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47 1 O ADVENTO DA INSURGÊNCIA EM ANGOLA Os primeiros sinais notórios de protesto anticolonialista em Angola deram-se no final da década de 1940, quando alguns mes- tiços da grande urbe de Luanda começaram a incentivar a popu- lação angolana a lutar pela sua autodeterminação. Nessa mesma altura deu-se a fundação do Partido Comunista Angolano, com o alegado apoio doutrinal e financeiro do Partido Comunista Portu- guês, que criou imediatamente uma forte postura anticolonialista e uma organização celular a operar na base da clandestinidade. Mais tarde, em 1960, ocorreram algumas demonstrações e protestos em Luanda, e também noutras partes do país, alegadamente motivadas pela escassez de emprego para os 4,7 milhões de habitantes ango- lanos não brancos. O movimento migratório de portugueses para Angola começa a ter alguma expressão a partir de 1482, atingindo um valor de três mil registados em 1870. Após a Segunda Guerra Mundial, a popu- lação branca aumentou de forma considerável para valores na or- dem dos 79 000 em 1950, e dos 173 000 em 1960. O aumento de colonos portugueses durante a década de 50 (o que não foi mais do que uma estratégia de Salazar para povoar as colónias e conse- quentemente reduzir o fardo insustentável dos desempregados na Metrópole) teve um impacto tremendo no mercado de trabalho em

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O a d v e n t O d a i n s u r g ê n c i a e m a n g O l a

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O A D V E N T O D A I N S U R G Ê N C I A E M A N G O L A

Os primeiros sinais notórios de protesto anticolonialista em Angola deram-se no final da década de 1940, quando alguns mes-tiços da grande urbe de Luanda começaram a incentivar a popu-lação angolana a lutar pela sua autodeterminação. Nessa mesma altura deu-se a fundação do Partido Comunista Angolano, com o alegado apoio doutrinal e financeiro do Partido Comunista Portu-guês, que criou imediatamente uma forte postura anticolonialista e uma organização celular a operar na base da clandestinidade. Mais tarde, em 1960, ocorreram algumas demonstrações e protestos em Luanda, e também noutras partes do país, alegadamente motivadas pela escassez de emprego para os 4,7 milhões de habitantes ango-lanos não brancos.

O movimento migratório de portugueses para Angola começa a ter alguma expressão a partir de 1482, atingindo um valor de três mil registados em 1870. Após a Segunda Guerra Mundial, a popu-lação branca aumentou de forma considerável para valores na or-dem dos 79 000 em 1950, e dos 173 000 em 1960. O aumento de colonos portugueses durante a década de 50 (o que não foi mais do que uma estratégia de Salazar para povoar as colónias e conse-quentemente reduzir o fardo insustentável dos desempregados na Metrópole) teve um impacto tremendo no mercado de trabalho em

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Angola. Os mestiços, que possuíam o maior nível de literacia na co-munidade africana (pelo facto de serem considerados assimilados), acabaram relegados para posições mais baixas assim que os portu-gueses começaram a ocupar os postos hierárquicos mais elevados em todos os segmentos do mercado laboral angolano. A frustração dos mestiços acabou por instigar protestos e demonstrações den-tro dos círculos urbanos, o que poderá ter sido um dos elementos promotores da criação do MPLA.

Em termos políticos, operavam na clandestinidade, fundamen-talmente, três partidos com expressão, no meio de outros mais pe-quenos e sem qualquer capacidade mobilizadora. Eram eles a União dos Povos de Angola (UPA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência To-tal de Angola (UNITA).

A UPA uniu-se mais tarde a um pequeno partido denominado ALIAZO e adotou, em 1962, o nome de FNLA, formando quase de imediato um governo provisório no exílio, o denominado GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio). O seu líder, Hol-den Roberto, fundador em 1954 da União dos Povos do Norte de Angola (UPNA), antecessor da UPA, nasceu em 1923 na localidade de M’Banza Kongo. Com apenas dois anos, foi viver com a família para Leopoldville (agora Kinshasa), só regressando a Angola em 1951. Durante oito anos foi funcionário do Ministério das Finan-ças da Bélgica em Stanleyville (atualmente Kisangani), na Repúbli-ca Democrática do Congo.

Fruto das boas ligações externas dos seus membros, mormen-te com os Estados Unidos da América, o GRAE acabou por ser reconhecido pela Organização de Unidade Africana (OUA), ante-cessora da atual União Africana (UA), no ano de 1963. O GRAE era essencialmente uma arma diplomática que, por um lado, con-dicionava fortemente a atuação do MPLA e, por outro, servia de porta-voz de Angola perante as autoridades congolesas. Em junho

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de 1962, o GRAE recebeu os seus primeiros 24 recrutas angolanos, treinados nos campos dos argelinos da Frente de Libertação Na-cional (FLN), localizados na Tunísia, o que representou o início da profissionalização da luta insurgente. A sua base de recrutamento era predominantemente a etnia bacongo, mas, a partir do verão de 1963 até 1964-65, o GRAE expandiu a atividade de recrutamento a refugiados e trabalhadores angolanos no Catanga18.

A queda do primeiro-ministro congolês Moisés Tschombé e a subida ao poder do general Sese Seko Mobutu favoreceram ainda mais o GRAE. O general Mobutu apoiava Holden Roberto, mas moveu todos os esforços necessários no sentido de congregar os dois partidos, FNLA e MPLA, em torno de uma estratégia comum. Essa sua ação acabou por não ter resultados práticos. Holden Ro-berto e Agostinho Neto nunca chegaram a acordo em termos de concertação de esforços para derrubar os portugueses.

