. Existe, pois, uma atualidade dos quilombos deslocada de seu campo de significação “original”, isto é, da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com confronto, com emergência de identidade para quem enquanto escravo é “coisa” e não tem identidade, “não é”. O quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais que simbólica de negar o sistema escravocrata. É um ritual de passagem para a cidadania, para que se possa usufruir das liberdades civis. Aqui começa o exercício de redefinir a sematologia, de repor o significado, frigorificado no senso comum. (ALMEIDA, 1996, p. 17, grifos do autor)

O direito constitucional exige como pré-requisito para o reconhecimento como

remanescentes de quilombos o critério da autodefinição. Anteriormente, os próprios

camponeses de ascendência escrava – africana ou indígena – foram “treinados” para

negar a existência do quilombo, que comprometeria a posse de suas terras e tornavam

ilegais suas pretensões de direito. O que antes era negado, agora poderia ser positivado.

Nesse sentido, Almeida (1996) afirma que:

O artigo 68 resulta por abolir realmente o estigma (e não magicamente); trata-se de uma inversão simbólica dos sinais que conduz a uma redefinição do significado, a uma reconceituação, que tem como ponto de partida a autodefinição e as práticas dos próprios interessados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados pela aplicação da lei reparadora de danos históricos. (ALMEIDA, 1996, p. 17).

A autodefinição apareceria, posteriormente, como um avanço para o processo de

regularização das terras ocupadas por esses grupos. O Decreto 4887, de 20 de novembro

de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,

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demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

No parágrafo 1º, do artigo 2º, o decreto determina que a caracterização dos

remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da

própria comunidade. 24

A identidade social e étnica, associada à antiguidade de permanência no

território, à reprodução de um modo de vida característico, incluindo manifestações

culturais e a história comum do grupo, são fatores relevantes para o processo de

identificação dos novos sujeitos de direitos. Assim, o decreto 4887/03 foi criado na

tentativa de viabilizar e acelerar o processo de regularização e titulação das terras

ocupadas por estes grupos.

É importante pensarmos ainda no uso do termo remanescentes, o mesmo

utilizado para descrever a situação dos povos indígenas no Nordeste. Esse termo sugere

o estabelecimento de laços com o passado de determinados grupos sociais, buscando

aproximações com o que, no século XIX, era designado quilombo. Como afirma Arrutti

(2006), no caso do artigo 68, o termo remanescentes “surge para resolver a difícil

relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a

descendência não parece ser um laço suficiente” (ARRUTI, 2006, p. 81). O uso de uma

categoria histórica – quilombo – agregada ao termo remanescente, ganharia papel

importante no cenário constante das classificações, sendo apresentada por Arruti da

seguinte forma:

(...) o termo “remanescente” introduz um diferencial importante com relação ao outro uso do termo quilombo, presente na Constituição brasileira de 1988. Nele, o que está em jogo não são mais as “reminiscências” de antigos quilombos (documentos, restos de senzalas, locais emblemáticos como a Serra da Barriga etc.) do artigo 215 (Seção II “Da Cultura”), mas “comunidades”, isto é, organizações sociais, grupos de pessoas que “estejam ocupando suas terras”, como diz o “artigo 68”. Mais do que isso, diz respeito, na prática, aos grupos que estejam se organizando politicamente para garantir esses direitos, e por isso reivindicando tal nominação por parte do Estado. Portanto, o que está em jogo em qualquer esforço coletivo pelo reconhecimento oficial como comunidade remanescente de quilombo são sempre (até o momento) os conflitos fundiários em que tais comunidades estão envolvidas, e não qualquer desejo memorialístico de se afirmar como continuidades daquelas metáforas da resistência escrava e do “mundo africano entre nós”, que foram os quilombos históricos. (ARRUTI, 2006, p. 81-82, grifos do autor).

24 BRASIL. Decreto-lei n°. 4887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto/2003/D4887.htm.

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Desta forma, as classificações atuais atreladas ao conceito histórico de quilombo

visam romper com a ideia de que os grupos que pleiteiam o direito hoje seriam

“resquícios” dos quilombos do passado, na tentativa de não reforçar esse caráter de

“resto”, valorizando a referência social deste termo na atualidade e a existência destas

situações sociais no presente.

Um aspecto importante, apresentado por Almeida, seria a relação constante entre

“terras de preto” e “remanescentes de quilombos”, vistos, em geral, como grupos

inevitavelmente associados. Essa aproximação constante poderia ter sido fruto do

caráter repressivo que marcou o termo quilombo. “Admitir que era quilombola

equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas míticas: terras de herança,

terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras”.

(ALMEIDA, 1996, p. 17, grifos do autor).

Hoje, os grupos que pleiteiam o direito constitucional para garantir a titulação de

suas terras apresentam algumas dessas denominações: “terras de preto, terras de santo,

terras comuns”. O uso dessas categorias no Maranhão é constante entre as comunidades

negras rurais e as tentativas de comprovação da ancianidade do território, exigida pelo

Estado para o reconhecimento e titulação oficial de suas terras, também fazem uso

dessas nomenclaturas25.

As novas propostas conceituais acerca de quilombo vêm abarcar a complexidade

e diversidade de características das terras que podem ser reconhecidas como

remanescentes das comunidades dos quilombos.

Reconhecer um grupo como remanescente de quilombo e garantir-lhe a posse

legal de suas terras, costumeiramente envolvidas em conflitos fundiários com grupos

dominantes (geralmente fazendeiros e grandes empresas estatais e privadas), requer uma

série de critérios e procedimentos. Garantir a regularização de suas terras exige trâmites

burocráticos complexos.

O estudo de caso objeto desta pesquisa tem sido uma expressão da

complexidade que envolve esse tema. Acompanhar o Rio Grande na construção dos

elementos necessários para o reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares tem

ajudado no entendimento do processo de luta por reconhecimento. Além disso, fez-me

realizar uma pesquisa de registro e (re)construção da história do povoado e de seus

moradores, permitindo-me percorrer a memória de seus moradores e narrar as histórias

25 Ver nota de rodapé 18, página 42.

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desse lugar, visando cumprir um dos critérios de reconhecimento estabelecidos pelo

Estado brasileiro.

2.3 O reconhecimento como remanescentes das comunidades dos quilombos

O artigo 68 do ADCT, da CF/88, expressa a garantia de um direito: a titulação

das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. Este artigo

representou um avanço do ponto de vista das políticas públicas voltadas para a questão

racial no Brasil e um marco no âmbito das políticas que visavam reparar o dano

histórico sofrido pelos africanos escravizados e seus descendentes, e suas consequências

na atualidade.

Com a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, muitos

estudiosos, em especial juristas, passaram a vê-la como um ponto chave do processo de

afirmação dos direitos étnicos, em razão de ter colocado em cena direitos pensados em

função de grupos específicos, direitos que reconhecem as diferenças, direitos que

contribuem para a afirmação da multiculturalidade no Brasil. Seu conteúdo apresentou

um conjunto de princípios que vinham sendo discutidos em torno do reconhecimento da

diversidade cultural do Estado brasileiro.

Pacheco (2005), ao analisar o anteprojeto da Subcomissão de Minorias Étnicas

da Assembléia Nacional Constituinte, afirma que, levando em consideração o conteúdo

do anteprojeto, em especial do artigo 1º, existe a reafirmação do caráter de

plurietnicidade do Estado brasileiro.

No texto da CF (88), ainda que formalmente, estavam configurados os desejos

de amplos setores da sociedade: assistência mais socializada através do SUS; educação

universal, gratuita e obrigatória; seguridade social mais ampla; direitos dos

trabalhadores na participação nos lucros das empresas; direito de acesso à propriedade

como meio de produção. E mais, visava garantir direitos a segmentos sociais

específicos, com dispositivos sobre direitos étnicos, envolvendo povos indígenas e os

remanescentes de quilombos.

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A partir de seu conteúdo percebe-se que a intenção da Subcomissão era, a rigor, reconhecer duas grandes demandas: primeiro: a sociedade brasileira é pluriétnica, donde se deve conceber o Estado brasileiro dentro dessa perspectiva; segundo, faz-se necessário o Estado brasileiro reconhecer outras formas de organização nacional que não aquela por ele mesmo organizada. Reconhecer que existem outras formas de organização social e política de grupos sociais específicos, no interior de seu espaço soberano. (PACHECO, 2005, p. 114)

Os artigos 215 e 216 da CF (88) fazem menção à plurietnicidade do Estado

brasileiro. No entanto, apesar de não afirmar que “a sociedade brasileira é pluriétnica”,

como sugerido no anteprojeto, a Constituição refere-se ao que denomina de “diferentes

grupos ou segmentos étnicos”, citando afro-brasileiros e indígenas, apesar de não definir

o que cada um representa. (PACHECO, 2005).

Conforme mostra este mesmo autor, o processo constituinte representou um

marco no âmbito jurídico brasileiro, apresentando-se enquanto ruptura da ordem

jurídica presente até então, pela participação de múltiplos agentes e uma variedade de

movimentos sociais. Configurou-se como um espaço onde os segmentos mais

mobilizados da sociedade puderam atuar, principalmente no que diz respeito à questão

dos direitos étnicos, com destaque para a Subcomissão de Negros, Índios e Minorias.

Seus dispositivos surgem como reflexos de uma luta por direitos, demandados por

pessoas de diferentes condições sociais e diferentes mundos culturais, constituindo-se

na Declaração de Direitos do Estado brasileiro.

Segundo Coelho (2008), com a elaboração da Constituição Federal de 1988 a

hegemonia universalista foi rompida com a aprovação de direitos específicos em função

de determinados grupos. Esse rompimento teria sido fruto de lutas pelo reconhecimento

das diversidades étnicas, onde se manifestou a tensão existente entre a tradição liberal

dos direitos humanos (de caráter universalista) e o respeito a direitos específicos (de

caráter particularista). São apresentados direitos que visam dar suporte a determinados

grupos, que procuram afirmar a diferença em detrimento da igualdade, “igualdade que

oprime” ao distanciar os grupos de suas especificidades.

Esse processo de reconhecimento formal da pluralidade étnica impõe,

consequentemente, um processo de afirmação de direitos humanos específicos, de

acordo com a análise feita por Hall (2003).

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O Estado reconhece formal e publicamente as necessidades sociais diferenciadas, bem como a crescente diversidade cultural de seus cidadãos, admitindo certos direitos grupais e outros definidos pelo indivíduo. O Estado teve que desenvolver estratégias de redistribuição através de apoio público (...), até mesmo para garantir a igualdade de condições tão cara ao liberalismo formal. (HALL, 2003, p. 77)

Baseado no reconhecimento da diferença como uma das chaves para a análise da

questão multicultural, Semprini (1999) afirma que o multiculturalismo lança a

problemática do lugar e dos direitos das minorias em relação à maioria, discutindo o

problema da identidade e de seu reconhecimento pelo grupo e pelos que os cercam. Para

o autor:

A emergência de uma minoria depende não somente do fato, para o grupo em questão, de chegar a se perceber como uma “minoria”, ou seja, como uma formação social apresentando suficientes traços comuns para adquirir homogeneidade e uma visibilidade interna aos olhos de seus membros, mas igualmente pelo fato de conquistar uma visibilidade externa e chegar a ser percebido como “minoria” pelo espaço social circundante. (SEMPRINI, 1999, p. 59)

Arruti (2006), ao discutir sobre as mudanças na relação Estado/minorias, aponta

que o processo de reconhecimento da diversidade étnica no Estado brasileiro está

intrinsecamente ligado a um reordenamento do contexto ideológico e jurídico global.

Afirma que muitos dos estados-nacionais, independentemente da experiência da

colonização, criaram dispositivos formais no intuito de corrigir práticas históricas de

supressão das diferenças. Esse processo de reordenamento permite que muitos destes

estados-nacionais aceitem as reivindicações das minorias nacionais como forma de

reparar os erros do processo de construção da nação, tentando absorver essas

reivindicações nesse processo tardio de reparação.

Desta forma, no momento em que os direitos das minorias adquirem o estatuto

de direitos fundamentais, há uma pressão pela internacionalização desses direitos, que

fazem do tratamento dado às minorias uma questão de regulação e intervenção

internacional. O contexto no qual as relações étnicas se fazem presentes ultrapassa os

limites do Estado Nacional e acaba generalizando aquilo que Taylor (1994) designou

como Política de Reconhecimento.

O reconhecimento apresenta-se enquanto fundamental na análise deste autor,

justo por que compreende a política de reconhecimento como elemento formador da

identidade do indivíduo. Destaca que na base dessas mudanças com relação aos direitos

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das minorias há uma série de transformações na concepção do sujeito moderno que não

são evidentes, como é o caso do avanço do multiculturalismo, que estaria relacionado

não apenas à necessidade de reconhecimento no sentido usual dado ao termo (como na

expressão “reconhecer direitos”), mas também em um sentido político e filosófico,

ligado à concepção moderna de identidade.

De acordo com Taylor (1994), o caráter dialógico da condição humana deve ser

considerado para a compreensão da relação entre identidade e reconhecimento. Isso

quando fortemente relacionado à capacidade de entendimento entre as pessoas,

adquirida por meio de linguagens humanas de expressão. Como as pessoas não

aprendem sozinhas, as linguagens necessárias para a sua autodefinição, a interação

como os “outros importantes”, possibilita a formação da identidade, mediante o diálogo

e a negociação. Desta forma, a política de reconhecimento torna-se fundamental para

Taylor (1994) devido à sua capacidade de formar a identidade do indivíduo.

Os argumentos apresentados por Taylor (1994) direcionam-se para a própria

concepção contemporânea de Estado liberal. Segundo análise feita por Arruti (2006), no

caso dos estudos acerca do reconhecimento de comunidades quilombolas, as análises de

Taylor se fazem interessantes visto que apontam para as condições de apresentação e

recepção das demandas desses sujeitos na esfera pública, definida como um largo

ambiente normativo e institucional de caráter liberal. Acrescenta que podem contribuir

na análise dos processos relativos ao reconhecimento do grupo na esfera pública, que

“implica fazer com que os conflitos locais reverberem em noções mais amplas dos

direitos e que, para isso, é necessário mobilizar a imagem do grupo e de seu conflito na

imprensa, nas esferas de poder público e na sociedade civil como um todo”. (ARRUTI,

2006, p. 44).

É no conceito de reconhecimento, desenvolvido por Hegel e aprofundado pela

psicologia social de George Herbert Mead, que Axel Honneth (2003) concentra suas

inquietações, características de uma nova geração de críticos sociais. Para desenhar a

sua gramática dos conflitos sociais contemporâneos, o autor levanta questões como: em

que sentido um conflito responde mais a uma lógica própria de “interesses” que a da

formação de reações morais? Em que sentido os conflitos devem ser conseqüência da

distribuição desigual objetiva de oportunidades materiais de vida? Não seria possível

entendê-los como próprios de experiências morais que emergem da lesão de

expectativas profundas de reconhecimento?

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Honneth (2003) se propõe, assim, a investigar se as formas de reconhecimento

necessárias para a formação do espírito completo podem ser ordenadas por formas

recíprocas de desrespeito, permitindo a leitura dos conflitos sociais pela chave do

reconhecimento, viabilizando a emancipação do homem.

Honneth classifica três tipos de reconhecimento: nas relações primárias de amor,

no âmbito jurídico e nas relações de estima social. Pensemos, no caso deste estudo, o

reconhecimento do direito/jurídico.

Para o direito, Hegel e Mead perceberam uma semelhante relação na circunstância de que só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um “outro generalizado” que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões. (HONNETH, 2003, p. 179).

Com a distinção de violação, privação de direitos e degradação, a ideia do autor

seria tornar um pouco mais plausível a tese que constitui o verdadeiro desafio da ideia

partilhada por Hegel e Mead, caracterizada por uma luta por reconhecimento que, como

força moral, promove desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser

humano. Para dar a essa ideia uma forma teoricamente defensável, seria preciso

conduzir a demonstração empírica de que a experiência de desrespeito é a fonte emotiva

e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos, fenômeno que demonstra com

uma aproximação histórica e ilustrativa.

Com o objetivo de construir uma teoria crítica com base no reconhecimento, que

permita pensar em caminhos emancipatórios para o homem, Honneth constrói hipóteses

reversas: elabora uma tipologia de três formas de desrespeito social, ou não-

reconhecimento, que são a oposição das formas de reconhecimento, e a partir dos seus

efeitos, tenta comprovar a sua hipótese inicial. Desta forma, a tortura (maus-tratos,

violação), a privação de direitos e a exclusão, além das ofensas sistemáticas e a

desconsideração pública, são formas de não reconhecimento que impedem a auto-

realização completa do indivíduo, por violar a integridade física, a integridade social e a

dignidade.

Na perspectiva de Honneth, a política do reconhecimento traz à tona, de forma

bem mais clara do que anteriormente, outra dimensão pela qual as lutas sociais devem

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ser vistas e entendidas: a dimensão moral. Segundo Arruti (2006), esta dimensão moral

suscitada por Honneth, apesar de não ter sido de todo ignorada pelos clássicos das

ciências sociais, nunca alcançou estatuto teórico em qualquer um deles, devido ao fato

de que os laços teóricos entre o surgimento dos movimentos sociais e a experiência

moral de desrespeito teriam sido obstruídos por uma espécie de teoria do interesse

(darwinista ou utilitarista).

Nobre (2003) afirma que o tipo de luta social que Honneth privilegia em sua

teoria do reconhecimento não é marcado, em primeira linha, por objetivos de

autoconservação ou aumento de poder. Interessam-lhe muito mais aqueles conflitos que

se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal

ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de

reconhecimento mútuo.

De acordo com este autor, reconhecer-se mutuamente como pessoa de direito

significa, hoje, mais do que podia significar no começo do desenvolvimento do direito

moderno: entrementes, um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não

só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na

propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso. Essa ampliação

dos direitos individuais fundamentais foi obtida mediante lutas sociais. O princípio da

igualdade embutido no direito moderno teve por conseqüência que o status de uma

pessoa de direito não foi ampliado apenas no aspecto objetivo, sendo dotado

cumulativamente de novas atribuições, mas pôde, também, ser estendido no aspecto

social, sendo transmitido a um número sempre crescente de membros da sociedade.

Para Arruti (2006), o reconhecimento, no caso dos indígenas e dos quilombolas,

e não apenas nesses dois, implica a aprovação dessas mesmas categorias como

categorias políticas, jurídicas e administrativas genéricas e generalizáveis.

Tal criação não implica, por sua vez, o simples transporte do vocábulo de um universo semântico ao outro, na medida em que, ao ser absorvido por esse novo campo discursivo, ele entra em uma estrutura de significação que lhe atribui significados particulares. O reconhecimento coloca em pauta, portanto, o efeito de criação do nome (nominação) exercido pelo Direito e garantido pelo Estado, detentor da palavra autorizada por excelência. A criação da categoria por meio da qual se operarão o reconhecimento e a identificação é, simultaneamente, uma resposta e uma imposição e o reconhecimento de uma singularidade e sua captura por uma gramática generalizante e homogeneizante é que faz com que um grupo étnico singular seja apreendido como indígena ou quilombola genérico. Por meio do idioma do Direito, garantido pelo poder do Estado, atribuem-se identidades garantidas aos agentes e grupos e é por meio delas que se distribuem direitos, deveres, atributos, encargos, sanções e compensações (ARRUTI, 2006, p. 45)

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No caso da luta por reconhecimento por parte dos quilombolas, as discussões

apresentadas por Honneth apontam para a dimensão de “formação” do sujeito em luta

por reconhecimento por meio da experiência comum de um desrespeito típico e de sua

tradução em uma identidade coletiva. Pode contribuir na análise dos processos relativos

à própria auto-definição do grupo, de acordo com o seu novo enquadramento categorial

(remanescentes de quilombos), o que implica o grupo passar a reconhecer que o

desrespeito a que está submetido é parte constituinte de sua identidade coletiva e fonte

tanto de uma identificação moral, quanto de mobilização política válida.

Partindo da categoria remanescentes de quilombos e pensando na garantia

territorial expressa no artigo 68, esse novo enquadramento categorial (ligado ao

conceito de quilombo) começa a ganhar novos olhares para a atualização do seu

entendimento, fundamental para o processo de reconhecimento destes grupos como

sujeitos de direito.

A atualização do termo quilombo permitiu uma inversão de posições sociais. Se

no passado estabelecer relações com os quilombos significava manter-se à margem da

sociedade, hoje o papel se inverteu. Ser remanescente de quilombos na atualidade exige

um processo de autodefinição e um reconhecimento público e legal de um caráter étnico

antes negado.

Se pensarmos do ponto de vista das garantias e das políticas de igualdade racial

no Brasil, o artigo 68 suscitou, inicialmente, uma “falsa impressão”, como se o

reconhecimento da propriedade definitiva e o título da terra emitido pelo Estado fosse

algo já garantido. Mas esta discussão se estendeu, em razão da necessidade de

regulamentação deste direito. O que questiono não são os procedimentos para a

identificação dos sujeitos de direito e sim a complexidade dos mesmos que,

conjuntamente a outros fatores, podem contribuir para dificultar o processo de

reconhecimento e titulação das terras.

A ancianidade de ocupação do Rio Grande é sustentada na memória coletiva,

transmitida oralmente por seus “filhos”. Para alguns moradores do Rio Grande, assumir

esse pertencimento étnico, como quilombolas, começaria a fazer sentido assim que a

história do lugar começasse a ser “recuperada” e registrada, para alcançar a

regularização e titulação de suas terras. Para que fosse reconhecido pela FCP, o Rio

Grande precisaria apresentar dados que comprovassem essa “herança histórica para com

a opressão sofrida”. Entretanto, comprovar esse vínculo exigiria dos novos sujeitos

políticos e de direito um processo de autodefinição, fundado na relação com um passado

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da escravidão. Era necessário, ainda, o registro da ancianidade de ocupação do território

e das constantes relações entre o quilombo histórico e o quilombo contemporâneo.

Assim, o que a descrição do processo de identificação e reconhecimento das

comunidades quilombolas demonstra é a força moral que a produção de uma memória

coletiva (ou mesmo supressão desta) tem na elaboração desses horizontes de

interpretação. O registro da memória oral dos moradores do Rio Grande começava a

fazer sentido na vida de cada um dos informantes.

