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MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL TOMO I

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Page 1: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

MANUAL DE

DIREITO CONSTITUCIONAL

TOMO I

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DO AUTOR

I — Livros e monografias

—Cntributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968;

— Poder paternal e assistência social, Lisboa, 1969;

—Notas para uma introdução ao Direito Constitucional Comparado, Lisboa, 1970;

—Chefe do Estado, Coimbra, 1970;

— Conselho de Estado, Coimbra, 1970;

—Decreo, Coimbra, 1974;

—Deptado, Coimba, 1974;

—A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, Lisboa, 1975;

—A Constituição de 1976 — Formação, estrutura, princípios fundamentais, Lisboa, 1978;

— Manual de Direito Constitucional, l.° tomo, 5 edições, Coimbra, 1981,1982, 1985, 1990 e 1996; 2.° tomo, 3 edições, Coimbra, 1981, 1983 e1991, reimp. 1996; 3.” tomo, 3 edições, Coimbra, 1983, 1987 e 1994, reimp. 1996; 4.” tomo, 2 edições, Coimbra, 1988 e 1993;

—As associações públicas no Direito português, Lisboa, 1985;

— Relatório com o programa, o conteúdo e os métodos do ensino de Direilos Fundamentais, Lisboa, 1986;

—Esudos de Direito Eleitoral, Lisboa, 1995;

—Escritos vários sobre a Universidade, Lisboa, 1995.

II — Lições policopiadas

— Ciência Política — Formas de Governo, 4 edições, Lisboa, 1981, 1983-84,1992 e 1996;

— Funções, Órgãos e Actos do Estado, 3 edições, Lisboa, 1984, 1986 e 1990;

—Direito Internacional Público—l, 2 edições, Lisboa, 1991 e 1995.

In — Principais artigos

— Relevância da agricultura no Direito Constitucional Português, in Rivista di Diritto Agrário, 1965, e in Scientia urdca, 1966;

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—otas para um conceito de assistência social, m Informação Social, 1968;

— Colégio eleitoral, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, li,1969;

—A igualdade de sufrágio político da mulher, in Scientia iuridica, 1970;

— iberdade de reunião, in Scientia urdica, 1971;

— Sobre a noço de povo em Direito Constitucional, in Estudos de Direito Público em honra do Professor Marcelo Caeano, Lisboa, 1973;

— Inviolabiidade do domicílio, in Revista de Direito e Estudos Sociais, 1974;

—Inconstitucionalidade por omissão, in Estudos sobre a Constituição, i, Lisboa, 1977;

— O Direito eleitoral na Constituição, in Estudos sobre a Constituiço, il,1978;

— Aspects institutionneis de 1’adhésion du Portugal à Ia Communauté Économique Européenne, m Une Communauté à Doue? L’ímpact du Nouvel Elargissement sur lês Communautés Européennes, Bruges, 1978;

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— O regime dos direitos, liberdades e garantias, m Estudos sobre a Constituição, Hl, Lisboa, 1979;

—A ratificação no Direito Constitucional Português, m Estudos sobre a Constituição, 111, Lisboa, 1979;

— Os Ministros da República para as Regiões Autónomas, m Direito e Justiça, 1980;

— A posição constitucional do Primeiro-Ministro, in Boletim do Ministério da Justiça n.” 334;

—As actuais normas constitucionais e o Direito Internacional, in Naço e Defesa, 1985;

—Autoriações legislativas, in Revista de Direito Público, 1986;

—glises et État au Portual, in Conscience et liberte, 1986;

— Propriedade e Constituição (a propósito da lei da propriedade da farmácia), in O Direito, 19741987;

—A Administração Pública nas Constituições Portuguesas, in O Direito, 1988;

— Tratados de delimitação de fronteiras e Constituição de 1933, m Estado e Direito, 1989;

— O programa do Governo, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vi, 1994;

—Resolução, ibidem, vil, 1996;

— O património cultural e a Constituição — tópicos, in Direito do Património Cultural, obra colectiva, 1996;

—U’ esperienw portoghese di sistema semipresideniale, in Democraia e forme di governo — Modelli stranieri e riforma costituzionale, obr colectiva, 1997;

— Sobre a reserva constitcional da função legislativa, in Perspectivas Constitucionais — Nos 20 anos da Constituição de 1976, obra colectiva, 1997.

IV — Colectâneas de textos

—Anteriores Constituições Portuguesas, Lisboa, 1975;

— Constituições de Diversos Países, ï edições, Lisboa, 1975, 1979 e 1986-1987;

—As Constituições Portuguesas, 3 edições, Lisboa, 1976, 1984 e 1991;

— A Declaração Universal e os Pactos Internacionais de Direitos do Homem, Lisboa, 1977;

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—Fontes e trabalhos preparatórios da Constituição, Lisboa, 1978;

—Direitos do Homem, 2 edições, Lisboa, 1979 e 1989;

— Textos Históricos do Direito Consitucional, 2 edições, Lisboa, 1980 e 1990;

—Jurisprudência constitucional escolhida, 3 volumes, 1996 e 1997.

V — Obras políticas

— Um projecto de Constituição, Braga, 1975;

— Constituição e Democracia, Lisboa, 1976;

— Um projecto de revisão constiucional, Coimbra, 1980;

—Revisão Constitucional e Democracia, Lisboa, 1983;

—Anteprojecto de Constituição da República de São Tomé e Príncipe, 1990;

— Um anteprojecto de proposta de lei do regime do referendo, m Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1991;

—Ideias para uma reviso constitucional em 1996, Lisboa, 1996.

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Nenhuma pae desta publicação pode ser reproduzida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia xerocópia ou gravaão, sem autorização prévia do edior. Exceptua-se a ranscrição de curtas passagens para efeitos de apresentação, críica ou discusso das ideias e opiniões contidas no livro. Esta excepção não pode. porém, ser interpretada como permitindo a transcrição de extos em recolhas aniológicas ou similares, áa quat possa resultar prejuízo para o ineresse pela obra. Os infractores são passíveis de procedimeno judicia.

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JORGE MIRANDA

Professor Catedrático das Faculdades de ireito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

MANUAL DE

DIREITO CONSTITUCIONALTOMO l

PRELIMINARES

O ESTADO E OS SISTEMAS CONSTITUCIONAIS

6. EDIÇÃO, REVISTA E ACTUALIZADAABVNL1ADOMNFS

COIMBRA EDITORA

1997

C.G.D.. SÁ

MEDI AT C A

. yo>

Page 8: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

composiçao e impressão oimbra Editora, Limitada

1SBN 972-32-0419-3 (obra completa) ISBN 972-32-0793-1 —Tomo I, 6. ed. (ISBN 972-32-0731-1—Tomo I, . ed.)

Depósito Legal n.° 116 116/97

Outubro de 1997

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A MINHA MÃE

AO MEU IRMÃO CARLOS

com SAUDADE E ESPERANÇA

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DO PREFÁCIO DA 7.4 EDIÇÃO

O presente livro nasce do ensino e para o ensino do Direito constitucional. Por isso, compreende ou aproveita, em grande parte, páginas de lições policopiadas destinadas aos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.

É trabalho não completo e não definitivo. Não completo, porque apesar de uma relativamente longa extensão, não chega a versar todas as numerosíssimas matérias que hoje cabem no Direito constitucional. Não definitivo, porque ensino é diálogo de aquisições recíprocas e ensino universitário implica constante renovação (ainda quando, como sucede em Portugal, se oferecem difíceis as condições de investigação).

Mas, assim mesmo, se justifica a sua publicação. Aberto, doravante, a um âmbito mais largo de leitores, mais forte se fará sentir, por certo, o estímulo crítico para a correcção de deficiências e para o ulterior aperfeiçoamento, a que, desde já, se fica aspirando.

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PRELIMINARES

l. O fenómeno político e o Estado

Como qualquer outra manifestação de socialidade humana, o fenómeno político apresenta uma dupla face: a de facto que acontece na vida dos homens em relação ou aspecto desta, e a de realidade impregnada de valores.

O que seja ele exactamente vem a ser, contudo, desde há muito, ponto de discussão em diferentes disciplinas. Parece ligar-se ao poder, ao poder político ou, na tradição clássica, à Civitas, à realização do Homem na Cidade e ao bem comum temporal. Há quem afirme a sua especificidade irredutível e há quem, pelo contrário, o reconduza a fenómenos de distinta natureza.

Uns acentuam elementos espirituais, v. g., as condições de legitimidade dos governantes; outros concentram-se em elementos materiais, v. g., a subordinação dos mais fracos aos mais fortes ou o domínio exercido por uma classe social e baseado na diferenciação económica. Uns recorrem a explicações contratualistas, outros a explicações institucionalistas, outros ainda, por exemplo, a explicações funcionalistas.

Nos nossos dias, toda esta problemática surge posta, directa ou indirectamente, a respeito do Estado. É no Estado — organização de governantes e de governados ou comunidade dos cidadãos — que se patenteia a mais clara luz, pois o Estado constitui a sociedade política característica dos últimos séculos e, decerto, a mais complexa, a mais sólida e a mais expansiva da história.

Conhecem-se também as duas perspectivas primárias das quais o Estado pode ser encarado: como Estado-comunidade e como Estado-poder; como sociedade, de que fazemos parte e em que se exerce um poder para a realização de fins comuns, e como poder

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12Manual de Direito Consiucional

político manifestado através de órgãos, serviços e relações de autoridade (). Mas estas perspectivas não devem cindir-se, sob pena de se perder a unidade de que depende a subsistência do político; e essa unidade é, para o que aqui interessa, uma unidade jurídica, resulta de normas jurídicas.

2. Sujeição do Estado e das demais instituições públicas ao Direito

Não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam).

Se pode ter-se por exagerada a posição dos autores que assimilam o fenómeno estadual ao fenómeno normativo, pelo menos é claro que o Estado não pode ser compreendido sem Direito — que transforma os homens em cidadãos, que estabelece as condições de acesso aos cargos públicos, que confere segurança às relações entre os cidadãos e entre eles e o poder.

Para lá dos elementos histórico, geográfico, económico, político, moral e afectivo, encontra-se sempre um elemento jurídico traduzido na criação de direitos e deveres, de faculdades e vinculações. Os governantes têm de ter o direito de mandar e os governados o dever de obedecer. Não bastam a força ou a conveniência: não há uma ideia de Poder sem uma ideia de Direito e a autoridade dos governantes em concreto tem de ser uma autoridade constituída — constituída por um conjunto de normas fundamentais, pela Constituição, como quer que esta se apresente.

Do mesmo modo, o povo e o território não são o povo e o território do Estado senão em termos de Direito — Direito interno desse Estado e Direito internacional. A pertença de alguém ao povo depende das leis da nacionalidade ou cidadania e envolve determinado

() Por errada, deve, desde já, afastar-se a referência ao Estado como «nação politicamente organizada» — pois são realidades diferentes a nação e o Estado, e a organização em si é sempre jurídica.

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Preliminares 13

estatuto dentro da ordem jurídica estadual; a pertença de alguma porção de território ao Estado depende do Direito internacional; e o poder de cada Estado somente atinge o seu povo e o seu território, e não os de outros Estados, porque povo e território vêm a ser condições de existência (ou limites) do seu ordenamento jurídico.

E isto que é muito não abarca tudo. Há ainda que observar que, no desenvolvimento de toda a sua actividade, o Estado e as demais entidades públicas (regiões autónomas, autarquias locais, institutos públicos, associações públicas, etc.) têm de se mover segundo regras jurídicas — sejam quais forem as fontes donde essas regras pro venham (nomeadamente de natureza legal ou consuetudinária), o conteúdo e o sentido que possuam, as concepções que lhes presidam e os processos de agir que instituam.

São extremamente variados e tantas vezes antagónicos os regimes, as formas de governo, os sistemas políticos: a mais elementar comparação, por exemplo, mostra as diferenças que existem entre um regime como o britânico e um regime como o soviético de 1917 a 1991, entre um regime como o português no domínio da Constituição de 1933 e um regime como o português no domínio da Constituição de 1976. Sem embargo, em todos os regimes e sistemas políticos, actuais ou passados, encontram-se ideias e regras jurídicas a defini-los, a legitimá-los (ou a procurar legitimá-los), a conformá-los, a orientá-los.

A sujeição do Estado ao Direito, inclusive ao seu próprio Direito positivo — eis a base do Direito público e, antes de mais, do Direito constitucional.

3. O Direito constitucional

I — O Direito constitucional é a parcela da ordem jurídica que rege o próprio Estado enquanto comunidade e enquanto poder. É o conjunto de normas (disposições e princípios) que recortam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de formação e manifestação da vontade política, os órgãos de que esta carece e os actos em que se concretiza.

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14Manual de Direito Constitcional

Chama-se também Direito político, por essas serem normas que se reportam directa e imediatamente ao Estado, que constituem o estatuto jurídico do Estado ou do político, que exprimem um particular enlace da instância política e da instância jurídica das relações entre os homens.

Qualquer Estado, em qualquer época e lugar, postula sempre normas com tal função. O que não podem deixar de variar são a intensidade, a extensão e o alcance dessas normas e as funções conexas ou complementares que se lhes prendam. E variam não apenas em virtude das condições gerais de conservação ou de modificação do ordenamento mas sobretudo em virtude dos fins e dos modos de exercício do poder e das posições recíprocas de governantes e governados (em que consistem os regimes, as formas de governo, os sistemas políticos).

II — Falando em Direito constitucional, pensa-se mais na regulamentação jurídica, no estatuto, na forma de Direito que é a Constituição. Falando em Direito político pensa-se mais no objecto da regulamentação.

Como Constituição nesta acepção se afigura inerente ao conceito ou indissociável da existência do Estado, dir-se-ia de todo em todo indiferente empregar o primeiro ou o segundo qualificativo. Mas não é tanto assim, porque cabe proceder a uma delimitação — resultante da experiência histórica e exigida pelas necessidades de estudo.

Na verdade, ninguém ignora o marco representado na história do Estado e do Direito público pelas revoluções dos séculos xvm e xix e suas sequelas, as quais puseram termo ao Estado absoluto e abriram caminho a um novo modelo ou tipo de organização política, o Estado constitucional, representativo ou de Direito. E, doravante, do que se trata é, justamente, do Direito constitucional do Estado constitucional, do Direito que aparece ligado a uma Constituição (escrita, salvo na Grã-Bretanha), do Direito que se encontra numa Constituição com um conteúdo determinado e com uma força jurídica diversa da dos outros corpos de normas do ordenamento.

O Direito constitucional moderno provém do constitucionalismo;

e mesmo quando, como sucede em numerosos países no nosso século,

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Preliminares 15

se distancia muitíssimo das linhas ideológicas iniciais deste, está associado a noções de Constituição material, formal e instrumental antes desconhecidas. E o Direito constitucional assim balizado que se toma, por seu turno, alvo de um tratamento científico e didáctico especializado — aquele que leva a cabo a ciência do Direito constitucional e a que não pode comparar-se o rudimentar e vago tratamento do precedente Direito público () (2).

Por outro lado, não raro, ao adoptar-se a expressão Direito político segue-se uma visão restritiva do seu âmbito, circunscrevendo-o à organização e à limitação jurídica do poder político. Ou seja: reduz-se o Direito político ao Direito do Estado-poder e relega-se para fora ou para diferentes zonas tudo quanto concerne ao Estado-comunidade. Porém, esta maneira de entender deve ter-se por insatisfatória, pois não pode haver estatuto de poder sem estatuto da comunidade política a que se reporta, nem limitação da autoridade dos governantes sem consideração da liberdade dos governados.

A Constituição é tanto Constituição política como Constituição social (3), não se cinge à ordenação da vida estatal (em sentido estrito) (4). Nem sequer o Direito constitucional do século xix se confinou aos órgãos e agentes do poder político; ele foi, além disso (ou através disso), um Direito dos cidadãos diante do poder — ao garantir os direitos e liberdades individuais e ao incluir neles a propriedade, intervinha, pelo menos negativamente, na sociedade. E, como se reconhece à vista desarmada, as Constituições actuais contemplam lar-

() Sobre a formação do Direito constitucional, v., por agora, entre tantos, GARCIA PELAYO, Derecho Constitucional Comparado, 8. ed., Madrid, 1967, págs. 22 e segs.; COSTANTINO MORTATI, Diritto Costituwnale (noione e caratteri), m Scritti, n, Milão, 1972, págs. 25 e segs.; NELSON SALDANHA, Formação da Teoria Constitucional, Rio de Janeiro, 1983; ou PAUL BASTID, UIdée de Constitution, Paris, 1985.

(2) A locução Direito constitucional terá aparecido em 1797 e terão sido autores italianos (COMPAGNONI, Dl Luzzo, PELLEGRINO Rossi) que, primeiro, a terão empregado.

(3) MAURICE HAURIOU, Précs de Droit Constitutionnel, 2.” ed., Paris, 1929, págs. 611 e segs.

(4) KONRAD HESSE, Escritos de Derecho Constitucional, trad., Madrid, 1983, Pág. 17.

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16Manual de Direito Constitucional

guíssimos aspectos e áreas da dinâmica económica, social e cultural em interacção com o Estado.

Por estes motivos, na presente obra preferir-se-á o termo Direito constitucional ao termo Direito político ().

4. O Direito constitucional e a ordem jurídica do Estado

I — O político é o global, o que respeita a todos, o que abrange, coordena e sintetiza a pluralidade de grupos, interesses e situações. E terá assim de ser também o Direito constitucional, enquanto se lhe refere constantemente para o fundamentar, reflectir e conter nas

suas normas.

Mais do que um ramo a par de outros, o Direito constitucional deve ser apercebido como o tronco da ordem jurídica estatal (mas só desta), o tronco donde arrancam os ramos da grande árvore que corresponde a essa ordem jurídica (2). Integrando e organizando a comunidade e o poder, ele enuncia (na célebre expressão de PELLEGRINO Rossi) as têtes de chapitre dos vários ramos do Direito, os princípios fundamentais que os enformam; e enuncia-os, porque tais princípios revestem um significado político, identificam-se com as concepções dominantes acerca da vida colectiva, consubstanciam uma ideia de Direito.

Ou, doutra perspectiva, na medida em que a Constituição estabelece pressupostos de criação, vigência e execução das normas do

() A nossa noção de Direito constitucional aproxima-se das que, na doutrina portuguesa, adoptam ROGÉRIO SOARES, Constituição, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, n, Coimbra, 1972, págs. 661 e segs.; ou GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6.” ed., Coimbra, 1993, maxime págs. 72 e segs. Diverge, todavia, das propostas por MARQUES GUEDES, Introdução ao Estudo do Direito Políico, Lisboa,1969, págs. 10 e segs.; MARCELLO CAETANO, Direito Constiucional, i, Rio de Janeiro,1977, págs. 60 e segs.; ou MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Consitucional, l, Braga, 1979, págs. 10 e segs. (que consideramos restritivas no sentido indicado no texto).

(2) Assim, SANTI ROMANO, Principi ai Diritto Costituzionale Generale,2.’ ed., reimpressão, Milão, 1949, pág. 6; cfr., mais recentemente, RODRIGO FERNANDEZ-CARDAJAL, Notas sobre el Derecho Constituciona como Nuevo «Derecho Comun», m Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentari (Múrcia), 1989, págs. 37 e segs.C. G M E U..

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Preliminares 17

resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente o seu conteúdo, converte-se em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade no seu conjunto, no seio do qual impede tanto o isolamento do Direito constitucional como a existência isolada das demais parcelas de Direito umas em relação às outras ().

Este fenómeno toma-se muito patente nas últimas décadas com a maior eficácia adquirida pelas normas constitucionais e com o cumulativo incremento dos mecanismos jurisdicionais ou parajurisdicionais de fiscalização da constitucionalidade (2).

II — A actual Constituição portuguesa, por exemplo, está longe de se esgotar no tratamento dos órgãos do poder (constante da sua parte III). Aí se divisam, com não menor importância, princípios de Direito penal (arts. 29.° e 30.°), de Direito processual penal (arts. 28.° e 32.°), de Direito da família (art. 36.°), de Direito do trabalho (arts. 53° e segs.), de Direito tributário (arts. 106.° e 107.°), de Direito financeiro (arts. 108.° e seg.), de Direito judiciário (arts. 208.° e segs.), de Direito administrativo (arts. 266.° e segs.), etc. (3),

E estes princípios não são apenas constitucionais por se inserirem na Constituição formal e se imporem ao legislador ordinário. São, do mesmo passo, princípios constitucionais substantivos ou materiais, pela sua relevância no plano dos valores da comunidade política que se ancoram na Constituição; participam de pleno da Constituição material (4).

In — Através dos princípios (ainda que, por natureza, susceptíveis de sucessivas reracções e densificações), a Constituição irra-

() KONRAD HESSE, op. cit., pág. 17.

(2) Cfr. LOLIS FAVOREAU, Lê droit constitutionnel — droit de Ia Constitution et constitution du droit, in Revue française de droit constitutionnel, 1990, págs. 71 e segs.; fala em «constitucionalização progressiva dos diversos ramos de direito» (pág. 88).

(3) Cfr., quanto ao Brasil (ainda antes da Constituição de 1988), MIGUEL REALE, Lições Preiminares de Direito, .10.” ed., Coimbra, 1982, págs. 338-339.

(4) Cfr. ROGÉRIO SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra,1969, pág. 141.2 — Man. Dir. Const., I

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! 8Manual de Direito Constitucional

dia para todo o ordenamento, como mostram bem, entre nós (como noutros países) as reformas legislativas e a jurisprudência desde 1976 ().

Nem por isso, porém, cada um dos ramos deixa de se desenvolver num conglomerado de preceitos e até de princípios próprios — necessariamente, para subsistirem, não discrepantes daqueles — formulados em atenção à sua problemática particular e às exigências científíco-culturais a que cabe responder.

No Direito constitucional só entra o que contende com a estruturação da comunidade e do poder político (aquilo que é constitutivo ou constitucional do Estado) e possui significado político (ou significado político imediato). Não aquilo que toca aos particulares, aos grupos e aos poderes sociais não políticos enquanto tais. Entra a sociedade «enquanto ser político», não entra a sociedade na múltipla teia de relações que se desenvolvem à margem da actividade política. Outra coisa redundaria quer na desvitalização dos vários ramos quer na absorção da sociedade pelo Estado.

IV — Justifica-se, por isso, inteiramente (pelo menos no Ocidente), a clássica dicotomia Direito público-Direito privado. Não há Direito constitucional Direito público e Direito privado (2); há somente Direito público e Direito privado, e no primeiro enquadra-se o Direito constitucional (3).

() Cfr. a obra colectiva Estdos sobre a jurisprudência do Tribunal Consitucional, Lisboa, 1993.

(2) Cfr., no sentido de o Direito constitucional se situar antes da distinção entre Direito público e privado, GEORGES RENARD, Quest-ce que lê Droit Constiutionnel? Lê Droit Constitutionnel et Ia Théorie de l’inslilution, m Méianges R. Carré de Malberg, obra colectiva, Paris, 1933, págs. 485 e segs.

(3) Sobre a distinção entre Direito público e Direito privado, v., designadamente, GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, 4. ed. portuguesa, Coimbra, 1961, li, págs. 5 e segs.; CHARLES EISENMANN, Droit public et droit prive (en marge d’un livre sur 1’évolution du droit civilrançais du XIX’ au XX siècle), in Revue du droit public, 1952, págs. 903 e segs.; JULIEN FREUND, L’ essence du politique, Paris, 1965, págs. 280 e segs.; ORLANDO DE CARVALHO, A Teoria Geral da Relação Jurídica — Seu sentido e limites, Coimbra, 1970, págs. 9 e segs.; NORBERTO BOBBIO, La grande dicotomia, m Studi in memória di Cario Esposito, obra colectiva, iv, Pádua, 1974, págs. 2187 e segs.; GUSTAVO R. VELASCO, Sobre Ia división

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Preliminares 19

Nem se compreenderia como sendo o Direito constitucional o Direito do político, o regime institucional da vida pública, ele pudesse não ser Direito público — pois «Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectact. Privatum, quod ad singulorum utilitatem» (ULPIANO, D. 1.1.1.2.).

5. Os grandes capítulos do Direito constitucional

I — Na linha do que se dá com a própria distribuição da ordem jurídica e do que ocorre noutros sectores (no Direito civil, no Direito penal, no Direito administrativo), podem no Direito constitucional ser demarcados capítulos algo diferentes, tendo em conta as matérias que recobrem.

Alguns destes grandes capítulos vêm desde o início do constitucionalismo. Assim, o Direito parlamentar, conjunto das regras respeitantes à organização, ao funcionamento e ao processo do Parlamento; ou o Direito eleitoral, conjunto das normas reguladoras das eleições políticas, desde a capacidade eleitoral e o recenseamento ao sufrágio, ao apuramento e ao contencioso.

Outros, sobretudo alguns dos que se dirigem predominantemente ao Estado-comunidade, são mais recentes. Um dos mais importantes é o Direito constitucional da economia ou Constituição económica, conjunto das normas que definem a organização e o funcionamento da economia como uma das dimensões da comunidade política. E também se fala em Constituição financeira, em Constituição social ou em Constituição cultural ().

Outros somente existem em sistemas constitucionais determinados. Assim, o Direito processual constitucional, que não aparece

dei Derecho en publico y privado, m Rivista Trimestrale d Diritto Pubblico, 1978, págs. 847 e segs.; JOO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, págs. 63 e seg.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Público, in Polis, li, págs. 543 e segs.; GOMES CANOTILHO, op. cit., págs. 133 e segs.; OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito — Introdução e Teoria Geral, 9.” ed., Coimbra, 1995, págs. 323 e seg.

(i) O surto destas expressões tem, contudo, o risco de inculcar uma desagregação da unidade da Constituição.

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20Manual de Direito Constitucional

senão onde se dê uma fiscalização jurisdicional ou jurisdicionalizada da constitucional idade das leis através de um órgão de competência concentrada (nomeadamente, um tribunal constitucional), com o seu processo próprio sujeito a regras específicas; ou o Direito regional, isto é, o Direito respeitante às regiões autónomas (nos Estados que se organizem com regiões autónomas).

E, de certa maneira, poderia contrapor-se um Direito constitucional interno ou central (abrangendo as liberdades fundamentais, a organização do poder político, a garantia e a revisão da Constituição) a um Direito constitucional externo ou periférico (compreendendo os princípios basilares dos grandes ramos do Direito).

II — Todos estes grandes capítulos, ramos ou partes especiais do Direito constitucional são preenchidos, primeiro, por normas formalmente tidas por constitucionais e assentes no documento ou texto chamado Constituição e, depois, por normas de outras categorias que àquelas dão imediato complemento e delas se tomam indissociáveis. O Direito parlamentar português, por exemplo, abrange as normas contidas na Constituição, várias leis e, obviamente, o regimento da Assembleia da República e os das assembleias legislativas regionais dos Açores e da Madeira

Se as normas formalmente constitucionais — quer dizer, dotadas de uma forma e de uma força jurídica específicas — não se desprendem nunca de uma referência material ou substantiva, também elas não esgotam as normas materialmente constitucionais — quer dizer, as normas que têm por objecto o estatuto do Estado. Uma Constituição nunca é um Código no mesmo sentido de um Código Civil.

6. Direito constitucional e Direito administrativo

Nem sempre hoje se consegue traçar com nitidez as fronteiras do Direito constitucional e do Direito administrativo.

O Direito administrativo compreende não só as normas reguladoras da estrutura e disciplina interna da Administração mas também as da actuação dos elementos desta como sujeitos de direitos no exercício dos seus poderes e no cumprimento dos seus deveres legais

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para com os administrados (). Surgido, tal como o Direito constitucional, com o constitucionalismo, nele perpassa a tensão entre o poder de decisão e de execução dos órgãos administrativos e a necessidade de defesa dos direitos e dos interesses dos administrados. O princípio da legalidade da administração pressupõe o da constitucionalidade da lei.

Ora, o alargamento da intervenção do poder público na vida económica, social e cultural e as mutações sofridas pela lei têm levado a alguma indefinição acerca das matérias que devem receber a qualidade de constitucionais e daqueloutras que devem ter-se por administrativas. Quando o Estado do século xx se apresenta como um Estado administrativo, em vez de legislativo (CARL SCHMITT), muito do que é administrativo eleva-se a constitucional; inversamente, quando a lei se traduz em medidas concretas ou emana do Poder Executivo, é esse acto de Direito constitucional que parece convolar-se em acto de Direito administrativo.

Haverá então que apelar, de novo, para os critérios decorrentes do significado dos preceitos à luz dos valores e concepções que presidem à legitimação e ao exercício do poder político: será de Direito constitucional tudo quanto estiver em relação imediata com esses valores, será de Direito administrativo tudo quanto contender com a sua concretização ou efectivação, por meio das formas próprias de agir da Administração. Mais aprofundada reflexão não pode ser feita nesta altura (2).

() MARCELLO CAETANO, Tendências do Direito Administrativo Europeu, m Estdos de Direito Administrativo, Lisboa, 1974, pág. 453.

(2) Sobre o assunto, cfr. ERNST FORSTHOFF, Tratado de Derecho Administrativo, trad., Madrid, 1958, págs. 21 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público cit., págs. 8 e segs.; GEORGES VEDEL, Discontinuité du droit constitutionnel et continuité du droit administratif— Lê role du juge, m Méianges offerts à Mareei Waline, obra colectiva, Paris, 1974, págs. 777 e segs. (e in Pages de Doctrine, 1980, págs. 203 e segs.);

AFONSO QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, policopiadas, Coimbra, 1976, págs. 159 e segs.; ANDREAS AUER, Droit Costitutionnel et Droit Administratif, in Méianges André Grisel, obra colectiva, Neuchâtel, 1983, págs. 212 e segs.; JORGE MIRANDA, A Administração Pública nas Constituições Portuguesas, in O Direito, 1988, págs. 607 e segs.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, l, 2. ed.,

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22Manual de Direito Constitucional

1. A ciência do Direito constitucional

I — Ao Direito constitucional em sentido objectivo (conjunto de normas jurídicas) corresponde o Direito constitucional em sentido subjectivo (conhecimento dessas normas). Ao Direito constitucional corresponde a Ciência do Direito constitucional.

A Ciência do Direito constitucional não é, portanto, senão a Ciência Jurídica ou Jurisprudência aplicada ao Direito constitucional;

a disciplina científica que, seguindo o método jurídico ou dogmático, visa reconstruir o Direito constitucional como sistema normativo; a ciência social normativa que procura apreender o sentido de certos factos sociais, os políticos, através das normas que os regem.

Por outras palavras: a Ciência do Direito constitucional é a ciência jurídica do Estado, aquela disciplina que tem por objecto o Estado, mas o Estado mediatizado pela Constituição — seja o que for que, em rigoroso plano doutrinal ou teórico, se entenda ser a Constituição.

II — Sem embargo das especialidades que resultam do objecto material, a natureza e a função da Ciência do Direito constitucional em nada diferem da natureza e da função das demais disciplinas judicas. Tal um ponto de partida muito firme.

Não se trata só da unidade essencial de todo o Direito e de toda a Ciência jurídica. Trata-se também, porque o Direito constitucional é o tronco do ordenamento estatal, da interdependência de seu estudo e do estudo dessas outras disciplinas. Hoje, não se afigura possível a elaboração dogmática, pelo menos, de grandes princípios de diversos ramos de Direito sem uma referência ou compreensão sistemática a partir do Direito constitucional.

In — Da mesma maneira que, por exemplo, a Ciência do Direito civil ostenta a marca dos factores de estabilidade ou instabilidade familiar, profissional, técnica e económica, a Ciência do Direito constitucional acompanha e reflecte a experiência constitucional (ou político-constitucional), com as suas vicissitudes de evolução e ruptura.

Coimbra, 1994, págs. 171 e 172; PAULO OTERO, O poder de substituição em Direito Administrativo, Lisboa, 1995, págs. 122 e segs.

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As grandes orientações de tratamento do Direito constitucional, além de espelharem diferentes posições gerais sobre o jurídico, recebem o influxo de toda a gama de fenómenos políticos e sociais que se vão sucedendo. E, a par de uma progressiva sedimentação, revelam-se bem diversas as preocupações e as formulações do século xix, do constitucionalismo liberal, e as do século xx, em que se defrontam correntes de pensamento e acção ora complementares, ora antagónicas.

Não é tão pouco por acaso que a Ciência do Direito constitucional emerge em Portugal tão embrionária. Se ela não tem sido muito cultivada, isso deve-se também ao constitucionalismo português ter andado aos saltos, ter passado por largos túneis e ter havido até momentos de destruição ou involução, com a consequente falta de instituições consolidadas. Daí, em contraste com a abundância e a pujança de civilistas, o pequeno número de constitucionalistas a lembrar (SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, LOPES PRAÇA, JOSÉ FREDERICO LARANJO, MARNOCO E SOUSA, ROCHA SARAIVA, JOO MAGALHÃES COLAÇO, FEZAS VITAL, MARCELLO CAETANO) e a escassez tanto de monografias como de obras gerais vindas a lume (1).

8. Ciência do Direito constitucional, Teoria Geral do Direito público e Teoria Geral do Estado

Utilizam ainda o método jurídico, embora em moldes de pura elaboração conceituai e em contraponto da especialização crescente das ciências juspublicísticas, a Teoria Geral do Direito público e a Teoria Geral do Estado (2).

() Sobre o ensino do Direito constitucional em Portugal, v. JOSÉ FREDERICO LARANJO, Princípios de Direito Político e Direito Constitucional Português, i, Coimbra, 1907, págs. 72 e segs.; MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 327 e segs.; GOMES CANOTILHO, op. cit., 4. ed., Coimbra, 1986, págs. 43 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Relatório..., m Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,1988, págs. 234 e segs.

Cfr. já a visão da ciência do Direito público em Portugal de LOPES PRAÇA, Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e o Acto Adicional de 1852, l. parte, Coimbra, 1878, págs. LXXI e segs.

(2) A primeira, mais desenvolvida na Itália; a segunda, na Alemanha.

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A Teoria Geral ou Doutrina Geral do Direito público procura, da mesma forma que a Teoria Geral do Direito civil e, de certo modo, em reacção contra tendências demasiado privatísticas da Teoria Geral do Direito, encontrar esquemas e categorias comuns às várias disciplinas de Direito público — assim, v. g., os conceitos de pessoa colectiva pública, atribuições, órgão, deliberação, função, competência, poder funcional, acto, procedimento, processo.

A Teoria Geral do Estado, por seu turno, pode ser tomada ou como construção judica do Estado, das suas condições de existência e das suas manifestações vitais, ou (menos frequentemente) como enquadramento do Estado na dupla perspectiva de realidade jurídica e realidade social (). Em qualquer dos casos, visa o Estado em si ou, melhor, certo tipo de Estado, não este ou aquele Estado localizado (2).

Ambas estas disciplinas distinguem-se bem da Ciência do Direito constitucional, pois que não intentam reconstruir sistematicamente nenhum Direito constitucional positivo, nem perscrutar o sentido das suas normas para a aplicação aos casos concretos ou para que delas tomem consciência os destinatários. Todavia, são com ela comunicáveis: por um lado, a Ciência do Direito constitucional — assim como a História do Direito constitucional e o Direito constitucional comparado — fornecem os dados com que trabalham as Teorias Gerais; em compensação, estas põem à disposição do intérprete e do legislador instrumentos mais apurados de análise e de formulação dos comandos normativos.

9. Direito constitucional, História do Direito constitucional e Direito constitucional comparado

I — A Ciência do Direito constitucional é completada ou auxiliada pela História do Direito constitucional e pelo Direito constitu-

() Na linha de G. JELLINEK, Allgemeine Staaslehre, trad. castelhana Teoria General dei Estado, Buenos Aires, 1954, págs. 5 e segs.

(2) Sobre a doutrina portuguesa de certo período, v. Rui MACHETE, A Teoria Geral do Estado em Portugal nos últimos vinte anos, in O Direio, ano 97.”, págs. 93 e segs. e 185 e segs.

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cional comparado (à semelhança do que se passa com outras disciplinas da ordem jurídica estadual, mas ainda com mais forte razão).

A História do Direito situa-se no cruzamento de duas disciplinas — a História e a Ciência Jurídica — e, conforme as correntes ou os autores, o pendor é, umas vezes, para reduzir a História do Direito a uma pura História, no mesmo nível da História política ou de qualquer outro domínio da Ciência Histórica, e, outras vezes, para reduzir a História do Direito à Ciência Judica, empregando o mais possível o método dogmático. A originalidade e o interesse da História do Direito e da história de qualquer instituição de Direito público em particular estarão, contudo, na capacidade dos seus estudiosos de fazerem um trabaho em que se conjuguem todas as virtualidades de ambos os métodos, o histórico e o jurídico ().

A História constitucional está, pois, para o Direito constitucional como, em geral, a História do Direito para a Ciência do Direito. E afasta-se da História das instituições políticas (um dos aspectos da História política) na medida em que a História das instituições apenas toma em conta as instituições como realidades existentes na vida social, ao passo que a História constitucional pretende chegar às instituições através do estudo da sucessão de normas constitucionais e das correspondentes vicissitudes. A História das instituições dá preferência ao modo efectivo como se vão conformando, ao longo do tempo, as instituições políticas; a História constitucional parte da Constituição para chegar ao conhecimento das instituições (2) (3).

(’) Cfr., por todos, MARCELLO CAETANO, História do Direito Português l, Lisboa, 1981, págs. 17 e segs.; NUNO ESPNOSA GOMES DA SILVA, História do Direito Português, 2. ed., Lisboa, 1991, pág. 25; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Para uma história consitcional do Direito poruguês, Coimbra, 1995, págs. 54 e segs; MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, História do Direito Português, 3.” ed., Coimbra, 1996, págs. 23 e segs.

(2) Mas sem recusar esse conhecimento e sem esquecer que as normas constitucionais não se identificam com um texto qualquer (pois o Direito é sempre mais que o texto).

(3) Cfr. GOMES CANOTILHO, op. cit., págs. 245 e segs.; FULCO LANCHESTER, Alcune riflessioni sulla storia costituionale, in Quaderni Costituionali, 1994, págs. 7 esegs.; FRANCESCO BONINI, Uno Satuto controverso — Consideraim sulla storia costituzionale, ibidem, 1995, págs. 95 e segs.

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Se a História equivale à rememoração explicativa do passado, o Direito comparado visa surpreender semelhanças e diferenças, interacções e reacções entre institutos jurídicos de mais de um país ou de um mesmo país em diferentes épocas. Em vez de se fixar num único sistema jurídico ou num sistema jurídico vigente, alarga o seu olhar para além-fronteiras ou projecta-se para trás indagando dos institutos encontrados noutros momentos da evolução de certo sistema. com efeito, porque questões idênticas ou similares se põem em múltiplos países ou se puseram no passado no mesmo país, é mister conhecer não só como o Direito positivo as considera aqui e agora mas também como são consideradas noutros sistemas ou como o foram noutras épocas no mesmo país ().

O Direito constitucional comparado — se se quiser, a comparação de Direitos constitucionais — assenta em sistemas jurídicos positivos, mas não necessariamente vigentes. Ou se trata de sistemas que coexistem em determinada época (comparação simultânea) ou de sistemas que pertencem a momentos diferentes em um ou mais de um país (comparação sucessiva) (2).

II — Para ilustrarmos o que dizemos, tomemos a Constituição portuguesa. Apoiandonos nela podemos levar a cabo um trabalho comparativístico sob múltiplas facetas. Tudo dependerá dos critérios que adoptarmos e das Constituições (ou dos projectos de Constituição) com que a formos confrontar.

Assim, se pusermos em paralelo a nossa Constituição com a americana de 1787 e com a francesa de 1958, estaremos no domínio da comparação

() V., por todos, LÉONTIN-JEAN CONSTANTINESCO, Traité de Droit Compare,3 tomos Paris, 1972, 1974 e 1984, e, entre nós, FERNANDO JOSÉ BRONZE, «Continentaliaçâo» do Direito inglês ou «insulariaçâo» do Direito Continental?, Coimbra, 1982, JOO DE CASTRO MENDES, Direito Comparado, policopiado, Lisboa,1982-1983; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, ntrodução ao Direio Comparado, Coimbra, 1994.

(2) Seguimos as nossas Notas para uma Inrodução ao Direito Constitucional Comparado, Lisboa, 1970; ou, mais recentemente, Sobre o Direito Constitucional Comparado, m Direito e Justiça, 1988, págs. 201 e segs. Cfr. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, La comparaone nel diritto costituyonale, in Diritto e Società, 1986, págs. 165 e segs., e Diritto Costituonale Comparado, 4. ed., Pádua, 1993, págs. 9 e segs., ou GIORGIO LOMBARDI, Premesse ai Corso di Diritto Pubblico Comparato, Milão, 1986.

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simultânea. São três Constituições coevas umas das outras, visto que, apesar das datas em que foram publicadas, se encontram todas hoje em vigor.

Diversamente, se colhermos como objecto de comparação Constituições situadas em diversos tempos, iremos elaborar um Direito constitucional comparado que apelidaremos de sucessivo. E esta comparação sucessiva pode ultrapassar o âmbito de um só país, bem pode recair sobre Constituições de diferentes países em diferentes épocas. Por vezes, é mesmo imprescindível:

por exemplo, para compreendermos as regiões autónomas na Constituição actual, teremos de a confrontar com as Constituições espanhola de 1931 e de 1978 e com a italiana de 1947; e, para compreendermos a fiscalização da constitucionalidade das leis, teremos de levar em linha de conta quer as Constituições de 1911 e 1933 (bem como as versões de 1976 e de 1982 da Constituição actual) quer a prática jurisdiciona americana quer as Constituições brasileira de 1891 e austríaca de 1920 ().

Quando a comparação incida sobre um número relativamente grande de ordenamentos jurídicos, tendo em vista uma crescente generalização com base em elementos comuns, o Direito constitucional comparado tende a passar a Direio constitucional geral (em contraste com o Direito constitucional particular de cada Estado). E o Direito constitucional geral não pretende ser senão um esforço de formação de conceitos, esquemas, tipos ideais reveladores da unidade fundamental de instituições dentro de cada continente ou de cada região ideológica, dentro do mesmo país em diversas épocas e até dentro do mundo (2). No limite, pode chegar a identificar-se com a Teoria Geral do Estado.

In — Não levanta nenhum problema a distinção entre Direito comparado e História do Direito a propósito da comparação simultânea no presente. Pelo contrário, algumas dificuldades podem suscitar-se acerca da comparação simultânea no passado e da comparação sucessiva.

() Não é correcto supor que a perspectiva única do Direito constitucional comparado é a espacial (ao passo que a da História seria a temporal): tanto pode haver comparação no tempo como no espaço. Todavia, como se percebe, é a comparação de instituições actuais em dois ou mais países, seja micro ou macro-comparaçâo, a que oferece maior interesse e a que revela a atitude própria do comparatista. Cfr. CHARLES EISENMANN, Cours de Droit Constitulionnel Compare, policopiado, Paris, 1950-1951, págs. 6 e segs.

(2) Cfr. SANTI ROMANO, op. c/r., págs. 11 e segs.; GARCIA PELAYO, op. cit., págs. 21-22; ALESSANDRO PIZZORUSSO, La Comparazione Giuridica e U Diritto Pubblico, in L’Apporto dela Comparaione ala Scienza Giuridica, obra colectiva, Milão, 1980, págs. 70 e segs.

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Em princípio, a comparação no passado não deixa de valer como verdadeira comparação. Porém, ela tende a ser subsidiária da História, pois se destina em geral a permitir melhor apreender certas situações histórico-jurídicas ou os condicionalismos históricos de certo sistema. Pode fazer-se o confronto de duas Constituições, devido às suas interinfluências ou por a primeira a ser decretada ter vindo a ser fonte da segunda.

Quanto à comparação sucessiva, as dúvidas põem-se sobretudo quando tenha por objecto Constituições, institutos ou preceitos em conexão temporal imediata ou contiguidade. Como distinguir um estudo comparativo sobre as Constituições de 1911, 1933 e 1976 de um estudo histórico sobre as mesmas Constituições?

A diferença consiste no seguinte: o Direito comparado tem por fim o estabelecimento de relações de semelhança ou diferença, de afinidade ou repulsa entre institutos e sistemas; a História tem por fim o estabelecimento de relações de causa e efeito entre institutos e sistemas que se sucedam cronologicamente (); o primeiro acarreta uma visão de predominância estática, mesmo se reportada a realidades sucessivas; a segunda uma visão dinâmica e genética mesmo se localizada em dada época; aquee envolve abstracção; esta requer inserção num vasto panorama institucional e social.

O exame paralelo das três Constituições republicanas portuguesas (e das suas revisões) cabe ao Direito comparado, sempre que procure atentar nos elementos individualizadores e os procure interpretar como idênticos ou opostos. Por exemplo: conhecidas as normas que regem a competência legislativa do Parlamento e do Governo promover-se-á comparação se, independentemente de considerações de outra ordem, se focar tão somente o seu conteúdo preceptivo.

Mas a História do Direito não se reduz àquilo por que se aproximam ou separam as duas Constituições. Revea-nos a medida em que a conformação de um instituto num momento anterior terá contribuído para a sua conformação num momento posterior e, principalmente, a medida em que a justificação de um novo instituto se encontra na concepção e na prática de um instituto que o precedeu. Estaremos indubitavelmente em História do Direito constitucional ao indagarmos até que ponto a prática do sistema do governo em certo momento terá determinado a adopção de um sistema de governo diferente (ou radicalmente oposto) num momento posterior.

(i) Desnecessário será advertir que um instituto jurídico não é causa de outro como se ambos fossem fenómenos físicos.

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Enlace entre a História e o Direito constitucional comparado vem a dar-se na História constitucional comparada (assim, confronto entre o regime da liberdade de imprensa em Portugal e no Brasil desde 1900 ou entre o Parlamento britânico e o francês nos últimos cem anos). Conceito complexo, o que a distingue não é tanto o debruçar-se sobre as instituições judicas ao longo dos tempos quanto o procurar captar as respectivas linhas de conservação e de transformação ().

10. Ciência do Direito constitucional e ciências sociais não normativas

I — Além da Ciência do Direito constitucional, outras disciplinas têm por objecto material, dos seus ângulos próprios, o fenómeno político. São a Ciência Política, a Sociologia Política, a Sociologia do Direito constitucional, a Ciência Política Comparada, a História Política Comparada.

A Ciência do Direito constitucional considera a sociedade (política) através das normas que se lhe dirigem; debruça-se sobre a ordem da sociedade, e não sobre a sociedade enquanto tal; desvenda a imagem do Estado que são as normas, e não (ou não tanto) a que dá a sua prática. As outras disciplinas — cada uma das quais, aliás, oferecendo certa variedade de orientações de base e de metodologia — voltam-se para os factos, no seu desenrolar empírico e funcional;

apresentam-se como disciplinas sociais não normativas.

II — Assim, enquanto que a Ciência do Direito constitucional configura o Estado na veste de instituição jurídica, a Ciência Política toma-o como sistema de relações, forças e comportamentos, tendo como fundo o poder ou a interferência no poder. Enquanto que a Ciência do Direito constitucional se ocupa, antes de mais, da regu-

() Lembre-se, desde logo, a obra clássica de A. ESMEIN, Êléments de Droif Constitulionnel Français et Compare (l. ed. em 1895), com a sua teoria jurídica das instituições do Ocidente (ou «iberdade modea)», construída a partir das fontes donde fluem: a Constituição inglesa e a Revolução francesa.

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laridade ou da validade da acção do poder, a Ciência Política ocupa-se (ou ocupa-se principalmente) da sua efectividade ().

A distinção entre a Ciência do Direito constitucional e a Sociologia Política não oferece hoje grande melindre, passada a voga do sociologismo de início do século (2). Outra coisa vem a ser a separação da Ciência Política da Sociologia Política e desta da Sociologia do Direito Constitucional.

Aproximativamente, dir-se-á que a Ciência Política estuda o fenómeno político em si, as estruturas govemativas e as estruturas de participação política, estuda e tenta reconstituir os sistemas de poder;

a Sociologia Política estuda o fenómeno político situado no domínio mais vasto dos fenómenos sociais e pretende conhecer as acções recíprocas entre o Estado e outras manifestações da vida social, pretende conhecer a acção e reacção que existe entre o fenómeno político e os demais fenómenos sociais; a Ciência Política descreve e analisa os sistemas políticos; a Sociologia Política procura explicá-los através de métodos sociológicos adequados (3).

() Cfr., entre nós, MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional cit., i, págs. 63 e segs.; ADRIANO MOREIRA, Ciência Política, Coimbra, 1979; MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional, cit., págs. 10 e segs., e Ciência Política — Conteúdo e Métodos, Lisboa, 1989; MANUEL BRAGA DA CRUZ e MANUEL DE LUCENA, Introdução e desenvolvimento da ciência política nas universidades portuguesas, m Revista de Ciência Política, n.” 2, 2.” semestre de 1985, págs. 5 e segs.; VITALINO CANAS, Preliminares do Estudo da Ciência Política, Macau, 1992; GOMES CANOTILHO, op. cit., págs. 159-160; ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES, Introdução à Ciência Política, Porto,1994; JOSÉ ADELINO MALTEZ, Sobre a Ciência Política, Lisboa, 1994. E, no estrangeiro, por exemplo, MAURICE DUVERGER, Institutions Politiques et Droit Consitutionnel, 12.” ed., Paris, 1971, i, págs. 39 e segs.; ENRICO SPAGNA Musso, Osservazioni per uno studio dei Diritto Costituionale quale struttura sociale, in Studi in memória di Cario Esposito, obra colectiva, iv, Pádua, 1974, págs. 2782 e segs.; JORDI CAPO GIOL, Ciência Poltica y Derecho. Otro encuentro, Barcelona, 1990; ou FRANCISCO FERNÁNDEZ SEGADO, Aproximación a Ia Ciência dei Derecho Constitucional, Lima,1995, págs. 105 e segs. e 129 e segs., maxime 167 e segs.

(2) O que não impede complementaridades e concorrências parciais: cfr. MICHEL MERLE, Sociologie politique et droit conslitutionnel, m Archives de Philosophie du Droit, xiv Paris, 1969, págs. 227 e segs., ou (apelando à «transdisciplinaridade») MICHEL MIAILLE, Lê Droit, Constitutionnel et lês Sciences Sociales, in Revue du droit public, 1984, págs. 277 e segs.

(3) Cfr., por todos, ARMANDO MARQUES GUEDES, op. cit.. págs. 26 e segs., ou RALF DAHRENDORF, Sociedade e liberdade, trad., Brasília, 1981.

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A Sociologia do Direito Constitucional é a sociologia jurídica especial cujo fito consiste em dar a conhecer o modo como surgem, perduram e se aplicam as regras constitucionais; ou, doutra perspectiva, é a sociologia jurídica especial que se volta para as instituições constitucionais toando-as como instituições sociais (). Mas poderá acabar por haver larga zona de sobreposição.

Quanto à Ciência Política Comparada, ela está para a Ciência Política como o Direito Constitucional Comparado para o Direito Constitucional (2).

E também disciplina de charneira é a História Política Comparada, paralela da História Constitucional Comparada (3).

In — Em plano diferente, situa-se a Ciência da Legislação ou estudo sistemático da produção legislativa. Conexa tanto com a

() Sobre Sociologia Jurídica e Ciência Jurídica, v., principalmente, MAX WEBER, Wirtschaft und Geselischaft, 1922 (2. ed. castelhana, l. reimpressão, Economia y Sociedad, Madrid, 1969, págs. 253 e segs.); e ainda, por exemplo, ERNST E. HIRSCH, Sociologia do Direito, in Sociologia, obra colectiva editada por GOTTFRIED EISERMANN, trad., Lisboa, 1973, págs. 169 e segs., ou RENATO TREVES, Sociologia dei Diritto dei Giuristi e Sociologia dei Diritto dei Sociologi, in Studi onore di Enrico Tuilio Liebman. obra colectiva, iv, Milão, 1979, págs. 3191 e segs.

(2) V., por exemplo Comparativ Politics, obra colectiva editada por Harry Eckstein e David E. Apter, Nova Iorque, 1963; Comparativ Government, obra colectiva editada por Jean Blondel, Londres, 1969; STEIN ROKKAN, Citizens, Etections. Parties, Oslo, 1976; MANUEL JIMENEZ DE PRAGA, Los Regmenes Polticos Contemporâneos, 5.° ed., Madrid, 1974; GARRY K. BERTCH e outros, Comparing Political Systems: Power and Policy in Three Worids, Nova Iorque, 1978;

DANIEL-LOIS SEILER, La Politique Comparée, Paris, 1982; MATTEI DOGAN e DOMINIQUE PELASSY, La scelta dei paesi nelia comparavm internazionale, m Revista italiana di scienw giuridiche, 1983, págs. 351 e segs.; Traité de Science Polítique, li — Lês Regimes Politiques Contemporains, obra colectiva editada por MADELEINE GRAWIZZ e JEAN LECA, Paris, 1985; GIOVANNI SARTORI, Comparaione e método comparato, in Rivista italiana di scienza política, 1990, págs. 397 e segs.

(3) Dois exemplos: HANNAH ARENDT, On Revolution, Nova Iorque, 1962 (trad. Sobre a Revolução, Lisboa, 1971), com uma história comparada das grandes revoluções modernas; ADRIANO MOREIRA, Sistemas políticos de conjuntura, in Estudos Políticos e Sociais, 1968, págs. 285 e segs. (e in Poítica Internacional, Lisboa,1970, págs. 287 e segs.).

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Ciência do Direito Constitucional como com a Ciência Política, é estruturalmente uma ciência prática ().

11. Perspectiva metodológica

Sobre o método no tratamento do Direito constitucional sublinhar-se-ão apenas os pontos principais que, desde sempre, têm servido de perspectiva e de programa aos nossos estudos (2).

O primeiro ponto concerne a necessidade de um aprofundamento sistemático do Direito constitucional. São vários os obstáculos a este aprofundamento, obstáculos criados pêlos elementos exógenos (não jurídicos e não só políticos) e obstáculos criados pela «primariedade» (no dizer de um autor) das situações e relações, prestando-se menos ao emprego dos instrumentos da técnica e da hermenêutica judicas (3). Não obstante, eles são superáveis, a Ciência jurídica é capaz de explicar à sua maneira o Estado e os seus fenómenos e tudo reside numa exacta (se bem que não rígida) definição do objecto.

com efeito, o método próprio da Ciência jurídica é o método dogmático, insistimos: interpretação e construção, análise e síntese, induzir para deduzir mais tarde, andar do particular (da norma ou do preceito) para o geral (a unidade do sistema) e deste, outra vez, para o particular (a subsunção das situações e relações da vida); em suma, uma elucidação racionalizante e totalizante. Se foi o positivismo que lhe deu o impulso decisivo, mercê da aplicação devotada à norma jurídica positiva, ele deve libertar-se da marca e da sorte do positivismo. E, se durante muito tempo foi orientado pelo formalismo, nem por isso equivale a método formalista.

O maior vício do positivismo consiste na rendição do jurista perante o legislador, conjuntural ou não. O maior vício do formalismo reside em pedir à lógica mais do que aquilo que pode dar. Pelo

() Cfr. GOMES CANOTILHO, Relatório sobre Programa. Conteúdos e Métodos de um Curso de Teoria da Legislação, Coimbra, 1990.

(2) Reiteramos, no essencial, o que escrevemos em Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968, págs. 25 e segs.

(3) MORTATI, op. dl., loc. cit., pág. 247.

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contrário, o Direito está acima e para além da lei; há valores suprapositivos a atender, únicos que lhe podem imprimir razão e permanência; a elaboração científica implica o apuramento de conceitos, mas não se esgota na sua concatenação; o sistema é confrontado com a mediação do problema (); a lógica fornece processos de raciocínio, não fornece soluções.

De resto, o Direito é uma realidade cultural, indesligável das demais experiências humanas (2), e existe uma comunicação constante e dialéctica entre normas e factos. Os valores jurídicos incidem sobre os factos e estes, por seu turno, por vias múltiplas, projectam-se nas normas e no entendimento dos valores. Não quer isto dizer que as normas sejam determinadas ou condicionadas mecanicamente pêlos factos, mas não pode aperceber-se esta ou aquela norma desinserida da situação para a qual está formulada ou das consequências da sua efectivação, nem aperceberem-se os factos sociais à margem da sua modelação pelas normas (3).

No que à nossa disciplina em especial importa, haverá que contar com a directa relação entre a Constituição e aquilo que se tem chamado realidade constitucional, ou realidade política, económica, social e cultural que lhe subjaz, a que pretende aplicar-se e de que depende, em maior ou menor medida, o seu modo de vigorar (4). E haverá,por conseguinte, com espírito aberto — embora sem sincretismo — de saber apreender os contributos da Ciência Política e das outras disciplinas há pouco indicadas (5).

Outra dificuldade (e também um aliciante) decorre do carácter interdisciplinar que, de certa sorte, assume o estudo do Direito cons-

() Na expressão de CASTANHEIRA NEVES, A unidade do sistema jurídico, Coimbra, 1979, pág. 102.

(2) Cfr., entre tantos, RENATO TREVES, Diritto e Culura, reimpressão, Roma,1989.

(3) Cfr., em geral, JOÃO BAPTISTA MACHADO, op. cit., págs. 253 e segs., ou GUSTAVO ZAGREBELSKY, // Diritto Mitte, Turim, 1992, pág. 166.

(4) Voltaremos ao assunto no tomo li deste Manual.

(5) Cfr. já JELLINEK, Verfassungsãnderung und Verfassungs y Waandiung, Berlim, 1906, trad. Reforma y mutación de Ia Constitución, Madrid, 1991, pág. 41:

uma ciência política como doutrina dos poderes criadores do Direito é indispensável para a compreensão dos problemas constitucionais.3 — Man. Dir. Const.. l

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titucional da comunidade política, ao versar os princípios fundamentais dos diversos ramos de Direito, público e privado, e ao estabelecer a conexão entre eles. Isso obriga a ter em conta os conceitos e as intenções particulares desses ramos e, do mesmo passo, a procurar subir à síntese explicativa imposta pela ideia de Direito em que consiste a Constituição material.

Por último, sendo da função do Direito ajudar a resolver os problemas sociais (socioculturais, económicos, políticos), a Ciência jurídica toma-se uma ciência antecedente da acção. com equilíbrio impende-lhe o dever de uma atitude crítica sobre o jus conditum em nome da justiça e da consciência jurídica colectiva, das situações concretas do país, da coerência do sistema e da técnica legislativa. Em Direito constitucional, cujas normas são e têm de ser tão aplicáveis à vida como quaisquer outras, algo haverá a dizer, alguns caminhos haverá a rasgar ().

() Sobre os problemas referidos ou implícitos acima, cfr., de diversas épocas, V. E. ORLANDO, / criteri tecnic per Ia ricostruione giuridica dei Diritto Pubblico,1889, in Diritto Pubblico Generale (scritti vari), Milão, 1941, págs. 3 e segs.; G. JELLINEK, Teoria General..., cit., págs. 19 e segs.; HEINRICH TRIEPEL, Staatsrecht und Politik, 1926, trad. Derecho publico y poltica, Madrid, 1974; SANTI ROMANO, // diritto costituonale e lê altre sciene giuridiche, in Scritti Minori, l, Milão, 1950, págs. 201 e segs.; MÁRIO GALIZIA, Scienw giuridica e Diritto Costituzionale, Milão, 1954;

GERHARD LEIBHOLZ, Tendências actuales de Ia doctrina dei Derecho Publico en Alemania, in Conceptos fundamentales de Ia Poltica y de Teoria de Ia Constitución, trad., Madrid, 1964, págs. 15 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público..., cit., págs. 184 e segs.; AFONSO QUEIRÓ, Tendências actuais da Ciência do Direito Público, Coimbra, 1972; PABLO LUCAS VERDÚ, Curso de Derecho Poltico, i, Madrid, 1972, págs. 49 e segs.; FRANÇOIS LUCHAIRE, De Ia méthode en droit constitutionnel, in Revue du droit public, 1981, págs. 275 e segs.; MICHEL TROPER, La théorie dans 1’enseignement du droit constitutionnel, in Revue du droit public, 1984, págs. 263 e segs.;

DIOGO FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Metodologia Constitucional, in Revista de Informação Legislativa, Julho-Setembro de 1986, págs. 63 e segs.; JORDI CAPO GIOL, op. cit., págs. 18, 30, 36, 41 e seg., 46, 48, 50 e 56; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., págs. 131 e segs.

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ELEMENTOS DE ESTUDO

I — O elemento primeiro e fundamental de estudo do Direito constitucional é a Constituição. Parece pleonástico ou descabido dizê-lo, mas talvez o não seja tanto, em face de certas tendências (felizmente hoje quase ultrapassadas) para fazer do conhecimento e do manuseio do texto constitucional algo de menos nobre ou secundário.

II — Não basta ler o texto vigente da Constituição do país. É necessário compará-la com outras Constituições de outros pases e com Constituições já não vigentes do mesmo país.

A mais antiga colectânea de Constituições que conhecemos é portuguesa, publicada em 1820 — ano do início do constitucionalismo no nosso país — por «dois Bacharéis». Intitula-se Colecção de Constituições antigas e modernas com o projeco d’outras, seguidas de hum exame comparativo de todas ellas, 4 vols., Lisboa, 1820; e inclui grande número de Constituições europeias e americanas até à data aparecidas.

Colectâneas clássicas viriam a ficar a ser as de:

— F. R. DARESTE, Lês Constitutions Modernes, com vários volumes e edições (a última é a revista por J. Larerrière e J. Delpech, Paris, 1928-1934);

— B. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Lês Constitutions Européennes, última ed. Paris,1951.

Mais recentes, e algumas com sucessivas edições actualizadas, são as de:

— MAURICE DUVERGER, Constitutions et Documents Politiques, Paris;

— A. B. PEASLEE, Constitutions ofNations, Leida;

— Corpus Constitutionnel, publicada em fascículos desde 1968 sob a direcção de um conselho científico internacional, Leida;

— Constitutions ofthe Countries ofthe Worid, editada por Albert P. Blaustein e Gisbert H. Flanz, Nova Iorque, em vários volumes de folhas soltas;

— JORGE MIRANDA, Textos Constitucionais Estrangeiros, Lisboa, 1974; Constituições de Diversos Países, 3.” ed., Lisboa, 1986-1987; Textos Históricos do Direito Constitucional, 2.’ ed., Lisboa, 1990;

— JORGE DE ESTEBAN, Constituciones Espanolas y Estrangeras, 2 vols., Madrid, 1977;

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— PAOLO BISCARETTI Dl RUFFIA, Costituyoni Straniere Contemporanee, . ed.,2 vols., Milão, 1980;

— Constituições do Brasil e Constituições estrangeiras. 2 vols., Senado Federal, Brasília, 1987;

— Lãs Constituciones latino-americanas, 2 vols., México, 1988;

— Constitutiones Africae, 1 vols., Bruxelas, 1988 e 1989;

— ELISABETTA PALICI Dl SUI PRAT, MÁRIO COMBA e FABRIZIO CASSELLA, Lê Costituzioni dei Paesi delia Comunità Europe, Pavia, 1993;

— JORGE BACELAR GOUVEIA, Constituições dos Estados Lusófonos, Lisboa,1993;

— FRANIS DELPÉRÉE, MARC VERDUSSEN e KARINE BIVER, Recueil dês Constítutions Européennes, Bruxelas, 1994;

— The Rebirth of Democracy — 12 Constitutions of Central and Eastern Europe, Conselho da Europa, Estrasburgo, 1995.

Algumas destas colectâneas são gerais, outras contêm Constituições mais significativas. Algumas têm estudos e notas históricas e bibliográficas de especial valor: assim, a de DARESTE, o Corpus Constitutionnel e as Constitutions of the Countries of the Worid.

In — O Direito constitucional é Direito vivo e prático. As noções adquiridas têm de ser postas à prova, documentadas e cotejadas com o labor e os resultados da interpretação e da aplicação das normas quer pêlos órgãos políticos, quer pêlos órgãos sujeitos a critérios jurídicos de actuação.

Há, por conseguinte, que estar atento à legislação de execução da Constituição e à jurisprudência constitucional (latissimo sensu).

No caso português, esta hoje compreende:

— Os acórdãos do Tribunal Constitucional;

— As decisões de outros tribunais sobre questões constitucionais;

— Os pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República;

— Os pareceres da Procuradoria-Geral da República também sobre matérias de Direito constitucional;

— Os relatórios do Provedor de Justiça à Assembleia da República.

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Continuam a ter grande importância os pareceres e acórdãos da Comissão Constitucional (prevista no texto inicial da Constituição de 1976 e que foi o primeiro órgão específico de fiscalização da constitucionalidade que existiu no Direito português).

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BIBLIOGRAFIA GERAL

I — O estudo universitário assenta na liberdade, no espírito critico, no confronto de ideias, na capacidade de fundamentar as opiniões e as teses a que se adira. Ninguém deve satisfazer-se com uma única maneira de ver qualquer questão, pois são sempre múltiplos os aspectos a dilucidar, a objectividade muitas vezes só se encontra em face de diferentes subjectividades e o que conta é a elaboração pessoal que cada um venha a fazer.

Mas não há estudo sem leitura — leitura criteriosa, dirigida ao essencial, atenta, com tempo para assimilação.

II — Antes de mais, para situar e entender devidamente o fenómeno político e o Direito constitucional importa ler, ou reler: primeiro, os grandes filósofos desde PLATO e ARISTÓTELES a S. TOMÁS, KANT ou HEGEL; depois, os principais doutrinadores e teóricos do Estado moderno, como MAQUIAVEL, BODIN, SUAREZ ou HOBBES; enfim, os do constitucionalismo, como MONTESQUIEU, Rous-

SEAU, HAMILTON, MADISON e JAY, SlEYÈS, BENJAMIN CONSTANT OU ALEXIS DE TOCQUEVILLE.

In — Como obras clássicas de Direito constitucional indicam-se:

— A. V. DICEY, Introduction to the Study of the Law of fhe Constitution, l.ed.em 1885;

— A. ESMEIN, Eléments de Droit Constitutionnel Français et Compare, 2 vols., l.ed.em 1895;

— GEORG JELLINEK, Allgemeine Saatslehre, l. ed. em 1900, com traduções em francês (L’État Moderne et son Droit, Paris, 1912), em italiano (La Dottrina Generale dei Diritto deio Stato, Milão, 1949) e em castelhano (Teoria General dei Estado, Buenos Aires, 1954);

— R. CARRÉ DE MALBERG, Contribution à Ia Théorie Generale de l’État,2 vols., 1920 e 1922;

— CARL SCHMITT, Verfassungslehre, 1927 (trad. castelhana Teoria de Ia Constitución, Madrid e México, 1934 e 1966);

— MAURICE HAURIOU, Précis de Droit Constitutionnel, 2.” ed. Paris, 1928;

— RUDOLF SMEND, Verfassung und Verfassungsrecht, 1928 (trad. castelhana Constitución y Derecho Constitucional, Madrid, 1985);

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— HERMANN HELLER, Staatslehre, 1934 (trad. castelhana Teoria dei Estado, México, 1942, e portuguesa Teoria do Estado, São Paulo, 1968);

— HANS KELSEN, Allgemeine Staatslehre (trad. castelhana Teoria General dei Estado, Barcelona, 1934, e resumo em português Teoria Geral do Estado, Coimbra, 1945); e General Theory of Law and State, 1945 (trad. portuguesa Teoria Geral do Direito e do Estado, Brasília, 1990);

— SANTI ROMANO, Principii dl Diritto Costituzionale Generale, 2° ed., reimpressão, Milão, 1947;

— GEORGES BURDEAD, Traité de Science Politique, 3 eds. (10 vols. na 2. ed., Paris, 1966-1977);

— COSTANTINO MORTAT, Instituwni di Diritto Pubblico, com várias edições (9. ed., Pádua, 2 vols., 1975);

— KARL LOEWENSTEIN, Political Power and the Governmental Process ou, na edição alemã, Verfassungslehre (trad. castelhana Teoria de Ia Constitución, com 2 eds., Barcelona, 1964 e 1976).

IV — São escassas as obras gerais portuguesas de Direito constitucional:

— SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Cours de Droit Public Interne et Externe, Paris, 1830; Prncipes du Droit Public Constitutionnel, Administratif et dês Gens ou Manuel du Citoyen sous un Gouvernement Représentaif, Paris, 1934; Précis d’un Cours de Droit Public, Administratif et dês Gens, Lisboa, 1845;

— LOPES PRAÇA, Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e o Acto Adicional de 1852, 3 vols., Coimbra, 1878 e 1880;

— MARNOCO E SOUSA, Lições de Direito Político, Coimbra, 1900; Direito Político — Poderes do Estado, Coimbra, 1910; Constituição Política da República Portuguesa — Coentário, Coimbra, 1913;

— JOSÉ FREDERICO LARANJO, Princípios de Direito Poltico e Direito Constitucional Português. Coimbra, 1907;

— JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra, 1908;

— JOSÉ TAVARES, O poder governamental no Direito Constitucional Português, Coimbra, 1909; Ciência do Direito Político, Coimbra, 1909;

— MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Dreito Constitucional, 6 eds., desde 1952 (6.” ed., 2 vols., Lisboa, 1970 e 1972), ou Direito Constitucional, 2 eds. brasileiras, 2 vols. Rio de Janeiro, 1977-1978 e 1988;

— ARMANDO MARQUES GUEDES, Introdução ao Estudo do Direito Político,

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Lisboa, 1969 (há uma nova versão, deologias e sistemas polticos, 3.” ed., Lisboa, 1984); Teoria Geral do Estado, Lisboa, 1980;

— GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional. 6 eds. desde 1977 (6.” ed., Coimbra, 1993);

— MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional, l — Introdução à Teoria da Constituição, Braga, 1979;

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Preliminares 39

— VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, Coimbra, 1983.

Lições universitárias policopiadas das últimas décadas são, designadamente:

— FEZAS VITAL, Direito Consitucional, Lisboa, 1936-1937;

— ÁTOtíOïBKDÈ?iELO, Viréito onstitucional, Yisboa, ID?;

— JOSÉ CARLOS MOREIRA, Direito Constitucional, Coimbra, 1958;

— Luís SILVEIRA, Direito das Instituições Públicas, Lisboa, nstituto de Estudos Sociais, 1966-1967;

— MIGUEL GALVÂO TELES, Direito Constitucional Português Vigente, Lisboa,1970 e 1971;

— ROGÉRIO SOARES, Lições de Direito Constitucional, Coimbra, 1971;

— JORGE MIRANDA, Ciência Política e Direito Constitucional, 1 vols., Lisboa,1972 e 1973 (há versões anteriores); Direito Constitucional, Lisboa, 1977;

Direito Constitucional Comparado, Lisboa, 1978; Introdução ao Direito Público, Lisboa, 1979; Direito Constitucional — Direitos, Liberdades e Garantias, Lisboa, 1980; Direito Constitucional—Aditamentos, Lisboa, 1982; Ciência Política, 1981-82, 1984 e 1992; Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1984, 1986 e 1990;

— COSTA ROSA, Direito Constitucional, Lisboa, 1977;

— JOÀO MANUEL LEITO e JOSÉ MANEL PASCOAL, Direito Constitucional, Lisboa, 1977;

— ANTÓNIO DUARTE SILVA e JOÃO RAPOSO, Direito Constitucional, Lisboa, 1978.

V — Entre as obras gerais de autores brasileiros apontem-se:

— JOSÉ ANTÓNIO PIMENTA BUENO, Direito Público Brasileiro e Análise da Constituiço do Império, 2 vols. Rio de Janeiro, 1857;

— Rui BARBOSA, Comentários à Constiuição Federal Brasileira, 6 vols., São Paulo, 1932-1934;

— WALDEMAR MARTINS FERREIRA, História do Direito Consitucional Brasileiro, São Paulo, 1954;

— EUSÉBIO QUEIROZ LIMA, Teoria do Estado, 8. ed. Rio de Janeiro, 1957;

— PAULINO JACQUES, Curso de Direito Constitucional, 6. ed. Rio, 1970;

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— PINTO FERREIRA, Curso de Direito Constitucional, 2.” ed. Recife, 1970;

— PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1967, com a emenda n.” l, de 1969, 2. ed., 6 vols. São Paulo, 1973; Democracia, Liberdade, Igualdade (Os três Caminhos), São Paulo, 1979;

— JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Regimes Políticos, São Paulo, 1977;

— JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9. ed., São Paulo, 1992;

— MANOEL GONÇALVES ERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional,19.” ed., São Paulo, 1992;

— PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 6. ed. São Paulo, 1996.

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VI — Como obras gerais de outros países apontam-se:

— IVOR JENNINGS, The Law and the Constitution, 5.’ ed., reimpressão, Londres, 1967;

— MANUEL GARCIA PELAYO, Derecho Costitucional Comparado, 8. ed., Madrid, 1967;

— MAURICE DUVERGER, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 2 vols.,12.° ed. Paris, 1971;

— REINHOLD ZIPPELIUS, Allgemeine Staatslehre, l. ed., 1968 (trad. portuguesa Teoria Geral do Estado, Lisboa, 1974);

— GEOFFREY MARSHALL, Constitutional Theory, Oxónia, 1971 (reimpressão, 1980);

— PABLO LUCAS VERDÚ, Curso de Derecho Poltico, 3 vols., Madrid, 1972,1974 e 1976;

— MARTIN KRIELE, Einfúhrung m die Staatslehre. Die Geschichtlichen Legitimitãts Grundiagen dês Demokratischen Verfassungstaates, Hamburgo, 1975 (trad. castelhana Introducción a Ia Teoria dei Estado, Buenos Aires, 1980);

— KONRAD HESSE, Escritos de Derecho Constitucional, trad. castelhana, Madrid, 1983;

— BERNARD CHANTEBOUT, Droit Constitutionnel et Science Politique, 9. ed., Paris, 1989;

— PAOLO BARILE, Instituoni di Diritto Pubblico, S. ed., Pádua, 1987;

— KLAUS STERN, Das Staatsrecht der Bundesrepubli Deutschiand (trad. castelhana parcial Derecho dei Estado de Ia Republica Federal Alemana, Madrid, 1987);

— GUSTAVO ZAGREBELSKY, Diritto Costituonale, l, Turim, 1988;

— JACQUES CADART, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 3.” ed.,2 vols., Paris, 1990;

— ENRICO SPAGNA Musso, Diritto Costituionale, 3. ed., Pádua, 1990;

— FRANCISCO FERNÁNDEZ SEGADO, El sistema costitucional espani, Madrid,1992;

— TEMISTOCLE MARTINES, Diritto Costituionale, 7.” ed., Milão, 1992;

— ALESSANDRO PIZZORUSSO, Sistema instituzionale dei Diritto Pubblico Italiana, Nápoles, 1992;

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— GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Diritto Costituüonale Comparato, 4. ed., Pádua,1993;

— JEAN GICQUEL, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, 12. ed., Paris, 1993;

— NESTOR PEDRO SAGUÉS, Elementos de derecho constitucional, 1 vols., Buenos Aires, 1993;

— JOHN F. MCELDOWNEY, Public Law, Londres, 1994;

— PAOLO CARETTI e UGO DE SIERVO, Instituwni di Diritto Pubblico, 2.” ed., Turim, 1994;

— CHRISTIAN STARCK, La Constitution, Cadre et Mesure du Droit, trad., Paris — Aix en Provence, 1994;

— IAN LOVELAND, Constitutional Law—A Criticai Introduction, Londres, 1996.

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Preliminares 41

VII — Recomendam-se ainda mais os seguintes estudos e ensaios sobre temas políticos e jurídico-constitucionais:

— JAMES BRYCE, Flexible and Rigid Constitutions, in Studies in History and Jurisprudence, l, 1901 (trad. castelhana Constituciones flexibles y Constituciones gidas, Madrid, 1963);

— ROCHA SARAIVA, Construção jurídica do Estado, Coimbra, 1912;

— PAOLO BARILE, La Costitwione come Norma Giuridica, Florença, 1951;

— GIOVANNI SARTORI, Democraia e definiioni, 2.’ ed., Bolonha, 1958 (trad. francesa Théorie de Ia Démocratie, Paris, 1977);

— GEORGES BURDEAU, La Démocratie (trad. portuguesa A Democracia, Lisboa, 1962);

— LUÍS CABRAL DE MONCADA, Problemas de Filosofia Política, Coimbra, 1963

— GERHARD LEIBHOLZ, Conceptos fundamentales de Ia poltica y de Ia teoria de Ia Constitución, trad. castelhana, Madrid, 1964; Problemas fundamentales de Ia democracia moderna, trad. castelhana, Madrid, 1971; O pensamento democrático como pensamento estruturador na vida dos povos europeus, trad., Coimbra, 1974;

— GIORGIO BALLADORE PALLIERI, La Dottrina deio Stato, 2.” ed., Pádua,1964 (trad. portuguesa A Doutrina do Estado, 2 vols., Coimbra, 1969);

— JORGE MIRANDA, Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968;

— Nicos POULANTZAS, Pouvoir politique et classes sociales de l’État capitaliste Paris, 1968 (trad. portuguesa Poder político e classes sociais do Estado capitalista, 2 vols. Porto, 1971);

— ROGÉRIO SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra, 1969;

— FRANCISCO LUCAS PIRES, O Problema da Constituição, Coimbra, 1970;

— VITAL MOREIRA, Economia e Constituição, Coimbra, 1974 (2.’ ed., 1979);

— JOSÉ AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2. ed., São Paulo, 1982;

— GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra, 1982;

— NELSON SALDANHA, Formação da Teoria Constitucional, Rio de Janeiro, 1983;

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— MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos polítcos no Direito constitucional português, Braga, 1983;

— JORGE REIS NOVAIS, Contributo para uma teoria do Estado de Direito, Coimbra, 1987;

— NORBERTO BOBBIO, Liberalismo e Democracia, trad. portuguesa São Paulo,1988;

— MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Estado de Direito e Constituição, São Paulo, 1988;

— NUNO PIÇARRA, A separação de poderes como doutrina e princípio constitucional, Lisboa, 1989.

— PAULO FERREIRA DA CUNHA, Mito e constitucionalismo, Coimbra, 1990;

— GUSTAVO ZAGREBELSKY, // Diritto Mitte, Turim, 1992;

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42Manual de Direito Constitucional

— PAULO BONAVIDES, Do ïtófito Liberal ao Estado Social, 5. ed. Belo Horizonte, 1993;

— MÁRIO DOGLIANI, Introduione ai Diritto Costiuüonale, Bolonha, 1994.

VIII — Deve igualmente chamar-se a atenção para a importância das revistas especializadas de Direito constitucional (ou, mais em geral, de Direito público) e de Ciência Política. São as revistas, mais que os livros, que permitem o conhecimento actualizado dos problemas constitucionais em constante evolução.

Entre elas avultam:

— Revue du droit public et de Ia science politique en France et à 1’étranger;

Pouvoirs; Revue française de droit constiutionnel;

— Archiv dês õffentiichen Rechts; Staat und Recht;

— Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico: 11 Poltico; Giurisprudena Costituzionale; Quaderni Costituionali; Diritto e Società;

— Political Science Quaterly; Political Studies; Parliamentary Affairs;

— Human Rights Law Journal;

— Revista de Estúdios Políticos; Revista Espanola de Derecho Costitucional;

Revista dei Centro de Estúdios Constitucionales; Anuário de Derecho Costitucional y Parlamentari;

— Revisa Brasileira de Estudos Políticos; Revista de Direito Público; Revista de nformação Legislativa;

— Revue europêenne de droit public.

E em Portugal:

— Revista de Direito Público; Estado e Direito; Revista de Ciência Política;

Legislação; Polis.

PARTE I

O ESTADO E OS SISTEMAS CONSTITUCIONAIS

TÍTULO I

O ESTADO NA HISTÓRIA

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CAPÍTULO I

LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO

§ 1.°

O Estado, realidade histórica

l. O Estado, espécie de sociedade política

Seja qual for a essência do político e, portanto, do Estado (), há três maneiras principais de encarar as relações entre um e outro conceito. O Estado é político, mas todo o político é estadual?

Para alguns, a resposta é positiva: Estado e sociedade política identicam-se e aquele é tomado como fenómeno humano permanente e universal. Para outros, o Estado é uma espécie (a mais importante, mas uma entre várias espécies) de sociedade política. Ainda doutro prisma, o problema não se põe, ou por não se lidar com o conceito de Estado (2) ou por se reduzir o Estado ao nome convencionalmente dado a qualquer sociedade política.

() Este problema será tratado no tomo m.

(2) Como fazem as teorias sistémicas.

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44Manual de Direito Constitucional

Prefere-se a segunda postura. As sociedades políticas ou sociedades de fins gerais apresentam-se em tal variedade que é cientificamente imprescindível proceder a distinções e classificações. Não se justifica confundir as formas primitivas de sociedades políticas com as formas desenvolvidas e complexas que tardiamente surgem. E o Estado tem tanto de peculiar que tudo aconselha a separar o seu tratamento do estudo de outras figuras, embora afins.

Todavia, o Estado, que conhecemos hoje, comummente definido através de três elementos ou condições de existência — povo, território e poder político — é apenas um dos tipos possíveis de Estado: o Estado nacional soberano que, nascido na Europa, se espalhou recentemente por todo o mundo ().

2. O aparecimento histórico do Estado

Reveste carácter interdisciplinar (de História geral, História política, História do Direito, Antropologia cultural, Ciência política comparada) a pesquisa respeitante à origem do Estado (2).

C) Cfr. CABRAL DE MONCADA, Problemas de Filosofia Política, Coimbra,1963, págs. 11 e 14 e segs.; MARCEL PRÉLOT, Science Politique, 3. ed. Paris, 1966, págs. 90 e segs.; ANTÓNIO PERPINÁ RODRIGUEZ, El Estado como «situación» (status) y como «grupo» (persona), m Revista de Estúdios Polticos, n.” 36, Out.-Dez. de 1983, págs. 107 e segs.; SILVÉRIO DA ROCHA E CUNHA, Estado, consenso, legitimação e os paradoxos da modernidade, m Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, págs. 110, 135-136 e 138; SABINO CASSESE, Fortuna e decadenza delia raione di Stato, m Scritti in onore di Massimo Severo Giannini, obra colectiva, i, Milão, 1988, págs. 91 e seg.; JOSÉ ADELINO MALTEZ, Ensaio sobre o problema do Estado, Lisboa, 1991, n, págs. 20 e segs.

(2) Cfr. MAURICE HAURIOU, op. cit., págs. 78 e segs.; LAWRENCE KRADER, A formação do Estado, trad., Rio de Janeiro, 1970; ELMAN R. SERVICE, Lãs origenes dei Estado y de Ia civiliación, trad. castelhana, Madrid, 1975; MANUEL DE LUCENA, Ensaio sobre a origem do Estado, in Análise Social, n.” 48, 1976, págs. 917 e segs.; JEAN WILLIAM LAPIERRE, Vivre sans l’État? — Essai sur lê pouvoir politique et 1’innovation sociale, Paris, 1977; The Early State, obra colectiva editada por HENRI J. M. CLAESSEN e PETER SKALNIK, Haia, 1978; BERTRAND BADIE, Culture et Politique, Paris, 1983; GEORGES BALANDIER, Anhropologie Politique, 2. ed., Paris, 1991.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 45

As conclusões principais dessa indagação parecem ser:

a) Necessidade, em toda a sociedade humana, de um mínimo de organização política;

b) Necessidade de situar, no tempo e no espaço, o Estado entre as organizações políticas historicamente conhecidas;

c) Constante transformação das organizações políticas em geral e das formas ou tipos de Estado em particular;

d) Conexão entre heterogeneidade e complexidade da sociedade e crescete diferenciação poiïtícã;

e) Possibilidade de, em qualquer sociedade humana, emergir o Estado, desde que verificados certos pressupostos;

f) Correspondência entre formas de organização política, formas de civilização e formas judicas;

g) Tradução no âmbito das ideias de Direito e das regras jurídicas do processo de formação de cada Estado em concreto.

3. Sociedades políticas pré-estaduais

Encontram-se sociedades historicamente antecedentes da formação do Estado, ainda que não inelutavelmente conducentes à passagem a Estado: são, entre outras, a família patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica (), o senhorio feudal.

Mas importa distinguir entre as sociedades mais simples e as que já contêm instituições ou elementos precursores ou idênticos dos elementos ou instituições estaduais (por exemplo, os esquimós, os bosquimanos, os pigmeus entre os povos que pertencem ao primeiro grupo) (2); ou, doutro ângulo, entre as sociedades com poder anónimo ou difuso (as primitivas) e as sociedades com poder individualizado (exercido por um chefe em nome próprio) (3).

C) Cfr. sobre diferentes fomas de organização política na Hispânia pré-romana, NUNO ESPNOSA GOMES DA SILVA, op. cit., pág. 48.

(2) Cfr. LAWRENCE KRADER, op. cit.. págs. 18 e segs. e 54 e segs.

(3) Cfr. GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique. l, 2.” ed. Paris, 1966, págs. 476 e segs.; e, doutra óptica, F. H. HINSLEY, Sovereignity, trad. castelhana El concepto de soberania, Barcelona, 1972, págs. 10 e segs.

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46Manual de Direito Constitucional

Quanto mais uma sociedade global é heterogénea, quanto mais integra grupos ou estratos diferentes pela cultura, pela posição social e pelo papel na divisão de trabalho tanto mais o seu sistema político tende a organizar-se em funções diferenciadas, especializadas, ligadas umas às outras por uma rede complicada de relações hierárquicas ().

E cabe, depois, contrapor as sociedades pré-estaduais às infra e supra-estaduais (2). Aquelas, podendo embora levar ao Estado, em si nada têm com o Estado; estas, não atingindo ainda ou, pelo contrário, ultrapassando o nível do Estado, assentam todas no poder e na actividade do Estado, com o qual necessariamente coexistem. Sociedade infra-estaduais vêm a ser, entre outras, as regiões ou províncias autónomas. Sociedades supra-estaduais são as confederações, outros agrupamentos de Estados, a própria comunidade internacional (3).

4. Processos de formação do Estado

Não surpreende, naturalmente, a variedade histórica das formas por que o Estado aparece, em correlação com as causas locais do acontecimento (4).

Conhecem-se formas pacíficas e violentas; formação de acordo com as leis vigentes no Estado ou na sociedade a que a nova comunidade até então pertence e formação contra essas leis; formação por desenvolvimento interno e por influência externa.

No plano da Antropologia histórica, revelam-se processos mais importantes a conquista, a migração, a aglutinação por laços de sangue ou por laços económicos, a evolução social pura e simplesmente para organizações cada vez mais complexas. No plano do Direito constitucional comparado e do Direito internacional dos últimos duzentos anos, é também possível tipificar processos como a eleva-

() JEAN-WILLIAN LAPIERRE, op. cit., págs. 167 e segs. Apresenta nove graus de diferenciação e de complicação na organização política (págs. 95-96).

(2) Cfr. a classificação de formas políticas estatais e não estatais de GEORGES BALANDIER, op. cit., págs. 50 e segs.

(3) No Direito internacional actual há também entidades pró-estaduais (os beligerantes e os movimentos nacionais e de libertação).

(4) Cfr. The Early State, cit., pãgs. 619 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 47

cão a Estado de comunidade dependente, a secessão ou o desmembramento de Estado pré-existente.

5. Características gerais do Estado

I — Apesar de evidentes dificuldades, pode tentar-se reconduzir a um quadro comum as notas características dos diferentes Estados ou tipos de Estado oferecidos pela história. Trata-se da complexidade de organização e actuação, da institucionalização, da coercibilidade e da autonomização do poder político, bem como, em plano algo diferente, da sedentariedade.

Estas características têm de ser vistas em conjunto e não isoladamente (até porque algumas delas se encontram noutras sociedades, políticas e até não políticas).

II — A complexidade de organização e actuação consiste em centralização do poder, multiplicação e articulação de funções, diferenciação de órgãos e serviços, enquadramento dos indivíduos em termos de faculdades, prestações e imposições.

O Estado é uma sociedade política com indefinida continuidade no tempo e institucionaliação do poder significa dissociação entre a chefia, a autoridade política, o poder, e a pessoa que em cada momento tem o seu exercício; fundamentação do poder, não nas qualidades pessoais do governante, mas no Direito que o investe como tal; permanência do poder (como ofício, e não como domínio) para além da mudança de titulares; e sua subordinação à satisfação de fins não egoísticos, à realização do bem comum ().

A institucionalização é ainda a criação de instrumentos jurídicos de mediação e de formação da vontade colectiva — os órgãos e figuras afins (2).

A coercibilidade não é uma característica geral do Direito, nem sequer, porventura, do Direito estatal; mas é, em certa medida, uma

() BURDEAU, op. cit., i, págs. 488 e segs., n, 1967, págs. 145 e segs.

(2) Cfr. o nosso estudo Órgãos do Estado, m Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vi, págs. 244 e segs.

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característica da organização política estatal. Ao Estado cabe a administração da justiça entre as pessoas e os grupos e, por isso, tem de lhe caber também o monopólio da força física ().

O Estado promove a integração, a direcção e a defesa da sociedade, e por arrastamento, a própria sobrevivência como um fim em si;

essa preservação — a segurança interna e externa, em particular — toma-se um fim específico; surge o fenómeno burocrático (2); mesmo sem ser absoluto ou totalitário, o Estado possui a sua mística de poder e justifica as suas acções em nome de objectivos próprios; as instituições políticas, instituições especializadas, adquirem autonomia (3).

Finalmente, o Estado requer continuidade não só no tempo mas também no espaço (4), no duplo sentido de ligação do poder e da comunidade a um território e de necessária fixação nesse território. Está aí a sedentariedade.

In — Em suma, o Estado é a resultante da existência de uma sociedade complexa e, por sua vez, um dos factores de criação de uma sociedade cada vez mais complexa.

6. A inserção territorial do Estado

O território revela-se indispensável para o Estado como referência da comunidade, como sede material do poder, como domínio de acção indiscutida, como área de segurança dos indivíduos e das sociedades menores e como instrumento ao serviço dos fins do poder (5).

() Cfr., por todos, GIANFRANCO POGGI, The State — Its Nature, Development and Prospects, Cambridge, 1990, págs. 4 e segs.

(2) V. MAX WEBER, op. cí?., n, págs. 1060 e segs., ou J. KENNETH GALBRAITH, Anatomia do Poder, trad. portuguesa, Lisboa, 1987, págs. 159, 163 e segs.

(3) Cfr. ADRIANO MOREIRA, Ciência Política, Lisboa, 1979, pág. 22.

(4) Cfr. JOSEPH R. STRAYER, On the Medieval Origins ofthe Modern State, trad. portuguesa A origens medievais do Estado Moderno trad., Lisboa, 1985, págs. 11 e segs.

(5) As fronteiras do Estado definem os limites da área a defender de ataques externos e, sobretudo, os limites dentro dos quais a ordem interna é mantida pêlos órgãos do poder. Os bandos primitivos expulsam os intrusos, porque eles ameaçam a sua existência; as forças do Estado repelem também os poderes estrangeiros, por-

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 49

Imenso é o papel histórico do território: l) local de fixação de um povo (os povos nómadas desconhecem a existência do Estado);

2) local de agregação ou integração de elementos diversos num mesmo povo; 3) uma das bases do sentido de identidade de um povo ao longo dos tempos, em relação (por vezes em oposição) aos outros povos; 4) uma das bases da permanência do poder político. Ele chega a dar o nome ao Estado.

Outra coisa vem a ser, porém, o problema teórico da definição do território como elemento do Estado, conforme alguns escritores pretendem.

Por outro lado, não poucas diferenças derivam da maior ou menor fixidez dos limites do território e da sua maior ou menor importância, da variação da extensão média do território de época para época ou de zona para zona, dos efeitos jurídicos maiores ou menores da residência no território do Estado (quanto a cidadania ou nacionalidade, direitos e deveres, etc.) e da divergência de sentidos do princípio do exclusivismo do poder territorial ().

§ 2.° Tipos históricos de Estado

7. O desenvolvimento histórico do Estado

I — O Estado deve ser encarado como processo histórico a par de outros.

Quer como ideia ou concepção judica ou política (2) quer como sistema institucional, o Estado não se cristaliza nunca numa fórmula acabada; está em contínua mutação, através de várias fases de desen volvimento progressivo (às vezes regressivo); os fins que se propõe impelem-no para novos modos de estruturação e eles próprios vão-se modificando e, o mais das vezes, ampliando.

que a invasão é uma violação do monopólio do poder no seu território (LAWRENCE KRADER, op. cf., pág. 170).

() Cfr. Manual..., III, 3.° ed., Coimbra, 1994, pp. 219 e segs.

(2) Cfr. a síntese de JESUS FUEYO, Orden política y norma constitucional, in Revista de Estúdios Polticos, 1960, págs. 51 e segs.4 — Man. Dir. Const., l

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50____Manual de Direito Constitucional

II — Em consequência da geografia e das vicissitudes dos povos e das culturas, esse desenvolvimento pode ser isolado, oposto ou interdependente. Mas a experiência dominante vem a ser de interacção

(com ou sem convergência) de instituições a partir do contacto de civilizações.

Desenvolvimento isolado (com formas ora contrastantes, ora paralelas) é a dos Estados e civilizações do Mediterrâneo, da Índia, do Extremo Oriente, da América precolombiana, da África subsariana. Não isolado, mas oposto, aparece, no cotejo da Antiguidade oriental e da Antiguidade clássica, mais tarde, o da Europa cristã e do Islão. Desenvolvimento interdependente é o que se dá na Europa desde o Império Romano e no resto do mundo desde a colonização e a descolonização.

Hoje, sem qualquer eurocentrismo, determinante é a influência das formas europeias de Estado, a qual se prende com a estrutura da comunidade internacional. A comunidade internacional de Estados radica no sistema europeu de Estados, que (como se vai ver) se formou a partir do século xv, e pertencem-lhe Estados com as características do moderno Estado europeu.

8. Redução das formas históricas de Estado a tipos

É possível (e necessário) tomar cada fase, forma histórica ou manifestação do Estado com os seus elementos específicos definidores (que acrescem aos elementos definidores do Estado em geral), em confronto com as outras fases, formas ou manifestações de Estado, para se chegar ao conceito de tipo de Estado.

E há duas perspectivas de encarar os tipos: como equivalentes no plano da história juridico-política comparada às civilizações (Estado grego e civilização grega Estado chinês e civilização chinesa, etc.);

e como momentos de um processo histórico mais ou menos linear (o Estado grego, o Estado romano, a organização política medieval como fases do processo que desemboca no Estado moderno europeu).

A JELLINEK se deve a consideração dos «tipos fundamentais de Estado», apontando-os como tipos de Estado com relação histórica com o Estado actual — ou porque os unam uma imediata continuidade histórica, ou porque o conhecimento de uns tenha influído sobre os

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parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 51

outros. E tais são o Estado oriental, o grego, o romano, o medieval e o moderno ().

Ent outras tipologias, avulta a marxista (ou as marxistas), segundo o pensamento de que os diversos tipos de Estado hão-de corresponder a outros tantos modos de produção. Donde, o Estado despótico, o esclavagista, o feudal, o capitalista e, bem assim, o socialista (2).

Acolhe-se aqui uma distinção na linha de JELLINEK — a mais usualmente adoptada (3) e a que permite atender a todos os aspectos da evolução do conceito de Estado, sem esquecer os aspectos económicos para que chama a atenção a análise marxista. Só cabe frisar, desde já, que na Idade Média verdadeiramente não houve Estado e que na Idade Moderna é necessário subdistinguir períodos bem caracterizados.

9. O Estado oriental

I — Como traços mais marcantes do Estado do Médio Oriente apontem-se:

— Teocracia, ou seja, poder político reconduzido ao poder religioso;

— Forma monárquica (combinada com a teocracia, porquanto o monarca é adorado como um deus);

—Ordem desigualitária, hierárquica e hierática da sociedade;

() Teoria General..., cit., págs. 215 e segs.

(2) Cfr., por exemplo, Nicos POULANTZAS, Poder político e classes sociais, trad., Porto, 1971, l, págs. 156 e segs.; ou CARLOS DE CABO MARIN, Teoria histórica dei estado y dei derecho constitucional, 1 vols., Barcelona, 1988 e 1993.

(3) V., entre tantos, OTTO HINIZE, Staat und Verfassung, 1962, e Sowlogie und Geschichte, 1964, trad. castelhana Historia de Ias formas polticas, Madrid, 1968, págs. 15 e segs.; A. APPADORAI, The Substance ofPolitics, IO. ed. Madrasta, 1965, págs. 175 e segs.; MANUEL ANTUNES, Governo, m Enciclopédia Verbo, ix, págs. 845

e segs.

Noutra obra (Staatsverfassung und Heeresvertassung — 1906, trad. italiana Stato e Esercito, Palermo, 1991), HINTZE adopta uma perspectiva diferente, dizendo que toda a Constituição estatal é na origem uma Constituição da guerra, uma Constituição militar (pág. 10), e que autores da história mais importantes do que os conflitos de classes são as guerras entre os povos e que em todos os tempos as pressões externas influram de modo determinante sobre as estruturas internas (pág. 13).

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— Reduzidas garantias jurídicas dos indivíduos (o que, todavia, não significa necessariamente que eles ou que todos eles sejam degradados a meros objectos sem quaisquer direitos);

— Larga extensão territorial e aspiração a constituir um império universal () (2).

II — Lugar à parte ocupa apenas Israel, firmado na crença monoteísta, na recusa da natureza divina dos reis e no princípio da submissão da vontade destes à lei ditada por Deus (3).

10. Estado grego

I — Traços essenciais da polis, do Estado, na Grécia são:

— Prevalência do factor pessoal (o Estado é a comunidade dos cidadãos, embora não sejam estes os seus únicos habitantes — também há os metecos e os escravos);

— Fundamento da comunidade dos cidadãos: a comunidade religiosa, unida no culto de antepassados (4) (apesar de a autoridade não ter natureza divina e não predominar a casta sacerdotal);

—Relativa pouca importância do factor territorial, o que está a par da pequena extensão do território (o Estado tem carácter municipal ou can tonal, é a Cidade-Estado, e não conseguem estruturar-se ou perdurar formas de associação ou união (5));

() Um império que domine o mundo (mas o mundo conhecido do tempo e do lugar de que se trata). Sobre o assunto, v. a obra colectiva Lê concept d’empire, Paris, 1980, maxime págs. 25 e segs., 49 e segs. e 69 e segs.

(2) Cfr., por todos, MANUEL GARCIA PELAYO, Lãs formas políticas dei Antíguo Oriente, 2.” ed., Caracas, 1993.

(3) Cfr. NIYAZI YELTEKIN, La nature juridique dês droits de 1’homme, Lausana,1950, pág. 170; ou RAPHAEL DRAI, État de droit et ailiance prophétiqe dans lê droit hébraique, m Droits—revue française de théorie juridique, 15, 1992, págs. 51 e segs.

(4) Recorde-se FUSTEL DE COULANGES, La Cite Antique (de que há tradução portuguesa, Lisboa, 1957).

(5) Apesar das tentativas havidas. Cfr. GEORGE TÉNÉKIDÈS, Droit international et communautés fédérales dans Ia Grèce dês Cies, m Recueit dês Cours, 1956, li, págs. 475 e segs.

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— Deficiência ou inexistência da liberdade fora do Estado ou redução da liberdade individual à participação no governo da Cidade, não sendo a pessoa um valor em si, livre do poder público;

—Diversidade de formas de governo, sucessivamente ou com oscilações de Cidade para Cidade, e consoante as filosofias e as vicissitudes políticas, internas e externas ().

II — O contributo mais original da Grécia para o pensamento político-constitucional acha-se no período áureo da democracia ateniense — mas democracia distinta da actual, não só por ser outra a concepção de liberdade como por apenas terem direitos políticos os cidadãos de certo estrato da população, e apenas os homens, e eles os exercerem em governo directo (2); e, do mesmo modo, a isonomia ou igualdade perante a lei, apesar de fundamento da ordem social, também só dizia respeito aos cidadãos (3).

A democracia tal como é concebida pode aplicar-se (sem esquecer outros aspectos) a célebre distinção de BENJAMI CONSTANT entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos (4), próxima da distinção entre liberdade-participação e liberdade-autonomia de alguma teorização constitucional dos séculos xix e xx.

Vale a pena transcrever CONSTANT:

«A liberdade dos antigos consistia cm exercer colectiva, mas directamente, várias partes da soberania, em deiberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com estrangeiros tratados de aliança, em votar

() Cfr. CHARLS HOWARD MCILWAIN, Constitutionalism Ancient and Modern,1947, trad. castelhana Constitucionalismo antiguo y moderno, Madrid, 1991, págs. 45 e segs.; FRANCISCO RODRIGUEZ ADRADOS, Illustración y poltica en Ia Grécia Clasica, Madrid, 1966; A. R. BURN, As Cidades Rivais da Grécia, trad., Lisboa, 1972; ROBERTO BONINI, Polis, m Diionário di Poltica, Turim, 1976, págs. 724 e segs.; MÁRIO DOGLIANI, op. cit., págs. 33 e segs.

(2) O que não quer dizer que não existam elementos representativos: v. J. A. O. LARSEN, Representative Government in Greek and Roman History, Berkeley e Los Angeles, 1966.

(3) Assim, por todos, WERNER JAEGER, Alabana de Ia ley, trad., Madrid,1982, pág. 35.

(4) De Ia liberte dês anciens comparée à cê lie dês modernes, 1815 (in Cours de Politique Constitutionnele, iv Paris, 1820, págs. 238 e segs.).

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as leis, em pronunciar sentenças, em examinar as contas, os actos e a gestão dos magistrados, em fazê-los comparecer perante o povo, em submetê-los a acusações, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que se dava isso que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam como compatível com tal liberdade colectiva a sujeição completa do indivíduo à autoridade do conjunto. — Todas as acções privadas estavam sob uma vigilância severa. Nada era concedido à independência individual, nem no tocante à religião. A faculdade de escolher o seu culto, faculdade que nós olhamos como um direito dos mais preciosos, teria parecido aos antigos um crime e um sacrilégio. Nas coisas que nos parecem mais úteis, interpõe-se a autoridade do corpo social e afecta a vontade dos indivíduos. — Nas relações mais domésticas, intervém ainda a autoridade.

«Assim, entre os antigos, o indivíduo, soberano quase habitualmente nos assuntos púbicos, é escravo nos assuntos privados. Como cidadão, decide da paz e da guerra; como particular, aparece circunscrito, observado, reprimido em todos os seus movimentos; enquanto porção do corpo colectivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exila, fere de morte os seus magistrados ou seus superiores; enquanto submetido ao corpo colectivo, pode, por sua vez, ser privado do seu estado, despojado das suas dignidades, banido, condenado à morte pela vontade discricionária do conjunto de que faz parte. Entre os modernos, pelo contrário, o indivíduo, independente na sua vida privada, não é soberano, mesmo nos Estados mais livres, senão na aparência...» () (2).

Ou, como dizem Autores mais recentes:

«A política era um assunto de todos os cidadãos, mas, entretanto, todos os assuntos dos cidadãos eram assuntos políticos» (CHRISTIAN MEIER).

«Os cidadãos antigos não usufruem de direitos do homem e do cidadão e nem sequer de liberdade no plural ou no singular, mas só de deveres....

() Ibidem, págs. 241 e segs.

(2) Cfr. as observações criticas de JELLINEK, op. cit., págs. 223 e segs.; e, doutros prismas, GIULIANO CRIFÒ, Rapports entre 1’égalité et Ia liberte dans lê monde ancien et particulièrement dans Ia Rome républicaine, in L’Égalité, obra colectiva, viu, Bruxelas, 1982, págs. 431 e segs.; GEORGES TÉNÉKIDÈS, La Cite d’Athènes etlês droits de 1’homme, m Protecting Human Rigths: lhe European Dimension-Studies in honour ofGêrard J. Wiard, obra colectiva, Colónia, 1988, págs. 605 e segs.; GEORGES VLACHOS, La Republique dês Athéniens, État de droit et de justice. Lê témoignage de Démosthéne, in Revue internationale de droit compare,1993, págs. 843 e segs.

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Pare I—O Estado e os sistemas constitucionais 55

Os Atenienses apenas gozam da liberdade que o Estado lhes deixa; um Estado moderno não cuida da moralidade dos cidadãos salvo nos casos expressamente definidos, enquanto que o direito de um cidadão antigo de perscrutar a vida dos seus concidadãos era ilimitado, mesmo se não exercido na prática» ().

Todavia, apesar de a polis ser algo de essencial, superior e insubstituível, não deixa a cultura helénica de, no limite, prefigurar um direito de desobediência a leis injustas (ANTÍGONA) (2).

In — Entretanto, é na Grécia que o poder político é, pela primeira vez, questionado e objecto de especulação intelectual. Nela se encontram as matrizes do pensamento político ocidental, tanto filosófico como científico. Nela surgem os primeiros quadros classificatórios de sistemas políticos.

Como bem se sabe, à visão idealista de PLATÃO (A República, As Leis) contrapõe-se a visão realista de ARISTÓTELES, com o seu estudo de dezenas de Constituições (Política). E da mesma maneira, são diferentes as classificações de formas de governo de um e de outro: em PLATÃO, formas reais — timocracia, oligarquia, democracia, tirania — e ideais — monarquia e aristocracia; em ARISTÓTELES, formas puras

— monarquia, aristocracia, politeia (democracia) — e degeneradas

— tirania, oligarquia, demagogia (3).

11. O Estado romano

I — Não são poucas, nem menores as semelhanças de Roma com as cidades da Grécia. Roma constitui-se pelo agrupamento das famí-

() CHRISTIAN MEIER e PAUL VEYNE, Kannten die Griechen die Demokratie?, trad. italiana Uidentità dei cittadino e Ia democraia in Grécia, Bolonha, 1989, págs. 14, 73-74 e 95.

(2) Recorde-se a tragédia de SÓFOCLES (de que há tradução portuguesa, por MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, Coimbra, 1984).

(3) NORBERTO BOBBIO, Teoria delle Forme di Governo, Turim, 1976, págs. 16 e segs.; e, entre nós, CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, l, Coimbra, 1953, págs. 11 e segs.; SILVA CUNHA, História breve das ideias políticas, Porto, 1982, págs. 43 e segs.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Ciência Política, i, 1994.

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lias e das gentes; e continua a ser um Estado de base municipal, ainda quando organiza um vastíssimo império em três continentes.

Conforme escreve um Autor, no mundo antigo não domina uma concepção cosmopolito-igualitária, mas antes aristocrática. O homem como tal possui direitos na medida em que faz parte de uma comunidade política (em sentido lato). O direito não é qualquer coisa de inato, mas, pelo contrário, de adquirido, conquistado e mantido: os membros de uma comunidade vencida na guerra não têm direitos a não ser por concessão especial. O sistema político antigo aparece como um sistema de desigualdade e de exclusão recíproca. Da perspectiva de cada Estado, o direito político subjectivo dispõe-se em círculos concêntricos e escalonados, tanto mais largos e mais fixos quanto a quantidade de direitos políticos é menor até ao não-direito; e a igualdade só existe no interior de um mesmo círculo.

Em Roma, quem se encontra fora do círculo do Estado é hostis; o que se encontra no raio menor do império, mas fora da rés publica é hostis submetido — servus, dediticius, súbdito ou cliente; o que se encontra no raio menor, mais próximo da rés publica, embora, ainda assim, fora dela, é o aliado — socius, amicus; o que se acha na sociedade de rés publica, mas fora do governo, é o civis, o qual toma parte na assembleia do popuius; o que se encontra no interior da esfera do governo, visto que tem a pretensão de governar, é o nobilis da aristocracia; e este, na medida em que tem o poder executivo, é o magistratus e, na medida em que tem o direito de o controlar, é o pater, membro do Senado ().

A rés publica corresponde a libertas, quer a libertas que o civis plebeu considera aequa, quer a que o patrício reclama como liberdade de governar e de ser governado e que, em face do plebeu, representa a dignitas. E é assim que a rés publica se contrapõe ao regnum, domínio de um só, porque no regnum a igualdade é só no estado de sujeição (todos iguais, porque todos igualmente subordinados à vontade de um só) (2).

II — Peculiaridades do Estado romano são:

— O desenvolvimento da noção de poder político, como poder supremo e uno, cuja plenitude — imperium, potestas, majes-

() GIULIANO CRIFÒ, op. ci., loc. cit., págs. 428-429. (2) Ibidem, pág. 438.

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tas () — pode ou deve ser reservada a uma única origem e a um único detentor (2);

- A consciência da separação entre o poder público (do Estado) e o poder privado (do pater famlias) e a distinção entre Direito público e Direito privado;

-A consideração como direitos básicos do cidadão romano não apenas do jus suffragii (direito de eleger) e do jus honorum (direito de acesso às magistraturas) mas também do jus connubii (direito de casamento legítimo) e do jus commercii (direito de celebração de actos jurídicos);

- A progressiva atribuição de direitos aos estrangeiros e a formação do jus gentium como conjunto de normas reguladoras das relações em que eles intervêm (3);

- A expansão da cidadania num largo espaço territorial (culminando com Caracala, em 212), em contraste com o carácter meramente territorial das monarquias orientais e o carácter pessoal restrito das Cidades-Estados gregas (4).

() Rigorosamente havia distinção: o imperium era o poder como faculdade soberana de mandar; a potestas era o poder como obreiro, modelador e organizador;

a majestas envolvia um sentido de grandeza e dignidade do poder (MANUEL ANTUNES, op. cit., oe. cit., pág. 846). Cfr., discernindo mais exaustivamente a auctoritas, a potestas e o imperium, ADOLF CASPARY, Sur Ia notion de souveraineté du droit romain in Revue du droit public, 1936, págs. 625 e segs.; e, sobre a auctoritas, GARCIA PELAYO, Idea de Ia Poltica y tros escritos, Madrid, 1983, págs. 135 e segs.

(2) Diz JELLINEK (op. cit. pág. 235) que, no mundo ocidental, foi em Roma que pela primeira vez o povo na totalidade apareceu corporizado numa única pessoa, o princeps. Mas a personalização do poder que se verifica durante o principado leva alguns a falar numa síntese entre Cidade-Estado grega e despotismo oriental (assim, MANUEL ANTUNES, toe. cit.). Cfr. ainda DANIEL VALLE RIBEIRO, O Principado: origem e ideologia, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.0 69-70, Julho de 1989—Janeiro de 1990, págs. 135 e segs.

(3) Cfr. MARNOCO E SOUSA, Histórias das Instituições de Direito Romano, Coimbra, 1910, págs. 280 e segs.

(4) Sobre a relação entre a pertença a um município e a cidadania romana, v. FERDINAND DE VISSCHER, La cittadinanw romana, m Annali dei Seminário Giuridico deli’Università di Catania, 1948-1949, págs. l e segs.

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58Manual de Direito Constitucional

A razão do grande interesse do estudo do Direito público romano está no longo período de tempo a observar, com uma rica evolução política (realeza, república, principado) e social (do Estado patrício ao Estado plebeu), e no incremento que nele tiveram algumas das noções e das instituições jurídicas (como as magistraturas colegiais da época republicana) (1).

In — Finalmente, seria durante o domínio romano da Palestina que surgiria o Cristianismo e seria para o Império que ele, primeiro, se difundiria; e o Cristianismo viria a abalar as principais concepções sociais romanas e os próprios alicerces de Cidade antiga, ao reconhecer à pessoa uma nova posição dentro da comunidade política e ao contestar o carácter sagrado do Imperador.

A pessoa toma-se agora um valor em si, por criada à imagem e à semelhança de Deus; todos os homens são pessoas com igual dignidade («Não há judeu, nem grego, não há escravo, nem homem livre...»), chamados à «liberdade dos filhos de Deus»; e o espiritual é distinto do temporal («Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus») (2).

Conforme salienta ERIC VOEGELIN, a crença cristã introduz a imediatividade na relação do homem com Deus: o rei só está ligado a Deus, os

() Cfr. RUDOLPH VON JEHRING, O Espírito do Direito Romano, trad., Rio de Janeiro, 1943, maxime, l, págs. 154 e segs., e li, págs. 159 e segs.; ARTUR MONTENEGRO, O Antigo Direito de Roma, I, Coimbra, 1898, págs. 119 e segs., e A conquista do Direito na sociedade romana, Coimbra, 1934, págs. 67 e segs.; PEDRO MARTINS, História geral do Direito Romano, Peninsular e Português, Coimbra, 1907, págs. 83 e segs.; CHARLES HOWARD MCINWAIN, op. cit., págs. 64 e segs.; JOÃO DE CASTRO MENDES, História do Direito Romano, policopiado, Lisboa, 1956, págs. 78 e segs.; LÉON HAMON, Institutions politiques romaines, Paris, 1970; MARCELLO CAETANO, História..., cit., págs. 65 e segs.; ALBERTO BURDESE, Manuale di Dirito Pubblico Romano, 2.° ed., Turim, 1982; NELSON SALDANHA, Direito Público Romano e Revoluções Modernas, m Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.” 59, Julho de1984, págs. 175 e segs.; AGERSON TABASA, Da Representação Política na Antiguidade Clássica, Fortaleza, 1987, págs. 39 e segs. E ainda OLIVEIRA MARTINS, História da República Romana, 1885 (7. ed., Lisboa, 1987).

(2) Cfr., por todos, JÚLIO NAVARRO MONZÓ, Los problemas de Ia democracia, m Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano xm, 1932-1934, págs. 49 e segs.; FRANZISKUS STRATMANN, Cristo e o Estado, trad., Lisboa, 1956.

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magistrados a Deus e ao rei e os súbditos a Deus, ao rei e aos magistrados;

pelo contrário, na hierarquia de AKHENATON (do Egipto), o soberano era o exclusivo mediador entre Deus e os homens ().

12. O pretenso Estado medieval

I — A Idade Média, a Idade Média europeia (2), divide-se em duas grandes fases: a das invasões e a da reconstrução. A sua história resume-se grosso modo na passagem da insegurança geral à pequena segurança local, lentamente alargada, e na passagem da decomposição ou da ausência de poder a uma situação complexa, com o poder real estreitado entre a autoridade universal da Igreja e o poder parcelar (coexistente ou não) dos barões e dos senhorios corporativos.

Num e noutro período, não há Estado com as características que geralmente se lhe apontam, na quase totalidade do Continente. Por certo, não são de esquecer o Império Romano do Oriente, que irá sobreviver até 1453 (3); os reinos das invasões bárbaras (como o dos Suevos, com capital em Braga, e o do Visigodos); o Império Carolíngio e os inícios do Sacro Império Romano-Germânico. Estes foram Estados, mas, de modo algum, identicadores das concepções e das formas políticas medievais, fosse pelo seu progressivo afastamento do Ocidente (caso de Bizâncio), fosse pela sua precariedade ou duração efémera (os reinos bárbaros e os dois Impérios).

II — As concepções juridico-políticas romanas apagam-se diante das concepções cristãs e germânicas, embora, quanto a estas, mais nuns sítios do que noutros (mais na Europa central do que na Península Ibérica, por exemplo) (4).

() Die politischen Religionen, 1938, trad. francesa Lês Religions Politíques, Paris, 1994, pág. 58.

(2) Porque outras áreas geográficas e civilizacionais (v. g., a índia ou o Japão) também tiveram as suas Idades Médias.

(3) Cfr. (mas só considerando a relação com a Igreja) STEVEN RUNCIMAN, The Byzantine Teocracy, 1977, trad. portuguesa A Teocracia Biantina, Rio de Janeiro, 1978.

(4) Sobre as doutrinas e concepções juridico-políticas da Idade Média, v. Ono GIERKE, Political Theories ofthe Middie Age trad., Cambridge, 1900 (reimpressão

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Manual de Direito Constitucional

O Cristianismo ou, talvez melhor, a Cristandade envolve toda a vida medieval e projecta-se no plano político sobretudo como exigência de limitação do poder — do poder que vem de Deus («Non est potestas nisi a Deo»), que deve ser aferido por critérios de legitimidade e que deve ser usado para o bem comum (Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum). É nesse elemento de ordem objectiva que reside a principal garantia das pessoas.

Insistindo na distinção entre lei divina e lei humana ou entre lei eterna, lei natural e lei humana e analisando a contradição entre lei humana e lei natural, a Escolástica com S. TOMÁS DE AQUINO (Summa Teológica), sobretudo viria, mais tarde, a enfrentar o problema da lei injusta e a admitir o direito de resistência em certas condições (!).

Por seu lado, as concepções germânicas colocam o príncipe (e as relações directas e pessoais dos súbditos com ele), não a Cidade, como centro da vida política (e daí que, em contraste com a maior parte da Antiguidade clássica, os senhorios e depois os novos Estados europeus venham quase todos a adoptar a forma monárquica). Afirmam também o dualismo da posição príncipe (ou rei)-povo, mais tarde rei-reino.

Finalmente, na Baixa Idade Média, alguns sectores intelectuais viriam a sustentar que o poder vinha de Deus per populwn (S. TOMÁS)

em 1968); PEDRO CALMON, O Estado e o Direito n’Os Lusíadas, Rio de Janeiro-Lisboa, 1945; FRITZ KERN, Derecho dei Rey y Derechos dei Pueblo, trad., Madrid,1955; MANUEL GARCIA-PELAYO, El Reno de Dios, Arquétipo Poltico, Madrid, 1959;’ ERNST CASSIRER, O Mito do Estado, trad., Lisboa, 1961, págs. 105 e segs.; BRUNO PARADISI, Formule di sovranità e tradwone bblica, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, págs. 785 e segs.; MARTIM DE ALBUQERQUE, O poder político no Renascimento Poruguês, separata de Estudos Políticos e Sociais, vols. iv e v, e Política, Moral e Direito na Construção do Conceito do Estado em Portugal, m Estudos de Cultura Portuguesa, Lisboa, 1983, págs. 135 e segs.; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal Lisboa, 1994, págs. 29 e segs.