Após a queda de Tschombé, a PIDE/DGS deu início ao golpe denominado «Operação Tschombé», para incitar a sucessão do Ca-tanga e, consequentemente, derrubar Mobutu do poder. Tal como reporta um responsável da PIDE/DGS ao seu diretor-geral em Lisboa, as «operações deste tipo têm de ser prudentemente deter-minadas até aos mais pequenos pormenores, para que nada falhe, nem deixe vestígios»19. Este plano secreto acabou por concretizar--se numa tentativa de revolta contra Mobutu no dia 23 de julho de 1966, operação que tinha prevista a participação de diversos mer-cenários de múltiplas origens, conforme descreve o mesmo relató-rio da PIDE/DGS.

18 Província situada no canto sudeste da República Democrática do Congo, com uma extensão de 518 000 quilómetros quadrados e recursos naturais abundantes. Após o Con-go obter a independência da Bélgica a 30 de junho de 1960, o Catanga proclamou a sua independência do novo país, a 11 de julho de 1960.

19 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 7477-CI (2), Comando de Operações Especiais, pasta 5, «Operação BB».

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Faziam parte do complot cerca de 300 sul-africanos liderados pelo coronel Jean Peeters, 200 franceses comandados pelo coronel Bod Denard, e cerca de 60 espanhóis. Na sequência desta operação, Mobutu corta relações com Portugal e, em simultâneo, apresenta queixa nas Nações Unidas pelo facto de Tschombé utilizar merce-nários, a partir de Angola, para atentar contra um Estado soberano. Como resultado, os congoleses que se refugiaram em Angola para combater Mobutu, os denominados «Fiéis» catangueses, seriam no futuro de extrema utilidade para ações de sabotagem na República Democrática do Congo, em retaliação pelo apoio do seu governo à UPA/FNLA. Além da desestabilização no vizinho Congo, os «Fiéis» poderiam participar em operações militares dentro e fora de An-gola, que foi o que sucedeu com resultados meritórios20. Estima-se que os «Fiéis» contassem com 16 batalhões. Eram particularmente temidos pelos guerrilheiros do MPLA, devido às suas perícias mi-litares e ao seu conhecimento do terreno e das populações.

Outro partido fundamental era o MPLA, chefiado por Agosti-nho Neto, após abandono voluntário de Mário Andrade. Nascido em Angola a 17 de setembro de 1922, Agostinho Neto licenciou-se em Medicina em Lisboa, tendo dirigido as atividades políticas e de guerrilha entre 1961 e 1974, a partir de Argel, na Argélia, e Brazza-ville, na República do Congo. Agostinho Neto teve de lidar com graves conflitos internos no seio do MPLA, mormente no início dos anos 70, com o aparecimento de duas tendências contrárias quanto à direção do movimento: a revolta ativa, constituída essencialmen-te pela camada intelectual, e a revolta do Leste, encabeçada pelos guerrilheiros provenientes dessa região. A autoridade de Agostinho Neto acabou por ser reafirmada, mas os desentendimentos conti-nuaram durante os tempos. A complexa dinâmica interna do movi-

20 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 7477-CI (2), Comando de Operações Especiais, pasta 33, fl. 18.

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mento, a par da permanente interveniência de atores externos, seria uma constante numa equação com múltiplas variáveis.

Por último, o terceiro partido que recorreu à luta armada con-tra os portugueses foi a UNITA. A UNITA foi fundada em mar-ço de 1966, no distrito de Moxico, por Jonas Malheiro Savimbi, dissidente da UPA/FNLA, depois de ter sido o braço-direito de Holden Roberto na pasta dos Negócios Estrangeiros. A demis-são de Savimbi aconteceu durante uma conferência da OUA no Cairo, a 16 de julho de 1964, por discordâncias com a liderança da FNLA. Savimbi era de origem ovimbundo, natural da zona de Huambo, e professava a religião protestante. Perante a persegui-ção de que estava a ser alvo por parte da PIDE/DGS, Savimbi decide refugiar-se na Suíça, onde completa os seus estudos secun-dários e inicia os estudos em Ciências Sociais e Políticas na Uni-versidade de Lausanne.

Antes de aderir à UPA, Jonas Savimbi terá tido contacto com o MPLA. Após a rutura com a UPA/FNLA, Savimbi terá voltado a tentar aderir ao MPLA, nos finais de 1964 e inícios de 1965, inten-ção que não mereceu aceitação pelo partido de Agostinho Neto. Savimbi decide então estabelecer-se por conta própria conjunta-mente com alguns ex-militantes do GRAE, de origem ovimbundo, e recrutas angolanos a operar no Catanga e na Zâmbia, conduzin-do operações de guerrilha a partir do Leste angolano. Os primei-ros guerrilheiros da UNITA foram submetidos a ações de treino na China, após o que montaram operações de emboscadas às tro-pas portuguesas fazendo uso das táticas e procedimentos aprendi-dos. O acolhimento que tiveram por parte do povo não foi muito entusiástico, um pouco à imagem do apoio dado aos militantes da FNLA, pois a população já tinha sido aliciada pelo MPLA muito antes da chegada dos homens da UNITA.

Em 1960, a população de Angola era constituída por 53 392 mestiços, cerca de 30 089 dos quais possuíam o estatuto de assi-

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milados (o último número registado no Censos de 1950), e perto de 4,7 milhões de negros. Essa população negra era composta por perto de cem tribos de três grupos etnolinguísticos preeminentes: os bacongos perfaziam cerca de 13 por cento da população, po-voavam, predominantemente, o Norte de Angola e eram a base de recrutamento da FNLA; os quimbundos, cerca de 26 por cento da população, habitavam especialmente a parte ocidental-central do país e constituíam-se como a base de apoio do MPLA; e, final-mente, os ovimbundos viviam nos planaltos do sul-centro de An-gola, totalizavam 33 por cento da população e eram o universo de recrutamento da UNITA.