(Re) Construir suas histórias significava mais que um simples “resgate” de suas

memórias ligadas ao passado da escravidão. Expressava o alcance de um direito e a

conquista de suas terras. A cada visita, conversas informais e gravações realizadas por

horas, me via envolvida em um mundo maior, compreendendo a importância daquele

registro, do posterior reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares e dos benefícios

que o Rio Grande poderia obter a partir do momento em que o Estado brasileiro

reconhece os seus moradores como sujeitos de direito, como remanescentes das

comunidades dos quilombos, uma identidade construída e reafirmada aos poucos,

constantemente atrelada ao processo de escravização de seus antepassados, presente em

suas memórias.

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3. RIO GRANDE, UM ESPAÇO DE LIBERDADE NO CONTEXTO DA

ESCRAVIDÃO

Nesta parte, procuro delinear as formas pelas quais os moradores do Rio Grande

utilizaram de elementos de sua história para se legitimarem como sujeitos de direito,

dialogando com o decreto 4887/2003. Este decreto, como afirmado anteriormente,

caracteriza como remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-

raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de

relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com

a resistência à opressão histórica sofrida”.

Para obter o reconhecimento como remanescentes das comunidades dos

quilombos, os grupos devem remeter à Fundação Cultural Palmares (FCP), caso os

possua documentos ou informações, tais como fotos, reportagens, estudos realizados,

entre outros que atestem a história comum do grupo ou suas manifestações culturais, ou

em qualquer caso, apresentação de relato sintético da trajetória comum do grupo (a

história do Rio Grande)26.

Visando atender ao requisito de presunção de ancestralidade negra relacionada

com a resistência à opressão histórica sofrida, o Rio Grande iniciou um processo de

construção de sua história, pautada em elementos que configurariam essa

ancestralidade. Fazendo uso da memória de “seus filhos” 27 os moradores mais velhos e

alguns dos mais novos, foram selecionando os elementos (de acordo com suas

memórias) que poderiam legitimá-los como quilombolas.

Foi neste processo que me inseri, dando os meus primeiros passos nesta

pesquisa, no ano de 2008. Enquanto historiadora, minha função inicial no grupo de

pesquisa era tentar mapear os documentos históricos que faziam menção ao Rio Grande,

pesquisando, em Arquivos e Cartórios, os possíveis proprietários da terra.

Concomitantemente às pesquisas documentais, busquei registrar, segundo a memória

dos moradores, o processo de ocupação. É sobre esse processo de diálogo com a

memória histórica do grupo que me detenho, deixando claro o lugar de onde falo:

alguém que participou dessa dinâmica de “construção” da história rio-grandense a partir

do que foi relatado pelos moradores.

26 Dados retirados do site da Fundação Cultural Palmares, referente aos procedimentos de Certificação de Comunidades Quilombolas. 27 A expressão “filhos do Rio Grande” é utilizada costumeiramente por seus moradores para definir aqueles indivíduos que nasceram no Rio Grande e, portanto, são filhos daquela terra.

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A luta por reconhecimento enquanto remanescente das comunidades dos

quilombos envolve, sob o meu ponto de vista, dois elementos centrais: uma organização

política pautada na ação coletiva dos atores sociais que vivenciam esse processo e a

construção de elementos de identificação com uma nova categoria que lhes permita a

auto-atribuição, a autodefinição enquanto sujeitos de direito. Esses dois pontos centrais

nos levam a outro debate.

Organizar-se politicamente significa tentar, minimamente, entender a lógica da

racionalidade moderna que gere a burocracia estatal, a mesma que estabelece os

critérios que os grupos que pleiteiam o direito devem cumprir para o reconhecimento

formal como remanescentes de quilombos e o início dos trâmites para a titulação da

terra. Por outro lado, a autodefinição ocorre de acordo com critérios estabelecidos pelos

próprios grupos, a partir do que consideram como elementos relevantes segundo

dinâmicas e processos sociais atuais.

O texto constitucional não evoca apenas uma “identidade histórica” que pode ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra que, por direito, deverá ser em seu nome titulada (como reza o art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988). Assim, qualquer invocação do passado deve corresponder a uma forma atual de existência capaz de realizar-se a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social determinado. (O’DWYER, 2002, p. 14).

Segundo nos propõe Souza Filho (2008), a categoria quilombola não é uma

categoria de autodefinição nos mesmos termos que preto e caboclo, por exemplo, o são

em outros momentos.

Em outras palavras, é a partir do reconhecimento social do problema que tal categoria passa a ocupar um lugar de destaque em diferentes campos, seja ele intelectual, político ou institucional, já que se impôs socialmente como relevante em função de sua vinculação direta com o problema social que lhe dá sustentação e visibilidade. Em função disso, a ação política, principalmente dos mediadores, tende a apresentá-la como fator de mobilização e identidade (SOUZA FILHO, 2008, p. 29).

De acordo com a análise feita por O’Dwyer (2002), o fato de o pressuposto legal

referir-se a um conjunto possível de atores sociais organizados de acordo com sua

condição na atualidade, permite conceituá-los como grupos étnicos que persistem ao

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longo dos anos como um “tipo organizacional”, segundo processos de exclusão e

inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora,

valorizando os “sinais diacríticos”, que expressam as diferenças que os próprios atores

sociais consideram como significativas. (BARTH, 2000)

Dialogando com esse dado, a autora estabelece a crítica aos essencialismos

produzidos acerca do conceito de quilombo, afirmando que estes grupos são percebidos

como grupos étnicos “sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças

culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo,

supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou

social ao longo do tempo”. (O’DWYER, 2002, p. 14)

No caso do Rio Grande, a construção da identidade é atrelada ao componente

étnico, que nos permite considerar que a “afiliação étnica é tanto uma questão de origem

comum como de orientação das ações coletivas no sentido de destinos compartilhados”

(O’DWYER, 2002, p. 14).

Desta forma, a identidade étnica tem sido diferenciada de “outras formas de

identidade coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado, não o passado da

ciência histórica, mas aquele em que se representa a memória coletiva a que se referem

os membros desses grupos” (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p. 13). Assim, essa

referência a uma origem comum presumida parece recuperar a própria noção de

quilombo definida pela historiografia. De acordo com a análise de O’Dwyer (2005, p.

3), “a construção de uma identidade originária dos quilombos torna-se uma referência

atualizada em diferentes situações etnográficas nas quais os grupos se mobilizam e

orientam suas ações pela aplicação do artigo 68 do ADCT”.

3.1 O município de Bequimão na história do Maranhão: a relação com o passado da escravidão

É importante ressaltar o contexto no qual se insere o tema dos quilombos no

Brasil (enfatizado no primeiro capítulo) e também no Maranhão, ligado à sociedade

escravocrata da época. Conjugado a um cenário mais amplo, cabe inserir o contexto

específico do município de Bequimão.

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Bequimão28 compõe a micro região do litoral ocidental maranhense. A divisão

administrativa de Bequimão se dá em pólos, totalizando 17 pólos com 57 povoados29.

Deste total, apenas os povoados de Ariquipá, Conceição, Mafra, Ramal de Quindiua e

Rio Grande são certificados pela Fundação Cultural Palmares como comunidades

quilombolas, e nenhum ainda possui o título da terra.

O município de Bequimão compõe a região do litoral ocidental maranhense,

considerada rica desde o Maranhão Colonial. Essa região despertou interesse, inclusive,

da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, criada pela Coroa Portuguesa com o

objetivo de enriquecer Portugal extraindo as riquezas de suas colônias.

De acordo com a história do município30, os primeiros habitantes foram os

indígenas (os Tupi-Guarani e os Tupinambás), seguidos posteriormente pelos

colonizadores portugueses e seus escravos. Em 1624, como o nome de Tapuitapera,

passa a compor a Capitania de Cumã (levando em consideração a subdivisão das

Capitanias do Maranhão), sob a ordem do Governador do Maranhão Francisco Coelho

de Carvalho.

Consta nos relatos de moradores e em documentos da cidade31, que por iniciativa

de Antônio Rodrigues uma área é doada para a construção de uma capela em

homenagem a Santo Antônio. Posteriormente, em razão da capela de Santo Antônio, a

freguesia recebe o nome de Santo Antônio e Almas32.

O solo fértil atraiu novos moradores. O diálogo com os novos moradores

facilitou a organização em busca da emancipação do município. Tendo à frente o

capitão José Mariano Gomes de Castro e Holfênio João Cantanhede obtiveram êxito e,

28 Bequimão: área de 769 km². População: 19.614 mil habitantes (Censo 2010). Ver: http://www.censo2010.ibge.gov.br/dados_divulgados/index.php?uf=21 29Águas Belas; Areal; Ariquipá; Balandro; Barroso; Baixo Escuro; Beira Campos; Bem Posta; Boa Vista;

Buritirana; Calhau; Centro dos Câmara; Centrinho dos Santana; Centrinho Buritizeiro; Codozinho; Coelho; Deserto; Em Botija; Floresta; Frederico; Flexal; Geniparana; Iribuí; Iriritiua; Itaputíua; Jacaretíua; Jacioca I; Jacioca II; José Felipe; Jurereitá; Macajubal; Mafra; Maracujá; Marajatuia; Marinha; Matinha; Mojó; Monte Alegre; Muricizal; Paracatíua; Pericumã; Ponta dos Soares; Pontal; Privado; Quindíua; Ramal de Areal; Ramal do Quindíua; Rio Grande; Santa Rita; Santa Tereza; Santa Vitória; Santana; São João; Sumaúma; Titara; Vila do Meio; Vila Nova. 30 Fonte: IBGE. Ver. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Último acesso: 11.11.2011. 31 Fonte: IBGE (a mesma). 32 Distrito criado com a denominação de Santo Antônio e Almas, pela Provisão Regia de 07-11-1805.

Subordinado ao município de Alcântara. Em divisão administrativa referente ao ano de 1911, o distrito de Santo Antônio e Almas figura no município de Alcântara. Elevado à categoria de município com a denominação de Santo Antônio e Almas, pela lei estadual nº 801, de 21-04-1918, desmembrado de Alcântara. Sede no antigo distrito de Santo Antônio e Almas. Constituído do distrito sede.

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em 1923, criou-se o município com a denominação de Godofredo Viana33, então

governador do Estado. Em 1930, o topônimo foi alterado para Bequimão e no ano

seguinte perdeu sua autonomia, restaurada quatro anos depois34. Muitos dos moradores

antigos chamam, mesmo nos dias atuais, a sede do município de Cabeceira, como

antigamente, em razão da proximidade com o mar e com o porto (atual Porto do

Cujupe) e em razão do rio que banha a cidade, o rio Itapetininga.

No Maranhão colonial, em especial nos séculos XVIII e XIX, a população dessa

região vivia da pesca e da agricultura, em especial do plantio da mandioca e do arroz.

Posteriormente foram instalados alguns engenhos de açúcar na região, como é o caso do

povoado de Ariquipá, onde a mão de obra era maciçamente escrava. Hoje, reconhecida

como comunidade quilombola, o Ariquipá é ocupado por descendentes de africanos

escravizados. Com a crise econômica no Maranhão Imperial e o abandono do Engenho

pelos senhores, os escravos ocuparam a Casa Grande e as respectivas terras.

Seu Joquinha35, um dos moradores antigos do município e professor por muitos

anos no povoado do Rio Grande, como base nos documentos antigos do município e na

oralidade dos mais velhos, relatou:

A princípio aqui o município de Bequimão era uma pequena povoação que deram o nome de Cabeceiras, por encontrar-se nas cabeceiras do Rio Itapetininga ou Tapuitininga, ao lado esquerdo. Essas terras pertenciam ao município de Alcântara. O patrimônio foi elevado a aldeia com o nome de Tapuitapera, a categoria de vila em 17 de maio de 1648 desmembrada do município de Alcântara. Calcula-se que a dita população vem de mais ou menos por volta dos anos de 1700. Aqui vivia os índios Tapuias e depois os Tupinambás, aos quais herdamos deles seus costumes e eles foram os primeiros habitantes da nossa terra. Viviam da caça e da pesca, plantavam mandioca, arroz, milho. (...) Assim constituíram os primeiros povos da localidade. Mais tarde pelos colonizadores portugueses que em suas companhias trouxeram o elemento escravo, os negros vindos da África. A companhia colonizadora compunha-se de 400 famílias de brancos e 600 negros escravos. (...) Aqui chegaram e verificaram que o solo era fértil e procuraram desenvolver o trabalho da lavoura formando roça, plantio de mandioca, milho, arroz, feijão, algodão, gergelim, carrapato, mamona, coco da Bahia, cafezais (...) No Rio Grande tinha cafezal enorme, bem do lado que é a tribuna do Rio Grande eu conheci um cafezal enorme (...) e formaram a cana-de-açucar, que era beneficiada nas casa de engenho e lá preparava o mel de cana e a cachaça e rapadura e cuidavam da criação de gado, bovino, vacum, caprinos, azinos. Por volta dos anos de 1841 não tínhamos paróquia e

33 Pelo decreto estadual de 31-12-1923, o município Santo Antônio e Almas passou a denominar-se Godofredo Viana. 34 (http://www.citybrazil.com.br/ma/bequimao/historia-da-cidade). 35 Sua memória nos permitiu conhecer um pouco da história de ocupação do Rio Grande.

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nem município, porém Alcântara era município com a comarca de São Mathias. Com a iniciativa do padre Saturnino Alexandrino Alves de Melo que morava no povoado Jacioca com seus pais e era vigário da localidade, lá foi a primeira casa de oração de nosso município (...) Este histórico não tem intuitos literários, é mais um diálogo sobre o município de Bequimão, a cidade o qual procuramos transmitir experiências vividas desde a infância até os dias atuais além de conhecimentos adquiridos em anos de estudos e pesquisa. O município de Bequimão é de uma riqueza imensa (...) (Entrevista. Abril de 2009).

Como podemos observar nesse relato e nos dados referentes à história de

Bequimão, houve um número significativo de escravos nessa região, em razão,

especialmente, da presença das fazendas algodoeiras e dos engenhos, que marcaram a

economia da época.

Segundo Ramos (1946), alguns historiadores afirmam que nas caravelas de

Martin Afonso de Souza vieram os primeiros escravos, inaugurando o tráfico negreiro

no Brasil na primeira metade do século XVII. Com o desenvolvimento da monocultura

da cana-de-açúcar, a metrópole introduziu, inicialmente, escravos da Guiné e da Ilha de

São Tomé, tráfico este que perdurou durante três séculos no Brasil e foi significativo

nos atuais estados do Maranhão e do Pará.

No século XVII, o Maranhão recebeu inúmeros carregamentos de escravos

africanos. Em 1682, a Companhia de Comércio do Maranhão, assinou um contrato que

propunha introduzir dez mil escravos no prazo de 20 anos. O Maranhão é considerado

por muitos historiadores (Assunção, 1996) como uma sociedade escravista tardia.

Segundo este autor, apesar da introdução de escravos africanos desde o século XVII,

somente no último quarto do século XVIII é que a região passou a apresentar traços de

uma “escravidão agrícola plenamente desenvolvida”.

Na época da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755 – 1777),

com a importação de 12 mil escravos iniciou-se um tráfico intenso de escravos, que

resultou na importação de 41 mil “peças” entre os anos de 1812-1820. Alguns dados do

PVN (1998) se aproximam dos dados apresentados por Assunção (1996). De acordo

com PVN (1998), entraram pelos portos do Maranhão, entre os anos de 1812 e 1820,

algo em torno de 36.356 escravos, assim distribuídos:

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QUADRO 11: Entrada de escravos no Maranhão, entre os anos de 1812 e 1820

Ano Número de escravos

1812 1.672

1813 1.729

1814 2.516

1815 3.476

1816 3.337

1817 8.028

1818 6.636

1819 6.058

1820 2.864

Total 36.356

Fonte: PVN (1998)

O Maranhão apresentou, às vésperas da Independência, a mais alta porcentagem

escrava do Império, algo em torno de 55%, concentrada nas fazendas de arroz e

algodão, e mais tarde nos engenhos açucareiros, situados nos vales do Itapecuru,

Mearim e Pindaré, e na região da baixada ocidental maranhense.

Ainda segundo dados do PVN (1998), o Maranhão é costumeiramente citado

como um dos maiores focos da escravatura brasileira, com irradiação para o Pará.

Entretanto, na segunda metade do século XIX, houve uma redução da população

escrava, em razão, especialmente, da exportação de escravos para o sul do Império (Ver

Quadro 12), durante o período da desagregação das fazendas.

A desagregação das grandes fazendas monocultoras no Maranhão se deu, em

especial, pela flutuação dos preços do açúcar e do algodão no mercado externo. Nessa

época, ocorreram transformações significativas na economia mundial, que acabaram

incidindo sobre o regime escravocrata.

Estes fatores afetaram a economia maranhense da época, tendo, vários engenhos,

entrado em processo de desagregação e crise econômica. Muitos proprietários tiveram

que vender seus escravos e abandonar suas terras. Como vimos no levantamento

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preliminar feito pelo PVN nos anos de 1988 e 198936, várias “terras de preto” no

Maranhão se configuraram a partir da desagregação dessas propriedades.

Dialogando com este dado, Almeida (1983) afirma que esta situação possibilitou

a apropriação de muitas terras incultas e abandonadas, cujos preços estavam em

declínio, por parte de famílias de escravos e ex-escravos.

Esta crise foi vivida pelos escravos fugidos, cujos “mocambos” dispunham-se nas proximidades das grandes plantações e pelas demais famílias de escravos que ainda trabalhavam nas fazendas, como um meio de acesso à terra. Acrescente-se que muitas destas desagregações de grandes propriedades ocorreram mediante a cobrança de foro, enquanto que as demais não registraram quaisquer formas de aforamento ou controle formal da posse e uso das terras, estando os trabalhadores em completa liberdade para morar e cultivar (PVN, 1998, p. 34).

Conjugados a esses dados, pode-se afirmar que uma numerosa população

escrava se concentrava perto de áreas de fronteira, cobertas de matas. O resultado foi,

no século XIX, a multiplicação de quilombos nessa província37.

De acordo com Assunção (1996), existentes desde o século XVIII, os quilombos

constituíram um sistema endêmico da sociedade escravista. No século XIX, a

ocorrência de quilombos é amplamente documentada nos periódicos, na

correspondência das autoridades militares e judiciárias.

Pode-se afirmar que no Maranhão existiram poucas fazendas escravistas sem quilombos ao redor. É difícil estabelecer seu número, por que, sendo o quilombo uma formação social oculta, praticamente os únicos dados de que dispomos foram produzidos por agentes encarregados do seu extermínio. Em muitos casos não sabemos nem a origem do quilombo mencionado nem o número de pessoas que aí viviam. Muitas vezes as notícias se limitam a mencioná-lo, sem maiores detalhes. O que mais aparece são anúncios de fuga de escravos, comparáveis aos que se faziam em outras províncias do Império. Traziam o nome do escravo fugitivo e uma descrição dos sinais pelos quais seria possível identificá-lo. Às vezes indicavam também para onde o escravo se dirigia, geralmente uma comarca do interior. Mas nem todos os fugidos procuravam se abrigar em quilombos existentes ou fundar outros novos. Alguns, especialmente os de cor mais clara, podiam tentar passar por livres, como o mulato Alexandre, que conseguiu se alistar como praça no Turiaçu, até ser descoberto por seu senhor. (ASSUNÇÃO, 1996, p. 436)

De acordo com Almeida (1983), a exportação dos escravos para a lavoura

cafeeiras das “Províncias do Sul” era um recurso dos proprietários das lavouras para

36 Ver Parte 1 da dissertação. 37 Ver Figura 4 (página 44) e Figura 5 a seguir (página 82).

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saldar suas dívidas, processo facilitado pelo elevado preço obtido pelos escravos

negociados, conforme o mapa elaborado pelo Tesouro Público Provincial.

QUADRO 12: Escravos exportados do Maranhão para províncias do sul do país

Exercícios Escravos exportados do Maranhão para províncias do sul do país

1860-61 512

1861-62 289

1862-63 321

1863-64 169

1864-65 043

1865-66 077

1866-67 076

1867-68 411

1868-69 652

1869-70 435

1870-71 212

1871-72 155

1872-73 300

1873-74 948

1874-75 756

Fonte: PROJETO VIDA DE NEGRO (1998)

Assunção (1996) afirma que o Maranhão apresentava, em quase todo o seu

território, matas com muitos rios e riachos. Esse fator, durante muito tempo, permitiu

uma ocupação mais tênue do espaço e favoreceu o estabelecimento de quilombos nas

cabeceiras dos rios, nos locais mais afastados das florestas e nas zonas não ocupadas

pela grande lavoura.

Além do mais, grande parte dessas matas no centro da província escapava totalmente ao controle do Estado. Era uma verdadeira fronteira, além da qual desertores, quilombolas e outros fugitivos podiam sentir-se relativamente seguros. Fronteiras desse tipo existiram em muitas outras regiões brasileiras. Mas o que distingue o Maranhão é que a área ocupada pelas fazendas escravistas é imediatamente limítrofe à fronteira, tanto que ambas muitas vezes se confundem. Em geral não existiu, durante o século XIX, uma zona intermediária, povoada por uma população pobre livre, tendo a função de “desbravar” o território, se constituindo em “frente de expansão”, precedendo a “frente pioneira” escravista. Tanto que eram frequentes as queixas de fazendeiros do Itapecuru, Mearim e Viana não somente contra os quilombolas, mas também contra o gentio que ainda povoava as matas próximas. A constituição de frentes camponesas avançando para dentro da fronteira é um fenômeno mais recente, do qual os quilombolas podem ser considerados, a justo título, os precursores. (ASSUNÇÃO, 1996, p. 434)

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FIGURA 5: Mapa dos quilombos no norte do Maranhão (século XIX)

Fonte: ASSUNÇÃO (1996, p. 435)

Este mesmo autor elenca três tipos de quilombos que se configuraram no

Maranhão:

1. O primeiro tipo de quilombo: pequenos grupos de escravos que se

escondiam nas imediações das fazendas. Referências a esses quilombos podem ser

encontradas imediatamente antes e depois da Independência, até a década de 1840, em

todos os termos e freguesias, com grande concentração de fazendas e escravos, como

Alcântara, Viana, Vitória do Mearim, Itapecuru-Mirim, Rosário e Manga do Iguará.

