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1 I Vidas Precárias: a experiência da arte na esfera pública

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vidas precárias

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons – Atribuição CCBY 4.0, sendo permitida a reprodução parcial ou total, desde que mencionada a fonte.

Arquivo Nacional Praça da República, 173, Centro 20211-350 | Rio de Janeiro | RJ Tel.: +55 21 2179-1253 www.an.gov.br

Programa de Pós-graduação em Artes (PPGArtes/Uerj) Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã 20550-900 | Rio de Janeiro | RJ Grupo Modos – História da Arte: Modos de Ver, Exibir e Compreender https://gpmodosdever.wordpress.com

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Presidente da República Jair Messias Bolsonaro

Ministro da Justiça e Segurança Pública Anderson Gustavo Torres

Diretora-geral do Arquivo Nacional Neide Alves Dias De Sordi

Coordenadora-geral de Acesso e Difusão Documental Patrícia Reis Longhi

Coordenador-geral de Administração Leandro Esteves de Freitas

Coordenadora-geral de Gestão de Documentos Mariana Barros Meirelles

Coordenadora-geral de Processamento e Preservação do Acervo Aluf Alba Vilar Elias

Coordenadora-geral regional no Distrito Federal Larissa Candida Costa

Organizador Luiz Cláudio da Costa

4 I Vidas Precárias: a experiência da arte na esfera pública

vidas precárias

a experiência da arte na esfera pública

Rio de Janeiro

2021

MINISTÉRIO DA JUSTIÇAE SEGURANÇA PÚBLICA

ARQUIVO NACIONAL

Luiz Cláudio da Costa

Organizador

Colóquio Vidas Precárias A Experiência da Arte na Esfera Pública Rio de Janeiro • 12 a 14 de novembro de 2018

Comissão científica do evento Luiz Cláudio da Costa (Modos/Uerj) Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (Modos/UnB) Leila Danziger (Uerj)

Equipe técnica da publicação

Coordenadora de Pesquisa, Educação e Difusão do Acervo Leticia dos Santos Grativol

Supervisora de Editoração Mariana Simões

Supervisora de Programação Visual Giselle Teixeira

Preparação de originais Maria Cristina Martins Mariana Simões

Revisão Maria Cristina Martins

Projeto gráfico Tania Bittencourt

Diagramação Giselle Teixeira

Capa Lucas Albuquerque

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)(Biblioteca Maria Beatriz Nascimento – Arquivo Nacional)

Ficha catalográfica elaborada por Josiane Rodrigues Monteiro (CRB 7/5594)

Colóquio Vidas Precárias (2018 : Rio de Janeiro, RJ). Vidas precárias: a experiência da arte na esfera pública [recurso eletrônico] / Organizador Luiz Cláudio da Costa – Dados eletrônicos (1 arquivo : 3.127 Kb). – Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 2021. – (Publicações Avulsas ; 97) Formato: PDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN: 978-65-995573-6-1

1. Arte pública – Aspectos Sociais. 2. Espaços Públicos – Aspectos Sociais. I. Costa, Luiz Cláudio da, org. II. Título. III. Série. CDD 709

SUMÁRIO

A precariedade da arte e a imagem situada 7Luiz Cláudio da Costa

Território, política e teatro: algumas notas sobre a Cia Marginal (Rio de Janeiro) 17Isabel Penoni

Os retirantes de Portinari: entre a consagração e a crítica 24Maria de Fátima Morethy Couto

Imagem, colonialismo e resistência 44Sheila Cabo Geraldo

O humano e o não humano: as plantas e a precarização da existência 54Evando Nascimento

Um doce olhar: por uma informação com mais beleza e respeito à dignidade 65João R. Ripper

Paisagem e memória – ou: Riscos de trajetórias 72Livia Flores

Figuras do tempo: procurando Antígona[s] 80Patricia Franca-Huchet

Colecionar imagens na era da pós-verdade 91Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

Arquivo e ficção: um programa de ação curatorial 102Ana Pato

Histórias anônimas no Arquivo Nacional 116Floriano Romano

A Hidra do Iguaçu 124Cristiana Miranda

O paraíba: profecia e prenoção nos fluxos migratórios 134Christus Nóbrega

Seguem os destroços celestes 143Leila Danziger

Estética e descolonização: Der leone have sept cabezas, de Glauber Rocha 150Pedro Hussak Van Velthen Ramos

Vozes ocultas: natureza, arquitetura e herança negra na cidade do Rio de Janeiro 161Rosana Paulino

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A precariedade da arte e a imagem situada

Luiz Cláudio da Costa1

Não estamos imediatamente presentes para nós mesmos

Donna Haraway

Uma espécie de visão em que ver é ver mais do que o olho encontra

Emmanuel Alloa

Apresento neste espaço as ideias principais que guiaram a concepção do colóquio Vidas Precárias – A Experiência da Arte na Esfera Pública, que organizei junto ao Arquivo Nacional. O evento foi pensado como parte de um projeto integrado que abarca duas fases: o encontro científico realizado em novembro de 2018 e uma exposição de obras artísticas que ocorreria em 2020. Os trabalhos reunidos na exposição serão elaborados a partir de pesquisas individuais implementadas nos fundos de documentos do Arquivo Nacional pelos oito artistas convidados do projeto.

Para o colóquio, contamos com a presença de vinte especialistas, entre curadores, sociólogos, filósofos, artistas, incluindo-se os participantes da segunda fase da pesquisa. Para a abertura, tivemos a conferência do artista-fotógrafo austríaco radicado na França, Arno Gisinger, e, para o encerramento, contamos com a palestra do professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, Ruy Braga.

As mesas temáticas foram constituídas segundo os assuntos tratados nas propostas de apresentação enviadas pelos participantes à organização do encontro: O Teatro e a Comunidade; Modos de Ver; Existência e Resistência; Coleções e Arquivos; Resistências nos Anos 70. Entre os convidados para esses debates estiveram: Carmen Luz, Isabel Penoni, Fátima Morethy Couto, Sheila Cabo Geraldo, Evando Nascimento, João Roberto Ripper, Emerson Dionisio G. de Oliveira, Ana Pato, Pedro Hussak e Ana Maria Albani de Carvalho.

Para completar as discussões, a organização do encontro idealizou um conjunto de três mesas intituladas O Trabalho no Arquivo Nacional (Conversa com os Artistas) com o intuito de agrupar os oito participantes da exposição, mediados pelo autor desta apresentação: Livia Flores, Patricia Franca-Huchet, Floriano Romano, Cristiana Miranda, Christus Nóbrega, Leila Danziger, Rosana

1 Docente e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/Uerj). Bolsista Produtividade do CNPq e do Programa Prociência da Uerj/Faperj. Membro do Grupo Modos – História da Arte: Modos de Ver, Exibir e Compreender.

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Paulino e Tato Teixeira. O objetivo era que os artistas expusessem as propostas de pesquisa e de realização das obras enviadas ao proponente do projeto, bem como o andamento do trabalho.

O colóquio foi ainda enriquecido pela exposição Vida Brincante, com curadoria do mestre em antropologia formado pela Uerj, Francisco Valdean, que reuniu quatro fotógrafos da periferia do Rio de Janeiro: Marcia Farias, Rosilene Miliotti, AF Rodrigues e Davi Marcos.

Como último comentário, informo que alguns textos, inclusive as duas conferências de abertura e de encerramento, não constam destes anais em razão de não terem sido entregues em tempo ao organizador deste registro. Todas as intervenções, contudo, podem ser assistidas em vídeos encontrados na nossa página do Facebook. As apresentações publicadas aqui seguem a ordem das falas proferidas no evento.

O projeto integrado é uma atividade da pesquisa que desenvolvo no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/Uerj). A parceria com o Arquivo Nacional e o auxílio do CNPq têm sido cruciais para a execução de toda essa iniciativa até seu ponto final. Ressalto, com isso, a importância da cooperação entre as instituições públicas e da atuação das entidades de fomento no auxílio à pesquisa e na estruturação de uma cultura crítica no Brasil. Deixo agradecimentos sinceros aos meus orientandos, Lucas

Figura 1 – Da esquerda para a direita: Luiz Cláudio da Costa, Philippe Michelon e Arno Gisinger, na abertura do colóquio Vidas Precárias. Foto: Renato Teixeira

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Albuquerque e Karla Gama, que, junto aos funcionários do Arquivo Nacional, têm se dedicado com energia para tornar esse empreendimento viável. Agradeço, ainda, a colaboração de duas alunas envolvidas na execução dos anais por meio de uma disciplina voltada para projetos de pesquisa, Aline Rena e Jaqueline Namorato.

O texto a seguir, em formato de apresentação destes anais do colóquio Vidas Precárias, é uma versão revisada do original escrito para a abertura oficial do evento. O objetivo era tratar, de modo breve, as questões principais que serviram de base para todo o projeto, sobretudo, para a compreensão da perspectiva política de uma arte considerada em sua precariedade e em sua relação com a precariedade da vida. Uma vez enunciado este preâmbulo, passo ao desenvolvimento das ideias matrizes que orientaram a conformação dessa iniciativa.

Quando avaliava os artistas que convidaria para o projeto integrado Vidas Precárias, considerei como primeiro critério o procedimento da incorporação: artistas que usassem a ferramenta da apropriação de material pronto extraído da realidade, visual ou sonoro. O segundo critério consistiu em rastrear poéticas cujos trabalhos indicassem sensibilidade para o uso de documentos sem a obviedade da comprovação ou da representação do passado. Tratava-se de adotar uma política da memória que não subjugasse as imagens do passado à evidência do figurativismo. Minha intuição me levava a Walter Benjamin, para quem a

Figura 2 – Exposição Vida Brincante, com curadoria de Francisco Valdean. Foto: Renato Teixeira

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rememoração tem origem no presente e visa à redenção: “O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção” (apud Löwy, 2005, p. 48). A tarefa da memória histórica implica não somente a lembrança da violência sofrida, mas a possibilidade da reparação daqueles que foram derrotados combatendo injustiças e arbitrariedades. Mas, no campo da arte, de quem é a competência para imaginar tal tarefa, do artista ou do espectador? Esse é o problema ético fundamental do nosso projeto: como pensar uma arte política e uma política da memória sem vulgarizar o trabalho nem menosprezar o papel ativo do espectador na constituição dos sentidos daquilo que vê? A arte realizada a partir de arquivos volta-se para o sofrimento do passado e se compromete com a precariedade que situa o espectador no espaço onde se constituem as imagens do trabalho.

Uma dentre as várias maneiras de pensar a precariedade na arte foi trabalhada por artistas dos anos 1970, entre os quais, no Brasil, encontram-se Paulo Bruscky, Artur Barrio, Anna Bella Geiger e muitos outros. Ainda na primeira metade dos anos 1960, contudo, Lygia Clark elaborou em seus escritos a precariedade como “novo conceito de existência” (1966). A precariedade dos suportes qualificava a arte crítica nos tempos conceitualistas, aquela arte realizada em meios como xerox, cartão-postal, fotografia, papel-carta, papel-jornal etc. Esse modo da precariedade explícita na superfície visível do trabalho colocava-nos diante da impermanência crucial da obra de arte na contemporaneidade. Com efeito, a obra precária coloca em jogo a incerteza própria da experiência do olhar onde a forma é inquieta, prestes a sofrer transformações diante daquele que olha. Na arte, a obra torna-se eficaz quando proporciona esse olhar do objeto que fita o espectador, então, perturbado em sua autonomia de sujeito agindo segundo sua própria vontade.

Olhar é uma atividade, mas ela pressupõe um componente de passividade. Olhar é, em primeira instância, ser paciente do olhar do outro. Esse momento funda a possibilidade de Ver do sujeito, ato que conquista e subordina o outro como objeto. Entre os anos 1950 e 60, Merleau-Ponty e Lacan destacaram as diferenças entre o olho e o olhar.2 Ver é constituir o objeto que temos diante de nós pela perspectiva a partir do olho do sujeito que conhece. O “eu” vê o mundo como evidência. O ato de conhecer pela perspectiva do olho faz do outro coisa de quem o eu é proprietário, faz do outro escravo de quem o eu é senhor, objeto de quem o eu é sujeito. Por outro lado, o olhar é sempre olhar do outro que desfaz esse eu constituído de modo narcisista e autônomo.

Em nossa relação com as coisas, na medida em que essa relação é constituída por meio da visão e ordenada nas figuras da representação, alguma coisa desliza, passa adiante, nos ultrapassa, de etapa a etapa, para ser sempre nisso de algum

2 No texto “A divisão entre o olho e o olhar”, Lacan rediscute o problema com referência a Maurice Merleau-Ponty (Lacan, 1998, p. 67-78).

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modo elidido – isso é o que chamamos de olhar. (Lacan, 1998, p. 73, tradução nossa)

Quando somos atingidos pelo olhar do outro, aparece-nos uma imagem falha, um espaço de figuras incertas (não mais as “figuras da representação”), em que o objeto é antes um assombro devido à sua singularidade terrível, mas surpreendente. O olho que vê (o sujeito que conhece e representa o mundo) não pode dominar esse Real bruto e espantoso que chega com o olhar do outro. Lacan chamou de “encontro faltoso” essa figura do Real, essa imagem vinda do vazio da perda desse mesmo “eu”. É a evidência da coisa que malogra com o ato do olhar do outro.

O que se espera da arte é a experiência desse espaço espesso de incertezas e cheio de afetos, um espaço de figurabilidade que nada tem a ver com a figuração ou representação de objetos do mundo, mas com imagens que se metamorfoseiam, se condensam, se deslocam. Esse é um espaço com outra formação – outra distribuição, outro arranjo, outra lógica –, constituído pela experiência de formas precárias e vacilantes, contingentes e com perspectivas parciais (Haraway, 1998). São imagens instáveis em suas significações justamente porque envolvem o outro, o desconhecido. O espaço da precariedade e instabilidade gerado pela obra de arte é sintoma dessa experiência. A obra de arte é política não quando representa, mas quando promove essa experiência de imagens-sintomas que, de algum modo, são traços da memória particular (que é já coletiva). São imagens que manifestam o espaço precário da obra, o lugar do “encontro faltoso” (ou abundante) dos sofrimentos recalcados, das alegrias inimagináveis, das memórias enclausuradas, dos conflitos em embate. Como diz Emmanuel Alloa, ver com a imagem é “uma espécie de visão em que ver é ver mais do que o olho encontra” (2019, p. 16). É nesse espaço do olhar que a arte política trabalha; um espaço de significações precárias, falhas, mas repleto de possibilidades, de imagens em formação, em transformação.

A arte é política não porque exibe ou atua no mundo constituído, mas porque visa à emancipação daquele que olha. Ela mina os sistemas constituídos no sujeito e demanda sua apreciação posicionada naquela situação particular, seu parecer sobre a situação suscitada, sobre aquele mundo de sentidos em constituição – um mundo a se construir junto àquele outro que o olha. A arte é política porque produz sujeitos contingentes, sujeitos dependentes dessa alteridade que engendra as formas em função da força, da intensidade desse espaço que é espaçamento até o outro.

A precariedade fala, portanto, da vida, essa estranha vida que suspende o sujeito da consciência, bloqueando a evidência do mundo. A relação de uma arte comprometida com a vida já foi teorizada por Peter Burger em meados dos anos 1970 em relação às vanguardas. Para Burger, ao recusar a “arte pela

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arte”, as vanguardas históricas buscaram uma superação da arte na direção de “uma nova práxis vital” (1993, p. 91). Desde Baudelaire, a arte que se tornava exclusivamente arte tenderia a desaparecer. Assim, desde a modernidade, a arte só é verdadeiramente arte ao figurar aquilo que ela não é, ou seja, a vida. Mas que vida é essa que a arte figura?

Lévinas chamou de “rosto” não uma expressão figurativa da face humana, mas a figura da precariedade da vida. Questionou o ponto de partida no sujeito tal como colocado por certa fenomenologia: “a obra do conhecimento começa a partir do objeto” (2012, p. 28). O nascimento do sentido do mundo parte do outro que nos olha e nos demanda responsabilidade. Ele diz: “A consciência é questionada pelo rosto”. Ou ainda: “O rosto desconcerta a intencionalidade que o visa” (ibid., p. 52). É a vulnerabilidade da vida que nos olha quando olhamos o outro como rosto. Judith Butler afirma que o rosto, para Lévinas, “é sempre a figura de algo que não é literalmente um rosto” (2011, p. 26). Então, o rosto não é o rosto literal de uma pessoa humana ou a imagem figurativa do rosto humano. Segundo Butler, é a figura da “vocalização sem palavras do sofrimento” (ibid., p. 18). Reconhecer o outro é reconhecer a violência da vida, a possibilidade que o outro tem de morrer.

O que significa, então, uma arte comprometida com a figura da precariedade? A vida que essa arte figura nada tem a ver com a vida dos heróis ou dos vitoriosos da história, porque a precariedade exprime também a perda, o malogro, o fracasso. Não há imagens certas e adequadas para a arte comprometida com a precariedade que possam exprimir de modo mais verdadeiro a realidade, pois a própria realidade falta em sua totalidade. Embora haja inadequação e fracasso na figura da precariedade, não se trata de defender aqui o irrepresentável, o inimaginável, a representação em sua impossibilidade. O fracasso em representar não implica a ausência de imagens, a impossibilidade de se imaginar aquilo que vemos ou vivemos. George Didi-Huberman expressou-se “contra todo e qualquer inimaginável” em seu livro Imagens apesar de tudo (2012). Para ele, a violência contra a vida não é inimaginável, embora esta seja experiência necessária para o gesto que resiste ao silêncio da violência sofrida, possibilitando “erguerem-se imagens do terrível” (ibid., p. 87). “Uma vez que a imagem é feita para ser vista por outrem – para arrancar ao pensamento humano em geral, o pensamento do ‘fora’, um imaginável para aquilo de que ninguém, até então [...] entrevia a possibilidade” (ibid., p. 19).

A arte comprometida com a figura da precariedade resiste à violência do inimaginável; resiste à estética do irrepresentável que integra a representação (Rancière, 2012, p. 119-149). Repetir o trauma do passado é imaginar o futuro. O Brasil é uma sociedade que esconde sua própria violência, que nega o sofrimento que ela mesma causa e produz. O trauma tende ao recalque, ao apagamento, mas somente trabalhando-o, fazendo-o retornar como imagens-sintomas no

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espaço público, superaremos a violência de nossa história. Revendo, em 1914, o emprego das técnicas psicanalíticas diante da resistência de se recordar o que está reprimido, Freud afirma que o trauma esquecido se expressa nas ações do paciente: “Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem naturalmente saber que o está repetindo” (1996).

A arte precária pode imaginar os traumas da história, mas a atividade da rememoração ocorre no espaço situado entre a obra e o espectador. Somente provocado pelo olhar do objeto de arte, o espectador pode ser solicitado a imaginar a reparação do sofrimento das vítimas do passado. As imagens que se erguem do terrível não são representações; são figuras da precariedade da vida, figuras precárias que aparecem no espaço do olhar, em função do olhar do outro. A figurabilidade da obra de arte não se incumbe de uma imagem figurativa, mas da imagem que reflete a precariedade do outro como figura, “a humanidade do outro homem”, como diria Lévinas (2012).

A força da obra de arte encontra-se em sua capacidade de demandar do outro responsabilidade, posicionamento do olhar em relação à precariedade da vida, às vidas vividas, às vidas brincantes, às vidas esquecidas, às vidas violentadas, essas que deixaram rastros, marcas, registros em fundos de documentos de arquivos pessoais ou públicos. Essa é uma arte comprometida com a construção do espaço público, com o resgate das memórias da coletividade. Arlette Farge, historiadora francesa dos arquivos prisionais do século XVIII, propõe que o sofrimento seja um “lugar para a história” (1997). Ela fala da necessidade de encontrar as palavras de sofrimento nos arquivos, nos interrogatórios, nos processos verbais que colocaram pessoas anônimas diante da polícia. Diz que as “palavras contam das vidas que se quebraram ou que, de uma maneira ou de outra, simplesmente conheceram a dor e o sofrimento” (ibid., p. 19).

O artista produz objetos que geram imagens. Essa experiência vivida pelo espectador abre o espaço da coatividade do olhar, franqueia o espaçamento que é condição para o posicionamento do olhar. A imagem da obra de arte é situada entre dois espaços e dois tempos, os da realização e os da recepção. A obra endereça ao espectador uma estranha demanda que não passa pelo sujeito da consciência. É o olhar do outro que o atinge da distância e solicita responsabilidade, apreciação posicionada. Diante da obra de arte, somos surpreendidos por esse algo que nos olha, essa voz que nos interpela da distância e cria um espaço espesso que nos inclui. Ouvir essa voz é responder ao sofrimento, às alegrias, às demandas não vocalizadas de que a obra é figura. Foi com essa exigência em mente que nasceu o projeto Vidas Precárias. O intuito era pensar a função da arte no espaço público, a função da arte na construção compartilhada do sensível, ou seja, da percepção e do imaginário públicos e coletivos. Tratava-se, então, de gerar esse espaço de compartilhamento dos traumas esquecidos, das violências negadas, com as obras realizadas a partir de pesquisas nos fundos de documentos do Arquivo Nacional.

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Esperamos delinear, com a futura exposição, esse espaço de imagens resistentes ao silêncio dos traumas.

Diante de uma obra de arte, nos damos conta de seu grande segredo: nunca estamos presentes a nós mesmos ao direcionarmos o olho para aquilo que nos olha da distância. A obra de arte é realizada por alguém e contemplada por um outro. A distância entre essas duas subjetividades, esses dois olhares, esses dois tempos, esses dois espaços, gera os sentidos da obra. Dessa distância, desse espaço profundo do olhar, nascem aparições, imagens que se formam, retornam, se condensam e se transformam. O espaço da experiência da obra de arte é o espaço das imagens situadas nessa espessura reversível entre aquele que vê e o olhar do outro. Nem ao artista, nem ao espectador podem ser atribuídos os sentidos últimos do trabalho de arte. Nem um nem outro tem autoridade completa sobre as imagens geradas pelo trabalho. Um e outro, tendo autonomia em suas capacidades, compartilham os sentidos e os gestos do trabalho.

Merleau-Ponty usou a expressão “espacialidade de situação” no livro Fenomenologia da percepção para pensar como o corpo se relaciona com o espaço em seu entorno (1994, p. 146). O interesse do filósofo era pensar o conhecimento sensível das formas a partir do corpo que se movimenta no espaço. Para Merleau-Ponty, esse saber não era fruto de uma racionalização abstrata da figura posicionada no plano das coordenadas. O corpo é uma forma entre outras, situado no mesmo espaço que elas. Em suas palavras: “Quando digo que um objeto está sobre uma mesa, sempre me situo em pensamento na mesa ou no objeto”. Na Fenomenologia da percepção, a noção chave que governava o saber sensível das formas era a intencionalidade que partia do olho, isto é, do sujeito. Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty salta para a outra ponta desse espaço e afirma mais claramente a reversibilidade entre o eu e o outro, o entrelaçamento das percepções privadas (1992, p. 127-150). A arte que se compromete com a precariedade situa suas imagens nesse espaço reversível instituído pela demanda do olhar do outro.

Não se vê e não se faz obra de arte com os olhos (orgânicos ou técnicos), como se fosse ciência objetiva. Ver nas artes é atividade interna ao espaço profundo do olhar partilhado. Se a arte cria uma comunidade, não é uma comunidade universal de verdades científicas, metafísicas ou de gosto. O comum na arte diz respeito à coatividade dos olhares, a coconstrução de saberes por capacidades sempre particulares. Na arte, a tarefa da produção dos sentidos e de gestos resulta da atividade realizada nessa espacialidade de situação, o espaço comum das imagens. É nesse sentido que a arte é política. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval (2017), o comum é o princípio político segundo o qual poderemos construir a vida em sociedade. O comum, segundo os autores, não diz respeito a uma espécie de comunidade de pertencimento como se compreendem as comunidades tradicionais: “O comum deve ser pensado como coatividade e não como copertencimento, copropriedade ou copossessão” (ibid., p. 52).

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A arte não é política por participar da atividade da política. Tampouco por realizar representações claras. A arte se solidariza com a vida democrática, mas não dá a ver a violência de modo mais verdadeiro, reificando o constrangimento contra mulheres, negros, índios, judeus, imigrantes, gays, lésbicas, travestis, transexuais, porque ela não é representação realizada por um sujeito. Ela é coatividade, atividade compartilhada. Ela é imagem-sintoma gerada a partir do olhar do outro. A precariedade é sempre dimensionada por esse olhar que condiciona as imagens dispostas no espaço público das memórias coletivas.

A representação do visível não é o lugar de atuação da arte. A arte participa da emancipação dos sujeitos acionando as capacidades particulares a partir do espaço do olhar. A arte é política não quando indica as direções para o olhar do outro nem quando sugere os caminhos para os gestos e ações do outro. A obra é política quando se constrói como “estranheza radical” no âmbito do espaço compartilhado do olhar, essa estranheza da nudez do rosto do outro, da precariedade da vida (Lévinas, 2012, p. 51-52). A obra de arte atinge, em razão de sua estranheza radical, uma dimensão ética que envolve a construção da vida em comum, a construção do espaço público das imagens.

Referências

ALLOA, Emmanuel. Virada icônica: um apelo por três voltas no parafuso. Revista Modos, v. 3, n. 1, 2019. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8662932. Acesso em: 22 jun. 2019.

BURGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Veja, 1993.

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea: revista de sociologia da UFScar, v. 1, n. 1, jan./jun. 2011. Disponível em: http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contempo-ranea/article/view/18. Acesso em: 22 jun. 2019.

CLARK, Lygia; CRISTIAN, Ernesto et al. In: Opinião 66. Exh. cat. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1966.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Pau-lo: Boitempo, 2017.

FARGE, Arlette. Des lieux pour l’histoire. Paris: Éditions du Seuil, 1997.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. (Novas recomendações sobre a técnica psi-canalítica II). In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, edição standard brasileira. v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988. Disponível em: https://philpapers.org/archive/HARSKT.pdf. Acesso em: 22 jun. 2019.

LACAN, Jacques. The split between the Eye and the Gaze. In: ______. The four fundamental concepts of psychoanalysis (Book XI). New York; London: W. W. Norton & Company, 1998.

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 2012.

LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “sobre o conceito

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de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

______. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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Território, política e teatroAlgumas notas sobre a Cia Marginal (Rio de Janeiro)

Isabel Penoni1

As relações entre território, política e teatro marcam incontornavelmente a cena contemporânea brasileira. A emergência de corpos, vozes e narrativas dissidentes em cena, e da questão da “representatividade” como operadora fundamental para se pensar o teatro do presente, pode ser atribuída fundamentalmente, a meu ver, ao trabalho continuado de grupos situados nas periferias das cidades, que representam “localizações sociais” ou “lugares de fala” secularmente marginalizados (Ribeiro, 2017). Esses coletivos, alguns deles já com mais de uma década de estrada, foram aos poucos deixando as bordas dos circuitos de difusão e fruição artísticos para se situarem no centro das inquietações contemporâneas no campo das artes cênicas. Tal realidade se expressa numa mudança notável na perspectiva de curadorias dos principais festivais e equipamentos culturais do país, que vêm cada vez mais pautando em suas programações trabalhos de “grupos não neutros, marcados por seus lugares sociais e na contramão de um olhar eurocêntrico sobre as artes cênicas”, como, por exemplo, a curadoria do último Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, o FIT BH.

Neste texto, abordo a trajetória e o trabalho de um desses coletivos, que, como nos mostra Trotta (2018), possui um papel pioneiro na construção de uma cena que vem questionando saberes, narrativas e modos de produção hegemônicos ou tidos como universais. Formada em 2005, na Maré (maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro), a Cia Marginal reúne além de mim, na direção do trabalho, mais uma produtora e seis atores, todos eles moradores do bairro. Trata-se de um grupo que integra pessoas de dentro e de fora da comunidade em torno de uma abordagem da cidade a partir de suas margens, bordas, de seus espaços periféricos. Com cinco espetáculos no repertório, o grupo, que, inicialmente, restringia a circulação de suas obras quase que exclusivamente ao território da Maré, vem ampliando significativamente sua escala de atuação. Além de já ter exibido seus trabalhos nos principais teatros do Rio de Janeiro e em alguns dos mais importantes festivais nacionais, a companhia circulou, entre 2018 e 2019, por mais de quarenta cidades em 15 estados brasileiros, com patrocínio do Sesc Nacional, Sesi-RJ e BR-Petrobras. Trata-se, portanto, de um grupo que já superou

1 Diretora e pesquisadora teatral, cineasta, antropóloga, professora adjunta do Departamento de Ensino do Teatro da Unirio, integrando também o quadro de docentes do Programa de Pós-graduação em Ensino das Artes Cênicas (PPGeac/Unirio). Desenvolve projetos de formação em teatro, criação cênica e produção fílmica na Maré (Rio de Janeiro) e em diferentes áreas periféricas do mundo, investigando particularmente as relações entre encenação, processos colaborativos e pedagogia. É diretora fundadora do grupo teatral carioca Cia Marginal.

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as fronteiras do local, deslocando-se regularmente do contexto “comunitário” a escalas cada vez mais amplas de difusão teatral.

Para contar um pouco mais sobre sua história, é importante dizer que ela foi marcada por alguns momentos de transição fundamentais, a saber, de “projeto social” para “grupo de teatro”, e depois de “grupo de teatro da Maré” para “grupo de teatro da cidade”. Ao longo desse percurso, sobre o qual discuto mais longamente no artigo “Formação de grupo e criação coletiva na periferia do Rio de Janeiro: um relato sobre a trajetória e a escrita cênica da Cia Marginal” (Penoni; Trotta, 2015), um enfrentamento foi e ainda é constante, a luta contra a ideia de que o teatro produzido em periferia se baseia em assistencialismo e numa estética de carência, i.e., numa lógica “embrutecida” que pressupõe posições hierarquizadas de transmissão de saber, onde há sempre um que precisa ser salvo, emancipado, e outro que instrui e liberta. Num primeiro momento, essa luta foi travada pelo grupo no interior da própria Maré, uma vez que passamos a disputar a possibilidade de criação e permanência de um coletivo artístico num território dominado pela ideia de “projeto social”. Com o tempo, o embate passou a ser travado no âmbito da cidade como um todo, sobretudo a partir de 2001, quando o grupo decide difundir seu trabalho nos equipamentos oficiais de teatro do Centro e da Zona Sul, esbarrando com isso numa expectativa de gestores, curadores e do público em geral com relação ao nosso trabalho, que quase sempre traduzia os sentidos restritivos (de carência, exclusão e opressão) associados às noções de “comunidade” e favela.

É preciso dizer que até hoje acontece, como foi relativamente frequente nos debates após as apresentações no circuito do Palco Giratório do Sesc em 2018, de um espectador ou um jornalista perguntar aos atores do grupo de que forma o teatro “salvou” a vida deles, ou ainda direcionar aos atores perguntas sobre a “realidade da favela”, enquanto endereçam a mim (a diretora branca) perguntas de ordem artística e estética sobre o trabalho. O embate contra uma noção de “comunidade” e favela homogeneizante e reducionista definiu não só as estratégias do grupo com relação à difusão do trabalho, à captação de recursos, à sua comunicação e gestão interna, mas também às estratégias político-poéticas de criação e montagem de cada um de seus espetáculos, marcando de forma incontornável sua pesquisa de linguagem. Neste texto, interessa-me justamente pensar de que maneira aquele embate se dá ou se expressa na obra artística do grupo, por meio de um modo particular de elaboração do “real” e do entorno social em cena.

Narrativas alternativas sobre localizações periféricas

Em primeiro lugar, é importante dizer que o trabalho da Cia Marginal nasceu da vontade de apresentar em cena “narrativas alternativas” sobre a favela, para usar os termos de Coutinho (2012). Ou seja, de uma vontade de afirmar um

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retrato mais complexo, multifacetado e plural da favela, que contrariasse ou ressignificasse a imagem homogênea, uniforme e estereotipada difundida pelos grandes meios de comunicação e articulada pelo senso comum. Assim, em todos os seus trabalhos, o grupo procurou mostrar diferentes faces constitutivas dos espaços de favela. O que se apresenta inclusive numa crítica (ou numa revisão) com relação às nossas próprias escolhas de abordagem ao longo do tempo. Por exemplo, se nos primeiros espetáculos a busca por “narrativas alternativas” se expressava numa cena que reforçava os vínculos de pertencimento com a favela, no último espetáculo os atores expõem em cena o desejo de irem embora da Maré.

A presença do ator negro e favelado em cena é outro fator marcante do trabalho e determinante para a ressignificação de seus próprios corpos e vozes, pois agenciam em si narrativas contra-hegemônicas. Sua presença reforça ainda o caráter performativo de nossos espetáculos, o qual decorre, em grande medida, do recurso a relatos autobiográficos, que não se apoiam apenas na capacidade do ator de contar o que viu, sofreu e experimentou, mas na própria presença de um corpo que viu, sofreu e experimentou aquilo que conta (Cornago, 2008). Contudo, não é apenas no plano da performatividade que o ator da Cia Marginal opera. Em cada uma de nossas peças, ele transita da presença “aqui, agora” para a representação de personagens ficcionais, num jogo cênico que marca de forma incontornável o “teatro contemporâneo”.

Em cada um daqueles dois polos, um tipo diferente de narrativa e de imagem da favela e de seus moradores emerge. No polo da presença está em jogo um registro íntimo, subjetivo e singular, enquanto no polo da representação se trata de articular imagens e narrativas abrangentes, coletivizadas e públicas dos espaços periféricos e seus agentes. O deslocamento realizado pelo ator entre esses dois polos talvez constitua nossa principal estratégia poético-política para a produção de uma comunidade que não se estabiliza ou se fixa numa imagem homogênea e coesa. Para exemplificar essa operação, quero abordar aqui o nosso espetáculo mais recente, chamado Eles não usam tênis naique, com o qual circulamos por mais de quarenta cidades em todo o Brasil nos últimos anos.

Eles não usam tênis naique

O espetáculo Eles não usam tênis naique foi montado em quatro meses intensivos de ensaio, estreando em agosto de 2015, no teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Trata-se do primeiro texto teatral encenado pela Cia Marginal, já que todos os nossos espetáculos anteriores resultaram de dramaturgias produzidas a partir de processos colaborativos. Escrito no início dos anos 2000 pela autora e dramaturga carioca Marcia Zanellato, o texto do espetáculo gira em torno de um embate ideológico entre pai e filha, ambos envolvidos com o tráfico de drogas. Ao longo de nossos 13 anos de trabalho continuado, sempre

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procuramos evitar o tema do tráfico, por constituir a lente pela qual a sociedade olha e o Estado formula suas políticas públicas para os espaços de favela. Então, quando finalmente tivemos que enfrentar em cena esse tema, sabíamos que seria preciso encarar ao mesmo tempo as abordagens dominantes e hegemônicas que se fazem dele.

Por um lado, o texto da Marcia Zanellato favorecia essa nossa perspectiva. Antes de tudo, porque ela opta por olhar para o tráfico do ponto de vista do traficante, mais que isso, a partir de uma relação familiar, o que confere um caráter afetivo a um contexto geralmente visto como desumano. Além disso, o texto faz um paralelo explícito com o clássico de Guarnieri, Eles não usam black tie, que também é ambientado numa favela e gira em torno de um embate ideológico num contexto familiar, mas entre pai e filho numa família de operários, e não de traficantes. O paralelo com Eles não usam black tie nos permitiu, assim, olhar para o tráfico como trabalho, e não apenas como crime, o que foi enfatizado pela escolha do figurino que lembra as vestimentas dos trabalhadores urbanos contemporâneos. Além disso, a autora realiza com Eles não usam tênis naique uma inversão interessante, convertendo o personagem do filho num personagem feminino. Essa inversão não é banal, sobretudo considerando que a imagem dominante do traficante é fundamentalmente masculina. Então, poder discutir o tema do tráfico por meio de uma personagem feminina, por si só, já causa uma estranheza, uma desestabilização.

Contudo, o texto também nos trazia algumas inquietações, sobretudo formais, em relação ao seu caráter realista e à sua linearidade. Em grande medida, a proposta de encenação do espetáculo responde a essas inquietações, sobretudo como forma de aproximar o texto do projeto artístico do grupo, marcado por produções dramatúrgicas fragmentadas, não lineares e de forte cunho documental. Dentre as principais estratégias de encenação que nos propusemos logo no início do processo, estão: 1) o revezamento dos cinco atores do elenco do espetáculo nos dois papéis do texto; e 2) a inserção de extratos autobiográficos e momentos em que o ator imprime uma opinião pessoal sobre algo que está sendo discutido em cena.

O revezamento entre os atores foi nossa principal estratégia para enfrentar o caráter realista do texto, convertendo os dois personagens em posições a serem defendidas pelos cinco atores, alternadamente. Sem qualquer compromisso com uma representação verossimilhante, cabia a eles apenas defender o ponto de vista dos primeiros como se fossem seus. A descontinuidade entre a figura dramática e o corpo do ator (que quase sempre contrastava em idade, gênero e cor com a primeira) já provocava alguma instabilidade entre as ordens da representação e da presença no espetáculo, que foi acentuada pelo engajamento afetivo dos atores em cada uma daquelas posições que defendiam. O tema do

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tráfico atravessa particularmente a vida dos atores, por serem todos moradores de espaços populares e conviverem desde sempre com a violência gerada pela guerra às drogas. Então, a ideia era que cada uma daquelas posições/personagens ficcionais funcionasse como um dispositivo capaz de acionar um universo íntimo de afetos e emoções. Esse seria, portanto, um primeiro nível de elaboração do real em cena.

Se o rodízio dos atores constituiu nossa principal estratégia para romper com o caráter realista do texto, a inserção das cenas documentais ou autobiográficas serviu para tensionar ainda mais os limites entre o “real” e a ficção na peça. A produção dessas cenas partiu de provocações que fiz aos atores ao longo dos ensaios, levando-os a expressarem verbalmente uma opinião pessoal sobre algum tema presente no texto ou a compartilharem com os outros uma experiência íntima. Objetivamente, três perguntas foram extraídas do texto (ou formuladas a partir dele) e colocadas para os atores, a saber: a pessoa já nasce bandido ou se torna um? O que fazer com a presença de crianças no tráfico? Você tem vontade de ir embora do lugar onde vive?

As duas primeiras perguntas resultaram em debates entre dois ou mais atores em cena, em que se confrontam opiniões divergentes sobre temas levantados pelas perguntas. Em ambos os casos, o trabalho começou com os atores improvisando com suas opiniões pessoais sobre as discussões detonadas pelas indagações. Aos poucos, consolidamos duas posições contrastantes, que, de certo modo, expressavam uma polaridade presente na sociedade em relação àqueles assuntos. A polaridade construída em cena no debate sobre aqueles temas se mantinha em continuidade formal com o embate ideológico entre pai e filha que estrutura a peça como um todo, de modo que a inserção daqueles extratos cênicos construídos a partir dos discursos pessoais dos atores não rompeu com a fluidez do texto, mas, ao contrário, deu continuidade a ela, sem que percebêssemos bem a mudança de registro. Além disso, naqueles dois momentos, optamos por manter uma espécie de quarta parede que, de modo geral, mantém-se ao longo de quase todo o espetáculo.

De maneira diferente, as respostas para a terceira pergunta – “Você tem vontade de ir embora do lugar onde vive?” – foram articuladas em cena de modo a romper drasticamente com o fluxo do texto. Sentados no proscênio de frente para o público, cada ator narra experiências que justificam sua vontade de sair da Maré, além de descrever a casa em que um dia sonha em morar fora dali. Esta cena provoca no público uma espécie de choque de “real”. Ao romper com a estrutura das cenas anteriores, abandonando a polarização entre personagens/atores, estabelecendo a frontalidade com o público e trazendo à tona um tipo de material textual que contrasta com o todo, por se referir objetivamente às diferentes comunidades em que cada ator mora e aos vínculos que mantém com elas, a cena abre uma janela no espetáculo, desestabilizando de modo mais radical a percepção do espectador ao colocá-lo diretamente em contato com o mundo particular dos atores.

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Considerações finais

O “real” foi elaborado durante o processo de composição do espetáculo Eles não usam tênis naique de três formas principais. Na primeira, a experiência performativa não chega a romper com o texto original. Já na segunda, embora rompa com o texto, não compromete a estrutura cênica do espetáculo que opõe dialogicamente personagens e também atores. Finalmente, na última, explode-se tanto com o texto como com a estrutura cênica do trabalho, fazendo com que a figura do ator ganhe maior relevo (ou relevância) em relação aos diferentes personagens que interpreta. Assim, no decorrer da peça, a ambiguidade entre ator-personagem, que marca o trabalho como um todo, não se mantém equilibrada, mas oscila de momentos em que o ator se destaca em primeiro plano a momentos em que essa relação se inverte. De um extremo ao outro, varia também a experiência do “real” que o espetáculo promove, acentuando-se à medida que a presença do ator se torna cada vez mais nítida.

Acredito que as diferentes maneiras de elaboração do “real” na composição do espetáculo Eles não usam tênis naique são também diferentes estratégias poético-políticas na abordagem da “comunidade”, que é indiscutivelmente um personagem subliminar da peça – a “comunidade” que envolve e repele tanto personagens, como atores. Tal abordagem varia no espetáculo de uma perspectiva mais abrangente para uma mais particular. Por exemplo, no caso das cenas em que personagens/atores debatem entre si, o que parece estar em jogo é uma abordagem que sintetiza (e afirma) embates, confrontos e polarizações que vemos na “comunidade” como um todo, ou, ainda, que abrange a coletividade. Já na cena em que os atores se dirigem frontalmente à plateia, o espectador é levado a se conectar diretamente com a pluralidade das experiências subjetivas que povoam os espaços de favela, aproximando-os particularmente desse contexto específico. Mas isso não é tudo. A experiência performativa do trabalho, radicalizada na cena em que os atores se dirigem diretamente ao público, estabelece com o espectador mais que aquilo que Cornago (2008) chamaria de uma “utopia da proximidade”. Na medida em que os corpos presentes “aqui, agora” em cena são corpos negros e periféricos, produz-se acima de tudo uma abertura para novas possibilidades de fala e escuta entre os participantes.

