03 uma proposta de dança na melhor idade

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    RELATO DE EXPERINCIA

    UMA PROPOSTA DE DANA NA MELHOR IDADE

    VALRIA MARIA CHAVES FIGUEIREDO*CAROLINE PROTSIO SOUSA**

    RESUMO

    O presente trabalho relata experincia vivenciada no programa Comear deNovo, uma proposta metodolgica de dana na maturidade. O programa visa desenvol-ver aes socioeducativas, artstico-integrativas, atravs de processos interdisciplinaresentre as reas da dana, msica e artes plsticas. Propusemos uma construo coletiva deaulas e proposies coreogrficas, visando a uma reflexo sobre a arte na maturidade, aspossibilidades da expresso de cada aluno, e tambm um debate sobre o corpo maduro,suas mudanas e conquistas e a experimentao do fazer e do fruir artstico.PALAVRAS-CHAVE: Dana - Maturidade - Terceira Idade.

    Esta uma proposta de ensino da dana a partir, para e com ogrupo de aposentados e aposentandos da UFG e comunidadeem geral. Esta parceria da Faculdade de Educao Fsica/UFG coma Pr-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitria (Procom),

    * Professora assistente da Faculdade de Educao Fsica da UFG e coordenadora doProjeto A Dana na Melhor Idade.** Monitora do projeto e aluna da Faculdade de Educao Fsica da UFG

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    a Pr-Reitoria de Desenvolvimento Institucional e Recursos Huma-nos (DDRH) e a Pr-Reitoria de Extenso e Cultura (Espao Cultu-ral) recebeu o nome de Comear de Novo.

    Este programa visa refletir, romper e recriar imagens e estig-mas que permeiam a terceira idade, implementando a sua efetivaparticipao na sociedade nos mais diversos aspectos e ambientes:a famlia, o trabalho e o lazer.

    Dentro do programa Comear de Novo acontecem, de for-ma interdisciplinar, vrios projetos, dentre eles o de dana. O cursode dana atendeu a cada ano, desde 1998, aproximadamente 60aposentados e aposentandos de ambos os sexos, com duas horassemanais de atividade e duas turmas. Uma srie de aes foi de-senvolvida, tais como: danas de salo, princpios da dana con-tempornea, conscincia pelo movimento baseado nas tcnicas deAngel e Klauss Viana, construes coletivas de coreografias, apre-sentao destas coreografias em inmeros locais, passeios cultu-rais, discusses sobre filmes e espetculos da rea e laboratriosde leituras. A base de referncia terico-prtica de nosso trabalhoest centrada nos estudos de Angel e Klauss Vianna, bem como naspropostas de Laban e seus colaboradores e das professoras LiaRobatto, Leda Ianitelli, Isabel Marques, entre outros.

    Durante todo o processo, a avaliao foi contnua e qualita-tiva no intuito de construir, refletir, discutir e transformar nossa prticapedaggica. Chegamos a resultados importantes que foramregistrados e sistematizados a partir de entrevistas individuais, dediscusses com o grupo e de observaes dos professores diantedas atividades.

    Percebemos, assim, mudanas qualitativas e sintetizamos aquialguns dados. Os principais pontos apresentados foram: crescimentopessoal dos alunos diante do contedo de dana, melhoria dasrelaes interpessoais e convivncias, reviso dos preconceitossobre a idade madura, resgate das potencialidades de cada pessoa,

    privilgio do trabalho coletivo, crescimento a partir da liberdade deexpresso, resgate da autonomia e valorizao da capacidade deensinar e de aprender de cada um. Tudo isto est diretamenteconectado ao que pensamos e concebemos como qualidade de vida;so adaptaes amplas nos vrios aspectos da vida.

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    Assim, podemos afirmar que a dana possibilita conquistasaos alunos, pois amplia seus conhecimentos, sensibilidades e suasrelaes com o mundo. Descobrindo os mistrios da dana, reen-contramos o prazer e a satisfao.

    Qualquer pessoa tem o direito de danar, de explorar, conhe-cer, sentir e expressar sua subjetividade pela dana. Segundo KlaussViana (1990), a dana deveria ser possvel a todos, pois todos so-mos danarinos.

    POR QUE A DANA?COMPREENDENDO A PARTIR DA HISTRIA

    difcil determinar quando, como, onde e por que o homemdanou pela primeira vez. H indcios de desenhos gravados, nascavernas de Lascaux, pelo homem pr-histrico, de figuras dan-ando. E como o homem da Idade da Pedra s gravava nas paredesde suas cavernas o que lhe era importante, como a caa, a alimen-tao, a vida e a morte, o mais provvel que essas figuras danandofizessem parte de rituais religiosos. Segundo Garaudy (1980), adana um rito um ritual sagrado e um ritual social e est naorigem de toda significao humana.