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2. O segundo tipo de quilombo: grupos mais afastados das fazendas, que

estabeleceram algum tipo de economia de subsistência mais permanente. Esses

quilombos existiram, sobretudo nas grandes matas das áreas de fronteiras.

3. O terceiro tipo de quilombo: aquele que combinava agricultura de

subsistência com garimpo. O garimpo significava maiores recursos para a aquisição de

bens e a participação em redes comerciais mais amplas, como no caso dos quilombos de

Turiaçu.

Desta forma, acredita-se que os quilombos maranhenses conseguiram

sobreviver, em especial, devido ao fator geográfico e também à relativa ineficiência do

aparelho repressivo no governo imperial.

Primeiro, frente a um território imenso, as forças de policiamento foram sempre insuficientes. Em 1810, as tropas de Primeira Linha (exército) se compunham de apenas dois regimentos de infantaria com um total de 2134 homens. Essa situação mudou pouco com a Independência. Além do mais, o maior contingente da tropa de linha ficava sempre na capital. As milícias de Segunda Linha eram, teoricamente, mais numerosas, porém em geral mal equipadas e pouco confiáveis. Foram criados, a partir de 1831, batalhões de guardas nacionais em todo o Império, destinados a ajudar a manter a ordem e substituindo, de fato, as milícias. No Maranhão, porém, o governo provincial só conseguiu efetivamente implantar guardas nacionais na capital. No interior, sua organização resultou, pelo menos durante a década de 1830, em fracasso, devido à falta de apoio dos pequenos e até médios proprietários. (ASSUNÇÃO, 1996, p. 437)

Esse contexto apresentado por Assunção (1996), referente às características de

alguns quilombos no Maranhão oitocentista e baseado em noções clássicas do conceito

de quilombo, serve de referência para compreendermos a situação específica de

ocupação do Rio Grande. Nas figuras referentes às primeiras famílias que ocuparam o

Rio Grande, o quilombo histórico, baseado na definição de 1740, se faz muito presente.

No relato da maioria dos moradores, a ocupação inicial do Rio Grande, se deu às

margens do rio dos Fugidos, espaço isolado no interior das matas, “em parte

despovoada”38.

Mapeando essas primeiras famílias do Rio Grande e classificando-as segundo

suas linhas de ascendência referentes à ancestralidade negra e ancianidade de

ocupação do território, dialogo com diferentes significados da categoria quilombo, os

38 Em 2 de dezembro de 1740, segundo resposta do Rei de Portugal à consulta do Conselho Ultramarino, quilombo era “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”.

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clássicos, aqui me referindo aos da época colonial, e os ressignificados, construídos a

partir do artigo 68 e das implicações a ele relacionadas.

Quando iniciei o trabalho de (re)construção das histórias do Rio Grande, foram

se colocando elementos diversos que caracterizam seus moradores como remanescentes

de quilombo, mas que, até então, não haviam sido acionados. Esse pode ser um fator

que explique a ausência do Rio Grande nos levantamentos aqui citados, a exemplo do

registro feito pelo Projeto Vida de Negro, nos anos de 1988/1989.

3.2 (Re)Construindo suas histórias: as memórias do Rio Grande e o contexto da

escravidão

Na introdução deste texto, afirmei que me sentia como personagem desta

história, que começou a ser escrita, saindo da memória para o papel, no ano de 2007,

quando o grupo de pesquisa iniciou seus primeiros contatos como os moradores do Rio

Grande. Quando fui lá pela primeira vez, em dezembro de 2008, minha função naquela

pesquisa já estava definida.

Concluindo o curso de História da Universidade Estadual do Maranhão e já com

a informação de que o Rio Grande apresentava indícios de uma comunidade

quilombola, minha função seria tentar mapear os primeiros moradores do Rio Grande,

na tentativa de (re)construir e escrever a história das pessoas que ali viviam, tentando

analisar a relação desta ocupação com o passado da escravidão. Na época, tentávamos

descobrir se aquela terra era devoluta ou registrada em nome de particular para que,

posteriormente, pudéssemos saber que rumos tomar no processo de titulação da terra.

Fo então que, em conversas com os moradores mais velhos, iniciei um longo

processo (ainda inacabado) de escrita das histórias do Rio Grande. Ainda nos dias de

hoje, depois de três anos de pesquisa, me deparo com inúmeras informações, de

diversos moradores, que me ajudaram nesse processo de escrita. Essas informações

foram selecionadas por mim (no papel de pesquisadora) e elencadas como “mais” ou

“menos” importantes para o contexto no qual se inseriam.

Esse diálogo estabelecido entre memória e escrita, entre pesquisa de campo e

pesquisa documental, me permitiu estabelecer aproximações entre a história e a

antropologia, e construir a escrita baseada nas múltiplas interpretações que a oralidade

oferece. Permitiu-me compreender que a história do Rio Grande, permeada por

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discursos que ora se aproximavam, ora divergiam, configurou-se como uma narrativa

“não linear”, mas sinuosa, sinuosidade devida “à complexidade e instabilidade do

próprio objeto”. (MONTEIRO, 2006)

A “dificuldade” de construção dessa narrativa acabou tornando-se um “passeio

agradável” entre a documentação do século XIX e início do século XX, e os relatos

orais produzidos na atualidade, construindo um discurso que focaliza a história comum

do Rio Grande, reconhecendo sua complexidade e respeitando suas lacunas.

O uso da história oral me fez problematizar as várias inquietações que esta

metodologia nos oferece, principalmente no campo da História, enquanto disciplina

acadêmica, que ainda utiliza como fontes de pesquisa, especialmente, os documentos

escritos. Entre essas inquietações temos a constante “dúvida” suscitada pela idéia de que

o entrevistado constrói sua fala a partir do roteiro criado pelo entrevistador para o

momento da entrevista, resultando na produção de um conhecimento baseado na

interferência do pesquisador/entrevistador sobre a fala do entrevistado, e vice e versa. O

importante é que à medida que minhas dúvidas sobre a história do Rio Grande iam

surgindo, os relatos orais me ajudavam a interpretá-las, fornecendo-me novas

perspectivas de compreensão e novas possibilidades de análises.

Alguns dos meus informantes nasceram na década de 1950, como Seu Agnaldo e

Dona Elza, e se dispuseram a contar a história comum do grupo conforme suas

representações individuais, articuladas a uma memória coletiva, lhes permitia fazê-lo.

Pollak (1992), em sua discussão sobre memória e identidade social, apresenta os

elementos constitutivos da memória individual ou coletiva, destacando os

acontecimentos vividos pessoalmente e os acontecimentos “vividos por tabela”, estes

últimos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. A

esse respeito afirma:

São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorram um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada” (POLLAK, 1992, p. 201).

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Os mais velhos tiveram suas vozes valorizadas nesse processo, relatando suas

origens, suas memórias e o que “restou do passado”. Ao escutar as primeiras histórias

sobre a ocupação do Rio Grande, os discursos apresentavam pontos em comum, mas

também algumas divergências e diversas referências sobre a forma como a terra fora

ocupada. Dei-me conta de que a história do Rio Grande é muito mais “plural” (no

sentido das formas de ocupação) do que as indicações percebidas no primeiro olhar

pareciam sugerir.

O percurso para (re) escrever essas histórias baseava-se em um longo caminho,

que partia da escuta dos mais velhos (e também dos mais novos), visando investigar a

origem de seus familiares, a relação de identidade construída naquele espaço, o

sentimento de pertença àquele lugar, a memória propagada por seus antepassados,

presente até hoje, e/ou “recuperada” para este fim. O foco era a ancestralidade negra na

ocupação do Rio Grande, visando dialogar com o critério de identificação presente no

Decreto 4887/03.

De início observei que a memória dos moradores do Rio Grande nunca havia

selecionado histórias relativas ao tempo das fugas da escravidão. Este era um passado

silenciado que com a interferência dos de fora, passou a ser acionado, retomado e

mencionado pelos mais velhos. Os mais jovens conheciam pouco sobre esse passado. E,

mesmo nos dias atuais, não se sentem autorizados a falar sobre esse tempo, sempre

indicando “quem sabe contar”. Isso é resultado de um processo seletivo da memória,

que tem conduzido a valorização de um qualificativo que era negado.

De acordo com a memória de “seus filhos”, o Rio Grande possui indícios de que

tenha sido um espaço de liberdade no período da escravidão. Lá viviam pessoas, em

relativo isolamento, nas proximidades do Rio dos Fugidos. A denominação do rio

sugere que ali fosse um local de acolhimento daqueles que conseguiam fugir da

escravidão. No entanto, esse não costumava ser um elemento reforçado na memória do

Rio Grande.

No início das pesquisas, Seu Agnaldo foi considerado um dos principais

informantes, sempre indicado pelos moradores como “fala autorizada” para contar a

história do Rio Grande. Professor da escola do povoado (e também “filho” do Rio

Grande), Seu Agnaldo sempre afirmava, em suas falas, a necessidade da “volta” ao

passado, do retorno às origens, para compreensão da história e do seu lugar de pertença.

Criticava como essa história aos poucos estava se “perdendo” e deixando de ser

interessantes para os mais jovens.

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Os relatos orais dos moradores e a pesquisa documental me levaram a perceber o

Rio Grande como um lugar ocupado tradicionalmente, com trajetória histórica própria e

dotada de relações territoriais específicas configurando o estabelecido no decreto

4887/2003.

Desta forma, visando o reconhecimento, era necessária a apresentação de dados

que afirmassem a presunção de “ancestralidade negra” do grupo. Entretanto, no início

da pesquisa, assumir uma identidade ligada ao passado da escravidão significava, para

muitos dos moradores, carregar um estigma depreciativo.

De início esse foi um fator que me inquietou bastante. Eu tentava entender como

alguns moradores faziam questão de assumir-se e de aderir à luta pela terra, enquanto

outros pareciam querer negar a ligação com o passado da escravidão. A palavra

“escravo” era sempre recebida com um olhar de desconfiança. Reconheciam a

existência da escravidão no engenho do Ariquipá, terra limite com o Rio Grande, hoje

também reconhecida pela FCP. Dona Eugênia narra que:

No Ariquipá mamãe me contava que tinha era gente dos olhos azul (...) E tinha uns preto da África aí nessa escravidão; diz que eles trouxeram preto da África, mas eles matavam quase tudo; mamãe sempre me contava que os mais velhos contavam pra ela que “davam” era muito neles, chega escutavam eles gritando, diz que botava no fogo, queimavam; era triste. (Entrevista. Junho de 2009)

Com relação ao Rio Grande isso não ocorria, a escravidão nem sempre era

mencionada. No entanto, a dinâmica de atualização do termo quilombo permitiu uma

inversão de posições sociais. Se no passado ter ligações com a escravidão significava

manter-se à margem da sociedade, no presente houve um processo de inversão. Ser

remanescente de quilombo exige um processo de autodefinição e um reconhecimento

público e legal de um caráter étnico antes negado.

A respeito do estigma e da revolta contra este, Bourdieu faz uma análise

coerente, e afirma que:

O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma constituído assim em emblema – segundo o paradigma ‘black is beautiful’ – e que termina na institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização. É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização (BOURDIEU, 2007, p. 125. Grifos do autor).

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Nesse sentido, para alguns moradores do Rio Grande, ao poucos assumir o

passado com a escravidão, antes silenciado, aos poucos começaria a fazer sentido assim

que a história do Rio Grande começasse a ser “recuperada” e registrada para alcançar o

reconhecimento junto a FCP, a legitimidade enquanto sujeitos de direitos, a reparação

de danos históricos e a titulação de suas terras.

Atualmente seus moradores reforçam elementos que lhes permitam afirmar a

imemorialidade e a ancestralidade africana na posse da terra. Em um dos primeiros

relatos sobre a história de ocupação, Seu Agnaldo caracterizou a ocupação do Rio

Grande da seguinte forma.

Vestígios de habitações, bem antes dos negros fugitivos, isto é, pelos indígenas, que ocuparam e muito o pedaço de terra. Se sabe que moraram várias pessoas negras fugitivas aqui perto das várzeas e cabeceiras dos pequenos córregos, afluentes do rio maior, que se chama Rio Grande. Eles vieram de fazendas vizinhas, até mesmo de outros municípios como Alcântara, Pinheiro, Viana, etc, ocupando especialmente o porto da cabeceira, que ainda havia moradores e pra chegar até aqui. Ainda no século XVIII veio um casal de negros da fazenda Canjiqueira e fizeram moradia onde atualmente hoje em dia é chamado Sítio Velho do Rio Grande. Antes disso, já morava a uns dois quilômetros daqui, uma família que plantaram e cultivaram muita manga e café. Daqui eles se mudaram para o Monte Alegre. (Conversa informal. 01.05.2008)

De acordo com a memória dos moradores, o Rio Grande existe há,

aproximadamente, cento e cinquenta anos. Inicialmente foi ocupado por indígenas

(como observei em documentos históricos relativos ao povoado de Bequimão) e, em

seguida, por escravos. Estes, visando à liberdade, fugiam das fazendas vizinhas e se

instalavam nas matas próximas.

Na pesquisa relativa à ancianidade de ocupação do território do Rio Grande

foram identificados algumas famílias dos primeiros moradores. Essas famílias estavam

interligadas e relacionadas à ancestralidade negra – presença de quilombos – e a

relação destas com camponeses livres que passaram a ocupar o território do Rio Grande.

É importante ressaltar a proximidade do Rio Grande a diversos engenhos, como os de

Ariquipá, Tijuca e Palestina. Além disso, o Rio Grande era passagem para muitos outros

povoados, freguesias e portos de embarque, o que favoreceu com que muitas famílias

aos poucos fossem ocupando aquele espaço. Seu Agnaldo afirma que:

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(I) Essas parte onde tem esses moradores mais antigo são o pessoal negro que vieram, agora não se sabe. Veio de Ariquipá? Aqui tem gente que veio até de Viana, tem geração aqui até de Viana, do tempo que foi liberado a escravidão. Se criou uma pessoa aqui que ela disse que quando ela nasceu já tinha sido abolido... eu ainda conheci ela aqui, chamava Antônia Besouro, ela era bisavó de Canuta. Ela veio de lá, criança. Teve uma família que trouxe. A mãe dela era escrava. (II) O pessoal lá do sítio, do sítio velho, eles falam também que era também os negros, que vieram de outra fazenda, lá de perto do Paricatiua, chamado Canjiqueira, que vieram pra cá, uma família só. (III) Veio família lá de Alcântara, negros também, que fizeram casa lá de quem vai pro Ariquipá, um localzinho que tem lá, chamavam Coque, lá tem um Mangueiral velho também, essas famílias moravam lá. Por final, a minha avó quando veio de Alcântara ela foi trazida por eles, garota, bem negrinha, ela foi trazida por essa família. (IV) Às vezes eles vinham, se escondiam, ficavam aí um tempão e ninguém olhava. Por que peixe tinha a vontade, farinha é como se diz, plantavam no mato, como índio, como se diz naquele tempo. Aí ficava lá aquela família. As vezes a pessoa sozinha ficava aí dentro do mato, sozinha. Por que o meu avó, velho, contou pra minha mãe que quando ele se entendeu tinha um senhor que morava sozinho lá em cima da cabeceira do rio. A minha mãe não conhecia, só via dizer. Hoje em dia ainda tem lá, ainda acha é muita pedra de Benedito, diz que era Benedito o nome dele, era um negro, morava lá. Logo na entrada do Rio dos Fugidos tinha uma casa bem grande. (Entrevista em 13.12.2008)

Esse relato expressa as diversas ocupações que povoaram o Rio Grande.

Inicialmente, alguns grupos de escravos, ou mesmo escravos em pequena quantidade

teriam se “refugiado” no meio das matas, nas proximidades do Rio dos Fugidos. No

período de declínio do regime escravocrata e com o fim da abolição formal, em 1888, as

povoações começaram a se concentrar mais próximas da sede do município de

Bequimão (Santo Antônio e Almas/Cabeceira) e de outros municípios (como as Vilas e

Freguesias de Alcântara, Viana, entre outros).

A ancestralidade negra se faria presente nas diversas ocupações da terra do Rio

Grande e em alguns outros elementos, como por exemplo, no nome de um dos rios que

corta o povoado, já mencionado: o Rio dos Fugidos. Sobre esta nomenclatura dona

Matilde, esposa de seu Agnaldo afirma:

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A minha avó contava que o nome do Rio era Fugido por que o pessoal vinha fugido da escravatura; tinha aquela velha que morava lá. Eu digo minha avó, mas era minha sogra. A minha sogra me contava que ia fazer a roça, na época tava nova, ela ia fazer roça pra lá e eu ia com ela. Aí ela achava caco de vidro, achava caco de pote, aí tinha aquela fornalha de forno, que eles tinham trabalhado no forno né?! Aí a minha sogra, que eu chamava de vó, ela falava assim: Aqui foi os escravos que vieram lá do engenho do Ariquipá e fizeram moradia aqui, aí morava aqui na beira desse rio, e por isso o nome do rio é fugido. Aí lá era caco de tigela, lá era caco de pote, lá era caco de tudo, a gente achava. Ainda acha tudo isso lá, que nunca se acaba. Aí ela falava que era os fugidos que fugiram de lá, e vieram e fizeram essa moradia, e moravam lá. E tinham muito esse ferro velho, tudo, aquele forno. Ela falava que eles faziam forno pra mexer farinha aí dentro dos matos, na beira do rio. Faziam aquele forno de barro, e lá mesmo eles plantavam a mandioca e lá mesmo eles faziam a farinha. Ela me contava muito. E tinha mesmo umas tapera velha que eles moravam. Aí nós ia pra lá assim trabalhar e ela me contava. Ela falava também que tinha uma preta velha que veio num sei de onde e morava lá num mato mais ali que eles chamam de Brilhante, na beira de um rio também, lá tem umas juçareira, ela falava que era essa mulher que morava lá, e que tinha vindo também de lá, do Ariquipá, foi pessoas que vieram do Engenho morar praí. (Entrevista. Março de 2009)

Esse relato apresenta alguns pontos centrais para discussão. Um deles diz

respeito ao nome do rio, que estaria ligado à resistência escrava. Como relatou dona

Matilde, o nome do rio se deu em razão das concentrações de escravos que teriam

ocupado as suas margens para construir habitações. De acordo com entrevista feita com

Seu Joquinha, os primeiros prováveis moradores do Rio Grande foram um casal de

irmãos, que teriam vindo do município de Alcântara.

“A mãe da minha bisavó, que era uma negra que vivia em Alcântara, veio morar na casa de uns brancos que viviam no Sítio do Coque, como era chamada também a região que se situa o Rio Grande. Um desses irmãos que era a Marciana, teve filhos com um negro chamado Januário, que vivia também no mesmo sítio.” (Entrevista. Abril de 2009).

Essa teria sido uma das primeiras ocupações do território. Os informantes, ao

relatarem suas histórias, vão apresentando diversos discursos sobre a ocupação do Rio

Grande. Seu Joquinha assim relatou uma família de ancestralidade negra que teria

ocupado o Rio Grande (Figura 6): uma escrava chamada Marciana teria vindo

“bolando” com seu irmão e ido para o Rio Grande, já na época de declínio do sistema

escravocrata. Chegando ao Rio Grande a escrava de nome Marciana teria “dado de

namoro” com Januário (filho de escrava com senhor de engenho) e irmão da bisavó de

seu Joquinha. Desse relacionamento teriam nascido alguns dos moradores mais velhos

do Rio Grande: Romão Luís, Salustiana e Leôncia Velha, esta última avó de seu Luís

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Mariano (o atual “dono do santo”, cuja festa secular – sem data exata de início - é

realizada no mês de junho todos os anos em honra e devoção a Santo Antônio);

conforme mostra a figura a seguir.

FIGURA 6 - Primeiras Ocupações : família de Sr. Luís Mariano

(Provável ocupação no século XIX)

Fonte: Dados da pesquisa

A ocupação efetivada pela família de seu Carlos Nogueira, vinda do Benfica, e

pela família materna de sua esposa, Dona Josefa (e seus irmãos dona Anastácia e seu

Mariano), vinda de Beira Campo, é assim relatada por seu Agnaldo:

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Agora esse pessoal mais, mais, que foram misturando, já foi outro povo que veio, que chamavam de branco, que já era de outra localidade, como daqui que chamam Beira de Campo, teve outras pessoa que vieram fazer casa, e montaram família aqui. (Entrevista. Abril de 2009)

Escravos vindos de Engenhos como Coche, Tijuca, Palestina e Ariquipá teriam

formado uma das primeiras ocupações que povoariam o Rio Grande. A família de dona

Canuta, por exemplo, seria descendente de uma escrava que veio do Ariquipá, como

mostra a figura 7, apresentada abaixo.

FIGURA 7: Primeiras Ocupações: família de D. Canuta

(Provável ocupação no século XIX)

Fonte: Dados da pesquisa

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Outra família teria vindo da Canjiqueira (como a família do pai de Dona Elza) e

de Alcântara (como a família do pai de Seu Agnaldo, que teria vindo de Castelo – hoje

reconhecida oficialmente como comunidade quilombola), ambas representadas nas

Figuras 8 e 9, apresentadas abaixo.

FIGURA 8: Primeiras Ocupações: família de Sr. Agnaldo

(Provável ocupação no século XIX)

Fonte: Dados da pesquisa

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FIGURA 9: Primeiras Ocupações: família de D. Elza e Sr. Chita (Provável ocupação no século XIX)

Fonte: Dados da pesquisa

Para construir os gráficos relativos à ocupação do Rio Grande, associei a

ancestralidade negra com as primeiras ocupações, com base na memória de diversos

moradores (os informantes), conforme figuras abaixo:

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FIGURA 10: SR. AGNALDO

60 anos. Nascida no Rio Grande. É conhecida por sua habilidade para tocar caixa (Forró de caixa) e é um dos membros ativos da Associação. Dona Elza tem guardado em sua memória o que ouviu seus pais dizerem sobre o processo de escravidão naquela região.

FIGURA12: DONA CANUTA

60 anos. Nascido no Rio Grande e um dos principais informantes. Professor da única escola do povoado. Era sempre apontado como um dos que detinha a memória do grupo. Conhecedor da história de ancianidade de ocupação e da ancestralidade negra do território, seu Agnaldo diz ter sido “sempre muito interessado” na história de seus ascendentes.