No começo da guerra em Angola, a oposição insurgente centra-va-se em dois movimentos nacionalistas: a FNLA, com um número estimado de 6200 insurgentes, sediados maioritariamente na Repú-blica Democrática do Congo; e o MPLA, com aproximadamente 4700 insurgentes acantonados em Angola e na vizinha Zâmbia. Mais tarde, em 1966, a UNITA formou-se com um contingente de cer-ca de 500 revoltosos e movimentou-se para o coração de Angola, para daí operacionalizar as suas ações de guerrilha. As estimativas dos números de insurgentes dos três movimentos independentistas provêm de diferentes fontes e pecam por não coincidirem. Os nú-meros variam entre os 7600 insurgentes, valor estimado pela PIDE/ /DGS em 197321 e que poderá estar exageradamente deflaciona-do, e os 11 400 (1961) e 22 000 (1974)22 insurgentes avançados por diversas fontes com acesso direto aos movimentos independentis-tas. Estas apreciáveis diferenças poderão ser explicadas pelas ope-rações psicológicas da PIDE/DGS, que considerava conveniente minimizar e subestimar o número total de insurgentes. Já do lado dos insurgentes, era importante inflacionar o número dos contin-

21 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 110.00.30, MPLA, pasta 25, fls. 100 ss.22 Neil Bruce, Portugal’s African Wars, Londres, The Institute for the Study of Con-

flict, 1973, p. 19.

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gentes, para incentivar ao recrutamento, motivar os guerrilheiros e condicionar a atuação da população.

A guerra em Angola iniciou-se a 15 de março de 1961, imedia-tamente depois de cerca de 5000 insurgentes pobremente armados terem atravessado a fronteira norte do país e começado a espalhar o terror nos distritos do Zaire e Uíge, Cassanje, Nabuangongo, Qui-cabo e Quitexe. Essa incursão sangrenta foi conduzida pelo grupo nacionalista FNLA, composto maioritariamente por bacongos, e de imediato apelidada de ato de terrorismo contra Portugal. O ata-que demonstrou um carácter distintivamente tribal. Foram alegada-mente mortos mais negros do grupo étnico ovimbundo, mormente do reino do Bailundo, do que brancos portugueses23. Da chacina resultou a morte de cerca de 1200 brancos e 6000 negros e mesti-ços, a maior parte mortos à catanada. A 13 de abril de 1961, houve alguns ataques contra portugueses a partir de Brazzaville, tal como o violento assalto contra Buco-Zau, uma localidade situada na pro-víncia de Cabinda. Não foi levantado muito alarido, pois a inten-ção do regime era abafar o ataque e assim minimizar e desprezar os instigadores. A publicidade poderia impulsionar o sentimento de revolta contra a presença dos portugueses em Angola.

Existiam, então, fortes indicadores de um ataque iminente contra os interesses portugueses em Angola. No entanto, desconhece-se se foram simplesmente ignorados ou se a intenção dos movimentos insurgentes foi subestimada. Num telegrama secreto submetido, a 16 de fevereiro de 1961, pelo Ministério do Ultramar ao governo--geral de Angola, sublinha-se a existência de informações de que, em novembro de 1960, um «grupo afro-asiático [na] ONU, em reunião secreta, decidira provocar incidentes [no] Ultramar por-tuguês que dessem pretexto [a uma] discussão perante [a] reunião

23 Bruno Oliveira Santos, Histórias Secretas da PIDE/DGS, Lisboa, Nova Arrancada, 2000, pp. 89-92.

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[do] Conselho de Segurança e Assembleia-Geral que [se reuniria] em março». O mesmo telegrama adianta que era de «prever que se [promovessem] novos incidentes quer em Angola quer em outras Províncias especialmente durante [o] período [em que decorre] a reunião da ONU». E conclui que devem «ser tomadas rigorosas medidas de prevenção»24.

O Ministério da Defesa transmitiu, então, um alegado telegrama muito urgente e classificado como «Muito Secreto» para as autorida-des máximas em Angola, com o intuito de as alertar para a iminência de um ataque no Norte do país, a 15 de março de 1961, conforme indicadores de elevada credibilidade recebidos de fontes estrangei-ras25. Não se sabe porque é que as autoridades de Angola não rea-giram ao aviso. Se o telegrama foi recebido e ninguém tomou uma ação preventiva para evitar a chacina que acabou por ocorrer, esta-remos na presença de um ato hediondo enquadrável como crime. A ter acontecido, será um exemplo inequívoco de falha de informações, pois os detentores das informações não insistiram com os deciso-res. Alguns decisores costumam sublinhar que, se não tomaram as medidas adequadas após receber informações, é porque os serviços secretos não «gritaram» suficientemente alto para os alertar de um determinado problema ou perigo. Assim, nunca existem falhas que possam ser imputadas aos decisores políticos, mas antes falhas dos serviços de informações em não avaliar convenientemente a situa-ção, ou não assegurar que os decisores tomem dela conhecimento.

Antes do início da revolta de 1961, havia alguns partidos ou movimentos clandestinos ativos e todos eles eram alvo de aperta-da vigilância da PIDE/DGS. Fragilidades organizacionais, recur-sos financeiros, recrutamento e uma clara falta de liderança ativa eram as principais dificuldades que os movimentos nacionalistas

24 AHM, 2.ª Div., 2.ª Sec., Cx. 181, n.º 1.25 David Martelo, A Imprevidência Estratégica de Salazar: Timor (1941) – Angola (1961),

Lisboa, Sílabo, 2015, p. 156.

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enfrentavam, tornando-os, em consequência, mal preparados para qualquer luta armada ou condução de política ativa. Havia nesses movimentos de libertação angolanos crónicos elementos fraturan-tes, de resto evidentes durante toda a guerra contra os portugueses. Além das diferenças étnicas, havia rivalidades entre mestiços assi-milados e a restante população negra.

Mesmo assumindo os portugueses como inimigo comum, os três movimentos nacionalistas nunca foram capazes de ultrapassar as suas rivalidades e unir sinergias em torno de um mesmo objeti-vo. Em termos de relação com a população angolana, a FNLA e a UNITA eram apoiadas por camponeses das áreas norte e centro do país, focando ambos os grupos a sua retórica na exploração de Angola e do seu povo pelos colonos portugueses. Em contraste, os líderes do MPLA, pertencentes a uma classe socioeconómica relati-vamente privilegiada das grandes urbes, faziam uso de um discurso marxista-leninista para obter o apoio do proletariado embrionário, a emergente intelligentsia e os revolucionários angolanos de raças mistas, os mestiços. Mas em que consistia este movimento ideoló-gico marxista-leninista?

