1 a literatura infantil e os horizontes de leitura

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1 A LITERATURA INFANTIL E OS HORIZONTES DE 1 A LITERATURA INFANTIL E OS HORIZONTES DE LEITURA LEITURA 1.1 1.1 A literatura na perspectiva do leitor A literatura na perspectiva do leitor A estética da recepção é a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da Escola de Constança, no final da década de 60, desenvolvida a partir do trabalho A história da literatura como provocação à teoria da literatura, 1 que retoma a problemática da história da literatura. Jauss traz de volta a discussão por não compartilhar com a orientação da escola idealista ou da escola positivista para a construção de uma história literária, uma vez que ambas não realizam seus estudos embasados na convergência entre o aspecto histórico e o estético, criando, assim, um vazio entre a literatura e a história. A inexistência desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam apenas com as obras e seus autores, deixando à margem o terceiro elemento do circuito literário, os leitores. 1 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36) 19

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1 A LITERATURA INFANTIL E OS HORIZONTES DE1 A LITERATURA INFANTIL E OS HORIZONTES DE LEITURALEITURA

1.11.1 A literatura na perspectiva do leitorA literatura na perspectiva do leitor

A estética da recepção é a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da Escola de Constança, no final da década de 60, desenvolvida a partir do trabalho A história da literatura como provocação à teoria da literatura,1 que retoma a problemática da história da literatura. Jauss traz de volta a discussão por não compartilhar com a orientação da escola idealista ou da escola positivista para a construção de uma história literária, uma vez que ambas não realizam seus estudos embasados na convergência entre o aspecto histórico e o estético, criando, assim, um vazio entre a literatura e a história. A inexistência desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam apenas com as obras e seus autores, deixando à margem o terceiro elemento do circuito literário, os leitores.

Em vista disso, o teórico contrapõe-se às correntes teóricas marxista e formalista, tais como, a crítica sociológica, o new criticism, o formalismo russo e o estruturalismo. A crítica à teoria literária marxista reside no fato de ela entender como sendo seu papel apresentar a literatura apenas como reflexo dos

1 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36)

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fenômenos sociais, o que implica emitir um juízo de valor de uma obra literária pautado somente na sua capacidade de representação da estrutura social, impossibilitando, a partir desse juízo, a definição de categorias estéticas.

No que se refere à teoria literária formalista, a crítica funda-se na concepção da obra literária como um todo autônomo e auto-suficiente, com seus elementos organicamente relacionados, independente de dados históricos ou biográficos do autor, atribuindo a verdadeira significação a sua organização interna sem necessitar da referência a uma situação externa. Desse modo:

o processo de percepção da arte surge como um fim em si mesmo, tendo a perceptibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento do procedimento como o princípio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num método racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica duradoura.2

Para Jauss, as duas teorias limitam-se a compreender o fato literário no âmbito da estética da representação e da produção, o que significa a exclusão da dimensão da leitura e do efeito, que é a privilegiada pela estética da recepção, tendo em vista o propósito desta em apresentar uma visão diferenciada da história da literatura pautada na historicidade da obra de arte literária, já que ela “não repousa numa conexão de ‘fatos literários’ estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”.3 2 JAUSS, op. cit., p.19. (Grifos do autor)3 Id. Ibid., p. 24. (Grifo do autor)

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Sob esse ponto de vista, a estética da recepção toma como objeto de investigação o receptor. Isso exige dela a construção de uma nova concepção de leitor fundamentada não mais na visão marxista, que o concebe como parte integrante da estrutura social apresentada pela ficção, nem na visão formalista, que necessita dele apenas enquanto sujeito da percepção, capaz de, a partir das pistas textuais, diferençar a forma e revelar o procedimento. O leitor assume, então, “seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o conhecimento histórico: o papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”.4

Com a mudança do foco de investigação para a recepção, o fato literário passa a ser descrito a partir da história das sucessivas leituras por que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado através dos tempos, porque:

a obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual.5

A recepção, nessa perspectiva, é compreendida “como uma concretização6 pertinente à estrutura da obra, tanto no 4 Id. Ibid., p. 23.5 Id. Ibid., p. 25.6 A noção de concretização apresentada pelos teóricos alemães tem como

referência os trabalhos de Roman Ingarden e Felix Vodicka. cf. INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1973. e VODICKA, Felix. A história das repercussões das obras literárias.In: TOLEDO, Dionísio (org.). Circulo Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978. p.299-309.

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momento de sua produção como de sua leitura, que pode ser estudada esteticamente”,7 considerando, assim, o leitor como um elemento também textualmente marcado na obra de arte literária. Para o teórico, privilegiar a recepção representa conceber o texto literário como um fato que não se limita à dimensão estética, pois também considera a social. Por conseguinte, desloca-se a concepção de literatura enquanto sistema de sentido fechado e definitivo para a de um sistema que se constrói por produção, recepção e comunicação, ou seja, por um relacionamento dinâmico entre autor, obra e leitor.

Sendo assim, a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre literatura e leitor, o que acarreta, necessariamente, um processo de interação entre os mesmos, cujo grau de perenidade depende dos referenciais estético-ideológicos que os configuram, isto é, em face da natureza dialógica dessa relação, a obra literária só permanece em evidência enquanto puder interagir com o receptor, sendo o parâmetro de aceitação desse o horizonte de expectativas,8

composto pelo sistema de referências que resulta do conhecimento prévio que o leitor possui do gênero, da forma, da temática das obras já conhecidas/lidas, e da oposição entre as linguagens poética e pragmática.9

7 AGUIAR, Vera Teixeira de, BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. p. 83.

8 Os conceitos da hermenêutica, horizonte de expectativas e lógica de pergunta e da resposta, foram extraídos, por Jauss, da obra de Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.p.449-458, 533-556.

9 JAUSS, op. cit., p. 27.

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O sistema de referências, contudo, não se restringe aos aspectos estéticos da obra, haja vista que no ato da leitura também entra em jogo a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o efeito pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado. Em vista disso, o conjunto de referências também é regido pelas convenções, elencadas por Zilberman, da seguinte ordem:

- social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;

- intelectual, porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes, com seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo de sua educação formal;

- ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio, de que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;

- lingüística, pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação, como do espaço social em que transita.10

No processo de realização da leitura literária, o horizonte de expectativas do leitor pode ser satisfeito ou quebrado por uma determinada obra. Dessa relação de satisfação ou ruptura de horizontes pode-se estabelecer a distância entre a expectativa do leitor e sua realização, denominada por Jauss de distância estética, que indicará o caráter artístico da obra. Ocorrendo a satisfação, a obra caracteriza-se como sendo “arte culinária” ou

10 ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In:_____(org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 103.

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de mera diversão, isto é, literatura de massa, visto que não exige nenhuma mudança de horizonte, servindo apenas para reforçar as normas literárias e sociais em vigor. No caso da quebra de expectativas, consoante Arnold Rothe,11 pode vir a acontecer uma mudança de comportamentos e de normas ou uma rejeição por parte do público, como ocorreu, por exemplo, com Sthendal e Flaubert, provocando a formação de um novo público.

Em virtude dessas reações, tem-se a formulação do seguinte preceito teórico: somente a quebra ou a ruptura de expectativas será indicativa do valor estético de um texto, cuja avaliação, a partir da distância estética, se torna bastante independente da visão particular do crítico. Tal postura, para Regina Zilberman,12 aproxima Jauss dos formalistas e estruturalistas, porque, de certo modo, esse critério adotado recupera o efeito de estranhamento da obra de arte literária proposto por tais teorias. E, como conseqüência pragmática, a reconstrução do horizonte de expectativas oportuniza às obras consideradas clássicas o retorno do seu viés emancipador, perdido por causa do processo de canonização, que as tornaram incapazes de suscitar novos questionamentos.13

Reconstruir os horizontes de expectativas de uma obra em relação ao processo de produção/recepção sofrido por ela em épocas distintas significa encontrar as perguntas para as quais o

11 ROTHE, Arnold. O papel do leitor na crítica alemã contemporânea. Letras de hoje. Porto Alegre, v.39, p. 7-18, mar.,1980. (Tradução de Vera Teixeira de Aguiar).

