02.sombras do passado

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S O M B R A S D O P A S S A D O Drama Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 1995

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Drama

Texto de: JULIO CARRARA

Escrita em 1995

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PERSONAGENS:

LUCAS

VIVIANE

RODRIGO

GUSTAVO

ALICE

ADELAIDE

CAROL

RENATA

ÉPOCA: Atual

CENÁRIO: Dois ambientes: o casarão de Lucas e a casa de Rodrigo. Ao fundo

do palco, um plano mais elevado. No casarão é o quarto de Lucas. Na casa de

Rodrigo, o quarto de seus pais. Neste plano está uma cama de casal que

permanecerá fixa até o final do espetáculo. Uma escada central conduz para

esse plano. No casarão, os móveis são bem rústicos. Fica a critério da direção a

divisão da sala e cozinha. Na casa de Rodrigo, um sofá, uma mesinha e uma

escrivaninha à direita central. Esse cenário deverá ser luxuoso para contrastar

com o casarão de Lucas. Nas mudanças de cenários, que ocorrem em duas

cenas, os próprios atores podem tirar e pôr os mesmos com o auxílio de

coreografias.

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CENA 1

(Trevas. Ouvimos no áudio ruídos de trovões. Luz sobe em resistência revelando um

espaço cênico limpo. O forte clarão do raio, inesperadamente, rasga o céu. É noite. A

chuva começa a cair fortemente. Entra em cena Viviane, procurando um abrigo para se

esconder. Passa um ônibus. Ela acena, mas o ônibus segue seu destino. Ela xinga. A

chuva aumenta e chicoteia seu rosto. Um carro em alta velocidade passa numa poça

d’água e encharca a garota. Ela fica furiosa. Logo em seguida, caminha mais um pouco

até encontrar um velho casarão. Ao chegar lá, percebe que a porta está aberta e entra.

Luz sobe em resistência e revela um ambiente bagunçado: roupas penduradas em um

varal improvisado, papeis espalhados por todos os cantos, etc. A garota senta-se numa

cadeira, tira o tênis e torce sua camiseta. Ela fica olhando para ver se aparece alguém e

se assusta quando vê Lucas saindo de um dos cômodos.)

VIVIANE

(Nervosa.) Oi... Eu tava me escondendo da chuva e só entrei porque

encontrei a porta aberta...

LUCAS

Eu não costumo fechar a porta.

VIVIANE

Desculpa pela invasão. Achei que não tivesse ninguém aqui. Foi mal,

vou nessa! (Faz menção de sair.)

LUCAS

Que é isso?! Pode ficar aí o tempo que quiser. Seja bem-vinda ao meu

bunker.

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VIVIANE

Obrigada. (Espirra.)

LUCAS

Vou descolar uma roupa seca pra você.

VIVIANE

Não precisa.

LUCAS

Claro que precisa. Você pode ficar doente... (Pega no varal um bermudão e

uma camiseta.) Tá na mão. (Entrega-lhe a roupa e fica olhando para a menina.

Viviane fica constrangida. Lucas se toca.) Ah, o banheiro fica ali. (Aponta.)

(Viviane entra no banheiro. Lucas caminha até a cozinha e pega uma chaleira que está

sobre um fogãozinho de duas bocas. Leva-a até a mesa e despeja o chá em uma xícara.

Viviane sai do banheiro. A roupa que usa é muito maior do que ela. Lucas ri.)

VIVIANE

O que foi?

LUCAS

Você fica engraçada com essa roupa.

VIVIANE

(Ri também.) É. Eu sei.

LUCAS

(Oferece-lhe o chá.) Toma o chá. Ainda tá quente.

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VIVIANE

(Senta-se à mesa e pega a xícara.) Obrigada. (Bebe. Pausa.) Então aqui é o

seu refúgio?

LUCAS

Pois é.

VIVIANE

Legal... E você mora aonde?

LUCAS

Aqui.

VIVIANE

Sozinho?

LUCAS

Hum, hum...

VIVIANE

Pensei que fosse só um esconderijo mesmo... E não é ruim?

LUCAS

A gente se acostuma com tudo.

VIVIANE

Mas e seus pais?

LUCAS

Minha mãe morreu.

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VIVIANE

Putz... Tenso, hein?... E seu pai?

LUCAS

Não conheço meu pai.

VIVIANE

(Irritada consigo mesma.) Hoje não é meu dia de sorte. Além de invadir a

sua casa, só tô dando bola fora. Desculpa!

LUCAS

(Ao perceber que a garota está chateada, ri.) Relaxa, não fica assim... Adorei

por você ter tomado de assalto o meu esconderijo. Faz muito tempo que eu

não converso com ninguém e nem recebo uma visita...

VIVIANE

Você não tem amigos?

LUCAS

Já tive. Hoje, não tenho mais.

VIVIANE

Por quê?

LUCAS

Por opção. Desde a morte da minha mãe, eu me fechei contra tudo e

contra todos... Não acredito em mais nada!

VIVIANE

Mas a gente deve acreditar em alguma coisa...

