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Sublime ExpiaçãoPELO ESPIRITO VICTOR HUGODIVALDO P. FRANCO

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ÍNDICEPrólogo 11

LIVRO PRIMEIRO

ATUALIDADE MARCADA PELOS SOFRIMENTOS

1. A carta 132. A resposta 253. A Colônia "Damiâo de Veuster ” 344. Lucien e Myrian 465. A conferência 586. Reencontros felizes 767. A primeira noite na Colônia 90

LIVRO SEGUNDO

PASSADO DE SOMBRAS E GRAVAMES

1. Sucessos e desditas passados 1012. As licenciosidades cavam sepulturas 1163. Sucessos infelizes selam destinos 1264. Encontro que delineia trágico futuro 1335. Auto-exame na encruzilhada da vida 1406. Inquietações que prenunciam sofrimentos

1487. Nuvens borrascosas se avolumam 1568. Trama nefasta e desgraça iminente 164

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1. Crime, surpresa e loucura . .2. A primavera reflorescerá o coração outra vez .

LIVRO TERCEIRO

LIBERTAÇÃO FELIZ

1. Reencontro em campo de luz • • • • ■ ■2. Dores que retornam pungitivas 3. Retorno ao lar e prognósticos sombrios 4. Guloseima e preocupação maternal 5. Lucien rompe as algemas 6. A bênção da paz

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PRÓLOGOVidas são experiências que se aglutinam, formando

páginas de realidade. Lições que compõem romances,novelas, tragédias, merecem recordadas, qual manancialde aquisição simples, para edificar outras existências naromagem terrena, que representa elevada concessãodivina para o milagre transcendente da evolução.

Como o espirito é de ambulante continuo demúltiplos avatares, até que se libere da contexturaprimitivista a que se vincula, o sofrimento não lheconstitui punição, antes significa-lhe buril aprimorador,através do qual, pelo processo de desgaste e sublimação,eleva o seu peso específico, pairando acima das mazelase das imperfeições que o tisnam.

Destinado à felicidade, o espírito transita deexperiência em experiência, coletando conquistas eadquirindo a sabedoria do amor que o libera de todalimitação e desgraça.

As vidas que desfilam neste livro são reais.Suas personagens viveram até há pouco na

conjuntura fisiológica. Algumas prosseguem no carreiroterrestre, o que nos fez pincelá-las com tintas especiais,sem que, contudo, as hajamos desfigurado.

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Do leito da hanseníase à Pátria Espiritualconhecemos, nas dores de Lucien, uma expiação sublime— nós que ainda carregamos lepromas morais danosos...

Para a nossa reflexão espiritual, como advertência eroteiro, fieis ao ensinamento de que o enfermo necessitade assistência médica, escrevemos esta obra. (1)VICTOR HUGO

Salvador, 2 de junho de 1973.

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LIVRO PRIMEIRO ATUALIDADEMARCADA PELOSSOFRIMENTOS

1 A CARTA“Armando, meu abençoado amigo:Jesus nos guarde na Sua paz.Não mais consigo sopitar o incontido desejo que

venho acalentando: o de escrever-lhe. Faz tantotempo que nos vimos! Você não me reconheceriamais. Sou outro homem. A juventude passou pelaminha porta tocando sua flauta de prata e,subitamente, a sua melodia se fez patética, soandoem fortes instrumentos de dor. Cheguei à idadeadulta e adentrei-me pela senda dos anos sob asmodulações da tristeza, do desencanto e da mágoa.Não sou mais o mesmo. Aliás, ninguém é sempre omesmo. Muda o corpo, mudam os conceitos, mudamas aspirações. Mudei, também: de corpo e alma. Osorriso franco e jovial de ontem emurcheceu nosmeus lábios, ora contraídos, e a luz do olhar tornou-se-me bruxuleante, sem claridade quase nenhuma. Ocorpo ágil entorpeceu-se e as mãos níveas, dedelicados dedos que acarinhavam o teclado,arrancando os acordes nostálgicos de Chopin, agoraparecem galhos retorcidos, atormentados, crispados

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pelas enfermidades longas...Pensei muito antes de escrever-lhe.Os anos, esses tentáculos do tempo, visitaram-

me demoradamente, mortificando-me a cadainstante, e ensinaram-me coisas e lições de sabedoriaque somente o livro da vida, no leito da meditaçãodemorada, consegue propiciar.

... Estou com hanseníase, meu amigo, há quaseum decênio. Encontro-me internado na Colônia deEfraim ( 2 ) , no Estado de Minas Gerais. Toda aqueladolorosa peregrinação por consultórios médicosterminou num leito de hospital de lepra.”

Armando, que lia a carta, emocionado, olhou aúltima página e lá estava a assinatura trêmula:Lucien.

Levou a mão ao peito e sentiu o pulsar da bombacardíaca. As mãos estavam frias. Reclinou-se nacadeira e não pôde conter as lágrimas. Pela tela daimaginação repassou os momentos que ficaramindelevelmente marcados nas suas evocações.

Jamais olvidara Lucien, a quem conheceu, faziamuitos anos, ao visitar, pela primeira vez, a cidade deOfir, a serviço da Doutrina.

Aquele ar seráfico do jovem artista tocara-lhe oespirito sensível desde o primeiro momento, quandolhe fora apresentado.

O moço, de delicada feição e olhos negros muitobrilhantes, era o espécime representativo do homem

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fadado aos grandes lances da arte cênica e musical,nos famosos auditórios do mundo. Amante damúsica, desde os primeiros anos revelaraincomparável pendor para o piano, especialmentepara a interpretação das páginas sentimentais eromânticas de Chopin, conseguindo diversosprêmios nos múltiplos concursos de que participara.

Emotivo e sonhador frequentava, também, osmovimentos jovens da Doutrina Espírita,destacando-se como

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delicado expositor dos princípios revelados peloincomparável Alian Kardec.

Afável, muito facilmente conquistava amigos,estando sempre cercado pela admiração de todos.

Naquela noite, interpretara publicamente, comoem poucas vezes, alguns Noturnos, de Chopin, comraro brilhantismo — recordava Armando. Asmelodias, dúlcidas e tristes, penetravamdelicadamente a alma do auditório hipnotizado.

Aproximaram-se, após a conferência, edivagaram sobre planos futuros, quando o SolEspírita se espraiasse pela Terra, anunciando a NovaEra.— Nos intervalos dos meus futuros concertos —

asseverara Lucien — produzirei conferênciasdoutrinárias pelos diversos países que visitareipelo mundo.

E de olhos brilhantes, voltados para o porvir nãodistante, acrescentara:— Unirei as duas ciências: o Espiritismo e a Música, e

farei vibrar as cordas sensíveis da Humanidade.Naquele instante, parecia hierático Mensageiro

da Esperança.Viveram dias de emocionante fraternidade,

lenidos pelas balsâmicas emoções do Espiritismocom Jesus.

Armando enxugou os olhos e voltou à carta:“Peregrinei por diversos consultórios médicos,

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naquele tempo.”Sim, recordou o amigo.No ano imediato, ao retornar a Ofir, encontrara-o

desanimado, aturdido. Estranha enfermidadeproduzia-lhe inusitado sofrimento. As mãos, aquelasmãos delicadas e bem-conformadas, pareciamenfermas: inflamações nas articulações e dores quedesapareciam inesperadamente. Palidez acentuadana face e ligeira despigmentação nos pés, tambémirregularmente inchados.— Reumatismo ou artritismo déformante — disseram

alguns clínicos.

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A terapêutica usada, todavia, longe estava deminorar as dores e as expectativas. Os dedos senegavam, como de desejar, à execução ao piano.Angustiado, supunha ser o fim.— Sim, recorrera aos passes — afirmou, contristado

— sem resultado aparente. Estava disposto aconsultar Instrutores Espirituais, que se revelavamMensageiros da Saúde, através de digno médiumresidente em outro Estado. Confiava em Deus!

— Já não esperava resultados através dos médicosencarnados — desabafou, em copioso pranto.

— Não desanime! — consolou Armando. — Jesus é oMédico Divino de todos nós, e somente nosacontece aquilo de que temos necessidade: o quenos leva a pagar o que devemos e se fazimprescindível resgatar... Confie! A noite sombriaé apenas aparência; além das pesadas nuvensfulgem as estrelas. Assim a dor, em nossa vida.Além dela, os sois de ventura e paz, do infinito davida. Coragem, amigo!

Despediram-se sob coercitiva inquietação.— Ore por mim — rogou, de voz embargada.— Orarei. Faça o mesmo por mim — respondeu o

companheiro, comovido...Agora Armando voltou à epístola, e a mente, de

súbito turbilhonada, traduziu-lhe a palavramilenarmente detestada, buril de espíritosnecessitados de sublimação, escada redentora,

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caminho áspero de libertação interior: morfeia!Continuava a carta:“Tratamentos hidrominerais, em diversas

estâncias balneárias, foram-me inúteis. A doençaavançava e as esperanças esmaeciam no meu espiritoaturdido. A ideia do suicídio começou a tomar corpona minha mente: era quase uma obsessão! Obsessão,sim, porquanto desde os primeiros dias da minhavida, à medida que a inteligência despertava, percebiestranha e peculiar presença no meu

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caminho: um ser que me dizia amar e quesimultaneamente me detestava!

Após intermináveis visitas a consultórios, queredundavam em inúteis esperanças e maistormentosos sofrimentos, em balneário distinto,alguém sugeriu à minha família que me conduzisse acerto dermatologista daquela cidade, excelente pelarapidez dos seus diagnósticos.

Ah! meu amigo, a esperança! Aclarou-se-me opensamento e voltei a sorrir.

Naquela tarde dirigimo-nos ao local indicado,meus familiares e eu. A consulta estava com horamarcada. No momento em que me adentrei pela sala,o médico fitou-me a distância, e disse, sem rebuços:

— Esse rapaz tem lepra!Lepra?! — gritou-me a consciência. Quis correr.

Era uma loucura. Alguém estava equivocado...Ele se acercou de mim. Odiei-o, incontinent!,

quando começou os exames especiais comsubstâncias quentes e geladas. Era-me impossíveldizer o que sentia, não pela total insensibilidade daepiderme, mas pelo transtorno emocional que demim se apossara.

Não, meu caro Armando, não se podemdescrever emoções. Naquele instante penetrei nafurna sombria do desespero, onde se fica dominadopela alucinação.

Os exames posteriores, a pesquisa de bacilos,

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infelizmente, ou felizmente?, confirmaram odiagnóstico impiedoso: era o mal de Hansen, aenfermidade bíblica. maldita, em mim. Imagine!

Sim, os lances são muitos, e dolorosos...Aqui estou, meu caro amigo, internado neste lar

de recuperação espiritual, ao lado dos companheirosde antigas loucuras, ressarcindo com lágrimas,demoradas penas, profundas meditações...

Não lhe vou fazer sofrer, em face ao meu relato.As minhas, são dores de que necessito, e não as

posso repartir com os corações queridos.

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Após ter peregrinado dez anos, entre osSanatórios Psiquiátrico e Hansenlano, estou em pazcomigo mesmo, e trabalhando, na ansiosaexpectativa de auxiliar alguém, dentre esses muitosIrmãos de cruz redentora.

Desejo pedir-lhe que me ajude, através deamigos, pois sei que você os tem, a levar adiante osmeus planos de terapêutica ocupacional para osinternados que estão aos meus cuidados, a íim deque, oportunamente, na condição de egressos,tenham com que viver honestamente.

Não tenho amigos, ou melhor, creio que jamaisos tive, com raras exceções, perfeitamentecompreensíveis.

Minha família exigiu que eu mudasse de nome, afim de os não envergonhar, quando aqui me Internei.Em homenagem ao carinho que você sempredemonstrou por mim, resolvi adotar o seu: Armando!

A enfermidade não me fez sofrer o que aausência dos familiares me produziu em angústia esoledade. Sou, desse modo, estranho, no seio daterra em que nascí, sem lar, sem família: sozinho,mas com Deus, que é, aliás, nosso melhor sustento.

Áspero tributo se paga sob as purulentas feridasda hanseníase.

Não sei como você receberá esta carta. Creio,porém, que muito bem, e que me envolverá no fervorda sua prece, de que muito necessito.

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Guarde-me, desse modo, no coração e nalembrança.

Seu irmão na fé e pelo sentimento,Lucien."

Armando mergulhou em profundas reflexões.O “planeta de -provas e expiações”, a que se refere

o ínclito Codificador do Espiritismo, pensou. Ascriaturas que se encontram na carne quase sempreestão em processo de reparo, corrigindo erros gravese preparando-se

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para a ascensão inevitável ao Reino da Luz. Mas atéesse momento!...

Enxugou o suor que porejava abundante. Aslágrimas não se atreviam a cair além da comporta dosolhos.

Reviu pela imaginação o amigo querido. Nãopôde conceber como estaria ele, agora.

Sinceramente comovido, buscou o concursosublime da oração lenificadora e mergulhou nooceano sacrossanto da comunhão com o Senhor,intercedendo pelo amigo e dulcificando-se também.

Em retornando das paisagens edificantes daoração, Armando não pôde sopitar todas asrecordações que lhe esfloravam a mente e o coraçãocompadecidos. Jamais lhe ocorrera que Lucienestaria num leprocômio. A verdade é que nuncaesquecera o jovem amigo. As lutas e as necessidadesdo dia-a-dia, não obstante o labor evangélico dadisseminação da Palavra do Senhor, colocaram adistância muitos sonhos juvenis, e embora a pontedo tempo o mantivesse ligado aos antigos afetos,deles frequentemente se distanciava.

Também ele experimentara suas próprias dores esentira esse impositivo de evoluir, superandodificuldades e esmaecendo sombras do caminho,com a luz meridiana da fé. Sempre que repassava osdias transatos, o rio das lágrimas voltava, extenuante,a correr desde as vertentes do coração. Mas, afinal, a

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vida física é oportunidade purificadora, da qual, emregra, ninguém consegue eximir-se. Bênção divina,flui e reflui, facultando aprimoramento e libertação.

Por estranha circunstância que não conseguiadecifrar, Armando, desde pequenino, sentia singularhorror à lepra.

Por vias intuitivas, sabia que fora ou serialeproso. Manifestações do inconsciente, face aoserros praticados em vidas passadas? — não saberiadizê-lo.

Na infância, muitas vezes, quando ouvia alguémpronunciar o nome aparvalhante, era acometido decrises do-

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lorosas, de injustificável horror. Todavia, ignorava oque fosse a hanseníase. Jamais vira um portador domal de Hansen.

A vida fora-lhe toda um rosário de sofrimentos,necessários e abençoados sofrimentos, de que seutilizava para a experiência de que carecia, a fim deensinar o consolo de que fruía, na Doutrina Espírita,aos caminhantes da rota purgatorial.

Atraído ao aprendizado da Terceira Revelaçãopor meios coercitivos, de que a Lei se utilizara,apaixonara-se pelo Cristo e pelas interpretações daBoa Nova, sob a luminosa inspiração dos Imortais.Entregara, então, as suas forças juvenis ao ministérioda fé renovadora.

Sempre vencido pelo receio da lepra,experimentara, há dois decênios, expressivofenômeno mediúnico, enquanto meditava, aoentardecer de certo dia.

Enquanto o poente enrubescia, teve a impressãode ver destacar-se, ao longe, fulgurante globo de luzque ia tomando a forma humana à medida que seaproximava, até estacar, finalmente, a poucos metrosdele. Era, no entanto, um homem de grotescaaparência. Na face, na garganta, nas mãos e nos pés,estavam os grosseiros sinais das lesõeslepromatosas.

Amedrontado, Armando desejou fugir, masestava ali fixado por ignota força.

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— “Não temas — falou-lhe o ser espiritual, apóssaudá-lo carinhosamente. — Somos antigos amigosde loucuras intérminas, aos quais a concessãocelestial faculta ensejos de imediata reparação.

“Na última caminhada terrena enverguel asroupas do que foi conhecido por Iésus Gonzalez...De jornalista incipiente, em próspera cidade paulista,marchei para a abençoada universidade dosofrimento: o Leprosário “Damião de Veuster”. Ali, apouco e pouco, sob o pálio da bondade dos Céus,aprendi a recolher as pérolas de luz da própriarenovação. O Espiritismo, em me bafejando o

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espírito, balsamizou-me as úlceras lepromatosas,transfigurando-lhes a estrutura aos meus olhosatônitos e transformou a configuração da dor.

“Não me foi fácil o caminho pedregoso, em quese multiplicavam as urzes e os cardos de quenecessitei para a própria purificação.

“Fruí, no entanto, a rara felicidade de convocaroutros corações — antigos comparsas de crimes — aoaprendizado da Fé Espírita, por cujo roteiroreuníamos forças para levar de vencida problemas elimitações. Animados de propósitos superiores,embora o chavascal em que o corpo lentamente setransformava, edificamos na Colônia em queresidíamos um Centro de Estudos Espiritistas, ondenossas esperanças refloriram e a estrela da caridadepassou a clarear os muitos destinos que se reuniampara o conforto da prece, quando transferíamos astristezas da Terra para as paisagens felizes daEspiritualidade, que nos aguardavam.. .”

A Entidade fez expressiva pausa. Armando,magnetizado, experimentava simultaneamenteemoções diversas: receio pela aparência com quedesencarnara o visitante — assim mantida comopreito de gratidão à cruz dos sofrimentosreparadores — e simpatia envolvente pelo sertranscendental, muito superior à forma transitória daindumentária física que usara.

O visitante modulava as palavras com musical

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articulação, enquanto se metamorfoseava aos olhosespirituais do ouvinte, fascinado:

— “Antes, conduzindo a clava dos impiedosos eo cetro dos reis, pisei terras que se converteram emcemitérios e cavalguel por sítios que setransformaram em solos áridos, crestados, após apassagem das minhas hordas sanguissedentas... Osséculos de dor, em regiões punitivas e purificadoras,não conseguiram modificar a estrutura do meuespírito rebelde... Novamente tornei aos cenários daTerra, para aprender e recuperar, mergulhandonovamente

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em abismos de loucura política, corruptora esanguinária, em que dezenas de milhares de vidassofreram o guante da minha alucinação guerreira,em nome de falsos ideais de liberdade e dominação,para expungir em definitivo o passado culposo, nocatre da lepra redentora, que bendigo!

“Tudo é transitório, amigo dileto, enquantoestamos no carro sombrio da carne humana.Somente o amor possui a linguagem definitiva eenobrecedora da vida, capaz de vencer o túmulo decinzas e alcançar a madrugada espiritual.Permanecem as construções do bem e a luz dafraternidade, espalhadas por onde se erguem osalicerces da esperança.

“Renasceste, como todos nós, para recomeçar aexperiência evolutiva. Trazes no perispírito, onde sesediam as necessidades que nos impomos, após osgravâmes das experiências malogradas, os germensda hanseníase, que poderão ou não manifestar-se einfectar-te o corpo somático, dependendo de como teutilizes das forças físicas ora ao teu alcance. Nãoapenas pelo impositivo expiatório recuperamos opatrimônio malbaratado do espírito... As LeisSoberanas são todas de amor, e pelo amor toda a“multidão de pecados é perdoada", conformeasseverou Pedro, recordando o Senhor da Vida, naTerra.

"O cabedal de energias que utilizamos no

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cumprimento do dever e na preservação da virtudemultiplica-se, ampliando a potencialidade que lhe éprópria, a benefício da usina donde promana, nostecidos muito sutis do espírito. Assim, trabalha eserve, ama e ajuda. Pelo amor repararás os desastresda ignorância, da ira e da maldade.”

Armando recordava que o Espírito estava, então,fulgurante. Modificara-se-lhe toda a aparência antesdesagradável. Tornou-se verdadeiro Mensageiro daLuz e da Beleza. Radioso, era difícil de ser definido.

Após reflexão mais acentuada, o BenfeitorImortal prosseguiu:

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— “Todas as fibras físicas diluídas pelaenfermidade, sob o pálio da resignação, agoraressurgem em diáfana constituição, impossível de serdescrita para o entendimento humano. Se todo“membro escandaloso deve ser amputado", conforme aconcepção evangélica, todo instrumento de amor eredenção se converte em manancial de beleza efelicidade, pois a recíproca do ensino é verdadeira.

“Não te olvides, portanto, do próprio serviçorenovador.

“Haja o que houver, persevera no bem e insistena invariável Misericórdia do Pai, que tudo prevê eprovê. Não te desanime a luta, nem te faça recear asombra do mal. Sejam as tuas as mãos da caridade eteu o verbo da esperança, na conjugação do serviçoeficiente, contínuo, intérmino. A vida é o que delafazemos, na vitalização do destino.

“Visita, logo possas, os teus Irmãos na dor:aqueles que a lepra interior esfloriu em chagaspestilenciais e não sabem caminhar, tu que também atrazes no espírito, sem exteriorizar-se, porenquanto...

“O medo produz sintonia com aquilo que seteme, pela própria vibração que emite. Assim,também, a esperança do bem eleva o espirito, graçasàs energias que elabora, facultando intercâmbiosuperior com a Verdade.

“Os que caminham a sós esperam por todos nós,

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os que já sabemos marchar, como aqueles que estãoaprendendo a seguir a direção da Luz do Cristo...”

Armando recordava-se de que, a partir dali, doencontro inesquecível, modificara a forma de pensar,alterara os conceitos até àquela hora mantidos sobrea lepra. Aclararam-se-lhe os horizontes doentendimento e passara a participar de ágapesfraternos em Colônias de Hansènianos, quanto lhepermitiam as possibilidades, pois lá se encontravamos antigos compares das suas muitas lutas inglóriasnos conturbados campos do mundo.

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Por isso — reflexionava, agora —, se ligara tãoprofundamente a Lucien, desde que o reencontrarana Terra, quando ainda não haviam desabrochado asrosas pútridas da enfermidade, no corpo apolíneo doamigo.

Exsudava abundantemente. Havia silêncio emvolta e o turbilhonar das recordações íntimas.

Amadurecido pelas lutas, adulto, sulcado pelasdores do caminho e conduzindo o fardo bendito demil experiências, adquiridas a pesado esforço,Armando soergueu-se, abandonou a sala e dirigiu-seàs atividades que o esperavam, além do portal dasreflexões purificadoras.

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2 A RESPOSTANão obstante as reservas espirituais de ânimo de

que Armando se supunha possuidor, a notícia doamigo em reparação dolorosa, num leito deleprosário, conseguira sulcar-lhe fundamente oespírito. Mesmo desejando retirar da lembrança oacontecimento martirizante, não o conseguia. Pareciarever o sorriso do jovem musicista, adornado deesperanças, e recordava-o, olhar fulgurante,sonhando com as possibilidades de levar adiante aexcelência da Arte e a grandeza da Fé, qual semeadorde bênçãos pelos adustos solos das vidas humanas.Não atinava como estaria ele, exatamente.

Nas múltiplas visitas que fizera a leprocômio,vira as paisagens dos mutilados, quer no corpo, querespecialmente na alma. A grande maioria doscurados clinicamente, ou com a enfermidadeestacionada, ao conseguirem retornar à comunidadedos sãos, na condição de egressos, logo volviam àColônia, ante a impossibilidade de lograrem legitimoajustamento na sociedade a que um dia pertenceram.

Receava, assim, que o amigo, apesar deapresentar-se animoso e entusiasta, estivesse acarregar pesado ônus de dor, no qual a juventudetranscorria entre os martírios da rigorosa doença e dofalecimento de todos os anseios acalentados emfestas de sorrisos e ambições de beleza.

Nesse estado de ânimo, após demorada

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concentração, na primeira oportunidade em que sesupôs renovado interiormente, dedicou-se a longamissiva ao mancebo, envolvendo-o na vibraçãocarinhosa da legítima amizade, essa amizade quedesdenha tempo, oportunidade e circunstâncias,sendo sempre luz meridiana a fulgir dominante,vitoriosa, sobre as sombras ameaçadoras. Para tanto,orara profundamente recolhido, de modo a haurir noconúbio da prece as indispensáveis energias para ocometimento da consolação a que se propunha.