FIGURA 11: DONA ELZA

75 anos. Nascida no Rio Grande. Sua família seria descendente de uma escrava vinda do Ariquipá, antigo Engenho, hoje comunidade quilombola reconhecida pela FCP. Com os filhos morando na capital, Dona Canuta nos diz que morar no Rio Grande é melhor do que em qualquer outro lugar. É um lugar onde ela pode criar seus animais e fazer sua roça tranquilamente.

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72 anos. Nascida no Rio Grande. Conta-nos sobre o “disse me disse” da titulação, mas garante que ninguém tem título de terra. Lembra da escravidão, contada por sua mãe, de forma muito triste.

FIGURA14: FABRÍCIO RODRIGUES (Sr. Chita)

86 anos, nasceu no Benfica e chegou ao Rio Grande ainda criança. Seu Carlos nos diz que era comum muitas famílias ficarem nesse “vai e vem”, mas sempre voltavam para o Rio Grande. Ele mesmo morou até em Alcântara, mas formou família no Rio Grande e mora lá até hoje.

FIGURA 13: DONA EUGÊNIA

52 anos. Nascido no Rio Grande e irmão de Dona Elza. Colaborou com muitas informações. É um morador que tem aderido à causa da titulação e nos dá muitas informações sobre a ocupação da terra. Na foto, seu Chita encontra-se ao lado do Rio Grande.

FIGURA 15: SR. CARLOS

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FIGURA 16: DONA JOSEFA

40 anos. Atual presidente da Associação de Moradores do Povoado Rio Grande, compõe a geração dos “mais novos”. É da família de Seu Agnaldo, que teria vindo da comunidade quilombola Castelo, em Alcântara-MA. A família de seu pai tem origem no Ariquipá.

FIGURA 18: DONA ILDENÊ

71 anos. É esposa de Seu Carlos. Nasceu em Beira Campo, mas considera-se “filha” do Rio Grande, e foi registrada como tal. Seu pai, Lodijero Rodrigues, era filho do Rio Grande e apontado por muitos como o morador que dizia ter o título da terra.

FIGURA 17: DONA SÔNIA

37 anos. Nascida no Rio Grande, compõe a geração dos moradores “mais novos”. É a atual esposa se Seu Luís Mariano, o “dono” do santo Antônio. A festa é realizada nas mediações de sua casa todos os anos. Contribuiu de forma significativa para os trabalhos de campo desenvolvidos.

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FIGURA 19: DIONÍSIO (SULIM)

33 anos. Filho de Dona Elza, Sulim tem participado, nos últimos anos, do processo de luta por reconhecimento e titulação da terra. Acompanhou a mobilização das comunidades quilombolas na ocupação do INCRA em 2011 e tem participado de encontros promovidos pelo MOQUIBOM.

Procurei articular, também, em análise das primeiras famílias que ocuparam o

Rio Grande, a relação da ocupação com outras comunidades quilombolas, percebendo

os sujeitos que vieram desses lugares onde também vicejou a escravidão. Tentei

estabelecer relações com histórias que contavam especificamente sobre a vinda de

escravos para as terras do Rio Grande. Um elemento central na construção da história

do Rio Grande, ligado ao passado da escravidão, diz respeito à existência do rio dos

Fugidos. A presença de um rio, nas matas mais fechadas do Rio Grande, com este nome

é um elemento que valorizo bastante e, como já vimos, é muito recorrente na memória

dos mais velhos. Em conversa com Seu Chita, ele afirmou:

Os antepassados do Rio Grande moravam naquelas proximidades. Ainda hoje tem vestígios lá. Os fornos que eles faziam farinha era feito de barro. Não fica tão longe daqui do sítio. Tá um pouco difícil de ir lá agora por que o mato cresceu. Só mesmo os mais antigos, que sabem onde era, para localizar diretamente lá. Essa ocupação do rio dos Fugidos que deu origem ao Rio Grande de hoje. Essa comunidade foi crescendo e crescendo. O rio dos Fugidos liga com o rio das Pedras, perto da nascente do rio Grande. Lá não se abrigavam apenas pessoas que fugiam do Ariquipá, mas vieram pessoas do município de Alcântara. A estrada passava aqui para o Engenho de Ariquipá, por isso eles ficavam mais pra longe, pra dentro das matas. Com o tempo, os escravos foram liberados [sic]. Depois chegou a família que trouxe o Santo Antônio padroeiro, se localizaram aqui, onde é o festejo de Santo Antônio. Eles quando vieram, depois da libertação, vieram pra morar aí, com a imagem do Santo Antônio. Se não me engana, eles vieram de um lugar pra cá pro lado de Peri Mirim, chamado Remédios. Com o tempo essa família ou morreu ou se mudou, não sei bem explicar isso. Aí o santo foi levado pra lá. Aí ficou um tempo aqui sem festa.

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O povo sentiram falta e foram buscar a imagem, de volta. Hoje quem guarda o santo é o Luis Mariano, neto de uma senhora de nome Leôncia, que uma das que a gente ainda lembra que organizava a festa. Ele ficou com a imagem, mora no mesmo lugar, ele organiza tudo lá, entendeu? Mas essa imagem veio desses parentes. Por que pra lá também tinha refúgios, nessa região de Remédios, que era o nome da comunidade lá. A comunidade foi crescendo aqui em volta, tinham essas pessoas morando lá pra esse São Raimundo (dentro do Rio Grande). Eles nunca abandonaram o São Raimundo. Agora que ele já tem pouco morador, mas antigamente tinha muito morador lá. Depois uns vieram mais pra cá, uns foram pra São Luís, outros pra Bequimão. E aí foi multiplicando a comunidade. Hoje tem muita gente fora daqui, mas também ainda tem muita gente aqui. (Conversa informal em 17 de julho de 2011. Grifos meus).

Como podemos perceber nos grifos que destaquei, seu Chita chama atenção para

vários elementos interessantes: o povoamento inicial nas proximidades do rio dos

Fugidos; o crescimento da comunidade e a vinda dos moradores para a proximidade da

estrada, depois da libertação dos escravos; a relação com outros municípios que também

tinham a presença de “refugiados”, como Alcântara e Peri Mirim; a chegada do Santo

Antônio, padroeiro do Rio Grande; a migração de muitos moradores do Rio Grande

para outros centros; e a permanência de muitos que ainda moram nas terras do Rio

Grande.

3.2.1 As narrativas documentais

Como destaquei acima, a narração destas histórias mesclaria narrativas orais e

escritas, no intuito de fazer com que o diálogo entre ambos propiciasse a construção da

história do Rio Grande, necessária para o reconhecimento formal junto a FCP.

No entanto, para que se iniciasse uma pesquisa documental sobre o possível

título da terra era necessário compreender a forma como seus moradores percebiam a

terra, demarcando o espaço e investigando seus limites. Uma das principais

providências foi justamente estabelecer os limites do Rio Grande, segundo a concepção

dos moradores.

Tal necessidade havia surgido do levantamento de dados realizado no Arquivo

Público do Estado do Maranhão (APEM), onde foram pesquisados os mapas

organizados pela Delegacia Regional de Recenseamento e desenhados por Rosa

Mochel, referentes aos municípios maranhenses (sem data precisa, provavelmente

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referente à década de 1970); e os livros do Registro de Terras Públicas, datados da

segunda metade do século XIX.

Neste levantamento inicial foi identificado um primeiro problema: o Rio Grande

não fora registrado no mapa de Bequimão e nos registros de terras do século XIX.

Existia um Rio Grande no município de Alcântara, não se tratando

especificamente do Rio Grande da pesquisa. De início pensei que poderia se tratar do

mesmo povoado, já que o município de Bequimão pertenceu, durante algum tempo, ao

município de Alcântara, até ganhar autonomia em 1935. No entanto, nas próprias

conversas com os moradores, estes diferenciaram as duas localidades.

Nas pesquisas documentais realizadas no APEM foram investigadas as possíveis

posses de terra desta região. Os livros dos Registros de Terras Públicas, mencionados

acima, (pertencentes anteriormente ao Instituto de Colonização e Terras do Maranhão -

ITERMA - e agora parte integrante do acervo do APEM) ajudaram na pesquisa

documental. Foram eles: Livro de Registros de Terras da Freguesia de Santo Antônio e

Almas - 1854 -1857 (Santo Antônio e Almas era o antigo nome do município de

Bequimão, quando este era apenas uma freguesia); Livro de Registro Paroquial das

Terras da Freguesia do Apóstolo São Mathias da Cidade de Alcântara – 1854 – 1857.

Na primeira conversa com Seu Agnaldo pedi para que informasse os limites da

terra, para que pudéssemos achar com mais facilidade a localização do Rio Grande na

documentação histórica, em virtude da inexistência desse nome nos registros. Ele assim

os descreveu:

Então, esses limites os antigos aí tudo falava, os limites que tinha. Aqui, a terra se limita com a terra da Santa, uma mulher chamada Santa, que tinha aqui do outro lado, um povoado que tem lá pro lado do Bebedouro (...) Terra de Santa Rita. Aí depois vem a terra do... eu não sei nem como é o nome, que hoje em dia é Zé Mingau que é dono, ele comprou do ex dono que é o... um homem chamado Vicente Almeida. (...) Limita com as daqui do Rio Grande. Aí vem as terras aqui do Benfica, que hoje em dia é... Num sei se ainda é de Luizinho, mas era de Luizinho. Aí depois vêm as terras dos Rodrigues, da Beira de Campo. (...) Aí depois vem as do... aqui do Raimundo. (...) Aí depois vem as terra dos Cantanhede, que é aqui já do Monte Palma. Aí depois tem a terra dos Ramalho, principalmente aquele pessoal lá do Ariquipá. Hoje em dia é o povo de lá que, falam que já até, como é que se diz? Eles... Essas terra lá diz que já foi liberada pra eles, né? (Entrevista em abril de 2009)

Em face da minha intervenção, afirmando que o Ariquipá havia entrado com um

processo de reconhecimento como comunidade quilombola continuou:

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É, isso. E a terra do Rio Grande ficou no meio dessa terra todinha. Terra do Rio Grande que eles... eu nem sei, num sei nem dizer bem se na época, se lá nessa escritura tá terra do Rio Grande. Eu num posso nem afirmar isso. Por que sabe, de uma hora pra outra eles vem mudando nome. Aqui por exemplo eles falavam que aqui também eles chamavam Santo Antônio e Alma. Depois outra geração mais nova que eles começaram a adaptar Rio Grande, Rio Grande. Mas na época também não sei se é esse nome que tá lá. O certo é que o pessoal dos Nogueira que falavam que eram os que tinham o título da terra. (Entrevista em abril de 2009)

Os próprios moradores construíram um referencial cartográfico do Rio Grande.

De acordo com esse referencial, as terras do Rio Grande limitam-se com as seguintes

terras: Ramalho, Benfica, Paulistas, Zé Balaio, Manoel Moraes, Monte Alegre, Zé

Raimundo e Cantanhede (ver Figura 20).

FIGURA 20: Mapa do perímetro do território do Rio Grande

(Construído de acordo com as “pedras limites”)

Fonte: FURTADO, 2012. Organização: FILHO, J. 2011

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No que se refere à designação do lugar, Dona Elza, “filha” do Rio Grande, de 57

anos, afirmou que não conheceu outro nome; seus pais, também filhos do Rio Grande,

“nunca lhe falaram outro nome”. Quando eu lhe informei sobre a inexistência do nome

do Rio Grande nos registros mais antigos, D. Elza respondeu:

Não tem né?! Vai ver que é por que nunca foi pro mapa né?! Pessoal é tudo meio enrolado, mas agora tá mudando já, mas só que dantes esse pessoal era muito enrolado aqui no Rio Grande, muito. (Entrevista. Junho de 2009)

Quando solicitei que explicasse o que significava enrolado, acrescentou:

Assim, não sabiam ler, não queriam desenvolvimento, num sabe? Não tinha desenvolvimento e não tinha contato com essas pessoas, era difícil. Meu pai nunca foi na cidade, nasceu aqui, se criou, e nunca foi em São Luís. Mamãe que já foi depois de velha. Agora eu não conheço outro nome senão Rio Grande. (Entrevista. Junho de 2009)

Joquinha Borges, de 81 anos, que mora atualmente em Bequimão, mas residiu

no Rio Grande, onde foi professor, mantendo um vínculo com o local e seus moradores,

assim pronunciou-se sobre o nome:

Não, foi o pessoal que botaram o nome de sítio do Rio Grande, mas lá antes eu acho que era Terra do Coque. Botaram apelido devido o rio, e começaram a chamar Rio Grande, Rio Grande, Sítio do Rio Grande. Lá não tinha esse nome, isto é, que eu saiba não. (Entrevista. Abril de 2009)

Busquei saber se ao nascer ele já havia encontrado esse nome e afirmou:

Era Rio Grande, o sítio do Rio Grande, que faz festa de Santo Antônio. (Entrevista. Abril de 2009)

Quando perguntei a alguns moradores sobre a denominação Coque, apresentada

por Seu Joquinha, informaram-me que Coque é linguagem antiga, que quando muitos

deles se “entenderam” ouviram dos mais velhos que o Rio Grande era da Serraria até o

Coque. A partir das diversas falas podemos entender que o Rio Grande estava nas

mediações do Sítio do Coque, ainda que não fique claro se era limítrofe ou pertencente

às terras do Coque.

Estabelecidos os “limites”, baseados nessa representação social, e com as

informações sobre os prováveis nomes antigos do atual Rio Grande colocou-se outro

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problema relativo ao título da terra: se o registro era em nome de particulares. A esse

respeito Seu Agnaldo afirmou o seguinte:

Eu, quando me entendi, já achei os mais velhos falando que tinha essas escritura, do Rio Grande, e que era da família dos Nogueira, e que o nome exato que tava lá eu não sei. Eles dizem que era da família dos Nogueira, essa escritura queimou, eles tinham essa escritura e essa escritura é registrada no livro do Cartório de Alcântara, queimou bem pertinho aqui da onde a gente mora. Mas quando eu me entendi já não tinha mais, eu já achei a história, eles

falando que tinha. (...) dizendo eles que era uma escritura registrada, que

nesse tempo os cartório era tudo em Alcântara, tudo daqui ia pra Alcântara. (Entrevista. Março de 2009.).

A partir deste dado referente à propriedade do Rio Grande em nome de

particulares, iniciei a procura no registro de terras em busca do sobrenome Nogueira e

das ocupações referentes à terra do Coque. O resultado foram documentos registrados

no Livro 2989 - Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e Almas -

(1854-1857), mencionado anteriormente. Com este sobrenome foram encontrados dois

registros. O primeiro documento continha referências coincidentes as denominações

utilizadas em Rio Grande.

[página 17] Declaro eu abaxo a meu rogo assignado, que sou Senhor e

possuidor de um quinhão de terras na paragem39 denominada Tapuitininga,

seguindo da Serraria do Coche, tendo a minha situação na tapera do finado José Ignácio Rodrigues e Bitancourth, do Districto da Freguesia de Santo Antônio e Almas, termo da [página 18] Comarca de Alcântara, sitas nas terras que foram do finado Joaquim Antônio Rodrigues Bitancourth, místicas com as dos herdeiros do finado João Antônio Rodrigues Bitancourth, de cuja porção de terra ignoro as braças que tem, por terem sido herdadas de meu Pai Félix Francisco Nogueira, por quantia e não por braças, E por eu não saber ler e escrever, roguei ao Senr. “João Paulo Pereira” este por mim fizesse e assignasse. Freguesia de Santo Antônio e Almas, 23 de junho de 1855. Rogo do Senr. Antônio Pedro e Nogueira.

João Paulo Pereira. 40

39 Paragem: s.f. Espaço de mar, acessível à navegação; sítio onde se pára; qualquer região; Ex. Que você faz por estas paragens? In: NASCENTES, Antenor. Dicionário da Língua Portuguesa da Academia Maranhense de Letras. Rio de Janeiro: Bloch Ed., 1988. 40 Documento nº. 54, p. 17 do Livro 2989 - Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e

Almas- (1854-1857). Série: Repartição Especial das Terras Públicas. Setor de Códices. Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM).

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Os limites descritos neste registro apontam denominações que são utilizadas em

Rio Grande. Serraria é uma localidade dentro do povoado, assim como Sítio Velho,

Mangueiral, São Raimundo, Aldeia, entre outros. No que se refere ao Coque, seu

Joquinha referiu-o como sendo uma fazenda de brancos (Sítio do Coque), que se

limitava com o Rio Grande. Segundo relatos de moradores, atualmente não existem

casas nesse local, apenas mangueirais e taperas, que indicam a “existência anterior de

vida humana”.

O segundo documento presente no Livro 2989 referia-se a um povoado de nome

Bacurizeiro, também situado nas mediações do município de Bequimão, próximo ao

povoado do Benfica, limítrofe com o Rio Grande. Apresentava o seguinte registro:

[Página 28] Declaro eu abaixo assignado que sou Senr. e possuidor de uma porção de terras, sitas no Segundo Districto da Freguesia de Sancto Antõnio e Almas, da Comarca de Alcântara, na paragem denominada Bacuriseiro, que seu [compto] são sessenta braças de frente, com o fundo de meia légua, místicas às terras do falecido Antônio Rodrigues Bitancourth, e D. Leonarda Maria Frazão; as quais obtive por compra que fiz a Bonifácio Rodrigues, e sua mulher Anna Isabel. Sancto Antônio e Almas. 30 de

Dezembro de 1855. Aleixo Antônio Nogueira. 41

Esses dois documentos datam de 1855. É provável que estes registros tenham

sido frutos da Lei de Terras de 185042. No século XIX, a terra passa a ser incorporada à

economia comercial, mudando a relação do proprietário com este bem, que passa a ser

percebido como capaz de gerar lucro, tanto por seu caráter específico, quanto pela sua

capacidade de produzir outros bens.

No artigo 1º, da citada lei, ficam proibidas as aquisições de terra devolutas por

outro título que não seja o de compra. Essa lógica traz à tona uma série de

considerações, entre elas a busca incessante de tentar afastar da mão dos colonos a

posse das terras, já que os preços eram altos e de difícil alcance para pequenos

produtores. Os debates em torno da abolição da escravatura eram cada vez mais

recorrentes – o fim do tráfico de escravos datava de 1830 e era uma realidade concreta –

para substituir essa mão-de-obra escrava, um novo grupo viria à tona: os imigrantes. A

41 Documento nº. 92, p. 28 do Livro 2989 - Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e

Almas- (1854-1857). Série: Repartição Especial das Terras Públicas. Setor de Códices. Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). 42 Lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império

http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm

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idéia, portanto era afastar a posse da terra dos colonos, dos ex-escravos que viriam a

surgir e dos imigrantes que chegariam. A única maneira de afastar, em curto prazo,

esses grupos sociais da propriedade da terra era valorizando-a e tornando-os

impossibilitados de possuí-la.

Os grandes proprietários fraudavam facilmente a lei, fazendo parecer que a

ocupação ocorrera antes de 1850, beneficiando-se do dispositivo legal que reconhecia

todas as posses anteriores a essa data, independentemente do tamanho das terras. É

provável que esse registro, que possivelmente faz menção aos limites do Rio Grande,

tenha sido feito no intuito de garantir a posse da terra a grandes proprietários,

possivelmente proprietários das terras do Coque e do Ariquipá, visando afastar a posse

por parte de ex-escravos que se concentravam naquela região.

D. Eugênia Martins, de 70 anos, referiu-se as primeiras famílias e as histórias

sobre os possíveis donos:

As primeiras famílias quando eu me entendi era meu tio Paulo (Paulo Veiga, avô de Seu Agnaldo), era um Nogueira ali, era Marciana, que morava com Estevão, mãe de Severo, era uns lá pra Aldeia (povoado dentro do território do Rio Grande). Agora aqui dentro do Rio Grande, dentro do Rio Grande mesmo, era meu tio Gino, Romão Luís, Leôncia, Salustiana, era os morador daqui, e era o Lodijero velho. Esses tempo quase não tinha gente aqui, só eles mesmo. Agora essa terra aqui eu compreendi sempre eles dizendo que era de Lodijero (Entrevista. Junho de 2009. Grifos meus.)

A informação fornecida por D. Eugênia traz um elemento distinto das demais.

Primeiro havia a informação de que o título da terra pertenceria a um Nogueira, e agora

entra em cena o nome de Lodijero Rodrigues. A referencia a Lodijero, como dono da

terra, possivelmente decorre da relação deste com Rosa de Lima, filha de José Cândido

Nogueira, sua ex-mulher.

Na fala de Dona Eugênia, o que mais chama atenção é sua convicção quando

afirma que:

Agora eles dizem, uns tem terra, o outro tem terra, mas ninguém tem terra, a terra é comum, é do Estado; Nós mora, cada um no seu pedacinho, mas a terra é do Estado; tem cercado aí, tem um pra ali, mas aqui ninguém tem terra. (Entrevista. Junho de 2009)

Essa é uma fala corriqueira entre os moradores e que me chamou bastante

atenção. Apesar de reproduzirem o que ouviram dizer sobre o título, ou sobre posse da

terra nas mãos dos Nogueiras, de Lodijero Rodrigues, ou de qualquer outro, em

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momento algum a possível propriedade da terra em nome de particular ameaça-os, pois

se consideram sujeitos de direito da terra, ocupada secularmente.

Os nomes mencionados nos Registros de Terras Públicas pertencentes ao acervo

do APEM – transcritos acima – que poderiam possivelmente estar relacionados com a

localidade do Rio Grande e consequentemente estavam registrados com o sobrenome

Nogueira, não coincidiam com os relatos orais da geração mais velha do povoado.

Alguns moradores possuem documentos de um cadastro de posse que teria sido feito

pelo INCRA. Dona Josefa, por exemplo, possui este documento, fruto do incentivo de

um antigo prefeito amigo de sua família, temendo que ela pudesse perder seu pedacinho

de terra na localidade Serraria – dentro da terra do Rio Grande. Entretanto, existe apenas

o cadastro de posse, a titulação nunca foi feita.

Para a comprovação de algumas informações teria que ser feito um

levantamento cartorial, neste caso nos Cartórios de Alcântara, em razão do antigo

vínculo entre os territórios de Alcântara e Bequimão. Porém, antes disso, foi realizada

uma pesquisa no ITERMA, para tentar identificar a atual situação das terras de

Bequimão, e se possível identificar o caráter – devoluta ou particular – das terras do Rio

Grande, pensando na posterior regularização e titulação das terras. Como mencionei

anteriormente, os documentos citados acima e datados do século XIX eram registros

pertencentes ao Instituto de Colonização e Terras do Maranhão – ITERMA43.