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LUCAS

Em quem? Em Deus? Nas pessoas? No mundo? Como posso acreditar

nessas coisas se não acredito nem em mim mesmo?

VIVIANE

(Pausa.) A gente tá aqui conversando e eu nem me apresentei... Viviane.

(Estende as mãos.)

LUCAS

(Aperta carinhosamente a mão da garota.) Lucas.

VIVIANE

Você pode acreditar em mim, tá?

LUCAS

Que garantias você me dá?

VIVIANE

Como assim? Não entendi!

LUCAS

É que por confiar demais em algumas pessoas, eu sempre levei a pior...

Você se entrega, faz tudo pra quem confia, e quando você percebe, esta pessoa

crava um punhal nas suas costas. Sacou? (Ela acena afirmativamente com a

cabeça.) Um pouco antes de você chegar, eu tava aqui na janela vendo a chuva

cair na vidraça. Quando minha mãe morreu, o dia tava assim, cinzento... e

chovia, como hoje...

VIVIANE

Ela morreu de que?

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LUCAS

De câncer... Ela sabia que ia morrer. E eu não acreditava. A gente acha

que isso nunca vai acontecer com a gente, né? Foi um sofrimento do caralho! É

foda ver a pessoa que você ama gritando de dor e você não podendo fazer

porra nenhuma... (Suspira) Antes de morrer, ela me contou sobre meu pai;

disse que ele não tava preparado pra assumir a paternidade e se ele não era

homem o suficiente para assumir a responsabilidade, ela assumiria. Eu nasci,

ela me criou e viemos morar neste casarão. (Pausa.) O problema, é que ela

morreu sem deixar nenhuma pista sobre o paradeiro dele... (Suspira.) Fiquei

pensando nisso o dia todo.

VIVIANE

(Pausa.) A chuva já passou, preciso ir agora. (Tira um cartão do bolso.)

Aqui tá o meu telefone. Mas você não vai ficar livre de mim, não. Amanhã eu

volto aqui pra devolver sua roupa e pra gente conversar mais. Gostei muito de

te conhecer.

LUCAS

(Sorri.) Eu também.

VIVIANE

Até!

LUCAS

Até!

(Viviane e Lucas se abraçam afetuosamente. Ela beija o rosto do rapaz e sai. Lucas

começa a arrumar a casa, rapidamente. Enquanto isso, no plano baixo, entra um rapaz,

aflito. Para, toma fôlego, e ao ver a porta do casarão aberta, entra rapidamente; olha

para fora por uma fresta da janela e instantes depois, suspira, aliviado. Lucas vem do

quarto.)

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LUCAS

O que aconteceu, cara?

RODRIGO

(Vira-se, num susto.) Uns caras tavam querendo me assaltar. Eu corri e

eles correram também. Quando dobrei a esquina, vi a porta aberta e entrei pra

me esconder. (Trêmulo.) Acho que consegui despistar eles... Vou cair fora

agora...

LUCAS

Não é legal sair nesse estado... Você tá tremendo...

RODRIGO

Foi o susto. Logo passa...

LUCAS

Dá um tempo aqui. Depois você vai embora. Cê mora aqui na Santa

Cecília?

RODRIGO

Não, na Vila Mariana... Eu vim fazer uns trabalhos na casa de um

colega. Meu pai não pôde me buscar e eu tava indo pro metrô.

LUCAS

Pois agora que você não vai embora mesmo. O metrô já parou de

funcionar... Agora só quatro e meia... Fica aí, cara, de boa...

RODRIGO

Não queria te incomodar.

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LUCAS

Relaxa, não vai me incomodar! Só dê um toque pros seus pais avisando

que vai dormir fora pra eles não ficarem preocupados... E não precisa ficar

com medo, ouviu? Não sou nenhum psicopata assassino.

RODRIGO

Tá na cara que não...

LUCAS

(Estende as mãos.) Lucas.

RODRIGO

(Estende a mão também e se cumprimentam.) Rodrigo...

LUCAS

(Depois de um tempo.) Sabe que eu tenho a impressão de te conhecer de

algum lugar?

RODRIGO

(Ri.) Gozado, eu também!!! É, pode ser...

(Black-out.)

CENA 2

(Luz sobe em resistência. Dia seguinte. Lucas e Rodrigo saíram e em cena estão

Viviane, Carol, sua irmã, e Renata, sua amiga. Trazem nas mãos as apostilas do

cursinho.)

RENATA

Ele mora sozinho, Viviane?

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VIVIANE

Mora.

CAROL

(Pega uma cueca de Lucas, que está jogada no chão.) Dá pra perceber mesmo.

Homem é foda, né? Por isso eu prefiro ficar sozinha.

RENATA

(Irônica.) Quem diria, não? Contando, ninguém acredita. A Viviane,

apaixonada.

VIVIANE

(Impaciente.) Não enche o saco, Renata!