12 ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. p. 35. (Série Fundamentos, 41)

13 ROTHE, op. cit., p. 11.

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texto constitui uma ou mais respostas. A lógica da pergunta e da resposta é o mecanismo da hermenêutica que permite identificar o horizonte de expectativas do leitor e as questões inovadoras a que o texto apresenta uma ou mais respostas, como também mostrar como as compreensões variam no tempo. Dessa forma, o sentido de um texto é construído historicamente, descartando-se a idéia de sua atemporalidade. É a partir do confronto desses dois pólos que a distância estética pode ser estabelecida.

Partindo desses princípios, as grandes obras são as que permanentemente provocam nos leitores, de diferentes momentos históricos, a formulação de novas indagações que os levem a se emanciparem em relação ao sistema de normas estéticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela literatura é fruto do seu caráter social, pois, para Jauss, a interação do indivíduo com o texto faz com que o sujeito reconheça o outro, rompendo, assim, o seu individualismo e, conseqüentemente, promovendo a ampliação dos seus horizontes proporcionada pela obra literária:

A experiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.14

Nesse sentido, Alliende e Condemarín salientam o papel social da leitura, literária ou não, porque o homem leitor pode 14 JAUSS, op. cit., p. 52.

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ampliar as possibilidades de amadurecimentos individual e intelectual e, por conseguinte, compreender melhor a si e o mundo. Em contrapartida, “as pessoas que não lêem tendem a ser rígidas em suas idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa que lê abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras pessoas de qualquer parte”.15 Com essas afirmações, os autores confirmam a premissa de que a leitura conduz a uma práxis concreta, sustentados na correlação existente entre as práticas de leitura de um povo e seu desenvolvimento material e social.

Entretanto, a transformação do homem, via prática da leitura, só é realizada na medida em que ele estiver aberto a viver novas experiências, despojado de uma postura autoritária e disposto a aprender, a fim de conscientizar-se de sua transitoriedade. Essa abertura leva o homem a ter mais conhecimento sobre o mundo, ter mais vivência, pois, de acordo com Hans-Georg Gadamer, “a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências”.16

A estética da recepção, portanto, é o instrumental teórico adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepção, horizonte de expectativas, distância estética e lógica da pergunta e da resposta, a análise das narrativas infantis, que

15 ALLIENDE, Felipe, CONDEMARÍN, Mabel. Leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 17-18

16 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 525. (Grifo do autor)

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constituem o corpus dessa dissertação, a fim de se compreender o processo de produção/recepção da obra literária infantil tendo como referência o leitor, isto é, com base nos conceitos selecionados da estética da recepção é possível delinear o horizonte de expectativas de crianças de diferentes classes sociais em contexto escolar, materializado em normas literárias e concepções de mundo presentes nas narrativas infantis reproduzidas de textos literários conhecidos/lidos, uma vez que uma das tarefas da teoria recepcional, em conformidade com Zilberman,17 é a reconstrução desse horizonte, objetivando explicitar a relação da obra literária com o seu público. Resta, ainda, delinear o espaço percorrido pelo livro na sociedade, tarefa da sociologia da leitura.

1.21.2 O livro literário no contexto socialO livro literário no contexto social

A sociologia da leitura, como a estética da recepção, centra o seu foco de atenção no terceiro eixo do circuito literário,

17 ZILBERMAN(1989), op. cit., p.113.

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o leitor, contudo não se propõe investigar a relação entre leitor e texto buscando o delineamento do horizonte de expectativas, pois o que interessa são as questões extrínsecas da leitura, isto é, a abordagem está centrada na relação entre o livro e os seus mediadores sociais.

Esse campo teórico objetiva, portanto, estudar o público encarando-o não mais como elemento passivo, mas como ativo, já que a sua mudança de gosto e preferência influencia a circulação e a produção da obra literária. Nesse sentido, a análise sociológica considera todos os fatores sociais que interferem no processo de formação do gosto e que funcionam como mediadores de leitura, como também as características dos consumidores conforme sua condição social, cultural, etária, sexual, profissional, entre outros.

Sendo o seu objeto de estudo o público, a sociologia da leitura não se restringe à análise e descrição da recepção de textos literários, o que representa incluir também como objeto de estudo textos considerados marginais e subliterários. Pelo fato de o enfoque não buscar contrapartida na estética, Regina Zilberman afirma que sua contribuição para a Teoria da Literatura fica restrita, entretanto sua importância não é reduzida por essa razão, uma vez que “suas pesquisas permitem compreender o fato literário no cotidiano de sua existência, caracterizado por sua circulação e consumo”.18

O primeiro trabalho produzido a partir desse enfoque foi o livro Die Soziologie der literarischen Geschmacksbildung,19 de L. L. Schücking, publicado em 1923, que procurou atingir o objetivo 18 Id. Ibid., p. 18.

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anteriormente descrito. Outros trabalhos deram continuidade ao estudo do público leitor, todavia, sobressaem-se os produzidos pela Escola de Bordéus, liderados por Robert Escarpit e sua equipe, bem como os de Arnold Hauser e Pierre Bourdieu.

Robert Escarpit situa o estudo da formação do público leitor no âmbito da sociologia da literatura, o que significa buscar compreender o fato literário associado ao contexto social em que está inserido e com o qual estabelece um diálogo. Não é propósito desse teórico realizar um trabalho de análise estética, pois o critério utilizado para definir literatura não é qualitativo e sim denominado por ele de “atitude ao gratuito”, que resulta numa definição de literatura como todo texto que não possui uma finalidade pragmática, cujo efeito provoca uma espécie de catarse do ponto de vista cultural.

Essa definição inicial apresenta um teor generalizante que não situa com clareza a abordagem sociológica da literatura, no entanto, em Lo literário y lo social, o Autor aprofunda o conceito de literatura em relação às questões sociológicas, fundamentando com mais precisão a proposta da Escola de Bordéus:

o que nós denominamos literatura no século XX é a instituição que permite à sociedade impor suas estruturas além da mera linguagem, toda manifestação de uma literatura viva, caracterizada pela liberdade do escritor é, em nosso tempo, antiliteratura numa certa medida. Dito de outro modo, a literatura como fato histórico concreto, de antiguidade não superior a duzentos anos, leva consigo sua própria negação e conduz a sua própria superação.20

19 Id. Ibid., p. 16. De acordo com Regina Zilberman, o título do livro poderia ser traduzido por “A sociologia da formação do gosto literário”.

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Importa, então, para Escarpit, utilizar como procedimento metodológico mais adequado o estudo dos dados de cunho objetivo, os quais serão explorados de modo sistemático sem a interferência de idéias preconceituosas. No entanto, o estudioso observa que a análise não deve se limitar aos dados estatísticos, pois outras informações fornecidas pelos estudos das estruturas sociais, tais como, regimes políticos, instituições culturais, classes sociais, profissões, organização do tempo livre, nível de analfabetismo, condições sociais do escritor, do livreiro, do editor, problemas lingüísticos, história do livro, complementam de forma decisiva a interpretação pretendida, culminando com a compreensão do público-leitor num contexto social mais abrangente. Outro procedimento é o estudo de casos concretos realizado por meio dos métodos da literatura geral ou da literatura comparada, como, por exemplo, o êxito de uma obra, a evolução de um gênero ou de um estilo, a abordagem de um tema, a história de um mito, no qual a significação dos dados contribui para explicitar os fenômenos observados objetivamente.21

Embasados nessa perspectiva, através de um método empírico, os estudos realizados pela referida escola tratam o fenômeno literário a partir de três instâncias – a produção, a circulação e o consumo. As questões da produção são analisadas a fim de identificar e caracterizar os fatores “que interferem na atividade do escritor como homem de seu tempo com responsabilidade social definida”.22 A análise da circulação das 20 ESCARPIT, Robert. Lo literario y lo social. In:_____(org.) Hacia una

sociologia del hecho literário. Madrid: Edicusa, 1974. p. 18.(Tradução do autor desta dissertação)

21 Id. Ibid., p. 30-31.22 AGUIAR (1996), op. cit., p.24.

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obras, por sofrer intervenção na sua publicação e distribuição de diversos mediadores, como, por exemplo, o circuito letrado (editores, livreiros e críticos literários) e o circuito popular (bibliotecas populares, imprensa, rádio, cinema, bancas de revistas e vendedores ambulantes), torna-se necessária para se compreender o papel desempenhado individualmente pelos organismos sociais participantes.