Referências

CORNAGO, Óscar. Atuar de verdade: a confissão como estratégia cênica. Urdimento, Floria-nópolis, v. 13, p. 11-21, 2009.

______. Teatralidade e ética. In: SAADI, Fátima; GARCIA, Silvana (org.). Próximo ato: ques-tões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. p. 20-31.

COUTINHO, M. H. A favela como palco e personagem e o desafio da favela como sujeito. Rio de Janeiro: Faperj, 2012.

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PENONI, Isabel; TROTTA, Rosyane. Formação de grupo e criação coletiva na periferia do Rio de Janeiro: um relato sobre a trajetória e a escrita cênica da Cia Marginal. In: BALTAZAR, M. C. (org.). Teatro na margem. São Paulo: Hucitec, 2015.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

TROTTA, Rosyane. Teatro periférico e universidade: sinais de uma epistemologia da mar-gem no Rio de Janeiro. Moringa: Artes do espetáculo, v. 9, n. 2, p. 117-130, 2018.

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Os retirantes de PortinariEntre a consagração e a crítica

Maria de Fátima Morethy Couto1

Só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida,

e é ainda mais Severina para o homem que retira).

[…]

Só os roçados da morte compensam aqui cultivar,

e cultiva-los é facil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa,

de adubar nem de regar;

as estiagens e as pragas fazemos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear.

João Cabral de Melo Neto

(Morte e vida severina, 1954-55)

O “problema Portinari”

Em livro publicado em 1990, no qual analisa a importância da temática social na obra do pintor brasileiro Cândido Portinari (1903-1962), a historiadora Annateresa Fabris discute o que chama de “problema Portinari”.2 Aclamado em vida pela crítica e pelo público, sobretudo durante os anos 1930/1940, o artista carrega a fama de ter sido o pintor oficial do modernismo brasileiro, já que recebeu grande apoio não apenas de boa parte dos intelectuais modernistas, como também de diferentes governantes, e participou de vários projetos financiados, apoiados ou concebidos pelo Estado.

O entusiasmo que cercou seu trabalho nessas décadas (1930/40) expressa-se claramente na recepção de suas exposições individuais, que, via de regra, “recebiam cobertura simpática, quer por parte dos críticos modernos, quer por parte dos críticos acadêmicos” (Fabris, 1990, p. 7), além de grande afluência de público. Para os primeiros (críticos modernos), Portinari era a demonstração viva

1 Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Unicamp. Pesqui-sadora Produtividade do CNPq. Membro do Grupo Modos – História da Arte: Modos de Ver, Exibir e Compreender.

2 A obra mencionada relaciona-se diretamente à pesquisa de dissertação de mestrado concluída pela autora na Universidade de São Paulo em 1977. Trata-se de trabalho pioneiro na análise do legado portinariano.

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de que a experimentação formal poderia se dar com grande apuro técnico. Para os últimos (críticos acadêmicos), Portinari apresentava-se como um renovador que não abdicara de um saber técnico tradicional, visível no vigor plástico de suas composições e na força estruturante do desenho.

A importância estratégica de sua obra para a consolidação e difusão da arte moderna no Brasil não deve ser menosprezada. Como declarou Mário Pedrosa quando da morte de Portinari, “nós todos intelectuais e críticos que o sustentávamos na sua luta e que o tínhamos como escudo da causa do modernismo contra o academismo, sempre vimos nele um porta-bandeira” (apud Fabris, 1990, p. 7). Já Mário de Andrade, admirador confesso do artista, chega a afirmar, em artigo publicado em 1938, que Portinari era “a mais útil, a mais exemplar aventura de arte que já se viveu no Brasil”; um “modelo de artista integralmente dedicado à sua arte” e um “vigoroso exemplo moral”, para quem “não tem interesse a originalidade só pelo gosto de ser original”.3

O virtuosismo de Portinari, que se fez evidente desde o início de sua carreira, foi, naqueles anos, recorrentemente avaliado de modo positivo pelos modernistas, que pareciam se sentir na obrigação de sair em defesa de seu domínio técnico, de seu apego ao ofício do pintor e de sua expressão plástica tão diversificada. A este respeito, relembra Antônio Calado (2003, p. 57) que “a devoção de Portinari à arte clássica e sua fé no desenho fizeram dele um modernista sério, inimigo de facilidades e improvisações”. E Sérgio Millet escreve em 1948 (por ocasião da exposição do artista no Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro):

Censurou-se a Portinari o seu virtuosismo. O pintor é capaz de produzir um retra-to renascentista com a mesma perfeição que executa uma cabeça expressionista. A censura me parece deslocada, pois não sei como censurar a um artista o co-nhecimento de seu ofício. Não sei como profligá-lo por dominar seu instrumento de trabalho. E esse domínio é sem dúvida uma característica da arte de Portinari. Não há segredo que ele ignore e de alguns tira efeitos incríveis. (apud Fabris, 1990, p. 19-20)

As vozes críticas, dissonantes em relação a esse coro laudatório (do qual, é importante mencionar, não fariam parte Oswald de Andrade, Luís Martins e Geraldo Ferraz), tornam-se mais fortes no início dos anos 1950, momento de grande interesse nos meios de vanguarda brasileiros pelas experiências abstratas. Embora algumas das telas realizadas por Portinari nesse período (que seria o último decênio de sua vida) apresentem soluções abstratizantes – formas e espaço facetados por planos de cor e figuras humanas estilizadas –, ele não escondia sua aversão pelas correntes artísticas abstratas. A arte abstrata, declara o pintor para o escritor Antônio Calado (2003, p. 60), “é como a gente pedir a um engenheiro uma

3 Trata-se do artigo “Portinari”, publicado na revista Bellas Artes, Rio de Janeiro, n. 41-42, set./out. 1938. Ver: https://rl.art.br/arquivos/3100215.pdf.

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ponte para atravessar um rio e receber uma página cheia de números e cálculos. A gente quer é a ponte!”. Ao jornalista Ipiaba Martins, Portinari afirma, em 1949, que “todo artista que meditar sobre os acontecimentos que perturbam o mundo chegará à conclusão de que, fazendo seu quadro mais legível, sua arte, em vez de perder, ganhará e muito porque receberá o estímulo do povo”.4

Portinari participa com seis obras da primeira delegação brasileira na Bienal de Veneza, em 1950. No ano seguinte, tem sala especial na I Bienal de São Paulo – assim como Lasar Segall, Di Cavalcanti, Maria Martins, Victor Brecheret, Bruno Giorgi, Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo, figuras igualmente basilares de nosso modernismo.5 Entretanto, juntamente a Lasar Segall, decide não enviar trabalhos para a II Bienal de São Paulo, uma vez que teriam que passar pelo crivo do júri de seleção. Em entrevista concedida ao jornal Tribuna da Imprensa na época, Mário Pedrosa afirma que “nem Segall nem Portinari haviam feito falta à Bienal”, declaração que causou grande polêmica e levou o autor a explicar-se na sequência, em texto publicado no Diario Carioca. Nele, Pedrosa afirma que Portinari “não est[ava] em boa forma [...]. Infelizmente não só ele não fez falta, como fez até bem em não ter mandado nada para o parque do Ibirapuera”.6

Críticas dessa natureza sinalizam uma mudança em relação à avaliação da obra e do legado de Portinari; embora seu trabalho ainda tivesse grande visibilidade e voltasse a figurar em outras edições da Bienal de São Paulo, em salas especiais, ele não mais se colocava como paradigmático para uma nova geração de artistas e intelectuais.

Nos anos que se seguiram ao falecimento do artista, em 1962, em consequência de uma intoxicação progressiva pelo uso de tintas a óleo, a dimensão oficial e o caráter “conciliador” de sua obra (a meio termo entre o acadêmico e o moderno) continuaram a ser objeto de debate. Além disso, o monopólio exercido por Portinari no mundo da arte e da cultura brasileiras até os anos 1940 motivou, nas décadas que se seguiram a seu falecimento, dois movimentos distintos no campo historiográfico: por um lado, a necessidade de uma revisão abrangente de

4 A declaração consta do artigo “O abstracionismo já foi superado – declara Cândido Portinari”. Artes Plasticas, São Paulo, jan./fev. 1949.

5 Lembremos que o prêmio de melhor pintor nacional desta Bienal foi concedido a Danilo Di Prete.

6 Estes comentários constam do artigo “Dentro e fora da Bienal”, publicado no Diario Carioca em 14 de março de 1954 e reproduzido na coletânea Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília (Pedrosa, 1981). Na opinião do crítico, era “preciso acabar com a noção de que os artistas mais consagrados do país devem todos, sem exceção, fazer parte de cada mostra internacional que se realize, de dois em dois anos, em São Paulo. Em Veneza, nosso modelo, de cada vez variam os artistas que representam a Itália, conforme a orientação que cada Bienal imprima à sua direção. A tendência é alternar os artistas, sobretudo os grandes nomes” (Pedrosa, 1981, p. 49). Cabe, porém, registrar que Mário Pedrosa acompa-nhou de perto o trabalho de Portinari desde 1934, quando visitou uma exposição do artista na Galeria Itu, em São Paulo, e jamais renegou o importante papel desempenhado por sua obra no Brasil e no exterior.

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sua produção, tarefa realizada pioneiramente por Annateresa Fabris; por outro, o desejo de empreender novas pesquisas sobre o modernismo brasileiro que fossem menos contaminadas pela leitura de seus primeiros intérpretes.

Assim, embora Portinari continuasse a fascinar o público em geral (vide a homenagem que lhe foi prestada pela Casa da Moeda do Brasil em 1989, que estampou as notas de cinco mil cruzados com o rosto do artista),7 os estudos acadêmicos no campo das artes realizados no Brasil dos anos 1980/90 voltaram-se, de modo geral, para artistas que haviam sido desprezados ou pouco valorizados pela crítica modernista, e buscaram analisar o período a partir de outras perspectivas e inquietações.

Há de se ressaltar, contudo, que a criação do Projeto Portinari em 1979, por iniciativa do filho do pintor, João Cândido Portinari, forneceu recursos diferenciados para que novos estudos pudessem ser realizados, franqueando o acesso do público interessado a diversos documentos e informações sobre sua obra, além de promover exposições e coordenar a restauração de alguns de seus trabalhos. Com isso, possibilitou a preservação de sua memória e de seu legado artístico, situação bastante incomum no Brasil.8

Em 2016, uma grande exposição realizada no Masp deu novo destaque ao artista, reunindo 54 pinturas de sua autoria dedicadas a temas e figuras populares – trabalhadores em suas diversas atividades (lavradores de café e de outras culturas, lavadeiras, músicos, garimpeiros), personagens e tipos do povo (o cangaceiro, o retirante, a baiana, a índia carajá etc.). Intitulada Portinari Popular, a mostra propunha-se não apenas a abordar a popularidade de sua obra, como também a “explorar a origem, temática, iconografia e dicção populares do artista”, transferindo o foco da discussão dos aspectos formais para os temáticos.9 Segundo seus organizadores, “é justamente a assiduidade nos temas, narrativas e personagens populares” que distingue o trabalho de Portinari no cenário brasileiro e mesmo internacional. Além disso, consideram “ser mais produtivo pensar num Portinari popular do que num Portinari modernista”:

7 Tratava-se de uma série de notas que circulou entre janeiro de 1989 e dezembro de 1990, e que homenageava personagens importantes de nossa história científico-cultural, como Machado de Assis, Carlos Chagas, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Augusto Ruschi. O retrato de Portinari tinha, à esquerda, gravura com trecho final do painel Tiradentes. No reverso: à esquerda, gravura basea-da em foto que mostra Portinari desenhando o painel Baianas e, à direita, outra gravura que lembrava elementos do painel Paz, que evocava cenas da infância do artista em Brodowski.

8 Ver, a respeito desse projeto, artigo de João Cândido Portinari, “O Projeto Portinari”, publicado na revista Estudos Avançados, v. 14, n. 38, 2000. Ver: http://www.scielo.br/pdf/ea/v14n38/v14n38a21.pdf. Acesso em: 6 fev. 2019.

9 Informação retirada do site do Masp sobre a exposição. Ver: https://www.masp.org.br/exposicoes/portinari-popular. Acesso em: 10 nov. 2018. A mostra de 2016 retomou a proposta expográfica de pi-lares de madeira crua, em estrutura autoportante, concebida por Lina Bo Bardi para a exposição Cem Obras-primas de Portinari, realizada no Masp em 1970.

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Por muito tempo os estudos comparativos da obra de Portinari desdobraram-se apenas num paralelo acadêmico, eurocêntrico, formalista e ortodoxo focado na linguagem e no modo de representação. Porém é preciso traçar e aprofundar co-nexões com produções além do Brasil e da Europa, com enfoque nas narrativas, nos personagens, nos temas. Assim como acontece com todos os artistas citados em seus respectivos contextos, é ao beber nas fontes populares, indígenas, locais e ao nutrir sua arte de uma visão nativa que Portinari vai singularizar sua inserção no modernismo global. (Pedrosa; Moura, 2016, p. 49)

O fenômeno Portinari

Na opinião de Annateresa Fabris, para uma análise justa do valor da obra do pintor de Brodowski, devemos vencer o portinarismo e “esquecer que [ele] foi, como muitos críticos dizem, a maior expressão artística do país”:

É necessário, em suma, ver Portinari não em polos absolutos – “o maior pintor da brasilidade”, “o pintor do regime” –, mas como um artista que foi a expressão de uma “determinada estética” e de um “determinado momento”. Se virmos nele um artista e não o artista, estaremos mais próximos da solução do “problema Porti-nari”, que ganhará novas dimensões críticas quando for enquadrado dentro de marcos históricos. (Fabris, 1990, p. 25)

Contudo, como dissociar o “problema Portinari” do “fenômeno Portinari”, considerando que o artista ocupou um lugar sem precedentes no cenário artístico brasileiro e que sua obra, inclusive por suas escolhas temáticas e opções formais, foi, como aponta Carlos Zílio (1997, p. 112), assimilada pela esfera de poder da época, do regime Vargas, “para quem a questão social (mesmo que dentro de uma ótica populista) constituía uma das bases de sua política”?10 Por outro lado, como discutimos acima, os temas tratados por Portinari serviram igualmente aos interesses de uma geração de intelectuais preocupada em refletir sobre as contradições de um país que se modernizava.11

De todo modo, sob qualquer ponto de vista, a trajetória de Portinari é de fato extraordinária, sobretudo se considerarmos que o Brasil contava, ao menos até os anos 1960, com um sistema de arte incipiente, com reduzido número de museus públicos e privados e poucas galerias profissionais. Na contramão de vários de seus contemporâneos, que tiveram que desempenhar outras tantas atividades para garantir seu sustento, Portinari dedicou-se exclusivamente à pintura (compreendendo-se aqui os trabalhos murais) – tendo ocasionalmente ilustrado

10 Para Zílio (1997, p. 112), “a dignidade que o artista confere ao trabalhador, o destaque que dá ao personagem popular, enfim, todos aqueles assuntos que ele abordou não podiam ser negados por um poder para quem a questão social (mesmo que dentro de uma ótica populista) constituía uma das bases de sua política”.

11 A este respeito, Mário Pedrosa afirma, em texto publicado em 1970, que “as ideias forçosamente literárias dos intelectuais amigos interferiam frequentemente com as suas [de Portinari], ou seus projetos puramente pictóricos. E ele nunca soube, com efeito, se livrar delas” (Pedrosa, 1986, p. 262).

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livros e realizado cenários teatrais – e desenvolveu uma carreira de sucesso e reconhecimento, tanto no Brasil quanto no exterior. Este sucesso, todavia, não pode ser analisado sem levarmos em consideração, uma vez mais, interesses de outras ordens, como ressalta Sérgio Miceli ao observar que o mercado de arte brasileiro, na época, era “cativo de uma clientela restrita a círculos dirigentes cultivados e das iniciativas do poder público” e que “o acesso ao beneplácito dos dirigentes da política oficial de cultura franqueou [a Portinari] oportunidades de projeção e reconhecimento no mercado de arte internacional, nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina” (Miceli, 2016, p. 106, 118).

Para que compreendamos o alcance dessas relações e possamos avaliar o impacto e a fortuna crítica da obra de Portinari, em especial de seus Retirantes, julgo necessário assinalar alguns marcos desta carreira espetacular.

De origem humilde, filho de imigrantes italianos residentes no interior de São Paulo que trabalhavam na lavoura, Portinari partiu para o Rio de Janeiro aos 15 anos de idade para dedicar-se à pintura, logrando ingressar na Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA) em 1921. A partir de então, enviou regularmente trabalhos para o Salão Nacional de Belas-Artes, instância máxima de legitimação artística no período. Em 1927, conquistou a medalha de prata no salão e, no ano seguinte, obteve o tão cobiçado prêmio de Viagem à Europa com Retrato de Olegario Mariano, obra sem grandes impactos no campo da arte moderna.12 Permaneceu na Europa de 1928 a 1930, radicando-se na França após visitar Itália, Inglaterra e Espanha.

Portinari volta ao Brasil em 1931 e participa com 17 trabalhos do Salão Nacional de Belas-Artes de 1931, organizado sob a tutela do arquiteto Lúcio Costa, então diretor da ENBA e que decidira abrir o evento à participação dos artistas modernos. As obras de Portinari chamam a atenção de Mário de Andrade, que passa a defender abertamente o artista, por considerar que ele conjugava uma visão humanista e o interesse por questões nacionais a uma consistente pesquisa plástica.

Em 1932, Portinari realiza sua primeira exposição individual após seu retorno da Europa, no Palace Hotel do Rio de Janeiro, com sessenta obras, algumas das quais retratando cenas do quotidiano de sua cidade natal – em especial, brincadeiras e jogos de infância, festas e espetáculos populares –, que se tornariam um dos focos de seu trabalho. Dois anos mais tarde, em 1934, inaugura sua primeira mostra na cidade de São Paulo, durante a qual sua tela O mestiço é adquirida pela Pinacoteca

12 Para o poeta Manuel Bandeira, que acompanhava de perto a carreira do jovem Portinari e acreditava em seu talento, tratava-se de uma obra menor em relação a outros trabalhos do artista, um retrato que “fazia concessões ao espírito dominante na Escola” (apud Fabris, 1990, p. 6). No Salão de 1931, Portinari expõe um retrato de Manuel Bandeira, que muito agrada a Mário de Andrade.

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do Estado de São Paulo, por indicação de Mário de Andrade. Trata-se do primeiro museu brasileiro a incluir obras do artista em seu acervo.

Em 1935, toma parte da Exposição Internacional de Arte Moderna, organizada pelo Instituto Carnegie de Pittsburgh, e recebe uma segunda menção honrosa por sua tela Café, que logo seria adquirida pelo governo Vargas e doada para a Escola Nacional de Belas-Artes.13 Portinari é o primeiro artista moderno brasileiro a obter um prêmio no exterior, prêmio este que lhe confere, “na história da arte brasileira, o estatuto de pintor internacional” (Zílio, 1997, p. 95). Na opinião de José Roberto Teixeira Leite (1988), esse prêmio simbólico representou, “mais do que a consagração do artista, o triunfo da própria arte moderna no Brasil”.

Nesse mesmo ano de 1935, o sucesso do artista é ratificado por dois convites distintos: para ministrar a cadeira de pintura no Instituto de Artes da recém-criada Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro) e para realizar um conjunto de afrescos no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, em que aborda os grandes ciclos econômicos brasileiros: pau-brasil, cana-de-açúcar, gado, ouro, fumo, algodão, erva-mate, café, cacau, ferro, borracha e carnaúba.14 Este último convite partiu de Gustavo Capanema, então ministro do governo Vargas, e, segundo Fabris, teria sido motivado pelo prêmio que fora concedido a Portinari pelo Instituto Carnegie. No ano seguinte, o artista pinta quatro grandes painéis (sobre tela) que integram o monumento rodoviário da estrada Rio de Janeiro-São Paulo (atual Via Dutra).

Destarte, paralelamente à sua intensa produção de pinturas e desenhos e à sua participação em diferentes exposições, Portinari realizaria uma série expressiva de obras de caráter público, de grandes dimensões, fruto de encomendas de órgãos governamentais e de entidades privadas (bancos, escolas etc.). Essas encomendas, para as quais conta com a ajuda de auxiliares, consolidam sua fama de artista com vocação para a pintura mural, estimulando, até os dias atuais, uma série de comparações entre seu trabalho e o dos muralistas mexicanos. Ao mesmo tempo, essas obras de grande vulto conferem significativa visibilidade ao artista, suscitando reiterados comentários na imprensa e novos convites para exposições individuais e para participação em mostras no Brasil e no exterior. Geravam ainda uma série de estudos diversos, em diferentes suportes, que figuravam nas exposições mencionadas.

13 A convite do Instituto Carnegie, o Brasil enviou uma delegação de oito artistas para a exposição, que comemorava o centenário do nascimento de Andrew Carnegie. Para a seleção da delegação, o representante do instituto no Brasil, Aloysio Salles, montou um júri formado por Lúcio Costa, Gilberto Amado e Carlos Guinle. Os artistas escolhidos foram: Eliseu Visconti, Lucílio Albuquerque, Henrique Cavalleiro, Alberto Guignard, Lasar Segall, Cândido Portinari, Vitorio Gobbis e Paulo Rossi.

14 Para este mesmo prédio, que é uma das obras mais emblemáticas da arquitetura moderna brasileira, Portinari concebe ainda os cartões para os murais em azulejo localizados no pátio externo, a partir de convite realizado em 1943.

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A respeito da importância da pintura mural para a arte moderna, Portinari declara, em entrevista concedida ao Diario de São Paulo em 1934, que:

Quanto à pintura moderna, tende ela francamente para a pintura mural. Com isso, bem entendido, não quero afirmar que o quadro de cavalete perca o seu valor, pois a maneira de realizar não importa. No México e nos Estados Unidos já há muitos anos essa tendência é uma realidade, e noutros países se opera o mesmo movimento, que há de impor à pintura o seu sentido de massa.15

Seu desejo de ocupar o espaço público com obras que falassem “à inteligência e ao coração de todos” certamente está relacionado à sua opção política, de esquerda – Portinari filiou-se ao Partido Comunista em 1945 e chegou a concorrer a uma vaga para deputado estadual por São Paulo (1945) e para o Senado brasileiro (1947), sem sucesso –, bem como a uma visão utópica do papel social do artista.16 A pintura mural é por ele considerada um poderoso instrumento de comunicação com o espectador e de educação do povo, mesmo que nem sempre os murais realizados estivessem de fato ao alcance de um público mais amplo. A seu ver, o pintor social deve ser “o arauto do povo, o mensageiro dos seus sentimentos. É aquele que deseja a paz, a justiça e a liberdade”.17

Em novembro de 1939, Portinari expõe 269 obras no Museu Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro. A apresentação da exposição fica a cargo de Mário de Andrade, que se tornara amigo do artista e considerava a si próprio como o porta-voz oficial do movimento modernista brasileiro. Sem meias-palavras, o escritor louva a “instintiva humanidade” de Portinari, que “não lhe permite perder-se em virtuosismos”, definindo-o como “o mais moderno dos antigos”, um “buscador inquieto e constante”, porém “impregnado da coisa nacional” (Andrade, 1975, p. 128-129).

Nesse mesmo ano de 1939, Portinari realiza, a convite do governo brasileiro, três painéis para a decoração de nosso pavilhão na Feira Mundial de Nova Iorque, cujo projeto arquitetônico foi assinado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, personalidades que estarão a seu lado em outros projetos profissionais de fôlego. Em seus painéis, Portinari concebe cenas que retratam festividades de regiões brasileiras (Jangadas do Nordeste, Cena gaúcha e Festa de São João), fortalecendo assim sua posição de pintor do homem e dos costumes brasileiros.

Em 1940, Portinari, uma vez mais, apresenta sua obra nos Estados Unidos, representando o Brasil na Exposição de Arte Moderna Latino-americana no

15 “Exposição de pintura Cândido Portinari”. Diario de São Paulo, São Paulo, 21 nov. 1934.

16 O artista chega a exilar-se no Uruguai, país de sua mulher, por oito meses, entre 1947 e 1948, para fugir da perseguição aos comunistas imposta pelo governo Dutra.

17 Portinari assim se expressa em palestra proferida em Buenos Aires e publicada no Brasil na revista A Época: órgão do corpo discente da Faculdade Nacional de Direito, n. 184, nov. 1947. Republicada em Pedrosa et al. (2016).

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Museu Riverside, de Nova Iorque, juntamente a Maria Martins,18 e expondo individualmente no Instituto de Artes de Detroit19 e no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, com sucesso de crítica, venda e público. Além disso, em dezembro daquele ano, a Universidade de Chicago publica o primeiro livro sobre o pintor, Portinari, his life and art, com reproduções de suas obras e introdução de Rockwell Kent, na qual ele exalta o profundo impacto das composições de Portinari sobre o espectador. Outra participação de destaque de Portinari em exposições internacionais de caráter oficial refere-se à apresentação da tela Café no estande brasileiro da Exposição do Mundo Português, organizada em 1940 com o intuito de celebrar o poder do Estado salazarista.20

Em janeiro de 1942, são inaugurados os quatro murais realizados por Portinari para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso norte-americano, em Washington, nos quais o artista recria episódios da história do Brasil (Descobrimento, Desbravamento da mata, Catequese dos índios e Garimpo do ouro). Segundo Fabris, o convite ao artista brasileiro foi arranjado pelo crítico norte-americano Robert Smith, que se encantara com os painéis da Feira de Nova Iorque. Contudo, “face às dificuldades financeiras da fundação, parte do trabalho [foi] custeado pelo governo brasileiro” (Fabris, 1990, p. 15).

Entre os anos de 1942 e 1944, além de organizar nova exposição no Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro com 168 obras (1943), Portinari executa, a pedido de Assis Chateaubriand, proprietário dos Diarios e Emissoras Associados, dois conjuntos de oito painéis decorativos para os auditórios da rádio Tupi do Rio de Janeiro e de São Paulo. As temáticas são completamente distintas: o primeiro conjunto, para a sede do Rio, versava sobre a música popular brasileira; já o segundo, para a sede de São Paulo, representava passagens do Velho e do Novo Testamento.21 Além disso, a convite de Niemeyer, Portinari participa de outra obra

18 Enquanto Maria Martins apresentou apenas três esculturas e um desenho, Portinari participou com 35 trabalhos.

19 Interessante registrar que o instituto já possuía, na ocasião, os 27 afrescos de Diego Rivera, que foram realizados pelo artista entre os anos de 1932-1933.

20 O Brasil participava como país convidado e a seleção de obras de arte ficou a cargo de júri composto majoritariamente por professores da Escola Nacional de Belas-Artes (Oswaldo Teixeira, Correia Lima, Carlos Oswald, Eliseu Visconti e Armando Navarro da Costa, além do presidente da comissão encarregada do festejo, general Francisco José Pinto). Segundo Luciene Lehmkuhl (2011), a tela de Portinari destoava do conjunto de trabalhos vindos do Brasil e causou grande impacto no meio artístico português.

21 A relação da chamada série Bíblica, hoje no Masp, com o trabalho de Picasso, em especial Guer-nica, é inequívoca. Ao que tudo indica, Portinari viu a tela de Picasso quando de sua passagem por Nova Iorque, após a instalação dos murais para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, e jamais escondeu a comoção que ela lhe causara. Um incêndio na emissora do Rio de Janeiro, ocorrido em 1949, destruiu seis das oito obras realizadas para aquele auditório, restando apenas Chorinho e Cavalo-marinho, que foram doados por Chateaubriand, em 1951, para o governo português e hoje se encontram no Museu Nacional de Arte Contemporânea (Lisboa) e no Museu Nacional Ricardo Soares dos Reis (Porto), respectivamente.

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de arte pública de grande impacto: a decoração da capela da Pampulha, em Belo Horizonte, para a qual pintou o mural de São Francisco e concebeu o painel de azulejos da fachada.

Em 1946, Portinari expõe seu trabalho pela primeira vez em Paris, na galeria Charpentier, ao que tudo indica com boa recepção crítica. As obras expostas versavam sobre cenas da vida brasileira, com destaque para a série Retirantes, recém-concluída. Uma de suas telas sobre este tema é comprada na ocasião pelo governo francês, com recursos do Centro Nacional de Artes Plásticas (CNAP). Ademais, como para comprovar o interesse despertado pela arte humanista de Portinari naquele contexto preciso, pós-Segunda Guerra Mundial, o governo francês lhe concede a medalha da Legião de Honra.

As exposições se sucedem, tanto no Brasil quanto no exterior: Masp (1948 e 1954), MAM RJ (1953), diversas cidades de Israel (1956), Paris (1957), Bolonha (1958), Tchecoslováquia (1960), entre outras. Entre os anos de 1948-1954, Portinari realiza outras obras de caráter monumental sobre temas caros à memória nacional: A primeira missa no Brasil (1948), encomendada pelo banco Boavista do Rio de Janeiro, cuja sede fora concebida por Niemeyer; Tiradentes (1948), para o Colégio de Cataguases, em Minas Gerais, e que hoje se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo; A chegada de d. João VI ao Brasil (1952), para o Banco da Bahia de Salvador, e O descobrimento do Brasil (1954), para o Banco Português do Rio de Janeiro, atualmente na coleção do Banco Central. Consolida-se, portanto, como um pintor de história interessado em “configurar uma visualidade própria, alicerçada nos melhores exemplos do passado e do presente” (Fabris, 2016, p. 72). Paralelamente a esses trabalhos, Portinari concebe novo painel de azulejos, desta feita para o conjunto Pedregulho, no Rio de Janeiro, a pedido do arquiteto Afonso Eduardo Reidy e de sua esposa, Carmen Portinho, então diretora do Departamento de Habitação Popular da prefeitura da cidade.

Mas talvez sua obra mais ambiciosa, com a qual ganha um prêmio da Fundação Guggenheim, tenham sido os dois grandes painéis Guerra e Paz, executados entre 1953 e 1956, por encomenda do governo brasileiro, para a sede das Nações Unidas em Nova Iorque. Embora desaconselhado por seus médicos, que temiam por sua saúde, uma vez que sinais de sua intoxicação por tintas já haviam sido detectados, Portinari lança-se a esta tarefa com grande dedicação. Os painéis, em madeira e estruturados em 12 segmentos acoplados, foram pintados na sede da rádio Tupi de São Paulo e montados sem a presença do artista, que não consegue o visto de entrada nos Estados Unidos por conta de sua antiga filiação ao Partido Comunista Brasileiro. Gigantescos, cada qual medindo 10 x 14 metros, eles atestam a posição de destaque ainda ocupada pelo artista junto às autoridades brasileiras e apresentam um resumo de sua trajetória em termos iconográficos. Neles, vemos vários temas que haviam sido objeto de interesse de Portinari ao longo dos anos, como as cenas de sua cidade natal, a mãe com o filho

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morto e os retirantes, agora agrupados de acordo com a sugestão iconográfica de tempos de paz e de guerra. Para sua concepção, Portinari realizou cerca de 180 estudos preparatórios, entre desenhos, guaches, pinturas e maquetes.22 Um conjunto desses estudos, para o painel Guerra, foi exposto na III Bienal de São Paulo, em sala especial, com texto de apresentação do crítico Antônio Bento.

A temática social em Portinari: o caso dos retirantes

Embora tenha se firmado primeiramente como retratista – com a premiação no Salão Nacional de Belas-Artes de 1928 – e tenha pintado ao longo de sua carreira um número expressivo de retratos de familiares, amigos e personalidades da elite brasileira, Portinari encarnou, como nenhum outro artista brasileiro, a figura de pintor social. Como observa Sérgio Miceli (2016, p. 116), ele rapidamente se converteu “em artífice [...] de uma saga pictórica da história do país, agenciada por gente anônima do povo”.

Para alguns de seus comentadores, Portinari foi o grande pintor do homem brasileiro, sendo, ao mesmo tempo, “um crítico do Brasil, um acusador da injustiça social entre nós” (Callado, 2003, p. 80). Nessa mesma linha de pensamento, Annateresa Fabris defende que “Portinari não é um artista brasileiro por ter pintado o Brasil: é brasileiro por ter pintado criticamente o Brasil” (Fabris, 1990, p. 39).

Seu interesse pela construção de uma “visualidade regional, cujos tipos se tornariam humanos e universais por apresentarem uma alma brasileira” (Fabris, 2016, p. 73), toma corpo após seu retorno de Paris, no início dos anos 1930, e, como vimos anteriormente, já se faz presente em sua primeira exposição individual, em 1932. Um dos temas voltados à representação de vidas precárias que se destaca no conjunto de seu trabalho é certamente a saga dos retirantes. Segundo o próprio artista, este tema despertava seu interesse por relacionar-se às cenas por ele vistas em sua infância em Brodowski – as caravanas que passavam por sua cidade fugindo da seca e à procura de melhores condições de vida em outras regiões do país.

A primeira pintura de Portinari em que um grupo de retirantes torna-se o foco compositivo é Os despejados, de 1934. Nela, vemos uma família de seis

22 Em 2010, aproveitando-se de uma reforma na sede das Nações Unidas, o Projeto Portinari trouxe para o Brasil os painéis, com o objetivo de restaurá-los. O processo de restauração ocorreu no salão do Palácio Gustavo Capanema (antigo Ministério da Educação e Saúde), diante do público, e foi pre-cedido pela apresentação de ambos os painéis no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Na sequência, foram realizadas duas grandes exposições no Brasil, em São Paulo (2012) – que contou com cerca de oitenta estudos preparatórios – e em Belo Horizonte (2013), e uma na França, no Grand Palais de Paris (2014), antes de os painéis serem devolvidos a seu lugar de origem. Trata-se de momento importante no processo de reavaliação da obra do artista, tanto no Brasil como no exterior. Ver, a esse respeito: http://www.expomus.com.br/projeto/guerra-e-paz.

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pessoas (um homem, duas mulheres de idades distintas e três crianças), com pés descalços e roupas esfarrapadas, perto de um trilho de trem. A paisagem é desoladora, árida; a fiação elétrica parece indicar a proximidade de uma cidade, mas, com exceção de um pequeno cavalo ao fundo, não vemos sinais de nenhuma outra forma de vida no horizonte. O traçado dos corpos é fino e a fatura, diluída. Ao lado do grupo familiar, uma trouxa de roupa, um baú e um caixote, no qual se senta o personagem masculino, parecem conter todos os seus pertences. Parte do grupo, formado pelas pessoas mais vulneráveis (crianças e mulher idosa), olha diretamente para o espectador, como a inquiri-lo sobre sua condição de voyeur diante de uma situação desesperadora.

Portinari retomaria vários dos elementos figurativos aqui presentes em trabalhos posteriores, tais como os meninos seminus, de barriga inchada e chapéu na cabeça, a trouxa de roupas a indicar um estado de penúria, a correspondência entre a situação humana e a natureza inóspita, acrescentando por vezes outros acessórios correlatos, como a moringa/cabaça sinalizando a escassez de água, a presença de aves de rapina etc.23 Tal prática era bastante usual no período. Como observou Rafael Cardoso Denis em texto dedicado ao problema da raça na pintura brasileira entre 1850 e 1920, artistas interessados em retratar a difícil condição de vida das populações marginalizadas no país “empregavam um grupo peculiar de motivos visuais para construir um discurso complexo sobre a relação entre pessoas e terra, trabalho e necessidades”:

Elementos como pele escura, pés descalços, roupas esfarrapadas, instrumentos rudes, barracos em ruínas, terra estéril, se repetem nesses trabalhos com uma frequência que constitui uma tentativa consciente de retratar as duras realidades da sociedade brasileira a partir de uma nova inflexão naturalista. (Denis, 2015, p. 507)

Portinari insere-se, portanto, nesta linhagem de artistas, voltando seu foco de interesse para questões sociais específicas, relacionadas a seu próprio tempo. Nas pinturas subsequentes sobre o mesmo tema, realizadas por Portinari ainda nos anos 1930, as figuras humanas tornam-se volumosas e passam a dominar a composição. Faz-se importante ressaltar que Portinari, nesses anos, associa com frequência o problema da migração e da exclusão social ao negro, sobretudo à mulher negra e sua prole.24 Assim, em várias composições daquela década, o artista representa mulheres negras rodeadas por crianças, algumas no ato de amamentar, sem a presença de uma figura masculina no entorno. Ignora explicitamente a alusão à sensualidade da mulher (negra) brasileira, explorada na literatura e na

23 No mesmo ano de 1934, um desenho de Portinari sobre o tema dos retirantes, bastante similar à pintura descrita acima, mas com menos referências espaciais, ilustraria um número da revista Espírito Novo.

24 Ver, por exemplo, sobre o tema, o quadro Retirantes, de 1936, do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (Coleção Mário de Andrade): http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/3206.

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arte brasileiras daquele momento, e escapa de visões estereotipadas sobre um grupo social desfavorecido. Despejados e retirantes transformam-se, em suas telas, em famílias desamparadas, sem teto, identidade nem posição social em um meio que as isola e rejeita.

O conjunto de telas conhecido como a série Retirantes é aquele realizado entre 1944 e 1945, exposto em Paris na galeria Charpentier em 1946 e hoje pertencente ao Masp e ao Museu Nacional de Arte Moderna de Paris (em empréstimo do Fundo Nacional de Arte Contemporânea da França). Annateresa Fabris (1990) afirma que a série é composta por cinco obras, talvez referindo-se a uma pequena pintura a óleo também exposta em Paris (de 38 x 46 cm), atualmente parte de uma coleção empresarial de São Paulo, segundo informações do Projeto Portinari.25

As três telas pertencentes ao Masp – Retirantes, Criança morta e Enterro na rede (Figuras 1, 2 e 3) – figuraram na mostra inaugural do museu paulista (1947) e foram logo em seguida incorporadas a seu acervo, por vontade expressa de Assis Chateaubriand, que tinha bastante apreço pelo artista. Lembremos que Portinari pintara um retrato de Chateaubriand em 1943 e realizara os dois conjuntos de painéis decorativos para as sedes da rádio Tupi do Rio de Janeiro e São Paulo.26 As pinturas do artista brasileiro destoavam do restante da coleção inicial do museu, que era constituída majoritariamente por obras de arte europeias. Em carta endereçada a Portinari e datada de outubro de 1947, Pietro Maria Bardi lamenta sua ausência no evento de abertura do Masp, “no qual figuram três de suas obras, as únicas que representam a pintura brasileira contemporânea”.27 Cabe assinalar que, enquanto o quadro da coleção do Fundo Nacional de Arte Contemporânea francês que, desde 2013, se encontra no Museu Nacional de Arte Moderna de Paris, intitulado Composição (identificada como Criança morta, no site do Projeto Portinari),28 é raramente exposto, perdendo assim sua visibilidade e impacto, a tela Retirantes, segundo informações do site do Masp, é a obra do acervo mais postada nas mídias sociais, o que demonstra sua eficácia comunicacional até os dias de hoje.29

25 Ver: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1501.

26 Além das obras doadas por Chateaubriand, o museu possui ainda quatro retratos de autoria de Portinari, sendo um deles um desenho, e a tela Lavrador, doada por José Maria Whitaker, banqueiro paulista e ex-ministro da Fazenda nos governos Vargas (1931) e Café Filho (1955).

27 Sobre as cartas, ver Projeto Portinari: http://www.portinari.org.br.

28 Ver: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/4175.

29 Composição figurou na grande mostra Modernités Plurielles (1905-1970), que teve a curadoria de Catherine Grenier e foi apresentada no Museu Nacional de Arte Moderna de Paris de outubro de 2013 a janeiro de 2015. A mostra propunha-se a discutir a modernidade a partir das margens e periferias, sem privilegiar leituras hegemônicas do tema. A obra de Portinari foi exposta sem grande destaque, diferentemente de A cuca, de Tarsila do Amaral, que ocupava uma parede exclusiva em uma grande sala do museu. Na ficha que acompanhava a obra de Portinari, lia-se que ele “foi uma das figuras do movimento indigenista brasileiro”, demonstrando assim certo desconhecimento de nossa história.

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Analisadas simultaneamente, essas três obras do acervo do Masp possuem coerência e unidade, tanto por suas dimensões semelhantes,30 quanto por questões formais similares (cores rebaixadas, pincelada densa, traço firme e tratamento bastante expressivo das personagens). Composição (Criança morta), por sua vez, diverge do conjunto, pois apresenta os personagens em grisalha, com as linhas de contorno definindo seus corpos, mas a cena é igualmente dramática: um pai com seu filho morto no colo, rodeado por pessoas desconsoladas. Em

30 Retirantes e Criança morta possuem as mesmas dimensões (190 x 180 cm). Composição (Criança morta) também tem dimensões parecidas (177 x 150 cm). Já Enterro na rede é a maior tela do conjunto (181 x 221,5 cm).

Figura 1 – Retirantes, 1944. Óleo sobre tela, 190 x 180 cm. Acervo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Doação Assis Chateaubriand, 1948. Foto: João Musa

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todas essas telas, as figuras humanas são monumentais e ocupam praticamente todo o espaço compositivo. A frontalidade das cenas, por sua vez, promove uma maior zona de contato com o espectador. Em comparação com as pinturas de temática similar da década anterior, a questão da raça se torna mais difusa e os corpos perdem volume, tornando-se angulosos a ponto de parecerem talhados na madeira, como a evocar as vigorosas incisões das xilogravuras expressionistas. Como observa Fabris (1990, p. 111), “a serena monumentalidade cede lugar, na década de 1940, a uma expressão apaixonada, que, embora derive da atmosfera trágica dos Profetas [da série Bíblica, pintada para a rádio Tupi de São Paulo], se caracteriza por um tom mais despojado e, por isso mesmo, mais direto”.