CAROL

E por acaso, a gente tá falando alguma mentira? Não entra na minha

cabeça, ainda. Não sei como você pode curtir um cara assim... Ainda se fosse

rico, tudo bem... Mas um miserável que não tem nem onde cair morto?!... Fica

na ilusão, queridinha... Sabe o que ele quer de você? Uma trepada! Só isso...

Você já viveu essa experiência com o Renato, lembra?

VIVIANE

Não compare o Lucas com o Renato. O Lucas é diferente...

CAROL

(Venenosa.) As pessoas nem sempre são como a gente pensa... Você, por

exemplo. Quem iria imaginar que você, com essa carinha tão angelical, tivesse

um passado tão negro?

VIVIANE

Não começa!

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CAROL

Ele sabe que você engravidou e depois de tomar um chute do Renato,

abortou?

VIVIANE

Para!

CAROL

Ficou traumatizada, né? Eu me lembro da sua reação quando viu o feto

no vaso sanitário.

VIVIANE

Chega!

RENATA

Ah, como o amor é um sentimento medíocre. Deixa as pessoas cegas!

VIVIANE

Saiam daqui...

CAROL

Tô te estranhando!

RENATA

(Debocha.) É o amor!!! (As duas caem na gargalhada.)

CAROL

Nem parece a Viviane que eu conheci...

VIVIANE

Essa não existe mais...

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CAROL

Quanto clichê!

VIVIANE

Se vocês não saírem...

RENATA

Por quê? Tá com medo que o babaca apareça e descubra a sua

verdadeira identidade?

CAROL

A gente pode contar tudo...

RENATA

Nos mínimos detalhes...

VIVIANE

(Gritando) Chega!!! Sumam daqui! Agora!

CAROL

Ok, você venceu! Mas fica esperta. A verdade pode aparecer a qualquer

momento e aí... era uma vez um conto de fadas...

RENATA

Ou seria... um conto de fodas? (Ri.) Fica aí esperando o babaca, fica.

CAROL

(Zombando, como se contasse uma história.) Era uma vez uma linda

princesa chamada Viviane, que depois de tomar um chute do seu príncipe

encantado que a deixou com um filho na barriga, entrou em desespero e com

uma seringa de lavagem fez um aborto. A princesa Viviane, desejando

regenerar-se, encontra-se com um sapo chamado Lucas, ambos se apaixonam,

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se casam e vivem felizes para sempre... (Ri.) Aff, parece história de novela

mexicana!

(Carol e Renata saem rindo. Viviane permanece imóvel por algum tempo. Uma

lágrima escorre pelo seu rosto. Caminha em direção à porta e sai em seguida.)

CENA 3

(Entram Lucas e Rodrigo com embrulho de pão, frios e leite. Sentam-se à mesa e

começam a desembrulhar os pacotes. Fazem o lanche. Durante a refeição, Rodrigo

encontra no chão um álbum de fotografias. Pega-o e fica olhando para as fotos.)

RODRIGO

Sua mãe era linda, hein, Lucas?

LUCAS

Era. (Fica triste.)

RODRIGO

Não fica assim, cara.

LUCAS

Falar é fácil... Eu me sinto tão sozinho... Me dá uma angústia terrível.

Meu coração fica tão pequeno dentro do peito e sobe uma tristeza tão grande

que só passa depois que eu choro...

RODRIGO

É foda. (Pausa.) Agora vê se anima um pouco, vai. Melhora essa cara.

LUCAS

(Suspira.) Viviane!

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RODRIGO

Quem?

LUCAS

Uma garota que conheci. Ela entrou aí pra fugir da chuva, a gente

começou a conversar, conversa vai, conversa vem e quando fui ver... (Mente.) a

gente tava se beijando...

RODRIGO

É isso aí, moleque! (Olhando para o relógio.) Bem, preciso passar em casa

e depois ir pra aula. Obrigado por tudo, cara... No fim da tarde eu colo aí...

LUCAS

Cola mesmo... Falou...

(Rodrigo sai. Lucas fica pensativo.)

LUCAS

Oh, Rodrigo, como eu queria ser você por um dia só pra saber qual é a

sensação de ter um pai. Eu acho o meu pai não devia ser assim como minha

mãe dizia... Eu não vou sossegar enquanto não te encontrar, pai. Nem que eu

leve a minha vida inteira pra isso! (Chora.)

VIVIANE

(Entrando.) Lucas, você tá aí?

LUCAS

(Num susto. Enxuga as lágrimas rapidamente.) Tô no quarto.

VIVIANE

(Vai até ele.) Vim devolver sua roupa. (Olha bem para ele.) O que é isso? Tá

chorando? O que aconteceu?

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LUCAS

(Tenta disfarçar.) Não foi nada.

VIVIANE

O que você tá me escondendo?

LUCAS

Nada!

VIVIANE

Sei que tá escondendo alguma coisa...

LUCAS

(Perturbado.) Não leva a mal, não. Mas me deixa um pouco sozinho... Eu

preciso ficar sozinho. Volte outra hora!

VIVIANE

Eu só saio daqui depois que você se abrir comigo e contar o que tá

acontecendo.