“Lucien, irmão na fé e amigo dileto:“Seja a nossa a cruz redentora, sob cujo peso

encontraremos a paz!“Sua carta chegou-me, e com ela suas noticias de

sublimação. Lendo-a, volvi ao passado e reencontrei-o. Foi ontem; no entanto, faz tanto tempo! Agora,porém, o tempo escoou e tudo rutila alegrias eesperanças novamente em nosso caminho. Passado epresente resultam na união do futuro feliz, paraquem tem sabido, como você, conduzir o fardo dasprovas nobilitantes.

“Em cada palavra da sua mensagem, em cadapensamento, encontrei a flama da fé, e Constatei,mais uma vez, o significado venturoso do verbo crer.Infelizes, sim, são aqueles que se veem obrigados amarchar na noite da descrença, após terem apagado aclaridade da fé, na mente, e a da esperança, nocoração. Isso, sem dúvida, constitui a mais áspera

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desgraça que pode acontecer a alguém. Possuindo-se, no entanto, essa fé que ameniza as paisagenstorvas do sofrimento, o mais duro padecer dilui-seante as perspectivas que se desenham nos paineis doespírito. Bem-aventurado aquele que crê, esimultaneamente testifica a fé, resgatando o passadoturbilhonado, infamante . . . ”

Armando fez uma pausa, acurando os sentidospsíquicos, para registrar melhor a inspiração do seuEspírito Quia, que dele se acercara, gentil emagnânimo, a fim de conduzir-lhe as ideias.Sentindo-se vigorosamente amparado, prosseguiu:

“Quando me preparava para dirigir-me ao seucoração, tomei de “O Evangelho segundo oEspiritismo" e abri-o ao acaso, como faziam osantigos cristãos com as “anotações do Senhor”. Amensagem reconfortante, transcrevo-a ipsis litteris,do capítulo n.° VI, parágrafo 6:

"Venho instruir e consolar os pobres deserdados.Venho dizer-lhes que elevem a sua resignação ao nível desuas provas, que chorem, porquanto a dor foi sagrada noJardim das Oliveiras; mas, que esperem, pois quetambém a eles os anjos consoladores lhes virão enxugaras lágrimas.

"Obreiros, traçai o vosso sulco; recomeçai no diaseguinte o afanoso labor da véspera; o trabalho dasvossas mãos vos fornece aos corpos o pão terrestre,porém, vossas almas não estão esquecidas; e eu, o

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jardineiro divino, as cultivo no silêncio dos vossospensamentos. Quando soar a hora do repouso e a tramada vida se vos escapar das mãos e vossos olhos sefecharem para a luz, sentireis que surge em vós e germinaa minha preciosa semente. Nada fica perdido no reino denosso Pai e os vossos suores e misérias formam otesouro que vos tornará ricos nas esferas superiores,onde a luz substitui as trevas e onde o mais desnudodentre todos vós será talvez o mais resplandecente. — O

ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1861).’’3

“Refleti, então, no conteúdo da excelentemensagem, passando à certeza de que mãosintangíveis conduziram minhas mãos, de modo aabrir o volume exatamente nesse local, onde estão asmais lindas páginas do Espiritismo Consolador.Sugerir-lhe-ia que lesse todo o capítulo, pelo ímparconteúdo de que se constitui, mesmo que você já otenha feito noutras vezes. A leitura das páginasespíritas produz o efeito de ser mais proveitosa, àmedida que nos encontramos mais amadurecidos,mais experimentados na luta. A cada vez, rutilammelhor os seus conceitos e fazem-se mais profundos,mais nobres e significativos, oferecendo-nospaisagens dantes não descortinadas, que penetram oâmago do espírito com significação mais expressiva.Por isso mesmo, é o Espiritismo o “Consolador”prometido por Jesus. Sua linguagem é sempre nova e

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bela, repassada de atualidade e sutilezas benéficas.Sem ele, meu amigo, que seria de nós, os náufragosde outras viagens, encalhados nas praias da carne,por nímia misericórdia do Pai?!

“Costumo afirmar-me, nos momentos dereflexão, que tudo devo a essa invulgar Doutrina,que me arrancou das amarras obsessivas, impedindoque me arrojasse ao corredor da loucura, ou aoestreito cubículo do cárcere, ou, talvez, ao fundofosso do suicídio. Espírito calceta, que me reconheçoser, somente através das lúcidas lições espiritistastenho conseguido caminhar sem maiores tropeços,avançando sem mais alta contribuição de desespero.

“Quando considero o mundo turbulento e asalmas inquietas que jornadeiam sem rumo,atormentadas e atormentadoras, compreendo-as,sentindo-lhes o drama de não haverem fruido, ainda,a dita do contacto demorado com a Mensagem doCristo Redivivo, de modo a mergulharem no mar dameditação salutar, dali saindo com novas disposiçõese melhores possibilidades de triunfo, na conjunturafísica atual.

“Por assim pensar, invejo-o, meu amigo. Invejo-lhe o resgate formoso, entre as exulceraçõeslepromatosas em que você renasce para aImortalidade, após o inadiável resgate de queninguém se poderá liberar por fuga ou ludibrio. ALei propõe que o endividado carregue a dívida na

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consciência, até o momento da liberação. Assim, amomentânea tristeza que de mim se apossou ao lê-lo, logo se foi transformando num sol de amanhecerespiritual,

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no horizonte do meu pensamento, porque felizes sãoaqueles que dispõem do tesouro com que pagar suasdívidas, e desditosos os que prosseguem enganados,adquirindo pesados débitos para um amanhã difícil.

“Examinemos a juventude atual. Eis aí os moços.Todas as oportunidades à disposição. Técnicas decomunicação vitoriosas, conhecimentos quetransbordam, comodidades que se multiplicam, e, noentanto, não falta, entre eles, quem marche pelosterrenos da anticultura, afundando nos sonhos daalucinação tóxica, em que se entorpecem sentimentose ideais, na imprevidência dolorosa. De aparênciabela, são frequentemente estetas na forma eprimários no sentimento. Alguns constituem biótiposde beleza física, que fazem inveja à estatuária deFídias, de Praxíteles... Todavia, não passam, às vezes,de espíritos primitivos, recomeçando a jornada emboa indumentária, que despedaçam a golpes deloucura e desesperação.

"Informaram-me os Amigos Espirituais que certonúmero deles é constituído pelos antigosconquistadores que invadiram a Europa, sob ocomando de Atila, Alarico, Gengis Khãn, Tamerlão eoutros, demoradamente retidos em regiões próprias,do Mundo Espiritual Inferior, de modo a nãoperturbarem o progresso do Globo em tempospassados, mas que agora foram liberados àreencarnação, para terem ensejo de evoluir e,

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também, a fim de que as suas dores e as suastruculências nos sirvam de advertências salutarespara o próprio aprimoramento. Dizem que detestama Civilização, a “sociedade de consumo”, e desejamretornar à caverna, à Natureza, à comunidade tribal— donde, sem dúvida, vieram, e cujas impressõesestão fortemente sulcadas nos refolhos da memóriaanterior. Suas necessidades se reduzem a rudimentosde beleza primitiva e imediatismo sexual, a quechamam amor, quando não passam de impulsosinstintivos, nem sempre procriativos e por vezesaberrantes...

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“Recordo-me do que ocorreu à Bizâncio doséculo IV, em que a Arte abandonou o classicismodas formas e transitou do expressionismo aoimpressionismo, ao abstracionismo, ao primitivo, e aHumanidade, logo depois, penetrou na hedionda“noite medieval”... Tenho a impressão de que serepetem hoje experiências equivalentes... O homem,que é o maior investimento da Criação, se encontrarelegado a plano secundário, no momento dos robôse dos sonhos de biólogos e eugenistas fascinadospor si mesmos, que se atribuem poderes divinos enão passam de homens atormentados interiormente.Ora, meu amigo, isto acontece porque esqueceramde Deus, esquecemos todos nós, ou quase todos, dosdeveres cristianíssimos, que foram transferidos, porprocessos da acomodação religiosa, e solapados porfalsas convenções sociais.

“Nesse sentido, como em outros, o Espiritismotem a sua mais grandiosa missão histórica, conformepreviu Alian Kardec: a de transformar o homem,modificar o mundo!

“Por isso, o seu imenso sofrer é lenido pelaesperança de que tudo logo passará, ficando aslembranças valiosas a se transformarem em bênçãosde alto teor, inapreciáveis, por enquanto,Inestimáveis sempre.”

O missivista, fortemente inspirado, sob aorientação do seu Benfeitor Desencarnado, parou

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por alguns momentos, como se estivesserearticulando a argumentação, e prosseguiu, logodepois:

“Repasso mentalmente o disparate entre asconquistas tecnológicas e éticas dos nossos dias. Ohomem, superconfortado, é profundamente infeliz.Por toda parte, a ambição da posse estruge emguerras, tão crueis quanto insensatas. No entanto, aguerra de extermínio total, com que se ameaça oaniquilamento da Humanidade, tem origem naguerra constante que cada um trava no país de simesmo. Intoxicado pelos vapores da ira e vencidopelo

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estimulante do ódio, o Indivíduo se desintegra, dedentro para fora, sob o impacto da violência queacalenta, arregimentando forças negativas a que seescraviza mesmo após o decesso celular.

“Muitos governantes do mundo pregam a paz,produzindo experiências de alto teor destrutivo, enão obstante a miséria que se espalha por toda parte,não raro se apresentam gargalhantes, como se nãolhes coubesse, por Isso, nenhuma responsabilidade,exatamente quando se multiplicam, de modoalarmante, os campos de trabalho forçado e aescravidão de muitos matizes, atingindo cifras jamaisigualadas.

“As aberrações morais adquirem cidadania ejactam- -se de modernismo, enquanto os valores éticosenvelhecem, passando a filigranas de museus. Ora,simultaneamente, também, os SublimesConstrutores da Harmonia trazem à reencarnaçãoantigos poetas e artistas, sábios e pensadores,sensitivos e pesquisadores de ontem, que ofereceramo melhor dos seus mais valiosos esforços aos ideaisde su- blimação da vida e do mundo, para quemergulhem no vestuário físico e implantem, comaltas expressões de renúncia e sacrifício, os pilotis doMundo Novo de Amanhã, de que o Espiritismo sefaz Mensageiro, Anunciador. Aí também, estão nacondição de anjos encarcerados, prontos a distenderas asas de luz, irisando os céus do espírito humano

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com as mensagens rutilantes da beleza, doconhecimento enobrecido, da justiça e da caridade,opondo sublime resposta aos atuais destruidores.Ocorre que, antes da Era Nova, se faz indispensávelque os demolidores passem, com os seus carros dehorror, destruindo as construções nefandas daignorância que teima por sobreviver, e atinjam oclímax dos ultrajes, de modo a constrangerem todosà busca do que ficou na retaguarda, em grandezamoral e elevação espiritual.

“Já se ouvem, aliás, os clarins renovadores. Aolado da anarquia e do vandalismo, constroem-se osedifícios

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da esperança, da solidariedade e do amor, e o ar seimpregna de melodias salutares, revivendo oclassicismo, ou elaborando, através de pesquisashonestas, nas múltiplas manifestações da Arte, asnovas expressões do sentimento e da cultura, quenortearão as exteriorizações humanas porvindouras.

“Você, donde se encontra, está realizando largoinvestimento de beleza e renunciação. A Terra aindanecessita de mártires e herois do amor, para nosreanimarmos na própria marcha. Fazem-nos muitafalta os expoentes da honorabilidade e do sacrifício,a fim de que, por eles conduzidos, alcancemos asmetas da paz e da felicidade. Sua vida, portanto, évitalidade para outras vidas. A luz represada na suaalma se transforma em sol, a fulgir no continente emque você se encontra e onde é sobremodo preciosaqualquer claridade superior.

“Agradeço a Deus, meu caro, você haverretornado a mim agora, mediante a sua carta, e, logodepois, pela oportunidade que teremos de rever-nose conversarmos demoradamente.

“Deverei passar pela Cidade de Opala, logomais, no próximo mês. Ali proferirei algumasconferências espíritas. Como gostaria de tê-lo noauditório! Se, todavia, não lhe for possível chegar atémim, avise-me e irei visitá-lo na Colônia “Damião deVeuster”, em cujo ensejo cuidarei de meditar commaior proveito nas múltiplas lições vivas que aí se

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encontram em tratamento."Outrossim, permita-me lembrá-lo de que não

deixe de utilizar-se da terapêutica espírita: ootimismo constante, ao lado da confiança inalienávelno Senhor. Use, também, a água fluidificada,evocando as lições do Amantíssimo Cordeiro deDeus, nosso Mestre e Senhor.

“Estarei na expectativa feliz do nosso próximoencontro. Até lá, orando, tentarei sintonizar com onosso Pai,

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rogando-Lhe nos socorra e nos guarde na SuaMisericórdia, de que muito necessitamos.

“Com o carinho fraterno de sempre,Armando.”

Terminada a carta, o missivista, que a escreviasob imperiosa inspiração, envolveu o companheiroem demorada vibração de paz refazedora, como seestivesse mag- netizando os papeis, de modo alenirem, pela exteriorização das palavras, aquele aquem se dirigiam as bondosas expressões.

Estranha, singular emoção continuou pulsandono espírito sensível de Armando, como se vigorosaforça o atasse a Lucien, fisicamente distante.

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3ACOLÔNIA“DAMIÃODEVEUSTER”Quando Armando terminou a carta, buscou o

refúgio de vetusto arvoredo, no pomar, e, pensativo,pôs-se a refletir.

Era uma tarde calma de verão e o poente pareciaum Incêndio de luzes. O dia não fora muito quente.Sopravam brisas vindas do mar próximo e, acurando-se o ouvido, era possível escutar-se a quebrada dasondas, em ritmo continuo, monótono... Melodiasenchiam o entardecer, gorjeadas, docemente, pelapassarada em festa.

Tudo eram convites à meditação, ao esvaziar dosproblemas e ao mergulhar no oceano inefável dasrecordações, amenas quão sutis.

O pregador espírita, visivelmente emocionado,repassou pelo mágico painel da memória a existênciaatual, assinalada pela constante Presença Divina, nasmil nona- das e nos grandes momentos significativosdo jornadear.

De período a período, reviu-se em visita àColônia “Damião de Veuster”, na formosa eprogressista Cidade de Opala.

Aquela época não havia vencido de todo o receioda hanseníase, cujas impressões, fortementemarcadas no espírito, apavoravam-no. No entanto,conduzido pelas mãos de nobre amiga, verdadeiradama de caridade, que se afervorava no auxílio aoslázaros, embora residente fora dos limites do

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leprocômio, não relutou em conhecer de perto onúcleo espírita que ali movimentava esforços paralenir os sofrimentos dos internados.

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Singular coincidência! Quando tivera o primeirocontacto mediúnico com o Espírito Iésus Gonzalez —lembrava-se com minúcia de detalhes —, este lherecomendara que, em chegando ao Centro Espírita,aquela noite, narrasse a entrevista, pois ali, alguém,por ele conduzido, iria dar-lhe esclarecimentospreciosos, passando a ser-lhe útil nosempreendimentos cristãos do futuro. Assim o fizera,e, terminada a alocução, veneranda senhora acercou-se- -lhe, apresentando-se como sendo amiga deIésus, que tivera a alegria inefável de conhecê-lodurante a expiação concluída. Convivera ao seu ladoem muitos dias de inesquecível comunhão fraternal ecom ele aprendera a arte da resignação e a virtude daesperança.

Naturalmente, depois dos informes, se abriramos elos do entendimento cordial e sólida amizade seestruturou, desde então, entre ele e a dama.

A Senhora Zínia Pittsburg encontrava-se emHermínia, a encantadora cidade em que residiaArmando, renovando-se, espairecendo, e, ao mesmotempo, em viagem de carinho à memória de nobreEspírito, que lhe era caridoso Benfeitor. Graças à suaintervenção, por mais de uma vez, tivera a vidaprolongada por terapêutica cirúrgica, através dededicado médium, de Opala, que a operara,extraindo-lhe cruel e desenvolvido carcinoma, que sealojava, soez, na medula óssea, espraiando-se já por

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diversas partes do organismo. Dizia-se feliz,inteiramente feliz, tendo, em consequência,oferecido a vida, que já lhe não pertencia, ao misterdo socorro aos mais aflitos do que ela mesma,visitando-os e ministrando-lhes o pão do otimismo;erguendo, mediante contribuição de dedicadosamigos generosos, um Pavilhão para hansenianostuberculosos, na Colônia “Damião de Veuster”,como tributo de reconhecimento a Iésus, o queridosempre vivo.

Junto à nova amiga, recordava Armando, passaradias formosos de lucubrações espirituais eprogramas de

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visitas não apenas a pessoas enfermas, comotambém ao Sanatório existente em Hermínia, suacidade de residência.

À despedida, quando do retorno a Opala, Ziniaconvidou o amigo e confrade a visitá-la, logo fossepossível, quando, então, ela o conduziria à antigaresidência de Jesus, levando-o pela mão ao santuárioespírita que o abnegado Lázaro erguera sob aconstrição de pesadas dores, a fim de assistir osirmãos de martírio...

Ao ensejo, cumprira com o prometido.*

A Colônia situava-se, como ainda hoje seencontra, em imensa gleba florida, salpicada deconstruções de tamanhos diversos, para atender,naqueles dias, a uma população de quase 3.000Internados.

A primeira vista, poderia ser tomada como sendouma cidade comum, com a sua organização social epolítica, educacional e hospitalar, não fossem ossinais evidentes dos seus habitantes, em grande partemutilados, claudicantes, deformados...

Fora-lhe dado o nome de “Damião de Veuster”,em homenagem ao abnegado “Padre Damião”, quenascera na cidadezinha belga de Tremelo, a 3 dejaneiro de 1840.

Em verdade, o nome secular de Damião era José.Quando estudante, em Louvain, ouvira falar sobre as

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Ilhas Havaianas e da necessidade de missionáriospara atender aos leprosos que as infestavam. Comonão estivesse ordenado, ajudou dedicadocompanheiro, Pâníilo, a preparar- -se para ocometimento que ambicionava. Todavia, foiconstatado que a organização física do amigo nãoresisti- ria a viagem tão longa, o que o levou a rogaraos superiores religiosos fosse, então, admitido nolugar do amigo. A custa de orações e insistentesinterferências, recebeu permissão da Congregaçãopara seguir.

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Vencidas muitas peripécias, trabalhando emoutras Paróquias, chegou, por fim, à praia deKalawao, na Ilha de Molokai, em cinzenta manhã demaio de 1873.

Ali, ele renovaria a esperança de muitas criaturase construiria um mundo novo para os banidos,portadores da enfermidade que os egípcios jádenominavam: "a morte antes da morte".

Um dia Damião lera, ainda estudante, noLevítico, XII, versículo 45: "Portanto, todo aquele queestiver manchado de lepra, terá os seus vestidosdescosidos, a cabeça descoberta, o rosto coberto com oseu vestido, e clamará que ele está imundo e sujo. Portodo o tempo que estiver leproso e imundo habitará só,fora do campo", e nunca mais olvidaria os tristesconceitos...

O terrível decreto ferira fundo a alma sensível domissionário em potencial, que, tomado de imensacompaixão pelos lázaros, passou a admirá-los e aquerê-los desde então. A cruel enfermidade,considerada a mais antiga que se conhece, pois émencionada na índia, desde 1400 a.C. e na Pérsia,desde 800 a.C., atingiu cifras alarmantes na Europado Norte, em certo período, quando se calculou queum quarto da população estava acometida do malinsidioso, contagiante e deformador.

Tão impiedoso e malsinante era o conceito sobrea lepra, que, para o portador do mal, se rezavam

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serviços fúnebres, distribuindo-se entre os parentestodos os seus haveres, pois o enfermo desde entãoera tido como morto...

A lepra tem sido encontrada em todas as partesdo mundo: seja nos climas frios da Islândia, seja nostórridos da índia, entre as tribos bárbaras da Africaou nas solitárias ilhas do Pacífico Sul, especialmente.

Os livros sagrados das Religiões mais antigas,como o Talmud e a Bíblia, a ela se referem como averdadeira maldição divina.Aos assírios-babilônios deve a Ciência modernaexpressivo passo para o reconhecimento da doençaterrível,

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pois que foram eles os primeiros a verificarem a suatransmissibilidade.

Sem dúvida, graças à ignorância da Medicina dosséculos passados, multas enfermidades da pele eramtambém consideradas facilmente como sendohanseníase, o que explica certa curabilidade multofácil e constante. Mesmo na atualidade, tendo-se emvista os recursos granjeados pela Ciência Médica, acura da lepra não pode ser constatada eficazmente.Consegue-se, desde que foi isolado o bacilo, deter-sea doença, através de muitos processos modernos,especialmente pelo uso demorado das sulfonas, dadiazona, do promin, e de outros produtosfarmacêuticos.

O Cristianismo, fundamentado no conceitosublime do “amar ao próximo como a si mesmo", abriuas primeiras portas da compaixão e da misericórdiaaos portadores de lepra, nos dias difíceis dos séculospassados. Proliferaram, assim, os lazaretos, ondecada recém-chegado era considerado como “se fosseo próprio Cristo que ali se hospedava”, passando areceber a caridade da assistência e o socorro do amorfraterno.

Muito deve a Humanidade a esses primeiroshospitais, se levarmos em consideração a época deignorância e promiscuidade, de imundície eindiferença humana, em que se multiplicaram.

“Damião de Veuster” foi, em Molokai, o

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exemplo cristianíssimo da caridade.Reformulou as condições em que padeciam os

enfermos, apresentou novos métodos de compaixãoe higiene, dando toda a sua vida aos doentes, entrerenúncias ásperas e devotamento ímpar, cominexcedível alegria.

Desencarnou a 12 de abril de 1889, tendo sidoconstatado pelas testemunhas que o assistiram noúltimo hausto físico, que “desapareceram do seurosto todos os sinais da lepra!”, após o suaveadormecer na Terra, para o sublime

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despertar, além de todas as vicissitudes e aflições, naEspiritualidade Maior.

Em homenagem a esse Apóstolo da Hanseníase,a Colônia, sediada na Cidade de Opala, recebeu onome do inesquecível “Damião de Veuster”.*

Armando, recordava-se agora, adentrara-se naColônia com a Senhora Zínia e outros amigos que osacompanharam na jornada, guardando ainda osinjustificáveis receios que a ignorância injetara, emlongos séculos de servidão, no espírito humano, arespeito dos portadores do bacilo de Hansen.

Era janeiro e o dia começara ardente — pareciarever aqueles acontecimentos.

Em toda parte, pela Colônia, havia flores, eárvores oscilavam ao vento, dando à paisagemmatizes variados e agradáveis.

A pequena caravana fora recepcionada pelosfamiliares de Iésus Gonzalez, que, informadosadredemente de que a Senhora Zínia Pittsburg aliestaria na oportunidade, se apresentaram paraprestar à abnegada trabalhadora, e aos seusacompanhantes, um tributo de carinho.

A viúva de Iésus perdera a vista, fazia anos.Socorrida, no entanto, pelo devotamento doscompanheiros, movl- mentava-se facilmente pelacidade, sendo amada, em decorrência do seu espíritocordial e caridoso. Desenvolvia, àquela época,

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expressivo labor espírita, no desempenho das tarefasde médium de excelentes possibilidades, colocadas abenefício de todos.

O encontro se fizera agradável e gentil.Subitamente, Arminda, visivelmente

mediunizada, voltou-se para Armando e informou:

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— Seja bem-vindo! Jesus está a dizer-me que otrouxe, a fim de que possamos manter a ponte deentendimento entre o nosso mundo e o de lá de fora,aquele que está além dos limites do portão deentrada...