(i) Sobre a conexão entre a investidura do Rei «por graça de Deus» e o direito de resistência, cfr. Oo BRUNNER, Neue Wege der Verfassung und Soialgeschichte, Gotinga, 1968, trad. italiana Per una una nuova storia costituonale e sociale, Milão, 1970, pág. 172.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 61

ou até que o pactum subjectionis não punha em causa o poder de raiz do povo (MARSÍLIO DE PÁDUA).

In — com o feudalismo dissolve-se, todavia, a ideia de Estado (). A ordem hierárquica da sociedade traduz-se numa hierarquia de titularidade e exercício do poder político, numa cadeia de soberanos e vassalos, ligados por vínculos contratuais. A realeza, muito longínqua, fica reduzida a uma dignidade ou prerrogativa no cimo da ordem feudal, tendo a seu favor apenas o título ou a extensão do domínio.

Nestas circunstâncias, o poder privatiza-se. Em vez do conceito de imperium vem o de dominium (2), em conexão com os princípios da família e da propriedade: investidura hereditária, direito de primogenitura, inalienabilidade do domínio territorial (3). Mais que em «forma de Estado» patrimonial deve falar-se em ordenamento jurídico sob regime patrimonial (4). E a concepção patrimonial do poder, a qual, transformada, acabaria por subsistir quase até ao constitucionalismo.

Além das grandes abadias monacais, as estruturas urbanas autónomas que vão surgindo — comunas ou concelhos, corporações de mesteres, universidades, etc. — cada qual com a sua função, desenvolvem-se (ou formam-se e desenvolvem-se) à margem de qualquer estrutura administrativa centralizada.

E porque não há uma relação geral e imediata entre o poder do Rei e os súbditos, os direitos são a estes conferidos não enquanto tais, individualmente considerados, mas sim enquanto membros dos grupos em que se integram; são direitos em concreto e em particular, como expressão da situação de cada pessoa; direitos que se apresentam como privilégios, regalias, imunidades que uns têm e outros

() V., por todos, MAX WEBER, op. cit., l, págs. 204 e segs., e n, págs. 810 e segs.

(2) Cfr. ROGÉRIO SOARES, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra,1955, págs. 48-49.

(3) QUEIROZ LIMA, Teoria do Estado, 8.” ed. Rio de Janeiro, 1957, pág. 81.

(4) COSTANTINO MORTATI, Lê forme di overno, Pádua, 1973, pág. 9.

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não, ou direitos institucionais, em vez de direitos atribuídos genericamente a todas as pessoas ().

IV — Naturalmente, o papel da Igreja avulta nesta época, tal como já avultara aquando da queda do Império do Ocidente, se bem que em circunstâncias e em moldes diversos.

Como escreve ALFREDO VON MARTIN, à Igreja Universal, muito centralizada, contrapõe-se uma multiplicidade de grupos, de irradiação local, entre os quais o vínculo de coesão é muito ténue. Na sociedade medieval, o factor decisivo de organização tanto política quanto cultural vem a ser uma instituição em rigor «não medieval», de base jurídica-política, e estruturada segundo um princípio racional-finalista, ou seja, uma instituição estranha, no mais íntimo do seu ser, à tendência feudal e corporativa (2).

Era a Igreja, e não o Estado (que não existia ainda, ou já não existia) que se contrapunha à sociedade e com ela mantinha relações (3), e o menor valor do Estado comparado com o da Igreja era um dos princípios fundamentais da concepção medieval do mundo, que nem sequer o poder temporal punha em questão (4).

13. O Estado moderno ou europeu

I — Depois da organização política medieval — uma série de poderes ou autoridades, cada qual com ampla jurisdição, vertical-

() A Magna Chara esclarece de per si a diferença entre esses direitos e os direitos no Estado constitucional moderno:

«l. A greja de Ingaterra será livre.

«2. Concedemos também a todos os homens livres do reino todas as liberdades para serem gozadas e usufruídas por eles e pêlos seus herdeiros.

«13. A cidade de Londres conservará as suas antigas liberdades e usos próprios.

«21. Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pêlos seus pares e de harmonia com a gravidade do delito.

«41. Os mercadores terão plena liberdade para sair e entrar em Inglaterra.» Cfr., outros textos medievais em GREGORIO PECES-BARBA, Textos Básicos sobre Derechos Humanos, Madrid, 1973, págs. 16 e segs.

(2) Socioloia de Ia Cultura Medieval, trad., Madrid, 1970, pág. 39.

(3) Ibidem, pág. 43.

(4) Ibidem, pág. 92.

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mente dispostos — vai ressurgir a noção de Estado, na plena acepção. Pois o poder concentra-se no Rei e toda a autoridade pública passa e emanar dele; ele atinge todos os indivíduos — por serem súbditos do mesmo Rei; o território adquire limites precisos e a todas as parcelas o governo central faz chegar a sua lei.

amém- .mau A UIP p.p? uialçft íwA A sw wVy cão, essa concentração acompanha-se de uma crescente institucionalização (), determinada pelo próprio alargamento, da comunidade política e pelo reforço do aparelho de poder, bem como pelas transformações intelectuais que, entretanto, ocorrem. E com o constitucionalismo todo o Estado ficará envolvido por regras e processos jurídicos estritos.

II — O Estado moderno de tipo europeu, para lá das características globais de qualquer Estado, apresenta, porém, ainda características muito próprias:

— Estado nacional: o Estado tende a corresponder a uma nação ou comunidade histórica de cultura; o factor de unificação política deixa, assim, de ser a religião, a raça, a ocupação bélica ou a vizinhança para passar a ser uma afinidade de índole nova;

— Secularizaçâo ou laicidade: porque — por influxo do Cristianismo e ao contrário do que sucede com o Estado islâmico (2) — o temporal e o espiritual se afirmam esferas distintas e a comunidade já não tem por base a religião, o poder político não prossegue fins religiosos e os sacerdotes deixam de ser agentes do seu exercício (3) (4);

() O L’Etat, c’est mói de Luís XIV significa concentração, não personalização ou individualização do poder.

(2) Cfr. BERTRAND BADIE, Lês Deux États-Povoir et Société en Occident et en Terre d’lslam, Paris, 1986; ou, doutro prisma, DJIBRIL SAAB, La «laïcité», archéologie historique et significations, in Conscience et liberte, n. 38, 2.” semestre de 1989, págs. 7 e segs.

(3) Embora até momento tardio subsistam, no plano institucional, regimes de união entre a Igreja e o Estado. Por outro lado, laicidade não é o mesmo que o laicismo (ou regime a-religioso ou anti-religioso) que, por vezes nos séculos xix e xx,

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— Soberania; ou poder supremo e aparentemente ilimitado, dando ao Estado não só capacidade para vencer as resistências internas à sua acção como para afirmar a sua independência em relação aos outros Estados (pois trata-se agora de Estado que, ao invés dos anteriores, tem de coexistir com outros Estados) ().

Em suma, a ordem estatal revela-se, doravante, como um projecto racional de humanidade em volta do próprio destino terreno (2).

In — Como tem sido observado, no mundo antigo, os Estados dividiam-se em duas categorias: os impérios — grandes, mas deficientemente integrados; e unidades pequenas, mas com elevado grau de coesão — as Cidades-Estados. Os Estados europeus combinariam, em certa medida, as virtudes dos impérios e das Cidades-Estados. Seriam suficientemente vastos, mas conseguiriam envolver no processo político uma boa parte dos seus habitantes e criar um certo sentimento de identidade comum (3).

14. O nome de Estado

A evolução da terminologia para designar a sociedade política reflecte, como não podia deixar de ser, a evolução dos seus tipos e dos respectivos conceitos (4).

sucede ao regalismo (ou interferência do Estado na jurisdição eclesiástica). Cfr. tomo iv.

(4) O poder no Ocidente não teve senão esporadicamente tendência para se erigir em teocracia, em consequência da natureza transcendente do poder superior de Deus: THOMAS MOLNAR, Lê socialism sans visage, trad. Paris, 1976, pág. 67. V. ainda, sobre os factores religiosos da secularização política, GUY HERMET, Sociologie de Ia Construction Démocratique, Paris, 1986, págs. 73 e segs.

() HINTZE, Historia..., cit., pág. 303.

(2) PIERANGELO SCHIERA, Stao Moderno, m Diionário di Poltica, págs. 1008-1009. E, na mesma linha, MAURIZIO FIORANTI, Stato e Costituzione, Turim, 1993, págs. 16 e segs.

(3) JOSEPH R. STAYER, On the Medieval Origins ofthe Modern State, trad. portuguesa As Origens Medievais do Estado Moderno, Lisboa, 1985, págs. 16 e 17.

(4) JELLINEK dedica um capítulo inteiro ao assunto (op. cit., págs. 95 e segs.), assim como ORLANDO, o fundador da escola italiana de Direito público (I nome di

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 65

Assim, à polis grega e à civitas ou rés publica (ou, mais completamente, Senatus Populusque Romanus), seguem-se, na Idade Média, a adopção de regnum, como entidade política juridicamente construída e diferenciada da pessoa do Rei (); corona toma-se, mais tarde, sua expressão simbólica (2); terra é locução corrente; e civitas (ou Burg) não possui sentido político. É só com o aparecimento do moderno Estado europeu que se impõe uma nova denominação.

Vem a ser na Itália renascentista, com grande variedade de organizações e formas políticas, que se consagra uma designação genérica, neutra e, sobretudo, mais abstracta: o vocábulo Estado (stato), certamente proveniente do latim status (que equivale a constituição ou ordem (3) e já empregado, de resto, no sentido de condição social desde o século xn). E o primeiro autor que introduz o termo na linguagem científica é MAQUIAVEL em II Prncipe: «Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens são Estados e são ou repúblicas ou principados».

Do italiano a palavra passa para as restantes línguas europeias nos séculos xvi e seguintes, com maior ou menor êxito e precisão (4).

Stato, m Rivista di Diritto Publico, vol. xxv, págs. 345 e segs., e in Diritto Pubblico Generale, Milão, 1954, págs. 185 e segs.). Mais recentemente v. PASSERIN DENTRÈVES, La dottrina dello Stato, 2. ed., Turim, 1967, págs. 45 e segs.; BERNARD GUENÉE, UOccident aux x siècles — Lês États, Paris, 1972, págs. 60 e segs.;

JEAN-PIERRE BRANCOURS, Dês «estas» à l’État: évolution d’un mot, in Archives de Philosophie de Droit, 1976, págs. 39 e segs.; ANTÓNIO MARONGIU, Dottrine e Istitutioni Poliliche Medievali e Moderne—Raccolta, Milão, 1979, págs. 97 e segs.;

FRANCISCO JOSÉ VELOZO, Estrutura do Estado in Scientia Jurídica, 1981, págs. 186 e segs.; MARTIM DE ALBUQUERQUE, Política..., cit., loc. cit., pág. 168.

() MARTIM DE ALBUQUERQUE e RUY DE ALBUQUERQUE, Hstória do Direito Poruguês, i, 8.” ed., Lisboa, 1993, pág. 424.

(2) Ibidem.

(3) Cfr. duas aplicações do termo: todo o ordenamento jurídico tende a estabilizar-se, a converter-se em «estado», em status (CABRAL DE MONCADA, op. cit., pág. 33); o Estado é status reipublicae no duplo sentido da situação de uma comunidade com capacidade para produzir uma vontade e uma obra comum e da própria comunidade nessa situação (HINTZE, op. cit., pág. 294).

(4) BODIN fala ainda em república (em Lês six livres de Ia republique). E, entre nós, RODRIGUES LOBO, por exemplo, ainda afrma: «A pessoa real é a cabeça da República, como escreve Plutarco; e nenhuma coisa na terra há sobre ela mais que a Lei,5 — Man. Dir. Const., l

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E os nomes dos Estados em concreto adquirem valor jurídico e simbólico, enquanto exprimem momentos históricos determinados ou determinadas feições de individualizar os Estados, a sua forma ou o seu sistema político, uns em relação aos outros (assim, o Reino de Portugal e dos Algar vês) ().

CAPITULO II

O DIREITO PÚBLICO MODERNO E O ESTADO EUROPEU

§ 1.° Formação

15. O sistema político medieval

A organização política da Idade Média europeia tem de se compreender na perspectiva mais ampla do Ocidente cristão. com efeito, a ausência de Estado neste período deve-se tanto à força dos vínculos feudais, senhoriais e corporativos que no interior de cada reino limitam e repartem o poder central (2) quanto à força dos vínculos de subordinação (de algum modo análogos aqueles) do Rei ao Papa e ao Imperador.

O Ocidente aparece como uma unidade — de civilização e de fé, e também política e social (apesar de muita diversificação): é o que se chama a Respublica Christiana (3). Tal unidade remonta à recor-

a que deve obedecer, e ela fica sendo Lei para todos os inferiores» Corte na Aldeia, edição da Livraria Sá da Costa, 1945, pág. 274).

() Fala-se também em Estado nessa altura para designar província ou território em situação particular (por ex., entre nós, os Estados do Brasil ou o Estado da índia).

(2) Cfr. WERNER NAEFF, Staat und Staatgedanke, trad. castelhana La Jdea dei Estado en Ia Edad Moderna, Madrid, 1947, pág. 6.

(3) Cfr., por todos, ANTÓNIO PÉREZ MARTIN, La «Respublica Christiana» Medieval: Pontificado, Império y Reino, in El Estado Espani en su dimensión his-

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dação do Império Romano e fica reforçada, objectiva e subjectivamente, pela ameaça do Islão a sul e a leste da Europa.

Mas não eram pequenas as fraquezas deste sistema: o localismo da vida social, a precariedade das estruturas económicas, a grosseira tutela dos direitos dos indivíduos; sobretudo, a deficiência interna resultante da contraposição entre o Papa e o Imperador, entre o Sacerdotium e o Imperium, entre o poder espiritual e o poder temporal, levando a frequentes lutas que não deixam de ainda mais debilitar um e outro ().

A teoria canónica manteve a ideia de um império universal, mas a Cúria agiu sempre de modo a contrariar as pretensões do Imperador à um domínio efectivo para além da Itália e da Alemanha (2).

16. A substituição do sistema político medieval

Desde os séculos xm-xiv ocorre a crise do sistema, até por reflexo da crise geral da mentalidade e da vida medievais (as Cruzadas e o rompimento das barreiras do Mediterrâneo, melhores comunicações internas e alargamento das áreas de segurança, novas tendências literárias e artísticas que hão-de conduzir ao Renascimento, as cidades e as manifestações de espírito burguês e de economia mercantil e capitalista).

Papel importantíssimo têm então dois factos: o despontar das nações europeias e a recepção do Direito romano. As nações, comunidades de laços novos e especiais assentes em afinidades de espírito e de interesses e no sentimento comum (3), transformam a geografia da Europa. O Direito romano, estudado e divulgado pêlos legistas pre-

torica, obra colectiva, Barcelona, 1984, págs. 59 e segs.; ou RUY DE ALBUQUERQUE e MARTIM DE ALBUQUERQUE, op. cit., págs. 373 e segs.

() E o caso da questão das investiduras (1024-1112).

(2) Cfr. HINTZE, Historia..., cit., págs. 143 e 146, ou VEZIO CRISAFULLI, Leioni di Diritto Costituionale, 2. ed., l, Milão, 1970, pág. 55 (desde Carlos Magno o Império era uma abstracção, não uma realidade).

(3) Ao passo que na Idade Média o sentimento do destino comum é de natureza religiosa ou de pertença social (donde, a unidade da Europa, por um lado, e o relevo dos estratos sociais, por outro).

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parados nas Universidades, irá pôr em causa as concepções jurídico-políticas de origem germânica.

As nações vão-se formando durante séculos. O primeiro sinal da tomada de consciência de uma comunidade de si mesma é dar-se um nome, separando os que a ela pertencem dos que lhe são estranhos ou estrangeiros. Os nomes dos países são agora nomes de povos, e não de terras. E outros elementos acrescem ou se acentuam:

a língua, a procura de origem comum, a idêntica vivência da religião, os santos e os heróis, o hábito de viver juntos, interesses comuns não puramente locais, a própria ideia de sujeição ao rei. Sentimento nacional existe já, em alguns países, nos séculos xiv-xv ().

As sociedades políticas estaduais, que vão surgir em consequência das causas gerais apontadas ficarão, pois, sob a influência das nações. A comunidade nacional dará o espaço e o apoio necessários para a acção do rei e cada Estado será talhado à medida de uma nação. Ou ainda, segundo um autor, a nação é a ideologia do Estado burocrático centralizado (2).

O renascimento do Direito romano, a partir de fins do século xi e sobretudo do século xi, é um dos mais importantes eventos da história cultural europeia. Direito do Sacro Império, os reges vão também favorecer a sua recepção na medida em que se afirmam nos seus reinos iguais ao imperator e constróem o seu poder à semelhança do Imperador (3) e as categorias jurídicas romanas vão largamente enformar todas as novas construções políticas.

() Cfr. BERNARD GUENNÉ, 07. cit., págs. 113 e segs. e 296 e segs.; MARTIM DE ALBUQUERQUE, A consciência nacionial portgesa, Lisboa, 1974, maxinie págs. 49 e segs. e 273 e segs.; ou a obra colectiva The Formation of National States in Western Europe, editada por Charles Tilly, Princeton, 1975; JOSEPH R. STRAYER, op. cit., pág. 17; PIERRE FOUGEYROLLAS, La Nation — Essor et déclin dês sociéiés moderns, Paris, 1987; ERNEST GELLNER, Nations and Nationalism, 1983, trad. portuguesa Noções e Nacionalismo, Lisboa, 1993.

GELLNER sustenta, porém, que é o nacionalismo que dá origem à naço, e não o contrário (pág. 89), e define-o como princípio de unidades culturais homogéneas servindo de base da vida política e da unidade cultural obrigatória de governantes e governados.

(2) MÁRIO ALBERTINI, L’Idée de Nation, in L’ldée de Nation, obra colectiva, Paris, 1969, pág. 13.

(3) NUNO ESPINOSA GOMES DA SLVA, op, cit., pág. 202.

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17. O processo de criação dos Estados europeus

Em virtude da situação política existente, o processo de criação dos Estados modeos europeus consiste na realização concomitante de esforços dos reis para se libertarem dos vínculos internos e externos ao desenvolvimento da plenitude do seu poder:

a) Internamente, no sentido da centralização do poder, ou seja, da reintegração das faculdades jurisdicionais (e outras) dispersas pêlos senhores feudais e da extinção das imunidades e dos privilégios atribuídos a estratos sociais ou a comunidades locais;

b) Externamente, no sentido da emancipação política (mais tarde, com a Reforma numa grande zona da Europa, separação político-religiosa) em relação ao Papa e ao Imperador () (2).

Este processo possui natureza jurídica. Os princípios jurídicos fornecem razões, indicam meios e facilitam a sua realização (3). Exemplifica-se aqui como o Direito não se reduz a um quadro condicionado, é sobretudo um elemento condicionador da evolução social e política.

18. A soberania e a organização do Estado

I — A moderna ideia de Estado tem o seu expoente na ideia de soberania. Talvez não fosse este um conceito inteiramente novo,

() O Papa, que em 1250 ainda consegue triunfar do Imperador, cinquenta anos depois já não consegue triunfar do Rei de França: é o conflito entre Bonifácio VIII e Filipe o Belo.

(2) Sobre este processo, v. as sínteses de WERNER NAEFF, op. cit., maxime págs. 8 e segs.; HERMAN HELLER, Staaslehre, trad. portuguesa Teoria do Estado, São Paulo, 1968, págs. 157 e segs.; MANUEL GARCIA PELAYO, Hacia el surgimento histórico dei Estado moderno, in Idea de Ia Poltica y tros escritos, Madrid, 1983, págs. 109 e segs.; DANIEL-LOUIS SEILER, op. ci., págs. 79 e segs. (falando em duas matrizes institucionais, a inglesa e a lotaríngio-germânica); GIANFRANCO POGGI, op. cit., págs. 34 e segs.

(3) PAULO MERÊA, O Poder Real e as Cortes, Coimbra, 1923, págs. 8-9.

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mas JEAN BODIN (Lês six livres de Ia Republique, 1576) pô-lo a claro, purificou-o e fortaleceu-o, fazendo dele um conceito jurídico () unitário (2).

Se bem que BODN defina a soberania — souveraineté, puissance souveraine absolut et perpétuelle — em relação a qualquer Estado, a sua obra revela-se (como, anal, quase todas as grandes obras do pensamento político-constitucional) um estudo situado, com que fundamenta juridicamente o poder do Rei em França no momento da libertação dos vínculos feudais e da centralização (3) (4).

II — A soberania implica ainda imediatividade ou ligação directa entre o Estado e o indivíduo, ao contrário do que sucedia no sistema feudal. Doravante, tanto o nobre como o plebeu são igualmente súbditos do Rei, porque igual e imediatamente sujeitos ao seu poder (5).

() CABRAL DE MONCADA, As ideias políticas depois da reforma: Jean Bodin, m Boletim da Facudade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. xxill, 1947, págs. 48-49.

(2) MACHADO PAUPÉRIO, O conceito polémico de soberania, 2. ed. Rio de Janeiro, 1958, pág. 65.

(3) Embora não se trate ou não se trate ainda de monarquia absoluta e apenas de monarquia real ou legítima, contraposta por BODIN quer à monarquia senhorial, quer à monarquia tirânica: assim, CABRAL DE MONCADA, op. cit., loc. cit., págs. 50-51 (salientando que BODIN é, em muitos aspectos, ao mesmo tempo o continuador e o primeiro grande adversário de MAQUIAVEL); ROBERT DERATHÉ, Théorie e pratique en philosophie politique: Ia monarchie francaise selon Jean Bodin et Montesquieu, in Theory and Politics — Théorie und Politik — Festschrift wm 70. Gebtirstag fiir Cari Joachim Friedrich, obra colectiva, Haia, 1971 (aproximando BODIN e MONTESQUIEU na pocupação de, em épocas diferentes, abrir caminho a uma monarquia moderada); JOSÉ ADELINO MALTEZ, op. cit., 11, págs. 69 e segs.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Ciência Política, cit., n, págs. 135 e segs.

(4) Cfr. HERMANN HELLER, La Sovranità el aiti scritti sulla dottrina dei Diritto e dei Stato, 1926-1929, trad. italiana, Milão, 1987, págs. 70 e segs.; JULIAN H. FRANKLIN, Jean Bodin and the Rise of Absolutist Theory, Cambridge, 1973;

MARTIM DE ALBUQUERQUE, Jean Bodin na Pennsula — Ensaio de História das Ideias Políticas e de Direito Público, Paris, 1978 (sobre a adopção do termo em Portugal, v. págs. 169 e segs.); ERIC VOEGELIN, Estudos de Ideias Políticas — De Erasmo a Nietsche, trad., Lisboa, 1996, pág. 106.

(5) Por isso, MANUEL GARCIA PELAYO (Hacia..., cit., loc. cit., págs. 119 e segs.), se refere à passagem de relações intransitivas a relações transitivas.

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Para isso o poder — por definição não apenas concentrado no Rei mas também centralizado — dota-se dos necessários órgãos e serviços. São os tribunais do Rei e o correspondente processo que aparecem; é uma administração burocrática em sentido moderno (profissionalizada e hierarquizada) que progressivamente se substitui à administração feudal (entregue a titulares por direito próprio); e são novas funções que ela se vai propor.

19. Variedade dos momentos de aparecimento do Estado

Não é fácil divisar, com rigor, quando surge o Estado, quando se passa da organização política medieval para a nova forma de organização política — até porque as instituições e a vida têm uma continuidade que escapa à pura análise conceituai (). O que pode afirmar-se é que ele surge, em momentos diversos, nas várias partes da Europa, consoante as suas circunstâncias específicas.

O Estado encontra-se relativamente cedo na Península Ibérica, onde as lutas da Reconquista cristã favorecem a unidade de comando político no interior dos diversos reinos que se vão formando (até se chegar, ao fim do século xv, ao dualismo Portugal-Espanha) e onde os reis nunca deixam de se afirmar independentes do Sacro Império.

Bastante cedo também, e em moldes mais modernizados, aparece na Sicília e em Inglaterra, devido ao regime burocrático-militar imposto pêlos normandos (o que não terá sido estranho à precoce experiência constitucional inglesa).

Já em França emerge lentamente, ao longo dos séculos xiv e xv, pela reunião à Coroa de terras e direitos de grandes feudatários Uma importância decisiva tem a guerra dos 100 anos, acentuando a consciência da nacionalidade francesa e soltando os laços feudais entre a Inglaterra e a França (2).

() Cfr. BARTOLOMÉ LAVERO, nstitución poltica y Derecho: acerca dei concepto historiografico dei «Estado moderno», m Revista de Estúdios Polticos, n.” 19, Janeiro-Fevereiro de 1981, págs. 43 e segs.

(2) Como a França foi o primeiro país a resolver o problema da criação de um Estado a partir de províncias virtualmente independentes, o modelo francês acabaria por se impor na Europa (JOSEPH STRAYER, op. ci., págs. 53 e segs.).

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Nos países nórdicos, define-se nos séculos xvi e xv em grande parte em ligação com a Reforma protestante, aproveitada pêlos monarcas para, com a formação de Igrejas nacionais, afirmarem e aumentarem o seu poder. E quase ao mesmo tempo na Rússia, na Polónia e na Hungria, embora a centralização tenha chegado a resultados muito mais profundos no primeiro país (de Ivan, o Terrível, a Pedro, o Grande) do que nos outros dois.

Diferente se depara a prolongada situação transitória da Alemanha e da Itália, dispersas por numerosíssimos principados e repúblicas e sem conseguirem fugir à pressão das potências estrangeiras; o Império nominalmente subsistirá até 1806; e será a partir de novas entidades políticas vindas dos séculos xvn e xvm — a Prússia e o Piemonte — que, em 1870, se constituirão Estados nacionais.

O processo de criação dos Estados europeus culmina nos tratados de Vestefália (1648) que põem termo à guerra dos Trinta Anos e, simultaneamente, selam a ruptura religiosa da Europa, o fim da supremacia política do Papa (mesmo nos países católicos) e a divisão da Europa em diversos Estados independentes, cada qual compreendido dentro de fronteiras precisas (). À Respublica Christiana sucede, assim, um sistema de Estados soberanos e iguais.

20. O caso português: fundação e consolidação do reino de Portugal

Somente a título de lembrança, cabe referir os principais eventos que assinalaram a formação do reino de Portugal, sucessor do Condado Portucalense (1095) (2): o governo de D. Afonso Henri-

() A fixação de fronteiras varia também de país para país. Portugal é talvez o país europeu com mais antigas fronteiras precisas. Mas a Inglaterra ate à guerra dos 100 anos teve veleidades de um domínio continental; os cantões suíços acharam-se, durante muito tempo, em parte dentro e em parte fora do Império; a Borgonha pertenceu tanto ao sistema feudal alemão como ao francês; a França foi ampliando os seus limites até ao século xvm; e os de todos os outros países avançavam ou recuavam consoante as guerras.

(2) Cfr., por último, MARCELLO CAETANO, História..., cit., págs. 136 e segs.;

NUNO ESPUMOSA GOMES DA SILVA, op. cit., págs. 129 e segs.; MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 159 e segs.

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quês, iniciado em 1128, o reconhecimento interno do título de rei (1140), a prestação de vassalagem ao Papa como reforço e como prova da emancipação relativamente a Leão (1143), o reconhecimento da dignidade real pela Santa Sé (1179) ().

Recordem-se também a ausência ou quase completa ausência em Portugal de regime feudal (2), mas a existência de regime senhorial na justiça e na administração; as imunidades dos senhores e as lutas dos reis (com êxito vário) para recuperação das prerrogativas e dos bens da Coroa; os concelhos como senhorios colectivos e o esboço de instituições representativas; e, por outro lado, o não reconhecimento da autoridade do Imperador, da jurisdictio impem (3).

Ou, mais tarde, como factos propiciadores da consolidação do Estado e do poder real: as crises políticas de 1383 e 1438 e os seus reflexos sociais (4), as manifestações do sentimento nacional desde o século xiv (5), a guerra de independência e as conquistas e navegações além-mar. Menos de um século decorreria desde a aclamação de D. João I em Cortes à sujeição da nobreza com D. João II.

Do estatuto medieval evoluir-se-ia para o estatuto moderno do poder real, através do desenvolvimento dos impostos gerais, da interferência na administração local e da afirmação do poder civil perante a Igreja, bem como através da preponderância da função legislativa

() E a Santa Sc estará presente em factos tão relevantes da nossa história como a deposição de D. Sancho II ou a atribuição dos direitos de descobrimento ultramarino, com a correspondente partilha do mundo feita com Castela (tratado de Tordesilhas). Sobre Portugal e o Papado, v. RUY DE ALBUQUERQUE e MARTIM DE ALBUQUERQUE, op. cf., págs. 389 e segs.

(2) JOSÉ MATTOSO (Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros — A nobrea medieval portuguesa nos séculos xi e xil, Lisboa, 1982, pág. 137) fala em casos típicos de feudalismo e mesmo de hereditariedade do feudo.

(3) Sobre o assunto, v., por todos, MARTIM DE ALBUQUERQUE, O poder político.... cit., págs. 325 e segs.

(4) Cfr. MARCELLO CAETANO, História..., cit., págs. 429 e segs.

(5) Cfr., recentemente, LUÍS DE SOUSA REBELO, A concepção do poder em Fernão Lopes. Lisboa, 1983, pág. 27; ou ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, O crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa, 1988, págs. 170 e segs.

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e da reivindicação do exclusivo da função jurisdicional — tudo acompanhado da ideia de que o príncipe deve ser considerado o representante dos interesses gerais da Nação ().

§2.° Evolução

21. Condições gerais de desenvolvimento do Estado europeu

I — O Estado europeu move-se, do século xvi aos nossos dias, num mundo em transformação e ele próprio é um poderoso agente de transformação do mundo. Sofre o influxo das condições espirituais, socioeconómicas e internacionais, mas também vai tentar pô-las ao seu serviço. Daí toda uma série de inter-relações que não podem ser esquecidas.

Conhecem-se as condições espirituais: o Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma, com as crises psicológicas e morais conexas; do humanismo ao racionalismo e do racionalismo ao romantismo; o espírito científico e a rebeldia contra o espírito religioso; o progresso técnico e o aproveitamento (tantas vezes, a degradação) da natureza;

a difusão da cultura e a passagem da cultura de corte e de claustros à cultura de massas.

Conhecem-se as condições socioeconómicas: a decadência da nobreza e da aristocracia rural e a ascensão da burguesia até chegar, no século xix, a praticamente monopolizar a vida política; o desenvolvimento do capitalismo sob várias formas económicas e jurídicas (2); a revolução industrial, o aparecimento da classe operária, o sindicalismo e a amplitude dos conflitos sociais.

() Cfr. PAULO MERÊA, op. cit., pág. 16 (que acrescenta: e não um proprietário absoluto); e, doutras perspectivas, RUY DE ALBUQUERUE e MARTIM DE ALBUQUERUE, op. cit., págs. 435 e segs.; e PAULO OTERO, op. cit., l, págs. 172 e segs.

(2) Sobre as relações entre Estado moderno e capitalismo, v. HINTZE, op. cit., págs. 63 e segs. e 300 e segs.; ou BERTRAND BADIE e PIERRE BIRNBAUM, Sociologie de 1’État, Paris, 1992, 2. ed., págs. 125 e segs.

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Parle I—O Estado e os sistemas constitucionais 75

Há dois fins públicos que, doravante, se vão propor — o de cultura e o de progresso material () — e a ordem estatal apresenta-se como um projecto racional de humanidade em volta do próprio destino terreno (2).

No plano exterior avultam os descobrimentos marítimos e a expansão colonial, por um lado, e o sistema de Estados, por outro. Um e outro factores (nuns casos mais o primeiro, noutros mais o segundo) afectam profundamente a estrutura dos Estados europeus. A expansão marítima e colonial há-de conduzir à planetarização das concepções e das formas jurídico-políticas. O sistema de Estados vive num processo dialéctico de solidariedade e antagonismo, de isolamento e associação, de neutralidade e coligação, de luta pela hegemonia e de equilíbrio (3); e o seu modelo acaba por ser transposto, após a guerra de 1939-1945, para o plano mundial.

II — Antes e noutras civilizações não se punha em causa a organização da sociedade; ela era um dado. Agora na época moderna, tudo é repensado, o homem coloca-se no seu centro e pretende ser agente da sua reformulação.

Surgem assim a Utopia de TOMÁS MORUS (1534) e as outras utopias que se lhes seguem (4); as novas doutrinas do contrato social dos séculos xvn e xvm (bem diferentes das medievais); o iluminismo; em suma aquilo em que, genericamente, se tem chamado a modernidade.

() EDDARD ROSENTHAL, A transformação das funções do Estado no último período histórico, m Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano viu, 1923, pág. 42.(2) PlERANGELO SCHIERA, Op. dt., loc. CÍ, págS. 1008-1009.

(3) Cfr. NAEFF, op. cit., págs. 152 e segs. Aponta as seguintes fases da evolução do sistema europeu de Estados: l) a época de Carlos V e seus adversários; 2) as coligações católicas e protestantes e a guerra dos 30 anos; 3) a época de LUÍS XIV; 4) o século xvm após a guerra de sucessão de Espanha; 5) a Revolução Francesa e Napoleão; 6) a Europa após o Congresso de Viena; 7) a época de Bismarck; 8) o imperialismo entre 1880 e 1914; 9) a Europa da Sociedade das Nações.

(4) Cfr. MASSIMO BALDINI, La Storia delle Utopie, Roma, 1994.

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22. Períodos de evolução

São diferentes as perspectivas por que pode ser tomada a evolução do moderno Estado europeu, a reflectirem as preocupações de estudo dominantes.

ma primeira perspectiva, de natureza cultural, toma o Estado em cada época como expressão da civilização (europeia) dessa época. Atende, por conseguinte, sobretudo, às concepções filosócas, sociais e jurídicas que legitimam o poder e pelas quais são avaliados o carácter e os móbeis de acção dos governantes. Os períodos que distingue são os correspondentes ao Estado do Renascimento (séculos xv e xvi) (), ao Estado da Ilustração (séculos xvn e xvm) e ao Estado do Romantismo (séculos xix e talvez xx) (2).

Uma segunda perspectiva, de natureza mais estritamente política e jurídico-positiva, reconduz o Estado a um processo político e jurídico de agir. Logo, volta-se, para a legitimidade política, a organização e a técnica de limitação do poder dos governantes e para os direitos e deveres atribuídos aos governados. Grandes períodos que demarca são os do Estado estamental ou da monarquia limitada pelas ordens, do Estado absoluto e do Estado constitucional, representativo ou de Direito, este com grande complexidade e, no século xx, até com contradição de opções e valores (3) (4).

Uma terceira perspectiva, muito complexa, liga Direito, política, economia, e vê o Estado na intersecção desses elementos fundamen-

() Cfr. a obra de JACOB BURCKHARDT, A Civiliação da Renascença Italiana (de que há tradução portuguesa), onde o Estado é tomado como «obra de arte».

(2) Assim procede NAEFF (op. cit., págs. 23 e segs., 81 e segs. e 129 e segs.), embora a sua observação praticamente acabe em meados do século passado e dê ao Estado do Romantismo um cunho meramente histórico e de reacção contra a Revolução Francesa e o racionalismo.

(3) Cfr. FULCO LANCHESTER, Stato (forme di). m Encicopédia dei Diritto, XLIII, 1990, págs. 806 e segs.

(4) Desta perspectiva poderia, porventura, aproximar-se a da evolução das ideias de autoridade segundo OLIVEIRA MARTINS (Teoria do Socialismo — Evolção políica e económica das sociedades na Europa, na ed. de 1974, págs. 7 e segs.);l.”) OMNIS POTESTAS A DEO; 2.”) OBLIGATIO EX CONSENSU); 3.”) IL MONDO È FATTO DAOLI UOMIN.

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Parte l — O Estado e os sistemas constitucionais 77

tais. Na evolução do Estado moderno surgem quatro tipos distintos, mas complementares: o Estado de poder soberano dentro do sistema europeu de Estados, o Estado comercial relativamente fechado com sociedade e economia capitalista burguesa, o Estado liberal e constitucional e o Estado nacional que simultaneamente abrange todas estas tendências e se lhes acrescenta, com orientação para a democracia ().

Adoptar-se-á aqui a segunda perspectiva, por melhor se coadunar com a índole própria desta disciplina; mas não deixará de se aproveitar alguma contribuição da primeira e da terceira.

23. O Estado estamental

I — O Estado estamental (Stàndenstaat) ou monarquia limitada pelas ordens é forma política de transição. Já situado no domínio do Estado (2), não desenvolve, porém, ainda (porque não pode) todas as potencialidades deste e traz consigo algumas sequelas da era feudal. Não existe em toda a parte (por exemplo, em Itália) e não existe da mesma maneira e ao mesmo tempo em Inglaterra ou em França, em Espanha ou nos Estados alemães.

A ideia básica que nele se encontra é a dualidade política rei-estamentos, sucessora do dualismo rei-reino medieval. O rei e as ordens ou estamentos criam a comunidade política. O rei tem não só a legitimidade como a efectividade do poder central; mas tem de contar com os estamentos, corpos organizados ou ordens vindos da Idade Média.

Rei e estamentos exprimem, de certa maneira, um enlace entre Estado e sociedade. E fala-se também em Estado corporativo (3), por causa do factor político presente nessa sociedade complexa de unidades sociais e territoriais. Tal como na Idade Média, os direitos das pessoas estão aí fragmentados e estratificados.

A principal forma de participação dos estamentos encontra-se nas assembleias estamentais (Parlamentos, Estados Gerais, Dietas,

()HINTZE, Historia..., cit., págs. 300 e segs.

(2)Salvo, porventura, em certos países.

(3)Ou em Estado territorial institucional: OTTO BRUNNER, op. cit., pág. 204.

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Cortes) com particulares formas de representação, divididas ou não em mais de uma câmara e com faculdades ora deliberativas ora consultivas ().

Em Portugal, interessam particularmente os séculos xiv e xv (mormente este que é também a época áurea das Cortes). Contudo, as Cortes portuguesas têm natureza predominantemente consultiva, excepto em circunstâncias excepcionais (como vagatura do trono ou modificação das «leis fundamentais do reino») e em matéria de impostos (2).

II — Como se trata de um momento de equilíbrio, o Estado estamental não dura senão até o Rei ganhar força para levar a unificação do poder às suas últimas consequências. De resto, a Coroa, que representa o todo, é mais progressiva que as ordens, as quais acabam por ficar confinadas à defesa dos seus interesses de classe (3). A monarquia vai converter-se em absoluta.

Só em Inglaterra os estamentos, mais evoluídos que no Continente, sobrevivem como grupos políticos, e não como meros estratos sociais. Mas, para tanto, têm de ligar a sua sorte na luta contra o rei

() Sobre o Estado estamental, v. NAEFF, op. dl., págs. 12 e segs. e 55 e segs.;

HINTZE, op. cit., págs. 79 e segs.; Rui MACHETE, Corporativismo e Direito Corporativo, Lisboa, policopiado, 19641965, págs. 97-98, 108 e 109 e segs.; CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, li, Coimbra, 1966, págs. 201 e segs.;

C. GRIFFITHS Representativ Government in Western Europe in he Sixteenth Cenury — Commentary and Documents for the Study of Comparativ Constitutional History, Oxónia, 1968; BERNARD GUENÉE, op. cit., págs. 81 e 225 e segs.; ROBERT VILLERS, Lê déclin dês Assemblées d’Etat en Europe du xvi au xvin siècles, m Hommage à Robert Besnier, Paris, 1980, págs. 279 e segs.; PIERANGELO SCHIERA, Sociedade de «estados», de «ordens» ou corporativa, m Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, obra colectiva, Lisboa, 1984, págs. 123 e segs.; Luís SOUSA DA BRICA, A Representação no Estado corporativo medieval, in Estado e Direito, 2.” semestre de 1993, págs. 69 e segs.

(2) Cfr. PAULO MERÊA, op. cit., págs. 13 e segs. e 26 e segs.; ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, Curso de História das Instituições, policopiado, Lisboa, 1978, págs. 410 e segs.; MARCELLO CAETANO, História..., cit., págs. 470 e segs.; ARMINDO DE SOUSA, As Cortes Medievais Portuguesas. 2 vols., Lisboa, 1990; RUY DE ALBUQUERQUE e MARTIM DE ALBUQUERQUE, op. cit., págs. 457 e segs. , (3) NAEFF, op. cit., págs. 1415.

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a uma causa muito moderna, a das garantias individuais e da representação nacional: são as revoluções inglesas do século x vil que impedem Carlos I e Jaime II de seguir o exemplo dos reis de França.

24. O Estado absoluto. O Estado de polícia

I — O termo pode reputar-se menos preciso. Rigorosamente, não pode falar-se em «Estado absoluto» ou em «Princeps legibus solutus». Nenhum Estado existe à margem do Direito (insista-se) e nenhum governante deixa de estar vinculado às normas jurídicas que o titulam como tal — às «Leis Fundamentais» de que se fala nessa época e, enquanto as não mudar, às próprias leis que faça. O poder é um ofício (). E se, na concepção patrimonial ainda dominante, se declara absoluto o poder do Rei (tal como a propriedade é um direito absoluto) isso tão pouco significa ilimitação, já que a propriedade se enquadra sempre na lei.

O sentido próprio só pode ser o de Estado absoluto como aquele em que se opera a máxima concentração do poder no rei (sozinho ou com os seus ministros) e em que, portanto: 1.°) a vontade do rei (mas sob formas determinadas) é lei; 2.°) as regras jurídicas definidoras do poder são exíguas, vagas, parce/ares e quase todas não reduzidas a escrito (2). Assim se explicam tanto os exageros dos teóricos do absolutismo (que sustentam que os únicos deveres do príncipe para com os súbditos ou para com o Estado são deveres morais, embora gravíssimos) como os dos monarcómacos (3) (que chegam a defender o tiranicídio).

() Escreve, por exemplo, CAMÕES Lusíadas, li, 84):

«... pois tens de Rei o ofício. Que ninguém a seu Rei desobedeça».

V. MARTIM DE ALBUQUERQUE, A expressão do poder em Camões, Lisboa, 1988, págs. 145 e segs.

(2) Cfr., por todos, GABRIEL LÊ POINTE, Lês príncipes du gouvernement monarchique dans 1’ancien regime, m Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Combra, xxxvm, 1962, págs. 68 e segs.; ou MARTIN KRIELE, Ein Einflihrung in die Staatslehre, trad. castelhana Introducción a Ia teoria dei Estado, Buenos Aires,1980, págs. 75 e segs.

(3) Ou de ALTÓSIO.

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Expediente técnico-jurídico muito característico deste ambiente vem a ser o desdobramento do Estado em Estado propriamente dito, dotado de soberania, e em Fisco, entidade de Direito privado e sem soberania. Apenas o Fisco entra em relações jurídicas com os particulares, contrata, se obriga, comparece em juízo, só contra ele podem os particulares reivindicar direitos subjectivos.

II — E usual distinguir dois subperíodos na evolução do absolutismo.

Num primeiro, que se estende até princípios do século xvin, a monarquia afirma-se de «direito divino». O Rei pretende-se escolhido por Deus, governa pela graça de Deus, exerce uma autoridade que se reveste de fundamento ou de sentido religioso ().

Numa fase subsequente, embora essa referência básica se mantenha a nível de consciência jurídica da comunidade, vai procurar-se atribuir ao poder uma fundamentação racionalista dentro do ambiente de iluminismo dominante (2). E o «despotismo esclarecido» ou, noutra perspectiva, em alguns países, o «Estado de polícia» (tomando-se então o Estado como uma associação para a consecução do interesse público e devendo o príncipe, seu órgão ou seu primeiro funcionário, ter plena liberdade nos meios para o alcançar) (3).

() Recordem-se Jaime I de Inglaterra (True laws offree monarchies) ou BosSUET (Potitique tirée de l’Escriure Sainte), mas não HOBBES (Leviathan), teórico de um absolutismo de base contratualista. Cfr. MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, cit., págs. 301-302; ou OMBRETTA FUMAGALLI CORULLI, I fondamenti religiosi deli’Assolutimo in Bossuet, in Studi in onore di Giorgio Balladore Pailierí, obra colectiva, l, Milão, 1978, págs. 190 e segs.

(2) Cfr. OTTO BRUNNER, op. cit., pág. 190.

(3) Sobre o Estado de polícia, cfr. ROGÉRIO SOARES, Interesse público..., cit., págs. 54 e segs.; C. MORTATI, Lê forme di governo, cit., págs. 12 e segs.; JOSÉ Luís CARRO FERNANDES-VALMAYOR, Policia y Domnio eminente como técnicas de intervención en e Estado Preconstitucional, in Estúdios Jurídicos — Homenaje ai Profesor Alfonso Oero, obra colectiva, Santiago de Compostela, 1981, págs. 367 e segs.;

PIERANGELO SCHIERA, A «polícia» como síintese de ordem e de bem-estar no moderno Estado centraliado, in Poderes e Instituições..., págs. 309 e segs.; JORGE NOVAIS, Contributo para uma eoria de Estado de Direito, Coimbra, 1987, págs. 26 e segs.;

MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., págs. 150 e segs.

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Não se pense, que, ao longo destes séculos, só há monarquias. Também se encontram algumas repúblicas, desde a Holanda e as cidades hanseáticas à Suíça e ao norte da Itália — todavia, repúblicas aristocráticas (com raras excepções), mais próximas das da Antiguidade do que das repúbicas democráticas que surgiriam com as Revoluções americana e francesa ()•

In — O critério principal de acção política toma-se a razão de Estado, a conveniência, o bem público, e não a justiça ou a legalidade, apesar de a religião cristã oficialmente professada necessariamente contrariar o maquiavelismo (2). E enaltece-se o poder pelo poder, posto ao serviço do Estado soberano (3).

A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres) (4).

Sobretudo no século xvm, a lei prevalece sobre o costume como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforma-se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e o Estado intervém em alguns sectores até aí ignorados da cultura, da economia e da assistência social.

Incrementa-se, entretanto, o capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se o sector mais dinâmico da sociedade. O contraste crescente entre o poder económico da bur-

() V. YVES DURAND, Lês Republiques au temps dês monarchies Paris, 1973.

(2) Sobre o assunto, v. FRIEDRICH MEINECKE, La Idea de Ia Raón de Estado en Ia Edad Moderna, trad., Madrid, 1958.

(3) Para uma comparaço do absolutismo em diferentes épocas históricas, v. MANUEL ANTUNES, Absolutismo, m Verbo, l, págs. 129 e segs.

(4) Para um panorama geral da época e das instituições em diversos países, v. a obra colectiva dirigida por ALDERTO CARACCIOLO, La formaione dello Stato moderno, Bolonha, 1970; ROBERT MANDROU, LEurope Absolutiste — Raison et raison d’Etat (1649-1775), Paris, 1979; ROMAN SCHNUR, Individualismo e absolutismo, trad., Milão, 1979; G. OESTREICH, Problemas estruturais do absolutismo euroropeu, in Poder e Instituições..., págs. 181 e segs.6—Man. Dir. Const.. I

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guesia e a sua falta de poder político () hão-de levá-la depois a fazer ou a apoiar a revolução.

IV — Em Portugal, o curso dos acontecimentos e das instituições dá-se todo, igualmente, em sentido absolutista, já evidenciado com D. João II, e tomado ainda mais necessário pelas vicissitudes do ultramar e da restauração da independência. Única grande barreira é o poder da Igreja, sempre muito ligada a Roma (2).

A semelhança do que sucedera em 1383-1385, a Restauração tem de proclamar o princípio de que o poder do rei provém da nação (3). No entanto, aquela linha de novo se acentua, as últimas Cortes reúnem-se em 1696-1698 e os três reinados de D. João V, D. José e D. Maria, tão diferentes entre si, têm de comum o absolutismo, cuja figura mais forte virá a ser Pombal (4).

Por outro lado, no reinado de D. José é publicada a Lei da Boa Raão e, no de D. Maria I, Melo Freire prepara um projecto de Código do Direito Público (5).

() Sobre o Estado absoluto como transição do tipo fedal de Estado para o tipo capitalista, v., numa concepção marxista, Nicos POULANTZAS, op. cit., págs. 174 e segs. Algo diferentemente (por se inclinar para a correspondência do Estado absoluto com o modo de produção feudal), ANTÓNIO MANUL HESPANHA, O Estado absoluto — Problemas de interpretação histórica, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, obra colectiva, l, Coimbra, 1979, págs. 185 e segs.

(2) Observador perspicaz, MONTESQUIEU escreve no Capítulo IV do Livro II de UEsprit dês Lois: «Autant que lê pouvoir du clergé est daugereux dans une republique, autant est-il convenable dans une monarchie, surtout dans celles qui vont au despotism. Ou en seraient 1Espagne et lê Portugal depuis Ia perte de leurs lois, sanscê pouvoir qui arrete seul Ia puissance arbitraire?».

(3) Cfr., sobretudo, a Justa Aclamação de VELASCO DE GOUVEIA.

(4) Cfr,, recentemente, J. S. DA SILVA DIAS, Pombalismo e teoria política, in CuituraHistória e Filosofia, l, págs. 45 e segs.; JOSÉ ESTEVES PEREIRA, O pensamento político em Portugal no século xvm — António Ribeiro dos Santos, Lisboa,1983; JORGE BORGES DE MACEDO, Absolutismo, in Polis, i, págs. 43 e segs.; a obra colectiva Do Antigo Regime ao Liberalismo — 1750-850, Lisboa, 1989.

(5) Cfr., recentemente Rui MANUEL DE FIGUEIREDO MARQUES, A Legislação Pombalina, m Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, suplemento ao vol. xxxiii, 1990; PAULO FERREIRA DA CUNHA, op. cit., págs. 181 e segs.;

MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 364 e segs.

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25. O Estado constitucional, representativo ou de Direito

I — As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do iluminismo — de que são expoentes doutrinais LOCKE (Segundo Tratado sobre o Governo), MONTESQUIEU (Espírito das leis), ROUSSEAU (Contrato Social), KANT (além de obras filosóficas fundamentais, Pa Perpétua) — e importantíssimos movimentos económicos, sociais e políticos conduzem ao Estado constitucional, representativo ou de Direito.

Ponto culminante de viragem é a Revolução Francesa (1789-1799) (), mas não pouca importância assumem nessa mudança a Inglaterra (onde a evolução se desencadeia um século antes e onde se inicia a «Revolução industrial»), e os Estados Unidos (com a primeira ou, olhando às colónias de que se formou, com as primeiras Constituições escritas em sentido moderno).

A expressão «Estado constitucional» parece ser de origem francesa, a expressão «governo representativo» de origem anglo-saxónica e a expressão «Estado de Direito» de origem alemã. A variedade de qualificativos inculca, de per si, a diversidade de contribuições, bem como de acentos tónicos.

II — Em larga medida, a máquina (política e administrativa) do Estado constitucional é a mesma do Estado de polícia. E, por outra banda, dir-se-ia que algumas das suas características aparentemente correspondem ao desenvolvimento de características vindas de trás:

as Constituições escritas reforçam a institucionalização jurídica do poder político; a soberania nacional, una e indivisível, a sua unidade; o povo como conjunto de cidadãos iguais em direitos e deveres a sua imediatividade.

(i) Sobre o movimento político cultural em que se insere, v., por exemplo, BENNO VON WIESE, La Cltura de Ia Ilustracción, trad. castelhana, Madrid, 1954 (reimpressão de 1979); BERNARD GROETIIUYSIN, Philosophie de Ia Révolution Française, Paris, 1956; MAURIZIO FIORAUANTI, op. cit., págs. 107 e segs.; GARCIA DE ENTERRÍA, La lengua de os derechos. La formación dei Derecho Publico europeo trás Ia Revolución francesa, Madrid, 1994; MÁRIO DOGLIANI, op. cit., págs. 150 e segs. Como nota VON WIESE: a radical racionalização da ideia do Estado conduz à revolução (pág, 40). Quanto ao jusracionalismo, cfr., por todos, FRANZ WIEÁCKER, História do Direito Privado Moderno, trad., Lisboa, 1980, págs. 279 e segs.

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Nem por isso, menos nítida é a divergência no plano das ideias e das regras jurídicas positivas (). Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou seus delegados, o exercício por muitos, eleitos pela colectividade; em vez da razão do Estado, o Estado como executor de normas jurídicas; em vez de súbditos, cidadãos, e atribuição a todos os homens, apenas por serem homens, de direitos consagrados nas leis. E instrumentos técnico-jurídicos principais tomam-se, doravante, a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a separação de poderes, a representação política.

A atitude espiritual correspondente a este novo estado de coisas é bem descrita por KANT:

«Ninguém me pode constranger a ser feliz à sua maneira (como ee concebe o bem-estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parece boa, contanto que não causa dano à liberdade de os outros aspirarem a um fim semelhante e que pode coexistir como a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível.

«Um governo que se erigisse sobre o princípio da benevolência para com o povo, à maneira de um pai relativamente aos seus filhos, isto é, um governo paternal (imperium paternale), onde, por conseguinte, os súbditos, como crianças menores que ainda não podem distinguir o que lhes é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comportar-se de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes e apenas da sua bondade que ele também o queiram — um tal governo é o maior despotismo que pensar se pode (2).

«O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado. E menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem» (3).

() Assim como dos mitos: cfr. PAULO FERREIRA DA CNHA, Mito e constitucionalismo, Coimbra, 1990, págs. 32, 161 e segs. e 181 e segs.

(2) Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática (1793), in A Paz Perpétua e outros Opúsculos, trad. de ARTUR MouRÂO, Lisboa, 1988, pág. 75.

() Que é o iluminismo? (1784), ibidem, pág. 11.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 85

In — No sentido que assim se recorta, a Constituição traduz algo de diverso e original. Traz consigo uma limitação nova e envolve todo um modo de ser concebido o poder. Na Constituição se plasma um determinado sistema de valores da vida pública, dos quais é depois indissociável. Um conjunto de princípios filosófico-jurídicos e filosófico-políticos (embora de inspirações algo diversas) vêm-na justificar e vêm-na criar ().

Os mais significativos textos desta nova concepção são americanos e franceses — a Declaração de Direitos de Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, ambas de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aquelas mais próximas do pensamento cristão, esta de um racionalismo laico.

Lê-se no artigo l. da Declaração de Direitos do Estado de Virgínia:

«Todos os homens são, por natureza, livres e têm certos direitos inatos, de que, quando entram no estado de sociedade, não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o direito à vida e à liberdade, tal como os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar obter a felicidade e a segurança».

Na Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma-se: «Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: todos os homens são criaturas iguais, são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis e, entre estes, acham-se a vida, a liberdade e a ânsia de felicidade; os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando a forma de governo se torna ofensiva destes fins é direito do povo alterá-la, ou aboli-la e instituir novo governo...».

Por sua vez, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (votada pela Assembleia Nacional francesa), proclama-se no artigo l.”: «Os homens nascem e são livres e iguais em direitos, as instituições políticas só podem fundar-se na utilidade comum».

No artigo 2.”: «O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão».

No artigo 6.”: «A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação...».

(i) Nosso Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, cit., pág. 30.

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86Manal de Direito Constitucional

No artigo 16.”: «Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição».

IV — Numa primeira noção (), Estado constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder.

Governo representativo significa a forma de governo em que se opera uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder — aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos da colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental). E é uma forma de governo nova em confronto com a monarquia, com a república aristocrática e com a democracia directa, em que inexiste tal dissociação.

Estado de Direito é o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (seja a mera legalidade formal, seja — mais tarde — a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de acção dos governantes (2).

26. O Estado constitucional no século xix como Estado liberal burguês

I — O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela,

() A desenvolver e explicar melhor noutros tomos deste Manual. (2) ROBERT VON MOHL, considerando o autor que lançou o conceito, dizia que a ideia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Poliei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, m Liberalismo aleman en el siglo xix — 1815-1848, colectânea de estudos, trad., Madrid, 1987, pág. 141). E acrescentava: «Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à ideia de todo» (pág. 142); «nenhum direito deve ficar sem protecção, porque seja demasiado insignificante para o Estado» (pág. 143); «Estado de Direito exige protecção jurídica» (pãg. 144).

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 87

empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade).

E isso que sustentam, de seus pressupostos doutrinais e prismas próprios, os autores que o teorizam e propugnam: além de KANT e ADAM SMITH, THOMAS PAINE (Direitos do Homem), MADISON (O Federalista), WILHELM VON HUMBOLDT (Sobre os limites da acção do Estado), BENTHAM (Obras), BENJAMI CONSTANT (Princípios de Política), ALEXIS DE TOCQUEVILLE (Da Democracia na América), STUART MILL (Sobre a Liberdade, Sobre o Governo Representativo) e tantos outros (como, em Portugal, SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA e ALEXANDRE HERCULANO).

Mas, apesar de concebido em termos racionais e até desejavelmente universais, na sua realização histórica não pode desprender-se de certa situação socioeconómica e sociopolítica. Exibe-se também como Estado burguês, imbricado ou identificado com os valores e interesses da burguesia, que então conquista, no todo ou em grande parte, o poder político e económico.

II — As transformações registadas não se confinam ao campo da política, não nascem e também não se esgotam todas nesse domínio. As revoluções liberais são ainda de cunho social e, com os velhos governos, derrubam-se os velhos hábitos, atingem-se as classes, os estratos de classes e as respectivas zonas de influência ou de comunicação, há valores que se perdem e outros há que se adquirem. Uma organização do poder arrasta e é arrastada por uma nova organização da sociedade ().

Daí, o realce das liberdades jurídicas do indivíduo, como a liberdade contratual; a absolutização da propriedade privada a par das liberdades; a recusa, durante muito tempo, da liberdade de associação (por se entender, no plano dos princípios, que a associação reduz a liberdade e por se recear, no plano prático, a força da associação dos mais fracos economicamente); e desvios aos princípios democráticos (apesar da sua proclamação formal), nomeadamente, atra-

() Contribto..., cit., pág. 58.

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88Manual de Direito Constitucional

vês da restrição do direito de voto aos possuidores de certos bens ou rendimentos, únicos que, tendo responsabilidades sociais, deveriam ter responsabilidades políticas (sufrágio censitário) ().

As Constituições da época — entre as quais as portuguesas de 1822, 1826, 1838 e 1911 — reflectem isso mesmo e também a evolução que irá decorrendo segundo esses parâmetros.

In — Por osmose ou por imitação, por meios revolucionários ou por cedência régia, os regimes liberais vão-se implantar ao longo da primeira metade do século xix. Ao mesmo tempo, com base no «princípio das nacionalidades» (aliás, nem sempre tomado em espírito romântico liberal), avança-se para a unificação da Itália e da Alemanha e dá-se a independência da Grécia e dos demais países balcânicos. Também os países da América Latina se separam da Espanha e de Portugal.

Num primeiro momento, os grandes conflitos políticos e sociais opõem liberais e conservadores (ou legitimistas em alguns países, após a queda da monarquia absoluta). Num segundo momento, opõem liberais e radicais (democratas, republicanos, socialistas, anarquistas) (2).

Por outro lado, o liberalismo vai enfrentar criticas doutrinais provenientes de vários quadrantes: do pensamento reaccionário (Joseph de

() Sobre as doutrinas, o Estado e a sociedade liberais, v., entre tantos, CARL SCHMITT, Verfassungslehre, 1927, trad. castelhana Teoria de Ia Constitución, Madrid,1934, págs. 145 e segs.; HAROLD LASKI, The Rise ofEuropean Liberalism, Londres, 1936;

Luís DIEZ DEL CORRAL, El liberalismo doctrinario, Madrid, 1956; FÉLIX PONTEIL, Lês classes bourgeoises et 1’avènement de Ia démocratie (1815-1914), Paris, 1968;

JEAN LHOMME, La grande bougeoisie au pouvoir (1830-1860), Paris, 1969; ROGÉRIO SOARES, Direito Público.... cit., págs. 39 e segs.; GEORGES BURDEAU, Traité..., vi, 2. ed.,971, e Lê liberalism Paris, 1979; VITAL MOREIRA, A ordem jurídica do capitalimo, Coimbra, 1973, págs. 73 e segs.; NICOLA MATTEUCCI, Liberalismo, m Diionário di Potica, págs. 529 e segs.; HENRQUE BARRILARO RUAS, Liberalismo, m Polis, III, 1985, págs. 1090 e segs.; JORGE NOVAIS, op. cit., págs. 67 e segs.; NORBERTO BOBIO, Liberalismo e democracia, trad., São Paulo, 1988; SÍLVIO DOBROWLSKI, O iberalismo:

exame da sua ideologia e das suas deficiências, m Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.” 66, Janeiro de 1988, págs. 161 e segs.; PAULO BONAVIDES, Do Estado Liberal ao Estado Social, 5. ed., Belo Horizonte, 1993, págs. 27 e segs.; MAURIZIO FIORVANTI, op. cit., págs. 153 e segs.; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. ci., págs. 267 e segs.

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(2) Cfr., embora noutra perspectiva, M. DUVERGER, op. cit., l, págs. 87 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 89

Maistre, De Bonald e outros), do pensamento católico (do Syllabus à Rerum Novarum e às outras grandes encíclicas sociais), do pensamento socialista (Saint-Simon, Owen, Fourier, Proudhon, Marx, Engeis).

Como quer que se entendam tais críticas, decisivas devem ter-se, apesar de tudo, algumas das aquisições trazidas pelo liberalismo, quer directa e imediatamente, quer indirecta ou mediatamente. Directamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a liberdade de imprensa (l). Indirectamente: a prescrição de princípios que, ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica, numa espécie de auto-regência do Direito (2), a servir a todas as classes, e não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito próprio (assim, a partir da liberdade de associação a conquista da liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo a do sufrágio universal).

Mais ainda: independentemente das fundamentações (discutíveis ou não) dos movimentos políticos dos séculos xvm e xix, foram as

() Cfr. MANUEL ANTUNES, Liberalismo, m Verbo, xn, pág. 18. (2) A expressão é de RADBRUCH, op. cit., i, págs. 79-80, e n, págs. 136 e segs. Cfr. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Lês novelles tendances du Droit Consütutionnel, Paris, 1931, págs. 11-12; EMÍLIO CROSA, U feitore político e lê Costituüoni, in Studi di Diritto Pubblico in onore di Oreste Ranelletti, obra colectiva, i, Pádua, 1931, págs. 149 e segs.; BURDEAU, op. cit., i, págs. 159 e segs., e vi, págs. 358 e segs.; JOSÉ H. SARAIVA, A Crise do Direito, Lisboa, 1964, págs. 39-40; ORLANDO DE CARVALHO, Os direitos do homem no Código Civil Português, Coimbra, 1973, págs. 10-11.

Escreve RADBRUCH (li, págs. 137-138): «... na realidade da vida política ainda os interesses mais arbitrários se vêem sempre obrigados a tomar aparentemente a forma e a cor do direito para conseguirem fazer-se respeitar. Viu-se já como a liberdade reclamada pela burguesia no seu interesse de classe, só pelo facto de ter sido reclamada sob a veste e na forma do direito, veio a aproveitar ao quarto-estado e a redundar em prejuízo dos próprios interesses da burguesia sob a forma do direito de associação... — É justamente por efeito desta auto-regência do jurídico que até as próprias classes inferiores podem vir a ter interesse na realização do direito estabelecido pelas classes superiores. É esta a razão que nos explica por que, tantas vezes, na luta pelo direito as classes oprimidas se tenham convertido em defensoras da ordem jurídica estabelecida que as classes superiores impuseram sobre elas. E que esse direito, apesar de ser de classe, é sempre direito e, sendo direito, jamais ousará apregoar francamente o interesse da classe dominante. Encobri-lo-á sob a roupagem duma forma jurídica, redundando assim, qualquer que seja o seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos».

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90Manual de Direito Constitucional

Constituições que deles saíram e os regimes que depois se objectivaram que, pela primeira vez na história, introduziram a liberdade política, simultaneamente como liberdade-autonomia e liberdade-participação, a acrescer à liberdade civil.

27. A situação do Estado no século xx

I — Século marcado por convulsões bélicas, crises económicas, mudanças sociais e culturais e progresso técnico sem precedentes (mas não sem contradições), o século xx é, muito mais que o século anterior, a era das ideologias e das revoluções. Desembocam nele todas as grandes correntes filosóficas () e acelera-se o ritmo dos eventos políticos (2).

E, portanto, um século em que o Direito público sofre poderosíssimos embates e em que à fase liberal do Estado constitucional vai seguir-se uma fase social.

II — São quatro as linhas de força dominantes, na sequência imediata das duas guerras mundiais:

— As transformações do Estado num sentido democrático, intervencionista, social, bem contraposto ao çasse faire liberal (3) (4);

() V., por todos, FRANÇOIS CHÂTELET e EVELYNE PISIER-KOUCHNER, Lês conceptions politiqes du xx’ siècle, Paris, 1981.

(2) Cfr. a síntese de ERIC HOBSBAWN, Age of Extremes — The Short Twentieth Century— 1914-1991, 1994, trad. portuguesa A Era dos Extremos—História Breve do Século XX — 1914-991, Lisboa, 1996.

(3) A evolução do século xix para o século xx é descrita sugestivamente por expressões (um pouco forçadas, aliás) como estas:

— do Estado neutro ao Estado ético ou teleocrático;

— do Estado mínimo ao Estado-providência;

— do Estado-polícia (que não é o mesmo que Estado de polícia) ao Estado de bem-estar;

— do Estado jurídico ao Estado cultural;

— do Estado legislativo ao Estado administrativo.

(4) Sobre a problemática do Estado ao longo do século xx, cfr. v. JOHN KENNETH GALBRAITH, The New Industrial State, Nova Iorque, 1967 (há tradução portu-

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 91

— O aparecimento e, depois, o desaparecimento de regimes autoritários e totalitários de diversas inspirações;

— A emancipação dos povos coloniais, com a distribuição agora de toda a Humanidade por Estados — por Estados moldados pelo tipo europeu, embora com sistemas político-constitucionais bem diferentes;

—A organização da comunidade internacional e a protecção internacional dos direitos do homem.

Assim, revelam-se de alcance quase universal a promessa de direitos económicos, sociais e culturais a par das liberdades e garantias individuais (por vezes, em contraposição a estas), o sufrágio universal, os partidos de massas, a tendencial substituição das formas monárquicas por formas republicanas, a generalização das Constituições e o enriquecimento do seu conteúdo (nem sempre da sua garantia), o alargamento dos fins do Estado, a multiplicação dos grupos sociais e de interesses e o papel político que procuram desempenhar, o crescimento da função administrativa, o realçar do Poder Executivo em detrimento do Parlamento. Necessário é, contudo, captar, ao lado e para além dos textos jurídicos, as realidades políticas.

com ou sem formas aparentemente similares às dos regimes liberais, surgem no século xx diversos regimes, não por acaso chamados totalitários, produto da «rebelião das massas (ORTEGA), do impacto sobre estas de determinadas ideologias e de ocorrências políticas internas ou externas de maior vulto. Tal como no Estado absoluto, há

guesa); ROGÉRIO SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, cit.; WOLFGANG ABENDROTH, Anagonistische Geselischaft una Politische Demokratie, 1967, trad. castelhana Sociedad antagónica y democracia política, Barcelona-México, 1973;

ERNST FORSTHOFF, Der Staat der Geselischaft, trad. castelhana El Estado de Ia Sociedad Industrial, Madrid, 1975; GEORGES BURDEAU, Traité..., cit., 2.” ed., vil, 1972, e x, 1977; J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Grpos de interesses, pluralismo e utiidade política, Coimbra, 1977; MANUEL GARCIA PELAYO, Lãs transformaciones dei Estado Contemporâneo, Madrid, 1977; Nicos POULANTZAS, L’État, lê Pouvoir, lê Socialism, Paris, 1978; NIKLAS LUHMANN, Stato di diritto e sistema sociale, trad., Nápoles, 1978; NORBERTO BOBBIO, Contrato sociale, oggi, Nápoles, 1980; MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos no Direito Constitucional Português, Braga, 1983, págs. 30 e segs.; PAULO BONAVIDES, op. cit., págs. 179 e segs.

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92Manal de Direio Constitucional

neles uma concentração do poder político, mas muito mais do que isso:

o Estado absoluto não intervinha na vida privada das pessoas, não pretendia absorver a sociedade civil (nem tinha meios para isso) ();

ao passo que o Estado totalitário assume todo o poder na sociedade e identifica a liberdade humana com a prossecução dos seus fins (2).

A emancipação dos povos ultramarinos é, simultaneamente, uma consequência das modificações operadas nas relações internacionais e na economia mundial e um corolário dos princípios de liberdade declarados na Europa. E não é de surpreender que, libertando-se do domínio colonial europeu, do mesmo passo os povos de vários continentes adoptem a forma europeia de Estado como única estrutura jurídico-política apta a permitir-lhes o rápido acesso à vida moderna. Mas, naturalmente, são aí imensos os problemas de construção do Estado e várias as formas de governo e até os modelos constitucionais experimentados.

Ao mesmo tempo que o Estado atinge a sua máxima expansão, desenvolve-se a estruturação da comunidade internacional, através de agrupamentos de Estados com funções específicas que adquirem autonomia relativamente a eles — as organizações internacionais (3). Muito diversas pêlos fins (políticos, económicos, técnicos, culturais, etc.), pelo âmbito (mundial e continental ou regional), pelo acesso (relativamente aberto ou restrito) e pêlos poderes (da cooperação ou de integração), elas assinalam uma nova fase do Direito das Gentes.

() O «poder absoluto» restringia-se às possibilidades de conquista e coacção, de confiscação e recrutamento, e era praticamente impotente quando se tratava duma modificação da realidade social de acordo com uma finalidade. As estruturas da sociedade eram demasiado simples, as formas de comportamento dirigidas eram aternativas, o potencial de comunicação das instâncias de decisão demasiado pequeno (NIKLAS LUHMANN, Legitimação pelo procedimento, trad., Brasília, 1980, pág. 120).

(2) Cfr. tomo iv. Para uma primeira leitura abrangente, v. Comparative Politics, obra colectiva, cit., págs. 440 e segs.; LEONARD SCHAPIRO, Totalitarism Londres, 1972; a obra colectiva editada por GUY HERMENS Totalitarismes, Paris, 984;

ou H. C. F. MANSILLA, La evolución dei Estado y Ia universalidad dei totalitarismo, El fenómeno orweiliano en el Tercer Mundo, in Revista de Estudos Polticos, Julho-Setembro de 1987, págs. 191 e segs.

(3) Cfr. o nosso Direito internacional Público — l, Lisboa, 1995, págs. 234 e segs. e outros citados

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 93

A Carta das Nações Unidas não só estabelece o princípio da solução pacífica de conflitos inteacionais (art. 2.°, n.° 3) e apenas admite a legítima defesa (art. 51.°) como se pretende superior a quaisquer tratados (art. 103.°) e se impõe mesmo a Estados não membros (art. 2.°, n.° 6).

Ligada à organização da comunidade internacional — porque sem ela não ganha efectividade — nasce a protecção inteacional dos direitos do homem, ou seja, a promoção, por meios jurídico-internacionais, da garantia dos direitos fundamentais relativamente ao próprio Estado de que cada um é cidadão. Tem por causas a tendência para a humanização do Direito internacional e o alargamento da noção de sujeito de Direito internacional, mas sobretudo o repúdio da opressão feita por regimes políticos de vários sinais ideológicos e a consciência universal da dignidade da pessoa humana que se vai formando. E devem ser conhecidos os principais instrumentos em que se tem traduzido: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, «como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações», os Pactos Internacionais de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e de Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950, e a Convenção Interamericana dos Direitos do Homem, de 1969 ().

28. A diversidade de tipos constitucionais

I — Considerando mais de perto o fenómeno constitucional avultam três aspectos. Consiste um na perda da crença liberal individualista na Constituição; o outro, e em contrapartida, na generalização das Constituições escritas por todos os Estados; outro ainda, na rápida sucessão das Constituições e das suas vicissitudes.

Fica ultrapassado um modo de encarar a Constituição, extingue-se a fé que fora apanágio do constitucionalismo liberal e lhe fizera atribuir o nome. Não se espera mais que os problemas sejam resolvidos pela simples acção das suas normas, uma postura crítica

(i) Cfr. Direito Internacional Público — l, cit., págs. 297 e segs., e autores citados.

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94Manual de Direito Constituciona

ou de pessimismo substitui com veemência o anterior optimismo. E existem razões para ser assim: as deficiências internas das próprias Constituições positivas; a sua dificuldade de conformar o poder e a vida em tempos de aceleração e de impaciência; os contrastes de concepções sobre a interpretação, a concretização e a aplicação de suas normas; os reflexos da chamada crise da lei ou do Direito ();

externamente a tensão dialéctica de liberalismo, democracia e socialismo.

Quanto à propagação das Constituições escritas, tanto pode ter-se como uma aquisição positiva quanto como uma aquisição negativa. Aquisição positiva seria, pelo menos, ficarem os cidadãos e a doutrina habilitados a reconhecer com recurso a elas as linhas primordiais do ordenamento de cada um dos Estados. Facto negativo seria, ainda assim, a generalização, visto que, para as Constituições se enxertarem em quaisquer Estados, teriam de esvaziar, em proporção insofismável, o valor dos seus preceitos (2).

Durante o século xix fácil fora olhar à ideia de Constituição para definir o sistema político, pois que, sendo ela constante no que regulava e respeitada, Estado que tivesse Constituição qualificava-se de Estado constitucional. No século xx tudo se modifica, admitem-se as formas sem se admitirem os princípios, votam-se compromissos entre forças que não se podem neutralizar, os mesmos princípios adquirem signicados diferentes e, quando se inscrevem nos textos, nem sempre conseguem concitar o acordo dos intérpretes.

Triunfa a unanimidade formal, perde-se a unanimidade material. Ao contrário do período monárquico absoluto, agora todos os

() Cfr., por exemplo, AFONSO ARINOS, Crise do Direito e Direio da Crise, m Estudos de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, 1957, págs. 151 e segs.; JOSÉ H. SARAIVA, op. cit.. págs. 86 e segs.; FRANCISCO LUCAS PIRES, O problema da Constituição, Coimbra, 1970, págs. 10 e segs.

(2) É muito conhecido o escrito de BURDEAU, Une survivance: Ia notion de Constitution, in Uévolution du Droit Pblic — Eudes en 1’honneur d’Achille Mestre, obra colectiva, Paris, 1956, págs. 53 e segs. Chega a dizer que foi por rito ou inércia que se continuou a redigir Constituições. E também KARL LOEWENSTEIN (Verfassungslehre, trad. castelhana Teoria de Ia Constitución, Barclona, 1964, págs. 213 e segs. e 224 e segs.) falaria numa vitória pírrica da democracia constitucional.

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Parle I— O Estado e os sistemas constitucionais 95

Estados se preocupam com dotar-se de Constituições em perfeito sentido formal (). E, ao contrário do período liberal, nessa forma solene única inserem-se matérias e intuitos divergentes. Por outras palavras e em síntese: devemos supor vários, e não um, tipos constitucionais. Ao mesmo tipo histórico de Estado — o europeu — vão corresponder diferentes tipos constitucionais de Estado (2).

Por isso, não admira que as Constituições acusem hoje uma instabilidade antes desconhecida. Do século xvi resta em vigor apenas uma, do século xix quatro ou cinco e até são poucas as que remontam a antes da segunda guerra mundial (3). Entretanto, não se mostram menos frequentes as alterações ou vicissitudes de vária natureza que vão sofrendo. E toma-se aí ainda mais patente o confronto entre as Constituições que valem como fundamento do poder e aqueloutras que não passam de instrumento ao seu serviço (4).

II — O primeiro desses tipos vem a ser o Estado social de Direito ou modelo de organização constitucional que sucede ao Estado liberal (ou que com ele parcialmente coexiste) sem solução de continuidade e que, muito em resumo, pode reconduzir-se a um esforço de aprofundamento e de alargamento concomitantes da liberdade e da igualdade em sentido social, com integração política de todas as classes sociais (5).

() Até porque, como já tem sido sublinhado, o ter uma Constituição converte-se, para cada novo Estado, num símbolo de independência nacional.

(2) Contributo..., cit., págs. 63 e segs.

(3) V. a lista das datas de Constituições de ALBERT P. BLAUSTEIN, A Flood of New Constitultions, in The Constitution, Outubro de 1988, págs. 19 e segs.

(4) Sobre o tema, v. tomo n.

(5) V. JORGE MIRANDA, Contributo..., cit., págs. 70 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público..., cit., págs. 162 e segs.; GEORGES BURDEAU, Traité... vil,2. ed., págs. 578 e segs.; W. ABENDROTH, op. cit., págs. 265 e segs.; R. ZIPPELIUS, op. cit., págs. 155 e segs.; MASSIMO SEVERO GIANNINI, Stato sociale: una noione mutile, m Poltico, 1977, págs. 205 e segs.; THEODOR SCHEIDER, Stato ai diritto e stato sociale, in Crisi deio Stato e storiografia contemporânea, obra colectiva, Bolonha,1979, págs. 105 e segs.; VINCENZO ZANGARA, Stato d Diritto in evoluione, in Diritto e Società, 1983, págs. 193 e segs.; WOLFGANG ABENDROTH, ERNST FORSTHOFF e KARL DOEHRING, El Estado Social, trad., Madrid, 1986; JORGE NOVAIS, op. cit., págs. 188 e segs.; JORGE VANOSSI, El Estado de Derecho en el Constituciona-

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96Manual de Direito Constiucional

O Estado social de Direito não é senão uma segunda fase do Estado constitucional, representativo ou de Direito. Por dois motivos: 1.°) porque, para lá das fundamentações que se mantêm ou se superam (iluminismo, jusracionalismo, liberalismo filosófico) e do individualismo que se afasta, a liberdade — pública e privada — das pessoas continua a ser o valor básico da vida colectiva e a limitação do poder político um objectivo permanente; 2.°) porque continua a ser (ou vem a ser) o povo como unidade e totalidade dos cidadãos, conforme proclamara a Revolução francesa, o titular do poder político.

Do que se trata é de articular direitos, liberdades e garantias (direitos cuja função imediata é a protecção da autonomia da pessoa) com direitos sociais (direitos cuja função imediata é o refazer das condições materiais e culturais em que vivem as pessoas); de articular igualdade jurídica (à partida) com igualdade social (à chegada) e segurança jurídica com segurança social; e ainda de estabelecer a recíproca implicação entre liberalismo político (e não já, ou não já necessariamente, económico) e democracia, retirando-se do princípio da soberania nacional todos os seus corolários (com a passagem do governo representativo clássico à democracia representativa).

Do que se trata é ainda, para tomar efectiva a tutela dos direitos fundamentais, de reforçar os mecanismos de garantia da Constituição; e daí a afirmação de um princípio da constitucionalidade a acrescer ao princípio da legalidade da actividade administrativa e a instituição de tribunais constitucionais ou de órgãos análogos ().

Para já, diga-se apenas que as Constituições donde arranca esta linha directriz são a mexicana de 1917 e, sobretudo, a alemã de 1919 (dita Constituição de Weimar) e que, entre as Constituições vigentes que a seguem, se contam a italiana de 1947, a alemã de 1949, a venezuelana de 1961, a portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 e a brasileira de 1988.

lismo social, Buenos Aires, 1987; JOSÉ RAMÓN Cossio DIAZ, Estado social y derechos de prestación, Madrid, 1989; PAULO BONAVIDES, op. cit., págs. 161 e segs.;

MARIA ROSARIA DONNARUMMA, Uma temática sempre attuale: Io «Stato ai Diritto», m Diritto e Societd, 1994, págs. 89 e segs.

() Cfr., para uma introdução Contributo..., cit., págs. 79 e segs.; ou GUSTAVO ZAGREBELSKY, op. cit., págs. 84 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 97

In — Em oposição ao tipo assim sumariamente descrito, assiste-se no século xx à emergência de dois outros modelos constitucionais, o soviético ou marxista-leninista eo fascista. Resultam de agravados conflitos políticos e sociais, de irradiantes ideologias antiliberais e de partidos ou movimentos vitoriosos que se identificam, depois, com o próprio Estado.

Mas, como adiante se referirá, são tão significativas as semelhanças quanto as diferenças entre um e outro regime.

O Estado soviético ou marxista-leninista recebe esse nome por assentar e se inspirar nas ideias da Revolução russa de 7 de Novembro de 1917: revolução soviética, feita em nome de «todo o poder aos sovietes» (ou seja, aos conselhos de operários, soldados e camponeses); revolução marxista-leninista, feita em nome da ideologia marxista-leninista.

O Estado fascista, por seu turno, tem esse nome por causa do regime instaurado na Itália de 1922 a 1943 pelo partido fascista e que, com feições, ora extremas, ora moderadas, foi transplantado ou seguido, na dependência de condicionalismos internos e externos, em vários países. Se não há uma ideologia fascista definida única, não custa descobrir elementos próximos comuns aos diversos regimes que, com maior ou menor rigor, ali são habitualmente enquadrados.

29. Os problemas do final do século xx

I — Neste final de século e de milénio, o panorama político-constitucional é, de novo, de grandes transformações e instabilidade.

Em primeiro lugar, desapareceram ou entraram em queda irreversível quase todos os regimes totalitários e autoritários. Desapareceram não só os regimes matrizes ou mais característicos, (o fascismo italiano em 1943; o nacional-socialismo alemão em 1945; o marxismo-leninismo soviético em 1985-1991) como os regimes aparentados (regimes fascizantes e regimes comunistas da Europa centro-oriental em 1945 e em 1989-1990, respectivamente; os regimes autoritários português, grego e espanhol nos anos 70; as ditaduras militares latino-americanas nos anos 80; e os regimes africanos de partido único nos anos 90).7 — Man. Dir. Const., l

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98Manual de Direito Consitucional

Em segundo lugar, em contrapartida, irrompeu desde 1979 um regime de novo tipo, correspondente, no fundo, a um modelo de Estado diverso do Estado europeu: o Estado de fundamentalismo islâmico, em que se unem (tal como noutras eras e noutros tempos históricos) lei religiosa e lei civil, poder espiritual e poder temporal.

Em terceiro lugar, observam-se no Estado social de Direito fundos sintomas de crise — a chamada crise do Estado-providência. derivada não tanto de causas ideológicas (o refluxo das ideias socialistas ou socializantes perante ideias neoliberais) quanto de causas financeiras (os insuportáveis custos de serviços cada vez mais extensos para populações activas cada vez menos vastas), de causas administrativas (o peso de uma burocracia, não raro acompanhada de corrupção) e de causas comerciais (a quebra de competitividade, numa economia globalizante, com países sem o mesmo grau de protecção social) ().

Em quarto lugar, e mais importante do que todas estas vicissitudes e estes problemas, deparam-se, porém — à escala de toda a Humanidade — a degradação da natureza e do ambiente, as desigualdades económicas entre países industrializados e países nãoindustrializados, as situações de exclusão social mesmo nos países mais ricos, a manipulação comunicacional, a cultura consumista de massas, a erosão de certos valores éticos familiares e políticos. De que modo e em que medida tudo isto irá repercutir-se nas Constituições?

() Cfr., por exemplo, de vários prismas, HANS VAN DEN DOEL, Democracy and Welfare Economis, 1979, trad. italiana Democraia e benessere, Bolonha, 1981;

A. J. PORRAS NADALES, Introducción a una teoria dei Estado post-social, Barcelona,1988; Luc ROUBA, Innovation, complexité et crise de l’Élat modern, in Revue française de science politique, 1988, págs. 325 e segs.; VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo dos particulares, Coimbra, 1989, págs. 56 e segs.;

CLAUS OFFE, Contradicciones en el Estado de Bienestar, trad., Madrid, 1990; GANFRANCO POGGI, op cit., págs. 173 e segs.; J. P. HENRY, Lafin du revê prométhien? — Lê marche contre l’État, m Revue du Droit Public, 1991, págs. 631 e segs.;

FRANIS FUKUYAMA, The end of history and the last man, 1992, trad. portuguesa O fim da história e o úlimo homem, Lisboa, 1992; MANUEL ARAGÓN, Los problemas dei Estado social, m Sistema, Março de 1994, págs. 23 e segs.; BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Pela mão de Alice — O social e o político na pós-nwdernidade, Porto, 1994, máxim págs. 69 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 99

E em que medida cabem no âmbito do Estado e não exigem, antes, por um lado, um novo papel da sociedade civil e, por outro lado, uma reforçada cooperação internacional?

II — Na anterior edição deste livro (escrita em 1989 e publicada em 1990) (), perguntávamos se, afinal, as ideias e as instituições provenientes da Revolução Francesa iriam ou não prevalecer sobre as da Revolução Russa e se a liberdade política iria difundir-se cada vez mais ou se continuaria a ser travada por tendências de concentração de poder, tanto quanto por desníveis económicos e sociais.

A resposta não pode deixar de ser positiva. A democracia representativa e pluralista, a democracia politicamente liberal (e com economia de mercado mais ou menos condicionada ou controlada pêlos poderes públicos) impôs-se como princípio de legitimidade contra a falta de racionalidade dos demais regimes.

Não significa isto, porém, que se tenha chegado ao «fim da história», até porque a história comporta avanços e recuos, saltos e sobressaltos, e porque se mostram bem evidentes as imperfeições e os sinais de perturbação e perplexidade de muitas das actuais democracias, tais como a quebra do sentido de participação cívica e o afastamento em relação aos governantes, a sujeição do contraditório parlamentar ao imediatismo da comunicação audiovisual, as tendências oligárquicas e os défices de democracia no interior dos partidos, ou os excessos de corporativismo (2). Dir-se-ia que a «democracia sem inimigo» não tem mais problemas externos, mas que se abriu a caixa de Pandora dos seus problemas internos (3) (4).

C) Pág.97.

(2) Cfr. a nossa intervenção Nos dez anos de funcionamento do Tribunal Constitucional, m Iegiimidade e legiimação da justiça constitucional, obra colectiva, Lisboa, 1995, págs. 96 e segs.

(3) GIOVANNI SARTORI, Democraia cosa è, Milão, 1993, pág. 267.

(4) Mesmo um Autor como FRANIS FUKUYAMA, que fala numa «história direccional e univrsal rumo à democracia liberal», reconhece que, ainda que a maioria das carruagens da caravana da história cheguem eventualmente ao seu destino, não sabemos se os seus ocupantes, ao olharem em redor, não julgarão inadequadas as novas circunstâncias e «resolverão dar início a uma nova e mais disiante viagem» (op. cit., págs. 324 e 325; v., ainda, págs. 303, 310 e segs. e 320-321).

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100Manual de Direito Constitucional

In — Não sem relação com a situação no interior dos Estados, verifica-se o fenómeno, de intensidade e amplitude iniludíveis, da integração em espaços continentais ou regionais.

Sem ignorar outras experiências em curso (como o Mercosul, que abrange o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai), é a integração europeia a que mais avulta. E sem esquecer o Conselho da Europa (criado em 1948 e com relevantíssima acção no domínio dos direitos do homem e da cooperação jurídica) é o processo desencadeado pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1952) e pelas Comunidades Económica Europeia e Europeia de Energia Atómica (1957) que a tem levado mais longe.

Tendo começado por uma via fundamentalmente prática e funcional e por abranger apenas seis países, este processo viria a alcançar, pela sua própria dinâmica, pelo «Acto Único Europeu» (1986) e pelo Tratado de Maastricht, dito de «União Europeia» (1992), círculos crescentes de atribuições, a ponto de se tomar necessário proclamar um princípio de subsidiariedade (art. 3.°-B do Tratado da Comunidade Económica Europeia, aditado pelo Tratado de Maastricht).

Resta saber se é possível alcançar, simultaneamente, o duplo objectivo, proposto para os próximos anos, de «aprofundamento» e «alargamento»; e se as instituições comunitárias se manterão originais, conjugando elementos de diferentes fontes, ou se evoluirão para um qualquer federalismo que afectará a subsistência da soberania dos Estados ().

(i) Sobre as Comunidades e a União Europeia, v. Manual..., 111, 3. ed., Coimbra, 1993, págs. 193 e segs., e Direito Internacional Publico — l, cit., págs. 237 e segs.

TITULO II

SISTEMAS E FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS

CAPÍTULO I

SISTEMAS E FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS EM GERAL

30. A complexidade constitucional actual e as perspectivas por que pode ser encarada

I — com perto de 200 Estados formalmente soberanos na actualidade, todos com os seus ordenamentos particulares e quase todos revestidos de Constituições escritas, não é fácil surpreender um quadro suficientemente largo e preciso não só das múltiplas formas e instituições como das grandes coordenadas do Direito constitucional, das tendências comuns e das aproximações possíveis para lá das dissemelhanças inevitáveis.

E, não obstante, é necessário levar a cabo tal tarefa quer se trate de trabalhos comparativos ex professo, quer (como aqui) de exposição perfunctória antecedente do

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estudo da formação do Direito constitucional português e dos grandes temas da teoria da Constituição.

II — São diversas as vias ou perspectivas que se oferecem para essa finalidade: o recurso à Teoria Geral do Estado, a tipologia das formas políticas, a observação de experiências constitucionais, a formação de sistemas e famílias de Direito constitucional (). Seguir-se-á este último caminho.

() Para maior desenvolvimento, v. as nossas Notas para uma Introdução ao Direito Constitucional Comparado, cit., págs. 50 e segs., ou as lições de Direito Constitucional Comparado, policopiado, Lisboa, 1977-1978, págs. 106 e segs.

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102Manual de Direito Constiucional

A primeira perspectiva repousa no enlace com a Teoria Geral do Estado, a qual fornece os temas e problemas a considerar, sendo depois as respectivas soluções procuradas pela investigação comparativa. As matérias de Direito constitucional comparado correspondem aos conceitos mais ou menos gerais e abstractos elaborados pela Teoria do Estado; e, por seu turno, esta vai colhendo os resultados da comparação, de modo a actualizar ou substituir conceitos utrapassados pelas mutações políticas e sociais.

Tal vem a ser a grande vantagem desta via ou perspectiva, mas também o seu maior inconveniente. É que tão estreita relação entre as duas disciplinas ou entre as duas intenções pode levar à diluição ou à subaltemização do trabaho comparativo ou então a grave diminuição do seu interesse por acabar por não mostrar ao vivo as semelhanças, as diferenças e as interacções de institutos e preceitos.

Pelo que tange à tipologia das formas políticas, ela consiste em distribuir os diferentes sistemas constitucionais em razão dos sistemas políticos que instituam, em inserir as Constituições em esquemas classificatórios de formas de governo (governo representativo clássico, governo jacobino, monarquia limitada, democracia representativa, etc.) ou de sistemas de governo (parlamentar, presidencial, directorial, etc.) e em proceder à respectiva descrição.

Oferece, no entanto, o óbice de as formas políticas não esgotarem, de modo algum, os sistemas constitucionais. As Constituições não se reduzem à sua regulamentação; ocupam-se de outras matérias, desde a estrutura do Estado, os direitos fundamentais e a economia à sua própria garantia e revisão.

com o estudo das experiências constitucionais, assenta-se no sistema constituciona de cada país como um todo e procura-se conhecer a sua origem, quais os elementos políticos, económicos, culturais e religiosos que o têm condicionado, quais os seus traços dominantes actuais e quais as suas linhas de projecção provável para o futuro. Ea experiência da organização jurídico-política de cada povo, produto de uma mentalidade e de um ambiente peculiares, que se cuida de recortar ao longo das várias vicissitudes históricas por que tenha passado.

Sem embargo, não são poucos os riscos que tal estudo particuarizado de experiências constitucionais comporta: ou o risco de fazer justificação, e não comparação; ou o risco de deslocação para pleno campo histórico, com numerosíssimos factos e instituições, onde se toma penoso avançar; ou o risco de penetrar ou de se deixar envolver tanto pelo ordenamento constitucional deste ou daquele país que depois dir-se-ia quase descabido comparar, por tudo se mostrar original ou irredutível.

Quanto ao método de formação de famílias constitucionais consiste, por um lado, em examinar o Direito constitucional de um país

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Parle l—O Estado e os sisemas constitucionais 103

tal como se apresenta na sua realidade de sistema dotado de vida própria e, por outro lado, em tentar agrupar sistemas semelhantes ou afins num pequeno número de famílias ou tipos constitucionais.

Este método — mais concreto que o primeiro, mais compreensivo que o segundo e mais estritamente jurídico de que o terceiro apontado — oferece uma tríplice vantagem. Baseia-se no Direito constitucional como um todo, embora tenha de escolher os elementos sobre que vai incidir a comparação; toma-o integrado no sistema jurídico a que pertence; visa descobrir a continuidade institucional, mas, ainda mais, a coerência actual de valores, conceitos e normas.

É um método que abre tanto para uma dimensão temporal quanto para uma dimensão espacial (de tendência universalizante) como nenhum outro e que, assim, se situa bem entre as tentativas de agrupamento de ordens jurídicas a que procede o Direito comparado (). Contudo, tem de ser usado como prudência, por se terem tomado menos firmes os contornos de sistemas e famílias num mundo em mudança.

31. A formação de famílias constitucionais

I — A formação de famílias é via percorrida por numerosos autores. RENÉ DAVID, trabalhando voltado para o Direito privado, contribuiu muito para a difusão; dele se aproxima dalgum modo KONRAD

() Cfr. a análise exaustiva de LÊONTIN-JEAN CONSTANTINESCO, op. cit., 111, maxime págs. 75 e segs., 93 e segs. e 233 e segs., ou de KONRAD ZWEIGERT e HEINZ KÕTZ, Einfúhrung in die Rechtsvergieichung, trad. italiana Introduzione ai Diritto Comparato, l, Milão, 1992, págs. 76 segs. E também MARC ANCEL, Lê comparatise devant lês systèmes (ou «familles») de droit, in Festschift fúr Konrad Zweigert, obra colectiva, Tubinga, 1981, págs. 355 e segs.; MANUEL NOGUEIRA SERENS, Sobre a classificação das ordens jurídicas em sistemas ou famílias de direito, m Revista de Direito e Economia, 1986, págs. 129 e segs.; ALESSANDRO PizZORUSSO, The Law-Making Process as a Juridical and Political Activity, in Law in he Making —A comparative survey, obra colectiva, Berlim, 1987, págs. 27 e segs.;

HUBERT IZDEBSKI, Lê role du droit dans lês sociétes contemporaines: essai d’une approche sociologique en droit compare, in Revue internatíonal de droit compare, 1988, págs. 571 e segs.; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, op. cit., págs. 27 e segs.

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104Manual de Direito Constitucional

ZWEIGERT. E, debruçados já sobre os sistemas de Direito constitucional, devem referir-se os nomes de, entre outros, KARL LOEWENSTEIN e SANCHEZ AGESTA (1).

Para RENÉ DAVID, o Direito não vem a ser unicamente um conjunto de regras jurídicas, variável de época para época e de país para país. Em cada país pode mesmo dizer-se que — para além dessa inevitável transformação — ele permanece idêntico a si mesmo nos conceitos, nos métodos de trabalho, nas ideias sobre a sociedade e a justiça, nas estruturas em que se insere. Por conseguinte, quando se determinam as famílias jurídicas, parece indicado tomar em conta estes elementos constantes do Direito, de preferência às disposições sempre menos estáveis.

São os seguintes os meios ou os requisitos a atender no agrupamento. Refere-se um à técnica jurídica: um Direito pertence à mesma família de outro, desde que o jurista seja capaz de lidar sem dificuldade com os conceitos, institutos e construções dogmáticas de qualquer deles. Refere-se o segundo requisito à comunidade de princípios filosóficos, políticos e económicos. Os dois critérios devem ser usados cumulativamente, não isoladamente, e com visão larga suficiente para que se distingam as características essenciais de outras de acessória importância.

DAVID estuda então, com base nesses critérios, a família romano-germânica, os Direitos socialistas, o sistema de Common Law e os Direitos religiosos e tradicionais (muçulmano, da índia, do Extremo Oriente e da África e de Madagáscar) (2) (3),

Por seu turno, KONRAD ZWEIGERT toma como critério os «estilos» dos sistemas jurídicos e considera factores determinantes de certo estilo a ori-

() V. também uma referência em MARCELO REBELO DE SOUSA, Esado, m Dicionário Jurídico da Administração Pública, iv, pág. 227.

(2) Lês grands systèmes de droit contemporains, 2. ed. Paris, 1966. V. também Traité élémentaire de droit civil compare Paris, 1950.

(3) De critério semelhante, mas não idêntico, aos de René David se serve OLIVEIRA ASCENSO (op. cit., págs. 134 e segs.) para determinar os sistemas jurídicos actuais: o critério das civilizações como ideologias que encarnaram na vida social. E, de acordo com ele, considera «direitos primitivos» e «direitos civilizados» e nestes um sistema ocidental (com subsistemas romanístico e anglo-americano), um sistema socialista ou soviético e um sistema muçulmano.

Doutro prisma, em termos muito mais amplos, é também para a noção de civilização que apela CONSTANTINESCO (op. cit., Ill, págs. 388 e segs.), sendo civilização um modo diferente de conceber o universo, as nações, a sociedade, os homens e as suas relações.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 105

gem histórica e a evolução do ordenamento, os modos de pensar dos juristas, os institutos jurídicos caracterizantes,as fontes de Direito e a sua interpretação e os factores ideológicos ().

Como sistemas jurídicos enuncia o romanístico, o germânico, o anglo-americano, o escandinavo, o dos países socialistas, os do Extremo Oriente, o islâmico e o indiano (2).

Bastante conhecida é a contraposição formulada por LOEWENSTEIN entre Constituições originárias e derivadas, sendo «originária» uma Constituição que contém um princípio funcional novo, verdadeiramente criador e, portanto, original para o processo do poder político e para a formação da vontade estadual e «derivada» aquela que segue fundamentalmente um modelo nacional ou estrangeiro.

Como tipos originários de Constituição considera LOEWENSTEIN o parlamentarismo britânico, o sistema constitucional americano, o constitucionalismo francês de 1793 (que produziu o tipo de governo de assembleia), as Constituições napoleónicas (que introduziram o cesarismo plebiscitário), a Constituição francesa de 1814 (de monarquia constitucional de base legitimista), a Constituição belga de 1831 (que reconciliou o princípio monárquico com a soberania popular) e as Constituições russas soviéticas de 1918 e 1924.

As famílias de Constituições englobam todos os documentos constitucionais que provêm de uma comum Constituição originária ou, eventualmente, de uma Constituição que, embora derivada ela própria de outra, tenha exercido influência exterior (3).

SANCHEZ AGESTA, finalmente, entende que a Constituição surge como realização de um quadro de possibilidades típicas num meio histórico determinado, de tal sorte que a consideração histórica concreta das ordens constitucionais, com as suas relações de influxo e repulsa, de propagação de ideias, de imitação de instituições, de evolução e transmissão de princípios e fórmulas jurídicas, propicia a verdadeira base de uma ciência do Direito constitucional.

Postulada a índole específica e autónoma de cada ordem constitucional, há que admitir a existência de causas históricas que determinam formas análogas e paralelas em países distintos. As razões de homogeneidade reduzem-se a duas: a imitação e a força expansiva de certas ideias. A difu-

() Cfr. a noção de grelha comparativa, aglutinando elementos determinantes, externos e históricos, proposta por Isabel de Magalhães Collaço (segundo CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, op. cif., págs. 18 e seg.).

(2) Op. cit., págs. 80 e 93 e segs.

(•) Teoria, cit., págs. 209 e segs.

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106Manual de Direito Constiucional

são de uma ideologia e o mimetismo técnico operam como elementos unificadores; as razões históricas e o substrato social como elementos individual izadores de cada ordem jurídico-política.

Subsiste o problema de salientar Constituições-tipo que sirvam de pontos de referência. Um critério mais marcadamente teórico repousaria na análise de tipos de organização constitucional e aconselharia a olhar, à laia de exemplos históricos, para as Constituições em que melhor se concretizassem os conceitos de classificação. Outro critério, de carácter empírico, poria em foco, segundo as linhas da sua difusão histórica, as ordens-mães de grupos ou famílias de Constituições. SANCHEZ AGESTA opta por um critério intermédio, estudando aquelas Constituições cujos princípios definem um tipo que tenha sido gerador de instituições similares noutros povos ().

II — Parece-nos de reunir as lições de RENÉ DAVID e as de LOEWENSTEIN e SANCHEZ AGESTA. Na necessária indagação prévia, seguimos o mestre francês na tentativa de aglutinação da massa de ordens constitucionais existentes em tomo de algumas poucas famílias ou tipos. Na exposição (e em parte na investigação) aproximamo-nos, porém, dos dois constitucionalistas: em vez de imediatamente contemplarmos os elementos comuns aos Direitos constitucionais dos diversos países na sua transplantação ideal para cada família, começamos por os contemplar através dos sistemas jurídico-constitucionais onde nasceram e se desenvolveram e cuja evolução, por isso, convém não ignorar.

Quer dizer: o resultado a que chegaremos será o mesmo a que chegaria RENÉ DAVID — a apresentação de grandes sistemas de Direito constitucional (2), susceptíveis de serem captados na sua filo-

() GIUSEPPE DE VEROOTTINI, embora adopte uma classificação para efeitos comparativos assente nas formas políticas (op. cit., págs. 54 e segs.), também fala em modelos e ciclos constitucionais abrangendo uma pluralidade de países (pág. 224):

Estados Unidos e países que seguem o seu modelo Constituições francesas da Revolução, Constituições de Restauração (monarquia «limitada» e constitucional), Constituições do parlamentarismo racionalizado, Constituições correspondentes à racionalização da Constituição inglesa Constituições marxistas-leninista, Constituições autoritárias e Constituições islâmicas.

(2) Tanto LOEWENSTEIN como SANCHEZ AGESTA consideram um número maior de Constituições ou de Constituições originárias do que os que propomos, por parecerem atender principalmente às formas e aos sistemas de governo.

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sofía e na sua dogmática; mas ele não será prejudicado por nos servirmos, juntamente com a geografia constitucional, da alusão particular a determinados países e Constituições.

A pertença a uma família de sistemas constitucionais não acarreta a imperiosa coincidência de todos os sistemas acerca de todos os critérios de comparação de que nos sirvamos (l). Se assim fosse, seria quase impossível realizar qualquer agrupamento de sistemas, porquanto nem cada família envolve uma configuração de cada critério desconhecida da das outras famílias, nem tão pouco poderia ser perfeita a coincidência abstracta dos elementos, através dos critérios;

a Inglaterra, em vez de presidir a uma imponente família, mostrar-se-ia tão isolada como a Suíça.

Por mais que variem, os critérios de comparação conjugam-se, não se separam ou afastam. Tal como os elementos — que permitem captar para efeito de confronto — têm de ser objecto de compreensão sistemática. Para lá deles, importa encarar o sistema constitucional de cada país nas suas linhas directrizes e no seu espírito — que lhe conferem originalidade e, ao mesmo tempo, integração, em plano mais amplo, num tipo constitucional (2).

In — As fases pelas quais se desdobra o processo intelectual de agrupamento dos sistemas em famílias de Direito constitucional são as seguintes:

.°) Observação dos sistemas constitucionais (não de todos necessariamente, mas de uma maior parte e mais significativa, na sua realidade e diversidade);

2.°) Recolha de caracteres comuns e destrinça de caracteres diferenciadores;

() Sobre critérios de comparação, v. as citadas lições de Direito Constiuciona Comparado, págs. 102 e 135 e segs.; ou GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. rir., págs. 52 e segs.; cfr. o conceito de «elementos determinantes» em CONSTANTINESCO, op. cit., i, págs. 214 e segs.

(2) A esta luz, não procede a crítica ao conceito de família constitucional como imprecisa e vaga, formulada por HENC VAN MAARSEVEEN e GEN VAN DER TANG (Wrítten Constitutions — A Computeriwd Comparativ Study, Nova Iorque e Alphen aan den Rijn, 1978, págs. 284-285).

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108Manual de Direio Constitucional

3.°) Procura ou confirmação de sistemas com caracteres semelhantes;

4.°) Sempre que essenciais os pontos de contacto, inclusão dos sistemas nas mesmas famílias — sendo, porém, imprescindível proceder a análise histórica e sistemática;

5.°) Averiguação da possível existência de um sistema donde derivem historicamente os outros sistemas, por comunidade de origem, imitação, influência ideológica ou imposição;

6.°) com os elementos comuns aos vários sistemas integrados em cada família, construção da unidade dogmática ideal correspondente a esta e sua consideração como sistema abstracto coerente.

O caminho a percorrer fica, pois, situado entre duas balizas: o sistema ou os sistemas constitucionais concretos e palpáveis na vida e o sistema ideal e típico de que participam e que os influencia. Este sistema-tipo não é senão aquilo que existe de paradigmaticamente comum aos vários sistemas positivos. Por exemplo: o Direito constitucional canadiano e o neozelandês são expressões de um Direito constitucional de matriz inglesa e pertencem à família inglesa de Direito constitucional; o Direito constitucional chinês e o cubano são concretizações históricas do tipo soviético de organização poítica.

De acordo com tal enquadramento, toma-se fácil afirmar que os resultados essenciais da comparação vêm a ser, por um lado, o recortar de um determinado número de famílias constitucionais e, por outro lado, a descrição dos elementos que, revelando-nos a estrutura interna de cada uma (outro tanto é dizer: a estrutura de cada um dos sistemas jurídico-constitucionais em especial, em que ela grosso modo se repete), lhe imprimem as suas feições identificadoras o.

A dimensão mais completa deste ou daquele sistema constitucional particular obter-se-á tomando-o integrado na família de que vier a participar. Uma perfeita localização sistemática de uma norma da

(i) Deste modo, o agrupamento dos sistemas constitucionais por famílias — por si só, aliás, de grande interesse — concorre ainda para oferecer uma base segura de autonomia à ciência do Direito constitucional comparado e para abrir à plena explicação de qualquer instituto pertencente a uma ordem jurídica dada.

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Constituição em sentido formal não se esgota no paralelo com as outras normas da mesma Constituição em sentido formal, nem no plano da Constituição em sentido material do país de que se trate, nem através do sistema jurídico total desse país; pode ser ainda encarada no plano do sistema ideal que assinala a família de Constituições em que se mova o sistema constitucional ().

32. Os sistemas e famílias constitucionais da actualidade

I — Não custa reconhecer a existência de quatro grandes famílias de Direito constitucional no século xx: a inglesa, a norte-americana, a francesa e a soviética.

Os principais institutos de Direito constitucional vigentes no mundo remontam ou remontaram aos sistemas jurídicos de Inglaterra, Estados Unidos, França e União Soviética. Daqui se difundiram com amplitude e fidelidade variáveis, segundo fenómenos históricos conhecidos, para numerosos outros países. E, ainda hoje, é às matrizes britânica, norte-americana e francesa que se reconduzem os sistemas constitucionais da maior parte dos países, e mesmo depois de 1989-1991 a influência do constitucionalismo soviético persiste em alguns países.

Um breve conspecto da evolução, do século xvin para cá, primeiro na Europa e na América e mais tarde também noutros continentes, permite apreender o bem fundado da discriminação.

II — O sistema britânico é o mais antigo e o mais sólido dos sistemas constitucionais. A Inglaterra não teve rigorosamente monarquia absoluta e passou, embora não sem convulsões como as de 1648 e 1688, do Estado estamental para o Estado constitucional representativo. Mostesquieu inspirou-se nela para formular a sua concepção de separação dos poderes. O governo parlamentar e, de certa sorte, a instituição parlamentar tiveram lá a sua origem. A influência do Direito constitucional inglês revelar-se-ia, naturalmente, mais forte e directa nos povos que, alguma vez, estiveram sujeitos ao seu domí-

(i) Sem esquecer, todavia, os cuidados a ter quanto à aplicação à vida prática.

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110Manua de Direito Constitucional

nio (muitos dos quais ainda se encontram ligados entre si e com Grã-Bretanha dentro do Commonwealth).

As primeiras Constituições escritas em pleno sentido moderno () e que incorporam já a filosofia jusracionalista aparecem, porém, no continente americano. São as Constituições das treze colónias que dão origem aos Estados Unidos e a Constituição federal de 1787. E, conquanto a imagem da Inglaterra e a influência doutrinal francesa aí estejam presentes, algumas contribuições próprias importantíssimas marcam o constitucionalismo norte-americano, maxime o federalismo, o governo presidencial e a fiscalização da constitucionalidade das leis pêlos tribunais. Vêm a ser estes institutosque melhor caracterizam um modelo imitado pela América Latina no século xix e que, em parte, são também transplantados para alguns outros países.

O constitucionalismo como movimento revolucionário de vocação universal é em França, em 1789, que triunfa e é de lá que irradia (mesmo para países que não ficarão na família de matriz francesa). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não se dirige apenas aos franceses, dirige-se a todos os homens, e no seu artigo 16.° contém uma noção de Constituição em sentido material (e, implicitamente, em sentido formal). A experiência inglesa, apesar de lhe levar um século de antecedência, não teve o mesmo efeito, quer pêlos reflexos da insularidade quer pela especificidade da estrutura jurídica, social e administrativa do Reino Unido.

O sistema constitucional soviético provém da revolução russa de Outubro-Novembro de 1917 e instaurar-se-ia em numerosos países, nas décadas seguintes, com o acesso do partido comunista ao poder. Subordinação de toda a organização política, económica e social aos objectivos de realização do socialismo e do comunismo definidos pelo partido, eis o seu primeiro traço distintivo.

In — com ideias e instituições oriundas de Inglaterra, Estados Unidos e França, mas com difusão e correspondente destruição das

(i) Alguns documentos surgidos aquando das revoluções inglesas, como o Instrument ofGovernment (1653), têm um simples interesse episódico.

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Parte I—O Estado e os sisemas constiucionais 11

instituições da monarquia absoluta a partir da Revolução francesa, o Estado constitucional, representativo ou de Direito desenvolve-se desde então em sucessivas vagas de Constituições, cujo conteúdo revela progressivo alargamento.

A este respeito, um autor, BISCARETTI Dl RUFFIA, distingue oito ciclos entre 1789 e a época contemporânea na linha do Estado de Direito, pertencendo os seis primeiros àquilo que designa por «constitucionalismo clássico»: 1.°) as Constituições revolucionárias (1789-1799); 2.°) as Constituições napoleónicas (1799-1815);

3.°) as Constituições da Restauração (1815-1830); 4.°) as Constituições liberais (1830-1848); 5.°) as Constituições democráticas (1848-1918); 6.°) as Constituições federais (1848-1871); 7.°) as Constituições de democracia racionalizada (1919-1937); 8.°) as Constituições de democracia social (2.° após-guerra) (). E poderia acrescentar um novo ciclo: o das Constituições das duas últimas décadas, subsequente à queda dos regimes autoritários e totalitários da Europa meridional, da América Latina e da Europa central e oriental.

Verificam-se, entretanto, interacções e aproximações de sistemas pertencentes a famílias diversas e, em alguns casos, dir-se-ia formarem-se sistemas mistos ou híbridos.

IV — Na Europa continental, à margem das Constituições de matriz francesa somente ficam no século xix, por um lado, a Rússia e a Turquia e, por outro lado, os países de língua alemã. Ali os regimes permanecem imobilizados. Aqui, não ocorrem ou não triunfam revoluções liberais e é possível aos monarcas conduzir o processo político, através das chamadas monarquias constitucionais propriamente ditas ou limitadas, com prevalência do princípio monárquico sobre o princípio democrático. E quer tal circunstância, quer a adopção de fórmulas organizativas próprias, quer ainda o esforço de elaboração de conceitos por parte dos juristas permitem considerar os sistemas constitucionais alemão e austríaco com autonomia em face do sistema constitucional francês.

() La Constítution comme loifondamentale..., Turim-Paris, 1966, págs. 9-10.

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O que se diz acerca da Alemanha e da Áustria deve dizer-se, ainda com mais razão (e, em parte, razão inversa) acerca da Suíça. A história constitucional helvética, aliás, pode remontar-se à Idade Média e é largamente (embora não exclusivamente) assinalada pelo cunho democrático. Nos séculos xvm e xix a Suíça sofre o influxo do Direito revolucionário francês e em 1848 passa de confederação a federação, mas os institutos e prática de democracia directa, o federalismo cantonal e plurilinguístico e o sistema de governo directorial tomam o seu sistema constitucional irredutível a qualquer outro.

Não é (ou não foi) o Estado de tipo soviético o único que se apresenta (ou apresentou) em divergência radical perante o Estado constitucional representativo. Invocam também princípios contrapostos aos do liberalismo político os regimes fascistas e fascizantes que se exibem em força entre as duas guerras mundiais; e após 1945, subsistiriam ainda, ou instaurar-se-iam de novo, regimes aparentados. Todavia, por assumirem configurações concretas muito particulares e por, com algumas excepções, não terem logrado definir formas constitucionais consistentes, não chegaram nunca a dar origem a uma verdadeira e própria família de Direito constitucional.

Por último, depois da descolonização, em alguns Estados da

Ásia e da África ensaiaram-se vias novas ou diferentes, em nome das suas tradições e das suas necessidades de desenvolvimento. Mas debalde se procuraria um modelo único e, muito menos, uma específica família de Direito constitucional, tão divergentes foram essas vias e tão incipientes (ou falhadas) se revelariam.

Situação mais clara vem a ser a criada pelo fundamentalismo islâmico, cuja expansão, a partir do Irão, poderá, eventualmente, conduzir à formação de uma família sui generis.

33. Dualidade ou pluralidade de famílias constitucionais

I — As influências recíprocas, sob muitos aspectos, entre os sistemas constitucionais do Ocidente e, por outro lado, a oposição entre eles e os sistemas constitucionais de matriz soviética poderiam levar a advogar a redução a duas famílias constitucionais, no período de 1945 a 1989-1990: a ocidental, correspondente sucessivamente ao Estado liberal e social de Direito, e a soviética, correspondente ao

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 113

Estado marxista-leninista. E a essas famílias reconduzir-se-iam dois tipos fundamentais e antagónicos de Constituições que se encontrariam, segundo alguns, na nossa época: o capitalista e o socialista O.

O confronto entre os sistemas constitucionais do Ocidente e os de Leste era, na verdade, impressionante, como poderia comprovar-se, em rápido relance comparativo, por algumas das características fundamentais duns e doutros.

Assim, no Ocidente, a Constituição destina-se essencialmente a garantir direitos fundamentais dos cidadãos e a limitar o poder do Estado; nos países de Leste, pelo contrário, destinava-se a salvaguardar e promover as conquistas do regime político e económico socialista. No Ocidente, fala-se em Estado de Direito, e estão muito aperfeiçoados os meios jurisdicionais de garantia ou remédios contra os abusos do poder; no Leste, em legalidade socialista, com meios ainda embrionários de garantia.

Os regimes políticos britânico, americano e francês assentam na atribuição do poder ao povo, recortado juridicamente como conjunto de cidadãos, e no exercício das liberdades públicas. O regime político soviético assentava na atribuição do poder à classe operária e na sujeição das liberdades aos interesses dos trabalhadores e aos objectivos de realização do comunismo. O Direito constitucional ocidental admite a liberdade e a concorrência dos partidos como peças do dinamismo da vida política e expressão de uma sociedade pluralista, ao passo que todo o Estado soviético se configura como Estado construído e mantido por um partido único ou hegemónico, considerado vanguarda da classe operária.

O século xvin — inglês, norte-amricano e francês — inventou o governo representativo (convertido, no século xx, em democracia representativa, como já se notou). E esta forma de governo — ligue-se a sistemas parlamentares, presidenciais, directoriais ou a quaisquer outros — realiza, de maneira mais ou menos imperfeita

(i) Assim, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 2.° ed., Coimbra, 1980, i, págs. 113 e segs. (na 4. ed., Coimbra, 1986, págs. 72 e segs., propõe 3 tipos, aliás, ideais, de Constituição: a Constituição do Estado liberal, a do Estado social e a do Estado socialista).8—Man. Dir. Const..

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14Manual de Direito Constiucional

e variável, um objectivo de divisão ou desconcentração de poder. Mas o Direito constitucional marxista-leninista (na esteira de RousSEAU) rejeita o princípio da representação política e toma-se indissocial de sistemas de unidade e concentração de poder.

BISCARETTI Dl RUFFIA explica do seguinte modo o contraste entre o Direito constitucional ocidental e o soviético:

«Enquanto que as Constituições da democracia clássica, com a sua rigidez bem protegida, visam oferecer as mais amplas garantias às numerosas e distintas formações sociais que operam na sua esfera de aplicação (e, em particuar, tendem a proteger os grupos minoritários face às maiorias contingentes), as Constituições socialistas intentam, antes de mais, transformar de forma cada vez mais integral a velha sociedade não homogénea... numa sociedade verdadeiramente homogénea, sem oposição de classes, e onde a propriedade de todos os meios de produção das riquezas acabe por se tornar colectiva. E, como esta imensa obra de transformação social só se pode realizar por sucessivas fases, as Constituições sofre frequentes mutações, correspondentes aos diversos estádios de evolução progressivamente atingidos. E somente nos estádios mais avançados que as instituições constitucionais podem começar a aspirar a uma certa estabilidade de estruturas, determinando então a entrada em vigor do princípio da legalidade socialista (isto é, do respeito escrupuloso das normas legislativas), realizado com a colaboração da autoridade judiciária» ().

E GEORGES BURDEAU sublinha:

«Enquanto que no Ocidente a vontade popular é o suporte e a justificação de um poder aberto a todas as aspirações presentes do povo e a todas as renovações que, no futuro, possam transformar a sua vontade, no Leste o poder fecha-se sobre uma vontade popular cuja preponderância justifica a exclusão de qualquer contradição e cuja ortodoxia se opõe, no futuro, a qualquer alteração.

«De um lado Poder aberto, porque, se a vontade popular lhe dita os imperativos que comandam a sua acção, pelo menos esta vontade é aceite na sua complexidade real. Existe nela o «pró» e o «contra». Sem dúvida, o «pró» prevalecerá pelo jogo da força do número, mas o «contra» ter-se-á feito ouvir. Ou melhor: o Poder não lhe está definitivamente fechado, porque lhe cabe a esperança de ganhar o Povo para esse «contra» que não tem, decerto, o direito de mandar, mas que tem o direito de existir...