LUCAS

Me deixa em paz... Vá embora!

VIVIANE

Já disse que só saio depois que se abrir comigo.

LUCAS

(Explode.) Sai daqui, Viviane... Eu não quero ser estúpido com você.

VIVIANE

Então é assim? Eu venho aqui com a melhor das intenções e é assim que

me recebe?

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LUCAS

Pro inferno você e suas intenções...

VIVIANE

Tá bom. Fica aí, recluso neste casarão mal-assombrado, conversando

com seus fantasmas e aguardando pelo fim dos tempos. É a sua cara. Tchau,

Lucas... Esqueça que eu existo... (Vai saindo.)

LUCAS

(Segura a garota, arrependido.) Desculpa, eu não queria ter falado assim.

VIVIANE

É. Mas falou.

LUCAS

(Busca palavras.) Eu tô perdido, tô confuso... Não sei explicar, nunca senti

isso antes. Acho que eu tô apaixonado por você...

VIVIANE

Paixão e tesão são coisas bem diferentes... Perdeu, Lucas.

LUCAS

Já perdi muita coisa nesta vida. E você, eu não quero perder... me dá

uma chance.

VIVIANE

(Depois de um tempo, acaba cedendo.) Tá bom... Vamos começar do zero,

nós dois. Vamos apagar o passado e viver o presente. É só isso que interessa.

(Ambos se entregam num longo e apaixonado beijo.)

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CENA 4

(Mudança de cenário. Os atores tiram o cenário do casarão de Lucas e colocam o

cenário da casa de Rodrigo. Muda luz. Gustavo, pai de Rodrigo, está sentado no sofá.

Olha para uma foto e quase chora. Entra Alice, sua mulher, que o observa por um bom

tempo. Em seguida, caminha até o marido e tira a foto de sua mão.)

ALICE

Relembrando o passado, Gustavo? (Reação de Gustavo.) Tudo bem.

Imagino como você se sentiu depois que “ela” te abandonou. Mas ficar aí,

remoendo essas lembranças? Por quê?

GUSTAVO

(Com um fio de voz.) Porque ela tava grávida.

ALICE

Grávida?

GUSTAVO

É. Grávida.

ALICE

Por que você nunca me contou isso?

GUSTAVO

E que importância tinha? Se você não me questionasse, nem ficaria

sabendo. Se eu abri o jogo com você agora é porque sei que o nosso

relacionamento tá alicerçado em bases sólidas, que esta foto faz parte do meu

passado e que nada neste mundo é capaz de separar a gente. Nada!

ALICE

Será que não? Como você pode ter tanta certeza?

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GUSTAVO

Eu sei... sinto...

ALICE

E o que você fez pra que ela agisse dessa maneira?

GUSTAVO

Uma vez ela me perguntou se eu queria ter um filho... E eu respondi que

não, porque naquele momento tava prestes a subir de cargo na empresa e que

pra ter um filho eu precisava estar bem economicamente... Naquele tempo eu

não tinha nada, era um moleque recém-formado entrando no mercado de

trabalho. (Suspira.) Alguns dias depois, quando voltei a procurá-la, ela havia

se mudado do apartamento sem me dizer nada... Semanas depois, ela me

escreveu uma carta dizendo que tinha me abandonado porque tava grávida e

não queria que eu rejeitasse a criança. Mas se ela tivesse aberto o jogo comigo,

eu não rejeitaria meu filho. Nós éramos muito jovens, mas eu assumiria a

paternidade... E hoje, 19 anos depois, não sei se ela tá viva ou morta, não sei

sobre o paradeiro da criança... Não sei de absolutamente nada...

ALICE

Gustavo me responda com toda a sinceridade: Você me ama?

GUSTAVO

Eu sou muito grato a você por ter me tirado da depressão. E mais grato

ainda porque você me deu um filho lindo que tá entre as coisas que mais amo

nesse mundo.

ALICE

Você tá confundindo amor com gratidão... Não é isso que eu quero

saber... Eu quero saber se você me ama ou se eu fui apenas um objeto para

fazê-lo esquecer dessa mulher... (Pausa tensa.) Responde, Gustavo.

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(Gustavo permanece em silêncio.)

ALICE

(Triste.) Já deu sua resposta!

(Entra Rodrigo, cansado. Gustavo quebra o gelo.)

GUSTAVO

E aí, filho? Como foi a aula?

RODRIGO

Um porre. Não vejo a hora de me formar.

GUSTAVO

Falta pouco.

RODRIGO

Ainda bem... Não aguento mais...

ALICE

Vou falar pra Adelaide servir seu almoço.

RODRIGO

Não precisa mãe. Eu já comi no colégio.

ALICE

Você que sabe.

GUSTAVO

Bem, o dever me chama...

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RODRIGO

Pai, cê me dá uma carona até Santa Cecília?

GUSTAVO

Claro...

ALICE

Tô com um pouco de dor de cabeça. Vou pro quarto descansar um

pouco. Bom trabalho, Gustavo. E você, Rodrigo, tome cuidado, viu?...Vê lá

com quem se envolve, hein?