Fez uma pausa significativa, para logoprosseguir:— Esclarece-me que vocês estiveram juntos nos

tumultuosos dias da França agitada, dos séculosXVI e XVII. Quando ministro de Luis XIII e umdos responsáveis diretos pela guerra dos TrintaAnos (no seu quarto período, o francês), ele, nasindumentárias de Richelieu, oferecendo apoiosecreto aos inimigos da Casa de Áustria, resolveudefinir-se, por fim, publicamente contra, o quefacultou as vitórias francesas de Friburgo e deNorlinga, obrigando, em consequência, a Áustriaa assinar o humilhante tratado de paz deVestefália... Arruinados pelos ódios entreprotestantes e católicos, que deram início àcalamitosa hecatombe, a partir de 1618, os paísesbeligerantes ficaram em dolorosa miséria,especialmente a Alemanha, que muito sofreu...

Arminda estava pálida e o rosto adquiriraexpressiva movimentação, não obstante ostubérculos que lhe deformavam a face. Prosseguiu,em tom inesquecível:— Naqueles dias — continuou esclarecendo —, a

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figura de nefando sacerdote estimulava asambições do cardeal, que colocara Deus nacondição de francês, num zelo abominável eterrível, em que o fanatismo usava das maisrepugnantes armas para sobreviver, emdetrimento de todos os ideais humanos. A França,em razão disso, pagaria, no suceder dos tempos,pesado tributo de dor. Esse sacerdote, que viverana sombra, caracterizado pelo fervor religioso, nasua fidelidade a Richelieu, conseguira que esteadquirisse o chapéu escarlate e o manto depúrpura...

“Muito lhe cabe agora fazer, para reparar asinúmeras calamidades e aflições espalhadas naqueleentão, pois o sacerdote era você. Para tanto, osfiadores da sua atual

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reencarnação concederam-lhe, por nímia deferênciado Senhor, Incontáveis recursos, que, colocados aserviço do Bem Sem Limite, serão multiplicados,como narrado na “Parábola dos Talentos”... Emcontrário...

Arminda silenciou bruscamente.Armando estava pálido, os olhos fora das

órbitas, a respiração ofegante, e exsudavaabundantemente. Parecia rever, nos recônditos doespirito, as cenas que o corpo fizera esquecer, masque se não apagaram...

Compreendia, agora, um sem-número defenômenos que lhe ocorreram durante toda a vida.Em criança, era dominado por acentuado fervorreligioso, entregando-se a demoradas orações, até aocansaço ou ao desmaio, na Igreja que frequentava,na cidade em que nascera. Depois, as impressõesíntimas que experimentava, as lembranças nubladaspelo conflito de emoções e imponderáveis sensaçõesmartirizantes... Os receios sem-fim que oatormentaram desde os primeiros dias e, sobretudo,aquelas terríveis presenças espirituais afligentes, quelhe falavam de vingança, por pouco não oconduzindo ao total desequilíbrio psíquico, eramlegítimos — pensava. Fora no auge dessespadecimentos que travara contacto com a DoutrinaEspírita, fazendo o processo de transferência dasaspirações e ansiedades atuais para Jesus-Cristo, o

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Heroi Supremo e Incomparável Guia daHumanidade.

Sem poder deter as lágrimas que lhe aljofravam aface, Armando, muito lívido, apoiou-se ao braçoamigo de Zínia, que o enlaçou maternal,compreensivamente.

Nesse momento, incorporada pelo antigoesposo, Arminda, em tonalidade de voz emocionadae bela, prosseguiu:

— Se o passado é nossa sombra de dor, o futurosignifica a nossa primavera de bênçãos, conforme opresente ao nosso alcance. As trevas cedem ante aluz, e o sofrimento desaparece em face à alegria daesperança e ao consolo da consciência emtranquilidade. Ninguém paga

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além do débito a que se vincula. O amor, porém, é opermanente haver, em clima de compensação detodas as desgraças que por acaso hajamos semeado,recompensando- -nos o espírito pelo que fizermosem nome do bem e realizarmos em prol de nósmesmos.

“Reaprendi, aqui, nas tábuas da lepra, o que apurpura me fez atirar fora, recuperandooportunidades felizes que somente agora possoavaliar em toda a sua extensão... No auge do poder,fiz-me mais uma vez calceta, e, arbitrário, cavalgueisobre os sentimentos alheios, utilizando-me do relhoda impiedade e das furnas do presídio, a que foramatiradas milhares de vitimas inermes das minhaspaixões... As rosas da lepra, a desabrocharem nomeu corpo, irrompiam dos intrincados tecidosperispirituais onde estavam fixados, a ferro e fogo,os gravâmes criminosos a que me jungiraespontaneamente, apesar dos convites divinos doPai, através das mil expressões da vida, ao amor, aobem, à fraternidade...

“Esquecera deliberadamente que o dia começaao amanhecer, mesmo que algumas sombras restem,momentaneamente, parecendo ameaçar a claridadediamantina da madrugada. A luz sempre chega etriunfa, mesmo porque a treva nada mais é do que aausência dela, não tendo, portanto, nenhumasignificação real.

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“À medida que o corpo se desfazia, putrefato enauseante, a meditação em torno da Justiça do Céudescer- rava-me as paisagens do futuro, diminuindoa agudeza das dores experimentadas. Bendigo,assim, toda amargura e aflição, através das quaisconsegui o encontro comigo mesmo, sob o pálioprotetor da Fé Renovada, de que se fazem intérpretesos Mensageiros Espirituais, essas Vozes que logoestarão ecoando por toda a Terra, convocando emdefinitivo o homem para os caminhos da Boa Nova eanunciando a Era da Fraternidade e da Paz,prometida pelo Cristo-Jesus.

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“Não receies, nem temas, nunca! O pântanodesprezível é desafio ao nosso esforço para mudar-lhe o aspecto, e a aridez do deserto é incitação ànossa capacidade de transformá-la em jardim deesperanças e em pomar de bênçãos. .. Imprescindívelcomeçar agora a nossa obra de aprimoramentointerior, enquanto surge a oportunidade favorável.Amanhã, talvez seja tarde demais, e o minuto valiosojá se terá esvaído na ampulheta do tempo. Cadacoração é nosso momento de produzir; cadasofrimento é nossa quota de reparação. O adversáriosignifica o solo a trabalhar, esperando por nós,enquanto o amigo é dádiva de que nos devemosutilizar com respeito e elevação.

“Não fites a noite esquecendo-te das estrelas,nem arroles queixas. Quem serve a Jesus, redimindo-se, não tem o direito de reclamar contra nada, contracoisa alguma. O que lhe chega é além do quemerece; o que lhe cabe representa contribuiçãosuperior à sua própria valia.

“Assim, esparze a luz, sempre e incessantemente,qual operário da alegria, mensageiro da consolação,recordando sempre Jesus, o Modelo Inquestionável,de Quem não nos podemos apartar, haja o quehouver. Irriga o teu jardim e resguarda o teu campo,entregando a mocidade e todas as tuas forças juvenisao rendimento das horas, semeando e amando. Nãopares para examinar resultados, nem te fixes na

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observação das consequências. Segue sempre além,ajudando e ajudando, porquanto somente ajudandomerecemos ser ajudados...

“...Expulsa a antiga lepra do mal, transformando-a em flores do bem, a recenderem aroma por ondepasses, onde estejas, como te encontres, no serviçoda Imortalidade. O Senhor seguirá contigo, e mesmoquando todos estiverem aparentemente contra ti, temem mente que o desprezo do mundo, por causa doSenhor, testifica que o Senhor está conosco, Ele queaté hoje continua ignorado e, mesmo quandoproclamado por milhões, prossegue esquecido. ..”

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Iésus Gonzalez traduzia, através da mensagempsicofônica, a surpreendente e inesperada emoçãoque o amor produz nos refolhos do espírito.

Aduzindo expressões de carinho aos demaismembros da comitiva, e despedindo-se, facultou queArminda retornasse à lucidez normal, com osemblante irradiando simpatia e gentileza.

Todos estavam vivamente emocionados. Silêncioprofundo se abateu, então. Os grandes momentosdispensam algaravia e comentários, a fim de que oconteúdo dos ensinamentos se gravemindelevelmente no coração e na mente.

A passos tranquilos, dirigiram-se ao Pavilhãoque o carinho de Zínia edificava, já em fase final deobras, rumando depois para o Centro Espírita “IrmãoJames’’, em homenagem ao sacerdote que tantoauxiliara Damião, no seu Lazareto em Molokai.

Instado a proferir algumas palavras, dirigidasaos hansenianos, Armando, ainda dominado pelasvibrações felizes dos minutos passados, teceuenternecedoras considerações sobre a vida e adesencarnação de Maria, a arrependida de Magdala,conseguindo transmitir à mente dos ouvintes, pelofenômeno da ideoplastia, as cenas, ora rutilantes, oradolorosas, do drama da incomparável servidora deJesus.

Terminado o programa doutrinário, saíram avisitar as diversas dependências da Colônia,

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volvendo, ao entardecer, a Opala, com o espíritolenido e enriquecido de esperanças e de ânimo, paraas tarefas no "mar dos homens".

Sob a emotividade das recordações, Armandonão se apercebeu de que a noite houvera caído sempreâmbulos e de que, na escumilha das trevas,pareciam balouçantes os diamantes estelares, quaisindicadores luminosos, apontando para o futuro.

— Sim, murmurou —, enquanto o vento levesegredava-lhe aos ouvidos uma balada sutil —voltaria várias vezes a visitar os companheiros aliinternados e aprenderia a

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respeitar a saúde, a valorizar a vida e, sobretudo, aconsiderar a dadivosa concessão do corpo, cujosignificado inestimável somente poucos parecemcompreender.

E pensou: era ali que estava, agora, Lucien.Esperava encontrá-lo em breve, em Opala, ou iriaabraçá-lo no seu atual domicílio.

As horas avançavam. Retomando o fio dasatividades, retornou a casa, com o peito túmido dasestranhas emoções que o acompanhariam desdeentão, por toda a vida física.

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4LUCIENEMYRIAN.Lucien encontrava-se internado.O progresso da hanseniase obrigara-o a acamar-

se, para tratamento mais rigoroso. Uma das pústulasde mais longo curso, que lhe infectava a falange dodedo mínimo do pé esquerdo, produzira gangrena etornara necessária a amputação, que estivera sendoadiada, na expectativa de uma regressão do mal.Outras se mostravam também provocadoras damesma providência cirúrgica, e o paciente rendia-se acompreensível melancolia. O que ele há muitoreceava eram as Incessantes amputações, queterminariam por atingir os pés, impossibilitando-lhea locomoção.

O Dr. Madeira recomendara-lhe, fazia tempo,que não protelasse a cirurgia, sob pena de ter ospróprios pés comprometidos, o que lhe obrigaria aamputá-los.

O moço, porém, que se encontravaaparentemente bem, cooperando ativamente naClínica de Recuperação Psiquiátrica, do Sanatório, demodo a libertar outros companheiros de sofrimentodas fobias e dos desequilíbrios provocados pelaenfermidade, passou a experimentar recaídaemocional lamentável. Sentia-se desanimado, comose houvera produzido nele o cansaço de viver,embora fosse otimista e diligente servidor.

Ocorre que os males demorados quase sempre

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conseguem minar as resistências mais vigorosas, seestas não se renovarem na oração constante e norecolhimento salutar da meditação, fontes geradorasde esperanças superiores e de forçasdesconhecidas...

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Apesar de ser ainda outono, aqueles eram diasmuito úmidos e frios, face à chegada inesperada demassa polar procedente do Sul, acompanhada deventos hibernais. Com a mudança da temperatura,em queda brusca, Lucien experimentava ainda maiormal-estar.

Sem que o desejasse, era sacudido, em seuabatimento, pelas constantes lembranças dolorosasdos dias passados. Esquecia-se, nesse comenos, queevocar a dor é voltar a padecê-la; reflexionar sobre aamargura produz amarguras novas, e repassar osmomentos agônicos, pelo pensamento, leva aagonias ainda mais afligentes, adicionando novastristezas às antigas decepções.

Quando o homem entender e praticar as liçõesdo otimismo, nos momentos mais graves, e entregar-se às mãos de Deus, em quaisquer conjunturas,sofrerá muito menos, porque se libertará do antigohábito da autocompaixão e do egoísmo, para plainaracima das vicissitudes e das constrições malsinantesda autocomiseração, de resultados sempre molestos.Essa tarefa o Espiritismo conseguirá realizar, a seutempo, ajustando o pensamento humano à sóvalorização das coisas legítimas e boas, semquaisquer conúbios com a insensatez e ocomodismo, que engendram expressões desecundária significação e mórbidos desequilíbrios.

Assim, vinculado ao pessimismo, face ao próprio

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estado, não vigiava a mente o necessário para liberar-se dos antigos inimigos desencarnados que oassediavam, obstinados e insaciáveis, penetrando-ocom estiletes de sombra e desencanto, para produzir-lhe dose maior de desespero, ponte hábil para aloucura ou o suicídio, nas suas feições diretas ouindiretas.

Desse modo, vencido psiquicamente,mergulhado em deprimentes conjeturas, que maislhe aumentavam os sofrimentos íntimos, abriam-se,ou reabriam-se, novas ou antigas feridas dosentimento amargurado. Sem dúvida, fora-lhe multodorida a experiência juvenil, quando viti-

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mado pela hanseníase. Os amigos se afastaram, osfamiliares abandonaram-no, os sonhos seconverteram em pesadelos e as aspiraçõesmurcharam na haste da esperança. No entanto, Jesussempre lhe estivera próximo, estendendo as mãosgenerosas, em socorro urgente. Não lhe faltaram oconcurso, a inspiração, a assistência dos BenfeitoresEspirituais, a conduzi-lo nos momentos mais graves.

Dentre esses Anjos do Amor que o socorreram,lembrava-se destacada e incessantemente da nobreSenhora Myrian Vasconcelos.

Viúva, rendera à memória do esposo os melhoressentimentos, dedicando-se ao ministério da DoutrinaEspírita e ofertando o tributo da sua vida aosinfelizes. Soubera renunciar às frivolidades daconvivência social, para adentrar-se pelo matagal dospesares humanos e abrir clareiras de consolo ondesomente a urze do desespero e o charco da vergonhaconseguiam viger. Sintonizada com as Altas Esferasda Vida Abundante, aplicava os recursos mediúnicosao esclarecimento dos desencarnados e à iluminaçãodos encarnados, graças ao verbo fácil e florido deque se fazia instrumento. A palavra do Senhor, pelosseus lábios, adquiria modulações desconhecidas, e alógica da sua argumentação sabia silenciar o ridículoou a zombaria, fulminando a má-vontade comcerteiros golpes de energia salutar. Por isso mesmo,granjeara na sua cidade natal, Safira, o respeito geral

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e a consideração que se doam aos que se tornamelementos preciosos na constituição dascomunidades nobres. O Espiritismo, graças aos seusvaliosos esforços, adquirira cidadania através dela, eo Núcleo Espírita tornara-se a Igreja da consolação edo esclarecimento, onde todos encontravam a águaviva da luz e do bem.

Lucien fora discípulo das luminosas lições deEvangelho para crianças, através da abnegadaSenhora Myrian. Ao seu lado, descobrira as belezas eas florações da Boa Nova, incorporando-as quantopossível ao dia-a-dia das horas infantis. Vivaz,inteligente, sonhador, encantava a mestre-amiga, quenele, por seu turno, descobria o filho que omatrimônio não lhe concedera, entregando-lhe ocabedal de carinho que somente a maternidade,sublimada pela renúncia, sabe distendergenerosamente. Parecia conhecê-lo desde sempre, emuitas vezes se perguntava se não seria Lucien oanjo dos seus sonhos de mãe frustrada, que nãomerecera a alegria de acalentar no próprio regaço acarne da sua carne.

Conhecedora das leis de causa e efeito, concluíaque a justiça se fazia disciplinante e adiava para ofuturo o que no presente não lhe facultava possuir.Amava, porém, o garoto, sem qualquerdiscriminação, por considerar que o verdadeiro amorbrota e medra em qualquer lugar e circunstância, não

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sendo necessária a vinculação consanguínea, pois naconsanguinidade nem sempre estão os verdadeirosamores, e sim, mais comumente, os desafetos, queretornam para os processos de reajustamento erenovação, de que todos carecemos.

Com esse devotamento fraternal, regava asesperanças do mocinho, com mãos de fadabenfazeja. Seguira-o na sua carreira fulminante depianista, orando, sabendo que o passado nele semanifestava em forma de presente, com juízoperfeito das imensas responsabilidades e dasgrandes lutas que, certamente, um dia lhe chegariam,espírito em lapidação, qual somos quase todos nós,os que nos encontramos nos círculos dasreencarnações provacionais e expiatórias.

Por ocasião do Concurso Internacional de Piano,Prêmio Chopin, realizado na Europa, elaacompanhara mentalmente Lucien, como se fora umcírio votivo aceso à janela da espera, a fim deapontar-lhe o caminho de volta, se, por acaso, aestrada estivesse sombria, quando do seu retorno.Por correspondência contínua, e através dosinformes radiofônicos, seguira com preocupaçãomaterna os

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lances do Invejado Concurso, orando e esperando.Quando a vitória foi concedida a Lucien, a custoconseguiu sopitar a alegria e a ansiedade, enquantoaguardava que o laureado volvesse a Safira.

Lucien, por sua vez, afervorava-se no estudo,sonhando com o sacerdócio médico que desejavaabraçar, enquanto se exercitava horas a fio no piano,para não perder o virtuosismo.

Em casa, porém, era quase um estranho.Amavam-no os familiares, ou melhor, aceitavam-no,com essa fria indiferença que se devota àquelescontra ou a favor dos quais nada se tem. Era tratadodelicadamente, gentilmente. Nem excesso, nemdemonstração mais vigorosa de carinho. A família seconstituía de 12 pessoas: os pais, da mais altasociedade local, e 10 filhos. Alguns deles exerciamexpressivas posições na República, sendo homens denegócios, de leis, pessoas gradas. Lucien era o filhocaçula. Diferia morfologicamente dos demaisirmãos. Enquanto aqueles eram atléticos, este eradelicado; os outros, de tez branca e cabelos claros;ele, moreno, de brilhantes olhos negros e cabeleirabasta, escura, encaracolada, que se lhe transformavaem moldura harmoniosa, no contorno do rostoanguloso. O fulgor da sua inteligência parecia nãoagradar aos pais, que sempre o admoestavam emrazão do constante estudo, do contínuo laborartístico e cultural. O pai, acostumado à vida irregular

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e grotesca da falsa masculinidade, mais de uma vezconcitara o filho a abandonar o que acreditavaexagero e a permitir-se as contumazes leviandadescom que os frívolos e ricos beneficiam os filhos emuitas vezes os desgraçam, na iniciação sexualdegenerativa. Não sabem que a masculinidade estáalém da forma fisiológica e que o homem deveconduzir o sexo, nas suas múltiplas expressões esensações, e não este àquele. O jovem, porém,amadurecido, talvez mais do que o genitor, sorria econtinuava o seu mister, tranquilizando a insensatapreocupação paterna.

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Quando lhe surgiram os primeiros sintomas daenfermidade: dormência nos dedos, ligeirasinflamações nas articulações, despigmentação daface, em tom róseo muito claro, todos em casasupunham tratar-se de problema de pequeno porte.Consultados vários facultativos, os diagnósticosforam tranquilizadores.

Myrian, no entanto, sofria desconhecidaangústia. À medida que a sintomatologia não definiao caso, ou não se pôde, por qualquer razão,diagnosticar o mal de Hansen, animou-o, assistindo-omoralmente, com a frequência possível ao seualcance.

O duro golpe a todos surpreendeu, quando dadiagnose cruel, enunciada com precipitação, naEstância Balneária em que se encontravam em buscade melhores resultados.

Todos voltaram a Safira como se houvessem sidovitimados por impiedoso couce animal, que osesfacelasse íntima e exteriormente. Myrian, todavia,imperturbável, apesar do sofrimento, continuaracomo se nada houvesse acontecido. Dona Angelina,porém, a genitora do jovem, não podia esconder oasco que o filho lhe causava, e, de imediato, emchegando ao lar, isolou-o em cômodo afastado, noquintal, onde se atiravam os móveis velhos: o quartode guardados, como vulgarmente se chamam taisacomodações... O filho era um guardado a mais,

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desagradável e asqueroso. ..Lucien foi levado ao setor de Saúde Pública

encarregado da lepra e teve permissão parapermanecer em casa por algum tempo, enquanto selhe aplicavam os primeiros medicamentos. Ainterferência paterna, também tomou providências,de modo a evitar-se um escândalo, mediante o qual onome da família pudesse ficar manchado.

Sim, havia aflição em casa, mas não pelopaciente, e sim por causa da enfermidade que ovitimava; não por piedade pelo sofredor, antes pelavaidade ferida; não pelo desejo ou pela naturalpreocupação de ajudar, porém pelodescoroçoamento ante o que chamavam deinfortúnio.

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Louca Humanidade! Mesmo Jesus sofrendoinenarráveis padecimentos, não aprende, nemmesmo sob o jugo da cruz, que colocaespontaneamente sobre o corpo e a alma, nosavatares reencarnacionistas!... Dia virá, porém, diachegará em que todos despertarão para a luz,alforriando-se definitivamente dos ergástulos datreva e livrando-se da espada de Dâmocles, sempreerguida sobre a cabeça de cada um e prestes adesferir o golpe fatal...

O jovem, não preparado para essa realidade, quelhe era superior às forças, mergulhou em silenciosodesespero, passando a desequilíbrio psíquicocompreensível.Na memória, repetia-se-lhe, como umlibelo, a frase impiedosa do dermatologista: “Esserapaz tem lepra!”

A palavra “lepra”, essa malsinante sentença dedestruição, não lhe saía do cérebro. Escutava-a, semcessar. Hebetando-se a pouco e pouco, fez-senecessário interná-lo em Casa de Saúdeespecializada.

Myrian ofereceu-se a assisti-lo, no corredorsombrio da loucura. Internou-se, também, a pretextode fazer um longo repouso, de que se dizianecessitada, e, a expensas próprias, ofereceu aojovem o carinho da esperança e a luz dacompreensão, chamando-o a sair do estreito caminhoem que se deixava emparedar.

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Os milagres do amor fraterno! Auxiliada pordedicado psiquiatra, que recomendara sonoterapiaao jovem, a fim de fazê-lo repousar e renovar-se,esperou, paciente, que o organismo debilitadofizesse sua parte e, nesses interstícios, aplicava-lhepasses, no silêncio das horas noturnas, orando evitalizando-o com o magnetismo salutar das forçasde seu espírito de zeladora do Bem.

Após o primeiro período sonoterápico, Luciendespertou com melhor aparência, menos alquebradomoralmente, e Myrian acudiu-o com as palavrasconsoladoras do Evangelho, lembrando-lhe queninguém tem o direito de recusar a própria cruz.Certamente fora ele quem solicitara o resgâtedoloroso, quando ainda no Mundo Espiritual, a fimde mais rapidamente ascender na direção da paz.

A palavra balsâmica, constante e persuasiva,acabou por levantar-lhe o ânimo e prepará-lo para asprovações que, a partir de então, adviriam,Inevitáveis.

Dois meses depois, Lucien recebeu alta e, comela, a benfeitora dedicada.