    A prpria palavra dana, em todas as lnguas europias danza,dance, tanz , deriva da raiz tan que, em snscrito, significa tenso.Danar vivenciar e exprimir, com o mximo de intensidade, a rela-o do homem com a natureza, com a sociedade, com o futuro e comseus deuses. (Garaudy, 1980, p. 14)

    Para os povos antigos, a dana era fundamental na preserva-o das suas culturas, proporcionando conscincia de fora e detranscendncia. Danando, uma comunidade se mantia unida.Garaudy (1980) tambm fala da dana como modo de viver e comofruto das necessidades de expresso do homem. Esse sentimentoliga-se ao que h de bsico na natureza humana.

    A progresso da dana, de cerimnia religiosa a arte dos po-vos, no foi aleatria e esteve influenciada pelas questes sociais,polticas, culturais, econmicas e estticas. A arte, portanto, no

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    surge do nada, uma necessidade latente do homem para exprimirsentimentos, pensamentos e realidades. A arte construda e pro-movida pelo homem.

    Portinari (1989) tambm relata ser a dana a mais antiga dasartes e que o homem carrega-a dentro de si desde temposimemoriais, pois foi atravs dos seus ritos e significados mticosque os grupos celebraram suas crenas e suas vidas. Durante a IdadeMdia crist, a dana se transformou em divertimento; neste contextosurgiu a dana-espetculo que o mundo ocidental conhece. A danada Corte surge na Itlia, durante o sculo XIV; Boucier (1987) adescreve como cerimoniais da Corte que representam muito bem oentretenimento da aristocracia da poca. O Renascimento marca afase em que se inicia a codificao da dana clssica e surge umperodo de florescimento nas artes, uma revoluo no pensamentoe na esttica. Pronunciam-se a ostentao e o conforto. Os msicos,os pintores e os escultores so disputados pela requintada nobreza.

    J a Revoluo Francesa, no final do sculo XVIII, ummarco na transio da dana-divertimento para uma dana maisteatral. No romantismo, o reinado da valsa, contempornea a Goethee a Strauss. Esse movimento d vazo imaginao, que supera olugar da razo. Essa fase se finda com a entrada do sculo XX,

    quando se inicia o momento de uma busca da autenticidade domovimento.

    Com as danas moderna, ps-moderna e contempornea sur-gem as novas propostas revolucionrias para o ensino da dana;novas estticas e abordagens corporais, menos restritivas e formais.A dana moderna nasce em meio a uma sociedade industrializada,advinda da Revoluo Industrial, e se apresenta determinada a rom-per com modelos e padres estabelecidos pelos conceitosmecanicistas vigentes na indstria. Garaudy (1980) reflete que adana moderna somente aferida por uma viso sistemtica, quea situe na estrutura global e na estrutura dinmica da sociedade e

    que pergunte o papel que representa na criao de uma harmoniaentre homem, natureza e sociedade.A importncia do surgimento da dana moderna est intima-

    mente ligada a uma real revoluo esttica e formal. Significa umaruptura com as formas acadmicas e clssicas, com os modelos

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    estabelecidos, criando novos cdigos para o corpo. Surgem revo-lucionrios, entre eles Isadora Duncan, com sua busca pela liberda-de de movimentos.

    Para mim a dana no apenas uma arte que permite a alma huma-na expressar-se no movimento; tambm a base de toda uma concep-o de vida, mais flexvel, mais harmoniosa, mais natural. (Duncan,apud Brikman,1989, p.109)

    Da escola moderna alem ressaltamos aqui a contribuio

    de Rudolf Von Laban, que criou um grande estudo sobre o movi-mento, a arte do movimento, com uma forma de dana mais pesso-al e mais expressiva. Deixou muitas pesquisas e seguidores quevm atualizando sua teoria. Suas propostas iniciaram o que conhe-cemos hoje como dana-educao. Laban dedicou seus estudos aoensino de uma dana educativa.

    A dcada de 1970 nos trouxe algo de especial, que foi umcrescimento nas tcnicas chamadas de conscincia corporal e ex-presso corporal, nos quais a dana passou a ser experimentadapor pessoas que no representavam o modelo idealizado para bai-larinos, por gente comum vinda de diversas profisses e com

    diversos modelos de corpos.O ltimo movimento deste sculo, a dana contempornea,reaproxima novamente a dana das outras linguagens como o tea-tro, o circo, a poesia etc., permitindo assim a assimilao de novosmeios dramticos, recursos cnicos e estticas. A pluralidade e adiversidade tomam lugar dos tradicionais modelos formais que adana apresentava, principalmente no bal clssico.