No Iterma fui informada que nada havia em relação ao que buscava. Na década

de 1980, por volta de 1985/1986, uma empresa de consultoria e projeto teria realizado,

no município de Bequimão, um mapeamento para saber a situação das terras. Através de

uma discriminatória administrativa seria feito o registro de quais terras seriam devolutas

e quais estariam em nome de particular. Dependendo dos resultados encontrados nas

visitas às terras e aos supostos proprietários, seria iniciado o levantamento cartorial.

No entanto, mais de vinte anos depois desse possível cadastro, a empresa não

entregou os dados coletados. No acesso que tive à sala dos arquivos de registros do

ITERMA, encontrei informações sobre vários municípios da região, mas nada sobre

43 Criado pela Lei 4.353 de 09 de novembro de 1981, o ITERMA tem como objetivo “executar a política

agrária do Estado, organizando a estrutura fundiária, com amplos poderes de representação para promover a discriminação administrativa das terras estaduais, de acordo com a legislação federal específica; executa a política agrária do Estado com autoridade para reconhecer posses legítimas e titularizar os respectivos possuidores, bem como incorporar ao patrimônio do Estado as terras devolutas, ilegitimamente ocupadas e as que se encontram vagas” 43.

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Bequimão. O acesso ao Memorial Descritivo de algumas terras, facilitado pelas devidas

coordenadas geográficas do território, não foi possível, ainda com toda a solicitude dos

funcionários. Um processo burocrático e de difícil acesso. Estes mesmos funcionários

apresentaram-me outra pista: buscar a Certidão de Registro do Imóvel Rio Grande –

Bequimão, nos registros cartoriais de Alcântara.

Nos cartórios de Alcântara, busquei documentos das possíveis propriedades de

terras da área do Rio Grande, desde meados do século XIX até o ano de 1935, momento

em que o município de Bequimão teria se tornado autônomo. O nome “Rio Grande” não

aparecia, o que podia indicar mudança de nome da terra. Não foi encontrado nenhum

registro que fizesse menção à posse de terra em nome de particulares no povoado do

Rio Grande.

Posteriormente a esses mapeamentos da história de ocupação do Rio Grande e

dos documentos antigos que poderiam fazer menção à terra do Rio Grande, trabalhamos

na construção da Carta que seria enviada à Fundação Cultural Palmares, intitulada

Trajetória comum da comunidade remanescente de quilombo Rio Grande –

Bequimão/Ma. Partimos do dado de que a FCP solicita que os grupos remetam, caso os

possuam, dados, documentos ou informações, tais como fotos, reportagens, estudos

realizados, entre outros que atestem a história comum do grupo ou suas manifestações

culturais, ou em qualquer caso, apresentação de relato sintético da trajetória comum do

grupo.44

Logo após a defesa da minha monografia, anexamos o texto monográfico a esta

Carta e postamos com destino à FCP, em meados do mês de julho de 2009. Em 19 de

novembro de 2009, data da publicação no Diário Oficial da União, a professora

Marivânia Furtado recebeu a confirmação de que o Rio Grande havia sido reconhecido

e certificado pela FCP, sendo os seus moradores certificados enquanto remanescentes

das comunidades dos quilombos45.

A partir desta data, o Rio Grande foi inserido no cadastro nacional de

comunidades quilombolas, passando a ser beneficiário de algumas das políticas

oferecidas pelo Programa Brasil Quilombola. No ano de 2010, seus moradores se

mobilizaram para participar do Programa Minha Casa Minha Vida Rural, que

beneficiaria comunidades quilombolas, em torno de 50 famílias, com casas de alvenaria.

44 Dados retirados do site da Fundação Cultural Palmares, referente aos procedimentos de Certificação de Comunidades Quilombolas. 45 Ver Certidão de Autodefinição, Figura 31, página 144.

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Sem analisar aqui os conflitos internos que a proposta desse programa acarretou,

podemos destacar que, aos poucos, os moradores começavam a se mobilizar e

desenvolver processos organizacionais autônomos que independem da presença do

grupo de pesquisa.

Nesses últimos anos, o Rio Grande tem vivenciado e desenvolvido práticas que

aos poucos parecem reforçar a identificação como novos sujeitos de direito. Os

moradores que são ativos na Associação, que participam das reuniões, dos debates

externos, que recebem os pesquisadores, já acionam a identificação com a categoria

quilombola e, aos poucos, têm contribuído para que essa categoria de auto-atribuição

seja, de fato, um elemento de identificação étnica.

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4. “A COMUNIDADE TEM TUDO PRA SER QUILOMBOLA”: processos

organizacionais de identificação como novos sujeitos de direitos

A visibilidade (interna e externa) do Rio Grande enquanto uma comunidade

quilombola é um processo em gestação. Nos itens anteriores, apontei o processo de

ressemantização da categoria quilombo, delineando as formas pelas quais o Rio Grande

construiu suas histórias (presente na memória de seus “filhos”) para legitimar a herança

com o passado da escravidão. Em continuidade, pretendo analisar os processos

organizacionais que sustentaram a construção desta identidade, configurados tanto na

organização e mobilização no processo de reestruturação da associação de moradores,

quanto na mobilização para reforçar manifestações culturais que legitimam o novo

referencial ao qual se vinculam.

Pensar o Rio Grande hoje implica perceber a nova dinâmica vivida por seus

moradores que, orientados pelas determinações legais, investiram na seleção de

memórias que remetessem a uma trajetória histórica própria, marcada pela presunção de

“ancestralidade negra”, na autodefinição como grupo étnico-racial, dotado de “relações

territoriais específicas”. Essa dinâmica tem sido marcada, ainda, por um investimento

no associativismo, especialmente por se configurar, também, como um pré-requisito dos

trâmites legais para titulação da terra.

Desta forma, o olhar sob o Rio Grande tem se dado no sentido de perceber como

o grupo começa a se relacionar com essa identificação. Os moradores, em especial

aqueles que se encontram vinculados à associação, têm, cotidianamente, construído

elementos que afirmam ser fundados na tradição do grupo, como forma de legitimar e

sustentar constantes lutas travadas pela permanência na terra que afirmam ocupar

secularmente.

Para melhor compreender esse cenário, procurei identificar como tem se

configurado o processo interno de organização e suas bases de apoio. Andrade (2009)

refere-se ao movimento de grupos camponeses que passam a adotar a identidade

quilombola na interlocução com a burocracia estatal, a partir da inserção do artigo 68 na

Constituição Federal, acrescentando que muitas elaborações teóricas e trabalhos

etnográficos têm sido produzidos sobre esses novos sujeitos de direitos.

No entanto, a autora ressalta que, apesar do número significativo de produções

acerca desses grupos, pouca atenção tem sido dada ao fato de que para existirem

publicamente, esses novos sujeitos de direito dependem de uma rede de mediadores

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(composta por antropólogos, advogados, parlamentares, integrantes do Ministério

Público, pesquisadores, clérigos, jornalistas e outros profissionais) e de uma grande

diversidade de estruturas e agentes de mediação.

Cremos, porém, que pouca atenção tem sido dada ao fato de que, para existirem publicamente, para realizarem a interlocução política com instituições supracomunitárias, esses grupos passaram a depender de toda uma rede de mediadores, desde aqueles que foram erigidos como seus próprios representantes, aos antropólogos (que foram conclamados a dizer quem eram esses sujeitos de direito), aos advogados (atuando em entidades não-governamentais ou dentro do próprio Estado), aos funcionários de órgãos oficiais, aos gestores públicos e de empresas. Enfim, agentes sociais especializados no que se poderia denominar questão quilombola, passaram a deter autoridade para dizer quem são, onde e como vivem e quais os direitos desses grupos. (ANDRADE, 2009, p. 44. Grifos meus)

Dialogando com Wolf (2003) e Lenoir (1998), Andrade (2009, p. 45) traz para o

debate o fato de que, para existirem como sujeitos políticos coletivos e serem

reconhecidos como sujeitos de direitos, não apenas os quilombolas, mas outras

categorias sociais necessitam de porta-vozes que encaminhem suas reivindicações e

façam a mediação com os agentes estatais, que falem em seu nome, que façam com que

um problema individual se imponha no cenário público como um problema social.

Ao passarem a existir como sujeitos políticos coletivos criaram-se movimentos, associações, entidades, em nível estadual, nacional ou local, no âmbito das quais mandatários passaram a assumir o papel de porta vozes (BOURDIEU, 1984), atuando em organizações específicas, que se fundam em recortes étnicos e raciais, para além dos sindicatos de trabalhadores rurais. Espalhados em vários povoados do interior de praticamente todas as unidades da federação, esses grupos já existiam conforme diversificadas formas de organização social e compartilhamento de identidades específicas várias, construídas historicamente, a maior parte delas ancoradas em fundamentos étnicos. Já vinham lutando pela permanência em seus territórios, por meio do sindicato de trabalhadores rurais, de associações de moradores no nível do povoado, com apoio da Igreja Católica e de outros mediadores tradicionais (Wolf, 1984, p. 12), conforme cada conjuntura. A partir de 1988, novas entidades de representação assumiram papel de intermediação, agregando-se àqueles mediadores mais tradicionais. (ANDRADE, 2009, p. 44-45)

O que temos é um contexto que envolve esforços intelectuais da academia (leia-

se aqui historiadores, antropólogos – que elaboram os chamados laudos periciais desses

grupos - e cientistas em geral) e de legisladores, constituintes e militantes de

movimentos sociais. No âmbito da garantia do direito expresso no artigo 68, Andrade

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(2009) propõe que os olhares estejam voltados não apenas àqueles para quem as

políticas são destinadas, mas também para os demais agentes envolvidos no processo,

incluindo seus mentores, as empresas envolvidas (ONGs, Agências Internacionais), os

responsáveis pela sua execução, os agentes governamentais, os movimentos sociais,

entre outros.

Alonso (2006) chama atenção para o crescimento no número das comunidades

quilombolas no Maranhão nos últimos anos, a partir da intervenção de agentes externos.

Cita, como exemplo, os encontros municipais e estaduais realizados pelo Projeto Vida

de Negro (PVN)46. O propósito desse projeto era mapear as comunidades negras rurais

no estado do Maranhão, suas formas de uso e posse da terra, suas manifestações

culturais, religiosas e a memória oral desses grupos, antes e depois da abolição.

Ainda segundo Alonso (2006), mesmo ocorrendo desde 1986, esses encontros

tornaram-se mais sistemáticos a partir de 1988, ano da inserção do artigo 68 na

Constituição. A partir de então, buscaram fornecer informações aos grupos sobre os

caminhos a serem seguidos para a garantia de seus direitos.

Entre as atividades realizadas nesses seminários municipais e locais, destacamos as destinadas a informar a respeito do artigo 68 e a necessidade de se constituírem como entidades jurídicas, como condição para conquistar seus direitos coletivos como comunidades quilombolas. A divulgação de um determinado tipo de conhecimento a respeito da “origem”, “história” e “cultura dos negros” trazidos da África para o Brasil como escravos, também constitui parte das práticas dos seminários. (ALONSO, 2006, p. 21, grifos da autora).

Para o início desta discussão, portanto, considero interessante demarcar uma

das mediações fundamentais no processo de luta por reconhecimento vivenciado pelo

Rio Grande, que diz respeito à interlocução estabelecida entre seus moradores e a

Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), representada pelo grupo de pesquisa,

liderado pela professora e antropóloga Marivânia Furtado, do qual faço parte47. Em

diversos relatos de moradores, presentes ao longo do texto, o diálogo com a

46 Conforme a autora, o PVN foi criado em 1988, por militantes do Centro de Cultura Negra (CCN/MA) e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), e, inicialmente, foi financiado pela Fundação Ford. 47 Como já mencionei anteriormente, minha inserção no grupo de pesquisa e início das pesquisas no Rio Grande se deu um ano depois que o grupo de pesquisadores, coordenado pela professora Marivânia Furtado, estava em contato com os moradores do povoado. Portanto, o processo de luta por reconhecimento e titulação da terra já havia sido iniciado.

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universidade é tido como o ponto de partida das discussões sobre a questão quilombola

e das lutas posteriores.

Desta forma, cabe destacar que a atuação do grupo de pesquisa assemelha-se

àquela do PVN, mencionada acima. Um dos objetivos iniciais do grupo de pesquisa era

orientar os moradores acerca do direito das comunidades remanescentes de quilombos,

conforme o artigo 68 (CF/88), explicando temas referentes à questão quilombola e

informando-os acerca dos passos para a certificação junto à FCP e para a titulação da

terra. O foco da atuação esteve voltado, inicialmente, para a constituição de uma

entidade jurídica, a associação de moradores, visando à garantia do direito coletivo em

seu nome.

4.1 “É muito importante ter sido reconhecido como quilombola e ainda poder

levantar a associação”

O Rio Grande possuía uma associação de moradores que se encontrava

desativada. Seu processo de reestruturação, visando cumprir exigências do decreto

4887/2003, é apontado pelos moradores como sendo resultado da influência e assessoria

do grupo de pesquisa. Nas atas de reuniões, por exemplo, pude perceber como a

importância do grupo é demarcada e como a categoria quilombola vai sendo apropriada

pelos moradores. Uma categoria, antes desconhecida por alguns, assume um significado

positivo no processo de luta por reconhecimento e permanência na terra.

As instituições mediadoras, nesse primeiro momento, foram a UEMA,

caracterizada, pelos moradores, como a principal mediação nesse processo de

interlocução com o Estado e a Associação das Comunidades Negras Rurais

Quilombolas no Maranhão (ACONERUQ). A iniciativa de agregar a ACONERUQ

como mediadora partiu do grupo de pesquisa. O objetivo dessa ação era fornecer maior

legitimidade à reivindicação do Rio Grande, trazendo para as discussões uma voz

autorizada, instituída (BOURDIEU, 1996).

Furtado (2012) assim descreve o contato inicial do grupo de pesquisa com o Rio

Grande, que se deu por sua iniciativa e de forma casual:

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Minha relação com as pessoas da comunidade do Rio Grande perfaz mais de três anos. Esse envolvimento, científico e emocional, teve início quando participei de uma capacitação para professores da rede de ensino de Bequimão realizado pela prefeitura daquele município no ano de 2007. Havia sido convidada para ministrar um curso sobre a implantação da Lei 10.639/03 que trata do ensino da História da África e a importância da cultura afrodescendente para a formação da diversidade brasileira. Observei que a maioria dos professores da rede presentes naquele curso eram afrodescendentes. Como já havia trabalhado com a produção de material didático para escolas indígenas, pensei em dar continuidade aos temas discutidos no curso em uma comunidade quilombola e ali, assessorando o(a) professor(a) da escola, produziríamos material didático-pedadógico específico para ser utilizado na escola da comunidade. Para a realização desse intento entrei em contato com um dos presentes e perguntei se ele sabia onde ficava Ariquipá, pois eu já tinha conhecimento de que essa era uma comunidade que se auto-declarava quilombola. O professor interpelado naquela ocasião chama-se Agnaldo Rodrigues e este me informou que sabia, sim, onde ficava Ariquipá e que lá era uma comunidade remanescente de quilombos. Para surpresa minha, ele confessou que para chegar em Ariquipá eu teria que passar pela sua comunidade e que esta também tinha “indícios de uma comunidade remanescente de quilombos”. Falei, então, para seu Agnaldo sobre o meu objetivo de trabalhar com a comunidade na elaboração de materiais didáticos próprios e perguntei se ele não teria interesse que eu fizesse uma visita à sua comunidade. Mediante a afirmativa desse professor, marcamos o meu primeiro encontro com a comunidade que ocorreu no dia 25 de novembro de 2007. A primeira visita à comunidade do Rio Grande objetivou a tomada de conhecimento do local, das condições de deslocamento da sede do município até aquela comunidade, a observação da disposição das casas no povoado e o agendamento de uma reunião com os moradores para discutirmos o trabalho que eu pretendia realizar na comunidade. Ainda no dia 25 indaguei do Seu Agnaldo sobre a questão da auto-definição como comunidade quilombola. Ele me informara que, enquanto professor, sabia que aquele povoado tinha sido terra de uns “pretos que vinham fugido das fazendas e que se refugiavam na cabeceira do rio chamado Rio do Fugidos”. Mas que até aquele momento a comunidade não sabia de seus direitos e que nem todos tinham conhecimento daquela história. (FURTADO, 2012, p. 32)

No entanto, cabe destacar que, mesmo antes do contato com a UEMA, o Sr.

Agnaldo afirmou ter informações de que o Rio Grande possuía indícios/elementos que

caracterizariam como uma comunidade quilombola, mas nunca lhe ocorreu levar

adiante essa discussão entre os moradores, conforme indica D. Sônia, atual presidente

da Associação:

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Pra nós mesmo e pra comunidade saber foi através dessa reunião que Marivânia fez com seu Raimundinho da ACONERUQ. Aí depois quando já estava essa discussão na comunidade foi que seu Agnaldo veio falar pra gente que ele já tava sabendo, que veio um convite pra ele em um treinamento que ele tava em Bequimão, pra fazer o registro de comunidade quilombola. Aí ele falou que na comunidade dele também tinha vestígios de negros, mas só que ele chegou e ficou com ele essa informação, não passou pra ninguém. Ele só veio falar dessa informação depois da visita de Marivânia na comunidade. Quer dizer, ele já sabia que existia o direito pra essas comunidades negras quilombolas, que tinha que se registrar na Palmares, só que ele chegou e ficou com ele. Quando o irmão do vereador Cléuber veio na comunidade, falou com ele e ele voltou a se calar. Foi que ele veio saber se podia trazer o pessoal de São Luís pra conhecer a comunidade. Ele levou no Ariquipá, que deu entrada no pedido de autodefinição primeiro do que a gente, por a gente não sabia. (Entrevista em 16.07.2012).

A presidente relata, ainda, como se deu o início das discussões no Rio Grande,

destacando o contato com a UEMA como o ponto de partida para o processo de

mobilização e luta por reconhecimento:

Aí quando a Marivânia veio com seu Raimundinho (ACONERUQ) foi que a gente começou a discussão e decidimos nos autodefinir como quilombolas. Mas até então, até 2007, a gente não sabia. Tinha até gente que criticava quando falava em quilombola achava que era uma coisa feia. Teve a inauguração daquela praça de Ariquipá, aí Cléuber (vereador no município) deu várias camisas do aniversário de Ariquipá com a praça na frente, divulgando a praça, aí teve pessoas aqui que não aceitaram vestir a camisa por que eles não eram quilombolas. Quilombola era só lá em Ariquipá. Aquele preconceito ainda existia. (Entrevista em 16.07.2011. Grifos meus.).

Na fala de outros moradores vemos a mediação do grupo de pesquisa ser

reforçada como a motivação maior para o início das discussões, do entendimento dos

moradores acerca do direito presente no artigo 68 (ADCT) e da mobilização em torno

de sua garantia. Sr. Chita (52 anos) torna mais sólido o argumento de que essas

discussões haviam sido motivadas pelo contato de um morador, Sr. Agnaldo, com a

professora Marivânia Furtado, destacando o momento do primeiro encontro da

professora com os moradores do Rio Grande:

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Foi iniciativa da Dona Marivânia mesmo; ela encontrou com seu Agnaldo em Bequimão, perguntou se ele não queria que ela viesse aqui fazer uma reunião com o pessoal pra conhecer a comunidade; aí perguntou pra ele o jeito da comunidade, ele teve explicando e ela teve o interesse de vir. A primeira vez que ela veio, aí a gente esperou, ela chegou tarde e não deu ninguém na reunião. Aí depois ela marcou outra vez, a gente começou a reunir, aí nós dissemos que a presidência de Seu Agnaldo já tinha vencido. Aí foi eleito outro presidente, aí a comunidade começou a crescer nessa reestruturação. (Entrevista em 17/07/2011)

Sulim (33 anos), filho de Dona Elza, hoje membro do Movimento Quilombola

do Maranhão (MOQUIBOM), ao reforçar o protagonismo da professora Marivânia,

aponta as dificuldades iniciais do processo de entendimento do direito e da mobilização

em torno de sua garantia:

A história ficou totalmente modificada agora, depois que a professora Marivânia começou a vir, reconheceu a comunidade, a comunidade reconheceu ela. No começo foi difícil. Ela explicava pra gente e mais na frente o povo não sabia. Quer dizer, não sabiam que comunidade são pessoas que vivem juntos. É diferente da sociedade que vive em São Luís, que você não conhece seu vizinho, você mora colado com ele, mas não sabe quem é ele, o que ele faz, da onde ele vem, por que vocês não conversam; sai de manhã, volta de noite e ninguém conversa com ninguém. E aqui você conhece todo mundo. Você vive em comunidade. Vai trabalhar junto, faz roça junto, sai eu, sai Chita, sai Suely, cada um de uma casa e vamos trabalhar só em uma roça. Na roça a gente debate, troca ideia, conversa várias coisas. Hoje o quilombola já tá mais presente. Mais pessoas já vem pra reunião, já temos projetos, como o Minha Casa Minha Vida Rural, muita gente duvida que não vem, outros ficam na fé que vem; mas o tempo todo divididos, todo lado tem uma divisão, os que são mais da associação e os que ficam mais na deles. (Entrevista em 17.07.2011).

Como podemos ver nos relatos, a iniciativa de reconhecer o Rio Grande como

comunidade quilombola é externa, mas toma como base a informação que partiu de um

morador, de que aquele povoado possuía indícios de uma comunidade quilombola, por

ter sido uma terra ocupada por “pretos que vinham fugido das fazendas e que se

refugiavam na cabeceira do rio chamado Rio do Fugidos”, conforme vimos na fala de

Furtado (2011, p. 32).

A partir desse momento, o grupo de pesquisa iniciou um processo de mediação e

assessoria no Rio Grande, que perdura até os dias de hoje, visando, inicialmente

contribuir no entendimento dos trâmites necessários para o reconhecimento junto à FCP

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e, posteriormente, auxiliando nos trâmites para a titulação da terra. Essa experiência de

assessoria possibilitou que vários membros do grupo de pesquisa realizassem suas

pesquisas no Rio Grande e produzissem trabalhos etnográficos com diferentes

enfoques48. Desta forma, por orientação do grupo de pesquisa, a dinâmica identitária em Rio

Grande foi se processando, tomando como referência as determinações do decreto

presidencial 4887/2003. O parágrafo único do referido decreto afirma que: as

comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas. Esse

dispositivo desencadeou o esforço feito pela comunidade para reestruturar a associação

de moradores e mantê-la, já que se encontrava desativada em razão de inadimplência

com a receita federal, com uma dívida no valor de mais de dois mil reais.