— Nunca esperes amigos neste mundo —dissera-lhe a amiga fiel. — Os amigos, na Terra, estãoquase sempre Interessados na mesa farta da ilusão eno palco dos sonhos. Quase nunca conseguemcompreender, infelizmente, o significado verdadeiroda amizade. Anestesiados pelo engano, jornadeiam

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entorpecidos nos centros elevados do sentimentopuro. Não têm culpa. São infantes nas experiênciassuperiores da vida. Encontrarás, todavia, algunsespíritos amigos, que valerão mais do que qualquermultidão. Ser-te-ão claridade na noite sem estrelas epresença discreta na soledade mais fria; falarão alinguagem da bondade silenciosa e saberão apagar-se, discretos, a fim de que fulgures, não obstante oenvoltório de pesados crepes que te ocultem...Valerão o tesouro da alegria pura e serão osmensageiros de Deus. Aparecerão aqui ou ali, emcasa ou fora dela. Virão, sim, pois são osrepresentantes do Pai, nos ínvios caminhos da Terra.Talvez não tenham aparência que Impressionepositivamente, ou não saibam falar as línguaselegantes da hipocrisia; é bem provável que não sefaçam identificar com festas, nem se credenciem asalvadores. Semelhantes a sutil aroma, impregnamos corações com sua doce presença. Nem a morte osafasta. Agora, abre os olhos e desdobra oentendimento, para encontrá-los. Fica atento, a fimde que não passem pela porta da tua alma e sigamadiante, sem que os recebas e os honres!

Recordando, Lucien revivia. Tinha os olhostúmidos de lágrimas, que escorriam lentas,lenificadoras.

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— Sim, acudiu-lhe à mente, Myrian era o biótipoperfeito do Amigo, conforme ela própria odefinira. Agora que ele caminhava pela “selvaescura”, podia valorizar melhor a benfeitora, que,aliás, sempre reconhecera como anjo tutelar doseu caminho. Enquanto era colorido o céu dassuas aspirações, no tempo em que sorrisos infantislampejavam no seu coração, podia permitir-sepassar menos atento pelas amizades nobres...Agora, porém, o tempo lhe parecia breve, e ashoras muito preciosas para serem desperdiçadas.

Sentia, porém, necessidade imperiosa derecordar todo o caminho que percorrera até achegada ali. Vinham-lhe ao pensamento os lancescontínuos que o passado sepultara, mas que nãoconseguira aniquilar.

Quando voltaram do Sanatório Psiquiátrico, ele eMyrian, a genitora recebera-os glacialmente. Semrebuços, interrogou:— Por que você não foi diretamente da Casa de

Saúde para o leprosário? Que veio fazer em casa?Humilhar-nos mais? Deseja que a Polícia oencontre na rua e o atire no leprosário daquimesmo? Ou, por acaso, não se conscientizou deque é um...

A palavra parecia pesar-lhe muito nos lábioscoloridos.— Mas, mamãe! — balbuciou o paciente.

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— A partir de hoje, não sou mais sua mãe! —retrucou secamente. — Não posso compreendercomo do meu ventre saiu um... um... infeliz, comovocê. Temo que tudo seja alucinação e que euesteja sonhando. Por Deus, não posso ser eu a suamãe! Olhe-me, compare-se com seus irmãos...Donde veio, para tanto nos fazer sofrer?!

— Céus! Mamãe, eu deliro?! Não tenho culpa! —falou, quase sem forças, Lucien, muito pálido,apoiado ao ombro de Myrian, que se fez muda deespanto, permanecendo paralisada, ao impacto dasurpresa trágica. — Não

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sou o autor da doença. Você sabe que nunca saí decasa, sequer para dormir fora, exceto quando fui àEuropa, onde a lepra é rara... Nem sequer tive vida!...(Referia-se às dissoluções a que o pai o estimulava,na demência da ignorância em que se comprazia.)Estou tão cansado, mamãe! Meu Deus, eu queesperava tanto!— Entre pela porta do lado e vá para o seu quarto —

concluiu, duramente. — Se sair de lá e deixar que ovejam, nem sel do que serei capaz. Desta casa sóse afastará para onde deve ficar...

— Dona Angelina — conseguiu enunciar Myrian, acusto — se a senhora não quer recebê-lo, eu olevarei para minha casa e...

— Cale-se, por favor! Ele não tem ninguém, senão aSaúde Pública, e eu não permitirei que estranhos (apalavra foi pronunciada com sarcasmo e azedume)interfiram no que a lei determina para esses casos.Aproveito a oportunidade para dizer-lhe, também,que não admitirei pieguismos de visitantes. Quemdesejar agir assim, vá procurá-lo na Colônia, paraonde o pai e eu o enviaremos, logo que os papeisestejam regularizados, o que estamosconseguindo com a maior discrição. Nessesentido, espero que a senhora corresponda ànossa confiança e saiba silenciar. ..

— Sim, é claro... — respondeu, atônita, Myrian, queparecia fulminada.

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Acometido por súbita vertigem, Lucien tombousobre o tapete da sala.

Quando a amiga correu a socorrê-lo, a genitoraexclamou, histérica:— Deixe-o! Nada de cenas na minha casa.

E voltando-se para o filho, sem sentidos, gritou,enlouquecida:— Levante-se, miserável! Não me suje o tapete

importado!

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O vozerio chocante, à entrada da casa burguesa,fez acorrerem outros familiares e serviçais, que,todavia, tomados de receio, não se dispuseram aqualquer iniciativa.

Myrian, decidida e valorosa, acercou-se do jovemtombado e o ergueu, acomodando-o em cadeirapróxima. Logo depois, Dona Angelina sentiu-lhe oolhar indefinível, sem cólera ou mágoa, mas cheio deuma infinita compaixão, a desenhar-se naquele rostomagro e decidido, próprio daqueles que souberamconstruir um senso superior de humanidade, agolpes de silêncios férreos e de ascético estoi- cismo!

A senhora mandou a servente buscar água e,quando esta a trouxe, maquinalmente entregou-a àoutra, que umedeceu os lábios trêmulos de Lucien,ajudou-o a sorver o líquido retemperador e depois oconduziu ao quarto dos fundos, onde ele se prostrou,de coração angustiado, penetrando o abismo darealidade...

Tudo agora lhe voltara à retina mental. Tudo issofoi há dez anos distantes, mas lhe parecia que foiontem. Agora soluçava abundantemente, no leito dohospital. Não se apercebera, no estado em que seencontrava, da chegada da dedicada enfermeira quese lhe fizera amiga, no internato.

A jovem acorreu e abraçou-o com ternura,admoestando-o:

— Que é isso? Você não é espírita? Onde a sua fé?

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Vamos, acalme-se! Tenho boas notícias para você.Trouxe-lhe uma carta de Armando. Olhe-a!

O jovem pareceu despertar, e olhou, surpreso, acooperadora da sua saúde, que estava informadasobre a missiva que enviara ao amigo.

Um sorriso, misto de tristeza e alegria, abriu-lheos lábios levemente arroxeados. Enxugou aslágrimas, sorveu o calmante que lhe foi apresentado,tomou o envelope nas mãos trêmulas e o reteve nocoração ansioso.

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Ao tocar a carta sentiu-se renovado. As energiasque ali estavam impregnadas permearam-no, e elecomeçou a assimilá-las, experimentandodesconhecido bem-estar a tomar-lhe o corpo e oespírito.

A fraternidade realiza milagres. O pensamento éo dínamo da vida: bom ou mau, culmina sempre poralcançar aquele que se lhe torna receptivo e a quemse dirige.

Tomado de emoção diferente e superior, Luciencomeçou a 1er a resposta ansiosamente esperada,enquanto as palavras calorosas do amigo lheiluminavam o espírito, reafirmando o conceito deamizade que lhe fora apresentado por Myrian.

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5ACONFERÊNCIAÀ medida que Lucien absorvia as energias

refazedoras que se desprendiam da carta,impregnada de ternura, que lhe enviara o amigo,renovava-se com os conceitos edificantes aliexarados. O lenitivo da palavra gentil, repassada desinceridade, penetrava-o fundo. Voltava, assim, àordem psíquica, superando os incessantes abalosmorais que o vitimaram nos últimos dias.

Refletia ter sido feliz a atitude de escrever aoamigo, de quem se apartara fazia quase ou mais deum decênio. Quantas vezes desejara escrever-lhe e,no entanto, não se encorajara a fazê-lo! Era como setivesse de sorver o grande cálice de vinagre a sós,experimentando o azedo do sofrimento, até superaras forças constritoras das ambições juvenis.

Nunca duvidara da força da bondade. Conheciade perto o ultraje do abandono, mas sabia dagrandeza da afeição. Podia identificar facilmente aespontaneidade por detrás de um sorriso ou ahipocrisia na máscara com que se disfarça. Estavacompensado! Renovar-se-ia e lutaria até o fim, agoraque ampliava os horizontes da esperança, outra vez.A perspectiva de encontrar Armando, dentro embreve, produzia-lhe salutar refazimento físico epsíquico.

Logo que concluiu o tratamento a que sesubmetia no pós-operatório, e conseguiu adiamento

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da amputação de outras falanges do quartopododáctilo, dirigiu-se ao Centro Social da Colônia,para providenciar a competente licença que lhefacultaria afastar-se por alguns dias, de modo a

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estar em Opala no período em que Armando por aliestivesse, no ministério espiritista a que se dedicava.

Sem qualquer problema, conseguiu odocumento hábil e aguardou.

Percebiam-se, no Hospital Psiquiátrico, no misterda Terapia Ocupacional com os companheiros aosquais ajudava, as modificações nele operadas.Renasceram-lhe a jovialidade, o entusiasmo, evoltara a cantar. Extravasava, desse modo, o potencialde júbilos de que se enriquecia o seu espírito. Ocorreque a esperança contribui fartamente para arenovação do entusiasmo, colaborando como fatorpsicoterápico de largo alcance.

Saber que o antigo amigo estaria de braçosabertos a aguardá-lo, espicaçava-lhe a ansiedade.

Como estaria o companheiro de lutas? —interrogava-se. — Os anos, ao passarem, deixam ossulcos das experiências, nem sempre felizes,amargas muitas vezes, bem o sabia. As suas eram,porém, experiências muito duras. Quais asconquistas espirituais que o amigo conseguira?Acompanhava-lhe o labor a distância, através doscomentários desencontrados que lhe chegavam, pelonoticiário dos periódicos espiritistas e referênciasfeitas por pessoas diversas; mas, quanto estariaoferecendo, como ônus de dor, para o êxito da tarefaa que se dedicava? Ninguém passa ileso aosofrimento pelos caminhos dos homens.

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Particularmente nas tarefas de destaque, aos quesobressaem, por esta ou aquela razão, nunca faltamas sendas espinhosas. Vivem sob a espada deDâmocles, sofrendo-lhe a lâmina não poucas vezes.Aguardá-lo-ia, pois, com ansiedade crescente.

No dia aprazado, demandou Opala, conduzindoalta carga de emotividade e refertos depósitos deexpectativa. Aquele abril parecia-lhe muito diferentedos que conhecera nos últimos anos. A estradasorria, engalanada com as últimas flores do outono.Os eucaliptos, em alamedas perfumadas, exultavamem tons de verde que mudavam caprichosamente.

Chegando à Capital, deteve-se no lar de devotadaconfreira, que lhe oferecia o tesouro da afeiçãodesinteressada, e quando a noite chegou, coruscantede estrelas, num raro céu de Opala, em que apoluição parecera diminuída, atingiu o TemploEspirita, repleto, movimentado. Todos seacotovelavam sorridentes, ansiosos, aguardando omomento por que se esperava.

Mal pôde sopitar as emoções desencontradasque o visitaram, quando viu Armando vencer comdificuldade o salão literalmente lotado, marchandoentre gentis companheiros, na direção da mesa dapresidência.

Sim, era ele! — refletiu. — Parecia que os anosnão lhe pesaram. O mesmo jovial sorriso, algomarcado, com peculiaridades especiais, nos cantos

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dos lábios... Subitamente, descobriu a distância, norosto do recém-chegado, os sinais do sofrimento,que procurava disfarçar com delicadeza. Pensou:quantas lutas e dores travara o amigo?! Reencarnaçãoé resgate imperioso, não obstante os que se creemlivres dos impositivos de reajustamento à Lei.

O público recebeu o conferencista comexclamações de júbilo.

Do alto, sobre o estrado em que se postava adireção dos trabalhos e iluminado pelas lâmpadasfortes, tinha, no entanto, um ar cansado, emborabrilhassem os olhos, acostumados aos horizontes daImortalidade...

Convidado à preparação do ambiente,harmonioso coral interpretou, com belezaInesquecível, páginas do repertório clássico daHumanidade.

As vibrações se tornavam cada vez maispoderosas, penetrantes, e embora o ambientesuperlotado pesasse, havia suavidade em todos ossemblantes, com a esperança sorrindo em todos osrostos.

Após a prece, enunciada com verdadeira unção, epassada a palavra a Armando, este se ergueu, tomoupostura

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distinta e, com voz pausada a princípio, para logodepois encachoeirar-se, começou a peça oratória edoutrinária. Utilizava-se da história de uma grandevida para lecionar, pelo exemplo, a grandeza da fé. Amelhor maneira de produzir emoções superiores édemonstrar a eloquência do que se pode fazer,quando se está tocado pela presença da verdade e seresolve avançar intimoratamente, vencendo todos osóbices que representam desafios aos combatentes.

Ante o silêncio generalizado, saudou a todoscom a tradicional mensagem de Jesus:

“Paz seja convosco!”, para logo prosseguir:“Eram dois olhos! Penetrantes e luminescentes,

pareciam duas estrelas no céu da face, fulgurandoem plena sombra...

“Nunca os esquecería, ou melhor, semprebrilhariam em seu caminho, parecendo apontar-lhe orumo que deveria seguir, a qualquer custo.

“Estava em Cruzeiro do Sul, no bravio Territóriodo Acre. A veneranda floresta tremia, a pouco epouco, ante as armas com que um grupo, que eladirigia, abria uma clareira. Ali, naquele remoto sítio,longe dos imensos e cultos centros urbanos, deveriainiciar nova Obra, prosseguindo no ministério dosocorro, a que se dedicava missionariamente.

"O ar pesado, sob o causticante sol tropical, fazia-lhe mal. Para ela, no entanto, todo sofrimento nadarepresentava, quando tinha em vista socorrer os

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filhos adotivos do coração.“Quando lá chegou, a notícia já se alastrara: “Ali

se construiría uma Casa para filhos de leprosos...”A palavra leproso, evocando a maldição que

pesava milenarmente sobre os hansenianos,provocara viva discussão na imensa área, onde assuperstições e o cangaço desencadeavamlamentáveis flagícios entre as pessoas menosesclarecidas.

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“Num dos dias em que viera dirigir o trabalho,deparou com um grupo de homens mal-encarados,em cujas faces contraídas estavam traduzidos ospropósitos nefastos de que se faziam portadores.— “Quem dirige isto aqui? — perguntou, aquele que

parecia o chefe.— “Sou eu — respondeu com simplicidade a jovem

estoica.— “Uma mulher?! — retrucou o interrogante.— “E o senhor tem algo contra as mulheres? — res-

postou, serena.— “Bem!... — tartamudeou o estranho. Ocorre que

nós soubemos que aqui vão recolher leprosos, enão estamos dispostos a concordar com isso.

— “Mas o senhor está mal informado — esclareceu,tranquila.

— “Que, então, pretende a senhora fazer? — insistiu,raivoso.

— "Um lar para os filhos sadios das pessoascontaminadas pela lepra — redarguiu.

— “Ora, minha senhora! — chasqueou, irreverente.— Qual é a diferença? Filho de leproso é leprosotambém.

— “Desculpe-me — continuou, segura de si — osenhor está muito mal informado. A lepra não éenfermidade transmissível hereditariamente, nemde fácil ou rápido contágio. Resulta de uma largaconvivência, da falta de higiene, da ausência de

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defesas orgânicas ao bacilo invasor. ..— “Não me interessa isso! — cortou-lhe a palavra. —

O que me interessa, e venho afirmar-lhe em nomede todos, é que aqui não será edificada coisaalguma dessa natureza. Não queremos. Istobasta!...

— .Estamos dispostos a qualquer atitude e nãotrepidaremos em tomar medidas e colocar a justiçaem nossas

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mãos. Se homens não nos fazem medo, muitomenos uma mulher... Uma mulher!...— “Saiba o senhor — revidou, sem perder a

serenidade — que também não tenho medo demulheres, ou de homens, ou de qualquer outracoisa. O senhor não me assusta, e saiba queedificaremos aqui o Lar para as crianças sadiasque descendem dos hansenianos.

— “Se a senhora construir — explodiu, odiento —, eujuro por Deus que destruo tudo. O que for feito dedia, eu queimarei à noite...

— “E eu voltarei a reconstruir no dia imediato.— “Veremos, veremos quem vencerá.— “A verdade, meu amigo, o direito dos mais fracos,

a presença de Deus.“Aquela expressão: a presença de Deus, soou em

tonalidade diferente. O bandido recuou algunspassos, atirou o chapéu de abas largas ao chão, eestrugiu, espumando:— "Mas aqui não há lepra! Que pretende a senhora?

Irá trazer esses desgraçados para cá e empestar-nos a todos?

— “Novamente o senhor se equivoca, o que éverdadeiramente uma pena. Embora eu venha delonge, estou melhor esclarecida do que o senhor.

— “Diga-me: onde há leprosos nesta região? Diga-me!

“Aquele era o instante mais grave da contenda. O

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soldardejante fê-la recuar a um passado não longínquo,e então reviu psiquicamente os dois olhosfulgurantes, doridos, penetrando-a.

“Experimentou singular presença espiritual efalou: “Venha comigo, traga algumas canoas, e empouco tempo lhe mostrarei algumas dezenas decasebres, de miseráveis choças de leprosos,espalhadas pelas ribanceiras, onde pululam crianças,crianças sadias, ainda não contaminadas, quepoderemos salvar, com o auxílio de Deus.— “Se for verdade — falou com voz débil pela

emoção incontrolável, em que se misturavam a ira,a indecisão

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e o receio — não lhe criarei qualquer embaraço, eaté... até a ajudarei... todos a ajudaremos.

“Ela mandou que os homens remassem, ora afavor, ora contra a correnteza, apontando para umlado ou para outro... Casos e casos de hansenianosem deplorável situação, na mesma extrema misériafísica, moral e econômica, se multiplicavam. Entreeles, a floração da infância abandonada, sempossibilidades, já marcadas umas crianças, masoutras ainda não vencidas pelo cruel bacilo dadestruição dos tecidos.

“Findo o prazo, ou melhor, antes de terminado,havia conseguido apontar expressivo número delares em que a lepra se alojava.

“O homem não teve dúvidas: liberou-a,ajudando-a quanto pôde.— “Deus meu! — confessou, depois, emocionada. —

Como pude identificar as casas dos doentes, euque nunca antes estivera aqui?

“E muito comovida, aduziu:— “Tenho certeza: foi Rosa, foram os olhos de Rosa

Fernandes que me conduziram com segurança eacerto. Tenho certeza...

“Rosa! Os olhos de Rosa!”O expositor fez uma pausa expressiva. O

auditório, ansioso, esperava a continuação danarrativa.

Lucien, olhos brilhantes, emocionado,

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recordando as próprias aflições, respiraçãodescompassada, fitou o amigo, aguardando. Quetema, aquele! — pensou.

“Era então muito jovem. Embora nascida nacidade de São Manuel, no próspero Estado de SãoPaulo, ao ficar órfã de mãe foi morar com uma tia, nointerior do Rio Grande do Sul, onde hauriu asconsolações do Evangelho, conforme a interpretaçãometodista. Ali, habituada ao exame dos textosbíblicos e dos estudos evangélicos, se lhedesenvolveram os sentimentos de fraternidade ecaridade, enflorescendo-se-lhe as disposições deservir.

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“Normalmente, àquele tempo, passavam pelasherdades, vencidos pela miséria e perseguidos pelaignorância mascarada de impiedade, os magotes, asfarândolas de padecentes da hanseníase, emdesesperador estado de abandono, suplicandoesmolas, caridade...

“Em inesquecível noite de primavera, contavaentão treze anos, acompanhou a tia que levavaagasalhos, alimento e guloseimas para um grupoque deveria passar pela porteira da fazenda, naestrada ao longe...

“Fazia luar e a terra, abençoada, trescalavaaroma campesino. Deteve-se na cancela da entrada,enquanto a tia colocou, a regular distância, aespórtula de comiseração para os sofredores.

“Foi quando os viu pela primeira vez:marchavam trôpegos, apoiando-se uns aos outros,claudicantes, embuçados, sombrios... Algunscavalgavam, outros se apoiavam a bordões toscos...Havia crianças que choramingavam e vozes queclamavam lamentações e pragas.

“Desejou retirar-se rapidamente, para longe dali,mas algo a deteve. Viu-os atirarem-se sobre aoferenda, como chacais ferozes, disputando,ameaçadores, até as últimas sobras...

“Distanciada do grupo, esguia, velada, umafigura se deteve, banhada pela luz prateada do luar.Silenciosa, podiam-se-lhe ver os olhos faiscantes,

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poderosos...— “Titia! — chamou a jovenzinha. — Veja aqueles

olhos!...“A tia voltou-se na direção indicada, fitou o vulto,

acercou-se-lhe, fascinada, e, sem sopitar acuriosidade, perguntou: — Você é Rosa?

“Houve um silêncio profundo.— “Você é Rosa? Diga! É Rosa?

“Ora, Rosa Fernandes fora uma bela jovem, filhade vizinhos, que se tornara cobiçada donzela e atodos encantava. A menina aprendera a admirá-la, aamar-lhe a juventude esfuziante, a alegriacomunicativa. Rosa encanta-

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va, mas não se comprometia com ninguém, nãoobstante a maledicência lhe adivinhasse mazelas eerros em todos os gestos... Repentinamente, correu anoticia de que Rosa suicidara-se... Encontraramvestes e calçados à margem do rio, atestando o seudesaparecimento, embora o corpo nunca houvessesido encontrado. Não faltou mesmo quem alvitrasse:— “Afogou a própria vergonha nas águas lodosas!Este é o fim de quem procede mal...” E não mais sesoube notícia da jovem inditosa.— “Sim — respondeu soluçando —, sou Rosa...— “Você não tentou o suicídio?— “Não, seria covardia, e eu desejava viver! Quando

vi que minhas carnes arroxeavam, abrindo-se emrosas pútridas e insensíveis que se generalizavam,procurei esconder o fato o quanto pude... Depoisdescobri, aterrada, que estava leprosa e desejeimorrer. Isto não é pior do que a morte? Masacalentei a esperança de que talvez algumremédio, algum dia... Eu era e ainda sou tãojovem!...

“Os soluços abafaram-lhe a voz. A senhoratentou dizer-lhe algo, sem o conseguir, porém.

“A moçoila acercou-se e fitou Rosa.“Deixe-me ver seu rosto” — pediu.“Rosa afastou, com mão trêmula, o pano que lhe

cobria a face, à guisa de imundo véu, e deixou ver umrosto inesquecível, vencido pela ulceração,

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intumescido, deformado, onde dois olhos luminososfulguravam.— “Eunice! — exclamou a sombra atormentada — eis

o que sou agora! Uma grande desgraçada!— “Não, Rosa! Lembre-se de Jesus, que curou tantos

leprosos! Pense nEle, pense...— “Adeus! — respondeu. E seus olhos, banhados de

pranto e de luar, pareciam maiores, maisbrilhantes e mais tristes.

“...Depois disso, se afastou, misturando-se àsoutras sombras atormentadas que desaparecerampela estrada.

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“Nunca mais, em toda a vida, esqueceria Rosa,os olhos vivos de Rosa.

Nas longínquas paragens de Cruzeiro do Sul,entre os Rios Juruá e Moa, afluentes do Amazonas, ajovem senhora Eunice Weaver recordava...”

Muitos ouvintes, na comovida plateia, deixavamcorrer as lágrimas.

Armando contemplou o auditório e, naqueleinstante, como se estivesse sendo conduzido,encontrou os olhos brilhantes de Lucien. Jubiloso,Armando tomou novo alento e prosseguiu:

“Eunice Gabbi, como era chamada em solteira,após estudar em diversos educandários, inclusive noColégio Piracicabano, diplomou-se na EscolaAmericana, de Buenos Aires, e na Escola de ServiçoSocial, na Carolina do Norte, Estados Unidos daAmérica.