RODRIGO

Fica fria, velha!!! (Pausa.) Mãe...

ALICE

O que foi?

RODRIGO

Eu amo você.

ALICE

(Com um sorriso melancólico.) Eu também amo você.

GUSTAVO

Vamos?

(Alice, discretamente, entrega a foto para Gustavo, que esconde rapidamente. Gustavo

se aproxima com a intenção de beijar Alice, mas esta vira o rosto e o marido beija-lhe a

face. Gustavo fica chateado. Alice abraça Rodrigo carinhosamente. Olha-o por um bom

tempo e depois o beija. Em seguida sobe para o quarto.)

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GUSTAVO

(Chama.) Adelaide.

(Adelaide é a empregada: usa óculos fundo de garrafa, é corcunda, tem peito de pombo

e manca de uma perna. Traja um uniforme de empregada e é bastante ágil.)

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

GUSTAVO

Traga o meu paletó

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Sai e volta com o paletó.) Pronto, senhor. (Sai.)

GUSTAVO

Adelaide.

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

GUSTAVO

Traga os meus sapatos pretos.

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Sai e volta com os sapatos.) Pronto, senhor. (Sai.)

GUSTAVO

(Com o par de sapatos na mão.) Adelaide.

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

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GUSTAVO

(Entrega para ela o par de sapatos.) Calce os meus sapatos.

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Calça os sapatos nele.) Pronto, senhor. (Sai.)

GUSTAVO

Tô bem assim, filho?

RODRIGO

Tá ótimo.

GUSTAVO

Adelaide.

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

GUSTAVO

Pegue a chave do carro.

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Sai e volta com as chaves do carro.) Pronto, senhor!

(Sai.)

GUSTAVO

(Para o filho.) Vamos?

RODRIGO

Vamos. (Saem.)

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GUSTAVO

(Grita em off.) Adelaide, o carro enguiçou. Venha empurrar...

ADELAIDE

(Atravessa a cena correndo e gritando.) Está certo, senhor.

(Ouve-se o ruído do carro. O motor afoga a toda a hora. Finalmente, depois de dezenas

de tentativas, o carro sai em disparada. Foco em Alice no quarto. Ela abre o guarda-

roupa, pega uma mala e guarda suas roupas ali. Segura a mala, desce até a sala e

caminha até a escrivaninha. Munida de papel e caneta, escreve uma carta que deposita

sobre a mesa. Entra Adelaide.)

ALICE

(Para ela.) Cuide bem deles, Adelaide.

(Adelaide fica com cara de tacho e Alice sai lentamente. Adelaide tem uma crise de

choro e sai correndo para outros cômodos da casa, limpando as lágrimas no avental.

Foco sobre o porta-retratos e a carta. Foco desce em resistência até o black-out.)

CENA 5

(Nova mudança de cenário. O cenário do casarão volta à cena. Lucas e Viviane estão

na cama, abraçados, enrolados em um lençol. Acabaram de transar.)

VIVIANE

Sabia que eu era capaz de ficar assim, abraçada com você pra sempre?

Você foi a melhor coisa que me aconteceu na vida...

LUCAS

Você também. (Sem jeito.) Me perdoa, vai. Eu não queria falar com você

daquele jeito. É que a vida da gente parece, sei lá, um labirinto: cheios de

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caminhos para escolher. E eu tenho medo de escolher o caminho errado e

quebrar a cara... (Pausa.) Ei... Em qual planeta você tá?

VIVIANE

(Suspira.) Ah, Lucas, tem tanta coisa a meu respeito que você ainda não

sabe...

LUCAS

Então começa a contar... Tô curioso!

VIVIANE

Se eu te contasse que já fui loucamente apaixonada por um cara; que

engravidei; que fiz um aborto quando ele me abandonou; que vim aqui com a

minha irmã e com a minha amiga numa manhã que você não tava; que te

poupei até agora porque tive muito medo de te perder e queria que você

confiasse em mim... (Pausa.) Agora que você já sabe de tudo, você vai querer

continuar comigo?

LUCAS

(Longa pausa.) Claro que não...

VIVIANE

(Com lágrimas nos olhos.) Eu já esperava por isso.

LUCAS

(Abre um sorriso generoso.) Tô brincando, sua boba. Claro que eu quero

continuar com você... A gente não combinou que o passado e o futuro não

existem? Eu vou gritar pra todo mundo ouvir: EU TE AMO, VIVIANE!!!!!

(Derruba Viviane na cama entre risos, carícias, beijos, abraços e palavras ao pé do

ouvido. Em outro plano, Rodrigo entra com Gustavo.)

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RODRIGO

(Chamando.) Lucas...

(Lucas e Viviane se assustam.)

LUCAS

(Cochicha.) Ih! Sujou...

(Vestem-se rapidamente, abafando o riso. Depois de vestidos, descem para a sala.)

LUCAS

E aí, moleque? (Cumprimentam-se.)