(i) La Constitutíon comme loi fondamentale..., cit., pág. 24.

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«De outro lado Poder fechado ou Poder servidor de uma vontade popular cuja substância está definitivamente fixada. Poder fechado ainda como Poder cuja inspiração, cujo programa e cujos planos, formados segundo as exigências dessa vontade preponderante, escapam, doravante, a qualquer revisão, porque a organização do exercício do poder está combinada de modo a esse poder ser monopoizado pela força política que é erigida em senhora do Estado. Poder fechado, enfim, como Poder partidário Poder dogmático, porque o serviço excusivo da ideologia que encarna lhe impede de considerar as concepções divergentes a não ser como heresias que é preciso destruir» ().

II — Apesar de tudo, entendemos indispensável destrinçar no Estado constitucional ocidental três grandes famílias, três grandes sistemas-tipos, não como tipos ideais, insista-se, mas como tipos históricos bem situados. Em vez de dualismo ou polarização, a pluralidade em razão da complexidade de factores a atender.

O Direito tem de ser visto numa dimensão muito mais ampla que a da ideologia e a da afinidade de sistemas políticos e económicos. O Direito faz parte da vida dos povos e o Direito constitucional ostenta, positiva ou negativamente, as particularidades da sua convivência política, da sua cultura, do seu ambiente humano. Nem é a Constituição económica a região nuclear ou determinante do Direito constitucional (2).

Por mais fortes que sejam os vínculos de unidade no Ocidente, subsistem irrecusáveis sinais e causas de diferenciação. Basta pensar no papel do costume e das convenções constitucionais em Inglaterra, em contraposição ao culto da lei nos países latinos (e também, sob outra perspectiva, nos países com Constituições marxistas-leninistas); na pujante função desempenhada pêlos tribunais americanos na vida política e social, ao lado da estrita função judicativa dos tribunais franceses; noutro plano, nas diferenças entre o governo local de Inglaterra e as autonomias comunais ou municipais do Continente

() Traité..., cit., v, 2.” ed., Paris, 1970, págs. 614615. Cfr. também A Democracia, trad., Lisboa, 1957, págs, 72 e segs.

(2) Cfr. o nosso Direito na Economia policopiado, Lisboa, 1982-1983, págs. 59 e segs., e autores citados.

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Europeu; e, em geral, entre o sistema administrativo de raiz francesa e os sistemas administrativos dos países anglo-saxónicos.

Logo, como ignorar as condições em que emergiram e se desenvolveram as Constituições em Inglaterra, nos Estados Unidos e nos demais países anglo-saxónicos, em França e nos demais países do Continente europeu? () Como ignorar, por exemplo, a veneração prestada à Constituição na América e os saltos e as rupturas institucionais de países como a França e Portugal? E como ignorar a poderosíssima carga de tradições, sentimentos, conceitos e técnicas de trabalho dos juristas, iniludivelmente variável de sistema para sistema?

O fim dos regimes autoritários e totalitários, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, os progressos da integração comunitária levaram a que por toda a Europa triunfasse uma concepção comum sobre o Estado e os direitos das pessoas (2). No entanto, ultrapassados os afrontamentos ideológicos, tomaram-se também mais patentes os contrastes de organização jurídica e política entre os diversos países, de modo a recortarem-se, com mais serenidade e clareza, os traços identificadores dos sistemas constitucionais.

34. As famílias do Direito constitucional, os sistemas de Direito privado e os sistemas administrativos

1 — Existe um relativamente estreito nexo entre os sistemas de Direito civil e os de Direito constitucional e entre a comparação em Direito privado e em Direito público. Nem poderia deixar de assim suceder, tendo em conta (insistimos) a função da Constituição (3).

() Cfr., em obra, aliás, de inspiração marxista, a distinção de três modelos constitucionais feita por CARLOS DE CABO MARTIN (op. cit., págs. 221 e segs., 231 e segs. e 243 e segs.): constitucionalismo evolutivo (o inglês), constitucionalismo originrio (o norte americano) e revolucionário (o francês).

(2) Cfr. PHILPPE LAUVAUX, Existe-t-il un modele constitutionnel européen?, m Droits — Revue français lê théorie juridique. n.” 14, 1991, págs. 49 e segs., ou PETER HÃBERLE, Derecho Constitucional Comun Europeo, trad., in Revista de Estúdios Polticos, 1993, págs. 7 e segs.

(3) Cfr. GIORGIO LOMBARDI, op. cit., págs. 37 e segs.

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Essa ligação entremostra-se mais fortemente no respeitante aos países com regimes marxistas-leninistas: têm Direito privado socialista soviético os países com Direito constitucional socialista soviético; ou melhor, a adopção de um regime de tipo soviético acarreta a modificação completa do sistema jurídico privado. Mas encontra-se conexão igualmente noutros países: o Direito constitucional de índole britânica quase só abrange países de common law e não terá sido obstáculo desprezível à plena recepção dele em numerosos países (caso das monarquias constitucionais europeias) o possuírem estes um sistema de Direito privado estranho ao Common Law.

Há, porém, evidentemente, pontos de discrepância (). É muito maior a extensão da adesão ao Direito privado romanista que a adesão a qualquer sistema constitucional doOcidente: a América Latina, área romanista, tem vivido sob influência do sistema constitucional de cariz norte-americano; na Europa ocidental, toda ela imbuída do Direito romano, há o sistema francês de Direito constitucional e países com sistemas próprios. Além disso, os sistemas constitucionais propagaram-se a países de Direito privado religioso ou tradicional: países muçulmanos, Índia, Extremo Oriente e, de algum modo, África e Oceânia.

II — Relação ainda mais estreita se depara entre sistemas de Direito constitucional e sistemas de Direito administrativo (2), como é óbvio.

O contraste histórico (embora hoje algo atenuado) entre o sistema administrativo inglês e o sistema administrativo francês arranca, em linha recta, de diferentes concepções constitucionais. Embora seja comum a ideia de subordinação do poder político ao Direito, a cha-

() V. também KONRAD ZWEIGERT e HEINZ KÕTZ, op. cit., pâg. 80. (2) Cfr., em geral, B. CASTEJÓN PAZ e E. RODRIGUEZ ROMAN, Derecho Administrativo y Ciência de Ia Administracion, 2. ed., Madrid, 1969, l, págs. 48 e segs., MARCELLO CAETANO, Tendências..., cit., págs. 429 e segs., MARCELO REBELO DE SOUSA, Estado, cit., loc. cit., págs. 242-243, HELLY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 19.° ed. São Paulo, 1994, págs. 48 e segs., FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., págs. 91 e segs.

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118Manual de Direito Constitucional

mada administração judiciária de tipo britânico radica no ruie of law, ao passo que que a administração executiva de tipo francês assenta no modo como a separação de poderes aí foi (e continua sendo) entendida ().

De igual sorte, se particularidades existem no sistema administrativo dos Estados Unidos, elas derivam das exigências do federalismo, de uma estrutura muito descentralizada de toda a administração com múltiplas autarquias institucionais (ou agências) e do sentido dos tribunais como órgãos de garantia dos direitos individuais. E alguma destas características passariam para o Brasil e para outros países de influência constitucional norte-americana.

Não menos nítida se mostra a dependência do sistema administrativo dos países com regime marxista-leninista dos respectivos sistemas constitucionais. Os fins prosseguidos pela Administração identificam-se com os fins ideológicos assumidos pela Constituição e sobrepõem-se a quaisquer direitos e interesses subjectivos (sem efectiva tutela jurisdicional). E o «centralismo democrático» do partido reflecte-se numa extrema centralização e concentração da vida administrativa.

Enfim, também os traços peculiares de países não integrados em famílias, como a Suiça e a Alemanha, se espelham nos sistemas administrativos. O princípio da legalidade tem aí recolhido um tratamento diverso do obtido em França.

In — As disparidades dos sistemas de Direito privado, tal como as disparidades dos sistemas de Direito constitucional e de Direito administrativo vêm da história. O acolhimento de determinados princípios filosófico-jurídicos, que não de outros, ou o uso de determinadas técnicas de hermenêutica, que não de outras, dependem das cir-

() V. os escritos fundamentais de DICEY, Introduction to the Study of the Law of the Constitution, l. ed., 1885 (consultámos a IO. ed., 1959, reimpressão de 1965, págs. 328 e segs.), e de MAURICE HAURIOU, op. cit., págs. 224 e segs.;

e, recentemente, SPYRIDON FLOGÀITIS, Administrative Law et Droit Administratif, Paris, 1986, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., págs. 300 e segs., 323 e segs., 549 e segs. e 559 e segs.

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Parte l— O Estado e os sistemas constitucionais 119

cunstâncias que presidiram à criação e à evolução dos Direitos. E algo de semelhante se diga da difusão: por exemplo, o Common Law expandiu-se nas antigas colónias britânicas, ao mesmo tempo que as instituições constitucionais de base inglesa, e os sistemas civilístico, administrativo e, pelo menos em parte, o sistema constitucional francês nas antigas colónias francesas.

Contudo, na evolução do Direito e na sua recepção e adaptação é essencial olhar, em cada caso, às estruturas e instituições sociais e mentais dos vários países. Não há Direito público ou privado que possa subsistir sem ser apreendido pêlos juristas () e sem estar radicado no subsolo institucional da comunidade e este reage sempre com mais ou menos força sobre ele, incorporando-o ou tentando repeli-lo. O Direito de base ocidental não é o mesmo praticado na Europa, no Pacífico ou na África.

35. Direito constitucional e estruturas sociais

Ninguém contestará presentemente que o Direito não pode compreender-se desligado da realidade social — ou seja, cultural, religiosa, política, económica — em que se deve aplicar. Um idêntico conjunto de normas posto em diferentes países exibe neles, irrefutavelmente, diferentes modos de ser interpretado e de ser cumprido, porque tais normas levam consigo valores e conceitos susceptíveis de reracção e não se reduzem a esquemas formais.

Um dos méritos das correntes doutrinais modernas, entre as quais as institucionalistas e as estruturalistas, está em terem contribuído para se conceber o ordenamento jurídico, não em abstracto, mas em concreto, referido a certa sociedade. O célebre brocardo ubi societas, ibi jus, completa-se hoje com a afirmação ubi jus, ibi societas.

Entretanto, há sectores do jurídico mais sensíveis do que outros à influência dos factores sociais e, mais do que todos, o Direito cons-

() Cfr., por todos, MENEZES CORDEIRO, prefácio a C. W. CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito trad., Lisboa, 1993, págs. LXXI e LXXII.

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titucional. Exactamente por ser o tronco da ordem jurídica do Estado, muito mais directamente que qualquer dos ramos sofre os efeitos dos condicionamentos culturais, religiosos, políticos, económicos presentes ou latentes no país — assim como, em contrapartida, é o sector estratégico fundamental de conformação jurídica e de transformação desses condicionamentos.

Muitos esquemas constitucionais, perfeitos em certo Estado, ao serem transplantados para outro Estado revelam-se profundamente inadequados, por o novo meio social e cultural não estar preparado para os receber () e exigir soluções bastante diversas. Mas, mesmo quando a recepção é possível ou conveniente, nem sempre se faz sem quebra de elementos essenciais e pode haver elementos de formas políticas e constitucionais preexistentes que venham afectar os elementos novos e implicar formas compósitas ou híbridas.

Em instância algo diferente, não devem também esquecer-se os limites que resultam para os governantes e, em geral, de maneira mais ou menos imediata, para os mecanismos constitucionais, das estruturas económicas, sociais e culturais dos respectivos países. A situação político-constitucional há-de ser variável consoante se viva em país com certa tradição cultural ou com outra, com certa concepção das relações entre o Estado e a sociedade ou com outra, em economia de mercado ou de direcção central, num país agrícola ou num país industrializado, com certa composição de classes sociais ou com composição completamente diversa (2).

() Designadamente, por a tradição oferecer resistência à mudança: cfr. ROGER GRANGER, La tradition en tant que limite aux reformes du droit, in Revue internationale de droit compare, 1979, págs. 85 e segs.

(2) Cfr., por exemplo, v. S. N. ESENSTADT, Los sistemas polticos de los Impérios, trad., Madrid, 1966; J. SCHUMPETER, Capitalism, socialism et démocratie, trad., Paris, 1972; MAURICE DUVERGER, Janus—Lês deux faces de 1’Occident, Paris, 1972; BARRINGTON MOORE, As origens sociais da democracia e da ditadura, trad., Lisboa, 1975; JAMES M. BUCHANAN, Constitutional design and construction:

an economic approach, m Economia, 1979, págs. 293 e segs.; BERTRAND BADIE e PIERRE BIRNBAUN, op. cit., págs. 127 e segs.; HUBERT IZDEBSKI, op. cit., págs. 566 e 574.

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Parte —O Estado e os sistemas constitucionais 121

E tão pouco podem obliterar-se factores derivados das relações internacionais.

Quando, por conseguinte, se procura converter a multiplicidade dos processos constitucionais dos vários países em alguns poucos sistemas típicos ou, quando, vencida esta fase, se procura enquadrar em qualquer das famílias ou dos sistemas típicos o sistema particular de um dado país é mister ter uma visão da realidade social subjacente à Constituição. Ela há-de penetrar na análise (como, nas preliminares, quisemos logo salientar) ().

Não é por fortuitas razões que a continuidade histórica triunfa no século xvni, em Inglaterra, e não em França; ou que a Constituição dos Estados Unidos tem sido defendida e desenvolvida pêlos tribunais; ou que, após décadas de regime soviético, se procurou substituir o princípio da legalidade socialista pêlos princípios do Estado de Direito. E não é por fortuitas razões que, na Ásia e na África, se tem dado uma dialéctica dos sistemas políticos, económicos e constitucionais em face das condições locais e a aplicação concreta tem conduzido a vivências muito diferentas daquelas que os esquemas jurídicos pareceriam postular.

Qualquer estudo comparativo, em suma, tem de contemplar a pluralidade de instituições e estruturas sociais para fugir ao diletantismo intelectual. Deve realizar-se na consciência das relações mútuas entre o Direito constitucional com a sua vitalidade própria — porque, importa sublinhar de novo, o Direito nunca consiste em mero produto segregado pela sociedade, sem autonomia — e as instituições e estruturas no seu movimento constante.

(i) Neste sentido GANSHOF VAN DER MEERSCH, Introduction au Droit Constitutionnel Compare, policopiado, Estrasburgo, 1963, pág. 2; SANCHEZ AGESTA, op. cit., pág. 16; BISCARETTI Dl RUFFIA, l ntroduone..., cit., pág. 23; GIORGIO LOMBARDI, op. cit., pág. 70; e, de certo modo, MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 77 e 361; ANGELO RINELLA, La forma di governo semi-presideniale, Turim, 1997, págs. 44 e segs. LOMBARDI fala em «fórmula política institucionalizada», sem a qual é problemático conhecer as razões de funcionamento dos sistemas constitucionais; E RINELLA apresenta vários tipos de circulação de modelos jurídicos.

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122Manual de Direito Constitucional

CAPITULO II

AS FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS

§ 1.°

Os sistemas constitucionais de matriz inglesa ou britânica

36. Formação e evolução do Direito constitucional inglês ou britânico

I — Na formação e na evolução do Direito constitucional inglês ou britânico distinguem-se três grandes fases:

a) A fase dos primórdios, iniciada em 1215 com a concessão da Magna Carta (pela primeira vez, porque diversas outras vezes viria posteriormente a ser dada e retirada consoante os fluxos e refluxos de supremacia do poder real);

b) A fase de transição, aberta em princípios do século xvn pela luta entre o Rei e o Parlamento e de que são momentos culminantes a Petição de Direito (Petition of Right) de 1628, as revoluções de 1648 e 1688 e a Declaração de Direitos (BUI ofRights) de 1689;

c) A fase contemporânea, desencadeada a partir de 1832 pelas reformas eleitorais tendentes ao alargamento do direito de sufrágio ().

() A bibliografia é imensa: v., por exemplo, DE LOLME, Constitution de l’Angleterre (5. ed., Paris, 1879); WALTER BAGEHOT, The English Constitution, l.” ed.,1867; A. V. DICEY, Introduction to the Study of the Law of the Constitution, cit.;

F. W. MAITLAND, The Constitutional History ofEngland, Londres, 1908; A. ESMEIN, op. cit.. l, págs. 69 e segs.; IVOR JENNINGS, The Law and the Constitution, 5.” ed., 1959,6. reimpressão, Londres, 1967; GARCIA PELAYO, Derecho Constitucional Comparado, cit., págs. 249 e segs.; GERHARD LEIBHOLZ, Estado y sociedad en Inglaterra, in Conceptos fundamentales..., págs. 167 e segs.; DAVID LINDSAY KER, The Constitutional History of Modern Britam since 485, 9.” ed., Londres, 1969; MARQUES GUEDES, op. ci., págs. 78 e segs.; MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, \, cit., págs. 66 e segs.; GEOFFREY MARSHALL, Constitutional Theory, reimpressão, Oxónia, 1980; Law, Legitimacy and the Constitution, obra colectiva, Londres, 1985; COLIN R. MUNRO,

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 123

Embora se fale, o mais das vezes, em Inglaterra, em rigor deve aludir-se a Reino Unido da Grâ-Bretanha e da Irlanda do Norte, resultante da união, feita em 1707, entre a Inglaterra (integrando o País de Gales e ocupando então toda a Irlanda) e a Escócia — uma união real subsequente à união pessoal formada em 1602.

Todavia, em contrapartida, justifica-se dizer disjuntivamente Direito constitucional inglês ou britânco, porque o Direito constitucional de toda a Grã-Bretanha () assenta e vem na continuidade imediata do da Ingaterra.

II — Pouco há de específico na limitação sofrida pela monarquia inglesa na Idade Média — monarquia coeva de outras monarquias temperadas pelas ordens e de sentido pluralista e paternalista — a não ser a antecipada centralização do poder real, mercê da conquista normanda; e pouco há talvez de específico na Magna Carta, solene documento reconhecendo foros ou privilégios à semelhança de outros que nessa época eram outorgados também no Continente. No entanto, toda a singularidade da história jurídico-político inglesa remonta à concepção que desde a Idade Média se fez e se consolidou acerca do poder dos Reis e dos direitos dos súbditos. A esta luz, a Magna Carta assume um significado que transcende o de um simples texto em que se combinam aquisições bem particularizadas com um Direito natural de inspiração cristã (2).

A segunda fase abre com um agitado período de lutas políticas e político-religiosas. Houve duas Revoluções inglesas como viria a haver uma Revolução francesa, também com oscilações várias e com a experiência de diferentes sistemas políticos, entre os quais o interlúdio da República Britânica sob o protectorado de CROMWELL (dita-

Studies in Constitutional Law, Londres, 1987; JoÀO SOARES CARVALHO, Antecedentes da História Parlamentar Britânica, Lisboa, 1989; ANTÓNIO PEREIRA MENAUT, El ejemplo constitucional de Inglaterra, Madrid, 1992; HELEN FENWICK, Constitutional and Administrativ Law, Londres, 1993; JOHN F. MCELDOWNEY, Public Law. Londres, 1994; The Changing Constitution, obra colectiva editada por JEFFREY JOWELL e DAWN Ou VER, 3. ed., Oxónia, 1994; IAN LOVELAND, op. cit.

() Não o Direito privado, como se sabe, pois a Escócia tem um sistema próprio de influência romanística.

(2) Cfr. ANNE PALLISTER, Magna Carta — The Heritage of Liberty, Oxónia,1971; JOÀO SOARES CARVALHO, Em volta da Magna Carta, Lisboa, 1993.

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dura precursora da de BONAPARTE). E o Instrument of government (de 1653) foi um arremedo de Constituição escrita.

O que distingue, sobretudo, a Revolução inglesa de 1688 (Glorious Revolution) da que um século mais tarde ensanguentaria a França está em que aquela se insere numa linha de continuidade, ao passo que a francesa tenta reconstruir a arquitectura toda do Estado desde o começo. A Revolução inglesa, na linha das primeiras cartas de direitos, não pretende senão confirmar, consagrar, reforçar direitos, garantias, privilégios. A Revolução francesa destrói os que vem encontrar para estabelecer outros, de novo. Em Inglaterra, é a Realeza que ataca e o Parlamento que, em nome da tradição, defende e se defende (); em França, o Rei remete-se ao papel de quem, sem forças nem convicção para resistir, tenta obter um adiamento numa liquidação inevitável. O Direito constitucional inglês não nasce em 1689 com o BUI of Rights, o Direito constitucional francês nasce em 1789 com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (2)

A terceira fase é a da democratização. Até 1832 (Reform Act) o Direito político britânico tinha uma índole liberal, mas pouco democrática. E essa índole democrática que entre 1832 e 1929 ele vai adquirir, com a passagem de um sistema eleitoral não muito afastado do de séculos passados (com a sua complexidade e a sua concentração oligárquica) a um sistema assente no sufrágio universal de adultos de ambos os sexos. Este processo coincide com o apagamento da Câmara dos Lordes (de pares hereditários e vitalícios)

() A centralização política tinha-se operado em Inglaterra numa altura em que os estamentos ainda tinham força suficiente para obterem a garantia dos seus direitos.

(2) Sobre as revoluções inglesas e francesas, v. especialmente EDMUND BURKE, Reflections on he Revolution in France, 1790 (consultámos a trad. castelhana Reflexiones sobre Ia Revolución Francesa, reimpressão, Madrid, 1978, e vimos Extracto das Obras Políticas e Económicas do Grande Edmund Burke por José da Silva Lisboa, 2. ed., Lisboa, 1822, págs. 4 e segs.); SAINT-SIMON, De Ia reorganiación de Ia sociedade europea, trad., Madrid, 1975, págs. 122 e segs.; THOMÁS CARLYLE, Os Heróis, trad. portuguesa de ÁLVARO RIBEIRO, Lisboa, 1956, págs. 286 e segs., 301 e 338 e segs. E ainda, entre tantos, sobre as primeiras, G. LEIBHOLZ, op. cit.. págs. 178 e segs.; BARRINGTON MOORE, op. cit., págs. 21 e segs.; MARTIN KRIELE, op. cit., págs. 163 e segs.; LORENZO D’AVACK, Dei «Regno» alia «Repubblica» — Studi sull sviluppo delia cosciena costituionale in Inghilterra, Milão, 1984, págs. 115 e segs.

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em benefício da Câmara dos Comuns (com membros electivos e renováveis) e, quase de imediato, com o papel propulsor dos partidos na vida política ().

Nas últimas décadas, as consequências sociais, económicas e culturais da 2. guerra mundial e da descolonização, a inserção na Europa, o problema da Irlanda do Norte e certa quebra de consenso acerca da monarquia têm suscitada sinais de mudança, que o futuro elucidará (2).

37. Sobreposição institucional e Constituição histórica

I — Por sobreposição institucional designamos o fenómeno que consiste em instituições de natureza completamente diversa coexistirem e interpenetrarem-se através dos tempos e, mesmo em épocas de colisão, em não tenderem a destruir-se ou a substituir-se umas às outras (como aconteceria no Continente europeu), mas apenas a definir novas funções e um novo equilíbrio.

Essas instituições, protagonistas da história constitucional britânica, são o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns — que, no seu conjunto, formam o Parlamento (3). Elas encontram-se presentes nas três épocas a que aludimos, embora em cada uma venham a assumir diferente projecção. O torn peculiar de cada período histórico resulta da instituição, do órgão, que aí domina. Até ao século xvn prevalece a autoridade do Rei e, por isso, o período diz-se monárquico;

entre o século xvii e meados do século xix prevalece a Câmara dos Lordes, e por isso, chama-se ao período aristocrático; desde o século xix transfere-se para a Câmara dos Comuns (para si ou para o Gabinete) a sede principal do poder e, assim, chega-se a um período democrático.

Os órgãos ou as instituições que se colocam no plano mais vivo da cena política, ganhando ascendente sobre os demais, levam con-

() É possvel uma periodificação algo diferente. Por exemplo: monarquia limitada (1215-1603); monarquia dualista (1603-1688); parlamentarismo dualista (1688-1787); regime parlamentar (1787-1911); regime de gabinete e partitocracia (após 1911). Assim, DANIEL LOUIS SETLLER, op. cit., pág. 71.

(2) Sobre a problemática das reformas constitucionais, cfr., entre outros, IAN LOVELAND, op. cit., págs. 605 e segs.

(3) E deliberam King in Parliament.

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sigo a ideia de um tipo de goveo que se pratica agora, em contraste com outro que se praticava outrora. Mas não se trata, pelo menos até há cerca de um século, de um tipo de goveo puro; trata-se de um tipo de governo misto, porque, se existe sempre um órgão de determinada estrutura que exerce mais larga soma de atribuições efectivas, deve ele também sempre contar com a interferência dos outros que o limitam e o impedem de pôr em causa os fundamentos da Constituição.

A imagem de um governo misto {mixeá government) afigura-se sobretudo sugestiva no século xvm Não surpreende, pois, que alguns autores de então — como BOLINGBROKE ou BURKE — tenham visto no Direito inglês como que realizada a união ideal das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia: o Rei traduzindo o elemento monárquico, a Câmara dos Lordes o elemento aristocrático e a Câmara dos Comuns o elemento democrático. E a doutrina da separação dos poderes de MONTHSQUIEU já tem sido explicada como dirigindo-se ao enaltecimento desse governo misto (considerado a melhor forma de governo), em vez de se reduzir a mera tentativa de decomposição de poderes políticos em abstracto ().

Hoje, a situação é de um absoluto ou quase absoluto predomínio da Câmara dos Comuns, órgão de representação popular em época marcadamente democrática. Ou seja: ao fim de quase oito séculos a Inglaterra pode dizer-se possuir hoje um governo puro. No entanto, nem por isso deixa de ter interesse falar em sobreposição institucional, por mais de um motivo: porque as outras instituições — Rei e Câmara dos Lordes (2) — guardam poderes formais;

porque a sua simples existência impede que surjam difíceis problemas de equilíbrio político; e porque continuam a desempenhar uma função social e pública, interna e externa, insubstituível (o Monarca é a expressão da unidade do Commonwealth).

() Por exemplo, FAUSTO CUOCOLO, // rinvio presideniale nelia formauone delle leggi, Milão, 1955, págs. 11 e segs.; ROGÉRIO SOARES, Direito Público..., cit., págs. 147 e 148-149.

(2) Cfr. VINCENT BOUVIER, L’avenir de Ia Chambre dês Lords, in Revue internationaie de droit comparée, 1983, págs. 509 e segs.

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II — Porquê um tão rigoroso repúdio das rupturas e dos saltos bruscos, sem embargo de uma real e profunda evolução enriquecedora? Decerto, por causa de factores de diversa ordem que se puderam produzir em Inglaterra e não ocorreram noutros países da Europa;

e ainda por causa de um arreigado espírito de tradição.

Escreve EDWARD FREEMAN:

«Em todas as nossas lutas políticas, a voz dos ingleses nunca se ergueu para pedir a afirmação de novos princípios, o estabelecimento de leis novas;

o grito público foi sempre para reclamar uma melhor obediência às leis em vigor e para se repararem os males nascidos da sua corrupção ou do seu esquecimento. Até à Magna Carta ter sido arrancada ao Rei João, reclamaram-se as leis do born Rei Eduardo; e, quando o tirano, contra a sua vontade, apôs o selo nesta obra capital, fundamento de todas as nossas leis posteriores, limitamo-nos a exigir o estrito acatamento de uma Carta que passava por não ser senão a Constituição de Eduardo sob uma forma nova. Fizemos mudanças de tempo a tempos. Mas estas mudanças foram simultaneamente um acto de conservação e de progresso: um acto de conservação, porque eram um progresso; um progresso, porque conservavam» ().

Por seu lado, um autor português, ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO, estabelece assim o confronto entre a experiência francesa e a britânica:

«A França e todos os povos que a seguiram adoptaram para Constituição política a ideologia demoliberal e a estrutura do Estado que ela impunha. A Inglaterra, porém, em vez de dotar o Estado com um documento constitucional rigoroso, modelar, coerente, limitou-se a viver dentro do respeito da Constituição histórica da Nação e do seu Estado. Sem querer saber de teorias, confiando no tacto existencial e no bom-senso do escol político, vagarosamente, ao longo de quinhentos anos, do século xn ao século xvn, vai-se «constituindo» como Nação. A «Magna Charta», a «Petition of right», o «Bill of rights», o «Instrument of Government», o «Act of Settlement» marcam as fases do processo gradual que deu uma estrutura determinada ao Estado, de harmonia com as diversas modificações estruturais da Nação. A história do regime constitucional inglês confunde-se, como muitas vezes

(i) The Growth of he English Constitution, citado por DARESTE e DARESTE, Lês Constitutions Moderns, 2. ed. Paris, 1891, l, págs. 42-43.

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se afirmou, com a história do Parlamento. Mas este, no seu início, é o simples órgão consultivo e judiciário de um Rei feuda detentor da plenitude do Poder político; só mais tarde, devido a circunstâncias históricas, passou a ser instrumento de uta política entre os barões normandos, o alto clero e o Rei; por último, foi o método achado para limitar o Poder real e o associar normalmente ao trabalho govemativo das duas Câmaras, a dos Comuns e a dos Lordes.

«Desta sorte, às diferentes combinações das forças políticas, acarretando modificações estruturais da Nação inglesa, corresponderam sucessivas modificações do Estado inglês. Este, em vez de uma Constituição escrita, tem uma nação politicamente constituída de certo modo. As suas leis fundamentais dizem respeito a essas modificaçõesde estrutura política, que ele respeita e serve. Por isso, o Estado inglês não pauta a sua actividade governativa por uma ideologia constitucional — mas pelo instinto de conservação e de desenvolvimento da estrutura histórica da Nação inglesa...» ().

38. Constituição consuetudinária e flexível

I — No Direito constitucional de qualquer país aparecem sempre normas provindas de lei, de costume e de jurisprudência. O que varia é a predominância de uns e de outros elementos e o modo como se articulam entre si. No Direito constitucional da Grã-Bretanha, essa predominância cabe ao costume, o que constitui, nos tempos actuais, um caso único, sem paralelo em qualquer outro país.

Diz-se muitas vezes que a Constituição inglesa é uma Constituição não escrita (unwritten Constitution). Só em certo sentido este asserto se afigura verdadeiro: no sentido de que uma grande parte das regras sobre organização do poder político é consuetudinária; e, sobretudo, no sentido de que a unidade fundamental da Constituição não repousa em nenhum texto ou documento, mas em princípios não escritos, assentes na organização social e política dos Britânicos (2).

Além das regras consuetudinárias, existem ainda as Conventions of the Constitution — versando sobre o funcionamento do Parla-

() Sobre o conceito de Constituição Política, Lisboa, 1944, págs. 98-99. (2) Cfr. IVOR JENNINGS, op. cit., págs. 33 e segs.

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mento, as relações entre as Câmaras e entre Governo e Oposição ou o exercício dos poderes do Rei; e que parecem ser mais do que meros usos ().

II — Numerosas são as leis constitucionais escritas: desde a Magna Charta (1215), a Petição de Direito (1628), a Lei de Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos (1689) ao Acto de Estabelecimento (1701), ao Acto de União com a Escócia (1707), às leis eleitorais dos séculos xix e xx, às leis sobre o Parlamento de 1911 e 1949, ao Estatuto de Westminster (1931), à lei sobre os Ministros da Coroa (1937), às leis sobre o pariato de 1958 e 1963, etc.

Tais leis não se ligam, contudo, sistematicamente, não se qualificam formalmente como constitucionais e não possuem, enquanto tais, uma força jurídica específica, como sucede nos países com Constituição escrita ou formal. A supremacia da Constituição em Inglaterra resulta da sua função, e não de outros postulados.

A explicação deste fenómeno encontra-se não apenas em razões políticas — derivadas do processo de formação do sistema político britânico, sem quebras comparáveis às de qualquer outro país — mas também em razões estritamente jurídicas — derivadas do sistema das fontes — no Direito anglo-saxónico muito distinto do sistema de fontes dos Direitos romanísticos. Nestes, prevalece a lei sobre o costume; em Inglaterra, o Common Law sobre o Statute Law (2).

E não se diga que em Inglaterra é também apenas nos limites da lei que o costume pode funcionar (3) — porque a prática não o corrobora; nem se invoque o princípio da «soberania do Parlamento» (ou de que o Parlamento pode dispor sobre quaisquer matérias, embora sem vincular o legislador futuro), porque este princípio ainda se funda no costume.

() Cfr., por exemplo, K. LOEWENSTEIN, op. cit., págs. 165 e segs.; ou HELEN FENWICK, op. cit., págs. l e segs.

(2) Sobre o assunto, v. GUSTAV RADBRUCH, Lo spiritto dei diritto inglese, trad., Milão, 1962; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As fontes do Direito no sistema jurídico anglo-americano, Lisboa, 1974.

(3) BENJAMIN AKZIN, La désuétude en droit constitutionnel, in Revue du droit public, 1928, pág. 712.9 — Man. Dir. Const., l

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30Manual de Direito Constitucional

111 — Constituição predominantemente consuetudinária, a Constituição britânica apresenta-se ainda, pela natureza das coisas, como Constituição cuja modificação se faz, a todo o tempo, pelo Parlamento, sem necessidade de um processo diferenciado do processo de exercício da função legislativa.

E o que os juristas ingleses chamam uma Constituição flexível — em contraste com as restantes Constituições, ditas rígidas ().

39. O «ruie of law», os direitos fundamentais e os tribunais

I — com a expressão ruie of law (2) designam-se os princípios, as instituições e os processos que a tradição e a experiência dos juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais para a salvaguarda da dignidade das pessoas frente ao Estado, à luz da ideia de que o Direito deve dar aos indivíduos a necessária protecção contra qualquer exercício arbitrário de poder (3).

O quadro jurídico assim definido não é hoje especificamente inglês, nem sequer anglo-saxónico — muitos desses princípios foram aclamados pelas revoluções liberais — mas não há dúvida de que ele nasceu em Inglaterra, é lá que, durante muito tempo, foi vivido mais autenticamente e (aspecto de mais alta importância) é lá que menos interrupções ou suspensões tem sofrido.

() Cfr. tomo li.

(2) A letra, regra de Direito ou, em sentido próprio, princípio da legalidade.

(3) Sobre o ruie of law, v. DICEY, op. cit., págs. 183 e segs.; IVOR JENNINGS, op. cit., págs. 41 e segs.; RADBRUCH, Lo spiritto..., cit., págs. 24 e segs.; GARCIA PELAYO, Derecho Constitucional Comparado, cit., págs. 278 e segs.; JORGE NOVAIS, op. cit., págs. 46 e segs.; NUNO PIÇARRA, A separação de poderes como doutrina e princípio constitcional, Coimbra, 1989, págs. 41 e segs.; PEREIRA MENAUT, op. cit., págs. 209 e segs.; GUSTAVO ZAGREBELSKY, op. cit.. págs. 24 e segs.; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., págs. 323 e segs.; IAN LOVELAND, op. cit., págs. 63 e segs.

Para DICEY, o ruie of law significa três coisas: l.”) a absoluta supremacia do direito sobre o poder arbitrário; 2.°) a igualdade perante a lei ou a igual sujeição de todos ao direito ordinário do país aplicado pêlos tribunais ordinários; 3.) a Constituição como consequência do direito ordinário do país ou como resultado das decisões judiciais relativas aos direitos das pessoas (págs. 188 e segs.).

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Parle I—O Estado e os sistemas constitucionais 131

II — As principais liberdades e garantias dos Ingleses encontram-se consagrados em três documentos já acima citados — Magna Chara, Petition of Rights, BI ofRights — e ainda em outros que foram sendo publicados ao longo dos tempos.

Vale a pena, apontar algumas dessas liberdades e garantias:

— Ninguém pode ser detido ou sujeito a prisão ou privado dos seus bens ou colocado fora da lei ou exilado ou, de qualquer modo, molestado senão mediante um julgamento regular pêlos seus pares ou de harmonia com a lei do país (Magna Carta, 39);

— Seja qual for a sua categoria ou condição, ninguém pode ser expulso das suas terras ou da sua morada, nem detido, preso, deserdado ou morto sem que lhe seja dada a possibilidade de se defender em processo jurídico regular (Petição de Direito, iv);

— Ninguém pode ser obrigado a contribuir com qualquer dádiva ou a pagar qualquer taxa ou imposto sem consentimento do Parlamento (ibidem, viu);

— Os súbditos têm direito de petição perante o Rei e são ilegais todas as prisões ou processos por causa do exercício deste direito (Declaração de Direitos, n.” 5);

— A liberdade de palavra e os debates ou processos parlamentares não devem ser sujeitos a acusação ou a apreciação em nenhum tribunal ou em qualquer lugar que não seja o Parlamento (ibidem, n.” 9);

— Não devem ser exigidas cauções demasiado elevadas, nem aplicadas multas excessivas, nem infligidas penas cruéis e aberrantes (ibidem, n.” 10);

— São ilegais todas as dádivas e promessas de multas e de confiscos antes de ser proferida sentença condenatória (ibidem, n.” 12).

O quadro é completado pela acção dos tribunais, preenchendo o conteúdo destas e doutras liberdades e garantias e consagrando novos direitos, através da solução de casos e de indução e generalização a partir dees. E tem-no sido também por força da vinculação a tratados internacionais, designadamente à Convenção Europeia dos Direitos do Homem ().

() São relativamente numerosas as questões levadas à Comissão Europeia e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o que mostra alguma insuficiência hoje dos instrumentos internos britânicos.

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132Manual de Direito Constitucional

In — Sobre o lugar do juiz em Inglaterra e nos países anglo-saxónicos dificilmente poderia dizer-se melhor do que escreveu MAURICE HAURIOU (1):

«Os Anglo-Saxões permaneceram fiéis à autêntica tradição clássica para a qual o juiz é o órgão essencial do Direito. Na verdade, definem o Direito através do juiz: é Direito o que é aplicável pelo jui. Os Continentais definem-no pela coacção social: é o conjunto de regras susceptíveis de ser sancionadas por uma coacção social.

«As duas definições seriam equivalentes, se o juiz fosse o único meio de sanção; mas há também o polícia e a sua coercitio. Ora, a definição continental faz passar a coercitio disciplinar antes da arbitragem judiciária e o polícia antes do juiz. Pelo contrário, os Anglo-Saxões fazem passar o juiz antes do polícia...

«l.” — O juiz anglo-saxão não é um poder político.

«2.” — O juiz anglo-saxão é o grande poder social e jurídico, por si só capaz de contrabalançar os poderes políticos. Em primeiro ugar, o juiz anglo-saxónico é um grande poder social, pois que é ele que faz justiça a todo o povo...

«... A segurança da vida privada repousa tanto sobre a justiça criminal como sobre a justiça civil...

«No desempenho da sua missão o juiz anglo-saxónico é senhor de Direito; o que ele não aplica não é Direito. E, naverdade, ele é senhor da common law, por ser ele que a faz e continua a fazer mediante a sua jurisprudência. Também perante o statute law o domínio é quase igual. Nos Estados Unidos da América a fiscalização da constitucionalidade fomece-lhe o meio de manter constantemente as leis votadas pelas assembleias legislativas nos quadros dos velhos princípios individualistas. Em Inglaterra, o juiz não pode recorrer à fiscalização da constitucionalidade, mas serve igualmente os princípios de common law, mediante a interpretação de leis novas que repõe no curso da tradição» (2).

() Précis..., cit., págs. 229-230.

(2) Sobre o papel dos tribunais anglo-saxónicos, v. também JENNINGS, op. cit., págs. 239 e segs.; OLIVEIRA ASCENSO, As fontes..., cit., págs. 58 e segs.; MARTIN SHAPIRO, Courts—A Comparativ and Political Analysis, Chicago e Londres, 1981, págs. 65 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 133

40. O governo parlamentar britânico

I — O princípio fundamental da organização política britânica é o princípio da soberania ou supremacia do Parlamento () (2).

A ele se liga há cerca de 200 anos um sistema de governo parlamentar, na medida em que o Parlamento (reportado agora apenas, no sentido corrente do termo, às duas Câmaras) é o centro da vida política, os Ministros respondem perante ele e as orientações políticas do País correspondem às da maioria (na Câmara dos Lordes, durante o século xvm, e na Câmara dos Comuns, desde o século xix).

A revolução de 1688 não se traduziria, necessariamente, nem se traduziu logo na formação de um sistema com essas características essenciais. Para que isso acontecesse tiveram de ocorrer ainda três eventos decisivos: em primeiro lugar, o relevo assumido na primeira metade do século xvm pelo Gabinete (que remontava a cerca de 100 anos antes, como grupo de individualidades mais influentes do Conselho Privado, reunidas à margem deste para se ocuparem de questões políticas de maior vulto), tomado órgão autónomo de colaboração entre o Rei e o Parlamento; em segundo lugar, o subsequente aparecimento da figura do Primeiro-Ministro, para, por seu turno, estabelecer a ligação do Rei com o Gabinete; e em terceiro lugar, mais tarde, a transformação da responsabilidade dos Ministros perante o Parlamento de criminal em política por, para evitar o impeachment, os Ministros preferirem demitir-se, quando objecto de votos desfavoráveis.

() Cfr., por todos, DICEY, op. cit., págs. 39 e seg. (que recorta a soberania do Parlamento através do poder legislativo — de um poder legislativo sem limites sobre qualquer matéria); e, mais recentemente, IVOR JENNINGS, op. cit., págs. 137 e segs.; T. R. S. ALLAN, The British Model of Representativ Government: Political Accountability and Legal Contri, in El Constitucionalismo en Ias postrimerías dei sigio XX, obra colectiva, III, México, 1988, págs. 9 e segs.; A. W. BRADLEY, The Sovereignity ofParliament on Perpetuity, in The Changing Constitution, págs. 79 e segs.; IAN LOVELAND, op. cit., págs. 27 e segs.

(2) Os ocasionais referendos de 1975 (sobre a integração nas Comunidades Europeias) e de 1979 (sobre a regionalização politico-administrativa ou devolution quanto à Escócia e ao País de Gales) não infirmaram o princípio.

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134Manual de Direito Constituciona

Hoje, governo parlamentar na Grã-Bretanha significa sistema em que o Gabinete, o Governo, é emanação da Câmara dos Comuns, responde perante ela e depende da sua confiança para exercer o poder.

II — Esta dependência institucional do Gabinete da Câmara dos Comuns não envolve instabilidade. Pelo contrário, trata-se, de um sistema em que o Gabinete disfruta, por virtude de tradições jurídicas firmes e de determinados factores políticos, não só de garantias de subsistência mas também de um ascendente de facto (embora não absoluto) sobre os Deputados da maioria.

A correspondência entre Gabinete (de certo partido) e duração da legislatura (ou período entre duas eleições gerais) é um princípio político-constitucional básico. Reforçam-na (ou tomam-na possível) a conjugação de um sistema de dois partidos dominantes, em alternância no poder (), e um sistema eleitoral maioritário em círculos eleitorais uninominais a uma só volta ou turno (o chamado sistema the first-past-the-post) (2).

Dentro do gabinete prevalece o Primeiro-Ministro beneficiário na prática dos poderes do Rei (v. g., de dissolução dos Comuns) compreendidos formalmente na de «prerrogativa» e, sobretudo, chefe do partido maioritário. Apesar da regra da colegialidade, ele é muito mais do que um primus inter pares.

Não quer isto dizer, no entanto, que (ao contrário do que, por vezes, se lê), em vez de um sistema de separação de poderes, estejamos diante de um sistema de concentração. Se a distinção entre Legislativo e Executivo se apresenta somente judica (dado o domínio pelo Governo da iniciativa da lei), politicamente sobressai a separação entre maioria e minoria, entre Governo e Oposição (que constitui o chamado «Gabinete-sombra»). Além disso, a vitalidade da instituição parlamentar manifesta-se quer na circunstância de os dirigentes políticos serem Deputados (e Lordes) quer na de as grandes opções govemativas serem assumidas através de debate parlamen-

() Os demais partidos em representação parlamentar são irrelevantes, para efeito de constituição do Governo.

(2) Cfr., por todos, IAN LOVELAND, op. cit., págs. 234 e segs.

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tar; com a presença de Ministros, quer nas perguntas orais ao Governo ().

In — A fórmula «sistema de governo parlamentar de gabinete» sintetiza bem o que acaba de se afirmar e pode resumir-se nos seguintes aspectos actuais:

a) Duração máxima da legislatura de cinco anos e possibilidade de dissolução da Câmara dos Comuns antes, a qualquer tempo, por iniciativa do Primeiro-Ministro;

b) Formação do Governo logo após as eleições, a cargo do chefe do partido maioritário;

c) Escolha dos Ministros entre os membros do Parlamento e sua presença nas reuniões das Câmaras;

d) Dependência dos Ministros do Primeiro-ministro;

e) Responsabilidade solidária do Governo;

f) Existência de meios de acção do Governo sobre o Parlamento (fixação da ordem do dia, iniciativa legislativa, dissolução) e do Parlamento sobre o Governo (perguntas escritas e orais, moções, debates orçamentais, etc.);

g) Institucionalização da Oposição;

h) Disciplina partidária;

i) Responsabilidade política efectivada não tanto pela demissão do Governo quanto pêlos resultados das eleições parlamentares gerais;

j) Alternância de dois partidos no poder, em períodos mais ou menos longos (ao fim de uma, duas ou, mais raramente, três legislaturas) (2).

() Cfr. FREITAS DO AMARAL, A prática parlamentar britânica (alguns textos), in Revisa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1972, págs. 101 e segs.; R. K. ALDERMAN, The Leader ofthe Opposition and Prime Minister’s Questions Time, m Parliamentary Affairs, 1992, págs. 66 e segs.

(2) Para uma visão histórica e descritiva, v. MARNOCO e SOUSA, Direito Político—Poderes do Estado, Coimbra, 1910, págs. 221 e segs.; IVOR JENNINGS, Cabinet Government, Cambridge, 1937; ERNST BAKER, Essays on Government, 2. ed., Oxnia, 1965, págs. 56 e segs.; KARL LOEWENSTEIN, Teoria..., cit., págs. 125 e segs., e British Cabinet Government, Nova Iorque, 1967; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lo «Sha-

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136Manual de Direito Constitucional

41. Projecção histórica e geográfica do Direito constitucional britânico

I — O confronto entre Roma e a Inglaterra tem sido estabelecido a vários títulos. Cabeças de dois impérios — um que deixou de existir há 1500 anos, o outro cujo rápido desaparecimento há pouco se produziu — a sua influência no mundo seria muito maior do que tudo quanto permitiriam prever as suas modestas origens e perdura para além da perda do poder político e militar.

Mas em poucos campos se poderá dizer que tenha sido e que continue a ser mais forte e duradoura a influência quer de Roma quer da Inglaterra do que no campo do Direito. Sem contestação, deve mesmo acrescentar-se que a primeira no Direito privado, a segunda no Direito público criaram paradigmas que os outros povos depois quiseram imitar ().

No respeitante à Inglaterra, desde os séculos xvii-xvm ela tem fornecido aos observadores estrangeiros um modelo de harmonia política. Além disso, mercê da sua expansão colonial, princípios, formas e numerosíssimos elementos dos seus sistemas político e jurídico vieram a ser difundidos pêlos territórios em que exerceu soberania. Decerto, como já atrás acenámos, na Constituição inglesa encontram-se instituições insusceptíveis de transplantação para outros povos e lugares, devido à sua inserção nacional e local; mas acham-se também instituições que podem ser, e efectivamente foram, acolhidas em outros países.

II — Esta irradiação dos esquemas jurídico-constitucionais confunde-se com grande frequência com a do sistema de governo inglês.

dow abinete», Milão, 1973; MONICA CHARLOT, Lê système politique britannique, Paris, 1976; JOHN MACKINTOSH, The British Cabinet. 3. ed., Londres, 1977; ALAN R. BALL, British Political Parties. The Emergency ofa Modern Party System, Londres, 1981; The Britsh Prime Minister, obra colectiva editada por ANTHONY KING,2. ed., Londres, 1986; R. M. PUNNETT, British Govermient anã Politics, 5.” ed., 1987;

COLIN TURPINS, Ministerial Responsability, in The Changing Constitution, págs. 109 e segs.

() V, o confronto, ao nível das Constituições, entre Roma e Inglaterra em JAMES BRYCE, op. cit., págs. 11 e segs. e 26 e segs.

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Parte 1—O Estado e os sistemas constitucionais 137

Se olharmos para o mundo dos nossos dias, logo descobriremos nos países por onde os Britânicos passaram traços de um sistema de governo parecido com o inglês, ou seja, um sistema parlamentar de gabinete. Assim acontece com o Canadá (), a Austrália, a Nova Zelândia; e com a Índia, a Malásia, a Jamaica, Trindade, Malta, também dentro do Commonwealth; com a Irlanda (na prática, não propriamente na Constituição de 1937) (2) e com Israel.

Contudo, importa advertir que não basta a similitude dos sistemas de governo para se concluir pela similitude dos sistemas constitucionais. Os países referidos, embora com maiores ou menores atenuações, incluem-se na família de Direito constitucional inglês em virtude de outros elementos que os aproximam uns dos outros e da Inglaterra, tais como a adesão ao Common Law, a importância do costume e da jurisprudência, o sentido liberal das normas constitucionais, a flexibilidade ou a menor rigidez de algumas das Constituições e, na maior parte das vezes, o sistema de partidos. Ao lado deles, temos, porém, países — os escandinavos, de alguma maneira, a Alemanha, a Espanha — cujos sistemas de governo actuais não são sem analogia com o sistema inglês e que, apesar disso, seria precipitado integrar na família constitucional de raiz inglesa, por faltarem outros elementos comuns; e no século xix ainda mais nítido foi este fenómeno aquando da formação do parlamentarismo em grande parte da Europa.

Por outra banda, a recepção ou a adaptação do modelo constitucional inglês fez-se em momentos diversos no decurso dos últimos duzentos e cinquenta anos. Como o regime, entretanto, não deixou de evoluir, isso significa que afinal foram vários, e não apenas um, os modelos com que se tomou contacto e onde se bebeu inspiração (3).

() Cfr. GERALD-A. BEAUDOIN, La Constitution du Canada, Montreal, 1990;

MARGARET A. BANKS, Understanding Canadas Constitution, Londres (Ontário),1993.

(2) Cfr. JAMES CASEY, Constitutional Law in Ireland, Londres, 1987.

(3) com o Direito ocorre algo de idêntico ao que ocorre com as línguas quando se expandem fora da sua terra de origem: ele é recebido no estado em que se acha na altura da expansão; e, assim como certos termos se tomam arcaicos no país de origem e subsistem no país de difusão, assim certas formas institucionais ficam presas às épocas em que eram aceites nos países donde provieram.

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In — Por conseguinte, podem e devem discriminar-se, pelo menos, cinco momentos de difusão do sistema constitucional inglês no mundo:

l .0) No século xvn, para as primeiras colónias da América do Norte e das Caraíbas. Os traços próprios desta difusão vêm a ser três: existência de Constituições limitativas da autoridade dos governadores; criação de assembleias representativas; garantia de liberdades.

2.°) No século xvin, para a Europa, através de conceitos como o de governo representativo e de responsabilidade ministerial, e para os Estados Unidos. Nos Estados Unidos viria a surgir um sistema constitucional diferente do inglês, mas não menos nítido foi o influxo da Constituição inglesa entre os descendentes de ingleses que fizeram a Constituição de 1787: primeiro, na concepção de separação dos poderes vinda da leitura de MONTESQUIEU que, por seu lado, referia essa concepção à experiência constitucional britânica; segundo, na ideação do Presidente dos Estados Unidos a partir da figura do Rei de Inglaterra, um Rei dotado ainda de poderes substanciais.

3.°) No primeiro quartel do século xix, para a Europa continental, no rescaldo da Revolução francesa e do Império napoleónico (ou seja, na chamada época da Restauração). A monarquia constitucional inglesa — com um Rei, que participa na função legislativa e detém o poder executivo por si ou pelo Governo, e com um Parlamento bicameral — é o exemplo que pretendem seguir a Constituição sueca de 1809, a norueguesa de 1814, a Carta constitucional francesa de 1814, outorgada por Luís xvm, até certo ponto a Carta constitucional portuguesa de 1826, outorgada por D. Pedro iv, e as Constituições de diversos Estados da Confederação Germânica. Supõe-se estar aí, com cambiantes vários, o compromisso mais apto para salvar simultaneamente os tronos e um liberalismo moderado.

4.°) No segundo quartel do século xix para a Europa continental (depois do Reform Act de 1832), em paralelo com a Constituição belga de 1831. Trata-se agora, por um lado, de uma monarquia constitucional fundamentada na Constituição, e não já num autónomo princípio monárquico, e, por outro lado, de um sistema parlamentar. O Estatuto outorgado pelo rei Carlos Alberto da Sardenha em 1848, e que viria mais tarde a ser extensivo à Itália unificada, é a Constituição mais importante feita sob essa influência.

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5.°) Em fins do século xix e no século xx para os territórios do Império e da Comunidade Britânica () ou que àquele tinham pertencido: Constituições canadiana (de 1867, alterada em 1981), australiana (de 1901), indiana (de 1950), etc. E, parcialmente, também para o Japão (Constituição de 1946) (2). E uma forma mais evoluída do governo parlamentar de gabinete a que os textos e a prática constitucional vêm adoptar neste momento.

§2.°

Os sistemas constitucionais de matriz americana

42. O Direito constitucional dos Estados Unidos

I — A Constituição dos Estados Unidos da América data de 1787. Porém, o Direito constitucional norte-americano (3) não começa ape-

() Sobre o Commonwealth, v., por exemplo, O. HOOD PHILLIPS, Constítutional and Administrative Law, 4.° ed., Londres, 1967, págs. 699 e segs.

(2) V. TADAKAZU FUKASE e YOICHI HIGUCHI, Lê constitutionnalisme et sés problèmes au Japon, Paris, 1984.

(3) De leitura obrigatória são os clássicos The Federalist Papers, 1787, de HAMILTON, MADISON e JAY (trad. portuguesa O Federalista, Brasília, 1984), e De Ia Démocratie em Amérique, 1835-1840, de ALEXIS DE TOCQUEVILLE.

E depois, JAMES BRICE, The American Commonwealth, l.” ed., 1884 (trad. francesa La Republique Américaine); EDWARD S. CORWIN, The Constitution and what it means today, Princeton, 1920 (com numerosas reedições); e American Consitutional History, Gloucester, 1970; ANDRÉ e SDZANNE TUNC, Lê Systeme Conslitutionnel dês Élats- Unis, 3 vols., Paris, 19541955; The Constitution and the Supreme Court — A Documenary History, ed. por Lewis H. Pollak, 2 vols., Cleveland e Nova Iorque, 1968; ARMANDO MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 121 e segs.; ALFRED H. KELLY e WINFRED A. HABISON, The American Constitution — Its Origin and Development, . ed., Nova Iorque, 1976; MARCELLO CAETANO, op. cit., l, págs. 91 e segs.; HERMANN C. PRITCHETT, The American Constitution, 3.” ed., Nova Iorque,1977; SOTIRIOS A. BARBER, On What the Constitution means, Baltimore e Londres, 1984; ROGERS M. SWITH, Liberalism and American Constitutional Law, Cambridge (Mass.) e Londres, 1985; RONALD D. ROTUNDA, JOHN E. NOVAK e J. NELSON YOUNG, Treatise on Constituttional Law — Substance and Procedure, S. Paulo (Minesota), 3 vols., 1986; How Démocratie and How Capitalistic is the Constitution, obra colectiva editada por ROBERT A. GOLDWIN e WILLIAM A. SCHAMBRA, trad. portuguesa A Constituição Norte-Americana, Rio de Janeiro, 1986; The Constitution of the United States of America-Analysis and Interpretaion, Washington, Congress

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nas nesse ano. Sem esquecer os Covenants e demais textos da época colonial (antes de mais, as Fundamental Orders of Connecticut, de 1639), integram-no, desde logo a nível de princípios e valores ou de símbolos a Declaração de Independência, a Declaração de Virgínia e as outras Declarações de Direitos dos primeiros Estados.

com a mesma força jurídica dos 7 artigos da Constituição são os 26 Aditamentos (Amendments), aprovados desde então e que a modificam e completam em alguns aspectos, designadamente no domínio dos direitos fundamentais ().

E ainda essencial ter em conta as grandes decisões judiciais sobre interpretação e aplicação da Constituição e embora menos do que na Grã-Bretanna, o costume, bem como (porque se trata do Estado federal) as Constituições dos Estados federados de larguíssima importância em numerosos domínios (eleições, participação popular, poder local, educação).

Não representa, por conseguinte, tarefa fácil, nem simples conhecer o Direito constitucional dos Estados Unidos (até porque a própria Constituição de 1787, com as suas extensas secções, não é tão breve quanto, por vezes, se supõe e as Constituições dos Estados, além de diversificadas, são frequentemente longas e regulamentarias).

II — A observação e a experiência mostram que se trata de Constituição simultaneamente rígida e elástica.

Rígida, visto que não pode ser alterada em moldes idênticos aos adoptados para a feitura das leis ordinárias, e qualquer modicação requer um processo complexo, com intervenção dos Estados. Elástica, visto que, a partir do seu texto primitivo, na aparência intacto, e dos aditamentos, tem podido ser concretizada, adaptada, vivificada (e até metamorfoseada) sobretudo pela acção dos tribunais.

Research Service, 1987; GEORGE ANASTAPLO, The Constitution of 1787. A Commentary, Baltimore, 1989; HADLEY ARKES, Beyond the Constitution, Princeton, 1990;

UNO ROEIRO, A Constituição dos Estados Unidos..., Lisboa, 1993; FREITAS DO AMARAL, Ciência Política, li, cit., págs. 202 e segs.; ANA MARTINS, As origens da Constituição norte-americana, Lisboa, 1994.

() Desses 26 Aditamentos (em média, l em cada 8 anos), só o 18.” viria a ser revogado.

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Sem dúvida, a sua dupla função de lei fundamental e de pacto constitutivo da união (a Constituição funda verdadeiramente os Estados Unidos) (), a tradição jurídica anglo-saxónica, essa elasticidade, o trabalho jurisprudencial, circunstâncias histórico-sociais favoráveis explicam a longevidade da Constituição e a consistência das instituições políticas americanas (2).

In — O Direito constitucional dos Estados Unidos brota do sistema jurídico inglês e do pensamento político do século xvm, postos perante as condições peculiares da América do Norte.

As Constituições outorgadas pela Coroa às treze colónias, os grandes princípios de Direito público (como no taxation without representation, cujo desrespeito desencadearia a revolta), o Common Law, com o importantíssimo papel do juiz, eis as principais fontes a referir, a que se pode acrescentar uma ou outra prática constitucional proveniente da própria Revolução americana.

Os pais da Constituição não desconheciam, contudo, as obras filo sóficas, políticas e jurídicas que, a partir de Locke, tinham versado os problemas do poder e não podiam deixar de sofrer a sua influência. A circulação de ideias entre as duas margens do Atlântico era intensíssima no século xvm, e, assim, eles, naturalmente, vieram a receber muitos dos esquemas doutrinais da Grã-Bretanha e da França.

Por seu tuo, os particularismos da situação haviam de determinar algumas das soluções: a antecedência histórica de colónias declaradas Estados independentes e a grande extensão territorial levaram, por exemplo, naturalmente, à estrutura federativa, tal como a ausência de dinastia e o ambiente de igualdade jurídico-política à república (3).

() Nos Estados Unidos, a Constituição equivale a contrato social e constitucional, ao passo que na França a Constituição pressupõe a existência de um sujeito político unitário e soberano, o povo, «a Nação» no sentido revolucionário (MÁRIO DOGLIANI, op. cit., págs. 201 e 202).

(2) Sem embargo de uma relativa instabilidade das Constituições estaduais (de mais fácil modificação). Até agora, para 50 Estados, houve 145 Constituições.

(3) Cfr. CALVIN C. JILLSON, Constitution Making: Conflict and Consensus m Federal Convention of 1787, Nova Iorque, 1988, e também DAYSE VASCONCELOS MAYER, O pensamento revolucionário na Constituição americana — O contributo ideológico de Thomas Paine, Lisboa, 1989.

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A atitude das constituintes não foi, pois, tanto uma atitude voluntarista — como se exibiria em França pouco depois — quanto uma atitude cognoscitiva à imagem da que se adoptava em Inglaterra. Um racionalismo, sempre temperado pelo empirismo, e nunca desligado de um sedimento religioso (), foi aí um meio ou caminho para organizar uma união de Estados livres (2).

IV — O estudo do Direito constitucional norte-americano justifica-se fundamentalmente por causa do significado da sua experiência e por causa das aquisições e dos elementos novos que dela emergiram.

A importância da experiência está nisto: primeiro grande Estado de tipo europeu formado fora da Europa; primeira revolução vitoriosa que se revela também anticolonial, mas que encerra contradições de carácter racial (algumas ainda hoje por resolver); primeira e mais duradoura Constituição escrita em sentido moderno (3); Constituição de base legal modelada pela jurisprudência, em conexão com o controlo da constitucionalidade; primeiro Estado federal (forma de Estados mais evoluída que a união real); primeiro Estado a decretar a separação das confissões religiosas; primeira república alicerçada no princípio democrático (4); primeiro sistema de governo presidencial por aplicação directa da doutrina da separação de poderes.

A noção de Constituição e do seu valor superior a todos os demais actos da Federação e dos Estados federados e, em especial, a autoridade reconhecida aos tribunais na sua interpretação e na sua concretização são notas tão profundas do sistema e tão específicas que, com o mesmo sentido ou com a mesma intensidade, não poderiam passar para qualquer outra parte. Transplantáveis, embora ainda com

() Vindo da própria formação das primeiras colónias e da procura aí da liberdade de culto.

(2) Cfr. uma visão algo diferente da tradicional em TERENCE MARSHALL, Dissidence et orhodoxie dans l’interprétation de Ia politique constitutionnelle dês Éats-Unis, m Revue française de science politique, 1988, pâgs. 181 e segs.

(3) Em rigor, primeira Constituição escrita de Estado soberano ainda vigente, porque mais antiga (de 1780) é a de Massachussetts.

(4) Não contando algumas pequenas comunidades rurais da Suíça.

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reracções, viriam a ser a fiscalização judicial da constitucionalidade, o federalismo e o presidencialismo; e, nessa medida, quando os três elementos juntos, viria a poder falar-se, nos países de recepção, em sistemas de matriz norte-americana.

43. O federalismo

I — Produto histórico da transformação da confederação dos Estados independentes sucessores das treze colónias britânicas da costa oriental da América do Norte em união de natureza estatal, o federalismo americano é um federalismo perfeito em que se verificam, simultaneamente, uma estrutura de sobreposição (cada cidadão sujeito simultaneamente a dois poderes políticos e a dois ordenamentos constitucionais) e uma estrutura de participação (o poder político central como resultante da agregação dos poderes políticos dos Estados federados).

Os quatro princípios judicos em que se baseia são os seguintes:

.°) Poder constituinte de cada Estado, pois cada Estado decreta e altera a sua própria Constituição, nos limites da Constituição federal e somente com a necessidade de respeitar a forma republicana ();

2.°) Intervenção institucionalizada na formação da vontade política federal, o que se traduz em:

— existência de uma 2. câmara, o Senado, com igual representação dos Estados (2 senadores por Estado) (2), em contraste com a l .a câmara, a dos Representantes (em número proporcional à população de cada Estado);

— composição e processo de votação do colégio eleitoral presidencial, o qual é formado por tantos eleitores por Estado quantos os Senadores e Representantes que lhe cabem;

() Os sistemas de goveo estaduais são homólogos do da União, mas em alguns Estados há referendo, iniciativa popular e até recall (revogação popular de mandato de titulares eleitos), ao passo que o governo a nível federal é estritamente representativo.

(2) Até ao 17.” Aditamento os Senadores eram designados pelas assembleias legislativas estaduais, depois passaram a ser eleitos por sufrágio directo.

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— necessidade de os aditamentos à Constituição serem aprovados por dos membros das duas câmaras e ratificados por - dos Estados;

3.°) Especialidade das atribuições federais, entendendo-se que as que não forem próprias do Estado federal (v. g., defesa, comércio externo, moeda, correios) pertencem (ou podem pertencer) aos Estados federados (v. g., Direito civil, Direito penal, poder local);

4.°) Igualdade judica dos Estados federados, manifestada não apenas na sua igualdade de condição e de participação no Senado e no processo de revisão constitucional mas também na igual capacidade de cidadãos de cada Estado noutros Estados e no reconhecimento de actos públicos, documentos e processos produzidos em qualquer Estado (art. iv da Constituição).

II — O entendimento e a prática do federalismo não têm sido unívocos e sem contrastes entre tendências centrífugas e centrípetas.

Entretanto, o poder federal foi-se afirmando e robustecendo em consequência da guerra de secessão de 1861-1865 e das duas guerras mundiais, do aumento de número de Estados federados (de 13 para 50), da imigração e das comunicações, do reforço da coesão nacional e, ainda, do aumento das funções do Estado federal e do seu peso financeiro. A doutrina dos poderes implícitos elaborada sobre a secção viu do art. l () e a cláusula da supremacia nacional do art. VI da Constituição deram justificação a essa tendência.

O federalismo não se reduziu, porém, a mero regionalismo. Juridicamente, porque se mantêm as faculdades de intervenção dos Estados na União. Politicamente, porque também, ao mesmo tempo, se desenvolveram as funções dos poderes estaduais (os mais próximos do quotidiano das pessoas) e porque os partidos, as carreiras dos homens públicos e a vida política em geral são dominados ou influenciados (muito mais que na Europa) pêlos condicionalismos locais. Administrativamente, porque, a par da centralização, se tem operado um processo de coordenação entre os serviços federais e estaduais.

() A partir do acórdão do Supremo Tribunal sobre o caso me Culoch, de 1819.

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Nos últimos anos, aliás, tem-se procurado afirmar uma tendência inversa, de diminuição das atribuições e dos encargos federais (ligada quase sempre a uma reacção contra o Welfare State) ().

44. Os direitos fundamentais

I — Os autores da Constituição não fizeram uma enunciação dos direitos e liberdades individuais (2). Uns, porque a julgaram desnecessária em face das declarações já existentes nos Estados ou das regras constitucionais sobre separação de poderes. Outros, porque temiam que pudesse vir a servir para limitar as prerrogativas dos Estados em favor da União (3).

No entanto, os l O primeiros Aditamentos, aprovados em 1791 e inspirados nos mesmos pressupostos valorativos do texto de 1787, viriam cedo a suprir essa falta; e, mais tarde, outros viriam a completá-los.

II — 01.” Aditamento proíbe o estabelecimento de uma religião de Estado e garante as liberdades de culto (4), de palavra e de imprensa, bem como os direitos de reunião e de petição.

O 2.” Aditamento garante o direito ao uso e porte de armas; o 3.” proíbe o aboletamento de soldados em tempo de paz sem o consentimento

() Cfr. DANIEL J. ELAZAR, American Federalism. A viewfrom the States, Nova Iorque, 1984; ou JEAN BEAUTÉ, Lê partage dês compétences entre lês États et Ia Fédération, m Pouvoirs, n.” 59, 1991, págs. 85 e segs.; ANTÓNIO GOUCHA SOARES, Repartição de competências e preempção no Direito Comunitário, Lisboa, 1996, págs. 37 e segs.

(2) Embora da Constituição constem a garantia do habeas corpus e a proibição de leis retroactivas (art. i, secção ix, n.0 2 e 3).

(3) Sobre o assunto V. HAMILTON, O Federalista, trad. cit., págs. 623 e segs. () PETER DRUCKER, cit. por JACQUES MARITAIN (Reflexões sobre os Estados Unidos, trad., 2. ed., Rio de Janeiro, 1959, pág. 202), explica assim a postura norte-americana perante a religião: «A esfera do Estado tem que ser uma esfera autónoma... Mas uma sociedade livre só é possível quando baseada solidamente no indivíduo religioso... O Estado não deve apoiar, nem favorecer nenhum credo religioso... Mas deve sempre apadrinhar, proteger e fomentar a religião em geral. Os Estados Unidos são um Estado secular no que concerne a qualquer credo. Mas, ao mesmo tempo, uma comunidade religiosa no que concerne a crença geral na necessidade de uma base de cidadania verdadeiramente religiosa».

10— Man. Dir. Const.,

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do proprietário; o 4.” assegura a inviolabilidade do domicílio; o 5.”, o 6.” e o 7.” respeitam a garantias de processo penal; o 8.” impõe limites às penas criminais.

O 9.” Aditamento declara que a especificação de certos direitos pela Constituição não significa que fiquem excluídos ou desprezados outros direitos — é a chamada cláusula aberta, da maior importância nos Estados Unidos e noutros países (). E o IO.” Aditamento declara que os cidadãos gozam de todos os direitos que não lhes sejam expressamente vedados.

O 13.” Aditamento (de 1865) proíbe a escravatura.

O 14.” (de 1868) impede os Estados de fazer ou executar leis que restrinjam as prerrogativas e garantias dos cidadãos, privar alguma pessoa da vida, da liberdade ou da propriedade sem observância dos tramites legais ou recusar a qualquer pessoa a igualdade perante a lei.

O 15.” (de 1870) garante o direito de voto, independentemente da raça, da cor ou da anterior condição de escravo; o 19.” (de 1920), independentemente do sexo; o 24.” (de 1964), independentemente do pagamento de qualquer taxa ou imposto; e o 26.” (de 1971), independentemente de idade superior a 18 anos.

A tradução prática da maior parte destas regras deve-se menos ao legislador do que aos tribunais (2).

In — Nos Aditamentos apenas se encontram normas sobre direitos, liberdades e garantias.

Porém desde o New Deal do Presidente F. D. ROOSEVELT ergueu-se um complexo sistema de segurança social; direitos econó-

() O tema será estudado no tomo iv.

(2) Cfr. The Rights of Americans, what they are, what they should be, obra colectiva editada por NORMAN DORSEN, Nova Iorque, 1972; HENRY J. ABRAHAN, Freedom and he Courts. Civil Rights and Liberties in the Uniled States, 3.” ed., Nova Iorque, 1977; o vol. 28, n.” 4 (de 1979), do Emory Law Journal; MICHAEL J. PHILLIPS, Status and Freedom in American Constitutional Law, in Emory Law Journal, vol. 29 (Inverno de 1980), págs. 3 e segs.; The Supreme Court and Human Rights, obra colectiva editada por BURKE MARSHALL, Washington, 1982; ROGERS M. SMITH, Liberalism and American Constitutional Law, 2. ed., Cambridge (Massachussett),1990; ANTONIN SCALIA, Federal Constitutional guarantees of individual rights in the United States of América, m Human Rights and Judicial Review — A Comparativ Perspective, obra colectiva editada por DAVID M. BEATTY, Dordrecht, 1994, págs. 57 e segs.

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Parle l—O Estado e os sistemas constitucionais 147

micos, sociais e culturais aparecem na legislação ordinária e em Constituições dos Estados; e os tribunais têm vindo a definir novos direitos como o direito à habitação e direitos ligados à educação.

45. Os tribunais e a Constituição

I — São três os aspectos que mais ressaltam na observação do sistema judicial dos Estados Unidos, originado no Common Law:

1.°) A singularidade da relação democrática entre os juizes e os cidadãos e a elevada autoridade social de que gozam;

2.°) A complexidade proveniente da estrutura federal, com dualismo de tribunais, federais e estaduais (art. m da Constituição);

3.°) A predominância do Supremo Tribunal (formado por 9 juizes vitalícios, designados pelo Presidente dos Estados Unidos com o «parecer e acordo do Senado») e a unidade de julgados que com ela se obtém ().

II — Ao invés da França e dos países europeus durante o século xix, os Estados Unidos vivem quase desde a sua formação sob o princípio da constitucionalidade, isto é, de que as leis e os outros actos do Estado devem ser conformes à Constituição e não devem ser aplicados pêlos tribunais no caso de serem desconformes (2).

Nenhum preceito constitucional expresso confere este poder de garantia aos tribunais, prevê a judicial review (3). Não obstante, sólidas razões jurídicas foram invocadas, desde o início, para o sustentar. Foram elas: l.) o poder legislativo é um poder constituído, que não pode ser exercido em contrário da Constituição, obra do poder constituinte; 2.) os tribunais só podem aplicar leis válidas e são

(’) V., por exemplo, EUGENE V. ROSTOW, The Sovereign Prerogative: The Supreme Court and the Quet for Law, New Haven, 1962; CARL BRENT SWISHER, The Supreme Court m Modern Role, Nova Iorque, 1970; CHARLES C. BLACK, JR., The People and the Court. Judicial Review in a Democracy, Westport, 1977 (reimpresso).

(2) Desenvolvidamente, v. tomo 11.

(3) Os preceitos mais próximos são o art. 111, secção li, n. l (a Constituição como fonte de decisão judicial), e o art. vi, n.” 2 (a Constituição como lei superior do País).

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inválidas as leis contrárias à Construção — que é lei superior a todas as outras leis ().

Saliente-se, contudo, que, apesar de serem argumentos incontestáveis logicamente, eles só poderiam prevalecer num ambiente histórico-jurídico favorável, com a tradição das Constituições limitativas coloniais, o papel preponderante da interpretação judicial e o prestígio dos juizes, o consenso sobre as instituições, o funcionamento pragmático da separação dos poderes e o federalismo.

In — O sistema de fiscalização da constitucionalidade pode resumir-se assim:

a) É um sistema de competência difusa: todos os tribunais, estaduais e federais, apreciam a constitucionalidade, com ascendente natural do Supremo Tribunal;

b) Todos os actos normativos (incluindo os aditamentos à Constituição e as Constituições estaduais) estão sujeitos a fiscalização; mas não as questões políticas;

c) O poder de fiscalização não é um poder diferente do poder de jurisdição, é um poder normal dos juizes;

d) O sistema funciona sobretudo por via incidental (2): em qualquer pleito em tribunal, uma ou ambas as partes ou o próprio juiz podem arguir de inconstitucionalidade a lei aplicável, suscitando a questão prejudicial da sua validade;

e) A lei não é anulada, mas considerada não lei, nula; nem sequer o Supremo Tribunal exige que o Congresso declare a lei sem valor, é como se nunca tivesse sido votada.

IV — A judicial review foi posta em prática pela primeira vez em 1803 no acórdão do Supremo Tribunal que decidiu o caso «Marbury versus Madison».

Muito em resumo, tratava-se do conflito entre um juiz, MARBURY, e o procurador-geral MADISON. O Supremo Tribunal — presidido pelo ChiefJus-

() Assim, HAMILTON, O Federalista, trad. cit., págs. 577-578. (2) Outros meios são a injunção e a juízo declaratório.

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tice MARSHAL — considerando a questão de natureza política, declarou inconstitucional a lei que lhe permitiria intervir (i).

De 1803 para cá sucedem-se três fases bem distintas:

.”) Até cerca de 1880, a preocupação maior é a da defesa da unidade dos Estados Unidos e a fiscalização serve de arbitragem entre a União e os Estados federados;

2.) De 1880 a 1935-1937 o Supremo Tribunal interpreta a Constituição num sentido conservador da ordem liberal capitalista e afirma a sua autoridade frente ao poder legislativo, sendo então que se fala em «governo dos juizes» (2) (3);

3.”) Por último, sobretudo desde 1954 (caso «Brown versus Board of Educatíon»), de preferência à salvaguarda da propriedade, dedica-se (mas com oscilações nos últimos anos) à salvaguarda da liberdade política e da igualdade racial (4).

V — Não pode pretender-se que o sistema de fiscalização tenha funcionado sempre como sistema neutro, não comprometido com nenhuma finalidade política e social, e não sujeito a conflitos ou a inflexões. Mas seria erróneo pensar que tudo se tem passado como se a Suprema Corte e os outros tribunais americanos não fizessem senão reflectir em cada época imperativos vindos de fora,

() V. The Constitutional Decisions ofJohn Marshall, edição de JOSEPH COTTON, JR., Nova Iorque, reimpressão, 1969. Cfr. JACQUES LAMBERT, Lês origines du controle judiciaire de constitutionnalité dês lois aux Etats-Unis. Marbury v. Madison, in Revue du droit public, 1931, págs. 5 e segs.; LOUIS H. POLLAK, op. cit., págs. 165 e segs.

(2) Cfr. EDOUARD LAMBERT, Lê gouvernement dês juges et Ia lutte contre Ia législation sociale aux États-Unis, Paris, 1921.

(3) No inicio deste século, o juiz Hugles (que foi presidente do Supremo Tribunal) pôde afirmar: «Somos regidos por uma Constituição, mas são os juzes que dizem o que é a Constituição».

(4) Cfr., por exemplo, CHARLES H. SHELDON, A Century ofJudging. A political History of the Washington Supreme Court, Seattie, 1988; ÉLISABETH ZOLLER, Splendeurs et miséres du constitutionnalisme, in Revue du droit public, 1994, págs. 157 e segs.; RONALD KAHN, The Supreme Court and Constitutional Theory,1953-1993, Cansas, 1994.

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150Manual de Direito Constitcional

Há limites decorrentes dos princípios fundamentais de ordem constitucional.

Como escreve ROGÉRIO SOARES, seguindo GERHARD LEIBHOLZ, quando a jurisprudência americana interpreta as cláusulas constitucionais da «Equal Protection of the Law», tradicionalmente supõe-nas compatíveis com o juízo de que os negros podem ser tratados «equal but separate»; todavia, em1954, o Supremo vem declarar «que educação separada é uma violação do princípio da igualdade». Foi a constelação de valores socialmente acatados que obrigou assim a uma radical mudança de sentido na interpretação constitucional. E, no entanto, a estrutura da Constituição não teve de ser alterada, pois ela nunca aceitou uma regra inversa de desigualdades naturais entre os cidadãos ().

Por outro lado, são conhecidos o debate doutrinal e a divisão no seio dos próprios tribunais entre uma linha preferentemente historicista e o activismo construtivista (2).

46. A separação dos poderes e o sistema presidencial

I — A organização política da União (tal como a dos Estados) dir-se-ia directamente inspirada em MONTESQUIEU: três poderes — legislativo, executivo, judicial — e cada poder não só produzindo os actos inerentes à sua função (faculte de statuer) mas também interferindo em actos doutros órgãos, contribuindo para a produção dos seus efeitos ou impedindo que eles se dêem (faculte d’empêcher).

É aquilo a que se tem chamado um mecanismo de checks and balances, de freios e contrapesos (3).

() Direito Público..., cit., págs. 29-30 e 31.

(2) Cfr., por todos, RONALD DWORKIN, Law’s Empire, 1986, trad. italiana L’imper dei diritto, Milão, 1989, págs. 329 e segs.; MIGUEL BELTRÁN, Originalisme e interpretación — Dworkin vs. Bork; una polemica costitucional, Madrid,1989; ou EARL M. MALTZ, Rethinking Constitutional Law — Originalism, Interventionism and the Politics of Judicial Review, Cansas, 1994.

(3) Cfr., por todos, PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, A reparação dos poderes na Constituição americana — Do veto legislativo ao executivo unitário — A crise regulatória, Coimbra, 1994.

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Parte l—O Esado e os sistemas constitucionais 151

II — Considerando apenas o sistema político strícto sensu, ele analisa-se no seguinte:

a) Atribuição do poder executivo a um Presidente dos Estados Unidos, eleito por 4 anos, formalmente através do há pouco mencionado colégio eleitoral, realmente (por força da intervenção dos partidos) por sufrágio directo ();

b) Atribuição do poder legislativo às duas Câmaras do Congresso, sendo os Senadores eleitos por 6 anos, com renovação bienal de um terço, e os Representantes por 2 anos;

c) Independência recíproca dos titulares, com incompatibilidade de cargos, e nem respondendo politicamente o Presidente perante o Congresso, nem podendo este ser dissolvido ou adiado por aquele;

d) Possibilidade de impeachment ou sujeição do Presidente a responsabilidade criminal efectivada por deliberação do Congresso, mas por maioria qualificada de dois terços (2);

e) Interdependência funcional, com mútua colaboração e fiscalização — veto presidencial das leis (somente superável por maioria de 3) e mensagens do Presidente ao Congresso, por um lado, e autorizações e aprovações relativas a nomeações para altos cargos, a tratados e a créditos orçamentais, bem como comissões de inquérito, por outro lado (3);

() Como os mandatos dos eleitores presidenciais em cada Estado cabem, na sua totalidade, ao partido vencedor (sistema de representação maoritária), o peso dos Estados (especialmente dos maiores e, em cada um, de grandes minorias étnicas) avulta especificamente. Além disso, no colégio eleitoral presidencial, os mandatos dos eleitores têm carácter imperativo.

(2) Se bastasse a maioria simples, como em Inglaterra, poderia correr-se o risco de conversão do sistema em sistema parlamentar.

(3) O «veto legislativo» (ou reserva de aprovação de medidas adoptadas no uso de autorizações conferidas ao Presidente) era também, por prática de há 50 anos, uma das formas de colaboração e fiscalização; o Supremo Tribuna declarou-o inconstitucional em 1983. Cfr. Luc ROUBA, L’’ inconstitutionnalité du veto législatif aux États-Unis, in Revue du droit public, 1984, págs. 949 e segs.; NUNO PIÇARRA, A reserva de administração in O Direito, 1990, págs. 347 e segs.; PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, op. cit., págs. 37 e segs.

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f) Na prática, atribuição ao Presidente, sobretudo, de faculdades de impulsão ou iniciativa (donde, os termos governo presidencial ou presidencialismo) () e ao Congresso de faculdades de deliberação (o Presidente marca as grandes decisões do quadriénio, mas está sob a constante vigilância e influência efectiva do Congresso, em especial do Senado) (2).

In — O presidencialismo surgiu com a Constituição dos Estados Unidos e só aí tem sido verdadeiramente aplicado e tem funcionado eficaz e pacificamente.

Para lá da influência dos doutrinários, alguns factores históricos explicam bem a sua instauração: a experiência colonial, com governadores nomeados pela Coroa britânica e assembleias electivas; a tendência natural para conceber o Presidente à imagem do Rei de Inglaterra (no século xvm ainda exercendo a «prerrogativa»); a vontade dos pais da Constituição de evitarem tanto o despotismo de um homem só como os vícios das assembleias soberanas.

Em dois séculos de história e apesar da sua complexa realização — pois implica dois centros de poder, ao contrário do parlamentarismo — o sistema revelou-se adequado às necessidades e aos problemas. Mesmo nas ocasiões em que o partido do Presidente não tem disposto de maioria no Congresso, os conflitos entre Executivo e Legislativo têm sido vencidos sem crises institucionais, mercê da flexibilidade dos partidos americanos e da homogeneidade fundamental do meio político e social (a despeito da diversidade étnica e económica) (3).

Por certo, aumentaram os poderes do Presidente (particularmente na área legislativa e na internacional); mas também os do Congresso noutros sentidos (assim, a importância adquirida pelas comissões

() Cfr. EDWARD S. CORWIN, The Presidem. Office and Powers, 5.” ed., Nova Iorque, 1994.

(2) Cfr. WALTER C. OPELLO, Organiação e funcionamento do Congresso dos Estados Unidos, in Legislação, 1993, págs. 45 e segs.

(3) Cfr. HUGH BONÉ, American politícs and the party system, 4.” ed., Nova Iorque, 1971; JUDSON L. JAMES, American Political Parties, Londres, 1971; JOSEPH H. KESSEL, Presidential Parties, Homewood, 1984.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 153

senatoriais) e, desde 1951, o Presidente não pode ser eleito para terceiro mandato consecutivo. Numa perspectiva mais larga, dir-se-ia tudo se reconduzir a uma constante redistribuição de poder, numa relação cíclica de maior ou menor ascendente de um ou outro órgão (e do Supremo Tribunal dos Estados Unidos) ().

47. O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro britânico

I — O realce da posição do Primeiro-Ministro dentro do Gabinete britânico e o sentido político conferido às eleições gerais na Grã-Bretanha têm levado certos autores a assimilar o sistema britânico de governo ao sistema americano — ou seja, a sugerir que, sob a capa de parlamentarismo, o que existe no fundo em Inglaterra é um sistema presidencialista.

Na verdade, dir-se-iam semelhantes a posição do Presidente dos Estados Unidos e a do Primeiro-Ministro britânico. Ambos são objecto de votação popular (ao elegerem o Deputado do seu círculo, os eleitores britânicos votam no respectivo partido e no seu chefe, o qual, se o partido for maioritário, se tomará automaticamente Primeiro-Ministro); e um e outro praticamente mantêm-se no poder por um período certo, sem serem derrubados pelo Congresso ou pela Câmara dos Comuns.

Todavia, esta tentativa de aproximação não se afigura totalmente satisfatória, mesmo abstraindo de considerações de ordem judica. Várias são as razões que recomendam a rejeição:

l.”) O Primeiro-Ministro é deputado e é membro do Gabinete, órgão colegial; o Presidente identifica-se com o Poder Executivo,

(i) Sobre o sistema de governo americano, cfr., por exemplo, ERNEST S. GRIFFITH, The American System of Government, Londres, 1954; RICHARD NEUSTADT, Presidential Power, Nova Iorque, 1960; ANDRÉ TUNC, Lê couple Preside— Congrès dans Ia vie politique dês Etats-Unis d’Amérique, in Méianges offerts à Georges Burdeau, obra colectiva Paris, 1977, págs. 561 e segs.; CHRISTOPHER H. PYLE e RICHARD M. Picus, The Preside, the Congress and lhe Consitution, Nova Iorque, 1984; THEODORE J. Lowi, Presidential Power: Restoríng the Balance, in Political Science Quarterly, 1985, págs. 185 e segs.

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154Manual de Direito Consitucional

pois não há Goveo em sentido próprio nos Estados Unidos, mas sim uma Administração submetida ao Presidente ();

2.) As decisões políticas em Inglaterra são tomadas em Gabinete e perante o Parlamento, não nos Estados Unidos;

3.”) O Primeiro-Ministro tem de ter a maioria na Câmara dos Comuns, não o Presidente americano no Congresso;

4.) São bastante diversos os meios de fiscalização parlamentar, não menos eficazes nos Estados Unidos do que em Inglaterra;

5.”) O Primeiro-Ministro é essencialmente o chefe de um partido político, do qual depende e no qual tem de se impor — em congressos anuais e no interior do respectivo grupo parlamentar — em concorrência com vários candidatos a essa chefia; o Presidente recebe um mandato nacional;

6.) O Primeiro-Ministro pode ser substituído a meio da legislatura, não o Presidente;

7.) Ao contrário dos partidos ingleses, de forte disciplina e distinta base, os partidos americanos não têm consistência ideológica, são muito localizados por Estado e, por conseguinte, permitem diferentes maiorias consoante as questões.

II — É inegável que tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos se tem evoluído para formas de democracia, a que já tem sido dado o nome de democracias directas (e não democracias mediatiwdas), por permitirem a participação imediata dos cidadãos na escolha dos governantes e, em particular, do chefe do governo. Mas isso não basta, mesmo politicamente, para infirmar a originalidade do sistema parlamentar britânico. Trata-se apenas de um aspecto da sua evolução condicionado em grande parte pêlos modernos meios de comunicação social (2).

C) O que não quer dizer que, no plano político, o Secretário de Estado e outros colaboradores do Presidente não tenham importantíssimas funções e, por vezes, mais poderes efectivos que os membros do Gabinete em Inglaterra.

(2) Sobre o problema, v. ERNST FRÂNKEL, Die reprãsentalive und die plebiszitate Komponente im democratischen Verfassungstaat, 1958, trad. italiana Lê componente representativa e plebisciaria nello Stato costítuzionale democrático, Turim,1994, págs. 50 e segs.; ALBERT MABILEU, Lê regime britannique en question, m

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parte l—O Estado e os sistemas constitucionais_____15

Continua, pois, a poder fazer-se a contraposição. O sistema parlamentar de governo é de interdependência por integração:

Governo e Parlamento estão indissoluvelmente unidos, não podendo exercer as suas funções sem harmonia recíproca. O sistema presidencial é de interdependência por coordenação: há diversos órgãos políticos que actuam com autonomia uns perante os outros nas suas esferas respectivas, mas que devem colaborar para a prática de certos actos preestabelecidos ().

48. A difusão do Direito constitucional norte-americano

I — Há que distinguir, na difusão do Direito constitucional norte-americano, transplantações globais e parciais. As primeiras deram-se, por imitação, para os países de língua espanhola da América após a independência (2) e para o Brasil após a proclamação da república e, por imposição, para os países que estiveram sob o domínio dos Estados Unidos (Libéria, Filipinas, Coreia do Sul). As segundas deram-se para numerosos outros países em diversas épocas (3).

A difusão global raramente tem sido real. Para lá da proximidade das formulações constantes dos textos constitucionais, em poucos países ou em poucos momentos terá sido possível reproduzir na prática instituições análogas às americanas. Só na aparência se poderia

supor tal afinidade.

No que toca à América Latina — dividida em Estados bastante diferentes entre si—a sua história, hábitos de centralização e concentração do poder, factores culturais e sociais, o subdesenvolvi-

Revue française de science politique. 1966, págs. 1082 e segs. (que fala num parlamentarismo presidencial); ou F. G. MARX, La Grande-Bretagne vit-elle sous un regme présidentiel?, in Revue du droit public, 1969, págs. 5 e segs. Para uma visão comparativa mais ampla v. a obra colectiva Presidents and Prime Mimsters,3.” reimpressão, Washington, 1982, maxime págs. 284 e segs.

() K. LOEWENSTEIN, Teoria..., cit., pág. 132.

(2) Apesar de também ter havido alguma influência de Constituições espanholas

e francesas. ,, • j p

(?) Cfr Constitutionalism and Rights. The Influence of the Umted States

ConstiMion Abroad, obra colectiva editada por L. HENKIN e A. ROSENTHAL, Nova Iorque, 1990.

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mento económico e a instabilidade política, por um lado, e a formação jurídica bem diversa, por outro lado, depressa levaram a acentuar os contrastes com os Estados Unidos ().

Não menos interessantes se oferecem as transplantações parciais ou transplantações dos três principais institutos (todos ou apenas algum ou alguns) introduzidos no constitucionalismo moderno pelo Direito constitucional dos Estados Unidos:

— O federalismo para o Canadá, a Austrália e a Índia, sem esquecer a influência da Constituição americana na Constituição federal suíça;

— A fiscalização judicial da constitucionalidade para muitos países do Commonwealth britânico, para Portugal (desde 1911), e para o Japão (cuja actual Constituição, de 1946, embora de monarquia parlamentar, foi imposta pêlos Estados Unidos);

— O presidencialismo para a França na Constituição de 1848.

II — Dos elementos acolhidos noutros países o que menos êxito tem obtido tem sido o presidencialismo, o que não surpreenderá se se recordarem as dificuldades de funcionamento do sistema. O sistema presidencial exige equilíbrio e transigência entre Presidente e Parlamento como órgãos independentes um do outro, e fora dos Estados Unidos não é fácil encontrar os indispensáveis condicionalismos de sustentação.

As sociedades latino-americanas não poderiam experimentar, fácil ou correctamente, o governo presidencial. Muitas delas têm

(l) V. JACQUES LAMBERT, Amérique Latine-Structures Sociale et Institutions Politiques, Paris, 1963; Authoritarianism and corporatism in Latin América, obra colectiva editada por James M. MALLOY, Pittsburgh, 1974; FRANÇOIS CHEVALIER, L’Amérique Latine de l’indépendance à nos jours, Paris, 1977; Evolución de Ia Organiwción Politico-Constitucional en América Latina (1950-1975), obra colectiva,2 vols., México, 1978; GIORGIO LOMBARDI, op. ci., págs. 63 e segs.; El constitcionalismo em as postrimerías dei siglo XX, in vol., México, 1988; ANTÓNIO COLOMER VIADEL, Introducción el constitucionalismo iberoamericano, Madrid, 1990; o n. 74, Outubro-Dezembro de 1990, da Revista de Estúdios Polticos; Los sistemas constifucionales iberoamericanos, obra colectiva, coordenada por GARCIA BELAUNDE, F. FERNANDEZ SEGADO e R. HERNANDEZ VALLE, Madrid, 1992.

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oscilado entre a ditadura e o conflito: a ditadura ou, pelo menos, o governo pessoal, quando o Presidente consegue o apoio ou o domínio do Parlamento, a obstrução e o conflito, quando falta a coincidência entre a maioria parlamentar e o partido do Presidente. E mesmo onde tem funcionado melhor o sistema, sobressaem divergências em relação aos Estados Unidos: no sistema de partidos, na frequente consagração constitucional de Ministros (dando origem a um presidencialismo imperfeito), no reforço dos poderes do Presidente. O meio mais eficaz de limitação destes poderes é a regra da não reeleição para mandato subsequente ({).

Na Europa — tirando a li república francesa (que caiu sob o golpe de Estado do Presidente, Luís Napoleão) e agora, após a queda do regime soviético, a Rússia com a Constituição de 1993 (mas de grande turbulência) (2) — o governo presidencial à americana não tem sido adoptado. Tem sido mais forte a tendência para o governo parlamentar ou para outros sistemas políticos.

In — Cabe perguntar, depois do que se disse, que sistemas constitucionais se podem considerar de matriz norte-americana.

Se atendermos aos três institutos — federalismo, fiscalização judicial, presidencialismo — ou só aos dois últimos — fiscaliza-

() Sobre o presidencialismo latino-americano, v. CARLO ESPOSITO, Capo dello Stato, Milão, 1962, págs. 20 e segs.; JAIME CASTRO-CASTRO, La presidência de Ia Republca en Colômbia, in Perspectivas dei Derecho Publico en Ia segunda mitad dei siglo XX, 111, Madrid, 1969, págs. 418 e segs.; JORGE CARPIZO, Noas sobre el presidencialismo mexicano, m Revista de Estúdios Polticos, Maio-Junho de1978, págs. 19 e segs.; WALDINO CLETO SUÁREZ, El poder ejécutivo en América Latina: su capacidad operativa bajo regmenes presidencialistas, in Revista de Estúdios Polticos, n.” 29, Setembro-Outubro de 1982, págs. 109 e segs.; HUMBERTO NOGUEIRA, / regimi presideniali deli’América Latina, in Quaderni Costituionali, Dezembro de 1988, págs. 491 e segs.; El presidencialismo posto a proba (con especial referencia el sistema presidencialista latinoamericano), obra colectiva, Madrid, 1992.

(2) Cfr. SERGUEI BOBOTOV, Séparation dês pouvoirs en Russie à Ia iumière de Ia Constitution de 1993, m Studi Parlamentar e dl Potica Costituionale, 1994, págs. 37 e segs.

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cão e presidencialismo — e se atendermos também a que, por determinados períodos, certos países da América Latina e da Ásia conseguiram com eles viver em regime constitucional de liberdade política talvez se justifique falar em sistemas de matriz americana. Mas o sentido de uma família constitucional com base no Direito americano toma-se, assim — por radicar em elementos parcelares e não tanto em concepções gerais — mais pobre que o das famílias inglesa, francesa e soviética.

Se, algo diversamente, tomarmos como ponto de referência das instituições o sistema jurídico-constitucional (e também o administrativo) dos Estados Unidos, mais ou menos adaptado às tradições e condições locais, e se considerarmos desvios a tal modelo os regimes ditatoriais sofridos, quase todos de origem ou de carácter militar, então poderemos alargar algo mais a família. O Brasil e o México, os dois mais populosos e importantes Estados da América Latina — aquele tendo vivido de 1964 a 1985 em sistema político de excepção ou de democracia controlada, e este até há pouco, apesar da Constituição de 1917, em semiditadura de partido dominante () (2) — integrar-se-ão aí, nessa medida; e o mesmo se diga das Filipinas, salvo entre 1965 e 1985.

Duas notas, em especial, sobre o México, para salientar:

a) A consagração desde 1824 de um instituto de garantia da constitucionalidade e dos direitos individuais, o amparo;

b) O carácter social da Constituição de 1917 (anterior em dois anos à Constituição de Weimar), donde constam a atribuição originária à Nação da propriedade da terra e normas sobre reforma agrária (art. 27.”), a proibição de monopólios (art. 28.”) e a previsão de direitos dos trabalhadores (art. 123.”).

() MAURICE DUVERGER, Institutions..., cit., l, págs. 489 e segs. (2) Cfr., por exemplo, a obra colectiva Constitución Poltica de os Estados Unidos Mexicanos Comentada, México, 1985.

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§3.°

Os sistemas constitucionais de matriz francesa

49. Origem e sentido do sistema constitucional francês

I — Não é demais frisar que a grande diferença entre o sistema constitucional francês () e os sistemas constitucionais britânico e americano reside, in primis, na sua origem revolucionária e, depois, na vocação universalista de difusão de ideias que lhe está associada.

O sistema vai-se formar a partir de 1789, por via de revolução que, em progressiva radicalização, se propõe destruir todas as instituições e estruturas antigas. As ideias que inspiram a mudança não se encontram somente em França, mas é lá (em face de certos condicionantes históricos muito propícios) que são formalizadas e compendiadas, e o seu triunfo torna-se um exemplo para o resto da Europa (para onde, marcharão, nas chamadas guerras da Revolução e do Império, os soldados franceses).

(i) Além das obras de MONTESQUIEU e de ROUSSEAU, é essencial conhecer Qu’est-ce que lê Tiers-Élat? de SIEYÈS, de 1789 (consultámos a edição crítica de ROBERTO ZAPPERI, Genebra, 1970). Como obras fundamentais de construção jurídica, v. os Éléments de Droit Constitutionnel français et compare de A. ESMEIN, cit.;

o Traité de Droit Constitutionnel de LÉON DUGUIT, com várias edições (seguimos a 3.”, em 5 vols. Paris, 1927, de que há reimpressão); a Contribution à Ia Theorie Générale de l’État de R. CARRÉ DE MALBERG, 2 vols., Paris, 1920 e 1922 (com reimpressão); e o Précis de Droit Constitutionnel de MAURICE HAURIOU, cit., e, como manuais mais circunstanciais, J. LAFERRIÈRE, Cours de Droit Public et Administratif, 1841; A. SAINT-GIRONS, Manuel de Droit Constitutionnel, 1884; J. BARTHÉLEMY e P. DUEZ, Traité Élémentaire de Droit Constitutionnel, 1926; e, mais próximos, com numerosas edições, as Institutions Politiques et Droit Constitutionnel de MAR-

CEL PRÉLOT, GEORGES BURDEAU, ANDRÉ HAURIOU, MAURICE DUVERGER, JACQUES

CADART e PIERRE PACTET, entre outros; o comentário editado por FRANÇOIS LUCHAIRE e GÉRARD CONAC, La Constitution de Ia Republique Française, 2 vols. Paris, 1979;

ou LÊ MONG NGUYEN, La Constitution de Ia V Republique. Theorie et pratique,3.” ed. Paris, 1985; ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES, Os sistemas político-consitucionais francês e alemão Braga, 1985, págs. 11 e segs.; BERNARD CHANTE Y BOUT, Droit Constitutionnel et Science Poliique, Paris, 1989, págs. 441 e segs.

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A Revolução francesa marca a ruptura com o Estado absoluto O (2). É com ela, e não obviamente com a transição inglesa para o sistema parlamentar ou com a Revolução americana, que melhor se revela a contraposição entre Estado absoluto e Estado constitucional, representativo ou de Direito. E, durante ela, vão exprimir-se, nas concepções defendidas e nas práticas político-constitucionais experimentadas, alguns dos contrastes de formas e sistemas de governo que irão marcar as suas futuras vicissitudes.

II — A Revolução francesa prolonga-se por vários anos. O Ancien Regime não volta mais, nem sequer na fase mais dura da Restauração. Todavia, não se cria uma ordem constitucional homogénea e sem sobressaltos; pelo menos, não se cria desde logo; e o século xix conhecerá também as suas revoluções (1830, 1848,1870-1871).

Ao passo que, por exemplo, os Americanos tiveram até agora só uma Constituição e todas as transformações políticas e sociais ocorreram à sua sombra, os Franceses já experimentaram mais de dez Constituições e têm vivido em regimes de liberdade e de restrição de liberdade política, de concentração e de desconcentração do poder, de monarquia e de república, por mais de uma vez.

50. A história constitucional francesa

I — As Constituições francesas foram elaboradas sucessivamente em muitos diversos momentos: a revolução; o consulado e o l. império; a restauração; a 2. república e o 2.° império; a 3.”, a 4. e a 5. repúblicas. A cada momento correspondem diferentes

() Cfr., por todos, WERNER NAEFF, op. cit., págs. 17 e segs. (2) Convém, no entanto, não exagerar. O ambiente cultural é o mesmo dos reinados de Luís XV e Luís XVI; a máquina administrativa é aproveitada e racionalizada; e como que se levam às últimas consequências características vindas de trás (conforme acima foi notado). Sobre como a Revolução surgiu do regime que derrubou, v. ALEXIS DE TOCQUEVILLE, L’’ Ancien Regime et Ia Révolution, Paris, 1856 (seguimos a edição da colecção Idées, 1964); em especial sobre o sentido da liberdade e da igualdade antes e depois da Revolução, v. págs. 317 e segs.

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Constituições, que espelham transformações histórico-sociais distintas.

São três as Constituições revolucionárias:

— a de 1791, que introduz a monarquia constitucional e o modelo do governo representativo clássico e atribui o poder executivo ao Rei e o poder legislativo a uma Assembleia ();

— a de 1793 ou do ano i, repudiando a separação dos poderes e criando um órgão político único, o Corpo Legislativo, que elegeria um Conselho Executivo dele dependente;

— a de 1795 ou do ano i, que estabelece duas Câmaras e um órgão colegial, o Directório, encarregado do poder executivo. São três as Constituições napoleónicas:

— a de 1799 ou do ano viu, fundando o consulado (com três Cônsules), criando quatro assembleias (o Senado, o Conselho de Estado, o Tribunado e o Corpo Legislativo) e estabelecendo o sistema eleitoral das listas de confiança;

— a de 1802 ou do ano x, transformando Napoleão Bonaparte em cônsul vitalício, mediante a revisão da Constituição anterior;

— a de 1804 ou do ano xn, instaurando o império. São duas as Constituições da restauração (2):

— A Carta Constitucional de 1814, outorgada por Luís XVIII, e esboçando uma monarquia limitada, com duas Câmaras;

— A Carta Constitucional de 1830, resultado de um pacto entre o Rei (agora Luís Filipe de Orleães) e a Câmara dos Deputados, o qual se traduz na aceitação da revisão da Carta de 1814 num sentido mais liberal.

São três as Constituições da n república e do n império:

— a de 1848, estabelecendo um regime presidencialista (Presidente e uma Assembleia);

— a de 1852, quase decalcada na do ano viu, com rumo ao poder pessoal, o que vem a ser confirmado com a restauração do império (com Napoleão III), nesse mesmo ano;

— a de 1870, indiciando uma evolução do império em sentido parlamentar.

() Por vezes diz-se que é esta a primeira Constituição escrita europeia. Mas não é: de alguns meses precedeu-a a efémera Constituição da Polónia de 1791.

(2) Na crise da queda do l.” império ainda haveria a considerar a Constituição senatorial de 1814 e o Acto Adicional às Constituições do Império de 1815.

l — Man. Dir. Const.. I

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Por último, a m, a iv e a v repúblicas têm, cada uma, a sua Constituição:

— a de 1875 ( república), consagrando um sistema parlamentar;

— a de 1946 (iv república), mantendo com algumas alterações o mesmo sistema;

— a de 1958 (v república), revista em 1962, tendente a limitar o parlamentarismo e reforçando, sobretudo, o papel do Presidente da Repúbica.

II — A simples observação da lista das Constituições decretadas (algumas quase sem chegarem a entrar em vigor) mostra diferenças entre o período de 1789 a 1871 e o período subsequente.

Por um lado, das catorze Constituições, onze pertencem à primeira fase, enquanto que, na época que se he segue, apenas se encontram três Constituições (e deve reparar-se em que a Constituição de 1875 foi vítima da derrota francesa de 1940 e a de 1946 das convulsões da Argélia).

Por outro lado, no primeiro período sucedem-se regimes e sistemas muito diversos, alguns mesmo opostos: as monarquias constitucionais de 1791 e de 1814, tão diferentes uma da outra, e o regime jacobino e convencional de 1973, o regime cesarista de 1799 e o regime democrático de 1848, o regime directorial de 1795 e o regime orleanista de 1830 (). Pelo contrário, no segundo período, de 1875 a 1958 domina o sistema parlamentar, que se esbate e é substituído (sem desaparecerem completamente alguns dos seus aspectos) a partir deste ano; e, sobretudo, o fundamento democrático do poder político não sofre já contestação, consolida-se o sufrágio universal e garantem-se as liberdades individuais.

In — As oscilações da história constitucional francesa traduzem também a prevalênciaora de MONTESQUIEU, ora de ROUSSEAU, da doutrina e da mentalidade que se reconduzem a um ou outro grande pensador.

MONTESQUIEU constrói a sua doutrina pensando na liberdade;

a separação de poderes é uma garantia da liberdade, porque, con-

() Cfr. ARMANDO SAITTA, Costituenti e Cosútuvon delia Francia Rivoluionaria e Liberale ( 789-875), Milão, 1975.

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tra o poder só o poder. («É preciso que o poder detenha o poder»). Daí, outrossim, um governo representativo, porque sem representação política cai-se na concentração do poder no príncipe, ou no povo.

Diversamente, ROUSSEAU procura a máxima pureza da democracia. Há um só povo; logo, deve haver unidade do seu poder; e a vontade do povo não se representa. A liberdade encontra-se no exercício do poder directamente pelo povo, não por quem se pretenda seu representante. («Os Ingleses julgam-se livres, por escolherem os seus Deputados; na realidade, após a eleição ficam-lhes submetidos, como os Franceses ao rei de França»).

Por isso mesmo, como bem se sabe, MONTESQUIEU e ROUSSEAU acham-se no cerne do conflito filosófico-político de liberalismo e democracia (só ultrapassado no século xx). Mas, para o que importa neste momento, o primeiro está na base das formas de governo moderadas, ao passo que no segundo entroncam as formas de governo assentes na democracia absoluta, ainda que opostas (governo jacobino e governo cesarista).

SIEYÈS (Qu’est-ce que lê Tiers-État?) prenuncia a solução do conflito, tentando conjugar soberania nacional (mas não soberania popular, fraccionada em razão dos membros da comunidade política, dos cidadãos) e representação política.

IV — Segundo MAURICE HAURIOU, em França, desde a Revolução, teriam estado em luta duas correntes de ideias e de forças políticas: l.) a corrente revolucionária de governo pelas assembleias representativas; 2.) a corrente directorial, consular, imperial, presidencial, empenhada no reforço do poder executivo. O equilíbrio entre estas duas correntes seria dado pelo regime parlamentar, em que se combinaria a existência de assembleias com um poder executivo por elas fiscalizado.

Ainda segundo HAURIOU, as interacções das duas correntes opostas provocariam a formação de dois cicos poíticos, cada um com a seguinte evolução: l.) um período revolucionário de governo de assembleia; 2.) um período consular ou imperial de ditadura executiva, com uso do plebiscito;

3.1) um período parlamentar.

O primeiro ciclo iria de 1789 a 1848 e compreenderia: a monarquia constitucional de 1791 e a convenção (1793-1795), por uma banda; o directório, o consulado e o império, por outra banda; a restauração e Luís Filipe, por fim. O segundo ciclo começaria com o governo republicano revolucio-

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nário de 1848 e, passando pela república presidencialista e pelo li império, desembocaria na In república (parlamentar) (). E, se vivo fosse, talvez HAURIOU visse na iv e na v repúblicas as duas primeiras fases (governo de assembleia e governo com predomínio do Executivo) de um terceiro ciclo constitucional.

Será de acolher o ensino de HAURIOU?

Parece ser de aceitar, contanto que seja tomado como referente apenas à época de 1789 a 1871; os ciclos não são senão ciclos revolucionários e pós-revolucionários. Não parece que seja de aceitar no respeitante à época de 1871 para os nossos dias, em que prevalece uma impressão de homogeneidade.

Quer dizer: os ciclos, por si só, não servem de interpretação suficiente para toda a história constitucional francesa; mais importante do que a divisão em ciclos é a divisão entre a crise de 1789 e do século xix e a estabilização correspondente à III, à iv e à v repúblicas (2).

51. Instabilidade e sedimentação

I — Seja qual for a interpretação que se entenda mais razoável para tentar reduzir à unidade as vicissitudes político-constitucionais francesas, divisam-se causas que concorrem para tão grande instabilidade: causas de ordem geral e filosófico-jurídicas; sobretudo, causas de ordem política e social.

As primeiras estão ligadas à influência do pensamento racionalista num meio jurídico, intelectual e político favorável.

MARCELLO CAETANO sintetiza-as assim:

«No final do século xvm o movimento iluminista, cujo instrumento mais eficaz foi a Enciclopédia, espahou a doutrina de que nos séculos anteriores o obscurantismo havia acumulado um acervo de erros grosseiros na forma de governar os povos por efeito de uma prática rotineira.

() Précis..., cit., págs. 294-295. Cfr., algo diferentemente, por partir e chegar sempre a goveo dominado pelo Executivo em ciclos mais largos, MARCELLO CAETANO, op. cit., l, págs. 153-154.

(2) Ainda outras tentativas de interpretação da história constitucional francesa, algumas das quais sem se oporem à referida no texto, têm sido apontadas. V. um excelente resumo em GARCIA PELAYO, op. cit., págs. 456 e segs.

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Ora a essa época de ignorância sucedia desde então a era da Ciência, «o século das luzes», e tornava-se mister fazer tábua rasa do passado para deixar que a razão humana, esclarecida pêlos novos conhecimentos, traçasse as regras adequadas à sociedade política ideal onde os homens encontrariam a felicidade. Nasceu daqui a desconfiança pela tradição e a divinização da Razão-raciocinante que levou os próceres da revolução francesa a redigir Constituições segundo as teorias consideradas mais perfeitas. E quando uma Constituição provava mal, procurava-se no arsenal filosófico nova doutrina para inspirar outra Constituição. — Daqui nasceram textos sucessivos, de vida fugaz, muitas constituições, nenhuma das quais conseguiu ser a Constituição da Nação francesa. E viu-se o paradoxo de o texto que vigorou mais tempo — o de 1875 — ter sido justamente aquele que, elaborado sem preocupações doutrinárias, foi redigido na ideia de servir de lei provisória, por poucos anos, até ser feita a Constituição definitiva» ().

Sobressaem, porém, factores políticos e sociais. A instabilidade do período de 1789-1871 explica-se por nele se travar ainda uma luta decisiva de princípios de legitimidade — entre a legitimidade democrática e a monárquica — e de classes sociais — entre a burguesia urbana, que pretende consolidar o poder já adquirido, e a aristocracia rural, que pretende preservar ou restaurar antigos direitos — luta esta que se transforma, a partir de 1830, com o aparecimento do operariado. As Constituições que se sucedem correspondem a diferentes momentos dessa luta, a altos e baixos de qualquer dos contendores ou a fases de conciliação (como a monarquia de Julho, de Luís Filipe) ou de estabilização pós-revolucionária (os dois governos bonapartistas).

O princípio monárquico, ligado (no modo que atrás se viu) a crenças religiosas, resiste durante décadas ao triunfo do princípio da soberania nacional. Leva tempo até que este tenha o assentimento da consciência colectiva (2). Mas o princípio da soberania nacional

() Op. cit., i, pág. 126. Cfr. ANTÓNIO JOSÉ BRANDO, op. cit., págs. 21 e segs.

(2) Cfr. a distinção, feita por GUGLIELMO FERRERO (Pouvoir — Lês Gemes Invisibles de Ia Cite, Nova Iorque, 1942, maxime págs. 145 e segs. e 231 e segs.) e ilustrada em França, entre governos legítimos, pré-legítimos (os que estão a caminho de

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encaa quer em formas cesaristas quer em formas republicanas e só em 1884, quando se estabelece como limite material da revisão constitucional a imutabilidade da república se pode dizer que a monarquia é banida definitivamente ().

No plano social e económico, toma-se patente o contraste com a Inglaterra. Como observa BARRINGTON MOORE JÚNIOR, a sociedade francesa não gerou — e, provavelmente, não podia fazê-lo — um parlamento de senhores rurais em tons burgueses, à maneira inglesa, e o carácter inacabado da Revolução, facilmente relacionável com a estrutura da sociedade francesa dos fins do século xvm, significava que ainda passaria longo tempo antes que uma democracia capitalista completamente desenvolvida se conseguisse estabelecer (2).

II — A instabilidade de Constituições ao longo do século xix faz-se num processo dialéctico, em que os antagonismos se vão tornando cada vez menos profundos e em que as sínteses são cada vez mais avançadas no concernente aos princípios liberais e democráticos. E isso porque as novas instituições progressivamente se sedimentam e, por conseguinte, se consolidam (3).

se tomar legítimos por obra do tempo, factor essencial para o assentimento) e qase legimos (os que vivem à sombra de dois princípios e que têm apenas parte do assentimento necessário para se legitimarem).

Também pode recorrer-se à tricotomia de legitimidades de MAX WEBER (op. ci., págs. 170 e segs.) e reconhecer a presença ao longo da história francesa de uma legitimidade tradicional (a monárquica), uma legitimidade carismática (os dois Napoleões, até certo ponto DE GAULLE) e uma legitimidade legal-racional (sobretudo a república parlamentar).

() Assim, J. BARTHÉLEMY e P. DUEZ, op. cit., pág. 226.

(2) Op. cit., págs. 138-139. Já ALEXIS DE TOCQUEVILLE (LAncien Regime et Ia Révolution, cit., pág. 160) observava: «No Continente, o sistema feudal conduziu à casta. Na Inglaterra, redundou em aristocracia».

Cfr., especialmente centrada na revolução de 1848, a obra fundamental de LORENZ VON STEIN, Geschichte der sovalen Bewegung in Frankreich von i 789 auf unsere Tage, edição de 1850 (trad. castelhana Movimientos Sociales y Monarquia, Madrid, 1957).

(3) Cfr. La continuité constitutionnelle en F rance de 1789 à 989, obra colectiva, Paris-Aix-en-Provence, 1990.

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Esta sedimentação é de instituições políticas e de certa ideia de Direito, traduzida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que subsiste mesmo sem inserção em textos constitucionais () (2). Mas é apoiada por dois instrumentos decisivos: a nível social, pelo Código Civil (o Code Napoléon de 1804), que garante a igualdade jurídica, a liberdade contratual, a família e a propriedade burguesa;

e, a nível de organização de poder, por uma administração centralizada e hierarquizada, que, vinda do Antigo Regime, o Primeiro Império reconstituiu e desenvolveu nos quadros da uniformidade sistemática criados pela Revolução (3).

52. A Constituição e os tribunais

I — A Constituição, em França, é essencialmente lei, lei escrita ao serviço dos direitos e liberdades e da separação dos poderes (conforme o art. 16.° da Declaração de 1789), acreditando-se que, sendo a lei escrita, mais patente se tomarão as suas violações e, assim, se dissuadirão os governantes de as cometer (4).

Tal lei decorre de um poder constituinte, distinto, como mostrou SIEYÈS, dos demais poderes do Estado, poderes constituídos. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, a supremacia da Constituição não era até há alguns anos um princípio jurídico operativo, determinante da invalidad das leis com ela incompatíveis. Na concepção francesa, a força jurídica formal da Constituição e a sua rigidez excluem (ou tendem a excluir) o costume; não envolvem — ou não envolviam até há pouco — todos os corolários lógicos comportáveis dentro do sistema jurídico.

() Como, nomeadamente, defendeu DUGUIT, op. cit., Ill, págs. 599 e segs. O preâmbulo da Constituição de 1958 consagraria esse entendimento.

(2) Sobre os direitos fundamentais em França, cfr., por exemplo, JEAN RIVERO, Idéologie et téchnique dans lê droit dês libertes publiques, in Pages de Doctrine, Paris,1980, págs. 549 e segs.; ou PHLIPPE TERNEYRE, Point de vue français sur Ia hiérarchie dês droits fundamentaux, in Eudes de Droit Constitutionnel France-Portugais obra colectiva, Paris, 1992, págs. 35 e segs.

(s) JACQUES DONNEDIEU DE VABRES, L’État, 3. ed., Paris, 1967, pág. 15. (4) Cfr., por todos, ESMEIN, op. cit., i, págs. 603 e segs., maxime págs. 603-604.

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II — Os tribunais judiciais não obtiveram até agora competência para apreciar a constitucionalidade das leis. Derivou isso do seguinte:

.°) Da ideia de lei (ordinária), ou do seu primado, como expressão da vontade geral formada através de assembleias soberanas ();

2.°) Do entendimento dado à teoria da separação dos poderes, não se admitindo que órgãos estranhos à função legislativa, os tribunais, venham apreciar a validade das leis;

3.°) Da reacção contra a prática dos parlamentos (judiciais) do Ancien Regime, o que levou até à proibição, por lei, da apreciação jurisdicional da constitucionalidade (2) (3).

A Constituição de 1958 criou, porém, um órgão de fiscalização preventiva — o Conselho Constitucional — que, embora de origem e composição políticas, funciona em moldes jurisdicionalizados e cuja importância, sobretudo desde 1974, tem vindo a crescer (4); e os tribunais comuns não podem deixar de ter em conta a sua jurisprudência (5).

In — Muito mais antiga e consolidada é a fiscalização jurisdicional da legalidade administrativa como elemento básico de garantia dos direitos dos cidadãos.

() V. CARRÉ DE MALBERG, La loi, expression de Ia volnte générale, Paris,1931.

(2) Foi o Decreto de 16 de Agosto de 1790, que prescreveu que «os tribunais não poderão tomar parte, directa ou indirectamente, no exercício do poder legislativo, nem impedir ou suspender a execução dos decretos de corpo legislativo sancionados pelo rei, sob pena de prevaricação».

(3) Para uma introdução, v. o nosso Contributo..., págs. 42 e segs. e 85-86;

MAURO CAPPELLETTI, / controlo giudwario delia costituionalità delle leggi nel diritto comparato, Milão, 1970, págs. 83 e segs.; CHARLES EISENMANN, Lê Controle Juridictionnel dês Lois en France, m Actuatité du Controle Juridictionnel dês Lois, obra colectiva, Bruxelas, 1973, págs. 71 e segs.