E, finalmente, o consumo é examinado a partir da descrição das diferentes modalidades existentes de público, cujas expectativas interferem na formatação do texto; das razões dos êxitos, classificados por Escarpit em semiêxito, êxito normal e o best seller, e dos fracassos das obras sob os pontos de vista comercial e social, além da análise do processo de formação do leitor, cujo resultado depende das circunstâncias sociais e materiais que tornarão o indivíduo, mediante a qualidade da relação leitura/vida, conhecedor ou consumidor da literatura.

Outro aspecto que tem sido temática de análise da sociologia da leitura é o papel dos mediadores sociais, tais como a biblioteca, a editora, a escola, a livraria, a imprensa, o sistema de distribuição, os eventos culturais, a igreja e a família. Esse enfoque é objeto de estudo de Arnold Hauser em Sociologia del publico,23 encarado pelo teórico como fundamental, tendo em vista que “artista e público não falam a mesma língua desde o princípio. A obra de arte tem que ser traduzida a um idioma próprio para que resulte geralmente compreensível e para que a

23 HAUSER, Arnold. Sociologia del público. In: _____. Sociologia del arte. Barcelona: Labor, 1977. v. 04.

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maioria possa gozá-la”.24 Em defesa dessa concepção, argumenta que existe entre o produtor e o receptor da obra um grande abismo e são as instâncias de mediação as responsáveis pela ponte ou idioma que garante a permanência ou não do diálogo entre autor e leitor via obra, através dos tempos. Para explicitar sua concepção de mediadores de leitura o autor diz o seguinte:

Qualquer que seja a constituição de uma obra de arte, normalmente passa por muitas mãos antes de chegar do produtor ao consumidor. A sensibilidade e capacidade associativa, o gosto e o juízo estético do público são influenciados por uma larga série de intermediários, intérpretes e críticos, professores e peritos, antes de constituírem-se em pauta mais ou menos obrigatórias e critérios direcionados para obras que, todavia, necessitam de uma concessão qualitativa, de um selo acadêmico, e problemáticas segundo a opinião pública.25

Os mediadores de leitura assumem o papel responsável pela constituição ou não do dialógo entre autor/obra/leitor, porque a obra de arte é definida por Hauser como sendo uma construção dialética, como conversa que se estabelece entre autor e público mediante uma ação recíproca. Sendo assim, o público deixa de ter uma atitude passiva para assumir a de interlocutor, contribuindo “ao nascimento de uma forma enquanto objetividade que responde/reage à subjetividade espontânea do artista, forma cuja estrutura dialógica é inconfundível”.26 Enfim, a obra de arte situada numa perspectiva dialógica só existe a partir da recepção, a qual só se concretiza por meio das instâncias mediadoras.

24 Id. Ibid., p. 551. (Tradução do autor desta dissertação)25 HAUSER, op. cit., p. 551-552. (Tradução do autor desta dissertação)26 Id. Ibid., p. 559. (Tradução do autor desta dissertação)

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O autor salienta, ainda, que, por mais espontâneo e irresistível que seja o modo de o artista comunicar-se com o público, é necessária a presença de tradutores e intermediários para que a recepção seja compreendida de maneira correta e apropriada, pois, quanto mais desenvolvido o estilo, mais modernas as obras consideradas e menos conhecedores em arte os receptores, tanto maiores, diversas e importantes terão de ser as mediações.27 Ressalta, entretanto, que as instâncias mediadoras podem ter uma função útil ou inútil de mediação, visto que elas podem aproximar o artista do público, reforçando a relação e, ao mesmo tempo, podem distanciar ou alienar.

Dada a importância atribuída às instâncias mediadoras, Aguiar28 salienta que um contato freqüente e próximo do sujeito com esses organismos possibilita-lhes uma maior chance de tornar-se um leitor. Todavia, a concretização desse contato é definida, de acordo com Pierre Bourdieu,29 pelas condições econômicas e educacionais permitidas pela classe dominante, ou seja, a transformação do indivíduo num leitor passa, necessariamente, pelo acesso aos bens culturais e, para se adentrar ao meio considerado culto, é necessário ter um certo nível de poder econômico para adquirir o código, a fim de circular no habitat natural do capital cultural. Logo, a definição da distribuição das parcelas do poder econômico, como também do que é o capital cultural cabe à classe dominante ou burguesa, por conseguinte, é ela quem dita as regras das trocas sociais.

27 Id. Ibid., p. 588-590. 28 AGUIAR (1996), op. cit., p.25.29 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Porto Alegre: Perspectiva, 1982.

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O acesso ao capital cultural, via poder econômico, contudo, não é a garantia de que o sujeito esteja em condições de usufruí-lo, uma vez que a comunicação com a obra de arte é destinada a alguns eleitos que possuam aptidões para entender o apelo da arte. Tais aptidões são, na verdade, instrumentos adquiridos por meio do mecanismo denominado arbítrio cultural, utilizado por instâncias como a família e a escola para impor a aprendizagem dos códigos que determinam quais obras serão consideradas naturalmente dignas de serem apreciadas como arte:

A obra de arte considerada enquanto bem simbólico (e não em sua qualidade de bem econômico, o que ela também é) só existe enquanto tal para aquele que detém os meios para que dela se aproprie pela decifração, ou seja, para o detentor do código historicamente constituído e socialmente reconhecido como a condição da apropriação simbólica das obras de arte oferecidas a uma dada sociedade em um dado momento do tempo.30

O fato de estar desprovido desse código leva o indivíduo a perceber a obra de arte a partir do seu referencial cotidiano remetendo a sua percepção a uma ótica funcional, conforme afirma Bourdieu:

Na verdade, aqueles que não contam com os meios de acesso a uma percepção “pura” envolvem em sua apreensão da obra de arte as disposições que sustêm sua prática cotidiana, e por esta via, estão fadados a uma estética funcionalista que não passa de uma dimensão de sua ética, ou melhor, de seu ethos de classe.31

30 Id. Ibid., p. 283.31 Id. Ibid., p. 287-288.

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Desse modo, “os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los”,32 ou seja, só é possível apropriar-se desses bens quando se detém antecipadamente os instrumentos adequados. Tal situação é o resultado do processo de reprodução cultural e social, tendo em vista que as leis que regem a transmissão cultural condicionam o retorno do capital cultural às mãos dele mesmo, reproduzindo, assim, a estrutura de distribuição desigual desse capital entre as classes sociais.

Nesse processo, a escola funciona como um dos mecanismos mais eficientes no processo de manutenção do sistema de reprodução cultural e social, pois, para o sociólogo francês:

dentre as soluções historicamente conhecidas quanto ao problema da transmissão do poder e dos privilégios, sem dúvida, a mais dissimulada e por isto mesmo a mais adequada a sociedades tendentes a recusar as formas mais patentes da transmissão hereditária do poder e dos privilégios, é aquela veiculada pelo sistema de ensino ao contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento dessa função.33

O sistema de ensino é ainda mais eficiente no processo de reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural entre as diferentes classes sociais à medida que o modelo de cultura que repassa é o mais semelhante ao da classe dominante e o modo de imposição é o mais próximo da maneira de inculcação familiar burguesa. A escola constitui-se, então, como

32 Id. Ibid., p. 297.33 Id. Ibid., p.296.

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instrumento de manutenção do status quo mais adequado quando a cultura instituída enquanto tal é a pertencente à classe dominante, a qual já é sedimentada no sujeito pela educação familiar antes de chegar ao sistema formal de educação, excluindo, assim, os que recebem outro tipo de educação familiar que é depositária de outra modalidade de bagagem cultural.