Para poder enquadrar ideologicamente a matriz do MPLA, tem-se obrigatoriamente de referir Karl Marx e Friedrich Engels. Foram eles que formularam as ideias, os conceitos e as teorias que acabaram por estabelecer os pilares de uma corrente doutri-nária desde logo conhecida por marxismo, mas que os próprios criadores apelidaram de socialismo científico. Consideravam que o mundo caminhava na direção de um colapso do sistema capita-lista e de uma crise revolucionária que obrigaria a uma transição socialista e, finalmente, ao comunismo totalitário. Prestavam par-ticular atenção aos processos e estruturas económicos, os quais consideravam, a par da atuação central do Estado e da distribui-ção do poder político, como fatores-chave materiais na modelação da estrutura social e do relacionamento entre classes. As disputas

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entre fatores económicos e outros de índole sociopolítica aca-baram por assumir alguma centralidade no marxismo-leninismo do século xx, mormente nas revoluções que ocorreram em todo o mundo sob os auspícios de movimentos marxistas. Muitas das autoproclamadas revoluções marxistas originaram, de facto, o for-talecimento do poder do Estado e, frequentemente, o estabeleci-mento de regimes ditatoriais que assumiam a condição de partido único, em vez de criarem uma sociedade baseada na liberdade de escolha do povo.

A crítica do marxismo-leninismo ao capitalismo enfatizava par-ticularmente as propriedades privadas enquanto base da exploração das classes e da submissão do proletariado a um grupo restrito de proprietários privilegiados. Pretendia-se, antes, uma futura socie-dade comunista em que se substituiria a propriedade privada pela gestão da comunidade em prol dos interesses de todo o povo, di-rigida por controlo direto dos trabalhadores. O pensamento mar-xista-leninista em países subdesenvolvidos de África, por exemplo, focou-se no imperialismo, no colonialismo e no pós-colonialismo. A União Soviética e Cuba atuaram como mentores e comissários do braço político e armado do MPLA em Angola, com a estra-tégia clara de propagar a ideologia marxista-leninista a paralelos mais a sul do continente africano. Era a ameaça do pós-Segunda Guerra Mundial.

Entre 1963 e 1965, a FNLA era a mais ativa em Angola. No en-tanto, os insurgentes dos movimentos de libertação nacionalistas foram ficando menos ativos até 1966. Em resultado desse abranda-mento, a UNITA e o MPLA alteraram as suas estratégias e moveram as operações de guerrilha para o Leste do país, numa clara tentativa de acabar com a hegemonia que as tropas portuguesas tinham alcan-çado até então. Em abril de 1966, o MPLA fez uma alteração tática significativa no Leste de Angola, ao movimentar um largo contin-gente da República do Congo para a Zâmbia, e infiltrar cinco desta-

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camentos no interior de Angola26. Este pode ser um claro indicador de que a tropa portuguesa tinha a frente norte controlada e, como tal, era vital aos insurgentes do MPLA explorar o inóspito leste do país e, daí, fazer incursões pelas grandes urbes do litoral. Pode-se também inferir que a conjugação das operações de contrainsur-gência das tropas portuguesas e da atividade intensa da FNLA terá obrigado o MPLA a deslocar as suas operações mais para o Leste de Angola. Da mesma forma, a UNITA iniciou as suas primeiras incursões ao longo da fronteira leste.

No final de 1966, Abílio Alcarva, inspetor da PIDE/DGS, dava conta de alguma preocupação com a liberdade de movimentos dos insurgentes da UNITA no distrito de Cuando-Cubango, agravadas pelo facto de a SWAPO27 também usar esse território para se infil-trar na província sul-africana da atual Namíbia. As rotas de infiltra-ção da SWAPO eram precisamente as mesmas que os movimentos insurgentes angolanos usavam para se deslocarem. A PIDE/DGS e os Flechas tinham um conhecimento profundo delas, facto que veio a despertar um enorme interesse das autoridades sul-africanas em estudar o modelo dos portugueses e criar mecanismos de coo-peração bilateral para poder erradicar a ameaça que a SWAPO re-presentava para os seus interesses colonialistas.

Em 1967, o MPLA expande-se no Norte de Angola, uma área de tradicional influência da FNLA, reforça os seus cinco destaca-mentos e aumenta a sua ação combativa no Leste. A expansão foi conseguida, de forma espetacular, a partir da Zâmbia no decurso do ano de 1968. Entretanto, a PIDE/DGS avaliava, num relatório de informações classificado, que em termos militares a frente les-

26 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 6573-CI (2), UNITA, Vol. I, fls. 392 ss e 403 ss.

27 South West Africa People’s Organisation: movimento que iniciou a luta pela inde-pendência da Namíbia a 21 de março de 1966, contra as forças sul-africanas que ocupa-vam o território desde o final da Primeira Guerra Mundial.

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te oferecia vantagens significativas ao MPLA comparativamente à frente do Norte e Cabinda, pois as ações de guerrilha dos insurgen-tes eram facilitadas pela tipologia do terreno e pela possibilidade de infiltração entre a população local, o que era deveras prejudicial à campanha de contrainsurgência portuguesa28. Em 1969, numa avaliação sobre a condição do MPLA, a PIDE/DGS refere que os insurgentes têm vindo a ser isolados no Norte do país desde 1967, reduzindo significativamente a sua atividade operacional nesse qua-drante. Já no Leste do país, o MPLA tinha consolidado a sua posi-ção e apresentava uma atividade bastante intensa contra as tropas portuguesas. De igual forma, praticava algumas ações de guerrilha contra a UNITA no planalto do Huambo.