(4) V., por todos, FRANÇOIS LUCHAIRE, Lê Conseil Constitutionnel, Paris, 1980;

o n.” 3 (1980) de Pouvoirs; BERNARD POULAIN, La pratique française de Ia justice constitutionnelle, Aix-en-Provence, 1990; LOUIS FAVOREU, Recueil de jurisprudence constitutionnelle — 1959-1993 Paris, 1994.

(5) Cfr. La Cour de Cassation et Ia Constitution de Ia Republique, obra colectiva, Aix-en-Provence, 1995.

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Mas ela tão pouco se efectiva através dos tribunais judiciais. Efectiva-se — ainda por causa de razões históricas, ligadas ao entendimento da separação dos poderes — através de recurso para outros órgãos, os tribunais administrativos (o primeiro dos quais é o Conselho de Estado, com uma influência e um papel criador não sem paralelo mutatis mutandis ao do Supremo Tribunal dos Estados Unidos) ().

53. O governo parlamentar em França

I — O princípio democrático, concebido em termos radicais, levou em França, nos dois ciclos dos séculos xvm-xix, quer ao governo convencional quer ao governo simplesmente representativo de Napoleão I e Napoleão In — ou seja, quer à ditadura de assembleia quer à ditadura pessoal. Num caso ou noutro, a democracia absoluta — jacobina ou cesarista — acabou por se destruir a si própria.

Mas o princípio democrático, mitigado pelo princípio da separação de poderes em certa acepção, deu ainda origem a uma forma intermédia: o governo parlamentar, conquanto com características muito diferentes das do sistema inglês. O sistema parlamentar aparece então um pouco como a síntese entre predomínio das Assembleias e do Poder Executivo e, ao mesmo tempo, entre democracia e separação de poderes.

Tanto o governo convencional como o governo cesarista são regimes específicos da experiência constitucional francesa. Mas são regimes revolucionários ou pós-revolucionários e, por isso, efémeros. Mais duradouro é o governo parlamentar, que se alonga entre 1871 e 1958, mesmo se menos típico que os outros.

II — O sistema parlamentar surge um pouco à imagem do sistema britânico, por necessidade política, aquando da Restauração;

começa a esboçar traços próprios com Luís Filipe; adequa-se a um regime republicano — pela primeira vez (2); e singulariza-se a partir de 1875 (3).

() Cfr., por todos, RENE CHAPUS, Droit du Contentieux Administratif, 4. ed., Paris, 1993, págs. 48 e segs.

(2) Pois até então o governo parlamentar tinha somente existido em monarquia.

(3) Cfr., por todos, A. ESMEIN, op. cit., l, págs. 223 e segs.

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Como características fundamentais do sistema, tal como resultam do funcionamento da 3. e da 4. repúblicas, apontem-se:

a) Subsistência de um Chefe do Estado na linha da tradição monárquica e no qual se faz assentar formalmente a titularidade do Poder Executivo;

b) Bicameralismo;

c) Inexistência de maioria parlamentar de base, devido à multiplicidade de partidos políticos;

d) Necessidade de formação de governos de coligação;

e) Importância do Conselho de Ministros como órgão de definição e concerto da política governamental;

f) Governos de curta duração, em virtude da instabilidade das coligações;

g) Ausência ou paralisia do poder de dissolução do Parlamento pelo Chefe do Estado ou pelo Governo.

Na prática, o sistema de governo de tipo britânico distingue-se do sistema de governo parlamentar de tipo francês pelo seguinte. No primeiro, em regra o Governo nunca é posto em minoria no Parlamento; mas, se acaso o for, este será dissolvido, realizando-se de seguida novas eleições gerais. Pelo contrário, no segundo, pode haver crise ou dissidências na coligação governamental ou constituir-se nova coligação (o que determina num caso ou noutro a queda do Governo, por vezes, mesmo sem votação de moção de desconfiança ou censura nas Câmaras), sem que, por causa disso, tenha de ser dissolvido o Parlamento.

54. A V república e o presidencialismo gauilista

I — O que fica acabado de recortar é o esquema básico do governo parlamentar, tal como foi vivido em setenta anos da 111 república e, de uma foima ou de outra, em diversos regimes de outros países, como a l república portuguesa, a Itália antes e depois do fascismo e a Espanha entre 1931 e 1936.

A iv república (Constituição de 1946), embora não quisesse ser a mera repetição da m, acabou por muito pouco se afastar desse modelo. De novo só trouxe o reforço do papel do Presidente do Conselho em relação aos Ministros, a substituição do Senado por um Conselho da República de pode-

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rés reduzidos e a criação de um tímido Comité Constitucional, com competência respeitante à inconstituciona idade. A prática constitucional orientou-se num sentido menos favorável à estabilidade: maior pulverização partidária, dificuldades de formação de coligações devido à força dos partidos adversos ao regime Governos de duração mais breve que na In república (i).

Seria com a v república que se haveria de verificar a reacção contra o governo da assembleia e conseguir a formação de um sistema diferente que, sem pôr em causa as tradições democráticas e liberais francesas, fosse capaz de dar e criar novas condições à política interna e externa do país.

Na sua versão original, a Constituição de 1958 destinava-se apenas a conter, limitar e racionalizar o parlamentarismo vindo das repúblicas anteriores (2). O sistema continuaria a ser de governo parlamentar (3), embora com o Presidente da República alçado à posição de árbitro, incumbido de vear pelo cumprimento da Constituição, pelo regular funcionamento dos poderes públicos e pela continuidade do Estado (art. 5.”).

Mas logo predominou um entendimento diverso, resultante da forte personalidade do General de Gaulle e da crise da Argélia, primeiro, e, a seguir, da revisão constitucional de 1962 (4) que estabeleceu a eleição do Presidente da República por sufrágio universal (em vez de ser por um colégio restrito). A permanência da situação e a legitimidade democrática imediata derivada da eleição — é uma regra geral em todos os países que quanto mais amplo for o colégio eleitoral maior importância política terá o eleito — levaram a que o sistema, longe de se traduzir em sistema parlamentar racionalizado, viesse a assumir características sui generis.

() Cfr. MARQUES GUEDES, A revisão da Constituição francesa, in Revista da Faculdade de Direto da Universidade de Lisboa, 1957 (separata); J. C. VÉNÉZIA, Lês fondements juridiques de l’instabilité ministérielle sos Ia Hl”1’ et sos Ia TV Republique, in Revue du droit public, 1959, págs. 718 e segs.

(2) Por exemplo, a votação das moções de censura condicionada a apertadas regras (art. 49.”) e só certas matérias, aliás enumeradas com latitude, passarem a poder ser objecto de lei (art. 34.”). LOEWENSTEIN fala em parlamentarismo frenado (Teoria..., cit., págs. 115 e segs.).

(3) A aprovação de uma moção de censura ou a rejeição do programa governamental pelo Parlamento envolve o dever de demissão do Governo (art. 50.”); o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, mas não pode ser por ele demitido (art. 8.”); entre duas dissoluções da Assembleia Nacional deve interceder o prazo mínimo de um ano (art. 12.”).

(4) Aliás muito controversa: foi feita com desvio das regras constitucionais (arts. 11.”e 89.”).

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E até pode pensar-se que o sistema da v república reúne ou aproveita, em larga medida, algumas das mais marcantes tendências dos sistemas anteriores: do parlamentarismo (responsabilidade do Governo perante o Parlamento), do bonapartísmo (ascendente do Chefe do Estado) e do governo jacobino (participação do povo através de referendo).

II — Numa visão mais formal pode dizer-se que o sistema gaullista (agora com quase quarenta anos de existência, com quatro Presidentes sucessores de De Gaulle e inversões de maioria em 1981,1986, 1988 e 1993) corresponde a um sistema semipresidencial, por o Governo, livremente nomeado pelo Chefe do Estado (mas não livremente demitido), ser responsável politicamente perante o Parlamento. Ele não está muito longe, afinal na linha de outros países europeus que, antes e depois da 2. guerra mundial, adoptaram ou pareceram adoptar esquemas semelhantes.

Na realidade, o centro principal da decisão política tem residido desde o início, no Presidente da República, por virtude da auto-atribuição de um «domínio reservado» em política externa e de defesa, da subaltemização do Primeiro-Ministro, do apelo ao referendo e do exercício do poder de dissolução. Só em dois breves períodos (1986-1988 e 1993-1995) de não coincidência de maioria presidencial e de maioria parlamentar (e, portanto, de necessária «coabitação» de um Presidente e dum Governo de sinais diferentes) terá sido aplicada, à letra, a Constituição da v república ().

Nem se trata sequer de algo de extraordinário na experiência comparada dos sistemas semipresidenciais, fórmulas de compromisso de difícil realização entre elementos de parlamentarismo e de presidencialismo. com excepção da Finlândia, e de, até agora, Portugal (2), os sistemas juridicamente semipresidenciais têm pendido ora para um, ora para outro lado: para o sistema parlamentar

() Assim, MAURICE DUVERGER, Bréviaire de Ia cohabitatíon Paris, 1986, pág. 7. Cfr. JEAN-CLAUDE ZARKA, Function présidentielle et problemátique majorité présidentielle — majorité parlementaire sos Ia Cinquième Republique, Paris, 1992; MARIE-ANNE COHENDET, La cohabitatíon—leçons d’une experience, Paris, 1993.

(2) Cfr. infra.

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(Áustria, Irlanda e Islândia) ou para o sistema presidencial (a Alemanha de Weimar, de resto em crise permanente após 1925), consoante a dinâmica política assenta na maioria parlamentar ou na presidencial ().

De todo o modo, não é lícito confundir o presidencialismo gaullista com o presidencialismo verdadeiro e próprio, à americana, por aquele não ter sido criado expressamente pela Constituição, o Presidente em França ter um estatuto diferente do dos Estados Unidos e por o sistema francês continuar a ser (tal como nas repúblicas anteriores) de dualismo do Poder Executivo, com um Governo, judica e politicamente distinto do Chefe do Estado,

Especificando um pouco melhor, recorde-se que na v república francesa, ao contrário do que se verifica nos Estados Unidos:

— É obrigatória a demissão do Governo em consequência de votação desfavorável do Parlamento, assim como, em contrapartida, o Presidente da República pode dissolver a Assembleia Nacional;

— Apesar de haver incompatibilidade entre as funções de Ministro e Deputado, os Ministros podem participar nas reuniões plenárias das Câmaras (e não apenas das comissões) e desde 1966 todos procuram ser eleitos Deputados;

— Apesar de a Constituição de 1958 ter restringido a necessidade de referenda ministerial, ela mantém-se para certos actos;

— O Presidente da República tem o poder de submeter a referendo projectos de lei relativos à organização dos poderes públicos e à ratificação de

() Cfr. MAURICE DUVERGER, Échec au Rói, Paris, 1978; a obra colectiva por este autor dirigida Lês regimes semi-présidentieis, Paris, 1986; STEFANO BARTOLINI, Sistema partitico ed eleione direta dei Capo dello Stato in Europa in Revista italiana de scienza política, 1984, págs. 223 e segs.; CRISTINA QUEIROZ, O sistema político-constitucional português, Lisboa, 1992, págs. 54 e segs.; GIOVANNI SARTORI, Elogio dei sempresidenvalismo, in Rivista italiana di sciena política, 1995, págs. 3 e segs. Sobre a Finlândia (Constituição de 1919), v. especialmente PAAVO KASTARI, Lê Presidem de Ia Republique en Finlande, trad., Neuchâtel, 1962; FRANÇOISE THIBAUT, La Finlande, un regime parlementaire en attente, in Revue du droit publlc, 1977, págs. 655 e segs.; FRANÇOIS FRISON-ROCHE, La Présidence de Ia Republique en Finlande et Ia nature du regime, in Droit, Institutions et Systémes Politiques — Méianges en hommage à Maurice Duverger, obra colectiva Paris, 1987, págs. 101 e segs.; ANGELO RINELLA, op. rir., págs. 83 e segs.

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determinados tratados (art. li.” da Constituição de 1958) e o de assumir, embora com consulta prévia de outros órgãos, poderes excepcionais em estado de necessidade (art. 16.”);

— O Presidente é eleito por sete anos e pode ser reeleito indefinidamente.

Em suma, o sistema da v república oferece uma maior maleabilidade do que um sistema presidencial puro (visto que o Presidente tanto pode agir por si como através do Primeiro-Ministro, conforme as circunstâncias), mas também oferece uma maior ambiguidade e fragilidade (visto que o Presidente tem de concertar a sua acção com o Parlamento e, na medida em que recorra a referendo, pode ficar sujeito a derrotas como a de De Gaulle em 1969, a qual provocaria a sua renúncia) ().

55. A difusão do constitucionalismo francês

I — Não pode falar-se em constitucionalismo sem se falar na difusão do constitucionalismo formado em França a partir de 1789 e que, através de tantas vicissitudes, se estende até aos nossos dias.

Conforme vimos, foi muito intensa a influência do Direito constitucional britânico na Europa e verificou-se em mais de uma época. No entanto, ela nunca desceu tão fundo como a do Direito constitucional francês. Se em bastantes países se ensaiou com maior ou menor êxito o sistema de governo parlamentar imitado de Inglaterra, em compensação em quase todos eles a concepção que prevaleceu veio a ser a francesa e não a inglesa. E também sabemos que a

() Cfr. GEORGES BURDEAU, La responsabilité gouvernementale dans lê regime de Ia Republique en France, m Miscellanea W. J. Ganshof va der Meersch, obra colectiva, m, Bruxelas, 1972, págs. 11 e segs.; Pouvolrs, n.” 4, Fevereiro de 1978;

PIERRE AVRIL, Lê reime politíque de Ia V’ Republique, 4.° ed., Paris, 1979; JEAN-LOLIIS QUERMONNE, Lê gouvernement de Ia France sos Ia V’’ Republique, Paris, 1980;

EZRA N. SULEIMAN, Presidential Government in France, Presidents and Prime Ministers, cit., págs. 94 e segs., maxime págs. 103 e €egs.; Revue française de science politíque, 1984, n.0 45; DIMITRI GEORGES LAVROFF, Lê système politíque français de Ia V Republiqe, 4. ed., Paris, 1986; CRISTINA QUEIROZ, op. cit., pág. 61;

CHARLES ZORGBIDE, De Gaulle, Mitterand et 1’Esprit de Ia Constitulion, Paris, 1993.

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incidência do constitucionalismo norte-americano aqui foi apenas parcelar, foi apenas de certos institutos.

II — Vários momentos de irradiação do Direito público francês podem, por seu turno, ser sucessivamente demarcados:

1.°) Nos finais do século xvm e inícios do século xix para a grande parte do Continente europeu para onde se transmitem, por osmose ou em resultado das guerras e da ocupação militar, as ideias da Revolução: garantia dos direitos individuais, soberania nacional, separação de poderes. São desta época as Constituições espanhola de 1812 e portuguesa de 1822, inspiradas na Constituição de 1791. E a influência do jusracionalismo francês não está igualmente ausente do pensamento jurídico da América Latina, em luta pela independência;

2.°) Após a revolução de 1830, e não sem conexão com as reformas eleitorais britânicas, para vários países, no sentido da passagem da monarquia constitucional da Restauração para uma fase mais liberal. A Constituição belga de 1831 () (ainda em vigor, com alterações) e as Constituições espanhola de 1837 e portuguesa de1838 assinalam tal difusão, assim como as primeiras tentativas constitucionais da Grécia;

3.°) Após a revolução de 1848, num surto revolucionário generalizado, mas efémero, em que já aparecem ideias socialistas, sobretudo para a Europa central;

4.°) Entre 1870 e a primeira guerra mundial, para alguns países da Europa meridional, dos Balcãs a Portugal (Constituição de 1911), e da América Latina. Difundem-se o republicanismo, com a separação da Igreja do Estado, e o governo parlamentar de assembleia;

5.°) Após a primeira guerra mundial, para os países que se tornam independentes dos Impérios vencidos e para outros que procuram adoptar também instituições republicanas. É também essa a época da «racionalização do poder» (MIRKINE-GUETZÉVITCH), sob a veste da Constituição formal;

() Cfr. SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Observations sur Ia Constitution de Ia Belgique, Paris, 1838.

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6°) com a descolonização, em termos precários, para os Estados em que se transformam os antigos territórios franceses e belgas da África;

7.°) com o fim dos regimes marxistas-leninistas da Europa centro-oriental, para os países dessa área, com influências gerais difusas (a par também de influências alemãs).

In — Nos países da América Latina a marca do constitucionalismo de raiz francesa, não obstante não desprezível (), não se afigura determinante na construção e na vivência dos respectivos sistemas político-constitucionais. Já não nos países da Europa continental (2), com excepção da Suíça, da Alemanha e da Áustria, se bem que seja possível e necessário abrir distinções, que atentem na maior ou menor ligação e na especificidade da evolução histórica.

A Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, por um lado, e a Suécia, a Dinamarca, a Noruega e a Islândia, por outro lado, não deixam de evocar o sistema constitucional inglês por conhecerem uma experiência pacífica e paulatina e por conservarem, salvo a Islândia, a monarquia. Mas são países de Direito legal, o conceito de Constituição e os instrumentos de a trabalhar não são os ingleses e quase todos os respectivos sistemas de governo são aparentados do parlamentarismo de tipo francês (3).

Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia e a Roménia, pelo carácter atribulado das suas histórias, com soluções de continuidade e convulsões revolucionárias das quais procedem sistemas e regimes opostos, têm tanto de instável como a França do século xix; tanto como ela têm aprendido em concreto o significado da luta pela Constituição; e hoje, com excepção da Espanha, são repúblicas. Mas tem-lhes faltado a duração das instituições e o consenso nacional que são comuns ao resto da Europa ocidental.

() No presidencialismo imperfeito com relativa autonomia dos Ministros, nos sistemas eleitorais, nos direitos fundamentais e, em geral, na técnica jurídica.

(2) E, mesmo sem democracia pluralista, como sucedeu em certa medida, com Portugal na Constituiço de 1933 e na Grécia antes de 1975.

(3) Cfr. PIERRE LALUMteRE e ANDRÉ DEMICHEL, Lês regimes parlementaires européens, Paris, 1966.

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A Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia e a Roménia reflectem muito mais proximamente o modelo francês, até por ser a mesma a cultura jurídica. Não foi, de resto, apenas o Direito constitucional a ser aí objecto de recepção;

também o foi o sistema administrativo (e na Bélgica, na Holanda e no Luxemburgo o Código Civil).

Mais afastados encontram-se os países nórdicos, quer pelas diferenças visíveis de cultura, tradição e organização social e administrativa (donde emergiu, por exemplo, o Ombudsman, agora com grande voga), quer pelas suas recentes experiências de formas avançadas de Estado social de Direito; e, por razões inversas, a Turquia (apesar do esforço assinalável que foi a Constituição de 1961, agora substituída, em sentido menos democrático, pela de 1982).

IV — Qual a difusão actual, mais em particular, do governo de assembleia e do presidencialismo ou semipresidencialismo da v república?

O sistema parlamentar de assembleia acha-se em nítido desfavor. Como observa LOEWENSTEIN, ele parece exercer uma atracção irresistível sobre os Estados que dão os primeiros passos na democracia constitucional, ao libertarem-se de domínios autocráticos (1). Foi o que sucedeu nos Estados da Europa centro-oriental a seguir à primeira guerra mundial e de novo, agora, em alguns desses Estados.

Quanto ao sistema semipresidencial, ele repercutiu-se na Grécia, nos anos imediatamente a seguir a 1975 (2), em Portugal desde 1976 e, após 1989, na Polónia (3), na Roménia (4) ou na Ucrânia. Nos países africanos francófonos, porém, ele tem conduzido a presidencialismo.

() Op. cit, pág. 111.

(2) Cfr. ANTOINE M. PANTÉLIS, Lês Grandes Problèmes de Ia Nouvele Constitution Héliénique, Paris, 1979.

(3) Cfr. KRZYSTOF WOUTYCZEK, Un nouveau regime parlementaire rationnalisé: Ia Pologne, m Revue du droit public, 1994, págs. 379 e segs.

(4) Cfr. BERNARD LIME, Lê système constitutionnel roumain, ibidem, págs. 325 e segs.; FLORIN VASILESCU, Lê regime politique de Romanie, elidem, 1995, págs. 451 e segs.12 — Man. Dir. Const.. I

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178Manua de Direito Constitucional

56. As Constituições da Espanha

I — A história política e constitucional da Espanha tem sido ainda mais agitada do que a da França.

Foram lá mais intensos os conflitos de legitimidade e prolongaram-se até há bem pouco tempo; foram ainda mais graves a crise das instituições (as antigas e as trazidas pelo liberalismo) e a debilidade das estruturas económicas, a que têm acrescido os irredentismos nacionalistas e regionalistas.

II — Entre 1812 e 1936 sucederam-se vários reinados de diferente tendência (liberal radical, absolutista, orleanista), várias ditaduras e duas repúblicas (1873-1874 e 1931-1936), bem como, naturalmente, várias restaurações e seis Constituições ().

Destas Constituições, as mais interessantes são, a primeira (2), de 1812 (chamada Constituição de Cádis) e a última, de 1931: a de 1812, modelo de Constituição revolucionária liberal para a Europa latina (e não sem influência, como se sabe, na América de língua espanhola) (3); a de 1931, da 2. república, de forte inspiração social, inspiradora da teoria do Estado regional e com um Tribunal de Garantias próximo do Tribunal Constitucional austríaco.

Mas de 1936 a 1975 (começando por uma guerra civil entre1936 e 1939), a Espanha conheceria o longo regime autoritário conduzido pelo General Franco (a considerar adiante, no capítulo próprio). Dele se passaria para uma monarquia constitucional semelhante às que existem no norte da Europa, ou seja para uma

() V. SANCHEZ AGESTA, Historia dei Constiucionalismo Espani, 3.” ed., reimpressão, Madrid, 1978; BARTOLOMÉ LAVERO, Evolución hisórica dei consitucionalismo espanhol, Madrid, 1984; ANTÓNIO TORRES DEL MORAL, Constiucionalismo histórico espani, 4.” ed., Madrid, 991.

(2) Sem se contar a de 1808 (dita de Baiona), imposta por Napoleão. V., recentemente, RAUL MORODO, Reformismo y regeneracionismo: el contexto ideológico y políico de Ia Constitución de Bayone, in Revista de Esúdios Polticos, Janeiro-Março de 1994, págs. 29 e segs.

(3) V. JOAQUIN SUANZES-CARPEGNA, La Teoria dei Estado en Ias origenes dei

consitucionalismo hispânico (Lãs Cortes de Cádi}, Madrid, 1983.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 179

monarquia que tem por conteúdo um sistema democrático parlamentar (); os marcos dessa transição foram a Lei de Reforma Política e o referendo de 1976, as Cortes Constituintes de 1977-1978 e, por último, o referendo de 1978 de aprovação de uma nova Constituição (2).

In — A Constituição de 1978 representa tanto a consagração, ao fim de um século, de um constitucionalismo de matriz francesa quanto a abertura a novos caminhos.

Retomam-se as regiões ou comunidades autónomas (num regionalismo integral, e não parcial, como em 1931) e o Tribunal Constitucional (a que os cidadãos podem ter acesso directo através do recurso de amparo). A semelhança da Constituição italiana de 1947 e da portuguesa de 1976, introduzem-se «princípios directivos de política social e económica» e constitucionalizam-se direitos dos partidos, dos sindicatos e das associações empresariais. Procura-se instaurar um parlamentarismo racionalizado, com a moção de censura construtiva vinda da Constituição alemã de Bona (3).

() Cfr. ANTÓNIO PAPELL, La monarquia espanhola y el Derecho constiucional europeu. Barcelona, 1980.

(2) V. PABLO LUCAS VERDU, La singularidad dei proceso constituyente espani, m Revista de Estúdios Polticos, n.” l, Janeiro-Fevereiro de 1978, págs. 9 e segs.;

AGUILA TEJERINA, La transición a Ia democracia em Espanha: reforma ruptura y consenso, ibidem. n.” 25, Janeiro-Fevereiro de 1982, págs. 101 e segs.; DIRCÊO TORRECILLAS RAMOS, Autoritarismo e Democracia — O exemplo constitucional espanhol, São Paulo, 988; GREGORIO PECES-BARBA, La elaboración de Ia Constitución de 1978, Madrid, 1988; GEORGES KAMINIS, La transition constitutionnelle en Grèce et en Espagne, Paris, 1993.

(3) Cfr., entre tantos, JORGE DE ESTEBAN e outros, El Regimen Constitucional Espani, Barcelona, 2 vols., 1980 e 1982; GARRIDO FALLA e outros, Comentário a Ia Constituição, Madrid, 1980; ALBERTO PREDIERI e GARCIA DE ENTERRIA, La Constitución Espanola, 2 vols., Madrid, 1981; SANCHEZ AGESTA, Sistema poltico de Ia Constitución Espanola de 1978. 6. ed., Madrid, 1991; FRANCISCO FERNÁNDEZ SEGADO, El sistema constitucional espano, Madrid, 1992; ANTÓNIO JORGE FERNANDES, Os sistemas político-constitucionais português e espanhol, Lisboa,1993.

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180Manal de Direito Constitucional

57. As Constituições da Itália

I — Após a unificação a Itália teve uma monarquia constitucional de tendência orleanista. A Carta outorgada pelo Rei Carlos Alberto do Piemente em 1848 (o chamado «Estatuto Albertino») passou a vigorar como Constituição de toda a Itália; era uma Constituição flexível ().

Menos turbulenta do que a Espanha, a Itália viria, apesar disso, a entrar mais cedo em ditadura: foi, no rescaldo da primeira guerra mundial, o fascismo, implantado em 1922 e terminado em 1943 (ou, no norte da Península, em 1945). A seguir, em 1946 seria proclamada a república, por decisão tomada em referendo, e seria aprovada em 1947 uma nova Constituição por uma assembleia constituinte (2).

II — Domina a Constituição italiana actual um nítido carácter compromissório, também manifestado durante os mais de quarenta anos que já leva de vida.

Ponto de grande relevo são uma cuidada parte I, sobre direitos fundamentais, que engloba «relações civis», «ético-sociais», «económicas» e «políticas»; inovações no exercício da função legislativa (iniciativa popular, veto popular com referendo resolutivo ou revogatório, competência deliberativa das comissões parlamentares); a instituição de regiões autónomas, umas de estatuto comum, outras de estatuto especial; a existência do Tribunal Constitucional; a posição algo reforçada do Presidente da República como Chefe do Estado, mas sem quebra do sistema parlamentar (3).

() Cfr., por todos, BALLADORE PALLIERI, Diritto Costituionale, 8.” ed., Milão,1965, págs. 137 e segs.

(2) V., por todos, a obra colectiva sob a direcção de Uo DE SIERVO, Seelte delia Costituente e cultura jurdica, 2 vols., Bolonha, 1980.

(3) E numerosíssima a bibliografia italiana que poderia ser citada. Além dos comentários sistemáticos de ANTÓNO AMORTH, de G. BRANCA e de CALAMANDREI e LEVI, indiquem-se entre as obras mais recentes: ENRICO SPAGNA Musso, Diritto Cosfituonale, 3.” ed., Pádua, 1990; TEMISTOCLE MARTINES, Diritto Costituúonae,7.” ed., Milo, 1992; ALESSANDRO PIZZORUSSO, Sistema instituzionale de Diritto Publico Italiano, Nápoles, 1992; FAUSTO CUOCOLO, Instituione di Diritto Pubblico,7.” ed., Milão, 1992; PAOLO CARETTI e Uo DE SIERVO, Instituioni di Diritto Pubblico, 2.° ed., Turim, 1994.

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K

Parte f—O Esado e os sistemas constitcionais 181

Nos últimos anos, porém, o sistema político entrou em acentuada crise — crise de governabilidade e crise de legitimidade da classe política — sem que até agora as reformas ensaiadas tenham tido êxito.

§4.°

Os sistemas constitucionais de matriz soviética

58. O Estado e o constitucionalismo soviético

I — Mais do que quaisquer outros, foram o Estado e o constitucionalismo soviético (i) fortemente marcados por uma revolução:

a revolução russa de Outubro-Novembro de 1917 (dita revolução de Outubro), directa consequência das circunstâncias históricas da Rússia — sujeita a uma autocracia em crise intensa, com grande atraso administrativo, económico e social e derrotada em duas guerras (contra o Japão, em 19041905, e contra a Alemanha entre 1914 e 1917). Pesam neles, portanto, certos factos.

Mas foram também produto de certas ideias. Não podem ser desprendidos da propaganda revolucionária vinda do século xix e animada, nesse contexto favorável, por Lenine. O seu sentido é impensável à margem da ideologia que se intitularia marxista-leninista.

() É fundamental conhecer O Estado e a Revolução, 1917, de LENINE (L’État et Ia Révolulion, trad., Paris, Seghers, 1971), e Direito e luta de classes de P. STÜCKA (de que há trad. portuguesa, Coimbra, 1973). Além disso, cfr. a antologia de autores soviéticos Soviet Legal Philosophy, Harvard, University Press, 1951, com reimpressão de 1968; KELSEN, A teoria política do bochevismo, trad. portuguesa, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vols. ix, págs. 112 e segs., e x, págs.115 e segs.; N. G. ALEXANDROV e outros Teoria dei Estado y dei Derecho, trad. castelhana, México, 1966; J. N. HAZARD, The Soviet system ofgovernement, 4.” ed., Chicago, 968; MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 250 e segs.; MAURICE DUVERGER, Institutions..., cit., l, págs. 339 e segs.; MICHEL LESAGE, Lês regimes politiques de 1’U.R.S.S. e dês pays de l’Est, Paris, 1971; ROY MEDVEDEV, Da democracia socialista, trad., Lisboa, 1974; UMBERTO CERRONI, O pensamento jurídico soviético, trad., Lisboa, 1976; BISCARETTI Dl RUFFIA e GABRIELLE CRESPI RECHIZZI, La costituione soviética dei 1977. Un sessantenio dl evoluione costityonale neli’ U.R.S.S., Milão, 1978; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Diritto Costituionale Comparado, cit., págs. 646 e segs.

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182Manual de Direito Constitucional

Daí que tanto se fale em constitucionalismo soviético — porque a revolução foi feita em nome de «todo o poder aos sovietes» (quer dizer, aos conselhos de operários, soldados, camponeses e marinheiros) — como em constitucionalismo marxista-leninista — por causa daquela ideologia e do partido que a assume como sua, o partido comunista.

II — Mais tarde, através de vicissitudes várias, outros países viriam a experimentar sistemas político-constitucionais idênticos aos semelhantes. Seriam a Mongólia Exterior desde 1922; no rescaldo da 2.’ guerra mundial, a Lituânia, a Letónia e a Estónia, a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria, a Roménia, a Bulgária, a Jugoslávia, a Albânia e a Alemanha Oriental, bem como a Coreia do Norte;

a China após 1949; o Vietname do Norte desde 1954, e todo o Vietname e também o Laos desde 1975; Cuba desde 1959-1961. E ainda, por certos períodos e com maior ou menor aproximação ao modelo soviético, Camboja, a Etiópia, o lémen do Sul, Angola e Moçambique ().

O refluxo dar-se-ia ao longo dos anos 80 — da Perestroika, iniciada em 1985, à queda do muro de Berlim, ocorrida em 1989. Incapazes de acompanhar os progressos económico e tecnológico dos países ocidentais, de renovar os seus aparelhos políticos e administrativos e de dar resposta ou de resistir às aspirações de liberdade política das suas populações, os regimes comunistas europeus (por vezes, ditos de «socialismo real») desmoronar-se-iam ora por transição pacífica, ora por revolução, ora por processos mais complexos (2).

() Cfr. FRANÇOIS FEIJTÕ, As Democracias Populares, trad. portuguesa, 2 vols., Lisboa, 1975; BOGAN SZASKOWSKI, The eslablishment of marxist regime, Londres,1982.

(2) Por transição na Hungria e na Polónia; por revolução na Alemanha Oriental, na Checoslováquia, na Roménia e na Albânia; por processos mais complexos na Bulgária, na U.R.S.S. e na Jugoslávia. Cfr. PATRICE GÉLARD, L’actuaiité conslitutionelle en URSS et en Europe de l’Est, in Revue française de droit constittionnel,1990, págs. 149 e segs.; Communist and Postcommunist Polilical Systems, obra coectiva, Londres, 1990; GIUSEPPE Dl PALMA, Lê transione democraliche in Europa Orientale: una perspettiva comparaa, in Rivista taliana dl Sciene Politiche, 1990,

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 183

Neste momento, o marxismo-leninista, com mais ou menos adaptações, apenas subsiste na China, na Coreia do Norte, no Vietname, no Laos e em Cuba — ou seja, em sociedades largamente agrárias com características diversas das europeias (algumas dos quais se têm reflectido no funcionamento das instituições).

Nem por isso deixa de se justificar ainda hoje o estudo da família constitucional de matriz soviética: pêlos elementos originais que comporta ou comportou, pela importância da Rússia e da China e pelo impacto mundial das suas revoluções e das suas imagens durante décadas.

59. As sucessivas Constituições soviéticas

I — Podem ser apontadas oito grandes fases na história política e constitucional soviética:

a) De 1917 a 1921, fase revolucionária de implantação do governo soviético e de guerra civil;

b) De 1921 a 1928, fase de reconstrução, traduzida por uma «nova política económica» (ao contrário do que poderia parecer, mais moderada que a do período anterior) e durante a qual se verifica a morte de Lenine (1924) e a sua sucessão por Estáline;

c) De 1928 a 1936, fase de consolidação, de industrialização e de colectivização;

d) De 1936 a 1953 (data do XX Congresso do Partido), estalinismo, reforçado pea segunda guerra mundia e depois pela «guerra fria»;

e) De 1953 ou 1956 a 1964, fase da «desestainização», correspondente às reformas do tempo de Kruschef;

f) De 1964 a 1985, fase de estabilização interna e de grande intervenção externa sob a direcção de Brejnev e dos seus sucessores;

g) Entre 1985 e 1989, fase dita da Perestroika (reestruturação) e de Glasnost (transparência), com Gorbachev;

h) De 1989 a 1991, desagregação.

II — O primeiro texto de vocação constitucional soviético foi a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 23 de Janeiro

págs. 203 e segs., e Totaliarismo, sociedade civil, transição, m Análise Social, n.” 110, 1991, págs. 59 e segs.; o número de Dezembro de 1992 de Quaderni Costituionale; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 773 e segs.

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de 1918, de alguma sorte réplica da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e contrapondo ao carácter individualista desta uma polémica afirmação dos princípios colectivistas.

Logo nesse ano, em 10 de Julho, seria publicada uma Constituição — pela primeira vez uma Constituição adquiria conteúdo não iberal — que ostentava duas características:

a) A limitação do sufrágio, reservado aos que prestassem trabalho produtivo e de que ficavam excluídos os que exporassem o trabalho dos outros, como certas categorias sociais (comerciantes, proprietários, etc.);

b) A organização piramidal dos poderes — do soviete local ia-se subindo, por eleições em graus sucessivos, até o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que, por sua vez, elegia a Junta Central Executiva dos Sovietes e esta o Conselho dos Comissários do Povo.

In — A Constituição de 1918 era ainda Constituição da Rússia, pois que só em 1922 ficaria constituída (e viria a desenvolver-se posteriormente) a União das Repúbicas Socialistas Soviéticas, pela agregação dos Estados da periferia que enquadravam os povos submetidos antes ao domínio russo.

A Constituição de 31 de Janeiro de 1924, que formalizou a União, procedeu, entre outras coisas, à separação, peculiar a um Estado federal, entre duas Câmaras; o Conselho da União e o Conselho das Nacionalidades (equivalente grosso modo ao Senado americano).

IV — Seguir-se-ia, num momento mais avançado, a Constituição de 5 de Dezembro de 1936, pretendendo-se um boletim de vitória do Estado e do Direito socialistas, que teria posto fim à exploração do homem pelo homem e resolvido os diversos problemas de transição ().

Aparentemente, ela representou, todavia, o afastamento de certas instituições do período revoucionário e a aproximação dos esquemas do Estado constitucional representativo. Foi, assim, que deixou de haver sufrágio limitado e por escalões sucessivos para passar a haver sufrágio universal, directo e igual dos cidadãos (já que não haveria mais burguesia exploradora).

V — A Constituição aprovada em 7 de Outubro de 1977, a quarta Constituição soviética, propôs-se expressamente ampliar e aprofundar «a democracia socialista», correspondente à concepção do Estado de «todo

(i) RENÉ DAVID, op. ci., pág. 181.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 185

o povo» (). Nela encontravam-se, nomeadamente a prescrição expressa do princípio da legalidade socialista e uma enumeração mais completa e precisa dos direitos dos cidadãos; um capítulo novo sobre desenvolvimento social e cultural; a consagração do princípio da coexistência pacífica no domínio da política externa; e o reforço da institucionalização do partido comunista (2).

Esta Constituição viria a sofrer, em 1989 e 1990, importantes modificações no respeitante à organização política, com vista a certa abertura à sociedade, à limitação recíproca dos órgãos de poder e a uma embrionária fiscalização da constitucionaidade das leis. Elas revelar-se-iam insuficientes ou contraproducentes e teriam limitadíssima vigência (3).

VI — Em 1991 a U.R.S.S. desapareceria, tendo as repúblicas federadas adquirido ou readquirido (no caso de países bálticos) a soberania internacional.

Nesse mesmo ano seria constituda uma «Comunidade de Estados Independentes», próxima de uma confederação (4).

60. A concepção do poder e o partido comunista

I — O constitucionalismo de matriz soviética tem como differentia specifica o domínio de todo o poder pela partido comunista, seja partido único exclusivo, seja partido único produtor de ideologia oficial numa pluralidade aparente de partidos (5). E esse domí-

() Sobre esta concepção, v. JEAN-GUY COLLIGNON, La Théorie de l’État du Peuple Tout Entier en Union Soviéique, Paris, 1967; HENRY CHAMBRE, Démocratie et pouvoir socialistes en U.R.S.S.: taches actuelles, in Méianges offerts à Georges Burdeau — Lê pouvoir, obra colectiva, Paris, 1977, págs. 575 e segs.

(2) Cfr. DMTRI-GEORCES LAVROFF e FRANIS CONTE, La Constitution soviétique du 7 Octobre 1977, in Revue du droit public, 1978, págs. 679 e segs.; PIERRE e MARIE LAVIGNE, Regars sur Ia Constitution soviêtique de 7977, Paris, 1979.

(3) Cfr. MÁRIO ANINO, L’evoluione costituwnale deli’U.R.S.S. dei Presidente Gorbaèev, in Quaderni Costituvonali, 1990, págs. 376 e segs.; e as crónicas de PATRICE GÉLARD na Revue française de droit costitulionnel.

(4) Cfr. IGOR KAPYRIN, Comunidade de Estados Independentes, in Polis, n.” 3, Abril-Junho de 1993, págs. 99 e segs.

(5) Como sempre sucedeu na Polónia ou na República Democrática Alem. Cfr. BISCARETTI Dl RUFFIA, // ruolo costituionale dei «partiu non comunisi» negli «Stati socialisti» europei, in // Potico, 1984, págs. 5 e segs.

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186Manual de Direito Consitucional

nio decorre, em linha recta, da concepção leninista, segundo a qual o partido, depois de ter permitido ao proletariado a conquista do poder, exerce este em seu nome ().

Vanguarda consciente da classe operária e instrumento da sua ditadura, o partido comunista apresenta-se essencialmente como um partido ideológico apto a enquadrar as massas. Daí que surja como:

a) Partido de escol ou animação (em que a entrada é limitada e confere tanto deveres como direitos);

b) Partido de estrutura centralizada ou de «centralismo democrático», com direcção, pela maioria, do topo para a base, discussão desde a base e não reconhecimento às minorias de liberdade pública de expressão (2);

c) Partido com grande desenvolvimento burocrático determinado pelo respectivo aparelho (3);

d) Partido com papel reconhecido pela Constituição (4), havendo ao lado dos órgãos constitucionais órgãos do Partido, nuns casos com acumulação na mesma pessoa de funções nos dois «aparelhos», noutros casos com separação;

e) Partido que domina também as «organizações sociais», exprimindo, ao mesmo tempo, o Estado e a sociedade civil (5) (6).

() A democracia socialista «é uma democracia dirigida, dirigida peo Partido e peo Estado no interesse do desenvolvimento do socialismo e da construção do comunismo. E o que os comunistas decaram francamente e sem rodeios» (Lês Prncipes du Marxisme-Léninisme, trad. francesa, Moscovo, edição em línguas estrangeiras, pág. 603, transcrito por HENRY CHAMBRE, op. cit., loc. cit., pág. 580).

(2) V., em português, textos de LENINE, ROSA LUXEMBURG e outros em Centralismo Democrático, Coimbra, 1971.

(3) Apesar da relativa variedade de composição e de direcção política nos diversos pases: cfr. PATRICE GÉLARD, Lê phénomène du paru unique dans lês États socialistes, m Ilinéraires — Études en 1’honneur de Léo Hamon. obra colectiva, Paris, 1982, págs. 279 e segs.

(4) V. MANUEL GARCIA ALVAREZ, Partido y Estado en Ias Constituciones Socialistas, in Teoria y Practica de los Partidos Polticos, obra colectiva editada por PEDRO DE VEGA, Madrid, 1977, págs. 331 e segs.

(5) GIORGIO LOMBARDI, op. cit., pág. 80.

(6) A sociedade civil aparece, assim, atomizada frente ao Estado e ao partido — tão atomizada, embora em termos diferentes, como a liberl citecentista. Cfr., por

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Parle I—O Esado e os sisteas constitucionais 187

A realidade do poder está no partido, e não nos órgãos de Estado, e o verdadeiro chefe político soviético é o Secretário-Geral do Partido Comunista, e não o Presidente do Soviete Supremo ou o Presidente do Conselho de Ministros (). Juridicamente os actos políticos provêm dos órgãos do Estado, mas politicamente as decisões ou as grandes decisões são sempre tomadas pêlos órgãos do Partido.

II — Por conseguinte, nos países com este regime as eleições para os órgãos constitucionais não se revestem de grande importância, pois têm um significado diferente do que possuem no Ocidente:

nelas não se firma a legitimidade dos governantes em concreto e delas não pode resultar a substituição de um programa por outro programa, de um partido por outro no poder.

Trata-se de eleições-ratificação (2), nas quais o povo quase por unanimidade (3), é chamado a confirmar a lista apresentada pelo partido comunista e pêlos cidadãos sem partido. Por outro lado, na lógica da recusa do princípio representativo, os mandatos dos eleitos são juridicamente revogáveis.

In — As concepções constitucionais do Estado marxista-leninista estavam resumidas, com muita nitidez, logo no primeiro capítulo da Constituição soviética (de 1977):

Art. l. «A U. R. S. S. é um Estado socialista de todo o povo que exprime a vontade e os interesses dos operários, dos camponeses e dos intelectuais, dos trabalhadores de todas as nações e etnias do país».

Art. 2. «Na U. R. S. S. todo o poder pertence ao povo. — O povo exerce o poder do Estado através dos Sovietes de Deputados do Povo, que constituem a base fundamental do sistema político da U. R. S. S. — Todos os outros órgãos do Estado estão sob o controlo dos Sovietes de Deputados do Povo e são perante ele responsáveis».

exemplo, EDGAR MORI, Da natureza da U.R.S.S. — Complexo otalitário e novo império, trad., Lisboa, 1983, págs. 104 e segs.

() Foi assim que Estáline até 1941 foi apenas Secretário-Geral do Partido, e nada mais, e o mesmo sucederia depois com todos os seus sucessores: todos conquistariam, primeiro, o poder no partido e só depois viriam a exercer cargos constitucionais no Estado.

(2) MAURICE DUVERGER, Institutions..., cit., i, pág. 389.

(3) O índice de participaço é sempre superior a 90%.

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188Manal de Direio Constitucional

Art. 3.” «A organização e a actividade do Estado Soviético obedecem ao princípio do centralismo democrático: eleição de todos os órgãos do poder do Estado da base ao topo, obrigação de prestarem contas ao povo e obrigatoriedade das decisões dos órgãos superiores para os órgãos inferiores. O centraismo democrático conjuga a direcção única com a iniciativa e a actividade criadora na base e com a responsabilidade de cada órgão e de cada funcionário do Estado pela tarefa de que foi incumbido».

Art. 6.” «A força dirigente orientadora da sociedade soviética, o núcleo do seu sistema político e de todas as organizações estaduais e sociais, é o Partido Comunista da União Soviética. O P. C. U. S. existe para o povo e serve o povo. Todas as organizações do partido actuam no âmbito da Constituição da U. R. S. S.».

Art. 8.” «Os colectivos de trabalhadores participam na discussão e na resolução dos assuntos do Estado e da sociedade, na planificação da produção e do desenvolvimento social, na preparação e na distribuição dos quadros, na discussão e na resolução das questões relativas à gestão das empresas e instituições, à melhoria das condições de trabalho e de vida e à utilização dos recursos destinados ao desenvolvimento da produção, bem como a medidas sociais e culturais e ao estímulo material...».

Art. 9.” «A orientação fundamental do desenvolvimento do sistema político da sociedade soviética é a contínua ampliação da democracia socialista: participação cada vez mais ampla dos cidadãos na gestão dos assuntos do Estado e da sociedade, aperfeiçoamento do aparelho de Estado, eevação do nível de actividade das organizações sociais, reforço do controlo popular, fortalecimento da base jurídica do Estado e da sociedade, ampliação da publicidade e consideração permanente pela opinião pública».

IV — A constituição revolucionária do domínio de um partido, tal como ocorreu na Rússia Soviética e noutros países, tem sido, diferentemente interpretada.

Haveria nela aí uma contradição paradoxal entre anarquismo em teoria e totalitarismo na prática. MARX e ENGEIS predisseram o desaparecimento da ordem coerciva como efeito automático do estabeecimento do socialismo. Desde que na Rússia Soviética esta previsão evidentemente se não verificou, Lenine e Estáline foram obrigados a modificar a doutrina original, adiando o desaparecimento do Estado para o momento em que o socialismo estivesse generalizado ao mundo inteiro. Uma vez que tal se não deve

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Parte I— O Estado e os sistemas constitucionais 189

esperar num futuro próximo, o carácter provisório da maquinaria coerciva mantida na União Soviética precisa tanto mais de ser vincadamente sublinhado ().

Mas, igualmente, foi sustentado que o Estado soviético não seria um Estado conforme às visões e às recomendações de MARX, e sim às de HEGEL (2).

61. O princípio da legalidade socialista e os direitos fundamentais

I — Segundo a doutrina marxista-leninista, cada regime económico tem a sua Constituição. A Constituição socialista, expressão do regime económico socialista, desempenha uma função simultaneamente de balanço do que está feito (no socialismo) e de programa do que falta fazer (a caminho do comunismo).

Transcrevendo um autor:

«A Constituição não se destina somente a ser a expressão da tomada do poder pelo povo trabalhador mas também a servir para a consolidação das instituições socioeconómicas e políticas fundamentais do novo regime e de orientação essencial do seu desenvolvimento. Ora, esta orientação consiste na edificação da sociedade socialista e depois comunista. Daqui resulta o dinamismo específico das Constituições dos Estados do povo trabalhador, correspondente ao dinamismo do regime socioeconómico e político criado pela revolução... Exprimindo e consolidando em normas jurídicas as instituições fundamentais do regime socioeconómico e político, a Constituição exerce, ao mesmo tempo, uma função ideológica importante. com efeito, é por meio dela que se manifestam os princípios que devem ser realizados pelo novo regime socioeconómico e político. A função social da Constituição ficaria, por isso, injustamente diminuída se ficasse confinada à regulamentação jurídica. A sua tarefa é muito mais vasta, porque ela deve também exprimir os

() KELSEN, A teoria política do bolchevismo, cit., in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. IX, 1953, págs. 112-113.

(2) K. STOYANOVITCH, Lê sort de l’État dans lês pays socialistes de nos jours, in Archives de Philosophie du Droit, t. 21, Paris, 1976, pág. 161.

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90Manual de Direito Constitcional

princípios ideológicos fundamentais que se realizam através das instituições do regime.

«As Constituições envolvem tanto o presente como o futuro» () (2).

II — A legalidade socialista é muito diferente do Estado de Direito, pois envolve:

a) A aceitação da hierarquia das normas jurídicas, não por causa do seu valor intrínseco e apenas por serem normas de Direito socialista;

b) A desvalorização, por conseguinte, das normas constitucionais em face de leis mais conformes com o estado actual da sociedade socialista (3);

c) A redução do papel do juiz e da interpretação em geral (4);

d) A recusa da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis;

e) O papel importante da Procuradoria-Geral (com funções mais amplas que as de um Ministério Público), promovendo a aplicação uniforme da lei e a fiscalização dos órgãos administrativos, por iniciativa própria ou a pedido dos cidadãos (art. 164.° da Constituição soviética);

f) A intervenção do Partido Comunista na interpretação e na aplicação do Direito (dado o carácter ideológico deste), através de directivas e resoluções dirigidas aos juizes;

() STEFAN ROZMARYN, La Constitution loi fondamentale de l’État socialiste, Paris-Turim, 1966, pags. 80-81.

(2) Cfr. MICHEL MOUSKHÉLY, La notion soviétique de Constitution, m Revue du droit public. 1955, págs. 84 e segs.; ZYMUNT IZDEBSKY, De qelques aspecs de l’interprétation dês lois, in Revue internationale de droit compare 1961, págs. 764 e segs.; B. N. TOPORNINE, La Constitution est Ia loi fundamentale lê l’Etat soviétique, in Journées de Ia Societé de Législation Compare, 1979, págs. 135 e segs.;

GOMES CANOTLHO, Direito Constitucional, 4.” ed., 1986, págs. 74 e 75, e 6.” ed., págs. 82 e segs.

(3) As normas constitucionais em vigor só devem influenciar a actividade actual do legislador na medida em que este tem de levar em conta os fins fixados para o futuro (STEFAN ROZMARYN, op. cit., pág. 101).

(4) Cfr. ROBERT LIEVENS, L’interprétation en droit socialiste, in Revue de droit international et de droit compare, 1961, págs. 172 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 191

g) A extensão do princípio da legalidade tanto aos órgãos do Estado como aos cidadãos em geral, a quem se exige uma colaboração activa na salvaguarda do Direito socialista ().

In — A concepção socialista dos direitos fundamentais não arranca da ideia de uma esfera individual independente e livre do Estado, mas da ideia de cidadão activo que tem o direito e o dever de participar na vida política e económica, social e cultural da sociedade socialista. Os direitos são simultaneamente deveres — os direitos do cidadão reconhecidos pela constituição socialista devem ser activamente exercidos a fim de se progredir na edificação da sociedade socialista. Na concepção socialista, o homem não se desdobra contraditoriamente em burguês (bourgeois) apolítico e cidadão político (citoyen), antes se eleva e realiza pura e simplesmente em cidadão (2).

Mas o corte antropológico que a teoria socialista operou em relação à teoria tradicional de direitos do homem conduziu às suas deficiências principais: l) funcionalização extrema de direitos fundamentais e minimiwção de uma irredutível dimensão subjectiva 2) tendencial redução dos direitos à existência de condições materiais, económicas e sociais, com manifesto desprezo das garantias jurídicas (3).

Na experiência concreta, presta-se um realce muito grande aos direitos económicos, sociais e culturais — direitos ao trabalho, ao repouso, à segurança social, à educação — em contraste com a situa-

() Cfr. ÉDOUARD ZELLWEGER, Lê prncipe de Ia tégalité socialiste, in Revue de ia Comission Internationele de Juristes, t. v, n.” 2, 1964, págs. 187 e segs.;

ANTA H. NASCHITZA, Orientations actuelles dans lês pays sociaiisles, m Revue internationale de droit compare, 1970, págs. 711 e segs.; UMBERTO CERRONI, op. cit., págs. 95 e segs.; GIORGIO LONBARDI, op. cit., págs. 83 e segs.; JORGE NOVAIS, op. cit., págs. 178 e segs.

(2) GOMES CANOTILHO, op. cit., 2.° ed., l, págs. 122-123.

(3) GOMES CANOTILHO, ibidem, 6.” ed., pág. 511. Cfr. também BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, op. cit., pág. 209: «Se o liberalismo capitalista pretendeu expurgar a subjectividade e a cidadania do seu potencial emancipatório — com o consequente excesso de regulação simbolizada nos países centrais nas democracias de massas — o marxismo, ao contrário, procurou construir a emancipação à custa da subjectividade e da cidadania e, com isso, arriscou-se a sufragar o despotismo, o que veio de facto a acontecer».

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192Manual de Direio Constitucional

cão precária das liberdades individuais. Por isso e invocando-se também as necessidades da construção do socialismo e da defesa contra os seus inimigos (), as liberdades públicas ficam suprimidas ou os cidadãos só as podem exercer em obediência à linha do Partido Comunista ou por meio de organizações deste dependentes, directa ou indirectamente, e tudo dentro de uma atmosfera de completo uso dos meios de comunicação social pelo Estado.

A inviolabilidade da pessoa, o direito de ninguém ser arbitrariamente detido ou preso, a inviolabilidade do domicílio e outras garantias individuais recebem consagração constitucional. No entanto, a experiência, sobretudo dos anos de Estáline (e também antes e depois de Estáline), foi, não raro, de desrespeito destas garantias e a segurança dos cidadãos nunca chegou a ser preservada pela legalidade socialista (2). E o que se dizia da ü. R. S. S. poderia dizer-se hoje da China ou de Cuba.

62. A unidade do poder, a forma e o sistema de governo

I — As Constituições e a doutrina jurídica marxista-leninista afirmam o princípio da unidade do poder do Estado — seguindo ROUSSEAU e em contraste com o dogma da separação dos poderes do constitucionalismo liberal.

() Na Constituição de 1977 estatuía-se (art. 50.”): «De acordo com os interesses do povo e a fim de fortalecer e desenvolver o regime socialista, são garantidas aos cidadãos da U. R. S. S. a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de realização de comícios, desfiles e manifestações de rua».

(2) Cfr. DIETRICH A. LOEBER, La Prokouratoura soviétique et lês droits de1’individu envers l’Etat, in Revue de Ia Commission Internationale de juristes, Outubro de 1957, vol. l, n.” l, págs. 61 e segs.; M. S. STROGOVITCH, La proection dês droits dês citoyens en U. R. S. S., m Revue internalionale de droit compare, 1964, págs. 297 e segs.; PATRICE GÉLARD, Lê citoyen et l’Éat en Union Soviétique, in Service Public et Libertes — Méanges offerts au Professeur Robert-Édouard Char lie. obra colectiva, Paris, 1981, págs. 727 e segs.; DAVID LANE, Hman Rights under Sate Socialism, m Politícal Sudies, 1984, págs. 349 e segs.; KATIJ MALFLIET, La légalité socialiste et 1’attention accordée à Ia personne dans lê Droit soviétique contemporain, in Lê Nouveau Droit Constitutionnel, obra colectiva, Bruxelas, 1987, págs. 187 e segs.

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Parte /—O Estado e os sistemas constitucionais 193

«Todo o poder aos sovietes» significa que todos os sovietes ou conselhos são titulares do poder do Estado e que, em cada escalão ou dimensão, todo o poder (sem prejuízo da diferenciação de funções) é exercido pelo respectivo soviete (). Ou, como se lia no art. 89.° da Constituição de 1977: os sovietes de deputados do povo constituem um sistema único de órgãos representativos do poder do Estado (2).

Isto não bastava para assimilar a forma de governo da U. R. S. S. à Convenção em França: na prática e, mesmo à luz da própria Constituição, os sovietes eram apenas uma forma; o conteúdo era o partido; o governo soviético era, pois, irredutível ao governo jacobino (3).

II — Na linha da Constituição anterior, a Constituição de 1977 declarou o Soviete Supremo o «órgão superior do poder de Estado da U. R. S. S.» (art. 108.°) e o Conselho de Ministros o «órgão executivo e administrativo superior do poder de Estado da U. R. S. S.» (art. 128.°).

Ao Soviete Supremo (formado por duas Câmaras, por exigência do federalismo) competiam, pois, em princípio, todas as decisões políticas da União. Exercia, porém, os seus poderes, salvo em escassos dias de reunião por ano, através do Praesidium, segundo uma delegação ou substituição permanente predeterminada pela Constituição. E o Praesidium era o verdadeiro órgão de direcção política suprema, quase uma espécie de Chefe de Estado colegia (arts. 119.° e segs.) (4).

() O que, por outra banda, se liga ao cenralismo democrático.

(2) Cfr. IGOR-MUALLOVICH STEPANOV, Lãs principales tendências en el desarollo dei sistema representativo soviético, in Perspectivas dei Derecho Publico en Ia segunda mitade dei siglo XX, obra colectiva, 111, Madrid, 1969, págs. 745 e segs.; PIERRE LAVIGNE, Lunité du pouvoir d’État dans Ia doctrine constitutionnaliste soviétique contemporaine, in Melanges offerts à Georges Burdeau, págs. 599 e segs.

(3) Cfr. ACHILLE MESTRE e PHILIPPE GUTTNCER, Constitutionnalisme jacobin et constitutionnalisme soviéique Paris, 1971; ANTÓNIO TORRES DEL MOREL, Modelo y autimodelo em Ia teoria poltica de Rousseau, m Revista de Estudos Políticos, n.” 212, Março-Abril de 1976, págs. 158 e segs. (fala em rousseaunismo meramente formal).

(4) Cfr. MICHEL LESAGE, Lê Praesidium du Soviet Suprême de 1’U.R.S.S., in Revue du droit public, 1968, págs. 605 e segs.; MAURICE DUVERGER, Institutions..., cit., l, págs. 396-397 e 413-414. Como referia este autor, no Praesidium encontrava-se

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13 — Man. Dir. Const.,

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194Manual de Direito Constitucional

Por isso, melhor do que qualificar o sistema de governo de convencional seria qualificá-lo de directorial () (conquanto sui generis, bem diferente do sistema directorial de 1795 ou do suíço).

63. A família constitucional de matriz soviética

A família de Direito constitucional de matriz soviética — hoje bastante mais reduzida do que até há alguns anos — é a mais homogénea de todas as quatro grandes famílias constitucionais (2).

Em alguns casos, pretendeu-se levar ainda mais fundo ou mais depressa a realização do marxismo-leninismo: assim, a República Democrática Alemã com a acentuação da ideia de desenvolvimento e de revolução científica e cultural (v. g., arts. 49.°, n.° l, e 124.°, n.° 3, do texto constitucional de 1974) e dos laços especiais com a U. R. S. S. dentro da «comunidade de Estados socialistas» (arts. 6.°, n.0 2 e 3, 7.°, n.° 2, e 76.°, n.° 3). Noutros casos, existia ou existem particularidades institucionais com interesse: assim, a Jugoslávia e a China.

Na Jugoslávia afirmavam-se, antes de mais, o desejo de limitar o papel da Liga dos Comunistas à «influência ideológica e política» sobre o sentido da evolução da sociedade, deixando aos «órgãos de autogestão» o poder de decisão. E isto traduzia-se numa mais larga participação dos cidadãos e dos militantes, sem que, todavia, deixassem de ser os órgãos dirigentes da Liga a adoptar as orientações fundamentais (3). Esta experiência formalizou-se nas Constituições de 1953, 1963 e 1974.

Na Constituição de 1974, o direito à autogestão era definido (no preâmbuo) como o direito «em função do qua cada trabalhador decide, em igual-

patente o fenómeno de delegação que caracterizava as instituições soviéticas desde o começo e, simultaneamente, verificava-se a tendência para a ascensão do Poder até ao vértice da pirâmide.

() Assim, GIORGIO LOMBARDI, op. cit., pág. 88. Corrigimos, pois, o que escrevemos nas três primeiras edições deste Manual (na 3. ed., pág. 182).

(2) Sobre a unidade e a diversidade das instituições constitucionais do Leste europeu, v. ROBERT CHARVIN, Lês élats sociatistes européens Paris, 1975.

(3) MICHEL LESAGE, Lês regimes..., cit., pág. 170.

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Parte l—O Estado e os sisemas constitucionais 195

dade de direitos com os outros trabalhadores do seu trabalho, das condições e dos resultados do trabalho, dos seus interesses próprios, do interesse colectivo e da orientação do desenvolvimento social e exerce o poder e a gestão dos outros negócios sociais» ().

A República Popular da China teve já quatro Constituições: a de 1954, a de 1975, a de 1978 e a de 1982. Esta última, feita após a morte de Mão Zedong num momento de relativa estabilização, tem essencialmente em vista a «modernização socialista do país» (2).

Os princípios fundamentais da Constituição de 1982 são: l.”) o socialismo; 2.”) a ditadura democrático-popular; 3.”) o marxismo-leninismo e o pensamento de Mão Zedong; 4.”) a direcção do Partido Comunista Chinês.

Entre as tarefas propostas ao Estado contam-se o desenvolvimento das actividades educativas, científicas e culturais; a salvaguarda da unidade e da autoridade da legalidade socialista; o reforço das assembleias populares de base; e o reforço da eficácia do Conselho de Estado.

Mantêm-se as comunas populares no âmbito da propriedade colectiva socialista das massas trabalhadoras, mas admite-se, ao mesmo tempo, que a economia individual de trabalhadores da cidade e do campo é um complemento do sector público da economia socialista e alude-se ao papel regulador suplementar do mercado.

Além da Assembleia Popular Nacional, do seu Comité Permanente e do Conselho de Estado (correspondentes, respectivamente, ao Soviete Supremo, ao «Praesidium» e ao Conseho de Ministros na U. R. S. S.), existem o Presidente da República e uma Comissão Militar Central.

() V. K. STAYANOVITCH, Lê regime socíaíiste yougoslave, Paris, 1961; JUAN FERRANDO BADIA, Los principis socio-economicos y socio-politicos dei regime poltico yugoslavo, m Revista de Estúdios Polticos, n.” 163, Janeiro-Fevereiro de 1969, págs. 31 e segs.; JOVAN DJORDJEVIC, La constitutionnalité dans lê socialism et Ia pratique constitutionnelle yougoslave, m Itinéraires — Eudes en 1’honneur de Léo Hamon, págs. 185 e segs.

(2) V. BISCARETTI Dl RUFFIA, La Republica Popolare Cinese, Milão, 1977;

MANUEL B. GARCIA ALVAREZ, Lãs formas dei Estado socialista. II — Lãs diferencias chinosoviéticas en los extos constitucionales, in Revista de Estúdios Polticos, Novembro-Dezembro de 1978, págs. 46 e segs.; TSIEN TCHE-HAO, Lês institutions chinoises et Ia Constiution de 1978, Paris, 1979; JUAN LUCHAI, La nueva Constiucion dei regimen comunista chino, in Revista de Estúdios Polticos, n.” 39, Maio-Junho de 1984, págs. 183 e segs.

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196Manual de Direito Constitucional

A China abrange outras nações e nacionalidades além da chinesa, as quais obtêm o reconhecimento da igualdade de direitos e a formação de regiões ou zonas de autonomia nacional.

CAPITULO In

SISTEMAS CONSTITUCIONAIS NO INTEGRADOS EM FAMÍLIAS

§ 1.°

O sistema constitucional suíço

64. Formação histórica e características fundamentais

I — A história constitucional suíça divide-se em quatro grandes períodos:

.°) A Confederação (até à Revolução francesa), com cantões de governo aristocrático eoutros de governo democrático;

2.°) A República Helvética e o Acto de Mediação de Napoleão);

3.°) A Confederação, de novo (de 1815 a 1848);

4.°) A Federação (desde 1848 e reforçada em 1874, de harmonia com as Constituições desses anos).

II — Como características singularizadoras do sistema constitucional suíço () apontem-se:

a) O federalismo cantonal, em que cada Estado federado parece ter mais que ver com as Cidades-Estados da Grécia antiga do que com os Estados modernos (2);

() Cfr., entre tantos, W. E. RAPPARD, La Constitution Fédérale Suisse, Neuchâte, 1948; OSCAR LEINGBRUBER, La Constitution de Ia Confédération Suisse de 1848 à 1948, in Revue internationale de droit compare, 1949, págs. 9 e segs.; JEAN FRANçois AUBERT, Traité de Droit Constitutionnel Suisse, 3 vols., Neuchâtel, 1967-1982;

ANTOINE FAVRE, Droit Constitutionnel Suisse, 2. ed., Friburgo, 1970; JEAN ROHR, La démocratie en Suisse, Paris, 1987; o n.” 43, de 1987, de Pouvoirs; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 628 e segs.

(2) Notem-se a semelhança e a diferença em face dos Estados Unidos: semelhança quanto à organização do Estado federal; diferença quanto à extensão dos Estados federados.

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Parte l— O Estado e os sistemas constitucionais 197

b) Em conexão com a estrutura municipal dos Estados, a prática secular de democracia directa em cinco dos menores cantões, através de assembleias populares (Landesgemeinden);

c) A consagração e a frequência da iniciativa popular e do referendo, sendo o referendo obrigatório para a revisão constitucional e facultativo para as leis ordinárias (salvo em alguns cantões, onde é obrigatório);

d) O sistema de governo federal como sistema directorial;

e) A relativa timidez da fiscalização da constitucionalidade, a cargo do Tribunal Federal, pois a ela só estão sujeitas leis cantonais (o que, porém, acentua tendências centralizadoras) ();

f) Uma certa plasticidade da Constituição (embora também adaptabilidade), devido à frequência das alterações que sofre.

65. O sistema de governo directorial

I — Os órgãos políticos federais são a Assembleia Federal e o Conselho Federal.

A Assembleia Federal é um parlamento bicameral típico do federalismo: compõe-se do Conselho Nacional (l membro por 22 000 habitantes) e do Conselho dos Estados (2 membros por cada cantão e l por cada semicantão).

Os poderes de ambas as Câmaras são iguais e elas devem ainda reunir-se em sessão conjunta para a prática de certos actos.

Quanto ao Conselho Federal, é o órgão executivo da Federação e é integrado por 7 membros, eleitos por 4 anos para Assembleia, mas que não dependem da confiança desta para se conservarem em funções.

Todos os anos a Assembleia Federal elege um dos membros do Conselho como Presidente da Confederação, se bem que não se trate de Chefe de Estado, pois não tem competência própria.

() Cfr. FRANCO PIERANDREI, Lê garanye costituvonali nelia Confederawne eivetica, in Studi in onore di Emlio Crosa, li, obra colectiva, págs. 1417 e segs.; PmLPPE MAYSTADT, Lê controle de constitutionnalité en Suisse, in Actualié du Controle Juridictionnel dês Lois, obra colectiva, Bruxelas, 1973, págs. 161 e segs.

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198Manual de Direito Contitucional

II — O art. 71.° da Constituição de 1874 considera a Assembleia Federal o órgão supremo da Confederação, pelo que seria tentador, à primeira vista, procurar uma aproximação com o regime convencional. A realidade é, todavia, diferente. O poder na Suíça está distribuído entre a Assembleia e o Conselho Federal e este, embora eleito por aquela, exerce, com autonomia e estabilidade, a direcção política do Estado. O Conselho Federal está na Suíça um pouco como o Presidente nos Estados Unidos.

O sistema deve ser qualificado, sim, de directorial (na linha da Constituição francesa de 1795). Caracterizam-no, acima de tudo:

1.°) a colegialidade do Conselho Federal; 2.°) a inexistência de responsabilidade política do Conselho perante a Assembleia, sem embargo de esta lhe poder dirigir interpelações e moções; 3.°) a impossibilidade de dissolução da Assembleia pelo Conselho e, ao contrário dos Estados Unidos, a inexistência de poder de veto ().

A prática tem revelado uma grande maleabilidade do funcionamento das instituições, propiciada também por um multipartidarismo sem tensões ideo lógicas agudas e pela frequência das votações populares.

A Suíça é o único exemplo actual deste sistema do governo, pois o Uruguai voltou ao presidencialismo depois de duas efémeras experiências, neste século, de Executivo colegial (o Conselho Nacional de Governo com9 membros eleitos por sufrágio directo, 6 representando a maioria e 3 a minoria).

§ 2.°

Os sistemas constitucionais alemão e austríaco

66. A monarquia constitucional alemã

I — O século xix é o século do constitucionalismo monárquico em toda a Europa (com as conhecidas excepções da Rússia e da Turquia que permanecem monarquias absolutas).

() Cfr. PAUL BASTID, Gouvernement d’Assemblée, Paris, 1956, págs. 215 e segs.; LICIA CALIFANO-PLACCI e FRANCESCA RESCIGNO, Forme di governo direttoriale e sistemi elettorali neli’ordinamento costituzionale delia Confederazione Svizzera, in Forme di governo e sistemi elettorali, obra colectiva editada por SILVIO GAMBINO, Pádua, 995, págs. 299 e segs.

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Parle I—O Estado e os sistemas constitucionais 199

No entanto, o constitucionalismo assume um significado bastante diferente nos países da Europa ocidental, para os quais irradiaram com êxito as ideias da Revolução francesa, e nos países da Europa central (Estado alemães e Áustria), onde conseguem quase todos os governos resistir duradouramente às doutrinas liberais e democráticas, apesar dos embates revolucionários de 1848 ().

Encontra-se, por um lado, a monarquia constitucional de tipo francês em que o princípio democrático prevalece sobre o princípio monárquico (embora com atenuações no regime orleanista). O Rei manda apenas por virtude da Constituição e esta é obra de um poder constituinte que pertence à Nação, ao Povo. O Rei está, sob este aspecto, em plano idêntico ao do Parlamento e a sua função primária é a de chefe do poder executivo.

Encontra-se, por outro lado, a monarquia constitucional de tipo austro-alemão, monarquia limitada ou monarquia constitucional propriamente dita, em que o princípio monárquico se sobrepõe ao princípio democrático e intervém ainda de forma constante e efectiva no governo. A Constituição possui agora um conteúdo menos intenso e é outorgada pelo Monarca que, assim, aceita limitar os seus poderes. E, ao passo que o Monarca conserva íntegra a sua autoridade em tudo quanto não disponha a Constituição, o Parlamento tem a sua área de acção estritamente demarcada. O verdadeiro titular do poder soberano continua a ser o Rei, não se toma o povo (2).

II — A monarquia constitucional propriamente dita vem, pois, a ser aquela em que a autoridade do Rei, embora subdividida e redu-

() Cfr., por exemplo, MARTIN KRIELE, op. cit., págs. 403 e segs.; ou CHRISTIAN STARCK, La Révolution française et lê Droit public en Allemague, in Revue internationale de droit compare, 1990, págs. 251 e segs.

(2) Cfr. JOSEPH BARTHÉLEMY, Lês théories royalistes dans Ia doctrine allemande contemporaine, in Revue du droit public, 1905, págs. 717 e segs.; SCHMITT, Teoria..., cit., págs. 382 e segs.; DIETRICH JESCH, Ley y Administrador, trad., Madrid,1978, págs. 93 e segs.; e, especialmente, FERDINAND LASSALLE, Über die Verfassung, trad. castelhana Que es una Constitución?, Barcelona, 1976, págs. 128 e segs. (nesta conferência proferida em 1862, demonstra LASSALLE o pseudoconstitucionalismo da Alemanha deste tempo).

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200Manal de Direito Constitucional

zida por efeito da existência de diversos órgãos, se espraia por toda a vida do Estado. Daqui resulta que tudo quanto não seja atribuído aos outros órgãos cabe ao Rei e, em caso de dúvida ou conflito, presume-se a sua competência. Todos os outros órgãos devem ser, senão necessariamente subordinados ao Monarca, pelo menos, dele dependentes no sentido de que a sua vontade, o seu ininterrupto funcionamento ou ainda o conferir de força jurídica às suas decisões dependem da vontade do Monarca ().

Ao mesmo tempo, no tocante aos direitos e liberdades, domina uma concepção igualmente limitativa no confronto da que então vai prevalecendo na Europa ocidental. Tais direitos são confinados a direitos ou interesses reflexos, a mero reflexo do poder público (verdadeiros direitos só os tem o Estado). E, na prática, mantém-se um conjunto de restrições e autorizações, bem próximas das que tinham caracterizado o Estado de Polícia (2).

Apesar desta situação, não foi de pouco relevo o labor teórico dos grandes juspublicistas alemães do século xix (VON MOHL já atrás mencionado e, entre tantos, GERBER, LABAND, BLUNTSCHLI, JELLINEK), aos quais se deve a elaboração de importantíssimos conceitos, que mais tarde frutificariam no Direito positivo (3).

In — E na base de instituições entendidas desta maneira que vão reger-se os Estados alemães, em três surtos subsequentes, respectivamente, a 1818, 1830 e 1848 (4), e que se vem a organizar o Império Alemão pela Constituição de 1871 (vigente até 1918) (5).

() Nosso Contributo.... pág. 49, e autores aí citados.

(2) A Assembleia Nacional, reunida em Frankfurt, votou em 1848 uma Declaração dos Direitos Fundamentais do Povo Alemão, de sentido liberal. Mas, logo em 1851, sob influência da Áustria e da Prússia, ela seria revogada.

(3) Cfr. MAURIZIO PIORAVANTI, Giurísti e Costituione Poltica neli’Ottocento Tedesco, Milão, 1979; ou a colectânea atrás citada Liberalismo alemão en el sigl xix — 1815-1848, trad, Madrid, 1987.

(4) As primeiras Constituições foram as da Baviera e de Badem de 1818.

(5) Sobre a Constituição de 1871, v. MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 283-284;

FULCO LANCHESTER, La forma di governo Weimariana revisitata, m Scritti m onore di Egidio Tosato, obra colectiva, i, Milão, 1984, págs. 503 e segs.

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Parte í—O Estado e os sistemas constitucionais 201

Elemento assinalável nesta Constituição é o enaltecimento do Chefe do Goveo, dito Chanceler, único Ministro com funções políticas: daí o chamado sistema de goveo de chanceler ou de dualismo de poder executivo com concentração de poderes.

67. A Constituição de Weimar

I — com a derrota na l. guerra mundial, desapareceram os chamados Impérios Centrais e proclamaram-se sistemas republicanos em sua substituição. De seguida e vencidas as perturbações do momento, prepararam-se novos textos constitucionais.

A Constituição do Reich alemão, aprovada em 11 de Agosto de 1919 na cidade de Weimar, pode considerar-se o mais importante texto nessa altura concebido e espelha bem toda a mudança no modo de encarar os problemas políticos, sociais e económicos do século xix para o século xx. O seu interesse é múltiplo, quer no plano sistemático quer no da experimentação constitucional; e, por isso, ficaria registada na história e no direito comparado ().

II — No tocante à organização política, a Constituição faz uma tentativa de conciliação da tradição e, porventura, da necessidade de haver um Chefe de Estado forte com a aspiração, e também a necessidade, de a Alemanha se dotar de um Parlamento plenamente soberano (daí um esquema em si não distinto dos actuais sistemas semipresidenciais); e mitiga o princípio representativo através de formas de democracia directa ou semidirecta.

Prescreve, assim, uma regra de dupla responsabilidade política do Governo (arts. 52.° e 54.°) e prevê o recurso ao povo, por eleições e referendos, para decidir eventuais conflitos.

() Sobre a Constituição de Weimar, v. além da mais de uma vez citada Teoria. .. de C. SCHMITT, RENÉ BRUNET, La Consütution allemande du i l aoü 1919, Paris,1921; MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 286 e segs.; ERNST FRÀNKEL, op. cit., págs. 83 e segs.; COSTANTINO MORTATI, Scritti, iv, Milão, 1972, págs. 293 e segs.; FULCO LANCHESTER, La forma di governo..., cit., loc. cit., págs. 525 e segs.; ARMEL LÊ DIVELLE, Parlementarisme dualiste: entre Weimar et Bayeux, in Revue française de droit conslitutionel, 1994, págs. 749 e segs.

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202Manual de Direito Constitucional

O Presidente, eleito por sufrágio universal (art. 41.°), por sete anos e podendo ser reeleito (art. 43.°), nomeia e demite o Chanceler e, sob proposta deste, os Ministros (art. 53.°); dissolve o Parlamento, embora uma só vez pelo mesmo motivo (art. 25.°); promulga as leis votadas em conformidade com a Constituição (art. 70.°) e pode submetê-las a referendo (art. 73.°); em caso de emergência, compete-lhe decretar as medidas necessárias ao restabelecimento da lei e da segurança, podendo, inclusive, para esse fim, suspender alguns dos direitos fundamentais (art. 48.°). Em contrapartida, pode o Presidente ser destituído por voto popular, precedendo deliberação da Assembleia por maioria de dois terços (art. 43.°).

Dadas as circunstâncias, com o nacionalismo exacerbado pela guerra e pelo tratado de Versalhes e com os gravíssimos problemas económicos e sociais da época (), tanto a nível alemão como a nível mundial (crise de 1929), o sistema não funcionaria correctamente. O Reichstag depressa ficaria desacreditado e verificar-se-ia grande instabilidade ministerial; por outro lado, a prática dos «governos do Presidente», incapazes de resolver os problemas, viria a ser a porta aberta para o acesso de Hitier e do nacional-socialismo ao poder.

In — Mas a Constituição de Weimar é sobretudo a primeira das grandes Constituições europeias a interessar-se profundamente pela questão social, em contraste com a aparente neutralidade das Constituições liberais do século passado.

Essa relevância constitucional dos problemas sociais traduz-se primacialmente em: l.°) a regulamentação de domínios até então esquecidos, como o casamento (art. 119.°), a juventude (art. 120.°), a educação (arts. 142.° e segs.) ou a vida económica (arts. 151.° e segs.);

2.°) a atribuição aos cidadãos de direitos sociais; 3.°) as limitações impostas ao princípio da liberdade contratual (art. 152.°) e à propriedade privada (art. 153.°), em virtude da função social que desempenham.

(i) Cfr., por exemplo, a obra colectiva editada por Lúcio VILLARI, Weimar. Lotte sociali e sistema democrático nelia Germania degli anni 20, Bolonha, 1977.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 203

68. A Constituição de Bona

I — Não bastam as fórmulas constitucionais, por melhores que sejam, para prevenir ou resolver os problemas políticos — e isto deve ser, para os juristas, suficiente convite à humildade.

Como a corrupção da Constituição de Weimar foi, a justo título, considerada uma das causas da conquista do poder pêlos nacionais-socialistas, no segundo após-guerra haveria de ser mais forte a consciência das limitações dos sistemas jurídico-formais, assim como se haveria de procurar colher as lições da provação por que a Alemanha tinha acabado de passar.

Tais lições da experiência, ligadas aos imperativos do regresso da Alemanha à convivência pacífica europeia, projectam-se com vigor na Lei Fundamental de 23 de Maio de 1949 ou Constituição de Bona, feita com carácter provisório para a Alemanha Ocidental ().

II — A adopção do sistema parlamentar é uma das novidades da Constituição.

O Governo, composto pelo Chanceler e por Ministros da sua escolha, passa a ser responsável perante a Assembleia Federal. É a esta que, sob proposta do Presidente da República, compete eleger o Chanceler (art. 63.°); e, se lhe manifestar desconfiança, ele terá de ser substituído (art. 67.°). No entanto, a censura ao Chanceler deverá ser acompanhada da indicação do seu sucessor (mesmo artigo).

O funcionamento prático do sistema é, sob vários aspectos, parecido com o do sistema inglês (2) e tem sido acompanhado de grande

() Cfr., por exemplo, EKKEHART STEIN, Derecho Políico, trad., Madrid, 1973;

KLAUS STERN, Derecho dei Esado de Ia Republica Federal Alemana, trad., Madrid,1987; HANS PETER SCHNEIDER, Democracia y Costitucion, trad., Madrid, 1991; ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES, Os sistemas político-constitucionais francês e alemão, cit., págs. 93 e segs.; CHRISTIAN STARCK, La Costitution, cadre et mesure du droit, Aix-en-Provence, 1994, págs. 51 e segs.; LUCA MEZZETTI, La forme di governo tedesca, in Forme di governe e sistemi elettorali, obra colectiva, págs. 131 e segs. Para uma comparação com Weimar, v. CHARLES EISENMANN, Bonn et Weimar: deux Constitutions de 1’Allemagne, Paris, 1950; ou C. MORTATI, Scritti..., cit., págs. 377 e segs.

(2) Cfr., porém, LOEWENSTEIN, op. cit., págs. 113 e segs. (que, quanto à Alemanha, fala em parlamentarismo controlado).

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204Manual de Direito Consitucional

estabilidade governamental (também facilitada por uma relativa tendência bipartidária).

Refira-se ainda, mas sem consagração na Constituição, o sistema eleitoral adoptado, de representação proporcional personalizada (dito por vezes, mas incorrectamente, sistema misto de representação proporcional e de representação maioritária em círculos uninominais).

In — A Constituição de Bona, como era de esperar depois do nacional-socialismo e daguerra, faz uma clara profissão de fé na dignidade da pessoa humana e admite, implícita ou explicitamente, que o Direito natural limita o poder do Estado.

Proclama, pois, entre outros, os seguintes princípios:

a) Os direitos do homem, invioláveis e inalienáveis, como fundamento da ordem social (art. 1.°, n.° 2);

b) A vinculação dos Poderes legislativo, executivo e judicial pêlos direitos fundamentais enunciados na Constituição (art. 1.°, n.°3);

c) A necessidade de qualquer restrição de direito fundamental se efectuar por lei geral que não afecte o seu conteúdo essencial (art. 19.°, n.0 l e 2);

d) A possibilidade de tutela jurisdicional em caso de ofensa de qualquer dos direitos fundamentais (art. 19.°, n.° 4).

Em conexão com este empenho de tutela e reforço dos direitos fundamentais e do Estado de Direito () e, em geral, de preservação da ordem constitucional de valores, foi instituído um Tribunal Cons-

() Cfr., por exemplo, HANS-PETER SCHNEIDER, Peciiaridad y función de os derechos fundamentales en el Estado Constitucional Democrático, m Revista de Estúdios Polticos, Janeiro-Fevereiro de 1979, págs. 7 e segs.; MIGUEL FROMONT, Republique Fédérale d’Allemagne, L’État de Droit, in Revue du droit pblic, 1984, págs. 1203 e segs.; ERNST-WOLFGANC BÕCKENFÓRDE, Escritos sobre Derechos Fundamentales, trad. castelhana, Baden-Baden, 1993; DIETER GRIMM, Human Rights and Judicial Review in Germany, in Human Rights and Judicial Review, obra colectiva, págs. 267 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 205

titucional (arts. 93.° e 94.°), cujo esforço construtivo tem sido relevantíssimo ().

IV — A Constituição de Bona tem tido alguma difusão no exterior. Acusam a sua influência, designadamente, a Constituição cipriota de 1960 (quanto ao Tribunal Constitucional), a portuguesa de 1976 (pelo menos, quanto ao regime dos direitos, liberdades e garantias) e, como dissemos, a espanhola de 1978 (também quanto às relações entre Governo e Parlamento, designadamente quanto à moção de censura construtiva) (2).

V — Após a queda do muro de Berlim desenrolou-se um surpreendemente rápido processo de unificação da Alemanha (em menos de um ano), mediante tratados entre os dois Estados alemães — a República Federal (Alemanha Ocidental) e a República Democrática (Alemanha Oriental) — e entre eles e as quatro potências ex-ocupantes — os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha e a União Soviética.

Não se constituiu um novo Estado. Deu-se, sim, a extensão da República Federal aos cinco Lãnder correspondentes à República Democrática, nos termos do art. 23.° da sua Constituição (e não do art. 146.°, que implicaria uma assembleia constituinte).

A Constituição de Bona, porque provisória, deveria cessar com a unificação. Mas foi modificada — inclusive no preâmbulo — de modo a subsistir como definitiva. E, por isso, houve então o exercício de um poder constituinte (originário): no tocante à Alemanha Ocidental, porque a Constituição aí adquiriu um novo sentido de vigência; e, no tocante à antiga Alemanha Oriental, porque veio substituir o sistema constitucional do regime marxista-leninista. Embora

() Cfr., por exemplo Oo BACHOF, Jueces y Costitución, trad., Madrid,1963; ou DONALD P. KOMMERS, The Costitucional Jurisprudence o f he Federal Republic ofGermany, Durham-Londres, 1989.

(2) Sobre a influência da Constituição de Bona em Espanha, v. PEDRO CRUZ VILLALON, La recepción de Ia Ley Fundamental de Ia R. F. A., m Annario de Derecho Constitucional y Parlamentari (Múrcia), 1989, págs. 65 e segs.

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206Manual de Direito Constitcional

sob a forma de revisão, verdadeiramente acabou por se verificar transição constitucional ().

69. Características comuns às três Constituições alemãs

Todas as três Constituições alemãs mencionadas estabelecem um Estado federal. Para além das diferenças que não cabe examinar, há um ponto de semelhança: não se trata de um federalismo perfeito de tipo americano ou suíço, mas de um federalismo imperfeito, de que uma das manifestações é a representação inigualitária dos Estados (dos Lãnder) no Parlamento federal; essa desigualdade era sobretudo acentuada antes do desaparecimento da Prússia, Estado dominante da Federação (tal como a Rússia na União Soviética).

Em segundo lugar, o Direito constitucional alemão, da monarquia à república de Bona, passando pela república de Weimar, prevê um Executivo bicéfalo, com Chefe do Estado e Chefe de Governo ou Chanceler. E o Chanceler, como detentor efectivo da autoridade governamental, tem poderes substanciais, embora variáveis: não são os mesmos hoje (2) e no tempo de Bismark.

Estas características comuns às três Constituições bem como a origem histórica, a elaboração doutrinária levada a cabo pêlos juristas e as relações entre Direito constitucional e Direito administrativo em termos diversos das que ocorrem em França permitem autonomizar com nitidez o sistema constitucional alemão relativamente a outros sistemas da Europa continental.

() Cfr. MARIA LÚCIA AMARAL, A Alemanha reunificada e a Lei Fndamental de Bona, m O Direito, 1991, págs. 623 e segs.; o n.” 8, de 991, da Revue française de droit constitutionnel; JÕRG LUTHER, Dália Repubblica federale tedesca alia Repubblica federale di Germania, in Quaderni Constituionale, 1991, págs. 139 e segs.; GERHARD RIEGE, Mutamento dei sistema e Costituione: traformazione sociale nel território delia DDR e ruolo delia Costituzione, in Giurisprudena Costituüonale, 1992, págs. 255 e segs.

(2) Cfr. JEAN AMPHOUX, Lê Chancelier Federal dans lê Regime Constitutiomel de Ia Republique Federale d’Allemagne, Paris, 1962; RENATE MAYNTZ, Executiv Leadership in Germany: dispersion ofpower or «Kanzierdemokratie»?, in Presidents and Prime Ministers, págs. 139 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 207

70. O Direito constitucional austríaco

I — O Direito constitucional austríaco tem participado de muitas das vicissitudes e de muitas das características do Direito constitucional alemão.

De 1867 a 1918 a Áustria e a Hungria formaram uma união real, no interior da qual a Áustria compreendia regiões com autonomia particular. Caído o Império, reduzida a Áustria ao território de língua alemã, ela viveu em crise permanente, passando pela república corporativa de Dolfuss até à anexação por Hitier em 1938 (Anschiuss). De 1945 a 1955 o país sofreu ainda a ocupação das quatro potências vencedoras da guerra, e neste último ano foi declarada a neutralização.

com a proclamação da república, foi aprovada a Constituição de 1920, em cuja preparação interveio HANS KELSEN. Revista em 1929, seria reposta em vigor em 1945 ().

II — A Constituição institui um Estado federal, se bem que os 9 Lãnder talvez não sejam mais do que regiões autónomas (2).

Estabelece também um sistema de governo que poderia ser semipresidencial, por o Presidente da República ser eleito por sufrágio directo, nomear o Governo e poder dissolver o Parlamento; mas na prática o sistema tem funcionado como parlamentar, dada a apresentação de candidaturas à presidência pêlos partidos, o bipartidarismo e o ter sempre (ou quase sempre) o Chanceler a maioria nas Câmaras (3).

() Sobre a Constituição austríaca, v. FELIX ERMACORA, La Constitution Autrichienne, m Corpus Constitutionnel, t. l, fase. 2, Leida, 1970, págs. 431 e segs.;

KURT HELLER, Outiine of Austrian Constiutional Law, Deventer, 1989; SYLVIE PEYROU-PISTOULEY, La Cour Constitutionnelle et lê controle de Ia constitutionnalité dês lois en Autriche, Paris, 1993.

(2) Cfr. CLAUDE SOPHIE DOUIN, Lê federalism autrichien Paris, 1977; ou HEINZ SCHÀFFER, // federalismo austraco: stato e prospettive, in Quaderni costituionali, 1996, págs. 173 e segs.

(3) V. FRIEDRICH KOJA, Lê statut juridique et politique du Président Federal Autrichien, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1984, págs. 227 e segs.

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208Manual de Direito Constituciona

In — A grande contribuição original da Áustria para o Direito constitucional é, contudo, a criação em 1920 do Tribunal Constitucional, como tribunal supremo de competência concentrada e especializada no domínio da inconstitucionalidade (); e, por isso, onde existe esse tribunal fala-se em modelo austríaco de fiscalização da constitucionalidade.

§3.°

Os sistemas constitucionais dos regimes fascistas e fascizantes

71. Os fascismos e o seu quadro institucional

I — Apesar da sua viva contestação do Estado constitucional (dito de «democracia burguesa», mesmo na fase social do século xx, em contraposição à «democracia socialista»), o Estado soviético em concreto surge, não em ruptura com este (em nenhum país de democracia representativa ou pluralista houve revolução comunista triunfante), mas em ruptura com regimes doutro tipo (seja monarquia absoluta ou tradicional, seja ditadura de direita). Em ruptura com o Estado constitucional liberal surge, ao invés, o Estado fascista.

Como se sabe, este tem a sua primeira e quiçá mais característica manifestação na Itália entre 1922 e 1943, com a tomada do poder pelo partido fascista (organizado na base dos «fáscios» de combate) (2) e a locução Estado fascista aplica-se, depois, a outros regimes. Não há, entretanto, um fascismo, antes diferentes fascismos — o italiano não se confunde com o nacional-socialismo alemão — e alguns elementos abrangem quer regimes europeus dos anos 20 e 30 quer regimes doutros continentes dessa época e de décadas posteriores.

() V. KELSEN, La garantie juridictionnelle de Ia Constilution, Paris, 1928;

CHARLES EISENMANN, La Jstice Consttutionnelle et Ia Haute Cour Constitutionnelle d’Autriche, Paris, 1928.

(2) V. MUSSOLINI, Spirito delia Rivoluvone Fascista, Milão, 1938.

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Parte l—O Estado e os sistemas constiucionais 209

II — Podem ser apontadas como características comuns aos fascismos mussoliniano e hitieriano as seguintes:

a) Como inspiração filosófica, HEGEL e NIETZSCHE;

b) Como índole geral, o sentido romântico, muito concreto e avesso ao racionalismo, aadmissão e a exaltação da força, a ordem como um valor em si, o transpersonalismo, o culto do chefe (levando ao Führerprinzip);

c) Como manifestações políticas, o governo da minoria (justificado pelo carácter ou pela pureza racial), a ditadura ideológica e o partido de massas elevado a partido único— o que aproxima bastante os sistemas políticos fascistas dos sistemas políticos marxistas-leninistas ().

In — Os regimes italiano e alemão, revolucionários, totalitários e belicistas, tiveram um impacto enorme em toda a Europa dos anos30, a debater-se com a fraqueza do Estado constitucional democrático frente à crise económica e aos receios do comunismo. Um pouco por toda a parte difundiram-se ideias e fórmulas semelhantes, embora importe distinguir, com cuidado, o que releva de concepções fascistas em sentido próprio do que releva de concepções conservadoras e o que se traduz em regimes políticos totalitários do que não passa de ditaduras na linha das que se tinham conhecido no século xix.

Em contrapartida, a derrota dos governos de Mussolini e de Hitier na 2.” guerra mundial não significou o desaparecimento de alguns dos regimes autoritários de direita existentes (como o salazarista em Portugal ou o franquista em Espanha), nem impediu o apa-

() Cfr. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Lês théories de Ia dictature, in Revue politique et parlementaire, 1934, maxime págs. 138 e 139; KARL POPPER, The Open Society and its Enemies, 1945, tracl. A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, li, Lisboa, 1993, págs. 61 e segs.; CABRAL ÜE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, l,2.” ed., Coimbra, 1955, págs. 385 e segs.; RENZO DE FELICE, Lê interpretavm dei fascismo, Bari, 3.° ed., 1971; ERNST NOLTE, / tre volti dei fascismo, trad., 1974;

STUART WOOLF, II fascismo in Europa, 2. ed. italiana, Roma, 1975; International Fascism. New thoughs and new approaches, obra colectiva editada por GEORGE L. MOSSE, Londres, 1979; JAIME NOGUEIRA PINTO, Fascismo, in Polis, li, págs. 1379

e segs.14—Man. Dir. Const.. l

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210Manual de Direito Constitucional

recimento de novos regimes de natureza e estrutura afins quer na Europa (na Grécia, de 1967 a 1974), quer na Ásia (por exemplo, na Indonésia, desde 1965), quer na América, aqui em variedade maior (desde o populismo peronista na Argentina, entre 1945 e 1955, ao fascismo de origem militar no Chile entre 1973 e 1990).

Se se quiser integrar na mesma categoria tanto os regimes fascista italiano e nacional-socialista alemão como os demais regimes totalitários e autoritários de direita da Europa dos anos 30 como ainda numerosos regimes ditatoriais da América Latina e doutros continentes no pós-guerra, ressaltará pois, a sua grande heterogeneidade — em contraposição à homogeneidade dos regimes marxistas-leninistas. E mais pela negação — antiliberalismo e anticomunismo — do que pela afirmação — nacionalismo, concentração de poder, enquadramento da economia — que eles globalmente se podem recortar ().

72. O sistema constitucional do fascismo italiano

I — O fascismo italiano ligou a sua visão totalitária muito mais a um cesarismo assente no culto do Estado («Tudo pelo Estado, nada contra o Estado») do que a uma ideologia determinada e precisa.

«A Nação Italiana é um organismo com fins, vida e meios de acção superiores, pelo poder e pela duração, aos dos indivíduos, isolados ou associados, que a constituem. É uma unidade moral, política e económica que se realiza integralmente no Estado Fascista» (art. l.” da Carta dei Lavoro, de 21 de Abril de 1927).

II — Bastante pragmático, não criou uma organização de poder ex novo; inseriu-se, simplesmente, na monarquia constitucional, retirando-lhe a efectividade.

(i) Sobre os regimes fascistas e fascizantes em geral, v. ROBERT PELLOUX, Conribution à 1’étude dês regimes autoritaires contemporains, in Revue du droit public, 1945, págs. 334 e segs.; A. HAURIOU, Droit Constitutionnel et Institutions PoUtíques, 6.” ed. Paris, 1975, págs. 647 e segs.; DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 897 e segs.; MANUEL DE LUCENA, Notas para uma teoria dos regimes fascistas, in Análise Social, n. 125-126, 1994, págs. 9 e segs.

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Parte l — O Estado e os sisemas constitucionais 21

O sistema constitucional da Itália entre 1922 e 1943 apresenta, deste modo, uma face dupla:

a) Por um lado, um Rei, um Parlamento e um Governo nos moldes da Constituição (o já atrás referido Estatuto Albertino);

b) Por outro lado, 22 Corporações, a Câmara dos Fáscios e das Corporações (que em 1939 substituiu a Câmara dos Deputados) e o Grande Conselho do Fascismo (encabeçado no Chefe do Governo, o verdadeiro detentor do poder) ().

73. O sistema constitucional do nacional-socialismo alemão

I — Muito mais radical, violento e efémero foi o nacional-socialismo alemão (1933-1945), por causa das circunstâncias do país, da estrutura do partido e da sua concepção racista.

Aí, o povo estava reduzido à comunidade étnica; o homem aparecia desprovido de direitos subjectivos, não existia senão como membro dessa comunidade (que perante ele não tinha qualquer obrigação jurídica); e o Direito objectivo ficava exclusivamente ao serviço dos interesses do povo alemão.

II — Num fenómeno de personalização, ao arrepio de toda a história de institucionalização do poder político, o nacional-socialismo dissolveu mesmo o Estado no partido e no Führer.

(i) Cfr. MARCEL PRÉLOT, La théorie de l’État dans lê Droit fasciste, m Melanges R. Carré de Malberg, Paris, 1931, págs. 433 e segs.; GIUSEPPE MELONI, La posiione cosituionale dei Capo dei Governo, m Studi in onore di Federico Cammeo, li, Pádua, 1933, págs. 121 e segs.; FRANCESCO D’ALESSIO, Lo Stato Fascista come Stato di Dirito, m Scritti giuridici in onore di Santi Romano, 1940, l, págs. 489 e segs.;

MARCELLO CAETANO, Curso de Ciência Política e Direito Constitucional, 3.” ed., Coimbra, 1959, i, págs. 100 e segs.; MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 301 e segs.; Livio PALADIN, Fascismo (diritto costituuonale), in Enciclopédia dei Diritto, xvi, págs. 887 e segs.; C. MORTATI, Scritti, cit., iv, págs. 429 e segs.; GUGLIELMO NEGRI, The Rise and Fali of the Fascist Constitution, m II Político, 1982, págs. 449 e segs.; JORGE NOVAIS, op. cit., págs. 132 e segs.; EMÍLIO GENTILE, La via italiana ai toalitarismo — li partito e o Stato nel regime fascista, Roma, 1995.

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212Manual de Direito Constitucional

Aproveitando a delegação de poderes que recebeu do Reichstag em 1933, Hitier fundiu no cargo de Führer as funções que pelo texto de Weimar pertenciam ao Presidente e ao Chanceler, transformou a Alemanha em Estado unitário e assumiu o supremo poder de direcção e todos os poderes — legislativos, executivos e até judiciais — como intérprete do espírito do Povo Alemão e seu guia (). E o Führer não era um órgão do Estado ou um agente passageiro do exercício do poder; era o próprio poder, sem intermédio em relação à ideia do Direito (2) (3).

74. O sistema constitucional da Espanha franquista

I — Também a Espanha, entre 1936 e 1975, teve uma experiência particular de ditadura, de início muito próxima do fascismo, mas que dele se foi progressivamente distanciando.

Os princípios deste regime (identificado com o General Franco) eram o nacionalismo e o tradicionalismo (a Espanha como unidade de destino); uma concepção orgânica da vida social e da representação política, através da família, do município e do sindicato; o autoritarismo político, com largas restrições das liberdades individuais;

o intervencionismo económico e social; e a recusa dos princípios democráticos e da separação dos poderes.

() MARQUES GUEDES, op. cit., págs. 290-291.

(2) G. BURDEAU, Traité..., cit., i, 2.” ed., págs. 525 e segs.

(3) Cfr. GERHARD LEIBHOLZ, Die Auflôsung der Liberalen Demokratie in Deutschiand und das Autoritàre Staatsbild, 1933, trad. it. La dissoluzione delia democraia liberale in Germania e Ia forma di Stalo auoritário, Milão, 1996, págs. 25 e segs. ROGER BONNARD, Lê Droit et l’État dans ia doctrine nationale-socialiste Paris, 1936; ULRICH SCHEUNER, Lê peuple, l’État, lê droit et Ia doctrine nationale-socialiste, m Revue du droit public, 1937, págs. 38 e segs.;

FRANCO PIERANDREI, / diritti subbieltivi pubblici neli’evoluione delia dottrina germânica, Turim, 1940, págs. 203 e segs.; LAUTO FARACO DE AZEVEDO, Limites e justificação do poder do Estado, Petrópolis, 1979, maxime págs. 97 e segs.; KARL-DIETRICH BRACHER, Tradition et révolution dans lê national-socialisme, in Traité de Science Politique, obra colectiva, li, Paris, 1985, pãgs. 198 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 213

II — No plano estritamente jurídico-constitucional, o regime oferecia três características gerais:

a) Ausência de Constituição, texto único e, em vez dele, sete Leis Fundamentais do Reino, elaboradas em épocas diferentes (entre 1938 e 1967) ();

b) Concepção da ordem constitucional como processo (2), ou seja, como ordem constitucional em formação;

c) Valor hierárquico superior das Leis Fundamentais, embora com compreensão mais política do que jurídica (3).

In — Eram órgãos políticos os seguintes:

a) O Chefe do Estado, General Franco, como Caudilho de Espanha, e, para o futuro, um Rei ou Regente;

b) O Governo, constituído pelo Presidente do Governo (nomeado por 5 anos pelo Chefe do Estado) e pêlos Ministros;

c) As Cortes, assembleia de composição complexa, constituída por Procuradores designados por nomeação, inerência e eleição, e traduzindo os Procuradores electivos um princípio de representação orgânica, nomeadamente familiar e sindical;

() Cronologia das Leis Fundamentais:

a) Foro do trabalho, de 1938, espécie de declaração de direitos sociais (de índole parecida, mas de âmbito mais vasto que o Estatuto do Trabalho Nacional português, de 1933);

b) Lei Constitutiva das Cortes, de 1942;

c) Foro dos Espanhóis, de 1945, espécie de declaração de liberdades e garantias individuais;

d) Lei do Referendo Nacional, de 1945;

e) Lei da Sucessão na Chefia do Estado, de 1947, definindo o Estado espanhol como monarquia catlica, social e representativa;

f) Lei de Princípios do Movimento Nacional, de 1958, expressão da ideologia básica do regime;

g) Lei Orgânica do Estado, de 1967.

(2) Na expressão de SANCHEZ AGESTA (Curso..., cit., pág. 400).

(3) Sobre o Direito constitucional espanhol da época de Franco, v., por exemplo, além de SANCHEZ AGESTA, JOSÉ CASTAN TOBENAS, Los princpios filosofico-

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juridicos y jridico-politicos dei Regimen Espani, Madrid, 1963; BISCARETTI Dl RUFFIA, op. cit., págs. 385 e segs.; CARLOS R. ALBA, The organiwtion of authoritarian leadership: Franco Spain, in Presidents and Prime Minisiers, págs. 256 e segs.

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214Manual de Direito Constitucional

d) O Conselho do Reino, também de composição complexa, com importantes funções consultivas (junto do Chefe do Estado) e não consultivas;

e) O Conselho Nacional, expressão orgânica suprema do Movimento Nacional, isto é, da organização política de apoio ao regime.

Preponderava o Chefe do Estado, representante supremo da Nação e detentor do poder supremo político e administrativo, o qual exercia a Chefia Nacional do Movimento, assegurava o regular funcionamento dos altos órgãos do Estado, sancionava e promulgava as leis, exercia o comando supremo dos Exércitos e em nome do qual era administrada a justiça (art. 6.” da Lei Orgânica do Estado).

IV — O interesse do regime franquista para o Direito constitucional é, por conseguinte, duplo.

Em primeiro lugar, foi o único regime autoritário de direita da Europa que criou instituições próprias, a meio caminho entre as monarquias absolutas, as monarquias constitucionais e as ditaduras fascistas.

Em segundo lugar, e algo paradoxalmente, foi o único em que essas instituições, por obra interna, por transição constitucional, mudaram e foram substituídas por instituições democráticas pluralistas. No respeito das formas jurídicas das «Leis Fundamentais» e com o impulso do Rei João Carlos, sucessor de Franco, liberalizou-se o regime, abriu-se um processo constituinte, fizeram-se eleições e foi votada uma nova Constituição, a que já fizemos referência. E, curio samente, desde 1978, têm sido vários os processos de transição de regimes parecidos doutros países.

§4.°

Os sistemas constitucionais dos Estados asiáticos e africanos

75. Os problemas constitucionais dos Estados asiáticos e africanos

I — E muito usual aludir-se a sistemas políticos e constitucionais do Terceiro Mundo ou dos países subdesenvolvidos. Estas designações, além de relativas e algo fluidas, podem comportar o inconveniente de um realce excessivo dos factores económicos e tecnológicos em detrimento dos factores culturais e podem obnubilar o alcance irredutível do Direito constitucional.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 215

Há quem fale em Estados de recente independência. Por seu turno, tal denominação levaria a arredar Estados que nunca chegaram, juridicamente, a perder a independência (embora a tivessem tido diminuída ou apagada, de facto, durante mais ou menos tempo) e que apresentam problemas semelhantes aos dos Estados saídos da descolonização dos últimos quarenta anos.

Parece preferível aludir a Estados da Ásia e da África. Apesar da evidente heterogeneidade que entre eles se regista, têm de comum o contraste histórico, sociocultural e político tanto com os países da Europa, da América do Norte e da Austrália-Nova Zelândia quanto com os da América Latina: são bem diferentes as tradições e os condicionalismos socioculturais, são outras as circunstâncias da formação dos Estados e cruzam-se aí concepções fundamentais de diversas raízes.

A meio caminho situar-se-ão alguns pequenos arquipélagos das Caraíbas e do Pacífico.

II — Podem ser considerados factores determinantes da problemática constitucional da grande maioria dos Estados asiáticos e africanos os seguintes:

a) A situação específica — consoante os casos — de criação, restauração ou modernização do Estado;

b) A precariedade da unidade política (na maior parte dos casos, por ausência de nação ou por causa de fronteiras artificiais);

c) A conexão estreita entre a situação do Estado e a da sociedade e a opção por certo sistema político e económico, com a correspondente definição de directrizes constitucionais;

d) O volume das incumbências do Estado;

e) O ascendente, seja qual a forma que revista, do Poder Executivos, apesar das deficiências de Administração;

f) As dependências externas, apesar dos esforços de libertação ().

(i) Cfr. Comparativ Politic. cit., págs. 647 e segs.; HENRIQUE MARTINS DE CARVALHO, As Constituições Políticas e as Instituições Administrativas dos Novos

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216Manual de Direito Constitucional

In — Nos países que conheceram a colonização e, depois, a descolonização, as suas condições concretas não poderiam deixar de marcar as primeiras formas de organização político-constitucional:

a) Nos países que readquiriram a independência política ou que, nunca a tendo formalmente perdido, lograram a sua reafirmação, e em que tinham conseguido subsistir as antigas instituições, estas voltaram a ter plena efectividade, com mais ou menos adaptações;

b) Nos novos países ou naqueles que, pela primeira vez, atingiram a independência por via gradual e pacífica, adoptaram-se quase sempre instituições moldadas nas instituições das respectivas potências ex-coloniais;

c) Nos países que conquistaram a independência por via da insurreição ou onde eclodiram guerras civis, instauraram-se regimes nacionalistas revolucionários, de tipo soviético ou vizinho (Vietname, Laos, lémen do Sul, Angola, Moçambique) ou compósito, conjugando elementos desse tipo com elementos locais ou com intenções de originalidade (Argélia, Tanzânia, Guiné-Bissau, Cabo Verde).

Estados, m Estdos Polticos e Sociais, 1964, págs. 565 e segs.; ANDRÉ HAURIOLI, op. cit., págs. 664 e segs.; MAURICE PIERRE ROY, Lês Regimes Politiques du Tiers-Monde, Paris, 1977; GOMES CANOTILHO, Direio Constiucional, 2. ed., l, págs. 124 e segs.; DIRK BERG-SCHLOSSER, Lês systèmes politiques du Tiers-Monde

— Classification et évolution (1960-1980), m Droit, Instiutions et Systèmes Politiques — Méianges en hommage à Maurice Duverger, obra colectiva, Paris, 1987, págs. 515 e segs.; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 785 e segs.

Especialmente sobre os países árabes, a obra colectiva Lês Regimes Politiques Árabes, Paris, 1990; GHASSAN SALAME, Sur Ia causalité d’un manque: pourquoi lê monde árabe nest-il donc pás démocratique?, in Revue française de science politique, 1991, págs. 307 e segs.

Especialmente sobre os Estados africanos, v. OSCAR TENÓRIO, A Democracia no Direito Constiulcional Africano, m As Tendências Acuais do Direito Público

— Estudos em homenagem ao Professor Afonso Arinos de Melo Franco, obra colectiva, Rio de Janeiro, 1976, págs. 339 e segs.; P. F. GONIDEC, Lês systèmes politiques africains, Paris, 1978, GUILLAUME PAMBOU-TCHIVOUNDA, Essai sur l’État Africain post-colonial Paris, 1982; o n.” 25, de 1983, de Pouvoirs; BARRY MUNSLOW, Democratisation m África, in Parlimentary Affairs, 1993, págs. 479 e segs.

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Parte I — O Estado e os sistemas constitucionais 217

IV — Por toda a parte ocorreriam, ao fim de algum tempo, vicissitudes e transformações em sentido contrário ao Estado constitucional representativo: constantes intervenções das Forças Armadas; tendências autoritárias nos países do Sueste Asiático; criação de sistemas de partido único na quase totalidade dos países da África subsariana;

derrube de algumas das monarquias tradicionais (Etiópia, Afeganistão, Irão); aparecimento do fundamentalismo islâmico.

A partir de 1989 verifícar-se-ia, porém, uma inflexão, com a desagregação da U. R. S. S., o incremento das aspirações democráticas na Ásia e a falência dos regimes de partido único em toda a África, com a consequente transição para o multipartidarismo. E muito significativo viria a ser também o fim do apartheid na África do Sul e a passagem pacífica para uma democracia pluralista multi-racial ().

Resta saber se esta última tendência se manterá ou se, pelo contrário, as deficiências de base política, económica e social a propagação das ideias fundamentalistas e o agravamento dos desníveis Norte-Sul não irão, a prazo, impedir, em muitos casos, a sua consolidação. Resta saber se não continuarão (tal como aconteceu, noutras circunstâncias e noutras épocas, na Europa e na América) oscilações cíclicas de instabilidade e regimes de características opostas.

V — Um quadro actual (1996) dos regimes dos países asiáticos e africanos mostra:

) Ainda algumas monarquias tradicionais, ora como monarquias absolutas (Arábia Saudita, Oa), ora com concessões ao pluralismo (Marrocos, Nepal);

2) Regimes democráticos pluralistas bem radicados (Japão, índia, Israel) ou mais frágeis (Filipinas, Coreia do Sul, e, sobretudo, os países muçulmanos e a maior parte dos países africanos)

(i) Cfr. LAKSHMAN MARASINGHE, Constitutional Reform in South África, in International anã Comparativ Law Quartely, 1993, págs. 827 e segs.

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218Manual de Direito Constiucional

— integrados, como sabemos, nas famílias de matriz britânica, americana e francesa ou duma ou doutra aparentados;

3) Regimes marxistas-leninistas (China, Coreia do Norte, Vietname e Laos);

4) Regimes autoritários, ainda que com alguns elementos formal ou realmente democráticos (Malásia, Singapura, Formosa);

5) Regimes militares ou de base militar, mesmo se muito diferentes entre si (Birmânia, Zaire, Indonésia, Líbia, Síria, Iraque, Nigéria);

6) Regimes de fundamentalismo islâmico (Irão, Afeganistão, Sudão) ().

Vale a pena passar, em relance sumário, as caractesticas distintivas dos sistemas político-constitucionais dos países asiáticos e africanos não redutíveis às dos sistemas até agora examinados: monarquias tradicionais, regimes autoritários do Sueste Asiático e regimes islâmicos, além dos regimes nacionalistas-revolucionários não marxistas-leninistas.

76. Relance pêlos sistemas político-constitucionais com características particulares

I — As monarquias tradicionais caracterizam-se (ou caracterizaram-se) por:

a) Ausência de Constituição em sentido formal;

b) Permanência da legitimidade monárquica;

() Cfr. numa visão mais exaustiva, DIRK BERG-SCHLOSSER (op. ci., /oc. cf., págs. 515 e segs.), apontando: l) monarquias; 2) antigas oligarquias; 3) novas oligarquias; 4) regimes socialistas baseados em tradições e culturas locais;

5) regimes socialistas de inspiração marxista; 6) regimes comunistas totalitários; 7) sistemas semicompetitivos; 8) poliarquias; 9) regimes militares personalizados; 10) regimes militares institucionalizados; 11) regimes militares socialistas.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 219

c) Domínio pleno pelo monarca de toda a vida política, com raros mecanismos de autolimitação;

d) Autoristarismo conservador;

e) Regime jurídico de união do Estado e da confissão religiosa dominante.

Ressaltam algumas afinidades com as antigas monarquias absolutas europeias.

II — As notas mais salientes dos regimes nacionalistas revolucionários não marxistas-leninistas de África eram:

a) A adopção como ideologia oficial de um socialismo de índole não marxista (socialismo árabe ou africano);

b) O partido único, agora no sentido de movimento de libertação (ou de movimento de unificação social e política), e não no sentido de partido ideológico de classe que conquista o poder;

c) A criação de uma Administração fortemente centralizada;

d) O empenho prioritário no desenvolvimento económico, com sistema planificado.

Assim, a Constituição argelina de 1976 declarava o socialismo «a opção irreversível do país» e «a única via» capaz de efectivar a independência (art. 10.”), fixava-se o objectivo de «dotar a Argélia de uma base socioeconómica liberta da exploração e do subdesenvolvimento» (art. 11.”) e atribuía ao partido único — a Frente de Libertação Nacional — a tarefa de «mobilizar permanentemente o povo» (art. 97.”).

In — Os regimes autoritários do Sueste Asiático abrangem regimes com instituições constitucionais semelhantes às das democracias representativas, mas com prática diversa ou inversa, e regimes de base militar. Têm de comum:

a) As restrições ou a privação de liberdades públicas e as deficiências de mecanismos jurisdicionais de limitação do poder;

b) O domínio de partido hegemónicos (por vezes, apoiados nas Forças Armadas), sem alternância;

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220Manual de Direito Constitcional

c) O primado do crescimento económico, com capitalismo ou liberalismo radical ().

IV — Os regimes islâmicos identificam-se, como se sabe, pela união do poder político e do poder religioso, o que implica:

a) Definição da comunidade política ou povo a partir da comunidade religiosa ou comunidade de crentes;

b) Limitação das liberdades e de toda a vida social pêlos preceitos islâmicos;

c) Dependência da validade do Direito positivo, inclusive da Constituição, da sua conformidade com os preceitos islâmicos;

d) Juramento religioso dos titulares dos cargos políticos;

e) Papel eminente dos teólogos islâmicos (2).

A experiência mais paradigmática destes regimes é a iraniana, iniciada em 1979, e, algo curiosamente, consagrada numa Constituição escrita, de 1986 (com 176 artigos), em que se tenta combinar teocracia e democracia.

«A República Islâmica é um sistema baseado na fé» (art. 2.”). «Todas as leis e todos os decretos civis, penais, financeiros, administrativos, culturais, militares, políticos e relativos a recursos naturais devem basear-se em princípios islâmicos» (art. 4.”). «Com o fim de assegurar que as deliberações da Assembleia não ignorem os preceitos islâmicos e os princípios da Constituição é instituído um Conselho de Vigilância da Constituição» composto por juristas muçulmanos (art. 91.”), etc.

() Em relação a estes países, ou a alguns deles, pode bem falar-se em fascismos imperfeitos na acepção de MANUEL DE LUCENA (Nota..., cit., págs. 24 e segs.). Cfr. FRANIS FUKUYAMA (op. cit., pág. 235): «Hoje o desafio mais significativo ao universalismo liberal das Revoluções americana e francesa não provém do mundo comunista, mas das sociedades asiáticas que combinam economias liberais com uma espécie de autoritarismo paternalista».

(2) Cfr. o n.” 12, de 1980, de Pouvoirs; ou BERNARD CUBERTAFOND, Théocraties, m Revue du droit public, 1985, págs. 294 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constiucionais 221

CAPITULO IV

OS SISTEMAS CONSTITUCIONAIS DO BRASIL E DOS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

§ 1.°

O sistema constitucional brasileiro

77. O Direito constitucional brasileiro e o seu interesse

I — Numa obra como esta não poderia deixar de se dar tratamento autónomo ao sistema constitucional do Brasil (bem como aos dos países africanos de língua oficial portuguesa).

Justifica-se uma referência ex professo ao Direito onstitucional brasileiro (), pela importância em si do país e pelas suas características inconfundíveis com as da América de língua castelhana (2). Justifica-se, mesmo dum estrito prisma comparativo, por virtude dos laços orgânicos entre o Direito constitucional brasileiro eo português em diversos momentos das suas histórias. E ainda, por alguns con-

() Sobre o Direito e a história constitucionais do Brasil em geral, v. WALDEMAR MARTINS FERREIRA, História do Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo,1954; MIGUEL GALVÂO TELES, Constituições brasileiras, m Verbo, v, págs. 1501 e segs.; MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, História breve do constitucionalismo brasileiro, m Revista de Direito Público, Janeiro-Março de 1968, págs. 62 e segs.; PAULINO JACQUES, Curso de Direito Consitucional, 6. ed. Rio, 1970, págs. 45 e segs.; PNTO FERREIRA, Curso de Direito Constitucional, 2. ed. Recife,1970, págs. 31 e segs.; MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, cit., i, págs. 467 e segs. (a pane m deste volume é dedicada às Constituições brasileiras), e li; PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, História Constitucional do Brasil, Brasília, 1988;

JOSÉ AFONSO DA SILVA, Constitucionalismo federal no Brasil nos últimos 70 anos, m El constitucionalismo en Ias postrimerías dei sigl XX, obra colectiva, III, México,1988, págs. 407 e segs.; MARCELLO CERQÜEIRA, A Constituição na história — origem e reforma Rio de Janeiro, 1993, págs. 216 e segs.; MARA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., págs. 367 e segs.

(2) Recordem-se: a aquisição pacífica da independência, o reino e o império;

a centralização política e cultural; o papel do município; e o menor peso dos militares na vida política (com tendência para a institucionalização, e não para o caudilhismo).

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222Manual de Direito Constitucional

tributos inovadores, como a justiça eleitoral, o mandado de segurança (l) ou o mandado de injunção.

II — O constitucionalismo nasceu em Portugal e no Brasil ao mesmo tempo. Nasceu com a revolução de 1820, em consequência da qual se reuniram Cortes Constituintes, em que participaram Deputados eleitos pelas províncias brasileiras.