    Com a arte contempornea podemos no apenas assistir, mastambm interagir, experimentar, tocar, criar. Ela transgride o seutempo e os espaos. A dana escala paredes, como na Cia. DboraColker (RJ); chama o pblico ao palco, como na Cia. Balangandana(SP); dana com meninos e meninas das favelas brasileiras, comono Corpo Cidado, de Ivaldo Bertazzo (SP).

    Vale ressaltar que Angel e Klauss Vianna so importantes nomovimento das artes cnicas contemporneas no Brasil, pois cria-ram novas propostas e metodologias para o ensino da dana, bem

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    como possibilitaram amplo acesso das pessoas comuns dana,sem discriminao e preconceito. Para a famlia Vianna, a dana e aarte se confundem com a vida e despertam um desejo eminente epermanente de investigao. O princpio de seus trabalhos se pautano resgate do prazer pelo movimento, respeitando-se a capacidadede cada indivduo. A dana aparece como uma grande descobertade si, sendo relacional e individual, sem modelos ou pr-concei-tos. Propuseram um corpo que pensa, sente, age, fala, critica, ques-tiona e descobre. Este o corpo que dana hoje.

    FINALIZANDO

    Neste projeto, portanto, propusemos uma construo coletivade aulas e de proposies coreogrficas, visando reflexo sobre aarte na maturidade, as possibilidades da expresso de cada aluno, odebate sobre este corpo maduro, as suas mudanas e conquistas e aexperimentao do fazer e do fruir artstico. Acreditamos que, namaturidade, esta dana dever ser criativa, inter-relacional, expres-siva, crtica e contempornea. importante ter um olhar contem-porneo para a dana que agente da educao e linguagem dearte, pois s assim surgem as possveis redes de transformao.

    Foi a partir dos interesses do grupo que pensamos nas rela-es estabelecidas entre a dana, o senso comum e as possibilida-des de superao. O referencial do projeto est voltado para a pos-sibilidade, com o potencial criativo mediado pelo trabalho coletivo.

    Segundo Ianitelle (1999), o processo criativo resulta das re-laes dialgicas entre dois e/ou mais aspectos. As idias de movi-mento no trabalho devem ocorrer com uma inter-relao entre ar-tista, meio e proposta do projeto, com conhecimento e intuio,pelo interior e exterior, sendo ntimo e pblico, onde a referncia aoutros objetos so concepes de dilogo.

    Essas comunicaes so importantes para ampliar o processo

    criativo, tambm abordando textos e filmes selecionados; as dis-cusses em grupo devem implementar procedimentos de experin-cias dialgicas. A motivao e a atitude criativa funcionam comopr-condies fundamentais ao processo. A motivao envolve apercepo de um sentido de relevncia, de um desejo interior res-

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    ponsvel pelo engajamento artstico. Na atitude criativa so impor-tantes a espontaneidade, a tolerncia, a ambigidade, a capacidadede correr risco, a curiosidade e a aceitao do caos e daindeterminao.

    Finalmente, o espao de reflexo o que contribui para queo processo de ensino-aprendizagem na arte possibilite trocar expe-rincias, valorizar o prazer nas atividades realizadas e compreen-der o processo experimentado.

    O corpo maduro um corpo sbio e um corpo aprendiz, diver-so e acomoda as experincias da vida com suas diferenas. Esta dan-a de que tratamos respeita estas diferenas e os conflitos pessoais.

    A dana na educao traz uma nova viso para a rea, j queos processos educativos no devem se desvincular das questesartsticas. Como refere Marques (1999), o professor que trabalhacom arte dever ser sempre um docente-artista, portanto o nossoaluno ser um aluno-danarino. O processo na arte to importan-te quanto seu produto. Proposies cnicas so dialgicas, reais;devero ser processos reflexivos e coletivos e seus produtos, con-temporneos.

    A dana na terceira idade maturidade ou melhor idade, comose denomina hoje dever tanto romper com as regras formais

    ditadas pela mdia quanto com os modelos imitativos da dana ecom os processos de ensino-aprendizagem repetitivos e restritivos.Cabe-lhe inovar com criatividade, sabedoria e competncia, dei-xando de ser apenas uma apresentao de dana e se consolidandocomo uma dana em que cada corpo tem o direito de escrever a suaprpria histria.

    ABSTRACT

    This paper describes the experience of program Comear de Novo (To StartOver Anew), a methodological proposal of Dancing in the maturity. The program aims atdeveloping socio-educational procedures through interdisciplinary activities among the

    fields of Dancing, Music and Art. A collective planning of the classes and of choreographicpropositions was suggested seeking a reflection upon art in the old age, the possibilitiesof each students`s expression, as well as a debate about the mature body, its changes andconquests and the experience of making and finding pleasure in art.KEYWORDS: Dancing - Maturity - The Third Age.

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