A adaptação do MPLA às circunstâncias impostas pelas tropas portuguesas e pelos outros grupos insurgentes começou depois de estes terem sido expulsos, em novembro de 1963, de Kinshasa. O MPLA atravessou então um período de desorientação que quase levou à sua extinção. Foi uma época de enorme regressão em ter-mos de planeamento das estratégicas e táticas do movimento, o que teve um elevado impacto nas ações de combate e na cadeia lo-gística de apoio aos esforços de guerra insurgente contra as tropas portuguesas. Para atenuar a turbulência no seio do MPLA, foram fulcrais o apoio robusto da União Soviética e de Cuba, bem como a deslocalização do quartel-general do movimento para Brazzavil-le, na República do Congo, depois da sua expulsão de Kinshasa29. Estas ações acabaram por trazer alguma bonança ao MPLA, pelo que entre 1967 e 1969 a luta insurgente do movimento centrou-se, quase em exclusivo, no Leste de Angola.

Portugal jogava uma cartada decisiva no relacionamento entre os dois Congos, pois a estratégia da PIDE/DGS passava por fomentar

28 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 110.00.30, MPLA, pasta 10, fls. 175 ss.29 Wheeler e Pélissier (2011), p. 299.

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um continuado desentendimento entre esses dois países. Com efeito, se eles concertassem esforços na ajuda aos movimentos insurgen-tes, mormente ao MPLA e à FNLA, a situação poderia complicar-se para as autoridades portuguesas. Foram, portanto, idealizadas equi-pas para gerir informadores e agentes implantados nos dois países, através de uma estrutura no Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA), na fase inicial, e posteriormente no seu sucessor, o Serviço de Centralização e Coordenação de Informações de Ango-la (SCCIA). Em 1961, o diretor do CITA era o então major Pedro Cardoso, que acabou por criar o SCCIA, com o objetivo de mon-tar um serviço de informações militares com alguma capacidade de coordenação, integração e intercâmbio de informações entre as várias instituições do Estado, além de com os serviços congéneres. Porém, acabou por ser a PIDE/DGS a estabelecer uma rede de in-formadores em Brazzaville, orientada a partir de Luanda, logo após o início da guerra30, boicotando todas as intenções que os militares do SCCIA tinham nessa matéria.

A estratégia da PIDE/DGS tendia para o desenvolvimento de ações essencialmente clandestinas que obrigassem Brazzaville a condicionar o refúgio aos líderes do MPLA. Todo esse processo evoluiu até, em meados de 1967, a PIDE/DGS intentar um golpe de Estado contra o governo de Brazzaville, fazendo, alegadamente, uso da agência Aginter Press, sediada em Lisboa desde 1966. A ati-vidade da Aginter Press centrava-se em Brazzaville mas, posterior-mente, alargou-se a Kinshasa, com ações de recrutamento, treino e apoio logístico de mercenários, tais como operações secretas con-tra os movimentos insurgentes. As histórias de cobertura mais co-mummente usadas em operações clandestinas eram, e continuam a ser nos nossos dias, as falsas agências noticiosas ou jornalistas a

30 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Del. Angola, Proc. Int. 11.10B, Informação Brazza-ville, 1 a 8 de dezembro de 1961.

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operar nos teatros de operações. A ação seria confirmada num re-latório classificado das informações militares, onde se menciona: «Resultando difícil que agentes portugueses pudessem circular nos países africanos que mais podiam interessar, à PIDE parecia-lhe que agentes de outras nacionalidades com coberturas adequadas pudessem conseguir os objetivos pretendidos.»31 Mas que foi esta organização secreta, criada oficialmente no 17.º Cartório Notarial de Lisboa com o nome Aginter – Agência Noticiosa e Editorial, Lda., liderada por Yves Felix Marie Guillou ou Yves Guérin-Sérac?32

A 16 de novembro de 1990, o matutino O Jornal destacava em primeira página a «Operação Gladio» e o jornalista João Paulo Guerra anunciava a atuação de uma rede secreta em Portugal, sob cobertura de uma agência noticiosa, ao serviço de uma operação secreta idealizada pela NATO e suportada financeiramente pela po-derosa agência secreta norte-americana Central Intelligence Agency (CIA). Com o intuito de preparar, implementar e armar uma força de resistência para conter uma eventual ofensiva do Pacto de Var-sóvia contra os países aliados, a operação acabou por estender os tentáculos a Portugal, através da Aginter Press. Segundo as notícias publicitadas na altura, a organização era apoiada pela CIA e com-posta por oficiais europeus de extrema-direita que, com a ajuda da PIDE/DGS, recrutavam militantes fascistas. Yves Guérin-Sérac, diretor da Aginter Press, era um antigo oficial do exército francês que combatera nas guerras do Vietname, da Coreia e da Argélia. Serviu na famosa 11.ª Brigada Paraquedista de Choque (11éme De-mi-brigade parachutiste de choc), uma unidade do exército francês envolvida em atividades clandestinas e encobertas sob a liderança dos serviços secretos franceses do SDECE (Service de documen-tation extérieure et de contre-espionnage).

31 AHM/FAC, Informação Aginter Press.32 Diário da República, n.º 110, de 11 de maio de 1970, p. 2083.

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Em 1961, com o objetivo de derrubar o Presidente De Gaulle e manter o controlo colonial sobre a Argélia, Guérin-Serác, com ou-tros elementos da 11éme Demi-brigade parachutiste de choc, fundou uma organização ilegal e clandestina denominada Organisation de l’armée secrète (OAS). Com a independência da Argélia em 1962, De Gaulle acabou por determinar a exterminação da OAS. Os ope-racionais da OAS tiveram, consequentemente, de fugir para países da América Latina e Europa em busca de asilo, oferecendo aos países hospedeiros os seus préstimos em matéria de guerra secreta, ações encobertas e operações de contraterrorismo.33 Em Portugal, Gué-rin-Sérac terá sido apresentado à PIDE/DGS por Jacques Plon-card d’Assac e posteriormente recrutado, com colegas seus da OAS e outros franceses da extrema-direita, para dar instrução à Legião Portuguesa e a unidades de contrainsurgência do exército português.