A Constituição de 1822 seria votada por portugueses e brasileiros (mau grado as desavenças e os mal-entendidos, que tanto contribuíram para a separação) e ela formalizaria o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (que D. João VI criara no Rio de Janeiro em 1815). Mas não chegaria a vigorar no Brasil, porque viria a ser aprovada em 23 de Setembro e, entretanto, a 7 de Setembro, fora proclamada a independência (2).

A seguir, a Carta Constitucional de 1826 seria (literalmente) decalcada da Constituição brasileira de 1824 e feita no Brasil pelo autor desta: D. Pedro I, IV de Portugal. O seu elemento mais típico, o poder moderador (com origem em BENJAMIN CONSTANT), encontra-se já no texto brasileiro. E, com vicissitudes várias, as duas Constituições vigorariam conjuntamente durante cerca de meio século — o que permitiria que, na época, porventura, se pudesse falar numa família ou sub-família constitucional luso-brasileira.

Se o movimento republicano brasileiro viria a exercer largo impacto entre nós, não menor viria a ser a influência da primeira Constituição republicana brasileira, a de 1891, sobre a primeira Constituição republicana portuguesa, a de 1911. Como se verá a seu tempo, alguns relevantíssimos institutos e soluções adoptados nesta vieram daquela ou tiveram nela um antecedente comprovado: assim, por exemplo, a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis.

As tendências autoritárias imperantes em Portugal de 1926 a 1974 tiveram paralelo no Brasil por duas vezes: entre 1937 e 1945 (num

() Conquanto na sua génese possa enxergar-se influência do antigo Direito português (MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., págs. 367 e segs.).

(2) Cfr. MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA, Movimento constiucional e separatismo no Brasil — 1821-1823, Lisboa, 1988 (com interessantes textos e documentos).

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 223

regime também cognominado de «Estado Novo») e de 1964 a 1985. Não admira que a nossa Constituição de 1933 tenha inspirado, na Constituição brasileira de 1937, a criação de um Conselho de Economia Nacional (idêntico à Câmara Corporativa) e a atribuição ao Presidente da República dos poderes de dissolução da Câmara dos Deputados e da feitura de decretos-leis.

Em contrapartida, ultrapassado o autoritarismo, as Constituições actuais de ambos os países — a de 1976 em Portugal e a de1988 no Brasil — apresentam muitos traços em comum: a extensão das matérias com relevância constitucional, o cuidado posto na garantia dos direitos de liberdade, a promessa de numerosos direitos sociais, a descentralização, a abundância das normas programáticas. E a Constituição brasileira consagraria regras ou institutos indiscutivelmente provindos da portuguesa: a definição do regime como «Estado Democrático de Direito», alguns direitos fundamentais, o estímulo ao cooperativismo, o alargamento dos limites materiais da revisão constitucional, a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão:

Registe-se ainda a introdução (no Brasil desde 1969 e em Portugal desde 1971) de cláusulas constitucionais de equiparação de direitos de portugueses e brasileiros, concretizadas através da Convenção de 7 de Setembro de 1971, celebrada em Brasília.

78. O Império e a Constituição de 1824

I — A primeira Constituição brasileira data de 1824 e nela trabalharam sucessivamente uma Assembleia Constituinte e um Conselho de Estado, tendo acabado, depois, de vários episódios, por ser outorgada pelo Imperador D. Pedro I. O Brasil independente foi, assim, desde o início, uma monarquia constitucional ().

À semelhança das demais Constituições do século xix, assentava na separação dos poderes, com forte posição do Imperador, simulta-

() Cfr., por todos, PIMENTA BUENO, Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, 1 vols., Rio de Janeiro, 1857; e OLIVEIRA LIMA, O Império Brasileiro, São Paulo, 1927.

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224Manual de Direito Constitcional

neamente titular do poder moderador e chefe do poder executivo (). Representantes da Nação eram o Imperador e o Parlamento, chamado Assembleia Geral.

A Assembleia Geral tinha duas Câmaras: a Câmara dos Deputados (electiva e temporária) e o Senado (composto por membros vitalícios designados pelo Imperador em listas tríplices resultantes de eeição provincial). Os projectos votados na Assembleia careciam de sanção imperial para se converterem em lei, mas a denegação de sanção era apenas suspensiva (a sanção entendia-se concedida ao fim de duas legislaturas a seguir àquela em que o projecto tivesse sido aprovado).

Em cada província, existia um conselho geral, eleito nas mesmas condições da Câmara de Deputados, e com competência para propor, discutir e deliberar sobre os assuntos provinciais (mas sendo as suas resoluções submetidas ao poder central).

Junto do Imperador funcionava um Conselho de Estado, de sua nomeação e vitalício.

O catálogo de direitos individuais era também idêntico aos das Constituições liberais. A escravatura continuava a ser, porém, directa ou indirectamente admitida.

II — Houve dois reinados: de D. Pedro I (de 1822 a 1831, ano em que abdicou) e de D. Pedro II (de 1831 a 1889, ano da proclamação da república) (2). Deram-se duas revisões da Constituição apenas: o Acto Adicional de 1834 e a Lei de Interpretação de 1840.

O Acto Adicional extinguiu o Conselho de Estado e atribuiu poderes legislativos aos conselhos gerais das províncias, doravante chamados assembleias egislativas; a Lei de Interpretação do Acto Adicional restringiu a autonomia das províncias. Teve ainda carácter constitucional a Lei de 23 de Novembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de Estado.

() Cfr. os estudos clássicos de ZACARIAS DE GÓES E VASCONCLOS, Da Naurea e Limites do Poder Moderador, e de BRAZ FLORENTINO HENRIQUES DE SOUSA, Do Poder Moderador (ambos reimpressos em Brasília, em 1978).

(2) De 1831 a 1840, como D. Pedro II era menor, foi o Brasil goveado por uma regência.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 225

As instituições políticas não poderiam deixar de ser condicionadas por uma estrutura étnica e cultural em vias de consolidação e sedimentação, na qual se integrariam fortes correntes imigratórias europeias; por profundas divisões sociais; pela oposição entre o Brasil agrário, dominado pela aristocracia rural das plantações, e o Brasil urbano, concentrado no litoral e de tendência burguesa.

O regime pretendeu evoluir para um sistema parlamentar de estilo inglês, com dois partidos a alternar no poder (o liberal e o conservador). Mas foi sempre afectado pela falta de base social e política e pela constante intervenção, de tipo orleanista, do Imperador fazendo e desfazendo governos (apesar de ter sido criado em 1847 o cargo de Presidente do Conselho de Ministros) ().

A grande obra do Império consistiu na conservação da unidade política a seguir à independência e em perto de setenta anos de paz, em contraste com a América espanhola. No entanto, a sua queda foi inevitável. com um meio urbano trabalhado pela propaganda republicana (de inspiração positivista francesa e sensível à singularidade do Brasil num continente republicano), o meio rural manteve-se fiel à monarquia até que a abolição da escravatura (1888) pôs em causa o seu antigo equilíbrio e levou os senhores da terra a também deixar de apoiar o regime.

79. A república

I — O exército depôs D. Pedro II em 15 de Novembro de 1889 e proclamou a república, a república federativa (pois que as províncias passaram a Estados). Em 1891, um Congresso Constituinte aprovou a Constituição correspondente à nova situação.

Fundamentalmente, a Constituição de 1891 adaptou ao Brasil o sistema constitucional de modelo norte-americano, à semelhança do que já tinham feito o México e a Argentina. Foi reorganizado o poder, dis-

() Sobre essa inadequação do governo parlamentar às condições do Brasil, v., por exemplo, TOBIAS BARRETO, A questão do poder moderador (estudo de 1871, completado dez anos depois), in Estudos de Direito e Política edição do Instituto Nacional do Livro, Rio, 1962, págs. 193 e segs.15—Man. Dir. Const.. I

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226Manual de Direito Constitucional

tribuído entre a União e os Estados federados, e substituiu-se à tendência parlamentar um princípio de governo presidencial ().

Exerciam o poder legislativo duas Câmaras: a Câmara dos Deputados, com representantes do povo eleitos por 3 anos; e o Senado, com senadores em número de três por cada Estado e pelo Distrito Federal, eleitos de 9 em 9 anos, mas renovando-se o terço trienalmente.

Exercia o poder executivo o Presidente da República, eleito por sufrágio directo de 4 em 4 anos, e não reelegível para o período imediato. Havia um Vice-Presidente e Ministros, que não respondiam perante o Congresso (como é próprio do sistema presidencialista), mas que, ao invés dos Estados Unidos, recebiam estatuto constitucional e referendavam os actos presidenciais.

Exerciam o poder judicial o Supremo Tribunal Federal e os demais tribunais. Entre outras faculdades a Constituição conferia-lhes a de apreciar a constitucionalidade das leis.

Cada Estado federado tinha a sua Constituição, as suas eis, os seus tribunais. Previa-se intervenção federal nos Estados, a qual só podia ocorrer nos casos especificados na Constituição federal. Os Estados adoptariam um sistema de governo análogo ao federal, com assembleia legislativa e governador ou presidente eleito.

Os municípios tinham a sua autonomia reforçada em tudo quanto respeitasse aos seus particulares interesses (princípio da plenitude, e não apenas da especialidade das atribuições municipais).

No essencial, o esquema da Constituição de 1891 passaria para todas as Constituições posteriores, mais ou menos aperfeiçoado ou atenuado (2).

II — O ambiente da república de 1889-1891 não era muito diverso do Império. A vida económica e social continuava a girar em tomo dos interesses comerciais das cidades e dos interesses agríco-

() De resto, não foi apenas por imitação dos Estados Unidos mas também por terem consagrado o federalismo que os autores da Constituição tiveram de consagrar o presidencialismo: para que um poder central forte, ligado ao Presidente da República, preservasse a unidade do país.

(2) Cfr. Rui BARBOSA, Comentários à Constituição Federal Brasileira, São Paulo, 1932.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 227

Ias dos grandes proprietários. A vida política esteava-se num grande partido de governo e, a nível local, nos caciques ou «coronéis», tão bem descritos na literatura da época.

Ainda haveria certa estabilidade das instituições políticas (), no hábito vindo do império, e sucessão regular dos mandatos presidenciais, salvo agumas perturbações esporádicas.

Mas o Brasil iria passar a uma fase mais difícil e complexa da sua existência. O sentido dos problemas nacionais iria desenvolver-se, tensões sociais acumuar-se, o jogo das forças políticas a nível estadual e federal tornar-se mais difícil, as crises locais tornarem-se mais facilmente crises nacionais, os espíritos ficarem mais permeáveis a ideias do exterior.

Nos anos 20, estavam lançados os dados para o superamento da situação tradicional: progressiva urbanização e industrialização, surgimento de classe operária e de sindicatos (em breve constituindo uma nova força política), crescimento demográfico sem par, impaciência da população perante as insuficiências do governo federal.

A revolução de Outubro de 1930, proveniente do Rio Grande do Sul e influenciada, em parte, pelas revoluções políticas e sociais hispano-americanas e, em parte, pelas revoluções europeias do l.” pós-guerra, viria pôr fim à «República velha» e abrir um novo período na história do Brasil. com diferentes oscilações e fases, este período pode considerar-se ainda o actual.

80. A evolução desde 1930

I — O período iniciado em 1930 é assinalado por três notas gerais: l.’’) evolução com soluções de continuidade e com frequentes crises político-militares; 2.’) sucessão, quase alternância, de governos autoritários e de governos liberais e democráticos; 3.) proliferação de Constituições (5 Constituições desde 1934 contra 2 apenas desde a independência até esse ano).

iï — Sucedem-se sete grandes fases:

. fase (1930-1934): governo provisório;

2. fase (1934-1937): regresso às formas constitucionais (2), com Constituição aprovada em assembleia constituinte em 1934;

() A Constituição só sofreria alterações em 1926.

(2) Após a revolução constitucionalista de São Paulo, em 1932.

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228Manal de Direito Constitucional

3. fase (1939-1945): ditadura de Getúlio Vargas (presidente desde 1930), que outorgou uma Constituição e estabeleceu um regime à moda da época, mas de carácter populista ();

4.” fase (l 945-1961): após a 2. guerra mundial (em que o Brasil participou ao lado dos Aliados), nova fase democrático-liberal e nova Constituição, a de 1946;

5. fase (1961-1964): crise institucional aberta pela surpreendente renúncia do presidente Jânio Quadros, a quem sucedeu o vice-presidente João Goulart;

6. fase (1964-1985): governo de base ou de características militares, resultante da revolução de 1964, e em que é feita a Constituição de 1967 (alterada em 1969);

7.” fase (desde 1985): transição para uma nova Constituição, a de 1988, e vigência desta.

In — A Constituição de 1934 consagrou a justiça eleitoral (criada em 1932); reforçou os poderes do Congresso (em especial, da Câmara dos Deputados, eleita pelo povo e pelas organizações profissionais); previu formas de intervenção do Estado na economia e direitos sociais na linha da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar; introduziu o mandado de segurança, para garantia de direitos certos e incontestáveis contra actos inconstitucionais ou ilegais (2).

A Constituição de 1937 reduziu a autonomia dos Estados; estabeleceu o sufrágio indirecto na eleição da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal (nome dado ao Senado); criou o Conselho da Economia Nacional, órgão consultivo, de carácter corporativo, há pouco referido; e alargou os poderes do Presidente da República, o qual passou, entretanto, a ser eleito por 6 anos por um colégio de eleitores designados pelas câmaras municipais, pelo Conselho da Economia Nacional e pelo Parlamento.

() A Constituição de 1934 sofrera alterações de sentido autoritário logo em 1935.

(2) Cfr. JOSAPHAT MARINHO, A Constituição de 1934, in Revista de Informação Legislativa Abril-Junho de 1987, págs. 17 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 229

A Constituição de 1946 retomou o rumo da de 1934, conjugando a democracia liberal e a institucionalização dos partidos com aquisições sociais (como o direito à greve e a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas). Como tentativa de resolver a crise de 1961, pôs-se em prática, durante algum tempo (pelo Acto Adicional de 1961) um sistema parlamentar (), ou, talvez melhor, semipresidencial (2).

Após a revolução de 1964, a Constituição de 1946 ficou subordinada a quatro Actos Institucionais, publicados entre esse ano e 1966 e todos dirigidos à concentração do poder no Presidente da República. Mas, a breve trecho, sentiu-se a necessidade de elaborar nova Constituição a fim de integrar tais Actos Institucionais e os seus Actos Complementares: assim surgiu a Constituição de 1967. Esta não iria durar na sua forma primitiva senão dois anos, pois, entretanto, os chefes militares publicaram novos e numerosos Actos Institucionais e Complementares e, para lhes dar forma coerente, surgiu em Outubro de 1969 a emenda constitucional n.° l (entenda-se como Constituição nova ou como Constituição de 1967 alterada).

Aspectos a salientar num e noutro texto são o sentido centralizador, o aumento dos poderes financeiros da União, o reforço do Poder Executivo, a eleição do Presidente por sufrágio indirecto (colégio composto pêlos membros do Congresso e por representantes dos Estados), o cuidado posto no processo de elaboração das leis, a extensão da justiça militar, a noção de segurança nacional e a prefixação do sistema partidário (3).

IV — Finalmente, do regime autoritário assim estabelecido passar-se-ia para um novo regime constitucional, através de um longo processo, dito de transição democrática, a partir da «abertura» levada a cabo pêlos dois últimos Presidentes militares, da grande campanha

() com Conselho de Ministros responsável perante a Câmara dos Deputados. Voltar-se-ia ao sistema presidencialista, por referendo, em 1963.

(2) ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O semipresidencialismo em Portugal, Lisboa, 1984,págs. 32-33.

(3) Cfr., por todos, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, 1983; e JOSÉ RIBAS VIEIRA, O autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil, Rio de Janeiro, 1988.

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230Manual de Direito Constitucional

de 1984 por eleições directas para a Presidência da República, da capacidade negociadora dos dirigentes oposicionistas e de dissidências no interior do partido situacionista. Em Janeiro de 1985 seria eleito Presidente, nessas condições, ainda pelo colégio eleitoral, o candidato da Oposição C). Logo a seguir, a emenda constitucional de 15 de Maio suprimiria as normas constitucionais de excepção e retomaria a eleição presidencial directa; e a emenda de 27 de Novembro atribuiria poderes constituintes ao Congresso a eleger em 15 de Novembro de 1986 (2) (3).

Não se previu uma assembleia constituinte; previu-se um Congresso simultaneamente ordinário e constituinte (e que como Congresso ordinário, tal como o Presidente da República empossado em 1985, iria perdurar até terminar o seu mandato). Esse Congresso aprovaria uma nova Constituição em 5 de Outubro de 1988.

81. A Constituição de 1988

I — A Constituição de 1988 (4) abre com um preâmbulo (donde consta a invocação do nome de Deus) e com «princípios fundamentais».

() TANCREDO NEVES (que, porém, devido a doença e morte, não chegaria a tomar posse).

(2) E em que puderam tomar assento os Senadores eleitos em 1982.

(3) Cfr. PAULO BONAVIDES, Constituinte e Constiuição, Fortaleza, 1985; CARLOS ROBERTO PELLEGRINO, Antecedentes da Consiuinte brasileira de 1987, in Boletim do Ministério da Justiça, n.” 364, Março de 1987, págs. 21 e segs.; JORGE MIRANDA, A transiço constitucional brasileira e o Anteprojeco da Comissão Afonso Arinos, in Revista de Informação Legislativa, Abril-Junho de 1987, págs. 29 e segs.

(4) V. CELSO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, Comentários à Consiuição do Brasil, 2 vols., São Paulo, 1989; TÉRCIO SAMPAIO ERRAZ JÚNIOR, MARIA HELENA DINIS e RITINHA A. STEVENSON GEORGAKILAS, Consituição de 1988 — Iegitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia, São Paulo, 1989; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Sobre a Constiuição de 1988, in Revisa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 990, págs. 67 e segs., e Comentário à Constituição Brasileira de 1988, 2 vols., São Paulo, 1992; ANA LÚCIA DA LYRA TAVARES, A Constitição de 1988: subsídios para os comparatistas, in Revista de Informação Legislativa, n.” 109, Janeiro-Março de 1991, págs. 71 e segs.; Lê Novelle Republique Brésilienne, obra colectiva Paris, 199; JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direio Constitucional Positivo, 9. ed. São Paulo, 1992; PAULO BONAVIDES, Direito Constitucional. 6.” ed. São Paulo, 1996; RAUL MACHADO HORTA, Tendências atuais da

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 231

Três notas se salientam aqui: l .a) o declarar-se no art. l.° ser a República formada pela «união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal» (art. 1.°), o que, indo ao encontro da realidade, aponta para um duplo grau de organização territorial — federalismo a nível de Estados e regionalismo a nível de município; 2.”) o fundar-se o «Estado Democrático de Direito» (mesmo art. l.°) na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político;

3.) o declarar-se, no art. 13.°, a língua portuguesa o idioma oficial da República ().

II — Diversamente de todas as anteriores Constituições, a de 1988 ocupa-se dos direitos fundamentais com prioridade em relação as demais matérias.

Além de direitos habitualmente enumerados noutras Constituições, encontram-se no longo art. 5.°: a garantia de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação colectiva; a previsão de prazo, nos termos da lei, para a prestação de informação pêlos poderes públicos; a qualificação do racismo e da tortura como crimes inafiançáveis; o mandado de segurança colectivo (a impetrar por partidos políticos, organizações sindicais ou de classe ou associações legalmente constituídas); o mandado de injunção, a conceder «sempre que a falta de norma regulamentadora tome inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania»; a também nova figura do «habeas data» para conhecimento de informações constantes de registos ou de bancos de dados de entidades públicas e para rectificação desses dados. As normas definidoras dos direitos e garantias têm aplicação imediata (art. 5.°, § l).

Federação Brasileira, m Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.” 83, Julho de1996, págs. 7 e segs.

(i) Do mesmo passo, o art. 210.”, § 2.”, estipula que o ensino fundamental regular será ministrado na língua portuguesa, assegurando-se às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

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232Manual de Direito Constitcional

Os direitos sociais abrangem tanto a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a protecção à maternidade e à infância e a assistência aos desempregados como os direitos dos trabalhadores atinentes à segurança do emprego, ao salário, à asso ciação sindical, à greve e à participação (arts. 6.° a 11.°). No que é, por certo, a mais grave deficiência do texto constitucional, só muito depois surge a «ordem social» (arts. 193.° a 232.°), evidentemente indissociável dos direitos sociais, mesmo quando se traduz em garantias institucionais e incumbências do Estado. Dominam aqui as normas programáticas, muitas delas de difícil cumprimento até a longo prazo, pelo menos da mesma maneira num país tão diversificado como o Brasil (e cuja estrutura federativa deveria recomendar maior plasticidade).

Mas não pode esquecer-se que algumas das normas atinentes a direitos são bem necessárias no contexto concreto do Brasil: assim, a vedação da comercialização de órgãos, tecidos, substâncias humanas, sangue e seus derivados (art. 199.°, § 4); a consideração, a par da segurança social, da assistência social (art. 203.°); a gratuitidade e a gestão democrática do ensino público (art. 206.°, n.0 4 e 5);

o acesso ao ensino obrigatório como direito público subjectivo (art. 208.°, § l); a obrigação de recuperação do ambiente degradado após explorações mineiras (art. 225.°, § 2); a consideração da Floresta Amazónica como património nacional (art. 225.°, § 4); a recondução do planeamento familiar a livre decisão do casal, (art. 226.°, § 7);

o apoio à adopção (art. 227.°, n.° 5); o reconhecimento da organização social e cultural e a protecção das terras dos índios (arts. 231.° e 232.°). E ainda: o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a coexistência de instituições públicas e privadas do ensino (art. 206.°, n.° 3); a possibilidade de os recursos públicos serem dirigidos a escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, sem fins lucrativos (art. 213.°); a consideração do ensino religioso facultativo como disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental (art. 210.°, § l); a proibição de qualquer censura política, ideológica e artística (art. 220.°, § l); a criação de um Conselho de Comunicação Social (art. 224.°).

Relevam também para os direitos fundamentais a garantia institucional da advocacia (art. 113.°); a criação de Defensoria Pública ao serviço dos necessitados (art. 134.°); e as limitações ao poder de

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 233

tributar, designadamente a não retroactividade das leis criadoras de tributos (art. 150.°).

No capítulo dos direitos políticos, sobressaem a previsão de plebiscito, referendo e iniciativa popular, o abaixamento da capacidade eleitoral activa para 16 anos (embora só a partir dos 18 anos seja o voto obrigatório e se verifique imputabil idade penal) e a proibição de cassação. E, no capítulo anexo dos partidos políticos, o princípio da livre criação, a proibição de financiamento por entidades estrangeiras, a prestação de contas à justiça eleitoral, a exigência de normas de fidelidade e disciplina partidária, o direito a recursos do fundo partidário e o acesso gratuito à rádio e à televisão. A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após a sua promulgação (art. 16°).

In — A Constituição económica apresenta-se moderadamente nacionalista, com compromisso entre tendências liberais e estatizantes, e nem sempre em sintonia com as incumbências assumidas pelo Estado na ordem social ()•

Prevê-se tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (art. 170.°). É assegurado o livre exercício de qualquer actividade económica, independentemente de autorização, salvo nos casos previstos na lei; ressalvados os casos previstos na Constituição a exploração directa de actividade pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse colectivo (art. 173.°); e as empresas públicas sujeitam-se ao regime das empresas privadas (art. 173.°, § l). Todavia, o Estado exercerá funções de fiscalização, incentivo e planejamento (determinante para o sector público e indicativo para o sector privado) e a lei reprime o abuso do poder económico (arts. 174° e 173.°, § 4). São apoiadas e estimuladas as cooperativas e outras formas de associativismo (art. 174.°, § 2).

As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indemnização em dinheiro (art. 182.°, § 2); as de imóveis

() Cfr., por exemplo, WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUSA, A experiência brasileira de Constituição económica m Revista de Informação Legislativa, n.” 102, Abril-Junho de 1989, págs. 21 e segs.

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234Manual de Direito Constitucional

rurais, para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indemnização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, mas as benfeitorias úteis e necessárias sê-lo-ão em dinheiro (art. 184.°). Serão, porém, insusceptíveis de desapropriação a pequena e média propriedade rural, desde que o seu proprietário não possua outra, e a propriedade produtiva (art. 185.°).

IV — A organização do poder político federal mantém-se fiel à divisão clássica dos três poderes e ao sistema presidencial, este algo controlado ou fiscalizado.

No Congresso, bicameral, a Câmara dos Deputados é eleita por 4 anos, por representação proporcional em cada Estado e no Distrito Federal; e o Senado por representação maioritária, elegendo cada Estado e o Distrito Federal 3 Senadores, com mandato de 8 anos. O Congresso pode suster os actos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentário ou dos limites de delegação legislativa (art. 44.°, n.° 5) e compete-lhe autorizar referendos e convocar plebiscitos (art. 49.°, n.° 15) ().

O Presidente da República é eleito por sistema de dois turnos ou duas voltas (como em França e em Portugal), por 4 anos. A eleição do Presidente importa a do Vice-Presidente com ele registado. O Presidente é auxiliado pêlos Ministros de Estado, que referendam os seus actos e decretos e em quem ele pode delegar algumas das suas atribuições de carácter administrativo. O Congresso, que passa a eleger dos membros do Tribunal de Contas da União, pode convocar os Ministros para informações, sob pena de responsabilidade (art. 50.°).

O poder judiciário compreende o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais, os Tribunais e Juizes de Trabalho, Eleitorais e Milita-

(i) Além disso, reagindo contra abusos anteriores, prescreve-se que as «medidas provisórias» (ou decretos legislativos do Presidente da República) serão submetidas de imediato ao Congresso que, estando em recesso, será convocado para se reunir no prazo de 5 dias (art. 62.”); e essas medidas perderão eficácia, desde a sua edição, se não forem convertidas em lei dentro de 30 dias após a sua publicação. Na prática os resultados têm sido escassos.

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Parte —O Estado e os sistemas constitucionais 235

rés e os Tribunais e Juizes dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios (art. 92.°).

V — Ao Supremo Tribunal Federal, composto por 11 Ministros nomeados pelo Presidente da República depois de aprovada a escolha pelo Senado (art. 101.°), compete julgar originariamente a acção directa de inconstitucionalidade de lei ou acto normativo federal ou estadual e o mandado de injunção, quando a norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso, de um dos Tribunais Superiores ou do próprio Supremo Tribunal Federal; julgar, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou acto de governo local contestado em face da Constituição; e exercer a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (arts. 102.° e 103.°).

VI — Na Constituinte havia uma larga corrente parlamentarista. Manteve-se o sistema presidencial; mas, à luz duma fórmula conciliatória, o Acto das Disposições Constitucionais Transitórias determinou a realização, em 7 de Setembro de 1993, dum plebiscito para se decidir o problema, e também para se escolher entre república e monarquia (art. 2.”).

Os resultados do plebiscito () viriam a ser favoráveis tanto ao presidencialismo como à república e a Constituição deixou, assim, de ser provisória no referente a estes dois aspectos — aiás, fundamentais — a partir de então.

VII — O Acto das Disposições Transitórias estabeleceu igualmente que a revisão constitucional se efectuaria após cinco anos contados de promulgação da Constituição, pelo voto de maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional em sessão unicameral (art. 3.°). Era um regime distinto das emendas (art. 60.”), não sem parecença com oregime da primeira revisão da Constituição portuguesa de 1976 (2) e, como este destinado (parece) a uma

() Que foi antecipado para 21 de Abril de 1993 (mas antecipado insconstitucionalmente, porque a norma que o previa era insusceptível de emenda — assim como não faria sentido adiar sine die o plebiscito, não era possível antecipá-lo).

(2) Cfr. infra.

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236Manual de Direito Constitucional

adaptação mais facilitada das normas constitucionais depois de um primeiro período de experiência ().

Esta revisão frustrar-se-ia. Contudo, desde 1994 têm sido aprovadas sucessivas alterações avulsas, sobretudo no domínio da organização económica.

O debate constitucional prossegue, pois, no Brasil.

§2.°

Os sistemas constitucionais dos países africanos de língua portuguesa

82. As primeiras Constituições

I — O acesso à independência dos cinco países africanos de língua portuguesa não se fez ao mesmo tempo e nos mesmos termos em que decorreu o acesso à independência dos demais países da África. Naturalmente tal como por toda a parte, esse tempo e esse modo haviam de determinar os seus sistemas políticos e constitucionais originários.

com efeito, depois de ter sido longamente retardado por causa do regime político em Portugal, deu-se a ritmo acelerado, logo que este regime foi substituído, e em cerca de 15 meses. Os «movimentos de libertação» que tinham conduzido a luta (política-militar ou só política) receberam o poder, praticamente sem transição gradual, por meio de acordos então celebrados com o Estado Português (2). Nuns casos (Guiné, Moçambique e Angola) os próprios movimentos viriam a proclamar a independência e a outorgar Constituições; noutros casos (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe), ela seria declarada formalmente

() Sobre os problemas postos pela revisão, v. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, O Poder judicirio e a revisão constitucional, i n Revista de Informação Legislativa n.” 120, Outubro-Dezembro de 1993, págs. 31 e segs.; GERALDO ATALIBA, Limites à revisão constitucional, ibidem, págs. 41 e segs.

(2) De qualificação jurídico-intemacional complexa.

Relativamente à Guiné-Bissau, o acordo teve por objectivo o reconhecimento por parte do Estado Português da independência declarada um ano antes em Medina do Boé.

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por assembleias eleitas, mas todas dominadas pêlos respectivos movimentos, transformados também logo em partidos únicos ().

II —As primeiras Constituições (2) foram: a de 1973 (3) (depois substituída pela de 1984), quanto à Guiné-Bissau; as de 1975, quanto a de Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Angola; e a provisória, de 1975 (depois substituída pela de 1980), quanto a Cabo Verde (4).

E tiveram de comum:

a) Concepção monista do poder e institucionalização de partido único (correspondente ao movimento de libertação do país, ou, relativamente a Angola, ao movimento vencedor na capital);

b) Abundância de fórmulas ideológico-proclamatórias e de apelo às massas populares;

c) Empenhamento na construção do Estado — de um Estado director de toda a sociedade;

d) Compressão acentuada das liberdades públicas, em moldes autoritários e até, em alguns casos, totalitários;

e) Organização económica do tipo colectivizante;

f) Recusa da separação de poderes a nível da organização política e primado formal da assembleia popular nacional.

Em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, os regimes eram definidos como de «democracia nacional revolucionários» (art. 3.” em cada uma das Constituições, respectivamente de 1980 e 1984), sendo o Partido Africano de Independência de Cabo Verde ou da Guiné e Cabo Verde a força política dirigente da sociedade e de Estado (art. 4.”).

() De 1975 a 1980 a Guiné-Bissau e Cabo Verde viriam a ser goveados pelo mesmo movimento, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, em fenómeno inédito similar a uma união pessoal.

(2) Os textos integrais constam da nossa colectânea Constituições de Diversos Países, nas edições de 1979-1980 e de 1986-1987.

(3) V. ANTÓNIO DUARTE SILVA, A Constituição de 24 de Setembro de 1973 da República da Guiné-Bissau. Lisboa, 1982.

(4) V. Luís MENDONÇA, O regime político de Cabo Verde, m Revista de Direito Público, n.” 3, Janeiro de 1988, págs. 7 e segs.; JORGE CARLOS FONSECA, O sistema de governo na Constituição Cabo-Verdiana, Lisboa, 1990.

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238Manual de Direito Constitcional

Moçambique era um Estado de democracia popular, pertencendo o poder aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela FRELIMO (art. 2. da sua Constituição).

Em Angola, o MPLA-Partido do Trabalho constituía «a vanguarda organizada da classe operária» e cabia-lhe «como partido marxista-leninista, a direcção política, económica e social do Estado nos esforços para a construção da sociedade socialista» (art. 2.” da Constituição).

Em S. Tomé e Príncipe, era o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, como vanguarda revolucionária, a força poítica dirigente da Nação, cabendo-lhe determinar a orientação política do Estado (art. 3.” da respectiva Constituição).

In — O poder fora conquistado por movimentos de libertação vindos de duras lutas, que exigiam um comando centralizado e, por vezes, personalizado. Por outro lado, a despeito da diferença de condições, na África dos anos 70 e 80 também era o modelo de partido único que prevalecia por toda a parte. Finalmente, Portugal não deixara nos seus antigos territórios nem instituições, nem tradições democráticas, liberais e pluralistas — até porque desde 1926 tão pouco houvera instituições dessa natureza entre nós e foi só a seguir a 1974 (já depois de consumada a separação) que em Portugal se ergueu, de novo e com mais aprofundamento, o Estado de Direito.

Tudo isto poderá explicar o carácter não democrático e o afastamento dos modelos ocidentais nos cinco países de língua oficial portuguesa.

83. As transições constitucionais democráticas

I — A partir da segunda metade dos anos 80, os regimes instaurados começaram a revelar nítidos sinais de esvaziamento, de incapacidade para resolver os problemas, de falta de consenso ou de legitimidade — sobretudo em Angola e Moçambique com dramáticas guerras civis alimentadas do exterior.

De 1990 para cá abrir-se-iam em todos os cinco países, embora em termos e com resultados diversos, processos constituintes em resposta a essa situação:

— Em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, processos de transição verdadeira e própria, por iniciativa dos próprios

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regimes no poder — processo de revisão constitucional no primeiro e no terceiro casos e culminando na aprovação de uma nova Constituição formal no segundo;

— Em Moçambique e Angola, processos de transição ligados aos processos de paz e conduzindo também a novas Constituições.

Em todos os países viriam a efectuar-se eleições gerais, inclusive com vitória da Oposição em Cabo Verde e em S. Tomé e Príncipe;

a seguir, em Cabo Verde far-se-ia uma nova Constituição. Mas, como é sabido em Angola não se conseguiu até agora ultrapassar as sequelas da guerra.

II — As novas Constituições datam de 1990, quanto a S. Tomé e Príncipe e Moçambique, e de 1992, quanto a Cabo Verde e Angola. A Guiné-Bissau não fez ainda uma nova Constituição, mas apenas sucessivas revisões (1).

E, tal como nas Leis Fundamentais da primeira era constitucional, não custa reconhecer fortes pontos de semelhança:

a) O reforço dos direitos e liberdades fundamentais, com enumerações largas e relativamente precisas, regras gerais sobre a sua garantia e proibição da pena de morte (como já acontecia em Cabo Verde);

b) A previsão de mecanismos de economia de mercado, bem como do pluralismo de sectores de propriedade, e, em geral, a desideologização da Constituição económica;

c) A inserção de regras básicas de democracia representativa;

e o reconhecimento dó papel dos partidos políticos;

d) A superação do princípio da unidade do poder e uma distribuição mais clara das competências;

e) Sistemas de governo com três órgãos políticos significativos — Presidente, Assembleia e Governo — com acentuação parlamentarizante em Cabo Verde, presidencialista em

(i) V. Luís BARBOSA RODRIGUES, A transição constitucional guineense, Lisboa, 1995.

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240Manual de Direito Constituciona

Moçambique, Angola e Guiné-Bissau e semipresidencial em S. Tomé e Príncipe;

f) Um primeiro passo no sentido da criação de autarquias locais;

g) A preocupação com a garantia da constitucionalidade e da legalidade (com a instauração, a prazo, em Moçambique de um Conselho Constitucional e em Angola de um Tribunal Constitucional).

Em muitas das fórmulas e das soluções divisam-se directas influências da Constituição portuguesa de 1976 ().

(i) V. JORGE BACELAR GOUVEIA, introdução à colectânea As Constitições dos Estados Lusófonos, Lisboa, 1993, e O princípio democrático no novo Direito constitucional moçambicano, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, págs. 457 e segs.; JORGE REIS NOVAIS, Tópicos de direito. Política e Direito Constitucional Guineeense, Lisboa, 1996.

TITULO In

AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESAS

CAPÍTULO I

AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESAS EM GERAL

84. Características do constitucionalismo português

Algumas notas básicas devem ser frisadas ao abordar-se o constitucionalismo português (). A primeira diz respeito ao corte que representa no confronto do momento anterior, de absolutismo monár-

() Como em tantos outros domínios, falta uma obra de fundo sobre a história constitucional portuguesa. O que há são sínteses, de maior ou menor dimensão, na sua maioria compreendidas em lições e trabalhos escolares: LOPES PRAÇA, Colecção de leis e subsídios para o estudo do Direito Constituconal Português, li, Coimbra, 1884; JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra, 1908, págs. 21 e segs.; MARNOCO E SOUSA, Direito Polítco — Poderes do Estado, cit., págs. 367 e segs.; FEZAS VITAL, Direito Constitucional, Lisboa,1936-1937, págs. 334 e segs.; JOSÉ CARLOS MOREIRA, Lições de Direito Constitucional, Coimbra, 1958, págs. 161 e segs.; MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, n, 6.” ed., Lisboa, 1972, e Constituições Portuguesas, Lisboa, 1978; MIGUEL GALVÀO TELES, Constituições Portuguesas, in Verbo, v, págs. 504 e segs.; CHRISTIAN DU SAUSSAY, L’évolution constitutionnelle du Portu gal contemporain — De Ia révolution de 1820 à 1’Estado Novo, tese policopiada, Nice, 1973; MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos..., cit., págs. 136 e segs.;

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RUY DE ALBUQUERQUE e MARTIM DE ALBUQUERQUE (com a colaboração de Duarte Nogueira, José Maltez e Leite Santos), História do Direito Português, policopiado, n, Lisboa, 1983, págs. 154 e segs.; A. P. RIBEIRO DOS SANTOS, A imagem do poder no constitucionalismo poruguês, Lisboa, 1990; NUNO ESPUMOSA GOMES DA SILVA, op. cit., págs. 379 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., págs. 273 e segs.; MARIA DA GLÓRIA GARCÍA, op. cit., págs. 339 e seg. e 558 e segs.; MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 402 e segs16—Man. Dir. Const.,

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242Manual de Direio Constitcional

quico. A segunda a interdependência de vicissitudes constitucionais e circunstancialismos políticos e sociais do país, sem embargo de as ideologias dos séculos xix e xx portugueses serem quase todas de proveniência estrangeira. A terceira nota concerne a origem e a sucessão das Constituições por rupturas. A quarta é a importância do constitucionalismo para todos os sectores da vida jurídica, e não apenas para o Direito constitucional.

Assim, tal como na generalidade dos países continentais, o constitucionalismo surge entre nós por via revolucionária; não por continuidade, mas por corte com o passado, seja esse corte feito pelo povo em armas (1820 e 1834) ou pelo próprio monarca (1826). O que sucede em Portugal — a passagem do Estado absoluto ao Estado constitucional — exemplifica a asserção atrás feita de que as Constituições trazem algo de diverso e original em face das anteriores «Leis Fundamentais» ().

Em segundo lugar, as nossas seis Constituições — decretadas em 1822, 1826, 1838, 1911, 1933 e 1976 — são o produto do circunstancialismo histórico do país e o reflexo de determinados elementos políticos, económicos, sociais e culturais. Fruto dos nossos atribulados dois últimos séculos, elas traduzem os seus problemas e as suas contradições e apresentam-se como veículos de certas ideias, tentativas de reorganização da vida colectiva, projectos mais ou menos assentes na realidade nacional, corpos de normas mais ou menos efectivos e duradouros.

Porém, a ideologia do constitucionalismo e as várias ideologias que no seu interior se defrontam não são criações nacionais e as Constituições têm, largamente, por fontes Constituições estrangeiras. Nem isso é estranho ou negativo só por si; também o absolutismo, e, depois, a ideologia legitimista não são exclusivamente portugueses.

() Contra: FRANZ LANGHANS, História das Instituições de Direio Público — Fundamentos Jurídicos da Monarquia Portuguesa, in Boletim do Mnistério da Justiça, n.” 21, Novembro de 1950, págs. 65 e segs. Menciona três fases na evolução das leis fundamentais: a da dispersão, a da concentração e a da sistematização. Para ele, as Constituições liberais correspondem a esta terceira fase e, apesar dos seus moldes novos, conservam, excepto em matéria de poder, as fórmulas históricas do Direito fundamental da monarquia.

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Parte l—O Estado e os sistema constitucionais 243

Em terceiro lugar, a história constitucional portuguesa, tal como a da generalidade dos países latinos, é feita de rupturas. As Constituições emergem em ruptura com as anteriores, sofrem alterações nem sempre em harmonia com as formas que prescrevem e acabam com novas rupturas ou revoluções (). A de 1822 é consequência da revolução de 1820, a de 1838 da revolução de 1836, a de 1911 da revolução de 1910, a de 1933 da revolução de 1926 e a de 1976 da revolução de 1974; da mesma maneira, o Acto Adicional de 1852 é consequência da revolução de 1851 e a alteração de 1918 da revolução de 1917. Única excepção: a Carta Constitucional, embora situada na vertente de 1820.

Finalmente, se o constitucionalismo é, antes de tudo, um fenómeno de Direito público, está longe de se esgotar nas suas águas. Por estar no cerne do desenvolvimento do Direito constitucional, teria de se projectar em todos a ordem jurídica. Além disso, o movimento doutrinal, filosófico e científico que o desencadeou e o que por ele se desencadeou foram, desde logo, muito mais vastos nas intenções e nos resultados.

85. A história política e constitucional portuguesa

I — Existe, pois, como não podia deixar de ser, uma relação constante entre história política e história constitucional portuguesa. Por um lado, aqui como por toda a parte, são os factos decisivos da história política que, directa ou indirectamente, provocam o aparecimento das Constituições, a sua modificação ou a sua queda. Por outro lado, contudo, as Constituições, na medida em que consubstanciam ou condicionam certo sistema político e na medida em que se repercutem no sistema jurídico e social vêm a ser elas próprias, igualmente, geradoras de novos factos políticos.

Daí que, sem se confundirem as perspectivas peculiares de uma e outra, seja possível e necessário considerar a experiência constitu-

() Sobre a origem revolucionária das constituições em geral, cfr. HENC VAN MAARSEVEN e GER VAN DER TANG, op. cit., pág. 288. Uma resenha das rupturas em Portugal pode ver-se em MARIA EUGENIA MATA, A actividade revolucionária no Portugal contemporâneo — uma perspectiva de onga duração, m Anlise Social, n.0 112-113, 1991, págs. 755 e segs.

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244Manual de Direito Constitucional

cional portuguesa a partir de três grandes períodos que relevam simultaneamente para a história política e para a história constitucional:

o período das Constituições liberais, o da Constituição de 1933 e o da Constituição de 1976.

A época liberal vai de 1820 a 1926. Durante ela sucedem-se quatro Constituições — de 1822, de 1826, de 1838 e de 1911 — que se repartem por diferentes vigências; há duas efémeras restaurações do antigo regime; e passa-se da monarquia à república. E, a distância, as principais diferenças entre essas Constituições (relativas aos poderes recíprocos do Rei ou Presidente e do Parlamento e à forma de eleição deste) parecem bem menores do que aquilo que as une (a separação de poderes e os direitos individuais) ().

Vem a seguir, entre 1926 e 1974, a quase obnubilação do

Estado consttucional, ïeye&entatvvo e à D\\Vo ou, àouï0 pï\ï>Tia,

a pretensão de se erguer um constitucionalismo diferente, um «Estado Novo», um constitucionalismo corporativo e autoritário. Eis o período da Constituição de 1933 (apesar de tudo, uma Constituição, ao contrário do que se passou em Itália, Alemanha e Espanha), cujo despontar não surpreende no paralelo com a situação europeia dos anos 20 e 30, mas cuja longa duração não se afigura facilmente explicável.

com a revolução de 1974, entra-se na época actual — muito recente e já muito rica de acontecimentos, ideologias e contrastes sociais e políticos — em que o país se encaminha para um regime democrático pluralista (ou de liberalismo político) com tendências descentralizadoras, por um lado, e socializantes, por outro lado. A Constituição de 1976, resultante dessa revolução, significa, em primeiro lugar, o termo daquele interregno e, depois, a abertura para horizontes e aspirações de Estado social e de Estado de Direito democrático. E só nesta altura pode falar-se em constitucionalismo democrático, porque só agora está consignado o sufrágio universal.

(i) Para uma visão sintética, cfr. MÁRIO MELO ROCHA, A separação dos poderes nas Constiuições portuguesas do demo-liberalismo, m Estudos em homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer Correia, obra colectiva, II, Coimbra, 1992, págs. 581 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 245

II — Se, relativamente à periodificação básica acabada de expor, pode e deve encontrar-se coincidência entre a história constitucional e a história política, já na subdivisão de cada um dos períodos o mesmo se mostra difícil ou impossível.

com efeito, na história constitucional mais em particular, as fases que se demarquem correspondem aos momentos de preparação e de vigência das diversas Constituições, bem como — inelutavelmente — às soluções de continuidade entre elas. Ao invés, na história política o recortar de fases tem de repousar noutros critérios — não tanto na natureza do sistema constitucional quanto no modo de esse sistema funcionar, nas ideias e nas convicções dominantes, na estrutura económica do país, na estabilidade ou instabilidade das instituições políticas, nos grandes eventos de cada geração.

Tal não sobreposição manifesta-se com mais nitidez na época liberal, sem deixar de se verificar nos dois períodos subsequentes ().

() Sobre a história política contemporânea portuguesa, em geral, v. OLIVEIRA MARQUES, História de Portugal, li vol., Lisboa, 1973; História de Portugal, ed. de Barcelos, 1935, com os suplementos de 1954 e 1983; e os n.0 72-73-74 de Análise Social; VERÍSSIMO SERRÂO, História de Portugal, vols. 7.” a 12.”, Lisboa, 1984 a 990;

e a História de Portugal, obra colectiva sob a direcção de José Mattoso, vols. 5.” a 8.”, Lisboa, 1993 e 1994.

Sobre o século xix, cfr., sobretudo, OLIVEIRA MARTINS, Política e História, l, l. ed., 1868-1878 e Portugal Contemporâneo, 3 vols., l. ed., 1881, e ainda VICTOR DE SÁ, A Crise do liberalismo e as primeiras manifestações das ideias socialistas em Portugal (1820-1852), Lisboa, 1969; VITORINO MAGALHÃES GODINHO, Estruturas da Antiga Sociedade Portuguesa, 2:’ ed., Lisboa, 1975; ALBERT SIBERT, Do Portgal do antigo regime ao Portugal oitocentista, trad., Lisboa, 1977; MIRIAN HALPERN PEREIRA, Revolução, Finanças, Dependência Externa (De 820 à convenção de Gramido), Lisboa, 1979; os n.0 61-62, 1980, de Análise Social. Sobre a implantação do liberalismo, ALMEIDA GARRETT, Portugal na balança da Europa, l. ed., 1830;

FERNANDO PITEIRA SANTOS, Geografia e Economia da Revolução de 1820, Lisboa,1961; a obra colectiva O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século x/x, 2 vols., Lisboa, 1982.

Sobre a Primeira República, cfr. as obras tão diversas de JESUS PABÓN, A Revolução Portugesa, trad., Lisboa, 1961; OLIVEIRA MARQUES, A Primeira Republica Portuguesa—Para uma análise estrutural, Lisboa, 1971; FERNANDO JASMINS PEREIRA, A Primeira República, Braga, 1972; DAVID FERREIRA, História Política da Primeira República, Lisboa, 1973; CÉSAR OLIVEIRA, O operariado e a república democrática,2° ed., Lisboa, 1974; VASCO PULIDO VALENTE, O Poder e o Povo — A Revolução de 1910, Lisboa, 1976; e A «República Velha» (ensaio de interpretação política), in

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246Manual de Direito Constitucional

In — O constitucionalismo liberal abrange quatro sub-períodos:

a) A instauração do liberalismo (1820-1851), caracterizada pelo antagonismo entre liberais e absolutistas, primeiro, e entre vintistas (liberais radicais) e cartistas (partidários da Carta Constitucional), depois, pelo clima de guerra civil e pela feitura e substituição de três Constituições;

b) A Regeneração (1851-1891), caracterizada pela pacificação à sombra do Acto Adicional de 1852, pela política de melhoramentos materiais («fontismo») e pelo rotativismo de partidos no poder;

c) A crise da monarquia constitucional (1891-190), subsequente ao ultimato, ao 31 de Janeiro e a uma grave crise financeira;

d) A primeira república (1910-1926).

São em muito maior número as fases que dum ângulo estritamente jurídico-constitucional cabe sumariar:

1.°) De 1820 a 1822 — fase pós-revolucionária imediata, antecedente da Constituição;

Análse Social, n. 115, 1992, págs. 7 e segs.; DOUGLAS L. WHEELER, Republicar Portgal—A poítica hislory 190-1926. Universidade de Wiscousin, 1978 (e A Primeira República Portuguesa e a história, in Análise Social, n.” 56, 1978, págs. 865 e segs.).

Sobre o «Estado Novo», v. JORGE CAMPINOS, A Ditadura Miliar— 1926-1933, Lisboa, 1975; M. VLAVERDE CABRAL, Sobre o fascismo e o seu advento em Portugal, in Análise Social, n.” 48, 1976, págs. 873 e segs.; JACQUES GEORGEL, Lê salawrisme — Histoire et bilan Paris, 1981; DOUGLAS WHEELER, A Ditadura Militar Poruguesa — 1926-1933, trad., Lisboa, 1988; MANUEL BRAGA DA CRUZ, O Parido e o Estado no Salaarismo, Lisboa, 1988; O Estado Novo — Das origens ao fim da autarcia — 1926-1959, obra colectiva, 2 vols., Lisboa, 1989; Salawr e o salaarismo, obra colectiva organizada por Fernando Rosas e Brandão de Brito, Lisboa, 1989.

Sobre o período constitucional actual, v. Portugal — 20 Anos de Democracia, obra colectiva dirigida por António Reis, Lisboa, 1994.

Sobre o papel poítico das Forças Armadas em diversos momentos, v. EDUARDO LOURENÇO, Os militares e o poder, Lisboa, 1975; JOSÉ FREIRE ANTUNES, A desgraça da República na ponta das baionetas, Lisboa, 1978; FERNANDO PEREIRA MARQUES, Exército e Sociedade em Portugal — No declínio do Antigo Regime e advento do Liberalismo, Lisboa, 1981; MARIA CARRILHO, Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no século xx, Lisboa, 1985, e Democracia e defesa —Sociedade política e Forças Armadas em Portugal, Lisboa, 1994; VASCO PLILIDO VALENT, Os Militares e a Política (1820-856), Lisboa, 1997.

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Parte I—O Esado e os sistemas constitucionais 247

2.°) De 1822 a 1823 — fase de vigência (de primeira vigência) da Constituição votada em 23 de Setembro de 1822;

3.°) De 1823 a 1826 — abolição da Constituição e regresso precário ao regime anterior, se bem que D. João VI tenha mandado elaborar um projecto de Constituição ();

4.°) De 1826 a 1828 — outorga de Carta Constitucional por D. Pedro IV e sua (primeira) vigência;

5.°) De 1828 a 1834 — regime legitimista de D. Miguel (salvo na Terceira) e guerra civil (desde 1832);

6.°) De 1834 a 1836 — segunda vigência da Carta Constitucional;

7.°) De 1836 a 1838 — após a revolução de Setembro, segunda vigência da Constituição de 1822 (pouco efectiva, porém) e preparação de nova Constituição (2);

8.°) De 1838 a 1842 — vigência da Constituição de 1838;

9.°) De 1842 a 1851 — terceira vigência da Carta Constitucional;

10.°) De 1851 a 1852 — preparação de reforma da Carta, após a Revolução de 1851 («Regeneração»);

11.°) De 1852 a 1910 — continuação da vigência da Carta, alterada, designadamente, pelo Acto Adicional de 1852;

12.°) De 1910 a 1911 — governo provisório da República;

13.°) De 1911 a 1917 — vigência da Constituição de 1911;

() O projecto, obra de uma comissão nomeada pelo Rei e inacabado, foi pubicado, graças a PAULO MERÊA, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIII (de que há separata, Coimbra, 1967), e, mais recentemente, na nossa colectânea Anteriores Constituições Portuguesas, Lisboa, 1975.

Sobre as intenções e os preparativos de outorga de uma Constituição por D. João VI, v. UNO ESPINOSA GOMES DA SILVA, Nótulas histórico-jurídicas, m Revista Jurídica, 1979, págs. 113 e segs.; RODRIGUES DIAS, José Ferreira Borges — Política e Economia, Lisboa, 1988, págs. 209 e segs.; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Para uma história..., cit., pãgs. 371 e segs.

Conhece-se também um projecto lateral: v. ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, O projecto institucional do tradicionalismo reformista: um projecto de Consituição de Francisco Manue Trigoso de Aragâo Morato (823), Lisboa, 1981.

(2) O Decreto de 10 de Setembro de 1836 restabeleceu a Constituição «com as modificações que as circunstâncias fizeram necessárias» e convocou Cortes para

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fazerem nela as modificações «convenientes».

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14.°) De 1917 a 1918 — goveo de Sidónio Pais e alteração da Constituição de 1911 pelo Decreto n.° 3997, de 30 de Março de 1918;

15.°) De 1918 a 1926 — segunda vigência da Constituição de 1911.

IV — Menos significativas (comparativamente falando) vêm a ser fases que se deparam na evolução política do regime autoritário:

a) De 1926 a 1928, fase do governo militar directo;

b) De 1928 a 1945, início e apogeu do consulado de Salazar (ou do «Estado Novo»);

c) De 1945 a 1961, fase de decadência e de fuga à adopção das fórmulas democráticas europeias;

d) De 1961 a 1974, fase final, dominada pelas guerras ultramarinas.

E no plano jurídico-constitucional, apenas:

1.°) De 1926 a 1933 — «Ditadura Militar», com latência constitucional, só em 1931 começando a ser preparada nova Constituição;

2.°) De 1933 a 1974 — vigência da Constituição de 1933, ainda que sujeita a várias revisões, de maior ou menor vulto.

V — Após a revolução de 1974, o avolumar de tensões e projectos contraditórios determinaria, não obstante o curto lapso de tempo, três fases:

a) De 25 de Abril a 11 de Março de 1975;

b) De 11 de Março a 25 de Novembro de 1975;

c) De 25 de Novembro de 1975 em diante.

E no plano jurídico-constitucional:

1.°) De 1974 a 1976 — fase pós-revolucionária imediata, com processo de formação de nova Constituição;

2.°) Desde 1976 — regime constitucional (em que poderá, porventura, proceder-se à demarcação de duas subfases — até à primeira revisão constitucional, em 1982, e depois desta).

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Parte I—O Esado e os sistemas constitucionais 249

VI — Deste rapidíssimo relance extraem-se os seguintes dados:

a) E bastante variável a duração das Constituições — escassos sete meses a de 1822 na sua primeira vigência e dois anos na segunda; dois anos a Carta na primeira vigência, dois na segunda e sessenta e oito, embora com rupturas e modificações, na terceira (a mais longa etapa constitucional portuguesa até agora); menos de quatro anos a Constituição de 1838; quinze anos, com intervalo, a Constituição de 1911;

quarenta e um anos a Constituição de 1933; até agora vinte a Constituição actual;

b) Não há vigência contínua de todas as Constituições, há espaços em branco entre elas, mesmo se, entretanto, são publicadas leis formalmente constitucionais como sucede entre 1974 e 1976; e, se a Constituição de 1911 vai vigorar ainda parcialmente até 1933 e a de 1933 até 1976, não é senão a título derivado e secundário num fenómeno de mera recepção material ().

VII — No capítulo anterior pusemos em relevo as influências recíprocas do constitucionalismo português e do brasileiro.

Cabe agora referir as notórias semelhanças de evolução político-constitucional de Portugal e Espanha:

— A nossa primeira Constituição tem por fonte a Constituição de Cádis e cai em 1823, logo que, em Espanha, Fernando VII é restabelecido como rei absoluto;

— Tal como em Portuga, em Espanha dá-se uma guerra de sucessão (e outra, décadas mais tarde), à qual subjaz o conflito entre liberais e absolutistas;

— O equivalente à Carta Constitucional é o Estatuto Real de 1834 e o equivalente à nossa Constituição de 1838 a Constituição espanhola de 1837 (uma das suas fontes, de resto);

— A segunda metade do século é de relativa paz institucional em ambos os países, assim como a instabilidade de reinado de D. Carlos tem paralelo na do reinado de Afonso XIII;

(i) Cfr. tomo l.

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250Manual de Direito Constitucional

— A ditadura de Primo de Rivera (1923-1930) é coeva da Ditadura Militar antes de Salazar;

— São por demais conhecidos os pontos de contacto doutrinais e institucionais entre o «Estado Novo» de Salazar e o regime de Franco;

— A revolução portuguesa de 1974 é um dos factores determinantes da «reforma política» ou transição constitucional espanhola e a Constituição de 1976 influencia, em alguns pontos, a Constituição de 1978.

86. A formação e as vicissitudes das Constituições

I — Se cinco em seis das Constituições portuguesas brotam em linha recta de revoluções, o modo como são elaboradas revela assinaláveis diferenças. Três são elaboradas e decretadas por assembleias constituintes — as de 1822, 1911 e 1976. Uma é elaborada e aprovada por assembleia constituinte e submetida a sanção real — a de 1838. Outra — a de 1933 — é elaborada pelo Governo e objecto de plebiscito. E a Constituição de origem não revolucionária — a de 1826 — é escrita e outorgada pelo rei ().

A Constituição de 1822 vem a ser preparada pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes de Janeiro de 1821 a 23 de Setembro de 1822, data da sua aprovação e que fica a individualizá-la. O Rei tem de a aceitar e de a jurar, sem nenhuma participação constitutiva na sua feitura.

A Carta Constitucional resulta do exercício do poder absoluto real que, assim, se autolimita. Redigida por D. Pedro IV de 24 a 29 de Abril de 1826, este é «servido decretá-la, dá-la e mandá-la jurar

() Para o conhecimento dos trabalhos preparatórios das Constituições votadas em assembleias constituintes é fundamental a leitura dos respectivos Diários de sessões.

Para além dos trabalhos preparatórios, v. ainda numerosos documentos importantes, quanto às Constituições monárquicas, em LOPES PRAÇA, Coecção..., cit., li;

quanto às Constituições de 1822 e 1826, na obra do Barão de São Clemente, Documentos para a História das Cortes Gerais da Nação Portuguesa, 8 tomos,1883; quanto à Constituição de 1911, em Constituintes de 191 e os seus Deputados, obra compiada e dirigida por um antigo oficial da Secretaria do Parlamento, Lisboa, 1911; e, quanto à Constituição de 1976, no nosso livro Fontes e Trabahos Preparatórios da Constituição, Lisboa, 1978.

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Parte —O Estado e os sistemas constitucionais 251

imediatamente pelas Três Ordens do Estado» (como se diz na fórmula de outorga).

A Constituição de 1838 é elaborada pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes de Janeiro de 1837 a Março de 1838 e sancionada pela Rainha em 4 de Abril de 1838. Tal como a Constituição francesa de 1830, adquire, pois, carácter pactício.

A Constituição de 1911 é preparada de Junho a Agosto desse ano. Tem a data de 21 de Agosto, dia em que a Assembleia Nacional Constituinte a decreta.

A Constituição de 1933 é aprovada em referendo. O Governo elabora um projecto, que dá a conhecer através dos jornais, em 28 de Maio de 1932; e é esse projecto, com algumas alterações, que vem a ser votado em «plebiscito nacional» em 19 de Março de 1933. A data da Constituição é de 11 de Abril, dia da publicação dos resultados do plebiscito.

Por último, a Constituição de 1976 é elaborada e decretada pela Assembleia Constituinte reunida de 2 de Junho de 1975 a 2 de Abril de 1976. Como elemento anómalo verifica-se a celebração de duas «Plataformas de Acordo Constitucional» entre os partidos políticos e um órgão provisório do poder, o Conselho da Revolução, destinadas a predeterminar certas matérias da organização política; mas, conforme se verá, as Plataformas são compromissos políticos sem valor jurídico.

II — As passageiras Constituições de 1822 e 1838 permanecem intocadas durante o curto tempo em que vigoraram.

A Carta e as Constituições de 1911, 1933 e 1976 sofrem modificações, aquela sob a forma de Actos Adicionais e estas sob a de leis de revisão ou de leis constitucionais. São publicados quatro Actos Adicionais à Carta — em 1852, 1885, 1895-1896 e 1907; cinco leis de revisão da Constituição de 1911 — em 1916 e em 1919-1921 — e a alteração ditatorial constante do Decreto n.° 3 997, de 1918; nove leis de revisão da Constituição de 1933 — em 1935-1938, 1945,1951, 1959 e 1971; e já quatro leis de revisão da Constituição de 1976 —em 1982,1989, 1992 e 1997.

Nem sempre as modificações constitucionais se processam no respeito das normas que as regem. Na Carta, só o Acto Adicional

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de 1885 as observa; não os Actos Adicionais de 1852, 1895-1896 e 1907. Na Constituição de 1911, por definição, dá-se à sua margem a alteração de 1918. Na Constituição de 1933, chegou a ser posta em causa a constitucionalidade da revisão de 1971 (e, de certo modo, também a de 1945). E na Constituição de 1976 sérias dúvidas, pelo menos, podem ser suscitadas acerca da última revisão.

In — Algumas das Constituições contemplam à parte a primeira revisão a efectuar após a sua entrada em vigor (particularmente sensível, por ser tempo de institucionalização e tempo de pôr à prova o sistema constitucional).

A Constituição de 1822 e a Carta somente autorizam a primeira revisão ao fim de quatro anos (arts. 28.° e 140.°, respectivamente) e a Constituição de 1976 a partir da segunda legislatura, mais de quatro anos e meio sobre a sua aprovação [arts. 164.°, alínea a), 286.° e 299.°, n.° l]. Ao invés, a Constituição de 1933, não votada em assembleia constituinte, concede poderes de revisão durante a primeira legislatura (art. 137.°). Mas a única Constituição que contém regras especiais de processo para a primeira revisão é a de 1976.

87. Os textos constitucionais

I — Passando agora à análise interna dos textos constitucionais, podem anotar-se os seguintes aspectos de ordem formal e técnica (embora não politicamente neutros): os concernentes ao preâmbulo, à extensão do articulado e à sistematização.

São precedidas de preâmbulo as Constituições de 1822, 1911 e 1976 () por sinal, ou por isso mesmo, as que estão ligadas a revoluções que quiseram fazer maiores viragens históricas.

() O preâmbulo de 1822 lembra, salvo a invocação da Santíssima Trindade, o preâmbulo da Declaração francesa de 1789. O de 1911 limita-se a afirmar «a confiança inquebrantável nos superiores destinos da Pátria, dentro de um regime de liberdade e justiça». Sobre o de 1976, cfr. infra.

Nas duas últimas revisões da Constituição de 1933, tentou-se, sem êxito, fazer preceder o texto de um preâmbulo com a invocação do nome de Deus (cfr., em sentido desfavorável, os pareceres da Câmara Corporativa, in Actas, 1959, n.” 58, e 1971, n.° 67). Mas uma referência a Deus seria incluída no art. 45.” após a revisão de 1971.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 253

E variável a extensão do articulado: 240 artigos, em 1822; 145, em 1826; 140, em 1838; 87, em 1911; 142, em 1933; 312, em 1976. A primeira e a última Constituições são as mais longas. A extensão depende tanto da técnica legislativa usada como dos assuntos elevados à Constituição (em sentido material e em sentido formal) ou dotados de relevância constitucional.

Quanto à sistematização, uma nítida contraposição separa as Constituições de 1822 a 1911 das Constituições de 1933 e 1976. Enquanto que aquelas assentam na organização política, à volta dos «Poderes do Estado» e se dividem em títulos sem coordenação entre si, estas são mais exigentes no tratamento dos grandes temas constitucionais, objecto de partes, por sua vez subdivididas em títulos.

Por outra banda, enquanto que a Constituição de 1933 somente compreende duas partes («Garantias Fundamentais» e «Organização Política do Estado»), além de disposições complementares, a Constituição de 1976 compreende quatro partes («Direitos e deveres fundamentais», «Organização económica», «Organização do poder político» e «Garantia e revisão da Constituição») além de «Princípios fundamentais» (correspondentes aos títulos sobre a «Nação Portuguesa» das Constituições anteriores) e «Disposições finais e transitórias». De realçar aqui o progresso conceituai traduzido ainda na definição de «princípios gerais» em cada uma das três primeiras partes.

II — Quanto às matérias reguladas pelas Constituições, em todas vão encontrar-se:

—Referências ao povo, ao território e ao poder político ou soberania, os tradicionais «elementos» ou condições de existência do Estado, umas vezes definidos por meros critérios formais, outras vezes definidos ou descritos por critérios materiais;

—O tratamento da forma de Estado e da forma de governo (para empregar as locuções clássicas);

— A enumeração dos direitos fundamentais e regras sobre o seu exercício, as suas garantias e a sua suspensão em estado de necessidade;

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254Manual de Direito Constiucional

— Regras sobre as relações das Igrejas e do Estado;

— Regras sobre a participação política dos cidadãos, nomeadamente através de eleições (embora de sentido e extensão variáveis);

—Regras sobre os órgãos de soberania e outros órgãos directamente criados pela Constituição;

— Regras sobre as autarquias locais (assim denominadas desde a Constituição de 1933) e a divisão administrativa do território;

—Preceitos sobre as Forças Armadas (em título ou capítulo autónomo, salvo na Constituição de 1911);

—Preceitos sobre as finanças públicas;

— A regulamentação da revisão constitucional;

— Regras sobre a garantia da constitucionalidade.

O conteúdo permanece relativamente estável ao longo das Constituições liberais, de 1822 a 1911. Se enriquecimento se verifica é tão só no domínio dos direitos, liberdades e garantias. Pelo contrário, a Constituição de 1933 e, sobretudo, a de 1976 (porventura, com pormenores descabidos) ampliam extraordinariamente o seu âmbito de matérias, como decorrência do fenómeno geral de transformação das relações entre Estado e sociedade no século xx.

A Constituição de 1933 ocupa-se da protecção da família, da opinião pública, das incumbências económicas do Estado, da organização de interesses sociais, da empresa, do trabalho, da função pública, do domínio público.

Por seu turno, a Constituição de 1976 contém normas sobre os símbolos nacionais, o estado de emergência, o direito de asilo, a extradição e a expulsão, o Provedor de Justiça, o direito à intimidade, a informática, o direito de antena, a objecção de consciência, as comissões de trabalhadores, a liberdade sindical, a autogestão, as cooperativas, a segurança social, o ambiente, a qualidade da vida, a habitação, o urbanismo, o planeamento familiar, a maternidade, a infância, a juventude, os deficientes, a velhice, o acesso às Universidades, a educação física e os desportos, a protecção do consumidor, os sectores de propriedade dos meios de produção, o plano, as actividades delituosas contra a economia nacional, os investimentos estrangei-

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 255

ros, a gricutura, os circuitos comerciais, os princípios gerais de direito eleitoral, os partidos e o direito de oposição, as regiões autónomas, as regiões administrativas, as organizações populares de base territorial.

88. As orientações de fundo

I — Sem curar por ora dos projectos políticos subjacentes a cada Constituição e de algumas complexas questões de teoria constitucional que colocam, convém proceder a uma primeira observação global das grandes orientações expressas nas seis Leis Fundamentais portuguesas — a uma primeira observação daquilo que, a despeito de tudo, têm de comum e daquilo que mais vincadamente as divide.

II — Têm de comum:

— A reafirmação (e a acentuação mesmo) do carácter soberano do Estado português;

— A proclamação do princípio da igualdade jurídica;

— A consagração, embora em moldes diferentes, da liberdade de expressão, de garantias de direito e processo penais, da inviolabilidade do domicílio e de correspondência, do direito de petição, do direito de sufrágio, do direito de acesso aos cargos públicos, da propriedade privada e de certa maneira, do direito à educação;

— As instituições representativas, sem exclusão, no entanto, de outras formas de participação política dos cidadãos; e o sufrágio individual, e não o sufrágio orgânico, pelo menos sempre na eleição dos Deputados;

— A pluralidade de órgãos políticos, havendo sempre um Chefe de Estado (Rei ou Presidente da República) e uma assembleia;

— A consagração dos tribunais entre os poderes do Estado ou os órgãos de soberania, a par dos órgãos políticos;

— A garantia da existência de concelhos ou municípios e dos seus órgãos representativos.

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256Manual de Direito Constitcional

In — Muito claras oferecem-se, do mesmo passo, algumas contraposições:

—Entre Constituições de Estado unitário () (todas, salvo a de 1822) e Constituição de Estado composto, embora imperfeito (esta);

—Entre Constituições monárquicas (as de 1822, 1826 e 1838) e republicanas (as de 1911, 1933 e 1976);

—Entre Constituições com religião oficial do Estado (as de 1822,1826 e 1838) e Constituições com separação da Igreja do Estado (as de 1911, 1933 e 1976);

—Entre Constituições surgidas sob o princípio da legitimidade monárquica, como é a Carta, e Constituições surgidas sob o princípio da legitimidade democrática, como são as demais;

—Entre Constituições pluralistas e liberais (em sentido político), como são todas, menos a de 1933, e Constituição autoritária, como é esta;

—Entre Constituições liberais individualistas (as quatro primeiras) e Constituições de intenções sociais (as de 1933 e 1976);

— Entre Constituições que se ocupam ex professo da economia (as de 1933 e 1976) e Constituições que não se ocupam (as anteriores);

—Entre Constituições que estabelecem o sufrágio universal (a de 1976) e Constituições que o não estabelecem (todas as outras);

— Entre Constituições que estabelecem o sufrágio directo na eleição do Parlamento (todas, salvo a Carta) e Constituições que estabelecem o sufrágio indirecto (a Carta até ao Acto Adicional de 1852); e, entre Constituições que prevêem a eleição directa do Presidente da República (as de 1933 e 1976, além da alteração de 1918) e Constituições que prevêem a eleição indirecta (a de 1911 e a de 1933, após a revisão de 1959);

() O termo surge, porém, apenas a partir de 1911.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 257

— Entre Constituições com concentração do poder político (a Carta e a Constituição de 1933) e Constituições com desconcentração do poder (as restantes);

— Entre Constituições que formalmente consagram o princípio da separação de poderes (as liberais e, sob a forma da separação e da interdependência dos órgãos de soberania, a de 1976) e Constituições que o repelem (a de 1933, embora reconheça a independência da função judicial); e entre Constituições que atribuem ao Parlamento a plenitude da competência legislativa (as liberais) e as que lhe atribuem apenas o primado (a de 1933 e a de 1976);

—Entre Constituições com Parlamento unicameral (as de 1822,1933 e 1976, sem se esquecer, porém, a existência nelas, respectivamente, do Conselho de Estado, da Câmara Corporativa e, até 1982, do Conselho da Revolução) e Constituições com Parlamento bicameral (as de 1826, 1838 e 1911);

—Entre Constituições que instituem o Governo como órgão colegial autónomo (as de 1933 e 1976) e Constituições sem desdobramento ou com desdobramento imperfeito do Poder Executivo (as anteriores, que prevêem Secretários de Estado ou Ministros com estatuto próprio);

—Entre Constituições que instituem fiscalização jurisdicional da constitucionalidade (as de 1911, 1933 e 1976) e Constituições que a ignoram (as anteriores);

— Entre Constituições puramente representativas quanto a decisões políticas a nível nacional (todas, menos a de 1933, após 1935, e a de 1976, após 1989) e Constituições que admitem referendo (estas, desde essas datas);

—Entre Constituições com Conselho de Estado (as de 1822,1826, 1933 e 1976, após 1982) e Constituições sem Conselho de Estado (as de 1838 a 1911).

IV — Finalmente, não se desconhecem os eventos paralelos do Direito constitucional e do Direito administrativo: assim como este nasce verdadeiramente só com as reformas de Mouzinho da Silveira, também, muito mais tarde, apenas a Constituição de 1976 e as suas revisões viriam a conferir aos administrados um estatuto consolidado frente ao aparelho de poder.17—Man. Dir. Const..

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258Manual de Direito Constitucional

Se, neste século e meio, tem havido não poucas normas constitucionais não efectivadas na organização e na disciplina da actividade administrativa e se, ao invés, tem havido aquisições e mutações no Direito administrativo sem imediata prévia prescrição constitucional, a médio e a longo prazo a jurisprudência, a prática e a doutrina têm feito prevalecer a unidade dinâmica do ordenamento ().

89. A instabilidade constitucional e a deficiência das insti tuições portuguesas

I — Excepto a de 1933 (pelo menos, em parte), as Constituições portuguesas são todas Constituições na linha do Estado de Direito de tipo ocidental. Visam regular o processo político, limitar o poder, agir sobre o sistema social, prescrever os princípios fundamentais dos vários ramos de Direito. Na prática, não têm conseguido (ou não têm conseguido até há pouco) desempenhar plenamente tal função.

Dados históricos bem conhecidos, a relativa inaptidão dos projectos políticos nelas contidos em face dos problemas concretos do país, os atrasos económicos, sociais e culturais, o relativo pouco enraizamento de práticas de participação política, as dificuldades de institucionalização, o excessivo peso dos militares em consequência de tudo isso, a cisão entre «estrangeirados» e «nacionais» e entre progressistas e tradicionalistas, a prevalência das razões de dissenso sobre as razões de consenso nacional têm travado ou mitigado tal possibilidade.

As Constituições portuguesas são, não obstante, em menor número que as de outros países: que as de alguns dos países mais próximos de Portugal como o Brasil (sete Constituições), a Espanha (nove ou dez Constituições), a Grécia (onze Constituições) ou a França (treze ou catorze Constituições). Mas há diferença entre a experiência constitucional portuguesa (e também a brasileira, a espanhola e a grega), por um lado, e a experiência constitucional francesa, por outro lado.

() A Administração Púbica nas Constituições portuguesas, cit., loc. cit., págs. 616 e 617.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 259

Ao passo que em França — como se referiu atrás — a instabilidade de Constituições se faz num processo dialéctico, em que os contrastes se vão tomando menos cavados e as sínteses cada vez mais amplas, em Portugal a instabilidade de Constituições não só resulta da instabilidade política e social como até não a representa tão claramente como poderia supor-se. Em França, para lá da variedade de regimes políticos, ao longo do século xix foram-se sedimentando grandes princípios constitucionais, nomeadamente os que constam da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; em Portugal, se do século xix para o século xx o acordo sobre os fundamentos do constitucionalismo liberal não oferece solidez (assim como no Brasil, em Espanha e na Grécia), ele ainda mais vai ficar afectado pela duração inusitada de uma ditadura que os põe em causa.

Compreendem-se, aliás, as razões destes discrepantes fenómenos. Enquanto que em França a crise de legitimidade é vencida cerca de 1880 e se dão, simultaneamente, uma estabilidade de classes e um surto de progresso económico e social, em Portugal prolonga-se até aos nossos dias a crise da legitimidade e não conseguem ser vencidos todos os factores de atraso. Enquanto que em França há fortes instituições políticas a nível central e local, em Portugal elas quase não têm tido tempo para se formar ou são débeis demais para persistir. E, por isso, cada nova Constituição tem sido para os Portugueses um começar ou recomeçar de novo na procura de uma convivência política pacífica, tem sido o ter de se fazer tudo desde a base no plano institucional ().

II — Será agora diferente, irão, enfim, os hábitos constitucionais (2) radicar-se em Portugal?

A experiência, em tantos casos, dolorosa dos três primeiros quartéis do século xx, a modernização da sociedade, os progressos da

() Podem ser propostas duas «leis» muito elementares de história constitucional: l) a instabilidade e a variabilidade constitucionais são o reflexo dos problemas sociais e políticos dum país; 2) nenhuma Constituição resolve só por si tais problemas, quando muito é um adjuvante da sua resolução ou não resolução.

(2) Na expressão de ALMEIDA GARRETT, Portugal na Balança da Europa, cit., pág. 23.

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260Manual de Direito Constitucional

cultura cívica, o desenvolvimento das instituições de Direito público, o contexto europeu têm tomado o actual regime político muito mais estável e consensual que todos os regimes precedentes. Pela primeira vez, tem prevalecido o princípio da autoridade dos governantes exclusivamente com base no sufrágio. E a Constituição de 1976, depois de ter ultrapassado não poucas dificuldades, vai-se mostrando — já com mais de vinte anos de vigência — uma Constituição normativa (na acepção de KARL LOEWENSTEIN), uma Constituição que fundamenta e limita o poder.

Todavia, a persistência do revisionismo constitucional — fruto de um positivismo legalista ainda dominante e de certa postura da classe política e dos próprios juristas — pode levar a supor que ainda alguns caminhos têm de ser percorridos até se chegar a um estádio comparável ao das democracias vizinhas.

CAPITULO II

AS CONSTITUIÇÕES LIBERAIS

§1.°

A Constituição de 1822

90. As Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição

I — A Constituição de 1822 () foi obra das Cortes Constituintes eleitas em Portugal, no Brasil e nos territórios portugueses da

() Sobre a Constituição de 1822, v., além das obras gerais mencionadas, PADSTINO JOSÉ DA MADRE DE DEUS, A Constituição de 1822 Comentada e Desenvolvida na Prática, Lisboa, 1823 (critica sistemática, na análise artigo a artigo);

JOSÉ LIBERATO FREIRE DE CARVALHO, Essai historique-politque sur Ia Constitucion et lê Gouvernement du Royaume de Portugal, Paris, 1930, págs. 247 e segs.; SILVESTRE PINHEIRO-PERREIRA, Breves observações sobre a Constituição Política da Monarquia Portuguesa, Paris, 1837; MÁRIO SOARES, Constituição de 1822, m Dicionário de História de Portugal, l, 1963, págs. 673 e segs.; JOSÉ TENGARRNHA, Manuel Fernandes Tomás —A Revolção de 820, Lisboa, 1974; JAIME RAPOSO COSTA, A teoria

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Parte í—O Estado e os sisemas constitucionais 261

/

África e da Ásia, de acordo com uma regra de proporcionalidade entre o número de eleitores e o número de Deputados a eleger — o que era bem significativo do princípio da igualdade de direitos e do conceito de Nação que os homens de 1820 adoptavam () (2).

II — O processo constituinte compreendeu duas fases: primeiro, foram definidas as «Bases da Constituição» e só muito depois (até porque as Cortes eram também ordinárias) viriam a ser elaborados e redigidos os preceitos constitucionais.

As «Bases» foram aprovadas por Decreto de 9 de Março de 1821, vindo a servir de orientação para os trabalhos da Assembleia e também de Constituição, provisoriamente, e, tendo sido, por isso, juradas pelo Rei e por todas as autoridades tanto em Portugal como no Brasil. Eram trinta e sete princípios, agrupados em duas secções, uma sobre «Direitos individuais dos Cidadãos» e outra sobre «a Nação Portuguesa, sua Religião, Governo e Dinastia».

Mais nenhuma Assembleia Constituinte portuguesa voltaria a usar técnica idêntica.

91. Fontes e projecto

I — A Constituição de 1822 tem por fonte directa e principal a Constituição espanholade 1812, a Constituição de Cádis (3), e, atra-

da iberdade—Período de 1820 a 823, Coimbra, 1976; TELMO DOS SANTOS VERDELHO, As palavras e as ideias na Revolução Liberal de 1820, Coimbra, 1981;

MARIA HELENA CARVALHO DOS SANTOS, «A maior felicidade do maior número». Bentham e a Constiuição Portuguesa de 1822, in O liberaismo na Península Ibérica na primeira metade do século xix, l, págs. 91 e segs.; ZÍLIA OSÓRIO DE CASTRO, Constitucionalismo vintista —Antecedentes e pressupostos, Lisboa, 1986; ANA MARIA FERREIRA DA SILVA, De Rousseau ao imaginário da Revolução de 820, Lisboa, 1988, págs. 69 e segs.; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Para uma história..., cit., págs. 273 e segs.

() Cfr. MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA, op. cit., págs. 44 e segs.

(2) Pelo Brasil foram eleitos 69 Deputados, dos quais 46 tomaram assento nas Cortes de Lisboa.

(3) Por curiosidade, recorde-se que a Constituição de Cádis chegou a ser posta em vigor no Brasil pelo Decreto de 21 de Abril de 1821 (revogado no dia seguinte...). E também em Nápoles e no Piemonte, por essa altura, se quis aplicá-la.

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262Manual de Direito Constitucional

vês dela ou subsidiariamente, as Constituições francesas de 1791 e 1795.

Na sua origem acha-se, portanto, a difusão das ideias liberais vindas de França, atenuadas ou interpretadas na linha de utilitarismo de Bentham (que chegou a ter correspondência directa com as Cortes portuguesas) através da procura do equilíbrio entre o poder do Estado e os direitos e deveres individuais ().

II — Apesar de a Constituição de Cádis e de a Constituição portuguesa serem muito próximas, não deixa de haver diferenças assinaláveis entre elas:

.”) Na Constituição de Cádis, apenas se encontram preceitos sobre direitos (art. 4.”) e sobre deveres (arts. 6.” a 8.”) (2), e não um título autó-

nomo como na nossa;

2.”) A forma de governo é a monarquia moderada hereditária em Espanha (art. 14.”) e a monarquia contitucional hereditária em Portugal (art. 29.°);

3.”) O poder executivo cabe em Espanha ao Rei, só (art. 16.”) e, em Portugal ao Rei e aos Secretários de Estado (art. 30.”);

4.”) O sufrágio para eleição das Cortes é universal, mas indirecto em Espanha (arts. 35.” e segs.), e com algumas incapacidades (art. 33.”), mas directo em Portugal (arts. 37.” e segs.);

5.”) A Constituição de Cádis proíbe a reeleição dos Deputados (art. 110.”), não a portuguesa (art. 36.”);

6.”) A liberdade de imprensa tem mais garantias na Constituição de Cádis (arts. 131.”, n.” 24, e 371.”) do que na nossa (arts. 7.” e 8.”);

7.”) A Constituição espanhola admite duas devoluções da lei para efeito de veto pelo Rei (art. 148.”), a portuguesa só uma (art. 110.”);

8.°) Na Constituição de 1812 não há representação paritária das províncias do ultramar (art. 232.”), ao invés do que sucede na Constituição de 1822 (art. 162.”);

9.”) A Constituição espanhola é muito mais extensa (384 artigos) do que a portuguesa (240 artigos).

() V. MARIA HELENA CARVALHO DOS SANTOS, op. cit., loc. cit., págs. 92 e 95

e segs.

(2) Cfr. ANTÓNIO ENRIQUE LUNO, Los derechos fundamentales en Ia Constitución de Cadi de 1812, in Anuário de Derechos Humanos, 2, Março de 1983, págs. 349 e segs.

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In — Visa-se, no essencial, criar instituições políticas moldadas pelo constitucionalismo emergente da Revolução francesa, ainda que sem romper (ou parecer romper) com as tradições nacionais: daí a referência preambular ao restabelecimento e à reforma das leis fundamentais da monarquia» (), a invocação da Santíssima Trindade, o estatuto da religião católica e a manutenção da Casa de Bragança (2) (3). Ao mesmo tempo, adopta-se uma linha económico-social bastante moderada (4).

Escusado será descrever as dificuldades da empresa — condenada pelo seu avanço em relação ao ambiente da época e do país, pela radicalização de partidários e adversários, pela debilidade da burguesia mercantil (que deveria ser seu suporte) e pela secessão do Brasil. As principais medidas de transformação da economia e da sociedade portuguesa viriam a ser adoptadas dez anos mais tarde, por Mousinho da Silveira (abolição dos dízimos e dos forais, separação de funções administrativa e judicial) e a Constituição de 1822 tornar-se-ia apenas símbolo de um ideal bem longe de ser alcançado (5).

92. Direitos fundamentais

I — A Constituição dedica o seu título I — os seus primeiros 19 artigos — aos «Direitos e deveres individuais dos portugueses». É a

() Cfr. as observações de ROGÉRIO SOARES, Direito Púbilico..., cit., págs. 139-140, ou de ZILIA OSÓRIO DE CASTRO, op. cit., pág. 3.

(2) Sobre a revolução de 1820 e a religião, cfr. JOSÉ EDUARDO HORTA CORREIA, Liberalismo e Catolicismo — O problema congregacionisa (1820-823), Coimbra, 1974, págs. 15 e segs.

(3) A tendência evocativa e recuperadora com que o movimento vintista se apresentava não se podia identificar com conservantismo; era uma estratégia da sua própria legitimação, que aliás estava de acordo com o vocávulo Regeneração (MARIA CÂNDIDA PROENÇA, A Primeira Regeneração — O Conceito e a Experiência Nacional (820-823), Lisboa, 1990, pág. 114).

(4) Cfr. JOSÉ Lus CARDOSO, A legislação económica do vintismo: economia política e política económica nas Cortes Constituintes, m Análise Social, n.0 112-113,1991, págs. 471 e segs.

(5) Cfr. as observações, por exemplo, de JOAQUIM TOMÁS LOBO D’ÁVILA, Estudos de Administração. Lisboa, 1874, pág. 39.

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264Manual de Direito Constitucional

única Constituição portuguesa que o faz e pode presumir-se que esse título vem a corresponder na intenção dos constituintes a qualquer das declarações de direitos francesas (). Não se esgota, porém aí, o tratamento da matéria.

Como notas principais, registem-se:

a) O torn proclamatório (ou definitório) de algumas das fórmulas;

b) O relevo conferido ao princípio da igualdade (arts. 9.° e 12.°);

c) A ligação entre direitos e deveres e entre liberdade e lei (arts. 2.° e 19.°, deste constando uma verdadeira enumeração de deveres) (2);

d) O desenvolvimento emprestado às garantias (nesse título, no do poder judicial e no da fazenda nacional), em contraste com o relativo apagamento das liberdades (de que apenas se prevêem a liberdade de expressão — mas com censura eclesiástica à imprensa — a liberdade de culto particular de estrangeiros e, no art. 239.°, a liberdade de ensino);

e) A humanização do Direito penal, com a afirmação do princípio da proporcionalidade (arts. 10.° e 11.°, l.” parte), com a proibição da tortura, da infâmia, do baraço e pregão, da marca de ferro quente e de todas as penas cruéis ou infamantes (art. 11.°);

f) A consideração (a qual vai depois também encontrar-se nas demais Constituições até 1911), ainda que modesta, dos direitos à educação e à assistência (arts. 237.°, 238° e 240°), antepassados afastados dos actuais direitos sociais (3);

() Cfr. CARLOS NEVES DE ALMEIDA, Os direitos fndamentais nos Constituintes de 1821-1822, m Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1989, págs. 411 e segs., e 1990, págs. 313 e segs.

(2) Cfr. INOCÊNCIO ANTÓNIO DE MIRANDA, O Cidadão Lusitano. Lisboa, 1822, págs. 49 e segs.

(3) Em contrapartida, quando a Constituição se refere a corporações ou entes colectivos contrapostos aos indivíduos, nos arts. 26.” e 225.”, aí não se trata de quaisquer antecedentes da consideração de direitos institucionais.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 265

g) O sentido precursor das preocupações ecológicas, ao cometer-se às câmaras municipais a tarefa de plantio de árvores (art. 223.°, v).

II — A Constituição ordena a criação «em todos os lugares do reino, onde convier» de «escolas suficientemente dotadas, em que se ensine a mocidade Portuguesa de ambos os sexos a ler, escrever e contar e o catecismo das obrigações religiosas e civis» (art. 237.°) e de estabelecimentos de ensino das ciências e das artes (art. 238.°) (i).

Mas a importância que atribui à educação leva-a também a ligar o gozo de direitos políticos à posse de habilitações literárias, por meio de uma cláusula de sufrágio sob condição resolutiva, destinada a incentivar a alfabetização. Daí a norma do art. 33.°, vi, segundo a qual deixam de ter direito de voto «os que para o futuro, em chegando à idade de vinte e cinco anos completos, não souberem ler e escrever, se tiverem menos de dezassete quando se publicar a Constituição».

In — Ao arrepio das concepções cristãs e liberais, o texto constitucional pressupõe a aceitação da escravatura em mais de um preceito (mas por causa do ultramar): arts. 21.°, iv, 35.°, vn, e 37.°

O mesmo fariam a Carta Constitucional (art. 67.°, § 2.°), a Constituição de 1838 (arts. 6.°, vil, e 73.°, Ill) e o Acto Adicional à Carta de 1852 (art. 6.°, m).

Todavia, pensada ainda para o Brasil, a Constituição incumbe as Cortes e o Governo de terem «particular cuidado», na «civilização dos Índios» (art. 240.°).

93. A união real com o Brasil

A Constituição de 1822 tenta manter o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, proclamado por D. João VI. A Nação Portu-

() Cfr. Lus REIS TORGAL e ISABEL NOBRE VARGUES, A revolução de 1820 e a instrção pública, Porto, 1984.

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266Manual de Direito Constitucional

guesa é «a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios» (art. 20.°), e institui-se um sistema complexo de organização do poder.

Órgãos comuns do Reino Unido são o Rei, as Cortes e o Conselho de Estado. Na composição das Cortes atende-se à população — um Deputado, em cada divisão eleitoral, por trinta mil habitantes livres (art. 37.°). Já na Deputação Permanente que ela elege (art. 117.°) e no Conselho de Estado (art. 162.°), este pregurando uma espécie de Senado federal (), se estabelece uma representação paritária das províncias da Europa e das do ultramar (2).

No Brasil há uma Delegação do Poder Executivo (arts. 128.° e segs.) confiada a uma Regência com cinco membros nomeados pelo Rei, ouvido o Conselho de Estado, e dos quais um seria secretário dos negócios do reino e fazenda, outro dos da justiça e eclesiásticos e outro dos de guerra e marinha. Existem também um Supremo Tribunal de Justiça (art. 193.°) e um Tribunal Especial para a Liberdade de Imprensa (art. 8.°).

Mas esta união real — talvez a primeira formalizada numa Constituição de tipo francês — deve ter-se por imperfeita, por faltar, pelo menos, uma assembleia electiva que funcionasse junto dos órgãos do poder executivo brasileiro.

Nas Cortes Constituintes tinham-se, de resto, tomado notórias e difíceis as divergências de entendimento sobre a união. Enquanto que os Deputados portugueses temiam pela indivisibilidade da monarquia e não compreendiam o alcance do estatuto do Brasil como reino, os Deputados brasileiros almejavam por extrair dele todas as consequências (v. g., a alternância da sede da Realeza ou o exercício da função legislativa).

Uma comissão de Deputados brasileiros, designada pelo presidente das Cortes, apresentou «artigos adicionais à Constituição relativos ao Brasil», em que se previam assembleias legislativas separadas para Portugal e para o Brasil e Cortes Gerais para os interesses comuns, compostas de 50

() JORGE MIRANDA, Conselho de Estado, Coimbra, 1970, pág. 5. (2) Seis Conselheiros pelas províncias da Europa, seis pelas do Ultramar e o décimo terceiro da Europa ou do Ultramar, como decidir a sorte.

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representantes (25 de cada reino) (i). O projecto não foi aceite pêlos Deputados portugueses (2).

94. Forma e sistema de governo

I — A Constituição de 1822 consigna uma estrita forma de goveo representativo: «A soberania reside essencialmente na Nação»;

porém, «não pode ser exercitada senão pêlos seus representantes legalmente eleitos» (art. 26.°).

Daí que somente à Nação (isto é, ao povo) pertença fazer pêlos seus Deputados juntos em Cortes a sua Constituição (art. 27.°); e que a lei seja a vontade dos cidadãos declarada pela unanimidade ou pluralidade dos votos de seus representantes juntos em Cortes, precedendo discussão pública (art. 104.°) (3); e que a autoridade do Rei provenha da Nação (art. 121.°).

Apesar de não se estabelecerem directamente requisitos de carácter censitário, há incapacidades derivadas da condição social das pessoas que tomam o sufrágio restrito (4).

() V. o texto in Diário das Cortes Constituintes, vol. 6.”, págs. 558 e 559.

(2) Cfr. M. E. GOMES DE CARVALHO, Os Deputados brasileiros nas Cortes Gerais de 182!, Porto, 1912, máxim págs. 341 e segs.; MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA, op. cit., págs. 94 e segs.; PAULO OTERO, O Brasil nas Cortes Constituintes de 1821-1822, in O Direito, 1988, págs. 399 e segs.

(3) Cfr. o discurso de MANUEL FERNANDES TOMÁS na sessão de 10 de Agosto de 1821 (Diário das Cortes, 1821, págs. 1849-1850): «O direito que tem a nação quando elege os deputados é o direito que compete a cada um dos cidadãos individualmente, mas não é exercício da soberania, porque não legisla, não executa as leis, não julga, nem administra. O exercício de direitos de soberania nunca pode estar colectivamente na nação; ela elege os seus representantes para exercitarem a soberania, pois que ela a não pode exercitar por si colectivamente; portanto, não podemos chamar acto de soberania ao direito que compete a cada um dos cidadãos para nomear os seus representantes».

(4) Contra, MANUEL FERNANDES TOMÁS, discurso na sessão de 19 de Abril de 1822 (ibidem, pág. 881): «O Congresso, privando os trabalhadores de votarem nas eleições, irá pôr a nação portuguesa em pior estado do que estava antes de se estabelecererem as eleições directas; por este modo, qualquer cidadão português não gozara de direitos mais precisos que o homem pode ter na sociedade que é o de escolher aquele que o há-de representar. Se se admite o rico a votar, por que há-de ser excluído o que não tem nada?».

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268Manua de Direio Constitucional

II — A monarquia é convertida em «monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais, que regulam o exercício dos três poderes» (art. 29.°).

O poder legislativo compete à assembleia unicameral e o poder executivo ao Rei, assistido pelo Conselho de Estado e por Secretários de Estado. É a realização do princípio da separação dos poderes — mas com supremacia das Cortes, pelo seu carácter mais democrático, pela sua estrutura e pelo regime das suas relações com o Rei.

Ao Rei não é dado poder de sanção das leis (embora a Constituição empregue esse termo), só de veto, e veto puramente suspensivo, suprível pela mesma maioria da primeira deliberação (art. 110.°) () (2);

prevêem-se promulgação tácita ao m de certo tempo e a possibilidade de ultrapassagem da recusa (art. 114.°); não há veto das leis de revisão e das decisões políticas das Cortes (art. 112.°); tão pouco existe poder de dissolução (3).

O Rei deve ouvir o Conselho de Estado nos negócios graves, em particular sobre o veto, a guerra e a paz e os tratados (art. 167.°) (4). Todos os decretos do Rei devem ser assinados (referendados) pêos Secretários de Estado (art. 161.°) (5).

In — Não se trata de um sistema parlamentar, por causa desse regime de separação e porque os Secretários de Estado são nomeados e demitidos livremente pelo Rei (art. 123.°-ii), e perante ele res-

() Ainda Manuel Fernandes Tomás, discurso na sessão de 26 de Fevereiro de 1821 (Diário das Cortes, 1821, págs. 161-163): «Dar ao rei o veto absoluto serviria de dano à nação, porque estorvaria a marcha da nossa reforma».

(2) Sobre a questão do veto real, v. SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Breves observações..., cit., págs. 16 e 17 e segs.; JORGE MIRANDA, Conributo..., cit., pág. 53, nota; MARGARIDA SALEMA, O direito de veto na Constituição de 1976, Braga, 1980, págs. 8 e 9; ZÍLIA OSÓRIO DE CASTRO, op. cit., págs. 39 e segs.; ANA MARIA FERREIRA PINTO, op. cit., págs. 85 e segs.

(3) Cfr. a critica de ALMEIDA GARRET, op. cit., pág. 209.

(4) O Conselho de Estado não é, de resto, apenas órgão consultivo. Cabe-lhe também propor ao Rei as pessoas para os lugares da magistratura e para os bispados (art. 168.”).

(5) Como observou OLIVEIRA MARTINS (Política e História, i, cit., pág. 90), a monarquia não entra na Constituição de 1822 como um elemento; é apenas uma tradição, uma instituição, a que por conveniência se conserva uma vida que não é vida.

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pnsáveis (art. 131.°); a sua responsabilidade perante as Cortes dá-se apenas por actos ilícitos (arts. 103.°-xv, 159.° e 160.°); e, se podem falar e ser chamados a prestar declarações diante delas, não podem estar presentes às votações (art. 91.°).

Contudo, se a Constituição tivesse podido aplicar-se, de duas uma: ou a separação rígida de poderes instituída teria tomado inviável o governo ou este ter-se-ia convertido em governo parlamentar, por a responsabilidade ministerial passar a ser responsabilidade política (como sucedeu, no século xvin, em Inglaterra).

§ 2.°

A Carta Constitucional

95. Elaboração e fontes

I — A Carta Constitucional () é obra pessoal de D. Pedro IV e foi redigida num tempo curtíssimo pelo Monarca, no Brasil, antes de abdicar (sob certas condições) da coroa portuguesa.

E extremamente curioso saber como D. Pedro elaborou a Constituição. AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO (2) narra assim o processo:

«Pêlos documentos originais existentes no Arquivo do Museu Imperial pode-se reconstituir com alguma exactidão o processo seguido por D. Pedro,

() Sobre a Carta em especial, v. FERREIRA BORGES, Cartilha do Cidadão Constitucional dedicada à Mocidade Portuguesa, Londres, 1832; SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Observações sobre a Carta Constitucional..., cit.; LOPES PRAÇA, Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e o Acto Adicional de 1852, 3 vols., Coimbra, 1878-1880; TRINDADE COELHO, Manual Político do Cidadão Português,2.” ed., Porto, 1908; JOSÉ TAVARES, O poder governamental no Direito Constitucional Português, Coimbra, 1909; MARNOCO E SOUSA, Direito Político — Poderes do Estado, cit.; MÁRIO SOARES, Carta Constitucional, in Dicionário de História de Portugal, l, pãgs. 494 e segs.; MARCELLO CAETANO, Carta Constitucional, in Verbo, iv, págs., 1191 e segs.; JORGE CAMPINOS, A Cara Constitucional de 1826, Lisboa,1975; MANUEL ILIPE CRUZ CANAVEIRA, Liberais Moderados e Constitucionalismo Moderado (1824-1852), Lisboa, 1988, págs. 115 e segs.; PAULO ERREIRA DA CUNHA, Para uma história..., cit., págs. 381 e segs. e 397 e segs.

(2) Introdução à obra O constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal, edição do Ministério da Justiça do Brasil, 1972.

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auxiliado pelo seu secretário Gomes da Silva (seu cargo era de Oficial Maior do Gabinete Imperial) no preparo da Cana Constitucional de 1826.

«Premido pelo decurso rápido dos poucos dias de que dispunha, D. Pedro tomou de dois exemplares do projecto revisto do Conselho de Estado para a Constituição brasileira de 1824, e enquanto anotava em um, através de emendas, supressões e adições àquilo que se deveria transformar no texto da Carta lusa, o Chalaça fazia o mesmo no outro exemplar.

«Depois houve troca de textos, com notas do Imperador no do Chalaça e reciprocamente. Por fim Gomes da Silva trasladou para o texto manuscrito o resultado do seu trabalho, enquanto o Imperador tentava fazer o mesmo em outras páginas. Não dispondo porém do tempo de seu secretário (muito cheios lhe foram aqueles dias) nem talvez paciência para o meticuloso esforço, apresentou apenas, depois de alguns poucos artigos redigidos, uma tabela comparativa e numerada entre os artigos modificados da Constituição brasileira e os que lhe deveriam corresponder na portuguesa.

«Além disso, tomou do manuscrito de Gomes da Silva e neles introduziu emendas e adições que, se comparadas com o texto definitivo da Carta, verifica-se que foram todas adoptadas.

«Terminada a apressada redacção, foi o documento impresso no Rio de Janeiro, na Tipografia Imperial e Nacional, com o acertado nome de Carta Constitucional e não de Constituição, pois havia sido outorgada e não votada. Segundo os juristas brasileiros, a Carta Constitucional do Império americano passou a merecer o título de Constituição desde que a Câmara dos Deputados, com apoio do Senado, discutiu-a e votou-a em 1834, ao introduzir nela o Acto Adicional, que serviu, assim, como uma espécie de ratificação legislativa a posteriori.

«A Carta portuguesa foi assinada no palácio do Rio de Janeiro, aos 29 de Abril de 1826, por D. Pedro, que nela ainda se assina El-Rei, pois a sua abdicação ao trono português só se deu alguns dias depois».

II — A Carta tem, por conseguinte, por fonte a Constituição brasileira, embora com diferenças, explicáveis pelas diversas circunstâncias dos dois países.

As mais importantes das diferenças, por vincarem um elemento mais liberal e democrático na Constituição brasileira, são as seguintes: nesta, é admitido o culto doméstico aos estrangeiros (); na Cons-

() Art. 5.” da Constituição brasileira e art. 6.” da Carta, respectivamente. Recorde-se ainda que a Constituição brasileira abre com a invocação da Santíssima Trindade, como a Constituição de 1822, não a Carta.

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tituição de 1824, os poderes do Estado são considerados delegação da Nação, ao passo que na Carta diz-se que o Rei e as Cortes são seus representantes (); no Brasil o Senado é vitalício e electivo, em Portugal a Câmara dos Pares é composta por Pares hereditários e por Pares vitalícios nomeados pelo Rei; a denegação de sanção é suspensiva no Brasil e absoluta em Portugal. Quanto a estes aspectos, a nossa Constituição assemelha-se mais à Carta constitucional francesa de 1814, dada por Luís XVIII (2).

96. Princípio monárquico e princípio representativo

I — A outorga feita pelo Rei implica uma mudança de natureza do regime político: de monárquico passa a monárquico constitucional; ao outorgar a Carta, ao exercer o poder constituinte, o Rei manifesta-se, pela última vez, como Rei absoluto; mas, a partir desse momento, a partir da entrada em vigor da Carta, ele toma-se um poder constituído ao lado de outros poderes constituídos; e, por isso, não lhe pertence o poder de revisão constitucional — este pertence — às Cortes com sanção obrigatória real (arts. 140.° e seg.) (3).

A Carta não proclama o princípio da soberania nacional. Todavia, não só declara expressamente que o governo é monárquico, hereditário e representativo (art. 4.°) como considera representantes da Nação o Rei e as Cortes (art. 12.°). E, conquanto não possa vislumbrar-se aí uma representação sempre com a mesma natureza (apenas os Deputados, porque eleitos, têm representação política ou representação em sentido moderno — não o Rei e os Pares do Reino), por essa via projecta-se a prevalência do princípio representativo em detrimento do princípio monárquico (4).

II — Por isso não se justifica sustentar, como sustenta PAULO OTERO (5), que o princípio monárquico expresso na Carta Constitucional é um pro-

() Arts. 11.” e 12.” da Constituição brasileira e art. 12.” da Carta.

(2) Cfr. a comparação feita por JORGE CAMPINOS, op. rir., págs. 21 e segs.

(3) Ao passo que, por exemplo, a Carta Constitucional francesa nada dispunha sobre revisão

(4) Cfr. GOMES CANOTILHO, op. cit., pág. 289.

(5) O poder de substituição..., cit., l, págs. 327 e segs.

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duto directo da tradição nacional oriunda do Estado pré-constitucional, agora revestido formalmente da concepção francesa de monarquia limitada subjacente à Carta Constitucional de 1814 (), ligando-o ao poder de sanção, com possibilidade de denegação absoluta, das leis (2) ou a um poder regulamentar independente de habilitação parlamentar (3).

Nem corresponderia ao sentido objectivo da Carta ou à realidade constitucional do século xix dizer que a atribuição de natureza sagrada à pessoa do Rei (art. 72.”) seria um efeito de a origem directa do seu poder residir em Deus ou que, afinal, o Rei seria um vigário de Deus (4). Não era tal:

para lá da fórmula vinda da tradição (5), não havia aí senão uma imunidade, uma garantia frente aos demais poderes do Estado; e o mesmo viria a constar, mais tarde, da Constituição de 1838 (art. 85.”) e já constava, em parte, da Constituição de 1822 (art. 127.”).

Só no plano do sistema de governo (das relações entre os órgãos de poder), não no da forma de governo (das relações entre poder e comunidade política) se podia asseverar que a Carta era uma das mais monárquicas, senão a mais monárquica das Constituições do seu tempo (6), por causa do poder moderador atribuído ao Rei. Mas essa era a tese de BENJAMI CONSTANT da monarquia constitucional da Restauração, diferente da monarquia constitucional propriamente dita de tipo alemão (7).

In — As vicissitudes políticas e a prática constitucional levariam, de resto, a que o poder moderador e o próprio princípio monárquico sofressem importantíssimas inflexões normativas.

() Ibidem, pág. 335.

(2) Ibidem. pág. 330.

(3) Ibidem, pág. 334.

(4) Ibidem, pág. 181, nota.

(5) V., neste sentido, os Autores da época, LOPES PRAÇA, op. cit., 11, pág. 273;

JOSÉ TAVARES, op. cit., pág. 84; MARNOCO E SOUSA, op. cit., págs. 798 e segs. Segundo este último Autor, dizer que assim como é sagrada a majestade da Nação, assim também deve ser sagrada a pessoa do Rei, em que se personifica a majestade da Nação, são planos sem significado jurídico algum (pág. 799).

(6) Como escrevia MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política..., n, pág. 429.

(7) Seria interessante, aliás, cotejar a Carta com o projecto da Constituição de 1823 ou com a proposta tradicionalista (embora aceitando D. Maria II) de D. MIGUEL ANTÓNIO DE MELO, Projecto para a Reforma de Lei Fundamental da Monarquia Portuguesa, Paris, 1828.

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De 1826 a 1828, com efeito, a situação seria extremamente precária perante os riscos de reacção absolutista. Ao invés, depois de 1834, os ânimos liberais, incitados pela dinâmica da vitória (como tantas vezes tem sucedido em casos semelhantes) acolhem mal o espírito ainda conservador da Carta: e daí a agudização dos conflitos entre cartistas e vintistas que há-de marcar uma geração. Só a partir de 1851 se obtém uma plataforma de entendimento seguro entre as duas grandes correntes — mas em prejuízo da posição do Monarca.

Os Actos Adicionais de 1852 e de 1885, bem como o funcionamento do sistema de governo, acentuaria essas tendências; e ela não seria invertida nem pelas tentativas traduzidas nos Actos Adicionais de 1895-1896, nem pêlos propósitos de «engrandecimento de poder real» do tempo de D. Carlos.

97. Direitos fundamentais

A Carta relega os direitos fundamentais para o seu último, longo e extenso artigo, o 145.° Confere-lhes, pois, menor relevo sistemático. Em contrapartida, descobre-se nela um maior equilíbrio entre liberdades e garantias.

Aquisições importantes são o princípio da não retroactividade das leis (), a liberdade de deslocação e emigração, a liberdade de trabalho e de empresa, a propriedade intelectual, a instrução primária e gratuita e, mesmo, o primeiro prenúncio da liberdade religiosa (respectivamente, §§ 2.°, 5.°, 23.°, 24.°, 30.° e 4.°). Promete-se a organização «quanto antes» de um Código Civil e Criminal «fundado nas sólidas bases da Justiça e Equidade» (§ 17.°). Sinal do espírito de contemporização com o passado é a garantia da nobreza hereditária (§ 31.°).

O Acto Adicional de 1852 aboliria a pena de morte nos crimes políticos (art. 16.°) e a Lei de l de Julho de 1987 nos crimes comuns.

() Não passaria para as Constituições subsequentes, em termos gerais (embora viesse a constar do art. 54.”, n.” 50, do projecto da Constituição de 1911).18—Man. Dir. Const., I

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98. Os poderes do Estado

I — Aos três poderes vindos do século xvíti — legislativo, executivo e judicial — a Carta, como a Constituição brasileira, acrescenta um quarto poder, o moderador. E, como estatui o art. 71.°, «o Poder Moderador é a chave de toda a organização política e compete privativamente ao Rei, como Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos» ().

Ao lado do Rei, surge um Parlamento bicameral, com Câmara de Deputados electiva (por sufrágio censitário e indirecto) e Câmara dos Pares hereditários e vitalícios. Contudo, esta estrutura viria também a entrar em crise após 1834, a encontrar-se no centro dos debates políticos durante toda a vigência da Constituição e a estar presente nos sucessivos Actos Adicionais (2).

No poder moderador se compreendem, a nomeação dos Pares, a sanção dos decretos das Cortes (3), a prorrogação ou o adiamento das Cortes, a dissolução da Câmara dos Deputados, a nomeação e a demissão dos Ministros, a suspensão de magistrados, a amnistia (art. 74.°) (4). Não é muito nítida, porém, a distinção entre estas faculdades e algumas integradas no poder executivo (art. 75.°); não se acha aí, decerto uma diferença de natureza.

() Cfr. SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Projectos e Ordenações para o Reino de Portugal. Paris, 1831, n, págs. 457 e segs. (falando também em poder conservador);

LOPES PRAÇA, Estudos..., cit., li, págs. 231 e segs.; MANUEL EMDIO GARCIA, Plano desenvolvido do curso de Ciência Política e Direito Políico, 3.° ed., Coimbra, 1885, págs. 46 e segs.; JOSÉ TAVARES, op. cit., págs. 6 e segs.; MARNOCO E SOUSA, op. cit., págs. 793 e segs.

(2) Cfr. Luís ESPINHA DA SILVEIRA, Revolução liberal e pariato (1834-1842), m Análise Social, n.0 116-117, 1992, págs. 329 e segs.; MARIA FILOMENA MÓNICA, A lenta morte da Câmara dos Pares (878-896), ibidem. n.0 125-126, 1994, págs. 121 e segs.

(3) Cfr. Contributo..., cit., págs. 51-52; MARGARIDA SALEMA, op. cit., págs. 90 e segs. •

(4) E, por extensão, a nomeação do Presidente e do Vice-Presidente da Câmara dos Pares e, sob proposta de cinco feita pela Câmara dos Deputados, a do Presidente e do Vice-Presidente desta Câmara (art. 21.”).

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Só os actos do poder executivo carecem de referenda ou intervenção dos Ministros (art. 102.°) (). Mas, quando o Rei se proponha exercer qualquer das atribuições do poder moderador, salvo a nomeação e a demissão dos Ministros, tem de ouvir o Conselho de Estado (art. 110.°) — composto por conselheiros vitalícios por ele nomeados (art. 107.°) (2).

O Acto Adicional de 1885 submeteria a referenda os actos do poder moderador relativos à subsistência das Cortes (art. 7.°) e o Acto Adicional de 1895 confirmá-lo-ia (art. 6.°).

II — Antes desta revisão, sem dúvida pelo menos à face da letra da Carta, o poder moderador conferia ao Rei proeminência sobre os demais poderes. Isso não significava, porém, que fosse razoável assimilá-la a um poder consumptivo e absorvente que pusesse em movimento o Estado e que, constantemente, o sustivesse (3).

O poder moderador não era num poder anterior e superior à Constituição. Enquadrava-se, sim, num complexo sistemático em que, pelo contrário, se definia a divisão e harmonia de poderes do Estado como «princípio conservador de Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer efectivas as garantias que a Constituição oferece» (art. 10.°, além do art. 144.° e do próprio art. 71.°). Se através dele operava o princípio monárquico, este não valia de per si;

valia (insistimos) em conjugação com o princípio representativo.

É, pois, também exagerado afirmar que, à excepção da função judicial, o princípio monárquico se entendia a todas as funções do Estado, sendo o Rei o cerne da organização e da decisão política (4); ou que a lei só era lei por vontade do Rei (5).

() Todavia, parece sempre ter-se entendido que os Ministros também eram responsveis pêlos actos do poder moderador: assim, LOPES PRAÇA, op. cit., pág. 294;

MARNOCO E SOUSA, op. cit., pág. 743.

(2) Sobre a diferença entre o Conselho do Estado de 1822 e o de 1826, v. MANUEL FILIPE CRUZ CANAVEIRA, op. cit., págs. 160 e 161.

(3) Assim já Contributo..., cit., págs. 51 e 52.

(4) PAULO OTERO, O poder de substituição..., cit., pág. 328.

(5) Ibidem, pág. 329.

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In — Por costume constitucional, primeiro, e por lei (de 23 de Junho de 1855) depois, apareceria a gura de presidente do Conselho de Ministros(s) ().

99. O funcionamento do sistema de governo

I — Longe tanto do domínio supremo do princípio monárquico como da monarquia parlamentar (2), a prática da Carta inclinar-se-ia para uma linha orleanista de responsabilidade política dos Ministros simultaneamente perante o Rei e perante as Cortes (3) (4).

Seria uma prática nos moldes da monarquia de Luís Filipe em França e semelhante à que se manifestaria no Brasil de D. Pedro II e também na Espanha e na Itália, países com condições semelhantes às de Portugal.

II — Havia diferenças profundas entre o funcionamento do sistema britânico e a experiência portuguesa da Carta:

a) Na Grã-Bretanha, o Governo só depende do Parlamento;

em Portugal, dependia também do Rei;

b) Na Grã-Bretanha, o Governo tem a duração da legislatura;

em Portugal era frequente começar antes do termo da legislatura e demitir-se a meio da legislatura seguinte;

c) Na Grã-Bretanha, o Governo tem de ter sempre maioria (pelo menos relativa) na Câmara dos Comuns; em Portugal, podia não ter maioria parlamentar se sucedesse a anterior Governo a meio da legislatura;

() V. o nosso estudo A posição constitucional do Primeiro-Ministro, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.” 334, págs. 9 e segs.

(2) Falando, contudo, em monarquia parlamentar, FEZAS VITAL, Lições de Direito Constitucional Comparada, Coimbra, 1915, pág. 234.

(3) Por sinal, logo em 1826 o Governo demitiu-se depois de voto de desconfiança das Câmaras.

(4) Daí não decorria, entretanto, que o Executivo se tomasse o principal centro decisório do sistema, beneficiando, paradoxalmente, da legitimidade monárquica do seu chefe e da legitimidade democrática da maioria parlamentar sustentadora dos Ministros (como escreve PAULO OTERO, O poder de substituição..., cit., pág. 339).

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d) Na Grã-Bretanha, o Goveo resulta das eleições; em Portugal, o Governo vencia todas ou quase todas as eleições ();

e) Na Grã-Bretanha, a dissolução é o meio normal de encerrar a legislatura; em Portugal, era o resultado de uma crise política; na Grã-Bretanha, a dissolução é para renovar o Parlamento; em Portugal para permitir ao Governo governar (2);

f) Na Grã-Bretanha, prevalece a estabilidade parlamentar e goveamental; em Portugal, a instabilidade (3).

Este funcionamento do sistema de governo reflectir-se-ia, em consequências importantes quanto à produção legislativa: na feitura de leis pelo Governo estando a Câmara dos Deputados dissolvida — os chamados decretos ditatoriais (4) (5); e na concessão de blis de indemnidade (ou de isenção de responsabilidade, por se tratar de violação da Constituição) pela Câmara a seguir eleita. Os decretos ditatoriais viriam a ser, por seu turno, um dos factores do aparecimento

() O fenómeno registar-se-ia não apenas na monarquia constitucional mas também na l. república: v. OLIVEIRA MARQUES, Eleições (O Contributo Histórico), m 3.” Congresso da Oposição Democrática — Teses — Situação e perspectiva política no plano nacional e internacional, Lisboa, 1974, págs. 341 e segs.;

Luís VIDIGAL, Cidadania, caciquismo e poder em Portugal — 1890-1916, Lisboa, 1988.

(2) Cfr. ANTÓNIO PEDRO MANIQUE, O direito de dissolução em Portugal —Normas e práticas constitucionais 1852-1865), in Constituição da Europa. Constiuições da Europa, obra colectiva, Lisboa, 1992, págs. 151 e segs.

(3) Segundo MANUEL PINTO DOS SANTOS (Monarquia Constitucional — Organiação e Relações do Poder Governamental com a Câmara dos Deputados —1834-90, Lisboa, 1986), no reinado de D. Maria II houve 20 Governos (em 19 anos); no de D. Pedro V, 4 (em 8 anos); no de D. Dinis, 14 (em 28 anos); no de D. Carlos, 14 (em 19 anos); e no de D. Manuel II, 6 (em 2 anos); num total de 78 Governos em 76 anos.

(4) Cfr. o nosso Decreto, Coimbra, 1974, págs. 12-13, e autores citados;

e PAULO OTERO, O poder de substituição..., cit., págs. 335 e segs.

(5) Em cerca de 70 anos de vigência da Carta, houve 17 ditaduras ou governos que, à margem do Parlamento, legislaram por meio de decretos ditatoriais. V. a lista de PINTO OSÓRIO, No Campo da Justiça, Porto, 1914, págs. 110 e segs.

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precoce da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis em Portugal.

In — Finalmente, este sistema de governo viria a entrecruzar-se com o sistema de partidos conhecido como de rotativismo ou de alternância de dois partidos, um no poder e outro na oposição, à imitação (distante) da Grã-Bretanha (). E os dois partidos viriam a ser, por um lado, o regenerador e, por outro lado, o histórico e, a partir de 1878, o progressista.

Apesar de se tratar de partidos pouco estruturados a nível de ideologia e de organização, sem que a sua força parlamentar viesse a ter base no «país real» (2), e, apesar de o Rei conservar uma influência há muito desaparecida na Inglaterra, o sistema funcionaria razoavelmente até 1891, num clima de liberdade política e de progresso material. Já não pôde, porém, resistir aos embates emocionais do ultimato, à crise financeira, à propaganda republicana e às dissidências em ambos os partidos, nem soube transformar-se para integrar, por exemplo, as aspirações da pequena burguesia (como viria a suceder mutatis mutandis em Inglaterra com o partido trabalhista que integrou as classes trabalhadoras no sistema político). E, tivesse ou não conseguido desenvolvimento institucional, a sua falência foi o sinal da queda pró xima do constitucionalismo monárquico no início do século xx.

100. Os Actos Adicionais

I — As principais modificações introduzidas pelo Acto Adicional de 1852 foram:

— A passagem a directa da eleição dos Deputados (art. 4.”);

— A redução dos limites do sufrágio censitário (arts. 44.” e segs.);

— A sujeição de todos os tratados a aprovação das Cortes antes de serem ratificados (art. 10.”);

() Cfr. JOSÉ TENGARRINHA, Rotativismo, in Dicionário de História de Portugal, III, 1968, págs. 694 e segs.; MARCELLO CAETANO, Manual..., cit., li, págs. 443 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Os partidos..., cit., pãgs. 157 e segs.; MANUEL PINTO DOS SANTOS, op. cit., págs. 199 e segs.