Enquanto em Retirantes o grupo humano é retratado imóvel, parecendo posar para o pintor em um momento de descanso de uma marcha sem fim, nas outras obras os gestos são amplos e fortemente emotivos, e os personagens se mostram completamente envolvidos em seu próprio drama. Uma vez mais, a natureza contribui para o cenário de morte e miséria; em Retirantes, por exemplo, urubus voam no céu e comem carniça ao fundo da composição. Já a mão cerrada do homem que carrega a rede mortuária em Enterro na rede, o cachorro macilento

Figura 2 – Enterro na rede, 1944. Óleo sobre tela, 180,5 x 220,70 cm. Acervo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Doação Assis Chateaubriand, 1948. Foto: João Musa

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que ocupa o primeiro plano de Composição (Criança morta), as lágrimas de pedra e os gestos de angústia e desamparo do grupo de mulheres de Criança morta potencializam o drama. Embora a morte pareça ser o único desfecho possível para esses personagens, Portinari realça seu sofrimento e desespero com sua situação.

Carlos Zílio, ao discutir as afinidades de Portinari com o muralismo mexicano, dirá, a respeito desta série, que o fantasma do academismo persiste na obra do brasileiro, em função de sua constante “tentativa de conciliação do equilíbrio clássico com o expressionismo mexicano”. Zílio não deixa de assinalar o caráter muitas vezes esquemático da obra dos mexicanos, considerando que sua limitação básica reside “na necessidade de enunciar conceitos políticos, de ilustrar acontecimentos históricos” (Zílio, 1997, p. 102). Mas destaca que os mexicanos tentaram se desvencilhar de uma estética do belo, lançando-se na pesquisa de novas técnicas e rompendo com o virtuosismo acadêmico. Portinari, a seu ver, continuava preso a um esquema de representação tradicional e “reduz[ia] a força

Figura 3 – Criança morta, 1944. Óleo sobre tela, 182 x 190 cm. Acervo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Doação Assis Chateaubriand, 1948. Foto: João Musa

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transgressora das obras mexicanas a uma série de convenções estabelecidas” (Zílio, 1997, p. 103-104).

Exageros à parte, creio ser importante não perdermos de vista que Portinari foi o pintor que trouxe o tema dos retirantes para a pintura moderna brasileira e o fez de modo recorrente, retratando de forma crua, e por isso emotiva, a fome e a miséria de parte de nossa população. Seu interesse pelo tema, como vimos, tinha raízes em sua infância, mas também estava diretamente relacionado a seu engajamento político. Em entrevista concedida em 1947, na época de sua campanha ao Senado, Portinari demonstra que seu compromisso com a questão dos retirantes ia além da representação pictórica, ao denunciar publicamente as condições de vida do homem do campo no país:

A situação do camponês no Brasil é pior do que a de um cão. Sim, porque os ca-chorros pelo menos podem escolher o lugar onde se deitam e têm liberdade de ação, enquanto que o nosso caboclo tem que se sujeitar às fétidas pocilgas que o senhor de terra lhe dá para morar, ficando tão endividado diante do regime do vale, que só fugindo da fazenda poderá temporariamente fugir da escravidão. (Fabris, 1996, p. 145)

Todavia, o problema dos retirantes, conjugado ao flagelo da seca, já se fazia presente no imaginário cultural brasileiro, em especial através dos romances regionalistas. Não por acaso, vários escritores debruçaram-se sobre essa problemática ao longo dos anos 1930: Raquel de Queirós, em O quinze (de 1930), trata da grande seca que assolou o Ceará em 1915, abordando a situação de um dos campos de concentração (Alagadiço) montados na ocasião pelo governo do estado. Neles, os retirantes ficavam confinados em espaços cercados, com alimentação e água controladas, e vigiados 24 horas por dia por soldados. Graciliano Ramos, que era amigo pessoal de Portinari, publica São Bernardo, em 1934, e Vidas secas, em 1938, dois livros marcantes para a história da literatura brasileira e que também abordam as agruras do trabalhador rural no Nordeste do Brasil. A esta lista, devemos ainda adicionar Menino de engenho, de José Lins do Rego (1932), Cacau, de Jorge Amado (1933) e, mais tardiamente, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (1956), e o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto (1954-55), bem como as adaptações de alguns desses romances para o cinema.

No campo visual, imagens que denunciavam a pobreza extrema de parte da população nordestina em razão da falta de chuvas e das péssimas condições de trabalho passam a ser veiculadas em jornais de circulação regional e/ou nacional e em relatórios oficiais, sobretudo a partir da grande seca de 1932, mas ainda de modo esparso, contrastando com as numerosas reportagens que abordavam o tema. No Ceará, estado mais atingido pela seca de 1932, “a invasão dos retirantes à capital era manchete diária” (Rios, 2014, p. 59). Para fazer face a uma situação que escapava do controle das autoridades locais, novos campos de concentração

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foram criados em diferentes municípios do estado, ao lado de estações ferroviárias ou na periferia das cidades, todos com um objetivo claro: controlar o fluxo de pessoas, de modo que elas não perturbassem a ordem social. Como relata Kênia Souza Rios:

Para barrar a marcha dos retirantes rumo a Fortaleza e a outras cidades do estado, foram erguidos sete “campos de concentração” (em Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, São Mateus, Crato e dois em Fortaleza). Eram locais para onde grande parte dos retirantes foram recolhidos a fim de receber do governo comida e as-sistência médica. Dali não podiam sair sem autorização dos inspetores do cam-po. Havia guardas vigiando constantemente o movimento dos concentrados. Ali ficaram “encurralados” milhares de retirantes a morrer de fome e doenças. Entre abril de 1932 e março de 1933 foram registrados mais de 1.000 mortos somente no campo de concentração de Ipu. (Rios, 2014, p. 68)31

As fotografias divulgadas pela imprensa e por diversos documentos oficiais do período (como os relatórios da Inspetoria Federal de Estradas – IFE – ou de comissões federais temporárias) retratavam, em sua maioria, agrupamentos humanos nos campos de concentração, chamados de “currais do governo” pelos retirantes.32 Nelas, vemos multidões desamparadas, seres humanos amontoados à espera de algum tipo de auxílio. Em alguns casos, as imagens, igualmente contundentes, focavam grupos familiares isolados, à beira da inanição, ou mesmo em carcaças de animais e em cadáveres humanos nas estradas.

A série aqui analisada, realizada entre 1944 e 1945, ou seja, nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, dá corpo a imagens que já começavam a assombrar o Brasil, alçando-as à posteridade, e o faz evitando uma retórica apaziguadora, expondo um drama humano gerado por uma estrutura social arcaica e perversa. A “dimensão ideológica dessa escolha, que remete a uma situação para a qual nenhum governo buscou uma solução” (Fabris, 2016, p. 82) e evoca um país que não cuida de suas mazelas, é inequívoca. Ademais, se lembrarmos que esta série foi imediatamente exposta no exterior (na galeria Charpentier, em Paris) e logo em seguida incorporada a duas coleções públicas (Fundo Nacional de Arte Contemporânea, na França, e Masp, no Brasil), podemos compreender seu impacto de modo mais amplo, geográfica e temporalmente.

Nos anos 1950, Portinari voltaria ao tema dos retirantes em desenhos e pinturas diversos, procurando talvez acompanhar a nova leva de interesse despertada pelos romances e poemas de autoria de Guimarães Rosa e João Cabral

31 Ver também, a este respeito: “Cearenses relembram campos de concentração de retirantes da seca”. G1, Ceará, 31 mar. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/03/cearenses-relem-bram-campos-de-concentracao-de-retirantes-da-seca.html. Acesso em: 10 out. 2018.

32 Várias dessas imagens circulam hoje em blogs ou reportagens sobre o tema, como, por exemplo: http://www.fortalezanobre.com.br/2010/06/seca-e-campos-de-concentracao-em.html e http://www.ebc.com.br/especiais-agua/campos-de-concentracao/.

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de Mello Neto. Contudo, ao contrário da “explosão emotiva” dos anos 1940, o faz de modo menos dramático e talvez por isso menos eloquente. Nas pinturas, a paleta se faz mais leve, agradável, e as figuras humanas são mais estilizadas, parecendo dissociadas do drama que retratam. Embora essas obras não tenham provocado grandes reverberações no meio artístico, elas reiteram o compromisso de seu autor com questões sociais de seu próprio tempo.

Breves conclusões

Na opinião de Paulo Mendes de Almeida, “nenhum artista do país terá sofrido, tanto quanto Cândido Portinari, a inconstância, a flutuação a respeito de sua obra” (Almeida, 1976, p. 142). Autor de um livro memorialista sobre a difusão do pensamento modernista no meio artístico brasileiro da primeira metade do século XX, Mendes de Almeida relembra o debate ocorrido, ainda no final dos anos 1930, entre os defensores incontestes do pintor e seus escassos opositores. Acadêmico ou moderno, pintor oficial ou pintor do povo brasileiro, “cronista engajado no registro da vida social e política do Brasil” (Fabris, 2016, p. 80) ou imitador dos muralistas mexicanos, a obra de Portinari continua a atrair a atenção do grande público e a despertar paixões de naturezas diversas.

Como apontamos acima, a tela Retirantes é a obra do acervo do Masp mais postada nas mídias sociais. Além disso, vários estudos continuam a ser realizados sobre o trabalho de Portinari, a partir de múltiplas perspectivas. Isso nos leva a indagar sobre as razões da atualidade de sua obra, em pleno século XXI e em meio a um processo de revisão do campo da história da arte. Diferentemente de outros artistas modernistas, que lhe foram contemporâneos, Portinari soube servir-se das imagens como aparato crítico-social e construiu sua obra com lógica e coerência. Muitos dos temas por ele tratados, como o caso dos retirantes (migrantes sem-teto, excluídos do mercado de trabalho e do convívio), permanecem pungentes, e não apenas no contexto brasileiro. Considero, contudo, não ser possível dissociar o “problema” Portinari do “fenômeno” Portinari. Discutir a importância de suas escolhas temáticas sem refletir sobre o modo como seus temas foram representados é desconsiderar a imbricação dessas duas esferas no trabalho artístico. Virtuose da pintura, Portinari impôs-se também por sua técnica e habilidade e por criar imagens de grande capacidade de síntese e de persuasão, que perduram no tempo.

Referências

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Imagem, colonialismo e resistência

Sheila Cabo Geraldo1

minha negritude não é uma pedra, sua surdez lançada contra o clamor do dia

minha negritude não é uma mancha de agua morta sobre o olho morto da terra

minha negritude não é uma torre nem uma catedral

ela mergulha na carne rubra do solo

ela mergulha na carne ardente do céu

ela perfura o abatimento opaco com sua reta paciência.

Aimé Césaire

(Cahier d’un retour au pays natal)

Já no início das escavações necessárias à reforma da atual região do porto do Rio de Janeiro, que começaram em 2011 como obras preparatórias para as Olimpíadas de 2016, veio à tona o que restou dos antigos cais do Valongo e cais da Imperatriz − este último, sobreposto ao primeiro.2 O do Valongo foi o principal cais de desembarque de africanos cativos em todas as Américas e é também o

1 Professora e pesquisadora na graduação e no Programa de Pós-graduação em Artes da Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/Uerj). Bolsista Produtividade (CNPq) e Prociência (Uerj/Faperj). Foi editora da revista Concinnitas (Instituto de Artes da Uerj/PPGArtes, 2003-2011) e presidente da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap, 2011-2012).

2 O cais da Imperatriz, construído em 1843, por cima do cais do Valongo, foi levantado para o desem-barque da princesa das duas Sicílias, Teresa Cristina Maria de Bourbon, por ocasião de seu casamento com o imperador d. Pedro II.

Figura 1 – Sacudimento (cais do Valongo), 2018. Ayrson Heráclito

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único preservado materialmente.3 Hoje tratado como sítio arqueológico, foi construído, em 1811, para atender à crescente demanda das lavouras de café e cana-de-açúcar, assim como das minas da região, que usavam mão de obra escrava. O cais e o mercado, por onde passaram cerca de quinhentos mil africanos para serem negociados, fizeram do Rio de Janeiro a principal cidade de entrada e venda de escravizados, produzindo uma memória que deixou marcas indeléveis nas relações sociais de poder, enquanto exploração dos corpos, do trabalho e da cultura negra, exploração referendada no racismo estrutural que ainda hoje constitui nossas relações sociais (Almeida, 2018).

O cais do Valongo, com o descobrimento de suas antigas pedras, tem sido reconhecido como um dos mais importantes monumentos de memória, já que traz à tona novo interesse histórico não só pelo espaço da antiga cidade do Rio de Janeiro, mas também pelas condições do colonialismo escravocrata. Foi seu valor de memória que desencadeou o processo de solicitação de sua inscrição na lista do Patrimônio Mundial da Unesco, processo finalizado em 2017, quando o comitê do Patrimônio Mundial publicou a decisão de incluir o cais em sua lista de reconhecimento internacional por “seu grande significado para gerações passadas, presentes e futuras no que se refere à história do tráfico atlântico e à escravização de africanos”.4 Kátia Bogea, presidente do Iphan, na cerimônia que aprovou a inscrição do cais como patrimônio mundial, declara:

Em momentos de elevada intolerância que ronda o mundo atual, o reconheci-mento de sítios sensíveis coloca em evidência a necessidade de compartilharmos nossa experiência em prol de uma visão mais humanista da sociedade global, a partir da observação do que o cais do Valongo significou e da sua reapropria-ção social nos dias atuais, em especial, pelos descendentes afro-brasileiros, que numa atitude de superação reafirmam sua negritude e sua história para o Brasil, as Américas e todo o mundo.5

3 Em 1991, foi encontrado outro cemitério de africanos escravizados, mas em Nova Iorque. A des-coberta se deu durante as escavações para construção do novo edifício do Departamento de Justiça americano. O cemitério foi encontrado próximo à região de Wall Street – centro financeiro do mundo. As mortes ali aconteciam, predominantemente, no inverno, em razão das dificuldades de adaptação dos africanos ao clima da América do Norte. Muitos, entretanto, morriam também por ter sua capacidade de trabalho explorada além do limite e porque não resistiam à brutalidade das punições. A artista Nona Faustine fez, em 2013, a performance From my body sprang their gratest wealth, da série de fotoperfor-mances White shoes, em que se coloca nua, de sapatos brancos, em um cruzamento da Wall Street, em Nova Iorque, onde funcionou o mercado de escravos, ativando a memória subterrânea desse lugar de esquecimento liberal economicista. Disponível em: https://www.ufmg.br/online/arquivos/045840.shtml e http://nonafaustine.virb.com/home. Acesso em: 2 nov. 2018.

4 Do texto de reconhecimento consta, ainda, que o cais pode ser considerado o lugar mais importante de memória da diáspora africana fora da África, sendo o maior porto de entrada de negros escraviza-dos na América Latina. Estima-se que mais de quinhentos mil desembarcaram no Valongo desde sua construção, em 1811. Cais do Valongo é o novo sítio brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Unesco Office in Brasilia, 9 jul. 2017. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/. Acesso em: 2 nov. 2018.

5 “Cais do Valongo (RJ) ganha título de Patrimônio Mundial.” Publicada em 3 jul. 2017. Disponível

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Como escreveu Andreas Huyssen, foi depois do colapso das utopias do século XX que o discurso sobre a memória surgiu em diferentes partes do mundo, ganhando força nos anos 1980 e 1990, possibilitando novos discursos memoriais. Segundo Huyssen (2014, p. 195), “o movimento internacional dos direitos humanos e os fluxos transnacionais da política da memória expressam, desde a década de 1990, uma conjuntura fundamentalmente nova”.

Contemporaneamente, são sobretudo os estudos da memória traumática que embasam os atuais discursos sobre direitos humanos, originários dos discursos jurídicos, morais e filosóficos sobre o genocídio e a violação dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a convenção das Nações Unidas sobre o genocídio, de 1948, foram resultados dos estudos da memória pós-genocídio na Europa. Nesse contexto de memória traumática é que pensamos ser possível observar os movimentos de reconhecimento do cais do Valongo, já que o cais traz em si as marcas da diáspora africana, das transferências forçadas de populações daquele continente e do genocídio, como escreveu Abdias do Nascimento (2016), exigindo uma história que dê visibilidade aos traumas.

Em 2016, Elisa Larkin Nascimento, por ocasião da reimpressão do livro O genocídio do negro brasileiro, de Abdias do Nascimento, no posfácio “O genocídio no terceiro milênio”, chama atenção para a permanência da matança diária de dezenas de pessoas, tema de comissões parlamentares e organizações de direitos humanos. Diariamente, observa Elisa, as famílias de comunidades, majoritariamente negras, assistem à morte de seus filhos, netos, sobrinhos, irmãos. Se esse genocídio diário faz irromper movimentos de resistência entre jovens e mulheres negras, cujo luto não impede organização e resistência, espalha-se na sociedade da elite brasileira – com o apoio das mídias –, sobretudo na branca e heteronormativa, sentimentos de medo e rejeição das populações de baixa renda, sublinhados pelo racismo que se imprimiu desde a colonização e a escravização dos africanos aqui chegados. Como ressalta Elisa: “Pesquisas estatísticas oficiais e acadêmicas comprovam que as desigualdades raciais não se explicam unicamente por fatores econômicos; a discriminação racial se confirma como fator estruturante” (Nascimento, 2016, p. 219).

O livro de Abdias, publicado originalmente em 1978, contém o texto apresentado no segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, em Lagos, na Nigéria, em 1977, quando o artista, teatrólogo e político ativista fez a denúncia do racismo brasileiro, desconstruindo em foro internacional a versão oficial da “democracia racial”, que divulgava uma suposta ausência de

em: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4188/cais-do-valongo-rj-pode-se-tornar-patrimonio--mundial. Acesso em: 2 nov. 2018.

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discriminação racial no país. Desde então alguns fatos contribuíram para o combate ao racismo e às desigualdades sociais da sociedade brasileira. Nos anos 1980 e 1990, o movimento social afro-brasileiro cresceu e passou a fazer parte das pautas de políticas públicas e a formular propostas antidiscriminatórias e de ação afirmativa. Dois dos dispositivos mais eficazes foram as políticas de cotas raciais nas universidades públicas e a criminalização da discriminação racial, mecanismos que estão no bojo da afirmação multicultural e pluriétnica da sociedade brasileira. A partir de 2003, a implantação de políticas antidiscriminatórias levou o Brasil a ser uma referência na América Latina e Caribe no sentido de buscar caminhos para superar o racismo, agindo em um processo de decolonização.

A escavação do cais do Valongo faz parte do movimento de irrupção do passado como memória, que ativa o reconhecimento da brutalidade imposta pelo regime colonial e escravocrata aos corpos dos africanos que aqui chegavam, assim como da permanência que essas crueldades assumem como racismo discriminatório e perverso, que nos alcança no presente.

Para cartografar modos de ativar contemporaneamente em arte um lugar de memória da diáspora africana, da maneira como pensamos fazer, nos parece importante desenterrar as condições do que Abdias chamou de genocídio do negro brasileiro. Para isso, voltamos a meados de 1770, quando o desembarque de negros africanos acontecia no ancoradouro da rua Direita, hoje praça XV − próximo ao que em 1820 se tornou a Casa do Comércio e depois, em 1824, a Alfândega, hoje Casa França-Brasil −, e os escravizados eram negociados na rua Primeiro de Março, a principal da cidade. Em 1774, por decreto do vice-rei do Brasil, marquês do Lavradio, ficou determinada a transferência do desembarque, assim como do mercado, para a região periférica e de difícil acesso do Valongo, uma vez que a crescente população do Rio de Janeiro passara a reclamar dos negros e negras, que acabavam de desembarcar quase desnudos, com sinais de doenças, que circulavam na vizinhança do Paço.

A pintora, desenhista e escritora inglesa Maria Graham − que veio ao Brasil na companhia de seu marido, o capitão da Marinha britânica Thomas Graham, e foi, também, preceptora da princesa dona Maria da Glória, filha de d. Pedro I − publica, em 1824, seu Diario de uma viagem ao Brasil, por ela ilustrado e no qual descreve cenas que, em sua visão aguda e crítica, assim percebe:

1o maio − Eu vi este dia o Val Longo; é o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas nesta longa rua são um depósito para escravos. Ao passar pelas portas esta noite, vi na maioria delas bancos compridos colocados perto das paredes, sobre os quais fileiras de jovens criaturas estavam sentadas, suas cabeças raspa-das, seus corpos macilentos, com marcas de recente coceira em suas peles. Em alguns lugares, as pobres criaturas estavam deitadas em esteiras, evidentemente doentes demais para se sentar. Numa casa, fechada à meia-porta, um grupo de meninos e meninas, aparentemente com menos de quinze anos de idade, e al-guns muito abaixo, estavam debruçados sobre as escotilhas olhando para a rua

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com rostos estranhos. Eles eram evidentemente negros completamente novos. (Graham, 1824, p. 227, tradução nossa)6

Para os habitantes das cercanias do Paço, portanto, era preciso remanejar o cais e o mercado para bem longe, para um local de menor exposição e visibilidade, onde os negros não constituíssem ameaça nem provocassem desconforto. No relatório redigido quando de sua partida do Brasil, tendo deixado o posto de vice-rei, o marquês do Lavradio explica essa transferência:

Foi a resolução ordenar que todos os escravos que viessem nestas embarcações, logo que dessem sua entrada na Alfândega, pela porta do mar, tornassem a par-tir e embarcassem para o sítio chamado Valongo, que é no subúrbio da cidade separado de toda comunicação e que ali se aproveitassem das muitas casas e armazéns que ali há […]. Vigiei muito cuidadosamente sobre a execução desta ordem; ainda que com trabalho consegui que ela se executasse; visivelmente se conheceu os benefícios que receberam na saúde os povos; até os mesmos escra-vos se restituíam mais facilmente das moléstias que traziam; aquele grande fétido que havia já não se sente; e hoje todos conhecem o benefício que daqui lhes tem resultado.7

A escavação do cais do Valongo faz parte desse movimento de irrupção do passado como memória, que ativa o reconhecimento dos traumas impostos pelo regime colonial e escravocrata aos corpos e almas (Fanon, 2008) dos africanos que aqui chegavam, assim como da permanência desses traumas perpetuados no racismo discriminatório e perverso.

No livro Discurso sobre o colonialismo, de 1950, o poeta Aimé Césaire escreve:

eu falo de milhares de homens sacrificados, […] falo de milhões de homens ar-rancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo. (Césaire, 1978, p. 25)

O tráfico, a mercantilização e a escravização de centenas de milhares de africanos aqui chegados, que foram arrancados a seus deuses, a sua terra, como escreveu Césaire, e submetidos à tirania dos traficantes e das autoridades receptoras, que os tratavam como “peças” a serem examinadas e vendidas, trazem ainda à superfície da história uma deliberada relação que une memória e

6 No original: “May lst. − I have this day seen the Val Longo; it is the slave-market of Rio. Almost every house in this very long street is a depôt for slaves. On passing by the doors this evening, I saw in most of them long benches placed near the walls, on which rows of young creatures were sitting, their heads shaved, their bodies emaciated, and the marks of recent itch upon their skins. In some places the poor creatures were lying on mats, evidently too sick to sit up. At one house the half-doors were shut, and a group of boys and girls, apparently not above fifteen years old, and some much under, were leaning over the hatches, and gazing into the street with wondering faces. They were evidently quite new negroes (Graham, 1824).

7 Instruções do marquês do Lavradio a seu sucessor como vice-rei. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, caixa 746, fundo Vice-Reinado.

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esquecimento, como atestam os sucessivos aterramentos do cais, sobretudo o de 1911, que o faz desaparecer.

A história, porém, tem seus subterrâneos e fantasmas (Didi-Huberman, 2013), que, assim como os povos e os sujeitos que a escrevem, estão em constante erupção, o que nos faz observar esse cais revelado nas escavações com novo olhar, atento aos movimentos que se agitam não mais apenas nas representações pictóricas de Rugendas e Thomas Ender, mas nas ativações de suas pedras e arredores. São movimentos em arte que fazem vir à tona discursos por muito tempo inaudíveis, que rompem as camadas de terra e se fazem ouvir como discursos de arte e negritude.

A região do cais vem sendo hoje lugar de inúmeras performances de artistas das mais variadas procedências. Ayrson Heráclito, artista baiano da cidade de Cachoeira, por ocasião da exposição Arte Democracia Utopia − Quem Não Luta Tá Morto, inaugurada em setembro de 2018 no Museu de Arte do Rio, próximo ao cais, na região reconhecida como Pequena África, instalou um vídeo da performance Sacudimentos,8 que realizou no cais do Valongo e também no prédio anexo ao museu, em que funciona a Escola do Olhar. Junto ao monitor de tevê que expõe o vídeo, o artista dispôs, ainda, os materiais e utensílios usados no ritual de limpeza, que é, como Ayrson observa, uma “exorcização dos fantasmas da sociedade colonial”. Sacudimentos já havia sido feita em 2015 e apresentada na Bienal de Veneza em 2017. Em sua primeira versão, os vídeos, que foram mostrados, concomitantemente, em duas paredes frontais, tinham sido desenvolvidos nas duas margens do Atlântico, correspondendo à Casa da Torre, sede de um grande latifúndio da Bahia, e à Maison de los Esclaves, em Goré, no Senegal. São dois monumentos que se ligam pelo tráfico de escravos e pela colonização. Praticante do candomblé, Ayrson acredita na arte como uma forma de cura. O que fez no Rio de Janeiro, então, foi um exercício poético de limpeza e cura também de dois lugares de tristes memórias: o cais, por ter sido o lugar histórico de chegada e venda de corpos de homens, mulheres e crianças, e o prédio da atual Escola do Olhar, um espaço de educação, para que não esqueçamos a ferida da escravidão, mas para que não esqueçamos também o período da ditadura civil-militar no Brasil, quando o racismo era institucionalmente justificado pela resistência que a cultura negra fazia ao poder ditatorial.

O prédio da Escola do Olhar, que se une hoje ao palacete Dom João VI − prédio eclético de 1910 −, para formar o Museu de Arte do Rio, além de ter sido

8 “O ritual do sacudimento é realizado no Recôncavo baiano com bastante frequência por pessoas ligadas a religiões de matrizes africanas. É prática importante a de limpar o espaço e afugentar dos ambientes domésticos sobretudo os espíritos dos mortos, os eguns. Quando se muda para uma casa nova, chama-se alguém para fazer um sacudimento e tirar esses espíritos ruins que tendem a perma-necer entre os vivos, trazendo infortunas.” Ayrson Heráclito, um artista exorcista. Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/sub-home2/ayrson-heraclito-um-artista-exorcista/. Acesso em: 4 out. 2018.

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o antigo terminal rodoviário Mariano Procópio, nos anos 1950, foi também lugar do hospital da Polícia Civil José da Costa Moreira, na década de 1960, lugar de recordações aterrorizadoras do período da ditadura civil-militar no Rio de Janeiro. Uma das questões que Ayrson discute nessa performance situada não só em um dos mais intensos memoriais da violência contra os negros escravizados, mas também em seu duplo, enquanto sítio de memória da violência da ditadura, é o mito da democracia racial, ideologicamente defendida pela ditadura como uma “máscara branca” imposta com o propósito de dissolver as lutas identitárias que se colocaram como revolta e resistência nos anos de chumbo.

Outra importante ativação, já não diretamente localizada no cais, mas em sua região, foi realizada por Rosana Paulino, artista paulista cujos trabalhos, desde a década de 1990, discutem o lugar subalterno dos negros e negras na sociedade brasileira. Em 2015, Rosana expôs, no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) – Museu Memorial, gravuras em técnica mista da série Assentamento, que nessa mostra ganha o título Assentamento(s) Adão e Eva no paraíso brasileiro, e que remetem à preocupação da artista com a representação da diáspora africana na sociedade e na arte do país. Adão e Eva, protagonistas da criação da humanidade na história bíblica de tradição ocidental judaico-cristã, são representados por imagens de negras e negros, cuja referência, como de toda a série Assentamentos, são as fotografias do período de colonização escravista, algumas delas feitas pelo fotógrafo August Stahl (1865), a pedido do cientista criacionista Louis Agassiz, que estudou no Brasil os biotipos negros para atestar sua hipótese de que seriam seres inferiores aos brancos. Eva e Adão são gravuras da série, cujas imagens de negros escravizados estão envoltas em exemplares da flora brasileira, assim como de ossadas do paraíso tropical. Se a vegetação se refere ao ideal paradisíaco dos trópicos, uma construção do Outro colonizador, que tem como interesse maior a exploração mercantil da riqueza natural, as ossadas são consequência direta dessa colonização, que reduziu homens e mulheres a coisas a serem mercantilizadas. A morte e os ossos humanos no paraíso dos trópicos nada mais são do que a consequência da coisificação “naturalizada” dos corpos de seres inferiorizados (Fanon, 2008, p. 103), cujas covas coletivas do Cemitério dos Pretos Novos são testemunhos e comprovação.

Considerando o surgimento, nos últimos anos, de uma verdadeira geração de artistas da negritude,9 como Daniel Lima, da Frente 3 de Fevereiro, Dalton Paula, Arjan Martins, Michele Matiuzzi, Moisés Patrício e Paulo Nazareth − que

9 O termo negritude apareceu pela primeira vez em 1939, no poema “Cahier d’un retour au pays natal”, do antilhano Césaire. Em sua fase inicial, o movimento da negritude tinha caráter cultural. A proposta era negar a política de assimilação à cultura branca. O dilema para os africanos e negros da diáspora, assevera Frantz Fanon (2008), deixou de ser “embranquecer ou desaparecer”. Para rejeitar esse processo de alienação, os protagonistas da ideologia da negritude passaram a resgatar e a enaltecer os valores e símbolos culturais de matriz africana.

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trazem para o circuito de arte, como para a história da arte, a efetiva presença de artistas negros, mas também os debates sobre o colonialismo, o racismo e o trauma na história da sociedade −, passamos a considerar, nesse contexto do cais do Valongo, a obra de Jaime Lauriano, uma vez que o Museu de Arte do Rio foi também o lugar da inserção de Jaime por ocasião da mostra Rio de Samba – Resistência e Reinvenção. O artista paulista fez uma modificação no calçamento português da entrada do museu, inserindo textos contendo a nomenclatura de diversas etnias provenientes do continente africano, como diz, “sequestradas para trabalharem em situação de escravização nas Américas”. Na pilastra principal do térreo, pintada de preto, escreve: “Um dos principais símbolos da invasão e colonização portuguesa, o calçamento português assentava a chegada dos colonizadores no Novo Mundo. Era comum que a mão de obra utilizada fosse de pessoas escravizadas.” Ainda no calçamento, já fora do portão do museu, insere a frase “A História do Negro/Uma Felicidade Guerreira”, que nos remete ao sentido de resistência enquanto poder e festa, sentido que funda a região em que a fala de Jaime se insere, ou seja, a Pequena África.

Desde sua fundação, até meados de 1920, as atividades em torno do antigo cais fizeram desse espaço, ocupado por negros (escravizados ou libertos) de diversas nações, a região que o músico, compositor e pintor Heitor dos Prazeres chamou de Pequena África. A região é, como escreve Carlos Eugênio Soares (2011, p. 8-10),10 “um eco de memória da enorme presença africana na antiga zona portuária do Rio” e foi frequentada por grandes figuras do mundo musical carioca, como Pixinguinha, Donga, João da Baiana e o próprio Heitor dos Prazeres, que se reuniam na casa da ialorixá Tia Ciata (1854-1924), para as rodas de batuque africano que geraram as primeiras agremiações carnavalescas da região.11 A Pequena África abarcava, além da zona portuária, a Gamboa e a Saúde, onde permanecem os jardins do Valongo, a Pedra do Sal (onde residem ainda remanescentes do quilombo da Pedra do Sal e Santo Cristo), a igreja de São Francisco da Prainha, a ladeira do Livramento, o morro da Conceição, o morro da Providência, a praça da Harmonia e muitos outros sítios. São, em verdade, lugares-

10 “A Pequena África representa um eco da memória da enorme presença africana na antiga zona portuária do Rio, que começa na região do Valongo, ao final do século XVIII, e depois no cais do Valongo, obra do período joanino, o primeiro (e talvez o único) cais de pedra construído no Brasil para receber escravos africanos [...]. A região do Valongo é caracterizada pela rua do Valongo (atual Camerino), local dos armazéns de compra e venda de africanos; o trapiche do Valongo, na embocadura da rua com o mar; o cemitério do Valongo, na atual rua Pedro Ernesto, hoje sede do Instituto Pretos Novos; e o Lazareto dos Escravos (criado por d. João VI em 1818, que recebia os africanos novos que chegavam doentes), hoje no alto da Pedra da Saúde.” Ver: http://pretosnovos.com.br/ipn/.

11 O fim do tráfico internacional, em 1850, possibilitou outros tipos de migração, como a forçada internamente, mas também a voluntária, dos primeiros libertos. Nesse processo, conhecido como diás-pora baiana, chegaram à Pequena África Ciata de Oxum, em 1870, e Dom Obá, em 1880. Mesmo com a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, a região não deixou de ser um espaço vivenciado/habitado pela população afrodescendente (Gimenez, 2018).

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monumentos, que se poderiam chamar de antimonumentos, alguns em ruínas, mas que permanecem como lugares de memória, como são também os sobrados, os arruamentos, os agrupamentos carnavalescos Cordão do Prata Preta,12 Escravos da Mauá, Afoxé Filhos de Gandhy, assim como os vários terreiros, que são formas de existir e de resistir. A Pequena África, entretanto, é também lugar de novos modos de habitar, ainda que não diretamente ligados à diáspora, como o recente Atelier Sanitário, na rua Pedro Ernesto, próximo do IPN, onde fabricantes, fábrica e fabricados vivem uma experiência de arte como lugar, que remonta ao lugar-aterro, aos soterramentos e às sobrecamadas, como um depósito-memória do trauma, sempre prestes a irromper. Os móveis ali fabricados são uma espécie de reminiscência das atrocidades por que passaram os que ali bem perto estão enterrados. São cadeiras do desconforto e poltronas do trabalho esgotante e sem fim.

Referências

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12 Homenageia o capoeirista Horácio José da Silva, o Prata Preta, que se destacou na Revolta da Vacina, de 1904, movimento mobilizador de muitos moradores da Saúde contrários à vacinação obrigatória e em defesa da cultura e tradições negras.

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HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.

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SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Pequena África: um portal do Atlântico. Rio de Janeiro: Ceap, 2011.

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O humano e o não humanoAs plantas e a precarização da existência

Evando Nascimento1

– Você percebeu que [meu trabalho] não tem imagem do homem. Depois da guerra, meu grande desejo era fugir do homem. Que arte eu poderia fazer? Defender a vida.

E lutar contra esse barbarismo praticado. Como ser passivo, esquecer? Até o fim de minha vida [essa arte] vai estar presente.

Se eu pudesse trazer as três montanhas de lixo [de homens mortos, em campo de concentração na Segunda Guerra], é isso que gostaria de fazer.

Frans Krajcberg

(Entrevista à Folha de S. Paulo, 2002)

Das plantas aos humanos: para não esquecer

Agradeço a Luiz Cláudio da Costa e a todas as pessoas e instituições envolvidas no colóquio Vidas Precárias – A Experiência da Arte na Esfera Pública, em particular à Pós-graduação de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ao Arquivo Nacional. Ao que parece, da e contra a precariedade viveremos cada vez mais no Brasil, distanciando-nos do sonho de uma nação socialmente justa. É preciso, todavia, que as forças ditas progressistas se unam cada vez mais, não só para resistir contra o neofascismo, atitude ainda reativa, mas para inventar formas de reabrir o horizonte para perspectivas mais promissoras.

Faz aproximadamente dois anos que a existência das plantas se tornou meu assunto principal. Tendo publicado na revista Gragoata, da Universidade Federal Fluminense (UFF), no início dos anos 2000, um ensaio sobre o que então chamava de “inumano”, nos anos seguintes passei a abordar a vida dos animais e também dos vegetais, em particular num livro em torno da ficção de Clarice Lispector, Clarice Lispector: uma literatura pensante (Nascimento, 2012). Hoje prefiro renomear essa grande questão como a relação complexa entre humanos e não humanos, observando, contudo, que não se trata de forma alguma de mais uma oposição classificatória.

Interessa-me antes de mais nada refletir sobre esse grande arquivo bastante vivo, que são as espécies vegetais.2 Evidentemente o arquivo morto das inúmeras

1 Professor e pesquisador da Faculdade de Letras e do Departamento de Línguas Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora. É escritor e ensaísta. Realizou pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim (2007). Publicações: Derrida e a literatura (3. ed., 2015), Clarice Lispector: uma literatura pensante (2012), Pensar a desconstrução (2005).

2 Este artigo dialoga explícita e implicitamente com vários conceitos do Mal d’archive, de

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espécies desaparecidas assombra o arquivo atualmente vigente, como um espectro que tanto nos ajuda a sobreviver em tempos precários, quanto traz a ameaça da destruição. Os mortos, afinal, fornecem a prova irrefutável de que tudo se destina a um fim, embora muitas vezes o prazo final, o chamado deadline (literalmente, a linha morta), nunca possa ser estipulado.3 Lembro que a palavra arquivo, como se sabe, vem do latim tardio: “archīvum, i palácio, tribunal, arquivo, lugar onde se guardam papéis e documentos antigos, cartório”, como adaptação do grego arkheîon, “residência dos principais magistrados, onde se guardavam os arquivos de Atenas” (Houaiss, s.d.). Aqui a palavra arquivo será utilizada em sentido literal e metafórico: o espaço de preservação da memória e o espaço em aberto de preservação das espécies viventes, em particular das espécies vegetais.

Esclareço, todavia, que não me interessa abordar o mundo das plantas em si. Ao contrário de outros intérpretes da questão vegetal, como os filósofos Michael Marder (2013) e Emanuele Coccia (2016), não defendo uma ontologia vegetal, distinta de uma ontologia humana e animal. Se esses viventes importam, é porque mantêm relações mutuamente estreitas. O humano, por exemplo, só pode ser definido com relação àquilo que ele não é, mas com que guarda mais de um traço em comum, o já referido não humano, as outras formas de vida. O humano é um animal especial, que se identifica até certo ponto por sua espécie particular, mas que jamais encontra uma definição essencial, a qual o liberaria de qualquer compromisso ético ou existencial com os outros viventes. “Viver/é ir entre o que vive”, diz João Cabral de Melo Neto (2003, p. 114), nesse imenso poema da precariedade e da sobrevivência que é O cão sem plumas e que mereceria uma análise mais detalhada nesse contexto das vidas precárias.

Assim, desde o subtítulo proposto, à precariedade das plantas se associa intimamente a precariedade humana. Vivemos rumo a um deadline, a um prazo final, a uma linha limite, que constitui todo o nosso “mal de arquivo” contemporâneo (Derrida, 1995). E na pesquisa que ora empreendo, vale investigar como cientistas, filósofos, escritores e artistas têm interpretado a problemática vegetal. Neste espaço privilegiado de fala e saber, as reflexões teóricas serão associadas a comentários sobre Frans Krajcberg. Vale lembrar que no próximo dia 15 fará apenas um ano que ele se foi, deixando um enorme acervo de obras.4

Jacques Derrida (1995).

3 Segundo o dicionário Merriam Webster: “Deadline: 1: a line drawn within or around a prison that a prisoner passes at the risk of being shot. 2a: a date or time before which something must be done; b: the time after which copy is not accepted for a particular issue of a publication”. Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/deadline. Acesso em: 25 mar. 2019.

4 N.E.: o autor refere-se à data de sua apresentação no colóquio que ocorreu entre 12 e 14 de no-vembro de 2018 no Arquivo Nacional.

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A precariedade vegetal: uma questão de inteligência

Trabalhar com a precariedade dos animais e agora das plantas foi o modo que encontrei para não somente de alguma forma sentir a dor que sentem, como empatia, a despeito de todas as diferenças entre nossas espécies, mas também para compreender o sofrimento vegetal e o efeito catastrófico que representa para os próprios humanos. Nada tenho contra o progresso tecnológico, não sendo nostálgico de uma era pré-industrial, nem de um mundo puramente artesanal. Pois sei que há tecnologia desde que o primeiro homem ou mulher das cavernas pegou um fragmento de sílex, amarrou a um pedaço de madeira e com isso construiu a ferramenta para derrubar plantas e abater animais. Todavia há modos diferenciados de se intervir no entorno, e o chamado progresso científico precisa estar ao lado de uma agricultura ou de um extrativismo sustentável, com a finalidade de preservação máxima das espécies, inclusive a nossa própria.

Em De anima (Peri psychê), Aristóteles (2017) repassa todas as teorias precedentes da alma, desqualificando-as uma por uma. São convocados em sua argumentação textos de Empédocles, Anaxágoras, Demócrito e até de seu mestre Platão, entre outros. O que há de mais rico na reflexão aristotélica é que, ao contrário de diversos outros pensadores da tradição metafísica, ele não nega certa propriedade anímica às plantas; apenas o tipo de alma que detêm não é tão completo quanto o dos animais e sobretudo dos homens: “Dentre as potências da alma [psiquê], [...] nas plantas subsiste somente a nutritiva, mas, em outros seres, tanto esta como a perceptiva” (Aristóteles, 2017, p. 77).

A planta seria então, enquanto portadora de uma alma incompleta, inferior, uma vida no limite da existência. Esse preconceito metafísico foi abordado dos mais diversos modos pela tradição ocidental. À diferença de outras culturas, como algumas de origem africana e indígena, as plantas para nós não se ligam diretamente aos humanos. Claro, todos os animais necessitam dos vegetais, para extrair a energia que os mantém de pé, mas tudo não passa de uma função utilitária. Os animais são chamados de heterótrofos, porque não conseguem produzir seu próprio alimento, por meio de substâncias inorgânicas e da luz solar. Já as plantas são chamadas de autótrofas pelo fato de obterem nutrição por meio da fotossíntese, das substâncias do solo e da água: produzem, desse modo, o orgânico a partir do inorgânico.