Furtado (2012) relata como redimensionou sua intervenção no Rio Grande,

passando a priorizar a capacitação de lideranças para o associativismo em contexto

quilombola, deixando de lado seu objetivo inicial, idealizado anteriormente, referente à

produção de materiais didáticos:

Perguntei se a comunidade tinha uma associação de moradores ao que ele me respondeu que sim, mas que esta não estava adimplente e tinha problemas com a Receita Federal. Essa minha indagação era motivada pelo conhecimento de que, para os procedimentos formais junto ao poder público, para a garantia de direitos territoriais seria necessária a regularização da Associação de Moradores. A partir dessa conversa com seu Agnaldo, mudei de foco, não mais trabalharia com a produção de materiais didáticos, mas com a capacitação de lideranças para o associativismo em contexto quilombola. Marcamos uma reunião com os moradores da comunidade para o mês de janeiro de 2008, a fim de discutirmos conjuntamente os objetivos do meu trabalho. (FURTADO, 2012, p. 33. Grifos meus)

Na década de 1990, visando a interlocução com o poder público, os moradores

foram orientados a criar uma representação coletiva, como pessoa jurídica, com objetivo

de garantir benefícios para o povoado. Desta forma, a Associação de Moradores do

Povoado Rio Grande foi fundada em 1994. Registrada em cartório e possuindo um

estatuto que a rege, a associação iniciou com 52 filiados. A diretoria eleita no ano de

fundação foi assim constituída:

48 Alguns destes trabalhos foram expostos na introdução desta dissertação (Página 18).

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QUADRO 13: Primeira diretoria eleita (1994)

Presidente Agnaldo Viegas Rodrigues

Vice-Presidente Severo Nogueira

Secretário Geral Anelides da Conceição Furtado

Tesoureiro Rufino Rodrigues

Conselho Fiscal Agapito da Anunciação Pires

Fabrício Rodrigues (Sr. Chita)

Simeão Rodrigues

Fonte: Dados da pesquisa

Segundo informações contidas na ata de fundação, de seis de junho de 1994, a

associação tinha como objetivo “envolver” os moradores e atender “os anseios da

comunidade”:

Sendo que o presidente empossado usou a palavra em nome da diretoria, dizendo que todos serão envolvidos nas atividades da associação, com objetividade para atingir os anseios da comunidade, sem discriminação de qualquer natureza. (Ata de Posse da Diretoria, em 06 de junho de 1994. Grifos meus).

De acordo com muitos dos moradores, o objetivo principal da criação da

Associação era o de trazer luz elétrica para o povoado, no bojo do Programa Luz para

Todos, no então governo Roseana Sarney. Em ata de reunião de 30 de dezembro de

1995, o presidente afirma que projeto de eletrificação já havia sido elaborado por um

membro do sindicato dos trabalhadores rurais do município, Cléuber Pereira, atual

vereador do município. Na ocasião, o projeto de eletrificação é mencionado com o

“ardente desejo” a ser conquistado pelos moradores:

Foram declarados abertos os trabalhos sob a presidência do senhor Agnaldo Viegas Rodrigues, para tratar do assunto bastante importante para a Associação, no caso um projeto de eletrificação. Todos os sócios, em número de 62 presentes, manifestaram o ardente desejo de conquistarem energia para a sua comunidade. O presidente da associação, euforicamente, ficou esperançoso com o referido projeto. Para a surpresa de todos da associação, o citado projeto já havia sido elaborado, através de um elemento que faz parte do sindicato dos trabalhadores rurais do município de Bequimão, senhor Cléuber Pereira. Este fez suas colocações em prol do

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grande progresso que pretende levar ao Rio Grande. (Ata de reunião ordinária, em 30 de dezembro de 1995. Grifos meus.).

Em anos posteriores, os “anseios da comunidade” ampliaram-se para as áreas da

saúde, segurança e previdência social, conforme os registros em atas. A eletrificação

permaneceu em pauta por alguns anos, até ser efetivada em 2001, sete anos depois de

fundada a Associação. Nesta ocasião, o papel da associação é apontado como decisivo

para esta conquista. Posteriormente, identifiquei nas atas reivindicações em torno da

melhoria da estrada de acesso ao povoado e a demanda local por poço artesiano, casas

de farinha e telefone público.

A Associação de Moradores do Povoado Rio Grande, depois de iniciar o

processo de legalização de sua situação junto à receita federal, no início de 2008, passou

então a mediar as relações entre os moradores e o poder público. Sua reestruturação e a

mobilização de um grupo de moradores ativos nesse processo tem oferecido ao grupo

condições de se colocar publicamente, de reivindicar e demandar o reconhecimento de

seus direitos, em especial do direito à titulação da terra.

É interessante ressaltar que a associação coloca-se como instrumento de

reivindicação de interesses muito concretos. Assim ocorreu no momento da sua criação,

em 1994 (e nos anos seguintes) e no momento de reestruturação, em fins de 2007/início

de 2008. No primeiro momento luz, estrada, poço, casa de farinha e, neste último

momento, terra (além do reconhecimento e da legitimidade).

Além da titulação da terra, as comunidades quilombolas certificadas pela FCP

passam a reivindicar as políticas governamentais a elas destinadas. De acordo com

Arruti (2009: 76), as políticas governamentais específicas para esses grupos

“acompanham, sucedem ou, mais frequentemente, antecedem a política fundiária em

seus efeitos práticos locais”, em razão dos vários problemas relativos à titulação dos

territórios quilombolas.

Várias políticas foram elaboradas, principalmente a partir de 2003, destinadas

aos remanescentes de quilombos, inclusas em dois grandes programas de trabalho: o

Programa Brasil Quilombola, criado em 2004, e a chamada Agenda Social Quilombola,

que visava organizar a pauta de iniciativas governamentais para o quadriênio de 2008-

2011. Nesses programas as ações são destinadas às áreas da Saúde (Saneamento e

Infraestrutura), Regularização fundiária, Meio Ambiente, Assistência Social e

Educação.

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De acordo com Mota (2011), desde a década de noventa do século XX, com a

presença do artigo 68 (ADCT) na Constituição Federal brasileira, nosso país tem

assistido a uma crescente mobilização de demandas de direitos atreladas a essa nova

identidade, vinculada com o termo quilombo.

De um ponto de vista de uma cosmologia brasileira, associar-se corresponde a participar, e não necessariamente se engajar por problema público, pois muitas vezes, as questões particulares, como no caso dos indivíduos não governamentais, podem prevalecer sobre o interesse do bem comum. (...) As mobilizações cumprem um aspecto significativo no processo de afirmação das identidades e no estabelecimento de fronteiras, bem como são espaços primordiais para a constituição dos novos sujeitos, para a manifestação da pluralidade das ações e de exposição do “eu” em seus múltiplos regimes de engajamento. (MOTA, 2011, p. 244)

Desta forma, os primeiros passos no processo de reestruturação da Associação

foram em direção à eleição da nova diretoria, em fevereiro de 2008, composta pelos

seguintes moradores, conforme consta no quadro abaixo.

QUADRO 14: Diretoria eleita em 2008

Presidente Crodivaldo Pires Rodrigues

Vice-Presidente Sônia Maria Pinheiro

1º Secretário Nilton César Rodrigues Pires

2º Secretário Elza Rodrigues

1º Tesoureiro João Pedro Rodrigues

2º Tesoureiro Paulo Rodrigues e Rodrigues

Conselho Fiscal Simeão Rodrigues

Fabrício Rodrigues (Sr. Chita)

Antônio Bispo Rodrigues

Suplentes do Conselho

Fiscal

Maria Dalva Serejo Pires

Ivanete Oliveira Rodrigues

Pedro Boris Rodrigues

Fonte: Dados da pesquisa

Como podemos observar no quadro acima, o candidato à presidência, eleito, foi

Crodivaldo Pires Rodrigues (Cachopa), filho de Sr. Chita e D. Dalva. No entanto, foi

levantado o argumento de que Cachopa, de acordo com o estatuto que rege a

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Associação, não tinha idade suficiente para ser presidente. Desta forma, a vice-

presidente eleita, D. Sônia Maria Pinheiro, assumiu a presidência. Sobre essa decisão, o

Sr. Chita afirmou:

Era ela (Sônia) e o Cachopa, meu filho. Mas, no caso, ele não tinha idade suficiente pra assumir a presidência. Aí ele foi o eleito, mas a gente passou, tomamos a decisão que ela poderia ser, assumir, por que ele não teria idade suficiente, daí ela assumiu. (Entrevista em 17.07.2011).

Em razão do ocorrido, a nova diretoria da Associação de Moradores do Povoado

Rio Grande, eleita posteriormente, ficou assim constituída:

QUADRO 15: Nova diretoria eleita em 2008

Presidente Sônia Maria Pinheiro

Vice-Presidente Ernildo Ribeiro Costa

Secretário Geral Nilton César Rodrigues Pires

1º Secretário João Pedro Rodrigues

Tesoureiro Elza Rodrigues

2º Tesoureiro Paulo Rodrigues

Conselho Fiscal Simeão Rodrigues

Fabrício Rodrigues (Sr. Chita)

Antônio Bispo Rodrigues

Suplentes do Conselho

Fiscal

Maria Dalva Serejo Pires

Ivanete Oliveira Rodrigues

Aurino Ribeiro Costa

Fonte: Dados da pesquisa

Nas falas dos moradores podemos perceber que a intervenção externa, no caso a

intervenção da UEMA, foi importante não apenas para que os moradores tomassem

conhecimento do direito territorial que possuíam, mas possibilitou um aprendizado no

que se refere às formas oficiais de organização política, reconhecidas por meio do

associativismo. Dona Dalva (43 anos), afirma que:

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Para ativar a associação, Marivânia explicou pra gente nossos direitos, como poderia ser e foi então que a gente teve mais visão daquilo que tava acontecendo. Teve muitas dificuldades, a gente tava por fora desses pagamentos da associação, essas coisas da associação tá em dias, foi muito importante. É muito importante ter sido reconhecido como quilombola e ainda poder levantar a associação. (Entrevista em 08.10.2011)

Entretanto, conforme afirma Sr. Chita, nem todos participaram do processo de

reestruturação:

Não, por que eles tem dificuldade de irem em reuniões, como vocês sabem. Mas teve uma parte da comunidade, acho que não chegou nem bem a 50%. Mas, teve um bom número de pessoas que participaram; que achavam que era importante pra garantir o direito. (Entrevista em 17.07.2011)

No entanto, o Sr. Chita reforçou que a reduzida participação foi uma

característica dos primeiros tempos:

Hoje tem diversas pessoas bem ativas, como essa Ivonete, ela é difícil faltar reunião; Dona Maria, é difícil faltar. Eu aqui, Dona Elza, Sônia, Dona Canuta também, Seu Djalma, Seu Simeão. Por que as vezes tem outros que eles não estão juntos com a gente aqui, mas qualquer coisa que a gente chega, que é preciso, necessário, aí eles fazem, qualquer coisa. Dona Elóia, Branca, filha dela. Tem diversos. Tem essa Benedita também; não é muito de tá em reunião, mas se agente precisar de qualquer coisa pra associação ela ajuda. [...] Foi difícil reestruturar a associação, mas para como a gente começou, nós já estamos bem adiantados. (Entrevista em 17.07.2011)

Dona Elza apontou a importância da associação, considerando que sem

associação, a comunidade ficaria sem vida. Acrescentou que o pouco tempo de

mobilização já possibilitou que os moradores do Rio Grande entendessem a importância

do processo de reconhecimento:

Com várias reuniões que já teve, que explicaram várias coisas sobre a comunidade quilombola, acho que muitos moradores já entenderam mais um pouco; por que de início era todo mundo assim por fora sem saber quase de nada e agora não. (Entrevista em 09.10.2011)

A atuação do grupo de pesquisa e especialmente da professora Marivânia

Furtado, na reestruturação da Associação, foi destacada na ata da reunião de

inauguração da sua sede, realizada aos treze dias do mês de dezembro de dois mil e oito:

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Com a palavra da presidente Sônia Maria Pinheiro falou da grande importância da sede da associação para a comunidade, que até então não tinha sua própria. Agradeceu também a presença de algumas universitárias presentes, que vêm ajudando a associação. Mas a maior ajuda é da senhora e professora da Uema (Universidade Estadual do Maranhão), Marivânia Furtado, que foi e está sendo de grande importância e aproveitável ajuda. Tivemos algumas doações de brinquedos, roupas e alimentos. Por este esforço e trabalho incansável pela nossa associação, nós, os associados, decidimos homenagear a professora Marivânia Furtado como madrinha da nossa associação. (Ata de reunião – 13.12.2008).

Conforme destacado na ata mencionada acima, no dia 13 de dezembro de

200849, um ano depois da presença do grupo de pesquisa no Rio Grande, os moradores

inauguraram a primeira sede fixa da Associação dos Moradores do Povoado Rio Grande

(Ver Figura 21). Anteriormente, como pude perceber nas atas das reuniões, os encontros

eram feitos na escola municipal do Rio Grande ou no barracão de festas.

FIGURA 21: Sede da Associação dos Moradores do Povoado Rio Grande

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

49 Como já mencionei em outro momento deste texto, essa data, 13 de dezembro de 2008, diz respeito à minha primeira ida até o Rio Grande, na ocasião da inauguração da sede da Associação de Moradores do Povoado Rio Grande.

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No mesmo ano em que a associação viveu esse processo de reestruturação e

regularização de sua situação junto a Receita Federal, foi desenvolvido o Projeto de

Extensão, da UEMA, conforme aponta Furtado (2012).

Apresentei um projeto de extensão à Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) no de 2008, visando à capacitação das lideranças para o associativismo em contexto quilombola o que possibilitou a participação de duas bolsistas como integrantes da extensão e mais outras duas como voluntárias. O objetivo do trabalho era levar informações à comunidade das estratégias sociais para a conquista do direito territorial quilombola. Para tanto, fizemos várias reuniões com a comunidade para discutirmos a legislação específica sobre os direitos quilombolas. Comentamos a ressemantização do termo quilombo e sua compreensão na atualidade e também abordamos a importância da Associação de Moradores para a comunidade, no contexto de luta por direitos. Para a realização desse trabalho, considerei necessária a interlocução da Universidade com o Movimento Negro e, para tanto, convidei um representante da Associação das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas do Maranhão (ACONREUQ) para juntos ministrarmos essas oficinas na comunidade do Rio Grande. (FURTADO, 2012, p. 33)

Como podemos perceber na fala de Furtado (2012, p. 33), várias foram as ações

realizadas nesse primeiro ano de mediação. O projeto de extensão mencionado acima

foi coordenado pelo grupo de pesquisa e o pelo programa de extensão PIBEX, por um

período de seis meses, com reuniões mensais.

Juntamente a esse projeto de extensão, foi ministrada, pela ACONERUQ, a

convite do grupo de pesquisa, uma Oficina de Direitos e Associativismo para

Quilombolas e Ação comunitária. O objetivo da oficina era capacitar líderes

comunitários na criação de estratégias para o reconhecimento formal junto à FCP. Para

tanto, contou com as contribuições da ACONERUQ, que disponibilizou um técnico

para realizar trocas de experiências com o Rio Grande e discutir sobre a legislação

específica para as comunidades quilombolas, além de assessorar no processo de

regularização da situação da associação junto aos órgãos fiscais.

Outra ação realizada foi o Seminário de Capacitação de Lideranças

Quilombolas, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR),

entre os dias sete a nove de agosto de 2008, ministrado pela engenheira agronômica,

Sônia Regina Costa Marques.

Alonso (2006) aponta que esses tipos de ações têm sido significativas nos

processos de implementação do artigo 68:

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Um aspecto significativo da gênese dos trabalhos de mobilização realizados no contexto das práticas destinadas à implementação do artigo 68 é a criação de “encontros”, “seminários”, “curso de formação” ou de “capacitação”, além de serem manifestações que contribuem para o reconhecimento destes agentes e de suas práticas. No entanto, nem para todos os agentes estes eventos têm os mesmos efeitos ou significados. Às vezes, para alguns dos agentes, é o início de uma particular experiência e prática de socialização como dirigentes ou lideranças – por exemplo, as pessoas que participam desses contextos como “representantes de comunidades”. Isto envolve a aprendizagem de uma série de conhecimentos considerados necessários para seu reconhecimento e legitimação, não apenas para as pessoas que participam do universo social dos encontros, como também para o grupo que postula representação. (ALONSO, 2006, p. 17)

Em análise do caso da comunidade quilombola Jamary dos Pretos e do seu

processo de reconhecimento, Alonso (2006) destaca que os encontros realizados pelo

PVN foram importantes na experiência vivenciada por suas lideranças, além de um

momento de aprendizado para legitimar suas práticas, visando à garantia do território.

Na participação dos moradores do Rio Grande no processo de luta por

reconhecimento, identifiquei o que denomino de moradores mais atuantes, que são

aqueles que participam das reuniões, representam a comunidade nas relações com

órgãos competentes, auxiliam nos procedimentos para a realização dos projetos

destinados ao povoado, recebem e dão atenção aos pesquisadores, entre outras práticas.

Desta forma, considero que a Associação é conduzida por aqueles que “estão no

movimento” como D. Elza, S. Chita, D. Dalva, D. Sônia, Sulin, D. Eloia, D. Maria, D.

Terezinha, D. Canuta, Sr. Simeão, Sr. Djalma, D. Benedita, D. Ivonete, D. Branca, D.

Gracinete, entre outros.

Conjugado ao pequeno número de participantes nas atividades da associação,

tomando como base o número de moradores da comunidade, outro problema tem sido

apontado pelos moradores: a dificuldade de formar lideranças que permitam a dinâmica

de renovação da diretoria. Essa dificuldade motivou o interesse pela reorganização da

associação, que culminou na mudança do seu estatuto, de modo a permitir a reeleição da

atual diretoria.

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4.1.1. “No lugar da roça, dos trabalhos de casa, dos ensinamentos aos filhos, temos

que dar conta de toda a agenda quilombola”

Como afirmado anteriormente, é perceptível nas práticas organizacionais da

associação a presença de determinados moradores mais atuantes, que vão direcionando

o rumo do processo. No entanto, o processo de organização política e a luta diária para

garantia dos direitos, não se resumem apenas à participação na Associação, dentro da

comunidade. Requer deslocamentos para a sede do município, para São Luís, e para

outros municípios onde são realizados os encontros das comunidades quilombolas.

Implica, também, no envolvimento em outras instâncias de participação, como é

o caso da atual presidente da associação, Dona Sônia, que acumula o cargo de

presidente da associação com o de representante quilombola do Território da

Cidadania do município de Bequimão e representante do Conselho Fiscal de

Assistência Social, sendo vista pelos políticos locais como uma importante liderança.

Outros membros da Associação também absorvem e acionam as categorias que

antes eram “de fora” e agora tonaram-se familiares, no entanto, a maioria dos membros

da Associação considera que ainda não existe nenhum morador preparado para entender

e atender aos trâmites burocráticos que compõem a questão quilombola, nem mesmo

entre os mais atuantes. D. Sônia coloca-se como uma exceção.

De acordo com a análise proposta por Bourdieu (2010, p. 169), o habitus

político supõe uma preparação especial, uma aprendizagem necessária para adquirir o

corpus de saberes específicos. Aqueles que “estão no movimento” são, de certa forma e

ainda que timidamente, os que aderiram ao jogo político e aceitam o contrato tácito

implicado no fato de participar do jogo e reconhecer que vale a pena ser jogado. O

acesso aos cargos requer aprendizado e domínio de códigos, técnicas e relações que lhe

são peculiares.

Desta forma, Dona Sônia tem se configurado como o exemplo de uma liderança

que, aos poucos, vai se especializando na questão quilombola. Aciona categorias

absorvidas nos debates e reuniões em que participa e aprende a encaminhar

reivindicações e fazer articulações. Graças ao capital político adquirido, acessa posições

mais destacadas, “profissionalizando-se” na ação política.

De acordo com a análise de Alonso (2006), o aprendizado adquirido pelas

lideranças na participação de movimentos referentes à temática quilombola, garante à

liderança certa legitimidade entre os pares.

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“Respeitar os companheiros”, “ajudar o outro”, “discutir coletivamente”, “união”, “conhecimento dos direitos e transmissão desses direitos”, “resgate da história” são, entre outras, expressões diretamente relacionadas à participação nestes eventos dos representantes e às qualidades que o definem como “boas lideranças”. Há ainda uma classificação de tópicos que definem “os problemas” em que a liderança atua, como “problemas da terra”, “construção de sede”, “organização local”, “conscientização”, “saúde”, “educação”, “produção comunitária” e “racismo”. Em outros termos, nesses eventos se produz um conjunto de representações que remete a condições sociais, tais como um núcleo de lideranças que passa a ser reconhecido e se relaciona com militantes políticos, pesquisadores, advogados; comunidade mobilizáveis ou passíveis de mobilizar, em arcabouço legal; um “capital cognitivo” acumulado pelas pessoas que se destacam como dirigentes e uma estrutura física, financeira e organizacional que possibilite a manutenção do quadro desses dirigentes e de suas práticas. (ALONSO, 2006, p. 18)

O capital militante acumulado pela atual presidente gerou o debate na

comunidade em torno da mudança do estatuto da associação, com o objetivo de mantê-

la na presidência por mais dois anos, até que alguém seja preparado para lhe substituir.