(2) Sobre a estrutura dos partidos nessa época, v. MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 147 e segs.

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— A possibilidade de constituição de comissões parlamentares de inquérito (art. 14.”):

— A admissibilidade de legislação especial e de descentralização nas províncias ultramarinas (art. 15.”) ();

— A abolição da pena de morte para crimes políticos (art. 16.”, já mencionado).

II — O Acto Adicional de 1885 orientou-se para:

— A redução da legislatura de quatro a três anos (art. 2.”);

— A reforma da Câmara dos Pares, que, doravante, era constituída por 100 membros vitalícios nomeados pelo Rei, por 50 membros electivos e pêlos pares por direito próprio (art. 6.) (2);

— A já referida sujeição de certos actos do poder moderador a responsabilidade dos Ministros, isto é, a referenda ministerial (art. 7.°);

— A proibição de nova dissolução antes de passada uma sessão legislativa sobre a anterior dissolução (art. 7.”, § 2.”);

— A exigência do transcurso de quatro anos, pelo menos, entre duas revisões constitucionais (art. 8.”) (3);

— A garantia do direito de reunião (art. 10.”).

In — As modificações pretendidas pelo decreto ditatorial de 1895 eram:

— Uma nova reforma da Câmara dos Pares, ficando a ser composta por90 membros vitalícios nomeados pelo Rei e pêlos pares por direito próprio (art. l.”);

— A possibilidade de nomeação pêlos Ministros de delegados especiais para tomarem parte na discussão perante as Câmaras de determinados projectos de lei (art. 4.”);

— Uma nova regulamentação da comissão mista paritária de pares e deputados para o caso de divergências entre as duas Câmaras, e a atribuição ao Rei — no exercício do poder moderador — ouvido o Conselho de Estado, da competência para decidir (através de «decretos com força legislativa») havendo empate ou desacordo na comissão (arts. 5.° e 6.°);

() V. PAULO OTERO, A descentralização territorial na Assembleia Constitucional de 1837-1838 e no Acto Adicional de 852, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1989, págs. 291 e segs.

(2) Bem como pêlos pares hereditários, que continuavam a fazer parte da Câmara na qualidade de pares vitalícios.

(3) O sistema de revisão assim alterado prefiguraria o das Constituições republicanas.

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— A não sujeição da dissolução a limite temporal (art. 6.°, § 3.”). O decreto obteria o bui de indemnidade das Cortes e converter-se-ia na Lei de 3 de Abril de 1896, mas com duas alterações: o número de 90 passou a ser apenas o limite do número de pares vitalícios; e, em vez de ser o Rei a decidir em caso de empate ou desacordo na comissão mista pataria, passou a dar-se a qualquer das Câmaras o poder de pedir a reunião das Cortes Gerais para serem elas a deliberar.

IV — Quanto ao Acto Adicional de 1907 cingiu-se a estabelecer:

— O regresso parcial ao sistema da Carta, passando a Câmara dos Pares a ser composta por pares vitalícios sem número fixo (art. l.”);

— A atribuição ao Supremo Tribunal de Justiça da competência para o julgamento dos crimes de responsabilidade ministeria (art. 2.”).

Objecto do Decreto de 23 de Dezembro de 1907, a morte do Rei em l de Fevereiro de 1908 não permitiu a este Acto ter efectividade, nem vir a ser convalidado pelas Cortes (que estavam para ser eleitas).

V — Em 1900 foi apresentada uma proposta de lei de reforma da Carta, que não chegou a ser aprovada e da qual constavam, designadamente:

— Mais uma reestruturação da Câmara dos Pares, regulamentando-se a nomeação dos pares vitalícios pelo Rei, decarando-se pares por direito próprio os titulares de certos cargos e admitindo-se 8 pares eleitos pêlos estabelecimentos científicos (arts. l. a 5.”);

— A atribuição aos tribunais da competência para conhecer da vaidade das leis e do poder de não aplicar decretos e regulamentos ou ordens do Governo e actos de quaisquer autoridades não conformes às leis publicadas em harmonia com os preceitos constitucionais ().

(i) De referir ainda o projecto de lei tendente à reforma da Carta Constitucional submetido às Cortes pelo Deputado José Luciano de Castro, em 1872, o qual, entre outros motivos de interesse, previa: o direito de não pagar impostos não votados pelas Cortes; a admissibilidade aos portugueses do culto particular de religiões não católicas; a definição, em termos descentralizadores, dos fundamentos do poder local; o sufrágio universal, na base da correspondência com a capacidade civil;

a regulamentação do poder de dissolução; a eleição da Câmara dos Pares; a proibição da suspensão parcial ou total da Constituição; a ratificação popular das alterações da Carta.

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6

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§3.°

A Constituição de 1838

101. A elaboração da Constituição

Como se disse, a Constituição de 1838 () resulta do acordo entre as Cortes e o Monarca. As Cortes, eleitas com poderes constituintes (2), prepararam, discutiram e votaram a Constituição e depois submeteram-na à Rainha, pedindo que a aceitasse. E esta, «achando que ela deve ser promulgada como Lei undamental do Estado», resolveu jurá-la (3). A aceitação e o juramento de D. Maria II não foram actos meramente formais como os de D. João VI em 1822;

foram actos de decisão política, corresponderam a sanção em sentido próprio.

O texto de 1838 é dos mais aperfeiçoados técnica e literariamente dos textos constitucionais portugueses.

102. Fontes e projecto

I — A Constituição tem como fontes as duas Constituições anteriores, as Constituições francesa de 1830 e belga de 1831 (4) e, certamente, a Constituição brasileira e a espanhola de 1837.

() Além das obras atrás citadas, v. ainda JOO DE SANDE MAGALHES MEXIA SALEMA, Princípios de Direito Poítico Aplicados à Constituição Política da Monarqia Portuguesa de 1838 ou A Teoria Moderada do Governo Monárquico Constitucional Representativo, i, Coimbra, 1841 (sobre os oito primeiros artigos, apenas);

FRANZ LANGHANS, Constituição de 1838, in Dicionário de História de Portugal, l, págs. 677 e segs.; BENEDICTA MARIA DUQUE VIEIRA, A Revolução de Setembro e a Discussão Constitucional de 1837, Lisboa, 1987; JÚLIO JOAQUIM DA COSTA RODRIGUES DA SILVA, As Cortes Constituintes de 1837-1838—Liberais em Confronto, Lisboa, 1992.

(2) E não apenas de revisão da Constituição de 1822 — por virtude da convocação feita pelo Decreto de 6 de Novembro de 1836, que alterou o de 11 de Setembro.

(3) V. LOPES PRAÇA, Colecção..., cit., li, págs. 276 e segs.

(4) Sobre esta, v. por curiosidade, SILVESTRE PINHEIRO-FERREIRA, Observations sur a Constitution de Ia Bélgique, Paris, 1858.

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282Manual de Direito Constitucional

Costuma dizer-se que representa uma síntese entre os textos de 1822 e 1826. Na realidade, está mais perto do primeiro do que do segundo, porque reafirma a soberania nacional, restabelece o sufrágio directo e elimina o poder moderador, embora institua uma segunda Câmara (a Câmara dos Senadores) e aumente os poderes do Rei em relação aos atribuídos pela Constituição de 1822.

II — A concepção de uma monarquia liberal, baseada na aliança do Rei e da burguesia e à imagem do regime moderado de Luís Filipe em França, tal é o projecto da Revolução de Setembro e da Constituição de 1838 (1).

Mas esse projecto não tinha ainda condições para se impor demoradamente e, cedo, o Decreto de 10 de Fevereiro de 1842 restaurou a Carta Constitucional. Viria a ser a Regeneração, nove anos mais tarde, a fazer aquilo que poderia ter sido a função histórica do setembrismo: a pacificação da sociedade portuguesa e a conciliação dos partidos desavindos, mas numa perspectiva agora mais próxima de 1826 do que de 1822.

103. Direitos fundamentais

A Constituição de 1838 volta a consagrar à matéria de direitos fundamentais um título à parte — o título m (arts. 9.° a 32.°) — muito mais desenvolvido e apurado que o título equivalente da Constituição de 1822. Da mesma sorte, alarga o equilíbrio entre as liberdades e as garantias que se tinha procurado na Carta.

Como direitos novos aparecem a liberdade de associação (art. 14.°), a liberdade de reunião (art. 14.°, §§ 1.° a 3.°) e o direito da resistência «a qualquer ordem que manifestamente violar as garantias individuais, se não estiverem legalmente suspensas» (art. 25.°).

(i) Segundo OLIVEIRA MARTINS (Portugal Contemporâneo, li, cit., pág. 319), era «uma combinação média, cujo intérprete político era Rodrigo da Fonseca e cujo melhor defensor foi Herculano. Era um segundo romantismo, individualista sem enjeitar a tradição, e até popular sem deixar de ser brandamente aristocrata». Curiosamente, ALMEIDA GARRETT (Viagens na minha terra, cap. v) chamar-lhe-ia, porém, «a rabugenta Constituição de 1838».

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 283

Por outro lado, a liberdade de imprensa recebe um maior impulso e estabelece-se que nos processos respeitantes ao seu abuso o conhecimento dos factos e a sua qualificação competem exclusivamente aos jurados (art. 13.° e § 2.°) ().

Neste título declara-se irrevogável a venda dos Bens Nacionais «feita na conformidadedas leis» (art. 23.°, n.° 2) (2).

104. Sistema de governo

I — A Constituição regressa à tripartição de poderes — legislativo, executivo e judicial.

O poder legislativo cabe a duas Câmaras, o que é concessão aos cartistas; todavia, a Câmara alta, a Câmara dos Senadores, passa a electiva e temporária (art. 58.°), o que é concessão aos vintistas (3). Ambas as Câmaras são eleitas por sufrágio directo (art. 71.°), restringindo-se a elegibilidade para Senadores a certas estritas categorias de pessoas, em termos censitários e capacitários (art. 77.°) (4).

«O Rei é o Chefe do Poder Executivo» (art. 80.°) — expressão vinda da Carta, não da Constituição de 1822 — e obtém o poder de sanção das leis (art. 81.°, n.° l) e o de dissolução da Câmara dos Deputados, dissolução essa que, a haver, implica a renovação de metade da Câmara dos Senadores (art. 81.°, n.° 3, § 1.°). Nenhum preceito esclarece se uma eventual denegação de sanção tem efeitos

() A liberdade de expressão aparece, antes de mais, como liberdade de imprensa (em vez de a imprensa, como em 1822 e em 1826, aparecer como uma das formas de expressão).

(2) Sobre o seu sentido económico-social, v. GOMES CANOTLHO, op. cit., pâg. 300.

(3) V. a discussão sobre a Câmara dos Senadores, in BENEDICTA MARIA DUQUE VIEIRA, op. cit., págs. 48 e segs. e 51 e segs.

Todavia, em artigo transitório da Constituição atribuía-se às primeiras Cortes ordinárias o poder de optar entr a eleição popular ou a designação dos Senadores pelo Rei, sobre lista tplice proposta pêlos círculos eleitorais.

(4) Este art. 77.” é extremamente elucidativo do carácter classista da Câmara dos Senadores, ao prever como duas primeiras categorias de elegíveis «os proprietários que tiverem de renda anual dois contos de réis» e «os comerciantes e fabricantes, cujos lucros anuais forem avaliados em quatro contos de réis».

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absolutos ou meramente suspensivos, mas, pela natureza do instituto, parece dever preferir-se a primeira hipótese; sanção real só não existe das leis de revisão constitucional (art. 139.°) ().

Ao contrário das duas Constituições anteriores e afastando-se aqui da tradição portuguesa, a Constituição não prevê nenhum Conselho de Estado junto do Rei.

I — Compromisso mais perto da Constituição de 1822 do que da Carta (insistimos), a Constituição setembrista é mais clara do que aquela no sentido de um possível pendor parlamentar mitigado. A eleição por sufrágio directo do Parlamento num contexto de soberania nacional, por um lado, e, por outro lado, os poderes institucionais do Rei levariam, assim, a uma monarquia constitucional idêntica à francesa — por sinal, exactamente como viria a funcionar o sistema da Carta após 1852.

A Constituição de 1911

105. A elaboração da Constituição

A Constituição de 1911 (2) é das quatro produzidas em assembleia constituinte a mais rapidamente elaborada (assim como o período entre a revolução e a entrada em vigor da nova ordem constitucional definitiva é o mais curto que se regista nas cinco revoluções portuguesas donde saem Constituições).

A Assembleia Constituinte reuniu-se em 19 de Junho de 1911 e (num juridismo desnecessário) «sancionou» a revolução de 5 de Outu-

() Cfr. Contributo..., cit., pág. 53, nota; MARGARIDA SALEMA, op. d., pág. 12.

(2) A obra básica é a de MARNOCO E SOUSA, Constiuição Política da República Portuguesa — Comentário, Coimbra, 1913. V. também I. MANY, Elude critique sur Ia Constitution de Ia Republique Portugaise, Paris, 1915; MAGALHES COLAÇO, op. cit., págs. 65 e segs.; ROCHA SARAIVA, Apontamentos de Direito Constitucional (por Arlindo de Castro), Lisboa, 1931; MÁRIO SOARES, Constituição de 1911, m Dicionário de História de Portugal, l, págs. 679 e segs.

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,

Parte I— O Estado e os sistemas constitucionais 285

bro de 1910 (). Nas duas reuniões seguintes elegeu uma comissão incumbida de preparar o projecto de Constituição.

O projecto (2) foi apresentado logo na reunião de 3 de Julho e, conforme nele se escrevia, esforçava-se por ser «uma fórmula conciliadora, sem ofender os princípios democráticos nem lesar os interesses nacionais».

O Congresso da Repúbica teria duas secções ou câmaras — o Conselho Nacional, eleito por sufrágio directo, e o Conselho dos Municípios, eleito pêlos vereadores das câmaras municipais. As duas Câmaras elegeriam conjuntamente o Presidente da República e poderiam destituí-lo por maioria de dois terços. O Presidente nomearia e demitiria livremente os Ministros, que não seriam responsáveis perante o Congresso. Haveria um Alto Tribunal da República, para julgamento dos crimes de responsabilidade.

O texto continha também algumas disposições interessantes e inovadoras no domínio dos direitos fundamentais.

Apodado de presidencialista e largamente impugnado durante a discussão na generalidade, o projecto teve de ser modificado sobre outras bases. Foi o projecto, assim remodelado, que foi objecto de discussão na especialidade, a qual se iniciou na sessão de 24 de Julho de 1911 e terminou no dia 21 de Agosto de 1911, sendo esta a data da Constituição (3).

Apresentaram também projectos o presidente do Governo Provisório, a título pessoal (4), e vários deputados.

106. Fontes e projecto

I — Nos trabalhos preparatórios da Constituição tomaram-se em conta a Constituição suíça e a brasileira de 1891, a primeira por a experiência suíça ir ao encontro das aspirações democráticas e des-

() E concedeu um bill de indemnidade ao Goveo Provisório.

(2) Está publicado em Anteriores Constituições Portuguesas, cit., págs. 623 e segs. O relator da Comissão foi Sebastião de Magalhães Lima.

(3) MARNOCO E SOUSA, Constituição..., cit., pág. 5.

(4) Sob o nome de Indicações: v. TEÓFILO BRAGA, Discursos sobre a Constituição Política da República Portuguesa, Lisboa, 1911.

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centralizadoras do partido republicano, a segunda até pelo incentivo que fora para os republicanos portugueses a proclamação da república no Brasil.

No entanto, no texto finalmente aprovado pela Assembleia, aquela influência é bem menor do que poderia supor-se. As únicas marcas visíveis da Constituição suíça encontram-se na ausência do poder de dissolução do Parlamento pelo Presidente da República (lógica, se o sistema fosse directorial, mas ilógica num sistema parlamentar e que, por isso, desapareceria com a revisão de 1919) e no referendo local (). E as marcas da Constituição brasileira — não só a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis mas também o habeas corpus, a equiparação de direitos de portugueses e estrangeiros, a cláusula aberta dos direitos fundamentais, a distinção entre leis e resoluções nos actos do Congresso, o regime do estado de sítio — embora significativas, não se projectariam no espírito geral da Constituição.

No fundo, a Constituição acabaria por ter por fontes mais influentes as Constituições da monarquia oitocentista e a prática da 3.” república francesa (2).

II — A Constituição de 1911 pretende levar até às últimas consequências os princípiosde 1820-1822, vendo na república a mais perfeita expressão dessas ideias. O projecto político consiste, pois, em liberalismo democrático e não ainda em qualquer forma de democracia social (desconhecida antes da l. guerra mundial), em liberalismo democrático que se condimenta de laicismo e anticlericalismo, por um lado, e de municipalismo romântico, por outro lado.

Conhecem-se as vicissitudes do regime. Se ele viria a resistir às incursões e sublevações e a consolidar-se paulatinamente no plano da

() Durante o debate na Assembleia Constituinte o Deputado João Gonçalves propôs também a consagração do veto popular e do direito de iniciativa popular (sessão n.” 21, pág. 13). E o Deputado Goulart de Medeiros propôs que das decisões do Supremo Tribunal de Justiça sobre inconstitucionalidade coubesse «recurso para a Nação» (sessão n.” 49).

(2) DOUGLAS L. AHEELER (op. cit., pág. 96) fala num «conglomerado» de sistemas republicanos de França, Brasil e Suça.

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simbologia, já no plano das instituições revelaria uma incapacidade notória: preso ao primado do político sobre o social, assente na pequena burguesia citadina sem interessar outros grupos (quando 50% da população vivia da agricultura), desgastado pelo conflito religioso (aberto pela legislação do Governo Provisório), viveria de crise em crise, passando pelo interregno de Sidónio Pais em 1918 (), até à queda em 1926. E outro não seria o destino da Constituição.

107. Direitos fundamentais

I — O título li da Constituição versa sobre os «Direitos e garantias individuais» em dois artigos, o 3.° e o 4.° No art. 3.° enunciam-se, na linha do art. 145.° da Carta, os direitos. No art. 4.° declara-se que essa especificação «não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna ou doutras leis»: é isto uma cláusula aberta ou de não tipicidade dos direitos fundamentais.

Salientam-se na enumeração:

a) Um grau mais exigente de igualitarismo jurídico-político, decorrente dos princípios republicanos e traduzido na extinção dos títulos nobiliárquicos e das ordens honoríficas (art. 3.°, n.° 3) (2);

b) Como novidades, a consagração da liberdade religiosa (art. 3.°, n. 4, 6, 7, 8 e 9), embora com ressaibos laicistas e anticlericais (art. 3.°, n.0 8, 10 e 12) (3); a abolição da pena de morte em qualquer caso — portanto, no que restava, nos crimes militares — e das penas corporais perpétuas (art. 3.°, n.° 22); o habeas corpus (art. 3.°, n.° 31); e, de certa maneira, a inclusão da resistência passiva contra impostos inconstitucionais (4) em sede de direitos fundamentais;

(’) Sem esquecer o de Pimenta de Castro em 1914.

(2) Se bem que subsistam diversas medalhas (arts. 76.” e 79.”).

(3) Previsão de lei especial sobre o exercício do culto religioso, neutralidade religiosa do próprio ensino particular, banimento da Companhia de Jesus.

(4) Vinda do art. 224” da Constituição de 1822.

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288Manual de Direito Constitucional

c) Como novidade ainda, e como único sinal de abertura a uma visão social, a obrigatoriedade do ensino primário elementar (art. 3.°, n.° 11), e não apenas a gratuitidade como na Carta e na Constituição de 1838 ().

II — Não pouco incoerentemente, a Constituição de 1911 não consagra o sufrágio universal, pois o seu art. 8.°, § único, remete para lei especial e esta, a Lei n.° 3, de 3 de Julho de 1913, viria a atribuir direito de voto apenas aos cidadãos do sexo masculino que soubessem ler e escrever (2) (3). O que desaparece, por algum tempo, é o sufrágio censitário.

Mas estabelece-se o serviço militar obrigatório para todos os portugueses, cada qual segundo as suas aptidões (art. 68.°).

Já não surpreende a não previsão do direito de greve (apesar de o Decreto de 6 de Dezembro de 1910 o ter admitido enquanto expressão da liberdade de trabalho e de constar do art. 54.°, n.° 52, do projecto da Constituição).

In — Poder-se-á sustentar a existência de uma teoria republicana autónoma dos direitos fundamentais, diferente da teoria liberal oitocentista?

GOMES CANOTILHO responde afirmativamente, considerando que, se o homem é o fundamento dos direitos naturais (e nisso estão de acordo o republicanismo e o liberalismo), o homem de uns é o homem isolado e independente (perspectiva liberal) e o de outros o homem social, fraterna e solidário. Para a concepção republicana, os direitos e liberdades são

() No projecto de Constituição previa-se também a instituição dos bens de família (Homestead) (art. 54.”, n.” 44).

(2) Contudo, o projecto da Comissão de Constituição estatuía a obrigação de a República assegurar «a educação progressiva da mulher de maneira a permitir-lhe o exercício da capacidade política e civil» (art. 54.”, n.” 12).

(3) Seria muito mais tarde — já após o 28 de Maio — pelo Decreto n.” 19 694, de 5 de Maio de 1931, que as mulheres receberiam, embora limitadamente, direito de sufrágio.

Não custa explicar a diferença de atitudes: enquanto que o regime de 1911 temia um sentido conservador ou reaccionário do voto feminino, o de 1926 parecia contar com ele.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 289

direitos funcionalmente vinculados a garantia da própria liberdade política e à prossecução dos ideais de solidariedade e de fraternidade ().

Admitimos que o pensamento dos doutrinadores da república, em Portugal e no estrangeiro, permita a destrinça. Não nos parece, em face do texto constitucional de 1911, que haja elementos suficientes para contrapor a concepção de direitos fundamentais adoptada aí à das Constituições anteriores: sem embargo dos aspectos que acabámos de registar, tudo continua ainda a reconduzir-se à ideia básica de liberdade-segurança individual-propriedade (reafirmada no art. 3.”).

108. Sistema de governo

I — A Constituição de 1911 considera — o que é uma ligeira inflexão à linguagem das Constituições anteriores — «órgãos da Soberania Nacional» o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judicial, «independentes e harmónicos entre si» (art. 6.°).

O poder legislativo é exercido pelo Congresso da República (2), formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (art. 7.°) (3), uma e outro eleitos por sufrágio directo (art. 8.°). Privativa da Câmara é a iniciativa sobre impostos, organização das Forças Armadas, discussão das propostas do poder executivo, pronúncia dos membros deste, revisão da Constituição e prorrogação e adiamento da sessão legislativa (art. 23.°). Privativa do Senado a aprovação das propostas de nomeação dos governadores e comissários de República para as províncias do utramar (art. 25.°).

O poder executivo é exercido pelo Presidente da República e pêlos Ministros (art. 36.°). O Presidente é eleito pelo Congresso (art. 38.°), não pode ser reeleito durante o quadriénio imediato (art. 42.°) e pode ser destituído, mediante resolução fundamentada e aprovada por dois terços dos membros do Congresso e que clara-

() O círculo e a linha — Da «liberdade dos antigos» à «liberdade dos modernos» na teoria republicana dos direitos fundamentais, in Revista de História das Ideias (Coimbra), 1987, págs. 733 e segs., maxime págs. 745, 748 e 757 e segs.

(2) O nome «Congresso» vem também da Constituição brasileira.

(3) Por que não uma só Câmara como em 1822? Decerto, tanto por influência da in república francesa como por inércia em face do projecto inicial.19—Man. Dir. Const..

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290Manal de Direito Constiucional

mente consigne a destituição ou em virtude de condenação por crime de responsabilidade (arts. 46.° e 26.°, n.° 20). O Congresso não pode ser dissolvido pelo Presidente (). Não há veto presidencial, valendo o silêncio do Presidente até o fim do prazo de quinze dias a contar da data da apresentação por promulgação (art. 31.°).

II — O muito maior peso do Congresso, o apagamento do Presidente da República (2) e a responsabilidade política dos Ministros — um dos quais é o Presidente do Ministério (art. 53.°) — perante as Câmaras (arts. 49.° e segs.) inculcam na qualificação do sistema de governo como parlamentar. E sistema parlamentar de assembleia ou, noutra perspectiva, sistema parlamentar atípico, por o Presidente não ter poder de dissolução, nem de veto, e o Congresso ter poder de destituição (3).

Reduzido o Presidente a simples figura representativa ou a árbitro com poucos poderes de intervenção, deslocar-se-ia forçosamente o centro da vida política para o Parlamento e para os directórios partidários. Num período de grande instabilidade política e social, isso provocaria, porém, uma enorme frequência de crises, de Governos e até de Presidentes da República (apesar de haver um partido «dominante», o Partido Democrático de Afonso Costa) (4).

109. A fiscalização da constitucionalidade pêlos tribunais

Não foi apenas por influência da Constituição brasileira; foi ainda, sobretudo, por razões internas (antes de mais a reacção contra os decretos ditatoriais de antes de 1910) que a Constituição reconhe-

() A questão foi, no entanto, muito discutida na Assembleia Constituinte:

v. Diário, sessão n.” 17, págs. 23 e segs.

(2) Chegou a ser discutido na Assembleia Constituinte se devia ou não haver Presidente da República, tendo em conta os princípios do programa republicano.

(3) Assim, MARNOCO E SOUSA, op. cit., págs. 13 e segs.; FEZAS VITAL, op. cit., págs. 273 e segs. Cfr. as críticas de I. MANY, op. cit., págs. 14 e segs.

(4) Cfr. KATHELEEN SCHWARTZMAN, Contributo para a sisematização dum aparente caos político: o caso da Primeira República Poruguesa, m Análise Social, n.” 65, 1981, págs. 153 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 167 e segs.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 291

céu aos tribunais uma competência de apreciação da constitucionalidade das leis, segundo o modelo americano. E a Lei Fundamental de 1911 foi mesmo a primeira Constituição europeia a prever expressamente tal competência, o que pode considerar-se um dos mais positivos elementos da obra constituinte da l.” república.

Dizia o art. 63.°: O «Poder Judicial, desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei ou dos diplomas emanados do Poder Executivo ou das corporações com utilidade pública, que tiverem sido invocados, apreciará a sua legitimidade constitucional ou conformidade com a Constituição e princípios nela consignados».

O estudo desta matéria será feito, com o necessário desenvolvimento, no capítulo respectivo da Parte II ().

110. As leis de revisão constitucional

I — A Constituição de 1911 foi objecto de cinco leis de revisão constitucional, em dois momentos diferentes: em 1916, por causa da guerra; e em 1919-1921, no seu rescaldo e no rescaldo do interregno sidonista de 1918, para aproveitar a experiência de funcionamento das instituições.

II — A revisão de 1916 (Lei n.” 635, de 28 de Setembro desse ano) confinou-se ao restabelecimento de galardões por feitos cívicos e actos militares e à restauração da pena de morte em caso de guerra com país estrangeiro enquanto a aplicação dessa pena fosse indispensável e apenas no teatro da guerra.

In _ A revisão de 1919-1921 (Leis n.0 854, 891, 1005 e 1154, respectivamente de 20 de Agosto de 1919, 22 de Setembro de 1919, 7 de Agosto de 920 e 27 de Abril de 1921) foi de alcance muito mais amplo:

— Atribuição de subsídios aos membros do Congresso (Lei n.” 854);

— Conferir de competência ao Presidente da República para «dissolver as Câmaras legislativas, quando assim o exigirem os interesses da Pátria

C) Para um primeiro contacto, v. MAGALHÃES COLAÇO, op. cit., págs. 97 e segs.; ou JORGE MIRANDA, Contributo..., cit., pâgs. 105 e segs.

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292Manua de Direio Constitucional

e da República, mediante prévia consulta do Conselho Parlamentar» (Lei n.° 891);

— Criação do Conselho Paramentar, formado por membros eleitos pelo Congresso de harmonia com um princípio de representação proporcional de «todas as correntes de opinião» (mesma Lei n.” 891), e que foi a primeira forma de institucionalização ou de reconhecimento constitucional dos partidos ou dos grupos parlamentares no Direito português (l);

— Incremento da descentralização nas colónias e criação do regime de altos comissários (Lei n.” 1005);

— Organização das Câmaras em sessões plenárias e por secções, sendo chamados às reuniões destas para «expor os seus alvitres» «representantes das classes organizadas e associações interessadas nos assuntos que nas mesmas se discutirem» (Lei n.” 1154).

Apesar de extensa e profunda, esta reforma não afectaria o teor do sistema de governo (2); nem aumentaria a base de apoio ao regime republicano.

111. A alteração de 1918

Durante a ditadura de Sidónio Pais e a pretexto de lei eleitoral, o Governo introduziu importantíssimas modificações constitucionais, embora sem se reportar expressamente ao texto da Constituição. Foi o já referido Decreto n.° 3997, de 30 de Março de 1918:

—Introdução do sufrágio universal para os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos, independentemente de saberem ler e escrever (arts. 3.° a 5.°);

— Composição do Senado, através de um sistema de dupla representação — territorial e profissional — sendo 49 senadores eleitos pelas províncias e 28 por seis categorias profissionais — agricultura, indústria, comércio, serviços públicos, profissões liberais, artes e ciências (art. 2.°), o que foi,

() Contra: PAULO OTERO (O poder de subsituição..., cit., pág. 250, nota), para quem a sua função estaria, antes, próxima da de uma comissão permanente do Congresso. Mas, ainda que assim fosse, uma coisa não excluiria a outra.

(2) Sobre como o novo poder de dissolução, em vez de racionalizar o sistema, na prática, tendo em conta as condições do país, criou maior instabilidade, DOUGLAS L. WHEELER, op. cit., págs. 214 e segs.

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Parte I—O Esado e os sistemas constitucionais 293

por seu tuo, a primeira forma de institucionalização constitucional do pluralismo social e dos grupos de interesses entre nós;

— Eleição do Presidente da República por sufrágio directo (art. 116.°) e possibilidade de mandato mais longo que quatro anos (art. 121.°);

—Atribuição ao Presidente da República da chefia da força armada de terra e mar, «competindo-lhe privativamente empregá-la conforme for conveniente à segurança interna e defesa externa da Nação» (art. 122.°), e, sobretudo, atribuição da competência para «nomear e demitir livremente os seus Ministros e Secretários de Estado» (art. 123.°).

Era não só a prefiguração de um regime de índole corporativa mas também a opção por um sistema presidencial. E, por isso, para além da ruptura feita pelo Decreto n.° 3997 (que não respeitou, claro está, as regras de revisão do art. 82.° da Constituição), mesmo materialmente não podia falar-se em verdadeira e própria revisão. Era outra Constituição material que se pretendia fazer.

A alteração não sobreviveu ao assassinato de Sidónio Pais, já que, dois dias depois deste, o Congresso da República suspendeu os arts. 116.° a 221.° do Decreto até à revisão constitucional prevista no art. n das disposições transitórias deste (Lei n.° 833, de 16 de Dezembro de 1918). E, assim, a Constituição de 1911 viria a ser reposta na sua integridade.

CAPITULO In

A CONSTITUIÇO DE 1933

112. A elaboração da Constituição

I — O interregno entre a revolução de 1926 e a Constituição de 1933 () ou «Ditadura Militar» (num dos sentidos, já referidos) é

(i) Sobre a Constituição de 1933 em especial, v. PEREIRA DOS SANTOS, Un État Corporatif— La Constitution Sociale et Politique Portugaise, 2 edições, Paris-Porto,1935 e 1940; AFONSO QUEIRÓ, O Novo Direito Constitucional Português, m Bole-

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294Manual de Direito Constitcional

o mais largo dos interregnos constitucionais portugueses () e a génese dessa Constituição, se não terá sido das mais complexas e atribuladas, é certamente aquela de que menos se sabe.

Em princípio, continuou em vigor a Constituição de 1911 (2), excepto no respeitante às relações entre o Poder Legislativo e o Executivo e às liberdades públicas e em termos precários (3). Mas não só não tardariam a ser publicados numerosos decretos com força de lei que comportariam alteração constitucional (4) como um decisivo

tim da Faculdade de Direio da Universidade de Coimbra, vol. xxil, 1946, págs. 45 e segs.; MIGUEL GALVÂO TELES, Direito Constitucional Poruguês Vigene, sumários policopiados, 2 edições, Lisboa, 1970 e 1971; MARCELLO CAETANO, Manual..., u, cit., págs. 486 e segs.; JORGE MIRANDA, Ciência Política..., cit., li, págs. 87 e segs.;

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De autores estrangeiros, cfr. AMEDEO GIANNINI, La Costituúone Portoghese dei 1933, Roma, 1933; PIERRE THOMAS, La conception juridique dês pouvoirs en droit hispano-portugais e latino-aaméricain Genebra, 1938, págs. 41 e segs.; SANCHEZ AGESTA, Curso de Derecho Constitucional Comparado, cit., págs. 367 e segs.;

CLAUDE GOYARD, Salawr et lê gouvernement du Portugal, in Eludes de Droit Public, obra colectiva, Paris, 1964, págs. 126 e segs.; BISCARETTI Dl RUFFIA, Introduúone..., cit., págs. 380 e segs.; LALÉ PAJOT, Comment ils sont gouvernés — Lê Portugal, Paris,1971; ANTÓNIO GONZALEZ DIAS LLANO, Una interpretación de acual sistema poltico português, m Estúdios de Ciência Poltica y Sociologia — Honienaje ai Profesor Carlos Ollero, obra colectiva, Madrid, 1972, págs. 263 e segs.; CHRISTIAN DU SAUSSAY, op. cit., págs. 449 e segs.

() Cfr. JORGE CAMPINOS, A Ditadura Militar. Lisboa, 1975.

(2) V. a demonstração em MAGALHES COLAÇO, conferência parcialmente transcrita in O Direito, ano 60.”, 1928, págs. 163-164. Por seu lado, FEZAS VITAL Direito Constiucional, lições coligidas por João Rui P. Mendes de Almeida e José Agostinho de Oliveira, Lisboa, 1936-1937, pág. 345) falaria em «regime constitucional atenuado», no sentido de que a Constituição de 1911 vigoraria agora como Constituição flexível, e não já rígida.

(3) Assim, o nosso estudo A Revolução de 25 de Abril e o Direio Constiucional, Lisboa, 1975, págs. 23 e segs.

(4) Foram: precedido pelo Decreto n. 11 789, de 19 de Junho de 1926, o Decreto n.” 12 740, de 26 de Novembro de 1926 (cometendo o exercício das funções de Presidente da República ao Presidente do Ministério e submetendo a referenda ministerial os seus actos); o Decreto n.” 15 063, de 25 de Fevereiro de 1928 (a estabelecer a eleição por sufrágio directo do Presidente da República e a fixar em

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cinco anos o perodo presidencial); o Decreto n.” 15 248, de 24 de Março de 1928 (permitindo ao Presidente da República residir num dos palácios nacionais); o Decreto n.” 15 381, de 9 de Abril de 1928 (sobre o compromisso de

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 295

debate político se travaria no interior do novo regime entre os que pretendiam mera reforma das instituições republicanas e os que, próximos do «Integralismo Lusitano» ou do fascismo italiano, reclamavam uma Constituição diferente () (2). Venceriam estes, com Salazar, embora não sem compensações aos primeiros.

II — O Decreto n.” 20 643, de 22 de Dezembro de 1931, criou um Conselho Poítico Nacional, chamado fundamentalmente a dar parecer acerca dos projectos de Constituição e de Códigos Administrativo e Eleitoral e acerca da organização do regime corporativo. Compunham-no o Presidente do Ministério, o Ministro do Interior, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e 11 homens públicos nomeados pelo Presidente da República (3).

Não terá, entretanto, este Conselho Político Nacional desempenhado um papel de relevo. Na realidade, foi Oliveira Salazar que concebeu e elaborou um projecto de Constituição, apoiado ou coadjuvado por um pequeno grupo de pessoas (4). Mas desconhecem-se os trabalhos preparatórios respectivos.

Antiparlamentarista como se proclamava, não convocou o regime uma assembleia constituinte para apreciar esse projecto ou, eventualmente, outros projectos que fossem apresentados. Sim-

honra do Presidente da República); sobretudo, o Decreto n.” 18 570, de 8 de Julho de 1930 (aprovando o Acto Colonial, em substituição do título v da Constituição de 1911).

() Uma primeira tentativa de definição foi o Manifesto ao País, publicado pelo Governo em 28 de Maio de 1927.

(2) Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual..., cit., li, págs. 487 e segs.

(3) V. JORGE MIRANDA, Conselho de Estado, Coimbra, 1970, págs. 4, 6 e 7.

(4) Segundo MARCELLO CAETANO (Minhas memórias de Salawr, Lisboa, 1977, págs. 4445 e 57 e segs.), o primeiro esboço coube a Quirino de Jesus, o técnico constitucional consultado foi Fezas Vital, o autor do relatório Pedro Theotónio Pereira, o «secretário» o próprio Marcello Caetano. E, referindo-se a Salazar, anota Marcello Caetano: «Estou convencido de que pretendeu evitar que alguém se arrogasse em exclusivo a colaboração nessa obra fundamental; assim foram vários a ajudá-lo, uns nisto, outros naquilo, diluindo-se no trabalho da equipa a contribuição decada qual».

Cfr., com menos interesse, PEDRO THEOTÓNIO PEREIRA, Memórias, l, Lisboa,1972, págs. 89 e segs.; FRANCO NOGUEIRA, Salawr, li, Lisboa, 1977, págs. 161 e segs.,185 e segs. e 206 e segs.

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296Manal de Direito Constitucional

plesmente, o Governo publicou-o nos joais diários de 28 de Maio de 1932 para efeito de discussão no país e, depois, refundiu-o e submeteu-o a «plebiscito nacional». E, como continuavam as liberdades restringidas ou suspensas, tal não poderia deixar de se reflectir num carácter muito limitado e pouco pluralista dessa discussão o.

O projecto de 1932 em pouco diverge do texto que veio a ser plebiscitado. As únicas divergências de certo vulto são as seguintes:

— O nome «República organicamente democrática e representativa» e não «República corporativa» (art. 6.”);

— O não se preverem no § 2.” do art. 8.” medidas para impedir preventivamente «a perversão da opinião pública»;

— O estatuir-se não haver amnistia para os condenados por crimes eleitorais (art. 9.”);

— A proibição de reeleição imediata do Presidente da República, a eleição do Presidente da República pêlos chefes de família e a inelegibilidade dos parentes e afins do Presidente cessante (arts. 72.” e 74.”);

— A composição mista da Assembleia Nacional, com 45 Deputados eleitos pêlos corpos administrativos e pêlos colégios corporativos coloniais e 45 por sufrágio directo (art. 85.”).

In — O Decreto n.” 22 229, de 21 de Fevereiro de 1933, organizou as operações do plebiscito ou referendo constituinte. O Decreto n.” 22 241, da mesma data, inseriu o texto do projecto final da Constituição.

O plebiscito realizou-se em 19 de Março de 1933. Os resultados da assembleia geral de apuramento (2) foram publicados em 11 de Abril no Diário do Governo. Nesta data entrou a Constituição em vigor.

Não houve promulgação e o texto que faz fé como texto primitivo da Constituição é o constante do Decreto n.” 22241.

As disposições do Acto Colonial, aprovado pelo Decreto n.” 18 570, foram consideradas matéria constitucional pela Constituição (art. 132.”) e publicadas de novo no dia 11 de Abril de 1933. Continuariam a valer

() Sobre a discussão do projecto, v. as observações do próprio Salazar, in ANTÓNIO FERRO, Salawr, reedição, Aveiro, 1978, págs. 98-99; e FERNANDO ROSAS, As primeiras eleições legislativas sob o Estado Novo. Lisboa, 1985, págs. 26 e segs.

(2) A favor — 719 364 votos; abstenções — 487 364; contra — 5995. As abstenções contaram como votos a favor (sendo o sufrágio obrigatório).

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Parte l—O Estado e os sistemas consiucionais 297

como normas constitucionais não integradas na Constituição instrumental até 1951.

113. Fontes e projecto

I — Ao contrário do que sucede com as Constituições liberais, não se toma fácil indicar uma ou algumas Constituições que possam ser consideradas fontes principais da Constituição de 1933. É somente a respeito dos seus diversos títulos, capítulos ou institutos que se vislumbram inspirações e semelhanças.

Decerto, em muita da linguagem e em muitas das soluções de fundo ela não rompe com as Constituições anteriores. Mas, por outro lado, o engrandecimento do Poder Executivo ou do Governo deriva das leis constitucionais da Ditadura, tal como o sistema de compressão das liberdades públicas da sua prática; a intervenção do Estado na sociedade e na economia, a ordem administrativa e, muito provavelmente, a sistematização do texto constitucional denunciam leitura da Constituição de Weimar; e a qualificação do Estado como Estado corporativo e a criação de uma Câmara Corporativa reflectem a atenção prestada ao fascismo italiano.

Por seu turno, depois, viria a Constituição de 1933 a ser fonte doutras Constituições de regimes autoritários: assim, a efémera Constituição austríaca de 1934 (de DOLFUSS) como já se disse; a brasileira de 1937; e até a egípcia de 1956.

II — O sistema interno da Constituição traduz um equilíbrio empírico de várias ideias-força, ligado ao compromisso () que, apesar de tudo, se estabelece em 1933 entre as tradições e as aquisições

() Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual..., cit., li, págs. 487 e segs. e 493-494;

MIGUEL GALVÂO TELES, Constitições portuguesas, cit., loc. cit., pág. 1505; FRANCISCO LUCAS PIRES, O Estado Pós-Corporativo, in Revista da Corporação dos Transportes e Turismo, n.” 2, Outubro de 1973, págs. 3 e segs.; MANUEL DE LUCENA, A evolução do sistema corporativo português, Lisboa, 1976, l, págs. 116 e segs.; JORGE CAMPINOS, O presidencialismo do Estado Novo, cit., págs. 27 e segs,; MANUEL BRAGA DA CRUZ, O parido e o Estado no salaarismo, cit., págs. 48 e segs.

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298Manual de Direio Constitucional

de cem anos de constitucionalismo liberal e as tendências políticas de Salazar (i).

Há um tríplice compromisso — entre liberalismo e autoritarismo, entre democracia e nacionalismo político e entre república e monarquia:

a) Entre liberalismo (direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, regime de suspensão das garantias constitucionais, Assembleia Nacional com poderes legislativos e de fiscalização do Governo, fiscalização da constitucionalidade pêlos tribunais) e autoritarismo (regulamentação por lei e sujeição das liberdades a regime preventivo, papel do Estado perante a opinião pública, ordem administrativa autoritária, prevalência do Chefe do Estado sobre a Assembleia Nacional);

b) Entre democracia (conceito de Nação do art. 3.°, princípio da soberania nacional, eleição do Presidente da República e da Assembleia Nacional por sufrágio directo dos cidadãos) e nacionalismo político (2) (regime do território nacional, papel do Estado perante a família, a educação e a religião, instituições de adestramento da mocidade para os seus deveres militares e patrióticos, ultramar);

c) Entre república (formalmente conservada) e monarquia (figura do Chefe do Estado decalcada sobre a do Rei na Carta Constitucional).

Porquê esse compromisso? Por várias razões:

— A revolução de 1926 tinha elementos muito diversos e Salazar não chegara ao poder por si só, mas por convite vindo dos militares;

— A própria filosofia política de Salazar era bastante pragmática;

— Portugal, situado na periferia da Europa e pouco industrializado, não sofria o influxo directo dos fascismos e, pelo contrário, tinha relações especiais com a Grã-Bretanha;

() O próprio Salazar diria: «Na regulamentação dos poderes do Estado, a Constituição portuguesa é ainda um compromisso entre o passado e o presente, ainda escravo, em certos pormenores, de outros princípios» (in ANTÓNIO FERRO, op. cit., pág. 274).

(2) Cfr. QUIRINO DE JESUS, acionalismo Português, Porto, 1932.

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Parte I— O stado e os sistemas constitucionais 299

—Em Espanha, em 1933, vivia-se em regime republicano, com a Constituição democrática e social de 1931.

In — Tal como as Constituições anteriores, a Constituição de 1933 inclui os territórios portugueses da África e da Ásia no âmbito do território nacional (). Todavia, ao contrário destas (2), não admite a possibilidade de separação ou cessão de qualquer desses territórios e, mais do que isso, declara ser «da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendem» (art. 2.° do Acto Colonial, depois art. 133.° da Constituição).

A ideia da inalienabilidade do ultramar (ou, como se disse, entre 1933 e 1951 do império colonial) e da sua unidade com a metrópole foi sempre um ingrediente essencial do nacionalismo salazarista (3). Foi-o antes de 1945; continuou a sê-lo a seguir à2.” guerra mundial e ao início do movimento de descolonização, com os resultados conhecidos — para o próprio regime (que não pôde sobreviver) e para os territórios africanos (que acederiam à independência nas condições já referidas), bem como para Goa, Damão e Diu e para Timor.

IV — O traço que se pretende mais original da Constituição é o corporativismo, tomado como forma quer de organização social quer de organização política, e ao qual se ajuntam elementos finalísticos por influência do integralismo lusitano (4), da doutrina social

() Constituição de 1822, art. 20.”; Carta, art. 2.”; Constituição de 1838, art. 20.”; Constituição de 1911, art. 2.”; indirectamente; Constituição de 1933, art. l.”

(2) Constituição de 1822, art. 162.”; Carta, art. 75.”, § 8”; Constituição de 1838, art. 37.”, IX; Lei n.” 1005, de 7 de Agosto de 1820.

(3) Assim, MANUEL BRAGA DA CRUZ, O partido e o Esado..., cit., pág. 62. Cfr. ANTÓNIO DUARTE SILVA, Salazar e a Política Colonial do Estado Novo: o Acto Colonial (1930-1951), m Salazar e o Salazarismo, obra colectiva, págs. 131 e segs.;

PAULO OTERO, A concepção unitarista do Estado na Constituição de 1933, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990, págs. 415 e segs.

(4) Cfr. MANUEL BRAGA DA CRUZ, O Integralismo Lusitano e as origens do Salazarismo, in Análise Social, n.” 70, 1982, págs. 137 e segs.

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300Manal de Direito Constitucional

da Igreja, do socialismo catedrático e ainda da Constituição de Weimar ().

Enquanto forma de organização social, o corporativismo recorta-se através de uma «ordem económica e social», que repousa na solidariedade (ou na solidariedade a todo o custo) dos interesses das classes sociais e em nome da qual se proíbem a greve e o lock-out (art. 39.°), se afirma a função social da propriedade, do capital e do trabalho (art. 35.°) e se admite a associação do trabalho à empresa (art. 36.°). A integração corporativa envolve as corporações morais e económicas e as associações ou organizações sindicais, incumbindo ao Estado reconhecê-las e promover e auxiliar a sua formação (art. 14.°).

Como forma de organização política, o corporativismo visa a participação das sociedades primárias no poder, pois «elementos estruturais da Nação» (art. 5.°) não são apenas os indivíduos, são também essas sociedades menores. O sufrágio orgânico, contraposto ou, pelo menos, complementar do sufrágio individual, tal é o instrumento que preconiza. Assim, pertence privativamente às famílias, através dos respectivos chefes, eleger as juntas de freguesia (art. 17.°); nas corporações morais e económicas estarão organicamente representadas todos os elementos da Nação, competindo-lhes tomar parte na eleição das câmaras municipais e na constituição da Câmara

() Sobre o corporativismo em geral, v. Rui MACHETE, Os princípios e classicações fundamenais do Corporativismo, Braga, 1969 (separata de Scientia luridica), ou LORENZO ORNAGHI, «Interesse» e «gruppi coorporativi». Introdusione alio studio dei fenómeno corpornaivo, m li Poltico, 1980, págs. 221 e segs., e autores citados.

Sobre as concepções do corporativismo português, v. MARCELLO CAETANO, Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1935; MÁRO DE FIGUEIREDO, Princípios Essenciais do Estado Novo Corporativo, Coimbra, 1936; PEDRO THEOTÓNIO PEREIRA, A batalha do futuro, Lisboa, 1937; TEIXEIRA RIBEIRO, Princípios e Fins do Sistema Corporativo Português, Coimbra, 1939; PIRES CARDOSO, Qestões corporativas—Doutrina e factos, Lisboa, 1956; SOARES MARTINEZ, Manual de Direito Corporativo, 2. ed., Lisboa, 1967; MANUEL DE LUCENA, A evolução..., cit., l, maxime págs. 28 e segs. e 160 e segs.; ANTÓNIO DA SILVA LEAL, Os grupos sociais e as organiações na Constituição de 1976—A rotura com o corporativismo, in Esudos sobre a Constituição, obra colectiva, m, Lisboa, 1979, págs. 205 e segs.; PAULO OTERO, A concepção unitarista..., cit., loc. cit., págs. 445 e segs.

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Parte I—O Estado e os sisteas constitucionais 301

Corporativa (art. 18.°); na organização política do Estado concorrem as juntas de freguesia para a eleição das câmaras municipais e estas para a dos conselhos de província, e na Câmara Corporativa haverá representação de autarquias locais (art. 19.°).

A tradução do projecto constitucional em normas faz-se através de não poucas expressões de acentuado cunho ideológico — programático ou proclamatório. No nosso constitucionalismo, é a Constituição de 1933 a primeira Lei Fundamental que as ostenta com tal evidência.

V — Em suma, a ideia da Constituição subsiste como base da ordem jurídica e fundamento da legalidade (não tanto da legitimidade) dos governantes e dos seus actos (). Mas a sua efectividade seria bem reduzida, até porque ao projecto objectivado nos seus preceitos se sobreporia o projecto realmente executado, fruto de condicionalismos de facto e da própria natureza de regime.

114. Direitos fundamentais

No tocante aos direitos fundamentais, na Constituição de 1933 sobressaem:

a) O já referido carácter autoritário do regime dos direitos, liberdades e garantias, com leis especiais a regular o exercício das liberdades de expressão, de ensino, de reunião e de associação, «devendo, quanto à primeira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social» (art. 8.°, § 2.°) (2) (3);

() Sobre o pblema, em termos opostos, ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO, op. cit., págs. 103 e segs.; e JORGE MIRANDA, Contributo..., cit., págs. 94 e segs.

(2) Carácter autoritário presente também na possibilidade de perda de mandato dos Deputados à Assembleia Nacional que «emitam opiniões contrárias a existência de Portugal como Estado independente ou por qualquer forma incitem à subversão violenta da ordem política e social» (art. 89.”, § 2.”).

(3) «Não reconhecemos a liberdade contra a Nação, contra o bem comum, contra a família, contra a moral» (SALAZAR, Discrsos, l, 4. ed., Coimbra, 1948, pág. 309).

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302Manual de Direito Constitucional

b) Mas carácter autoritário que não se converte em totalitário, em virtude da limitação da soberania pela moral e pelo direito (arts. 4.° e 6.°, n.° l) (); e que, apesar do disposto sobre a ordem administrativa, se compagina com a primeira consagração do direito de recurso contencioso dos funcionários públicos (art. 108.°, n.° 4, in fine};

c) O aparecimento, enquadrados no projecto corporativo, de vários direitos sociais — protecção da família (art. 13.°), associação do trabalho à empresa (art. 36.°), direito à educação e à cultura (arts. 42.° e 43.°) e, a partir de 1951, direito ao trabalho (art. 8.°, n.° l-A) e incumbência de defesa da saúde pública (art. 6.°, n.° 4) — bem como da contratação colectiva (art. 37.°), a acrescentar à função social da propriedade (citado art. 35.°) (2);

d) A atribuição quer individual quer institucional dos direitos fundamentais, por incumbir ao Estado definir e fazer respeitar os direitos e garantias resultantes da natureza ou da ei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais e das corporações morais e económicas (art. 6.°, n.° l, 2.’’ parte, e ainda arts. 13.°, 37.°, 42.° e 45.° a 48.°).

115. Um «Estado sem partidos»

I — A Constituição parece pressupor o reconhecimento dos partidos políticos, quando estipula que os funcionários públicos estão ao serviço da colectividade e não de qualquer partido ou organização de interesses particulares (art. 22.°) (3). E, interpretado de harmonia

() Muito embora o sentido do art. 4.” não fosse unívoco, prevalecendo uma interpretação legalista e positivista sobre uma interpretação rigorosamente preceptiva e jusnaturalista. Sobre o problema, v. a nossa Ciência Política..., cit., li, págs. 115 e segs., e autores citados.

(2) Cfr. ANTÓNIO DA SILVA LEAL, Políica Social Poruguesa, policopiado, Lisboa, Instituto de Estudos Sociais, 1969-1970; MÁRIO BIGOTTE CHORO, A colaboração na empresa perante o ireito Português, in O Direito, 1971, págs. 9 e segs.;

PAULO OTERO, O poder de substituição..., cit., págs. 519 e segs.

(3) Cuja fonte terá sido o art. 130.” da Constituição de Weimar, de resto habitualmente considerado (a par do art. 124.”, 2.° parte) um dos primeiros preceitos constitucionais que procederam à institucionalização dos partidos políticos.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 303

com as regras próprias de hermenêutica jurídica, sem dúvida o art. 8.°, n.° 14, ao garantir a liberdade de associação, implicaria a sua admissibilidade.

Todavia, um dos aspectos mais relevantes da ideologia e da vida política do «Estado Novo» viria a ser, bem ao invés, a proscrição dos partidos políticos, ainda que sem proibição ou inexistência legal. Se nenhuma lei os vedaria expressa e taxativamente, o regime geral da liberdade de associação conduziria ao mesmo resultado, na medida em que, ao arrepio do art. 8.° da Constituição, havia de sujeitar a formação de quaisquer associações políticas a autorização () — a autorização administrativa que nunca seria concedida.

Pode então falar-se num verdadeiro costume constitucional contra legem (ou, pelo menos, praeter legem), estribado na convicção jurídica e política ligada àquela ideologia e exibida numa constante prática legal, jurisprudencial e administrativa (2).

II — O específico da concepção de Salazar sobre a organização constitucional seria a ideia de um Estado representativo sem partidos (3), assente, por um lado, numa postura orgânico-corporativa sobre a essência da Nação e sobre o papel do cidadão (4) e, por outro lado, numa crítica radical aos malefícios do sistema de parti-

() V., designadamente, o Decreto-Lei n.” 39 660, de 20 de Maio de 1954.

(2) Contra: MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 223 e segs,, maxime págs. 231-232. A Constituição de 1933 não reconheceria liberdade de associação partidária; a prática constitucional delinearia os contornos de um regime jurídico que poderia propiciar várias modalidades de organização política; e viria a prevalecer a prática factual do sistema de partido liderante (pág. 231).

Por nós, podemos cnceder que o art. 22.” seja afloramento de um princípio de isenção ou imparcialidade de Administração. Já não podemos aceitar a recondução do art. 8.”, § 2.”, a «disposição em branco» (pág. 229). Uma leitura jurídica deste preceito nunca poderia ser tal que destruísse o conteúdo essencial do corpo do artigo; se ele veio a ser assim na prátic foi porque a Constituição aí não adquiriu efectividade (ou porque, em última análise, se formou também um costume abrogante da garantia da liberdade de associação)

(-1) AFONSO QUEIRÓ, Partidos e partido único no pensamento político de Salaar, 1970, pág. 12.

(4) AFONSO QUEIRÓ, ibidem, págs. 7-8.

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304Manua de Direito Constitucional

dos (). Um «Estado sem partidos», em contraposição quer ao Estado pluripartidário ou pluralista ocidental quer ao Estado de partido único dos regimes soviéticos e fascistas, eis o que se pretenderia.

116. A Constituição económica

I — A Lei Fundamental de 1933 é a primeira Constituição portuguesa que confere à economia um tratamento específico e global (2), estatuindo sobre os seus mecanismos através de um conjunto de directrizes e meios de acção do Estado inimagináveis pelo liberalismo individualista (3).

Logo no art. 6.°, incumbe o Estado de «coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais, fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses, dentro da legítima subordinação dos particulares ao geral» (n.° 2) e de «zelar pela melhoria de condições das classes

() V., por todos, MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, cit., l, págs. 450 e segs. A favor dos partidos, cfr., porém, PEREIRA DOS SANTOS, op. cit., págs. 367 e 379-380.

(2) Embora o título vi da Constituição de 1822 tenha por epígrfe «Do governo administrativo e económico» e o título vil da Carta por epígrafe «Da administração e economia das províncias».

(3) Sobre a Constituição económica de 1933, v. OLVEIRA SALAZAR, Conceitos económicos de nova Consituição, m Discursos, l (na 4. ed., págs. 183 e segs.);

TEIXEIRA RIBEIRO, Princípios e Fins..., cit.; FEZAS VITAL, Curso de Direito Corporativo, lições publicadas por J. Agostinho de Oliveira, Lisboa, 1940, págs. 67 e segs.;

PEREIRA DOS SANTOS, op. dl., págs. 148 e segs.; JORGE MIRANDA, Relevância da agricultura no Direito Constitucional Português (separata da Rivista di Diritto Agrário,1965, e de Scientia luridica, 1966), Ciência Política..., cit., li, págs. 253 e segs.;

e Direito da Economia, policopiado, Lisboa, 1983, págs. 126 e segs.; SOARES MARTINEZ, op. cit.. págs. 103 e segs.; AONSO QUEIRÓ e BARBOSA DE MELO, A liberdade de empresa e a Constituição, m Revista de Direito e Estudos Sociais, 1967, págs. 216 e 220 e segs.; MARCELLO CAETANO, parecer sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei n.° 47 240, Lisboa, 1967; SILVA LEAL, Políica social portuguesa, cit., págs. 63 e segs.,90 e segs. e 119 e segs.; AUGUSTO DE ATAÍDE, Elementos para um curso de Direio Administrativo da Economia, Lisboa, 1970, págs. 49 e segs.; ALBERTO XAVIER, Direito Corporativo, policopiado, Lisboa, 1972, págs. 49 e segs.; ANTÓNIO SOUSA FRANCO e GUILHERME DE OLIVEIRA MARTINS, A Constituição económica portuguesa, Coimbra, 1993, págs. 120 e segs.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 305

sociais mais desfavorecidas, obstando a que aquelas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente» (n.° 3).

Mas vem a ser no título viu da parte l, sob a rubrica de «ordem económica e social», que se encontram as normas mais significativas.

«A organização económica da Nação deverá realizar o máximo de produção e riqueza socialmente útil e estabelecer uma vida colectiva de que resultem poderio para o Estado e justiça entre os cidadãos» (art. 29.”).

«O Estado regulará as relações da economia nacional com a dos outros países em obediência ao princípio de uma adequada cooperação, sem prejuízo das vantagens comerciais a obter especialmente de alguns ou da defesa indispensável contra ameaças ou ataques externos» (art. 30.”).

«O Estado tem o direito e a obrigação de coordenar e regular superiormente a vida económica e social com os objectivos seguintes:

«l.” Estabelecer o equilíbrio da população, das profissões, dos empregos, do capital e do trabalho;

«2.” Defender a economia nacional das explorações agrícolas, industriais e comerciais de carácter parasitário ou incompatíveis com os interesses superiores da vida humana;

«3.” Conseguir o menor preço e o maior salário compatíveis com a justa remuneração dos outros factores da produção, pelo aperfeiçoamento da técnica, dos serviços e do crédito;

«4.” Desenvover a povoação dos territórios nacionais, proteger os emigrantes e disciplinar a emigração» (art. 31.°).

«O Estado favorecerá as actividades económicas particulares que, em relativa igualdade de custo, forem mais rendosas, sem prejuízo do benefício social atribuído e da protecção devida às pequenas indústrias domésticas» (art. 32.”).

«O Estado só pode intervir directamente na gerência das actividades económicas particulares quando haja de financiá-las e para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua intervenção» (art. 33.”, corpo).

«O Estado promoverá a formação e desenvolvimento da economia nacional corporativa, visando a que os seus elementos não tendam a estabelecer entre si concorrência desregrada e contrária aos justos objectivos da sociedade e deles próprios, mas a colaborar mutuamente como membros da mesma colectividade» (art. 34.”).

«A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade, podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração conformes com a finalidade colectiva» (art. 35.”).

20—Man. Dir. Const., l

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Também devem merecer alguma atenção as normas do título xm, sobre as «administrações de interesse colectivo», e as do título xiv, sobre finanças ().

II — O Decreto-Lei n.° 23 048, de 23 de Setembro de 1933, aprovou um «Estatuto do Trabalho Nacional». E não é tanto na Constituição quanto no Estatuto, bem próximo da Carta dei Lavoro fascista, que deve perscrutar-se o exacto sentido da economia corporativa visada pelo «Estado Novo» (2).

«A Nação Portuguesa constitui uma unidade moral, política e económica, cujos fins e interesses dominam os dos indivíduos e grupos que a compõem» (art. l.”) (3).

«A hierarquia das funções e dos interesses sociais é condição essencial da organização da economia nacional» (art. 8.”).

«Sobre o capital aplicado em exploração agrícola industrial ou comercial impende a obrigação de conciliar os seus interesses legítimos com os do trabalho e os da economia pública» (art. 14.”).

«A direcção das empresas, com todas as suas responsabilidades, pertence de direito aos donos do capital social ou aos seus representantes. Só por livre concessão deles o trabalhador pode participar na gerência, fiscalização ou lucros das empresas» (art. 15.”).

«O direito de conservação ou amortização do capital das empresas e o do seu justo rendimento são condicionados pela natureza das coisas, não podendo prevalecer contra ele os interesses ou os direitos do trabalho» (art. 16.°) (4).

() Onde aparecem normas importantes de garantia dos contribuintes (art. 70.”) e dos portadores de títulos da dívida pública fundada (art. 68.”).

(2) Cfr. SILVA LEAL, Política..., cit., págs. 55 e segs.; MANUEL DE LUCENA, op. cit., págs. 179 e segs.

(3) Sobre o art. l.” do Estatuto, procurando dar-lhe um sentido não totalitário, PEREIRA DOS SANTOS, op. cit., págs. 128-129, e FEZAS VITAL, Curso..., cit., págs. 49 e segs.

(4) Sobre o art. 16.”, v. ANTÓNIO JOSÉ PINTO LOUREIRO, Do Capital e do Trabalho na Constituição Económica Poruguesa, policopiado, Coimbra, 1963, concluindo pela inconstitucionalidade (frente à própria Constituição de 1933) da 2.” pane do preceito.

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«O trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo» (art. 22.”).

«O direito ao trabalho é tomado efectivo pêlos contratos individuais ou colectivos. Nunca o pode ser pela imposição do trabalhador dos organismos corporativos ou do Estado, salvo, no que respeita a este último, o direito que lhe assiste, em caso de suspensão concertada de actividades, de usar de todos os meios legítimo para competir os delinquentes ao trabaho» (art. 23.”).

117. Sistema de governo

I — A Constituição consigna como «órgãos de soberania» o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais (art. 71.°). As novidades consistem no abandono do termo «Poderes do Estado», no uso da designação «Chefe do Estado» a par da de Presidente da República e na autonomização do Governo.

O Chefe do Estado é eleito por sufrágio directo, «pela Nação», por sete anos (art. 72.°), pode ser reeleito e só perante a Nação responde pêlos actos praticados no exercício das suas funções (art. 78.°). Compete-lhe nomear o Presidente do Conselho e os Ministros, dar à Assembleia Nacional a eleger poderes constituintes, convocar a Assembleia Nacional extraordinariamente para deliberar sobre assuntos determinados e adiar as suas sessões, dissolvê-la quando assim o exijam os interesses superiores da Nação e prorrogar por seis meses as eleições subsequentes, dirigir a política externa do Estado, promulgar as leis, exercer poder de veto, etc. (arts. 81.°, 87.°, § único, e 98.°). Os actos do Presidente da República, salvo a nomeação e a demissão do Presidente do Conselho, as mensagens dirigidas à Assembleia Nacional e a mensagem de renúncia ao cargo, devem ser referendados pelo Ministro ou pêlos Ministros competentes ou por todo o Governo (art. 82.°) ().

A Assembleia Nacional tem noventa Deputados, eleitos por sufrágio directo por quatro anos (art. 85.°). Compete-lhe, designadamente,

(i) Sobre o Presidente da República na Constituiço de 1933, v. JORGE MIRANDA, Chefe do Estado, Coimbra, 1970, e autores citados.

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308Manal de Direio Constitucional

fazer leis, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis, autorizar o Governo a cobrar as receitas do Estado e a pagar as despesas públicas (mas não já aprovar o orçamento), aprovar as convenções internacionais, declarar o estado de sítio, deliberar sobre a revisão constitucional antes de decorrido o prazo de 10 anos sobre a última revisão (art. 91.°). A Assembleia funciona três meses, improrrogáveis, em cada ano (art. 94.°) ().

O Governo é formado pelo Presidente do Conselho e pêlos Ministros, sendo aquele nomeado e demitido livremente pelo Presidente da República (art. 106.°) e cabendo-lhe coordenar e dirigir a actividade de todos os Ministros que perante ele respondem politicamente pêlos seus actos (art. 107.°). Compete ao Governo referendar os actos do Presidente da República, elaborar decretos-leis, elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis e superintender no conjunto da administração pública (art. 108.°). O Conselho de Ministros reúne-se quando o seu Presidente ou o Chefe do Estado o julguem indispensável (art. 110.°) (2).

II — Como órgãos auxiliares instituem-se um Conselho de Estado e uma Câmara Corporativa, aquele na esteira do Conselho de Estado da Carta Constitucional e do Conselho Político Nacional de 1931, esta criada de novo, aquele auxiliar do Presidente da República, esta da Assembleia Nacional.

Compõem o Conselho de Estado os Presidentes do Conselho, da Assembleia Nacional, da Câmara Corporativa e do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e cinco membros vitalícios nomeados pelo Presidente da República (art. 83.°). O Conselho deve ser ouvido pelo Chefe do Estado quando este se proponha praticar actos de directa incidência no funcionamento da Assembleia e em todas as emergências graves da vida da Nação (art. 84.°) (3).

() Sobre a Assembleia Nacional, em especial, v. CRUCHO DE ALMEIDA, Assembleia Nacional, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, i, págs. 488 e segs.; JORGE MIRANDA, Deputado, Coimbra, 1974.

(2) V. FRANCISCO LUCAS PIRES, Conselho de Ministros, m Dicionário Jurídico da Administração Pública, li, págs. 606 e segs.

(3) V. JORGE MIRANDA, Conselho de Estado, cit.

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Compõem a Câmara Corporativa representantes das autarquias locais e dos interesses sociais, considerados estes nos seus ramos fundamentais de ordem administrativa moral, cultural e económica (art. 102.°). Compete-lhe relatar e dar parecer sobre todas as propostas ou projectos de lei que forem presentes à Assembleia Nacional, antes de ser nesta iniciada a discussão (art. 103.°). A Câmara funciona por secções especializadas e em sessões não públicas (art. 104.°) ().

In — A Constituição repudia a separação de poderes liberal e, se conserva uma assembleia política electiva na base do sufrágio individual directo, é como que a título precário, à espera de a substituir pela Câmara Corporativa.

Conquanto a feitura das leis continue a competir à Assembleia Nacional (art. 91.°, n.° l), prescreve-se que elas devem restringir-se às bases gerais dos regimes judicos (art. 92.°) e, sobretudo, permite-se ao Governo elaborar decretos-leis não só em caso de autorização legislativa como em casos de urgência e necessidade pública (art. 108.°, n.° l) (2), o que, dada até a insindicabilidade destas circunstâncias, equivale a confirmar e a manter a prática da «Ditadura Militar» (3).

Para além disto, é todo o estatuto constitucional da Assembleia que sofre diminuição: redução do número de Deputados a 90 e da sessão legislativa a 3 meses; inexistência de comissões parlamentares;

faculdade de dissolução pelo Presidente da República a todo o tempo, livremente, só sendo exigida a consulta do Conselho de Estado; pos-

() Cfr. PIRES CARDOSO, op. cif., págs. 140 e segs.; MARCELLO CAETANO, Câmara Corporativa, in Verbo, IV, págs. 572-573; CRUCHO DE ALMEIDA, Câmara Corporativa, m Dicionário Jurídico da Administração Pública, li, págs. 146 e segs.

(2) Aliás, Salazar defendia que fosse só o Goveo a legislar com a colaboração consultiva duma Câmara Corporativa, possivelmente completada por um conselho de técnicos de leis; e que a Assembleia Nacional subsistisse como assembleia política, que transmitiria ao Governo as grandes aspirações nacionais e fiscalizaria a administração pública (in ANTÓNIO FERRO, op. cit., págs. 274275). V. também Discursos, i, págs. 382 e segs.

(3) A necessidade é de apreciação discricionária — diria a Câmara Corporativa em 1935 (v. Diário das Sessões da Assembleia Nacional, 2.” suplemento ao n.” 14, págs. 3-4).

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sibilidade de o Presidente prorrogar até seis meses o prazo para novas eleições após dissolução, se assim o aconselharem «os superiores interesses do país»; não só irresponsabilidade do Governo perante a Assembleia como não comparência dos Ministros às suas reuniões.

Em contrapartida, o Chefe do Estado (sublinhe-se) é eleito por um período longo (sete anos), pode ser reeleito e só responde perante a Nação (art. 78.°). E com o Chefe do Estado forma o Governo um binário que apaga a Assembleia no teor normal das instituições.

IV — O sistema de governo de 1933, se não é, evidentemente, parlamentar (antes, militantemente antiparlamentar), tão pouco pode qualificar-se de presidencial ou sequer ser reputado de «presidencialismo bicéfalo» C). Deve qualificar-se de representativo simples de chanceler.

Não é parlamentar, por tudo quanto acaba de se referir e por Presidente da República e Governo não estarem sujeitos a votações na Assembleia Nacional, como expressamente se estipula (arts. 78.° e 111.°).

Não é presidencial, porque este sistema, conforme se viu a propósito dos Estados Unidos, implica separação e equilíbrio entre Presidente da República e Parlamento e tal não se verifica na Constituição portuguesa. Para além do mais, bastaria recordar que em sistema presidencial não existe dissolução do Parlamento pelo Presidente (2).

E, sim, um sistema representativo simples, porque a pluralidade de órgãos govemativos fica encoberta pela concentração de poderes no Chefe do Estado — considerado o mais directo representante da comunidade nacional e de quem dependem quer a Assembleia Nacional quer o Governo (que ele nomeia e demite livremente). E sistema de chanceler, porque o Presidente da República não governa, está

() Na designação de MARCELLO CATANO, Manual..., cit., li, págs. 572-573 (que, porém, olhando à prática, prefere falar em «presidencialismo de primeiro-ministro»).

(2) Na mesma linha, FEZAS VITAL, Direito Constitucional, cit. (pág. 361), faando numa república sui generis, que não se integra em qualquer dos tipos tradicionais de república (presidencial, directorial ou parlamentar).

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acompanhado de um Governo com competência própria (pela primeira vez no Direito constitucional português) e não pode agir sem o Presidente do Conselho de Ministros, que referenda quase todos os seus actos e perante o qual respondem politicamente todos os Ministros (citados arts. 82.° e 97.°) () (2).

Se há pontos de contacto com Weimar, são aqui bastante mais fortes as afinidades com a Constituição imperial alemã de 1871, ainda que não se trate de um puro sistema de chanceler, por os Ministros intervirem na função legislativa (aprovando ou assinando os decretos-leis) e na função política (referendando actos do Presidente da República) (3).

118. As revisões da Constituição

I — Na sua relativamente longa duração, a Constituição de 1933 viria a ser objecto de nove leis de revisão em cinco momentos ou épo cas: em 1935-1938, em 1945, em 1951, em 1953 e em 1971 (4).

() Sobre esta matéria, para maior desenvolvimento, v. Chefe do Estado, cit., págs. 23 e segs.

(2) Não tem, por isso, razão JORGE CAMPINOS (O presidencialismo..., cit., págs. 32 e segs. e 153 e segs.) quando alude a «presidencialismo constitucional do Presidente da República» em contraste com a prática de «presidencialismo funcional do Presidente do Conselho». Ou, menos ainda, AFONSO QUEIRÓ quando fala em semipresidencialismo (parecer sobre o projecto da lei n.” 6/x, n.” 18.”, in Revisão Constitucional de 1971, Coimbra, 1972, pág. 253).

(3) No mesmo sentido, MIGUEL GALVÀO TELES, Direito Constitucional Português Vigente, cit., pág. 46 (mas refere-se, na pág. 15, a «sistema presidencialista de chanceler»).

(4) Para o estudo das revisões e dos aspectos da Constituição que tocaram, é essencial a leitura dos pareceres da Câmara Corporativa sobre as propostas e os projectos de alterações (publicados no Diário das Sessões da Assembleia Nacional e nas Actas da Câmara Corporativa, sucessivamente). Os pareceres até 1945 foram relatados por FEZAS VITAL; em 1951, o parecer sobre a proposta de revisão do Governo foi da autoria de MARCELLO CAETANO e o parecer sobre o projecto do Deputado CANCELA DE ABREU da autoria de ANTÓNIO PEDRO PINTO DE MESQUITA;

em 1959 e 1971, o relator foi AFONSO QUEIRÓ.

Sobre a história política das revisões anteriores à de 1971, v. FRANCISCO SÁ CARNEIRO, As revisões da Constituição de 1933, Porto, 1970. Cfr., algo diversamente, FRANCISCO LUCAS PIRES, O Estado Pós-Corporativo, cit., loc. cit., pág. 5.

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Essas leis, revelando uma instabilidade mais formal ou textual do que substancial (), não vão além de preocupações de política concreta, segundo as circunstâncias de cada época.

Em 1935-38 e em 1945 continua a ser dominante o antiparlamentarismo. Daí, o reduzir-se ainda a força da Assembleia Nacional, em contraste com a ampliação de poderes do Governo (e, neste, do Presidente do Conseho) e da Câmara Corporativa.

Em 1951 verifica-se certo reequilíbrio e a Assembleia aproveita ou desenvolve algumas virtualidades que a Constituição lhe abre, quanto a reserva de competência legislativa e ratificação de decretos-leis. Entretanto, começa a pôr-se o problema da eleição presidencial, o que leva a estabelecer, como garantia do regime, o requisito de idoneidade política dos candidatos ao cargo.

Tal preocupação de defesa manifesta-se de tal forma em 1959 que ofusca outras preocupações igualmente então sentidas. A revisão desse ano fica assinalada por ter substituído o modo de eleição do Presidente (2), e não por ter aditado à reserva da Assembeia Nacional, órgão de eleição directa dos cidadãos, a competência para legislar sobre as mais importantes liberdades públicas (3).

O compromisso ideológico anterior a 1930, e ainda patente no texto primitivo da Constituição, há muito se havia rompido em beneficio dos elementos autoritários. Por isso, não foi difícil introduzir as emendas adequadas à conjuntura.

Já em 1971 a proposta de lei de revisão (quase toda aprovada) — embora não vá tão longe como um projecto de lei ao mesmo tempo apresentado e

() Foram em número a seguir indicado as alterações textuais:

— Lei n.” 1885 — 44 alterações.

— Lei n.” 1910— l alteração.

— Lei n.” 1945 — 3 alterações.

— Lei n ” 1963 — 13 aterações.

— Lei n.” 1966 — 3 alterações.

— Lei n.” 2009 — 31 alterações.

— Lei n.” 2048 — 89 alterações.

— Lei n.” 2100 — 30 alterações.

— Lei n.” 3/71 — 92 alterações.

(2) Contra a substituição, JOSÉ H. SARAIVA, A revisão constitcional e a eleição do Chefe do Estado. Fundão, 1959.

(3) Sobre o debate atinente à Assembleia, v. CARLOS LIMA, Órgãos de soberania: a Assembleia Nacional, Lisboa, 1971.

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quase todo rejeitado () — orienta-se em espírito mais favorável aos direitos fundamentais, no referente quer à sua especificação quer à sua regulamentação. Por outra banda, define as províncias ultramarinas como regiões autónomas.

II — A própria Constituição conferiu à primeira Assembleia Nacional «poderes constituintes», que os exerceu e de cuja actividade resultaram cinco leis: as Leis n. 1885, 1910, 1945, 1963 e 1966, respectivamente, de 23 de Março e 23 de Maio de 1935, 21 de Dezembro de 1936, 18 de Dezembro de 1937 e 23 de Abril de 1938 (sem contar com a Lei n. 1900, de 21 de Maio de 1935, de modificação do Acto Colonial).

Foi aquilo a que se chamaria a ratificação parlamentar da Constituição (2). E, se este termo não é inteiramente satisfatório no plano jurídico O, no plano político compreende-se o seu uso. Não tendo a Constituição sido discutida em assembleia constituinte e no referendo só sendo possível aprovar ou rejeitar o texto sem lhe introduzir alterações, interessaria ver até que ponto os primeiros Deputados a eleger (e eleitos com tais poderes de revisão) o entendiam susceptível de adaptação, correcção ou melhoria (4).

In — A revisão feita através da Lei n.” 1885, entre outras coisas, estabeleceu:

— A suplência do Presidente da República pelo Presidente do Conselho, e não já por todo o Governo;

— A necessidade de referenda, não de todos os Ministros, mas tão só do Presidente do Conselho e dos Ministros competentes;

— A sujeição da iniciativa legislativa dos Deputados a fortes restrições (não envolver aumento de despesas ou diminuição de receitas e receber voto favorável de comissão especial);

() O projecto n.” 6/x, dos Deputados Sá Carneiro e outros. Também seria quase todo rejeitado um projecto voltado para outros aspectos, o n.” 7/x, dos Deputados Duarte Amaral e outros.

(2) MARCELLO CAETANO, Manual..., cit., li, pág. 497.

(3) Tal como não era correcto dizer que se colocava a vontade duma assembeia acima da decisão plebiscitaria (assim, PEREZ SERRANO, El proyecto constitucional português, in Revista de Derecho Público, l, 1932, pág. 232).

(4) Não funcionou, portanto, logo o sistema normal de desencadear o processo de revisão constitucional, previsto, ao tempo, no art. 133.” Só que este sistema assentava numa ideia comum à que explicava a susceptibilidade imediata ope lege:

a atribuição de poderes de revisão em ligação com a formação de nova Câmara após eleições gerais.

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314Manual de Direito Constituciona

— A competência consultiva obrigatória da Câmara Corporativa quanto a tratados internacionais submetidos à Assembleia Nacional;

— A possibilidade de consulta da Câmara Corporativa pelo Governo quanto a decretos-leis ou propostas de lei;

— A faculdade de aprovação de tratados pelo Governo em caso de urgência e necessidade pública;

— A sujeição a ratificação da Assembleia somente dos decretos-leis publicados durante o período da sessão legislativa;

— A faculdade do Presidente do Conselho de comparecer na Assembleia Nacional para se ocupar de assuntos de alto interesse nacional;

— A faculdade dada ao Presidente da República de submeter a referendo alterações à Constituição respeitantes à função legislativa ou aos seus órgãos.

IV — A Lei n. 1910 limitou-se a prescrever que o ensino ministrado pelo Estado deveria ser «orientado pela doutrina e pela moral cristãs tradicionais do País».

As outras leis contêm quase só aperfeiçoamentos da estrutura dos órgãos existentes, nomeadamente da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa. O estatuto desta ficou mais aproximado do da Assembleia Nacional.

Restringiu-se também aos dipomas promulgados a incompetência dos tribunais para conhecerem da inconstitucionalidade orgânica e formal (Lei n.” 1963).

V — Operada pela Lei n.” 2009, de 17 de Setembro de 1945, que simultaneamente tocou no texto constitucional e no do Acto Colonial, a revisão de 1945 projectou-se no seguinte:

— Aumento do número de Deputados de 90 para 120;

— Menção expressa do poder da Assembleia de apreciar os actos do Governo e da Administração;

— Admissão das comissões parlamentares, em cujas sessões podiam tomar parte Ministros e Subsecretários de Estado;

— Substituição dos Ministros, quando ausentes do Continente, pelo Presidente do Conselho, se não tivessem sido nomeados Ministros interinos;

— Competência do Governo para fazer decretos-leis em circunstâncias normais, e não só em caso de urgência e necessidade pública, e restrição da ratificação aos casos em que um número mínimo de Deputados a pedisse;

— Dever do Governo de regulamentar as leis no prazo de 6 meses. A mais importante inovação foi a que estabeleceu a paridade de poderes legislativos entre Assembeia Nacional e Governo, pondo finalmente a

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Parle I—O Esado e os sisemas constitcionais 315

«verdade formal» de acordo com a «verdade rea» () ou, dito de outro modo, a lei constitucional de acordo com a prática. Mas houve quem entendesse que essa alteração básica na função legislativa, tal como se encontrava definida no texto plebiscitado em 1933, carecia de ser submetida a novo referendo (2) (aliás, previsto no art. 135.”, n.” 2, de então).

VI — Feita pela Lei n.” 2048, de 11 de Junho de 1951, o ponto de maior relevo da revisão de 1951 foi a integração do Acto Colonial na Constituição, acompanhada do retorno ao nome tradicional de províncias ultramarinas.

Outros aspectos resultantes da revisão foram:

— O reconhecimento constitucional do direito ao trabalho e da incumbência de defesa da saúde pública;

— A consideração da religião catóica como religião da Nação Portuguesa;

— O não poderem apresentar-se a eleição presidencial os candidatos que não oferecessem garantias de respeito e fidelidade aos princípios da Constituição, sendo esta idoneidade política verificada pelo Conselho de Estado;

—O aumento de 5 para 10 dos membros vitalícios do Conselho de Estado;

— A interpretação autêntica do art. 93.”, no sentido de contemplar matérias de exclusiva competência legisativa da Assembleia;

— A possibiidade de a Câmara Corporativa formular sugestões de providências ao Governo;

— A possibilidade de suspensão, em certos termos, da execução de decretos-leis ratificados com emendas;

— O aperfeiçoamento do próprio sistema de revisão constitucional (3).

VII — A revisão de 1959 traduziu-se na Lei n.” 2100, de 29 de Agosto de 1959, e foi dominada por uma questão: a mudança, por razões de cir-

() Na expressão muito conhecida do parecer da Câmara Corporativa [Diário das Sessões, suplemento ao n.” 176, págs. 642(5)-642(6) e 642(13)].

(2) Deputado Antunes Guimarães (Diário das Sessões, 1945, n.” 187, págs. 718 e 720, e n.” 190, pág. 768). Muito mais tarde, dir-se-ia ter-se modificado em 1945 a estrutura do regime (Deputado Sá Carneiro, in Diário das Sessões, 1971, n.” 102, pág. 2048).

(3) V. ainda CARLOS ZEFERINO PINTO COELHO, A Reforma Constitcional de 1951, in O Direito, ano 83.”, pág. 11.

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316Manual de Direito Constitucional

cunstancialismo político (), do modo de eleição do Presidente da República, que, em vez de eleito por sufrágio directo dos cidadãos, passou a ser eleito por um colégio eleitoral restrito, formado pêlos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em efectividade de funções, pêlos representantes municipais de cada distrito ou de cada província utramarina não dividida em distritos e ainda pêlos representantes dos conselhos legislativos e dos conselhos de governo das províncias de governo-geral e de governo simples, respectivamente (2).

Além disso, estabeleceram-se:

— O compromisso de publicação de uma lei de imprensa;

— O dever do Estado de impedir lucros exagerados do capital;

— A abolição do requisito da idoneidade política nos candidatos à Presidência da República;

— O aumento de 120 para 130 do número de Deputados;

— O alargamento das matérias da exclusiva competência legislativa da Assembleia Nacional às liberdades de expressão, de ensino, de reunião e de associação, ao habeas corpus e às garantias dos juizes dos tribunais ordinários;

— A faculdade de os Deputados formularem por escrito perguntas ao Governo;

— O principio de que a organização político-administrativa das províncias ultramarinas deveria tender para a integração no regime geral da administração;

—A exigência de um mínimo de 10 Deputados para poderem ser apresentados projectos de revisão constitucional;

— A consagração do regime de organização política em estado de necessidade (dita organização da Nação em tempo de guerra).

VIII — Por último, as principais modificações trazidas pela Lei n.” 3/71, de 16 de Agosto, foram:

— A consagração expressa de uma cláusula de recepção geral plena do Direito internacional convencional (art. 4.°, § l.”) e o apuramento do processo de ratificação de tratados (arts. 81.”, n.” 7, 91.”, n.” 7, e 109.”);

() A campanha eleitoral conduzida no ano anterior pelo candidato oposicionista HUMBERTO DELGADO.

(2) Atenuou-se, assim, o «sentido presidencialista originário» da Constituição:

ROGÉRIO SOARES, Constituição, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, li, pág. 665.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 317

— A definição das províncias ultramarinas como regiões autónomas e a racionalização da sua estrutura político-administrativa (arts. 135.° e 136.);

— A proibição expressa de discriminações fundadas na raça e, quanto à mulher, no bem da família (art. 5.”, § 2.°);

— A possibilidade de equiparação dos brasileiros aos portugueses para efeito de gozo de direitos, salvo direitos políticos reservados a portugueses originários (art. 7.”, § 3.°);

— O reforço das garantias individuais no campo do Direito e do processo penais (art. 8.”);

— A promoção, «perante Deus e os homens», da liberdade das diversas confissões religiosas, apesar de a religião católica ser a «tradicional da Nação Portuguesa» (arts. 45.” e 46.”);

— A substituição do Presidente da República na fata do Presidente do Conselho, pelo Presidente da Assembleia Nacional (art. 80.”, § 2.”);

— O aumento para 150 do número de Deputados (art. 85.”);

— O aperfeiçoamento do regime de garantia da constitucionalidade, pela menção expressa do poder da Assembeia Nacional de anular leis inconstitucionais (art. 91.°, n.” 2) e da possibilidade de concentração da competência de apreciação jurisdicional num ou em mais de um tribunais (art. 123.”, § l.”);

— A inclusão de novas matérias na reserva de competência da Assembleia Nacional (art. 93.”) e certo revigoramento das condições de trabalho da Assembleia (art. 94.” e outros), não obstante a intervenção do Presidente do Conselho na fixação da ordem do dia (art. 101.”, § único);

— A faculdade dada ao Governo de declarar o estado de sitio a título provisório e de tomar providências em caso de subversão, com restrição das liberdades e garantias individuais (art. 109.°, §§ 5.” e 6.”).

IX — Se a revisão feita em 1971 foi a mais extensa e a mais debatida de todas as revisões, ela foi insuficiente para transformar o regime e, para transformando-o, poder dar-lhe esperança de sobreviver.

Muito mais longe ia o já citado projecto de revisão n.” 6/x no sentido do reforço das liberdades de expressão e informação, de associação e de reunião, das garantias de processo pena, do regresso à eleição directa do Presidente da República, da intervenção legislativa e fiscaizadora da Assembleia Naciona e da apreciação dos actos do poder pêos tribunais.

Este projecto frustrou-se, acusado de ibera individualista () e de ir contra o espírito da Constituição, sugerindo-se que violaria limites materiais da

() Parecer da Câmara Corporativa, in Actas..., 1971, n.” 67, págs. 677 e segs.

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318Manal de Direito Constitcional

revisão (o que era abrir uma questão que, anos mais tarde com a futura Constituição de 1976, ganharia particular acuidade, mas posta de outros quadrantes políticos). Nem sequer foi discutido na especialidade pela Assembleia e o seu principal autor () veio, por causa disso, a impugnar a constitucionalidade de lei de revisão (o que era também levantar um tema básico de Direito constitucional) (2).

119. A prática constitucional e a natureza do regime

I — A prática da Constituição de 1933 consistiu, em resumo, no seguinte:

a) Numa estabilidade e numa continuidade sem paralelo na Europa — não tanto das instituições (como se veria no final) quanto das pessoas e dos cargos (desde 1933, somente houve três Presidentes da República e dois Presidentes do Conselho; a Assembleia Nacional só foi dissolvida uma vez, em 1945, e por motivos conjunturais, não por causa de qualquer conflito político; não se deram verdadeiramente senão remodelações do Governo, nunca Governos novos;

e raras foram as crises políticas de que houve notícia);

b) Na compressão ou mesmo no apagamento das liberdades de expressão (com censura prévia à imprensa), de associação, de reunião e de emigração e de certas garantias de segurança pessoal (a par da existência de uma polícia política). «O não se ter, na vigência da Constituição de 1933, feito uso da declaração de estado de sítio mostra que de facto as garantias individuais se acham à mercê do Governo» (3) (4);() FRANCISCO DE SÁ CARNEIRO.

(2) O projecto de lei (deveria ter sido projecto de resolução) não foi admitido pelo Presidente da Assembleia e não foi publicado. V., porém, a discussão do problema na nota de JORGE DE S BORGES à recolha de textos parlamentares Revisão da Constituição Política, Porto, 1971, e na 6. ed. do Manual de Ciência Poltica de MARCELLO CAETANO, 11, págs. 500 e segs.

(3) MARCELLO CAETANO, Manal de Ciência Política e Direito Constitucional,5.° ed., Lisboa, 1967, pág. 482, nota.

(4) Cfr. JORGE MIRANDA, Contributo..., cit., págs. 95 e segs., e Liberdade de reunião, Braga, 1971 (separata de Scientia luridica); FRANCISCO DE SÁ CARNEIRO,

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 319

c) No não reconhecimento da Oposição () ou da organização da Oposição fora dos períodos eleitorais (2), em contraste com a existência, embora quase sempre ténue, de uma «associação cívica» (3) — qualificável ou não de partido único (4) — de apoio ao regime e de cuja comissão central foi presidente, salvo entre 1968 e 1970, o Presidente do Conselho;

d) No carácter não substantivo ou «plebiscitário» (5) das eleições (5 para Presidente da República e 10 para a Assembleia Nacional), antes e depois de 1945 (6), não servindo as eleições — apesar de constitucionalmente imprescindíveis e

discursos aquando da revisão de 1971, in Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.0 102 e 108, de 17 e 24 de Junho de 1971, págs. 2051 e segs. e 2186 e segs.;

JOSÉ DE MAGALHES GODINHO, Direitos, liberdades e garantias individais, Lisboa,1973; Os direitos do homem em Portugal, obra colectiva, Porto, 1974; MANUEL DE LCENA, A evolução..., cit., i, págs. 129 e segs., e n, págs. 27 e segs.

() Recorde-se o art. IO.” do Estatuto do Trabalho Nacional: «É direito e obrigação fundamental do Estado contrapor a sua acção a todos os movimentos e doutrinas sociais contrários aos princípios consignados neste Estatuto».

(2) O Decreto-Lei n.” 49 229, de 10 de Setembro de 1969, permitiu a formação de comissões eleitorais de apoio às listas candidatas às eleições para a Assembleia Nacional, mas dispôs que elas se dissolveriam terminado o processo eleitoral.

(3) oi a «União Nacional», primeiro, a «Acção Nacional Popular», depois. Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual..,, 6. ed., i, págs. 389-390, nota; MANUEL BRAGA DA CRUZ, As oriens da democracia cristã e o salaarismo, Lisboa, 1980, págs. 378 e segs.; e O partido e o Estado..., cit., págs. 127 e segs.; JACQUES GEORGEL, op. cit., págs. 107 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., págs. 180 e segs.; ARLINDO M. CALDEIRA, A União Nacional: antecedentes, organiação e funções, in Análise Social, n.” 94, 1986, págs. 343 e segs.

(4) V. a análise do problema, concluindo no sentido do partido único, em DIAZ LLANOS, op. cit., loc. cit., págs. 266-267, e em MARCELO REBELO DE SOUSA, op. cit., pág. 185. Contra essa qualificação, AFONSO QUEIRÓ, Partidos..., cit., págs. 9 e segs., e, de certo modo, RAYMOND ARON, Démocratie et totalitarism, Paris, 1965, págs. 96-97. Cfr. a obra colectiva Ser ou não ser pelo partido único, Lisboa,1973.

(5) A expressão é de SALAZAR (Discursos, III, pág. 103), o qual especificava ainda: «o acto eleitoral não se destina tanto à designação dos Deputados como ao reconhecimento solene das benemerências do regime e à afirmação da confiança do País na realidade sempre fecunda dos princípios da Revolução Nacional» (págs. 103-104).

(6) Ano a partir do qual a Oposição nelas interveio ou pretendeu intervir.

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320Manual de Direito Constitucional

sempre realizadas nos prazos prescritos — para legitimar os governantes, mas sim para outros fins (para o regime, preparação de quadros, propaganda ou animação política, conhecimento dos adversários, aparência democrática para o estrangeiro; para a Oposição, oportunidade de presença, possibilidade de se fazer ouvir sem todas as restrições à liberdade do resto do tempo, lançamento de certas ideias-força) (). Daí e por não se ter chegado ao sufrágio universal (2), um número reduzido de eleitores recenseados e de eleitores efectivamente votantes (3) (4);

e) Na ambiguidade das realizações corporativas — entre corporativismo de associação e corporativismo de Estado (com bem pouca liberdade dos organismos corporativos perante o

() Cfr. PHILIPPE C. SCHMITTER, Portée et signification dês élections dans lê Portugal autoritaire (933-1974), in Revue française de science politique, 976, págs. 91 e segs.; FERNANDO ROSAS, op. cit, págs. 13 e segs.; MANUEL BRAGA DA CRUZ, O partido e o Estado..., cit., págs. 194 e segs.

(2) V., por último, a Lei n.” 2137, de 26 de Dezembro de 1968. Para o estudo da legislação eleitoral em geral, v. JOSÉ DE MAGALHES GODINHO, A legislação eleitoral e a sua crítica, Lisboa, 1969; JORGE MIRANDA, Colégio eleitoral, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, i, págs. 464 e segs.

(3) Em 1973, para uma população de cerca de 8 500 000 habitantes havia2 091 003 eleitores inscritos (ou seja, uma percentagem de 24%).

(4) Resultados oficiais das últimas eleições presidenciais:

Em 1958 (ainda com sufrágio directo): Américo Thomaz — 758 998 votos;

Humberto Delgado — 236 598.

Em 1965 (já com colégio eleitoral restrito): eleitores — 585; eleitores presentes — 569; listas válidas (a favor do candidato único) — 556; listas nulas — 13.

Em 1972: eleitores — 669; eleitores presentes — 645; listas válidas — 616;

listas nulas — 29.

As últimas eleições disputadas pela oposição foram as de 1969, com os seguintes resultados: eleitores inscritos — l 809 780; votantes — 1114 846 (61,6%); listas da União Nacional — 980 800 (88%). E no distrito de Lisboa: inscritos — 350 157; votantes — 168 311 (48,1%); União Nacional — 127 036 (75%);

Comissão Democrática Eleitoral — 31 250 (18,5%); Comissão Eleitoral de Unidade Democrática — 8 673 (5,2%); Comissão Eeitoral Monárquica — 1352 (0,8%).

As últimas eleições para as juntas de freguesia ocorrceram em 1972. Em cerca de 4000 freguesias apareceram listas concorrentes das patrocinadas pela Acção Nacional Popular em 220 freguesias.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 321

Goveo, dentro do qual houve um «Ministério das Corporações») e entre corporativismo paro e corporativismo subordinado (com incompleta atribuição de funções políticas aos referidos organismos) (), avultando em toda a estrutura corporativa a fragilidade e a pulverização dos sindicatos nacionais (2);

f) Na aplicação da Constituição económica, não em moldes de economia sujeita a fins éticos e políticos superiores aos seus agentes, no âmbito de uma autêntica integração corporativa (como defendiam os doutrinadores do corporativismo), mas sim em moldes de capitalismo autoritário, administrativo e proteccionista, mais apostado na conservação do que no desenvolvimento;

g) No completo domínio da vida política pelo Presidente do Conselho, fruto do «longo consulado do Dr. Oliveira Salazar», e na redução da Presidência da República a «uma magistratura representativa e eventualmente arbitrai» (3), «a parte honorífica do regime» (4), tendo sido o cargo de Chefe do Estado desempenhado sempre por militares, por períodos muito extensos (quase como se fossem vitalícios)

C) Cfr. SOARES MARTINEZ, op. cif., págs. 153 e segs.; G. BURDEAU, op. cit., v,2. ed., 1970, págs. 535 e segs.; LUCAS PIRES, O Estado Pós-Corporativo, cit.;

MANUEL DE LUCENA, op. cit., i, págs. 200 e segs., e 11, págs. 55 e segs.; HOWARD G. WIARDA, Corporativism and Development, The Portuguese Experience, Universidade de Massachussets, 1977.

Para LUCAS PIRES (maxime págs. 6 e segs.), o coiporativismo era criatura do Estado, nascera por intermédio da lei, em relação à qual acabara por ficar sempre subalternizado. Não era de nenhum corporativismo missionário que nascera o Estado Novo. Era do Estado Novo, limpo de ópios doutrinários, que provinha aos poucos um corporativismo moroso, pragmático e legal. Um corporativismo perfeito representaria a alteração da lógica do equilíbrio em que assentava toda a Constituição. E o autor, considerando que o corporativismo era algo de não essencial ao regime (págs. 9 e segs.), parecia admitir que ele viesse a desaguar, mais cedo ou mais tarde — escrevia em 1973 — «no grande rio da história liberal do Ocidente».

(2) Cfr. MÁRIO PINTO e CARLOS MOURA, As estruturas sindicais portuguesas, m Análise Social, n.” 33, 1972, págs. 140 e segs.

(3) MARCELLO CAETANO, Consttuições portuguesas, cit., pág. 115.

(4) DIAZ LLANOS, op. cit., pág. 271 (v. também págs. 279 e segs.).21 —Man. Dir. Const., I

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322Manual de Direito Constitucional

e os candidatos escolhidos pela União Nacional ou pela Acção Nacional Popular ();

h) Na subaltemização da Assembleia Nacional não apenas pelo apagamento jurídico dos seus poderes mas também por outros factores: pela sua composição homogénea, tendo sido eleitos, exclusivamente Deputados propostos pela União Nacional ou pela Acção Nacional Popular, pelo largo número de funcionários Deputados; pelo escasso trabalho desenvolvido e pelo carácter académico ou de mero interesse local de quase todos os discursos e debates; pela ocupação da Assembleia quase somente com as propostas enviadas pelo Governo;

i) Em contraste com esta subaltemização e com a do Conselho de Estado (este por causa do apagamento do Presidente da República), na importância não despicienda da Câmara Corporativa, quase elevada a 2. Câmara (na medida em que os seus pareceres, de born nível técnico, eram geralmente acolhidos pela Assembleia e pelo Governo). Tal importância, assim como a tendência conservadora imperante na Câmara explicam-se pela representação de interesses e de grupos de pressão e pelo avultar da tecnocracia num regime sem pluralismo partidário (2).

II — Tendo em conta os aspectos acabados de indicar, a própria Constituição no seu texto original e ao longo de sucessivas revisões e a «falta de autenticidade» com que foi executada (3), pode afirmar-se,

() Mas nisso estava exactamente a importância, a única importância (embora só formal) da U. N. ou A. N. P.: era através dela que o Presidente do Conselho escolhia o Presidente da República para o próximo septénio.

(2) Cfr. DIAZ LLANOS, op. ci., loc. cit., págs. 276-277; LUCAS PIRES. O Estado..., cit., pág. 17. Aquele autor diz que a Câmara Corporativa se tomou um enorme centro de poder burocrático, este fala no realçar dos elementos centrais do sistema corporativo.

(3) A expressão é de ADRIANO MOREIRA, O Novíssimo Príncipe, Lisboa, 1977, pág. 88. Ou, como também escreve: «A Constituição de 1933 era um documento mais preocupado com a imagem do que com a realidade do sistema público» (pág. 87). Pelocontrário, segundo MARCELLO CAETANO (Constituições..., cit., pág. 119), de

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sem hesitação, que o regime político de 1933 — chame-se-lhe «Estado Novo», salazarismo ou república corporativa — se integra de pleno entre os regimes autoritários de direita descritos em capítulo anterior.

Algo controverso O—se bem que, talvez sem interesse de maior — é apenas saber se pode ou deve qualificar-se de regime fascista (2) ou se cabe noutro tipo ou subtipo de regimes (3).

Em nossa opinião, apesar das similitudes com regimes fascistas e do uso, sempre que achou necessário, de técnicas fascistas, o sistema salazarista não foi um fascismo. Não assentava num partido

maneira geral durante os 41 anos da sua vigência houve, de parte dos governantes,

a preocupação de a respeitar.

() V. uma resenha das posições doutrinais em ANTÓNIO COSTA PINTO, O Salaarismo e o Fascismo Europeu — Os primeiros debates nas Ciências Sciais, m Salazar e o Salaarismo, obra colectiva, págs. 153 e segs.

(2) Assim, ROBERT PELLOUX, Contribution à 1’étude dês regimes autoritaires contemporains, m Revue du droit public, 1945, págs. 334 e segs.; BISCARETTI Dl RUFFIA, Introduzione.... cit., págs. 380 e segs.; JORGE CAMPINOS, A ideologia poítica do Estado Salazarista, Lisboa, 1975, págs. 59 e segs.; H. MARTINS, II fascismo in Europa cit., págs. 347 e segs.; EDUARDO LOURENÇO, O fascismo nunca exstiu, Lisboa, 1976, págs. 17 e segs., 177 e segs. e 229 e segs.; MANUEL DE LUCENA, A evolução..., cit., l, págs. 28 e segs., maxime pág. 98 (fala em fascismo sem movimento fascista) MANUEL BRAGA DA CRUZ, As origens.... cit., págs. 19 e 375 e segs. (alude a um «fascismo baptizado» assente numa inversão fascizante, antidemocrática e autoritária da democracia cristã). V. ainda de MANUEL DE LUCENA, Interpretações do salaarismo, i, in Analise Social, n.” 83, 1984, págs. 423 e segs.; Luís TORGAL, Salazarismo, Alemanha e Europa — Discursos políticos e culturais, m Do Estado Novo ao 25 de Abril, obra colectiva, Coimbra, 1994, págs. 73 e segs.

(•) Assim, KARL LOEWENSTEIN, Teoria..., cit., pág. 458; GEORGES BURDEAU, Traité..., cit., v, pág. 542; RAYMOND ARON, op. cit.. págs. 233-234 e 364 (o regime quereria’ser’liberal sem ser democrático, mas não chega a ser liberal); MAURICE DUVERGER, Institutions..., cit., págs. 495 e segs. (fala em regime pseudofascista, intermédio entre as ditaduras fascistas e as ditaduras de países subdesenvolvidos);

ANDRÉ e FRANCUNE DEMICHEL, Lês Dictatures Européennes, Paris, 1973, págs. 32 e segs. e 207 e segs. (referem-se a ditadura de notáveis); Nicos POULANTZAS, A Crise das Ditaduras—Portugal, Grécia, Espanha, trad., Lisboa, 1976, págs. 8, 11, 78, 111,112 147 e segs., 175 e 176 (fala em ditadura militar); GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lê origini delia Seconda Republica Portoghese, Milão, 1977, págs. 19 e segs. (fala em regime mais conservador do que fascista); CLAUDE POLIN, Lê totalitarisme Paris,

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1980 págs. 39 e segs.; STANLEY G. PAYNE, Autoritarisme portugais et autoritarismes européens, m Do Estado Novo ao 25 de Abril, obra colectiva, págs. 7 e segs.; ERIC HOBSBAWN, op. cit., págs. 120 e 122.

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ideológico de massas que se tivesse apoderado do Estado. E não lhe presidia uma concepção totalitária: se tinha da Nação (mas não do Estado) uma visão transpersonalista e não democrática — era a Nação historicamente definida em vez do Povo, o titular último da soberania () — nem por isso lhe sacrificava aquilo que tinha por «liberdades essenciais», nem deixava de proclamar, como se sabe, a vinculação do Estado à moral e ao direito (art. 4.° da Constituição).

Estava-se, antes, em face de um regime conservador, preocupado com fazer viver «habitualmente» os portugueses no respeito das instituições tradicionais e não sem nostalgia do miguelismo. Uma dessas instituições tradicionais era precisamente a militar: vindo de um levantamento das Forças Armadas, o regime transformara-se num regime civil, embora sempre de base militar (2), e viria a cair, quando, por causa das convulsões ultramarinas entre 1961 e 1974, essas mesmas Forças Armadas lhe retiraram o apoio (3) (4).

CAPÍTULO IV

A CONSTITUIÇÃO DE 1976

120. Sequência

A consideração sistemática da Constituição de 1976 (5) — outro tanto é dizer do Direito constitucional português actual — será feita

() Adoptando expressamente este sentido, MARCELLO CAETANO, Manual..., n, cit., págs. 506 e segs. Cfr. tomo 111.

(2) Assim, DOUGLAS WHEELER, A Ditadura Militar, cit., págs. 13; ou JAIME NOGUEIRA PINTO, O fim do Estado Novo e as origens do 25 de Abril, 2.” ed., Lisboa, 1995, pág. 46.

(3) Cfr. EDUARDO LOURENÇO, Os militares e o poder, cit., maxime págs. 17 e segs.; JACQUES GEORGEL, op. cit., págs. 189 e segs.

(4) Sobre o espírito do «Estado Novo», são fundamentais os discursos de OLIVEIRA SALAZAR (publicados em6 volumes, já citados). Cfr. ainda CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, i, 2.” ed., 1955, págs. 396 e segs., e li, 1968, págs. 216 e segs. (aqui, criticamente); EDUARDO LOURENÇO, O fascismo..., cit., págs. 17 e segs.; ANTÓNIO QUADROS, Portugal — Entre ontem e amanhã — Da cisão à revolução — Dos absolutismos à democracia, Lisboa, 1976, págs. 54 e segs. e 109 e segs.

(5) Sobre a Constituição de 1976 em geral, v. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lê origini delia Secnd Repubblica Portoghese, cit.; Estudos sobre a Constituição, obra

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nos lugares próprios das partes subsequentes da presente obra, como se impõe.

colectiva, 3 vols., Lisboa, 1977, 1978 e 1979; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3 edições, Coimbra, 1978, 1985 e 1993, e Fundamenos da Constituição, Coimbra, 1991; JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976 — Formaço, estrutura, princípios fundamentais, Lisboa, 1978;

ANDRÉ THOMASHAUSEN, Verfassung und Verfassungswirklichkeit in neuen Portugal, Berlim, 1981; JOO BAPTISTA MACHADO, Participação e descentraização. Democratização e neutralidade na Constituição de 976, Coimbra, 1982; VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituiço portuuesa de 976, Coimbra, 1983; Nos de anos da Constituição obra colectiva, Lisboa, 1987; FRANCISCO LUCAS PIRES, Teoria da Constituição de 976 —A transição dualista, Coimbra,1988; La Justice Constitutionnelle au Portugal, obra colectiva Paris, 1989; Eludes de Droit Constítulionnel Franco-Porugais, obra colectiva Paris, 1990; Perspectivas Constiucionais — Nos 20 anos da Consituição de 1976, obra colectiva, 2 volumes, Coimbra, 1996 e 1997.

E também MIGUEL GALVÀO TELES, A Constituiço de 1976: uma constituição transitória, in Expresso, de 15 de Abril de 1976; MAURICE DUVERGER, apresentação a uma tradução francesa da Constituição, Paris, 1977; MARCELLO CAETANO, A Constituição portuguesa de 1976, in R.C.G.E., Porto Alegre, 7 (17), págs. 45 e segs., e Consituições portuguesas, cit., págs. 123 e segs.; ADRIANO MOREIRA, O Novssimo Príncipe, cit., maxime págs. 92 e segs., 113 e segs. e 153 e segs.; HEINRICH EWALD HÕRSTER, O Imposo Compementar e o Estado de Direito, in Revista de Direito e Economia. 1977, págs. 37 e segs.; ANDRÉ THOMAS y HAUSEN, Constituição e realidade constitucional, in Revista da Ordem dos Advogados, 1977, págs. 471 e segs.;

MÁRIO RAPOSO, Nota breve sobre a Constituição poruguesa, ibidem, págs. 775 e segs.; MANUEL DE LUCENA, O Estado da Revolução —A Consituição de 1976, Lisboa, 1978; SOARES MARTINEZ, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, Lisboa, 1978; Luís SALGADO DE MATOS, Lê Preside de Ia Republique Portugaise dans lê cadre du regime poliique, policopiado, Paris, 1979; EMÍDIO DA VEIGA DOMINGOS, Portugal Políico —Análise das Instituições, Lisboa, 1980; ALBERTO MARTINS, O Estado de Direito e a ordem política portuguesa, in Fronteira, n.” 9, Janei-Março de 1980, págs. 10 e segs.; MARIA ISABEL JALLES, mplicações jurídico-constitucionais da adesão de Portugal às Comunidades Europeias — Alguns aspectos, Lisboa, 1980, págs. 67 e segs. e 243 e segs.; A Constituição de 1976 à luz duma reflexo crist, obra colectiva, Lisboa, 1980; JOO MOTA DE CAMPOS, A ordem constitucional poruguesa e o Direito comuniário, Braga, 1981, maxime págs. 67 e segs.; Rui MACHETE, Os princípios estruturais da Consituiço e a próxima revisão constitucional, in Revista de Direito e Estudos Sociais, 1987, págs. 337 e segs.;

CELSO BASTOS, Constituiço portuguesa, in Revista de Informaço Legislativa, n.” 97, Janeiro de 1988, págs. 63 e segs.; o n.” 60-61, de Abril-Setembro de 1988, da

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Revista de Estúdios Polticos (trad. portuguesa O sistema poítico e constitucio-

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326Manual de Direito Constitucional

Por agora, tratar-se-á apenas da sua formação — com maior minúcia do que a respeito de qualquer das Constituições anteriores, naturalmente — das suas características gerais, das questões a elas ligadas, das revisões e do sentido da aplicação e do desenvolvimento das normas constitucionais.

121. A ideia de Direito da revolução de 1974 e a Constituição

I — O processo que havia de conduzir à Constituição de 1976 partiu da ideia de Direito invocada pela revolução de 25 de Abril de 1974.

Essa ideia de Direito revelou-se claramente nas proclamações e nos primeiros actos concretos do Movimento das Forças Armadas (a libertação dos presos políticos, o regresso dos exilados, o desaparecimento da censura, o feriado do l.° de Maio, etc.) e veio a ter formal consagração num documento sem precedentes no Direito público português: no Programa divulgado na madrugada seguinte, explicitamente referido na lei pela qual foram declarados destituídos os titulares dos órgãos políticos do regime deposto (a Lei n.° 1/74, de 25 de Abril), e depois publicado em anexo à lei que definiu a estrutura provisória do poder (a Lei n.° 3/74, de 14 de Maio).

O Programa do Movimento das Forças Armadas não foi, portanto, um mero texto político; foi também, desde o início, um texto carregado de sentido jurídico, pois, com o êxito da acção revolucionária, transformou-se de acto interno do Movimento em acto constitucional do Estado (). Ele compreendia «medidas imediatas», relativas à substituição dos órgãos do poder e à restauração das liberdades cívicas, e «medidas a curto prazo», corres-

nal português, Lisboa, 1989); CARDOSO DA COSTA, A Lei Fundamental de Bonn e o Direito Constitucional Português (separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1990); CARLOS GASPAR, O processo constitucional e a estabilidade do regime, m Análise Social, 1990, págs. 9 e segs.; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. dl., págs. 593 e segs. e 606 e segs.

() Assim, GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lê origini..., cit., pág. 211.

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pndentes às grandes linhas da política do país até à feitura da nova Constituição. E a sua função não era outra senão uma função constituinte, de criação ou de recriação do ordenamento, de preconstituiçâo. Por isso, natu- ralmente dispunha que o Governo Provisório governaria por decretos-leis que obedeceriam obrigatoriamente ao seu espírito (B., 4).

Mas a legitimidade do 25 de Abril teve igualmente como ponto de referência a Declaração Universal dos Direitos do Homem, citada mais de uma vez pêlos órgãos do poder revolucionário, e cujo império havia de contrastar com o regime autoritário do qual o país tinha saído. E, se as alusões se ofereciam bastante heterogéneas e se nenhuma possuía valor judico específico, elas vinham reconhecê-la como inspiração ou elemento definidor dos direitos fundamentais a garantir doravante em Portugal. Sem se aplicar directa ou preceptivamente, apesar disso era a ideia de Direito subjacente à Declaração que se acolhia ().

II — Das proclamações difundidas no próprio dia 25 de Abril de 1974 e do Programa do Movimento das Forças Armadas logo constou o anúncio público da convocação, no prazo de doze meses (2), de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal, directo e secreto, segundo lei eleitoral a elaborar pelo futuro Governo Provisório [Programa A., 2, a] e se estabeleceu que «logo que eleitos pela Nação a Assembleia Legislativa e o novo Presidente da República... a acção das Forças Armadas será restringida à sua missão específica de defesa da soberania nacional» (C., l).

Por isso, apesar de o Programa prever uma nova política económica, «posta ao serviço do Povo Português, em especial das camadas da população até agora mais desfavorecidas», uma nova política social «que, em

() Sobre o assunto, v. JORGE MIRANDA, A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, cit., págs. 83 e segs.

(2) Cfr os prazos observados aquando das anteriores Assembleias Constituintes: Agosto-Dezembro de 1820, Setembro de 1836-Janeiro de 1837, Outubro de 1910-Junhode 1911.

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todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas aceerado, da qualidade de vida de todos os portugueses» [B., 6, a) e b)} e uma política ultramarina «que conduza à paz» (B., 8), foi claramente dito que «as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte» (B., 5) e que a definição da política ultramarina competiria «à Nação» [B., 8, a].

Quer dizer que, de harmonia com a ortodoxia constitucional democrática (), o Movimento das Forças Armadas se propunha devolver o poder ao povo num prazo relativamente curto: nisto se distinguia de quase todas as revoluções militares do nosso tempo. Deveria ser o povo, através da eleição dos Deputados à Assembleia Constituinte, a determinar o sistema político e económico-social em que desejaria viver — porque «a vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto...» (art. 21.”, n.” 3, da Declaração Universal).

In — Mas três circunstâncias particulares, sem paralelo em épocas anteriores, viriam a assinalar o processo que se desenrolaria até à Constituição (2).

A primeira viria a ser a turbulência dos dois anos entre a revolução e a Constituição, derivada de condicionalismos de vária ordem (descompressão política e social imediatamente após a queda dum regime autoritário de 48 anos, descolonização dos territórios africanos feita em 15 meses após ter sido retardada 15 anos, luta pelo poder logo desencadeada) e traduzida, a partir de certa altura, num conflito de legitimidades e de projectos de revolução (3) (4).

(’) Sempre invocada pela Oposição ao regime de Salazar: v., por exemplo, no mais elaborado dos documentos da Oposição, o «Programa para a Democratização da República» (de 1961), o primeiro capítulo, sobre «Restauração da ordem democrática».

(2) Sobre os principais momentos e elementos desse processo, v. a nossa obra já citada Fontes e trabalhos preparatórios da Constituição; ou, doutro prisma, ORLANDO NEVES, Textos históricos da Revolução, 3 vols., Lisboa, 1975 e 1976.

(3) Como se sabe, há numerosas análises e tentativas de interpretação, quer portuguesas, quer estrangeiras. Cfr., de diversos quadrantes, a título exemplificativo, PAUL

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A segunda circunstância viria a ser, como efeito directo dessa turbulência e dos desvios que se verificaram em relação ao Programa do Movimento das Forças Armadas, a celebração de duas «Plataformas de Acordo Constitucional» entre os principais partidos políticos e o Movimento das Forças Armadas — representado num órgão entretanto criado, o Conselho da Revolução — para predeterminar alguns pontos importantes da futura Lei Fundamental.

A terceira nota específica foi o pluralismo partidário que brotou no País e que se manifestou na Assembleia Constituinte (), sem que houvesse maioria de qualquer partido ou coligação e tendo cada um dos seis partidos aí com assento apresentado o seu próprio projecto da Constituição.

Dessas circunstâncias resultariam uma Constituição elaborada muito sobre o acontecimento, simultaneamente sofrendo o seu influxo e reagindo e agindo sobre o ambiente político e social; a limitação (ainda que não por vínculos jurídicos, como se demonstrará) do debate e da decisão efectiva da Assembleia Constituinte; o confronto ideológico em que esta se moveu, e a índole de compromisso do texto finalmente votado — um compromisso, apesar de todas as vicissitudes, baseado no princípio democrático.

SWEEZY, A luta de classes em Portugal trad., Lisboa, 1975; MANUEL DE LUCENA, Portugal correcto e aumentado, Lisboa, 1975; ANTÓNIO QUADROS, Portugal entre onem e amanhã, cit.; EDUARDO LOURENÇO, Os militares e o poder, cit., e O fascismo nunca exisiu, cit.; AMADEU LOPES SABINO, Portugal é demasiado pequeno, Coimbra, 1976; JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA e VICENTE JORGE SILVA, O 25 de Abril visto da História, Lisboa, 1976; JOÃO MARTINS PEREIRA, O socialismo, a transição e o caso poruguês, Lisboa, 1976; FRANCISCO LUCAS PIRES, A bordo da Revolução, Lisboa,1976; ADRIANO MOREIRA, O Novssimo Príncipe, cit.; GIANFRANCO PASQUINO, Lê Porugal: de Ia Dictature Corporatiste à Ia Démocratie Socialiste, in // Poltico, 1977, págs. 696 e segs.; JOSÉ MEDEIROS FERREIRA, Ensaio histórico sobre a revolução de 25 de Abril — O período pré-constitucional, Lisboa, 1983; THOMAS C. BRUNEAU, Politics and Nationhood—Post-trevolutinary, Portugal, Nova Iorque, 1984;

EDGAR MORIN, A natureza da URSS, cit., págs. 102-103 e 111; BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, O Estado e a Sociedade em Portugal (974-1988), Porto, 1992, págs. 17 e segs.

(4) Cfr., sobre o conflito de projectos de revolução e de Constituição após 1974, A Constituição de 1976..., cit., págs. 32 e segs.

(i) Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Os paridos..., cit., págs. 233 e segs.