“Quando, mais tarde, foi residir em Juiz de Fora,reencontrou o eminente missionário americano, Dr.Anderson Weaver, que então enviuvara, com eleconsorciando-se logo depois. Era, então, o nobremestre, reitor do distinto Instituto Grambery, daquelacidade.

“Foi mais do que um simples matrimônio: antes,um reencontro de espíritos mutuamente dedicadosque se reuniam para um sublime ministério de amore solidariedade humana. Em seguida, o Dr. Weaverfoi convidado, pela Universidade de Nova Iorque, a

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dirigir uma Universidade flutuante, a bordo deluxuoso transatlântico, que faria uma longa viagem,para melhor formação cultural dos seus alunos, emvolta do Mundo.

“Aceitando o honroso convite, partiu do Rio deJaneiro, acompanhado pela esposa, em inesquecívelcruzeiro de cultura e amor. Por onde andaram, elaprocurou conhecer de perto o problema da lepra, oque em relação a ele já se havia feito e o quantorestava por fazer. Estagiou em numerososleprosários: nas Ilhas Sandwich, no Pacífico(inclusive em Molokai), no Egito, na China, no Ja-

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pão, na Índia... Em todo lugar recolhia material deexperiência para o ministério redentor a que iriaentregar-se totalmente.

“De retorno ao Brasil, desenvolveu o programaque iniciara em Juiz de Fora, desde quando fundou,naquela cidade, a “Sociedade de Assistência aosLázaros e Defesa contra a Lepra”. Utilizando-se deconhecimentos técnicos especializados, AssistenteSocial que era, e Jornalista diplomada nos EstadosUnidos, entregou-se ao trabalho com abnegação,criando no Rio de Janeiro uma nova Sociedade, quese irradiaria posteriormente por todo o País, com ofim de ajudar hansenianos e seus descendentes, nomundo inteiro.

“Sucede que dona Eunice Weaver se reencarnaracom o objetivo sublime de ajudar os padecentes domal de Hansen, recuperando o próprio passado econtribuindo eficazmente na construção do futuro.

“Esteve presente em memoráveis laboresassistenciais, criando ou ajudando obras meritóriassurgidas no Brasil, como verdadeira sacerdotisa dafraternidade. Exerceu funções relevantes e recebeu asmais expressivas homenagens terrenas com que umamulher foi brindada no Continente Sul-Americano.

“Entregou-se, porém, em regime de dedicaçãointegral, à Obra dos Preventórios para osdescendentes sadios dos portadores da lepra.Convocando a sensibilidade feminina, levou a

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esperança a inúmeros lares e ofereceu a proteção dasaúde a uma dezena de milhar de crianças que, senão fossem socorridas a tempo, possivelmenteestariam sofrendo as purulências do terrível mal.

“Sofreu incompreensões e experimentouamarguras sem-nomes. Foi amada e vilipendiada.Cercaram-na de carinho amigos devotados, masexperimentou igualmente a inveja e a perseguiçãogratuita, até mesmo de beneficiários da suaabnegação. Nunca, porém, desanimou nem receou, ejamais facilitou aos maus a oportunidade deproduzirem outros males. Corajosa e arrebatada,possuía fibra superior de caráter, lutando tenazmentena defesa dos seus “filhos”, enfrentandodificuldades compreensíveis e situações complexas.A calúnia perseguiu-a quanto pôde; a deslealdade demultos a atraiçoou; a maledicência feriu-lhe .constantemente os nobres sentimentos — mas elasempre soube resistir às investidas da maldadehumana, vencendo as tentações do cansaço, daenfermidade e do desânimo. Quando as dificuldadeslhe pareciam sobre-humanas, refugiava-se na oraçãoe nela se renovava. Vezes outras, aprofundava-se naPalavra de Vida do Evangelho e retornava lenida,confiante. Nunca lhe faltaram os auxílios damisericórdia do Senhor; em hora alguma lhe foiescasso o socorro do Céu.

"O Senhor sempre está poderoso ao lado

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daqueles que nEle confiam e esperam.”A narração atingia o clímax. Cada ouvinte era

naturalmente impelido a comparar-se à servidora doBem, e a pensar em como poderia ficar de pé esoerguer o próximo, a fim de ser feliz na conjunturaevolutiva em que todos avançam pela existênciaindestrutível.

Utilizando-se das vibrações harmônicasambientes, Espíritos Generosos e Benfeitoresaplicavam passes vita- lizadores e salutares eminúmeras pessoas que compunham o públicoembevecido. Recorrendo à sintonia natural, quesurgia, espontânea, contribuíam, desse modo, paraque viciações mentais se abrandassem e velhosliâmes obsessivos se afrouxassem, ficando osresultados finais na dependência dos própriospacientes então beneficiados.

O valor de uma exposição edificante éinestimável e não pode ser medido, ainda, porquantos se demoram na estrutura física. O mesmoocorre com as construções mentais infelizes,destrutivas. Pensamento é força viva, que cada qualdirige de acordo com suas aptidões e desejos.Ligeiramente pálido, Armando prosseguiu, numaentonação de voz que, bem modulada e conduzida,produzia

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múltiplos estados emocionais nos ouvintes,conforme as variações do tema e o seu conteúdovalioso:

"Nesse período, em que, apesar das dificuldadesnaturais, tudo eram felicidade e contínuas alegrias, abatalhadora foi colhida pela inesperadadesencarnação do esposo, rompendo-se o elo de luzque lhe sustentava o equilíbrio no labor daconsolação e da misericórdia. Na ausência humanado sempre solícito esposo, o desencanto que nascena soledade do coração foi-lhe tomando as forças eela se deixou intoxicar pelo cansaço, descoroçoandoo ânimo. Simultaneamente, redobravam contra elaacusações injustas, perseguições gratuitas e sórdidasdifamações, como se fora uma trama em que seconjugassem forças humanas e espirituais inferiores,para retirá-la da luta e prejudicar os beneficiários doseu heroico esforço...

“Amigos leais, que sempre os há, buscaramanimá-la, confortando-a e encorajando-a para a luta,mas a ausência física do idolatrado companheiropungia-a fundamente.

“Buscava o alento da palavra evangélica; noentanto, literalmente vinculada ao texto, nem sempresabia extrair dessa divina fonte as esperanças quesustentam a vida e animam os sentimentos para avitória sobre todas as dificuldades.

“A jornada a sós é muito mais difícil, e a rota, que

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parece fácil nos dias de ventura, se estreita e empedraaos olhos da amargura.

“Assim, embora continuasse a tarefa, ansiavapela ruptura dos liâmes carnais, no desejo íntimo dereencontrar o amor, nas plagas da Espiritualidade.

“Com os olhos pejados de lágrimas, a visão daalheia dor mais lhe aumentava a própria. Aqui, era obrado das mães que desejavam salvar os filhinhosrecém-natos, mas que não gostariam de apartar-sedeles nos primeiros dias, transformando-os emórfãos de pais vivos... Ali, era a luta por verbassempre escassas e difíceis; adiante, os serviçosadministrativos fatigantes, as viagens contínuas e

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exaustivas... Transformada em madona da amargura,seguia semi-embotada, quase indiferente. Aalacridade dos filhos adotivos fazia-a evocar aindamais o ausente-pre- sente. Nesse comenos, visitandopróspera cidade, a fim de levar diretrizes desegurança ao preventório sob sua responsabilidade,em colônia de hansenianos próxima, abnegadacooperadora, conhecendo-lhe a dor da separação,aguardou momento próprio, quando concluídas astarefas, e disse-lhe:— “Chorar os mortos é fazê-los sofrer. A morte,

minha cara, não existe, pelo menos conforme aconceituam os materialistas e mesmo múltiplosmatizes de religiosos... Morrer é renascer, volver oespírito à sua verdadeira pátria, que é a espiritual.Por que nos entregarmos ao desespero, ou aodesconsolo, se vivem os que supomos mortos?!

— “Bem o sei, bem o sei! — protestou, sem lograrvencer as lágrimas. É a ausência dele que metortura, não é a dúvida quanto à sua sobrevivência.Sinto a falta da sua presença ao meu lado.

— “Eis o seu equívoco — obtemperou a amiga. — Aausência que lhe faz falta é a do corpo, pois oEspírito que ama não se aparta jamais dos queficaram na retaguarda, quanto lhe permitem aspossibilidades novas. E, logo podem, tentam acomunicação...

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— “Não me diga que acredita em comunicações deEspíritos! — reptou, surpresa.

— “Não apenas acredito — explicou, gentil — comosou, também, médium, possuindo largaexperiência pessoal sobre o assunto. Osdesencarnados...

— “Não podem voltar — arrematou, tomando-lhe apalavra —, pois invocá-los é proibido pela Bíblia.

"Sem perturbar-se, a interlocutora, honestamenteinteressada em projetar luz, esclareceu:— “Se você me permite, explicar-lhe-ei. Conheço a

questão em profundidade, pois sou espiritistamilitante...

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— “O Espiritismo, porém, é condenado — retorquiu.— “Por quem?— “Por Deus!— “Você está muito enganada. Ouça-me, por favor:

Deus é a Suprema Misericórdia, o Excelso Amor, enada, ou a ninguém condena. Os homens, ao Lheatribuírem natureza humana, transferiram-Lhe aspróprias paixões, imaginando-O sujeito àslimitações somente próprias de nossa condição. OEspiritismo é a Revelação espontânea dos espíritosdesencarnados, cujos ensinamentos Alian Kardeccodificou, por determinação dos Guias Superioresda Terra. Seu objetivo é esclarecer e sustentar ascriaturas, para que compreendam melhor as leisdivinas da evolução e vençam os transes ásperos,as horas difíceis, os momentos amaríssimos a quetodos estamos sujeitos, em razão de nossasimperfeições. É o Cristianismo Renascido, querealiza a promessa de Jesus, de que voltaria aoconvívio dos homens sofredores. É o próprioConsolador, incorpóreo, a expres- sar-se atravésdas Vozes do Céu, anunciando a Nova Era do Amor,da Esperança e da Paz. Moisés proibiu, sim, asevocações dos Espíritos, porque eram feitasabusivamente, fora de época e sem finalidadesuperior.

“Silenciou momentaneamente, como searticulasse vigorosa e lúcida argumentação, para

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logo asseverar:— “Nas práticas espiritas orientadas segundo os

ensinos de Kardec, os Espíritos se comunicam semqualquer evocação individual e sempre nosconvocam à meditação em torno dasresponsabilidades que nos dizem respeito,admoestando-nos com mansuétude, guiando-noscom sabedoria, irmanando-se a nós outros, graçasà experiência que possuem, após terem vencido ajornada na densa organização corporal. Atestandoa continuidade da vida, comprovam que a justiçadivina não falha, a cada um concedendo o de queé merecedor, conforme se haja conduzido,enquanto na Terra. Reaparecem com ascaracterísticas da personalidade que lhesconhecemos, fazendo-se identificar

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à saciedade, de modo a nos tranquilizarmos eencorajarmos para os embates necessários. Não lhepeço que creia em mim. Espero, porém, que meditesobre o que lhe digo. É o Evangelho que nos trazexuberantes demonstrações da imortalidade e dacomunicabilidade dos pseudomortos. Em toda aBíblia há constantes notícias de comunicação entre osdois planos da vida: a física e a espiritualexpressando-se das mais variadas maneiras: visões,sonhos, profecias, obsessões, curas espirituais,bilocações, aparições, materializações,desmaterializações, interferências. Referida comoum dom, pelo Apóstolo Paulo, a mediunidade estásempre presente nas páginas do Livro dos Livros,como ponte de luz entre os homens encarnados e osEspíritos.— “Parece-me incrível — disse, então, a Senhora

Eunice Weaver, fascinada e receosa — que vocêcreia realmente em tudo isso!

— “Parece-lhe, apenas — tornou a esclarecidadialogadora —, mas é a verdade. Luz penetrante, arevelação da vida além-túmulo é incentivo econforto para os que da Terra somente conhecemprovações, lancinantes dores, limitações eamarguras, e uma bênção superior, para quantosdão amor ao próximo, sacrificando-se pelo bemgeral e praticando a renúncia e a dedicação, comovocê faz. Por que não experimenta? É tão fácil!

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Aqui mesmo, a somente alguns quilômetros,poderíamos dirimir quaisquer dúvidas, comopoderá verificar de motu próprio. NasMetamorfoses, I, 85, Ovídio começa o seu Canto,informando que "Os homini sublime âedit”, isto é:"Ele (o Senhor) deu ao homem um semblante voltadopara o céu", querendo dizer que são do homem aspossibilidades dos ideais superiores e sublimes, asaspirações maiores, a face voltada para aslegítimas realidades espirituais. Por que, então,renegar essas realidades, refutando-as antes deexperimentá-las? Se lhe aprouver, amanhã mesmopoderemos visitar venerável instituição espírita,onde moureja abnegado servidor da caridade, emcontínuo apostolado mediúnico, e você tudopoderá aquilatar, examinar e conhecer, para depoisopinar com segurança.

— “Aceito o desafio — redarguiu, sem titubeio. Voutestar pessoalmente os recursos do Espiritismo.

— “Louvado seja o Senhor! — aduziu a outra.”O orador, que comunicava os fatos sob sensível

inspiração espiritual, de olhar incendido, porejandosuor, parecia aureolado por fulgurante luz. Seumentor espiritual controlava-lhe os centros cerebrais,para melhor filtragem mediúnica do conteúdo damensagem, e os instrumentos da palavra, ajudando arápida eliminação de toxinas e vitalizando-lhe oaparelho respiratório, para o feliz êxito do trabalho

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de evangelização.O auditório, sinceramente interessado e

impressionado, acompanhava atentamente oexpositor, que se conduzia sob segura e bem dirigidainspiração.

Lucien lembrava-se da missionária objeto daconferência. Vira-a reiteradas vezes na Colônia emque se hospedava. Sua figura, portadora de belezaparticular, impressionava pela altivez sem presunção,pela decisão sem arrogância, e pela simplicidaderepassada de nobreza. Admirava-a de longe, pois elasempre estava cercada de auxiliares, e, nas breveshoras em que visitava o hospital, não dispunha dotempo senão para os seus misteres. Ignorava, porém,quase todos os fatos ora trazidos ao seuconhecimento. Não pôde continuar as reflexões, poisa voz de Armando voltou-lhe aos ouvidos,chamando-o à conferência, então mais empolgante.

“No dia imediato, conforme concertaram, asduas senhoras demandaram o centro de atividadesespiritistas. Acompanhadas pelo esposo da anfitrioae outro devotado amigo, foram vítimas de umimprevisto com uma das rodas do automóvel, o queproduziu atraso na viagem, por mais de duas horas.Desapontados, chegaram ao seu destino quando asatividades já iam avançadas. A movimentação nolocal era expressiva. Oradores diversos, cada

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um por sua vez, expunham o tema sorteado para asexplanações da noite, enquanto alguns médiunslaboravam psicograficamente na ampla mesa, emque se atulhavam livros, papeis, lápis... Tudo muitosimples, desataviado, como fora a “Casa doCaminho”, onde Simão Pedro e os primeirosApóstolos cultuavam a memória do Senhor.

“As horas passavam, modorrentas, não obstantealgumas considerações mais felizes de alguns doscomentaristas em serviço. Passados alguns minutosda meia-noite, os trabalhos chegaram ao fim. Antes,porém, que as pessoas se dispersassem, um dosmedianeiros se ergueu e, com voz pausada, em quese podiam sentir o cansaço e a bondade, anunciouter, dentre as mensagens da noite, uma que se lheafigurava de grande significação. Tratava-se de umesposo devotado que retornava para falar à queridacompanheira ali presente.

“A visitante levou a mão ao peito e sentiu que setratava do seu amado. Mal pôde aguardar oesclarecimento, que veio logo.— “A mensagem é dirigida — continuou o psicó-

grafo — à Senhora Eunice, e vem com a assinaturade Weaver... Sugere-me o Mentor Espiritual que aleia em voz alta, se a destinatária não se opuser,considerando-se os ensinamentos de que sereveste o comunicado.

“Olhou em derredor. Ela se ergueu, levantou o

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braço e afirmou, emocionada:— "Por favor, pode lê-la, desde que se trata de ordem

superior.”

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6REENCONTROSFELIZES“Houve uma grande expectativa no recinto ainda

lotado, àquela hora do dia em começo. Sentiam-seno ar presenças espirituais benéficas.

“O médium, igualmente comovido, leu adadivosa página, cujo conteúdo era mais ou menos oseguinte:

“Eunice, alma querida:“Sustente-nos o Senhor em nossas lutas

redentoras!“Estou vivo! Ninguém morre! A morte é ilusão

dos nossos débeis sentidos, e os humílimos códigos,com que pretendemos decifrar os desígnios divinos,não conseguem traduzir a magnitude das excelsasleis da vida.

“Não nos separamos, pois sendo a morte umnovo nascimento, faz com que os verdadeirosamores, longe de afrouxarem ante a realidade dodespertar espiritual, ainda mais se estreitem,transformando-se em liâmes de incomparávelbeleza, promessas de ventura inefável. Aquidealbam madrugadas de luz inexcedível e estuam osnobres sentimentos que sustentáramos na jornadavencida.

“Logo se desagregam os tecidos na lama dosepulcro, plaina o espírito liberto, se soube avançarnos cometimentos de elevação, sem as amarrascoatoras da retaguarda.

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“A princípio, tudo me pareceu fascinante,deslumbra- dor. Era uma esfera de sonho, um país deencantamento. Logo, porém, foram superadas ashoras iniciais e vencida a ligeira turbação, atendidoque fui por afeiçoados Amigos que me houveramprecedido, passei a compreender, discernir, fixar-me,quase feliz, na realidade nova. Quase feliz, porque alembrança da sua figura ausente fazia-meexperimentar dorida falta. Adaptando-me, comoalguém que se refaz de complexa e inadiávelcirurgia, fui integrando- -me na Comunidade em queestacionava. Esclarecido quanto às circunstânciasatuais, mantive-me, então, sereno, ligado ao nossoperene afeto.

“Percebi, todavia, quanto de dor lhe pesavasobre os ombros, como ônus de saudade e quasedesespero. Povoou- -se de amarguras o meu céu deesperanças e, tocado pelo amor inefável queacalentamos reciprocamente, comecei aexperimentar, em mim mesmo, as interrogações dasua mente, contínuas, tormentosas, aflitivas...Impossibilitado de respondê-las todas, somente hojeposso fruir a ventura indizível de falar-lhe, já que anímia deferência dos Espíritos Eleitos nos concedeuesta venturosa oportunidade que nos dulcifica,leniflcando as agonias que se demoravamagasalhadas em nossos sentimentos.

"Revejo-a em longo noivado, a menina do

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passado, a esposa de ontem, a alma da minha alma,para os caminhos do sem-fim, no infinito dos tempose dos espaços...

“Não se afadigue mais sob a canga do desesperonem se intoxique com o gás letal da revolta interior,injustificável.

“Prosseguimos juntos no serviço redentor com oqual nos comprometemos. Os filhos do sofrimentosão nossos irmãos do ontem tenebroso, a quemdevemos assistência e carinho — nossa oportunidadeditosa de ser felizes! Os pequeninos colhidos pelasingular orfandade, embora com pais vivos, são osherdeiros do nosso afeto profundo, competindo-nosajustá-los às condiçoes novas, empenhados, comonos encontramos, na realização dos nobres ideais dasolidariedade e do amor, de que se fez modelo oMessias Nazareno.

"Não desanime, nem se deixe desfalecer! Hoje énossa hora ditosa, que nos não cabe desperdiçar.

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“Voltaremos a estar juntos, no amanhã próximo,quando ficarem concluídos os empreendimentos,por enquanto ainda a meio de caminho.

..."Quando a vejo debruçada na janela dasaudade, vertendo copioso pranto, interrogando aosCéus o porquê de me haver afastadotransitoriamente, suas palavras me chegam como sefossem golpes de relho ou gotas de ácido, ferindo-me, inquietando-me. Quando possível, acerco-me devocê e a envolvo em ternura, falando-lhe das estrelasno firmamento fulgurante, apesar da noite aparente,que convida à reflexão... Você então se acalma, paralogo retornar às mesmas indagações inquietadoras.

"Somente a oração tem-me ajudado a aguardareste precioso momento.

"Assim, peço-lhe que veja em cada sofredor docaminho o meu coração ansioso, os meus péstrôpegos, e faça a ele o que faria por mim. Afogue noamor ao semelhante a dor da saudade, multiplicandoos seus celeiros de alegria interior e de esperança...

“Coragem! Continuemos com as mãos enlaçadasno serviço do Cristo.

"Exulto ao vê-la avançar, abnegada e cristã."Tudo quanto possuímos é empréstimo da vida.

Demo- -nos, portanto, mais e mais. Onde está oamor, ai se encontra Nosso Pai, o Perene Doador.

"Os que não a compreendem esperam suacompreensão; aqueles que a afligem,

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inconscientemente supõem que você poderádesculpá-los. Não lhe cabe decepcioná-los: continue,intimorata, de ânimo robusto!...

“Dia virá em que os liâmes da carne seafrouxarão e o seu espírito, liberto da sombra e daansiedade, volitará. Então, voltaremos a estreitar-nos, em paisagens de exuberante luz, na alegria dodever bem cumprido...

“Escoa-se-me o tempo. Havia tanto a dizer!..."Amo-a, alma querida, como nunca!

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“Esperando o momento do reencontro ditoso,envolve-a, na incessante ternura do coração, o seu desempre,Weaver.”

“Seguiu-se um longo silêncio. O médium haviaconcluído a leitura da mensagem sob visívelcomoção. Os presentes, por seu turno, enxugavamdiscretas lágrimas. Era o milagre do amor que venciaa morte e voltava a entoar as canções da esperança,da vida e da verdade.

“Nesse momento, e ante a comoção geral, aveneranda senhora se ergueu e bradou: — "Creio! Eucreio! É ele, o meu anjo tutelar, o sol dos meus dias, aestrela do meu amanhã. Creio, meu Deus! Eu creio!"O psicógrafo acercou-se dela e enlaçou-a emfraternal abraço, como se quisesse transfundir-lhe asenergias necessárias ao desempenho do seu sublimeapostolado de amor.”

O orador voltou a fazer nova pausatranquilizadora, enquanto o numeroso públicoabsorvia a dulçorosa mensagem de amor. Tinha-se aimpressão de que suaves vibrações esparziam-se noambiente, saturando-o de fluidos superiores, sutis,balsamizantes... Dando acento diferente à entonaçãoda voz, prosseguiu:

"Sua vida mudou, isto é, se renovou, comampliação ainda maior dos serviços de abnegação ecaridade. Nenhuma luta, nenhum ultraje encontrou

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guarida no seu devotado coração, a partir daquelahora. Abriu os braços aos "filhos do Calvário” emarchou na direção do Amanhã, acolitada pelascentenas de mulheres valorosas que aindaprosseguem na edificação do Santuário daMisericórdia entre os homens na Terra, inspiradas noseu imorredouro exemplo.

“Quando jovem, escrevera “A HistóriaMaravilhosa da Vida” e "A vida de FlorênciaNightingale”, que a credenciariam à posição dedestaque na literatura nacional. Foi, porém, o amorfeito de renúncia pelos menos favorecidos que acredenciou às culminantes homenagens com que foidestacada. Representou o Brasil em contínuosCongressos

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Mundiais de Lepra, sediados em diversas Capitais domundo, e fundou diversas entidades relevantes. Asua obra máxima, porém, ao lado da redenção dosfilhos dos lázaros, foi o exemplo de dignidade eelevação, no silêncio que se impôs, não revidandonenhum mal e ensinando pelo exemplo a caridade eo socorro, com o que a sua vida se tornou umaevangélica fulguração do bem atuante entre ascriaturas.

“Sempre trabalhando, desencarnou aos 65 anos,como sempre vivera: dedicada ao próximo!

“Terminara de discutir compromissos com oGovernador do Rio Grande do Sul e voltara feliz, naexpectativa de melhores dias para aqueles a quemconsiderava os seus do coração, quando foisubitamente convocada ao retorno àEspiritualidade...