Assim, a Aginter Press foi uma forma encoberta de Guérin--Sérac e restantes elementos da OAS, com o alegado apoio da PIDE/DGS e CIA, ministrarem formações, com a duração de três semanas, a mercenários e tropas paramilitares, em matéria de técni-cas de operações encobertas, manufatura de engenhos explosivos improvisados, assassínios silenciosos, técnicas subversivas, comu-nicações clandestinas e métodos de infiltração34.

Óscar Cardoso nega a existência da Aginter Press em Portugal, no modelo noticiado, e cataloga a notícia como «mais uma histó-ria jornalística». Segundo ele, estiveram efetivamente em Portugal operacionais da OAS, mas ligados à Legião Portuguesa. A PIDE/ /DGS controlava os movimentos desses agentes da OAS, pela res-ponsabilidade que detinha em matéria de fiscalização de estrangeiros

33 Jeffrey M. Bale, «Right Wing Terrorists and the Extraparliamentary Left in Post--World War Two. Europe: Collusion or Manipulation?», Lobster Magazine, n.º 2, out. 1989, p. 6.

34 Daniel Ganser, NATO’s Secret Armies. Operation Gladio and Terrorism in Western Europe, Londres e Nova Iorque, Frank Cass, 2005, pp. 116-117.

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em Portugal. No entanto, a PIDE/DGS acabou por usá-los num quadro de troca de informações estratégicas, pois muitos possuíam um enorme manancial de conhecimento, fruto das fortes ligações a individualidades importantes de alguns regimes em África e, igual-mente, da experiência acumulada em ações de combate em teatros de guerra em alguns desses países.

Mais tarde, a PIDE/DGS veio a descobrir, conforme testemu-nha Óscar Cardoso, que se haviam infiltrado operacionais da CIA, do KGB, do MI6 e da SEDEC nesse grupo da OAS durante a sua permanência em Portugal. A PIDE/DGS acabou por «devolvê-los à procedência», tal como Óscar Cardoso confidencia, pois a sua permanência em Lisboa poderia ter segundas intenções. À primeira vista, era bizarro pensar em elementos do KGB infiltrados em tais organizações. Contudo, naquele período da História, os serviços se-cretos soviéticos encontravam-se extremamente ativos e não olha-vam a meios para alcançar os fins. Óscar Cardoso revela o exemplo da Internacional Anticomunista, organização criada nos anos 60 no México: praticamente todos os países que lutavam contra o expan-sionismo soviético aderiram a essa organização. Mais tarde, veio a saber-se que a Internacional Anticomunista fora criada pelo KGB para espiar e descobrir o que os países anticomunistas planeavam contra a União Soviética e seus países-satélites.

Durante a estada da OAS em Portugal, Óscar Cardoso desco-nhece que os seus agentes tenham ministrado cursos de guerrilha às nossas forças armadas. Existiu, contudo, um italiano, Dante Vachi, que deu instrução aos Comandos do exército português. Quanto a Jacques Ploncard d’Assac, ativista de extrema-direita, escritor e jornalista francês, escrevia artigos no jornal da Legião Portuguesa, o Legião em Marcha, de carácter nacionalista. Óscar Cardoso subli-nha o facto de d’Assac ser um grande admirador de Salazar. Existe alguma contradição nos factos relatados por todas as partes envol-vidas com a Aginter Press. Acredita-se, no entanto, que a OAS,

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liderada por Yves Guérin-Serác, poderá ter sido usada, a partir de 1967, especialmente nos Congos, tanto para efetuar operações en-cobertas de desmotivação do apoio desses países aos líderes dos movimentos insurgentes em Angola, como para treinar mercená-rios e insurgentes recrutados para ações de contrainsurgência. Tudo isto poderia ser orientado pela PIDE/DGS, com o financiamento secreto de Portugal.

Em 1968, por todas as ações relatadas, o MPLA movimentou o seu aparato militar e político de Brazzaville para Lusaca, na Zâm-bia, claramente com a intenção de centrar o seu esforço na zona leste e aproveitar o refúgio desse país para daí liderar ações logís-ticas, militares e políticas. Passados quase dois anos desde a des-localização do «cérebro e coração» do movimento para a Zâmbia, em meados de 1970 o MPLA iniciou o estabelecimento de diver-sos campos de treino nos distritos de Cuando-Cubango e Moxico, muitos deles localizados a menos de 300 quilómetros da fronteira com a Zâmbia, para dessa forma proporcionar treino de guerrilha aos seus combatentes. A localização dos campos de treino revestia--se de elevada importância para a PIDE/DGS, pois esta pretendia recolher informações sobre o tipo de treino ministrado, a doutri-na de apoio e o armamento utilizado, antes de enveredar pela sua anulação definitiva. Além do mais, a região leste constituía-se como o mais promissor campo de batalha para as atividades insurgentes do MPLA, pois a vastidão do distrito do Cuando-Cubango e a sua proximidade com o refúgio da Zâmbia eram vitais para o sucesso da campanha de guerrilha do movimento. Contudo, a maré de sor-te não duraria para sempre, pois a máquina de guerra e das infor-mações portuguesas adaptou-se à aparente supremacia do MPLA na frente leste.

Com a missão de contrariar o avanço e o ressurgimento do MPLA, o recém-empossado comando-em-chefe em Angola, general Costa Gomes, chegou a Luanda em maio de 1970, e logo desencadeou

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alterações genéticas e estruturais na estratégia militar dos portugue-ses. Seis meses depois, já tinha aprovado uma nova estratégia de con-trainsurgência para a guerra em Angola, de forma a travar os avanços dos movimentos insurgentes, mormente o MPLA e a UNITA, no Leste do país. Os estrategas militares e os operacionais da PIDE/DGS começaram, assim, a unir esforços no sentido de desequilibrar os movimentos, quer por via de operações especiais conduzidas pelas tropas portuguesas, quer por meio de atividades encobertas e clandes-tinas envolvendo os contactos, agentes, dissidentes e informadores ao serviço da PIDE/DGS, no sentido de provocar ruturas internas no MPLA. Os Flechas foram, naturalmente, essenciais para a pros-secução dessa estratégia militar do general Costa Gomes.