O fato é que quase nunca se coloca o sentido do viver vegetal em sua plena autonomia. As florestas importam, porque servem para regular a temperatura do planeta, fixando o gás carbônico e liberando o oxigênio para a atmosfera. Ou seja, têm uma função reguladora. Curiosamente, Heidegger, o filósofo que acusou Nietzsche de ser o último metafísico, repete os dogmas da tradição metafísica ao separar peremptoriamente as plantas e os animais dos outros viventes, os humanos. Como diz com todas as letras na famosa Carta sobre o humanismo,

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dirigida a Jean Beaufret: “Dentre todos os entes que são, o ser vivo é provavelmente o mais difícil de ser pensado por nós, porque ele é por um lado o que mais se parece conosco e, por outro lado, está abissalmente separado de nossa essência ek-sistente” (Heidegger, 2008, p. 338).

Interessa, portanto, preencher minimamente esse abismo entre os humanos e os não humanos animais e vegetais, discutindo especialmente o que seria uma inteligência vegetal. Na perspectiva tradicional, faltaria às plantas esse senso de mobilidade próprio aos animais, e que já está na “raiz” de sua etimologia: o ânimo ou a anima que nos move enquanto viventes heterótrofos. Como apenas com o surgimento das câmeras de aceleração de imagens pôde-se perceber que as plantas se mexem bastante, o preconceito metafísico se perpetuou. Ao contrário do que afirmou Aristóteles, reconhecendo-lhes uma alma todavia precária, ainda hoje, para grande parte da humanidade, elas seriam como que desprovidas de alma. Seu viver seria mecânico, “vegetativo”, e por isso carente da dignidade própria aos demais viventes. Motivo pelo qual podem ser abatidas sem remorsos: elas não reagem, porque não pensam nem sentem propriamente, e por consequência não são dotadas de existência em sentido pleno.

Em 2008, o Comitê Ético Federal Suíço, pela primeira vez na história da humanidade, entregou um relatório cujo título era “A dignidade dos seres vivos no que diz respeito às plantas”. E toda a questão ética se refere a valor. Mais precisamente: o valor de uma vida qualquer, independentemente da espécie ou gênero a que pertença. Segundo os cientistas, as plantas representam 95% da biomassa, os 5% restantes competem aos animais; destes, menos de 1% ao corpo humano... Se por uma catástrofe natural todos os vegetais desaparecessem subitamente da face da Terra, os animais morreriam em alguns meses: por falta de oxigênio e, sobretudo, por escassez de alimento.

Hoje o que importa é a defesa ampla e irrestrita do direito à vida, e não apenas dos direitos humanos, os quais devem igualmente continuar como prioritarios. Não existe verdadeira democracia sem direitos humanos e sem o amplo respeito à vida, e o contrário é ainda mais impensável: o respeito aos direitos humanos e vitais num país não democrático. Não se deve esquecer que Marielle Franco morreu defendendo os direitos humanos, numa emboscada em que também foi assassinado o motorista Anderson Gomes. E, há exatos trinta anos, Chico Mendes foi executado lutando pela floresta amazônica, contra o latifúndio.

Utilizados amplamente pela indústria farmacêutica, cultivados em larga escala pelo agrobusiness, abatidos brutalmente pelas serrarias, seviciados pelo extrativismo predador, barbarizados pela ignorância dos leigos, os vegetais precisam em geral de um longo período para criar estratégias de sobrevivência e de regeneração. Algumas florestas hoje destruídas levarão séculos, talvez milênios, para voltarem a seu estágio primitivo, isso se as forças biopolíticas que

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as exterminam derem alguma trégua, o que está longe de ser o caso em todo o planeta. O chamado Antropoceno, momento em que a Terra teria sofrido transformações irreversíveis devido à ação humana, para muitos cientistas já é um fato. Ora, para ser efetivamente universal, o valor humano deve ser inclusivo e respeitar as outras formas de vida não humanas, tal é a questão. De outro modo, a humanidade corre o risco de potencializar ao máximo sua própria precariedade.

Como sintetiza perfeitamente o cientista italiano Stefano Mancuso a respeito da inteligência e da sensibilidade dos vegetais:

Os estudos mais recentes mostraram que [as plantas] são dotadas de sensibili-dade, que se comunicam entre si e com os animais, que dormem, memorizam dados e são até capazes de dominar outras espécies. Além disso, merecem de ple-no direito o qualificativo de inteligentes. O aparato de suas raízes se desenvolve ininterruptamente, com a ajuda de inúmeros centros de comando, cujo conjunto as guia à maneira de uma espécie de cérebro coletivo, ou antes, de inteligência distribuída, que, ao aumentar e se desenvolver, assimila informações capitais para sua nutrição e sobrevivência. (Mancuso, 2018, p. 208, 209)

Krajcberg arquivista da natureza: o sítio Natura

A partir da obra de Frans Krajcberg, pode-se refletir sobre as relações entre arquivo morto e arquivo vivo no que diz respeito às plantas.5 Tal distinção é complicada, porque a conversão em arquivo de qualquer vivente ou objeto já é transformá-lo em “morto”, classificado para consulta. Arquivo vivo seria o conjunto das espécies existentes enquanto não sofrem algum tipo de paralisia. Todavia, como classificar uma obra como a de Krajcberg, que se ergue sobre os escombros da destruição?

Foi um artista que trabalhou ativamente o registro e a reelaboração das cinzas, dos restos da voragem destrutiva. Por assim dizer, sua obra operava (tal é o significado etimológico do termo latino opus) no sentido de fazer o luto impossível da catástrofe, que para ele se desdobrou em dois tempos decisivos. Primeiro, o tempo que vivenciou da Segunda Guerra, em que perdeu a mãe e os irmãos, e em que viu os cadáveres calcinados nos campos de concentração. Segundo, o tempo das queimadas em território brasileiro, que presenciou, fotografou e filmou inúmeras vezes. Sua febre de arquivo paradoxalmente se dirigia às matérias carbonizadas pela ação do homem, e laborava não propriamente para remediar o mal, mas para realizar algo a partir do niilismo coletivo.

5 As reflexões sobre a obra de Krajcberg foram feitas a partir de diversas exposições que vi com obras suas e também do vídeo (2012), dos livros com e sobre o artista (1987 e 2000) e de uma entrevista à Folha de S. Paulo (2002). A biografia e alguns trabalhos do artista e ativista ambiental podem ser consultados em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10730/frans-krajcberg. Acesso em: 25 mar. 2019.

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O “poeta dos vestígios” é, sem dúvida, o arquivista da morte e da sobrevivência, ou seja, daquilo que escapou como resíduo da destruição em curso na Amazônia, em todo o Brasil e no mundo. Sua ativa memória lutava contra o esquecimento do próprio presente, bem como do passado devastador. Um arquivista mais voltado para o que acontece hoje e aqui, do que ontem e alhures, Krajcberg ardia pelo desejo de não se deixar perder uma natureza que, no entanto, em suas obras só existia como rastro. Uma natureza por assim dizer desnatural, adjetivo que me é caro (Nascimento, 2008). Tal é a definição de sua arte, uma produção desnatural que, todavia, sinaliza os limites de sobrevivência do dito natural num mundo hiperindustrializado e digitalizado. Veja-se como ele define o início de seu ativismo artístico:

Pouco depois de me instalar em Nova Viçosa [em 1972], fiz uma exposição no Centro Georges Pompidou, em Paris. Três vezes por semana, eu ia lá e mostrava fotos do Brasil e dialogava com o público. Depois dessas conversas, compreendi que o meu desejo não era apenas o de trabalhar com a natureza. Compreendi também que deveria defender a natureza com o meu trabalho. Voltei para o Brasil e comecei a fazer grandes viagens, a ver toda a destruição, a fotografar, a captar e trazer a morte para mostrar: “Vejam, onde havia uma bela árvore, hoje existe um pedaço de carvão.”

Sou revoltado contra o que está acontecendo. Contra a luta do homem contra o homem, do homem contra a natureza, do homem contra a vida. O meu trabalho é a única maneira de me expressar. Se começo a gritar na rua, me botam num hospital de doidos.

[...]

Sinto que estou mais perto da força que me dá tranquilidade para viver: a natu-reza. (Krajcberg, 2002)

A obra de Krajcberg é, portanto, inaugurada pela morte, com a perda de toda a sua família na Segunda Grande Guerra e com a visão dos corpos empilhados nos campos de concentração. Essa epifania negativa está na base de sua pesquisa artística, que passará por diversas fases, todas de algum modo impulsionadas pelo horror da guerra e pela tendência expressionista nas artes, a qual fez parte de sua formação. Apesar de ter sido aluno a partir de 1945, em Berlim, de Willi Baumeister, um dos mestres sobreviventes da Bauhaus, não é no construtivismo da escola que ele vai se encontrar. Será preciso todo um périplo existencial e artístico para achar a verdadeira motivação que o impulsionará até o final da vida.

Seria impossível resumir seu percurso, remeto para isso ao belíssimo livro Revolta, com texto do crítico Frederico Morais, em que consta uma biocronologia (Krajcberg, 2000), e à entrevista citada para a Folha de S. Paulo (2002). Destacaria apenas alguns pontos que me parecem essenciais. Depois do período de estudos em Stuttgart, após a Segunda Guerra, em que se destacou entre os alunos de Baumeister, por recomendação deste, em 1948, Krajcberg segue para Paris, onde

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encontrará Fernand Léger. Mas será Marc Chagall que o orientará, provavelmente porque Krajcberg falava russo, mas não, certamente, o francês. Com a ajuda de Chagall, compra uma passagem na terceira classe para o Rio de Janeiro, onde chega sem falar uma palavra da língua e passa a morar nas ruas. Em seguida, vai para São Paulo, onde é contratado como operário no Museu de Arte Moderna. A partir daí, seu contato com o meio artístico se intensificará, e ele travará conhecimento com poucos artistas, como Volpi e Waldemar Cordeiro. Já em 1951, trabalha na I Bienal de São Paulo, onde expõe duas pinturas. Na IV Bienal de São Paulo, ganha o prêmio de melhor pintor brasileiro. A partir daí, participa de diversas mostras nacionais e internacionais.

No início dos anos 1950, Krajcberg morou no interior do Paraná, onde pela primeira vez se isolou em contato com a natureza, mas de onde se mudou quando começaram as queimadas para destruir as florestas e implantar o cultivo do café. Seria seu contato direto inicial com o que chamo de holocausto das plantas, repercutindo o holocausto da Segunda Guerra, cujo resultado ele presenciou no campo de concentração. Utilizo o polêmico termo holocausto em seu sentido etimológico, queimar o todo ou queimar inteiramente (do grego holókaustos, “sacrifício em que a vítima é inteiramente queimada” – Houaiss, s.d.). O holocausto praticado pelos nazistas, mais tarde denominado como shoah (catástrofe, destruição), a meu ver simboliza todo holocausto possível, quando um gênero ou uma espécie é tomado, intencionalmente, como alvo de sacrifício pelo fogo. O horror que a obra de Krajcberg veicula deriva desse duplo holocausto, da espécie humana e das espécies vegetais. Mas sua obra somente assumirá integralmente o caráter ético e político desse horror anos mais tarde.

Depois da temporada paranaense, foi morar no Rio de Janeiro, onde chegou a trabalhar ao lado de Franz Weissmann. De 1958 a 1964, mora em Paris. Em 1964, segue para o interior de Minas, vivendo um ano em Cata Branca, onde fará a descoberta dos minérios e dos pigmentos naturais que marcarão sua obra a partir daí. Nesse mesmo ano, recebe o prêmio Cidade de Veneza. Creio que seus trabalhos podem ser alinhados nessas duas vertentes que não se opõem, antes se suplementam: uma mineral, com destaque para os assemblages nos quadros com pedras e detritos naturais, e outra vegetal, a mais conhecida, e que deixará sua marca fulgurante na história das artes e na história simplesmente.

Como foi dito, depois de novo período parisiense, Krajcberg passará a viver, a partir de 1972, no extremo sul da Bahia, em Nova Viçosa, uma antiga aldeia indígena que se transformou numa colônia de pescadores e que ele já havia visitado em 1965. É preciso lembrar que, segundo suas próprias palavras, Krajcberg renasceu no Brasil. Foi aqui que de algum modo pôde, se não apagar, ao menos reduzir a melancolia pelo horror europeu, encontrando um novo território a que se apegar, razão pela qual detestava que o considerassem um artista polonês radicado no Brasil. A despeito de seu forte sotaque em português, queria ser considerado

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brasileiro, tal como a também imigrante da Europa do Leste Clarice Lispector, pois foi aqui que viveu grande parte de sua longa existência. Pátria, se existe, é a que se afetivamente adota, não necessariamente aquela em que se nasceu.

Adotar uma terra como o Brasil não é fácil, essa “grande pátria desimportante”, que pouco valoriza seus filhos mais brilhantes. O fato de Krajcberg ainda não estar ao lado dos grandes modernistas e pós-modernistas ocidentais do século XX e do XXI se deve sem dúvida a essa dificuldade de reconhecimento em território nacional. O grande prestígio internacional não basta para colocá-lo ao lado de outros grandes inventores como Léger, Chagall, Duchamp, Picasso, Max Bill, além dos minimalistas e artistas conceituais que emergirão na década de 1960. A meu ver, a riqueza de sua obra está em se alinhar ao melhor da vertente conceitual (daí ele recusar o título de artista, tal como Duchamp), ao melhor da produção estética modernista e pós-moderna (daí ele poder ser, a despeito de sua própria vontade, considerado um dos grandes da pesquisa estética stricto sensu, tendo experimentado uma gama enorme de procedimentos artísticos: escultura, pintura, escultura pictórica, fotografia, vídeo, instalação, assemblage, além do ativismo artístico ambiental que vai marcar a parte final, e mais expressiva, de sua arte).

O ponto de mutação de sua pesquisa estética ocorre a partir de 1975, após a referida exposição no centro de arte contemporânea, o Centro Georges Pompidou em Paris. Krajcberg levou para lá seus trabalhos com árvores calcinadas e outros resíduos naturais, e obteve ótima repercussão crítica. Mas, como ele mesmo contou, nos debates que ocorreram, houve grande conflito com o público, que de algum modo condenava aquela estetização do holocausto vegetal. Isso gerou nele a necessidade de infletir sua prática a partir de uma reflexão ética e política. Em solo europeu, nascia em definitivo o ativismo artístico que se tornaria a marca nacional e internacional de suas intervenções. Ele não somente intensificará sua pesquisa de campo nos mangues de Nova Viçosa, recolhendo troncos carcomidos pelos gusanos, árvores apodrecidas, raízes e todo tipo de detrito vegetal, mas também fará incursões pela floresta amazônica e pelo Mato Grosso, onde presenciará a destruição programada de nossas belas florestas tropicais.

O que fascina nessa miríade infinita de trabalhos realizados no sítio Natura em Nova Viçosa, mas também em seu ateliê em Paris, é a força titânica de um homem que se levantava com a luz do sol e saía para catar resíduos, o arquivo morto do mangue e da floresta, acompanhado por assistentes. E que passava dias inteiros trabalhando exaustivamente a madeira, preparando-a para receber o pigmento por ele mesmo produzido, a partir de minérios recolhidos em Minas Gerais. É essa mistura de artista coletor, que vai em busca dos objets trouvés na natureza, um humano em corpo a corpo direto com o não humano orgânico e inorgânico – é essa mistura do catador com o artista virtuose, capaz de estetizar qualquer material, que compõe o híbrido chamado Frans Krajcberg. Como bem nota Frederico Morais (Krajcberg, 2000), é chocante sabermos que toda a beleza que

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contemplamos só foi possível a partir do que estou chamando provocativamente de “holocausto vegetal” (expressão que não encontrei na ainda pequena fortuna crítica sobre o artista ativista). Ele próprio comenta: “Meu trabalho às vezes chega ao estético, mas sem querer. Não é todo dia que eu consigo fazer um trabalho que grite alto, como eu gostaria. Às vezes ele cai um pouquinho no estético, sem que eu tenha intenção” (2002). Sua concepção ao mesmo tempo resgata a noção de Duchamp e do dadaísmo sobre a “antiarte” e a ultrapassa: “Eu não quero criar um novo ismo, nenhuma escola nova de arte. Meu único objetivo é destruir a pintura, fazer uma antipintura. Eu detesto esta pintura que vejo por aí, em museus e galerias. Há pintores demais no mundo, mas poucos artistas” (2000, p. 16).

Krajcberg é, portanto, um arquivista do natural morto. Poderia, se desejasse, trabalhar lado a lado com os grandes naturalistas em seus dois séculos de existência. Na qualidade de coletor e produtor do arquivo morto, ele poderia expor o resultado de suas buscas, como denúncia do grande empreendimento destrutivo que grassa nos diversos estados brasileiros, inclusive na exuberante mata atlântica, que outrora se estendia por toda a costa e hoje se vê reduzida a fragmentos. Se tivesse parado aí, já teria dado uma contribuição à humanidade e à vida em geral, uma vez que o destino de nossas florestas diz respeito a todos os viventes, humanos e não humanos. Fotos e vídeos reforçariam a apresentação ao vivo desse arquivo geral da destruição em curso.

No entanto, devido a sua formação artística europeia, marcada inicialmente pelo expressionismo, ele precisou ir muito mais longe. E a estetização que propõe dos resíduos vegetais fascina pela exuberância dos materiais recolhidos, alguns difíceis de se submeterem às técnicas artísticas tradicionais: gravetos, raízes, troncos gigantescos, cipós, folhas de todas as espécies, rigorosamente qualquer coisa que captasse a curiosidade do coletor foi levada para seu ateliê e trabalhada arduamente, como se fosse o mármore e a madeira com que os escultores trabalham.

A estranheza do resultado vem dessa insubmissão do natural destruído, que não se curva inteiramente aos procedimentos escultóricos e pictóricos tradicionais, mas que surpreende pelo fato de, em alguma medida, essas produções ainda estarem relacionadas à tradição da arte ocidental. Não são decerto o produto de um artista “primitivo” (designação a ser utilizada com todas as aspas, por razões de etnocentrismo), como há tantos no Brasil, trabalhando também com restos de vegetação, como troncos abandonados, raízes e folhas. Seria o caso de comparar um dia o trabalho desses outros arquivistas ditos primitivos ao de Krajcberg. Em seu caso, há um vasto repertório da arte e da antiarte que ele domina, mas que, estrategicamente, evita relacionar a sua proposta.

A vida de sua obra dependeu, basicamente, do remanejamento do arquivo da natureza morta, que encontrou e coletou nas inúmeras incursões pelo

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mangue, pela floresta e pelo descampado. A partir do material mais precário, a vida calcinada pôde erguer belos monumentos, como registros de uma memória do presente. Apesar de todo o ativismo de uma existência dedicada à natureza e à arte, contra toda forma de destruição, o holocausto vegetal segue a todo vapor, com o anúncio explícito do velho-novo presidente do Brasil que tudo fará para retirar os índios dos territórios que ainda ocupam na floresta amazônica. Cada vez que um holocausto como esse é anunciado e praticado, é toda a humanidade que se precariza, como se os governantes planetários amassem projetar o fim programado da espécie. A empatia com o sofrimento das demais espécies só funcionará quando finalmente percebermos que a vida como um todo, a despeito de sua abundância, é extremamente precária. E que os crimes praticados contra os outros viventes ameaçam o coração de nossa frágil sobrevivência.

Deixo a palavra final ao (anti)artista: “Não escrevo, não sou político. Minha mensagem é trágica: eu mostro o crime. A outra face de uma tecnologia sem controle. Quero dar à minha revolta o aspecto mais dramático e mais violento. Se pudesse espalhar aqui as cinzas, eu chegaria próximo do que sinto. Com minha obra, exprimo a consciência revoltada do planeta” (Krajcberg, 2000, p. 165).

Referências

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KRAJCBERG, Frans. O grito da natureza. Direção de Paula Saldanha e Roberto Werneck. Rio de Janeiro: TV Brasil; RW Cine, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-v=yXvaM_H1_As. Acesso em: 25 mar. 2019.

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MELO NETO, João Cabral. O cão sem plumas. In: ______. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 103-116.

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PELT, Jean-Marie. L’évolution vue par un botaniste. Paris: Fayard/J’ai Lu, 2011.

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Um doce olharPor uma informação com mais beleza e respeito à dignidade

João R. Ripper1

Aprendi que um doce olhar significa ver melhor a quem se quer e abrir-se para o bem querer a quem se olha, aquele que é sempre o outro da gente. Um doce olhar pode ser um passeio sobre si mesmo, uma

grande busca, uma luta, um encontro com a própria luz.

Um doce olhar pode ser se deixar à disposição do tempo, de uma edição, de uma decisão onde o belo faz parte de algumas histórias, pois nada tem uma só história. Se cada fotógrafo consegue começar suas

histórias com um doce olhar que pode ser o dia a dia sobre a alegria ou sobre a dor, um doce olhar tem como fio condutor a dignidade.2

João R. Ripper

(Exposição La Belleza del Otro)

Tem uma coisa que é comum à grande maioria das pessoas, independentemente da sua cor ou país. Tão forte, que é responsável pela existência de nós todos na nossa imensa maioria. Falo da beleza. Um dia, todos os pais devem ter feito como os meus, seu Thomaz, um cearense forte, que veio para o Rio num pau de arara, olhou para minha mãe, Dinah, uma carioca baixinha e delicada, e se encantou. Ela também olhou para ele e se encantou. Viram beleza um no outro e se chegaram mais. Depois, foram se conhecendo e vendo as suas belezas interiores e as belezas dos seus fazeres. Daí, nascemos sete irmãos.

Assim acontece com os quilombolas, os índios, os moradores de favelas, os irmãos latinos, os europeus, asiáticos, africanos. Então, por que, na hora de informarmos sobre a vida das populações mais pobres, não informamos sobre as belezas de seus fazeres e suas realizações?

Todos nós sonhamos, mas os exemplos de sonhos realizados não são, normalmente, comentados quando informamos sobre as populações mais pobres. Não contam suas conquistas e vitórias, só mostram histórias de ausências ou de violências, que, de tanto se repetirem, ficam arraigadas no imaginário popular. Assim se fazem os estereótipos.

Na minha experiência como fotógrafo, tenho aprendido cada vez mais com as pessoas. Quando comecei meu trabalho, as pessoas que fotografava e com

1 João R. Ripper é fotógrafo e ativista dos direitos humanos. Criou a sociedade Imagens da Terra, entidade sem fins lucrativos, especializada em fotografia documental. Tem imagens publicadas no relatório Violência no campo no Brasil (Anistia Internacional, 1988). Séries fotográficas: Carvoeiros (1992-1995) e Índios kaiowas (1993).

2 Disponível em: http://cdf.montevideo.gub.uy/system/files/invitacion-ripper.pdf. Acesso em: 16 abr. 2019.

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Figura 1 – Família de carvoeiros escravizados, Minas Gerais, Brasil. Foto: João R. Ripper

as quais aprendia sobre diversas coisas da vida eram, em geral, muito mais velhas que eu. Continuo fotografando e, hoje, a maioria daqueles que fotografo e com os quais continuo a aprender são bem mais novos do que eu. Ainda encontro nessa caminhada pelo Brasil idosos bem mais idosos do que eu e continuo aprendendo com eles.

Observando, escu tando, fui descobrindo, aos poucos, que o documentarista é, sobretudo, aquele que aprende e reconhece valores em quem fotografa. Como o personagem de Guimarães Rosa, para quem “mestre não é aquele que ensina, mas aquele que, de repente, aprende”. Aprendi que existe um fio condutor

que nos leva a ter um doce olhar, o fio da dignidade. Dignidade que se revela na hora em que documentamos momentos de dor e de alegria.

Em aldeias indígenas, áreas quilombolas ou comunidades vazanteiras, algumas vezes me deparei, à noite, olhando o céu e repassando tanta gente bonita que conheci, tantos momentos que vivi e me levaram a refletir sobre como nós, comunicadores, e a comunicação de modo geral, temos nos portado: como um instrumento a serviço da humanidade, ou como julgadora e repressora das distintas populações?

Penso muito no poder da comunicação, na força dos veículos tradicionais, que perpassa todos os poderes – políticos, econômicos, nacionais e internacionais. A comunicação formal ainda tem o poder de ser o fio condutor que alinhava, costura todos os demais poderes.

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Penso como, historicamente, somos muito mais mantenedores de um status, de uma situação, do que transformadores da realidade. E o que faz a comunicação ser usada para representar quase sempre a ideologia dominante? O que a faz estar ligada a um poder que diz como as pessoas são e como devem ser, e que as revela sempre com as mesmas histórias? Por que a comunicação exerce o repressor poder de contar sempre uma história única? De que maneira se faz essa história e como podemos quebrar seu poder?

O perigo de uma história única é que, independentemente de ser verdadeira ou falsa, ela se transforma na única história possível de uma pessoa, de um povo, de uma comunidade, de um país ou de um continente. E ninguém, nem lugar nenhum, tem apenas uma história.

As histórias únicas, quando repetidas insistentemente, limitam pessoas e comunidades, criam estereótipos, censuram a beleza das pessoas e dos seus fazeres; a beleza dos fazeres de uma comunidade, um grupo ou até mesmo um país. Assim ocorre com os moradores de favelas, com os trabalhadores rurais, principalmente se estiverem ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com os quilombolas, os índios, os seringueiros e tantas populações tradicionais (Figura 3). Enfim, não se mostram as belezas dos fazeres das populações mais pobres, quase nunca seus fazeres são notícia. Essas comunidades, quase sempre, são mostradas pela ausência ou pela presença da violência, da qual, na maioria das vezes, são vítimas, embora sejam apresentadas como responsáveis.s

Figura 2 – Criança carvoeira em Ribas do Rio Pardo, Mato Grosso do Sul, Brasil. Foto: João R. Ripper

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Figura 3 – Com origem no Peru, no século XVI, os ashaninkas vieram para o território brasileiro no século XIX e se estabeleceram no estado do Acre, sendo o maior grupo o da aldeia Apiwtxa do rio Amônia, no município de Marechal Taumaturgo. Essa aldeia é a principal da etnia, e as suas lideranças desenvolvem, há anos, trabalhos importantes na defesa do seu território, proteção da sua cultura e da mata amazônica. Os ashaninkas são verdadeiros porta-vozes da agrofloresta e da preservação amazônica no mundo, além de importantes agentes de transformação social e ambiental, pois promovem desenvolvimento não só na sua comunidade, mas em toda a região do Alto Juruá. Foto: João R. Ripper

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A informação é um direito que deve ser exercido por todas as pessoas. Todos têm o direito de investigar as informações que desejam acessar e de divulgá-las, usando todos os meios disponíveis, sem que sofram censura. É isso o que diz, em outras palavras, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição federal.

O cientista político e filósofo do direito moderno Norberto Bobbio, em sua coletânea Presente e futuro dos direitos do homem, diz:

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. […]. Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se en-frentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandaliza-do, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. (Bobbio, 2004, p. 16, 24)

Isso é diferente da opinião, quase unânime nos meios de comunicação, de que a informação deve chegar a todos. O problema é que, além de estarmos um pouco longe desse ideal, cabem ainda algumas indagações. De onde ela vem, por quem é emitida e com que propósitos? A que interesses serve? Quando populações ou comunidades estão insatisfeitas com as notícias com as quais são pintadas, têm o direito de investigar e divulgar as informações que desejam conhecer e difundir.

Estamos, portanto, diante de dois direitos legítimos: um, o do jornalista, de informar; outro, o de todas as pessoas se informarem. Quando temos dois direitos, um não pode ser censor do outro. Os direitos individuais e coletivos têm que ser respeitados, e o sagrado direito de todas as pessoas terem acesso à informação também deve ser respeitado. Os jornalistas não devem ser censurados e nem devem censurar. Toda essa questão se amplia quando vários segmentos da sociedade se sentem feridos e sofrem com a informação produzida pelos meios oficiais.

Em fotografia, uma coisa é muito clara. Se as pessoas não viram, não existe, e se não é mostrado, não é conhecido, não faz parte do conteúdo de informações que faz o senso crítico coletivo. Isso acontece com o belo, com a dignidade e com as realizações dos segmentos com menor poder aquisitivo.

No mais das vezes, a beleza dessas pessoas é ignorada. Fabrica-se uma violência sobre os moradores das favelas, constantemente confundidos no imaginário da classe média com pessoas que geram violência. Constrói-se, assim, uma violência enorme com a informação, que se soma a outras forças violentas, oficiais.

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A vítima é o morador das favelas, os trabalhadores rurais, principalmente se pertencerem ao MST, os quilombolas e os índios, em especial, os do Mato Grosso do Sul (por que em especial esses)?

Hoje, tão importante quanto denunciar, é mostrar a beleza das populações que sofrem esse enorme processo de censura, de exclusão de sua beleza e, portanto, de segregação, de estigmatização através da violência, de marginalização e de criminalização.

Os estereótipos produzidos pela repetição contínua de uma só informação são calcados na diferença entre as pessoas, reforçam as desigualdades. Ao contrário, as diferentes histórias sobre uma pessoa ou uma comunidade apostam na aproximação das pessoas, reforçam sua identidade, seu sentimento de pertencimento e seu reconhecimento. Estereótipos ferem a dignidade das pessoas. Quando um jornalista ou um documentarista consegue ser um elo de bem-querer entre o documentado e quem vê a documentação, resgata a dignidade das pessoas.

Entendo que o documentarista é, sobretudo, alguém que aprende e reconhece valores e transmite isso. Partilhando um projeto de fotografia para portadores de síndrome de Down, aprendi que um olhar doce é um bem-querer. Um doce olhar sobre o outro pode ser um passeio sobre si mesmo, uma busca, uma luta pelo tempo e o invento do próprio tempo, o encontro com a própria

Figura 4 – Favela no Engenho Novo, Rio de Janeiro, Brasil. Foto: João R. Ripper

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luz. Um doce olhar pode ser uma edição, uma escolha, onde o belo faça parte de algumas histórias... Ninguém tem uma só história. Comece histórias por um doce olhar e quem o receber vai querer bem a quem conta a sua história.

Um doce olhar pode ser sobre o dia a dia, sobre a alegria ou sobre a dor. Um doce olhar tem como fio condutor a dignidade.

Referência

BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos do homem. In: ______. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

Figura 5 – Mulher de comunidade tradicional de colhedoras de flores. Minas Gerais, Brasil. Foto: João R. Ripper

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Paisagem e memóriaOu: Riscos de trajetórias

Livia Flores1

A memória não se remove.

D. Penha

(Vila Autódromo, 2018)

Em criança, na década de 1960, minha mãe pegava a grande caminhonete que ganhara num bingo e nos levava à praia. Saíamos da casa da minha avó, onde morávamos, subíamos uma estrada cheia de curvas e florestas e, ao descer, chegávamos a uma vasta região arenosa, a Barra da Tijuca. O mar era bravo e a praia estava sempre deserta. Pelo caminho, ela ia apontando a casa onde morara quando criança, a escola onde minha avó lecionara, a fábrica de papel em que seu pai, imigrante italiano, trabalhara. Passávamos por uma curva sombria que dava acesso a uma região misteriosa, a começar pelo nome: as Furnas. Mas nunca entrávamos ali naquele lugar enfurnado, embora fosse dito lugar de origem da família da sua mãe, o que se confundia com outro ponto assinalado, já na encruzilhada entre o íngreme e o plano, entre os caminhos do mar e do sertão carioca. De lá, onde havia uma venda, lugar de negócios dos homens da família, a mãe da mãe subia a cavalo até o alto para ir à cidade estudar.

“Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?” (Hesíodo, 1995). A pergunta do poeta ecoa em meu pensamento ao tentar rememorar o trajeto. Seriam pedra e carvalho as testemunhas mudas do trabalho de gerações em seu esforço de narrar incerto mundo? Lá estavam e hoje estão e estarão – por quantas gerações? Também as pedras se movem. Um objeto voador não identificado passou em 1952 sobre a região.2 E desapareceu. Naquele ano eu ainda não era nascida, nem a família da minha mãe morava mais por lá. Mas reconheço pedra e floresta nas imagens do arquivo. O resto são riscos de trajetórias que apenas arranham a superfície do papel fotográfico.

1 Artista plástica, professora e pesquisadora, atua nos cursos de graduação e pós-graduação da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Artes Visuais (PPGAV/UFRJ) e em Artes da Cena (PPGAC/ UFRJ). É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Participou de diversas exposições no Brasil e no exterior. Recebeu o III Prêmio Sergio Motta (São Paulo).

2 Encontro imagens e estudos relativos a este episódio na primeira busca no Sistema de Informa-ções do Arquivo Nacional. Sou atraída – e surpreendida – pela sequência de abas “Favoritos”, “Objetos Voadores Não Identificados”, “Caso Barra da Tijuca: imagens fotográficas; reconstituição de trajetórias pelas fotografias – Dossiê”.

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Dar-se conta de matérias que duram mais que a própria carne da memória: será esse o espanto que escapa aos lábios do poeta arcaico em meio aos hinos de louvor às musas? É preciso começar por elas, diz ele, pois só as filhas de Mnemosyne têm a capacidade de tirar seres do fundo do esquecimento em que jazem, abandonados. A bel-prazer, elas concedem ao poeta o poder de invocá-las para que os tragam de volta ao mundo até que sejam de novo esquecidos, e lembrados, ao sabor intermitente de cantos e danças a que pedra e carvalho assistem como perguntas sem resposta.

Dar-se conta de que imagens e escritas perduram muito além dos seus objetos de referência também me espanta. Ou que, ao contrário, simplesmente se retraem, sem dar qualquer testemunho de uma existência que de fato existiu. Pois, no final das contas, são elas e apenas elas – imagens e escritas – que sobrevivem. Diante da tarefa do arquivo, por que me vem isto de curvas e sombras? É como se desejasse insuflar sinuosidade e cambiantes de luminosidade – medidas do corpo, dados da experiência sensível – à dureza esquelética das palavras e nomes que iniciam uma busca. Pois o arquivo, diz Derrida (2001, p. 22), “não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta original e estrutural da chamada memória.” E, no entanto, é tudo o que temos: o que está aí – um estar aí como destino (dasein) produzido para a posteridade em nome de sua suposta

Figura 1 – Imagens do dossiê Caso Barra da Tijuca: imagens fotográficas. Arquivo Nacional

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memorabilidade. Desde o momento de sua instituição, o arquivo é já uma posição que requisita outras tomadas de posição. Entre guardar e guardar, o olhar.3

Acredito tomar o partido do vivo quando escolho gravar uma entrevista com minha mãe, querida viva a quem agradeço o viver e o falar sobre suas lembranças do lugar e dos antepassados. A navegação no arquivo morto se carrega com o lastro do desejo. Mas no próprio gesto da gravação vejo imprimir-se o espectro do apagamento. Nunca tínhamos conversado diante de uma câmera. Percebo a graciosa teatralidade dos seus jeitos. Ela sabe, melhor que eu.

Apagamento sobre apagamento. Quero saber das cores, até onde a memória alcançar. Embora surjam tons “acobreados” e “escuros” no decorrer da conversa, ela aponta para a própria pele, a minha, a dela, como se tudo começasse e terminasse ali mesmo na autoevidência de nossas cores. Não porque lhe falhe a memória, mas porque a pergunta por tanto tempo escamoteada resiste ainda à formulação, acostumada que está a formar um muro de desatenção preventiva que permite atrelar pigmentação da pele ao lugar social.

Em sua biografia sobre Lima Barreto, Lilia M. Schwarcz (2017, p. 26) conta que o engenheiro e abolicionista André Rebouças só se descobre negro por ocasião de viagem aos Estados Unidos em missão oficial do Império brasileiro. Motivo: ter sido impedido de entrar num hotel americano de elite, não conseguir negociar a cor da sua pele. No mesmo capítulo, a autora relaciona a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871) ao aumento dos investimentos oficiais, religiosos e privados na educação nos anos 1870 e 1880, época em que surgem os primeiros “palácios escolares” na cidade do Rio de Janeiro. A proibição à matrícula de escravizados já não tinha como vigorar, mas logo a alfabetização se tornaria exigência para o exercício do voto (1882).4 O acesso à educação acena com liberdade e igualdade jurídica e social para negros e mestiços, promessa mal cumprida na distância da noção de cidadania plena. Somos hoje obrigados a reconhecer que a distância se torna abismo ao nos confrontar com a barbárie cotidiana do genocídio da população negra.

3 Lembro aqui o poema de Antonio Cícero, Guardar: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou tran-cá-la./Em cofre não se guarda coisa alguma./Em cofre perde-se a coisa à vista.//Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.//Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,/isto é, estar por ela ou ser por ela.//Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro/Do que um pássaro sem voos.//Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,/por isso se declara e declama um poema://Para guardá-lo:/Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda://Guarde o que quer que guarda um poema://Por isso o lance do poema://Por guardar-se o que se quer guardar.” Disponível em: http://www.releituras.com/antoniocicero_menu.asp. Acesso em: 27 abr. 2019.

4 Vale lembrar que o trabalho de Paulo Freire, ao pensar alfabetização em termos emancipatórios, cumpre radicalmente o desígnio que hoje se deseja negar à educação. Os ataques a sua memória revelam o profundo impasse social e político que vivemos.

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Schwarcz acrescenta que o acesso à educação é fator de diferenciação entre gerações, o que nos traz de volta a questão do apagamento. A educação é o fio insistente que atravessa a conversa de ponta a ponta. Interessam-me as cartas roubadas5 que não vemos por excesso de evidência, as lacunas, as formas plasmadas por forças da exclusão. Dos oito irmãos da minha avó, minha mãe só sabe o nome das três mulheres. “Eles (os homens) não quiseram estudar.” Mas, mesmo entre elas, variações de tom de pele e escolaridade parecem condicionar destinos e lembranças. Deixar para trás, o custo da emancipação; clarear, o imperativo desse iluminismo às avessas; esquecer, o tributo imposto.

5 Referência ao conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada, trama policial que investiga o roubo de uma carta escondida em lugar de máxima visibilidade.

Figura 2 – Sem título, 2018. Livia Flores. Fragmento de prato de cerâmica com motor Ø 8,5 x 2,0 cm. Foto: Wilton Montenegro

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No prato da infância, o alfabeto que me alimentou na casa da avó professora – a única que se formou – se encontra hoje partido, arruinado. Reconhecer privilégios é passo primeiro na luta contra desigualdades. “Quebra de contrato social” poderia ser o nome da peça sem título. Ou então: “Lições de vida”. Ao girar, o prato marca o tempo tenso que se estende entre um agora distópico e o futuro (ou passado) em construção-e-demolição do qual somos todos agentes, sem exceção. A falta de algumas letras coloca em rotação os termos alimentação, tempo, trabalho e educação,6 tanto em sentido horário como anti-horário. O símbolo é um prato quebrado que se come frio.

Sabe-se que, no gigantesco negócio da colonização e da escravidão, nomes próprios de pessoas e lugares foram ignorados e substituídos, eliminando referências que pudessem alimentar narrativas comuns ou permitissem o reconhecimento dos laços afetivos e culturais destruídos na pilhagem de corpos e territórios. O esquecimento, tributo pago pela memória, completa o trabalho de apagamento sistemático dos registros operacionais empreendido pelos próprios operadores. Ou por seus opositores: o que teria levado o abolicionista Rui Barbosa a ordenar a queima dos arquivos da escravidão em 1890, senão o desejo de apagamento do passado e reescrita do presente movido pelo simbolismo ideológico das cores? (Schwarcz, 2012). Como revirar arquivos faltantes; como desnaturalizar o esquecimento imposto a cada nova geração?

Exercício de memória, 2016. Propõe o hasteamento coletivo de uma bandeira composta por cobertores cinza no Dia da Bandeira, 19 de novembro. Convoca as histórias ancestrais de cada um a partir da metáfora do material composto por fios de muitas origens. Na tarde daquele dia, hasteia-se uma bandeira que cede ao próprio peso em local histórico de alta carga simbólica, o pátio externo da atual Casa França-Brasil, onde se desembarcavam mercadorias, entre elas, humanas. Instalação efêmera. À noite, agentes desconhecidos dispersam o material pelas ruas que habitam.

Pilha, 2007. Compreende a superposição de várias camadas semânticas: coisas dispostas umas sobre as outras; bateria eletroquímica; ato ou efeito de pilhar, aquilo que se pilhou; irritação, nervosismo; quantidade, força, intensidade. Cobertores cinza são empilhados em duas salas do Museu Imperial em Petrópolis. No Quarto dos Imperadores, acumulam-se sobre a suposta cama do casal, como uma espécie de excedente de produção. Na Sala Princesa Isabel, uma pilha discreta apresenta-se sob o patrocínio da Lei Áurea, entre objetos alusivos à escravização em vitrine dedicada a sua memória. O cobertor cinza é um aglomerado de fibras tanto quanto de imagens.

6 João Paulo Quintella estabelece esta relação em texto de apresentação da exposição Livia Flores – Ilha 03, Projeto Foz, Z42, 2018: “Um prato quebrado age como um relógio marcando não as horas, mas uma rotação alfabética. Em um único giro entendemos o discreto agenciamento entre alimentação e tempo, trabalho e educação.”

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O não tecido acumula diferentes usos e sentidos na vida e na arte. De forma espectral e entrópica, condensa uma história anônima e comum, de todos e de ninguém, constituída pelos incontáveis fios das infinitas peças de tecido que algum dia já tocaram nossos corpos – individual e coletivo. Entre um trabalho e outro, explicita-se certa relação entre história e memória, arquivo e criação.

Materiais portadores de tempo e história – também compreendida como narrativa, corpo e trabalho em permanente movimento de reciclagem. Interessa o movimento de exumação de uma paisagem, mais que de uma história familiar: a arqueologia dos nomes, as repartições das terras, o rastreamento de trajetórias e riscos na topografia desconhecida da escola e da fábrica, da pedra e da floresta, dos saberes adquiridos e dos transmitidos. Até onde for possível, se é que é. Não se trata de buscar originalidade em supostas origens, mas de auscultar diferentes densidades de informação afetiva (e coletiva, pois se trata de uma busca em arquivo nacional). Esforços de preservação, rarefação ou escassez, falhas e rupturas tornam-se índices de leitura: do que se dá a ler, não de interpretação. Não se recupera um passado dado por (ou de fato) perdido, mas se coloca esse passado sob suspeita fazendo girar sobre os mapas do território os dados de teorias e políticas de branqueamento, de ordens patriarcais e linhagens femininas, da transição entre regimes de trabalho escravo e assalariado e da educação – sempre a educação. Os papéis e as cores: como são fabricados?