RODRIGO

E aí? (Apresenta o pai.) Esse aqui é o meu pai, Lucas... Gustavo.

GUSTAVO

Prazer, Lucas. Vim te agradecer pelo que você fez pelo meu filho... Não

é qualquer um que dá abrigo e proteção prum desconhecido.

LUCAS

Eu só fiz o que tinha de fazer. Não ia deixar que ele ficasse na rua. Ainda

mais sabendo que não podia vir buscá-lo. (Apresentando Viviane.) Essa aqui é a

Viviane, minha namorada.

RODRIGO

(Para Lucas, confidencial.) Rabudo, hein?

LUCAS

(Idem.) Né?

VIVIANE

O que vocês tão cochichando, hein?

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AMBOS

Nada.

VIVIANE

Aposto que é sobre mim... Podem falar.

LUCAS

Assuntos de homens...

VIVIANE

Machistas!

(Riem.)

GUSTAVO

(Fascinado pelo casarão.) Gostei muito desse casarão... (Sem querer, esbarra

num quadro e o derruba no chão.) Desculpa, Lucas. Quebrou o vidro. Eu...

(Pega o quadro e leva um tremendo susto ao ver a fotografia.)

RODRIGO

O que aconteceu, pai?

GUSTAVO

É que essa moça da fotografia é muito parecida uma pessoa que...

(Perturbado.) Acho que é paranoia. É muita coincidência...

RODRIGO

Que paranoia, pai?

GUSTAVO

Quem é ela, Lucas?

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LUCAS

Minha mãe...

GUSTAVO

(Corta a fala de Lucas, balbuciando.) A... sua... mãe?

LUCAS

Você conhecia ela?

(Gustavo fica um longo tempo sem dizer nada. O clima é tenso.)

LUCAS

Conhecia a minha mãe?

GUSTAVO

Não é possível!

RODRIGO

O que, pai?

LUCAS

Então você conhecia a minha mãe? Esse mundo é muito pequeno.

GUSTAVO

É. Esse mundo é muito pequeno, Lucas... Quantos anos você tem?

LUCAS

Dezoito.

GUSTAVO

Você é filho único?

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LUCAS

Sou.

GUSTAVO

(Suspira.) Ana... Por que você fez isso comigo? Por que me privou da

presença do meu filho? Por quê? Por quê?

LUCAS

(Juntando as peças do quebra-cabeça.) Então... Você é... é...

(Lucas não consegue completar a frase. Gustavo acena a cabeça afirmativamente e

abraça Lucas.)

VIVIANE

Vocês querem me explicar o que tá acontecendo? Não tô entendendo

nada!

RODRIGO

Nem eu. Querem ser mais claros, por favor?

GUSTAVO

(Solta-se por um momento de Lucas.) Rodrigo... esse grande amigo que

você tem, que, por uma ironia do destino, sei lá, te livrou do assalto...

RODRIGO

Não enrola, pai.

GUSTAVO

(Sorridente.) ...é seu irmão...

RODRIGO

(Chocado, mas feliz.) Como é que é? Meu irmão?

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VIVIANE

Eu não acredito!

GUSTAVO

O Lucas é meu filho...

RODRIGO

(Incrédulo.) Filho?!!!!

GUSTAVO

Sim... filho.

(Gustavo num impulso abraça e beija Lucas.)

GUSTAVO

Como eu esperei por esse momento... Tô sem palavras, nem sei o que

dizer...

LUCAS

Não precisa dizer nada!!! (Para Rodrigo, que está petrificado.) Cara, você é

meu irmão...

RODRIGO

Sou, cara... Sou...

(Os quatro se abraçam.)

GUSTAVO

E onde tá sua mãe, Lucas? Preciso me encontrar com ela e esclarecer

tudo.

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LUCAS

Ela... morreu.

GUSTAVO

(Pausa, sentido.) Eu nunca pude dizer pra ela o quanto eu a amava e que

daria minha vida pela dela... Se ela não tivesse me abandonado, as coisas

seriam diferentes... Você me leva até o túmulo dela?

LUCAS

Quando quiser...

(Viviane coloca a chaleira sobre a mesa.)

VIVIANE

Gente, vamos tomar um chá pra acalmar. É muita emoção prum dia só.

(Todos se sentam à mesa. Viviane serve o chá para o trio.)

GUSTAVO

Eu não queria que você guardasse nenhuma mágoa de mim.

LUCAS

Eu nunca guardei.

GUSTAVO

Nem mágoa da sua mãe. Ela só quis o seu bem.

LUCAS

Eu sei. Sem ressentimentos.

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GUSTAVO

Que bom. Fico feliz ao ouvir isso. (Muda o tom.) Hoje mesmo vamos ao

cartório. Eu vou te reconhecer como filho... e depois, vamos lá pra casa.

LUCAS

(Sem jeito.) Não leva a mal, não, mas eu prefiro continuar aqui. Você me

entende, né? Mas vamos nos encontrar todos os dias. Temos muito que

conversar.