Define-se comummente um «contacto» como um indivíduo que faculta informações por motivos patrióticos, ideológicos ou, mesmo, por ingenuidade. Os informadores são contactos pagos de forma regular ou esporádica a troco de notícias. Já os agentes (ou espiões quando a atividade é desenvolvida pelos adversários) são elemen-tos convencidos, após ações de «namoro» ou elicitation, a infiltra-rem-se em organizações que se pretende conhecer intimamente, muitas vezes sob identidade falsa e uma história de cobertura bas-tante robusta e fantasiosa. Por fim, os dissidentes são indivíduos que abandonaram as suas organizações, frequentemente devido a ações de recrutamento dos serviços de informações, e podem ser assaz valiosos. Contudo, o risco de serem agentes duplos é sempre um cenário provável. Não foram, com efeito, só os portugueses que infiltraram agentes no seio dos movimentos insurgentes. Estes também tinham espiões integrados no exército e nos organismos de administração pública portugueses.

Nos finais de 1972 começam a ser reportados os primeiros si-nais de disrupção na estrutura dirigente do MPLA. Surgem, então, indicadores de desmotivação nas fileiras do movimento na Zâmbia, com informações secretas a denunciar que alguns insurgentes do

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MPLA tinham, inclusive, vendido as suas armas a cidadãos zam-bianos. Consequentemente, com base em dados recolhidos por di-versas fontes no terreno, a PIDE/DGS acaba por concluir que a atividade do MPLA sofrera uma regressão apreciável, por profun-das divergências no seio do movimento e exacerbadas manifesta-ções de racismo e tribalismo por entre os seus líderes militares e políticos35. Muita desta informação secreta foi conseguida através de ações encobertas dos Flechas no interior do território da Zâm-bia, mas também por interrogatórios a insurgentes do MPLA e do-cumentos capturados durante as incursões dos Flechas. Todo esse manancial de informação era, depois, processado e analisado pelos operacionais da PIDE/DGS, dando origem a relatórios dissemina-dos pelos diversos responsáveis estratégicos, operacionais e táticos, sempre obedecendo à premissa da necessidade de conhecimento. Quanto mais sensível fosse a informação, mais apertada era a lista de distribuição. Cumulativamente, os portugueses não eram o úni-co inimigo do MPLA neste distrito, nem mesmo os únicos rivais da FNLA e UNITA. As forças armadas e de segurança sul-africanas também desenvolveriam atividades de apoio às patrulhas militares portuguesas nos distritos do Cuando-Cubango e Moxico, para mo-nitorizar a atividade de guerrilha do MPLA.

A África do Sul posicionava-se, indiretamente, como oponente do MPLA, atendendo ao efeito dominó que a eventual vitória do MPLA sobre os portugueses exerceria nos movimentos que luta-vam pela libertação do regime do apartheid. Já no domínio interno, o único grupo com capacidade para competir com o MPLA no Les-te de Angola era a UNITA, liderada por Jonas Malheiro Savimbi, muitas vezes apelidado de maníaco.

Em qualquer tipo de guerra, principalmente naquelas com ti-pologia insurgente, conhecer o perfil psicológico dos elementos

35 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 110.00.30, MPLA, pasta 23, fls. 87 ss.

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nucleares do grupo oponente reveste-se de elevada importância. A análise das ligações em rede, de como se articulam, de quem dependem, quem são os atores principais de um determinado grupo, é igualmente vital para desenvolver as ações cinéticas e de informações para desarticular ou anular a sua eficiência. No en-tanto, por norma as organizações dependem de um líder bastan-te poderoso e carismático, muitas vezes com um poder mágico e sobrenatural, com um núcleo duro em seu redor que lida com o planeamento, o financiamento, a comunicação, a propaganda e a condução das operações. O estudo dos perfis psicológicos dos atores influentes pode, por conseguinte, permitir a aproximação para ações de recrutamento, aliciamento ou, mesmo, aniquilamen-to. Neste capítulo, os serviços de informações são vitais. Recolhen-do dados sobre determinados membros dos grupos insurgentes e desenhando-lhes os perfis psicológicos, por vezes percebem quais deles são os centros de gravidade dos movimentos. Concluem, as-sim, que, se os anularem (por recrutamento ou outra via), o gru-po que esses indivíduos lideram simplesmente se desintegra ou se alia às suas forças.

Os militares portugueses não eram indiferentes ao conflito en-tre a FNLA e o MPLA, pelo facto de essa animosidade ser uma condição influenciadora das dinâmicas da guerra. Num relatório ul-trassecreto da PIDE/DGS, o coronel José Emídio Pereira da Silva refere o aumento do apoio dos EUA à FNLA e avalia que o grupo procurava superar o rival MPLA. De acordo com o coronel Pereira da Silva, essa intenção da FNLA era extremamente prejudicial às aspirações portuguesas, pois o equilíbrio da disputa entre a FNLA e o MPLA era preferível para a estratégia dos planeadores militares e políticos em Lisboa e Luanda36.

36 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 7477-CI (2), Operação Phoenix, pasta 3.