Todo mundo tem um italiano na família, diz o amigo afrodescendente, invertendo o pressuposto da mestiçagem que as teorias raciais e políticas de imigração tentaram em vão remover. Temos em comum o mesmo tom de pele, mas as narrativas familiares definem quão brancos, pretos ou indígenas somos – ou

Figura 3 – Pilha, 2007. Livia Flores. Cobertores cinza dispostos em vitrine do Museu Imperial, Petrópolis, exposição Museu como Lugar. Foto: Wilton Montenegro

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podemos ser. O retrato dela me interpela e vice-versa. Mais uma vez, uma vida real é posta em jogo no próprio ato de olhar. “O rosto parece ser uma forma de som, o som da linguagem evacuando seu sentido, o substrato sonoro da vocalização que precede e limita a entrega de qualquer significado semântico” (Butler, 2011). Deixo-me interpelar. E se, por uma obliquidade qualquer do olhar, o cenário fotografado às suas costas coincidisse com a paisagem natural representada no cartão-postal? A data de 1916 seria compatível com a idade no retrato. E se fosse ela a pequena figurinha na paisagem? Mise-en-abîme do que é de fato abissal. Em que solo simultaneamente real e imaginário ela pisa? “Sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos, e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações” (Hesíodo, 1995), responde o poeta pela voz das musas.

Referências

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea: revista de sociologia da Universidade Fede-ral de São Carlos, São Carlos, n. 1, p. 13-33, 2011.

Figura 4 – Colagem Furnas da Tijuca, 2019. Livia Flores. Imagem digital

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DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FLORES, Livia; MELLO, Luiza; MELLO, Mariza (org.). Livia Flores: coleção Arte Bra. Rio de Ja-neiro: Automatica, 2012.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

______. Nem preto nem branco, muito pelo contrario: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

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Figuras do tempoProcurando Antígona[s]

Patricia Franca-Huchet1

Quando Luiz Cláudio da Costa convidou-me para participar do projeto Vidas Precárias, além de sentir a alegria de poder estar junto a ele, outros artistas e pesquisadores, similarmente senti a angústia de estar diante de uma questão que não me é indiferente e que, no entanto, julgo de extrema seriedade e magnitude: a abordagem de um arquivo, sobretudo, o Arquivo Nacional. Minha primeira intuição foi visitá-lo e iniciar uma busca que ainda não estava definida, todavia orientada pelo nome do projeto: Vidas Precárias, oriundo do título de um livro da filósofa Judith Butler. Achei por bem ir até o Arquivo Nacional e fui para o Rio de Janeiro na semana de 8 a 12 de outubro de 2018.

Naquele semestre, estava lendo o livro Héritage de ce temps: critique de la politique, do filósofo alemão Ernst Bloch,2 e havia montado em setembro, em Belo Horizonte, a exposição Tempo Outro Mesmo Tempo,3 para o Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostra que antecedeu as eleições daquele ano. Essa exposição foi um momento importante para o grupo, que demonstrou forças trabalhadas no espírito do que escreveu Ernst Bloch.

Bloch se interroga: como chegamos até aqui? Como nossa história caminha? O que fazer? Foi sobre essas questões que ele se colocou e discorreu em sua filosofia quando, em 1935, publicou o contundente livro Herança deste tempo: crítica da política. Ele se perguntou como as forças do progresso, que carregavam a esperança de uma utopia, puderam se deixar levar por uma ideologia falsa, reacionária e conservadora? Como este fracasso, os de ontem, os de hoje, e os que tentamos compreender, deixam suas heranças? Do que li de Ernst Bloch, concluí que ele consegue perceber na cultura de sua época a divisão entre o sadio e o corrompido, e deseja pensar e absorver desses episódios uma herança, como um inventário. Bloch inventa o conceito de “nãocontemporaneidade”. Sua reflexão versa sobre a afirmação que todos não estão presentes no mesmo tempo. Há temporalidades sobrepostas. Para ele, comunidades continuam a viver nas condições de outros tempos pouco modernos e mais arcaicos. Assim como – para

1 Artista, professora e pesquisadora, atua nos cursos de graduação e no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGArtes/UFMG). Coordena o grupo de pesquisa Bureau de Estudos sobre a Imagem e o Tempo. Participou de várias exposições no Brasil e no exterior.

2 Ernst Bloch (Ludwigshafen, 1885 – Tübingen, 1977), filósofo alemão.

3 Tempo Outro Mesmo Tempo, exposição elaborada por membros do grupo de pesquisa Bureau de Estudos sobre a Imagem e o Tempo, no Centro Cultural da UFMG, de 22 de setembro a 26 de outubro de 2018, com Gladston Costa, José Lara, Nina Aragón e Patricia Franca-Huchet.

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nós do Brasil – os índios, o homem do campo, pescadores dos afluentes do rio Amazonas etc.

Este livro é de uma atualidade inquietante, sobretudo para nós, brasileiros. Composto de partes distintas, não é uma obra da totalidade, mas nos traz detalhes muito significativos. Abrange uma introdução, “A poeira”, e outras três partes: “Empregos e distração”, “Nãocontemporaneidade e embriaguez” e, no final, a “Grande burguesia, objetividade e montagem”. Ele propõe nesta obra uma tese muito nova sobre a pluralidade dos tempos sociais, voltando-se sucessivamente para diferentes grupos, e mostra que alguns, dentre eles, por exemplo, o homem do campo, vivem em um espaçamento de tempo diferente em relação ao tempo presente dos grandes centros urbanos, e aí está o que chama de “nãocontemporaneidade”. Para ele, a sociedade é composta de uma pluralidade de tempos, e estes tempos estão em luta para constituir um tempo dominante. Com ele podemos aprender que não existe tempo, um tempo, mas nosso tempo. No entanto, nesse tempo, devemos olhar para o tempo específico de cada grupo. A força dessas reflexões antecede sua obra magna O princípio da esperança, livro que escreveu em três tomos. Trata-se neste último livro de indicar algo sobre a esperança. Bloch levou-me a refletir sobre o tempo, nosso tempo de crise: o que poderia ter ainda uma potencialidade de esperança, de otimismo, de partilha? Ou por que não acreditar em uma potência revolucionária?

Para Bloch, o sentido histórico e o da cultura humana seriam, por tudo isso, o de uma progressão não linear, não feita somente do acúmulo das realizações passadas, mas uma progressão por meio da qual nós, pelo nosso trabalho consciente e nossas lutas, pudéssemos compreender que o passado não chegou a sua finalização, e por isso se torna aberto, não ainda vencido pela morte. Achei oportuno estar lendo Bloch e percebi a relação desta leitura com o tema do colóquio, Vidas Precárias, que parecia mostrar uma confluência interessante de assuntos.

Estava também muito envolvida com a figura de Antígona, no momento da exposição Tempo Outro Mesmo Tempo, cuja apresentação era uma montagem com fotografias e textos sobre a meditação de Antígona diante da morte, do fim, seu desespero, e ao mesmo tempo sua lucidez, sua calma e escolha. Na montagem para esta exposição, escolhi abri-la com um tríptico, com abas que podiam se abrir e fechar. Nele havia a imperiosa e tranquila imagem da natureza e de suas rochas majestosas, uma temporalidade evocando o silêncio e a eternidade do personagem e, ao mesmo tempo, sua presença viva nas mentes da atualidade. Assim, Ernst Bloch e a figura de Antígona estavam presentes em minhas ocupações e, por isso, este texto é permeado por esses dois nomes, como um pano de fundo de minha consciência durante as idas ao Arquivo Nacional. Volto a lembrar que a semana de minha visita também precedeu as importantes eleições de 2018, e o Rio de Janeiro se mostrava, por um lado, inquieto e, por outro, muito agressivo.

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Estava, como disse, com Antígona na mente. Certamente, encontraria imagens de algumas Antígonas nestes arquivos. Se retrabalho a história de Antígona, é para remontar uma história que contemple questões que me inquietam. É um trabalho sobre a figura e o personagem que expõe a construção de uma realidade deslocando tempos. A história de Antígona, pela sua memória e figura, é o motivo para criar uma montagem de historicidade e artisticidade cujos elementos, recolhidos na realidade, induzem um efeito de conhecimento e experiência. Para este trabalho, procurei articular a literatura, a montagem e a teatralidade na direção de uma imagem que apresentasse algo dessa transdisciplinaridade experimental.

Trabalho desde 2017 com fotografias que revisitam o conhecido e mil vezes trabalhado personagem Antígona, da peça teatral de Sófocles [400 a.C.]. Esta personagem de envergadura histórica e universal possui características que ressoam muito na vida psíquica das mulheres hoje em dia. Antígona está diante do poder e diz não, faz escolhas. Sua solidão e sua desobediência mostram um desejo de liberdade. Por enquanto, a instalação conta com seis momentos: Infância [Antígona, filha mais velha, brincou à beira das águas protegida por Netuno, enquanto tinha como tarefa cuidar de seus irmãos]; a sua Secreta Solidão [Antígona é artista e também arqueira]; Por Onde Andou [caminhou como mendiga, seguindo seu pai cego, o maior poeta da cidade]; sua Fúria [seu transe furioso e catártico decorrente da resistência e da difícil luta contra a tirania: ela foi capaz de enfrentar a mentira e a crueldade]; Meditação [buscar o equilíbrio perdido nas lutas] e A Prisioneira [o caminho para a morte]. Esta instalação tem uma estreita relação com a narratividade pela imagem. A teatralidade da imagem é trabalhada para que não nos esqueçamos de que esta instalação tem como fundamento uma personagem do teatro, que fascinou inúmeros filósofos, artistas, escritores, poetas, historiadores e pensadores, como Judith Butler, Júlia Kristeva, Henry Bauchau, Philippe Lacoue-Labarthe, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Bertold Brecht, os poetas Friedrich Hölderlin e Johann W. von Goethe, Hegel, e também Jeanne Moreau, artista francesa, que, em depoimento, revela ter sido a peça Antígona – vista por ela aos 13 anos – o que lhe proporcionou a percepção do teatro e o desejo intenso de conhecê-lo. O grande escritor francês Charles Péguy foi igualmente impactado quando viu Antígona no teatro, em Avignon, e muitas artistas brasileiras também foram Antígonas. Uma das últimas, por exemplo, foi a atriz carioca Andréa Beltrão.

As lutas de Antígona desdobram-se na tensão entre os deuses de baixo, venerados por ela [as sombras, os elementais, assim como a água, terra, fogo e ar, a feminilidade, a masculinidade], e os deuses olímpicos que Creonte invoca como protetores da cidade e do universo. Além disso, Antígona aparece como defensora do princípio feminino e do mundo privado da casa, que se ergue contra a lei masculina e sua ação na vida pública [ela diz não à guerra].

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O poeta Hölderlin, em sua tradução transtornada, foi de suma importância para uma nova interpretação e tradução de Antígona. O psicanalista Jacques Lacan dedica à Antígona grande parte de seu seminário A ética na psicanalise. Escolheu-a como matriz do que é exigido do psicanalista na condução de um tratamento, situando assim a dimensão trágica da experiência psicanalítica em si. Antígona, para o psicanalista, é uma tragédia, e a tragédia está presente no primeiro plano da experiência dos analistas, ela também cura, como o psicanalista almeja. Atualmente, Judith Butler lembra a dimensão antropológica e feminina de Antígona: solidão e desencanto que não recusam a feminilidade, ao contrário, a reclamam para si. Butler nos lembra de Antígona como a primeira mulher que forjou a chance e a capacidade de produzir um conhecimento, uma arte e um modo de sobrevivência. Temos também a grande psicanalista Júlia Kristeva, que pergunta no início de um texto: Quem é você, Antígona? Kristeva mostra a condição na qual Antígona se encontrou, muito desafiante: a de desenvolver a linguagem, o pensamento, a interpretação da solidez feminina mesmo coabitando com a morte. Ela foi uma criança, uma filha, uma rejeitada, uma jovem, uma virgem [uma nynphê] e uma ofélia, em grego, Ophelein: aquela que dá assistência. Kristeva nos lembra, ainda, que apesar de seus desafios, ela faz sua própria lei e se torna autônoma. Mas, como tudo tem um preço, sua escolha a levará para uma solidão mineral, onde falará não às leis do poder. Antígona age também pelo nome de sua Filia, o que quer dizer, amor por seu irmão, sua família. Esta noção de amor não é uma noção moderna de amor, mas partilhar a Filia, o amor. Entendo que existe uma constelação familiar em sua família, que está imbricada em um laço social. O engajamento de Antígona é o seu caminho mesmo, através do qual ela se encontra com a sua voz. Ela se expressa e canta no decorrer da sua existência. Por meio de sua eternidade, ela tem um canto criado só para ela pelo compositor Haendel, e essa voz, quando ela encontra sua voz, não é a voz que tem o nome de sua pessoa, mas o nome de muitas vozes. Ela se responsabilizou pelas suas escolhas e correu riscos pela sua dignidade. Quero lembrar que me preocupo com a questão do clichê, por isso fiz uma investigação mais ampla, além do interesse pela representação do personagem, fazendo deste texto uma montagem de conclusões sobre ela. De certa forma, me dei a liberdade de reinventar Antígona, assim como fizeram o escritor Henry Bauchau, o dramaturgo Brecht e o poeta Hölderlin. Para mim, Antígona espelha nossa condição atual: a de um povo entre a escolha da revolta e da resistência e a da resiliência e do conformismo passivo.

Vidas Precárias e imagens do arquivo

Com a acolhida calorosa de Claudia Negreiros Tebyriçá e a preciosa ajuda de Patricia Romeu, fui me envolvendo com algumas pastas de meu interesse no Arquivo Nacional, todas voltadas para a precariedade, para o desumano e para as imagens do Brasil. O que vem a seguir são três imagens, frente e verso, que escolhi

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para inserir em minha participação no projeto e alguns comentários iniciais sobre elas, um rudimento de proposta para a exposição Vidas Precárias.

1. A primeira imagem é a de uma mulher que me pareceu mostrar uma força descomunal, reunindo em torno de si crianças em situação de abandono, perigo e precariedade. Ao mesmo tempo que mostra sua precariedade, ela parece ter o porte de uma rainha, dominando muito bem o seu ambiente (Figuras 1 e 2).

Ela aparenta recusar o seu olhar ao fotógrafo ou o fotógrafo buscou o olhar discreto sobre esta mulher que acrescenta muito a esta imagem. O verso da fotografia nos diz que “estes moradores como tantos outros ficaram ao relento”.

Talvez esta mulher se chamasse Maria, mas vou chamá-la de Antígona ao relento. Sobressai também o seu gesto fixado pela magia da fotografia. Ela sustenta sua mão direita sobre a cabeça de um menino pequeno, pois deve ter seis ou sete anos. Este gesto me lembra a benção, a proteção, o cuidado e o altruísmo que mulheres solidárias e em situação de abandono sempre mostraram entre si. Uma questão curiosa é que quase todos olham para a câmera, mas ela não. Altiva, preferiu olhar para o horizonte e, quem sabe?, está refletindo em uma solução para tanto infortúnio. Atrás dela, uma criança, um menino muito pequeno, parece

Figura 1

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procurar abrigo. Ele parece buscar o calor dessa mulher. Esta criança atraiu muito a minha atenção, visto que sua face tão próxima ao seu corpo indica que ela não é avessa às crianças; o que me faz acreditar que está em uma posição de alta consciência no momento do ato fotográfico.

Muito a dizer sobre esta imagem; o que há de mais alto e “ilustre” traiu estas pessoas: a política, os homens de bem e a força dos elementos, que não têm piedade. Homens duros, ventos contrários e tempestades. Uma imagem que mostra o desequilíbrio de forças sociais. No entanto, o poder de sua presença se torna também o elo desejado com Antígona. Ela representa, para mim, e no contexto do projeto, a tragédia, o drama e a natureza humana, muito humana. Não podemos também ficar indiferentes ao olhar interrogativo da criança no primeiro plano. Ela parece aturdida, castigada; é a imagem em si de um mundo precário, mundo onde se perde muito. A imagem mostra ainda uma estrutura de conflagração e de tensão dramática, e o que resulta é o reflexo da tragédia que sofreram.

Figura 2

Figuras 1 e 2 – Fundo Correio da Manhã. Dossiê Ventos-ventania. PH/Fot/2922 (44)

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2. O segundo tesouro encontrado no arquivo é a imagem de uma mulher que, em sua casa, aponta a mão para o seu telhado, que se foi com a força da tempestade, dada também a precariedade de sua habitação. Ela se encontra junto ao seu filho, ou sobrinho, que sabe que ela está ali e que vai encontrar uma solução. Um homem, de cabeça baixa, acentua ainda mais a inquietude da situação; o gesto da cabeça baixa parece condizer com o corpo contorcido da mulher que lhe mostra o ocorrido. Me pergunto se não é o fotógrafo que escreve algo diante dela, e se for, ele se chama Almeida. Esta imagem pode ser uma

abertura para pensar a história brasileira e sua civilização, pois sugere a questão do tempo, do eterno retorno. No eterno retorno nunca é o mesmo que retorna, mas o retorno que volta novamente. Esta imagem é apenas mais uma das tantas que vemos sem interrupção todos os anos em nossos jornais, televisão e outros meios de comunicação. Seria muito bom se as imagens pudessem agir contra o tempo, produzir uma atualidade contundente, que libertasse o presente dos olhos já corroídos pelo hábito de ver tanto clamor. Um dia escrevi em um texto que deveríamos olhar para a luz até incendiarmos nossas retinas. Por trás dessa frase está o desejo do rastreamento de um olhar renovado para as imagens e para o outro, o outro que nos dá a face, o outro que nos responsabiliza. Somos responsáveis pelo nosso tempo e devemos estar atentos à maneira como damos forma a ele.

Percebemos que uma enorme tempestade aconteceu “e o telhado voou com a ventania”, como podemos ler no verso da fotografia. A casa se abriu para o céu,

Figura 3

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mas caiu na mendicidade. Seu nome poderia ser Aparecida, mas vou chamá-la de Antígona sem teto. Ela olha para cima agora, olha para o céu e talvez pense em Deus; piedade! Mas creio que venera os deuses das matas, dos mares e das florestas, assim como Antígona.

Figuras 3 e 4 – Fundo Correio da Manhã. Dossiê Ventos-ventania. PH/Fot/2922

Figura 4

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No centro da imagem, vemos sua mão aberta para o vazio em uma espécie de súplica. Ela, como na imagem precedente, não dá o rosto ao fotógrafo, mas o seu corpo em movimento, ao apontar para o desastre: sem teto, sem futuro, no quase nada – o que já sabemos tanto. Algo longínquo vai ao encontro desta imagem: a tragédia e sua invisibilidade histórica. Este projeto me dá a oportunidade de trazer esta imagem – de pescá-la – e transformar o seu devir histórico; uma única imagem pode ser reencontrada e seu destino, transformado e requalificado.

3. A terceira imagem é a de um mendigo. Um homem dá o seu rosto de idade avançada para uma imagem. Ele parece abandonado, vagando, perdido. Me faz pensar em Édipo, pai e irmão de Antígona, que preferiu não mais enxergar a realidade e furar os seus olhos ao descobrir sua condição desumana. Desde então, Édipo anda como um mendigo, seguido por sua filha Antígona. Seu pai se tornou o maior poeta da cidade, o mendigo que falava, enquanto Antígona escutava. Este homem da fotografia poderia se chamar João, mas vou chamá-lo Édipo figurante. Assim caminha o homem cuja “camisa não passa de uma porção de

buracos cercados de pano por todos os lados”, como podemos ler no verso da fotografia. Ele caminha e nos olha com sua realidade desconcertante. Estou sempre lacrimejante quando vejo este homem desde então. Quem foi? O que fez? Quando jovem, nas primeiras décadas do século XX – supondo que esta imagem seja de 1957, e que ele já esteja com setenta anos –, que coisas ele fez e sabe? E por onde andou?

Ah… Édipo andou pela cidade, as pessoas não o viam, mas Antígona o escutava. A loucura o ameaçava, pois seu espírito já sabia; a demência da consciência de si mesmo e de sua condição. O homem Figura 5

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moderno tem a vontade incondicional de ser um sujeito, de ter o domínio de si, de não se deixar levar pela deriva. Quer se apropriar de seu destino. Édipo Rei é destituído de seus bens, de seu estatuto, o destino lhe destituiu de tudo o que lhe era caro. Ele termina sua vida vagando após a reviravolta hierárquica brutal que sofreu e que consiste em si mesmo como a lição da tragédia. Sim, este homem está em uma situação trágica e abandonado. É uma sub-humanidade. Sua camisa diz tanto! Eu gostaria de presenteá-lo com uma camisa; uma camisa branca, limpa

Figuras 5 e 6 – Fundo Correio da Manhã. Dossiê Velhos. PH/Fot/2872(4)

Figura 6

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e passada; mas talvez ele a recusasse, em sua imperiosa dignidade por reconhecer o in-humano (Figuras 2, 3, 4, 5 e 6).

Referências

BLOCH, Ernst. Héritage de ce temps: critique de la politique. Paris: Payot, 1978.

BUTLER, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis: EDUSFSC, 2014.

FURTADO, Dimas Ferreira. Antígona e a ética na psicanálise: notas sobre o seminário 7. Reverso, Belo Horizonte, v. 35, n. 65, jul. 2013.

HOLDERLIN, Friedrisch. L’Antigone de Sophocle. Paris: Christian Bourgois, 1978.

KRISTEVA, Julia. Antigone, la limite et l’horizon. Revue L’Infini, Paris, Gallimard, n. 155, 2008.

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Colecionar imagens na era da pós-verdade

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira1

Octubre en el norte: temporal del noroeste, vídeo do espanhol Marcelo Expósito (Figura 1), de 1995, foi um projeto síntese da carreira desse artista, polemista e político que passou as últimas três décadas a produzir e compreender o lugar do artístico na dimensão política. Por alguns meses, Expósito filma as transformações ocorridas na paisagem urbana de Bilbao, principal cidade do país basco. Como documentarista de processos fragmentados, o artista apontou para as alterações e as consequências da globalização sobre a cidade, elegendo seu porto como elemento do “real” modificado. Da existência sendo transmutada pela transferência da indústria naval para outros países emergentes, do desemprego, da desorganização de práticas sociais e culturais. Ele se inspira no percurso

1 Docente e pesquisador nos programas de pós-graduação da Universidade de Brasília em Artes Visuais (PPGAV/UnB) e em Ciência da Informação (PPGCINF/UnB). Membro do Grupo Modos – História da Arte: Modos de Ver, Exibir e Compreender.

Figura 1 – Cena de Octubre en el norte: temporal del noroeste, 1995. Marcelo Expósito. Vídeo: 92min 30s. Acervo Macba

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presente no curta-metragem Puerto de Bilbao, atribuído aos irmãos Mauro, Víctor e Consuelo Azkona, filmado em 1920. Naqueles meses de 1995, o vídeo de Expósito testemunhou a demolição das últimas gruas do porto, no bairro de Abandoibarra, e, simultaneamente, nas novas construções, como o museu Guggenheim, inaugurado no ano seguinte. Para ele, seu trabalho documentava a eliminação física da antiga cidade industrial. Portanto, o apagamento dos antagonismos vividos entre classes sociais, do conflito histórico entre capital e trabalho, incluindo o esquecimento do “proletário” como sujeito social imaginado pelas esquerdas.2 O artista tomou o mês de outubro como ponto final de sua viagem, pois se tratava de: “uma metáfora terminal, no limite do percurso proposto, onde as ondas batem no quebra-mar”, transportando-nos para outros outubros, outras imagens, outras revoluções ruidosas ou silenciadas. O encontro entre forças naturais e a “dominação do homem pelo homem através da natureza” sentenciam o artista a utilizar as palavras de Marcuse.

O trabalho de Expósito inicia minhas considerações, porque ele assinala duas dimensões importantes: a construção de uma narrativa distinta para a história da cidade de Bilbao e o colecionamento dessa narrativa “alternativa” pelo museu. Outubro no norte significa uma etapa importante da carreira do artista, pois ele considera que

há muitas outras experiências e leituras da história e histórias pessoais e coletivas cuja narração merece ser ouvida e lembrada. Eu também gostaria de dizer que opor narrativas dominantes é principalmente uma tarefa política, que algumas pessoas decidiram reorganizar sons e imagens. Essa oposição, essa resistência aos modos narrativos hegemônicos, oferece uma organização alternativa de imagens e sons, que, na verdade, contribui para a possibilidade de uma organização co-letiva e alternativa da experiência: no sentido de Godard quando diz que quem trabalha com imagens se move em território ocupado; e, no território ocupado, deve-se escolher fazer parte da resistência. (Ibid., tradução nossa)

A história, a narrativa, a ficção e a verdade, todas vistas pelos óculos do político, são elementos consistentes no trabalho de Expósito. Mas citemos outros portos. Em diálogo direto com Outubro no norte está Fish story, obra documentária produzida entre 1988 e 1995 por Allan Sekula. O projeto do estadunidense reuniu séries fotográficas publicadas e apresentadas posteriormente no formato de instalações. Apresentou a dinâmica ascendente e decadente da circulação de mercadorias ao mostrar portos, indústrias e navios. Um poderoso conjunto de imagens denominado pelo artista de “realismo crítico”, na busca da “referencialidade social”  da fotografia. Em Fish story, o contêiner tornou-se o objeto-signo da pesada voracidade inexorável do capitalismo internacional.

2 Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Fondo de la Colección. Depoimento do artista Marcelo Expósito (1996). Disponível em: https://www.macba.cat/es/octubre-en-el-norte-temporal-del-noroes-te-1856. Acesso em: out. 2018.

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Em 2010, numa nova etapa do projeto, ao lançar o filme-ensaio The forgotten space, em coautoria com Noël Burch, Sekula afirma que “nosso filme é sobre a globalização e o mar”, o espaço esquecido “de nossa modernidade”. Da mesma forma que o passado soterrado e higienizado do porto de Bilbao, os projetos de Sekula estão alicerçados no caráter ficcional do documento. Desde suas séries iniciais como Untitled slide sequence, de 1972, Sekula instituiu-se como documentador-testemunha. Não é por acaso que Hal Foster (2014) enquadra o artista, assim como outros da sua geração, numa vertente antropológica e etnográfica da arte contemporânea, preocupada com descortinar a lógica dos aparelhos institucionais do poder (político, social e artístico) e dos fenômenos geopolíticos. Nessa direção, O corpo e o arquivo (1988) é instrutivo, pois Sekula expõe como a fotografia construiu, desde sua origem, uma conexão entre o paradigma arquivístico e as operações de poder que regularam os corpos desviantes. A partir das imagens geradas por Alphonse Bertillon e Francis Galton, ele analisa a constituição dos arquivos criminais na sua relação com as teorias frenológicas e como esse contexto pseudocientífico sobrevive nas fotografias de August Sander, Walker Evans e Nancy Burson.

É justamente da regulação e da vigilância dos corpos que trata a série Olho maquina, de Harum Farocki, projeto iniciado no ano 2000.

Figura 2 – Olho maquina I, 2000-2001. Harun Farocki. Instalação, dois canais de vídeo

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O artista é conhecido por seu obstinado investimento em nos apresentar os aparatos tecnológicos de controle e violência. Olho maquina apresenta imagens produzidas por câmeras associadas às ações militares na Guerra do Golfo de 1991. O dispositivo de vigilância bélico é vinculado aos dispositivos de vigilância domésticos. A imagem-documento torna-se aqui o sujeito animado que institui uma violência, no sentido conferido às imagens por Marie-José Mondzain. Ao diminuir a distância entre aquilo que percebemos como “realidade” e “ficção”, os que observam e os observados, para ela a violência “resulta das estratégias espetaculares que misturam voluntariamente, ou não, a distinção dos espaços e dos corpos para produzir um contínuo confuso onde se perde toda a probabilidade de alteridade” (Mondzain, 2017, p. 43).

A “verdade” da imagem e as diferentes formas de compor realidades são as bases das séries fotográficas de Andrea Robbins e Max Becher. Eles utilizam fotografias de diferentes épocas, produzindo fac-símiles e introduzindo-as em séries inéditas de forma quase imperceptível. Convictos do papel da pesquisa documental na realização de suas reportagens poéticas, Robbins e Becher apresentam-nos os espaços ficcionalizados dos parques temáticos do Velho Oeste ou os retratos de habitantes da República Dominicana, descendentes de 34 famílias de escravos estadunidenses, que chegaram à península de Samaná em 1824. Ainda na chave antropológica e etnográfica da arte contemporânea, os artistas apresentam alguns dos oito mil falantes de um “inglês americano primitivo”, distinto do inglês praticado atualmente nos Estados Unidos, e que apresentam uma cultura particular, entre mundos, no país caribenho.

Já Marc Pataut fotografa, manipula e reintroduz, no sistema da arte, ações e personagens dedicados a diferentes questões políticas. Seu trabalho se transformou na coexistência de diferentes realidades. O artista nega a dissociação entre o ativismo artístico e o ativismo político. Ele trabalha com vandalismos poéticos, defendendo que não é a arte que muda apenas, mas que implica o deslocamento da própria forma de fazer política. Manifestações, carnavais, festas,

Figura 3 – Exposição Processos Documentais. Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, 2001. Ribalta, 2008

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ocupações são tomadas como movimentos de corpos e introduzidas nos espaços da arte por meio de suas representações, seus vestígios, seus adereços etc., especialmente a partir do surgimento de novos movimentos sociais na França, em estreita proximidade com as demandas trabalhistas que resultariam em um novo conceito do movimento.

As obras citadas de Expósito, Sekula, Farocki, Robbins, Becher e Pataut se juntaram às de Patrick Faigenbaum, Joan Roca (série de fotografias sobre Barcelona), Roy Arden (Citizen) e Ursula Biemann (Writing desire) para compor a exposição Processos Documentais, com o provocador subtítulo de “Imagem testemunho, subalternidade e esfera pública”, organizada pelo Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, Macba, em junho de 2001.

Desde sua criação, em 1995, a instituição catalã lançou uma série de eventos, mostras, ações e publicações dedicadas a questionar os limites institucionais da arte, sua adesão aos compromissos políticos da sociedade e sua circulação em meios diversos. Ao longo dos primeiros vinte anos do museu, a instituição se tornou lugar e passagem de diferentes propostas vinculadas ao novo institucionalismo, ao ativismo artístico e à experimentação da arte contemporânea. Em síntese, o museu criou uma agenda disposta a questionar qual a função da instituição quando a arte está de-localizada, dispersa por praças, redes sociais, manifestações políticas, assembleias comunitárias, entre outros sítios.

Uma das fórmulas para questionar sua própria autoridade de selecionar, expor e colecionar arte foi aceitar propostas curatoriais externas, cujo objetivo

Figura 4 – Intervenção da Comissão Guarani Yvyrupa no Monumento às Bandeiras. São Paulo, 2013

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era questionar não apenas as ações intrínsecas à produção e à circulação da arte, mas o próprio envolvimento da instituição em tais ações. Dessa forma, Processos Documentais foi a segunda exposição do programa Las agencias, dedicado a “empoderar” os sujeitos da arte e da política oferecendo-lhes o dispositivo “museu” como plataforma de ação. Divididas em quatro agências (gráfica, fotográfica, midiática e desenho urbano), essas mobilizações criadas em 2001 conceberam não apenas Processos Documentais, como também Antagonismos: Casos de estudo, mostra dedicada a compreender e visibilizar momentos em que práticas artísticas, movimentos sociais e ações políticas convergiram na segunda metade do século XX,3 desde uma releitura política do minimalismo de Carl Andre até a crítica às bienais na constituição do fórum-obra Services, de Andrea Fraser, em 1993, passando por ações dos coletivos Act Up e Gran Fury. No caso de Processos Documentais, a curadoria da mostra foi dividida entre seus participantes e articuladores das agências de maneira a construir um breve, mas efetivo, quadro colaborativo, tendo, de fato, um tanto inevitável, o próprio Macba como articulador.

Como mostramos com os exemplos anteriores, a exposição apresentou “trabalhos” fotográficos e audiovisuais dedicados a apresentar grupos sociais submetidos a diferentes formas de violência e oclusão. As imagens que instruíram a força da mostra foram selecionadas pelo trânsito incessante entre o documentário, o midiático e o artístico. Mas, sobretudo, as obras e os artistas selecionados apresentaram o testemunho como gênero histórico e literário. Assim sendo, as imagens ali reunidas buscaram indicar a força da presença de um Outro nas cercanias do museu. Na presença de processos, procedimentos e táticas utilizadas por diferentes grupos sociais para sobreviver e tornar visível a própria sobrevivência.

Pela perspectiva que a literatura dedica à curadoria, Processos Documentais, na qualidade de exposição-tese, defendeu três importantes pontos para nossa reflexão atual:

1) o documento como entre-lugar do veritativo, aquilo que podemos chamar como a tensão entre a verdade-de-um frente à verdade-de-todos; e o efeito de verdade ou efeito de real que flerta com as categoriais nocionais da ficção;

2) o lugar do político na instituição, especialmente, a acolhida de coletivos e modos de participação democráticos, em relação direta com experimentações estéticas para além do sistema da arte;

3 Carl Andre, Marcel Broodthaers, Harun Farocki, Guerrilla Girls, Grup de Treball, Hans Haacke, Rogelio López Cuenca, Gordon Matta-Clark, Mario Merz, Antoni Muntadas, Lygia Pape, Pedro G. Romero, Allan Sekula, Aleksandr Sokurov, Jeff Wall e Krzysztof Wodiczko. Site oficial do Macba.

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3) o papel do testemunho em duas dimensões: no universo das artes, o testemunho do artista, cuja autoria serve à produção coletiva e, por fim, o testemunho como o lugar da experiência no universo político.

A partir desses pontos, Processos Documentais nos serve como exemplo para a condição de duas crises abertas na contemporaneidade. A primeira diz respeito ao sistema da arte, na medida em que novos estatutos da imagem apresentam novas perspectivas para a condição entre a representação e o representado. A segunda atinge a condição política da representatividade, aqui tomada pela perspectiva estética da radicalização política. De todo feito, muito já se escreveu sobre ambas e juntas elas questionam: o que a arte apresenta? Como o faz? Quem pode apresentar e representar os sujeitos políticos pela arte? Entre tantas questões articuladas nas últimas décadas. É certo que os questionamentos permanecem vetores de muitas políticas culturais nas últimas duas décadas, ao menos, em especial, se levarmos em conta que as obras aqui mencionadas foram todas acervadas por instituições museológicas convencionais, como o Macba.4 Essa assimilação pelas coleções abre uma terceira via na representatividade do objeto-processo, testemunho frente às histórias das artes e das mídias contemporâneas: a produção artística politicamente ativada terminará sempre estabilizada pelo modelo que busca criticar? Pois a neutralização sempre é o risco imanente.

O que a arte comprometida com as mudanças sociais pode oferecer de diferente para as táticas ativistas? Em primeiro lugar, oferecem a desconfiança sobre aquilo que predicam, vinculam-se às práticas e manifestações de modo transitório e subjetivo, abrem um campo de especulação poético onde deveria haver apenas verdades. Inscrevem-se como aliados provisórios, dispostos a denunciar a exceção no momento em que elas se tornam a regra. Em segundo lugar, singularizam os efeitos das ações políticas, conferindo-lhes um caráter exploratório, aquilo que geralmente é tomado como a estetização da política, pode ser vista pelo avesso como a capacidade de criar mecanismos de subjetivação alternativos na interioridade do político. A arte excepcionaliza a ação política. É, dessa forma, uma parceira incômoda, desconfiada da própria lógica que a institui. Nesse sentido, os museus são parte dessa construção da “ocupação” de uma arte que instaura, no interior da instituição museológica e das lógicas patrimoniais, uma contradição. Obras, projetos, aços e diferentes performatividades parasitam o museu, oferecendo-o não como testemunha, como o lugar do testemunho.

Os museus investiram, com diferentes escalas, com diferentes resultados, colhendo aproximações e desconfianças, na experiência do outro; mas temos muito poucos museus de arte que, em suas estratégias de colecionamento,

4 Para compreender o contexto espanhol em particular, ver: Vindel, 2014.

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investiram na experiência com o outro. A diferença é clara, no primeiro processo a alteridade surge como “objeto” do olhar museológico, como presença autorizada e selecionada (Oliveira, 2018). Enquanto no segundo, o colecionamento, bem como a interpretação do que já foi acervado, tornam-se práticas entre sujeitos negociadores, internos aos valores que movem as práticas patrimoniais.

Aqui é tentador apelar para o sentido de pós-museu instituído por Eilean Hooper-Greenhill (2000), uma instituição preocupada menos com a exposição e mais em ser um elo entre comunidades, eventos, práticas identitárias. Mas prefiro não entrar nos jogos das refundações, uma vez que pós-museus e os museus há décadas coexistem e podem realinhar suas políticas, inclusive colaborando entre si. Nesse tocante, os dois modelos podem propor um acervo como espaço limiar, cuja função seria apresentar experiências do comum; um acervo dedicado à crítica que suspendesse as estruturas normativas de um sistema de valores patrimoniais autorreferente; uma coleção construída pela ação coletiva.

Para tanto, outra questão se abre de imediato. Diante de uma sociedade heterogênea, o que devemos selecionar, preservar, expor? Como no exemplo de Processos Documentais – e já se foram quase vinte anos da mostra –, tornou-se urgente compreender como os acervos buscam exprimir a diversidade disjuntiva da sociedade atual, se posicionam a partir das narrativas decoloniais, se alinham à educação antirracista e às políticas de gênero, ou seja, como se comportam diante das políticas do comum. É preciso fazer aqui, diante da crise da “verdade”, uma reflexão: que as coleções museológicas, a despeito de todas as estratégias e agências, continuam a ser um ponto de negociação e pertença, acervos que expressam inclusões e exclusões, compartilhamentos e injustiças, pois nos mostram por meio de suas narrativas – todo objeto narra e se deixa narrar – que não instauramos apenas o comum pelas solidariedades, mas também pelas violências. Assim sendo, as coleções que herdamos não expressam apenas a dignidade de um passado celebrado, exaltado e arquivado. Elas podem, também, expressar toda a dor, todos os males e desprazeres instituídos para que esses objetos se reúnam. E nesse tocante, toda coleção também é a experiência e a testemunha do que se diz com dificuldade e horror.

Quiçá nossas coleções possam exprimir o choque, a perplexidade, a indignação, a preocupação e a admiração causada pela intervenção da Comissão Guarani Yvyrupa no Monumento às Bandeiras, em São Paulo, em 2013. Uma ação simples, articulada contra a proposta de emenda à Constituição n. 215, que retiraria do Poder Executivo a autonomia da demarcação de terras indígenas, transferindo-a para o Congresso Nacional. Conhecemos a tortuosa e difícil história do projeto de Victor Brecheret, que depois de décadas foi inaugurado em 1953; herdamos e assistimos à transformação da obra em monumento-símbolo do

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urbano turístico, mas as palavras incômodas de Marcos Tupã5 embaralham o que aceitamos como a experiência em comum:

Esse monumento para nós representa a morte. E para nós, arte é a outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade e foi isso que se re-alizou nessa intervenção. […]. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e se transformou em um monumento à nossa resistência. (Tupã, 2013)

A articulação do testemunho no político de Processos Documentais e a “intervenção” sobre a “imagem” que outros construíram de si em São Paulo me levam a Walter Benjamin, que, sabemos, não era muito afeito aos museus. Em 1933, Benjamin publica o texto “Experiência e pobreza”, mais um dos ensaios sobre a perda da Erfahrung, o que significava a perda da capacidade de narrar e de transmitir uma experiência comum, compartilhada. De fato, para o autor que assistia às duras lições da Primeira Guerra Mundial, em todas as suas atrocidades, sendo lenta e matematicamente esquecidas ou negadas, o texto evoca, sobremaneira, as dificuldades que pesam sobre a possibilidade da narração, sobre a possibilidade da experiência comum, enfim, sobre a possibilidade da transmissão e do lembrar.

Claro, cada texto e interpretação tem um “Benjamim” para chamar de seu, e não evocamos esse Benjamim na intenção de defender uma tradição ou uma forma nostálgica de narrar a experiência pelos acervos. Ele nos serve para compreender a nossa própria perda de experiência no comum, hoje e agora, alertando-nos, como antes, para a transformação das formas de narrativa, de narração, que constroem outras formas de comunidade e transmissibilidade. “Experiência e pobreza” indica a capacidade da arte em testemunhar, contra tudo e todos, o presente árido, insuportável para qualquer edificação da beleza etérea, considerada por Benjamin ilusória. Claro, ele tratava da áspera, fria e sóbria arte contemporânea de sua época.

É desse testemunho que creio tratarem dezenas de projetos artísticos, educacionais, curatoriais que ampliam as antigas “verdades” com novas verdades.6 Tais testemunhos, sempre em crise diante da prova do fato ou da natureza ficcional de suas intenções, ao contrário do passado, surgem não para nomear aquele que não tem nome, mas para ouvir aqueles (pessoas e objetos) que sempre se nomearam; não para redimir o anônimo, mas para deixar que seu rastro, aquilo que fora tão bem apagado em cada objeto, em cada imagem

5 Marcos dos Santos Tupã, liderança indígena e coordenador tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).

6 Tomo um conceito pragmático de “verdade”, como lugar dos sujeitos livres que negociam seu presente.

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colecionada, em cada história esquecida, em cada traço de memória ocultado, torne-se visível.