Pierre Bourdieu caracteriza, então, com lucidez, a prática do sistema de ensino que está a serviço do processo de reprodução cultural e reprodução social ao afirmar o seguinte:

Pela prática de uma pedagogia implícita que exige a familiaridade prévia com a cultura dominante e que procede pela técnica de familiarização insensível, um sistema de ensino propõe um tipo de informação e formação que constitui a condição do êxito da transmissão e da inculcação da cultura. Eximindo-se de oferecer a todos explicitamente o que exige de todos implicitamente, quer exigir de todos uniformemente o que não lhes foi dado, a saber, sobretudo a competência lingüística e cultural e a relação de intimidade com a cultura e com a linguagem, instrumentos que somente a educação familiar pode produzir quando transmite a cultura dominante. Em suma, uma instância oficialmente incumbida de assegurar a transmissão dos instrumentos de apropriação da cultura dominante que não se julga obrigada a transmitir metodicamente os instrumentos indispensáveis ao bom êxito de sua tarefa de transmissão, está destinada a transmitir por seus próprios meios, quer dizer, mediante a ação de educação contínua, difusa e implícita, que se exerce nas famílias cultivadas, os instrumentos necessários à recepção de sua mensagem e necessários para assegurar a essas classes o monopólio dos instrumentos de apropriação da cultura dominante, e, por esta via, o monopólio desta cultura.34

34 Id. Ibid, p. 306-307.

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No âmbito das trocas sociais em que a literatura também está inserida, Bourdieu35 propõe uma análise sociológica ou socioanálise, cujo eixo está centrado nas relações entre o campo literário e outros campos, tais como o econômico, o político, e o religioso. Em vista disso, a proposta de análise permite compreender que o consumo do texto literário não depende somente do acesso material, mas também dos jogos de poder estabelecidos dentro do campo literário que, com suas regras próprias, determinam, por exemplo, o que é literário ou não literário, o que é tradicional ou vanguarda. O consumo de um desses tipos de texto implica situar o leitor numa determinada categoria, visto que cada tipo de texto requer o domínio de um código de decifração que é adquirido na educação familiar e na escolar. Sendo assim, a formação do leitor, numa sociedade estratificada como a atual, depende do entrelaçamento dos inúmeros campos de poder que irão configurar a possibilidade ou a impossibilidade da realização desse processo.

Michael Apple36 salienta que a forma adotada pela escola para manutenção da reprodução social manifesta-se por meio de sua organização curricular, a qual explicita um discurso de neutralidade, mas estabelece como parâmetro para todas as camadas sociais o modelo de sociedade da classe dominante. Desse modo, a escola apresenta por detrás desse discurso um currículo oculto, que prega a homogeneização como ponto central para a negação das diferentes vozes que constituem a diversidade social, promovendo, assim, a exclusão do aluno oriundo das

35 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

36 APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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camadas populares, de culturas distintas, ou seja, de todo aquele que não se enquadra no perfil determinado pelos padrões sociais vigentes.

A sociologia da leitura, portanto, tem seu trabalho voltado para a distribuição, a circulação e o consumo de livros, ou seja, para os aspectos externos da leitura. Tal abrangência possibilita examinar o papel social do autor, a história das obras junto aos distintos públicos, os processos de produção e popularização do livro, as políticas de leitura, as práticas individuais e coletivas de leitura e, principalmente, os modos de aproximação dos leitores ao livro através dos mediadores sociais, como, por exemplo, a escola, a qual constitui o espaço social selecionado para a realização da pesquisa de campo, tendo em vista a importância e a visibilidade que apresenta enquanto mediador de leitura literária na sociedade brasileira. Além disso, a validade das respostas para as perguntas da investigação também depende da compreensão da interferência do contexto social na circulação da obra literária infantil.

1.3 A especificidade da narrativa literária infantil1.3 A especificidade da narrativa literária infantil

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A produção literária destinada às crianças foi criada no âmbito escolar com o objetivo de consolidar, no século XVIII, a ascensão da burguesia européia ao poder, a qual modificou as concepções acerca da estrutura familiar. A partir dessa mudança de conceitos, a família tornou-se unicelular, voltada à preservação da privacidade e dos elos afetivos entre pais e filhos. Dentro desse novo cenário, a criança passou a possuir o status de indivíduo especial, tendo em vista ser considerada um ente em processo de formação e, portanto, dependente do adulto. Em face da dependência, o infante deveria ser preparado pela família e pela escola para inserir-se no mundo “burguês”, adentrar em tal mundo em consonância com os preceitos que regiam esse novo modelo de sociedade.

A perspectiva de submissão da criança frente ao universo adulto ocorria antes da ascensão da burguesia, pois, mesmo participando de modo igualitário da vida adulta, ela era mantida excluída das decisões, ou seja, a criança era como um adulto em miniatura, pois se vestia com as mesmas roupas, apenas em tamanho menor, e as brincadeiras e as leituras que entretiam adulto e criança também eram as mesmas. No entanto, essa vivência igualitária restringia-se à vida social, já que o infante estava alijado do processo de tomada de decisões.

Surgida nesse contexto histórico, a narrativa literária infantil é caracterizada em função da especificidade do leitor que possui: criança. Além dessa singularidade, outras características particularizam ainda mais esse gênero: a formação do acervo infantil valeu-se, em seus primórdios, de material já existente

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como a adaptação dos clássicos (o romance inglês do século XVII) e dos textos folclóricos (lendas, mitos, cantigas, contos de fadas); caracterizam-se como textos literários infantis à medida que incorporam elementos típicos dos contos de fadas, tais como a presença do maravilhoso e a peculiaridade de apresentar um universo em miniatura; a vinculação estrutural aos contos de fadas faz com que a literatura infantil sofra o mesmo processo de evolução ocorrido com essa forma. Também se evidencia a preocupação do adulto com a criança.37

Devido à última característica, o gênero apresenta um caráter unidirecional, visto que o adulto é o responsável pela sua produção e circulação e a criança, apenas pela recepção, o que torna a literatura, em princípio, assimétrica. A assimetria é gerada, consoante Zilberman,38 ao citar Maria Lypp, pela desigualdade entre o autor adulto e o leitor infantil no tocante às questões, dentre outras, de natureza lingüística, cognitiva e social. A autora salienta, ainda, ser esse caráter unidirecional o fator que define a preocupação do adulto com a transmissão de normas sociais ou estéticas, resultando, via experiência da leitura, na constituição do “horizonte de expectativas” da criança leitora.39

A referida desigualdade, entretanto, deve ser superada pelo interlocutor adulto mediante o processo de adaptação, tendo em vista a necessidade de aproximar o texto literário da natureza do leitor mirim, sem deixar de atentar, todavia, para a

37 ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998. (Teses, 1). p. 48-49.

38 Id. Ibid., p. 50.39 Id. Ibid., p. 39.

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universalidade da arte. A presença de um caráter universal é o que garante à narrativa literária infantil sua literariedade, a qual resulta da capacidade da obra em romper com as modalidades pragmáticas de discurso e com as concepções de mundo de um determinado período. Dessa forma, a adaptação deve ser trabalhada a partir da adequação do assunto, da estrutura da história, da forma, do estilo e do meio aos interesses do leitor infantil, o que não representa a escolha por um gênero inferior. Ao aproximar o texto do universo do seu receptor, postula-se a possibilidade de se estabelecer o diálogo entre os mesmos e, por conseguinte, tornar possível à criança o acesso ao mundo real, organizando suas experiências existenciais e ampliando seu domínio lingüístico, bem como enriquecendo o imaginário.

O livro destinado à criança pode e deve dispor dos mais variados temas e assuntos, atentando o autor, apenas, para a capacidade de compreensão desse leitor, em virtude de que o mesmo se encontra num processo de amadurecimento, o que não significa ter uma visão redutora e preconceituosa, mas uma postura de respeito ao ritmo da criança, dando-lhe, assim, a oportunidade de dialogar com os referenciais encontrados no texto. Nesse sentido, algumas narrativas têm abordado temas como a paixão, presente em Cinderela, A dama e o vagabundo ou Tampinha, de Ângela Lago; o conhecimento oficial e a inseparabilidade de fantasia e realidade, em As aventuras de Alice no país das maravilhas de Lewis Carrol; a luta do velho contra o novo em Peter Pan, de J. Barrie; as dúvidas existenciais e emoções contraditórias de uma criança em busca do autoconhecimento em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes; a deteriorização do

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poder e dos valores instituídos em História meio ao contrário, de Ana Maria Machado, por exemplo.