“Trazido seu corpo ao Rio de Janeiro, onde foivelado na Igreja Metodista e depois inumado,mesmo então poucos se aperceberam de que ele forao agasalho de uma verdadeira heroína do amor e dacaridade.

“Houve um grande silêncio, incompreensívelsilêncio em torno da sua viagem de volta ao MundoEspiritual, pois que, naqueles dias, acontecimentoschocantes ligados à dissolução moral depersonagens do grand monde de 1’art et cinémamereceram as primeiras páginas e manchetes

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sensacionais dos periódicos de maior relevo noPaís...

“Não ficou, porém, esquecida."Pouco depois apareceu-me — explodiu o orador

— acompanhada pelo esposo querido.— “Venho despedir-me — disse-me, emocionada

—, agradecer-lhe o carinho com que me distinguainestes últimos anos. Até breve, meu amigo!”

“E, sorrindo, rumou na direção das Esferas daBênção.

“Sim, amigos, nós a conhecêramos naqueles diasda sua indecisão, quando no trânsito para a DoutrinaEspírita, e ficáramos amigos desde então.

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“Recordando-a, a socorrer os descendenteshansenianos, lembro-me de nós outros, os que, semsaber, carregamos a lepra oculta nos tecidos da alma;do grande número dos que estão infectados pelovírus da maldade e recusam a terapêutica doEvangelho Restaurado. Alguns enfermos resgatam opassado culposo nos leitos de aflição das colônias deleprosos, enquanto outros, supostamente sadios,mas que cultivam distonias e gravâmes, candidatam-se a sofrer mais tarde o mal que ora agasalham nasfibras sutis do psicossoma.

“Bem-aventurados aqueles que já podemexpungir o mal de suas almas, com resignação eesperança! Para esses, os dias claros de sol logovoltarão, a alegria depressa reacenderá e a músicados sorrisos tornará muito em breve aos lábiosrestaurados.

"Resguardemo-nos, os que seguimosdescuidados. Ouçamos as advertências da DoutrinaEspírita, insculpindo no coração e na mente osconceitos libertadores com que Alian Kardecpostulou e viveu as informações do Mundo Espiritualencarregado de clarificar a Humanidade.”

O conferencista demorou-se por mais algunsminutos repassando, em feliz conclamação,diretrizes esclarecedoras para o pensamento e rotasde segurança para o homem da atual era tecnológicae eletrônica.

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Ao terminar, recebeu o carinho dos circunstantes,em vividas demonstrações de júbilo e abraços desadio contentamento.

Por fim, Lucien acercou-se, claudicante, tímido,ansioso. Os dois amigos se atiraram aos braços umdo outro, em demorado amplexo, como sedesejassem recobrar todo o tempo que estiveramseparados. Lágrimas abundantes lavaram-lhes assaudades, retemperando o solo das emoções para asementeira das alegrias demoradas. Nenhumapalavra, nenhuma declaração.

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Vencida a primeira etapa, canhestramente saíramcaminhando na direção de formosa Avenida deOpala, acompanhados por pequeno circulo depessoas gradas.

Embora desejassem descerrar os véus da alma efalar demoradamente sobre multas questões, otempo transcorrido impunha delicada mudez, quesomente com vagar seria vencida. Quando aspessoas se distanciam umas das outras, osreencontros se fazem com desconexos sentimentos.A distância concebem-se os novos perfis,estabelecem- -se condicionamentos que a presençanão raramente retifica, exigindo nova convivênciapara o necessário reajustamento.— Você está muito bem! — quebrou, Armando, o

silêncio incômodo. — Não mudou nada.Ele sorriu, constrangido, e redarguiu:

— O mesmo ocorreu com você. Parece-me que osanos rejuvenescem-no, embora a expressão dematuridade da face jovial.

Armando tocou-lhe o ombro, como desejoso demanter maior aproximação. A verdade é que Lucienestava modificado. A mão esquerda trazia as marcasiniludíveis da limitação; o pé direito, emboracalçado, não escondia a deformação; os lobos dasorelhas estavam assinalados com manchas escuras ese apresentavam alongados. A face, porém, estavabem, mesmo com a expressão de cansaço que a

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dominava.Autorizado pelos anfitriões do lar em que se

hospedava, Armando convidou o amigo para umaconversação mais longa e ligeiro repasto,considerando a hora noturna que avançava. Semdelongas, partiram para distinto bairro e, instaladosgenerosamente, deram curso, à margem dos demais,a evocações e confidências em que se misturavamexpressões de dor e de esperança em relação aofuturo.— A vida pesa-me, amigo — desabafou Lucien. —

Tenho suportado o fardo da lepra com resignação,mas agora creio que não terei forças por maistempo... (Os

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olhos estavam molhados de pranto.) Refugiando-mena prece e no trabalho, venho lenindo as angústias,apesar de nenhuma esperança de cura. Este é um malincurável... Quando se revela é sempre tarde demais:deixa suas fundas marcas ou inutiliza as vítimas,irreversivelmente. Suportei o abandono da família,aguento as ulcerações e as dores, mas...— Mas?...— Não sobreviverei a essa solidão que me destrói,

dilacerando-me sem cessar. Pessoas como eu,portadoras da hanseníase, quando sensíveis comono meu caso, sofrem o incitamento das sensaçõesmais grosseiras e os tormentos do sexo, queirrompem vorazes, alucinantes.

Silenciou, como se remontasse aos idos anos,colecionando uma síntese de recordações doridas.Depois, prosseguiu:— Sou um espírito sensível, muito sensível à beleza,

e condenado ao monturo. Sei que o amor ésempre espiritual, para aqueles que aspiram àsgrandezas superiores. Mas não creio que o meuesteja entre as carnes em putrefação, pois asimples ideia produz-me náuseas. Não que eu sejacontra a exteriorização do afeto, em qualquersituação ou circunstância. Falo de mim, dasminhas necessidades e aspirações. Foramdemoradas as noites de punição e fel. À medidaque via o corpo desfazer-se, orava para não

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sobreviver ao apodrecimento dos tecidos... O meucalcanhar-de-aquiles é a vaidade, ainda... Por isso,creio que necessito muito da lepra, a fim delapidar-me por largo período... É difícil reduziremoções a palavras. Na impossibilidade de ser umvirtuose do teclado, senti o espírito explodir deaspirações, e passei a escrever poemas. Publiquei,e logrou inesperado êxito, um livro: “Ideais...Florações da Angústia”. Em 3.a edição, no prazode dois anos, é sucesso surpreendente,considerando que não existe público, entre nós,para 1er poemas. A Editora está a lançá-lo emcastelhano, no próximo mês. Outro se encontraconcluído e penso seriamente escrever algunsexcertos das minhas próprias experiências, comose fossem notas autobiográficas, chamando aatenção para os problemas espirituais do homem,essa perene vítima de si mesmo.

Lucien estava pálido. Tremia-lhe a voz. As fraseseram enunciadas com dificuldade. Foi com esforçoque deu curso à exposição dos problemas:— Há três anos aproximadamente, nos piores dias do

meu tratamento, encontrava-me acamado, querodizer: recolhera-me a rigorosa terapia, mediante aqual se expulsa a doença sob altas cargas depromin e diazona — que, por seu turno,despedaçam o aparelho digestivo, especialmenteo fígado —, quando a enfermaria foi visitada por

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um grupo de espiritistas chegados da Capital.Encontrava-me tão indisposto que não meinteressei em olhá-los, sequer. De pálpebrascerradas, mal-humorado, febril, perdia-me, comosempre, nas refregas do pensamento. Ao ouvirpassos de alguém que se acercava, pretendi fingirque dormia, mas quando a pessoa estacou,repentinamente, senti-lhe o choque e ouvi aspalavras irrefreadas que ela deixou escapar:

— “Lucien! Deus meu! É Lucien!“Abri os olhos. — “Maldição!”, pensei, era uma

jovem da minha cidade, ora em visita ao leprocômio.Identifiquei-a sem dificuldade.— “Lucien?! — disse ela. — Então, você está

doente?!..."Seu rosto estava esfogueado. Vendo-a, revi o

meu passado, a minha juventude. Que fazer? Agitei-me sob os cobertores, passei a tremer, numincoercível descontrole. Pedi-lhe o favor de afastar-se. Ela, porém, não recuou.— “Nada receie, Lucien.— “Aqui eu sou Armando — retruquei, subitamente

encolerizado.— “Não faz diferença — respondeu, apiedada.

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“Desejei ficar só e pedi-lhe novamente que sefosse. Ela, pelo contrário, acercou-se ainda mais, edisse brandamente:— “Acalme-se, Lucien. Eu estou em pior situação do

que lhe pode parecer. Na visita a este hospitalaprendendo a virtude da resignação, buscandoforças. Também estive internada... num hospitalpsiquiátrico. Nada temos a temer um do outro:somos caminhantes da estrada dos que seguemsós. — E começou a chorar. — O Espiritismo é queestá me salvando. Quem sabe, você me ajudará,com seu exemplo?!

“Pedi-lhe que chamasse a enfermeira e, quandoesta chegou, solicitei um calmante. Não pude falarnada, quase nada...— “Não o diga a ninguém, por favor — roguei-lhe,

apreensivo. — Não é por mim...— “Compreendo, compreendo — contestou.

“Perdi a pouca paz que já havia conseguido.“A partir daquele dia, ela passou a visitar-me

todos os domingos. Sua vida de jovem estavatambém marcada por terríveis dores morais. Filhaúnica, a mãe desejava viver-lhe a existência,tornando-se-lhe cruel perseguidora inconsciente.Não suportando por longo tempo o obsessivo cercomaterno, perturbou-se e passou a ouvir vozes que aincitavam ao suicídio. Esmagada por múltiplostormentos, tentou contra a vida, ingerindo

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numerosas drágeas de barbitúricos, em momento dedesespero incontrolável. Socorrida a tempo,sobreviveu, mas mergulhou num estado deplorável,vencida por infelicidade pertinaz. Solicitou, então, àmãe um Internamento psiquiátrico, esperando que,com isso, se lhe reajustassem as emoções, voltasse-se-lhe o autocontrole e a paz. Esteve por seis mesesem tratamento de longo curso, que se repetiu por trêsanos sucessivos. Quando já era um bagaço humano,resolveu, de modo próprio, procurar o Espiritismo.Desde, porém, que saíra de Hermínia, onde morava,para estudar em

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Opala, que se afastara das preciosas lições do"Consolador”. Retornava, portanto, em momento deaflição. Nas incomparáveis expressões da Fé, sob acarinhosa assistência de amigos devotados eBenfeitores Abnegados, estava haurindo esperanças,entrando em franca recuperação. Participava agorade um grupo de visitadores hospitalares,frequentando esses redutos de dores coletivas, a fimde ajudar, ajudando-se. O auxílio à dor alheiafunciona, de certo modo, como medicamento eficazpara a própria dor.”

Armando permitia que Lucien falasse. O tempoera- -lhe precioso demais. Não o interrompia.Deixava-o desencharcar, libertar-se de tudo que omartirizara naqueles largos anos. Assim, continuou:

— "Melhorando-me e podendo caminhar,comecei a passear com Márcia, pelas ruas daColônia, passando a aguardá-la, cada semana, comansiedade crescente. Era o processo de transferência.Noutras palavras, mais verdadeiras: enamorei-medela! Descobri, também, que ela me amava, mesmoestando eu leproso. Imagine o meu drama! Nuncafalamos claramente. Será necessário fazê-lo, ante osentimento do amor? E porque a tenho amado, é quenão posso constrangê-la a permanecer comigo, poisnão consigo admitir a possibilidade de realizaçãodesse sonho de amor. Tudo em mim sãotransferências para após a morte, para depois do

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corpo, para além do túmulo... Não suporto mais isso,meu amigo! Eis por que tenho tanta necessidade devocê, de sua palavra, da sua ajuda!”

Armando estava sensibilizado. Não era simplescompaixão, mas profundo entendimento humano.Ele conhecia de perto a jornada por ínvios caminhose o pesado silêncio das noites de solidão. Desde quea mediunidade o convocara à meditação, em tornodos magnos problemas da existência, e ele sedispusera a renúncias e sacrifícios, objetivandoquitar os débitos pesados do pretérito, emexperiência de dedicação exclusiva ao DivinoCarpinteiro.podia falar com segurança em matéria desofrimentos íntimos. Por longos anos procurara aalma afim da sua alma, vislumbrando além doscorpos, das formas, o espírito dulcificador parasustentar o seu, na maratona de redenção. Sabia-o,agora, que o não merecia. Certamente estava dooutro lado aquele ser que é fonte de encorajamento,de resistência para as fraquezas, de segurança paraas lutas; que é o pão que alimenta a vida, a linfa querefresca, o Sol de Eterno Amor que tudo vitaliza.Sabia que ao lado de quase todos os grandes homenssempre houve mulheres santificadas na renúncia eno silêncio, para que eles crescessem; e que ao ladode quase todas as heroínas houve homens nobres,que respiravam o seu ar e se alimentavam das suas

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alegrias, ocultos, sofrendo até mesmo o ridículo,para que elas se exalçassem e engrandecessem avida... Os caminhantes da solidão, no entanto, quasesempre pagaram maior preço, mais pesado tributo.Ouvindo o amigo, Armando ouvia-se a si mesmo,queixava-se ao próprio coração. Despertando,porém, da longa reflexão, enquanto o outroaguardava palavras de estimulo e encorajamento,aduziu, bondoso:— Não pense em termos negativos a respeito do

amanhã. Evite o amargor demorado dopessimismo. Se ela o ama...

— Mas não lhe desejo a desgraça que me trucida.— Evidentemente! Não lhe cabe, porém, uma

definição agora. O amor, em qualquer esfera deexpressão, é bênção de Deus. Espere um pouco.Acalente a alma com a cantata de paz do dia-a-dia,sem a preocupação da música do porvir. Sempre étempo para quem confia em Deus. Você já saltou afaixa mais difícil das conjunturas expiatórias a queestá submetido, como eu próprio, como a maioriade nós, que descobrimos o Cristo no coração.

— Não lhe narrei tudo — explicou, apressado.— Faça-o, então.

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— "A genitora dela percebeu os nossos sentimentose, para impossibilitá-la de visitar-me, ameaçouapresentar queixa contra mim, por estarperturbando sua filha, que já sofreu problemaspsíquicos. Veio visitar-me a sós, e foi clara:

— “Ou você a dissuade dessa loucura de amar umleproso, ou eu tomarei providências para impedi-la de fazê-lo. E para isso, usarei de qualquer armaque me dê a vitória.

— “A senhora está equivocada! — elucidei.“Ela sorriu, parecendo louca, e arengou, entre os

dentes:— “Veremos! Prefiro vê-la morta, a vê-la conviver

com um leproso. Miserável!”“Como você vê, meu amigo, parece que será

necessário que eu renuncie até ao ar de que menutro! Se assim for, para que, por que viver?”— Para contemplar o nascer do dia das perenes

vitórias, de modo a conseguir o aval para afelicidade sem- -termo; para penetrar naImortalidade sem sombra nem dor; para conhecera ventura plena do Reino de Deus, ao lado dosamores que não foram fruídos entre as sombras daTerra...

— Não suportarei!— Sim, suportará, porque todos possuímos mais

forças e coragem do que supomos. Aspotencialidades do homem são dinamizadas na

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luta. Além disso, aprendemos com os EspíritosAmigos que todas as dores e frustrações nospertencem por aquisição do passado e delaspodemos liberar-nos no presente ou no futuro.Loucamente pensamos em fuga. Para onde? Emque direção?

Estavam no jardim de inverno da casa ampla, empenumbra propícia às questões espirituais.Armando, inspirado, ergueu-se, abriu a janela, poronde entrou corrente de ar balsâmico, que sopravados jardins circunjacentes, e, apontando as estrelas,arrematou:

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— Exilados na Terra, não conseguimos entender asgrandezas de Nosso Pai. Naqueles ninhos debeleza, onde o espírito já superou as formas e oslimites do cárcere pegajoso da carne, esplendem oamor e a vida. Por que pensar apenas nestaencarnação transitória, sem considerar asexpressões do Infinito? Construamos, no barro daatual conjuntura e nas altas temperaturas dosofrimento purificador, o castelo indestrutível dasventuras porvindouras. Tenhamos em mente que aEternidade é o tempo que é: nem passado, nemfuturo, insistindo, portanto, na perpétuaelaboração do correto, do eticamente perfeito. Asaflições de agora transformar-se-ão emtranquilidade para sempre, e o amor cantará suabalada definitiva, para os ouvidos da nossa ditosaalegria. Bom ânimo, amigo, e coragem, até o fim!

Sua voz tinha agora uma modulação musical.Lucien se ergueu, tomou a mão do amigo e disse,com emoção:— Muito obrigado, meu dileto amigo!

A hospedeira de Armando veio buscá-los para olanche, servido, àquela hora, aos amigos bulhentosque os aguardavam.

E os dois, de volta às luzes da sala e aos sorrisosdo grupo alegre, ocultaram na aparência jovial ostesouros de dor que traziam consigo.

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7APRIMEIRANOITENACOLÔNIANo dia imediato, Armando e Lucien voltaram aencontrar-se. Os amigos programaram algumashoras em fazenda próxima a Opala, onde poderiamdemorar-se, descontraídos, na conversação alongadade que tinham necessidade.

Os corações crucificados no sofrimento dispõemde forças para narrar serenamente os seus pesares esão capazes de adquirir asas de Ícaro, mas que não sedissolvem ao sol da vida, pois são constituídas eligadas por substância enobrecida pela resignação.Quando encontram guarida noutros corações, valem-se deles para sublimar as dores longamentesuportadas, como se assim retemperassem o aço daconfiança, no fogo da solidariedade, da coragem eda fé. Em razão disso, os seus diálogos sãomergulhos profundos de almas em busca de paz,através dos recursos da oração e do intercâmbio deideias renovadoras, que sustentam e encorajam parao prosseguimento sem desânimo.

A sós, os amigos permaneceram em silenciosatranquilidade. A manhã doirava-se com a mesma luzque nimbava o cabeço dos montículos verdejantes, aperder de vista, coroados pelo viçoso cafezal e pelocanavial imenso que se baloiçava ao vento agradável.Havia música no ar, semelhando bênçãosinarticuladas.

— Como desejei alguns momentos como estes!

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— exclamou Lucien, que parecia despertar dedemorado letargo. E seus olhos negros brilhavam,aljofrados de lágrimas.

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— É a resposta de Nosso Pai — considerou Armando— às nossas preces angustiadas, nos dias depesadelo que vivemos.

— Acredito — propôs o interlocutor — que vocêtambém vem experimentando estranhas lutas,não?! Gostaria de ouvir também os lamentos doseu coração, embora saiba que seu caráter fortenão estima queixar-se, preferindo cantar ootimismo e a esperança. Apesar disso, fale-mealgo de você, a fim de que também eu me sinta àvontade para falar-lhe de mim...

— As dores — explicou o mensageiro — quem as nãoconhece? Passará, por acaso, alguém, na romagemfísica, sem lhe experimentar o acre paladar? Ela fazcom que os santos se exaltem e os fracos sefortifiquem; é a forja dos que amam e acompanheira dos que esposam mais altos ideais,dos que aspiram mais amplos resultados... Sim,tenho sido convocado, diversas vezes, aotestemunho silencioso do sofrimento. A soledadetem-me acompanhado os passos e com ela aprendia conhecer, por necessidade pessoal, o valor dameditação, o milagre da paciência, e, acima detudo, a compreender que as criaturas são, porenquanto, o que conseguem tornar-se, não o quepretendem alcançar. Assim, reunindo as fracasforças e os fortes ideais, prossigo sem mágoas,avanço sem o peso desagradável dos destroços da

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ilusão, de que me vou libertando devagar...— E especificamente ? — interrogou.— Valéria a pena ressuscitar amarguras? —

respondeu. Evocar o sofrimento que nos causamas experiências do caminho é como desenterrarcadáveres. Quem ama Jesus, não se deve deter nospequenos acidentes que, olhados do topo daascensão, perdem qualquer significado. Não foiessa a rota por onde Ele próprio peregrinou? Ondeos seus amigos, nos instantes mais graves? Porque esperarmos além do que Lhe foi dado pelomundo? Aplausos, sorrisos, você bem o sabe, sãoilusões com que nos pretende-

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mos enganar, nos círculos dos sofredores, que somosquase todos os homens, nas circunstâncias atuais.Não são as mesmas mãos que aplaudem eapedrejam, os mesmos lábios que osculam edesdenham, as mesmas vozes que louvam ecaluniam?— Sim, é verdade!— Ultimamente — prosseguiu Armando — conheci

de mais perto o azedume da provação redentora,em trajes de humilhação e agravo. Experimenteina face a bofetada de mãos antes amigas e arecusa de corações que outrora se disputavamagradar-me. Alfinetadas mordazes e crueisferiram-me os sentimentos; o que havia de maiscaro aos meus afetos foi ultrajado e escarnecido; e,de roldão com tudo isso, eu fui amarfanhadotambém... Na hora suprema recordei-me de Jesuse evoquei o que o Codificador escreveu, quandoas dores se lhe fizeram mais fortes, recrudescendosem cessar, embora o seu ânimo robusto noprosseguimento do trabalho com que o Senhor ohonrava... (4) Houve, porém, um dia maisdesesperador, em que as forças pareceramabandonar-me. Foi aquela uma dessas ocasiõesem que a prece espontânea produz vigorosaligação entre aquele que sofre e o seu Senhor. Nãopodendo conter as lágrimas, que estavamrepresadas nalma desde vários meses, em cujo

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decorrer não conseguira calmar a dor, nem sequerpela bênção do pranto, apareceu-me o espirito dedevotado benfeitor, que me dava a impressão departicipar do meu calvário íntimo, como seestivesse ali com o propósito de confortar-me. Foium momento tão sagrado, que não sopitei aaluvião das minhas necessidades, queixando-me,sem amargura, mas com imensa angústia docoração: “Por que, meu amigo? Por quê? Escuto osilêncio dos amigos espirituais, que nada medizem, eles que são os Mensageiros da Esperançae da Consolação.

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Por quê?” O enviado desencarnado fitou-me semafetação e respondeu: "Porque o sofrimento foiabençoado pelo Mestre, no Jardim das Oliveiras,onde Ele próprio experimentou as mais rudesaflições, perdoando aos que O angustiavam; porquetodo sofrimento é cobrança que a vida nos faz, dosnossos débitos por erros e crimes passados. Seprossegues fiel, não necessitas de aplauso, e se jáexercitas o amor, dispensas novas orientações.Entretanto, como nos pedes diretriz, outra nãoconhecemos senão aquela que está contida naPalavra de Vida: servir sempre, sem desfalecimento!Medita: houve uma fonte que desejou crescer erogou ao Divino Doador forças para espalharbênçãos em derredor. Foram-lhe então vitalizados osnascedouros e ela aumentou de volume,transbordando. Como as nascentes fossempoderosas, espraiou-se. Aqui encontrou seixos e alipedrouços que lhe obstavam o avanço. Ante o óbice,reuniu forças, parou momentaneamente e,avolumando-se, arrastou o empeço ou, naimpossibilidade, o transpôs. Como continuasse semdeter-se, alcançou o mar e perdeu-se nagrandiosidade do oceano que a acolheu... És, por teuturno, fonte generosa. Pretendias ajudar e crescer, afim de servires melhor. Foram-te concedidos osrecursos. Surgem, agora, os problemas, aparecem asdificuldades. Que fazer? Se pretendes o oceano da

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misericórdia divina, tu que dizes ter as nascentes dosentimento na bondade do Cristo, avança semmaldizer, nem reclamar, removendo impedimentos,quando possível, ou transpondo-os, se necessário,certo de que o nascedouro continuará manandosempre, fazendo-te crescer, se permaneceres na trilhae desejares prosseguir..."