Dessa forma, o que dá legitimidade aos acervos que herdamos hoje não é apenas aquilo que se quis contar sobre eles, mas toda uma história que eles preservam em segredo. Em cada imagem, em cada obra, em cada peça, em cada documento residem os lapsos, os buracos, os esquecimentos, os recalques. Podemos lamentar, com força e resistência, a dor da destruição do passado-presente do Museu Nacional do Rio de Janeiro,7 mas temos que lamentar com persistência tudo o que as diferentes coleções do museu nunca nos contarão. Pois as coleções, suas imagens, seus processos documentais, sua forma de ser e estar arte são, antes de tudo, um “meio” não só daqueles que querem narrar, todos aqueles livres para dizer e pensar, mas, sobretudo, são o meio daqueles que querem ouvir. Um novo sentido de testemunho, diante da pós-verdade, da incapacidade de instaurar o lugar de negociação no presente comum, me parece urgente. Aqui tomo as palavras de Jeanne Marie Gagnebin:

a testemunha não seria somente aquela que viu com os próprios olhos [...], a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro: não por culpabilidade ou por paixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não re-petir infinitamente, mas ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (Gagnebin, 2004, p. 91)

Sem dúvida, arte, artistas e museus ainda têm verdades a negociar. O testemunho de suas coleções silenciosas e silenciadas permanecerá como um contínuo problema para aqueles que acreditam numa única verdade, mas, também, para aqueles que não creem na possibilidade de verdade alguma.

Referências

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasi-liense, 1994.

FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In: ______. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 159-186.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

HOOPER-GREENHILL, Eilean. Museums and interpretation of visual culture. New York; Lon-don: Routledge, 2000.

7 No dia 2 de setembro de 2018, um incêndio destruiu a principal sede do secular Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

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MONDZAIN, Márie-José. A imagem pode matar?. 2. ed. Lisboa: Nova Vega, 2017.

OLIVEIRA, Emerson Dionisio. O museu curador: aparecimento, conservação e apagamento da obra de arte. Palíndromo, v. 10, p. 167-180, 2018.

PELLEJERO, E. Morder o real: o engajamento antes da sua representação. O que nos faz pen-sar, v. 26, n. 40, p. 223-236, jun. 2017.

RIBALTA, Jorge. Experimentos para una nueva institucionalidad. Catálogo. Barcelona: Ma-cba, 2008. Disponível em: https://www.macba.cat/PDFs/jorge_ribalta_colleccio_cas.pdf. Acesso em: out. 2018.

SEKULA, Allan. O corpo e o arquivo. In: PICAZO, Gloria; RIBALTA, Jorge (ed.). Indiferencia y singularidad. Barcelona: Macba, 1997. p. 137-199.

TUPÃ, Marcos. Monumento à resistência do povo guarani. Brasil de Fato, 9 de outubro de 2013. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2013/10/09/monumento-a-resisten-cia-do-povo-guarani-artigo-de-marcos-dos-santos-tupa/.

VINDEL, Jaime. Desplazamientos de la crítica: instituciones culturales y movimientos socia-les entre finales de los noventa y la actualidad. Desacuerdos: sobre arte, políticas y esfera pública en el Estado español, v. 8, p. 290-308, 2014. Disponível em: http://www.museorei-nasofia.es/publicaciones/desacuerdos#numero-8. Acesso em: out. 2018.

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Arquivo e ficçãoUm programa de ação curatorial

Ana Pato1

Nenhuma re/citação sem o arquivo.2

Wofgang Ernst

(Stirrings in the archives: order from disorder, 2015, p. 3)

Este artigo tem como objetivo discutir o programa de ação curatorial Arquivo e Ficção, que tem como meta imaginar outras formas de narrar os processos de construção da história brasileira. A metodologia de trabalho consiste na articulação de pesquisas artísticas e na formação de grupos de trabalho em torno de arquivos e acervos públicos e privados. Diante da invisibilidade, do apagamento e do risco de abandono que os acervos documentais e artísticos vivenciam no Brasil, o programa tem como estratégia criar uma prática curatorial que se articula no desejo de repensar as instituições de memória e suas práticas. A iniciativa visa construir uma plataforma permanente de atualização dos temas que se propõe a investigar, tendo como ponto focal a história das instituições e da formação dos arquivos. As questões norteadoras do programa são: como construir um arquivo que não existe? Como torná-lo público? Como falar do trauma?

A sistematização de um modelo de ação curatorial como metodologia de pesquisa acadêmica é o objeto da tese de doutorado que defendi em 2017, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), com o título Arte contemporânea e arquivo: como tornar público o arquivo público?. O trabalho teve como tema a mudança da função dos arquivos como modelo de institucionalização da memória no campo da arte, desde meados do século XX. Para tanto, discuto como se dá o reconhecimento da experiência histórica traumática, no campo da arte brasileira, no início do século XXI e defendo a ideia de que a arte é capaz de prefigurar a violência contida nos arquivos, ao desafiar sua origem e as formas por meio das quais estruturam nossa realidade. Como metodologia para perquirir o arquivo como produtor de uma imaginação histórica e historicizar a criação dessas instituições, recorri às teorias pós-coloniais (Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha, Frantz Fanon, Walter

1 Curadora, pesquisadora e professora. Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP). É autora do livro Literatura expandida: arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-Foerster (2012).

2 No original: “No re/citation without the archive”. Traduzido por Adam Siegel. Publicado por Rowman & Littlefield.

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Mignolo, Anibal Quijano, Achille Mbembe). Foi sob esse aspecto que escolhi, como estudos de caso, o Arquivo Público do Estado da Bahia e o Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima. Nas histórias dessas duas instituições, encontrei o mote para percorrermos o Brasil colonial e a instauração de um modelo de nação fundamentado nas teorias raciais do final do século XIX. Na análise das práticas artísticas, investiguei a obra de Eustáquio Neves, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, José Rufino, Maria Magdalena Campos-Pons, Paulo Bruscky e Paulo Nazareth, durante a III Bienal da Bahia (2014), em projetos que se fundem e se retroalimentam nas experiências de reconhecimento da violência contida na coleção abandonada de um museu antropológico e na realidade precária do estado de conservação do nosso patrimônio histórico.3

Considerando que o programa de ação curatorial teve como laboratório experimental o projeto da III Bienal da Bahia,4 da qual fui uma das curadoras, este texto está dividido em duas partes, das quais a primeira é uma introdução à história dessa bienal e a segunda traz uma breve incursão nos arquivos do período colonial brasileiro e no uso do documento como dispositivo artístico para se imaginarem os processos de construção da história brasileira.

Ao retomar o projeto de bienais na Bahia, a terceira edição teve como missão estruturante criar seu próprio arquivo, até então inexistente. Mais que isso, o desejo de narrar as histórias da primeira e da segunda edições (1966 e 1968) guiou o pensamento da III Bienal, retomada no ano em que a Comissão Nacional da Verdade concluía seus trabalhos de abertura dos arquivos da ditadura e recordava os cinquenta anos do golpe militar.

Entre as estruturas temáticas da Bienal,5 estava a psicologia do testemunho dedicada ao desenvolvimento de ações e pesquisas em torno de arquivos públicos e privados. Nesse sentido, um ponto fundamental na proposição curatorial da III Bienal foi enfatizar a memória como operação articuladora da prática curatorial e a pulverização do pensamento do artista, no contexto da cultura e em diálogo com a história da cidade e dos lugares onde a mostra ocorreu. É o caso da exposição Arquivo e Ficção, organizada a partir da indagação “como tornar público o arquivo público?” e que teve como objetivo problematizar a invisibilidade dos arquivos no Brasil.

3 Ver: Pato (2017).

4 Essa bienal aconteceu entre 29 de maio e 7 de setembro de 2014 e foi realizada com recursos pú-blicos provenientes do estado da Bahia – teve um orçamento total de R$7 milhões, ocupou 54 espaços, esteve presente em 32 cidades e atingiu um público aproximado de 181 mil pessoas. A autora integrou a equipe de curadores-chefe do evento.

5 Ver: Catálogo 3ª Bienal da Bahia (2014).

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Primeiramente, será necessário abordar a história da Bienal da Bahia e sua relação com a memória, mais especificamente, com a memória traumática. A III Bienal da Bahia acontece 46 anos depois de sua última edição, em 1968, fechada pela ditadura militar (1964-1985).6 Em vista disso, ao retomar o projeto de bienal para a Bahia, constituir um arquivo tornou-se premente. Com o fechamento violento da II Bienal, a prisão dos organizadores e a apreensão e desaparecimento de obras consideradas subversivas pelo regime militar, qualquer documentação que existisse no período sobre o evento desapareceu ou foi esquecida.

Não há dúvida de que a perseguição teve um impacto maior nos meios artísticos com grande alcance popular, como a música, o teatro e os meios de comunicação (Amaral, 2006). Entretanto, a repressão à II Bienal não deve ser entendida como um ato isolado, pelo contrário. Para Frederico Morais, o fechamento de exposições, a censura, a destruição de obras, a perseguição a artistas, críticos e professores de arte eram constantes na época.7 O endurecimento da repressão militar, a partir de 1969, muda drasticamente o rumo da produção artística no país. Nas palavras de Calirman:

Em dezembro de 1968, um ano antes da histórica X Bienal de São Paulo, uma exposição modesta alcançou visibilidade nacional, quando se tornou uma das primeiras vítimas do AI-5 recém-criado. A II Bienal Nacional da Bahia aconteceu no Convento da Lapa, em Salvador, Bahia, no Nordeste do Brasil. (Calirman, 2012, p. 21, tradução nossa)

É possível fazer uma analogia entre o fechamento dessa bienal e o apagamento não só de sua memória, mas de um período de efervescência das artes na região. Na Bahia, paralisa a criação de um circuito local para as artes visuais e resulta, como consequência, na invisibilidade e no isolamento (ainda hoje) do circuito nacional de artistas que optaram por permanecer produzindo seus trabalhos a partir do Nordeste.8

Contudo, em 1966, a situação era outra. Os organizadores da I Bienal da Bahia buscaram uma articulação nacional, com o intuito de atrair atenção e legitimar a produção das regiões Norte e Nordeste do país. Essa bienal contou com a participação de críticos e artistas centrais para o pensamento da arte brasileira, como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Mario Pedrosa, Walter Zanini, Frederico Morais, Mário Schenberg, entre outros.

6 Em 13 de dezembro de 1968, o regime militar decreta o Ato Institucional n. 5, que vigora no país até 1978 e representa o momento mais duro da ditadura no Brasil. A abertura da II Bienal foi no dia 20 de dezembro e seu fechamento, no dia 23 do mesmo mês.

7 Ver: Ribeiro (2013).

8 Entre esses nomes, poderia citar os artistas Almandrade (1953-), Juarez Paraíso (1934-), Juraci Dórea (1944-) e Rogério Duarte (1939-).

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A I Bienal surge com um projeto bastante ambicioso: propor um contradiscurso ao modelo de bienal articulado por São Paulo. Criada em 1951 por um grupo de empresários, a Bienal de São Paulo foi inspirada na Bienal de Veneza9 e a ideia era transformar o evento numa vitrine para o circuito internacional da arte. Nesse contexto é oportuno retomar o comentário de Mario Pedrosa (2007, p. 256) sobre a criação da Bienal de São Paulo e o impacto desse projeto em outras regiões do país:

Tornando-se centro de atração para todos os artistas do Brasil, a Bienal pôde, por sua vez, despertar um movimento interno de aproximação artística entre as di-versas províncias culturais do país, e notadamente entre os dois principais cen-tros, Rio e São Paulo. Os localismos regionais renitentes deste ou daquele centro começam a ser vencidos na vastidão continental do Brasil.

Como construir um arquivo que não existe? Ao retomar o projeto de bienais na Bahia, a III Bienal teve como missão estruturante criar seu próprio arquivo, até então inexistente. Uma memória que precisou ser garimpada entre recortes de jornal, testemunhos orais e coleta de documentos dispersos. O processo de retomada das histórias das bienais permitiu-nos compreender que o fechamento da II Bienal da Bahia representa, possivelmente, um dos maiores atos de repressão na história da arte brasileira – fato até então pouquíssimo estudado e que figura como nota de rodapé na história da arte nacional. Não obstante, nota-se um aumento de pesquisas acadêmicas dedicadas a produzir uma genealogia sobre a relação entre a ditadura militar e as artes visuais no Brasil.

Um ano depois do fechamento violento da II Bienal da Bahia, a X Bienal de São Paulo (1969) ficou conhecida como a “Bienal do Boicote”: quase 80% dos artistas convidados se recusam a participar. Além de receber financiamento do governo militar, há um clima de tolerância por parte dos militares com a mostra (Farias, 2001). De certa maneira, para o regime de exceção, a Bienal de São Paulo representava um pequeno hiato, ou a possibilidade de mostrar ao mundo a imagem de um Brasil “livre”.

Entre as 22 horas de entrevistas gravadas com artistas, curadores e pessoas ligadas às primeiras Bienais da Bahia, é preciso ressaltar que, apesar da riqueza dos depoimentos reunidos, não foi feita ainda uma pesquisa rigorosa no sentido de tentar confrontar testemunhos com o pouco material de jornal encontrado e quase nenhum documento do período. Nesse sentido, é importante notar que existem muitas opiniões divergentes sobre fatos ocorridos, bem como hipóteses variadas sobre os diversos assuntos abordados, como, por exemplo, a quantidade de obras e artistas que participaram das bienais, o motivo ou os motivos que

9 A criação da Bienal de Veneza (1895) tem influência direta das “feiras mundiais”, projetos exposi-tivos de grande porte que surgem na Europa no século XIX, com o intuito de oferecer uma espécie de apanhado da “experiência colonial europeia”, por meio de exposição em grandes pavilhões.

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levaram a seu fechamento, as datas de realização, quais obras desapareceram, quem estaria presente etc.10

É tudo Nordeste? foi a questão formulada pela III Bienal da Bahia, no intuito de reunir processos constitutivos da experiência cultural e histórica do Nordeste a partir da perspectiva baiana e de seu diálogo com o Brasil e a experiência universal. Se, por um lado, a interjeição não ambiciona uma resposta única, por outro, indica o desejo de propor um mapeamento de nordestes imaginários, para além de uma condição geográfica, mas afetiva, ética, cultural, espiritual – “o Nordeste como experiência humana”, como explica Juarez Paraíso, artista e curador das primeiras edições da Bienal.

A respeito disso, o modelo que inspira o projeto da III Bienal da Bahia é o da Bienal de Havana, criada em Cuba, em 1984. Sua terceira edição, em 1989, é considerada, hoje, um projeto histórico, por ter redefinido o modelo de bienais, ao propor um contradiscurso à forma vigente das grandes exposições de arte e por ter expandido o território global da arte para além do circuito europeu e norte-americano, ao construir uma plataforma para artistas do “terceiro mundo”.11

Trata-se, então, da retomada de um projeto que propõe, em sua essência, trabalhar a partir de dois modelos de bienal: de Havana, que teve como paradigma repensar o próprio modelo de bienais;12 e da Bahia, com a “re/invenção” de sua própria história – a constituição do arquivo das edições anteriores e a atualização do projeto original, que tinha como pressuposto construir uma plataforma de visibilidade para a produção artística do Nordeste, marginalizada pelo circuito oficial da arte, estruturado a partir do Sudeste do país.

Gregory Sholette compara a situação da produção criativa no mundo da arte com o que a física chama de buraco negro. Segundo o autor, mais de 96% de toda a atividade criativa do mundo permanece invisível, no intuito de manter seguro o terreno e concentrar as fontes necessárias para garantir o privilégio de alguns poucos supervisíveis (Papastergiadis; Mosquera, 2014). A imagem é apropriada

10 Dedicada a esta pesquisa, a exposição A Reencenação, com curadoria de Fernando Oliva, aconteceu no mosteiro São Bento durante a III Bienal e é resultado de uma imensa pesquisa sobre documentações, fontes e depoimentos para a reencenação das Bienais da Bahia de 1966 e 1968. Cabe lembrar que a edição de 2014 aconteceu no ano em que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu seus traba-lhos de abertura dos arquivos da ditadura. A CNV foi sancionada em 2011, com o intuito de investigar, entrevistar e reunir documentação sobre a memória traumática da ditadura militar no país. Às vésperas do início do golpe civil-militar, ocorrido em 31 de março de 1964, completar 55 anos, há um movimento revisionista que questiona a própria existência do governo de exceção.

11 Ver: Filipovic (2005) e Weiss (2011).

12 Curiosamente, uma das apreensões elencadas pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia sobre a viabilidade de realização da III Bienal era o fato de a Bahia não possuir o espaço tradicional do modelo expositivo de bienal, o pavilhão. A Bienal de Havana, também um evento financiado pelo Estado, tor-na-se, então, um modelo real, bem-sucedido e de convencimento sobre a viabilidade de realizar uma bienal sem pavilhões (comentário do diretor artístico da III Bienal, Marcelo Rezende).

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para pensarmos a questão do ocultamento da produção artística da região discutida pela Bienal da Bahia.

A respeito das relações de dominação internas no Brasil, a contraposição entre Nordeste e Sudeste enuncia essa situação. Boaventura de Sousa Santos fala em pensamento abissal, ao defender que a epistemologia ocidental dominante foi construída na base das demandas de dominação colonial. Em suas palavras:

Este pensamento opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experi-ências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligí-veis, objetos de supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de lá da linha). (Santos; Menezes, 2010, p. 13)

É nessa direção que o exercício de imaginar o Nordeste representa uma metáfora da busca de experiências ainda não totalmente colonizadas pela modernidade europeia, ou seja, de lugares afetados por ela, mas nunca completamente incluídos ou instrumentalizados. Para Papastergiadis e Mosquera (2014), o esforço para “desprovincianizar a imaginação” começa pela confrontação dos limites colocados pelo universalismo eurocêntrico.

Disso decorre a insistência da III Bienal da Bahia em questionar os procedimentos de trabalho impostos pelo mercado globalizado da arte, as regras de conduta do circuito e o modelo curatorial a ser utilizado. Afinal, modelos de bienais (como São Paulo, Veneza) não servem para todas as circunstâncias e espaços. Isto posto, tornou-se urgente indagar: quem criou esses modelos? Motivados por quais razões? Em que tempo e espaço?

Essa talvez seja uma das perguntas constitutivas de todo o projeto curatorial da III Bienal da Bahia, presente em todo o processo de reconstrução de um projeto de bienais para a Bahia, um lugar e cultura que impõem um outro tempo, um outro modo de organização; para nós, a questão tem sido sobre de que maneira conse-guir trabalhar, realizar um projeto justo, não “apesar” dessas circunstâncias, mas, sobretudo, “com” essas circunstâncias, aproximando-se da Bahia e suas questões a partir do encontro, do contato, perseguindo uma ideia de conversa permanen-te; sem falsear o processo, mas revelando-o, sem esconder o que há de frágil, mas procurando entender qual conhecimento ele pode nos fornecer quando reco-nhecemos uma inteligência nessa mesma fragilidade.13

Um ponto fundamental na proposição curatorial da III Bienal da Bahia foi ocupar espaços na cidade, incluindo igrejas, mosteiros, terreiros de candomblé, arquivos públicos, acervos privados, museus de arte, de etnografia, de arte sacra, ateliês de artistas, bibliotecas, cineclubes e centros culturais. Essa operação resulta na descentralização de um espaço único (um pavilhão, por exemplo), capaz

13 Trecho de carta pública exposta durante a Bienal e escrita pelos curadores da III Bienal da Bahia em resposta a um grupo de curadores dissidentes que se retiraram do projeto, sob o argumento de que o modelo revelava falta de conhecimento sobre os procedimentos vigentes no circuito da arte.

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de representar o todo, e assume, como forma, uma rede dispersa de pequenos centros.

A recusa à noção de neutralidade e isolamento da arte, optando por não reproduzir a arquitetura que se tornou padrão para exibição de arte nos museus, galerias e bienais (paredes brancas, lisas e neutras, estruturadas de forma a criar um espaço geométrico), o chamado “cubo branco”, evidencia o desejo dessa bienal de problematizar o “lugar” de exibição da arte.

Em suma, até aqui tentei elaborar o contexto em que se insere o projeto de retomada de bienais na Bahia, proposta seminal para a conceituação do modelo curatorial que estou propondo, para, então, fazermos uma breve incursão nos arquivos do período colonial brasileiro no Arquivo Público do Estado da Bahia.

Arquivo e ficção

Como primeiro passo, será necessário investigar a história do lugar. A esse respeito, pode-se arriscar a hipótese de que, para entendermos os arquivos e seus usos, é essencial nos dedicarmos a compreender, como propõe Burton (2005), questões anteriores – de que matéria são feitos os arquivos? Qual a história dos arquivos? Como e por que foram criados?

Em 1890, a criação do Arquivo Público da Bahia teve por finalidade transferir para um único lugar toda a documentação reunida até então em igrejas, escolas, hospitais e cartórios, com o objetivo de reforçar o processo de instalação do regime republicano no país, depois da Abolição da Escravatura (1888) e da Proclamação da República (1889). Lembremos que Salvador foi a sede do Governo Geral do Estado do Brasil (1549-1763), a cidade ficou conhecida como a capital do Atlântico Sul, o que resultou no acúmulo e na guarda de documentos referentes à colonização.

Nas pilhas de papéis do Arquivo Público, encontram-se documentos das mais variadas facetas: das concessões de terra a portugueses abastados, passando pela formação das missões indígenas, à doação e posterior expulsão dos jesuítas; da queima de arquivos da escravidão às certidões de compra e venda de escravos; das listas de entrada de navios trazendo milhares de africanos escravizados e, depois, da história da resistência às revoltas escravas, aos processos jurídicos e aos autos de prisão e condenação; enfim, todo um conjunto de documentos relatando o dia a dia da vida na corte.

Considerando o uso do documento como dispositivo artístico para imaginar os processos de construção da história brasileira, proponho uma leitura de documentos que se interpelam: o primeiro, a transcrição de duas correspondências encontradas na seção Colonial, na série relacionada às exposições (1861-1889), escolhidas do conjunto de documentos relativos à

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participação da Bahia nas exposições universais, tais como as de Paris (1888), Antuérpia (1885), Filadélfia (1875), Viena (1873), entre outras, e o segundo, passaportes de homens e mulheres escravizados. É similar entre eles o fato de terem sido produzidos por instituições governamentais, estarem destinados ao depósito legal e versarem sobre o apagamento da história dos povos originários do Brasil e a violência contra a população negra e indígena.

Com a finalidade de reunir evidência material da vida indígena, as províncias locais foram convidadas a coletar e enviar exemplares de objetos etnológicos e arqueológicos de povos do território brasileiro. A Exposição Antropológica Brasileira, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi inaugurada em 29 de julho de 1882 e contou com a presença do imperador do Brasil, d. Pedro II, um diletante incentivador das ciências e das artes. Entre os materiais expostos estão coleções de cerâmica, utensílios, armas, ferramentas, ornamentos, vestimentas, fragmentos recolhidos em escavações e amostras de esqueletos e crânios exumados de cemitérios indígenas, além de uma seção de pinturas e fotografias do acervo particular do imperador e dioramas representando cenas do cotidiano dos povos ameríndios, com figuras em gesso e a presença de um pequeno grupo das tribos botocudo e xerente, que permaneceram no museu durante o período. O evento durou três meses e teve um público de mais de mil visitantes.

Cabe lembrar que na Coleção das leis do Império do Brasil de 1841,14 no decreto que rege a execução da parte policial, na seção intitulada “Dos passaportes”, consta que os cidadãos brasileiros poderão viajar sem passaporte dentro do Império. Escravos e africanos livres ou libertos, ainda que estejam em companhia de seus senhores ou amos, são obrigados a apresentar passaporte, salvo nos casos em que o viajante, livre ou escravo, seja conhecido por alguma das autoridades do lugar, ou quando pessoas de conceito o conhecerem ou o abonarem. Porém, ninguém poderá sair do Império sem passaporte, à exceção das pessoas que fizerem parte das tripulações dos navios de guerra nacionais ou estrangeiros. O prazo de validade de qualquer passaporte não será maior que o de quatro meses (Figura 3).

Lê-se, na transcrição do documento abaixo, que ele foi emitido pela Intendência de Polícia no dia 9 de março do ano de 1871, na cidade de Aracaju, pelo chefe de polícia da província de Sergipe, doutor J.M.A.C. O passaporte foi expedido para mulher de nome G., com 52 anos, nascida naquela província, na condição de liberta e tendo como profissão o serviço doméstico. O documento foi emitido para que pudesse viajar para Barra do Rio de Contas, na província da Bahia, em companhia do Senhor N.F.C., ali residente. No quadro esquerdo do passaporte,

14 Coleção das leis do Império do Brasil de 1841. Tomo IV. Parte 1. Rio de Janeiro. Reimpressa na Typo-graphia Nacional. Rua da Guarda Velha, 1864.

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Figura 1

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Figuras 1 e 2 – Transcrição de duas correspondências relacionadas à participação da Bahia nas exposições universais. Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia. Fundo: Governo da Província. Série: Exposições 1861-1889. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Maço 1568. Caderno ano: 1882 (Exposição Antropológica)

Figura 2

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preenchido à mão pelo funcionário da polícia, consta questionário com os sinais físicos de G.: estatura regular; cabelos carapinhos; testa regular; sobrancelha pouca; olhos castanhos; nariz chato; boca regular; fisionomia comprida e cor preta.

A leitura desses “documentos-monumentos”, nos termos de Jacques Le Goff (1984), serve-nos de dispositivo para indagarmos quanto desse passado seguiria afetando nosso presente.15 Em linhas gerais, os documentos ilustram como se construiu uma política de segregação e racismo que impôs uma visão sobre o mundo legitimada por políticas de dominação colonial e práticas de exclusão. Como falar do trauma? surge como questão-chave para o reconhecimento de nossa experiência histórica traumática.

Notadamente, é no século XIX que os arquivos, com sua organização cronológica baseada na capacidade de situar os documentos apartados de seu tempo como condição para uma leitura linear da história, assumem o papel de instituição central na formação dos Estados modernos e contemporâneos. Na opinião de Sven Spieker (2008), para compreendermos o “tipo de visualidade à qual o arquivamento é a chave”, é preciso considerarmos os “arquivos burocráticos” como paradigma técnico-científico, por excelência, do projeto progressista de sociedade moderna. Nesse sentido, avalia que os arquivos exercem a função de um laboratório experimental de investigação sobre o lado irracional da sociedade moderna, ao mesmo tempo em que fornecem “material” para a elaboração artística dessa premissa.

Na opinião de Achille Mbembe (2002), a relação paradoxal que se estabelece entre Estado e arquivo (preservar x abandonar) reside, justamente, na violência constitutiva do Estado, contida nos documentos armazenados no arquivo. Se, por um lado, cabe à instituição preservar seus arquivos, por outro, o arquivo contém em si a própria ameaça a sua existência, pois garante a possibilidade de reconhecimento de uma dívida. Jean-Louis Déotte (1994, p. 13), ao analisar o processo de criação das nações europeias, observa que compete ao Estado a implantação de uma “política de esquecimento”, caso contrário, “corre o risco de se confrontar com um passado que não quer passar”.16

Diante da invisibilidade, do abandono e do risco de apagamento que os acervos documentais e artísticos vivenciam hoje no Brasil – lembremos das imagens recentes do Museu Nacional em chamas –, a ameaça ao patrimônio histórico

15 Lembremos da importante luta das mulheres negras no Brasil para quebrarem o ciclo de empre-gadas domésticas em suas famílias, discussão atual que questiona a manutenção de estruturas sociais hierárquicas que repetem a lógica escravista, somando-se aos dados da violência contra povos indígenas e jovens negros nas periferias brasileiras. Ver: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/ e http://www.cimi.org.br/.

16 No original: “[…] d’un devoir d’oubli, d’un oubli actif de l’origine et du passé.”; “[…] avec le risque de se heurter à un passé qui ne veut pas passer.” Tradução nossa.

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Figura 3 – Passaporte de 1871. Arquivo Público do Estado da Bahia. Série: Polícia. Maço: 6336 (Passaportes). Seção de Arquivos Colonial/Provincial

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não pode ser encarada como um dado imprevisto ou alarmante, mas deve ser tratada nos termos de uma “política de esquecimento” do Estado. A contradição do lugar de preservação, em estado de deterioração, é material de trabalho para repensarmos a função dos arquivos como modelo de institucionalização da memória, da mesma forma que as estratégias de sobrevivência da instituição devem ser analisadas como práticas de resistência.

É nesse ponto que minha reflexão começa: como nos apropriarmos das instituições oitocentistas brasileiras? Se, por um lado, a operação artística em arquivos de violência secular torna visível o pensamento de uma época, por outro, permite-nos imaginar reescritas possíveis de histórias apagadas e incompletas. Em outras palavras, como propor novos usos para os arquivos a partir dessas experiências de reconhecimento da história traumática?

Atualmente, está em andamento outra iniciativa do programa, que consiste em um projeto nos arquivos da ditadura civil-militar brasileira, a exposição Meta-Arquivo 1964-1985. Espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura no Brasil,17 com obras criadas pelos artistas Ana Vaz, grupo Contrafilé, grupo Inteiro, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, Mabe Bethônico, Paulo Nazareth, Rafael Pagatini e Traplev. A proposta envolveu a retomada do grupo de trabalho Arquivo e Ficção para uma ação de pesquisa artística, inicialmente, nos arquivos dos fundos da Secretaria de Segurança Pública, e se ampliou para uma extensa rede de centros de memória e arquivos na internet. Uma articulação que se construiu em diálogo com a equipe de pesquisadores do Memorial da Resistência de São Paulo e tem como questão: como o imaginário da ditadura civil-militar brasileira poderia ser integrado ao que sentimos e pensamos ser hoje o nosso presente?

Tentei expor o potencial desse tipo de ação que aproxima arte e espaços de memória. Isto posto, cabe ressaltar que o programa curatorial Arquivo e Ficção se articula a partir de um posicionamento ético diante da história brasileira e tem como desejo se conectar com uma força da arte que é capaz de movimentar espaços de possibilidade ou de impossibilidade para imaginar e experimentar outros modos de produção. Nesse sentido, olhar os arquivos por uma perspectiva artística significa perceber o documento como ação e identificar seu potencial de transmissibilidade, seu recurso gerador de outras histórias possíveis.

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17 A exposição foi realizada no Sesc Belenzinho de 22 agosto a 24 de novembro de 2019.

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Histórias anônimas no Arquivo Nacional

Floriano Romano1

É sempre muito importante haver encontros como este para lembrarmos que a arte pode ir além de um circuito institucional e estar envolvida com a pesquisa, com a educação, com questões que muitas vezes têm um caráter efêmero. Algumas exposições são efêmeras e nem sempre precisam ser preservadas na forma de objeto. Então, é muito importante neste momento, no Brasil, haver essa discussão e esse debate. Como a exposição que vou realizar é no ano que vem, tenho um projeto e o trabalho está em processo. Vou começar mostrando um pouco do meu trabalho, introduzi-lo brevemente e depois falar sobre o que vou produzir aqui.

O primeiro trabalho. Ele serve para começarmos. É uma espreguiçadeira siamesa para duas pessoas com o som do mar (Figura 1). Ao deitar na espreguiçadeira, ouve-se o som do mar, uma paisagem sonora que gravei na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Trabalho com ruído e, mesmo quando trabalho com a voz, penso a voz como ruído. Acredito que o ruído fala direto com os nossos corpos, toca direto nossos corpos, é uma experiência única de sensibilização do corpo. Mas o ruído é, na maioria das vezes, descartado, considerado algo inútil. Vamos ver mais adiante como é que o inútil se junta no que eu faço.

Ao se deitar numa espreguiçadeira como essa, você tem uma experiência, uma microexperiência, num instante de encontro com o ruído, que propicia a criação de uma imagem, uma imagem sonora, uma imagem do som que se escuta. Mas, no meu caso, esse som não é um documento, ele não vem com as referências, então, para o espectador, não é possível saber de que lugar veio aquele ruído, nem de que hora, nem o dia em que foi gravado. Apenas é possível imaginar um lugar. Essa imagem sonora que o ruído provoca é algo possível, um mundo possível, um lugar possível de ser imaginado.

Produzo objetos que utilizo em intervenções urbanas e instalações. Todos eles lidam com o ruído e tentam se aproximar ao máximo do mundo comum. Tentam. Abro mão de qualquer sofisticação na construção desses objetos para que se tornem o mais simples possível. Para que o espectador, ao se encontrar com uma espreguiçadeira feita de madeira, se sinta tão próximo dela que não perceba que vive uma experiência de arte contemporânea. E, principalmente,

1 Artista plástico, professor da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ). Criou o programa de rádio O inusitado no Rio de Janeiro (2002-2004). Realizou várias exposições no Brasil e no exterior. Recebeu diversos prêmios: Marcantonio Villaça (Sesi, MAC/USP), TrioRIO Bienal de Escultura (CCBB), Sonar (Casa de Cultura Laura Alvim, 2013). Este texto é a transcrição da fala do artista no colóquio Vidas Precárias, que ocorreu entre 12 e 14 de novembro de 2018, no Arquivo Nacional, na cidade do Rio de Janeiro.

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para que não ache que a construção de objetos sonoros e a fruição do ruído sejam particularidades do artista, que ele sinta que qualquer pessoa pode passar por essa experiência.

Junto com essa espreguiçadeira sonora com o som do mar, que apresentei agora, está em exposição no Centro Hélio Oiticica, a alguns quarteirões daqui, um outro trabalho, os dois do festival Panorama. Esse outro trabalho é uma parede sonora com o som de uma ventania feita a partir da gravação da minha voz expirando, da minha respiração (Figura 2). Para realizar essa ventania, retirei a inspiração e gravei somente a expiração. E, a partir dessa expiração amplificada, você tem a pequena impressão de que está ouvindo uma paisagem sonora da natureza.

Esses dois trabalhos têm um diálogo, porque, assim como a natureza nos oferece as ondas sonoras que tocam nosso corpo, nós também, quando falamos suspiramos, murmuramos, respondemos ao mundo com os nossos sons. A fala em um lugar anterior à linguagem, a fala como ruído é uma forma de responder ao mundo, de ser um emissor de som, e isso produz autonomia, interfere na paisagem sonora do mundo, uma autonomia que é um campo sonoro em torno de você, que tem a exata medida da altura da sua voz. Esses trabalhos dialogam entre si. São duas paisagens sonoras, uma feita com o corpo e outra gravada na natureza. Acredito que esse instante de sensibilização de que falei, e que essa fala amorosa para o mundo, são instrumentos de afeto que podem nos ajudar

Figura 1 – Espreguiçadeira sonora, 2015. Foto: Mario Grisolli

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nesse momento dramático que estamos vivendo, de uma tentativa de controle dos nossos corpos, porque o que vivemos com o crescimento do fascismo hoje no Brasil é uma tentativa de controlar os nossos corpos. As pautas desse fascismo são as pautas do controle dos corpos das mulheres, dos e das trans, dos gays, e a normatização dessa possibilidade sensível em todos os corpos. Corpos obedientes não causam problemas. Corpos que se sensibilizam, mesmo que por um instante, mesmo que isso seja apenas um aceno de possibilidade, estão sempre em movimento. E corpos que possuem autonomia da fala e de sentir se afirmam na multidão.

Com essa imagem que vou mostrar a seguir, ficamos mais próximos das Histórias anônimas, que é o trabalho que vou apresentar aqui no Arquivo Nacional. Esse terceiro objeto é um chuveiro sonoro, ele tem um som de gravações de pessoas tomando banho e cantando, cantores anônimos de chuveiro. Aqui, de uma certa maneira, o artista sai do centro da obra e propicia que esses cantores sejam os protagonistas. Fiz uma chamada pública e algumas pessoas me enviaram áudios por e-mail. Esse objeto também se insere no contexto que falei antes: é um chuveiro comum, igual a qualquer chuveiro do mundo. A única diferença é que teve sua função alterada. Quando se lida com um objeto presente no cotidiano e esse objeto tem a sua função alterada, quando ele não responde mais a sua função original, não se comporta, digamos assim, da maneira que se espera, também se pode repensar a relação com o mundo a sua volta, com os seus objetos, com a indústria e com a sua própria funcionalidade dentro desse mundo. Assim, o objetivo de produzir os objetos sonoros, além da fruição do ruído, é que as pessoas também percebam que é possível criar outras formas de viver, que não sejam

Figura 2 – Muro de som, 2015. Foto: Wilton Montenegro

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essas que nos atribuem as funções normativas e conservadoras do mundo.

Por último, vou mostrar um trabalho que é um exemplo do que falei sobre o campo sonoro (Figura 3). É uma mochila. Essa mochila tem uma gravação que diz: “Não preste atenção”. E com ela faço uma deriva pela cidade, de preferência em lugares populares, onde possa me encontrar com diversas pessoas, diferentes, saindo do espaço de arte tradicional, onde todo mundo já espera que a obra de arte tenha isso ou aquilo. O contato com essas pessoas é justamente esse instante, esse encontro, essa possibilidade de reflexão sobre a produção de autonomia, sobre a possibilidade de uma ação micropolítica. Nesse trabalho, começo a fazer caminhadas pela cidade, que eu chamo de errâncias. E essas errâncias têm muito a ver com um conto do Edgar Allan Poe (1840) que se chama “O homem da multidão”, que já conheço há muitos anos. Ele é justamente um paradoxo entre sumir na multidão e ser um protagonista dentro de uma deriva pela cidade. Acho que os trabalhos de deriva que realizo, inclusive a exposição Errância, que aconteceu no CCBB-RJ, têm muito a ver com essa questão do anonimato.

Quero agora falar um pouco do que propus para o Arquivo Nacional. Escrevi o seguinte:

A questão da documentação é importante na arte e na história, mas alguns do-cumentos tornam-se fundamentais por sua especificidade e conteúdo político quando proibidos. A censura, que se caracterizou com muita força no Brasil du-rante o período da ditadura militar, ainda é presente em diversas áreas estraté-gicas. O trabalho indaga a nossa condição de acessar a nossa história enquanto

Figura 3 – Falante, 2007. Foto: Edouard de Fraipont

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cidadãos de uma democracia e sobre o fantasma político que nos nega esse di-reito no contexto da multiplicação das redes sociais e das novas formas de comu-nicação.

Dessa forma, o trabalho que proponho, Histórias anônimas, são falas ficcionais escritas a partir da pesquisa e da leitura de documentos do Arquivo Nacional, documentos sobre pessoas que não conhecemos, porque elas não ficaram registradas historicamente, mas que participaram da construção da cidade do Rio de Janeiro. Da construção dos afetos da cidade, das suas ruas. E, em cima disso, vou construir uma obra de ficção. Também haverá uma caixa-preta, que propõe que existam ali dentro documentos que ainda não podem ser acessados. Então, grosso modo, seriam leituras de documentos, o que se relaciona com um trabalho que fiz no Museu Imperial em Petrópolis. Vou falar brevemente sobre esse trabalho, que se chama A voz, porque ele vai explicar melhor o que vou fazer aqui no Arquivo Nacional.

No Museu Imperial, quando conheci o prédio e o acervo, percebi que não havia muitos, ou melhor, que eu me lembre, não havia ali, visíveis, documentos sobre os negros e a questão da escravidão. O único objeto que me lembro claramente de ter visto foi uma pulseira de ouro que pertenceu a uma escrava, que, por ser muito estimada da corte, recebeu uma joia. Era uma joia grande, uma pulseira grande de ouro. Aquilo me impressionou muito, porque eu achava que, sendo um museu histórico, deveria tratar diretamente dessas questões.

Então fiz um trabalho que eram Campos de som invisíveis, campos que só se podiam ouvir com fones de ouvido sem fio em todos os quartos do segundo andar do Museu Imperial (Figura 4). Em cada quarto fiz a leitura de um documento sobre a escravidão, relativo à escravidão, que irradiava nesses campos documentos que solicitavam a destruição de arquivos, uma lista de escravos inúteis por estarem velhos ou aleijados. Documentos, diversos documentos... Eram quatro ou cinco quartos e diversos documentos sobre a escravidão. Colocava-se um fone de ouvido e, ao fazer o passeio, exatamente da mesma forma como ele é proposto pela equipe do museu, você, com o meu fone de ouvido, ao passar pelo segundo andar, tinha acesso ao que eu gostaria que se ouvisse sobre essas questões fundamentais que eu não via sendo discutidas ali.

Esse trabalho se chama A voz e tem muito a ver com Histórias anônimas. O que são as histórias anônimas? A ideia da errância, a ideia do anonimato, a ideia da inutilidade. A ideia da não funcionalidade do homem é muito combatida, principalmente no nosso capitalismo selvagem brasileiro. Nós não temos esse direito de nos rebelar contra a normatividade da vida, então, quando nós somos rebeldes, somos logo enquadrados à margem. Só que acontece, eu acredito, que a força do afeto desses anônimos que constroem nossas cidades e nossas vidas não são as pessoas que são “dignas de serem documentadas e registradas”, como no caso do Museu Imperial. Elas também têm uma importância história, mas não

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constroem a estrutura do mundo. A estrutura do mundo é feita de pequenos afetos, e esses pequenos afetos têm uma força incomparável. Gostaria que meu trabalho aqui fosse justamente o de colocar para fora a história de pessoas de quem, é claro, vou ter apenas um recorte da história através de documentos, não vou ter como restaurar a situação. Mas posso colocar a história delas em evidência, dessas pessoas que tiveram uma força que é constantemente esquecida.

Segunda parte terminada, na terceira voltamos para a questão do controle do corpo. Existem várias formas de violência, a violência física tem acontecido incessantemente desde a ascensão do fascismo no Brasil, e nós temos nos preocupado muito com ela, porque ela surge cada vez mais na nossa rotina. Mas acho que existe uma nova forma de violência, que é uma violência imaterial com uma agressividade gratuita, e por que isso seria novo? A ameaça não é nova, mas essa ameaça mais a apropriação das mídias sociais, essa ameaça mais a apropriação das ferramentas tecnológicas produzem um adoecimento dos nossos corpos. A proporção que tomaram essas ameaças no atual cenário brasileiro, principalmente nos últimos meses, geraram o adoecimento de várias pessoas.