Os assuntos abordados, enfim, são de natureza múltipla, centrados em questões objetivas ou subjetivas, tratando da realidade humana como um todo. Deve-se, no entanto, ter o cuidado para que o tratamento ficcional dado a esses conteúdos não se limite a focalizar o conjunto de normas em vigor, mas leve o leitor infantil à compreensão do contexto social em que está inserido por meio de um espaço aberto para a reflexão crítica da sociedade.

A compreensão do texto literário, com todas as suas nuances, pela criança relaciona-se igualmente com a organização lingüística por ele apresentada, pois o interlocutor da obra é um leitor em processo crescente de aquisição da língua, cabendo ao autor no momento da escrita considerar essa questão. Isso quer dizer que as narrativas devem ser construídas com um nível de linguagem de acordo com as fases de desenvolvimento mental da criança, o qual se dá por processos evolutivos de comportamentos. Seguindo essa perspectiva, escrever para a infância não é escrever de modo simplório, mas escrever com fluência e versatilidade a fim de ampliar seu repertório lingüístico e instrumentalizá-la para perceber o jogo de linguagem característico da literatura.

Com relação à estrutura da narrativa, segundo Aguiar,40 o processo de criação literária para a infância deve seguir o modelo 40 AGUIAR, Vera Teixeira de. Leituras para o 1º grau: critérios de seleção e

sugestões. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 88.

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tradicional do conto de fadas41, em face do sucesso já alcançado junto a esse público. A autora observa também que, embora criados para atender objetivos meramente reprodutores da ideologia vigente, contraditoriamente, nesses contos, “a multiplicação de situações, a ênfase na solução dos problemas, a riqueza das ações, a ordenação de um mundo variado, em que diferentes temperamentos convivem, promovem o alargamento vivencial do leitor, incitando-o a participar das peripécias e a buscar respostas”.42 Sendo assim, a narrativa pode ser estruturada dos seguintes modos:

1.Uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador das ações, a partir das quais se vai desenrolar o processo de solução, resultando no sucesso;

2. Uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador de ações, que resultam num fracasso e a partir do qual vai se desenrolar um processo de solução com vistas ao sucesso.

41 O conto de fadas segue o modelo do conto folclórico, estudado por Wladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso, que identificou 31 ações ou funções narrativas, pois o que muda são os nomes das personagens e não as suas ações ou funções. Em vista disso, os contos são estruturados a partir das funções das personagens e não dos assuntos. Para o estudo do conto de fadas simplificam-se as funções de Propp, resultando na estruturação da narrativa em duas formas apresentadas no corpo desta dissertação.

42 AGUIAR Vera Teixeira de. A literatura infantil no compasso da sociedade brasileira. In: ZILLES, Urbano (org.). Gratidão de ser. Porto Alegre: PUCRS, 1994. p. 76.

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As duas formas indicam a construção do final pautado no sucesso, uma vez que, para Bruno Bettelheim:

essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra as dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa.43

No que se refere à adaptação da forma, Zilberman,44

fundamentada na proposta de Göte Klinberg, sugere que as histórias destinadas aos infantes devem visar aos interesses do leitor, sempre considerando o seu nível de compreensão psicofísica da realidade, para que a forma selecionada atinja as suas expectativas recepcionais. As narrativas, neste sentido, devem constituir-se de enredos, cujo desenvolvimento apresente uma linearidade (começo, meio e fim), sem a presença de flash-backs ou grandes descrições.

Vale ressaltar, todavia, que a linearidade cronológica das ações, conforme Gerard Genette,45 não faz parte da tradição da literatura ocidental, já que a coincidência temporal ou grau zero entre história e discurso é hipotética, servindo apenas como referencial, caracterizando, então, a tradição do Ocidente como portadora do processo da anacronia, usado desde a Ilíada, de Homero. Logo, a narrativa infantil, em virtude da transitoriedade

43 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1980. p. 14.

44 ZILBERMAN(1998), op. cit. p. 50-51.45 GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Veja, 1995. p. 34.

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do leitor, também pode utilizar como recurso o jogo temporal em forma descontínua, visando desafiar seu leitor a mergulhar num mundo ficcional mais complexo, como o faz Lygia Bojunga Nunes em Corda Bamba, por exemplo, porque a realidade apreendida e significada pela obra caracteriza-se não só pelo viés da simplicidade, mas pelo percurso que vai desta à complexidade.

Outro dado a considerar é a materialização temporal marcada pela indefinição. Tal modo de organização do tempo assume um caráter mítico, porque “não é pautado por uma lógica que pressupõe a internalização de uma série de conceitos pertencentes a uma concepção compartimentalizada de compreensão do mundo, típica do adulto”.46 Nessa medida, a relação mítica estabelecida entre o mundo e o infante é possível em face de o pensamento mítico se associar ao pensamento da criança, uma vez que em ambos ocorre uma apreensão do universo como uma totalidade centrada numa harmonia entre o mundo vegetal, animal e mineral com o mundo espiritual.

A concepção espacial nos contos infantis, assim como a temporal, apresenta uma indefinição em virtude do caráter mítico assumido pela narrativa, uma vez que toda construção mítica é destituída de qualquer lógica, do ponto de vista do pensamento racional. A convivência, contudo, entre o mundo mágico e o real é possível, já que no universo do mito não há separação entre os dois mundos. No entanto, a indefinição não representa a ausência, pois o desenvolvimento da história depende das ações praticadas

46 BARBOSA, Maria Tereza Amodeo. Mitologia poética dos contos de fadas no Brasil. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1991. p. 102.

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pelas personagens, as quais só podem realizá-las dentro de um determinado lugar. Por isso, a caracterização das personagens, os conflitos e o tempo também indiciam a configuração do espaço na narrativa.

Ainda com relação à forma, as histórias não devem conter concepções de caráter moral, explicações ou justificativas do autor, e as personagens devem provocar nas crianças um processo de identificação, o que remete para o conceito de mimese de Aristóteles, no qual o espectador deve se reconhecer, enquanto modelo, na representação literária. Por isso, o leitor infantil tende a preferir a aventura entre crianças e jovens por se identificar com o herói, conforme constatado por Aguiar47 em pesquisa sobre os interesses de leitura no ensino fundamental.

O herói, assim como as demais personagens ou personas dos contos infantis, em geral, apresenta um conjunto de características básicas, que permitem estabelecer o seu perfil quanto aos aspectos estéticos e socioculturais, a saber:

1. Quanto à estrutura, o personagem narrador centraliza a ação e a conduz de modo a provocar reações positivas ou negativas no leitor. Os personagens são lineares e comportam-se de acordo com o modelo fechado de narrativa que, por sua vez, corresponde a um modelo estratificado de sociedade;

2. são, geralmente, alegorias do bem e do mal e se configuram nesse conflito dualista;

3 . representam valores que se cruzaram através de ciclos históricos; assim, podem significar ritos de iniciação, símbolos totêmicos e a luta entre forças da natureza;

47 AGUIAR (1979), op. cit., p.67.

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4 . apresentam traços tragicômicos favorecidos pelo tipo de narrativa em que se situam: narrativas que fazem oscilar situações de equilíbrio e desequilíbrio, de conflito e polarização de valores;

5 . os personagens maravilhosos cumprem várias funções dentro da narrativa; da eminentemente lúdica à de denúncia social. As soluções maravilhosas são questionadas pelas soluções mágicas. Estas são, em contrapartida, defendidas por psicanalistas que vêem nelas a possibilidade de resolução dos problemas reais, através da representação simbólica;

6 . o personagem-criança aparece esporadicamente, simbolizando o bom senso e a inteligência; ou apresenta-se como vítima da autoridade familiar;

7 . os personagens maravilhosos mais comuns são fadas e bruxas, justamente a oposição entre forças positivas e negativas;

8 . outros personagens bastante comuns são príncipes, princesas, reis e rainhas, que significam a fantasia do poder e os conflitos dos relacionamentos interpessoais;

9 . nos contos as mesmas ações são praticadas por personagens diferentes de maneiras diferentes. Os personagens catalogados por Wladimir Propp são sete (o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso herói) e se ligam a esferas de ação. O que muda nos contos em relação aos personagens, são os atributos, que nos permitem estabelecer relações histórico-culturais variáveis.48

O perfil da personagem do conto infantil apresentado por Sônia Salomão Khedé revela a estreita ligação entre as escolhas do autor e o seu receptor, visto que a caracterização linear e a localização das mesmas em pólos bem definidos denotam a concepção da criança enquanto indivíduo em processo de formação e que, portanto, necessita do auxílio do adulto para poder decifrar a organização do mundo real e a partir daí 48 KHEDÉ, Sônia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil.