Armando, que ouviu, emocionado, as palavrasdo benfeitor, disse então, emocionado:

— É o que estou tentando fazer: manter-meligado ao Mestre Jesus e caminhar na direção doPai... O mais, ficará por conta da Vida, que tudoresolve a tempo e com segurança. Cumpra cada um oseu dever e não olhe para

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trás. O Senhor é pai do justo, mas também o é dopecador infeliz, inditoso, facultando a ambosoportunidades redentoras. Assim, não tenho por quedesanimar, nem por que evocar as sombras, quandotudo canta esperanças e produz luzes...

— Agradeço-lhe o estímulo — anuiu Lucien. —Ocorreu-me algo parecido. O meu primeiro dia naColônia “Damião de Veuster” continuaindescritível... Chegava de coração partido aoestranho mundo dos hansenianos. Conduzia comigouma carta de apresentação. Ante a impossibilidadede ter onde ficar — já que o meu tratamento poderiaser feito externamente, em Ambulatório —, porquefora expulso do lar, enquanto me detive em Opalaescrevi ao Dr. Secretário de Saúde suplicandointernamento e rogando que esse fosse na Colôniaonde ainda me encontro. Tudo me parecia morto, eeu era, também, um cadáver que respirava, masapodrecia. Após os indispensáveis registros naportaria, os exames e o preenchimento das fichaspara o prontuário, fui conduzido à casa em que mehospedaria a princípio, até o momento de acamar-mepara o tratamento intensivo. Eu era, então, comovocê recordará, muito jovem, sonhador, inexperiente.Não me posso queixar dos companheiros que mereceberam... Agora os compreendo, passados todosestes anos. Ali, os que não forem dotados de fibrasuperior ou não possuírem dominadora força de fé,

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enregelam o coração, amortecem o raciocínio edeixam morrer as melhores expressões dacompreensão humana. Quando os vi, vi-me nofuturo. Eram homens marcados, algunsdolorosamente mutilados, com as expressõesfisionômicas características, que me fizeram tremer.Olharam-me — assim pareceu-me naquele momento— quase com alegria. Era mais um que chegava, umcorpo novo que se ia decompor. Se pudesse,recuaria, mas era tarde! A minha habitação,doravante, seria aquela, e no mesmo quarto eudeveria dividir o espaço com dois outros doentes,horrendamente marcados, mais velhos do que eu.Percebi, à medida que as horas se sucediam, o lugarem que me encontrava... Aqueles homens procediamde diversas camadas sociais. Os que me constituiriamagora a família eram quase, senão totalmenteanalfabetos, de gostos e ideais muito primários,trazidos dos locais onde viviam. A conversação, oambiente, o forte odor dos medicamentos e o dasulcerações misturavam-se... Não, não se pode narrara marcha pelo caminho do Averno, em noite escura, aquem não transitou por senda semelhante ...

Lucien, embora desejoso de expor ao amigo todaa tragédia da sua vida, estava lívido. Tremiam-lhe asmãos e suava copiosamente.— Se você não desejar evocar — interferiu,

gentilmente, Armando — não há por que fazê-lo.

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— Desejo sim, pretendo contar-lhe a minhaexperiência — retrucou.

E após algum silêncio, como a coordenar asideias, deu curso à narração:— Se o dia fora de densa noite para mim, que me

atirei à cama, tentando ordenar os pensamentos eacreditar no que me acontecia, a noite foi-mehediondo pesadelo, que jamais poderei esquecer.Quando o silêncio caiu sobre a Colônia, e comeceia sofrer, no quarto abafado, o ressonarresfolegante dos indiferentes partícipes da minhadesgraça, pensei que estava novamente aenlouquecer. Não me encontrava de todorecuperado do problema psíquico que me adveio,quando da notícia... O tratamento psiquiátricofizera-me inusitado bem, e só não o concluíporque a hanseníase avançava a largos passos e sefazia mister deter-lhe a marcha, o que me levou aodesesperado internamento. A mente turbilhonada,a garganta estraçalhada por constriçãodesconhecida, e o medo. Ah! o

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medo! Felizes aqueles que lhe não caíram nasmalhas! O medo é algoz impénitente que destroi,seguro de si, estilhaçando tudo, tudo transformandoem maior razão de pavor: pequenos ruídossemelham trovões, o cicio do vento parece voz defantasma, a própria respiração soa como estertor degigante, prestes a desferir golpe fatal. O medo, meuamigo, naquela primeira noite, conduziu-me aosdédalos da loucura, uma intérmina loucura que senão me apaga totalmente da lembrança. Tentei orar,repetindo, em gritos íntimos de dor, as rogativas aoSenhor, quase Inutilmente, conforme me parecia.Exausto, voltei a inquirir: por quê? Por que estava euali? Que fizera para merecer tão severo castigo?Onde a justiça de Deus, onde? A minha vida não eratoda uma lição de esperança e um canto de beleza?Por que, então? As lágrimas, o desespero surdo queme impedia de gritar, a fim de não atrair a cóleraestranha, a terrível soledade! Entreguei-me aosparoxismos da dor. Não sei quanto tempo durou essasituação. Tive então, repentinamente, nítida visão denobre dama desencarnada, de meia-idade,acercando-se de mim, luminescente e sorrindogenerosa, que me disse: “Não temas! Saberás oporquê. Agradece ao Pai e confia. Vem comigo.”Desfaleci e sonhei...*

Através da magia do sonho, Lucien fora conduzido

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à Esfera Espiritual onde se encontram registrados osacontecimentos das existências transatas, e ali, sob aassistência da abnegada mentora, tomouconhecimento do passado, das ações e dosproblemas que engendraram a atual conjunturacarnal.

Os últimos dias do século XV, tumultuados eagressivos, surgiram-lhe assinalados pelas glóriasdas conquistas efêmeras do poder transitório e peloorgulho das castas nobres, entre sedas farfalhantes etraições inomináveis.

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Roma, voluptuosa e dominadora, influía nos Estadosda Península Itálica, beligerantes entre si, sofrendo,por sua vez, a dominação dos Borgia. Alexandre VIera Papa desde o domingo 16 de agosto de 1492, ecom ele as dinastias da degradação aceleravam suacarreira desenfreada de usurpações. O século XVI,em face da inquietação religiosa que já produziamártires em toda a Europa Central, abria as portas àReforma de Lutero, Zwínglio, Calvino e John Knox,fazendo o Protestantismo espraiar-se como chamadevoradora, primeiramente pela Alemanha e Suíça, eposteriormente por quase toda a Europa, entremassacres sangrentos e perseguições políticas, emcuja tessitura se utilizava a fé claudicante, de umlado, e o fanatismo apaixonado, do outro, paraesgrimir as armas mortíferas da governançacriminosa... E enquanto o Renascimento vestia asNações de novas belezas, na Arte e na Literatura, aContra-Reforma tentava revitalizar o poderio políticoda decadente Igreja Romana, sob cujas flâmulasreluzentes perpetraram-se crimes inomináveis, emnome dAquele que é todo Amor.

Naqueles dias de esplendor e hediondez, entreinquietações e turbulências, Lucien envergava aindumentária física, e fascinado pelos ouropeis comque a insensatez premia os ambiciosos, pôs-se entreCésar Borgia e o filho natural de Alfonso II deNápoles, Alfonso de Aragão, a quem mais tarde

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trairia cobardemente, na desesperada ganância daposse. Engendrou então o infortúnio que agorasofre, no cativeiro do corpo ultrajado, que outroradesrespeitou impunemente por longos anos, entretruculências e alucinações.*

Lucien narrava com segurança as cenasevocadas. Na sua personalidade sofrida seencontravam os sinais evidentes das insâniasperpetradas. Não podia negá-lo: amava a beleza, oluxo, a arte! De gosto apurado, detestava a pobreza,rebelava-se ante a humilhação, e não poucas vezes,agora mesmo, descobria o temperamento fogoso,arrebatado, dominador...— Reconheço — prosseguiu, em débil tom de voz —

que necessito, e por muito tempo, da hanseníase,para me acalmar interiormente. Quando entronuma casa confortável, poderia informar sobre aprocedência dos tapetes, das peças de cristal eporcelana, dos móveis... O brocado me fascina. Aentretecedura da seda e dos fios de prata e ouro,formando desenhos de flores e folhagens, produzem mim agradável sensação, mesmo agora,quando defronto fotografias e pinturas antigas outoco, com mãos nervosas, o tecido nobre. Oveludo exerce fascínio sobre meu temperamento...Muitas vezes, andando já a claudicar, tenho ligeirasensação das botas e das esporas que usava ou das

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peças da armadura metálica, embora eu semprehouvesse sido mais forte na intriga e na traição doque nos combates em campo aberto... Por isso,prossigo sofrendo as amarguras que aenfermidade me impõe, como reparaçãoinevitável. Como são sábios os desígnios das LeisSoberanas!

Ouvindo-o, Armando comoveu-se, igualmente.Informado parcialmente quanto ao seu passado, nosagitados dias do segundo quartel do século XVII, naFrança atormentada pela guerra dos Trinta Anos,reconhecia que a Divina Misericórdia lhe concediaoutras formas de sofrimento reparador, facultando-lhe reajustar os destroços das suas loucuras eintempestividades, ora renascidos em corposmiserandos, abandonados, à mercê da caridadepública, por quem intercedia na romagem deconsolação a que se dedicava, em silêncio chorandoe persistindo, trabalhando pela própria redenção e adas suas vítimas...— Suprema e Augusta Justiça! Como padecem os que

a ignoram! — bradou Armando, enxugando aslágrimas.

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As horas passavam, evocativas, quando aanfitrioa, Senhora Arminda, veio buscá-los para oalmoço.

O dia estava morno, relativamente agradável, eos familiares em volta da mesa, com os doisconvidados, assumiram iniciativa de alegrar osmomentos que escorriam céleres.

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LIVROSEGUNDOPASSADODESOMBRASEGRAVAMES

1SUCESSOSEDESDITASPASSADOSO ano de 1492 deixou poderosos sulcos na

História.Enquanto a Renascença se implantava em Roma

e lutas lamentáveis eram travadas entre os diversosreinos italianos e os Estados Papais, a Europa nãoconseguia livrar-se das sangrentas e contínuasconjunturas bélicas que a infelicitavam.

No dia 3 de agosto, após as vitórias conseguidasnas guerras em que se empenharam, Fernando eIsabel, os reis católicos da Espanha, armaram aexpedição chefiada por Cristóvão Colombo, quepartiu do porto de Paios, com suas três caravelas,para buscar pelo Ocidente, o breve caminho marítimopara as índias — o grande sonho de toda a Europa —mas que, aos primeiros dias de outubro, acabou porencontrar as terras do Continente Americano,alargando os horizontes geográficos do mundo...

Logo depois, a 6 do mesmo mês de agosto, emRoma, reuniam-se em conclave os cardeais, a fim deelegerem o substituto de Inocêncio VIII ao tronopapal, em tumultuados debates e negociatas, queterminaram em empate, no dia 10, logo decididopelo Cardeal Gherardo, que se supunha fora das

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faculdades mentais, graças à avançada idade de 96anos, em favor de Rodrigo Borja que italianizou onome para Borgia e nascera em Játiva, na Espanha,em 1431.

A fim de conseguir o trono papal, Rodrigo, quedesempenhara por longos anos posições relevantesem diversas administrações na corte vaticana,prometera alta remuneração aos seus eleitores,como, aliás, era costume na época.

Assim, no Consistório do dia 10, o CardealRodrigo foi eleito Papa, escolhendo o nome deAlexandre VI, em homenagem ao genial combatentemacedônio. Contava, então, 61 anos de idade einiciava uma época em que reuniría praticamentetodos os Estados litigantes sob a proteção da Igreja,na Itália, por processos poucas vezes honrosos equase sempre por meio de iníquas batalhas, ganhasatravés da intriga, da astúcia e do crime, de que seencarregava César, o filho que ele destacara paradirigir as inomináveis questões, do quartel-general,no Castelo de Santo Ângelo. A velha fortaleza secomunicava, então, com o Vaticano, por meio de umsubterrâneo, facilitando muitas providênciasdiscretas, e valeria ao próprio Papa, como refúgioseguro, quando Carlos VIII entrou em Roma...

Como governante, o pontífice Alexandre VI fez-se notar pelas construções que fez executar, tanto emRoma como fora da cidade e peio auxilio e proteção

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que dispensou às artes. Pode-se considerá-loverdadeiro benfeitor da Universidade de Roma, entreos muitos serviços prestados à cultura, em geral, queentão florescia. O seu reinado, no entanto, foi todoassinalado por hediondos crimes, perpetrados porCésar e seus comparsas, que não trepidavam emassassinar e destruir, culminando pelo fratricídiocontra Giovanni, Duque de Gàndia, cuja desgraçadespedaçou o coração do Papa, que não maisolvidaria o filho vilmente traído e morto. ContavaCésar, então, 22 anos, e era cardeal há quase umlustro, dedicando-se, logo depois, à carreira dasarmas, que o levaria a glórias continuas e poder

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Inigualável na Itália, como também à ruína e àprisão, com expulsão, posteriormente, para aEspanha, após a morte do Papa... Conseguindo afuga, através da Interferência da esposa junto aoirmão, o Rei de Navarra, viria a falecer, vítima degolpe mortal, em infamante batalha na qual foiabandonado pelos parcos combatentes mercenáriospertencentes ao exército do cunhado.*

Nos tumultuados dias de junho de 1498, quandofoi assinado o contrato de casamento entre AlexandreVI e Frederico, Rei de Nápoles, para Lucrécia e DomAlfonso de Aragão, o jovem Duque de Bisceglia, queentão contava apenas 16 anos, se fez acompanhar deimponente séquito, a fim de viver em Roma. Naqueleagitado período, Nápoles estava sob a mira do Rei daFrança, que ambicionava dominá-la, enquanto Césarpartia com destino a este último país, objetivandoencontrar uma noiva, em consonância com asnegociações do Papa com o rei. A fim de agradar aorei francês, Alexandre assinou uma lamentávelaliança com Luís XII, concedendo-lhe divórcio econseguindo para César o ducado de Valentinois,fazendo sentir, desse modo, ao herdeiro da coroanapolitana, que sua vida estava em constante perigo.

Os jovens nubentes, porém, conseguiram amar-se sem, no entanto, poderem fruir a felicidade quealmejavam, graças às nefandas injunções políticas

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que os cercavam. Sua pequena corte se caracterizavapor jovens audazes e sonhadores, amantes,igualmente, do prazer e das armas, como elespróprios, no período juvenil.

Dom Alfonso, que era filho bastardo de AlfonsoII, possuía caráter forte e era patriota apaixonado.Afeiçoara-se por um gentil tocador de alaúde, cujascanções o acalmavam nas crises de cólera enervosismo em que imergia com frequência.

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Giuliano, o artista, procedia de Ferrara, tendoservido à Casa d’Este, e de onde se evadiu, a fim delibertar-se de sórdida paixão que por pouco não ofizera perecer...

Giuliano contava, então, 20 anos. Embora artista,possuía compleição robusta e descendiabastardamente do nobre clã do ducado de Reggio.Vivera confortavelmente a infância e a adolescência,em suntuoso castelo nos arredores da cidade, ondedesfrutava da convivência de pedagogos que oinstruíam e lhe educavam o apurado gosto musical.Alto e louro, tinha olhos azuis, que o tornavamfascinante, traindo-lhe a ascendência... Esgrimia comfacilidade e era acrobata hábil. Galante, vivia emaventuras burlescas, das quais fugia sempre que ascomplicações se tornavam mais graves. Amava avida, a beleza, o prazer, a fortuna. AcompanhavaDom Alfonso por afeição natural e pelos estipêndiosgenerosos que recebia, a princípio de Frederico, seuprotetor, e posteriormente, em Roma, do próprioduque, que o fizera merecer as simpatias da famíliaBorgia, que passou a estimá-lo, franqueando-lheacesso à sua intimidade.

A vida fascinante de Roma embriagava o jovemmusicista. Os palácios faustosos, a constante pompavaticana, as festas intermináveis proporcionadas porCésar à irmã e ao cunhado e ao Papa, dominavaminteiramente a alma do jovem e sequioso artista, que

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se empolgava e gozava até a exaustão.Tudo acontecia em Roma. Os grandes negócios,

como os crimes mais truculentos; a vida dos Estadose o destino de governantes ali se decidiam; asdisputas artísticas e as conquistas de terras lá seconsumavam. Embaixadores e diplomatasrevezavam-se, tudo ocorrendo entre o Castelo deSanto Ângelo, cujas prisões estavam sempreabarrotadas de traidores, pessoas que poderiamincomodar os poderosos, e o Vaticano, em cujasdependências nababescas a aristocracia e a nobreza,os cardeais e os diplomatas.

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conversavam com meias palavras, disputando entresi as posições de mando, através das armas sutis dapoliticagem soez.

Diga-se de uma vez: Roma era um paraíso e uminferno, onde a imponência e a miséria semisturavam em quadros contraditórios. As águas doTibre tingiam-se constantemente de sangue, ecadáveres apareciam com frequência em suasmargens, ao amanhecer. Em Roma, o que “não seconsumava pela manhã, fruindo de sorte, poderiaacontecer à tarde, mas nunca deixava de dar-se ànoite”. A rapina, habilmente dissimulada nos altospostos da governança da Igreja, promovia oaprisionamento de cardeais e religiosos de alto porte,liberados sob régias multas; a usurpação e aganância confraternizavam sem discrição,alardeando sórdidos triunfos obtidos entre as taçasde vinho e os acepipes sobre os quais, muitas vezes,era colocado o tradicional cantarelia, de terríveisconsequências, cujo efeito lento provocava a morteem circunstâncias muito dolorosas.

Havia o fulgor do luxo e da ostentação, acompetição da posse indignamente conseguida, osespetáculos soberbos e originais, o teatro, as festasintermináveis...

Giuliano passou a ser figura requisitada pelasmais destacadas personagens romanas. Agenerosidade de Lucrécia e a afeição do duque

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facultavam-lhe gozar as concessões da oportunidade,refertando-lhe a bolsa incessantemente ávida demoedas de ouro, para as dissipações e as venalidadesem voga.

Corrompeu-se-lhe o caráter com o licorembriagante da devassidão. Os sentimentos deamizade foram substituídos pelo interesse e pelodespudor, pois a cornucópia da degradação contémmais baixezas do que se espera.

As conquistas de César, e o seu porte altivo,fascinavam a imaginação do reggiano. Muitas vezesfora atender ao dominador, tendo oportunidade dedeleitá-lo e de agra- dá-lo com sua música e suaespada, pois também sabia

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usá-la com mestria. Quando o cardeal partiu, paranegociar com Luis XII, Giuliano só não o seguiu,para não cair em desgraça aos olhos do amo, que jápassava a detestar o cunhado, que, por circunstânciapretérita, o odiava.

As peças malsinadas do jogo da política e dasordidez já se reuniam para os desfechosinesperados.

Compreendendo que o perigo a cercá-lo eracrescente, o Duque de Bisceglia abandonou Roma,não sem antes atritar-se vigorosamente com o pupiloque trouxera na condição de amigo e servidor.Giuliano, já então dominado pela opulência e pelaspermissividades morais da cidade, resolveu ficar eofereceu os seus serviços de espadachim e deinstrumentista a César, que dele se utilizou conformeas circunstâncias.

Dom Alfonso, magoado, investiu contraGiuliano, numa das suas habituais crises nervosas,só não lhe tirando a vida, ou perdendo a própria, emrazão da destreza do músico-guerreiro.

Começava então a história cármica de longocurso, que de certo modo renascia das cinzas deantigas loucuras adormecidas, que a engrenagem dareencarnação amortecera, a fim de facultarexperiências novas na estesia musical, com quepoderia conquistar méritos, Iniciando oIndispensável resgate na estrada da retidão, com

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vistas ao futuro redentor.Os impulsos inferiores, no entanto,

demoradamente estimulados, convertem-se emalgozes da paz e senhores do homem, que somente apenosos esforços deles consegue libertar-se, quandose propõe, em definitivo, à elevação, pela senda dosacrifício e da renúncia.

A lamentável discussão e o infeliz abandono dobenfeitor, abririam a Giuliano as portas daalucinação, ativada pela ingratidão para com oamigo. Dir-se-á que eram comuns tais reações. Semdúvida; no entanto, em todos os círculos da vidahumana, em qualquer tempo, flores-

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ceram os elevados ideais do amor, e as virtudesjamais deixaram de recender os sutis aromas dahonradez e da nobreza.

Preciosa conquista, a amizade é o pólen do amor,a medrar onde quer que as flores do sentimentodesabrochem na árvore generosa da dignidadehumana. Quando, porém, se afrouxam os liâmes dafraternidade, periclitam os valores espirituais do ser.

Giuliano, desnorteado pela luxúria e embriagadopelos excessos, como se desejasse reter o que eraincapaz de conservar nas trêmulas mãos daansiedade, com os sentimentos elevados jáentorpecidos, começou a descer desde queabandonou o benfeitor, quando este maisnecessitava dele, aderindo ao triunfador domomento, quando este menos precisava de novossequazes. Conjeturava que, de alguma sorte, oduque provinha do mesmo clã do seu primo-irmão,Afonso, de Ferrara, cuja família se notabilizava pelascrueldades, não maiores do que as perpetradas pelopróprio César, e de cujo ducado se evadira,ambicionando o que ora lhe chegava às mãos. É certoque lamentava o incidente com o jovem, a quemaprendera a estimar. Receava, porém, que aconvivência ao lado da atraente Lucrécia, ou junto àssuas damas de companhia, terminaria por criar-lheembaraços ainda mais graves, considerando alubricidade que o esfogueava incessantemente.

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Sentia-se vítima de si mesmo e não parava dereflexionar, esquecido de que a sofreguidão levaquem lhe sofre o cerco a esgotar suas últimasreservas de energia.

Assim, enquanto o jovem duque buscavasegurança e refúgio em Genazzano, fugindo deRoma, Lucrécia era enviada pelo pai a Spoleto,nomeada Regente, a fim de diminuir-lhe o golpesofrido com a deserção do marido e as ameaças doirmão.Giuliano a pouco e pouco se transformou emfavorito de César, acompanhando-o nas lutas eanimando as festas

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bizarras de após cada vitória. Com os triunfossucessivos alcançados pelo ex-Cardeal Borgia, agoraDuque de Valentinois, contra os “inimigos daIgreja”, os audaciosos romanhos, cujos domíniospassaram a Estados Papais, sob a administração deAlexandre VI, o Castelo de Santo Ângelo excedia emgala a que teve em todos os períodos anteriores dasua longa história. Simultaneamente, os cárcerestransbordavam de vítimas, habilmente colhidas pelasredes da espionagem e da intriga. Qualquerdenúncia, na “corte espanhola” — como eraapelidada pelos romanos —, merecia prêmio, e nãoobstante o apoio popular de que a Casa Borgiadesfrutava nas terras conquistadas, o ódio doscardeais aumentava progressivamente, enquanto asmalas diplomáticas prosseguiam no nefando correioda hipocrisia e da dissimulação, ocultando muitospropósitos inferiores de embaixadores acreditadosjunto ao Vaticano.

A vitória nunca descansava a palma junto àarmadura do triunfador, pois logo surgiam novospretendentes ao poder, e o sangue voltava a jorrar,até nova pausa, preparatória de futuras batalhas...

Retornando de Spoleto, onde Dom Alfonso seunira à esposa — os jovens duques, garantidos peloPapa quanto à segurança de suas vidas, em face daaliança com os franceses —, o séquito da princesaestava enriquecido por belas moçoilas, cujas famílias

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foram agraciadas com mercês pela Regente, quedeixara marcas de generosidade e tato financeiro nosnegócios públicos do feudo.