Além dos casos críticos que nós devemos combater imediatamente, relativos a situações de violência física contra cidadãos, estamos passando também por um outro tipo de violência, que é essa mutação da violência imaterial. E existe uma outra forma de violência imaterial que é justamente o controle da história, que é justamente negar ao indivíduo seu devido valor na história. Isso também nos

Figura 4 – A voz, 2008. Foto: Wilton Montenegro

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desmobiliza e agride o corpo de quem é desprezado, de quem, embora tenha sido protagonista e construtor do mundo, não se vê representado na história. Essa violência é que quero abordar em Histórias anônimas, levantando esses documentos e, através da leitura, da minha voz e da presença de uma caixa-preta, poder colocar em evidência.

Meu último trabalho, que está no meu site, chama-se Errância (Figura 5). Esse trabalho fala justamente desse sujeito anônimo, que é o sujeito que frui a cidade de uma outra maneira através da noite. Errância foi uma exposição onde microfonei o corpo de vários performers, artistas e não artistas. Pedi a eles que saíssem pela cidade nos lugares que costumavam se divertir e beber, e que ficassem até de manhã gravando esse período, essa passagem, sem nenhum tipo de regra, sem nenhum tipo de premissa. Que simplesmente fossem um instrumento de gravação desse delírio da multidão, desse encontro afetivo da multidão e também da efemeridade desse encontro, porque ele tem suas contradições.

Queria gravar esses corpos em andança pela cidade para poder juntá-los numa outra multidão que é essa instalação. Essa instalação tem tripés. No Centro Cultural Banco do Brasil foram seis. Quando se entra na sala, cada tripé com uma caixa contém um dia de gravação em lugares diferentes. Na Rocinha, no Leblon, na praça Tiradentes, na Lapa, em lugares diferentes... Juntas, essas gravações formam o som de uma multidão. À medida que se aproxima das caixas, ouvem-se os detalhes de cada dia, cada noite que as pessoas passaram na Errância. Esse

Figura 5 – Errância, 2015. Foto: Mario Grisolli

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sujeito que domina a cidade, esse sujeito que aceita a noite e o álcool como uma experiência do corpo, ele também trata de uma ressensibilização. Claro que não é a mesma coisa, não falo de uma errância por si, mas de uma errância que tem uma consciência, a consciência da importância da experiência do corpo. E, em última instância, é disso que trata o meu trabalho.

Tudo que falei é justamente sobre produzir uma experiência de sensibilização do corpo e de falar sobre as pessoas que se interessam por produzir essa experiência escapando das normas e das formas de controle que a sociedade tenta nos impor e que hoje atingiram um nível gravíssimo. Como falei, esse evento é mais importante do que nunca e nós somos mais importantes do que nunca nesse país, para podermos estar na trincheira, justamente na autonomia dos nossos corpos.

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A Hidra do Iguaçu

Cristiana Miranda1

As águas sempre encontram seus caminhos. Fluindo em contínuo movimento, dentro, sob ou acima de nós, elas estão em permanente circulação. Mas as águas também sabem ficar imóveis. Quando paradas elas formam um espelho cuja imagem nos devolve o nosso olhar, invertido e cristalino. Quanto mais escuro for o local onde se formou o espelho d’água, tanto mais nítida será a visão da imagem refletida. Na superfície imóvel do líquido, a imagem que vemos no espelho d’água nunca para de nos olhar.

Cheguei a Luanda no final do “cacimbo”, época fresca e muito nevoada que é o mês de agosto. Cacimbo é uma palavra em kimbundo, língua banto falada no norte de Angola, na região onde fica a cidade de Luanda. Cacimbo significa névoa, e é como é chamado o inverno em Angola. A cidade retumbou em meus sentidos como se soasse um “cinguvo”, o grande tambor usado pelos povos nyaneka-humbe2 para a comunicação entre as aldeias. O cinguvo emite um som parecido com o uivo do hipopótamo, é um tambor enorme feito de madeira e couro, com uma forma trapezoidal. A chegada a Luanda fez ferver os meus sentidos. As feras pareciam correr livres dentro de mim.

Em Luanda é possível perceber de forma absolutamente imediata aquilo que Lacan identifica como a preexistência de um olhar, “eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte” (Lacan, 1964). Tudo nos olha em Angola, os rostos, as paisagens, o vento, as águas, o sol e a noite. Em Luanda, também a terra vermelha, sobre a qual a cidade está erguida, nos olha e nos interroga, com a violência da poeira grossa que endurece nossos cabelos e faz arder nossos olhos. A experiência incontornável desse ver, ao qual estou submetida de modo original, foi um dos marcos de minha chegada a Luanda.

A relação descontínua entre o olhar e a visão ganhou, na minha percepção, tamanha intensidade que, por vezes, sentia-me paralisada diante do vazio, outras vezes percebia-me em pleno salto, experimentando um olhar surpreendente e inesperado, preenchido de visões. A compreensão da afirmação lacaniana de que o olhar passa pela visão chegou não sem angústias e medos. Como não poderia deixar de ser, ela trouxe consigo a percepção das lacunas, das faltas contingentes

1 Cineasta experimental, restauradora de cinema e professora do ensino superior. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/Uerj). Curadora da mostra anual Dobra (festival internacional de cinema experimental, Rio de Janeiro).

2 Nyaneka-humbe é o grupo étnico linguístico das nações tradicionais que habitam a província da Huíla, no sul de Angola.

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e daquelas que são constitutivas de meu olhar, sempre submetido ao jogo entre a luz e aquilo que não consigo ver.

Assim que cheguei fui tomada pela sensação de que tudo o que via precisava ser filmado, no entanto nada parecia mais difícil do que filmar em Luanda. A hostilidade da cidade me chegava com enorme intensidade. Para sair com a câmera e ter segurança ao caminhar pelas ruas com o equipamento, era preciso autorização da polícia e boa companhia, duas coisas para as quais eu precisava de tempo e sorte. Não eram apenas as dificuldades objetivas que me angustiavam e pareciam atrasar o andamento das filmagens, era preciso enfrentar o caráter evanescente e inapreensível de meu olhar, que parecia fragmentar minha própria relação com a luz. Como localizar o fenômeno a ser filmado nesse olhar que me cegava de luz, desde minha chegada às outras margens do grande mar?

No romance A maçã no escuro, Clarice Lispector nos joga em uma aventura misteriosa onde um homem, em uma fuga silenciosa e solitária, invade a noite de um vasto campo, até encontrar um sítio onde vivem duas mulheres. Os sentimentos entre os personagens são sutilmente descritos por Clarice, em cenas absolutamente cinematográficas, que contêm uma duração repleta de imagens e sons. Com simplicidade, a autora descreve a percepção dos personagens e a definitiva constatação de estarem sendo vistos pelo olhar de tudo que os rodeia. O campo e o sítio olham, o sol da tarde olha, a terra seca olha e os personagens se sabem imersos nesse olhar.

De uma personagem, Clarice escreve em um momento do romance: “Um pouco espantada, o calor da tarde então envolveu-a, inquieto, pesado. Nada se transformara no campo que continuou cheio de imóvel sol. No entanto por um instante a moça não o reconheceu e não se reconheceu, e se olhasse ao espelho veria grandes olhos olhando-a mas não se veria” (Lispector, 1956).

Com o olhar preenchido por essa visão dos grandes olhos que todo o tempo me olham, pesquisei a baixa de Luanda, as construções coloniais do centro da cidade. Buscando os sobrados coloniais, me percebi olhada por suas ruínas, seus simulacros e pelos enormes arranha-céus que foram e estão sendo construídos naquela região. Caminhar por Luanda em busca de um centro histórico é uma tarefa desoladora. Os antigos sobrados do século XVII e XVIII estão abandonados, muitos estão vazios e em estado de enorme precariedade, mantendo em pé apenas as grossas paredes da fachada. O largo do Pelourinho foi demolido e hoje é um estacionamento.

Ao realizar esse percurso a pé pelo centro de Luanda, nas muitas caminhadas que fiz em busca das marcas da história presentes na cidade, quase sempre me vinha a lembrança dos primeiros versos de um longo poema de Derek Walcott, “The sea is History”:

126 I vidas precárias: a experiência da arte na esfera pública

Onde estão os seus monumentos, suas batalhas, mártires?

Onde está sua memória tribal? Senhores,

Nesta abóbada cinzenta. O mar. O mar

Trancou-os. O mar é História.

(Walcott, 1973, p. 76, tradução nossa)3

Esses versos foram ecoando em minha mente de forma cada vez mais intensa nos meses que passei em Luanda e ao longo de todo o tempo que estive em Angola. “O mar é história.” A ideia central do poema de Walcott já estava presente no início de minha pesquisa, mas minha estadia em Angola trouxe a constatação, da maneira a mais evidente e muitas vezes desesperada, desse naufrágio dos documentos da história, dessa impossibilidade de conhecê-la a partir de seus monumentos e marcos oficiais.

Experimentei novamente o sentido amargo das palavras de Walcott quando estive em Benguela. No calor ensolarado da praia Morena está o galpão do século XVIII, casarão histórico que, durante mais de um século, abrigou prisioneiros antes de serem embarcados nos navios negreiros rumo às colônias na América, mais especificamente para o Rio de Janeiro. Já tendo sido o museu de antropologia de Benguela (o casarão e o museu estão fechados), suas enormes portas estão gradeadas com grossas correntes e não há ninguém no interior. Não há uma coleção de objetos históricos sobre a escravidão, não há um museu, não há documentos a serem pesquisados, nenhuma placa ou indicação sobre o histórico daquele lugar.

Apenas as vigas do antigo trapiche onde se encostavam as caravelas para o embarque dos prisioneiros ainda permanecem fincadas na areia, recebendo as ondas suaves do mar da praia Morena. Em frente ao galpão centenário, elas são as marcas do naufrágio dos documentos da história; silenciosas e resilientes, ali permanecem como as únicas testemunhas de uma história que uniu continentes e cultivou pérolas em segredos guardados nas travessias atlânticas que formaram nossa história.

Em Luanda, a rua Direita, que ligava o Pelourinho ao antigo porto, ambos destruídos, estende-se próximo à nova marginal, com construções coloniais que misturam casas da primeira metade do século XX, no estilo art déco, e alguns sobrados arruinados do século XVII. Fincados nesse cenário estão os grandes arranha-céus, sofisticados em seus arrojos arquitetônicos e muitos deles inacabados. Obras monumentais interrompidas que se impõem à paisagem da cidade, como um desconcertante monumento à crise econômica que assola o país.

3 No original: “Where are your monuments, your battles, martyrs?/Where is your tribal memory? Sirs,/In that grey vault. The sea. The sea/Has locked them up. The sea is History.”

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Essa foto foi feita do terraço de um grande prédio em um bairro de Luanda, onde funciona um centro médico. Dali é possível ver alguns dos arranha-céus do centro da cidade cuja construção foi interrompida, deixando gigantescos esqueletos de cimento a se impor na paisagem da cidade. São prédios de quase

Figura 1 – Praia Morena, Benguela, 2018. Foto: Cristiana Miranda

Figura 2 – Centro de Luanda, 2018. Foto: Cristiana Miranda

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trinta andares que sequer podem ser ocupados por moradores em situação de rua, apenas permanecem vazios e verticais, com suas vigas vazadas ao vento que sopra do mar, observando a cidade que não consegue deixar de vê-los.

Essa foto foi feita na fortaleza de São João, nas margens da baía de Luanda. O extracampo do lado esquerdo da imagem é o mar. O extracampo do lado direito é o largo do Baleizão. Os prédios entre as avenidas de carros que deslizam pelo aterro da nova marginal misturam três momentos históricos da cidade: a fase colonial durante a Primeira Guerra Mundial, o art déco dos anos 1920 no casarão rosa à esquerda, o modernismo do final dos anos 1950, na fase colonial do pós-guerra, o prédio alto à direita e, ao fundo, o arranha-céu do século XXI.

O largo do Baleizão é um pequeno largo localizado em frente à descida da fortaleza, que ainda mantém um conjunto completo de sobrados originais do século XVII. Os sobrados encontram-se em condições muito precárias. O Baleizão é um dos lugares mais impactantes do centro de Luanda. Antes do aterro para a nova marginal, ele ficava nas margens da baía; pelas janelas dos seus grandes sobrados podia-se ouvir o canto das águas a soprar os segredos da “Kianda”.4

4 Kianda é o nome da divindade associada ao mar na mitologia kimbundo, está associada à sereia e, em alguns aspectos, assemelha-se ao orixá que, nas religiões afrodescendentes praticadas no Brasil, chamamos de Yemanjá.

Figura 3 – Centro de Luanda, 2018. Foto: Cristiana Miranda

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As construções dos séculos XVII e XVIII em Luanda são testemunhos materiais dos vínculos entre Angola e Brasil. Os sobrados eram feitos com madeira vinda das terras de Pindorama, trazidas nos navios portugueses. A madeira do Brasil vinha como lastro nos porões das caravelas que voltavam levando as “peças de ébano”, tal como eram denominados, pelo calão do tráfico negreiro, os prisioneiros vendidos aos comerciantes de escravos. Outra peça importante do comércio triangular que fazia parte das construções coloniais eram as conchas. Durante muito tempo, elas foram utilizadas como moeda nas transações comerciais e como matéria-prima para a argamassa das paredes que levantaram os muros das casas coloniais. A terra e a água estão presentes na sólida estrutura dessas antigas construções, madeiras de árvores centenárias vindas das outras margens do oceano e os tesouros do fundo do mar, concentrados nas formas circulares de que são feitas as conchas.

Os centros históricos das cidades que viveram a colonização são museus a céu aberto da ocupação colonial. Em Luanda não é diferente. Mesmo estando em explícito estado de abandono e alarmante precariedade, a baixa de Luanda contém traços valiosos das marcas da invasão colonial portuguesa, que evidenciam suas estratégias de ocupação e dominação. Sob a poeira das ruas e becos do centro de Luanda, muitas vezes irreconhecíveis pelo abandono a que estão submetidos, permanecem guardados importantes marcos do processo colonial e também da luta pela sua libertação.

Muito próximo ao largo do Baleizão está uma pequena praça arborizada com um curioso monumento que guarda um interessante marco da independência. O centro da praça tem um pedestal enorme, todo feito de pedra, com paredes muito largas onde está esculpido o brasão da Coroa portuguesa. Sobre esse pedestal não existe nenhuma estátua, apenas grandes luminárias que apontam para baixo.

No pedestal estava localizada a estátua de Paulo Dias de Novais, o “herói” colonizador português que foi morto na batalha de Massangano, quando os portugueses retomaram definitivamente o controle da colônia em 1589. Hoje o monumento está limitado ao seu pedestal, a estátua do colonizador foi retirada em 1975 pelas forças guerrilheiras recém-vitoriosas na luta pela independência. Além de remover a estátua, também foram cortadas as cabeças das figuras humanas que adornam o brasão português.

O pedestal sem a estátua e o detalhe das cabeças cortadas no brasão português chamaram especialmente a minha atenção. Lembrei-me da estátua de Pedro I localizada na praça Tiradentes no centro do Rio de Janeiro. É um monumento onde a figura do imperador está imponente sobre um cavalo, no topo de um enorme pedestal, em que foram esculpidas as figuras de homens e mulheres tupinambás, junto com algumas plantas e animais que representam a fauna e a flora da mata atlântica.

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Mesmo depois de tantos séculos após a independência, a República e toda a história da frágil e conturbada democracia brasileira, o monumento que glorifica a figura do colonizador ainda está intacto em nossas praças. Estará ele também ainda intacto em nosso imaginário?

Quando realizei Sobre aquilo que nos diz respeito, o gesto principal do filme foi cobrir as estátuas romanas do jardim suspenso do Valongo com mantos de palha. Nesse gesto, que marca a afirmação do trabalho, está presente a discussão sobre o convívio com os símbolos da colonização nos monumentos públicos da cidade. Em Luanda essa discussão se coloca de maneira completamente diferente. A independência de Angola foi o resultado de uma guerra que envolveu uma longa luta de guerrilha contra o colonizador, e a vitória foi finalizada com a degola física e simbólica dos soldados portugueses e seus símbolos de poder. Esses símbolos foram destruídos nos pequenos detalhes: não bastou retirar a estátua do colonizador, foi necessário mutilar o brasão imperial.

O brasão português mutilado no monumento em Luanda é como um traço da conturbada relação entre memória e destruição existente nas cidades que viveram processos de colonização. As experiências históricas experimentadas por Brasil e Angola são diversas em muitos e importantes aspectos, mas estão inevitavelmente conectadas. Quase como uma eterna condenação de viverem juntas os mesmos traçados triangulares, que marcaram as encruzilhadas históricas de um processo de invasão e colonização que uniu três continentes.

Figura 4 – Detalhe do brasão com as cabeças cortadas, Luanda, 2018. Foto: Cristiana Miranda

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Angola despertou o apetite de meu olho, filmar foi um dos meus maiores desejos desde que toquei com os pés essas outras margens do Atlântico. A necessidade de alimentar meu olho com imagens trazia uma pesada bagagem: o desconforto que me provocava a hostilidade dos olhares que recebia. Para filmar era necessário não apenas encontrar o melhor enquadramento e a melhor hora da luz: era preciso também estabelecer uma estratégia para enfrentar a violência do olhar ao qual estava submetida. Se as imagens que ao fim consegui criar são belas, ainda não saberia dizer. Afirmo, no entanto, que elas são o registro de meu olho como desesperado pelo olhar.

Estar em um país estrangeiro é ter o outro diante dos olhos. É mesclar na experiência cotidiana das diferentes relações interpessoais a sensação de estar dentro e de estar fora. Nessa mistura de pertencimentos e exclusões, a face do outro nem sempre se impõe como uma exterioridade. Longas viagens nos fazem compreender que o fora não é o outro em nenhum sentido simples.

Ver-se na diferença e perceber-se visto por ela é uma experiência que se intensifica sempre que estamos em viagem. Quando essa viagem atravessa oceanos, as distâncias externas ecoam na imensidão do que trazemos dentro de nós. Não se reconhecer torna-se algo cotidiano, não porque nos tornamos outro, mas porque o outro se instala em nós. Crescem nossos olhos e grandes ficam os olhos que nos olham.

Colocar em questão a condição do outro como exterioridade é um aspecto importante de algumas obras que poderiam ser agrupadas dentro do que Hal Foster chamou de virada etnográfica na arte contemporânea. No texto “O

Figura 5 – Pedestal sem a estátua, Luanda, 2018. Foto: Cristiana Miranda

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artista como etnógrafo” (Foster, 2014), o autor desenvolve alguns conceitos para analisar obras que investigam a exterioridade do outro a partir do deslocamento experimentado pelo artista na realização de trabalhos em que algum tipo de viagem é necessário, de tal forma que a pesquisa artística acaba por ganhar certos traços de trabalho antropológico.

Outros continentes e outras línguas nos colocam em contato com diferenças cujo desafio é experimentar o outro não da maneira antiga, onde ele permanece como o contraponto do eu, mas como sendo o outro, ele mesmo, um eu. Esse reconhecimento de uma alteridade no interior do próprio eu nos permite estabelecer com o outro novas formas de relacionamento, em que a diferença não é apenas permitida, mas apreciada.

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O paraíbaProfecia e prenoção nos fluxos migratórios

Christus Nóbrega1

Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara.

Jair Messias Bolsonaro

(presidente do Brasil, 19 jul. 2019)

Sou paraibano nascido na capital, João Pessoa – a cidade mais oriental das Américas. É lá onde o sol nasce primeiro, logo às 5h25 da manhã. Há 15 anos migrei do meu estado natal para Brasília (DF). Refiz o mesmo trajeto que centenas de outros conterrâneos fizeram na década de 1960, quando se mudaram para o Distrito Federal com a utopia de construir a nova capital do Brasil. Assim como eles, também vim para Brasília com o mesmo desejo utópico de construí-la e ser construído por ela, no papel de artista e acadêmico.

Provável que esse estado movente que me pus a fazer no passado deva ter, de certa forma, potencializado o meu desejo contemporâneo pela pesquisa poética da viagem. Nas últimas décadas, tenho me dedicado a experimentar o deslocamento e a espacialidade e suas noções de território como método de produção artística. Após dada quantidade de viagens com fins de criação, pude perceber um certo padrão de meu estado de trânsito. Esse padrão encontrou consonância em três importantes arquétipos mitológicos. São eles: (1) o mito do Exu, da umbanda; (2) o oráculo O Carro, a sétima carta do tarô e (3) o Filho Pródigo, personagem principal da parábola bíblica de Lucas (15:11-32). Para fins de percepção metodológica, distribuo esses três mitos em três extremidades de um triângulo (que por vezes é equilatero, outras, escaleno, ou então isósceles). Em qualquer uma dessas configurações triangulares, cada uma das figuras mitológicas está conectada às outras duas, não podendo existir uma sem a influência das outras, variando apenas em graus de aproximação e, por consequência, de contaminação. Esse triângulo acabou por se transformar em uma mitodologia da viagem.

Com Exu, aprendi a abrir e fechar caminhos com a malandragem daquele que é um exímio negociador e mensageiro entre mundos. Guiado por ele, passei três meses de pesquisa na China (Figura 1), negociando entre censura e liberdade,

1 Artista plástico, professor e pesquisador, atua nos cursos de graduação do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB) e no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV/UnB). Foi premiado pelo Programa de Patrocínio do Centro Cultural Banco do Brasil (2017) e indicado para o Prêmio Investidor Profissional de Arte (Pipa, 2017).

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agenciando as idiossincrasias entre oriente e ocidente, o que resultou na exposição Dragão Floresta Abundante (CCBB/Brasília, CCBB/Belo Horizonte e Bienal de Curitiba). Também sob sua regência percorri cerca de três mil quilômetros, cruzando sozinho o deserto australiano (Figura 2), refazendo o mesmo percurso que Priscilla, a rainha do deserto, fizera no filme de 1995.

Figura 1 – Fabrica de pipas, 2017. Dimensões variáveis. Performance. Contrato, relógio de ponto, uniforme, andaimes, instrumentos para fabricação de pipas, gerente de produção

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Figura 2 – Talvez deserto, 2019. Dimensões: 250 x 130 cm. Fotografia

Figura 3 – Ilha do Imperador, 2014. Série Expedição outono. Dimensões: 90 x 150 cm. Metacrilato

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Com O Carro, aprendi a viajar de forma extrativista, coletando o que me interessava. Entre outras peregrinações em cima desse veículo, estive na Amazônia à procura de folhas gigantes no projeto Expedição outono (Figura 3). Com O Carro, também viajei para comprar cabelos de mulheres rendeiras para o projeto Per capita. De carro, viajo para conquistar (Figura 4).

Com o Filho Pródigo, aprendi a fazer as viagens de retorno aos pontos de gênese. Nessa persona, volto a Chã dos Pereira, distrito do pequeno município paraibano de Ingá, terra de minha avó, para realizar o projeto Labirinto com as rendeiras da região (Figura 5). Volto também para Pilar, fazenda que inspirou José Lins do Rego a escrever Menino de engenho. Volto para Cabaceiras, no Cariri paraibano.

Porém, diferentemente de como usualmente se interpreta essa parábola, viajo como Filho Pródigo não com o objetivo de receber o perdão, mas sim com a vontade de ganhar a festa do Rei-Pai. Só a celebra os que viveram as glórias da partida. Nesse contexto, todas as minhas viagens que têm por princípio o reencontro com a terra ancestral, com a genealogia, com os estados de raiz, são guiadas pelo mito do Filho Pródigo. Assim, tenho retornado constantemente à

Figura 4 – Compra-se, 2014/2015. Série Per capita. Dimensões 45 x 300 cm (cada). Pigmento mineral sobre papel de algodão

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Paraíba – seja física ou metaforicamente – para criar a partir da manipulação do material simbólico de cada retorno. É com a regência do Filho Pródigo que essa pesquisa se inicia.

Ao ser convidado pelo teórico da arte e curador prof. dr. Luiz Cláudio da Costa (Uerj) a participar do colóquio Vidas Precárias: A Experiência da Arte na Esfera Pública, que teve como objetivo reunir teóricos, historiadores e artistas em torno da pesquisa do arquivo no vasto acervo do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, me vi como Filho Pródigo, imputado a eleger minha genealogia como ponto de partida desse processo investigativo. Como paraibano, interessei-me em problematizar o fato do nome de meu povo ter se transformado em uma expressão de injúria naquela cidade.

Assim, o projeto O paraíba: profecia e prenoção nos fluxos migratórios nasce do interesse de investigar a história da chegada dos primeiros paraibanos à capital do Rio de Janeiro. Quem eram? De onde saíram? Para onde foram? O que deixaram para trás? O que trouxeram? Por que migraram? O que encontraram na nova terra? O que faziam antes e o que fizeram depois de sua chegada? Como se transformaram nesse lugar? Como transformaram esse lugar? A partir da análise de documentos históricos, disponíveis na sede do Arquivo Nacional – entre fotos, cartas, reportagens e outros –, pretendo encontrar algumas respostas para essas questões, bem como levantar outras tantas perguntas. Através do estudo desse acervo material, desejo problematizar a construção do conceito de precariedade atrelada ao termo paraíba no Rio de Janeiro.

Partiremos de três conceitos-chave da etimologia da palavra – os quais pretendo confrontar com a análise da documentação levantada. O primeiro tem sua origem nas expressões em tupi pa’ra e a’iba, que significam respectivamente “rio” e “impraticável à navegação”. O nome foi inicialmente dado ao rio que banha todo o estado, sendo um dos mais importantes devido a sua extensão e potência

Figura 5 – Série Labirinto, 2017. Dimensões: 150 x 100 cm. Pigmento mineral sobre linho rendado

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econômica. Do ponto de vista hidrográfico, é a espinha dorsal da civilização paraibana, por isso acabou emprestando o seu nome ao estado. A segunda especulação sobre a origem do nome foi apresentada no romance Iracema, de 1865, de José de Alencar (1829-1877), o qual sugere que o significado tenha nascido da expressão tupi para-hyba, que significa “rio que é braço de mar”. Por fim, a terceira proposição genealógica sugere que paraíba provenha do nome indígena para a árvore Simarouba Versicolor, que floresce abundantemente na região e é popularmente denominada de pau-paraíba.

Como é possível observar, as três explicações supracitadas têm origem em língua de matriz indígena – como é bastante comum a outras nomeações de estados, cidades, rios, plantas e animais brasileiros – que, em sua maioria, são de origem tupi, idioma que caracterizou a linguagem dos indígenas encontrados pelos exploradores e colonizadores, a partir do século XVI. Porém, como um nome atrelado às qualidades de um rio e uma suposta árvore, que posteriormente foi usado para nomear os habitantes de uma região, transforma-se em uma forma de injúria?

É de conhecimento popular que a palavra paraíba é, no Rio de Janeiro, carregada de sentido pejorativo quando dirigida a uma pessoa. Para ilustrar tal argumento, basta retomarmos a epígrafe2 deste artigo, onde destacamos uma sentença proferida pelo presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro – paulistano que viveu a maior parte de sua vida no próprio Rio de Janeiro. Mas é preciso lembrar que essa injúria não é fato atual. Há mais de duas décadas, por exemplo, em 1997, o ex-jogador de futebol do Vasco da Gama, Edmundo Alves de Souza Neto, usou o termo para ofender o juiz cearense Dacildo Mourão, que arbitrava uma partida que o atleta disputava – apenas para citar outro exemplo de notória publicidade.

Vários outros cariocas usam paraíba para nomear genericamente qualquer indivíduo do Nordeste. Usam paraíba para simplificar as diferenças culturais dessa grande e plural região. Usam paraíba para furtar a subjetividade de um ser. Usam paraíba para diminuir os saberes de uma pessoa. Usam paraíba para banalizar a história individual e coletiva de um povo.

Ao transformar um substantivo próprio em adjetivo, corrompem o estatuto da língua portuguesa com o objetivo de corromper quem se nomeia.

2 Em 19 de julho de 2019, em um café da manhã com jornalistas, Jair Messias Bolsonaro usou o termo paraíba para se referir ao conjunto de governadores do Nordeste. O presidente conversava com o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, sem saber que seu microfone estava ligado. O áudio da con-versa foi, então, captado e divulgado pela imprensa. No dia seguinte, o presidente tentou negar que tivesse utilizado a expressão de forma pejorativa, usando, no momento da justificativa, um chapéu de sertanejo por alguns minutos.

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Transformam um sujeito em coisa. Ridicularizam sua memória individual e coletiva. Menosprezam sua geopolítica. Limitam seus saberes que, com a nomeação, passam a ser apenas o de servir – saber servir na portaria, saber servir na copa, saber servir no elevador, saber servir na loja. Ao escrever a palavra Paraíba como adjetivo paraíba, tiram-lhe a grandeza da inicial maiúscula que lhe é devida por direito gramatical, diminuindo-a com a banalidade de uma minúscula. Cometem crime gramatical e crime de injúria. Segundo o Código Penal em seu artigo 140, é crime “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. Em seu § 3º, a pena é aumentada se o crime for cometido, entre outras razões, por referência à etnia ou origem de alguém, passando de multa e detenção de seis meses para multa e até três anos de reclusão.

Ao nomear, damos forma ao invisível. Fazemos existir o que não existia. Criamos uma linha territorial que, ao mesmo tempo que torna presente, também aprisiona. Nomear é exercer poder e controle sobre aquilo a que se lança o palavreado. O poder, como nos lembra Michel Foucault (2014), não é exercido apenas sob a forma tradicional do uso de aparelhos repressores que impõem força física à coação dos corpos. Mas o poder se faz presente por meio dos discursos. Aqui, ampliam-se todas as formas de discursos e não só aqueles proferidos nos lugares clássicos de poder. A fala de rua, a mentira repetida que se torna naturalizada, as injúrias compartilhadas pelo pensamento social dominante têm o poder de se imbricar na própria estrutura da linguagem e, por consequência, na subjetividade dos indivíduos. Dessa forma, a nomeação transforma-se em um poderoso aparelho repressor. Agora te pergunto: – Qual é sua graça, doutor?

A origem da corruptela da palavra Paraíba está intrinsecamente relacionada à intensificação dos fluxos migratórios de nordestinos para o Sudeste a partir da década de 1960. Enquanto São Paulo recebeu número elevado de baianos, o Rio de Janeiro foi destino preferencial dos paraibanos. A partir dessa época, os termos baiano e paraíba começam, então, a ter uso no sentindo denotativo, como substituto do termo nordestino, e conotativo, de pessoa ignorante e desqualificada – respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A partir dos anos 1960, um grande número de nordestinos foi forçado a sair do campo em busca de trabalho nas grandes metrópoles. Expulsão potencializada tanto pela modernização dos processos agropecuários, quanto pela política de enfraquecimento dos crescentes movimentos sociais rurais. Um exemplo da conturbada política de ruptura do nordestino com seu lugar foi a criação do Estatuto da Terra – lei 4504, de 30 de novembro de 1964 –, um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo governo militar no Brasil, que foi concebido tendo como um de seus objetivos o de atravancar os movimentos campesinos que se multiplicavam durante o governo João Goulart.

A Paraíba, dentro do contexto dos fluxos interestaduais, atuava como a região que mais enviava migrantes para a maioria dos outros estados do país. Segundo

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dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), proporcionalmente, coube ao Rio de Janeiro receber 32,72% do total desse fluxo3 paraibano. O complexo, problemático e crescente processo de industrialização da década de 1960 no Brasil intensificou dramáticas alterações no cenário das migrações. Um inédito contexto urbano-rural começou a se desenhar com problemas estruturais, que surgiram juntamente aos novos padrões de relações sociais, de produção e estilo de vida. Ainda de acordo com o IBGE, em 2015 havia cerca de 330 mil paraibanos morando no Rio de Janeiro, percentual que equivale a cerca de 4% da população e parte expressiva dos cerca de 15% de migrantes no total da população carioca.

Sabe-se que o perfil de grande parte dos migrantes paraibanos das décadas de 1960, 70 e 80 é de baixa escolaridade e poucas posses. Muitos eram analfabetos e a palavra escrita pouco ocupou espaço em seu universo de conhecimento. Foram levados desde cedo a se dedicar integralmente ao trabalho. Por isso, é raro encontrar material escrito por seus próprios punhos. Raríssimos ou inexistentes são seus diários. Como não eram ilustres, não houve interesse dos arquivos públicos em preservar um volume expressivo de suas cartas e bilhetes, o que dificulta muito conhecer sobre o que pensavam, sonhavam, temiam. Pela ausência de suas vozes, pouco se sabe (ou se quer saber?) sobre o modo como eles próprios percebiam o mundo e como se davam suas relações sociais de lazer, afeto e trabalho. Como eram pobres, não tiveram bens para fazer inventários, não gerando, assim, documentos que facilitassem reconstruir sua cultura material.

Por esses e inúmeros outros motivos, pesquisar sobre essa memória mostra-se desafiador, pois pretende pôr luz sobre uma história que se assemelha a uma assombração – algo translúcido, sem foco, sem consistência e que pode ser visto apenas pelo canto de olho, recorrendo às habilidades de nossa visão periférica, mas dificilmente encarado de frente. Então, como pôr luz sobre uma assombração, já que suas próprias naturezas são conflituosas? Eis o desafio da poesia.

Referências

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Pau-lo: Almedina Brasil, 2014.

GRAZIANO DA SILVA, J. (coord.). A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

______. Estrutura agraria e produção de subsistência na agricultura brasileira. São Paulo: Hu-citec, 1978.

3 É importante destacar que, dentre os estados da região Centro-Oeste, o Distrito Federal recebeu cerca de 7% do total do fluxo dos paraibanos, período em que Brasília ainda se encontrava em cons-trução.

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MORENO, Valdecir Teófilo; MOREIRA, Ivan Targino; QUEIROZ, Silvana Nunes. Fluxos migra-tórios paraibanos: síntese dos últimos 40 anos. VII CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINO-AMERICANA DE POBLACIÓN e XX ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Disponível em: http://abep.org.br/xxencontro/files/paper/730-355.pdf. Acesso em: 6 abr. 2019.

PALMEIRA, Moacir. Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, v. 3, n. 7, p. 87-108, set./dez. 1989. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-t&pid=S0103-40141989000300006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 mar. 2019.

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Seguem os destroços celestes

Leila Danziger1

Com mastros cantados, apontados para a terra

seguem os destroços celestes.

Nesta canção de madeira

cravas os dentes com força.

Tu és a flâmula

sólida de canto.

Paul Celan

(tradução de Raquel Abi-Sâmara)

Introdução

Praça Onze

A pesquisa, apresentada no contexto do colóquio Vidas Precárias, volta-se para uma praça no coração da memória do Rio de Janeiro: a Praça Onze. Pretendo investigar vestígios da convivência, nas primeiras décadas do Brasil republicano, de duas comunidades marginalizadas: imigrantes judeus, que fugiam do antissemitismo em diversas localidades da Europa, e brasileiros afrodescendentes recém-libertos. Em Paisagem estrangeira: memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro (2007), a arquiteta Fania Fridman mostra, a partir de pesquisas do urbanismo, que, nas imediações da Praça Onze, judeus se misturaram aos escravos libertos, às prostitutas e a outros estrangeiros, e teriam deixado marcas no espaço urbano. Já a jornalista Beatriz Coelho Silva afirma, em livro publicado em 2015, que a história de negros e judeus na Praça Onze não teria ficado na memória desses grupos, pois em suas narrativas parecem excluir-se mutuamente. Mas essa convivência deixou marcas na ficção. Em O preto que falava ídiche, Nei Lopes usa como epígrafe uma lembrança de Samuel Malamud, advogado e escritor nascido na Ucrânia, antigo morador da Praça Onze, que chegou ao Brasil em 1923, tornando-se liderança na comunidade judaica que então se formava. Em Recordando a Praça Onze, Malamud escreve: “Recordo-me como todos admiravam o empregado de cor que desde menino trabalhava numa fábrica de capas e

1 Artista plástica, professora e pesquisadora, atua nos cursos de graduação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Programa de Pós-graduação em Artes (PPGArtes/Uerj). É bolsista Produtividade do CNPq, do Programa Prociência da Uerj/Faperj e Cientista do Nosso Estado (Faperj). Participou de várias exposições no Brasil e no exterior.

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que falava fluentemente o ídiche. O seu patrão nunca conseguiu aprender o português... (Lopes, 2018, p. 7)”.

No romance de Nei Lopes, descrito por Hugo Sukman como um “misto de realismo mágico afro-judaico”, entrelaçam-se a estrela de Davi e o machado de Xangô, fazendo surgir na ficção um espaço de trocas culturais efetivamente inéditas.

Meu projeto de pesquisa busca investigar, na especificidade das práticas artísticas, os possíveis indícios desses contatos, fricções e utopias. A língua ídiche, falada pelas comunidades judaicas do leste europeu (dizimadas pelo nazismo) e também por Nozinho, personagem de Nei Lopes, será um dos fios da investigação. Na Praça Onze, havia a biblioteca Scholem Aleichem, fundada por imigrantes judeus e marcada, entre outros aspectos, pelo compromisso com os espectros das políticas de esquerda. Desnecessário lembrar que Aleichem, nascido na Ucrânia, é figura central na literatura ídiche, essa língua, que, como lembra Kafka, é feita apenas de palavras estrangeiras.

Elas não descansam nele, mas se mantêm vivazes e irrequietas, do jeito que eram quando foram capturadas. Levas migrantes percorrem o jargão de uma ponta à outra. Todos estes alemães, franceses, ingleses, eslavos, holandeses, romenos, e até mesmo latinos, são tomados no interior do jargão pela curiosidade e pela inquietação – já é preciso força para manter estas línguas neste estado em que, juntas, contêm-se umas às outras. (Kafka, 2009)

O ídiche seria, portanto, uma língua que não tem nada de próprio, língua híbrida, pura porosidade. Sua presença neste projeto indica que ele é orientado pela profunda atenção ao que surge nas fricções e nas trocas feitas na Praça Onze, lugar central na formação cultural do Rio de Janeiro.

Se a primeira etapa da pesquisa é voltada para o levantamento de documentos e vestígios das comunidades que viveram na localidade (vestígios materiais, textuais, iconográficos e sonoros), a segunda etapa diz respeito ao desenvolvimento de procedimentos e operações centradas na ideia de edição e montagem – cerne das pesquisas que venho desenvolvendo há vários anos, buscando a construção de imagens dessas comunidades de excluídos. Que operações sensíveis de associação e montagem são capazes de trazer o documento histórico para o aqui e o agora do nosso presente? Como responder à tarefa de produzir alguma redenção pela arte? A atenção à qualidade dos gestos desenvolvidos no decorrer de minhas práticas são vitais no projeto. A fotografia, a fotogravura e o carimbo são importantes meios plásticos nos processos de edição. Que gesto é editar? – eis a pergunta que vem percorrendo minhas pesquisas.

Em seguida, apresento, na forma do ensaio, algumas reflexões sobre o projeto Navio de emigrantes, que contou com o auxílio das bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq e Jovem Cientista do Nosso Estado/Faperj (2010 – 2013) e foi

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apresentado em exposição individual nas galerias Vitrine (Caixa Cultural Brasília, 2018) e Neuter Michelon (Caixa Cultural São Paulo, 2019).

Almanzora, Aurigny, General Artigas, Conte Grande

Suas lembranças da travessia se concentravam em um único gesto: buscar debaixo de pilhas de livros e papéis um pequeno atlas – Deutschland und die Welt [A Alemanha e o mundo] –, que ele contava ter consultado ao longo da viagem que o trouxe com os pais ao Brasil. Nenhuma lembrança do percurso, a não ser o manuseio daquele livro. Entre suas páginas, num pequeno formulário de cor indefinida da companhia de navegação Chargeurs Réunis, lê-se o nome do navio Aurigny, que os transportou de Hamburgo ao Rio de Janeiro, passando por Antuérpia, Le Havre, La Coruña e Casablanca. Em 24 de dezembro, o navio atracou depois de 25 dias no mar. Para trás, uma nação à qual acreditaram pertencer, a Alemanha, criminosamente remodelada pelas leis raciais de Nuremberg, que mutilavam o conceito de cidadania, tornando-o restritivo e excludente em todo o Reich. O envelope 708, da Relação de Vapores número 378, que contém os documentos do navio Aurigny, documenta o desembarque de 42 passageiros – 32 imigrantes judeus –, entre eles Alfred (49 anos), Irene (37) e Rolf (14), meus avós e meu pai. O navio Aurigny, em sua dimensão quase messiânica, passou a integrar o mito de origem familiar – a chegada à terra redentora, como meu pai se referia ao Brasil.

Figura 1 – Navio de emigrantes. Vista da exposição. Caixa Cultural São Paulo [2019] Foto: Wilton Montenegro

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Este projeto teve como senha, além do navio Aurigny, alguns outros nomes próprios. Em contato com familiares e amigos, surgiram o Almanzora (26/12/1938, com Erich, Klara e Helga Abraham – tios-avós); o General Artigas (17/8/1939, com Hilde, Martin e Edith Seligmann – a partir de Márcio Seligmann-Silva); o Conte Grande (4/4/1939, com Franca Cohen Gottlieb – a partir de Raul Gottlieb).

Ao lidar com esses documentos, pesquisados no Arquivo Nacional, desejei simplesmente abri-los, interrogar suas lacunas e espaçamentos, misturar as diferentes listas, lançá-las novamente no presente, numa grande arca de nomes e destinos, que quer abarcar não apenas os que aqui encontraram um porto, mas aqueles, muito mais numerosos, que o buscaram inutilmente. Compreendo as listas em si mesmas como embarcações, “pedaços de espaço flutuantes”, como Foucault define os navios, heterotopias máximas, que abrigam os nomes dos passageiros e suas respectivas informações – idade, sexo, religião, profissão (inventadas, em sua maioria), estado civil, porto de procedência, último endereço no país de origem e destino.