Dona Elza, membro ativo na associação e representante do Conselho Fiscal da

Secretaria de Cultura de Bequimão, em razão de seu envolvimento com o tambor de

crioula, expressa sua opinião acerca da mudança do estatuto:

Em primeiro lugar, nós temos o direito de mudar o estatuto e inclusive diminuir a diretoria. E em segundo lugar por que o pessoal daqui ninguém quer assumir a presidência. Acho que por que não entendem dos assuntos da associação. Sônia sempre foi inteligente mesmo, e ela já trabalhou muito e já entende e os outros não entendem muito bem. Tem que ser uma pessoa que tenha uns três companheiros em casa para que os outros possam ir pra roça e a pessoa sair, ir fazer algum trabalho lá fora, ir pra uma reunião. Todas as que tem em Pinheiro, Bequimão, Sônia vai. E a gente tem que ir pra poder pegar uma informação, por que se a gente fica só aqui a gente também não sabe o que tá acontecendo lá fora. E aí lá eles fazem uma reunião importante, que dá pra gente saber das coisas, e se agente não vai, aí perde. Fica todo mundo sem entender. Aí quando Sônia vai, ela vem e passa informação na comunidade, aí todo mundo fica sabendo. Eu não posso assumir por que tenho muitos problemas, tenho problema de pressão alta e sou sozinha também, tudo sou eu que faço aqui em casa. E também eu já tenho 60 anos, tem que ser alguém mais jovem, de 40, 35; eu já to muito velha. Eu só quero é ver quando terminar esses outros dois anos se não vai ter que aparecer alguém. Era bom se houvesse uma preparação, capacitação pra presidente, pelo menos umas 2, 3, 5 pessoas preparadas. E se tiver uma formação é muito bom, pra capacitar as pessoas, fica sabendo logo como é que funciona, como é que o presidente tem que agir, o tesoureiro, o Conselho fiscal. (Entrevista em 09.10.2011).

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Acerca da dificuldade de algum morador em candidatar-se para substituí-la, D.

Sônia afirma que:

Eu aprendo muita coisa como presidente. Mas algumas pessoas não querem assumir acho que por medo. Quando fomos fazer a reunião agora algumas pessoas não quiseram por falta de conhecimento em alguns projetos, como o da casa (Minha Casa Minha Vida Rural). Então, por causa desses projetos, que muita gente não se interessa em saber ou tem medo, por que agora pra aprender, por que é um aprendizado cada dia. A pessoa que tá de fora, pra ele pegar a presidência, vai ter que aprender muita coisa que ele não sabe. (Entrevista em 16.07.2011)

Segundo Dona Dalva,

Ela (a atual presidente, Sônia) conhece mais do assunto, inclusive nesse assunto de reuniões. Quando dizem que é pra Sônia estar em tal reunião em São Luís, outra pessoa acha que não vai dar conta do recado e trazer de lá de volta; e como ela já é mais envolvida nessas reuniões, nessas participações, eu acredito que pra outra pessoa assumir o cargo ele vai achar difícil de assumir. Mas no sentido de outras pessoas, sem ser ele, não quererem assumir, acredito que não é só o problema da roça não. Acho que as pessoas se acham incapazes, que não dão conta, se assumir um cargo desse e trazer os recados pra comunidade. Por isso que quando dizem que é pra mudar de presidente, todo mundo fica dizendo que não quer. (Entrevista em 08.10.2011).

A análise de Alonso (2006, p. 18) nos inspira a interpretar parte desse contexto

de valorização do papel da presidente como aquela pessoa que domina os códigos e as

regras do contexto no qual está inserida. Segundo a autora, o mundo social dos eventos,

a participação nestes e o aprendizado adquirido, tornam-se elementos importantes e uma

condição necessária para a liderança se destacar e passar a legitimar seu “projeto” junto

à comunidade, na medida em que é reconhecida com potencial para assumir cargos de

dirigente. Mesmo com esse “reconhecimento” dos pares, enquanto uma liderança que

domina as “regras do jogo”, D. Sônia considera que seu trabalho como militante não é

devidamente reconhecido pela comunidade:

As pessoas da comunidade pensam que vamos para essas reuniões e voltamos com o bolso cheio de dinheiro. Perguntam logo: o que trouxe pra mim? Nada, a não ser o conhecimento e os benefícios para a comunidade. A comunidade às vezes pensa que o benefício é próprio, individual, mas não, é pra comunidade. (Entrevista em 16.07.2011)

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O capital político, como afirma Bourdieu (2010) é uma forma de capital

simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento que os agentes conferem aos

poderes de uma pessoa. A profissionalização da presidente da associação tem sido

marcada pela aquisição de capital militante, que implica na valorização da negritude,

que se desdobra em ações contra o preconceito. Por outro lado, implica na conquista de

uma postura crítica na relação com os órgãos governamentais. No entanto, a simples

aquisição de um novo discurso não é suficiente, caso não tenha o reconhecimento dos

moradores, além daqueles que, juntamente com ela, assumem a militância.

Dona Sônia, além das atividades já citadas, é também auxiliar de serviços gerais

da Escola Municipal Beira Campo – Anexo Rio Grande (1ª a 4ª série). O fato de receber

um salário como funcionária do município, segundo a análise de alguns moradores,

facilita sua atuação na Associação. O salário do município permite que abdique, em

parte, dos serviços de roça, para se dedicar às demandas do cargo de presidente. Isso

fica expresso na fala do Sr. Chita, quando analisa a possibilidade de substituição de D.

Sônia:

Acho que é por que as pessoas não estão bem integradas dentro de um processo de representar a comunidade, mas, a partir do momento que a gente escolher uma pessoa, a gente também não vai escolher qualquer um. Acho que essa pessoa vai ter a capacidade de substituir ela (D. Sônia). Ela sempre trabalhou de roça. Ela tem tempo suficiente pra isso. Só que ela tem o emprego dela, mas não toma o tempo todo dela de fazer outra coisa. (Entrevista em 17.07.2011).

No entanto, segundo a presidente, as novas demandas têm gerado dificuldades

para conciliar a vida militante com as atividades da agricultura e com outros afazeres,

domésticos ou de trabalho. Na mesma direção coloca-se Carlos Alberto, presidente da

associação de Ariquipá, que afirma trabalhar três dias na associação e ainda ter que dar

conta das atividades da roça. Como relata D. Sônia:

No lugar da roça, dos trabalhos de casa, dos ensinamentos aos filhos, temos que dar conta de toda a agenda quilombola. (Entrevista em 16.07.2011)

O Sr. Chita, não só está preocupado em escolher corretamente o sucessor de D.

Sônia, mas dispõe-se a, caso seja necessário, assumir essa função. No seu caso, esse

encargo assumiria maiores dificuldades, pois sua esposa, Dona Dalva, perdeu um dos

membros superiores recentemente, além de que seus filhos foram trabalhar no Rio de

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Janeiro, sendo a única pessoa da casa em condições de assegurar seu sustento, no

trabalho de roça. Segundo ele:

Se for preciso, eu posso assumir sim. Dificulta um pouco mais o meu trabalho. Eu prefiro que tenha uma outra pessoa e eu fique só auxiliando, mostrando a realidade pra eles, que as vezes eles não tem um bom acompanhamento, as vezes a pessoa fica um pouco distante da realidade que a gente tá vivendo hoje. (Entrevista em 17.07.2011)

Dona Dalva, sua esposa, reforça a dificuldade de Sr. Chita em assumir a

presidência da associação:

No caso pra Chita, que os meninos (filhos) saíram (foram trabalhar no Rio de Janeiro) e ficou ele sozinho, pra ele é um pouco difícil justamente por que ele tem os animais pra tomar de conta, e aí pra ele sair e passar dois, três dias fora, pra ele fica mais difícil. Por que ele era um dos indicados pra ser o presidente. E agora eu não posso mais fazer minhas coisas que eu fazia antes e que ajudava muito ele. (D. Dalva perdeu um dos braços recentemente, o que diminuiu ainda mais a produção e ajuda na roça, já que os filhos foram trabalhar fora). (Entrevista em 08.10.2011)

Esses relatos expressam a dificuldade encontrada pelo grupo no processo de

sucessão da presidência da associação de moradores. Visando resolver essa questão, no

dia 30 de abril de 2011, ocorreu uma assembléia geral extraordinária com o propósito de

fazer uma reforma no capítulo II, artigo 7º do Estatuto, que estipula o prazo do mandato

da diretoria executiva em dois anos.

A proposta aprovada foi de alteração do mandato, de dois para quatro anos.

Outra mudança foi feita no número de pessoas que compõem a diretoria, reduzindo de

doze para seis membros, ficando assim formada: um presidente, um secretário geral, um

tesoureiro, e três membros compondo o Conselho Fiscal. No dia 12 de julho de 2011

houve eleição da nova diretoria, que ficou assim constituída:

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QUADRO 16: Diretoria eleita em 2011

Presidente Sônia Maria Pinheiro

Vice-Presidente Ernildo Ribeiro Costa

Secretário Geral Nilton César Rodrigues Pires

Secretário João Pedro Rodrigues

Tesoureiro Elza Rodrigues

2º Tesoureiro Cleudiana Rodrigues Pires

Conselho Fiscal Simeão Rodrigues

Fabrício Rodrigues (Sr. Chita)

Antônio Bispo Rodrigues

Suplentes do Conselho

Fiscal

Maria Dalva Serejo Pires

Ivanete Oliveira Rodrigues

Carina de Jesus Pinheiro

Fonte: Dados da pesquisa

Se fizermos uma análise comparativa entre o Quadro 15 e o Quadro 16,

percebemos as dificuldades expressas pelos moradores em renovar a diretoria. As

mudanças ocorreram apenas para o cargo de 2º Tesoureiro, tendo Paulo Rodrigues sido

substituído por Cleudiana Rodrigues Pires, e de um membro suplente do Conselho

Fiscal, entrando no lugar de Aurino Ribeiro Costa, Carina de Jesus Pinheiro, filha mais

velha da atual presidente, Sônia Maria Pinheiro.

Pude perceber em conversas informais com diversos moradores a dificuldade em

lidar com a lógica burocrática que compõe a questão e a agenda quilombola. Muitos

dos moradores, principalmente os mais velhos, são analfabetos. Nos últimos anos tem se

intensificado o número de jovens que tem migrado para o sudeste e centro-oeste do país

para trabalhar em empreiteiras, no corte da cana, em trabalhos domésticos, entre outros

serviços. A ausência desses filhos prejudica o envolvimento dos pais nas tarefas

relacionadas à associação, pois precisam dedicar mais tempo aos trabalhos na roça.

É importante demarcar no discurso dos moradores uma constância no sentido de

apontar o “aprendizado” absorvido pelos primeiros contatos com a UEMA e com os

agentes que realizaram as capacitações, como fundamental para o processo de

mobilização. Os moradores, ao admitirem o desconhecimento dos trâmites legais para a

interlocução com o poder público, apontam os agentes de mediação como os

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“responsáveis” pelo aprendizado adquirido. Ainda assim, cabe apontar que a mediação

do grupo de pesquisa não tem dado ênfase nem desenvolvido junto aos moradores a

crítica ao exercício da colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) exercida pelo Estado.

Os moradores estão sendo formados e qualificados para atenderem as regras impostas

pelo Estado, que em certo sentido os obriga a assumir identificações e formas de ação

que não seriam de sua livre escolha.

No entanto, ao longo deste curto espaço de tempo, pode-se perceber um

processo de autonomia dos moradores e da associação do Rio Grande em relação aos

agentes externos de mediação, desenvolvendo práticas autônomas de interlocução com

o Estado. Os cursos de capacitação oferecidos não foram tão eficazes no sentido de

formar lideranças e, portanto, dar dinamicidade aos cargos da diretoria da associação.

Mas é possível apontar que o Rio Grande conseguiu se organizar internamente e

estabelecer uma rede de relações com outras grupos vizinhos, que também estão no

pleito pela garantia do direito, ao ponto de ser percebido como uma referência a ser

seguida.

A participação em reuniões e encontros sobre a temática quilombola, a

capacidade de fazer demandas aos órgãos governamentais vão dando sentido ao novo

referencial do qual se apropriaram. De “pretos do Rio Grande” passam a ser

reconhecidos oficialmente como “os quilombolas do Rio Grande”, num movimento que

demarca o poder do Estado de afirmar como e quem são os grupos que poderão pleitear

o título da terra.

A ata da reunião da Associação dos Moradores, do dia 30 de abril de 2011,

simboliza esse deslocamento. No cabeçalho “Ata de reunião extraordinária da

Associação dos Moradores do Povoado Rio Grande”, foi adicionada a categoria

quilombola, ficando assim escrito: “Ata de reunião extraordinária da Associação dos

Moradores Quilombolas do Povoado Rio Grande”, formalizando o processo gradual de

apropriação desta identidade.

4.2 “Tá na pele, tá na história”: quilombola vai deixando de ser “coisa feia”

O interesse em obter o reconhecimento como comunidade quilombola motivou a

construção de argumentos que fundamentassem o pleito, expresso em práticas e

discursos cotidianos que refletem uma articulação identitária com este referencial.

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Seguindo o disposto no Decreto 4887/2003, os moradores passaram a reforçar

elementos que indicassem a tradição cultural do grupo. Voltaremos a reiterar o Art. 2º

deste Decreto, que considera como remanescentes das comunidades dos quilombos:

Os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

É com base em elementos da tradição cultural do Rio Grande que alguns dos

termos do decreto como “trajetória histórica própria”, “relações territoriais específicas”,

“ancestralidade negra” vão sendo ressignificados pelos moradores mais atuantes. Nesse

processo de luta por reconhecimento, passam a reforçar essa identidade, acionando o

termo quilombola e fazendo com que este ganhe sentido na organização interna do

grupo.

De acordo com Little (2005: 23) a conotação política do termo “tradicional”

possui “mais afinidades com o uso recente dado por Sahlins (1997) quando mostra que

as tradições culturais se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de constante

transformação”. Haesbaert (2011) complementa essa análise afirmando que:

Trata-se aqui de um primeiro exemplo de reconfiguração contemporânea das identidades territoriais, não só caracterizados por serem construídas prioritariamente na relação que vai do espaço vivido ao concebido, “a partir de baixo”, dando margem a articulações de resistências, como também por se darem através de uma espécie de resgate (de fato, reconstrução) de antigas práticas, “tradicionais”, de territorialização. (HAESBAERT, 2011: 64. Grifos meus)

Haesbaert (2011: 52), ao discorrer acerca dos dilemas de construção identitário-

territorial e dialogando com diversos autores, partilha do pressuposto de que a

identidade é articulada através da relação entre pertencimento, reconhecimento e

identificação. Dialogando com Cruz (2006), o autor chama atenção para o fato de que “a

constituição desses novos sujeitos que se auto-atribuem a identidade de “comunidades”

ou “povos tradicionais”, se dá na e pelas lutas de afirmação de suas identidades culturais

e políticas pautadas na territorialidade, logo, [...] lutas pela afirmação de suas

identidades territoriais”. (CRUZ, 2006: 81).

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Tomando esta discussão como base, podemos perceber que, no caso do Rio

Grande, ainda que essa a categoria quilombola fosse uma categoria nova, externa e,

portanto, desconhecida pela maioria dos moradores, a constituição desses novos sujeitos

de direito vem se dando a partir da apropriação dessa categoria para afirmar critérios

presentes na identidade do grupo, até então considerados como negativos, tais como a

cor da pele e a história relacionada ao passado da escravidão. Como bem situou Sr.

Chita:

Isso foi um pouco difícil, mas com a explicação que Marivânia deu aqui, o povo teve interesse de ver a melhoria da comunidade, aí eles acabaram aceitando. Por que tá na pele, a gente ver que a comunidade tem tudo pra ser uma comunidade quilombola, tá na história. (Entrevista em 17.07.2001. Grifos meus)

Sulin destaca os conflitos internos relativos ao vínculo com a esta identidade,

afirmando que muitos dos mais novos tiveram dificuldades em assimilar o processo de

reconhecimento e identificação como quilombolas:

O pessoal recebeu bem a notícia de que a gente era quilombola. Só o pessoal mais novo, que já limparam mais de cor, já não querem mais ser negro. Mesmo sabendo que tem descendentes de negros escravos aqui. Só que eu acho que toda área tem esse percentual, dessas pessoas mais novas que não querem ser negras. Isso hoje ficou muito comum, não sei por quê, mas ficou. Eu até brinco com o pessoal dizendo que daqui a cem anos não tem mais negro, por que ninguém mais quer ser negro, tu não vê um negro casar com uma negra, uma negra casar com um negro. Hoje em dia, as meninas mais novas, se elas virem um cabra negro pro lado delas, elas já não querem mais. (Entrevista em 17.07.2011)

D. Sônia também fez referência às dificuldades iniciais no que se refere ao

reconhecimento como quilombola, mencionando, inclusive, o fato de uma família de

evangélicos não ter aceito assumir essa identificação:

Quando a gente começou a discussão com a comunidade, a professora (XXX) não aceitou ser quilombola. Até hoje, o filho dela, (XXXX) acha que isso é uma discriminação. Por que quando falam que o quilombola tem direito, ele acha que aquilo não é direito, ele acha que aquilo é uma discriminação, que tão separando a gente dos outros povos. Eu discordo deles, por que esse é um direito que a gente conseguiu com muita luta. É uma coisa muito importante ser quilombola, é uma luta que depois de muitos anos foi reconhecida, muita luta, muito esforço. Olha, de Alcântara pra cá é uma distância muito grande; a gente vai de carro e acha longe, imagina umas pessoas que fugiam da escravidão, lá de Alcântara pra vir parar aqui, em Rio Grande. A minha

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bisavó veio de Alcântara (Anísia Rodrigues, veio de Castelo – Alcântara). Quer dizer, que só pra andar dentro dos matos de Alcântara pra Bequimão, correndo risco, naquele tempo tinha muitos bichos nas matas, era difícil. É um direito que hoje em dia ela não tá mais aqui com a gente pra ver uma luta que ela começou. (Entrevista em 17.07.2011. Os nomes pessoais referidos foram suprimidos.)

Sr. Chita prossegue discorrendo acerca dessa única família que não aceitou a

autodefinição como quilombola:

Essa família, na verdade, só ele (o agente de saúde) nasceu aqui. A mãe dele não é daqui. E é uma questão, eu acho, devido ao cadastro que ele tem de arrendamento de terra. Então eles pensam que aquilo ali é uma coisa muito alta pra eles. Sem saber que a terra estando titulada no nome da comunidade a segurança deles é maior. Mas eu acho que eles vão acabar chegando pro limite. Por que, agora mesmo ele participa de uma associação em Bequimão de criador de peixe e eles já estão necessitando da associação daqui para colocar dentro do projeto pra receber ração para os peixes. Aí eles vão acabar sabendo que isso aqui é importante pra eles. Importante pra todo mundo. Aos poucos a comunidade vai entendendo e conquistando aqueles que estão mais distantes da realidade. (Entrevista em 17.07.2011).

Ter nascido em Rio Grande, ser descendente das primeiras gerações que ali

viveram, “que vieram de uma história que não tem pra onde esconder”, são critérios que

vão sendo acionados para fortalecer a auto atribuição dos moradores como quilombolas.

Sr. Chita ressalta, ainda, os aspectos que os caracterizariam como quilombolas,

que além da cor da pele, podem ser observados na memória de ocupação da terra através

de várias gerações.

Ser quilombola é se reconhecer, reconhecer a própria coisa que a gente é. Ver na pele da gente, ver no dia a dia da gente e também no passados dos nossos que já foram, das primeiras gerações que moraram aqui. Os avós dos nossos pais, das nossas mães, que a gente ver que é negro, que são negros, e eram pessoas que vieram de uma história que não tem pra onde esconder. Pessoas que vieram de vários lugares e que não ficaram apenas naquela localidade (do Rio dos Fugidos), mas em outros lugares que vemos que aquelas plantações são muito antigas. Ninguém aqui, nem mesmo nossos pais, conheceram quem plantou. Quando cresceram aquelas plantas já estavam aqui. E elas não nascem da natureza, uma mangueira, uma jaqueira, só se tiver alguma coisa lá. E os indícios mostram que lá morou alguém. (Entrevista em 17.07.2011. Grifos meus)

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A história do Rio Grande como comunidade quilombola constrói-se, assim, em

referência ao rio dos Fugidos, local onde os moradores afirmam que se abrigavam

negros fugidos das fazendas (de Bequimão e Alcântara) no período da escravidão:

Eram famílias que eram fugidas e que conseguiram viver lá. Há um tempo atrás que eles faziam roça pra lá assim, a gente vê aqueles cacos de pote feito do próprio barro que eles faziam lá. Com o tempo eles foram vindo chegando mais pra beira da estrada, que nessa época não havia mais esse negócio de tá cercando pra fazer de escravo e aquela vida de se não fazer tem que apanhar. (Entrevista com D. Dalva, em 08.10.2011).

D. Elza faz alusão aos indícios de que naquele local viveram negros fugidos:

No rio dos fugidos tem uma fornalha da época, que diz que ainda tem um vestígio onde os negros ficaram. Eram pessoas de fora que fugiram pra cá. (Entrevista em 09.10.2011)

A elaboração da Ata de Autodefinição é um dos momentos fundamentais no

debate acerca da questão quilombola no Rio Grande. Esse é o principal critério exigido

para a certificação e reconhecimento das comunidades quilombolas. O decreto

4887/2003, em seu § 1º, artigo 2º, define como critério de identificação dos

remanescentes das comunidades dos quilombos que:

A caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

Na Ata da Assembléia Geral Extra Ordinária (Ata de Autodefinição) realizada

em 16 de março de 2008, na sede da associação de moradores, pude perceber os

elementos identitários destacados pelos moradores no momento da autodefinição.

Tendo como objetivo a deliberação da autodefinição e reiterar a nossa trajetória própria como comunidade negra rural quilombola. Registrada em ata no livro na página quarenta e seis dentro das Disposições Constitucionais Transitórias, regulamentada pelo Decreto 4.887 de 20 de novembro de dois mil e três. Enviamos anexo a este documento fotos e DVD como prova de nossas manifestações culturais realizadas sempre nos dias doze e treze de junho nos festejos de Santo Antônio, com participação de todos os membros da comunidade. Prosseguindo as reuniões, a presidente agradeceu aos presentes pelo empenho demonstrado e a necessidade da colaboração de todos em prol de melhores qualidades de vida e preservação da Associação. (Ata de reunião – 16.03.2008. Grifos meus)

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No mesmo sentido, cabe analisarmos a ata de 13 de dezembro de 2008, referente

à festa de inauguração da sede da Associação de Moradores do Povoado Rio Grande,

que contou com a presença do grupo de pesquisa da UEMA, onde outros elementos

identitários também são reforçados:

Uma das alunas nos incentivou a luta pelos nossos direitos por que somos quilombolas. Encerramos nossas comemorações com pipoca e uma linda apresentação das nossa tradição: Tambor de Crioula e Forró de Caixa, estande de venda com artesanato da nossa comunidade, como óleo de coco, brincos de tucum, balaios feitos de palha. (Ata de reunião – 13.12.2008. Grifos meus)

Tomando estas duas atas, por exemplo, podemos perceber que alguns elementos

identitários são enfatizados, como, por exemplo, as manifestações culturais. Esses

elementos configuram o imaginário local de que a comunidade quilombola que luta por

reconhecimento e por legitimidade, deve sustentar “tradições” atreladas ao caráter

histórico que o próprio termo quilombo carrega: um território ocupado por pretos, que

tem tradições que caracterizam sua cultura e que, portanto, dança tambor, toca caixa e

faz festa de santo.