2.ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 23-25. (Série Princípios)

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compreendê-lo melhor. Vale ressaltar, entretanto, que tais escolhas evidenciam também uma determinada visão de mundo, o que implica a representação pelas personagens dos papéis sociais desempenhados pelas pessoas em sociedade de acordo com o ponto de vista do narrador.

Desse modo, a matéria narrada é trazida à superfície do texto a partir do seu ponto de vista, o qual apresenta um processo de organização interna que indica os recursos utilizados com vistas à concretização das suas intenções. Evidencia-se, então, uma posição privilegiada do narrador em relação ao leitor, o que demarca uma assimetria, visto que este depende das pistas deixadas por aquele a fim de realizar o percurso da narrativa.

Quanto às personagens crianças nas histórias infantis como protagonistas, sua presença é recente, visto que anterior à criação da literatura infantil já havia um universo ficcional repleto de personas como as fadas, seres místicos de origem oriental, céltica e européia, presentes nas narrativas medievais direcionadas aos adultos. As antigas narrativas maravilhosas, lendas ou sagas germânicas foram catalogadas pelos irmãos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm sem uma preocupação com o mundo infantil, e os contos folclóricos reunidos por Charles Perrault e os criados por Hans Christian Andersen caracterizavam-se pela predominância do herói adulto e dos seres fantásticos como pontos centrais da narrativa.

Sendo assim, somente na segunda metade do século XIX, as crianças deixam de representar personagens secundárias e

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passam a figurar como heróis, como, por exemplo, Alice em Alice no país das maravilhas, Dorothy em O mágico de Oz, Pinóquio em As aventuras do Pinóquio, Peter Pan em Peter Pan. A introdução da criança como protagonista, de acordo com Zilberman,49 provocou alterações na estrutura da história, porque a ação se tornou contemporânea ou datada, proporcionando à criança ver-se representada ou simbolizada na ficção, cujo desdobramento apresenta o embate entre o mundo do herói e o dos adultos.

A inovação pode contribuir para superação da situação de inferioridade do infante em relação ao meio circundante, desde que o texto infantil funcione como suporte do leitor nesse processo, pois o papel infantil irá configurar-se em dose dupla, personagem e leitor, o que implica a quebra do monopólio do discurso do adulto, visto que a voz da criança também se faz presente. Se há um discurso constituído de uma diversidade de vozes falando de diferentes lugares, há, portanto, a multiplicação dos níveis de realidade e, assim, a construção de uma postura reflexiva perante as regras e valores sociais que moldam o comportamento do homem atual.50

Transformar a criança no centro do mundo da ficção, entretanto, não isenta a narrativa literária infantil de continuar sendo alvo de indagação a respeito do seu papel enquanto transmissora de normas ou questionadora das mesmas. A resposta vai depender, sobretudo, do modo como os recursos da linguagem serão manipulados na organização interna do texto, 49 ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil e o leitor. In: ZILBERMAN, Regina,

MAGALHÃES, Ligia C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3.ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 87. (Ensaios, 82)

50 ZILBERMAN(1987), op. cit., p.86.

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como, por exemplo, o nível de poder do narrador sobre a voz da personagem, a valorização de determinada variação lingüística e a distância maior ou menor entre o emissor do relato e o sujeito da ação.51 Enfim, os recursos literários empreendidos na obra literária infantil serão utilizados conforme o tipo de relação estabelecida, no universo ficcional, entre narrador e leitor, evidenciando, assim, um processo autoritário ou de emancipação.

Mediante a análise dos aspectos estruturais e formais do universo ficcional construído para as crianças, pode-se depreender, por conseguinte, as normas literárias – a construção das personagens, apresentação e desenvolvimento do conflito, a representação do tempo e do espaço – e as concepções de mundo – o lugar da criança enquanto narrador e sujeito sociohistórico – que constituem o horizonte de expectativas do leitor infantil.

1.4 A tessitura das histórias: metodologia da1.4 A tessitura das histórias: metodologia da pesquisapesquisa

Os pressupostos teóricos apoiados na estética da recepção, na sociologia da leitura e na teoria da narrativa infantil têm em comum o seguinte aspecto: trabalham com o terceiro

51 Id. Ibid., p. 111.

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elemento do circuito literário, o leitor. O papel da estética da recepção é descrever o horizonte de expectativas com o objetivo de explicitar a relação entre a obra literária e seu público; a sociologia da leitura lida com os aspectos extrínsecos do ato de ler, cujo foco principal é a relação entre o livro e seus mediadores sociais; e a teoria da narrativa infantil postula formular o estatuto literário de uma literatura que é caracterizada em função da especificidade do seu leitor, a criança.

Considera-se, então, esse quadro referencial como sendo o mais adequado para fundamentar o propósito dessa pesquisa, que é dar voz ao leitor infantil mediante a identificação e análise das normas literárias e das concepções de mundo presentes nas narrativas infantis que reproduzem textos literários conhecidos/lidos, tendo em vista a variável nível socioeconômico, uma vez que o enfoque dado por esse conjunto de teorias proporciona condições de se configurar o horizonte de expectativas dos leitores infantis de diferentes classes sociais em contexto escolar.

Para se chegar a esse horizonte, foi necessária a construção de um percurso metodológico para o desenvolvimento da pesquisa. Assim, procedeu-se, inicialmente, a uma pesquisa de caráter bibliográfico, realizada a partir de estudos sobre o referencial teórico já descrito anteriormente. Essa fase serviu para se estabelecer o diálogo entre os três eixos epistemológicos selecionados, objetivando definir quais os espaços teóricos que possibilitariam a materialização da voz da criança para se compreender o processo da recepção literária infantil.

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Definidos os pressupostos de sustentação da pesquisa, uma indagação se fez presente: como tornar a voz da criança um objeto concreto de análise? A fim de responder a tal questionamento, tornou-se necessária a realização de uma pesquisa de campo, visto que seria através da escrita das crianças que se poderia diagnosticar as marcas da recepção do texto literário deixadas pelo pequeno leitor.

A escola foi tomada como espaço físico e social adequado para a coleta dos dados, devido ao fato de crer-se que o texto literário, nesse ambiente, deve circular com maior freqüência, tendo em vista ser ela, hoje, a principal responsável pela mediação de leitura literária na sociedade brasileira, muito embora outros mediadores também se façam presentes, como, por exemplo, a família. No entanto, as condições socioeconômicas e culturais das famílias, muitas vezes, não as tornam agentes preparados para cumprirem também esse papel, cabendo, portanto, à escola atuar como protagonista nesse contexto. Além disso, o ambiente escolar é o lugar em que o processo de formação do leitor apresenta maior visibilidade em face de sua organização formal.