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330Manual de Direito Constiucional

122. As leis constitucionais revolucionárias

I — Desde o início, se separaram as leis constitucionais e as leis ordinárias, aquelas sob a forma de «leis», estas sob a forma de «decretos-leis» () (2). A Lei n.” 1/74, de 25 de Abril, e as Leis n 2 e 3/74, de 14 de Maio, foram as três decretadas pela Junta de Salvação Nacional «para valer como leis constitucionais». E a separação veio a ser reiterada pela Lei n. 3/74 não apenas pela expressa qualificação dos dois tipos de actos — lei constiucional (art. 1.°, n.” 2) e decreto-lei (art. 16.”, n.” 3) — mas também pela diferenciação dos órgãos competentes para a autoria de uns e outros (arts. 13.”, n.” l, l.”, e 16.”, n. 3) e pela não sujeição a referenda ministerial da promulgação das leis constitucionais [art. 8.”, n.” 2, alínea c].

com esta Lei n.” 3/74, o poder revolucionário institucionalizou-se por meio de diversos órgãos. Os «poderes constituintes assumidos em consequência do Movimento das Forças Armadas» foram conferidos ao Conselho de Estado (art. 13.°, n.” l, l.”), ao passo que os poderes legisativos ficaram entregues ao Governo Provisório (art. 16.°, n.” l, 3.”), com sanção do Conselho de Estado quanto às matérias mais importantes (art. 13.”, n.” l, 2.”). Poderia, pois, falar-se nesse momento em rigidez constitucional.

As Leis n.0 3, 4 e 5/75, de 19 de Fevereiro, 13 de Março e 14 de Março, alteraram este regime, atribuindo à Junta e ao Conselho de Estado, primeiro, e ao Conselho da Revolução, depois, largas faculdades legislativas. Mas deixaram de pé o Governo Provisório como órgão legislativo comum.

Segundo a Lei n.” 3/74, os poderes constituintes do Conselho de Estado manter-se-iam «até à eleição da Assembleia Constituinte» (art. 13.”, n.” l, l.”). A Lei n.” 5/75 dilatou esse período, levando-o «até à promulgação da nova Constituição», ou seja, na prática, até cerca de um ano depois — o que seria confirmado ou ratificado (embora em termos algo diversos) pelo art. 297.” da Constituição.

() Em contraste com o que tinha sucedido entre 1926 e 1933, perodo em que as diversas leis materialmente constitucionais foram publicadas através de decretos ou de decretos com força de lei, de forma e valor idênticos aos da legislação ordinária.

(2) Os poderes atribudos aos órgãos políticos do anterior regime (Presidente da República, Assembleia Nacional, Goveo e Conselho de Estado) passaram para a Junta de Salvação Nacional, que, assim acumulou tais poderes constituídos com os poderes constituintes decorrentes da Revolução.

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Pare —O Estado e os sistemas constitucionais 331

II — Ao todo foram publicadas entre 25 de Abril de 1974 e 2 de Abril de 1976 trinta e cinco leis constitucionais (catorze em 1974, dezanove em 1975 e duas em 1976). E a maior densidade de legislação constitucional já registada em Portugal e quase sem paralelo noutros países e corresponde, simultaneamente à multiplicidade de decisões a tomar, à instabilidade política do período e a uma concepção ampliativa do domínio do Direito constitucional ().

Tais leis, na lógica do constitucionalismo democrático, apenas deveriam ter em vista a passagem da antiga ordem política para uma nova ordem política a definir na Constituição: deveriam versar sobre a supressão do anterior regime, a definição da ordem constitucional provisória e o estatuto da Assembleia Constituinte. Todavia, tendo o poder revolucionário sido levado a adoptar medidas cuja definição deveria competir «à Nação» ou «grandes reformas de fundo», vieram igualmente a ser publicadas leis constitucionais fundadas, não já (ou não apenas) na legitimidade revolucionária democrática, mas no estado de necessidade ou numa legitimidade de outra índole: são elas as leis relativas à descolonização e a certas transformações económica-sociais a que se quis proceder.

As mais importantes destas leis foram a Lei n.° 7/74, de 27 de Julho (que reconheceu o direito dos povos dos territórios ultramarinos à autodeterminação, com todas as consequências, incluindo a independência e autorizou o Presidente da República a, ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo, praticar os actos e concluir os acordos relativos ao exercício desse direito) e a citada Lei n.° 5/75 (a qual criou o Conselho da Revolução e lhe conferiu não só os poderes acumulados da Junta de Salvação Nacional, do Conselho de Estado e do Conselho de Chefes dos Estados-Maiores das Forças Armadas mas também, com a «rectificação» publicada em 21 de Março de 1975, poder legislativo para «as necessárias reformas da estrutura económica portuguesa»).

() V. o elenco das leis, in A Constituição de 7976..., cit., págs. 49 e segs.

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332Manal de Direito Consitcional

In — A ligação destas leis constitucionais ao poder revolucionário permite apurar da medida em que elas exprimem a sua natureza constituinte e em que grau; e daí, duas distinções claras.

Sob o aspecto orgânico e formal, as três primeiras leis contrapõem-se a todas as restantes. com efeito, elas foram aprovadas e publicadas pela Junta de Salvação Nacional, como órgão revolucionário «puro», dotado do poder constituinte originário pleno (por não ter sido instituído por nenhum outro órgão e agir como mandatário imediato do movimento vitorioso, o Movimento das Forças Armadas) (), ao passo que as ulteriores o foram já segundo regras prefixadas (na Lei n.” 3/74 e nas que a alteraram), num encadeamento de modificação e de criação constitucional.

Sob o aspecto material, é a ideia de Direito prevalecente que mostra variações. Em correspondência com as fases do processo revolucionário, podem discernir-se sucessivamente as leis que melhor a espelham e as que, de certo modo, traduzem diferentes ideias de Direito.

Assim, até à Lei n.” 5/75, de 14 de Março, o conteúdo originário da revolução encontra-se no Programa do MFA e na Lei n.” 3/74. As outras leis são verdadeiras leis de revisão constitucional, com excepção da Lei n.” 7/74 e das leis subsequentes, justificadas ou não por estado de necessidade. Da Lei n.” 5/75 à Lei n.” 14/75, de 20 de Dezembro (ou seja, do 11 de Março ao 25 de Novembro), a ideia de Direito, sem romper por completo com o Programa do MFA, dilui-se cada vez mais em leis avulsas, constitucionais e ordinárias. Por último, da Lei n.” 15/75, de 23 de Dezembro (extinção do Tribuna Militar Revolucionário), e da Lei n.” 17/75, de 26 de Dezembro (reestruturação das Forças Armadas com vista a isenção partidária e a garantia do pluralismo político), à aprovação da Constituição, o projecto político volta a ser o do Programa do MFA interpretado e revivido de harmonia com essas duas leis e conjugado com as Leis n.0 3/74 e 5/75.

IV — A Constituição de 1933 veio ainda a ser fonte do Direito constitucional português até à entrada em vigor da nova Constituição, ainda que — como não podia deixar de ser — em moldes muito diferentes daqueles em que o era antes do 25 de Abril (2).

() Tanto é assim que a Junta surgiu externamente sem actos autónomos de designação e de constituição e os seus primeiros membros nunca foram nominalmente indicados no jornal oficial.

(2) A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, cit., págs. 15 e segs.

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A Lei n.” 1/74, única que vigorou durante as três primeiras semanas da revolução, nenhuma referência lhe fez e, por isso, lícito era pressupor a sua não vigência. Mas a Lei n.” 3/74 expressamente veio estabelecer que a Constituição de 1933 se mantinha transitoriamente em vigor naquilo que não contrariasse os princípios expressos no Programa do Movimento das Forças Armadas e nas leis constitucionais publicadas ou a publicar (art. l.”, n.0 l e 2), devendo as suas disposições ser interpretadas, na parte em que subsistissem, e as suas lacunas ser integradas de acordo com aqueles princípios (n.” 3). Foi um fenómeno de recepção material ().

O legislador constitucional revolucionário ter-se-á preocupado — esquecendo-se que o Direito não é só lei — com o tratamento de certas matérias. Receando talvez que alguns dos direitos fundamentais ou o estatuto de certos órgãos ficassem sem assento constitucional ou até sem regulamentação expressa, terá preferido transigir e conservar (ou repor) em vigor preceitos da Constituição precedente não inconciliáveis com as normas que já tivesse decretado ou viesse a decretar (2).

123. O processo constituinte

I — Convocando uma Assembleia Constituinte, o Programa do Movimento das Forças Armadas traçou logo as regras fundamentais do processo que havia de conduzir à feitura de uma nova Constituição: prazo máximo de doze meses para a sua eleição; sufrágio universal, directo e secreto [A., 2, a)}\ plenitude do poder constituinte a esta Assembleia por não se estabelecer nenhuma decisão prévia que a condicionasse, nem se prever a sujeição da Constituição a qualquer forma de sanção ou referendo; brevidade do «período de excepção» (B., 3) ou de interregno constitucional; e carácter transitório ou provisório das instituições políticas que, entretanto, exercessem o poder.

Estipulava-se, pois, que fosse uma Assembleia Constituinte, e só ela, a decretar a nova Constituição; mas, ao mesmo tempo, impunha-se a coexistência da Assembleia Constituinte e do Governo Provisório, enquanto

() Cfr. tomo n.

(2) Sobre a situação constitucional comparada com a que perdurou de 1926 a 1933, v. A Revolução de 25 de Abril..., cit., págs. 32 e segs.

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334Manual de Direito Constitucional

aquela funcionasse, e a subsistência deste e da Junta de Salvação Nacional — para «salvaguarda dos objectivos» proclamados no Programa — até à eleição do Presidente da República e da Assembleia Legislativa (B., 3, e C., l).

II — A Lei n.° 3/74 veio dar cumprimento ao Programa, mas dispôs sobre o estatuto da Assembleia em termos restritivos.

Assim, o art. 2.” desta lei enunciava como órgãos de soberania, até que iniciassem o exercício das suas funções os órgãos a instituir pela nova Constituição, quase no mesmo plano, a Assembleia Constituinte e o Presidente da República, a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado, o Governo Provisório e os tribunais. O art. 3.”, n.” l, adstringia a Assembleia à elaboração e à aprovação da Constituição, o que, conjugado com os preceitos sobreos outros órgãos, lhe subtraía poderes de qualquer outra espécie (i). O art. 3.”, n.” 2, fixava como prazo para a feitura da Constituição o de noventa dias contados a partir da verificação dos poderes dos Deputados, e dava ao Presidente da República o poder de o prorrogar por igual período, ouvido o Conselho de Estado. O art. 3.”, n.” 3, prescrevia a dissolução automática da Assembleia, uma vez aprovada a Constituição ou, quando a não tivesse aprovado, decorrido aquele prazo;

e ordenava, neste caso, que fosse eleita nova Assembleia dentro de sessenta dias.

Ou seja: a Assembleia Constituinte não era instituída como órgão de soberania único; diferentemente das anteriores Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes, não recebia as competências legislativas e de fiscaização política inerentes a um verdadeiro Parlamento. E, por outro lado, estava sujeita a um prazo, manifestamente insuficiente na nossa época, para fazer a Constituição — tão insuficiente que viria a ser sucessivamente prolongado ou prorrogado (2) de modo que a Assembleia, em vez de três meses, funcionaria dez meses.

() Este preceito contrariava, porém, o Programa do Movimento das Forças Armadas, pois este, ao dizer que as grandes reformas de fundo só poderiam ser adoptadas no âmbito da Assembleia Constituinte (B., 5, citado), pressupunha que ela teria poder legislativo.

(2) Decreto-Lei n.” 463-A75, de 27 de Agosto; Lei n.” 1475, de 20 de Novembro; Decreto-Lei n.” 666-A75, de 22 de Novembro; Lei n.” 276, de 23 de Fevereiro;

Decreto-Lei n.” 160-A76, de 26 de Fevereiro.

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Inéditas entre nós, estas regras tinham tido antecedentes em França em 1945 e em Itália em 1946 e viriam a ter algum paraelo na Grécia em 1974-75 ().

Mas, apesar de tudo, a Assembleia não deixava de ser um órgão soberano. Só ela podia decretar a Constituição e nenhum outro órgão tinha o poder de a promulgar, de a sancionar ou de a vetar. Pela própria natureza das coisas e pela própria letra da Lei n.° 3/74, à Assembleia Constituinte não pertencia apenas «elaborar» mas também «apro var» a Constituição. Não era, pois, um mero órgão de redacção;

era um órgão com competência plena para conferir obrigatoriedade à Constituição.

In — E indispensável lembrar a lei eleitoral para a Assembleia Constituinte (2) (como pode ver-se, a mais democrática das leis eleitorais publicadas até à altura em Portugal) e a lei sobre partidos publicada quase ao mesmo tempo (3) (a primeira lei que os pretendeu regular expressamente no Direito português).

() Em França, tendo em conta os resultados do referendo efectuado conjuntamente com a eleição da Assembleia, esta era uma Assembleia Constituinte sem poder govemativo, a qual deveria fazer a Constituição no prazo de sete meses. Em Itália, a Assembleia Constituinte tinha competência legislativa limitada, segundo uma articulação complexa com o Governo, e o seu mandato tinha a duração de oito meses, prorrogável por mais quatro pela própria Assembleia. Todavia, em qualquer dos países, o Governo era responsável politicamente frente à Assembleia, embora em termos muito estritos.

Na Grécia, por seu turno, a Assembleia dita de revisão de 19741975, não podia decidir sobre a opção entre monarquia e república (devolvida ao povo), tinha de tomar como base de trabalho o projecto de Constituição elaborado pelo Governo saído das eleições para a Assembleia (que era também legislativa) e, se a Constituição não estivesse pronta no prazo de três meses, o Governo poderia submeter esse projecto a referendo.

(2) Desdobrada nos Decretos-Leis n.0 621-A, 621-B e 621-C/74, de 15 de Novembro (acrescentados ou em parte modificados, subsequentemente, por largo número de diplomas).

(3) Decreto-Lei n.” 595/74, de 7 de Novembro (quase todo ainda hoje em vigor).

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336Manual de Direito Constitucional

O direito de voto foi conferido aos cidadãos de ambos os sexos maiores de dezoito anos, sem excluir os analfabetos, residentes no território eleitoral ou nos territórios ultramarinos ainda sob administração portuguesa, e aos não residentes, verificadas certas condições, essas bastante restritivas ().

O recenseamento eleitoral era oficioso e, no território eleitoral, obrigatório.

Os círculos eleitorais coincidiam com as áreas dos distritos administrativos. Em cada círculo haveria um Deputado por vinte e cinco mil eleitores inscritos ou resto superior a doze mil e quinhentos.

Viria a haver também Deputados pêlos emigrantes e outros portugueses residentes no estrangeiro — pela primeira vez no Direito púbico português — por Macau e pêlos portugueses de Moçambique.

Os Deputados eram eleitos por listas plurinominais, apresentadas por cada colégio, dispondo o eleitor de um voto singular de lista. Nos círculos com menos de trinta e sete mil e quinhentos eleitores, o sufrágio seria por lista uninominal. A conversão de votos em mandatos nos colégios plurinominais far-se-ia de acordo com o método de representação proporcional de Hondt. As vagas seriam preenchidas pêlos primeiros candidatos não eleitos. Nos colégios uninominais o mandato seria conferido ao candidato da lista que obtivesse maior número de votos.

Só podiam apresentar candidaturas os partidos políticos e nenhum partido carecia de autorização para se constituir,embora a inscrição de um partido no Supremo Tribunal de Justiça tivesse de ser requerido por, pelo menos, 5000 cidadãos maiores de 18 anos no pleno gozo de seus direitos. Era permitido a dois ou mais partidos apresentarem uma lista única.

Ninguém poderia ser candidato por mais de um círculo eleitoral ou figurar em mais de uma lista. Os candidatos gozariam de imunidades. Os militares eram inelegíveis.

Até dez dias depois da publicação do decreto de marcação da data das eleições, o Governo nomearia uma Comissão Nacional das Eleições, com composição variada, à qual especialmente competiria assegurar a igual-

(’) Em contrapartida, em contradição com os princpios (mas explicáveis no contexto do momento), foram criadas «incapacidades cívicas», ou icapacidades eleitorais activas ou só passivas relativamente àqueles que entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974 tivessem sido designados para desempenhar funções políticas ou de confiança política do regime derrubado (contr eas nos pronunciámos em declaração de voto anexa ao relatório da Comissão da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte: v. Boetim do Ministério da Justiça, n.” 241, Dezembro de 1974, págs. 131-132).

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dade efectiva de acção e propaganda das candidaturas durante a campanha eleitoral e apreciar a regularidade das receitas e despesas eleitorais.

Os partidos políticos teriam direito de antena nas estações de rádio e televisão, tanto públicas como privadas. As publicações noticiosas, diárias ou não diárias, que pretendessem inserir matéria respeitante à campanha eleitoral, deveriam dar um tratamento jornalístico não discriminatório às diversas candidaturas. Cada partido e cada coligação ou frente não poderia gastar mais que uma importância global correspondente a 80 000$00 por cada candidato.

Em cada assembleia haveria um delegado, e seu suplente, de cada lista de candidaturas. Os delegados reunir-se-iam para escolher os membros da mesa da assembleia de voto.

O direito de sufrágio só poderia ser exercido pelo cidadão eeitor, sem forma alguma de representação. O sufrágio constituiria também um dever cívico, pelo que, sem motivo justificado perante o juiz de direito da comarca, o seu não exercício determinaria ineegibilidade para a Assembeia Legislativa, para os corpos administrativos ou para os órgãos dirigentes de qualquer pessoa colectiva pública durante um ano após a eleição da Assembleia Constituinte.

IV — Logo que se reuniu, a Assembleia Constituinte empregou os primeiros esforços na preparação de um regimento que fosse adequado à sua missão ().

O regimento fixou um «plano de elaboração da Constituição» que consistia em: l.”) apresentação de projectos de Constituição e de propostas de sistematização do texto constitucional; 2.”) nomeação de comissão que, tendo em vista os projectos e as propostas apresentados, desse parecer sobre a sistematização da Constituição; 3.”) debate na generalidade sobre os projectos e propostas e o parecer da comissão e aprovação pela Assembleia do sistema geral da Constituição; 4.”) nomeação de comissões para elaborar pareceres sobre as diferentes matérias nos prazos determinados pela Assembleia; 5.”) debate, na generalidade e na especialidade, e votação a respeito de cada título ou capítulo da Constituição, com base em todos os projectos e propostas até então apresentados e nos pareceres das respectivas comissões; 6.”) nomeação de comissão encarregada de proceder à harmonização dos títulos ou capítulos da Constituição aprovados

() V. o parecer da respectiva comissão e os debates no Diário, n.0 5 a 11, de 14 a 24 de Junho de 1975. O texto final seria publicado em suplemento ao n.” 12, de 25 de Junho.22 — Man. Dir. Cons.,

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338Manal de Direito Constitucional

e à redacção final do texto; 7.”) aprovação global da Constituição pela Assembleia Constituinte.

A iniciativa de projectos de Constituição ou de preceitos constitucionais e de propostas de alteração cabia a qualquer grupo parlamentar ou a qualquer Deputado. As deliberações de aprovação de qualquer princípio ou preceito da Constituição deveriam ser tomadas com voto favorável de mais de metade dos membros da Assembleia — ou seja, à partida, cento e vinte e seis.

Por outro lado, como normas regimentais que viriam a ser fonte do novo Direito parlamentar português avutavam o direito dos Deputados eleitos por cada partido de se constituírem em grupo paramentar, a perda do mandato do Deputado que se inscrevesse em partido diverso daquele em que se encontrasse filiado aquando das eleições e a composição das comissões com representação proporcional dos partidos.

V — O plano de elaboração da Constituição foi cumprido e, assim, no processo constituinte desenrolaram-se três fases fundamentais: uma fase de sistematização; uma fase de elaboração e aprovação das disposições dos diferentes títulos e capítulos e do preâmbulo; e uma fase de redacção final e aprovação global.

Naturalmente, a fase mais longa e central foi a segunda. Cada comissão especializada — veio a haver dez — trabalhava sobre os projectos de Constituição dos partidos e sobre anteprojectos de autoria de algum ou alguns dos seus membros e preparava um parecer, do qual constava um novo articulado (); e, na prática, veio a ser cada um dos textos assim propostos que o Plenário discutiu e votou sucessivamente, com mais ou menos alterações (2). E como os projectos dos partidos foram

() Sobre o papel das comissões na elaboração da Constituição, v. VITAL MOREIRA, A formação dos «Princípios Fundamentais» da Constituição, in Estudos sobre a Constitição, obra colectiva, III, Lisboa, 1979, págs. 11 e segs.

(2) Os pareceres das comissões estão publicados nos lugares próprios do Diário da Assembleia Constituinte. Das actas só existem as da l.” Comissão (Princpios Fundamentais), em anexo ao citado estudo de VITAL MOREIRA, loc. ci., págs. 19 e segs.; as da 3.° Comissão (Direitos Económicos, Sociais e Culturais), in Diário, n.” 132, págs. 4452 e segs., e in Fontes e Trabalhos Preparatórios..., li, págs. 631

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———apresentados em Junho de 1975 p , p . . ou de 1976- e:

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340Manual de Direito Constitcional

Não houve referendo para qualquer decisão preliminar aos trabalhos da Assembleia; e, por certo, não o poderia prever a Lei n.” 3/74, dada a devolução pelo Programa do MFA das «grandes reformas de fundo» para o âmbito da Assembleia Constituinte (). Desde que, contudo, estas reformas vieram a ser decretadas à revelia da Assembleia, lógico teria sido, em perspectiva constitucional democrática rigorosa, que o povo tivesse sido chamado a manifestar-se sobre elas. Mas quer as dificuldades técnicas de organização do recenseamento e das operações de voto quer, sobretudo, fortíssimas dificuldades políticas obstaram a tal recurso ao sufrágio (e até impediram que ele tivesse sido, nessa altura, preconizado).

Tão pouco viria a haver referendo para aprovação da Constituição votada pela Assembleia. Igualmente não previsto pela Lei n.” 3/74 (2), viria a ser alvitrado em certo momento, mas tardiamente. E dizemos tardiamente, porque mal se aceitaria que uma Assembleia Constituinte eleita e que funcionou na base apenas do mandato representativo viesse a posteriori a ter as suas deliberações consideradas precárias por ficarem dependentes de sanção popuar. Pelo menos, parece que seria ilegítimo que, por lei constitucional emanada do Conselho da Revolução, fosse imposta qualquer forma de referendo (3); quando muito, admitir-se-ia que a própria Assembleia o criasse.

Assim, algo paradoxalmente em face das pesadas vicissitudes ácticas e políticas em que se teve de mover, bem pode afirmar-se que a Assembleia Constituinte portuguesa de 1975-1976 foi um órgão com plenitude de poder constituinte formal por não estar sujeita a nenhuma decisão do povo (ou de quem quer que fosse) sobre a sua obra, a Constituição.

124. As vicissitudes da elaboração da Constituição

I — Na história política da revolução, há o período de 25 de Abril de 1974 a 11 de Março de 1975, o que se segue até 25 de Novembro

() O projecto do Primeiro-Ministro Palma Carlos, de Julho de 1974, também não se destinava propriamente a antecipar a Constituição, mas a aprovar uma Constituição provisória que vigorasse por dois anos até à eleição da Assembleia Constituinte.

(2) Mas também previsto no projecto Palma Carlos (art. 2.”, n.” 4).

(3) Corrigimos, pois, a opinião exposta em Constituição e Democracia, Lisboa, 1976, pág. 160.

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de 1975 e o posterior a esta data. A Assembleia Constituinte foi instituída no primeiro momento, foi eleita e posta a funcionar no segundo e concluiu os seus trabalhos no terceiro.

II — No início de 1975, já com a situação política deteriorada, o Movimento das Forças Armadas pretendia uma institucionalização duradoura (e não apenas até à entrada em vigor da Constituição) e directa (traduzida em amplas competências de direcção política do Estado ou até na identificação com os órgãos governativos). Para o efeito abriram-se negociações com os partidos, as quais não pareciam estar muito adiantadas em 11 de Março de 1975 (pois havia divergências e reticências da parte de alguns destes).

Os acontecimentos desse dia permitiriam criar o Conselho da Revolução e, a seguir, a Assembleia do MFA (que até então já reunia informal ou irregularmente) foi elevada a órgão de soberania. As eleições para a Assembleia Constituinte, marcadas para o mês de Abril, terão estado então em perigo de não se realizarem ou de serem adiadas. Só terão sido garantidas pelas relações de força subsistentes no seio do MFA, pela ductilidade dos partidos que se dispuseram a assinar um compromisso político com vista à inclusão na Constituição das principais cláusulas pretendidas pêlos militares, pela pressão da opinião pública nacional e internacional e pela própria iminência de conclusão de um processo que, desde o início, sempre despertara o entusiasmo dos eleitores — eram as primeiras eleições livres desde há 48 anos e as primeiras eleições portuguesas por sufrágio universal no pleno sentido deste termo.

In — O compromisso Plataforma de Acordo Constitucional ou Pacto (como vulgarmente ficou a ser designado) foi assinado em 13 de Abril e continha um elemento doutrinário — socialista, e não já (ou não apenas) democrático — e um elemento organizatório — relativo aos órgãos de soberania até à Constituição e no período de transição, a fixar entre 3 e 5 anos pela Assembleia Constituinte (E., 1.1).

O elemento doutrinário era, apesar de tudo, reativamente mitigado (terão aí conseguido alguma coisa os partidos). A Constituição deveria consagrar «as conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos do Programa impostos pela dinâmica revolucionária que, aberta e irreversivelmente, empenhou o País na via original para um Socialismo Português» (E., 2). E deveria também consagrar os princípios do MFA (ibidem), ao mesmo tempo que se reafirmava o pluralismo político e se apelava para um «projecto comum de reconstrução nacional» «em

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iberdade» (B.). Sob este aspecto, a Plataforma poderia constituir uma garantia contra a ditadura ().

Mais graves eram as limitações estabelecidas quer no respeitante à Assembleia Constituinte quer no respeitante aosfuturos órgãos de soberania.

com efeito, haveria uma comissão do MFA que, em coaboração com os partidos, acompanharia os trabalhos da Constituinte «de forma a facilitar a cooperação entre os partidos e a impulsionar o andamento dos trabalhos, dentrodo espírito do Programa do MFA e da presente pataforma» (C., 2); e, eaborada e aprovada pela Assembleia Constituinte a nova Constituição, deveria esta ser promulgada pelo Presidente da Repúbica, depois de ouvido o Conselho da Revolução (C., 3), o que poderia traduzir-se numa espécie de homoogação da Constituição.

Por outro lado, reportando-se ao art. 3.”, n.” l, da Lei n.” 3/74, de 14 de Maio, que circunscrevia a Assembleia à feitura da Constituição, estabelecia-se a prevenção segundo a qua não deveria haver relação entre os resultados das eleições e a composição do Governo provisório, só dependente do Presidente da Repúbica, ouvidos o Primeiro-Minisiïo e o Conselho da Revolução (C., 5). Era a cláusua política mais importante na altura e a sua natureza conjuntural ficaria demonstrada depois quando a correlação de forças político-militares se inverteu.

Durante o período de transição previa-se um sistema de governo directorial ou convencional miitar (2), correspondente ao que estava a ser praticado desde 28 de Setembro de 1974, e que compreendia:

— Um Presidente da Repúbica, eleito por um colégio eleitoral formado pêlos Deputados à Assembleia Legislativa e pêlos membros da Assembleia do MFA e cujos poderes não tinham autonomia em relação ao Conseho da Revolução a que presidia (D., 2);

— Um Conselho da Revolução, órgão sancionado das principais leis e com competência legislativa directa não apenas em matéria militar mas também em matérias de interesse nacional de resolução urgente, definidor das linhas de orientação programática do Governo e fiscal da constitucionali-

() Cfr. Constituição e Democracia cit., pâg. 109.

(2) Directorial ou convencional, consoante prevalecesse o Conselho da Revolução ou, como sucedeu até Setembro de 1975 (Assembleia do MFA de Tancos), a Assembleia do MFA: a l. Plataforma de Acordo Constitucional ficaria para o período revolucionário de então como a Constituição do ano l para o período jacobino da Revolução francesa. Mas teoricamente eram ainda importantes os poderes da Assembleia Legislativa (v. Constitiço e Democracia, cit., págs. 95 e segs.).

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dade material das normas jurídicas (em vez dos tribunais, como sucedia desde 1911) (D., 3);

— Uma Assembleia Legislativa eleita por sufrágio universal e, precedendo-a, uma Assembeia do MFA sem competência definida (D., 5, e D., 6);

— Um Governo com Ministros da confiança do MFA e Ministros da confiança da Assembleia Legislativa, politicamente responsável perante o Presidente da República e perante a Assembleia Legislativa (D., 4).

IV — As eleições para a Assembleia Constituinte realizaram-se, pois, nesse clima e sob o condicionalismo do Pacto. Mas a participação maciça de eleitores (91%) e os seus resultados () tornaram patentes as contradições políticas do momento e abriram caminho a uma legitimidade democrática independente da legitimidade revolucionária e que, aos poucos, se lhe iria sobrepor (2),

A Constituinte abriu em 2 de Junho (3), e pouco depois os seis partidos presentes na Assembleia entregaram os respectivos projectos de Constituição; e a simples leitura dos textos, bem como das suas principais fundamentações ou das argumentações contra eles aduzidas, mostraria as grandes

() Partido Socialista — 38% e 116 Deputados; Partido Popular Democrático — 26,4% e 81 Deputados; Partido Comunista Português — 12,5% e 30 Deputados; Centro Democrático Social — 7,7% e 16 Deputados; Movimento Democrático Português — 4,5% e 5 Deputados; União Democrática Popular — 1% e l Deputado. V. a análise de sociologia eleitoral de JORGE GASPAR e NUNO VITORINO, As eleições de 25 de Abril — Geografia e imagem dos partidos, Lisboa, 1976.

(2) Ness sentido, embora de ângulos diferentes, TEIXEIRA RIBEIRO, prefácio aos Discursos, Conferências, Entrevistas de Vasco Gonçalves, Lisboa, 1976, pág. 11;

ou JORGE MIRANDA, Constituição e Democracia, cit., págs. 209 e segs. Sobre o conflito entre legitimidade democrática e legitimidade revolucionária, v. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 180 e segs.

(3) A distribuição socioprofissional dos Deputados, à data da abertura da Assembleia (a composição seria alterada por sucessivas substituições) era, segundo informações prestadas pêlos próprios ou pêlos respectivos partidos, a seguinte: advogados — 61; engenheiros — 35; empregados bancários — 25; operários — 17;

professores universitários — 15; professores secundários — 14; jornalistas e escritores — 11; médicos — 8; economistas — 8; professores primários — 7; trabalhadores rurais — 5; funcionários de partidos — 5; comerciantes — 2; oficiais das Forças Armadas — 2; farmacêuticos — 2; domésticas — 2; carteiros — 2; locutores — 2; diversos — 27.

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diferenças que os separavam e a relativa latitude ainda deixada pela Plataforma de Acordo Constitucional ()•

Em Julho, porém, a Assembleia dir-se-ia condenada a apagar-se ou prestes a ser encerrada. Aparentemente, era um corpo estranho num contexto revolucionário hostil à «democracia burguesa», de que era tida como expressão. Daí os ataques que contra ela se multiplicavam. E, em 8 desse mês, a Assembleia do MFA aprovava na generaidade o chamado «Documento-Guia da Aliança Povo-MFA» (esquema de organização política em nome do «poder popular», com sucessivas assembleias desde a base até uma Assembleia Popular Nacional e em que o Conselho da Revolução era definido como «órgão máximo de soberania nacional»). Mas a Constituinte replicou não só através dos seus trabalhos como através do período de «antes da ordem do dia» e dos requerimentos dirigidos ao Governo; e não foi das menores essa intervenção, particularmente em Agosto.

Os preceitos constitucionais que entretanto iam sendo aprovados estavam em correspondência com a relação de forças no hemiciclo e com a situação poítica — consagração dos princípios de soberania do povo, una e indivisível, e da constitucionalidade, grande atenção à defesa das liberdades (nomeadamente, a de imprensa) e do pluralismo, acentuação das referências ao socialismo e à independência nacional; em gera, necessidade e variabilidade de soluções de compromisso.

A formação do VI Governo provisório equivaleu a uma derrota das tendências vanguardistas, mas subsistiram o anarcopopulismo e o seu sucedâneo, o anarcomilitarismo. No mais agudo da crise político-militar, em 12 e 13 de Novembro, os Deputados ficaram sequestrados no Palácio de S. Bento por uma manifestação cerca de 24 horas, sem que o Exército interviesse; e, levantado o sequestro, a maioria seguiu para o Porto, disposta a encabeçar a resistência, se a situação se tornasse insustentável em Lisboa (2).

V — Após 25 de Novembro de 1975, os partidos apressaram-se a pedir a renegociação da Plataforma de Acordo Constitucional, invocando a alteração de circunstâncias e a desadaptação das suas disposições «ao curso

() V. Diário, suplemento ao n.” 16, págs. 358(1) e segs.

(2) Em 20 de Novembro, a Assembleia votaria uma declaração no sentido de se reunir «nos termos regimentais, em qualquer momento e em qualquer lugar, se tanto for necessário, para o integral cumprimento do seu mandato nacional» (Diário, n.” 84, de 21 de Novembro de 1975, págs. 2779-2780).

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democrático da Revolução entretanto readquirido» (). Uma nova Plataforma viria a ser ceebrada em 26 de Fevereiro de 1976, desprovida do elemento doutrinário e que reduziria substancialmente a intervenção política dos militares (o MFA apenas apareceria referido na designação do acordo). Essa Pataforma manteria, contudo, cláusulas sobre outros pontos, entre os quais os respeitantes à eleição e aos poderes do Presidente da República e à responsabilidade política do Governo, sem terem sido, previamente, objecto de debate na Assembleia Constituinte.

O Presidente da República e o Conselho da Revolução funcionariam em estreita ligação, por aquele ser também o presidente do Conselho da Revolução e o exercício dos seus poderes mais importantes depender de consulta, parecer favorável ou autorização do Conselho. Mas o ser eleito por sufrágio universal conferir-lhe-ia supremacia, expressão da prevalência ganha pelo princípio democrático, também manifestada na sua substituição interina pelo Presidente da Assembleia Legislativa (2.7) e no regime da fiscalização preventiva das leis (3.8.4). Implícito no Pacto estaria, apesar disso (ou por causa disso), que o primeiro Presidente da República seria militar (2).

O Conselho da Revolução, além de órgão auxiliar do Presidente, seria órgão político e legislativo sobre assuntos militares e órgão de garantia constitucional (3.5). Nesta última função seria obrigatoriamente assistido por um novo órgão, a Comissão Constitucional (com maioria de juristas). Os tribunais e a própria Comissão, como tribunal, exerceriam, contudo, a fiscalização concreta da constitucionalidade (3.10).

O Governo seria politicamente responsável perante o Presidente da República e a Assembleia Legislativa, o que apontava para um sistema misto. Deixava-se à Assembleia Constituinte definir os termos da efectivação da responsabilidade poítica do Governo perante o Parlamento (4.1 e 4.2).

A primeira egislatura teria a duração de quatro anos (5.1). Na segunda legisatura, a Assembeia Legislativa teria poderes de revisão, não podendo o Presidente da República recusar a promulgação da lei de revisão. Considerar-se-ia findo o período de transição, quando entrasse em vigor esta lei (5.4).

() V. Diário, n.0 88 a 93, de 3 a 11 de Dezembro de 1975, maxime n.° 88, págs. 2861 e segs., e n.” 93, págs. 3035 e 3036.

(2) Sobre o problema, v. Constiuição e Democracia, cit., págs. 139 e segs. e A Constituição de 1976..., cit., pág. 28; EDUARDO LOURENÇO, O fascismo nnca exisiu, cit., págs. 27 e segs.; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lê origini..., cit., págs. 126 e segs., 171 e segs. e 238; ANDR GONÇALVES PEREIRA, O semipresidencialismo em Porugal, Lisboa, 1984, págs. 42 e segs.

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Pode perguntar-se por que motivo veio ainda a celebrar-se uma nova Plataforma, sabido como depois do 25 de Novembro se afirmo a intenção de regressar à «pureza» da revolução democrática de 25 de Abril, incompatível com a predeterminação da Lei Fundamental à margem da Assembleia Constituinte. Há quem diga que o Pacto, típico da fase revolucionária que terminou em 25 de Novembro de 1975, foi uma consequência post-mortem de tal período: os fenómenos jurídico-políticos com frequência acontecem depois de terminado o período histórico com que mais se relacionam (). Esta explicação só parciamente é verdadeira. Decerto, fez-se um 2.” Pacto um pouco por ter havido um l.” Pacto — quanto mais não fosse para limar as suas arestas mais agressivas. Mas houve sobretudo duas outras razões.

Em primeiro lugar, era um facto a autonomia da instituição miitar na véspera da aprovação da Constituição e não seria realista supor que fosse possível, pelo menos ate à entrada em funcionamento dos futuros órgãos constitucionais, submetê-la a um regime idêntico ao da generalidade dos países da Europa Ocidental. A sua disposição não seria essa e, provavelmente, os militares algum receio experimentariam de que os órgãos políticos constituídos na base de partidos viessem a decidir, a tão curto prazo, da sua organização e da sua disciplina. Era preferível encaminhar as Forças Armadas para a plena normalidade democrática sob a direcção do Presidente da República eleito e de um Conselho da Revolução, aliás com reduzido poder operacional, do que tentar aplicar o modelo clássico sem base consistente.

Em segundo lugar, era também mais realista deixar as Forças Armadas dentro do sistema político, co-responsabilizando-as pelo seu funcionamento e vinculando-as à garantia da Constituição, do que ignorá-las e acabar por ter de aceitar as suas incursões como sucedera na l. República (2) (3).

VI — Nos meses finais de elaboração da Constituição, as posições dos partidos perante o corpo de normas já aprovadas revelam algumas oscilações. De um lado (do Centro Democrático Social e de certos meios do Partido Popular Democrático e do Partido Socialista) ouvem-se vozes cada vez mais críticas a tais normas, particularmente àquelas que, no Verão e no Outono passados, tinham consagrado ou até declarado irreversíveis cer-

() JOSÉ MIGUEL JÚDICE, O arigo 273.”, n.” 4, da Constituição da República Portuguesa e a actual missão política das Forças Armadas, m Nação e Defesa, n.” 4, Janeiro de 1978, pág. 23.

(2) E mais esta segunda razão que transparece do debate na Assembleia Constituinte sobre a intervenção política das Forças Armadas.

(3) E como ainda viria a suceder na Espanha, em Fevereiro de 1981.

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’*r

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tas modificações económicas ocorridas durante o processo revolucionário (como as respeitantes às nacionalizações). De outro lado (de parte do Partido Comunista Português, que anteriormente se mostrara, no mínimo, céptico sobre a capacidade e a vontade da Assembleia de fazer uma Constituição à medida das conquistas revolucionárias e que, não raras vezes, tinha ficado batido em votações) ouvem-se vozes cada vez mais em defesa da Constituição. A mudança de conjuntura política explica estas variações.

A sugestão de submeter a Constituição a referendo, adiantada aquando das conversações para a nova Plataforma, se se baseava no princípio democrático (contraposto ao referendo orgânico que, de algum modo, o l. Pacto introduzira ao prever a promulgação da Constituição pelo Presidente da República, «ouvido o Conselho da Revolução»), ter-se-á destinado também a corrigir ou a repensar o sentido de alguns dos seus preceitos (). Discute-se outrossim sobre a admissibilidade de revisão constitucional durante a primeira legislatura (2). Uma e outra ideias não conseguem vingar. Em contrapartida os resultados da Comissão de Redacção e o preâmbulo, último texto parcelar votado pela Assembleia, denotam a procura de fórmulas de contenção verbal e pacificação ideológica.

A Constituição vem a ser aprovada em votação final global apenas com os votos contrários dos Deputados de um partido, o Centro Democrático Social, embora sejam visíveis as divergências nas declarações de voto dos partidos aprovantes (3).

() Foi o PPD na sua primeira proposta para renegociação da Plataforma de Acordo Constitucional. A Constituição seria submetida a referendo nos 15 dias imediatos ao decreto de aprovaço da Assembleia Constituinte; em caso de rejeição, continuariam em vigor as leis constitucionais vigentes, tendo o Parlamento a eleger até 25 de Abril de 1976 poderes constituintes. V. o texto do documento in Povo Livre, n.” 79, de 22 de Janeiro de 1976.

Cfr. o debate travado sobre o assunto na Assembleia (in Diário n.” 104, de 15 de Janeiro de 1976, págs. 3359 e segs.) e a nossa posição, in Constituição e Democracia, cit., págs. 158 e segs.

(2) V. o debate, in Diário n.” 121, de 18 de Março de 1976, págs. 4002 e segs. Havia três teses em presença: a da aplicação à primeira legislatura dos princípios gerais da revisão (proposta do CDS), a da admissibilidade da revisão, mas só a título excepcional e por maioria agravada (proposta do PPD) e a da recusa da revisão (tese do PS e do PCP, a qual venceu).

(3) V. as declarações de voto in Diário n.” 132, de 3 de Abril de 1976, págs. 4433 e segs. O CDS justificou o seu voto contra, por a Constituição estabelecer uma «amarra socialista» e ser «instrumento de forças temporalmente maioritárias» e não suficientemente «norma de identidade colectiva de todos os portugueses».

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125. Carácter geral e sistema da Constituição

I — A Constituição de 1976 é a mais vasta e a mais complexa de todas as Constituições portuguesas — por receber os efeitos do denso e heterogéneo processo político do tempo da sua formação, por aglutinar contributos de partidos e forças sociais em luta, por beber em diversas internacionais ideológicas e por reflectir (como não podia deixar de ser) a anterior experiência constitucional do país.

Ela tem como grandes fundamentos a democracia representativa e a liberdade política. Admite, no entanto (por força do Pacto MFA-partidos), a subsistência até à primeira revisão constitucional de um órgão de soberania composto por militares, o Conselho da Revolução. Por outro lado, consigna as grandes reformas de fundo que (de direito ou de facto) se efectuaram nos dois anos de revolução e aponta para um objectivo de transformação social a atingir, a que chama «transição para o socialismo».

É uma Constituição-garantia e, simultaneamente, uma Constituição prospectiva. Tendo em conta o regime autoritário derrubado em 1974 e o que foram ou poderiam ter sido os desvios de 1975, é uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder. Mas, surgida em ambiente de repulsa do passado próximo e em que tudo parecia possível, procura vivificar e enriquecer o conteúdo da democracia, multiplicando as manifestações de igualdade efectiva, participação, intervenção, socialização, numa visão ampla e não sem alguns ingredientes de utopia.

Constituição pós-revolucionária, a Constituição de 1976 é também uma Constituição compromissória — tal como outras o têm sido em análogas circunstâncias quer em Portugal quer no estrangeiro (assim, Weimar e Bona, as Constituições espanholas de 1931 e 1978, as francesas de 1946 e 1958 ou a italiana de 1947) (). Ela

(i) Cfr. C. SCHMITT, Teoria..., cit., págs. 33 e segs.; ENZO CHELI, // problema storico delia Costituente, m Itália 1943-1950 — La ricostruione, obra colectiva, Roma-Bári, 1974, págs. 226 e segs.; PABLO LUCAS VERDU, El titulo I dei Ante-

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traduz um compromisso — um «compromisso histórico» () — de resto, menos desejado pêlos partidos (salvo no que toca à 2. Plataforma celebrada com o Movimento das Forças Armadas) do que imposto pelas circunstâncias e pelo estado das forças políticas e sociais em presença (2).

II — A Constituição apresenta-se com um texto muito longo — com preâmbulo e 312 artigos (estes, repartidos por «Princípios fundamentais»; parte I — «Direitos e deveres fundamentais»;

parte II — «Organização económica»; parte In — «Organização do poder político»; parte IV — «Garantia e revisão da Constituição»;

e «Disposições finais e transitórias»).

A sistematização de um texto constitucional (como a de qualquer texto legal) não se reduz a mera questão técnica. É, sobretudo, questão de ordem política e axiológica. E, em face da sistematização adoptada em 1976, toma-se incontestável a opção pelo pensamento constitucionalista, liberal e democrático, em contraste com as concepções marxistas: os direitos fundamentais vêm antes da organização económica (3).

O elemento subjectivo afirma-se na parte I: a pessoa perante a sociedade e o Estado, o primado dos direitos da pessoa na ordem constitucional. O elemento objectivo consta das partes II, In e IV. O Estado como comunidade aparece nas partes I e II, o Estado como

proyecto Constitucional, in Estúdios sobre el Proyecto de Constitución, obra colectiva, Madrid, 1978, págs. 12 e segs.; HERRERO DE MINON, As vias falsas e verdadeiras do conenso constitucional, trad., Lisboa, 1980; UGO DE SIERVO, Modeli stranieri ed influene internaonali nel dibattíto deli’Assemblea Constituente (em Itália), in Quaderni Costituvonali, 1981, págs. 279 e segs.; GUSTAVO ZAGREBELSKY, // diritto mite, cit., págs. 9 e segs.

() A expressão é de MIGUEL GALVÂO TELES, A Constiuição de 1976: uma constituição transitória, cit. Cfr. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., págs. 231 e segs.

(2) A aprovação dos preceitos constitucionais foi, no entanto em larga medida consensual, sendo mais de 60% aprovados por unanimidade. V. os elementos apresentados por VEIGA DOMINGOS, op. cit., págs. 87 e segs.

(3) Cfr. A Consituição de 1976..., cit., págs. 158 e segs.

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poder nas partes In e IV. As normas das três primeiras partes são normas substantivas, sejam de fundo, de competência ou de forma. As da IV parte são normas adjectivas ou de garantia.

Todas as quatro partes têm mais desenvolvido tratamento do que aquele que noutras Constituições se confere às respectivas matérias: 69 artigos para os direitos fundamentais, 31 para a organização económica, 166 para a organização do poder político, 14 para a garantia e a revisão da Constituição. Além disso, recebem valor constitucional a Declaração Universal dos Direitos do Homem (por via do art. 16.°, n.° 2) e algumas leis constitucionais posteriores a 25 de Abril de 1974 por força dos arts. 306.°, 308.° e 309.°

Mas foi porque uns temiam pelas liberdades, outros pêlos direitos dos trabalhadores, outros pelas nacionalizações e pela reforma agrária, outros pelo Parlamento e pela separação dos poderes, outros ainda pela descentralização regional e local, que a Constituição acabou por ficar como ficou ().

In — De realçar o esforço de conceituação que se traduz na formuação de princípios ou disposições gerais no início de cada uma das três primeiras partes de Direito substantivo, bem como no interior de aguns títulos e capítulos.

Trata-se de uma sistematização adequada ao papel das Constituições no nosso tempo, a que corresponde também, em geral, um elevado apuramento técnico da grande maioria dos preceitos, com noções correctas como as de incumbência, competência, órgão, titular, forma de acto, etc. E é nessa perspectiva que tem de aperceber-se a longa extensão do texto (2), pois preferiu-se fazer preceitos curtos, embora numerosos, a preceitos complexos e menos claros. Para facilitar a leitura, cada artigo tem epígrafe.

Em contrapartida, em alguns dos artigos do texto inicial — não muitos (talvez não mais de 10 ou 15), embora emblemáticos — a Assembleia Constituinte não escapou a um verbalismo ideológico — proclamatório des-

() Houve quem tivesse falado em Constituição «multitudinária»: LUCAS PIRES, A bordo da Revolução, Lisboa, 1976, pág. 71.

(2) Mas conhecem-se Constituições mais longas: a francesa, de 1795, com377 artigos; a espanhola, de 1812, com 384; a jugoslava, de 1974, com 406;

a peruana, de 1979, com 307 artigos e 18 disposições transitórias; a brasileira, de 1988, com 245 artigos e 70 disposições transitórias.

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cabido. Mas mais importante do que a forma era, e é, o conteúdo constitucional ().

126. O conteúdo e as fontes da Constituição

I — O carácter compromissório da Constituição está patente em cada uma das suas quatro partes.

Assim, o tratamento dos direitos fundamentais assenta na afirmação simultânea dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais, numa dicotomia com proeminência dos primeiros (como é próprio do Estado social de Direito).

A organização económica desenvolve-se: l.”) através da coexistência (concorrencial ou conflitual, como se queira) de três sectores de propriedade dos meios de produção — público, cooperativo e privado, sendo ainda o primeiro subdividido em público estadual, colectivo ou autogestionário e comunitário; 2.) através da coordenação entre mercado (definido em termos de «equilibrada concorrência entre as empresas») e plano (imperativo só para o sector público estadual); 3.) através da tensão entre o reconhecimento da iniciativa privada e o desenvolvimento da propriedade social.

A organização política, por seu turno, consiste em quatro grandes relações: l.”) entre unidade do Estado, por uma banda, e autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira e poder local, por outra banda; 2.”) entre democracia representativa e democracia participativa; 3.) entre Presidente da República e Assembleia da República, um e outro baseados no sufrágio universal e directo; 4.) entre eles e o Governo e um órgão ainda radicado na legitimidade revolucionária recebida na Constituição, o Conselho da Revolução.

Finalmente, a fiscalização da constitucionalidade abrange todos os tipos possíveis — de acções e de omissões, abstracta e concreta, preventiva e sucessiva, concentrada e difusa — e cabe aos tribunais, ao Conselho da Revolução e a um órgão específico de comunicação entre aqueles e este, a Comissão Constitucional.

A Lei Fundamental de 1976 não é só isto, mas é primacialmente isto. E as três revisões que teve até agora não afectaram este

() Cfr. Constituição e Democracia, cit., págs. 164 e segs. e 174 e segs.

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quadro: não o afectou a de 1982, pois a extinção do Conselho da Revolução então havida era imposta pelo princípio democrático como princípio constitucional fundamental; também não a de 1989, visto que a inflexão sofrida pela parte li não eliminou os elementos mistos que vêm desde a origem; e também não ainda a de 1992, relativa à integração europeia.

II — O compromisso constitucional foi múltiplo e diversificado, não se reduziu a um enlace entre apenas quaisquer dois princípios.

Só para os pontos cruciais recorde-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultaram, na Constituição, da convergência PS-PPD-CDS, o socialismo da convergência PS-PPD-PCP, os aspectos colectivistas da convergência PS-PCP, o sentido personalista da convergência PPD-CDS; e que os direitos sociais, a autogestão e a panificação democrática foram enfatizados pelo PS, a valorização do Parlamento, as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais obra sobretudo do PPD, as nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base propugnadas pelo PCP, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada mais realçadas pelo CDS.

Por outro lado, para além da influência de diversas correntes ideo lógicas, a comparação permite descobrir afinidades com Constituições diversas de países estrangeiros. As regras gerais sobre direitos, liberdades e garantias em parte reproduzem as que constam da Constituição de Bona. São as Constituições italiana e alemã, ambas do pós-guerra e do pós-fascismo, que mais se aproximam da nossa na enumeração dos direitos, liberdades e garantias. Contudo, nos direitos económicos, sociais e culturais toma-se palpável alguma parecença com Constituições marxistas-leninistas. A nacionalização de empresas nos sectores básicos da economia, sem ser inédita em Constituições próprias do Estado social de Direito, está revestida de uma acentuação anticapitalista aí desconhecida. A institucionalização dos partidos tem paralelo nas Constituições italiana, alemã federal e francesa, entre outras. A concepção do Presidente da República e das relações entre Governo e Parlamento vem dos países de parlamentarismo racionalizado e de semipresidencialismo. A subsistência do Conselho da Revolução aparenta-se ao papel das Forças Armadas na Turquia nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1961. A Comissão Constitucio-

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nal tem algo de similar aos tribunais constitucionais e ao Conselho Constitucional francês. O Provedor de Justiça equivale ao Ombudsman nórdico. As autonomias regionais estão na esteira da Constituição italiana. As organizações populares de base correspondem grosso modo às organizações sociais de Leste e às instituições sociais de base da Revolução peruana de 1968. A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão terá certa afinidade com o art. 377.° da Constituição jugoslava.

Não pouco abundantes, muito naturalmente, se bem que menos fortes no plano das opções de fundo, são os traços das Constituições portuguesas anteriores que perduram. A Constituição de 1976 restaura a legalidade democrática, reafirma a democracia política (liberal, pluralista), reabre o Parlamento, mas não repõe a ordem liberal individualista; o seu intervencionismo social e económico, mesmo se de rumo oposto, só pode cotejar-se com o da Constituição de 1933; e não faltam os institutos que ou vindos de longe ou vindos de 1933 são recebidos ou consagrados ().

Da Constituição de 1933 vêm, designadamente, a competência legislativa originária do Governo, a ratificação dos decretos-leis e conceitos como os de direitos, liberdades e garantias, órgãos de soberania ou autarquias locais. Já o dualismo de Chefe de Estado e de Chefe de Governo remonta à experiência constitucional desde 1834 e a fiscalização judicial difusa da constitucionalidade à Constituição de 1911.

In — Mas a Constituição de 1976 ostenta algumas marcas de originalidade (ou de relativa originalidade):

— Não só no dualismo complexo das liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais mas também no enlace entre eles operado, designadamente pelo art. 17.°;

— Na constitucionalização de novos direitos e da vinculação das entidades privadas pêlos direitos, liberdades e garantias;

— Na recepção formal da Declaração Universal dos Direitos do Homem enquanto critério de interpretação e integração das normas sobre direitos fundamentais;

() Cfr. MANUEL DE LUCENA, O Estado da Revolução, cit., págs. 88 e segs.;

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, cit., pág. 14;

PAULO OTERO, O poder de substituição..., cit., págs. 667 e 668.23 — Man. Dir. Consl., I

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354Manual de Direito Constitucional

— Na perspectiva universalista traduzida no princípio da equiparação de direitos de portugueses e estrangeiros, nas garantias da extradição e da expulsão, na previsão do estatuto de refugiado político e, após 1982, na assunção do respeito dos direitos do homem como princípio geral das relações internacionais;

— No apelo à participação dos cidadãos, associações e grupos diversos nos procedimentos legislativos e administrativos;

— No tratamento sistemático prestado às eleições, aos partidos, aos grupos parlamentares e ao direito de oposição;

— Na redobrada preocupação com os mecanismos de controlo recíproco dos órgãos de poder e na constitucionalização do Ombudsman (o Provedor de Justiça);

— Na coexistência de semipresidencialismo a nível de Estado, sistema de governo parlamentar a nível de regiões autónomas e sistema directorial a nível de municípios;

— No sistema de fiscalização da constitucionalidade, com as quatro vias referidas, e no carácter misto de fiscalização concreta, com competência de decisão de todos os tribunais e recurso, possível ou necessário, para a Comissão Constitucional, primeiro, e depois para o Tribunal Constitucional.

Os constituintes pretenderam ainda construir uma organização económica muito original, conjugando o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção, um socialismo autogestionário e a iniciativa privada. A realidade do país, as revisões constitucionais e a integração comunitária viriam mostrar que só poderia subsistir se entendida como economia mista ou pluralista, algo diferente, mas não oposta ao modelo de Estado social europeu.

127. Os direitos fundamentais

I — A benefício do estudo a fazer no tomo iv deste Manual, esquematizam-se, assim, as notas básicas do tratamento dos direitos fundamentais na Constituição:

a) A prioridade dentro do sistema constitucional e o desenvolvimento da regulamentação, com princípios gerais comuns às grandes categorias de direitos previstos;

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Parte l— O Estado e os sistemas constitucionais 355

b) A extensão do elenco, com cláusula de não tipicidade e interpretação e integração dos preceitos de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16.”);

c) A preocupação tanto de enumerar os direitos quanto de definir o seu conteúdo e fixar as suas garantias e as suas condições de efectivação;

d) A contraposição entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, com colocação em títulos separados;

e) A previsão entre os direitos, liberdades e garantias não só dos direitos clássicos mas também de direitos novos, como as garantias relativas à informática (art. 35.”), o direito de antena (art. 40.”) e a objecção de consciência (art. 41.°, n.” 5);

f) A colocação da propriedade, não já a par das liberdades, mas sim dentre os direitos económicos, sociais e culturais (art. 62.”) e a inserção da iniciativa económica privada na parte li, relativa à organização económica (art. 85.”);

g) O aparecimento como direitos fundamentais de direitos dos trabalhadores e das suas organizações (arts. 52.” e segs.) ().

II — Distinguindo direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, a Constituição, do mesmo passo, estabelece a primaria ou uma maior relevância dos primeiros, firmandoos em pontos seguros e tomando claro que o seu respeito tem de ser incondicionado e que sem ele nenhuma incumbência do Estado pode ser realizada.

Essa maior relevância dos direitos, liberdades e garantias não se esgota, por isso, na sistematização adoptada na parte i da Constituição. Exibe-se também noutros importantíssimos aspectos:

a) Na decisão afirmada no preâmbulo de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos (2) e na referência do Estado democrático

() Sobre os direitos fundamentais na Constituição de 1976, v. a título introdutório, JOÀO DE CASTRO MENDES, Direitos, liberdades e garantias—Alguns Aspectos Gerais, m Estudos sobre a Constituição, obra colectiva, l, Lisboa, 1977, págs. 93 e segs.; VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., págs. 76 e segs.; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Consituição..., cit., págs. 121 e segs.

(2) Recorde-se ainda o que se lê no preâmbulo: «... a Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do País...».

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ao respeito e à garantia dos direitos e liberdades fundamentais (art. 2.”), direitos e liberdades que correspondem essencialmente aos direitos do título li, já que os direitos económicos, sociais e culturais bem podem associar-se melhor à decisão de «abrir caminho para uma sociedade socialista no respeito da vontade do povo português» e ao «exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras»;

b) Na inserção dos «direitos, liberdades e garantias dos cidadãos» como limites materiais da revisão constitucional, ao passo que, dos direitos económicos, sociais e culturais, os únicos que aí surgem são os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais [alíneas d) e e) do art. 290.”];

c) Na fixação de um regime dos direitos, liberdades e garantias, donde resuta o carácter preceptivo, de vinculação imediata para as entidades públicas e privadas, das normas constitucionais atributivas de tais direitos (arts. 18.” e segs.), enquanto que, relativamente aos direitos económicos, sociais e culturais, são garantias e condições para a sua efectivação «a apropriação colectiva dos principais meios de produção, a panificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições» (art. 50.”);

d) Na reserva de competência legislativa do Parlamento sobre direitos, liberdades e garantias [alíneas c), d), h) e i) do art. 290.”];

e) Na necessidade de adaptação das normas atinentes ao seu exercício até o fim da l.” sessão legislativa (art. 293.”, n.” 3).

128. A democracia na Constituição

O art. 2.° da Constituição, ao falar em «Estado democrático», ou após 1982 em «Estado de Direito democrático» baseado na «soberania popular», e o art. 3.°, n.° l, ao proclamar que «a soberania, una e indivisível, reside no povo...», bem como o art. 111.°, ao dizer que «o poder político pertence ao povo...», situam-se na linha do constitucionalismo ocidental sem quaisquer equívocos. .

Desde logo, sob o aspecto verbal, eles não fazem mais do que repetir, com vigor, o que já vinha das Constituições de 1822, 1838,1911 e até 1933, as quais, todas, conferiam o poder ao Povo ou Nação no sentido revolucionário setecentista ou democrático-liberal. As diferenças que existem relativamente a estas não diminuem a vizinhança bem nítida entre os preceitos.

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Parte — O Estado e os sistemas constitucionais 357

A «soberania popular», de que trata o art. 2.°, equivale exactamente a «soberania nacional» na tradição vinda da Revolução francesa (sem conotações com a tese de «soberania popular» ou de soberania fraccionada atribuída a ROUSSEAU). De resto, a soberania é una e indivisível (art. 3.°, n.° l), a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses (art. 150.°) e os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos (art. 152.°, n.° 3).

Mesmo à face do texto constitucional inicial, o Estado não é um Estado classista. O cidadão precede o trabalhador (arts. 4.” e 12.” e segs.) e a soberania popular precede o poder democrático das classes trabalhadoras, seja este o que for (art. 2.”). Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua situação económica ou condição social (art. 13.°). São os cidadãos enquanto tais (e não enquanto trabalhadores, ou não só os trabalhadores), que participam no exercício do poder político, pois «todos os cidadãos têm direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos» (art. 48.°, n.” l) e «a participação directa e activa dos cidadãos na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático» (art. 112.”). Daí o sufrágio universal (arts. 48.”, n.” 2, 124.”, 150.” e segs., 233.”, n.° 2,241.”, n.” 2, e 252.°), limite material da revisão constitucional [art. 290.”, alínea h)].

A democracia não se dissolve no socialismo. E distinta dele e antecede-o, pois não há socialismo sem democracia, sem sistema político democrático. E o que se vê também do preâmbulo e dos arts. 2.”, 73.”, n.” 2, 185.”, n.” 2, e 273.”, n.” 4.

A Constituição não cria, pois, um «Estado socialista operário e camponês», um Estado de «ditadura do proletariado» ou um «Estado revolucionário democrático», e tão pouco fala em «poder popular». Pelo contrário, cria uma «democracia política» [arts. 3.”, n.” 3, e 9.”, alínea b)} que se esteia no «pluralismo de expressão e organização política democráticas» (art. 2.”).

Este pluralismo é simultaneamente ideológico e organizatório, de ideias e de associações, partidos e outras organizações. E pluralismo de ideias que existem no meio social e aqui se formam e exprimem com liberdade (arts. 37.”, 38.”, 41.”, 42.” e 43.”), com acesso aos meios de comunicação social estatizados (arts. 39.” e 40.”); e que implica ficar o Estado vedado de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas,

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estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas (art. 43.”, n.” 2). E pluralismo dinâmico, e não estático, tendente à circulação dessas ideias e à livre actua-ção das associações, dos partidos e das outras organizações (arts. 3.”, n.” 3, 10.”, n. l, 46.”, 47.”, etc.), ao acesso dos partidos ao poder em concorrência (arts. 3.°, n.” 3, e 47.”, n.” l, de novo) na base da representatividade democrática (arts. 117.”, n.” l, 190.”, n.” l, e 233.”, n.” 4) e à dialéctica governo-oposição (arts. 117.”, n.” 2, 179.”, n.” 3, 180.”, n.” 2, e 183.”) ().

129. O socialismo e a Constituição económica

I — Para se saber o que é o socialismo a que se referem o art. 2.° e outros preceitos da Constituição, no texto inicial, e ainda hoje o preâmbulo, não há que definir o socialismo em abstracto ou como conceito ideológico; há que fazer trabalho de interpretação sistemática, tendo em conta, em particular, as normas da Constituição económica.

II — A Constituição liga o socialismo à «construção duma economia socialista, através da transformação das relações de produção e de acumulação capitalistas» (como diz o art. 91.”). E o socialismo não aparece apenas em termos programáticos. Aparece também em termos preceptivos, nomeadamente no que toca às nacionalizações de empresas (não de sectores) efectuadas após o 25 de Abril (art. 83.”). Em nenhum outro país ocidental — salvo o México (arts. 27.” e segs. da Constituição de 1917) — se encontra algo de idêntico.

Enquanto que Constituições como a francesa (preâmbulo de 1946), a italiana (art. 43.”), a alemã (art. 15.”), a venezuelana (arts. 97.” e segs.) (2) ou apenas admitem ou prevêem nacionalizações ou outras formas de apropriação colectiva, a Constituição portuguesa não só impõe e garante nacionalizações já consumadas (art. 83.”) como ainda considera as nacionalizações uma das condições de desenvolvimento da propriedade social, a qual tenderá a ser dominante (art. 90.”, n. l).

() Seguimos A Constituição de 976..., cit., págs. 379 e segs. Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constiuição..., cit., l.” ed., págs. 248 e segs.

(2) Sem esquecer a Constituição de Weimar (art. 156.”), as espanholas de 1931 (art. 44.”) e de 1978 (art. 129.”) ou a brasileira de 1934 (arts. 116.”, 117.” e 119.”).

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Mas não é também possível, mesmo no domínio da organização da economia, assimilar o socialismo concebido pela Constituição ao socialismo que então aparecia nas Constituições e na prática dos países de Leste (com excepção, em alguns aspectos fundamentais, da Jugoslávia). com efeito, a Constituição:

a) Distingue entre socialização dos meios de produção e apropriação colectiva, sendo certo que «socialização» surge na Constituição em dois sentidos — como sujeição ao enquadramento da Constituição, da lei e do Plano, na perspectiva do interesse colectivo e do desenvolvimento das relações de produção socialistas [arts. 9.”, alínea c), e 10.°, n.” 2, bem como arts. 81.”, alínea g), 82.” e 290.”, alínea/] e como transferência para a propriedade social (art. 90.”); e distingue entre apropriação colectiva e estatização (art. 89.”, n.” 2);

b) Apesar da diminuição do papel do sector privado — como mostram a não inserção da liberdade de iniciativa na parte l, haver sectores básicos nos quais está vedado o acesso às empresas privadas (art. 85.”, n.” 2) e preverem-se expropriações sem indemnização (art. 82.”, n.” 2) — e apesar de faltarem normas directas de protecção — afora a genérica incumbência ao Estado de protecção das pequenas e médias empresas económica e socialmente viáveis, as quais podem não ser apenas privadas [art. 81.”, alínea j), 2. parte] — a Constituição garante a sua existência (arts. 85.”, n.” l, e 89.”, n.” 4), até porque a propriedade social só deve ser predominante e não exclusiva na transição para o socialismo;

c) Incumbe o Estado de assegurar a «equilibrada concorrência entre as empresas», independentemente dos sectores a que pertençam [art. 81.”, alínea y’], o que, em conjugação com a flexibilidade do Plano (art. 92.”), por um lado, e com a intervenção do Estado nos preços e nos circuitos comerciais (arts. 103.” e 109.”) e com a possibilidade de intervenção na gestão das empresas privadas (art. 85.”, n.” 3), por outro lado, aponta para uma economia de mercado controlado;

d) Dá preferência às formas autogestionárias [arts. 61.”, n.” 2, e 89.”, n.” 2, alínea )], quer sobre a gestão privada (art. 83.”, n.” 2), quer sobre a gestão pública (art. 90.”, n.” 3), e tem em vista o seu futuro predomínio (art. 90.°, n.” l);

e) Só toma o Plano imperativo para o sector público estadual (art. 92°) e prevê a contratação colectiva (art. 58.”, n. 3 e 4), seja esta um verdadeiro e próprio direito fundamental dos parceiros sociais ou só dos trabalhadores ou mera garantia institucional.

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In — Tudo isto em conexão com:

a) O desenvolvimento pacífico do processo político-social previsto, dito, umas vezes, «processo revolucionário» (arts. 10.”, n.” l, e 55.°, n.” l), outras vezes «transição pacífica e pluralista» (art. 273.”, n.” 4);

b) O gradualismo, que reflecte a necessidade de tomar em conta as condições objectivas, internas e externas, de Portugal, adequando as formas de concretização dos objectivos constitucionais às «características do presente período histórico» [art. 9.”, alínea c)];

c) O carácter não autoritário e nem sequer determinante (ou exclusivamente determinante) da intervenção do Estado no processo de transição — o Estado «abre caminho», «assegura a transição», e não propriamente o socialismo; «cria condições», não impõe soluções prefixadas;

d) O apelo à participação dos sujeitos económicos, especialmente dos trabalhadores [arts. 2.”, 56.”, 58.” e 81.”, alínea o)};

e) A atribuição à Assembleia da República das principais decisões sobre matérias económicas, através da lei [arts. 164.”, alíneas g) e h), e 167.”, alíneas o) a t)} ().

130. O sistema de governo

I — O sistema de governo de 1976 foi moldado com a preocupação maior de evitar os vícios inversos do parlamentarismo de assembleia da Constituição de 1911 e da concentração de poder da Constituição de 1933, e tendo como pano de fundo a situação institucional pós-revolucionária.

O ponto mais delicado dizia respeito ao lugar do Presidente da República, às suas competências e ao seu modo de eleição. Ele não devia ser um Presidente meramente representativo, nem um

() Sobre a Constituição económica de 1976, v. A Constiuição de 1976, cit., págs. 505 e segs.; A interpretação da Constituição económica, Coimbra, 1987, e autores citados. Mais recentemente, ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO e GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS, A Constituição Económica Poruguesa, Coimbra, 1993, págs. 140 e segs., e ANTÓNIO CARLOS SANTOS, MARIA EDUARDA GONÇALVES e MARIA MANUEL LEITO MARQUES, Direio Económico, Coimbra, 1995, págs. 38 e 39.

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Chefe de Estado equivalente ao do regime autoritário, nem tão pouco (o que contrariaria a tradição constitucional portuguesa) um Presidente chefe do Poder Executivo. Mas tanto poderia ser um Presidente arbitrai, embora com capacidade de intervenção efectiva, no âmbito de um parlamentarismo racionalizado (), como um Presidente mais forte, regulador de um sistema político de tipo semipresidencial.

Optou-se pela segunda alternativa, desde logo, pela necessidade de compensar ou equilibrar o Conselho da Revolução, que iria subsistir durante alguns anos. E ainda por mais duas razões: pela dificuldade de instauração de um governo parlamentar após 50 anos sem Parlamento democrático e pela preguração de um modelo misto pela Lei n.° 3/74 (com Presidente da República, Governo e um Conselho de Estado, que fazia as vezes de assembleia) (2).

Acrescia o modo de eleição, que não podia deixar de ser (após o desvio traduzido na l. Plataforma de Acordo Constitucional) a eleição por sufrágio directo e universal. A sua reivindicação fazia parte desde 1958-1959 do património das reivindicações democráticas em Portugal. Só ela daria ao Presidente da República suficiente legitimidade para presidir ao Conselho da Revolução e, se fosse caso disso, para se lhe impor (3). Ela serviria de contraponto de unidade em face da eventual fragmentação parlamentar resultante do princípio da representação proporcional — decorrente este, por seu turno, de uma exigência de garantia do pluralismo e de integração numa sociedade tão dividida como se apresentava a portuguesa.

Sobre tudo isto formara-se um consenso difuso na Assembleia Constituinte, nos principais partidos e na opinião pública nos últi-

(’) Como era preconizado nos programas dos dois partidos maioritários da Assembleia Constituinte: no do Partido Socialista falava-se em «contrato de legislatura», no do Partido Popular Democrático em «parlamentarismo mitigado». Cfr. também o nosso Um projecto de Constituição, Braga, 1975.

(2) Em A Revolução de 25 de Abril e o Direito Consitucional, cit., págs. 42-43, qualificámos este sistema de presidencialista imperfeito (v. também págs. 41 e 52).

(3) Mas isso explica, por outra parte, a circunstância de o primeiro Presidente eeito ter sido um militar, conforme já assinalámos

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mós meses de 1975 e nos primeiros de 1976. E estas orientações viriam a ser consagradas na 2.” Plataforma () e no texto constitucional.

II — Os aspectos fundamentais a considerar eram, pois, os seguintes:

a) Existência de quatro órgãos políticos de soberania — Presidente da República, Conselho da Revolução, Assembleia da República e Governo (art. 113.°);

b) Atribuição ao Presidente da República, também presidente do Conselho da Revolução, sobretudo de poderes relativos à constituição e ao funcionamento de outros órgãos do Estado e das regiões autónomas, do poder de promulgação e veto e do poder de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (arts. 136.° e 137.°);

c) Condicionamento dos principais actos do Presidente da República pelo Conselho da Revolução (arts. 145.° e 147.°);

d) Sujeição a referenda ministerial apenas de certos actos do Presidente da República (art. 141.°);

e) Atribuição à Assembleia da República, parlamento unicameral (arts. 150.° e segs.), sobretudo do primado da função legislativa (arts. 164°, 167.°, 168° e 172.°) e de funções de fiscalização do Governo e da Administração pública (art. 165.°);

f) Consideração do Governo como o órgão de condução da política geral do país (art. 185.°), sendo o Conselho de Ministros presidido pelo Presidente da República apenas a solicitação do Primeiro-Ministro [art. 136.°, alínea h)];

() Contra a extensão da Plataforma à definição de regras básicas do sistema de governo (em vez de se confinar ao papel político das Forças Armadas) nos pronunciámos vivamente na altura: v. intervenção na Assembleia Constituinte em 6 de Janeiro de 1976 (Diário, n.” 100, págs. 3263-3264) e os artigos de imprensa publicados em Constituição e Democracia, cit., págs. 129 e segs., maxime pág. 149.

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g) Eleição directa do Presidente da República (art. 124.°), com candidatos propostos por grupos de cidadãos (art. 127.°) e em data nunca coincidente com a da eleição dos Deputados (art. 128.°);

h) Eleição dos Deputados à Assembleia da República segundo o sistema proporcional e o método de Hondt (art. 155.°) e com candidaturas reservadas aos partidos (art. 154.°);

i) Duração diferenciada do mandato presidencial — cinco anos (art. 131.°) — e da legislatura — quatro anos (art. 174.°) — e inelegibilidade do Presidente para terceiro mandato consecutivo e durante o quinquénio subsequente a segundo mandato consecutivo (art. 126.°);

j) Incompatibilidade das funções de Deputado e de membro do Governo (art. 157.°);

/ Sujeição da Assembleia da República a dissolução pelo Presidente da República, verificados certos requisitos, designadamente parecer favorável do Conselho da Revolução [arts. 136.°, alínea e), e 175.°];

m) Formação do Governo por acto do Presidente da República «tendo em conta os resultados eleitorais» (art. 190.°), seguido da apreciação do seu programa pela Assembleia da República (art. 195.°);

n) Responsabilidade política do Governo perante ambos os órgãos (art. 193.°), não sendo, porém, necessária a confiança positivamente afirmada (pelo menos, da Assembleia) para que ele subsista, e bastando a não desconfiança explícita, excepto quando seja o próprio Governo a pedir um voto de confiança (arts. 195.° a 198.°);

o) Proibição de dissolução da Assembleia da República por efeito de rejeição do programa do Governo, salvo no caso de três rejeições consecutivas (art. 198.°, n.° 2) e, em contrapartida, dissolução obrigaória quando a Assembleia haja recusado a conança ou votado a censura ao Governo, determinando por qualquer destes motivos a terceira substituição do Governo (art. 198.°, n.° 3).

Da Plataforma de Acordo Constitucional viriam as regras correspondentes às alíneas a), b) (em parte), c), g), l), m), n) (em parte) e o).

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Dos trabalhos da Assembleia Constituinte (1) as regras correspondentes às alíneas b) (em parte), d), e), f), h), i), j) e n) (em parte).

In — É interessante fazer uma comparação com a V república francesa.

Entre as semelhanças contam-se a concepção do Presidente como órgão dinamizador das instituições e a do Governo como órgão de condução da política geral do país, o poder de dissolução do Parlamento, a tipicidade dos actos sujeitos a referenda e a eleição presidencial directa.

As diferenças apresentam-se, porém, mais significativas:

a) Em Portugal, o Governo responde tanto perante o Presidente como perante o Parlamento e o Primeiro-Ministro pode ser demitido pelo Presidente; não em França, juridicamente (não politicamente, salvo em período de «coabitação»);

b) Em França, o Presidente preside ao Conselho de Ministros e nomeia os funcionários civis e militares; em Portugal só pode presidir ao Conselho de Ministros a pedido do Primeiro-Ministro (o que assegura uma mais completa separação entre os dois órgãos);

c) Em França, o Presidente tem poder de decisão de referendo e pode tomar medidas extraordinárias em estado de necessidade; não em Portugal;

d) Em Portugal, existe um órgão de condicionamento do Presidente da República; não em França;

e) Em França, o mandato presidencial é de sete anos e admite-se a reeleição indefinida; em Portugal é de cinco anos e com limites à reeleição.

A diversidade não impede a qualificação do sistema português como semipresidencial, tendo em conta o conhecido carácter heterogéneo destes sistemas (2) (3).

() Mais particularmente da 5.” Comissão; v. Diário da Assembeia Constituine, n. 85, de 22 de Novembrolê 1975, págs. 2806 e segs.

(2) Para maiores desenvolvimentos, v. os nossos estudos As Consituições Portuguesas, cit., págs. xxxvi e segs., e A Constituição de 1976, cit., págs. 420 e segs. No mesmo sentido, LUCAS PIRES, Presidencialismo, Semi-Presidenciaiismo

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131. O Conselho da Revolução

l — Criado no auge das convulsões revolucionárias, o Conselho da Revolução mantém a designação na Constituição, seja novo órgão (porque modelado pela nova Constituição) ou o anterior órgão inserido ou recebido no novo sistema de poder.

Ee incorpora, ao mesmo tempo, a representação histórica do Movimento das Forças Armadas e a representação institucional das Forças Armadas. E o que resta do MFA (arts. 3.”, n.” 2, e 10.”, n.” l) e a sua composição concreta remonta, por regressivas continuidades dos titulares, até ao acto revoucionário de 1974 [art. 143.”, n.” l, alínea e)}. E, entretanto, por serem seus membros os mais altos chefes militares do país, com directa condução das Forças Armadas [art. 143.”, n.” l, alíneas b) e c)], ele representa as Forças Armadas como instituição e assume as funções políticas das Forças Armadas como garantes do «regular funcionamento das instituições democráticas»

ou Regime de Partidos, in Democracia e Liberdade, n.” l, 1976, págs. 57 e segs.;

SANCHEZ AGESTA, Crso.... cit., pág. 415; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Lê origini..., cit., pág. 236; MAURICE DUVERGER, Échec au Rói, cit., págs. 17 e 26; MARCELO REBELO DE SOUSA, O sistema de governo português, in Estudos sobre a Constituição, obra colectiva, III, págs. 579 e segs.; ARMANDO MARQUES GUEDES, A Segurança, a Defesa Nacional, as Forças Armadas e os Cidadãos numa Perspectiva Constitucional, Lisboa, 1981 (separata de Nação e Defesa), págs. 48-49; VITALINO CANAS, A forma de governo semipresidencial e suas características. Alguns aspecos, in Revista Jurídica, n.” l, Outubro-Dezembro de 1982, págs. 89 e segs.; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, op. cit., págs. 37 e segs.; GIOVANNI SARTORI, Elogio dei semi-presidenialismo, cit., loc. cit., pág. 12.

Diferentemente, propendendo para a qualificação de parlamentarismo racionalizado, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., l.” ed., págs. 254 e segs.;

CRISTINA QUEIROZ, O sistema.... cit., págs. 63 e segs. E falando em sistema misto semipresidencial e directorial militar, ISALTINO MORAIS, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA e RICARDO LEITE PINTO, O sistema de governo semipresidencial, Lisboa,1984, págs. 84 e segs.

Cfr. ainda SALGADO DE MATOS, op. cit., págs. 10 e segs.; PEDRO SANTANA LOPES e DURÃO BARROSO, Sistema de governo e sistema partidário, Lisboa, 1980, págs. 21 e segs.; DOMINIQUE ROUSSEAU, La primauté présidentielle dans lê nouveau regime portugais, m Revue du droit public, 980, págs. 1325 e segs.; ANTÓNIO VITORINO, O sistema de governo na Constituição portuguesa de 1976 e na Constituição espanhola de 978, m Revista jurídica, n.” 3, Janeiro-Fevereiro de 1984, págs. 33 e segs.; LUCAS PIRES, Teoria..., cit., págs. 226 e segs.; o n.” 138, de 1996, da Análise Social.

(3) O termo semipresidencial não será, por certo, dos mais felizes; mas o que interessa é o conceito tal como o definimos.

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366Manal de Direito Constitucional

e das «condições que permitam a transição pacífica e pluralista da sociedade portuguesa para a democracia e o socialismo» (arts. 274.”, n.” l, e 273.”, n.0 2, 3 e 4).

com estas características, o Conselho da Revolução apresenta-se como um dos elementos mais originais do texto primitivo da Constituição de1976. Mas também um dos mais anómalos à face dos princípios constitucionais da soberania do povo (arts. 2.” e 3.”, n.” l) e do sufrágio universal (arts. 48.” e 116.”); e daí, independentemente mesmo da interpretação histórica com recurso ao Pacto MFA-partidos, a sua existência apenas transitória enquanto limite da democracia representativa (i).

II — O Conselho da Revolução tem competências de três ordens. Serve de órgão auxiliar do Presidente da República, a título consultivo [arts. 145.”, alínea a), 147.” e 307.”], ou a título deliberativo [arts. 145.”, alíneas b), c), d) e e), 132.”, n.” l, 133.”, n.” 2, e 135.”, n.” l]; e é ainda, excepcionalmente, órgão consultivo da Assembleia da República (art. 306.”, n.” 2). Funciona como órgão de garantia do cumprimento da Constituição (arts. 146.” e 280.”, n.” 2), em articulação com a Comissão Constitucional e com os tribunais (arts. 277.” a 285.). Possui reserva de competência política e legislativa em matéria miitar (art. 148.”).

Porém, esclareça-se que o texto de 1976 não prevê qualquer separação ou independência do «poder militar» em relação ao «poder civil» ou qualquer «autogestão» das Forças Armadas (2). A Constituição enuncia, sim, a regra de separação e interdependência dos órgãos de soberania (art. 114.”, n.” l) (3). O mais que prevê é a separação da estrutura do Conselho da Revo lução e dos Chefes de Estado-Maior relativamente à do Governo; ou a

() Resumimos assim o que escrevemos em A Constituiço de 1976, cit., págs. 406 e segs. Cfr., algo diversamente, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., l. ed., págs. 250 e 302 e segs.; JOSÉ MIGUEL JÚDICE, op. cit., loc. cit., págs. 17 e segs.; MANUEL DE LUCENA, op. cit., págs. 98, 100 e 162, e Rever e romper Da Constituição de 1976 à de 1989), m Revista de Direito e Estudos Sociais,1991, págs. 25-26, nota.

(2) A que se refere DUVERGER, Échec au Rói, cit., pág. 36. No mesmo sentido, FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo e Ciência da Administração, policopiado, Lisboa, 1978, págs. 272 e segs. Cfr. GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Diritto Costituionale Comparato, cit., págs. 932 e segs.

(3) Essa interdependência confirmam-na numerosos preceitos: arts. 136.”, alnea a), e 143.°, alínea a); 137.°, n.” l, alínea a); 135.° e 140.”; 167.”, alínea l), 164.”, alínea y), e 202.”, alínea b); 108.”, n.” 3, e 202.”, alnea b); 141.”, n.” 2.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 367

separação entre a Administração correspondente às Forças Armadas e a Administração pública em geral, cujo órgão superior é o Governo (art. 185.”), cabendo a conexão entre uma e outra estrutura ao Ministro da Defesa Nacio nal (na linha dos arts. 19.” e 21.” da Lei n.” 3/74, de 14 de Maio).

132. As regiões autónomas e o poder local

I — Um dos aspectos mais inovadores e interessantes da Constituição de 1976 encontra-se na consideração da democracia como democracia descentralizada, particularmente no âmbito da descentralização territorial ().

com efeito, ela procama, entre os «princípios fundamentais», o da autonomia das autarquias locais e o da descentralização democrática da administração pública (art. 6.°, n.° l) e erige os Açores e a Madeira em «regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos próprios» (art. 6.°, n.° 2); inclui a autonomia das autarquias locais e a autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira entre os limites materiais da revisão constitucional [art. 290.°, alíneas o) e p)]; salienta como um dos fins da autonomia destas regiões «a participação democrática dos cidadãos» (art. 277.°, n.° 2); e declara que «a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais» (art. 237.°, n.° l).

O Estado Português continua unitário (art. 6.°, n.° l), sem embargo de ser também descentralizado — ou seja, capaz de distribuir funções e poderes de autoridade por comunidades, outras entidades e centros de interesses existentes no seu seio. Descentralizado na tríplice dimensão do regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, do poder local ou sistema de municípios com outras autarquias de grau superior e inferior e ainda de todas aquelas medidas que possam caber na «descentralização democrática da administração pública» segundo os arts. 6.°, n.° l, e 268.°, n.° 2 (2).

() V. A Constituição de 1976, cit., págs. 435 e segs.; J. BAPTISTA MACHADO, Participação e descentralização, cit.

(2) Para maior desenvolvimento, v. tomo m e autores citados.

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368Manua de Direito Constitucional

II — Não se adoptou uma regionalização política integral do país. Um regime político-administrativo só se entendeu justificado para os Açores e para a Madeira, em face dos condicionalismos geográficos, económicos e sociais e das «históricas aspirações autonomistas das populações insulares» (art. 227.”, n.” l). No Continente previu-se apenas a criação de regiões administrativas — previu-se a criação, mas não se criaram desde logo (art. 256.”), ao contrário do que sucedeu com as regiões autónomas.

Mas todos os elementos característicos do Estado regional estão presentes na Constituição. As regiões autónomas, como entidades políticas que são, gozam de extensos poderes e direitos, uns definidores do âmbito essencial da autonomia e traduzidos na prática de actos próprios para a prossecução de «interesse específico», outros correspondentes à participação em actos do Estado (arts. 229.” e 231.”); têm garantias constitucionais adequadas para os defender (arts. 229.”, n.” 2, e 236.”); além disso, e sobretudo, dispõem de órgãos de governo próprio — uma assembleia regional eleita por sufrágio universal e um governo perante ela responsável (art. 233.”), em moldes de sistema parlamentar ().

E esta é a primeira vez na história portuguesa que o Estado, o poder central, confere faculdades substancialmente políticas a órgãos locais com titulares representativos das respectivas populações.

In — Já não têm em si natureza política as atribuições das autarquias locais, as quais «serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentraização administrativa» (art. 239.”).

No entanto, a Constituição não só coloca os órgãos das autarquias locais a par dos órgãos de soberania e dos órgãos das regiões autónomas (arts. 114.” e segs.) como prevê um estatuto desses órgãos e das próprias autarquias — freguesias, municípios e regiões administrativas (art. 238.°) — sempre na base da representação democrática (art. 241.”).

com os órgãos das freguesias articulam-se as organizações populares de base territorial (arts. 118.” e 264.” e segs.).

133. A fiscalização da constitucionalidade

Poucas Constituições manifestam tão vincadamente como a de 2 de Abril de 1976 a preocupação de garantia e procuram tão minuciosa e com-

() V. PERANANDO AMÂNCIO FERREIRA, As regiões autónomas na Constituição Poruguesa, Coimbra, 1980.

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Parte —O Esado e os sistemas consitcionais 369

pletamente dar-lhe resposta (). Devido, porém, à subsistência do Conselho da Revolução até à primeira revisão constitucional, não pôde o legislador constituinte estabelecer unicamente a regra da fiscalização jurisdicional, conforme postulariam os puros princípios constitucionais. Assim como, em virtude da participação do Conselho na função de garantia e da tradição de fiscalização difusa, não pôde encarar decididamente a hipótese da criação de um tribunal constitucional. O que foi possível foi instituir um órgão jurídico entre o Conselho e os tribunais, a Comissão Constitucional (arts. 283.” a 285.”).

A fiscalização preventiva, a fiscalização abstracta a posteriori ou sucessiva (a solicitação de certos órgãos) e a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão competem ao Conselho da Revolução, assistido pela Comissão Constitucional (arts. 277.” a 281.”). No caso de reconhecer a existência de inconstitucionalidade, o Conselho determina veto (obrigatório, mas com efeitos variáveis) do dipoma sujeito a fiscalização, declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral ou recomenda ao órgão legislativo competente que emita as medidas necessárias para tornar exequível a norma constitucional, respectivamente.

A fiscalização concreta compete aos tribunais, na linha do regime de 1911 e sem acepção de espécies de inconstitucionalidade (ao contrário da Constituição de 1933). Quando o útimo tribunal julgue inconstitucional uma norma legislativa ou equiparável há recurso para a Comissão Constitucional (e também quando qualquer tribunal aplique norma antes jugada inconstitucional pela Comissão) (arts. 207.” e 282.”).

A Comissão Constitucional é, pois, o órgão fulcral do sistema: sem o seu parecer (embora não vinculativo), o Conselho da Revolução não pode decidir; como tribunal de recurso é uma instância de concentração; e tendo julgado três vezes uma norma materialmente inconstitucional ou, uma vez, organicamente, o Conselho da Revolução pode declarar a sua inconstitucionalidade, também com força obrigatória gera (art. 281.”, n.” 2) (2).

() Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., l.” ed., págs. 477 e segs. e 494 e segs.; ANDRÉ THOMASHAUSEN, op. cit., loc. cit., págs. 486-487; JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976, cit., págs. 139 e segs.; HÉCTOR Fix ZAMUDIO, La protecion processual de los derechos humanos ante Ias juridiciones nacionales, México, 1982, págs. 203 e segs.

(2) Cfr. MIGUEL LOBO ANTUNES, A fiscaliação da conslitucionalidade das leis no primeiro período constitucional: a Comissão Constitucional, in Análise Social, 1984, págs. 309 e segs.24—Man. Dir. Consl., l

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370Manal de Direito Constitucional

134. A questão constitucional após 1976

I — Se a Constituição trouxe a estabilização política segundo um modelo institucional idêntico ou análogo ao das democracias ocidentais, a sua entrada em vigor não signicou o apaziguamento ou o consenso constitucional no país. Pelo contrário, desde o início, o debate à volta da Constituição de 1976 assumiu um relevo inédito, por vezes excessivo e, em 1980, quase dramático. Nem isso surpreende a quem evoque o paralelo com outras épocas da nossa história contemporânea e, mais de perto, as vicissitudes e as sucessivas atitudes políticas que acompanharam a feitura da Constituição.

Esse debate centrou-se sobre aspectos globais da obra constitucional: sobre o sentido normativo fundamental da Constituição, e em especial da Constituição económica (); sobre o seu carácter definitivo ou transitório; sobre os limites materiais de revisão constitucional; e sobre o modo de fazer a primeira revisão.

II — Quanto ao sentido fundamental da Constituição, desenharam-se quatro posições.

Para uns, o que haveria a realçar na Constituição seria o socialismo (ou a transição para o socialismo), o rumo para uma sociedade sem classes, o poder democrático das classes trabalhadoras, o controlo de gestão, a apropriação colectiva, a eliminação dos monopólios e dos latifúndios, as nacionalizações, o plano, a reforma agrária, as organizações populares de base (2).

Para outros, seria também o socialismo e, mais do que o socialismo, o carácter marxista (3) e a ditadura do proletariado (4); mas, exactamente por isso, pronunciavam-se contra o texto de 1976.

Uma terceira leitura da Constituição, reconhecendo nela tanto um elemento democrático quanto um elemento socialista, afirmava-os incompatíveis (senão por princípio, pelo menos pelo modo como se disporiam ou

() Principalmente na perspectiva da adesão às Comunidades Europeias.

(2) Assim, Luís CARVALHO OLIVEIRA, A Constituição: alguns conceitos fundamentais, Lisboa, 1976, e a orientação geral da revista Fronteira, editada no Porto, durante alguns anos, pela «Cooperativa de Defesa da Constituição».

(3) MARCELLO CAETANO, Constituições portugesas, cit., pág. 140.

(4) SOARES MARTINEZ, Comentários..., cit., maxime pág. 14.

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 371

sobreporiam, sem coordenação, no articulado constitucional). A Constituição seria internamente contraditória e, na prática, ou não poderia funcionar ou poderia conduzir a qualquer tipo de solução política e económica ().

Uma quarta maneira de ver era a dos que encontravam na Constituição igualmente esses elementos — a democracia ou a democracia política, pluralista e representativa, e o socialismo ou a democracia económica, social e cultural — como frutos de um determinado compromisso político e os procuravam interpretar e integrar sistematicamente através dos processos próprios do trabalho jurídico. Mas ainda aqui podiam distinguir-se cambiantes.

Foi sempre esta última posição a que defendemos, apoiando-nos no ponto firme que era e é a legitimidade democrática da Constituição e no valor primordial da dignidade da pessoa humana (art. l.”) (2) (3). E foi ela que constantemente veio a ser adoptada pela Comissão Constitucional (4).

In — A Constituição, ao contrário da Plataforma de Acordo Constitucional (5.4) (5), não fala em «período de transição». No entanto, por a Plataforma ter sido fonte imediata da parte 111 e da parte iv e por a Constituição prever um regime da primeira revisão diferente do das revisões ulteriores

() Foi a tese sustentada por MANUEL DE LUCENA, O Estado da Revolução;

mais mitigadamente, por PAULO PITTA E CUNHA, op. cit., oe. cf.; e por ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Da revisão constitucional ao «compromisso impossível», in Expresso, de 19 de Janeiro de 1980; e, mesmo após 1982, por Rui MACHETE, Os princípios estruturams..., cit., oe. cit., págs. 346, 357, 359 e 360, e em termos radicais, por LUCAS PIRES, Teoria da Constituição de 1976, cit., maxime págs. 132 e segs., 184 e segs., 292 e segs. e 388.

(2) As Consituições Portuguesas, cit., pág. xvm; Constituição e Democracia, cit., págs. 173 e segs.; A Constituição de 976, cit., maxime págs. 270 e segs.; A Constituição portuguesa e o ingresso nas Comunidades Europeias, Lisboa, 1981; A interpreação da Constituição económica, m Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, obra colectiva, l, Lisboa, 1984, págs. 281 e segs.

(3) Cfr., acentuando mais o elemento socialista, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., l. ed., maxime págs. 8, 50 e segs. e 189 e segs.; ou, inversamente, tendo-o por não cogente, SOUSA FRANCO, Sistema financeiro e Constituição financeira no texto constitucional de 1976, m Estudos sobre a Constituição, obra colectiva, in, págs. 567 e segs.

(4) O primeiro e decisivo parecer neste sentido foi o n.” 15/77, de 17 de Junho de 1977, in Pareceres, , págs. 67 e segs.

(5) E ao contrário do primeiro texto preparado pela 5. comissão da Assembleia Constituinte, em correspondência com a l.” Plataforma (art. 2.”, n.” l).

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372Manual de Direito Constiucional

(menos difícil), estar-se-ia diante de uma Constituição transitória (), diante de uma Constituição destinada a vigorar por um período curto até essa primeira revisão ou novação constitucional.

Doutro prisma, a Constituição seria transitória, por incindível da transição para o socialismo a que ela própria se referia; seria uma Constituição para a transição para o socialismo e, logo que este objectivo estivesse alcançado, haveria de ser substituída por outra, determinada pelas relações sociais de produção que então viessem a prevalecer (2).

Estas opiniões não eram suficientemente fundadas.

Por um lado, o ter sido a Plataforma uma das fontes da Constituição e o falar em «período de transição» só poderia implicar (como veio a impicar) uma consequência: a extinção do Conseho da Revolução, na primeira revisão constitucional (correspondente ou subsequente ao período dito de transição). E essa consequência apenas prova (e provou) que a Constituição continha em si um princípio definitivo, o princípio democrático, em relação ao qual o Conselho da Revolução representava um desvio.

Por outro lado, regras específicas da primeira revisão eram a exigência de maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absouta dos Deputados em efectividade de funções (art. 286.”, n.” l), em vez de maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções (art. 287.”, n.” 3); e a aproximada coincidência da atribuição à Assembleia da República de poderes de revisão com os termos da primeira legislatura e do primeiro mandato presidencial (arts. 286.”, n.” l, 299.”, n.” l, e 296.”). Mas estas regras justificavam-se por a primeira fase de vigência de qualquer Lei Fundamental equivaler a um tempo de experimentação e por a extinção do Conselho da Revolução exigir a reponderação do sistema de governo. Não permitiam concluir que se fosse passar de uma Constituição a outra (3).

Quanto à «transição para o socialismo» tão pouco ela conferia à Constituição índole transitória, apenas lhe conferia (parcialmente) carácter programático. A transição não era exterior à Constituição formal e alterações

() ANDRÉ THOMASHAUSEN, op. cit., oe. cit., págs. 473 e segs.

(2) Divisa-se aqui um directo afloramento das concepções estalinistas da Constituição-balanço e Constituição-programa. Mas não foram só sectores identificados com tais concepções que se serviram do argumento.

(3) Significativo é ainda o facto de a matéria da revisão constitucional, que no parecer da Comissão de Sistematização da Constituinte era colocada em «Disposições finais e transitórias» (v Diário, n.” 13, pág. 272), no fim ter ficado a constituir o título li da parte iv.

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Parte I— O Esado e os sistemas constitucionais 373

de preceitos que viessem a ocorrer, por virtude disso, não afectariam a Constituição material ().

IV — Tanto a Constituição não era transitória que enumerava explícitos limites materiais da revisão constitucional —, quer dizer, princípios substantivos que deviam ser respeitados em ulterior modificação do seu texto. E à volta do preceito a eles referente (o art. 290.”) uma larga polémica doutrinal (e política) se estabeleceu.

O lugar indicado para analisar o problema, extremamente complexo, não pode ser, porém, este (2). Por agora apenas se diga que cláusulas de limites materiais encontram-se em várias Constituições (como na nossa de 1911, no seu art. 82.”, § 2.4, a respeito da forma republicana de governo); o que distingue a Constituição de 1976 é prever um copioso elenco, abrangendo também princípios da organização económica.

V — O modo como se deveria fazer a primeira revisão constitucional foi, de todas as questões, a mais agitada. A despeito de a Constituição se ocupai” ex professo do assunto, cometendo tal poder à Assembleia da República [arts. 164.”, alínea a), 169.”, n.” l, e 286.” e segs.], houve quem invocasse a possibilidade ou a necessidade de recorrer ao povo através de referendo; foram apresentados um projecto de lei e uma proposta de lei de autorização legislativa tendentes à organização do referendo (3); e a campanha eeitoral relativa à eleição presidencial, em 1980 teve-o como tema primacial.

O referendo serviria para resolver o problema dos limites materiais da revisão constitucional, pois só o povo, titular da soberania, os poderia ultrapassar; ou para vencer o bloqueamento ideológico que a Constituição traria consigo; ou para eliminar a regra da maioria qualificada de dois terços para a aprovação de alterações à Constituição; ou ainda, na hipótese de não se formar na Assembleia da República a maioria qualificada exigida no art. 286.”, para viabilizar a própria revisão.

Sendo, embora, diversas as funções esperadas do referendo, era comum a fundamentação: o princípio democrático — por o povo, por direito natu-

() Para maior desenvolvimento deste assunto, v. A Constiuição de 1976, cit., págs. 215e segs.

(2) Há-de ser no tomo li.

(3) V. Diário da Assembleia da República, l legislatura, 4. sessão legislativa,2.” série, n.0 69 e 74, págs. 1140 e segs. e 1284 e segs., respectivamente; cfr. as impugnações que lhes foram dirigidas, ibidem, n.0 71 e 76, págs. 1214(2) e 1312.

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374Manual de Direito Constitcional

ral (segundo alguns), estar acima da Constituição e esta mesma apelar para a participação directa e activa dos cidadãos na vida pública (arts. 48.” e 112.”).

Mas a fraqueza jurídica dos argumentos era notória, à face dos cânones gerais de interpretação e das regras básicas do constitucionalismo ocidental (em que todo o poder público tem de estar previsto e contido em regras jurídicas e em que prevalecem os mecanismos representativos e pluralistas sobre os de democracia directa).

No fundo o que estava em causa era a oposição à Constituição; era, não já um processo para a modificar — o que pressupunha a aceitação das suas regras — mas um processo para a substituir; era saber se deveria ou não dar-se, e de que forma, ruptura da ordem constitucional de 1976 ().

Os resultados da eleição presidencial de Dezembro de 1980 resolveram este problema no sentido da inadmissibilidade do referendo e do respeito das regras constitucionais sobre revisão (2).

VI — O intenso debate travado teve, pelo menos, um mérito: o de propiciar a consideração crítica dos institutos constitucionais e a formulação, em alternativa, de vários projectos de reforma (3)

135. A primeira revisão constitucional

I — Dotada de poderes de revisão constitucional a partir de 15 de Outubro de 1980 (4), a Assembleia da República viria a exercê-los

() V., por todos, o colóquio sobre revisão constitucional em que intervieram FRANCISCO LUCAS PIRES, ANTÓNIO BARBOSA DE MELO, JOSÉ MIGUEL JÚDICE e MARCELO REBELO DE SOUSA, in Democracia e Liberdade, n.” 16, Novembro de 1980, págs. 9 e segs.

(2) Do mesmo modo que, em todas as eleições realizadas desde 1976, nunca obtiveram maioria absoluta dos eleitores os partidos ou coligações que se declararam, mais ou menos directamente, contrários à Constituição (pelo menos, até 1987).

(3) Chegaram a ser publicados, a título individual ou por incumbência partidária, projectos doutrinários de revisão constitucional. Foram: de FRANCISCO SÁ CARNEIRO, Uma Consituição para os anos 80 — Contributo para um projecto de revisão, Lisboa, 1979; de JORGE MIRANDA, Um projecto de revisão constitucional, Coimbra, 1980; de PEDRO SANTANA LOPES, Projecto de alterações ao projeco Sá Carneiro (constante do livro deste autor e de JOSÉ DURO BARROSO, Sistema de governo e sistema partidrio, cit.); e de BARBOSA DE MELO, CARDOSO DA COSTA e VIEIRA DE ANDRADE, Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, Coimbra, 1981.

(4) Por força dos arts. 286.”, n.” l, e 299.”, n.” l, da Constituição já citados.

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Parle l—O Estado e os sistemas constitucionais 375

através de um longo processo que se desenrolaria entre 23 de Abril de 1981 (data do primeiro projecto) e 12 de Agosto de 1982 (data da votação final global do decreto de revisão).

II — Foram cinco os projectos apresentados (), correspondentes a diversas orientações políticas e a diversas maneiras de encarar o alcance da revisão. As diferenças mais sensíveis diziam respeito à organização económica (tal como em 1975) e à organização política (na perspectiva da supressão do Conselho da Revolução).

A Assembleia criou uma comissão eventual (2), composta por Deputados indicados por todos os partidos, proporcionalmente à sua representação parlamentar. A comissão deveria proceder à sistematização e à apreciação das propostas de alteração à Constituição, de modo a preparar a discussão no Plenário: a comissão verificaria quais as propostas susceptíveis de obterem a maioria prescrita de dois terços e, se fosse caso disso, poderia elaborar textos de substituição (3).

O essencial da definição do conteúdo da revisão viria a ser obra da comissão, resultante dos debates nela havidos — que foram todos gravados e publicados (4) — ou da formalização de acordos entre dirigentes partidários, celebrados fora do Parlamento, sobre determinados pontos (5).

(’) Projectos de revisão n.” 1/n, de Deputados da Acção Social Democrata Independente; n.” 2/n, de Deputados do Partido Social Democrata, do Centro Democrático Social e do Partido Popular Monárquico (Aliança Democrática); n.” 3/n, de Deputados do Partido Comunista Português; n.” 4n, de Deputados do Partido Socialista, da Acção Social Democrata Independente e da União de Esquerda para a Democracia Socialista (Frente Republicana e Socialista); n.” 5/n, de Deputados do Movimento Democrático Português. O projecto n.” 1/n seria retirado aquando da apresentação do projecto n.” 4/ll.

V. os projectos na separata n.” 6/11, do Diário da Assembleia da República, de 16 de Junho de 1981.

(2) V. Diário da Assembleia da República, li legislatura, l.” sessão legislativa,

1.° série, sessão de 27 de Maio de 1981, págs. 2763 e segs.

(3) V. o regimento da comissão, in Diário, 11 legislatura, l.” sessão legislativa,

2. série, suplemento ao n.” 96.

(4) Na 2. série do Diário da Assembleia da República.

(5) Designadamente, sobre as relações entre Presidente da República e Goveo, sobre a audição do Conselho de Estado pelo Presidente da República e sobre a composição do Tribunal Constitucional. Os acordos foram entre os partidos da Aliança Democrática e o Partido Socialista e não foram publicados, mas estão lar-

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376Mana de Direito Constitucional

Seguir-se-iam a discussão e a votação no Plenário, com base nas conclusões da comissão () e de harmonia com normas regimentais ad hoc destinadas a disciplinar a utilização do tempo (2).

O decreto de revisão compreenderia duas partes: uma correspondente às alterações à Constituição; a outra, a disposições transitórias. Uma vez elaborado pela comissão eventual (funcionando agora como comissão de redacção), viria a ser submetido a votação final global pelo Plenário e a ser aprovado também por maioria de dois terços dos Deputados (3) (4).

Sujeita a promulgação obrigatória (art. 286.”, n.” 2), a lei de revisão foi publicada em 30 de Setembro de 1982 e entraria em vigor no trigésimo dia posterior.

In — A revisão constitucional de 1982 foi bastante extensa, trouxe modificações à maior parte das disposições constitucionais (5) — agora reduzidas a 300 artigos, em vez dos anteriores 312 (6).

gamente referenciados nas páginas do Diário da ssembleia (v., desde logo, 2.” série,2.” suplemento ao n.” 114, reunião de 6 de Maio de 1982 da comissão eventual, págs. 2076(15) e segs.).

() V. o parecer da comissão, in Diário, legislatura, 2.” sessão legislativa,2.” série, n.” 97.

(2) V. a discussão dessas regras, primeiro na comissão e, depois, no Plenário, in Diário, n legislatura, 2. sessão legislativa, 2.” série, suplemento ao n.” Ill,2.” suplemento ao n.” Ill, suplemento ao n.” 118, 2.” suplemento ao n.” 118, 2.” suplemento ao n.” 120 e suplemento ao n.” 122; e l.” série, n.0 99 e 100, sessões de 7 e 8 de Junho de 1982, respectivamente. V. ainda, sobre o processo especial de revisão, 2. série, suplemento ao n.” 132.

(3) Votaram contra os Deputados do Partido Comunista Português e da União Democrática Popular e abstiveram-se os do Movimento Democrático Português. V. Diário, n.” 132, sessão de 12 de Agosto de 1982.

(4) A maioria reconheceu vantagem poltica nessa votação final global. Mas, juridicamente, embora não ilegítima, foi de bem escassa utilidade. Não foi tal votação que determinou a aprovação das alterações à Constituição — esta deu-se por virtude das sucessivas votações, preceito a preceito, feitas nos termos do art. 286.”;

quando muito (e sobretudo para as disposições transitórias) a votação apenas lhes terá emprestado plena eficácia.

(5) Basta notar que a lei de revisão, na parte respeitante às alterações da Constituição, tem 237 artigos.

(6) Apesar das abundantes modificações de preceitos, houve o cuidado de conservar a numeração dentro de cada parte e de cada titulo e apenas se fez excepção nos títuos vil e viu da parte .

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Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 377

O preâmbulo não foi, porém, alterado () e mantiveram-se intocados o âmbito de matérias, a estrutura e a sistematização (2), bem como o art. 290.°, sobre limites materiais.

Globalmente, assinalaram a revisão:

a) A redução das marcas ou expressões ideológico-conjunturais vindas de 1975 e, em particular, a supressão das referências ao socialismo em todos os artigos, salvo no 2.° (a ponto de se poder questionar se o socialismo tinha ou conservava, doravante, qualquer sentido autónomo);

b) O aperfeiçoamento dos direitos fundamentais e a clarificação da Constituição económica numa linha de economia pluralista;

c) A extinção do Conselho da Revolução e o termo das funções políticas das Forças Armadas;

d) Em conexão com essa extinção, o repensar das relações entre o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, com reflexos no sistema político, e a criação de um Tribunal Constitucional (3).

IV — Na anteparte de «Princípios Fundamentais», registem-se:

— A inclusão da menção do Estado de Direito democrático nos arts. 2.” e 9.”, aínea b);

() No projecto de revisão da Aliança Democrática previa-se uma larga refündição.

(2) As alterações que se efectuaram correspondem, no essencial, a uma melhoria de sistematização:

— divisão do título 11 da parte i em três capítulos, abrangendo o capítulo 111 preceitos vindos do título 111;

— supressão do capítulo i do título In da parte l;

— mudança de rubrica dos títulos iv e vi da parte li;

— aditamento de um capítulo In ao titulo li da parte II;

— supressão do titulo 111 da parte 111;

— mudança de rubrica do titulo ix (anterior x) da parte i;

— mudança de rubrica do capítulo do títuo i da parte iv.

(3) Cfr. as visões de GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Principio de legalità e revisione

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delia Costituzione portoghese nel 982, m L’influenza dei valorí costituvonali sui sistemi giurdici contemporanei, Milão, 1985, ou de MANUEL DE LUCENA, Rever e romper..., cit., loc. cit., págs. 13 e segs.

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378Manual de Direito Constitucional

— A substituição, na parte final do art. 2.”, da expressão «mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas casses trabalhadoras» pela expressão «mediante a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa»;

— A transplantação para o art. 3.” do princípio da constitucionalidade (anterior art. 115.”);

— A referência à zona económica exclusiva no art. 5.”, n.” 2;

— A referência ao respeito dos direitos do homem como princípio das relações internacionais de Portugal (art. 7.”, n.” l);

— A previsão da recepção na ordem interna das normas emanadas dos órgãos competentes de organizações internacionais de que Portugal seja parte, desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos (art. 8.”, n.” 3);

— A referência expressa ao princípio da igualdade social ou «igualdade real entre os portugueses» no art. 9.”, alínea d);

— A valorização do património cultural e a defesa da natureza e do ambiente como tarefas fundamentais do Estado [art. 9.”, alínea e)}\

— A substituição de um preceito sobre processo revolucionário por um preceito sobre sufrágio universal e partidos políticos (art. 10.”).

V — Na parte i, salientem-se:

— O maior rigor posto no regime das restrições e da suspensão dos direitos, liberdades e garantias (arts. 18.”, n.0 2 e 3, e 19.”);

— A passagem para o título dos direitos, liberdades e garantias da liberdade de escolha de profissão (agora art. 47.”) e dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (arts. 53.” e segs., novos);

— O aperfeiçoamento de algumas garantias criminais (arts. 27.” e segs.);

— A consagração de alguns direitos dos jornalistas (art. 38.”, n.” 3) e da obrigação do Estado de impedir a concentração de empresas jornalísticas (art. 38.”, n.” 6);

— A substituição dos conselhos de informação por um Conselho de Comunicação Social (art. 39.”);

— A constitucionalização dos direitos de espaço e de resposta da oposição ao Governo (art. 40.”);

— A explicitação do direito de criação de escolas particulares e cooperativas (art. 43.°, n.” 4);

— A prescrição da regra do concurso no acesso à função pública (art. 47.”, n.” 2, novo);

— A consagração do direito das comissões de trabalhadores de gerir ou participar na gestão das obras sociais da empresa e de promover a eleição

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Parle l—O Estado e os sisemas constitucionais 379

de representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais de empresas pertencentes a entidades públicas [art. 55.”, alíneas e) e f)};

— A colocação da iniciativa económica privada, a par da iniciativa cooperativa e da autogestionária, na parte l, no catálogo de direitos fundamentais (art. 61.”), e não apenas na parte n (i);

— A previsão de formas de democracia participativa ou associativa no tocante ao serviço nacional de saúde, à política familiar e à gestão das escolas [arts. 64.”, n.” 4, 67.”, n.” 2, alínea, e 77.”];

— A autonomização de um preceito sobre fruição cultural (art. 78.”).

VI — Na parte n avultam:

— A reformulação dos princípios fundamentais da organização económica (art. 80.”), incluindo o da coexistência dos diversos sectores de propriedade dos meios de produção, pública, privada e cooperativa, sem adstrição à «fase de transição para o socialismo» (art. 89.”, n.” l);

— O reconhecimento também às «organizações representativas das actividades económicas» de participação na definição, na execução e no controlo das grandes medidas económicas e sociais [art. 81.”, alínea i)};

— A eliminação da possibilidade de a lei determinar expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas sem indemnização (anterior art. 82.”, n.” 2);

— A definição positiva do sector privado (art. 89.”, n.” 3);

— A eliminação da referência à predominância tendencial da propriedade social (art. 90.”, n.” l);

— A inserção da reforma agrária no âmbito da política agrícola (art. 96.”);

— O princípio da aprovação parlamentar do orçamento do Estado (art. 108.”);

— A autonominação de um preceito sobre protecção do consumidor (art. 110.”) (2).

() Esta transferência, juntamente com a deslocação dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores para o título li da parte l, mostra bem a subsistência do espirito comprm issório da Constituição.

() Cfr. ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, A revisão da Constituição Económica, m Revista da Ordem dos Advogados, 1982, págs. 601 e segs.

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380Manual de Direito Constitucional

VII — Na parte m, para lá da extinção do Conselho da Revolução, mencionem-se:

—O tratamento específico dos actos normativos (art. 115.”);

— A não reelegibilidade do Presidente da República, em caso de renúncia, nas eleições que se realizem no quinquénio imediatamente subsequente (art. 126.”, n.” 2);

— A criação do Conselho de Estado como órgão consutivo do Presidente da República [arts. 136.”, alínea a), e 144.” e segs.];

— A dependência da dissoução da Assembeia da República apenas de audição dos partidos e de parecer do Conselho de Estado [art. 136.”, alínea e)], em vez de parecer favoráve do Conselho da Revolução (como era dantes), e a supressão das regras atinentes a crises ministeriais (anteriores n.°1 2 e 3 do art. 198.”); mas, em contrapartida, a proibição de dissolução nos seis meses posteriores à eleição da Assembleia e nos seis últimos do mandato do Presidente (art. 175.”, n.” l);

— A demissão do Governo peo Presidente da República só quando tal se torne necessário para assegurar «o regular funcionamento das instituições democráticas» [arts. 136.”, alínea g), e 198.”, n.” 2];

— A reguamentação da designação dos chefes de estado-maior das Forças Armadas [art. 136.”, alínea p)];

— A regulamentação mais precisa do poder de veto (arts. 139.” e 235.”);

— A transferência para a Assembleia da República ou para a sua Comissão Permanente da competência para autorizar a declaração de guerra e do estado de sítio ou do estado de emergência [arts. 138.”, alínea c), 141.” e 164.”, alíneas j) e l)];

— O alargamento da reserva de competência egislativa da Assembleia da República, absouta e relativa (arts. 167.” e 168.”);

— O direito potestativo de um quinto dos Deputados em efectividade de funções de provocarem a constituição de comissões de inquérito, até ao limite de uma por Deputado e por sessão egislativa (art. 181.°, n.” 4);

— A limitação do Governo, antes da apreciação do seu programa pela Assembleia, à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos (art. 189.”, n.” 5) e a possibilidade de ele solicitar a aprovação de um voto de confiança aquando dessa apreciação (art. 195.”, n. 3);

— A definição geral das relações entre o Governo e o Presidente da Repúbica em termos de «responsabilidade», e não já de «responsabilidade poítica» (arts. 193.” e 194.°);

— A prescrição da demissão do Governo por virtude do início de nova legislatura e de aprovação de uma moção de censura, e não já de duas (art. 198.”, n.” l);

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 381

— A atribuição ao Tribunal Constitucional não apenas de competências de apreciação da inconstitucionalidade e da ilegalidade mas também de poderes de verificação de situações e actos relativos a outros órgãos (art. 213.”);

— A definição da composição do Conselho Superior da Magistratura, com maioria de vogais designados pelo Presidente da República e pela Assembleia da República (art. 223.”);

— A atribuição às regiões autónomas de poder tributário próprio, nos termos da lei, e de participação na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (art. 229.”);

— A criação de referendos a nível local (art. 241.”, n.” 3);

— A constitucionalização das associações públicas (art. 267.”, n.” 3);

— O reforço das garantias dos administrados (art. 268.”, n.01 2 e 3);

— A criação de um Conselho Superior de Defesa Nacional (art. 274.”).

VIII — Finalmente, na parte iv anotem-se:

— A regulamentação da fiscalização preventiva da cònstitucionalidade através da fiscalização de normas, e não de diplomas (arts. 278.” e 279.”);

— A admissibilidade de recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais sobre inconstitucionalidade e ilegalidade (art. 280.”);

— A atribuição a um décimo dos Deputados à Assembleia da República ou à assembleia regional respectiva do direito de requerer ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, respectivamente, de normas jurídicas (art. 281.”);

— A definição dos efeitos da decaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade (art. 282.”);

— A apreciação da existência da inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional, a requerimento do Presidente da Repúbica, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das assembleias regionais (art. 283.°);

— A composição do Tribunal Constitucional, com dez juizes designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes (art. 284.”) ().

() V. a nossa crítica (principalmente aos riscos de partidarização da magistratura) em Revisão constitucional e democracia, Lisboa, 1983, págs. 184185 e 240 e segs.; ou CARMELA DE CARO BONELLA, Sviluppi delia forma di governo in Portugal dal 974 ai 1982, in Quaderni Costituionali, ano III, n.” 2, Agosto de 1983, pág. 332.

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382Manual de Direito Constitucional

136. A segunda revisão constitucional

I — Os resultados da revisão constitucional de 1982 foram considerados insuficientes por largos sectores da opinião pública, que continuaram muito críticos, sobretudo, da parte da Constituição (l) (embora a integração do país nas Comunidades Europeias a partir de l de Janeiro de 1986 se tivesse feito sem nenhumas dificuldades de índole jurídico-constitucional).

Não admira, por isso, bem como pelo contexto político da conjuntura, que, no início da sessão legislativa subsequente à passagem dos 5 anos prescritos pelo art. 286.°, n.° l, da Lei Fundamental, se tivesse desencadeado um novo processo de revisão constitucional.

II — Este processo viria a ser extremamente semelhante ao da primeira revisão.

Todos os partidos, e também alguns Deputados, apresentaram mais ou menos vastos projectos de revisão (2). A Assembleia constituiu uma comissão eventual formada por 30 Deputados (), em representação proporcional dos diversos partidos. Foi esta comissão que realizou quase todo o trabalho de discussão e elaboração (4), ainda que, a partir de certo momento, ela

() Assim, escassos 18 meses depois da Lei Constitucional n.” 1/82 chegou a ser apresentado na Assembleia da República um projecto de resolução tendente à assunção de poderes de revisão constitucional: projecto de resolução n.” 23/in, apresentado por Deputados do Centro Democrático Social em 12 de Março de 1984.