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Em termos de atividade insurgente em Angola, o MPLA au-mentou as suas ações de guerrilha logo depois de ter alterado a sua estratégia de guerra no sentido de uma maciça infiltração na região leste de Angola, aumentando os níveis da atividade ofensiva dos 6 por cento registados em 1965 para os 42 por cento em 1968. Con-comitantemente, a persistente e intensa oposição das tropas portu-guesas, entre 1968 e 1970, conseguiu reduzir esses valores de forma gradual até aos 32 por cento em meados de 197037. Com o objetivo de contrariar, ainda mais, o progresso das atividades insurgentes, o general Costa Gomes foi forçado, a 8 de fevereiro de 1971, a edi-ficar a Zona Militar Leste (ZML). Tratava-se de uma área opera-cional com cerca de 700 000 quilómetros quadrados, cobrindo os distritos de Luanda, Moxico, Cuando-Cubango, Bié e também parte de Malanje38. O general Costa Gomes ordenou, adicionalmente, a transferência de batalhões do Norte do país, para reforçar o Leste, resultando num total de 12 batalhões na ZML39, o que se estimava ser o contingente necessário para mudar os destinos da guerra em favor de Portugal.

Esta nova área operacional no Leste correspondia, sensivelmente, a metade do território de Angola. Para ter uma ideia da sua dimensão, a área representava cerca de 7,5 vezes o tamanho de Portugal. Na vas-tidão do território angolano, a localização (e destruição) dos insurgen-tes infiltrados entre a população e escondidos no interior das savanas e nos países vizinhos, além de se constituir como o grande desafio para as tropas portuguesas, era o fator impulsionador do estabeleci-mento de boas redes de informações e monitorização contínua no terreno. Informações sobre os líderes da guerrilha, as estruturas dos

37 António Pires Nunes, Angola (1966-1974) – Vitória Militar no Leste, Lisboa, Prefá-cio, 2002, p. 6.

38 Joaquim Chito Rodrigues, «General Francisco Costa Gomes. Comandante Chefe», O Referencial – Boletim da Associação 25 de Abril, 64 (2001), p. 19; Luís Nuno Rodrigues, Ma-rechal Costa Gomes. No Centro da Tempestade, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008, p. 81.

39 Nunes (2002), p. 8.

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seus comandos militares, planos operacionais, pontos fortes, fragili-dades, centros de gravidade, motivações, fricções internas, fontes de apoio externo, dentro e fora de Angola, alianças e desavenças internas em todos os escalões hierárquicos das alas miliares e políticas, tudo se obtinha através de uma vasta panóplia de fontes de informações. Os dados provinham de relatos das patrulhas de infantaria, de reco-nhecimentos aéreos, da interceção de comunicações (COMINT40), de interrogatórios a insurgentes capturados ou desertores, documentos apreendidos, ou de informadores e agentes pagos.

Era, então, essencial para o esforço de guerra das tropas portu-guesas chegar a um conhecimento profundo dos insurgentes, para assim conseguir desenhar mecanismos de ação para os separar da população. Essa separação era crucial, porquanto, sem abrigo, ali-mentação, recrutas e obtenção de informações sobre os movimen-tos das tropas portuguesas, os insurgentes ficavam mais expostos. A necessária compreensão de todos os fatores – meio ambiente e insurgentes – assentava nas informações passadas aos diversos es-calões hierárquicos das tropas portuguesas, que, muitas vezes, eram difíceis de obter pela natural falta de organização e de comunicações da estrutura política e militar desses grupos. A desorganização e a desestruturação intrínsecas dos movimentos insurgentes angolanos não facilitavam os tradicionais processos de informações portugue-ses, pois era frequentemente difícil descortinar as suas reais inten-ções táticas e operacionais. As enormes distâncias que separavam as áreas de atuação dos insurgentes e dos seus líderes políticos re-fugiados em países vizinhos, a par da ausência de meios de comu-nicação para efetivar a cadeia de comando e controlo, tornavam as atividades no terreno mais imprevisíveis e, consequentemente, difi-cultavam a avaliação da linha de ação mais provável dos insurgentes.

40 Communications intelligence, a interceção de diversos tipos de comunicações, tanto ra-diofónicas como telefónicas, que, após validação e análise, se transformam em conheci-mento (inteligência/informações).

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É pela obtenção de informações secretas sobre as intenções dos líderes de topo que se antecipam, com algum rigor, as ações dos comandos subordinados. Não existindo essa possibilidade, o esforço de pesquisa de informações teve de recair num nível mais tático, junto dos movimentos insurgentes na área de operações. Foi preciso fazer operações secretas com recurso a grupos como os Flechas, bem como recrutar informadores e agentes (prisioneiros, arrependidos, desertores ou habitantes locais), para prever as inten-ções dos normalmente pequenos grupos de insurgentes imersos na vastidão do Leste angolano. Toda esta atividade era, sobremaneira, coadjuvada pelas rivalidades étnicas, tribais e ideológicas que exis-tiam entre os três grupos insurgentes e que só ajudavam Portugal.

As divergências entre os grupos eram exploradas incessante-mente pela PIDE/DGS, que jogava as cartas necessárias para cau-sar fraturas irreversíveis nos três movimentos insurgentes. O jogo permitia, entre outros benefícios, obter informações sensíveis so-bre um grupo insurgente por denúncias dos outros grupos, que o faziam na esperança de que Portugal acabasse com o equilíbrio de poder. Para além das fontes humanas, fossem elas operadores, agentes, espiões ou informadores, existia uma multiplicidade de informações recolhidas por meios técnicos, como a imagem aérea (IMINT) ou a interceção de comunicações (COMINT). A junção das partes originava um todo que depois era disseminado por uma vasta panóplia de intervenientes com responsabilidades ao nível da decisão política e militar. Mas como é que se processava o ci-clo das informações no teatro operacional de Angola? Tratar-se-ia de um processo centralizado, com uma única entidade a dirigir e coordenar todas as atividades de informações, ou, face à dimensão do território e complexidade da guerra insurgente, as ações esta-vam descentralizadas e relegadas para um nível mais tático? Em matéria de produção de informações, teria a PIDE/DGS uma função central no apoio às operações militares portuguesas contra

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os insurgentes em Angola, ou limitar-se-ia a complementar, em pequena escala, as informações de índole tática e operacional pro-duzidas pelos militares?