O campo de atuação da pesquisa foi composto por duas instituições do ensino fundamental de Teresina, capital do Estado do Piauí, sendo uma escola pública municipal, que atende à classe social desfavorecida e uma particular, voltada à classe social favorecida, do ponto de vista socioeconômico. Para classificação do nível socioeconômico das escolas usaram-se os dados contidos

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na ficha escolar fornecida pelas escolas,52 que serviram de indicadores dessa variável.53

Sendo assim, por classe social desfavorecida entendeu-se aquela cujas famílias são compostas por pais, que, em sua maioria, apresentam grau de escolaridade até nível médio, trabalham em atividades sem prestígio socioeconômico (funcionário público de nível médio, comerciário, vigilante, doméstica, artesão, motorista, costureira, etc.), e, cujos filhos freqüentam uma escola de caráter público municipal, gratuita e com localização em bairro periférico da cidade de Teresina – Piauí. Por classe social favorecida entendeu-se aquela cujas famílias são compostas por pais, que, em sua maioria, apresentam grau de escolaridade de nível superior e trabalham em atividades de prestígio socioeconômico (médico, advogado, professor de nível superior, engenheiro, comerciante, etc.), e, cujos filhos freqüentam uma escola de caráter privado, com mensalidade de valor elevado e com localização em bairro considerado nobre da cidade de Teresina – Piauí. Salienta-se que todos os textos

52 A ficha da escola pública é composta dos seguintes dados: nome da escola, turma, matrícula, nome, sexo, data de nascimento, certidão de nascimento, nacionalidade, naturalidade, unidade da federação, origem, situação afastamento, data de afastamento, dispensa de ed. física; dados dos responsáveis (nome dos pais, profissão, grau de instrução, responsável, endereço do responsável). A ficha da escola particular foi montada pelo pesquisador, conforme acordo com a direção da escola, com os seguintes dados: nome, sexo, data de nascimento, nacionalidade, naturalidade, nome dos pais, profissão, grau de escolaridade, trabalhador ativo ou inativo.

53 Quanto à ficha escolar do aluno, o pesquisador teve pleno acesso a essa na escola pública, inclusive com a oportunidade de fotocopiá-la, e, na escola privada, foi permitido apenas a coleta de dados previamente acordados com a direção, uma vez que há uma cláusula no contrato entre a escola e os pais que não permite a divulgação de dados pessoais. Vale ressaltar que as fichas das duas escolas apresentavam dados similares e não continham o valor da renda familiar.

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constantes da amostra pertencem a alunos que preenchem os quesitos acima referidos no que tange às classes sociais.

Utilizou-se também como critério para a seleção das duas escolas a existência de uma proposta pedagógica que contemplasse efetivamente a prática da leitura literária no contexto escolar. Nesse sentido, a escola privada atendia ao critério porque a ação do trabalho está centrada na pedagogia de Celestin Freinet, filiada ao Movimento da Escola Moderna,54

possuindo duas bibliotecas, uma de referência e outra infanto-juvenil, essa denominada “Biblioteca do Barulho”, dotada de um acervo com cerca de 5.000 títulos. O trabalho na infanto-juvenil é coordenado por uma professora-contadora de histórias, que assume o papel de bibliotecária e realiza atividades diárias e semanais de leitura com todas as séries do ensino fundamental, tais como a “Hora do Conto”,55 “Projeto Vida e Obra do Autor”,56

54 Em oposição à pedagogia tradicional, a pedagogia Freinet caracteriza-se por colocar o aluno – ser social (e não o professor) no centro da atividade escolar, para ajudá-lo a construir a sua própria aprendizagem. A metodologia destaca o princípio da aprendizagem por descoberta partindo do interesse e da atividade de experimentação dos alunos, sendo o professor o facilitador do processo de busca do conhecimento, que organiza e coordena situações de aprendizagem, bem como o estudo do aluno, instrumentando-o para o trabalho independente.

55 A “Hora do Conto” é realizada com as crianças do pré-1 até a alfabetização, uma vez por semana com a duração de trinta minutos, acontecendo a contação de histórias infantis pela bibliotecária com o auxílio da professora. A partir dessa etapa, são realizadas outras atividades, tais como dramatização, músicas, coreografias, pinturas e até criação de novas histórias.

56 O “Projeto Vida e Obra do Autor” é realizado com os alunos da 1ª a 8ª séries do ensino fundamental, que articula atividades em conjunto da biblioteca e da sala de aula, está sendo desenvolvido há quatro anos, sendo escolhidos oito autores brasileiros para serem lidos durante o ano letivo, os quais são trabalhados em todas as séries, com obras diferenciadas para cada série. Os critérios de seleção dos autores estão baseados na preferência do público e de sua importância e, no ano de realização da pesquisa, fizeram parte os seguintes escritores: Assis Brasil, Ziraldo, Ana

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“Roleta Literária”,57 “Praça da leitura”,58 “Festival de Contadores de Histórias”,59. A biblioteca ainda mantém o “Correio Literário”, que é distribuído nas salas de aula, visando buscar os alunos que estão mais distanciados da leitura por meio de sugestões de obras feitas pelas crianças para os demais colegas, servindo a publicação, ainda, como uma forma de cobrar a devolução dos livros adquiridos pelo serviço de empréstimos, cujo prazo é de dois dias. O “Jornal Literário” também está inserido no rol de estratégias para atrair o leitor da escola, no qual são divulgadas as

Maria Machado, Marina Colasanti, Ruth Rocha, Sônia Junqueira, Lino de Albergaria e Paulinho Pedra Azul. Não havendo possibilidade de levar o mesmo autor para todas as séries, pois alguns não se adequam para determinada faixa etária, eles são substituídos por outros autores como, por exemplo, Machado de Assis, José de Alencar, Fernando Sabino e Clarice Lispector. Nas turmas de 1ª a 4ª séries, toda sexta-feira é realizada uma atividade em torno da obra, da qual todos os alunos são portadores, a saber: 1ª)leitura da obra; 2ª)organização a apresentação da história; 3ª) apresentação do resultado da atividade anterior para a própria turma ou para outras turmas, ou na praça da leitura; 4ª) leitura de outras obras do autor, que ficam à disposição dos alunos na sala de aula, além disso, são repassadas informações sobre o autor e o registro escrito da opinião dos alunos sobre a obra lida. Finalmente, a última atividade é feita na “Roleta Literária”. A Biblioteca do Barulho fica responsável pelo incentivo à leitura das obras escolhidas e pelo conhecimento do autor selecionado; para isso confecciona painel e álbum com “Vida e Obra do Autor”, painel com pensamentos do autor, painel mostrando as obras do autor trabalhado na escola, apresentações de outras histórias do autor e exposição de outras obras do autor

57 A “Roleta Literária” é dividida em dez partes, onde cada parte traz uma atividade relacionada ao autor e a obra do mês, para ser executada pelos participantes na biblioteca (narração da história oralmente, perguntas sobre a história, trecho da história para dramatização, características das personagens, reconhecimento da ilustração, vida e obra do autor, ilustração de cena, integração da história, trabalho com a linguagem, propagando do livro). O objetivo principal é servir como instrumento de avaliação do trabalho com o Projeto Vida e obra do autor.

58 A “Praça da Leitura” é um espaço criado para a realização de atividades em que alunos e/ou convidados apresentam obras que estão sendo lidas em sala de aula ou outras obras, que demandem um interesse por alguma temática que esteja sendo explorada pela escola.

59 O “Festival de Contadores de Historias” é realizado anualmente e objetiva descobrir talentos para contação de narrativas. Tal atividade está ligada à praça da leitura.

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atividades realizadas na biblioteca, sugestões de leitura feitas pela bibliotecária, professores e colegas, muito embora estivesse parcialmente desativado, pois somente um exemplar estava pronto para o ano de 1999.

Nas salas de aula também eram desenvolvidas atividades de leitura de texto, tendo como suporte material um caderno60

com 80 textos curtos, organizado pelas diretoras da escola. Tais textos são explorados quantitativamente, 40 no primeiro semestre e 40 no segundo, uma vez que os alunos recebiam semanalmente quatro textos, na sua maioria literários e predominando o gênero narrativo. Havia também um pequeno acervo literário em cada sala de aula. A metodologia adotada explorava a leitura oral e silenciosa e o debate, entrando em discussão os elementos estruturais da narrativa (narrador, personagens, tempo, ambiente, enredo), tematização, estilo do autor ( nível de linguagem, nível das palavras, tipo de discurso, nível de interação narrador/leitor, figuras de linguagem), opinião dos alunos, ou seja, fazia a criança mergulhar no universo ficcional do texto.