(2) Projecto de revisão constitucional n.” l/v, de Deputados do Centro Democrático Social; projecto n.” 2/v, de Deputados do Partido Comunista Português; projecto n.” 3/v, de Deputados do Partido Socialista; projecto n.” 4v, de Deputados do Partido Social Democrata; projecto n.” 5/v, do Deputado Sottomayor Cárdia; projecto n.” 6/v, da Deputada Helena Roseta; projecto n.” 7/v, de Deputados da Intervenção Democrática; projecto n.” 8/v, de Deputados do Partido «Os Verdes»; projecto n.” 9/v, de Deputados do Partido Renovador Democrático;

e projecto n.” 10/v, dos Deputados Carlos Lélis, Cecília Catarino, Guilherme da Silva e Jaime Ramos.

(3) Deliberação n.” l/PL88, de 19 de Janeiro.

(4) A comissão dotou-se de um regimento inteo; criou duas subcomissões (uma destinada a proceder à análise comparativa dos projectos e a outra para conceder audiências a todas as pessoas que as solicitassem); e viria a realizar 119 ses-

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w

Parte —O Estado e os sisemas constitucionais 383

tivesse ficado condicionada por um acordo entre as direcções dos dois principais partidos (indispensáveis para a maioria de dois terços) (). Depois de um ano de reuniões, decorreria um período, relativamente breve, de debate e votação no Plenário (2) (3). E haveria também uma votação final global do decreto de revisão (4) — muito extenso e, tal como em 1982, com duas partes (202 artigos de alterações à Constituição e 6 de disposições finais e transitórias).

Feita em l de Junho de 1989 a votação global, a lei de revisão (Lei Constitucional n.” 1/89) seria publicada em 8 de Julho e entraria em vigor no trigésimo dia posterior.

In — Centrada na organização económica (da mesma maneira que a de 1982 se centrara no sistema de órgãos políticos em face da extinção do Conselho da Revolução), a revisão constitucional de 1989 não se esgotou, porém, aí. Teve um âmbito mais lato (em alguns aspectos, com um perfeccionismo excessivo e, noutros, frustrado).

soes de trabalho sobre as alterações constantes dos projectos e as propostas de substituição de iniciativa dos seus membros. Os debates foram todos gravados e publicados em série especial do Diário da Assembleia.

V. o relatório final da comissão in Diário, v legislatura, 2. sessão legislativa,2. série-A, n.” 29.

() O texto do acordo foi publicado nos jornais (por exemplo, no Diário de Notícias de 15 de Outubro de 1988) e referido em debates na comissão eventual (v., designadamente Diário da Assebleia da República, v legislatura, 2. sessão legislativa, 2. série, n.” 57-RC, acta n.” 55, reunião de 26 de Outubro de 1988, págs. 1822 e segs.).

(2) Segundo um processo especial objecto da Resolução n.” 8/89 da Assembleia, de 13 de Abril. V. o debate sobre este processo, in Diário, v legislatura,2. sessão legislativa, l. série, n.0 62 e 63, reuniões de 12 e 13 de Aibril de 1989, respectivamente págs. 2130 e segs. e 2160 e segs.

(3) Os debates no plenário estão inseridos no Diário da Assembleia da República, v legislatura, 2.” sessão legislativa, n.0 62 a 91.

(4) V. Diário n.” 91, pág. 4530. As declarações finais dos subscritores dos projectos encontram-se a págs. 4510 e segs.

com raras excepções, votaram a favor os Deputados do Partido Social Demo crata, do Partido Socialista, do Partido Renovador Democrático e do Centro Democrático Social e contra os do Partido Comunista, de «Os Verdes» e da Intervenção Democrática.

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384Manual de Direito Constitucional

Os seus pontos fundamentais são, pois, os seguintes:

a) Supressão quase completa () das menções ideológico-proclamatórias que ainda restavam após 1982;

b) Aprofundamento de alguns direitos fundamentais, mormente os dos administrados;

c) Supressão da regra da irreversibil idade das nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974, e, em geral, aligeiramento da parte da organização económica;

d) Reformulação parcial do sistema de actos legislativos;

e) Introdução do referendo político a nível nacional, embora em moldes muito prudentes;

/ Modificação de três das alíneas do art. 290.° sobre limites materiais da revisão constitucional.

IV — Manteve-se o preâmbulo e o articulado passou de 300 para 298 preceitos.

A numeração dos artigos sofreu algumas oscilações: umas inevitáveis (no campo da Constituição económica e das disposições finais e transitórias);

outras sumptuárias (no domínio de tribunais); e outras ainda inconvenientes (no domínio da revisão constitucional).

A sistematização não sentiu grandes quebras. Apenas a parte li passou a ter agora quatro títulos (de princípios gerais, de planos, de política agrícola, comercial e industrial e de sistema financeiro e fiscal), a parte In passou a ter um novo título (dedicado ao Tribunal Constitucional) e a parte iv (por causa disso) deixou de ter o seu título i (sobre fiscalização da constitucionalidade) subdividido em dois capítulos.

V — Nos «Princípios Fundamentais» foram modificações relevantes:

— O dizer-se, no art. l.”, «República soberana ... empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária» (2) e não mais «empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes»;

— No art. 2.”, a erradicação da referência ao objectivo de «transição para o socialismo»;

() Salvo em alguns parágrafos do preâmbulo, no art. 7.” e no art. 46.”, n.” 4. (2) A expressão «sociedade livre, justa e solidária» reproduz a do art. 3.”-i da Constituição brasileira.

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f’e /—O Estado e os sistemas constitucionais 385

— No art. 5.°, a supressão do número respeitante a Macau, transplantado para «Disposições Finais e Transitórias» (art. 292.”, n.” l);

— No art. 7.”, o aditamento de um preceito relativo à participação de Portugal na integração europeia;

— No art. 9.”, a referência ao ordenamento do território [alínea e)] e, sobretudo, a assunção como tarefa fundamental do Estado de «assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa» [alínea f)] e, ainda, a eliminação da «socialização dos principais meios de produção» [alínea d)}.

VI — Na parte i, a revisão traduziu-se em:

— A possibilidade de a lei atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral para a eleição dos titulares de órgãos das autarquias locais (art. 15.”, n.” 4);

— A previsão de um direito ao patrocínio judiciário (art. 20.”, n.” 2);

— A consagração do direito à palavra entre os direitos pessoais (art. 26.”, n.” 21);

— A prescrição da necessária informação dos cidadãos privados da liberdade acerca dos seus direitos (art. 27.”, n.” 4);

— A referência expícita à preservação dos direitos fundamentais das pessoas condenadas a penas ou a medidas de segurança privativas da liberdade (art. 30.”, n.” 5);

— O fim do monopólio estatal da televisão (art. 38.”, n.” 7);

— A substituição do Conselho de Comunicação Social por uma Alta Autoridade para a Comunicação Social, com composição diferenciada e com competências também no sector privado (art. 39.”);

— A atribuição de direito de antena a organizações representativas de actividades económicas (art. 40.”, n.” l);

— A possibilidade de apreciação pelo Plenário de petições colectivas endereçadas à Assembleia da República (art. 52.”, n.” 2);

— A institucionalização da concertação social [arts. 56.”, n.” 2, alínea (, e 95.°, n.” l];

— A inserção sistemática dos direitos dos consumidores no âmbito dos direitos fundamentais, e não já no da organização económica (art. 60.”);

— A garantia de que todo o tempo de trabalho contribuirá para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector em que tenha sido prestado (art. 63.”, n.” 5);

— A passagem do serviço nacional de saúde de gratuito a tendencialmente gratuito [art. 64.”, n.” 2, alínea a)];

— A proibição do trabalho de menores em idade escolar (art. 74.”, n.” 4);

25 — Man. Dir. Const.,

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386Manal de Direito Constitcional

— A eliminação da referência a trabalhadores no regime de acesso à Universidade (art. 76.°, n.” l).

VII — No tocante à parte n, observam se:

— A integração num «sector cooperativo e social», a par do sector cooperativo, dos meios de produção possuídos e geridos por comunidades locais e dos meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores [arts. 80.”, alínea b), e 82.”, n.” 4];

— A consideração da apropriação colectiva de meios de produção e solos, de acordo com o interesse público, e não já da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos [art. 80.”, alínea c)];

— A substituição, ainda entre os princípios fundamentais da organização económica, do «desenvolvimento da propriedade social» pela «protecção do sector cooperativo e social» [art. 80.”, alínea e)] e a consagração, doravante, apenas da participação efectiva de trabalhadores na gestão das unidades de produção do sector público (art. 90.”) (l);

— A eliminação das referências a nacionalizações e a reforma agrária nas incumbências do Estado [art. 81.°, alíneas e) e h)], e mesmo das referências a reforma agrária em sede de política agrícola (arts. 96.” e segs.);

— A introdução de um preceito sobre domínio público (art. 84.”);

— A possibilidade de reprivatização dos meios de produção e de outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974, nos termos de «lei-quadro» aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções e observados certos critérios pré-estabelecidos (arts. 85.” e 296.”);

— A regra da prévia decisão judicial para a intervenção do Estado na gestão de empresas privadas (art. 87.”, n.” 2);

— A substituição do conceito de Plano pelo de planos de desenvolvimento económico e social e a redução do seu tratamento constitucional (arts. 91.” e segs.);

— A substituição do Conselho Nacional de Plano por um Conselho Económico e Social, órgão de consulta e concertação no domínio da política económica e social (art. 95.”);

— A consagração expressa do direito de reserva (art. 97.”, n.” l) e, sobretudo, a possibilidade de as torras expropriados serem entregues a título

(i) O que parece impedir a cogestão nas empresas privadas, salvo quanto às obras sociais [art. 54.”, n.” 5, alínea e)}; aí só é possível o controlo de gestão [art. 54.”, n.” 5, alínea b)}, porque mais do que isso afectaria a liberdade da empresa (arts. 61.°, n.” l, e 87.”).

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Parte —O Estado e os sistemas constitucionais 387

de propriedade, sem prejuízo da estipulação de um período probatório da efectividade e da racionalidade da respectiva exploração antes da outorga da propriedade plena (art. 97.”, n.” 2);

— A introdução de um preceito sobre política industrial (art. 103.°);

— O aperfeiçoamento das normas da Constituição orçamental (arts. 108.”, 109.° e 110.”).

VIII — Na parte m, as alterações realizadas foram, nomeadamente:

— A atribuição de valor reforçado às «leis orgânicas» (art. 115.”, n.” 2) ou leis sobre as matérias das alíneas a) a e) do art. 167.” — eleições de titulares de órgãos de soberania, referendo Tribunal Constitucional, defesa nacional e Forças Armadas e estado de sítio e estado de emergência (art. 169.°, n. 2);

— A aplicação às assembleias legislativas regionais (nome das assembleias das regiões autónomas) das regras fundamentais de garantia da oposição na Assembeia da República (arts. 117.”, n.” 3, e 234.”, n.” 3);

— A possibilidade de realização de referendos nacionais vinculativos por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, nos casos e nos termos — bastante restritivos

— previstos na Constituição e na lei (arts. 118.” e 170.”);

— A consagração constitucional de um órgão internacional, o Parlamento Europeu [arts. 136.”, alínea b), e 139.°, n.” 3, aínea c)];

— A diminuição do número de Deputados à Assembleia da República

— para entre 230 e 235 (art. 151.”);

—A possibilidade de existência de um círculo nacional (art. 152.”, n.” l, in fine);

— A possibilidade de autorizações legislativas da Assembleia da República às assembleias legislativas regionais em matérias de interesse específico das regiões e para efeito, aí, de não observância das leis gerais da República [arts. 164.”, alínea, e 229.”, n.” l, alínea b), e n. 2, 3 e 4];

— A consagração das especialidades das autorizações legislativas orçamentais em matéria tributária (art. 168.”, n.” 5);

— A exigência de maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções para a aprovação das leis orgânicas (art. 171.”, n. 5) e da maioria de dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absouta dos Deputados em efectividade de funções, para a aprovação das disposições de eis relativas a círculos eleitorais (art. 171.”, n.” 6);

— A diminuição do alcance do instituto da ratificação de decretos-

leis, por só poder haver agora suspensão de decretos-leis autorizados e se preverem prazos de caducidade da suspensão ou do processo (art. 172.”, n.0 2, 3 e 5);

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388Manual de Direito Constitciona

— A necessidade, e não só a mera possibilidade, de existência de tribunais administrativos e fiscais [arts. 211.”, n.” l, alínea b), e 214.”], com o correspondente conselho superior (arts. 218.”, n.” 4, e 222.”, n.” 2);

— A possibilidade de os juizes do Tribunal Constitucional a escolher dentre os juizes dos restantes tribunais serem todos designados pela Assembleia da República (art. 224.°, n.” 2);

— A previsão de recurso para o pleno do Tribunal Constitucional das decisões contraditórias das secções no domínio da aplicação da mesma norma (art. 226.”, n.” 3);

— O poder das assembleias legislativas regionais de desenvoverem leis de bases [art. 229.”, n.” l, alínea c)];

— A faculdade de as regiões autónomas estabeleceram cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participarem em «organizações que tenham por objecto fomentar o diáogo e a cooperação inter-regional, de acordo com as orientações dos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa» [art. 229.”, n.” l, alínea t)];

— A substituição da expressão «organizações populares de base» pela expressão «organizações de moradores» [arts. 168.°, n.” l, alínea /, 248.”,263.”, 265.° e 267.”, n.” l];

— O direito de acesso dos cidadãos aos arquivos e registos administrativos (art. 268.”, n.” 2) e a fixação legal de prazos máximos de resposta por parte da Administração (art. 268.°, n.” 6);

— O alargamento do direito de acesso dos cidadãos aos meios contenciosos (art. 268.”, n.0 4 e 5);

— O respeito pelas convenções internacionais como limite da defesa nacional (art. 273.”, n.” 2).

IX — Na parte iv, registam-se:

— A atribuição ao Primeiro-Ministro e a um quinto dos Deputados à Assembleia da República em efectividade de funções do poder de iniciativa da fiscalização preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante do decreto a promulgar como lei orgânica (art. 278.”, n.0 4 e 5);

— A atribuição ao Tribunal Constitucional de competência para conhecer da legalidade de norma constante de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado [arts. 280.”, n.” 2, alínea a), e 281.”, n.” l, alínea b)];

— A substituição nos limites materiais expressos de revisão constitucional (agora, art. 288.”), do «princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e latifúndios» pela «coexistência dos sectores público, privado e cooperativo e social da propriedade dos meios de pro-

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*

Parte I—O Estado e os sisemas constitucionais 389

dução» [alínea/)] e da «planificação democrática da economia» pela «existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista» [alínea g)};

— A exclusão desse elenco de limites materiais da «participação das organizações populares de base no exercício do poder local» [anterior alínea].

X — Finalmente, nas disposições finais e transitórias, anotem-se:

— A possibilidade de o Governador de Macau, ouvida a Assembleia Legislativa, propor alterações ao estatuto do território (art. 292.”, n.” 3);

— A previsão de uma organização judicial própria de Macau (art. 292.”, n.” 5);

— A referência a «autodeterminação e independência» de Timor, e não só a «independência» (art. 293.”) ().

137. A terceira revisão constitucional

I — A assinatura em 7 de Fevereiro de 1992, em Maastricht, de um tratado institutivo de uma «União Europeia» conduziria a uma terceira revisão da Constituição de 1976, tendo em conta a desconformidade de algumas das suas cláusulas com normas constitucionais.

Viria a ser uma revisão paralela à operada noutros países comunitários (com relevo para a França e para a Alemanha) e, diferentemente das anteriores, só afectando muito poucos artigos (conquanto não pouco importantes). Sem ela não seria possível ratificar o tratado (2).

II — O processo foi desencadeado ao abrigo do art. 282.°, n.° 4 (por ainda não terem decorrido cinco anos sobre a anterior revisão):

a Assembleia da República por quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções assumiu poderes de revisão (3).

() Sobre os resultados da revisão, cfr. JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional. Lisboa, 1989; o n.” 12, Outono de 1989, de Risco; JORGE MIRANDA, A Constiuição e as suas revisões, in Brotéria, Dezembro de 1989, pãgs. 490 e segs.

(2) Cfr. o nosso artigo O traado de Maastricht e a Constituição portuguesa, in Brotéria, 1993, págs. 363 e segs., e o n. 12, de 1992, da Revue française de droit constitutionnel.

(3) Resolução n.” 18/92, de 12 de Junho. V. o debate in Diário, vi legislatura,1.° sessão legislativa, l. série, n.” 67, reunião de 22 de Maio de 1992, págs. 2186

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390Manual de Direito Constitucional

Foram apresentados seis projectos de revisão: por Deputados do Partido Social-Democrata, do Partido Socialista, do Partido Comunista Português, do Centro Democrático Social e do Partido de Solidariedade Nacional e pelo Deputado independente Mário Tomé ().

Também quase de seguida foi criada — à semelhança do que ocorrera com as duas anteriores revisões constitucionais — uma comissão eventua para o estudo das alterações propostas e para a preparação de um texto de síntese susceptível de obter a maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções exigida para a aprovação pelo Plenário (art. 286.°, n.° l, da Constituição).

A comissão efectuaria quinze reuniões de Setembro a Novembro. Como nota interessante assinale-se que, pela primeira vez em processos de revisão constitucional, a comissão solicitou a colaboração de especialistas para se pronunciarem sobre as questões jurídicas (ou jurídico-políticas) suscitadas pelo confronto entre a Constituição e o Tratado e sobre as soluções para elas advogadas pêlos partidos (2). Entretanto, tal como em 1989, à margem da comissão houve conversações entre os dirigentes dos dois principais partidos e deles sairia um acordo que, depois, a comissão e o Plenário viriam a formalizar.

Finalmente em 17 de Novembro de 1992, foram votadas as alterações e elas dariam origem à Lei Constitucional n.” l/vi, de 25 de Novembro. Voltou a fazer-se votação final global (3) (4).

e segs.; n.” 68, reunião de 26 de Maio de 1992, págs. 2226 e segs.; e n.” 75, reunião de11 de Junho de 1992, págs. 2460 e segs.

Alguns dias antes, a comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias emitira, por unanimidade, um parecer no sentido da necessidade de revisão: v. Diário, vi legislatura, l. sessão legislativa, 2.” série-A, n.” 42, págs. 807-808.

() V os textos em conjunto, na separata n.” 12/vi do Diário da Assembleia da República, de 9 de Outubro de 1992.

(2) As actas das reuniões da comissão estão todas publicadas no Diário da Assembleia da República, 2. série, n.0 l a 15-RC. Nós próprios inteemos na reunião de 15 de Outubro de 1992 (v. n.” 8-C).

(3) Votaram a favor os Deputados do PSD e do PS, contra os do PCP, do CDS, do Partido «Os Verdes» e dois Deputados independentes e absteve-se o Deputado do Partido de Solidariedade Nacional.

Como se verifica, a aprovação da Constituição e as três revisões constitucionais fizeram-se sempre com os votos favoráveis dos Deputados dos dois maiores par-

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 391

In — A revisão consistiu no seguinte:

a) No art. 7.° da Constituição (sobre relações internacionais), aditou-se um n.° 6, dizendo: «Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização do princípio da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia»;

b) No art. 15.°, consagrou-se a possibilidade de atribuição, em condições de reciprocidade, de capacidade eleitoral a cidadãos de países membros da União Europeia residentes em Portugal na eleição de Deputados por Portugal ao Parlamento Europeu;

c) Alterou-se o art. 105.° (sobre o Banco de Portugal) para permitir a adopção da eventual moeda única europeia;

d) O art. 166.° passou a prever a competência do Parlamento para «acompanhar e apreciar» a participação de Portugal no processo de união europeia;

e) O art. 200.° contém agora a obrigação do Governo de prestar ao Parlamento, em tempo útil, as informações necessárias para esse efeito;

f) No art. 284.°, passou a distinguir-se entre revisão constitucional ordinária e revisão constitucional extraordinária — aquela efectuada ao fim de cinco ou mais anos após a última revisão ordinária e esta podendo realizar-se a todo o

tidos, também os partidos centrais do sistema. Mas desta vez não estiveram acompanhados de Deputados de nenhum outro partido.

(4) Questão muito discutida em 1992 foi a de saber se, à semelhança de outros países, devia ou não haver referendo sobre as alterações à Constituição ou sobre o próprio tratado de Maastricht.

Apesar de uma larga corrente de opinião o defender e de ele constar (aliás, em termos diversos) de alguns dos projectos de revisão, não foi viabilizado.

De todo o modo, para tal, teria de ser, primeiro, modificado o art. 118.” (atrás considerado) e, depois, a Assembleia teria de assumir, de novo, poderes de revisão já com a virtualidade de subsequente realização de referendo.

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tempo por assunção de poderes de revisão por quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções ().

138. A quarta revisão constitucional

I — Qualquer Constituição é sempre susceptível de correcções e aperfeiçoamentos e em qualquer altura pode tomar-se necessário ou conveniente proceder a alterações em resposta a novos problemas. Menos adequada parece a frequência de revisões globais, pela insegurança política e jurídica que provocam.

Em 1989 tinha-se declarado finda a «querela constitucional» em Portugal (2) e, por isso, seria de esperar que se entrasse num período de estabilidade e acalmia, confíando-se à jurisprudência constitucional (aliás, rica e valiosa) e à própria prática dos órgãos políticos a obra de adequação e reconformação das normas. Não sucederia, porém, assim.

Logo em 1994, menos de 2 anos após a revisão de 1992, seria desencadeado um novo processo (que não se consumaria por divergências procedimentais e pelo termo da legislatura em Outubro de 1995). E, imediatamente a seguir, em 26 de Janeiro de 1996 (3), outra vez viria a ser aberta a revisão com a entrega de um primeiro projecto — a que se juntariam mais dez: em conjunto incidiriam sobre 236 dos 298 artigos da Constituição, em nome, principalmente, ou da reforma do sistema político ou da descarga semântica da Constituição (4). Daí a Lei Constitucional n.° 1/97, de 20 de Setembro.

() Cfr. GIOVANNI VAGLI, Sulla tera revisione coslituvonale delia 2.” Repubblica Portoghese, Pisa, 1994.

(2) V. o comunicado da reunião do Conseho de Ministros de 17 de Agosto de 1989, relativo à segunda reviso constitucional e congratulando-se com se ter dotado o país de «uma Constituição de matriz europeia, a qual seja um traço de união entre os Portugueses e não, como até agora, factor de querela política ou instrumento de bloqueamento da sociedade portuguesa».

(3) Antes disso, em 31 de Outubro de 1995, fora apresentado um projecto de resolução (n.” 1/vn, de iniciativa de Deputados do Partido Comunista Português), tendente a uma revisão constitucional extraordinária para se alterar o regime do referendo em face da revisão do Tratado de Maastricht (v. Diário da Assembleia da República, 2.” série-A, n.” 2, de 8 de Novembro).

(4) Projectos de revisão n.” 1/v, de Deputados do Partido Popular; n.” 2/vn, dos Deputados Pedro Passos Coelho e outros; n.” 3/vn, de Deputados do Partido

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 393

II — Como a última lei de revisão constitucional fora publicada em 25 de Novembro de 1992, só a partir de 25 de Novembro de 1997 poderia começar uma nova revisão constitucional, a não ser que, antes, a Assembleia assumisse poder de revisão por maioria de quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções (art. 284.°, n.° 2). Não se tendo autoqualificado tal lei como de revisão extraordinária, a distinção a partir de então estabelecida entre revisão ordinária e extraordinária só poderia valer para o futuro ().

Esta tese não prevaleceu, por, aparentemente, o Parlamento e o seu Presidente entenderem que fora outra a vontade, expressa ou implícita, do legislador da revisão de 1992. E o problema nunca chegaria a ser suscitado e discutido nessa sede.

In — Como nas anteriores revisões, foi constituída uma comissão eventual que trabalhou durante largos meses (2) e que — em interessante novidade — recebeu para audição os subscritores das petições (também em número de 11) apresentadas por cidadãos e grupos de cidadãos.

Socialista; n.” 4vn, de Deputados do Partido Comunista; n.” 5/vn, de Deputados do Partido Social-Democrata; n.” 6/vn, dos Deputados Guilherme Silva e outros; n.” 7/vn, dos Deputados António Trindade e Isabel Sena Lino; n.” 8/vn, dos Deputados Cláudio Monteiro e outros; n.” 9/vn, dos Deputados Arménio Santos e outros; n.” IO/vil, de Deputados do Partido «Os Verdes»; n.” 11/vn, do Deputado João Corregedor da Fonseca.

Os projectos estão reunidos na separata n.” 6/vn do Diário da Assembleia da República de 8 de Abril de 1996.

() Foi a opinião que sempre sustentámos: Sobre as propostas do PS de revisão constitucional, in Dirio de Notícias de 25 de Maio de 1994; O Tratado de Maastricht e a Constituição Portguesa, in A União Europeia na Encruilhada, obra colectiva, Coimbra, 1996, pág. 62; Manual..., I, 5. ed., 1996, cit., pág. 392. E também Lus NOGUEIRA DE BRITO, Sobre o poder de revisão: o problema da auto-revisão constitucional, policopiado, Lisboa, 1995, págs. 255 e segs., nota.

Contra, ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e MÁRIO JOO FERNANDES, A Constituição fechada e seus amigos, in Revista Jurídica, Dezembro de 1995-Janeiro de 1996, págs. 245 e segs.

(2) A Comissão tomou como base do seu regimento o adoptado pela homóloga comissão da frustrada revisão de 1994 (v. Diário, 2. série, n.” 1-RC, de 7 de Maio de 1996), embora, insolitamente, tenha deliberado que as sugestões de alteração ao Plenário fossem tomadas nos termos gerais — quer dizer, sem ser por maioria de dois terços (v. acta n.” 7-RC, de 4 de Junho de 1996).

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394Manual de Direito Constitucional

Tal como em 1989 e em 1992 celebrou-se um acordo, predefinidor do essencial da revisão, entre os dois partidos centrais e maioritários, o Partido Socialista e o Partido Social-Democrata (i). Mas o acordo teve a particularidade (o que nem tinha ocorrido em 1975 e em 1976, com os Pactos entre os partidos e o Movimento das Forças Armadas) de ser acompanhado de um texto articulado.

Após a discussão e a votação pelo Plenário em Julho de 1997, em 3 de Setembro dar-se-ia a votação final global (2).

IV — Em síntese, a quarta revisão constitucional traduziu-se em:

a) Desenvolvimento da matéria dos direitos fundamentais e das correspondentes incumbências do Estado;

b) Relativa acentuação do papel da iniciativa privada dentro da organização económica;

c) Desconstitucionalização de vários aspectos do sistema político (colégio eleitoral do Presidente da República, composição e sistema eleitoral da Assembleia da República, órgãos executivos locais, regiões administrativas);

d) Reforço de mecanismos de participação dos cidadãos (participação no planeamento urbanístico, referendos nacionais, regionais e locais, iniciativa popular, possibilidade de círculos uninominais, candidaturas independentes às eleições locais);

e) Desenvolvimento dos poderes das regiões autónomas (no plano legislativo, tributário, administrativo e europeu), bem como das autarquias locais;

f) Aumento dos poderes formais da Assembleia da República e aumento do número de matérias que exigem maioria qualificada de aprovação;

g) Reforço do Tribunal Constitucional (com novas competências relativas aos partidos e às assembleias políticas e maiores garantias de independência dos juizes).

() Assinado pêlos presidentes dos respectivos grupos parlamentares, apesar de as deliberações determinantes terem sido as das comissões políticas dos dois partidos.

(2) Votaram a favor os Deputados do Partido Socialista (na sua grande maioria) e do Partido Social-Democrata; contra os Deputados do Partido Popular, do Partido Comunista Português e do Partido «Os Verdes» e l Deputado do Partido Socialista; e houve algumas abstenções de Deputados do Partido Socialista.

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f

Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 395

V — Nos «princípios fundamentais» refiram-se:

— Aditamento da referência à separação e à interdependência dos poderes na definição do Estado de Direito democrático (art. 2.”);

— Afirmação da sujeição também de quaisquer entidades públicas à Constituição (art. 3.”, n.” 3);

— Proclamação do princípio da subsidiariedade e do regime autonômico insular como elementos a respeitar pelo Estado unitário (art. 6.”, n.” l) e menção do carácter periférico dos Açores e da Madeira [art. 9.”, alínea g)];

— Referência a «direitos ambientais» [art. 9.”, alínea d)];

— Consideração, entre as tarefas fundamentais, da promoção da igualdade entre homens e mulheres [art. 9.”, alínea h)];

— Alusão ao referendo entre as formas de exercício do poder político pelo povo (art. 10.”, n.” l) e à unidade do Estado entre os limites de actuação dos partidos (art. 10.”, n.” 2).

VI — No domínio dos direitos fundamentais, avultam:

— Consagração do direito de qualquer cidadão a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade (art. 20.”, n.” 2);

— Consagração do segredo de justiça (art. 20.”, n.” 3);

— Explicitação do princípio da decisão jurisdicional em prazo razoável (art. 20.”, n.” 4);

— Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, criação por lei de procedimentos judiciais caracterizados por celeridade e prioridade (art. 20.”, n.” 5);

— Consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade (art 26.”, n.” l) e da garantia de identidade genética do ser humano (art. 26.”, n.” 3);

— Constitucionalização da possibilidade de detenção de suspeitos para efeito de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários [art. 27.”, n. 3, alínea g)];

— Dependência do internamento em estabelecimento terapêutico, por anomalia psíquica, de intervenção judicial [art. 27.”, n.” 3, alínea h)];

— Afirmação da natureza excepcional da prisão preventiva (art. 28.”, n.” 2);

— Admissibilidade, nos termos da lei e assegurados os direitos de defesa, de dispensa da presença do arguido em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento (art. 32.”, n.” 6);

— Admissibilidade de extradição de portugueses em caso de terrorismo e de criminalidade internacional organizada (art. 33.”, n.” 3) e admissibilidade de extradição em caso de pena ou de medida de segurança com carácter perpétuo, embora apenas quando haja garantia de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada (art. 33.”, n.” 5);

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396Manal de Direito Constitucional

— Sujeição também das infracções no exercício da liberdade de expressão e de informação aos princípios gerais do ilícito de mera ordenação social (art. 37.”, n.” 3);

— Algumas alterações na composição da Alta Autoridade para a Comunicação Social (art. 39.”);

— Atribuição de direito de antena às organizações sociais de âmbito nacional (art. 40.”, n.” l) e extensão aos partidos representados nas assembleias legislativas regionais do regime do direito de antena e de réplica política dos partidos representados na Assembleia da República (art. 40.”, n.” 2);

— Proibição de organizações racistas (art. 46.”, n.” 4);

— Prescrição de princípios de democraticidade interna e de publicidade do patrimíónio e das contas dos partidos políticos (art. 51.”, n.” 6) e possibilidade de impugnação de eleições e deliberações dos seus órgãos perante o Tribunal Constitucional [art. 223.”, n. 2, alínea h)}

— Explicitação do direito de acção popular (verdadeira e própria) para defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais [art. 52.”, n.” 3, alínea b)};

— Constitucionalização da regra da prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e à manutenção de equipamentos e instalação, bem como de serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (art. 57.”, n.” 3);

— Referência à conciliação da actividade profissional com a vida familiar [art. 59.”, n.” l, alínea b)} e atribuição às mães e aos pais de direitos de dispensa de trabalho por período adequado (art. 68.”, n.” 4);

— Constitucionalização de garantias especiais dos salários (art. 59.”, n.” 3);

— Previsão de políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência [art. 64.”, n.” 3, alínea y)];

— Garantia de participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território (art. 65.”, n.” 5);

— Incumbência do Estado de, em colaboração com as autarquias locais, promover a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas [art. 66.”, n.” 2, alínea e)};

— Incumbência de proteger e valorizar a linguagem gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e de igualdade de oportunidades [art. 74.”, n. 2, alínea b)};

— Incumbência de assegurar aos filhos de imigrantes apoio adequado para efectivação do direito ao ensino [art. 74.°, n.” 2, alínea j)];

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 397

— A avaiação da qualidade de ensino como limite à autonomia universitária (art. 76.”, n.” 2).

VII — Quanto à organização económica, indiquem-se:

— Inserção, entre os princípios fundamentais, da liberdade de iniciativa e de organização empresarial e da participação das organizações representativas das actividades económicas na definição das principais medidas económicas e sociais [art. 80.”, alíneas c) e g)];

— Constitucionalização das políticas da água e das florestas [arts. 81.”, alínea m), e 93.”, n.” 2)];

— Inclusão, no sector cooperativo e social, dos meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas sem carácter lucrativo que tenham por principa objectivo a solidariedade social [art. 82.”, n.” 4, alínea d)];

— Transferência para disposições finais e transitórias do preceito sobre reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 (art. 296.”);

— Em vez de necessidade, faculdade de a lei definir os sectores básicos nos quais seja vedada a actividade às empresas privadas (art. 86.”, n.” 3);

— Eliminação da referência a planos de médio prazo e anual e da conexão deste com o orçamento (anterior art. 92.”);

— Exercício das funções do Banco de Portugal também nos termos de normas internacionais (art. 102.”);

— Proibição de impostos retroactivos (art. 103.”, n.” 3);

— Referência a tributação do património em vez de referência a imposto sobre sucessões e doações (art. 104.”, n.” 3);

— Previsão das transferências de verbas para as autarquias locais aquando da elaboração da proposta de orçamento [art. 106.”, n.” 3, alínea)] e atribuição às autarquias locais de poderes tributários nos termos da lei (art. 238.”, n.” 4).

VIII — Na organização do poder político mencionem-se:

— Referência a homens e mulheres a propósito da participação política dos cidadãos (art. 109.”);

— Limitação temporal dos mandatos do Provedor de Justiça (art. 23.”, n.” 3), do Presidente do Tribunal de Contas (art. 214.”, n.” 2), do Procurador-Geral da República (art. 220.”, n.” 3) e dos Ministros da República para as regiões autónomas (art. 230.”, n.” 2);

— Possibilidade de referendo por iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da Repúbica (art. 115.”, n.” 2);

— Admissibilidade de referendo sobre quaisquer convenções internacionais, excepto as relativas à paz e à rectificação de fronteiras (art 112.”, n.” 5);

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— Dependência do efeito vinculativo do referendo de votação por mais de metade dos eleitores inscritos (art. 115.”, n.” 11);

— Atribuição de direito de voto nos referendos nacionais a cidadãos residentes no estrangeiro quando eles recaiam sobre matéria que lhes digam também especificamente respeito (art. 115.”, n.” 12) e ficando a cargo do Tribunal Constitucional a apreciação dos respectivos requisitos [art. 223.”, n.°2, alínea f)};

— Atribuição, no termo da lei, de direito de voto na eleição do Presidente da República aos cidadãos residentes no estrangeiro com laços de efectiva ligação à comunidade nacional (art. 122.”, n.” 2); e, desde já, aos inscritos nos cadernos eleitorais para a Assembleia da República em 31 de Dezembro de 1996 (art. 297.”);

— Atribuição ao Presidente da República do poder de dirigir mensagens às assembleias legislativas regionais [art. 133.”, aínea d)};

— Redução do número de Deputados de entre duzentos e trinta e duzentos e trinta e cinco para entre cento e oitenta e duzentos e trinta (art. 148.”);

— Alteração do preceito concernente ao sistema eleitoral, passando a dizer-se que os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos (art. 149.”, n.” l);

— Atribuição à Assembleia da República de competência reservada de aprovação de todos os tratados, assim como de competência para aprovar não só os acordos em forma simplificada sobre matéria de sua competência legislativa reservada mas também os acordos que o Governo entenda submeter à sua apreciação [art. 161.”, alínea i)];

— Atribuição à Assembleia do poder de se pronunciar, nos termos da lei, sobre as matérias pendentes de decisão em órgãos da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada [art. 161.”, alínea n)];

— Atribuição ainda do poder de acompanhar, nos termos da lei e do regimento, o envolvimento de contingentes militares portugueses no estrangeiro [art. 163.”, alínea j)];

— Antecipação do início da sessão legislativa para 15 de Setembro (art. 174.”, n.” l);

— Atribuição aos grupos parlamentares do poder de, a par do Governo, solicitarem prioridade, na fixação da ordem do dia, para assuntos de interesse nacional de resolução urgente (art. 176.”, n.” 2);

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v

Parte l — O Estado e os sistemas consiuconais 399

— Consagração de «direitos e gerantias mínimas» dos Deputados não integrados em grupos parlamentares (art. 180.”, n.” 4);

— Introdução de um preceito sobre imunidades dos advogados e patrocínio forense (art. 208.”);

— Inexistência de tribunais militares, salvo em estado de guerra e para crimes de natureza estritamente militar (arts. 209” e 213.”);

— Desnecessidade de um dos vogais do Conselho Superior da Magistratura nomeados pelo Presidente da República ser juiz [art. 218.”, n.” l, alínea a)];

— Aumento para nove anos do mandato dos juizes do Tribunal Constitucional e impossibilidade de renovação (art. 222.”, n.” 3);

— Atribuição ao Tribunal Constitucional do poder de julgar, a requerimento de Deputados, os recursos relativos à perda do mandato e às eleições realizadas na Assembeia da República e nas assembleias legislativas regionais [art. 223.”, n.” 2, alínea g)]’,

— Atribuição às regiões autónomas também das receitas fiscais nelas geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional [art. 227.”, n.” l, alínea j)]’,

— Explicitação do poder de as regiões autónomas de, em matérias de interesse específico, se pronunciarem sobre a definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia e de participarem em delegações envolvidas em processos de decisão comunitária [art. 227.”, n.” l, alíneas v) e x)];

— Redução das funções administrativas dos Ministros da República à superintendência, mediante delegação do Governo e de forma não permanente, nos serviços do Estado nas regiões (art. 230.”, n.” 3);

— Reserva aos governos regionais das matérias respeitantes à sua própria organização e ao seu funcionamento (art. 231.”, n.” 5);

— Criação de referendos vinculativos regionais, a realizar, por decisão do Presidente da República sob proposta das assembleias legislativas regionais, acerca de questões de relevante interesse específico regional (art. 232.”, n.” 2);

— Alargamento das polícias municipais à manutenção da tranquilidade pública e à protecção das comunidades locais (art. 237.”, n.” 3);

— Modificação do sistema de órgãos executivos locais, passando o presidente a ser o primeiro candidato da lista mais votada ou para a assembleia correspondente ou para o executivo, de acordo com a solução a adoptar pela ei (art. 239.”, n.” 3);

— Explicitação da possibiidade de candidaturas por grupos de cidadãos eleitores para todos os órgãos das autarquias locais (art. 239.”, n.” 4);

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400Manual de Direito Constitucional

— Possibilidade de constituição de associações de freguesia (art. 147.”) e de a ei conferir atribuições e competências próprias às associações e federações de municípios (art. 253.”);

— Dependência de referendo da instituição em concreto das regiões administrativas (art. 256.”);

— Consagração geral dos órgãos administrativos independentes (art. 267.”, n.” 3);

— Clarificação e aperfeiçoamento, em sentido subjectivista, da norma sobre garantias contenciosas dos administrados (art. 268.”, n.” 4) e constitu ionalização do direito de impugnação de normas administrativas lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268.”, n.” 5);

— Previsão das tarefas das Forças Armadas de satisfação de compromissos internacionais do Estado no âmbito militar, de participação em operações humanitárias e de paz e de cooperação técnico-militar (art. 275.”, n.0 5 e 6);

— Desconstitucionalização do serviço militar obrigatório (art. 276.”, n.” 2).

IX — Em especial, no que taftge aos actos legislativos, a revisão trouxe:

— Consideração como tendo valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que careçam de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas (art. 112.”, n.” 3);

— Respeito pêlos decretos legislativos regionais, não já das leis gerais da República, mas sim dos princípios fundamentais das leis gerais da República [arts. 112.”, n.” 4, e 227.”, n.” l, aínea a)];

— Prescrição de que só são leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e que assim o decretem (art. 112.”, n.” 5);

— Apresentação de um elenco de matérias de interesse exclusivo das regiões autónomas, a título enunciativo, embora acompanhado de uma cláusula geral (novo art. 228.”);

— Transposição das directivas comunitárias por lei ou por decreto-ei (art. 112.”, n.” 9), vedando-se, pois, aqui a intervenção das assembleias legislativas regionais (que antes era possível);

— Necessidade de as propostas de referendo da Assembleia da República ou do Governo versarem sobre matérias da sua competência (art. 115.”, n.” l), o que, porém, já deveria ter-se por evidente;

— Alargamento das reservas absoluta e relativa de competência legislativa do Parlamento, incluindo-se, na primeira, o regime de designação

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• l

Parte l—O Estado e os sistemas constitucionais 401

dos titulares de órgãos da União Europeia, excepto da Comissão, o sistema de informações, o segredo de Estado, o regime geral de enquadramento orçamental, os símbolos nacionais, as finanças das regiões autónomas e o regime das forças de segurança (art. 164.”) e, na segunda, o regime geral das taxas e das demais contribuições financeiras e as bases do ordenamento do território e do urbanismo (art. 165.”);

— Ampliação das leis orgânicas, as quais passam a abranger também a cidadania, as associações e os partidos políticos, as eleições das assembleias legislativas regionais, os estatutos dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, o sistema de informações, o segredo de Estado e as finanças regionais (art. 166.”, n.” 2);

— Aprovação por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, do voto dos cidadãos residentes no estrangeiro na eleição presidencial, da composição da Assembleia da República e do sistema de órgãos executivos do poder local (art. 168.”, n.” 6);

— Substituição do termo ratificação de decretos-leis pelo termo apreciação parlamentar de actos legislativos, substituição da referência a dez reuniões plenárias pelo prazo de trinta dias e estabelecimento da prioridade regimental da apreciação [arts. 162.”, alínea c), e 169.”].

X — Não houve nenhumas alterações no sistema de fiscalização da constitucionalidade (para além das que poderão resultar da criação do procedimento célere de defesa de direitos, liberdades e garantias pessoais). Nem no sistema de revisão.

XI — Não cabe aqui emitir um juízo sobre a bondade das soluções políticas da revisão. Não pode, porém, deixar de se apontar a inconstitucionalidade material de que padecem as referentes às leis gerais da República [arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° l, alínea b)} e ao voto de portugueses residentes no estrangeiro na eleição presidencial (arts. 121.° e 297.°) ().

Qualificar como leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e que assim o decretem, quebra a unidade da ordem jurídica e colide com o princípio da unidade do Estado. Apenas por equívoco

(i) Sem esquecer a inconstitucionalidade formal por desrespeito da regra sobre tempo de revisão.26 — Man. Dir. Const.,

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402Manual de Direito Constitucional

se suporia estar aí um corolário da autonomia legislativa regional; bem pelo contrário, o novo inciso lembra o regime das antigas províncias ultramarinas () e do território de Macau (2). E esse princípio é comum a qualquer Estado, unitário ou federal: acaso quando o Congresso dos Estados Unidos ou o Congresso do Brasil fazem leis, têm de estatuir expressamente que vigoram em todas as unidades componentes das respectivas Federações?

Também infringe a unidade do sistema jurídico e do Estado a possibilidade de autorizações legislativas regionais para efeito de derrogação de princípios fundamentais das leis gerais da República [art. 227.°, n.° l, alínea].

Por seu turno, o modo como aparece consignado o voto dos residentes fora do país afecta: a) o princípio da igualdade, por estabelecer uma diferenciação entre os cidadãos já inscritos no recenseamento eleitoral e os ainda não inscritos; b) ainda o princípio da igualdade e também o do sufrágio secreto, por não ser postulado o voto presencial, ao contrário do que acontece com os eleitores residentes no território nacional.

Poder de revisão não é poder constituinte. É poder constituído, subordinado aos princípios fundamentais reveladores da identidade da Constituição (haja ou não uma cláusula de limites materiais como o nosso art. 288.°). Logo, o seu exercício não se acha imune a fiscalização da constitucional idade (3) — no caso português, fiscalização sucessiva, concreta e abstracta, através dos tribunais em geral e do Tribunal Constitucional em especial (arts. 204.° e 280.° e segs.).

XII — Apesar de ter mantido a sistematização e a estrutura básica do texto constitucional, a revisão alterou — muito para lá do que se verificara em 1982 e em 1989 — a numeração da maior parte dos artigos (entre os arts. 92.° e 262.°, incluindo artigos emblemáticos ou de referência), com as desvantagens advenientes para os operadores judicos e para os cidadãos.

()V., por último, base LXXVII da Lei Orgânica do Ultramar de 1972.

(2)Art. 69.” do estatuto, na versão actual.

(3)Cfr. Manual..., n, 3.” ed., Coimbra, 1991, págs. 215 e segs., e autores

citados.

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Parte I—O Estado e os sisemas constitucionais 403

O articulado ficou mais volumoso e programático do que antes, com não poucas redundâncias e repetições e acolhendo normas que ou já se encontravam no Direito ordinário, interno ou internacional, ou que melhor para ele ficariam remetidas. Em contrapartida, algumas das formulações em matéria económica e social ficaram mais abertas e menos comprometidas com conotações ideológicas.

XIII — Será esta a última grande revisão da Constituição de 1976? Tendo em conta as posições dos partidos tudo indica que não: apesar de cada partido alguma coisa ir enxertando no texto, resta-lhe sempre uma maior ou menor insatisfação por aquilo que não consegue obter. Assim como, naturalmente, soluções conjunturais ou sob pressões corporativas se entremostram precárias e efémeras.

Por conseguinte, cada revisão constitucional gera mais e mais revisões.

139. As revisões constitucionais e o sistema de governo

I — A primeira revisão constitucional levou a uma reponderação do sistema de governo em face da extinção do Conselho da Revolução.

Por um lado, as competências do Conselho tinham de ser distribuídas por outros órgãos. E foram-no: as de condicionamento do Presidente da República passaram para o Conselho de Estado e para a Assembleia da República ou, não estando ou não podendo estar esta reunida, para a sua Comissão Permanente (elevada, assim, a órgão constitucional a se); as competências político-militares para o Presidente da República, a Assembleia e o Governo; e as de fiscalização da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.

Por outro lado, se o Presidente da República até então não estava autorizado a dissolver o Parlamento sem a concordância do Conselho da Revolução, agora a dissolução passou a ser livre, salvo parecer não vinculativo do Conselho de Estado e certas restrições circunstanciais: não se quis ou não se pôde fazer do Conselho de Estado um sucessor do Conselho da Revolução. O contraponto disto seria uma cláusula limitativa da faculdade de demissão do Governo, de

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404Manual de Direito Constitcional

modo a atalhar a concentração de poder: ele, doravante, só pode ser demitido quando tal se tome necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (art. 198.°, n.° 2).

Assim, a modificação operada no art. 193.° bem pode entender-se que traduz a conversão de uma regra de dupla responsabilidade política (ou de dupla responsabilidade política integral) em mero princípio geral de relacionamento entre órgãos políticos (ou, doutro prisma, em regra de responsabilidade institucional). O Governo deixa de estar dependente da confiança (ou da não desconfiança política) do Presidente da República, para só ficar dependente da do Parlamento.

E algumas outras alterações confirmam-no: o Governo ca sendo Governo de gestão antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República (art. 189.°, n.° 5, l. parte); aquando desta apreciação, o Goveo pode solicitar a aprovação de um voto de confiança (art. 195.°, n.° 3, 2. parte); o início de nova legislatura, mas não o início de novo mandato presidencial, implica a demissão do Goveo [art. 198.°, n.° l, alínea a)]; e basta a aprovação de uma moção de censura, e não mais de duas, para determinar a demissão [art. 198.°, n.° l, alínea f)] (i).

II — Estas alterações não contendem com a natureza semipresidencial do sistema, já que a dupla responsabilidade política não é seu requisito necessário. O que importa é o Presidente da Repú blica continuar sendo um órgão político activo, apto a tomar decisões autónomas frente ao Parlamento e ao Goveo (2).

() No texto inicial da Constituição, a referência a resultados eleitorais no art. 190.”, n.° l, poderia, porventura, interpretar-se como abrangendo também os resultados da eleição do Presidente da República, por o Goveo ser responsável politicamente também perante ele. Agora, nenhuma dúvida pode haver de que se trata apenas das eleições parlamentares.

(2) Os Autores, na sua maioria, perfilham esta qualicação: CARMELA DE CABOBONELLA, Op. dt., oe. d., pág. 336; ISALTINO MORAIS, JOSÉ MÁRIO FERRERA

DE ALMEIDA e RICARDO LEITE PINTO, op. cit., págs. 84 e segs.; RICARDO LETE PINTO, Democracia política consensual, m Revista da Ordem dos Advogados, 1984, pág. 293;

FRANCISCO LUCAS PIRES, O sistema de governo: sua dinâmica, m Portugal — O sistema político e constitucional, obra colectiva, págs. 295 e segs.; MARCELO REBELO

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Parte l—O Estado e os sisemas constitucionais 405

O sistema português tomou-se em 1982 ainda mais diferente do francês, na medida em que se reforçou a separação entre o Presidente e o Governo, ou entre «presidir» e «exercer o Poder Executivo» — sem embargo de se ter explicitado o dever geral de informação do Governo [art. 204.°, n.° l, alínea c)}’. Em contrapartida, ficaram mais claros os contornos dos poderes institucionais do Presidente — liberto do condicionamento vindo do Conselho da Revolução — em especial os poderes de garantia e de controlo político.

Mas, para se avaliar do exacto peso de um órgão no sistema constitucional, não importa tanto a lista das suas competências quanto a margem de livre decisão de que usufrui no respectivo exercício. E, justamente, vem a ser isso que distingue o Presidente semipresidencia do Presidente parlamentar (insista-se): os seus poderes não são formais;

são-lhe conferidos a título substantivo — umas vezes em termos de pouvoir de statuer, outras vezes em termos de pouvoir d’empêcher.

Como actos com liberdade de impulso ou de iniciativa, não carecidos de referenda ministerial, anotem-se a convocação da Assembleia da República para se ocupar de assuntos específicos [arts. 136.°, alínea c), e 177.°, n.° 4], o requerimento ao Tribunal Constitucional de apreciação, preventiva ou sucessiva, da constitucional idade e da legalidade de normas judicas, bem como da inconstitucional idade por omissão [arts. 137.°, alíneas g) e h), 278.°, 281.° e 283.°], a promulgação de lei confirmada por maioria de dois terços depois de aquele Tribunal se ter pronunciado pela sua inconstitucionalidade (art. 279.°, n.° 2, 2a parte), o veto suspensivo de leis e o veto absoluto de decretos-leis e de decretos regulamentares (art. 139.°); a dissolução da

DE SOUSA, O sistema de governo português, 4. ed., Lisboa, 1992, págs. 103 e segs.;

ANGELO RINELLA, op. cit., págs. 231 e segs.

No sentido de sistema misto parlamentar e presidencial, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, cit., págs. 205 e segs., e Os poderes do Presidente da República, Coimbra, 1991, págs. 9 e segs.

Como sistema parlamentar racionalizado, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O semipresidencialismo..., cit., págs. 53 e segs.; PAULO OTERO, O poder de substituiço..., cit., pág. 792.

De certa maneira como sistema semiparlamentar, CRISTINA QUEIROZ, op. cit., págs. 33 e segs. e 62 e segs., maxime págs. 30-31.

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406Manual de Direito Constitucional

Assembleia da República [arts. 136.°, alínea i), e 175.°] (), quando tal se tome necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, a demissão do Governo [arts. 136.°, alínea g), e 198.°, n.° 2, já citado].

Acrescentem-se, entre os actos com liberdade de recusa (de recusa de propostas provenientes do Governo ou do Parlamento), a nomeação dos Ministros da República para as regiões autónomas, dos Ministros e Secretários de Estado, do presidente do Tribunal de Contas, do Procurador-Geral da República e dos chefes de estado-maior das Forças Armadas [art. 136.°, alíneas l), h), m) e p)} e a convocação de referendo nacional [art. 137.°, alínea c)] (2).

In — A Constituição não exige a aprovação parlamentar do programa do Governo, apenas a sua apreciação; e só ocorrerá votação se até ao termo do debate for proposta uma moção de rejeição (pela oposição) ou uma moção de confiança (pelo Governo). Dispensa-se, pois, a necessidade de formação de Governos maioritários — difícil ou impossível, em certas circunstâncias, devido ao sistema de representação proporcional.

Uma solução como esta faz avultar o papel do Presidente da República, como fiel agora da funcionalidade do sistema no momento constitutivo do Governo quando não haja maioria de partido ou de coligação pré-eleitoral. Todavia, ao contrário do que poderia recear-se (3), daí não resultou — pelo menos, até hoje — a nomeação de «Governos do Presidente» semelhantes aos de determinada fase da Alemanha de Weimar (afastado que estava, à partida, o modelo

() Sublinhe-se este ponto: em sistema parlamentar, a dissolução pode dar-se (ou dá-se mesmo, efectivamente), a pedido do Primeiro-Ministro; no sistema português, tal não acontece, a decisão é só do Presidente e por sua iniciativa.

(2) Na prática, a liberdade de recusa tem sido exercida raramente.

(3) Precisamente, por receio de presidencialização do sistema, e por causa do carácter, na altura, evidentemente conjuntural da solução, contestámo-la, de forma viva, na Assembleia Constituinte: v. Diário, n.0 118 e 128, reuniões de 11 e 29 de Março de 1976, págs. 3917-3918, 4242-4243 e 4247, respectivamente. Hoje, reconhecemos que o temor era infundado e que a fórmula adoptada trouxe mais vantagens do que inconvenientes.

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 407

gauilista, em virtude da separação pretendida e sempre verificada, entre a eleição presidencial e a parlamentar).

140. O funcionamento do sistema de governo

I — Desde 1976 houve cinco eleições presidenciais, três Presidentes eleitos e treze Governos.

O primeiro Presidente, Ramalho Eanes, foi eleito com o apoio do Partido Socialista, do Partido Popular-Democrático — depois denominado Social-Democrata — e do Centro Democrático Social, e reeleito em 1980 com o apoio do Partido Socialista e do Partido Comunista, contra a maioria parlamentar de então, a coligação chamada Aliança Democrática (do Partido Social-Democrata, do Centro Democrático Social e do Partido Popular Monárquico).

O segundo Presidente, Mário Soares, foi eleito em 1986 com o apoio também do Partido Socialista e do Partido Comunista, contra o candidato apoiado pelo Partido Social-Democrata, então no Governo. Seria reeleito em 1991, porém, com o apoio não só do primeiro desses partidos como do Partido Social-Democrata.

O terceiro Presidente, Jorge Sampaio, finalmente, foi eleito em 1996 com o apoio do Partido Socialista (agora no Governo) e do Partido Comunista.

II — Podem registar-se os seguintes dados de facto:

a) Apesar de os partidos não terem o poder jurídico de apresentação de candidaturas, eles sempre têm interferido, e em grau crescente, na eleição presidencial;

b) Nenhum partido só por si conseguiu fazer eleger um Presidente, o que, para além do apoio de outro ou outros partidos, tem realçado a participação individual de cidadãos e permitido ao Presidente, uma vez eleito, agir livre decompromissos partidários;

c) Tem havido extrema variabiidade e sucessíveis mutações nos apoios partidários;

d) As maiorias presidenciais nunca coincidiram com a situação parlamentar — ou por serem mais largas que as bases parlamentares dos Governos (entre 1976 e 1979, entre 1991 e 1996 e, de novo, agora) ou por se verificar oposição ou conflito entre o Presidente e as bases parlamentares do Governo (entre 1979 e 1985 e entre 1986 e 1991);

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408Manual de Direito Consticiona

e) Em suma, tem-se conseguido realizar a intenção dos constituintes de não simultaneidade não só cronológica mas também política entre a eleição presidencial e a parlamentar.

In — Os sucessivos Governos desde 1976 foram:

.” Governo — minoritário do Partido Socialista (1976-1977) e caído por não aprovação de moção de confiança;

2.” Governo — de coligação (não declarada) do Partido Socialista e do Centro Democrático Social (1978) e caído por ruptura da coligação e subsequente demissão pelo Presidente da República;

3.” Governo — de iniciativa presidencial (1978), caído por rejeição do programa;

4.” Governo — de iniciativa presidencial (1978-1979), caído por pedido de demissão do Primeiro-Ministro;

5.” Governo — de iniciativa presidencial (1979), destinado a durar só até eleições;

6.” Governo — maioritário da Aliança Democrática, extinto por morte do Primeiro-Ministro;

7.” Governo — maioritário da mesma coligação (1981) e caído por pedido de demissão do Primeiro-Ministro;

8.” Governo — maioritário da mesma coligação (1981-1983) e caído por pedido de demissão do Primeiro-Ministro;

9.” Governo — maioritário de coligação do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata (1983-1985) e caído por ruptura da coligação;

.” Governo — minoritário do Partido Social-Democrata (1985-1987), caído por aprovação de moção de censura;

. Governo — maioritário do Partido Social-Democrata (1987-1991), correspondente a uma legislatura;

12.” Governo — maioritário do mesmo partido (1991-1995), correspondente a uma legislatura;

13.” Governo — minoritário do Partido Socialista (desde Outubro de 1995), embora próximo da maioria absoluta.

IV — Como se verifica, a versatilidade do sistema permitiu os mais diversos tipos de Governo, nos seguintes moldes:

a) Nenhum Governo se pôde formar ou subsistir senão como emanação ou expressão da situação parlamentar e, salvo um breve período (1978-1979), o Presidente da República limitou-se a nomear Primeiro-Ministro o dirigente político indicado pêlos partidos;

b) Nenhum Governo caiu por acto do Presidente da República, todos caíram por virtude de crises parlamentares ou extraparlamentares;

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Parte I—O Estado e os sistemas constitucionais 409

e, sob este aspecto, pode dizer-se que a revisão de 1982, eliminando a responsabilidade política diante do Presidente, não fez mais do que consagrar uma prática que remontava a 1976-1977;

c) O Presidente reservou, porém, para si a definição do tipo, das condições, das formas e do termo da subsistência dos Governos (numa posição activa, e não meramente declarativa, como seria em sistema paramentar);

d) Formado qualquer Governo, o Presidente, mais preocupado com o equilíbrio político geral, guardou sempre perante ele um maior ou menor distanciamento;

e) Este último ponto, assim como a menor afirmação do Parlamento () (por causas históricas antigas e por dificuldades actuais de funcionamento) têm contribuído para uma efectiva autonomia do Governo frente tanto ao Presidente como à Assembleia e, em caso de Governo maioritário, para a tendência pala uma «governamentalização» do sistema;

f) A par disso, a apresentação desde 1985 de «candidatos a Primeiro-Ministro» pêlos dois principais partidos tem conduzido ao aglutinar de elementos de democracia semidirecta (ou, noutra óptica, plebiscitaria) (2), com elementos de democracia representativa (3).

() com efeito, muitos dos grandes debates políticos não se têm feito no Parlamento; as perguntas orais ao Governo não têm espontaneidade; os Ministros são, na maior parte das vezes, recrutados fora do Parlamento; os chefes de partidos ou não tomam nele assento ou, raramente, participam nas suas actividades.

(2) Cfr. ERNST FRÀNKEL, op. cit., pág. 60.

(3) Sobre a prática do sistema de governo desde 1976, cfr. PEDRO SANTANA LOPES e JOSÉ DURÃO BARROSO, op. cit., págs. 37 e segs.; PÍER LUGI LUCIFREDI, // Presidene delia Repubblica m Portogallo, m II Poltico, 1983, págs. 677 e segs.;

LUÍS SALGADO DE MATOS, Significado e consequência da eleição do presidente por sufrágio universal — o caso português, m Análise Social, n.” 76, 1983, págs. 235 e segs., e O sisema político português e a Comunidade Europeia, ibidem, n. 118-119, 1992, págs. 773 e segs.; ISALTINO MORAIS, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA e RICARDO LEITE PINTO, op. cit., págs. 129 e segs.; JOAQUIM AGUIAR, O pós-salawrismo— 974-1984, Lisboa, 1985, maxime págs. 61 e segs., 118 e 195 e segs., e Partidos, eleições dinâmica política (1975-1991), in Análise Social, n.0 125-126, 1994, págs. 171 e segs.; JORGE MIRANDA, O sistema semipresidencial poruguês entre 1976 e 1979, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1984, págs. 193 e segs., e A eleição do Presidente da República em Portugal, in Polis, 1995, págs. 29 e segs.; JORGE CAMPINOS, Lê cãs portugais; lê Presidem opposé à Ia majorié, in Lês regimes semi-présidentieis, obra colectiva Paris,

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410Manual de Direito Constitucional

V — A integração comunitária de Portuga tem provocado modificações «tácitas» no sistema político no sentido de um maior reforço da posição do Governo ().

Como, sem esquecer o Conselho Europeu, os órgãos directivos da Comunidade ou são formados por Ministros ou designados pêlos Governos (a Comissão) (2), verifica-se aí uma clara predominância do Executivo. E deles são dimanados — ao arrepio do princípio da separação de poderes — os regulamentos e as directivas, com extensão e intensidade cada vez maiores, sendo certo que os regulamentos se aplicam na ordem interna sem interposição de nenhum órgão do Estado e prevalecem sobre as leis (art. 8.”, n.” 3, da Constituição).

Na revisão constitucional de 1992, concedeu-se à Assembleia da República, como se sabe, o poder de «acompanhar e apreciar a participação de Portugal no processo de construção da união europeia» [art. 166.”, alínea g)]. Todavia, esta é uma fórmua demasiado vaga, a que corresponde da parte do Governo tão só um dever de informação [art. 200.”, alínea i)]. Não se previu um poder do Parlamento, semelhante ao que se estabeleceu em França e na Alemanha, de participação na eaboração dos actos normativos comunitários — no mínimo, uma consulta necessária nos actos respeitantes a matérias incluídas na sua reserva de competência legislativa (3).

Tão pouco tem o Presidente da República sido chamado a interferir na política comunitária, ainda que possa entender-se que as suas compe-

1986, págs. 209 e segs.; JOSÉ DURO BARROSO, Lês conflits entre lê Preside portugais et Ia majorité parlementaire de 1979 à 1983. ibidem, págs. 237 e segs.;

ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O semipresidencialismo..., cit., págs. 45 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, A coabitação políica em Portugal, Lisboa, 1987; ADRIANO MOREIRA, O regime: presidencialismo de Primeiro-Ministro, m Portugal — O sisema político e constitucional, págs. 31 e segs.; FRANCISCO LUCAS PIRES, O sistema..., cit., págs. 291 e segs.; DAVID CORKILL, The Polilical System and he Consolidation of Democracy in Portugal, in Parliamentary Affairs, 1993, págs. 517 e segs.; MANUEL BRAGA DA CRUZ, O Presidente da República na génese e evolço do sistema de governo portguês, m Análise Social, n.0 125-126, 1994, págs. 237 e segs.; MARITHERESA FRAIN, Relações entre o Presidente e o Primeiro-Ministro em Portugal— 1985-1995. ibidem, n.” 133, 1995, págs. 653 e segs.

() Assim, MARCELO REBELO DE SOUSA, O sistema..., cit., pág. 109.

(2) O Comissário português tem sido designado pelo Primeiro-Ministro, sem lei de regulamentação.

(3) Seria apenas uma lei ordinária, a Lei n.” 20/94, de 5 de Junho, a prevê-la, e timidamente.

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.

Prte I—O Estado e os sisemas constitucionais 411

tências respeitantes às relações internacionais a devam ou devessem abranger ().

141. O desenvolvimento constitucional

I — A Constituição continua sendo, após quatro revisões, após a entrada de Portugal para a Comunidade Europeia e após tantas transformações registadas no país e no mundo, a mesma Constituição que em 1976 foi decretada pela Assembleia Constituinte — porque uma Constituição consiste, essencialmente, nunca é demais frisar, num conjunto de princípios e menos num conjunto de preceitos (2).

Foram modificados dezenas e dezenas de artigos e houve inflexões, formais ou reais, de sentido, mas permaneceram os princípios cardeais identificadores da Constituição — os princípios sintetizados na ideia de Estado de Direito democrático (preâmbulo e, também a seguir a 1982, arts. 2.° e 9.°).

II — Em primeiro lugar, como acabámos de mostrar, as sensíveis modificações relativas aos órgãos políticos de soberania não destruíram a identidade do sistema de governo; e as restantes alterações sofridas pela parte m — desde o referendo às regiões autónomas e ao poder local — destinaram-se (melhor ou pior) à sua viabilização. Falta, porém, saber se as leis a aprovar na sequência da revisão de 1997 serão inteiramente fiéis aos princípios.

Em segundo lugar, as alterações da parte III, conquanto bem mais profundas, tão pouco excederam o projecto compromissório e pluralista da Constituição económica, tal como sempre o interpretámos. O estatuto da iniciativa privada não apagou o favorecimento da iniciativa cooperativa e a garantia institucional de autogestão (arts. 61.°, 85.°, 94.°, n.° 2, e 97.°). Continuam a ser admitidas a apropriação pública e a planificação [arts. 80.°, alíneas d) e e), 81.°, alínea g), 83.° e 91.° e segs.]. As reprivatizações devem observar

() A Constituição nada diz especificamente a este propósito.

(2) O ponto será explanado no tomo li deste Manual.

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412Manual de Direito Consitucional

regras formais e materiais (art. 296.°). Subsistem, conquanto atenuadas, as normas de vedação de sectores básicos à iniciativa privada (art. 86.°, n.° 3) e de eliminação dos latifúndios (art. 94.°, n.° l) ().

Em terceiro lugar, quanto à revisão constitucional de 1992, o que seja a União Europeia não se antolha claro e, de todo o modo, por ora, é um sistema sui generis de relações e instituições, que não atinge o núcleo da soberania estatal. Nem o art. 7.°, n.° 6, prevê transferência ou renúncia de raiz de poderes nela compreendidos, apenas delegação do seu exercício, a convencionar com respeito pêlos princípios da reciprocidade e da subsidiariedade (2).

Por último, as modificações introduzidas no art. 290.° (hoje art. 288.°), corroborando a tese que há muito sustentávamos da revisibilidade de cláusulas expressas de limites materiais de revisão (3), não representam também senão benfeitorias e actualizações. O princípio da coexistência de sectores é — e já era em 1976 — mais significativo do cerne da Constituição do que a apropriação colectiva;

a modificação respeitante ao planeamento é pouco mais que verbal;

a participação das organizações populares de base no exercício do poder local, aliás praticamente sem efectividade, terá sido tão só um limite de segundo grau, e essas organizações ou associações de moradores não desaparecem do texto constitucional.

In — Uma Constituição que perdura por um tempo relativamente longo vai-se realizando através da congregação de interpretação evolutiva, revisão constitucional e costume secundum, praeter e contra legem. Contudo, pode também acontecer que, noutros casos, o desenvolvimento da Constituição se efectue em períodos mais ou menos breve, principalmente através da sobreposição dos mecanismos

() Cfr. VITAL MOREIRA, A segunda revisão constitucional, in Revista de Direito Público, ano l v, n.” 7, 1990, págs. 21 e segs.; ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO e GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., págs. 144 e segs.; MANUEL AFONSO VAZ, Direito Económico, 3.” ed., Coimbra, 1994, págs. 117 e segs.; ANTÓNIO CARLOS SANTOS, MARIA EDUARDA GONÇALVES e MARIA MANUEL LEITO MARQUES, op. cit., págs. 39 e segs.

(2) V. Manual..., cit., Ill, págs. 193 e segs., e autores citados.

(3) V. Manual..., cit., li, págs. 197 e segs.

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Parle I— O Estado e os siseas constitucionais 413

de garantia da constitucionalidade e de revisão, sob o influxo da realidade constitucional.

O desenvolvimento constitucional não comporta a emergência de uma Constituição diversa, apenas traz a reorientação do sentido da Constituição vigente. De certo modo, os resultados a que se chea ou vai chegando acham-se contidos na versão originária do ordenamento ou nos princípios fundamentais em que assenta; e ou se trata de um extrair das suas consequências lógicas ou da prevalência de certa interpretação possível sobre outra interpretação igualmente possível.

Foi um fenómeno de desenvolvimento constitucional, e não de ruptura, aquele que atravessou a Constituição de 1976 ao longo destes vinte e dois anos (), por efeito da jurisprudência, das revisões constitucionais (pelo menos, das três primeiras) e da interacção dialéctica da aplicação das normas e do crescimento de cultura cívica no país.

FIM DO TOMO I

(i) Cfr. Rui MACHETE, presidente das comissões eventuais de revisão em1989 e 1992, salientando a «clara demonstração da capacidade da Constituição, como um conjunto de normas abertas, como um sistema cheio de conexões de sentido, de absorver tudo aquilo que a realidade evoluiu desde 1976» (Diário da Assembleia da República, v legislatura, 2.” sessão legislativa, l. série, n.” 86, reunião de23 de Maio de 1989, pág. 4219).

Ou VITAL MOREIRA (A segunda revisão..., cit., loc. cit., pág. 23, nota): desde a sua primeira versão, em que a democracia e o socialismo económico cogente pareciam estabelecer entre si uma relação de tensão excessivamente conflitual, a C.R.P. evoluiu sem rupturas, através das suas revisões, para um equilíbrio mais despojado, mais articulado e mais estável, que lhe permitiu superar as tensões decorrentes da revolução e dos seus retrocessos.

V. ainda, se bem que partundo de uma visão diferente a respeito do texto inicial da Constituição, CARDOSO DA COSTA, A evolução constitucional no quadro da Constituição da República de 1976, Lisboa, 1994.

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ÍNDICES

ÍNDICE DE AUTORES

ABENDROTH, Wolfgang — 91, 95 ABRAHAN, Henry J. — 146 ADRADOS, Francisco Rodriguez — 53 AGESTA, Sanchez — 104, 105, 106, 121,

178, 179,213, 294,365 AGUIAR, Joaquim — 409 AKZIN, Benjamin — 129 ALBA, Carlos R. —213 ALBERTINI, Mário — 68 ALBUQUERQUE, Martim de — 60, 65, 67,

68, 70, 73, 74, 78, 79, 241 ALBUQUERQUE, Ruy de — 65, 67, 73,

74, 78, 241 ALDERMAN, R. K. — 135 ALEXANDROV, N. G. — 181 ALLANT.R. S.— 133 ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de — 25,

72, 82, 241 ALMEIDA GARRETT — 245, 259, 268,

282

ALTÚSIO — 79

AMARAL, Maria Lúcia — 206 AMORTH, António — 180 AMPHOUX, Jean — 206 ANASTAPLO, George — 140 ANCEL, Marc — 103

ANTUNES, Manuel — 51, 57, 81, 89 APPADORAI, A. — 51 APTER, David E. — 31 AUINO, S. Tomás de — 37, 60 ARAGÓN, Manuel — 98 ARENDT, Hannah — 31 ARINOS, Afonso — 94, 269 ARISTÓTELES — 55 ARKES, Hadiey — 140

27 — Man. Dir. Const.. I

ARON, Raymond — 319, 323 ASCENSO, J. Oliveira — 19, 104, 129,

132

ATAI DE, Augusto de — 304 ATALIBA, Geraldo — 236 AUBERT, Jean-François — 196 Au ER, Andreas — 21 AVRIL, Piene — 174

BACELAR GOUVEIA, Jorge — 36

BACHOF, Otto — 205

BADIA, Juan Ferrando — 195

BADIE, Bertrand — 44, 63, 74, 120

BAGEHOT, Walter — 122

BAKER, Emst — 135

BALANDIER, Georges — 44, 46

BALDINI, Massimo — 75

BALL, Alan R. — 136

BALLADORE PALLIERI, Giorgio — 41, 180

BANKS, Margaret A. — 137

BAPTISTA MACHADO, João — 19, 33, 325,

367

BARBER, Sotirios A. — 139 BARBOSA, Rui — 39, 226 BARBOSA DE MELO — 304, 374 BARBOSA RODRIGUES, Luís — 239 BARRETO, Tobias — 225 BARILE, Paolo — 40, 41 BARTHÉLEMY, J. — 159, 166, 199 BARTOLINI, Stefano — 173 BASTlD,Paul— 15, 198 BASTOS, Celso — 230, 325 BEATTY, David M. — 146 BEAUDOIN, Geraíd A. — 137 BEAUTÉ, Jean — 145

Page 430: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

418Manual de Direito Constitucional

BELTRÁN, Miguel — 150 BENTHAM — 87

BERG-SCHLOSSER, Dirk — 216, 218 BERTCH, Garry K. — 31 BIGOTTE-CHORÀO, Mário — 302 BIRNBAUN, Pierre — 74, 120

BISCARETTI Dl RUFFIA, Paolo — 36, 111,

114, 121, 181, 185, 195, 213, 294,

323

BIVER, Karine — 36 BLACK, Charles C. — 147 BLAUSTEIN, Albert P. — 35, 95, 96 BLONDEL, Jean — 31 BLUNTSCHLI — 200

BOBIO, Norberto — 41, 55, 88, 91 BOBOTOV, Serguei — 157 BÕCKENFÕRDE, Ernst-Wolfgang — 204 BODIN, Jean — 37, 65, 70 BOLINGBROKE — 126 BONAVDES, Paulo — 39, 42, 88, 91, 221,

230

BONÉ, Hugh — 152 BONINI, Francesco — 25 BONINI, Roberto — 53 BONNARD, Roger — 212 BONELLA, Carmela de Cabo — 404 BOSSUET — 80 BOUVIER, Vincent — 126 BRACHER, Karl-Dietrich — 212 BRADLEY, A. W. — 133 BRAGA, Teófilo — 285 BRAGA DA CRUZ, Manuel — 30, 246,

297,299,319, 320, 323, 410 BRANCA, G. — 180 BRANCOURS, Jean-Pierre — 65 BRANDO, António José — 127, 165, 301 BRONZE, Fernando José — 26 BRUNEAU, Thomas C. — 329 BRUNET, René — 201 BRUNNER, Otto — 60, 77, 80 BRYCE, James — 41, 136, 139 BUCHANAN, James M. — 120 BURCKHARD, Jacob — 76 BURDEAU, Georges — 38, 41, 45, 47,

88, 89, 91, 94, 95, 114, 159, 174,

212, 321

BURDESE, Alberto — 58

BLIRKE — 126

BURKE, Edmund — 124

CABRAL DE MONCADA, Luís — 41, 44,55, 65, 70, 78, 209, 324

CADART, Jacques — 40, 159

CAETANO, Marcello — 16, 21, 23, 25,30, 38, 58, 72,73,78,80,117,122,139, 164, 211, 221, 241, 269, 272,278, 294, 295, 297, 300, 304, 309,310, 311, 313, 318, 319, 321, 322,324, 325, 370

CALAMANDREI — 180

CALDEIRA, Arlindo M. — 319

CALIFANO-PLACCI, Licia — 198

CALMON, Pedro — 60

CAMÕES, Luís de — 79

CAMPINOS, Jorge — 246, 269, 271, 294,297, 311, 323, 409

CANARIS, C. W.— 119

CANAS, Vitalino — 30, 365

CANAVEIRA, Manuel Filipe Cruz — 269,275

CANCELA DE ABREU — 311

CANOTILHO, Gomes — 16, 19, 23, 25,30, 32, 32, 34, 38, 41, 113, 190, 191,216, 241, 271, 283, 325, 353, 355,

Page 431: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

358, 365, 366, 369, 371, 405

CAPPELETTI, Mauro — 168

CARACCIOLO, Albert — 81

CARETTI, Paolo — 40, 180

CARDOSO, José Luís — 263

CARDOSO DA COSTA — 326, 374, 413

CARLYLE, Thomas — 124

CARO BONELLA, Carmela de — 381, 404

CARPIZO, Jorge — 157

CARRÉ DE MALBERG, R. — 37, 159, 168

CARRILHO, Maria — 246

CARVALHO, Orlando de — 18, 89

CARVALHO DOS SANTOS, Maria Helena —261, 262

CARVALHO OLIVEIRA, Luís — 370

CASSELLA, Fabrizio — 36

CASSESE, Sabino — 44

CASEY, James — 137

Page 432: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

Índice de Autores 419

CASPARY, Adolf — 57

CASSIRER, Ernst — 60

CASTANHEIRA NEVES — 33

CASTAN TOBENAS, José — 213

CASTEJÓN PAZ, B. — 117

CASTRO MENDES, João de — 26, 58,355

CERRONI, Umberto— 181, 191

CERQUEIRA, Marcello — 221

CHAMBRE, Henry — 185, 186

CHANTEBOUT, Bemard — 40, 159

CHADUS, René — 169 CHARLOT, Monica — 136 CHARVIN, Robert — 194 CHÂTELET, François — 90 CHEU, Enzo — 348 CHEVALIER, François — 156 CLAESSEN, Henri J. M. — 44 COHENDET, Marie-Anne — 172 COLLIGNON, Jean-Guy — 185 COMBA, Mário — 36

COMPAGNONÍ — 15

CONAC, Gérard — 159 CONSTANT, Benjamin — 37, 53, 87, 222,

272 CONSTANTINESCO, Léontin-Jean — 26,

103, 104, 107 CONTE, Francis — 185 CORKILL, David — 410 CORRAL, LUÍS Diez dei — 88 CORULL, Ombretta Fumagalli — 80 CORWIN, Edward S. — 139, 152 COSTA ROSA — 39 COSTA PINTO, António — 323 COTTON JR., Joseph — 149 COULANGES, Fustel de — 52 CRIFÒ, Giuiiano — 54, 56 CRISAFULLI, Vezio — 67 CROSA, Emilio — 89 CRUCHO DE ALMEIDA — 308 CUBERTAFOND, Bemard — 220 CUOCOLO, Fausto — 126, 180

D’ALESSIO, Francesco — 211 D’AVACK, Lorenzo — 124 DAHRENDORF, Ralf — 30

DARESTE, F. R. — 35, 36, 127

DAVID, René — 103, 106, 184

DE LOLME — 122

DEL MOREL, António de Torres — 178,

193

DELPECH, J. — 35 DELPÉRÉE, Francis — 36 DEMICHEL, André — 176, 323 DEMICHEL, Francine — 323 DERATHÉ, Robert — 70 DE SIERVO, Ugo — 40, 180, 349 DE VEGA, Pedro — 186 Dl Luzzo — 15 Dl PALMA, Giuseppe — 182 Dl SUNI PRAT, Elisabetta Paliei — 36 DM, J. S. da Sva — 82 DIAZ LLANOS — 319, 321, 322 DIAZ, José Ramón Cossio — 96 DICEY, A. V. — 37, 118, 122, 130, 133 DINIS, Maria Helena — 230 DORDJEVIC, Jovan — 195 DOBROLWSKI, Silvio — 88 DÕEHRING, Kari — 95 DOEL, Hans Van Den — 98 DOGAN, Mattei — 31 DOGMANI, Maria — 42, 53, 83, 141 DONNARLIMMA, Maria Rosaria — 96 DONNEDIEU DE VABRES, Jacques — 167 DORSEN, Norman — 146 DOUIN, Claude Sophie — 207 DRAI, Raphael — 52 DRUCKER, Peter — 145 DUARTE SILVA, António — 39, 237, 299 DUEZ, P. — 159, 166 DUGUIT, Léon — 159, 167 DURAND, Yves — 81 DURÀO BARROSO, José Manuel — 365,

374, 409, 410

Du SADSSAY, Christian — 294 DUVERGER, Maurice — 30, 35, 40, 88,

120, 158, 159, 172, 173, 181, 187,

193, 323, 325, 365, 366 DWORKIN, Ronald — 150

ECKSTEIN, Harry — 31 EISENSTADT, S. N. — 120

Page 433: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

420Manual de Direito Constitucional

EISENMANN, Charles — 18, 27, 168, 203,

208

EISERMANN, Gottfried — 31 ELAZAR, Daniel J. — 145 ENGELS — 188 ERMACORA, Felix — 207 ESMEIN, A. — 29, 37, 122, 159, 167, 169 ESPOSITO, Cario — 157 ESTEBAN, Jorge de — 179

FÁBRICA, Luís Sousa da — 78 FARACO DE AZEVEDO, Plauto — 212 FAVOREU, Louis — 17, 168 FAVRE, Antoine — 196 FEIJTÕ, François — 182 FENWICK, Helen — 123, 129 FERNANDES, António José — 30, 159,

179, 203

FERNANDES, Maria João — 393 ERNANDES TOMÁS, Manuel — 267 FERNANDES-VALMAYOR, José — 80 FERNANDEZ-CARVAJAL— 16 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio — 230 FERREIRA BORGES — 269 FERREIRA, David — 245 FERREIRA, Fernando Amâncio — 368 FERREIRA DA CUNHA, Paulo — 25, 41,

82, 84,247, 261,269 FERREIRA DA SILVA, Ana Maria — 261 FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos — 26,

103, 105 FERREIRA DE ALMEIDA, José Mário —

365, 404, 409 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves —

39, 41, 229, 230, 236 ERREIRA PINTO, Ana Maria — 268 FERRERO, Guglielmo — 165 FERRO, António — 296, 298, 309 FEZAS VITAL — 23, 39, 241, 276, 290,

294,304, 306, 310, 311 FIGUEIREDO, Mário de — 300 FILOMENA MÓNICA, Maria — 274 FIOROVANTI, Maurizio — 64, 83, 88, 200 Fix ZANUDIO, Hector — 35 FLANZ, Gisbert H. — 35 FLOGÀITIS, Spyridon — 118

FONSECA, Jorge Carlos — 237

FORSTHOFF, Emst — 21, 91, 95

FOUGEYROLLAS, Pierre — 68

FRAIN, Maritheresa — 410

FRANCO NOGUEIRA — 295

FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira

—221

FRÂNKEL, Emst — 154, 201, 409 FRANKLIN, Julian H. — 70 FREEMAN, Edward — 127 FREITAS DO AMARAL, Diogo — 19, 21,

55, 70, 117, 135, 140, 366 FREIRE ANTUNES, José — 246 FREIRE DE CARVALHO, José Liberato —

260

FREUND, Julien — 18 FRISON-ROCHE, François — 173 FROMONT, Michel — 204 FUKASE, Tadakazu — 139 FUKUYAMA, Francis — 98, 99, 200 FUEYO, Jesus — 49

GALBRAITH, John Kenneth — 48, 90

GALIZIA, Mário — 185

GALVÂO TELES, Miguel — 39, 221, 241,

294, 297, 311, 325, 359 GAMBINO, Silvio— 198 GANINO, Mário — 185 GARCIA, Maria da Glória — 60, 80, 88,

118, 130, 221, 222, 241, 326 GARCIA, Manuel Emídio — 274 GARCIA ALVAREZ, Manuel — 185, 195 GARCIA BELAUNDE — 156 GARCIA DE ENTERRÍA — 83, 179 GARCIA PELAYO, Manuel — 15, 27, 40,

52, 57, 60, 69, 70, 91, 122, 130, 164 GARRIDO FALLA — 179 GASPAR, Carlos — 326 GASPAR, Jorge — 343 GÉLARD, Patrice — 182, 185, 186, 192 GELLNER, Ernest — 68 GENTILE, Emlio — 211 GEORGAKILAS, Ritinha A. Stevenson —

230

GEORGEL, Jacques — 246, 319, 324 GERBER — 200

Page 434: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

índice de Autores 421

GIANNINI, Arnedeo — 294

GANNINI, Massimo Severo — 95

GIERKE, Otto — 59

GIOL, Jordi Capo — 30, 34

GILQUEL, Jean — 40

GOLDWIN, Robert A. — 139

GOMES DA SILVA, Nuno Espinosa — 25,

45, 68,72, 241, 247 GOMES DE CARVALHO, M. E. — 267 GONÇALVES, Maria Eduarda — 360, 412 GONÇALVES PEREIRA, André — 229, 345,

365, 371, 405, 410 GONIDEC, P. F. — 216 GOUCHA SOARES, António — 145 GOUVEIA, Velasco de — 82 GOYARD, Claude — 294 GRANGER, Roger — 120 GRAWIZZ, Madeleine — 31 GRIFFITH, Ernest S. — 153 GRIFFITHS, C. — 78 GRIMM, Dieter — 204 GROETHUYSIN, Bemard — 83 GUENÉE, Bemard — 65, 68, 78 GUTTINCER, Philippe — 193

HÀBERLE, Peter — 116

HABISON, Winfred A. — 139

HAMILTON—37, 139, 145,148

HAMON, Léon — 58

HAURIOU, André — 159, 210, 216

HAURIOU, Maurice — 15, 37, 118, 132,

159, 163, 164 HAZARD, J. N.— 181 HEGEL — 37, 189, 209 HELLER, Hermann — 38, 44, 69, 70 HELLER, Kurt — 207 HENKIN, L. — 155 HENRIQUES DE SOUSA, Braz Florentino

— 224

HENRY, J. P. — 98 HERCULANO, Alexandre — 87 HERMENS, Guy — 92 HERMET, Guy — 64 HERRERO DE MINON — 349 HESPANHA, António Manuel — 78, 82,

247

HESSE, Konrad — 15, 17, 40

HIGUCHI, Yoichi — 139

HINSLEY, P. H. — 45

HINTZE, Otto — 51, 64, 65, 67, 74, 77,

78

HIRSCH, Emst E. — 31 HOBBES — 37, 80 HOBSBAWN, Eric — 90, 323 HÕRSTER, Heinrich Ewaid — 325 HORTA CORREIA, José Edwardo — 263 HUMBOLDT, Wilhelm Von — 87

IZDEBSKI, Hubert— 103, 120, 190

JACQUES, Paulino — 39, 221

JAEGER, Weaner — 53

JAME I — 80

JALLES, Maria Isabel — 325

JAMES, Joseph L. — 152

JASMINS PEREIRA, Fernando — 245

JAY— 139

Page 435: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

JELLINEK, Georg — 24, 33, 34, 37, 50,

51, 54,57, 64, 200 JENNINGS, Ivor — 40, 122, 128, 130,

132, 133, 135 JESCH, Dietrich — 199 JEHRING, Rudolph Von — 58 JILLSON, Calvin L. — 141 JIMENEZ DE PRAGA, Manuel — 31 JOWELL, Jeffrey — 123 JÚDICE, José Miguel — 346, 366, 374

KAHN,Ronald— 149 KAMINIS, Georges — 179 KANT — 37,83,84, 87 KAPYRIN, Igor— 185 KASTARI, Paavo — 173 KELLY, H. — 134

KELSEN — 38, 181, 189, 207, 208 KER, David Lindsay — 122 KERN, Fritz — 60 KESSEL, Joseph H. — 152 KING, Anthony — 136 KOJA, Friedrich — 207 KOMMERS, Donald P. — 205 KÕTZ, Heinz— 103, 117

Page 436: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

422Manal de Direito Constitucional

KRADER, Lawrence — 44, 45, 48 KRIELE, Martin — 40, 79, 124, 199

LABAND — 200 LAFERRIÈRE, J. — 35, 159 LALUMIÈRE, Pierre — 176 LAMBERT, Édouard — 149 LAMBERT, Jacques — 149, 156 LANCHESTER, Pulco — 76, 200, 201 LANE, David — 192 LANGHANS, Franz — 242, 281 LAPIERRE, Jean William — 44, 46 LARANJO, José Frederico — 23, 38 LARSEN, J. A. O. — 53 LASKI, Harold — 88 LASSALLE, Ferdinand — 199 LAUVAUX, Philippe — 116 LAVERO, Banolomé — 71, 178 LAVIGNE, Marie — 185 LAVÍGNE, Pierre — 185, 193 LAVROFF, Dimitri Georges — 179, 185 LECA, Jean — 31 LÊ DIVELLE, Armei — 201 LEIBHOLZ, Gerhard — 34, 41, 122, 124,

150, 212

LEINGBRUBER, Oscar — 196 LEITE PINTO, Ricardo — 365, 404, 409 LEITO, João Manuel — 39 LEITO MARQUES, Maria Manuel — 360,

412

LENINE — 181, 186 LÊ POINTE, Gabriel — 79 LESAGE, Michel — 181, 193, 194 LEVI — 180 LHOME, Jean — 88

LIANO, António Gonzaiez Dias — 294 LIEVENS, Robert — 190 LIMA, Queiroz — 61 LIME, Bemard — 177 LOBO ANTUNES, Miguel — 365 LOBO D’ÁVILA, Joaquim Tomás — 263 LOCKE — 83

LOEBER, Dietrich A. — 192 LOMBARDI, Giorgio—26, 116, 121, 156,

186, 191, 194

LOPES PRAÇA — 23, 38, 241, 250, 269,

272, 274, 275, 281 LOURENÇO, Eduardo — 246, 323, 324,

329, 345 LOVELAND, Jan — 40, 123, 125, 130,

133, 134 LOWENSTEIN, KarI — 38, 94, 104, 105,

106, 129, 135, 155, 171, 177, 203,

323

Lowi, Theodore J. — 153 LUCAS PIRES, Francisco — 41, 94, 297,

308, 311, 321, 322, 325, 329, 350,

364, 365,371, 374, 404, 410 LUCENA, Manuel de — 30, 44, 210, 220,

297, 300, 306, 319, 321, 323, 325,

329, 353,366, 371, 377 LUCHAI, Juan — 195 LUCHAIRE, François — 34, 159, 168 LUCIFREDI, Pier Luigi — 409 LUHMANN, Niklas — 91, 92 LUNO, António Enrique — 262 LUTHER, Jõrg — 206 LYRA TAVARES, Ana Lúcia da — 230

MABILEU, Albert — 154 MACEDO, Jorge Borges de — 82 MACHADO HORTA, Raul — 230 MACHADO PAUPÉRIO — 70 MACHETE, Rui — 24, 78, 300, 325, 371,

413

MACKINTOSH, John — 136 MADISON — 37, 87, 139, 148 MADRE DE DEUS, Faustino José da —

260

MAGALHÃES, JOSÉ — 389 MAGALHÃES COLAÇO, Isabel — 104 MAGALHES COLAÇO, João — 23, 284,

291 MAGALHES GODINHO, José de — 319,

320

MAGALHÃES GODINHO, Vitorino — 245 MAITLAND, F. W. — 122 MALFLIET, Katij — 192 MALLOY, James M. — 156 MALTEZ, José Adelino — 30, 44, 70

Page 437: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

víndice de Autores 423

MALTZ, Eari M. — 150

MANDROU, Robert — 81

MANIUE, António Pedro — 277

MANSILLA, H. C. F. — 92

MANY, I. — 284, 290

MAQUIAVEL — 37

MARASINGHE, Lakshman — 217

MARIN, Carlos de Cabo — 51, 116

MARINHO, Josaphat — 228

MARITAIN, Jacques — 145

MARNOCO E SOUSA — 23, 38, 57, 135,

241, 269, 272, 274, 275, 284, 285,

290

MARONGIU, António — 65 MARUES, Maria Manuel Leitão — 360,

412 MARQUES, Rui Manuel de Figueiredo —

82 MARQUES GUEDES, Armando — 16, 23,

30, 38, 121, 122, 139, 171, 181,200,

201, 211, 212, 365 MARSHALL, Burke — 146 MARSHALL, Geoffrey — 40, 122 MARSHALL, Terence — 142 MARTIN, Alfred Von — 62 MARTIN, António Perez — 66 MARTINES, Temistocle — 40, 180 MARTINS, Alberto — 325 MARTINS, Ana — 140 MARTINS, H. — 323 MARTINS, Ives Gandra — 230 MARTINS, Pedro — 58 MARTINS DE CARVALHO, Henrique —

216 MARTINS FERREIRA, Waldemar — 39,

221

MARTINS PEREIRA, João — 329 MARX, F. G. — 154 MARX— 188, 189 MATA, Maria Eugenia — 243 MATTEUCCI, Nicola — 88 MATTOSO, José — 73 MAYER, Dayse Vasconcelos — 141 MAYNTZ, Renate — 206 MAYSTADT, Philippe — 197 MCELDOWNEY, John — 40, 123

MCILWAIN, Charles Howard — 53, 58 MEDEIROS FERREIRA, José — 329 MEDVEDEV, Roy — 181 MEINECKE, Friedrich — 81 MEIRELLES, Helly Lopes — 117 MELO, D. Miguel António — 272 MELO FREIRE — 82 MELONI, Giuseppe — 211 MENAUT, Antnio Pereira — 123, 130 MENDONÇA, Luís — 237 MENEZES CORDEIRO — 119 MERÊA, Paulo — 69, 74, 78, 247 MERLE, Michel — 30 MESTRE, Achille — 193 MEXIA SALEMA, João de Sande Magalhães — 281 MEYER, Christian — 55 MEZZETTI, Luca — 203 MIAILLE, Michel — 30 MIRANDA, Inocêncio António de — 264 MIRANDA, Jorge — 21, 35, 39, 41, 85,

87, 92, 93, 95, 96, 99, 230, 266, 268,

291, 294, 295, 301, 304, 307, 308,

318, 320, 325, 327, 343, 369, 374,

389, 409 MIRKINE-GUETZÉVITCH, B. — 35, 89,

175, 209

MOHL, Robert von — 86, 200 MOLNAR, Thomas — 64 MONTENEGRO, Artur — 58 MONTESQUIEU — 37, 82, 83, 126, 138,

150, 159, 162, 163 MONZÓ, Júlio Navarro — 58 MOORE, Barrington — 120, 124, 166 MORAIS, Isaltino — 365, 404, 409 MOREIRA, Adriano — 30, 31, 48, 322,

325, 329, 410

Page 438: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

MOREIRA, José Carlos — 39, 241 MOREIRA, Vital — 41, 88, 325, 338, 353,

358, 365, 366, 369, 371, 405, 412,

413

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo — 34 MORIN, Edgar — 187, 329 MORODO, Raul — 178 MORTATI, Costantiano — 15, 32, 38, 61,

80, 201,203,211

Page 439: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

424Manual de Direito Constitucional

MORUS, Tomás — 75 MOSSE, George L. — 209 MOURA, Carlos — 321 MOUSKHÉLY, Michel — 190 MOTA DE CAMPOS, João — 325 MUNRO, Colin R. — 122 MUNSLOW, Barry — 216 MUSSOLINI — 208

NAEFF, Werner — 66, 69, 75, 76, 78,

160

NADALES, A. J. Porras — 98 NASCHITZA, Anita H. — 191 NEGRI, Guglielmo — 211 NEUSTADT, Richard — 153 NEVES, Orlando — 328 NEVES DE ALMEIDA, Carlos — 264 NGUYEN, Lê Mong — 159 NIETZSCHE — 209 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz — 222,

261, 267

NOBRE DE MELO — 39 NOGUEIRA, Humberto — 157 NOGUEIRA DE BRITO, Luís — 393 NOGUEIRA PINTO, Jaime — 209, 324 NOLTE, Emst — 209 NOVAIS, Jorge Reis — 41, 80, 88, 95,

130, 191, 211, 240 NOVAK, John E. — 139

OESTREICH, G. — 81

OFFE, Claus — 98

OLIVEIRA, César — 245

OLIVEIRA BARACHO, José Alfredo de —

39

OLIVEIRA LIMA — 223 OLIVEIRA MARQUES — 245, 277 OLIVEIRA MARTINS — 58, 78, 245, 268,

282 OLIVEIRA MARTINS, Guilherme d’ — 304,

360, 412

OLIVER, Dawn — 123 OPELLO, Walter C. — 152 ORNAGHI, Lorenzo — 300 OSÓRIO DE CASTRO, Zélia — 261, 263,

268

OTERO, Paulo — 74, 267, 271, 275,276, 277, 279, 292, 299, 300, 302,353, 405

PACTET, Pierre — 153 PAES DE ANDRADE — 221 PAINE, Thomas — 87 PAJOT, Laié — 294 PALADIN, Livio — 211 PALLISTER, Anne — 123 PAMBOU-TCHIVOUNDA, Guiliaume — 216 PANTÉLIS, Antoine M. — 177 PAPELL, António — 179 PARADISI, Bruno — 60 PASCOAL, José Manuel — 39 PASSERIN D’ENTRÈVES — 65 PASQUINO, Gianfranco — 329 PAYNE, Staniey G. — 323 PEASLEE, A. B. — 35 PECES-BARBA, Gregorio — 179 PELASSY, Dominique — 31 PELLEGRINO, Roberto Carlos — 230 PELLOUX, Robert — 210, 323 PEREIRA, José Esteves — 82 PEREIRA, Mirian Halpern — 245 PEREIRA DA SILVA, Vasco — 98 PEREIRA os SANTOS — 293, 304, 306 PEREIRA MARQUES, Fernando — 246 PEREZ SERRANO— 313 PEYROU-PISTOULEY, Sylvie — 207 PHILLIPS, Michael J. — 146 PHILLIPS, O. Hood — 139 Picus, Richard M. — 153 PIÇARRA, Nuno— 41, 130, 151 PIERANDREI, Franco — 197, 212 PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre — 23, 48,

87, 175, 260, 268, 269, 274 PIMENTA BUENO, José António — 39,

223

PINTO, Mário — 321

PINTO COELHO, Carlos Zeferino — 315 PINTO DE MESQUITA, António Pedro —

311

PINTO DOS SANTOS, Manuel — 277, 278 PINTO FERREIRA — 39, 221 PINTO LOUREIRO, António José — 306

Page 440: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

1’»

ndice de Autores 425

PINTO OSÓRIO — 277 PIRES CARDOSO — 300, 309 PISIER-KOUCHNER, Evelyne — 90 PITEIRA SANTOS, Fernando — 245 PITA E CUNHA, Paulo — 371 PIZZORUSSO, Alessand — 27, 40, 103,

180

PLATÃO — 37

POGGI, Gianfranco — 48, 69, 98 POLIN, Claude — 323 PONTEIL, Féiix — 88 PONTES DE MIRANDA — 39 POPPER, Kari — 209 POULAIN, Bemard — 168 POULANTZAS, Nicos — 41, 51, 82, 91,

323

PRÉLOT, Mareei — 44, 159, 211 PRITCHETT, Henmann C. — 139 PROENÇA, Maria Cândida — 263 PUNNETT, R. M. — 136 PYLE, Christopher H. — 153

QUADROS, António — 324, 329 QUEIRÓ, Afonso — 21, 34, 293, 303,

304, 311, 319

QUEIROZ, Cristina — 173, 174, 405 QUEIROZ LMA, Eusébio — 39 QUERMONNE, Jean-Louis — 174 QUIRINO DE JESUS — 298

RADBRUCH, Gustav — 18, 89, 129, 130

RAPOSO, João — 39

RAPOSO, Mário — 325

RAPOSO COSTA, Jaime — 261

RAPPARD, W. E. — 196

REALE, Miguel — 17

REBELO, Luís de Sousa — 73

REBELO DE SOUSA, Marcelo — 16, 23, 30,38, 41, 91, 104, 117, 24, 278, 290,303, 319, 329, 365, 374, 404, 410

RECHIZZI, Gabrielle Crespi — 181

REIS, José Alberto dos — 38, 241

RENARD, Georges — 18

RENZO DE FELICE — 209

RESCIGNO, Francesca — 198

RIBAS VIEIRA, José — 229

RIBEIRO, Álvaro — 124

RIBEIRO DOS SANTOS, A. P. — 241

RIEGE, Gehard — 206

RINELLA, Angelo — 121, 173, 405

RIVERO, Jean — 167

ROCHA, Mário Melo — 244

ROCHA E CUNHA, Silvério — 44

ROCHA PEREIRA, Maria Helena da — 55

ROCHA SARAIVA — 23, 41, 284

RODRIGUES LOBO — 65

Page 441: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

RODRIGUES DA SILVA, Júlio Joaquim da

Costa — 281 RODRIGUES DIAS — 247 RODRIGUEZ, António Pupiná — 44 ROGEIRO, Nuno — 140 ROHR, Jean — 196 ROKKAN, Stein — 31 ROMAN, E. Rodriguez — 117 ROSA LUXEMBURGO — 186 ROSAS, Fernando — 296, 320

ROSENTHAL, A. — 155

ROSENTHAL, Eduard — 75

Rossi, Pellegrino — 15

ROSTOW, Edward V. — 147

ROTUNDA, Ronald D. — 139

ROUBAN, Luc —98, 151

ROUSSEAU, Jean-Jacques — 37, 83, 114,

159, 162, 163 ROUSSEAU, Dominique — 365 ROY, Maurice Pierre — 216 ROZMARYN, Stefan — 190 RUAS, Henrique Barrilaro — 88 RUNCIMAN, Steven — 59

SÁ, Victor de — 245

SABINO, Amadeu Lopes — 329

SÁ BORGES, Jorge de — 318

SÁ CARNEIRO, Francisco — 311, 318, 374

SAGUÉS, Nestor Pedro — 40

SAINT-GIRONS, A. — 159

SAINT-SIMON — 124

SAITTA, Armando — 162

SALAME, Chassan — 216

SALAZAR — 301, 304, 319, 324

SALDANHA, Nelson — 15, 41, 58

SALEMA, Margarida — 268, 274, 284

Page 442: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

426Manual de Direito Constitucional

SALGADO DE MATOS, Luís — 325, 365,

409

SANTANA LOPES, Pedro — 365, 374, 409 SANTI ROMANO — 16, 17, 27, 34, 38 SANTOS, António Cabral — 412 SANTOS, António Carlos — 360, 412 SARAIVA, António José — 73 SARAIVA, José António — 329 SARAIVA, José Hermano — 89, 94, 312 SARTORI, Giovanni — 31, 41, 99, 173,

365

SAUSSAY, Christian du — 241 SCALIA, Antonin — 146 SCHÂFFER, Heinz — 207 SCHAMBRA, William A. — 134 SCHAPIRO, Leonard — 92 SCHEIDER, Theodor — 95 SCHEUNER, Uirich — 212 SCHIERA, Pierangelo — 64, 75, 78, 80 SCHMITT, Cari — 88, 199, 201, 348 SCHMITTER, Philippe C. — 320 SCHNEIDER, Hans Peter — 203, 204 SCHNUR, Roman — 81 SCHUMPETER, J. — 120 SCHWARTZMAN, Katheleen — 290 SEGADO, Francisco Femández — 30, 40,

156, 179

SEILLER, Daniel-Louis — 31, 69, 125 SERENS, Manuel Nogueira — 103 SERVICE, Elman R. — 44 SHAPIRO, Martin — 132 SHELDON, Charles H. — 149 SIBERT, Albert — 245 SIEYÈS — 37, 159, 163 SILVA, José Afonso da — 39, 41, 221,

230

SILVA, Vicente Jorge — 329 SILVA CUNHA — 55 SILVA LEAL, António da — 300, 302,

304, 306

SILVEIRA, Luís — 39, 274 SKALINIK, Peter — 44 SMEND, Rudolf — 37 SMITH, Adam — 87 SMITH, Rogers M. — 146 SOARES, Mário — 260, 269, 284

SOARES, Rogério — 16, 21, 34, 39, 41,

61, 80, 88, 91, 95, 126, 150, 263, 316 SOARES CARVALHO, João — 123 SOARES MARTINEZ — 300, 304, 321,

325, 370 SÓFOCLES — 55 SOUSA, Armindo de — 78 SOUSA, Washington Peluso Albino de —

233 SOUSA FRANCO, António — 304, 360,

371, 379, 412

SOUSA PINHEIRO, Alexandre — 393 SOUSA SANTOS, Boaventura — 98, 191,

329

SPAGNA Musso, Enrico — 30, 40, 180 STARCK, Christian — 40, 199, 203 STAYER, Joseph — 64, 68, 71 STEIN, Ekkehart — 203 STEIN, Lorenz Von — 166 STEPANOV, Igor-Mijjallovich — 193 STERN, Klans — 40, 203 STOYANOVITCH, K. — 189, 195 STRATMANN, Franziskus — 58 STRAYER, Joseph R. — 48 STROGOVITCH, M. S. — 192 STUART MILL — 87 STÜCKA, P. — 181

SUANZES-CARPEGNA, Joaquim — 178 SUÁREZ, Waldino-Cleto — 37, 157 SULEMAIN, Ezra N. — 174 SWISHER, Cari Brent — 147 SWITH, Rogers M. — 139 SZASKOWSKI, Bogan — 182

TABASA, Aguson — 58 TAVARES, José — 38, 269, 272, 274 TCHE-HAO, Tsien — 195 TEIXEIRA RIBEIRO — 300, 304, 343 TEJERINA, Aguilar — 179 TÉNÉRIDES, Georges — 52, 54 TENGARRINHA, José — 260, 278 TENOR 10, Oscar — 216 TERNEYRE, Philippe — 167 THEOTÓNIO PEREIRA, Pedro — 245, 300 THIBAUT, Françoise — 173 THOMAS, Pierre — 294

Page 443: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

s

índice de Auores 427

THOMASHAUSEN, André — 325, 369, 372 TOCQUEVILLE, Alexis de — 37, 87, 139,

160, 166

TOPORNINE, B. N. — 190 TORGAL, Lus Reis — 265, 323 TORRECILLAS RAMOS, Dircêo — 179 TREVES, Renato— 31, 33 TRIEPEL, Heinrich — 34 TRINDADE COELHO — 269 TROPER, Michel — 34 TUNC, André— 139, 153 TUNC, Suzanne, — 139 TURPINS, Colin — 136

VAGLI, Giovanni — 392 VALENTE, Vasco Pulido — 245, 246 VALLE, R. Hernandez — 156 VALLE RIBEIRO, Daniel — 57 VAN DER TANG, Gen — 107, 243 VAN DER MEERSCH, Ganshof— 121 VAN MAARSEVEEN, Henc — 107, 243 VANOSSI, Jorge — 96 VARGUES, Isabel Nobre — 265 VASCONCELOS, Pedro Bacelar de — 150,

151

VASCONCELOS, Zacarias de — 224 VASILESCII, Florin — 177 VAZ, Manuel Afonso — 412 VEDEL, Georges — 21 VEIGA DOMINGOS, Emídio da —

325, 349

VELASCO, Gustavo R. — 18 VELOZO, Francisco José — 65 VÉNÉZIA,J. C.— 171

VERDELHO, Teimo dos Santos — 261 VERDÚ, Pablo Lucas — 34, 179, 348 VERDUSSEN, Marc — 36 VERGOTTINI, Giuseppe de — 26, 40, 106,

107, 135, 181, 183, 196, 210, 216,

323, 324, 326, 343, 345, 349, 365,

366, 377

VERÍSSIMO SERRÂO — 245

VEYNE, Paul — 55

VIADEL, António Colomer — 156

VIEIRA, Benedicta Maria Duque — 281,

283 VIEIRA DE ANDRADE, J. C. — 39, 91,

325, 355, 374

VILAVERDE CABRAL, Manuel — 240 VILLALON, Pedro Cruz — 205 VILLARI, Lúcio — 202 VILLERS, Roberto — 78 VISSCHER, Ferdinand de — 57 VITORINO, António — 365 VITORINO, Nuno — 343 VLACHOS, Georges — 54 VOEGELIN, Eric — 58, 70

WEBERMax—31,48,61, 166 WHEELER, Douglas L. — 246, 286, 290,

324

WIARDA, Howard G. — 321 WIEÂCKER, Franz — 83 WIESE, Beuno von — 83 WOOLF, Stuart — 209 WOUTYCZEK, Krzystof— 177

XAVIER, Alberto — 304

YELTEKIN, Niyazi — 52 YOUNG, J. Nelson — 139

ZAGREBELSKY, Gustavo — 33, 40, 41,

96, 130, 349 ZANGARA, Vincenzo — 95 ZAPPERI, Roberto — 159 ZARKA, Jean-Claude — 172 ZELLWEGER, Édouard — 191 ZIPPELIUS, Reinhold — 40, 95 ZOLLER, Elisabeth — 149 ZORGBIDE, Charles — 174 ZWEIGERT, Konrad — 103, 104, 117

Page 444: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

’!

Page 445: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

ÍNDICE GERAL DO TOMO I

PRELIMINARESPágs.

. O fenómeno político e o Estado............................................................ 11

2. Sujeição do Estado e das demais instituições públicas ao Direito...... 12

3. O Direito constitucional......................................................................... 13

4. O Direito constitucional e a ordem jurídica do Estado........................ 16

5. Os grandes capítulos do Direito constitucional.................................... 19

6. Direito constitucional e Direito administrativo..................................... 20

7. A ciência do Direito constitucional....................................................... 22

8. Ciência do Direito constitucional Teoria Geral do Direito público

e Teoria Geral do Estado....................................................................... 23

9. Direito constitucional, História do Direito constitucional e Direito

constitucional comparado....................................................................... 24

10. Ciência do Direito constitucional e ciências sociais não normativas 29

11. Perspectiva metodológica....................................................................... 32

Elementos de estudo....................................................................... 35

Bibliografia geral............................................................................. 37

PARTE I

O ESTADO E OS SISTEMAS CONSTITUCIONAIS

TÍTULO I

O ESTADO NA HISTÓRIA

CAPÍTULO I LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO

§ l.” O Estado, realidade histórica

. O Estado, espécie de sociedade política............................................... 43

2. O aparecimento histórico do Estado...................................................... 44

Page 446: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

430Manual de Direito Constitucional

Págs.

3.Sociedades políticas pré-estaduais........................................................5

4.Processos de formação do Estado.........................................................6

5.Características gerais do Estado ...........................................................4

6.A inserção territorial do Estado............................................................8

Tipos históricos de Estado

7.O desenvolvimento histórico do Estado...............................................49

8.Redução das formas históricas de Estado a tipos................................50

9.O Estado oriental...................................................................................51

10.O Estado grego......................................................................................52

11.O Estado romano...................................................................................55

12.O pretenso Estado medieval.................................................................59

13.O Estado moderno ou europeu.............................................................62

14.O nome de Estado.................................................................................64

CAPITULO II

O DIREITO PÚBLICO MODERNO E O ESTADO EUROPEU

Formação

15.O sistema político medieval..................................................................66

16.A substituição do sistema poítico medieval........................................67

17.O processo de criação dos Estados europeus.......................................69

18.A soberania e a organização do Estado................................................69

19.Variedade dos momentos de aparecimento do Estado.........................71

20.O caso português: fundação e consolidação do reino de Portugal.....72

§2” Evolução

21.Condições gerais de desenvolvimento do Estado europeu..................74

22.Períodos de evolução............................................................................76

23.O Estado estamental..............................................................................77

24.O Estado absoluto. O Estado de poícia.............................................79

25.O Estado constitucional, representativo ou de Direito ........................83

26.O Estado constitucional no século xix como Estado liberal burguês86

27.A situação do Estado no século xx......................................................90

28.A diversidade de tipos constitucionais .................................................93

29.Os problemas do final do século xx ....................................................97

Page 447: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

’i»’

ndice gerai 431

TITULO II

SISTEMAS E FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS

CAPÍTULO I

SISTEMAS E FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS EM GERAL

30. A complexidade constitucional actual e as perspectivas por que pode ser encarada..........................................................................................

31. A formação de famílias constitucionais................................................

32. Os sistemas e famlias constitucionais da actualidade.........................

33. Dualidade ou pluralidad de familias constitucionais..........................

34. As famílias do Direito constitucional, os sistemas de Direito privado e os sistemas administrativos ................................................................

35. Direito constitucional e estruturas sociais ............................................

CAPTULO II

AS FAMÍLIAS CONSTITUCIONAIS

Os sistemas constitucionais de matriz inglesa ou britnica

36. Formação e evolução do Direito constitucional inglês ou britânico...

37. Sobreposição institucional e Constituição histórica.............................

38. Constituição consuetudinária e flexível ................................................

39. O «ruie of law», os direitos fundamentais e os tribunais...................

40. O governo parlamentar britânico ..........................................................

41. Projecção histórica e geográfica do Direito constitucional britânico

Os sistemas constitucionais de matriz americana

101103109112

116119

122125128130133136

42.O Direito constitucional dos Estados Unidos ...................................

43.O federalismo.....................................................................................

44.Os direitos fundamentais....................................................................

45.Os tribunais e a Constituição.............................................................

46.A separação dos poderes e o sistema presidencial...........................

47.O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro britânico.

48.A difusão do Direito constitucional norte-americano .......................

Page 448: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

§3” Os sistemas constitucionais de matriz francesa

139143145147150153155

49. Origem e sentido do sistema constitucional francês.

50. A história constitucional francesa..............................

159

160

Page 449: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

432Manual de Direito Constitucional

Págs.

51. Instabilidade e sedimentaço................................................................. 164

52. A Constituição e os tribunais................................................................ 167

53. O governo parlamentar em França....................................................... 169

54. A V república e o presidencialismo gauiïista....................................... 170

55. A difusão do constitucionalismo francês.............................................. 74

56. As Constituições da Espanha................................................................ 178

57. As Constituições da Itália..................................................................... 180

§4.” Os sistemas constitucionais de matriz soviética

58. O Estado e o constitucionalismo soviético .......................................... 181

59. As sucessivas Constituições soviéticas................................................. 183

60. A concepção do poder e o partido comunista...................................... 185

61. O princípio da legalidade socialista e os direitos fundamentais......... 189

62. A unidade do poder, a forma e o sistema de governo ........................ 192

63. A família constitucional de matriz soviética........................................ . 194

CAPITULO In

SISTEMAS CONSTITUCIONAIS NÃO INTEGRADOS EM FAMÍLIAS

O sistema constitucional suíço

64. Formação histórica e características fundamentais .

65. O sistema de governo directorial.............................

196

197

§2.» Os sistemas constitucionais alemão e austríaco

66. A monarquia constitucional alemã........................................................ 198

67. A Constituição de Weimar.................................................................... 201

68. A Constituição de Bona ........................................................................ 203

69. Caractersticas comuns às três Constituições alemãs........................... 206

70. O Direito constitucional austríaco ........................................................ 207

§ 3.» Os sistemas constitucionais dos regimes fascistas e fascizantes

71. Os fascismos e o seu quadro instituciona........................................... 208

72. O sistema constitucional do fascismo italiano..................................... 210

73. O sistema constitucional do nacional-socialismo alemão.................... 211

74. O sistema constitucional da Espanha franquista.................................. 212

Page 450: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

v

índice geral 433

§4.” Os sistemas constitucionais dos Estados asiáticos e africanos

75. Os problemas constitucionais dos Estados asiáticos e africanos.........

76. Relance pêlos sistemas político-constitucionais com características particulares............................................................................................

CAPITULO IV

OS SISTEMAS CONSTITUCIONAIS DO BRASIL E DOS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

§ l.” O sistema constitucional brasileiro

77. O Direito constitucional brasileiro e o seu interesse...........................

78. O Império e a Constituição de 1824....................................................

79. A república.............................................................................................

80. A evolução desde 1930 .........................................................................

81. A Constituição de 1988.........................................................................

§ 2” Os sistemas constitucionais dos países africanos de língua portuguesa

Págs.214

218

221223225227230

82. As primeiras Constituições...........................

83. As transições constitucionais democráticas.

236238

TITULO In

AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESAS

CAPÍTULO I

AS CONSTITUIÇÕES PORTUGUESAS EM GERAL

84. Características do constitucionalismo pouguês.................................. 241

85. Ahistólia política e constitucional portuguesa .................................... 243

86. A formação e as vicissitudes das Constituições................................... 250

87. Os textos constitucionais....................................................................... 252

88. As orientações de fundo........................................................................ 255

89. A instabilidade constitucional e a deficiência das instituições portuguesas 258

CAPÍTULO II

AS CONSTITUIÇÕES LIBERAIS

§1.” A Constituição de 1822

90. As Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição..................... 260

91. Fontes e projecto ................................................................................... 261

Page 451: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I
Page 452: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

434Manual de Direito Constitucional

Pígs.

92. Direitos fundamentais............................................................................ 263

93. A união real com o Brasil..................................................................... 265

94. Forma e sistema de governo................................................................. 267

A Carta Constitucional

95. Elaboração e fontes ............................................................................... 269

96. Princípio monárquico e princípio representativo ................................. 271

97. Direitos fundamentais............................................................................ 273

98. Os poderes do Estado............................................................................ 274

99. O funcionamento do sistema de governo............................................. 276

100. Os Actos Adicionais.............................................................................. 278

A Constituiço de 1838

101. A elaboração da Constituição ............................................................... 281

102. Fontes e projecto................................................................................... 281

103. Direitos fundamentais............................................................................ 282

104. Sistema de governo.............................................................................. 283

A Constituição de 1911

105. A elaboração da Constituição ............................................................... 284

106. Fontes e projecto................................................................................... 285

107. Direitos fundamentais............................................................................ 287

108. Sistema de governo............................................................................... 289

109. A fiscalização da constitucionalidade pêlos tribunais.......................... 290

110. As leis de revisão constitucional.......................................................... 291

111. A alteração de 1918............................................................................... 292

CAPÍTULO In

A CONSTITUIÇÃO DE 1933

12. A elaboração da Constituição ............................................................... 293

13. Fontes e projecto................................................................................... 297

14. Direitos fundamentais............................................................................ 301

15. Um «Estado sem partidos»................................................................... 302

16. A Constituição económica..................................................................... 304

17. Sistema de governo............................................................................... 307

118. As revisões da Constituição.................................................................. 311

119. A prática constitucional e a natureza do regime.................................. 318

Page 453: 1 Manual de Direito ConstitucionalTomo I

Índice geral 435

CAPÍTULO IV

A CONSTITIÇÃO DE 1976

Págs.

120. Sequência...............................................................................................324

121. A ideia de Direito da revolução de 1974 e a Constituição.................326

122. As leis constitucionais revoucionárias.................................................330

23. O processo constituinte........................................................................333

124. As vicissitudes da elaboração da Constituição ....................................340

125. Caracter geral e sistema da Constituição............................................348

126. O conteúdo e as fontes da Constituição...............................................35

127. Os direitos fundamentais.......................................................................354

128. A democracia na Constituição..............................................................356

29. O socialismo e a Constituição económica..........................................358

130. O sistema de governo............................................................................360

31. O Conselho da Revoluço.....................................................................365

132. As regiões autónomas e o poder local.................................................367

133. A fiscalização da constitucionalidade...................................................368

134. A questão constitucional após 1976 .....................................................370

135. A primeira revisão constitucional.........................................................374

136. A segunda revisão constitucional..........................................................382

137. A terceira revisão constitucional...........................................................389

138. A quarta revisão constitucional.............................................................392

139. As revisões constitucionais e o sistema de governo............................403

140. O funcionamento do sistema de governo.............................................407

141. O desenvolvimento constitucional........................................................41

índices

Índice de Autores..................................................................................417

Índice geral............................................................................................429