GUSTAVO

Claro... Você já sabe o que te convém e o que te prejudica. Faça como

quiser e da forma que quiser que vai receber o meu apoio e o apoio da Alice.

LUCAS

Será que ela vai entender?

GUSTAVO

Ela já sabe de tudo.

RODRIGO

Pai, o que o Lucas precisa de imediato é uma empregada. Manda a

Adelaide fazer uma faxina aqui... A Adelaide é a melhor empregada que eu

conheço. É só chamar que ela aparece. Quer ver só? (Vai até a janela e chama

alto.) Adelaide!

(Ouve-se o eco da voz de Rodrigo. Adelaide entra correndo, esbaforida. ouve-se no

áudio o jingle do “Papa-Léguas”.)

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

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RODRIGO

Não falei?

RODRIGO

Ela é eficientíssima. E só abre a boca pra dizer: “As ordens, senhor”, “Está

certo, senhor”, “Pronto, senhor”. (Chamando.) Adelaide

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

GUSTAVO

A partir de hoje você virá neste casarão de dois em dois dias fazer uma

faxina, está certo?

ADELAIDE

Está certo, senhor...

GUSTAVO

Muito bem, pode começar...

(Adelaide vai iniciar a faxina. Lembra-se de algo. Pega a carta de Alice e entrega para

Gustavo.)

ADELAIDE

Senhor...

GUSTAVO

Uma carta? Passe pra cá.

ADELAIDE

(Entrega-lhe a carta.) Pronto, senhor...

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GUSTAVO

Agora vá cuidar da faxina... (Pausa.) Que estranho! Uma carta da Alice!!!

(Adelaide sobe para o quarto e fica congelada. Gustavo abre a carta. A voz de Alice é

ouvida no áudio. Rodrigo lê a carta junto com o pai.)

ALICE

(Off.) “Gustavo, até quando vai ficar chorando pelo leite derramado? As

coisas já aconteceram. Cada um escolheu o seu caminho: ela seguiu o dela com

o seu filho e você, o seu. Agora só resta pagar pelos nossos atos e espero que o

preço que tenhamos que pagar não seja tão alto quanto o dela. Você sempre

gostou de mim, sempre foi carinhoso comigo, sempre me respeitou... Nunca

me amou. Eu não aguento mais viver assim... achando, ou melhor, sabendo

que você não me amava, mas com a esperança de que um dia me amasse. E é

por isso que vou embora. Vá atrás desta mulher e do seu filho. Dê o seu nome

pra ele e tente aproximá-lo do Rodrigo. O caminho está livre... Vou fazer uma

viagem para esfriar a cabeça e na volta a gente conversa sobre o divórcio... Ah,

cuide bem do nosso menino. Ele pode parecer um adulto, mas ainda é uma

criança... Te amo muito, filho. Rodrigo, eu só não te levei comigo porque seu

pai precisa muito de você. Voltarei em breve, Gustavo... Alice.”

(Rodrigo não quer acreditar.)

RODRIGO

(Chorando.) Pai... Ela vai voltar, não vai?

GUSTAVO

Claro que vai, filho. Claro que vai...

(Abraçam-se. Black-out. Volta luz. Adelaide, sozinha, pega um iphone e o coloca no

ouvido. Ouve-se “Melô do Pata-Pata”, da Gretchen. Adelaide pega uma vassoura e

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começa a limpar o casarão, dançando de acordo com a música. Deixa o casarão

brilhando. Tarefa feita, sai de cena.)

CENA 6

(Palco vazio. Uma carta é jogada em cena. Lucas, Rodrigo e Viviane entram.)

RODRIGO

Por que tinha que ser assim, hein?

LUCAS

Ela tava infeliz. Foi melhor. Acredite em mim.

RODRIGO

Tenho medo que ela não volte.

LUCAS

Ela volta. Ela só precisa de um tempo pra esfriar a cabeça... O que ela

passou não foi brincadeira.

(Viviane encontra a carta.)

VIVIANE

Lucas, uma carta pra você...

LUCAS

Pode abrir Viviane.

(Viviane abre a carta, lê e fica aflita.)

LUCAS

(Percebe a aflição da namorada.) Que cara é essa? O que tá escrito aí?

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VIVIANE

(Entrega a carta a Lucas.) Leia você mesmo.

LUCAS

(Lendo, sem acreditar.) Como é que é?

VIVIANE

Você tem trinta dias pra desocupar o casarão.

LUCAS

Mas tô em dia com os alugueis...

VIVIANE

Acho melhor você procurar o proprietário e esclarecer tudo. Onde ele

mora?

LUCAS

No prédio aqui do lado.

VIVIANE

Ele não pode fazer isso com você...

LUCAS

Vou até lá tirar isso a limpo! (Sai.)

RODRIGO

Deve ser algum engano. Se o Lucas pagou os alugueis é só apresentar os

recibos.

VIVIANE

O proprietário não pode tirar o Lucas daqui assim. E agora, pra onde a

gente vai?

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RODRIGO

Se não tiver jeito, vocês vão morar lá em casa. Vamos esperar o Lucas

chegar e a gente esclarece isso de uma vez por todas...