Em clara homenagem a Lasar Segall, o título deste projeto faz referência a uma de suas pinturas mais célebres, realizada em 1939/41, quando navios lotados de refugiados se lançavam nos mares. Mas na tela de Segall, a embarcação não parece orientar-se à terra, ao porto, mas ao céu, como observou com precisão Paulo Sergio Duarte (1987): “o plano em que a imagem se realiza, ascende, se eleva [...]”. A embarcação, “paradoxalmente, navega para cima, como se independentemente das tempestades, passadas ou futuras, sua direção se perdesse no infinito, não apontando para nenhum porto.” E sabemos bem que portos inalcançáveis fazem surgir “covas nos ares”, na inscrição poderosa da poesia de Paul Celan, aquela que para Theodor Adorno responde de modo legítimo – ou seja, na infinita discrição – ao horror extremo.

Mediterrâneo

No início dos anos 2010, enquanto fazia o levantamento das listas de passageiros no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, o mar Mediterrâneo se encheu de embarcações desesperadas e precárias. Lampedusa, Lesbos, Kalymnos, Sète são alguns pontos em uma rota de fuga e de morte, que está longe de ter sido apaziguada. A série Mediterrâneo é feita de arquivos encontrados na internet, vídeos que parecem quase tocar o real, jogados na rede como uma garrafa ao mar, embora sempre sob a perspectiva do salvamento. Ao lidar com o fluxo de visualidade que me chega pelos meios de comunicação, pergunto-me o que fazer para que a textura da imagem contenha de alguma forma o desastre. Trabalho com informações retiradas de sites de notícias, mas também de bases de dados criadas para tentar dar conta desse fluxo migratório ininterrupto, em que inexistem identificações dos refugiados, mas apenas nomes de praias e portos, coordenadas

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geográficas, números e descrições aproximadas de corpos. Essas informações acrescentam uma nova e terrível camada de sentido à história do Mediterrâneo, à qual se dedicou o historiador Fernand Braudel:

O conjunto do Mediterrâneo é esse espaço-movimento. Aquilo que o aborda, guerras, sombras de guerras, modas técnicas, epidemias, materiais leves ou pesa-dos, preciosos ou toscos, tudo é metabolizado pelo fluxo de sua corrente sanguí-nea e levado para bem longe, aqui ou ali esse fluxo se interrompe, sedimenta-se para mais tarde ser de novo arrastado, perenemente propagado ou até mesmo, quando fora de seus limites, rejeitado. (Braudel, 2016, p. 377)

Figura 26.028 toneladas de registro # 1 [2018]. Impressão jato de tinta sobre papel de algodão, série de 12 imagens, 110 x 85 cm

Figura 3 Aurigny [2018] . Carimbo, impressos diversos e lápis sobre cartão, 60 x 80 cm. Foto: Wilton Montenegro

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Procurei integrar a grande literatura sobre o mar Mediterrâneo às novas narrativas produzidas pelos hiperlinks que arquivam esses acontecimentos. Qual a imagem da informação, esse condensado de visualidade e discurso que crepita sem parar em nossos smartphones e monitores? Creio que em minha tentativa de produzir imagens, lido sempre com a ruína, a ruína da informação, que envelhece tão logo deixa de ser novidade. Os jornais e as mídias produzem ruínas instantâneas, como percebeu tão bem Jorge Luís Borges, ao chamar os jornais de “museus de minúcias efêmeras”. E gosto da sugestão de Peter Geimer, de que seria necessário escrever uma história do autoiconoclasmo da imagem como meio – a história da autodestruição das imagens. Constato que meu desejo de imagem é carregado sempre por esse desejo de apagamento, de ruína, de destruição da imagem – só há imagem em perigo. Ou, falando com as palavras de Celan: imagem – essa “canção de madeira”, à qual, como náufragos, nos apegamos com força.

Figura 4 20 1 5 # 1 [ 2 0 1 8 ] . C a r i m b o s o b r e j o r n a l a p a g a d o ,32 x 56 cm, série de 12 imagens

Figura 511 de maio de 2015; 20 de abril de 2015; 21 de agosto de 2015[2016]. Impressão jato de tinta sobre papel de algodão, 70 x 50 cm. Caixa Cultural São Paulo. Foto: Wilton Montenegro

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Referências

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mar Mediterrâneo na época de Felipe II, v. I. São Paulo: Edusp, 2016.

DUARTE, Paulo Sergio. Sua vida inclui a tristeza, mesmo nos momentos mais felizes. In: A gravura de Lasar Segall. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 1987.

KAFKA, Franz. Discurso sobre o ídiche. In: SCHWEIDSON, Edelyn (org.). Memórias e cinzas: vozes do silêncio. São Paulo: Perspectiva, 2009.

LOPES, Nei. O preto que falava ídiche. Rio de Janeiro: Record, 2018.

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Estética e descolonizaçãoDer leone have sept cabezas, de Glauber Rocha

Pedro Hussak Van Velthen Ramos1

Após o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, em 1969, com O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Glauber Rocha recebeu várias propostas de produtores europeus e americanos para fazer filmes no exterior, o que coincidiu com o endurecimento da ditadura no Brasil e sua decisão de exilar-se na Europa. Ele concorda em fazer dois filmes realizados quase simultaneamente em 1970: Der leone have sept cabezas, uma produção franco-italiana filmada no Congo Brazzaville, e Cabezas cortadas, uma produção espanhola realizada na Costa Brava, Catalunha. No entanto, esses dois filmes não tiveram o mesmo sucesso de público e crítica que O dragão. Além de censurados no Brasil, eles tiveram uma repercussão quase nula para o público europeu, enquanto as críticas dividiram-se entre positivas e negativas. Em particular, Der leone foi duramente atacado pelos críticos italianos durante sua exibição no Festival de Cinema de Veneza em 1970 (Valentinetti, 2002, p. 119).

Até hoje, Der leone have sept cabezas e Cabezas cortadas são filmes pouco analisados por críticos especializados no trabalho de Glauber, pois, frequentemente, afirma-se que eles não são tão significativos quanto aqueles feitos no Brasil nos anos 1960. Segundo a crítica francesa Sylvie Pierre, ao contrário da recepção do filme O dragão, cujo pano de fundo da “revolução do terceiro mundo” animou uma parcela importante da esquerda europeia, que se sentia diante de algo semelhante a Eisenstein filmando um pouco depois da Revolução Russa, ou ainda a Godard antecipando o Maio de 68, os filmes europeus de Glauber não chamaram a atenção porque

o público, na realidade, não gosta da dor no cinema quando ele torna doloro-so o próprio processo cinematográfico. Quem pode ter vontade de ver, sobre a tela, o sentimento de opressão tornar-se loucura, o revolucionário ferido, a cabe-ça explodida, sofrer a contaminação paranoica, os eflúvios mortuários, as forças paralisantes da loucura ditatorial (o que é assunto de Cabezas cortadas)?.2 (Pierre, 1987, p. 29)

1 Professor e pesquisador, atua na graduação, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Uni-versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGFIL/UFRRJ) e como professor colaborador no Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (PPGCA/UFF).

2 No original: “le public, en réalité, n’aime pas la douleur au cinéma quand elle rend le douloureuse le processus cinématographique lui-même. Qui peut avoir envie de voir, sur l’écran, le sentiment d’op-pression devenir folie, le révolutionnaire blessé, la tête éclatée, subir la contamination paranoïaque, les effluves mortuaires, les forces paralysantes de la folie dictatorial (ce qui est le sujet de Têtes coupées)?”.

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Vivendo na Europa, Glauber experimentou certo ostracismo nos anos que se seguiram. No período, completou a montagem dos filmes História do Brasil e Câncer; trabalhou, logo após a Revolução dos Cravos, em 1974, no documentário português As armas e o povo e filmou Claro na Itália em 1975, entre outros trabalhos, antes de regressar ao Brasil em 1976.

Neste artigo, procura-se analisar Der leone have sept cabezas abordando o tema da “descolonização”. Trata-se de dimensionar em que sentido um filme feito em um contexto específico da luta anticolonial na África, nos anos 1970, pode dizer algo sobre o assunto para o espectador atual. Pretende-se mostrar que, além de falar para seus contemporâneos, Glauber também queria dirigir-se para os espectadores futuros.

Um filme épico-didático

Em uma entrevista de 1972,3 Glauber enuncia três influências para a construção de Der leone: Brecht, porque se trata de personagens épico-didáticos; Eisenstein, porque é uma montagem dialética; e Godard, porque as personagens deslocam-se e refletem sobre a política. Eis os elementos que são facilmente reconhecidos no filme: personagens que não possuem uma psicologia particular, mas encarnam teses; uma montagem que favorece o choc entre os contrários; e, finalmente, a pontuação por discursos que revelam desejos e ambiguidades políticas.

No que toca ao “lado godardiano”, particularmente uma referência clara à Chinoise, pode-se ver, como Deleuze notou, uma virada na concepção manifesta em Estética da fome (1965) – que afirma que o povo oprimido podia comunicar sua condição apenas pela violência –4 para a situação na qual os personagens encontram enunciados político-teóricos.

Sua crítica interna ia, de início, desobstruir sob o mito um atual vivido que seria como o intolerável, o que não se pode viver, a impossibilidade de viver atualmen-te “nesta” sociedade (Deus e o Diabo na terra do sol, Terra em transe), tratava-se em seguida de arrancar do que não se pode viver um ato de palavra que não poderia calar-se, um ato de fabulação que não seria um retorno ao mito, mas uma produ-ção de enunciados coletivos capaz de elevar a miséria a uma estranha positivi-dade, a invenção de um povo (O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Der leone have sept cabezas, Cabezas cortadas).5 (Deleuze, 1985, p. 289)

3 Entrevista a Sergio Augusto à revista Rolling Stone, 1972. Documento encontrado nos arquivos da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).

4 “Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino” (Rocha, 1982, p. 28-32).

5 No original: “Sa critique interne allait d’abord dégager sous le mythe un actuel vécu qui serait

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Ocorre que tais enunciados, em princípio – tal como é colocado, como uma espécie de “programa” no texto publicado no material promocional do filme no Festival de Veneza de 1970 –, visam acentuar uma dimensão épico-didática:

Na tática e na estratégia imediata dos filmes pouco custosos, explosivos, bárba-ros, radicais antinaturalistas e polêmicos. Um cinema épico e didático. A maior parte dos filmes latino-americanos reflete somente alguns traços destas escolas épico-didáticas, mas as experiências vão todas nesta direção. Quando elas são didáticas, há informação. Quando elas são épicas, há agitação.6

Sem dúvida, essa estratégia desempenha um papel fundamental nesse filme, particularmente porque Glauber queria um efeito imediato, no qual o didatismo funcionasse como informação e a épica, como ação. Além disso, o antinaturalismo brechtiano favorecia a realização de filmes pouco custosos, de acordo com a proposta de que o cinema do “terceiro mundo” deveria aceitar as condições econômicas de sua realização e não tentar copiar as grandes produções “hollywoodianas”. Entretanto, vários críticos da época atacaram o filme, como Michel Ciment em uma carta escrita diretamente a Glauber (Bentes, 1990, p. 369) e o crítico italiano Goffredo Fofi (Valentinetti, 2002, p. 116), justamente por causa dessa dimensão pedagógica, pois, como filme político, ele seria muito “esquemático” e “simplista”.

Assim, um primeiro olhar levaria a pensar que o filme consiste em uma exortação a que os povos africanos conscientizem-se no sentido de uma luta colonial pensada a partir de uma concepção materialista da história. Efetivamente, no final do filme, a personagem Zumbi conduz um exército contra a dominação colonial. No entanto, o filme levanta uma série de questionamentos concernentes às contradições da luta política no contexto dos anos 1970, o que de forma alguma reduz o filme a uma dimensão didática, muito menos “panfletária”. Nesse sentido, gostaríamos de explorar neste artigo a riqueza temática que Der leone apresenta para além das questões políticas imediatas com as quais o filme lidava em 1970.

Assim, trata-se de questionar o alegado “didatismo” de Der leone, discutindo a questão do efeito do cinema político. Para tanto, recorrer-se-á a outras entrevistas ainda do começo dos anos 1970 para sustentar que o próprio Glauber tinha uma outra visão em relação à conexão entre estética e política no cinema. Em particular, Glauber defendia a ideia de que o efeito do filme político não é imediato, mas

comme l’intolérable, l’invivable, l’impossibilité de vivre maintenant dans ‘cette’ société (Le Dieu noir et le Diable blonde; Terre en transe); il s’agissait ensuite d’arracher à l’invivable un acte de parole qu’on ne pourrait pas faire taire, un acte de fabulation qui ne serait pas un retour au mythe mais une production d’énoncés collectifs capable d’élever la misère á une étrange positivité, l’invention d’un peuple (Antônio das Mortes, Le lion de sept têtes, Têtes coupés).”

6 Material promocional de Der leone have sept cabezas para o Festival de Veneza de 1970. Nesse material, havia versões em francês, inglês e italiano desse texto. Documento encontrado nos arquivos da cinemateca do MAM-RJ.

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sempre mediado pela reflexão. Normalmente, os filmes de Glauber dialogam com a conjuntura específica na qual eles foram feitos, mas o objetivo do diretor foi sempre provocar a reflexão crítica, o que faz com que seus filmes, negando um significado unívoco, sejam sempre abertos para a interpretação do espectador.

Um filme brasileiro

Com Der leone have sept cabezas e Cabezas cortadas, Glauber procurava ao mesmo tempo as raízes africanas e ibéricas do Brasil. Por isso, embora saibamos que foi filmado em um país específico, o Congo Brazzaville, Der leone mostra uma África imaginária, sonhada por um realizador profundamente ligado à herança cultural africana no Brasil.7 É provável que a opção de trabalhar dessa maneira dependa do fato de que Glauber não estivesse a par dos contextos políticos específicos dos países africanos, o que impediu uma abordagem mais precisa em relação a uma conjuntura específica, como no caso de Terra em transe.

O filme trata da luta anticolonial na África de um modo geral, mas é possível generalizar ainda mais e dizer que se trata de uma questão do “terceiro mundo”, pois ele é atravessado pela concepção da época de formar uma “aliança tricontinental” de solidariedade entre os povos da América, África e Ásia. A personagem Pablo relaciona-se com a passagem de Che Guevara pelo Congo (hoje em dia Zaire, país localizado ao lado daquele onde o filme de Glauber foi filmado) para juntar-se à guerrilha anticolonial no país. Der leone é o primeiro filme de Glauber cujo tema fundamental é a possibilidade de um cinema político dentro da concepção da época de uma revolução do “terceiro mundo”.

O alcance da compreensão glauberiana do colonialismo é largo, englobando não apenas aspectos da dominação política e econômica pelos países ricos, como também o problema da dominação cultural. A luta anticolonial refere-se à luta pela libertação em relação à “metrópole”, mas também ao fato de que os países ricos continuaram a influenciar política e economicamente vários países mesmo após a independência, por meio de acordos com suas classes dirigentes corruptas.

Teatro

O fato de que se trata de uma África imaginária coloca a questão do estatuto espaço-temporal do filme, uma vez que a mise-en-scène é constituída por uma tensão dialética, recorrente em Glauber, entre uma suspensão alegórica e um lugar situado historicamente. Os personagens alegóricos deslocam-se entre os figurantes – os próprios moradores do local em que o filme foi realizado.

7 O crítico Fofi criticou Glauber pelo fato de que o filme não teria nada a ver com o contexto africano (Valentinetti, 2002, p. 118).

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Semelhante a uma estratégia que Pasolini utiliza em alguns de seus filmes, Glauber trabalha com atores não profissionais, que contribuem com os gestos de sua própria pertença cultural.8 Intuitivamente, Glauber usa procedimentos próprios dos happenings, nos quais se cria um diálogo entre o espaço “artístico” e o “real”, pois, algumas vezes, vê-se claramente que não há um controle das reações das pessoas, que estão completamente integradas à cena, como é o caso do Carnaval que ocorre por ocasião da eleição da personagem Xobu.

No que se refere às personagens, é possível fazer uma divisão entre dois grupos distintos: os mítico-trágicos e os cômicos. No primeiro, encontram-se Marlene, o padre, Zumbi, Pablo e Samba; no segundo, o português, o agente alemão, o governador alemão e o grupo dos “colonizadores” que se associa a Xobu, representante da “burguesia local”.

O “didatismo” fica, sem dúvida, do lado do grupo colonialista, que é apresentado em um registro cômico, uma estratégia de distanciamento crítico brechtiano. Vê-se o caráter dos opressores pelo viés do grotesco, ou seja, pelo exagero dos seus traços: o português representa o antigo colonialismo; o governador alemão, a via militarista do processo colonial, e o agente da CIA, o pragmatismo político neocolonial. Isso não impede que se escutem deles também enunciados “sérios”, como quando o agente faz uma comparação entre o modo de dominação dos povos na América Latina e na África, ou quando o português recita os versos de Camões para revelar a mesma dialética que o escritor Antônio Lobo Antunes destaca em seu livro O esplendor de Portugal, título retirado do hino português: a glória das navegações e, ao mesmo tempo, a barbárie colonial.

Mas se Glauber mobiliza a maquinaria brechtiana, ele também se vale de outro teatro: o de Artaud. Consequentemente, Glauber aciona dois dispositivos teatrais em princípio contraditórios, operando tanto com o distanciamento crítico quanto com o princípio da participação pelo viés do ritual.9 Assim como em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Der leone have sept cabezas é semeado de cenas rituais que reproduzem os princípios de incorporação, celebração e crueldade do teatro Artaud. Certamente, Glauber filma diretamente os ritos de tal forma que se pode ver nisso uma experiência de cinema documental. No entanto, os ritos são incorporados na narrativa do filme, principalmente quando as personagens – em especial Zumbi, Pablo e o padre – interagem ali.

Com as cenas de rituais, Glauber quer acentuar a necessidade de que, na luta política, os povos atenham-se às suas práticas culturais, aos seus mitos. Daí o recurso a grandes planos-sequência para filmar os ritos que, como bem mostra

8 Sobre a questão do gesto em Pasolini, ver: Didi-Huberman, 2012, p. 168-230.

9 Em Espectador emancipado, Rancière destaca essa contradição entre Brecht e Artaud (Rancière, 2008, p. 10-14).

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Mauricio Cardoso em sua tese de doutorado (Cardoso, 2001, p. 48-56), favorece a filmagem desses rituais, pois antes do que um elemento secundário, essas cenas possuem um elemento central no desenvolvimento do filme, na medida em que remetem à força do mito que deve aliar-se à consciência histórica para que os povos alcancem a emancipação.

Anticolonialismo

A luta contra o colonialismo é a questão central do filme. Colonialismo que, em Glauber, deve ser pensado de modo largo, pois a exploração dos países ricos sobre os países pobres deve ser compreendida não apenas do ponto de vista econômico, como também religioso, cultural e político. De acordo com a personagem Pablo: “o principal problema da luta anticolonialista é a destruição do complexo de inferioridade nacional”. Em consonância com o pensamento de Frantz Fanon, que é uma grande referência para o pensamento “terceiro-mundista” dos anos 1960, esse enunciado concerne ao fato de que a luta anticolonial passa também e, sobretudo, por processos de subjetivação.

O filme apresenta dois heróis revolucionários: Zumbi e Pablo. O primeiro faz referência ao líder do Quilombo dos Palmares, destruído em 1695, e, assim como a figura do “cangaceiro”, foi bastante explorado pelo cinema brasileiro.10 Zumbi representa o imaginário brasileiro dos escravos revoltados contra o colonizador português e retornará alegoricamente na luta contra o colonialismo moderno na África. A personagem no filme possui uma posição política muito clara: clama pela unidade africana contra o tribalismo e a fragmentação dos partidos.

Pablo, o revolucionário sul-americano engajado na luta tricontinental, é introduzido no filme pegando armas na floresta. Feito prisioneiro pelo padre, é entregue aos colonialistas que o torturam e o martirizam no desfile de Xobu. Liberado em seguida por Samba, ele se revolta contra os colonialistas e, em um momento posterior, prende o português e o americano agente da CIA e leva-os amarrados em um caminhão pela rua para depois juntarem-se ao povo, em um grito de “morte ao colonialismo”.

Pablo é a encarnação de Che Guevara, cuja morte em 1967 na Bolívia é repleta de significados, pois, de certo modo, significa também o fim das ilusões revolucionárias na América Latina. A imagem do corpo morto do revolucionário apresentado pelos militares bolivianos possui um paralelo, como bem nota Enzo Traverso, com uma certa iconografia do Cristo morto (Traverso, 2016, p. 53). O historiador italiano argumenta que há uma correlação do imaginário da esquerda do século XX com um certo imaginário cristão, ligado ao sacrifício e à redenção final.

10 Como é o caso de Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues.

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Reformismo

Em um plano muito longo, Zumbi testemunha – mudo – uma discussão central no filme: dois africanos reformistas dizem que é necessário ser razoável e evitar a guerra pela libertação. Quando Samba intervém na discussão e enuncia sua posição revolucionária, eles respondem que é necessário apoiar a burguesia nacional contra a exploração estrangeira.

Assim, Glauber questionava os dilemas da esquerda do seu tempo: o caminho revolucionário ou a defesa de um líder populista que poderia fazer uma política nacionalista e, dessa forma, colocar a revolução em movimento por “etapas”, como acreditava certa tendência do marxismo. Em Terra em transe, vemos a mesma discussão e a derrota das duas posições da esquerda – a revolucionária e a reformista – por um golpe.

Os reformistas apoiam o representante da burguesia nacional, o dr. Xobu. No entanto, entre a independência negociada e os benefícios que ele pode obter em uma aliança com o imperialismo, Xobu escolhe a segunda opção. Convencido pelos três colonialistas, ele toma posse como presidente com um traje que remete à França do XVIII, mas que na realidade é usado pelos mestres-salas de escola de samba do Rio de Janeiro. Nessa atmosfera de Carnaval misturado com política (que assim como em Terra em transe significa alienação), Xobu desfila seguido pelo povo, levando em suas mãos dois símbolos de poder: um cetro e o osso de um animal.

Mas a aparente integração com o povo rapidamente desaparece: a revolta de Pablo e Samba contra o agente da CIA e o português leva à traição do governador alemão a Xobu, por meio de um golpe. A cena de tiroteio contra o povo significa que um novo governo, agora com viés militar, está estabelecido.

Messianismo

O texto recitado pelo padre é uma adaptação do Evangelho de João, com suas visões e profecias. Der leone é um filme sobre o apocalipse, não no sentido do fim do mundo, mas no de revelação, pois sabe-se que uma possível interpretação do Evangelho é a redenção dos cristãos oprimidos pelo Império Romano. Isso explica o comportamento do padre a quem a visão apocalíptica é a única maneira de salvar a humanidade. Como anunciado no filme Claro (1975), Glauber coloca o Império Romano como uma metáfora para o imperialismo moderno. Por isso, pode-se pensar que aqui o discurso do padre tem um caráter completamente político. Ele personificará o duplo papel da Igreja para Glauber: um agente de colonização, representado no filme com a prisão de Pablo, e depois sua conversão com Marlene para o lado dos oprimidos.

Glauber possui um fascínio pelo Cristo pasoliniano, revelado em uma narração em off em uma cena de seu último filme, A idade da Terra (1980), em que

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ele fala do impacto de O Evangelho segundo são Mateus e da vontade de elaborar sua própria ideia de um Cristo do “terceiro mundo”. Embora, na narração, Glauber explicite que pensou nessa ideia no funeral do diretor e poeta italiano em 1975, é plenamente possível considerar que essa concepção esteja totalmente presente em Der leone. Nesse sentido, é possível criar a hipótese de que o filme de 1970 antecipa precisamente A idade da Terra no que diz respeito à possibilidade de se pensar em uma representação do que Glauber vai entender como o “Cristo do terceiro mundo”. Em Der leone, essa dimensão aparece nas personagens que estão ao lado dos oprimidos, representadas por Marlene, o padre, Pablo e Zumbi.

Assim como Pasolini, Glauber acreditava que a religiosidade popular tinha uma dimensão de emancipação, como bem mostra o crítico Ismail Xavier (2007) por ocasião de sua interpretação do filme Barravento. Essa relação entre política e religião que Glauber começa a empreender é uma resposta à incapacidade, denunciada no filme Terra em transe, de a esquerda produzir um processo emancipatório do povo apenas por meio da “conscientização” e da “ciência”. Glauber pretende criticar o modo como a esquerda quis dirigir o povo para o caminho da revolução, colocando-se como uma vanguarda iluminada. A emancipação deveria, portanto, vir das próprias referências culturais do povo, e por isso uma interpretação revolucionária como a de O Evangelho segundo são Mateus deveria ganhar, de acordo com Glauber, uma conotação política muito forte para os países subdesenvolvidos dos anos 1960/70.

A besta de ouro

Já foi mencionado que a crítica italiana atacou o filme em Veneza em 1970. No entanto, esse não foi o único problema do filme na Itália, onde houve uma tentativa de censurá-lo por causa da nudez da personagem Marlene, interpretada pela atriz italiana Rada Rassimov, e pelas cenas supostamente pornográficas, como o sexo neurótico da abertura. Glauber reagiu a essa censura dizendo que a nudez não tinha uma conotação erótica, mas simbólica, pois “representa a falsa beleza do imperialismo”.11 Marlene, o lado sedutor do imperialismo, tenta seduzir o altivo Pablo quando ele é um prisioneiro dos colonialistas.

Marlene é o leão de sete cabeças. Como uma ninfa, ela encarna a beleza ocidental atravessada por um elemento primitivo que Glauber identifica como a vontade de exploração do imperialismo. A disputa pelo osso de Xobu, ou seja, a disputa pelo butim da África, revela o lado escondido da racionalidade do processo colonial europeu: a irracionalidade da exploração e da acumulação a qualquer preço.

11 Entrevista a Enrico Viani (1970). Documento encontrado nos arquivos da cinemateca do MAM-RJ.

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Entretanto, Marlene sofre uma transformação. É difícil entender por que ela se sente atraída pelo padre, mas, em todo caso, é por causa desse encontro que ele exprime seu arrependimento em relação ao povo. Essa transformação é particularmente perceptível no final do filme, quando, após apresentada como uma besta selvagem em uma gaiola, é crucificada pelo sacerdote. Algumas críticas, como é o caso de Sylvie Pierre, consideram que essa crucificação significa punição por causa de seus serviços ao imperialismo (Pierre, 1987, p. 238-240), mas caso se desenhe um paralelo com o filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, pode-se imaginar que se trata do mesmo arrependimento do “matador canganceiro”, no momento em que ele conhece a Santa, em relação ao genocídio que tinha cometido contra o povo pobre. Nessa maneira de se considerar a questão, a transformação pelo viés do sacrifício significa essa conversão do lado dos opressores para o lado dos oprimidos. Com isso, Glauber também almeja refletir sobre a opressão contra a mulher no contexto maior do imperialismo ocidental.

Mito e história

Em uma entrevista ao jornal francês Le Monde em 1971, Glauber afirma a propósito de Der leone:

Uma característica de todos os meus filmes é o contato com certos arquétipos mitológicos de uma civilização: a relação dialética entre essa pura existência vital e as camisas de força do comportamento político. Em O leão de sete cabeças, a simplificação do modelo político e a magia redentora dos mitos atingem uma contradição radical porque elas estão unidas e separadas no mesmo corpo: Zum-bi, o líder revolucionário negro, é um esquema de contradições políticas, mas é ao mesmo tempo um mito que retorna ao passado brasileiro, à África atual através de uma magia possível para mim, ou seja, o cinema.12

No final do filme, Pablo, a representação do revolucionário latino-americano dos anos 1960, e Zumbi, a figura “mítica” que expressa o imaginário brasileiro da luta contra a escravidão, conduzem a guerrilha contra a virada autoritária do governador alemão. Essa aliança representa, por um lado, a luta geral do “terceiro mundo” contra o colonialismo, por outro, a aliança entre mito e história para a luta dos povos. Essa aliança de mito e história aparece também no final de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, em que a personagem do professor de história luta ao lado de Antônio das Mortes, agora convertido para o lado do povo oprimido.

Em Glauber, a luta anticolonial do presente não se desliga das rebeliões contra a escravidão do colonialismo antigo, das quais Zumbi foi um símbolo maior no Brasil. Como em Walter Benjamin (1996, p. 222-234), é preciso recuperar

12 “Un rêve libérateur”. Le Monde, 11 mar. 1971. Sylvie Pierre afirma que se trata de uma “falsa entre-vista”, pois o próprio Glauber a teria escrito e enviado a Louis Marcorelles (Pierre, 1987, p. 180).

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a história dos vencidos esmagada pela história dos vencedores. Para tanto, é necessário que apareçam outras “histórias” e imagens antes enterradas. Com isso, Benjamin está preocupado com o processo de transmissão, ou seja, de como o passado pode dizer algo para as gerações futuras.

A proximidade dos acontecimentos concretos, como, por exemplo, a libertação dos países africanos de língua portuguesa que vai acontecer um pouco depois, é a razão pela qual esse filme foi entendido como excessivamente esquemático e didático. No entanto, é preciso colocar em questão a ideia de que alguém se engaja politicamente por ter assistido a um filme. O próprio Glauber mostra-se consciente quanto ao fato de que o efeito político de um filme não é o de “conscientizar” alguém no sentido de torná-lo um militante. Em outras palavras, o efeito político de um filme não é imediato:

O cinema é um meio de expressão que visa perspectivamente ao conhecimento. Eu não acredito que nenhuma outra função seja mais importante para o cinema [...]. Em termos estritos de eficácia política, deve-se destacar Godard e Straub, cujos filmes políticos são ineficazes no plano imediato.13

Embora seja uma característica do cinema de Glauber buscar um diálogo com a conjuntura política que lhe é contemporânea, esse diálogo visa sempre provocar a reflexão crítica do espectador. Os filmes políticos de Glauber nunca propõem uma saída para os problemas apresentados, nunca oferecem uma orientação para a ação. A “política” do cinema consiste em dar ao espetador uma abertura para que ele possa produzir seus próprios pensamentos, por isso o filme fala não apenas aos conterrâneos, como também aos futuros espectadores.

Terra em transe mostra as opções da esquerda brasileira e sua derrota pelo golpe militar em 1964. Der leone é um filme que visa antes de tudo apresentar as contradições que estariam evolvidas na luta anticolonial dos anos 1970. Por isso, com um filme político, não se quer que os sujeitos sejam “conscientizados” para um engajamento político, mas sobretudo abrir uma via de discussão e de conhecimento. É nesse sentido que o cinema pode ser emancipatório e, sobretudo, um processo de transmissão que atravessa gerações.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Pau-lo Rouanet. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1996.

BENTES, Ivana (org.). Glauber: cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CARDOSO, Mauricio. O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). 17 ago. 2001. Tese (Doutorado em Filosofia, Letras e Ciências Humanas) – Uni-versidade de São Paulo, 2001.

13 Entrevista a Enrico Viani (1970).

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DELEUZE, Gilles. Image-temps. Paris: Minuit, 1985.

DIDI-HUBERMAN. Peuples exposés, peuples figurants: l’œil de l’histoire, 4. Paris: Minuit, 2012.

FANON, F. Les damnés de la Terre. Paris: La Découverte, 2004.

HUSSAK v.V. RAMOS, P. Um diálogo entre Glauber Rocha e Didi-Huberman. Artefilosofia, n. 25, p. 169-178, 2018.

PIERRE, Sylvie. Glauber. Paris: Cahiers du Cinéma, 1987. (Collection Auteurs).

RANCIERE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique, 2008.

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio: Alhambra, 1982.

TRAVERSO, Enzo. Mélancolie de gauche. Paris: La Découverte, 2016.

VALENTINETTI, Claudio. Glauber: um olhar europeu. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bar-di, 2002.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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Vozes ocultasNatureza, arquitetura e herança negra na cidade do Rio de Janeiro

Rosana Paulino1

Ideias iniciais

O projeto Vozes ocultas: natureza, arquitetura e herança negra na cidade do Rio de Janeiro visa discutir aspectos importantes, porém negligenciados, para a compreensão da população negra na cidade do Rio de Janeiro. Será ainda questionado um conceito de país que foi fortemente influenciado por elementos do racismo científico do final do século XIX e início do XX, a saber, a concepção de que alguns corpos, e a própria natureza, deveriam ser subjugados ou banidos para que o Brasil ascendesse ao rol das nações “civilizadas”.

Desde o início de sua história, o Brasil foi palco de expedições estrangeiras científicas e artísticas que procuraram retratar, a partir de interesses europeus, a flora, a fauna e as pessoas de um país continental. Essas jornadas se intensificaram após a chegada da família real portuguesa em 1808 e prolongaram-se praticamente até o final do século XIX e início do XX.

Se inicialmente o Brasil pareceu o paraíso perdido há tanto tempo imaginado pelos europeus, logo as populações que aqui viviam passaram a ser consideradas primitivas, os africanos e seus descendentes foram vistos como indolentes e pouco confiáveis e os indígenas, como selvagens e arredios. A mestiçagem reinante nesse ambiente foi tomada como sinal de fraqueza e degeneração, e mesmo os portugueses passaram a ser encarados igualmente como “pouco civilizados”, uma vez que se uniam às diferentes populações locais. Essas considerações, resultantes de visões que não souberam entender a alteridade, resultaram, dentre outros prejuízos, na tipificação dos africanos e seus descendentes como entraves a um suposto avanço da sociedade brasileira calcado em valores europeizantes.

O modo como o ambiente brasileiro era percebido irá se materializar nas imagens produzidas inicialmente pelos artistas viajantes e, depois, por cientistas que percorreram o país, marcando profundamente os ideais de população de um país nascente. Problemas sanitários também eram frequentes. Dentro desse panorama, o Rio de Janeiro mira a Europa e almeja tornar-se uma Paris tropical, sendo o famoso “Bota abaixo” do prefeito Pereira Passos, ocorrido entre 1902 e

1 Artista e doutora em artes visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), com especialização no London Print Studio (Londres, 1998). Foi bolsista da Fundação Rockefeller (2014), da Fundação Ford (2006/2008) e da Capes (2008/2011). Realizou várias exposições no Brasil e no exterior.

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1910, a representação dessa política. A negação da população e de sua cultura passa a ser vista como sinal de progresso. O racismo científico, tão vigente nos primórdios da República e que, de modo velado, ajudou a nortear os valores de um país nascente, aparece com força nas ideias de higienização que irão respaldar o deslocamento em massa de populações pobres, negras e mestiças, do centro para as franjas da cidade e para a ocupação de terras desvalorizadas, como as das encostas dos morros.

Durante muitos anos, a ideia de que a civilização destoava da existência de uma natureza “bruta”, aqui compreendida como a natureza em seu estado original, foi presente nas elites brasileiras. E por “natureza” compreendia-se também os corpos que, segundo conceitos falsamente científicos dos séculos XIX e XX, estavam mais próximos do “selvagem”, tais como corpos negros e indígenas, que do “ilustrado” europeu. Domar essa natureza, branquear a sociedade e eliminar cultural e, muitas vezes, fisicamente, os indesejáveis, era sinônimo de progresso. Entretanto, os corpos negros que deslizam pela cidade, as montanhas e a natureza são como vozes que, mesmo a partir das diversas tentativas de ocultamento, continuam a soar audíveis e fortes.

Fundindo imagens do passado e do presente para pensarmos o momento atual, a proposta visa, a partir de um olhar sobre a cidade, sobre seus arquivos e lugares históricos e sobre a natureza, pensar uma construção visual que desafie um senso comum colonizado, onde elementos que talvez nos diferenciem são constantemente abafados, negando seu entorno e suas gentes e, por isso, destruindo-os sistematicamente.

Com o apoio da equipe técnica do Arquivo Nacional, será possível a pesquisa, tanto no acervo virtual como no real, de imagens e textos sobre a cidade do Rio de Janeiro que mostrem como o projeto de expulsão da população de determinadas áreas e de aniquilação da natureza constituiu a representação máxima da aplicação, na vida real, da ideia de progresso. Andanças e registros em áreas que passaram por esse processo comporão um painel em tecido onde, lado a lado, estarão as políticas racistas do período e o resultado atual das mesmas, na forma de impressão digital de imagens e textos.

Primeiras andanças

Nos primeiros passos da pesquisa, percebi que a possibilidade de resgatar as histórias de uma população sistematicamente subalternizada poderia não ser tão simples assim, uma vez que a história é, quase sempre, relatada pelos vencedores. Nesse sentido, passei a considerar, além dos documentos, o próprio prédio do Arquivo Nacional e seu entorno como portador de histórias escondidas e soterradas que, no entanto, estão presentes “nas pedras pisadas”. Não as do cais,

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como nos canta João Bosco, mas nas do próprio edifício do Arquivo Nacional2 e, notadamente, na primeira parte da construção que, sendo iniciada no ano de 1858, certamente foi edificada por mãos de escravizados, se não em sua totalidade, em alguns momentos. Passei então a pensar em camadas de histórias que se espraiam nos arquivos, nas pedras, nos vestígios de construção, algo que encontramos em profusão em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro.

Em minha primeira visita de pesquisa para este projeto, tratei de fotografar alguns desses espaços. Trabalhando essa ideia, visitei também outros locais como o Parque Lage, onde pude perceber, em meio à natureza exuberante do local, a quase esquecida lavanderia onde as escravizadas da casa trabalhavam lavando o vestuário da casa-grande do que, uma vez, foi um engenho. Devidamente registrada por fotografias e filmagens, as majestosas pedras que canalizam a água para esse espaço poderão se tornar parte do projeto. Bem como as pedras visíveis na área histórica do cais do Valongo, conhecido desde há muito como a “Pequena África”. Dessa maneira, um elemento constitutivo que representa tanto a natureza em seu estado bruto, ao pensarmos na conformação geográfica original da cidade do Rio de Janeiro, como a sua urbanização, ao pensarmos em termos de calçamento, tem se mostrado com destaque. Ou seja, as pedras, brasileiras ou portuguesas, vêm ganhando força neste momento. Ainda não tenho claro como irei usar esses elementos, se através de fotos, frotagens ou outra técnica a ser pesquisada, ou mesmo se constituirão parte de destaque no trabalho final, uma vez que esta pesquisa está bastante incipiente, mas devo admitir que a possibilidade de utilizar esse elemento é bastante sedutora. Nesse caso, as pedras falam, têm memórias... Apuremos nossos ouvidos para que possamos escutar essas histórias por tanto tempo soterradas.

Outras possibilidades de trabalho têm surgido da observação do ambiente em torno do Arquivo Nacional. Nesse sentido, o Campo de Santana se mostrou um local paradoxal ao destacar um contraste bastante interessante entre se pensar uma “natureza domada”, típica dos jardins europeus, mas que conserva em si uma ideia de exotismo proveniente de animais, como pacas e capivaras, em seus gramados. Ora, se a ideia de jardim foi importada, primeiramente, por uma elite portuguesa que trouxe suas concepções de mundo e, posteriormente, por uma elite nativa ávida em assimilar e, muitas vezes, imitar conceitos de civilidade vindos da Europa, o que seria o exótico? A presença desses animais ou a própria ideia de jardim, quando comparada com a pujança da natureza carioca? Nesse sentido, o parque, paradoxo em si mesmo de um país que não se olha, mas olha insistentemente para o norte geográfico como modelo, mostra potencial bastante

2 A canção “O mestre-sala dos mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, foi gravada por João Bosco no disco Caça à raposa, de 1975, e traz em sua última estrofe os versos “Salve o navegante negro/que tem por monumento as pedras pisadas do cais”, em referência a João Cândido Felisberto, também conhecido como Almirante Negro, herói da chamada Revolta da Chibata, ocorrida em 1910.

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acentuado de pesquisa. Vale salientar que mesmo o parque possui também, além da questão das pedras de calçamento que tanto me chamou a atenção, ornamentos assentados sobre troncos ou pedras falsas, o que acentua a ideia de paradoxo contido em si.3

Enfim, é provável que seja utilizado o próprio Arquivo Nacional, e seu entorno em conjunto com os documentos ali guardados, como fonte para o trabalho a ser realizado.

A técnica escolhida

Desde 2013 venho me debruçando sobre a possibilidade de impressões sobre tecidos que são costuradas, ou melhor, suturadas entre si, formando obras em técnica mista. Por técnica mista, entendendo-se impressão digital sobre tecido em impressora jato de tinta (técnica desenvolvida pela artista), costura, linóleo, recorte, tinta e qualquer acréscimo que julgue necessário para a boa resolução visual da obra. Pretende-se que a obra a ser produzida tenha aproximadamente 2,80 x 2,00 m, não sendo menor.

A escolha por essa técnica visa destacar os processos violentos utilizados na constituição das cidades brasileiras, caracterizadas pela expulsão sistemática de populações de áreas valorizadas pelas elites locais. Suturando imagens, procuro trazer um pouco desse processo violento para a obra que, dessa maneira, tem suas partes constitutivas postas “à força” juntas, a fim de formar um conjunto desigual, mas informativo, do processo de expulsão e invisibilização de determinadas populações ao longo da história do país.

A seguir, três exemplos dessa técnica para apreciação. Espero, com esta pesquisa visual, fazer ouvir novamente essas vozes tão subalternizadas na história do país e da arte aqui produzida (Figuras 1, 2 e 3).

3 Exemplo disso é a escultura Luta desigual, que mostra o combate de um homem contra um felino e tem como base uma pedra de rocaille, estrutura em argamassa que imita pedras e/ou troncos natu-rais. O conjunto foi criado pelo artista francês L. Despres, datando, provavelmente, de 1888. O mesmo raciocínio vale para as duas pontes no mesmo estilo rocaille, imitando grandes troncos de árvores.

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Figura 1 – Atlântico Vermelho, 2017. Impressão digital sobre tecido, recorte, acrílica e costura. 127,0 x 110,0 cm

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Figura 2 – Musa paradisíaca, 2018. Impressão digital sobre tecido, tinta e costura.

Figura 3 – Paraíso tropical, 2017. Impressão digital sobre tecido, costura, tinta, recorte e bordado. 96,0 x 110,0 cm

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