A escola pública municipal selecionada, no entanto, apresentava inúmeras deficiências quanto à prática da leitura literária, uma vez que não possuía um projeto pedagógico efetivamente aplicado que se direcionasse a essa atividade, muito embora a “Proposta curricular do ensino fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Teresina”61 indicasse essa 60 CORDEIRO, Waldília Nevia de M. S., VALE, Maria Luíza Lima do. Caderno

de textos: leitura e interpretação.Teresina, s/d. v. 04.(mimeo)61 De acordo com a proposta, “a educação deve ter o caráter essencialmente

voltado para a reflexão, criação e recriação do conhecimento sobe o Trabalho e a Vida. (...) a serviço da formação do homem, tornando-o capaz de compreender criticamente a realidade social e consciente de seus

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atividade como tarefa da escola. Todavia, a proposta é omissa à medida que não explicita nem sistematiza o processo de formação do leitor através da literatura infantil, visto que enfatiza a leitura do texto literário como pretexto para a aquisição da escrita. Na escola que participou da pesquisa, não havia um espaço físico destinado à biblioteca, apesar da existência de um pequeno acervo com 190 títulos, o qual ficava numa espécie de depósito e nem sempre era utilizado por todo o corpo docente. Mas, dentre as professoras, uma destacava-se pelo trabalho de levar até à sala de aula o texto literário e fazê-lo circular, mesmo que de forma precária. Ela instituiu o sistema de empréstimo de livros nos mesmos moldes de uma biblioteca (havia fichas para anotações dos empréstimos)62 e o acervo ficava localizado na própria sala de aula.

Além desse material, a professora contava com um livro didático ao qual todos os alunos tinham acesso, como também com outros textos mimeografados, que eram levados para a sala de aula, de diversos autores, como, por exemplo, Ruth Rocha, Pedro Bloch, Chico Buarque de Holanda e os Irmãos Grimm. A metodologia adotada era marcada pela leitura silenciosa, seguida da oral, para, em outra etapa, se explorar o texto quanto à sua temática, visto que eram selecionados com vistas ao

direitos e responsabilidades, procurando atuar na transformação dessa realidade”. No que tange ao ensino da Língua Portuguesa, os aspectos levados em consideração são a linguagem oral, a aquisição da escrita e a leitura, bem como a desigualdade sociocultural entre as regiões, as variedades lingüísticas e a realidade sociocultural do aluno”. cf. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Proposta curricular do ensino fundamental. Teresina: PMT, 1995. p. 9.

62 A ficha de empréstimo contém os seguintes dados: título, autor, ilustrador, coleção ou série, editora, aluno, bloco, etapa, data de devolução. Essa ficha era confeccionada pelos alunos no verso de papéis já usados, que entregavam à professora para o devido controle.

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desenvolvimento de datas comemorativas ou assuntos atuais. Dessa forma, a professora propiciava aos alunos, mesmo que de forma incipiente, a oportunidade de acesso ao texto literário, o que justifica a seleção da referida escola como parte do universo da pesquisa.

Para a elaboração desse perfil das escolas, utilizou-se como instrumento de pesquisa a entrevista (Anexo 1) com os professores-regentes das duas escolas e com a professora animadora da biblioteca da escola privada, em que foram levantados dados referentes à prática da leitura literária necessários à interpretação do corpus. O conhecimento a priori do pesquisador a respeito das escolas e as observações realizadas in loco também contribuíram para a confecção do referido perfil e para tentar compreender com mais clareza aquelas duas realidades tão díspares no tocante ao processo de mediação do ato de ler.

Concluída a etapa de entrevistas e observações, realizou-se a fase de construção do corpus, o qual foi constituído por narrativas infantis reproduzidas por crianças da 4ª série do ensino fundamental das duas escolas selecionadas. As narrativas foram coletadas a partir da atividade de produção/reprodução de texto em que o pesquisador solicitou às crianças a escrita de uma “história” já ouvida ou lida de que mais gostavam ou que achavam mais interessante e cujos leitores seriam crianças da mesma série de outra escola. A definição de um interlocutor infantil para a “criança-narradora” fez-se presente como tentativa de amenizar o caráter assimétrico constante na literatura infantil, em que o autor

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está numa posição de superioridade em relação ao seu leitor. Com a definição de interlocutores no mesmo nível, pretendia-se que a criança estivesse consciente de que estava escrevendo para um indivíduo portador de características iguais às suas e que, estabelecida uma relação simétrica, pudesse essa se refletir na escolha da história a ser reproduzida. Enfim, a intenção era de que a criança não se comportasse como um adulto escrevendo para um infante, mas para um interlocutor real, uma vez que se levou em consideração que, na produção e recepção de textos, um dos fatores pragmáticos que interferem na configuração do texto e, conseqüentemente, do seu sentido, é o jogo de imagens que cada um dos interlocutores faz de si, do outro e do outro com relação a si mesmo e ao tema do discurso.63 A proposição da atividade tinha como objetivo a realização da escritura real de um texto e não a de um exercício de redação, já que as condições de produção estavam definidas.

A atividade foi realizada nos meses de outubro e novembro do ano de 1999, porque esse período coincidia com a etapa final das programações escolares do primeiro ciclo do ensino fundamental, e, sendo assim, as crianças já teriam sido expostas à atividades de leitura por, no mínimo, quatro anos letivos, visto que a inserção da criança de classe social desfavorecida ocorre, principalmente, na primeira série do ensino fundamental. Esse período representa um tempo significativo de possibilidades de recepção literária promovidas pelo sistema formal de ensino. Foram produzidos cerca de 67 (sessenta e sete) 63 PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F., HAK, T.

(orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 2. ed. Campinas: UNICAMP, 1993. p. 79-92 (Coleção repertórios)

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textos, dos quais selecionou-se 24 (vinte e quatro) como corpus, tendo como critérios a maior incidência de textos produzidos por alunos com idades de 10 e 11 anos, a variedade de títulos e os títulos reconhecíveis, sendo 12 (doze) referentes ao colégio particular, que atende a crianças de nível socioeconômico favorecido (Anexo 4), e 12 (doze) referentes à escola pública municipal, com crianças de nível socioeconômico desfavorecido (Anexo 5).

Selecionado o corpus, esse passou a ser objeto de uma análise de cunho qualitativo, com base nos pressupostos teóricos privilegiados, a fim de se compreender o modo como as crianças realizam a recepção do texto infantil, enfocando as questões da pesquisa e os objetivos a serem alcançados. A escolha por uma pesquisa qualitativa nessa etapa da investigação justifica-se por ser ela a que trabalha com o universo de significados, de crenças e de valores que constituem os horizontes de leitura da criança. Sendo assim, elaborou-se uma ficha de análise das narrativas infantis (Anexo 2), evidenciando, num primeiro momento, a presença das normas literárias, tais como a construção das personagens, a apresentação e desenvolvimento do conflito, a representação do tempo e do espaço; e, num segundo momento, as concepções de mundo presentes, a saber, o lugar da criança enquanto narrador e sujeito sociohistórico, considerando-se a variável nível socioeconômico.

Antes de realização da pesquisa de caráter analítico-qualitativo, contudo, fez-se o levantamento das obras reproduzidas pelos alunos, a fim de que se pudesse verificar a

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existência do livro na escola e para servir de referência, no momento da análise, com vistas à identificação do nível de fidelidade e das alterações com relação aos originais. Para realizar tal catalogação, elaborou-se uma ficha bibliográfica (Anexo 3).

Definidos os pontos a serem estudados nos textos dos alunos com base na fundamentação teórica, procedeu-se à análise de cunho qualitativo dos mesmos, a partir das pistas singulares ou não deixadas pelas crianças nas narrativas. Sendo uma análise qualitativa cujo olhar se volta para o valor dos dados que se manifestam ou não na escrita, a intuição do investigador também entrou no jogo de formular hipóteses, recuperadas a partir de pistas e indícios.

Para tanto, analisou-se individualmente cada texto para, em seguida, agrupá-los à classe social de origem com vistas ao delineamento do perfil de normas apresentadas. Depois de descrito e interpretado cada conjunto de narrativas referentes aos dois grupos sociais, realizou-se o cruzamento dos dados, objetivando estabelecer semelhanças e diferenças entre as amostras. Dessa forma, seguir esse procedimento tornou possível a reconstituição dos horizontes de leitura das crianças de diferentes classes sociais em contexto escolar.

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