VIVIANE

(Revirando alguns papeis.) Preciso saber onde o Lucas guardou esses

recibos.

RODRIGO

Eu ajudo você...

VIVIANE

Se o Lucas não fosse tão bagunceiro, seria mais fácil de encontrar.

(Procura em outra gaveta.) Nada.

RODRIGO

Será que ele não jogou os recibos no lixo?

VIVIANE

Era só o que me faltava...

RODRIGO

Ele pode ter feito isso, vai saber.

VIVIANE

A gente tem que achar. Senão não tem como o Lucas provar que os

pagamentos foram efetuados.

LUCAS

(Entrando.) Não esquenta mais com isso, Viviane. Nós temos mesmo

trinta dias para desocupar o imóvel.

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VIVIANE

Mas como, se os alugueis estão em dia?

LUCAS

Sim, estão. Só que o contrato vence no mês que vem e o proprietário

não quer renovar. Nunca parei pra ver essas coisas. Era minha mãe que fazia

isso. Lembro que dias antes de morrer, ela tinha renovado o contrato. Isso já

faz dois anos, portanto ele vence agora. Por essa razão, veio o comunicado.

VIVIANE

Mas, por que ele não quer renovar? Pra que ele vai querer o casarão?

LUCAS

Pra demolir isso aqui e fazer um estacionamento.

VIVIANE

O quê? Mas que absurdo!

RODRIGO

Lucas, se o casarão é tombado pelo patrimônio histórico ele não pode ser

demolido.

LUCAS

(Conformado.) Acontece que esse casarão não foi tombado... Portanto,

pode ser demolido, sim.

VIVIANE

(Desesperada ao ver Lucas naquele estado.) Lucas, não fique assim. Grite,

xingue, quebre tudo o que encontrar pela frente, mas não fique calado, pelo

amor de Deus.

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RODRIGO

É isso mesmo, cara.

LUCAS

Agora não adianta mais nada, mano. Acabou... Tudo o que começa,

acaba um dia... É assim... É assim.

(Os três se abraçam e choram inconformados.)

EPÍLOGO

(Palco na penumbra. O caminhão de mudança está parado à porta do casarão e os

atores retiram todos os móveis da casa. Lucas está bastante abatido e observa cada

canto do casarão. Viviane e Rodrigo olham para ele.)

RODRIGO

(Quebra o gelo.) O caminhão já vai sair...

VIVIANE

Você não tá sozinho, Lucas.

RODRIGO

É isso aí, mano.

LUCAS

Como eu gostaria de ser otimista como vocês...

RODRIGO

(Dá uma bronca no irmão.) O que é isso, cara? Ergue a cabeça, porra! Logo

você que nunca se deixou abater por nada vai agir dessa maneira? Como é que

é? Será que eu vou ter que te tirar daqui na porrada?

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LUCAS

(Recupera o ânimo.) É. Não vai ser isso que vai me derrubar. Vida nova...

RODRIGO

É isso aí... Assim que eu gosto... Vamos brindar... (Chamando.) Adelaide.

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

RODRIGO

Traga quatro taças e um champanhe!

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Sai e volta com o champanhe e as taças.) Pronto, senhor.

RODRIGO

Adelaide.

ADELAIDE

Às ordens, senhor.

RODRIGO

Sirva-nos e brinde com a gente.

ADELAIDE

Está certo, senhor. (Enche a taça de todos e a sua própria taça.)

RODRIGO

Um brinde ao nosso futuro.

TODOS

Ao nosso futuro!

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(Brindam e bebem. Adelaide vira a taça bebendo a champanhe num só gole.)

RODRIGO

Adelaide!

ADELAIDE

(Bêbada.) As ordens, senhor.

RODRIGO

Ligue para o papai e diga que nós já estamos saindo daqui.

ADELAIDE

Está certo, senhor.

(Adelaide retira do avental o celular, disca um número e fala com Gustavo, sem que o

público ouça a sua voz e sai de cena, trôpega de tão bêbada.)

RODRIGO

Lucas, qualquer mudança na nossa vida, por pior que seja, tem o seu

lado bom. Eu achava que não conseguiria viver sem a minha mãe. Hoje, trinta

dias depois, muita coisa mudou. Ela tá feliz. E o nosso pai também. É isso que

importa. Tem gente que opta pela infelicidade. E isso é muito pior, você não

acha?

LUCAS

Não sei o que seria de mim, se vocês não existissem. Obrigado por

aparecer por essa porta e pedir para que eu te protegesse. Na verdade, foi você

quem me protegeu Rodrigo. Através de você eu pude encontrar o meu pai. E

você, Viviane, obrigado por me fazer o homem mais feliz do mundo... Agora é

olhar pra frente e vivermos intensamente todos os minutos de nossas vidas.

TOCA AQUI!!!

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(Lucas estende uma mão. Viviane e Rodrigo colocam suas mãos sobre a mão de Lucas e

com um grito levantam as mãos para cima.)

FIM

Janeiro/1995