As manifestações culturais realizadas na comunidade têm sido apropriadas como

elementos de mobilização em torno do reconhecimento do grupo. Os moradores têm

investido na manutenção de muitas dessas práticas e na sua transmissão aos mais

jovens, como uma forma de valorização da “tradição cultural” do Rio Grande.

Como vimos na Ata de Autodefinição, a festa de Santo Antônio é destacada

pelos moradores como um elemento importante de suas tradições e ocorre de acordo

com o calendário festivo abaixo:

QUADRO 17: Calendário do Festejo de Santo Antônio

Fonte: Furtado (2009)

Dia 31 de maio De 1 a 11 de junho 12 de junho 13 de junho

Início do festejo Novenário (ladainha)

Primeiro dia da festa, com reggae no final da noite

Encerramento do festejo com a

procissão no final da tarde e reggae a

noite.

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Cada família é responsável por um dia de novena. Nos dias anteriores aos dias

12 e 13, as mulheres da comunidade se reúnem para ornamentar a igreja e o andor da

procissão (Ver Figuras 22 e 23); se reúnem também no galpão ao lado da igreja para

preparar o bolo de tapioca que será distribuído na noite da última novena. No último dia

de festa, o dia de Santo Antônio, é divulgado o nome das pessoas que ficarão

responsáveis pela festa no ano seguinte. A escolha dos nomes é feita pela família

“dona” do santo, mediante o interesse da pessoa que se oferece para organizar.

FIGURA 22: Altar da Festa de Santo Antônio

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2009)

FIGURA 23: Igreja Católica do Rio Grande (Em dia de festa)

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2009)

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Nas atuais festas de Santo Antônio, realizadas no Rio Grande, é importante

destacar a presença de grandes radiolas de reggae (Ver Figuras 24 e 25). A chegada das

festas de radiola50 é percebida como uma dinâmica que compõe o cenário da festas ditas

tradicionais.

FIGURA 24: Radiola de Reggae

(Festa de Santo Antônio - Rio Grande - 2009)

Fonte: Daisy Damasceno (2009)

Dona Dalva relata suas impressões sobre a importância da chegada da radiola de

reggae nas festas no Rio Grande:

O tambor já é de tradição antiga e hoje já são poucas senhoras que dançam tambor. Na época, as maiores festas que tinham eram de tambor e forró de caixa, não era radiola de reggae. Diz que a primeira festa que teve de radiola foi de um toca disco, diz que todo mundo foi, por que tava todo mundo curioso pra ver, pra olhar aquilo que ninguém conhecia, por que antes era só tambor. Agora na escola, o diretor veio nos convidar pra apresentar uma comida típica do lugar e uma dança antiga pra mostrar pra eles em Bequimão. (Entrevista em 08.10.2011)

50 Nas festas de radiola a atração principal é a presença de um DJ que, acompanhado por um “paredão” de caixas de som, toca músicas diversas, principalmente o reggae. As festas vão até o amanhecer do outro dia e atraem pessoas de vários lugares da redondeza.

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FIGURA 25: Festa de Santo Antônio – Rio Grande – 2009

Fonte: Daisy Damasceno (2009)

Existe uma preocupação em manter as antigas práticas que, aos poucos,

começavam a cair no esquecimento. O reforço à “tradição” é buscado, também, em

manifestações culturais como o tambor de crioula51 e o forró de caixa52 (Ver Figuras 26

e 27).

FIGURA 26: Tambor de Crioula

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

51 O Tambor de Crioula é uma dança de matriz afro-brasileira onde, em geral, as mulheres dançam e os homens cantam e tocam percussão de três tambores de tamanhos diferentes, que são esquentados, constantemente, em fogueiras. Sem local específico ou calendário pré-fixado, é praticado, especialmente, em louvor a São Benedito, podendo homenagear diversos outros santos. 52 O forró de caixa é uma espécie de forró (estilo pé de serra) onde, em geral, as mulheres (as caixeiras) tocam caixas (em alguns momentos os homens também tocam) e cantam músicas variadas (presentes na memória do grupo) ao toque das caixas, enquanto os outros participantes dançam o forró.

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FIGURA 27: Forró de Caixa

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

Sr. Chita ressalta a importância de valorizar o tambor de crioula (Ver Figuras 28,

29 e 30):

O tambor é muito importante. Por que quando a gente era pequenininho assim (gesto com a mãos), às vezes, quando noite de lua cheia, a lua tava linda a noite, os mais antigos eles se juntavam aonde tinham o tambor e iam bater o tambor até tarde da noite, brincavam, se divertiam e depois iam pra casa. Então, quer dizer que essa tradição é bom que a gente mantenha ela. Nós vamos deixar para as futuras gerações. (17.07.2011).

D. Elza preocupa-se em formar novas dançarinas para dar continuidade às

“tradições”. Insiste em afirmar: “a comunidade é quilombola, então nós temos que ter

uma tradição”. E acrescenta: “tem que ter a dança pra completar”:

As danças deles estão ficando pouca. E eu dei continuidade com isso para que elas sejam umas futuras dançadeiras, pra quando nós morrer, eu e outras que dançam, aí já tem as mais novas pra continuar. Aqui sempre teve forró de caixa e o tambor. Só que ai tava se acabando, aí eu continuei. Aí eu botei as meninas pra aprender, pra quando as mais velhas (Dona Elza, Isabel, Terezinha...) morrer, elas ficarem, as crianças (Verônica, Adriana...). (Entrevista em 09.10.2011)

Esse tem sido um discurso recorrente entre os militantes de algumas

comunidades quilombolas no Maranhão. Alonso (2006) nos apresenta uma fala

significativa de Magno Cruz, militante do CCN/MA referente à valorização das

manifestações culturais:

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“[A cultura] tem que ser valorizada, a comunidade tem que se rearticular para que volte, para que as crianças gostem do tambor [de crioula], que isso faz parte de nossa cultura, que nós trouxemos da África.” (Entrevista de Magno Cruz, citada por Alonso, 2006, p. 24)

FIGURAS 28 (A e B): Ensaio de tambor de crioula com as crianças

A.

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

B.

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

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Nesse esforço para reproduzir as festas tradicionais, assim como as meninas são

treinadas na dança, os meninos desde cedo são ensinados a tocar tambor.

FIGURA 29: Os mais novos aprendendo a tocar tambor

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

O reforço a essas festas tem se dado, também, através da participação em

festivais, como o que ocorreu em 2011, denominado 1° Festival de Tambor de Crioula

do município. Ocorreu no dia 26 de novembro de 2011, na praça central do município

de Bequimão. O festival foi promovido pela prefeitura do município em parceria com os

povoados e comunidades quilombolas de Bequimão. Cada Grupo possuía 00h30min

para se apresentar. Ao final de cada apresentação havia uma rodada de “forró de caixa”.

Primeiramente, o Festival tinha a intenção de ser um torneio que daria aos

vencedores prêmios em dinheiro. Contudo, a proposta foi modificada e o evento teve

por objetivo principal a integração entre gestores e comunidades quilombolas e, por

conseguinte, a promoção “do desenvolvimento da cultura e o resgate dos movimentos

culturais remanescentes de quilombos de Bequimão”, de acordo com as palavras dos

organizadores. Ficou claro, em muitas falas dos gestores presentes (prefeito, vice-

prefeito e primeira dama) que existia o interesse em tornar o festival de tambor de

crioula um evento oficial do município.

Além da valorização das manifestações culturais, Sr Chita destaca a importância

de levar a discussão sobre o reconhecimento do Rio Grande como comunidade

quilombola para o contexto da Escola:

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É bom que tenha discussões na escola para que as crianças já vai se entendendo dentro da escola, que eles estão numa escola de uma comunidade quilombola. Então, eles fazem parte de um grupo de quilombolas, de famílias quilombolas. E ali, quando eles crescer, eles já vão se educando naquilo. Tem que mostrar vários exemplos pra eles; diferença da merenda, olha a merenda de vocês está sendo diferenciada por que a escola é de comunidade quilombola; mostrar os benefícios que traz do governo federal. Ainda não tem essas discussões na escola. (Entrevista em 17.07.2011)

No entanto, levar a discussão para a escola não tem sido considerado suficiente.

Alguns moradores entendem que os professores precisam estar atentos aos atos

preconceituosos praticados pelos alunos e reprimi-los por isso. Dona Sônia, em

conversa informal, questionou o posicionamento dos professores da Escola Municipal

Beira Campo, Anexo Rio Grande (ver Figura 30), por não orientarem alunos que

expressam atitudes preconceituosas em relação às crianças de “pele mais escura”,

apelidadas de “torradinho”. Ela afirma que repreende os alunos, destacando que “isso é

preconceito, que racismo é crime”. Critica, ainda, o não cumprimento da Lei

10.639/2003, referente à implementação do estudo da História da África e da Cultura

Afro-Brasileira nas escolas. E afirma que: “a história é essa que a gente conhece né?!

Nada falando de escravidão, nem da importância dos negros.”

FIGURA 30: Escola Municipal Beira Campo, Anexo Rio Grande

Fonte: Daisy Damasceno Araújo (2011)

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No ano de 2009, Rio Grande recebeu a Certidão de Autodefinição emitida pela

órgão do Ministério da Cultura, conforme consta em figura abaixo.

FIGURA 31: Certidão de Autodefinição, emitida pela Fundação Cultural Palmares

Fonte: Documento pertencente à Associação de Moradores do Rio Grande (2009)

Após o reconhecimento formal do Rio Grande junto a FCP, outros povoados

passaram a buscar no Rio Grande informações sobre os trâmites do processo de

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reconhecimento. Os moradores do Rio Grande, que segundo a fala de muitos deles

sempre eram designados pelos vizinhos como “os pretos do Rio Grande”, passaram a

ser mais valorizados pelo capital simbólico que acumularam. De acordo com Sr. Chita,

após o reconhecimento pela FCP, esse discurso mudou um pouco:

Às vezes, as outras comunidades vêem o Rio Grande em um nível um pouco diferente da deles, no caso. Eles vêem a gente e dizem: “Lá vai os pretos do Rio Grande”. Vila Nova, por exemplo, o pessoal diz, lá vai os cabocos da Vila Nova. Eles vêem diferente né?! Outras comunidades já procuram a gente pra gente repassar alguma coisa pra eles do que é ser quilombola, como eles podem se reconhecer como quilombola. Aí eles vêm perguntar por que eles acham que tem vantagem. Pra muitos o Rio Grande já é referência. E até mesmo esse negócio acho que eles já deixaram mais um pouco de tá com esse negócio de “pretos do rio Grande”, agora nós somos quilombolas. (Entrevista em 17.07.2011).

Dona Elza reforça essa mudança de referencial:

Ramal de Quindiua veio aqui, ano passado, no dia 11, tinha uma pessoa de lá que tava querendo informação sobre como funciona as comunidades quilombolas, como funciona o projeto (referindo-se ao Projeto Minha Casa Minha Vida Rural/Quilombolas). Antes, eu acho que tu já viu Agnaldo dizer, o pessoal da redondeza dizia: “olha os pretos do Rio Grande tão botando fogueira”, no tempo da festa aqui, eram “os pretos do Rio Grande” que as outras comunidades diziam. (Entrevista em 09.10.2011).

A procura do Rio Grande pelos povoados da redondeza, que pretendem solicitar

reconhecimento formal junto à FCP, coloca o Rio Grande no lugar de “fala autorizada”

pelos outros grupos, fruto do capital simbólico que seus moradores têm acumulado

nessa curta trajetória assumindo a identidade de quilombolas. Aos poucos, parte de seus

moradores passam a ter orgulho de assumir essa identificação e sentem-se a vontade

para “manipular” essa identidade, como uma espécie de moeda no mercado das

garantias que essa identificação pode auferir, sustentada pelo argumento jurídico da

ancianidade, legitimada pela ocupação secular, por histórias relacionadas aos seus

antepassados e por seus modos de vida. Parafraseando a letra da música cantada pelo

tambor de crioula do Ramal de Quindiua, convém afirmar: “o quilombo tava caído,

agora que avançou”.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim! Nesse percurso pelas Ciências Sociais, desde uma graduação inacabada

até a aprovação no Mestrado, devo reconhecer a dificuldade que tenho, enquanto

historiadora, de fazer da história um suporte para fazer sociologia, de analisar

sociologicamente meu objeto de pesquisa. “Contar histórias por si só, não basta!”

Nossa! Como foi (e tem sido) difícil esse exercício.

Esse é o momento em que mais uma etapa da minha inserção neste amplo

universo de estudo chega ao fim. Essa dissertação de Mestrado, iniciada oficialmente

em 2011, tem seu embrião em fins do ano de 2008, quando realizei minha primeira

viagem ao Rio Grande, para a realização do trabalho monográfico. Pouco mais de três

anos e eu diria que, mesmo depois de tudo o que foi dito sobre o que me propus a

pesquisar, parece que muito ainda se tem a dizer. Neste percurso, não há como negar

meu apego emocional a essa pesquisa, fruto do meu carinho e respeito pelo Rio Grande

e por seus “filhos”.

Em linhas gerais, a construção deste trabalho teve como foco a análise acerca do

processo de organização e mobilização dos moradores do Rio Grande na tentativa de

obter o reconhecimento e a certificação como comunidade quilombola junto à FCP.

Esse processo de luta por reconhecimento tomou como base os critérios que

caracterizam os remanescentes das comunidades dos quilombos, presentes no decreto

presidencial 4887/2003.

Dialogando com o dispositivo legal e na tentativa de se legitimarem, alguns de

seus moradores, assessorados pela orientação do grupo de pesquisa da UEMA,

passaram a construir e valorizar elementos diversos que os autorizam a acionar a

identidade de quilombolas. A mediação do grupo de pesquisa da UEMA é apontada

pelos moradores como o ponto de partida para o início das mobilizações na luta por

reconhecimento.

As mobilizações anteriores à certificação da FCP se configuraram no sentido de

atender os requisitos presentes no decreto que regulamenta e certifica os remanescentes

das comunidades dos quilombos, onde os moradores do Rio Grande teriam que

construir elementos que comprovassem “a trajetória histórica própria” e a “presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Os

elementos eleitos para comprovar esses requisitos iriam compor a “Carta” que seria

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enviada à FCP juntamente com a ata de autodefinição como remanescentes de

quilombos.

Foi com essa finalidade que iniciei as conversas com os moradores sobre a

história comum do Rio Grande e como esta estava relacionada ao passado da

escravidão. Nesse sentido, os “filhos” do Rio Grande passaram a relatar as diversas

histórias sobre a ocupação do lugar. O que era importante lembrar? As histórias do Rio

Grande, presentes apenas em suas memórias, nunca escritas e pouco contadas, passavam

a ter nova importância.

Nas conversas com esses moradores sobre como e quando havia se dado a

ocupação do Rio Grande e qual a relação que os mais velhos tinham com o tempo da

escravidão, pude perceber que as múltiplas histórias e versões sobre o passado da

escravidão estavam “escondidas” nos porões da memória dos mais velhos. E vieram à

tona aos poucos, nas falas dos moradores indicados como detentores da linguagem

autorizada, os conhecedores da história do lugar.

Esta identidade, antes silenciada, possuía para alguns moradores um peso

simbólico muito forte no sentido de que ser “preto fugido” era um estigma negativo, que

fez com que silenciassem parte de suas histórias relacionadas ao passado da escravidão.

No início, o conceito naturalizado de quilombo ainda era muito presente para eles e,

alguns moradores, recusavam qualquer articulação a esse referencial.

As discussões proposta por autores como O’Dwyer (2002, 2005, 2010) e

Almeida (1983, 1996, 2002, 2003, 2006) me permitiram ir além do que denominei de

conceito clássico de quilombo, propondo um novo olhar, para além do quilombo

histórico, aquele construído de forma essencializada e homogênea pela historiografia

tradicional. De acordo com Andrade (2009: 2) com o avanço das lutas por

reconhecimento, esses grupos passaram a se auto-denominar como quilombolas e não

como remanescentes das comunidades dos quilombos, visando não reforçar o caráter de

restos de uma situação anterior (um possível quilombo), enfatizando sua existência no

presente.

Muitas comunidades quilombolas, na luta por reconhecimento e titulação da

terra, têm sido acusadas de “falsificação histórica” em relação ao imaginário clássico

que compõe as interpretações acerca do significado de quilombo. Os moradores da Ilha

da Marambaia, por exemplo, no litoral sul do estado do Rio de Janeiro, tiveram seu

reconhecimento como comunidade quilombola questionado pela Marinha de Guerra,

com quem dividem o território. O primeiro regime de justificação dos defensores da

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Marinha, ancorado na ideia de falsidade histórica, alegou que por ser a antiga fazenda

da região localizada em uma ilha, seria impossível a mobilidade e resistência dos

escravos, que seriam facilmente capturados ao tentarem fugir. O termo quilombo,

apropriado pelos juristas favoráveis à Marinha, foi aquele do sentido clássico, o

quilombo histórico, folclórico, relacionado à ideia de fuga.

No entanto, alguns indícios apontavam o Rio Grande, também, como um

“quilombo de fato”, aquele da época da escravidão. Alguns dos elementos usados pelos

moradores para legitimar essa pertença étnica reafirmavam o vínculo com o passado da

escravidão: o Rio Grande, situado nas proximidades de engenhos e fazendas de cana de

açúcar no Maranhão Colonial e Imperial, alimentados pela mão-de-obra escrava,

possuía um rio por nome de Rio dos Fugidos. Mesmo sendo um elemento silenciado, os

moradores passaram a afirmar essas relações entre passado e presente e a assumir

vínculos históricos e identitários com o tempo da escravidão.

Agora, de forma ressignificada, suas histórias foram sendo construídas e

ganhavam sentido no processo de luta por reconhecimento. A memória sobre a

escravidão marcava o pertencimento histórico vinculado à ancestralidade. As

discussões de que o Rio Grande era um possível quilombo histórico e um quilombo

contemporâneo ganhava força em cada registro elaborado com base na história oral. As

pesquisas documentais ora se cruzavam, ora distorciam o que ficou na memória. Cada

informante expunha à sua maneira o que a memória havia selecionado. No entanto, nem

todos encaravam este pertencimento da mesma forma, havia quem o recusasse. Ao

longo de nossas conversas, alguns destes iam aos poucos demarcando a importância de

“assumir-se”. A causa parecia ganhar forma e sentido.

Essa histórias e memórias foram ganhando, pouco a pouco, importância na

medida que os remetia a uma demanda de reconhecimento público, adquirindo uma

legitimidade diante dos organismos estatais e, posteriormente, diante de outros

povoados da redondeza que passaram a legitimá-los enquanto sujeitos de direito e

detentores de um saber autorizado sobre a questão quilombola.

Reconhecendo-se como quilombolas, as dinâmicas identitárias atuais foram

mesclando elementos históricos e atuais, num processo de valorização daquilo que,

segundo os moradores, era significativo nesse momento. O apego interessado a esta

identidade visava, além do reconhecimento formal junto a FCP, garantir lucros

concretos: a posse da terra e os projetos e políticas públicas destinadas a esses grupos,

como, por exemplo, aquelas que compõem o Programa Brasil Quilombola e a Agenda

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Quilombola. Mas este apego interessado vai além disso: envolve reconhecimento e

legitimidade.

Com base no que diz o decreto presidencial, que “as comunidades serão

representadas por suas associações legalmente constituídas”, o grupo tem se organizado

e lutado para manter a associação de moradores e suas manifestações culturais.

Reestruturar a associação, no primeiro momento, era importante para o reconhecimento

e certidão junto a FCP. Mantê-la tem sido um esforço diário, principalmente no que diz

respeito à dinamicidade de lideranças que compõem sua diretoria.

Essas mobilizações internas têm se caracterizado, também, pela organização do

grupo para reforçar manifestações culturais que acreditam legitimar o novo referencial

ao qual se vinculam. O tambor de crioula e o forró de caixa, que com as constantes

festas de radiola, estavam sendo esquecidas, passam a ser valorizadas e ensinadas aos

mais novos. “Casa de pai, escola de filho”, esse discurso da atual presidente da

associação, Sônia Maria, demonstra a preocupação dos mais velhos em transmitir aos

mais novos as manifestações culturais que consideram a “tradição” do Rio Grande.

Desta forma, muitos de seus moradores têm participado da luta e assumido a

identificação como quilombolas, numa dinâmica que aos poucos vai ganhando força e

fazendo sentido em suas lutas constantes para garantir o território que ocupam

secularmente. A titulação de suas terras, no entanto, esbarra na lentidão no processo de

regularização das terras pertencentes a esses grupos, situação vivenciada pela grande

maioria das comunidades quilombolas no país

A demora do governo federal em efetivar a titulação destas terras tem gerado

mobilizações coletivas desses grupos que, constantemente, têm pressionado os

governantes e realizado ocupações de órgãos federais, como a sede do INCRA no

Maranhão. Em diversas ocasiões, no ano de 2011, algumas comunidades quilombolas

reuniram-se e trocaram experiências de luta, assim como compartilharam momentos de

expressão de suas manifestações culturais.

Esses elementos são importantes para entendermos a simbologia que expressam

na construção da territorialidade dos moradores do Rio Grande enquanto sujeitos de

direitos. Esse grupo passou a assumir uma identidade política e reivindicar o título

coletivo de suas terras, apoiados no argumento jurídico da ancianidade, legitimada pela

ocupação secular (e efetiva) do território. Esse ato político de autodefinição é reforçado

pela sua etnicidade. Baseados no processo de formação e povoamento “os pretos do Rio

Grande” têm construído sua identificação como quilombolas acionando sinais

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diacríticos como “a cor da pele”, por exemplo, e enfatizando a história marcada por

“pretos fugidos”, agora quilombolas, reconhecidos oficialmente pelo Estado Brasileiro.

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