Recebidos regiamente no Castelo de SantoÂngelo, após o nascimento do filho, Rodrigo deAragão, que deveria ser apresentado oficialmente àCorte, ao Papa e ao Colégio Cardinalício, Giulianofoi destacado para dirigir os músicos durante obanquete festivo. Solando, mais de uma vez excedeu-se a si próprio, em lânguidas melodias,embriagadoras e sensuais. O alaúde, magicamentetangido, conseguia fazer esquecer a crueza doinverno naquele dezembro, somente aquecido pelofragor das incessantes lutas, nos diversos burgositalianos, e pelas fogueiras espalhadas pelas diversasáreas da suntuosa fortaleza.

Enquanto o vinho capitoso escorria abundante eas danças enleantes tentavam fazer os convivas detudo esquecer, Giuliano sentiu-se estremecer ante abeleza deslumbradora de Grazia, a recente favoritada princesa. Morena e esguia, a cabeleira negra,basta e salpicada de pequenas gemas quefulguravam aos lampejos dos archotes, o colo quaseà mostra, realçado pelo corpete de veludo a alongar-se em vestido de brocado reluzente, os lábiossensuais, olhos grandes e negros, emoldurados porcílios alongados, parecia uma ragazza caída dos céuse não tocada. Traía superioridade insopitada e

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apresentava ar arrebatado, parecendo portadora detemperamento apaixonado, com o que se tornava umfruto cobiçado para o músico atormentado.

Ao primeiro ensejo, numa pausa entre a longarefeição e o baile, Giuliano se acercou, maneiroso, enão pôde furtar-se ao deslumbramento.— Deidade — falou arrebatado —, aqui tendes o

servo apaixonado que deposita aos vossos pés avida inútil... (Estava emocionado, quaseimpossibilitado de falar.)

— Para que desejo uma vida inútil? — respostou,zombeteira, a menina-mulher.

— Sois uma deusa descida à Terra ou um anjocorporificado em mulher?

— Nem deusa, nem anjo... Uma mulher que aspiraao paraíso, sem abandonar a Terra.

Pois dizei o que desejais e eu vo-lo darei!— Não possuís mais do que um alaúde e uma

espada, se muito tendes. Que podeis ofertar aquem aspira a um diadema de princesa ou umacoroa de rainha?

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— Lutarei para dar-vos a glória e transformar o vossosonho em realidade...

— Então voltai após a luta, trazendo o triunfo, eintercederei junto à principessa Lucrécia, para quenegocie nossas vidas em contrato de amor, já que,para mim, ela prepara precioso acordo com a Casade Módena. Sede breve, portanto.

— Prefiro a morte a perder-vos.— Arrematada loucura, pois nunca vos pertenci e não

creio venha a pertencer-vos...Risonha e frívola, Grazia deslizou, tornando ao

grupo loução que cercava a senhora.Giuliano, que já não possuía paz, perdeu então a

alegria que supunha possuir.Esforçando-se por continuar folgazão, no baile

interminável, a recusa habilmente colocada porGrazia desnorteou-o. Acostumado à viciação,duvidava da honra de todos e, acicatado pelalubricidade, não compreendia por que domá-la.Ruminando ira e vaidade ferida, prometeu-se que ajovem haveria de pertencer-lhe a qualquer custo.

Dom Alfonso, que o detestava desde o dia dadeserção, percebeu-lhe o interesse pela jovem daúmbria e sentiu que a hora do desforço lhe chegava,promissora e desejada.

O ódio recalcado e o despeito vitalizadoaguardavam o momento próprio de setransformarem na irrequieta faísca, fomentadora do

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incêndio voraz da vingança. Não pudera alcançá-loainda, considerando que César lhe dispensavaparticular predileção e se ufanava de havê-lo tomadoao cunhado. Todavia, resmungava, ninguém perdepor esperar a hora própria, que agora lhe surgia,generosa. Alcançando o fâmulo, atingiria também oinalcançável senhor.

Grazia, por seu turno, não ficara indiferente aosencantos do musicista. Ambiciosa, esperava, todavia,um quinhão maior da vida, que o de permanecercomo servidora de uma princesa, quando poderia sê-lo, ela própria.*

O amor era, então, condimento de secundáriaimportância nos enlaces matrimoniais. Omatrimônio, nas famílias nobres e dominadoras,tinha o objetivo de selar compromissos comerciais,facultando-se aos nubentes, por outro lado, arealização afetiva em caráter extraconjugal, de queresultavam filhos bastardos, em permanentecompetição com aqueles que as leis consideravamlegítimos. A mulher não passava de objeto, de que seutilizava a família, e era muitas vezes colocada aserviço de interesses inconfessáveis. Selavam-seassim, esponsaliciamente, entendimentos entrenações, consolidavam-se fortunas e salvavam-seposições oscilantes nos jogos políticos e sociais. Nãose inquiriam quais os anseios das pessoas,

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porquanto se apregoava que o amor sempre chegavadepois, embora muitas vidas fossem destroçadasprematuramente.

Grazia, apesar de não se encontrar aindamaculada, não ignorava de todo os favores e lucrosque as dissipações concedem aos seus apaniguadosiludidos. Percebia que, embora Dom Alfonso amassea esposa, porquanto viviam em intérmino conúbioafetivo, em que o recato nem sempre estava presente,o ardente napolitano demonstrava curioso interessepelos seus encantos, que sabia realçar com aperspicácia de quem acalenta a ambição.Obviamente, o duque lhe despertava cobiça, massimultaneamente receava Lucrécia que, detemperamento intempestivo, seria capaz de qualquerloucura, a fim de reter a presa amada. Nesse jogo,pressentia o irromper de sofrimentos ignotos que acercavam, asfixiando-a com mãos veludosas,imateriais, cuja constrição, porém, experimentava emcrescendo.

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Lucrécia e Dom Alfonso residiam emprivilegiado local, donde se podia ver a Cidade Eternaescorregando dos montes e espraiando-se entre osciprestes verde-escuros. O Palácio de Santa Maria inPórtico era dotado de jardins c pátios internos,ricamente decorado com tapeçarias preciosas e vasosantigos, de rara beleza. No Vaticano, as paredes, comseus afrescos, recebiam naqueles dias restauração ecriações novas de artistas consumados. BernardoBetti, cognominado Pinturicchio, célebre pelomovimento da composição e pelo brilho das cores,decorara salas e pintara obras notáveis, que ficaramcélebres, nos apartamentos dos Borgia. Leonardo daVinci se encontrava a serviço do Papa e a soldo deCésar, contribuindo com os seus engenhos para a“arte da guerra”, que teriam facilitado ao Duque deValentinois importantes vitórias sobre os “inimigosdo Papa e da Igreja”. Protegendo as artes, a literaturae a cultura em geral, Alexandre VI conseguira atrair aRoma artistas de várias procedências e de diversosducados italianos, que desejavam ter seus dotesfinanciados, de modo a se dedicarem ao culto dabeleza e do prazer. .. A cidade se embelezava: omármore era lavrado em oficinas espalhadas emmuitos pontos, enquanto o poder temporal da Igrejaultrapassava o de muitos reis terrenos.

O Tibre preguiçoso, prateado, parecia observarsilenciosamente o novo surto de grandeza que

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esplendia, enquanto dos charcos próximos osmiasmas traziam a malária insidiosa e devastadora,em cada verão, dizimando a população romana...*

No dia imediato à apresentação do PríncipeRodrigo de Aragão à nobreza e aos prelados, sob asbênçãos do Papa, Dom Alfonso convocou Grazia aoseu gabinete particular e falou-lhe sem rebuçosquanto ao cerco de que ela fora objeto, por parte deGiuliano. Censurou-lhe o comportamento,admoestando-a gravemente quanto à leviandade deacalentar quaisquer esperanças afetivas junto aodetestado estrangeiro. Sem ouvi-la sequer, não pôdedominar o próprio desequilíbrio, asseverando queele e a senhora lhe reservavam regular dote,consorciando-a oportunamente com alguém que lhepudesse valorizar a beleza e assegurar-lhe o futuro.

Acometido por constantes crises nervosas, DomAlfonso, esfogueado, ante a jovem sedutora, que ofitava surpresa e sensual, tomou-a de inopino econfessou-lhe a paixão que desde algum tempo osenhoreava, parecendo agora arrebentar as amarrasda contenção e da reserva, sufocando-a com caríciasimpudentes...

Já disse que a mulher era quase sempre alvo dosinteresses subalternos do homem. Houve mesmotempos e lugares em que os senhores tinham odireito de posse inicial sobre as suas súditas.

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Espicaçado pelo ciúme, ante a competição queparecia revoltá-lo, face à cobiça do moço musicista,não pôde refrear os sentimentos inferiores que lhemartelavam o espírito aturdido, e não fosse ahabilidade e a destreza da jovem úmbria, ali mesmoa teria conspurcado.

Desvencilhando-se com astúcia dos braçosenvolventes, Grazia referiu-se à vingança dos Borgia,que lhe pesaria sobre a cabeça, caso se atrevesse acompartir com ele o leito da senhora, jurandofidelidade à Casa que servia e suplicando-lheproteção, com indisfarçável habilidade, contraqualquer um que lhe ameaçasse a estabilidademoral, senão mediante o seu consentimento e o dasua ama, através de contrato nupcial... Informou-lheque, embora o imenso respeito e a gratidão quenutria por ele, era também mulher, o querepresentava pesada cruz, afligindo-a manter oslábios cerrados e os ouvidos fechados àquela vozque lhe parecia música de esperança, vendo-seobrigada a acompanhar a felicidade de outra,renunciando ao prazer de abandonar-se às própriasemoções...

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Olhos injetados, abrasado, o duque pareceuacalmar- -se, segurou-lhe as mãos, acariciou-lhe acabeleira basta e encostou-a ao tórax másculo.— Se me amas — propôs então, ainda excitado — que

te impede declará-lo e ser feliz, se o sentimento érecíproco?! Além disso, quando nos surgir alguémem condições, contratarei o teu matrimônio e tudoestará regularizado.

— Temo, senhor! — redarguiu a jovem. — Respeito asenhora, que me destaca de forma especial. Nãofaltaria quem nos visse em recreio de prazer e ainformasse. Não lhe suportaria o olhar, nem teriaforças para suportar o relho, ou outro qualquersuplício físico. Não nasci para o sofrimento. Nãotenho resistência. Anseio a posse, a vida cômoda eregalada que, possivelmente, nunca fruirei. Oconcubinato somente me serviria como trampolimpara o triunfo, caso me rodeasse de força etranquilidade.

— Eu lhe garantirei a paz — afirmou o precipitadoAlfonso —, colocando-a a salvo de qualquerultraje.

— Não ignora o meu amo — redarguiu, segura dopróprio atrevimento — o poder dos Borgia.Mesmo que a senhora me perdoasse...

— Que aconteceria?— O Duque de Valentinois me alcançaria. (Falou

propositadamente, a fim de atingi-lo no ponto

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vulnerável.)— Duque de Valentinois! (Gargalhou, evidenciando

emoções em desconserto.) Não me fale dessemarranol (A expressão depreciativa estava em vogaem Roma, como forma de escarnecimento doPapa, e servia para designar os judeus conversos.)Ele foi “negociar” Nápoles com o nefando Rei deFrança, e disso se arrependerá muito cedo!Conseguiu o título de duque pela interferênciaindébita de Sua Santidade, que concedeu aanulação do casamento do malfadado gaulés. Seele é poderoso, também o sou. Saberei, nomomento próprio, realizar o desforço.

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Grazia sabia ter alcançado o objetivo: desviar aconversa e libertar-se da sedução perigosa. Assim,estimulada pela insensatez do moço, voltou à carga:— Mas, fala-se que ele vos detesta.— O sentimento é reciproco.— E se ele vos atingir? Fala-se tanto em Roma!

Incestos, bacanais especiais para as famílias...Alfonso, que compreendeu a alusão a incestos,

levantou-se e esbofeteou a jovem.— Calúnia! Lucrécia é pura e ama-me!— Ninguém duvida, senhor! Não me refiro à senhora

— explicou-se, loquaz, percebendo o errocometido por precipitação — mas a outras famíliasvaticanas, expoentes da Chancelaria e doColégio... (Desatou a chorar.)

Dom Alfonso pediu-lhe perdão pelo golpeintempestivo. No íntimo, Grazia se agradou do calordaquele homem perigoso, descontrolado, capaz deamar e de matar, e deixou-se dominar pelo choroconvulsivo.

Passados alguns momentos de enlevo, nos quaisa calma se apossou de ambos, como se o instanteselasse infeliz consórcio, Dom Alfonso beijou-lhe amão delicada e despediu-a, cortês, prometendoconvocá-la oportunamente, enquanto tomavaprovidências...

Grazia enxugou os olhos e saiuprecipitadamente. Sentimentos desencontrados

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bailavam na sua alma: ânsia de poder e emoçõesvariadas de amor, de desejo, de glória e de receio,que se projetavam sobre o futuro.

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2ASLICENCIOSIDADESCAVAMSEPULTURAS

Giuliano, desde o encontro com Grazia, passaraa experimentar tormentos ignotos, que o maceravamincessantemente, como se o triturasse demoradaconstrição.

Sucede que o preço da paixão é o desequilíbrio,tal como a recompensa do amor é a paz que vitaliza.

Acostumado às facécias da irresponsabilidade,não podia o jovem musicista arrebatadocompreender que a Fortuna lhe negasse o cobiçadogozo, que sintetizava na posse da bela úmbria,esquiva quão perturbadora.

Por seu turno, a sedutora jovem experimentavacrescente fascínio pelo garboso enamorado, nosuceder dos dias, que lhe pesavam monótonos,enquanto sonhava quimeras. Indubitavelmente,desejava fruir as concessões em voga; no entanto,desde o diálogo perigoso que mantivera com oDuque de Bisceglia, transtornado pelo ciúme equeimado pelas chamas da ira, sofria a pressão delnsopitável mal- -estar, qual secreta sensação dedesgraça prestes a ocorrer.

Sentia-se presa de desejos incontroláveis e,todavia, temia pela vida, sobre a qual pairavamestranhos presságios. Era como se a espada deDâmocles oscilasse sobre o seu destino, prestes a

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ceifá-lo.É verdade que o amo mantinha concubinato com

algumas levianas damas de companhia daprincipessa, que prosseguia apaixonada e sonhadora.Ela, porém, permitia- -se anelar uma posiçãoespecial. Reconhecia: era orgulho-

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sa! Desde cedo cultivara e perseguira a miragem dagrandeza, e uma concubina, por mais alto quesubisse, sempre continuava presa de categoriainferior.

A chegada do neto enriquecera de incomparávelfelicidade o Papa, que demonstrava arroubos eemoções há anos sufocados, como se aquela criançalhe viesse preencher a lacuna decorrente doassassinato de que fora vítima Giovanni, Duque deGàndia, o filho dileto do coração.

Lucrécia, por sua vez, exaltada pelo fluxo dosjúbilos — pobre menina-mulher, joguete deambições políticas e desmedidas paixões! —, nãoregateava concessões à corte frívola que acontemplava como ornamento da futilidade. Asfestas sucediam-se na intimidade da Vilia Borgia,como numa tentativa de diminuir o rigor da quadrahibernai, coroando, em decorrência, a vaidade deCésar, com incessantes troféus, após a entradatriunfal em Roma, na condição relevante deconquistador de Milão e da quase invencívelRomanha. O mundo Borgia ampliava fronteiras,enquanto a supremacia política da Igreja asseguravapelas armas o controle dos Estados Pontifícios.

Alexandre VI podia, então, sonhar com apossibilidade de esmagar os canhões das fortalezasde Aragão, submetendo a orgulhosa Casa, ameaçadapor Luís XII, que lhe era devedor de valioso serviço...

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O tempo e os ventos sopravam, sem dúvida,favoravelmente ao Pontífice, assegurando para ele otrono de ouro e púrpura em que sentava por algumtempo.

No Castelo de Santo Ângelo, mal desaparecia ofumo dos canhões, saudando os triunfos de César, eas confissões obtidas por processos condenáveisarrancavam informações valiosas, extirpando,simultaneamente, a vida dos condenados. Césarvoluteava, vencido pelo vapor da bajulaçãodesmedida, odiado e respeitado, temido e agradado,porém jamais amado. Os vencedores de lutasignominiosas podem transformar inimigos emcadáveres, nunca, porém, conseguem o afeto dosque choram seus mortos. Permanecem

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aureolados pela falsa admiração que a força lhesconfere, mas não logram, por isso, nenhuma estima.

Em França, Carlota d’Albret não voltara a recebera visita do esposo, que sequer mandara buscá-la, afim de que ela pudesse exercer a função de consorte,que Luis XII lhe destinara junto a César. Omatrimônio não tivera outra finalidade senão a deselar negociações entre o sucessor de Carlos VIII,que necessitava do Papa para tornar a casar-se, eAlexandre VI, o chefe da Igreja dominante, quepretendia assegurar aliança com a França... Assimeram programados destinos.

Giuliano crescia na escada da afetividade dojovem guerreiro, distinguindo-se entre os vassalossubmissos, subitamente guindado à honra cie guardapessoal de Cesar, com intimidade e poder crescentesna sinistra fortaleza onde se articulavam tramasvergonhosas e constantes.

A tristeza, porém, abatia-o.Impossibilitado de lograr acesso à residência

daquele a quem desdenhara pouco antes e ondeagora vivia a eleita, era como se o destino ocastigasse, abrindo inacessível abismo entre ele e aambicionada rapariga, imã poderoso para a sualubricidade juvenil.

Tentara subtrair-se à paixão que o consumia, masa presença dominadora permanecia na sua telamental, como se fora insculpida a fogo.

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Outras muitas mulheres abrasaram-no, massempre transitoriamente, sem que se afeiçoasse anenhuma. Apaixonara-se mil vezes e todas as vezesolvidara o amor ou a amante que supunha ideal.Acreditava se tratasse de um capricho, face àdificuldade em possuir a sorrateira diva.Entrementes, razões mais profundas ligavam os doisdestinos. Não se encontravam por impositivo doacaso, nem aquele constituía um fortuito, primeiroacontecimento. Na roda das reencarnações passadas,encetaram tentames de união que fracassaram,engendrando desditas, produzindo rios de dor queteriam de ressarcir, retificar. Vinculados,

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deveríam galgar a montanha da redenção, calcandoacúleos sob os pés, a fim de se librarem felizes, maistarde. Naqueles dias, as circunstâncias e os seustemperamentos formavam um conjunto de condiçõescontrárias a qualquer vitória. Não obstante vivessemno Vaticano e participassem das pompas da religião,ignoravam a fé, desconheciam as províncias daoração e diferiam pouco dos bárbaros. Deus lhes eraapresentado, ainda, como o “Senhor dos Exércitos”,e eles faziam parte dos escolhidos para as grandezasda Terra, quase impossibilitados de ambicionar atranquilidade da consciência, a vitória nos Céus...

Vitimado pelos óbices que se interpunham nocaminho entre ele e Grazia, só através da intriga, emque a pouco e pouco se tornara destro, conseguirapenetrar nas complicadas artimanhas dos diplomatasacreditados junto a César e ao Papa, manipulando asengrenagens do suborno com a habilidade com quetangia o alaúde.

A música romântica saia-lhe, então, doinstrumento, em linguagem de comovida emoção, eas canções que compunha, mesmo em homenagemao amo, eram assinaladas pela melancolia queexaltava os sentimentos nem sempre elevados dosouvintes, refletindo os seus próprios sentimentos.

Com astúcia invulgar, estimulado pela paixão,cada vez maior, em razão da improvável realizaçãoque anelava, conseguiu, mediante estratégia bem

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urdida, marcar encontro com a deusa, somentelobrigada a distância e sob o peso de abrasadoraansiedade.

Grazia, compreendendo a posição apetecível quedesfrutava — amada e requestada como um animaldisputado em jaula dourada — recusou o conviteintencionalmente, a fim de exacerbar ainda mais oânimo do moço irrefreado, alegandoimpossibilidades irremovíveis. Sabia que as presasque lutam são mais valiosas. Recorria, assim, a esseexpediente ardiloso.

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Giuliano, não acostumado à derrota afetiva, semmaior recato, recorreu a César que, consciente daspróprias forças, tranquilizou o pupilo ardente.

— Sim — asseverou, jovial e lasso, após umanoite orgíaca —, se necessário, solicitarei a Lucrécia,que nada me nega, a permissão para a boda ou,talvez, se desnecessária esta, a desvinculação darapariga do seu cortejo, co- locando-a aos meuscuidados e permanecendo acessível aoarrebatamento do seu prazer.

E riu, astuta, maliciosamente.Hábeis, caprichosas mãos invisíveis entreteciam

as malhas das teias envolventes, geratrizes dastragédias porvindouras.

Simultaneamente, as praças de guerra,espalhadas por toda a Itália, exigiam a presença deCésar em lugares variados, ora para esmagarpequenas e perigosas rebeliões, ora para ostentar aforça da Igreja e o privilégio de que gozava,dominando os fracos e os vencidos. A paz dos que seenganam semelha-se à miragem que facilmente sedilui.

Com a primavera, Roma esplendia e os palazzimajestosos abriam suas portas à nobreza fútil, aoclero intrigante, à arte e à beleza, em festas contínuase embriagadoras.

Na Vilia Borgia, ocupada pelo Papa e sua corte,sucediam-se deslumbrantes recepções, enquanto

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murmúrios graves falavam de bacanais queculminavam em lances excra-orgiacos, derivandopara crimes hediondos para silenciar indesejáveis.Alexandre VI, sem embargo, embora a vida dissolutaque sustentava, mantinha-se como fiel protetor daconcubina que foi mãe afetuosa dos filhos a quemtanto amava; Vanozza de Cataneis. É verdade queVanozza fora por ele casada, primeiramente comDome- nico d’Arignano (em 1474), depois com Jorgede Croce (em 1480) e finalmente com Carlos Canale(em 1486) e que Alexandre VI proporcionou-lhe,através do tempo, a

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posse de muitos haveres. Ela sobreviveu a trêsviuvezes e desencarnou no dia 26 de novembro de1518, quinze anos após Rodrigo, tendo conseguidofinalizar sua existência sob uma auréola de respeito ede virtude.

Apesar disso, aqueles eram dias apocalípticos. Aorganização social e o status vigentes mantinham amoral convencional independentemente da real,como, aliás, ainda hoje ocorre...

Os festivais coloridos, as inauguraçõesincessantes de monumentos e templos, oembelezamento e a restauração de santuários e oerguimento de fontanas, tornavam a cidadeverdadeira capital da beleza, no mundo ocidental,que tinha os olhos voltados para a opulência e o luxoda sede do Cristianismo, embora o reino do Cristohouvesse sido destinado ao coração do homem, emtrânsito pelo caminho que Ele percorrera entre oestábulo e a cruz...*

Alfonso de Aragão detestava César, e o ódio erarecíproco, bem se depreende. Este era temerário eforte, dominador e brutal, enquanto aquele, frágil ereceoso, invejava o “senhor da Itália”, vitorioso napolítica, na religião, no amor e seu possívelcompetidor no leito conjugal. Mesmo amandoLucrécia, sabia que em Roma tudo podia acontecer.

A intriga, que sempre exerceu posição

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preponderante em todo lugar, era então vital, nasatividades das diversas Casas senhoriais do mundo.Ascensão e queda, traições e encargos, eramprogramados em leitos de licenciosidade venal econsumados entre beijos ou brindes. A noitesilenciosa asfixiava muitas aspirações e o Tibre,particularmente, era leito sinuoso para os caídos emdesgraça.

O que o valor hesitava realizar, a hipocrisiaconsumava; e o que a honradez recusava, aembriaguez dos sentidos conseguia, entre caríciasvenais.

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As ambições desmedidas, os desequilíbrios daemoção atormentada e os desregramentos moraisconstituíam fértil campo para que nele medrassem osrecursos malsinado- res da criminalidade, dasnefastas negociações.

Transitavam, assim, informações cheias demalícia, tendenciosas, açuladoras dos ódios quefomentavam o clima de insegurança, culminandonão raro em suicídios rumorosos, em crises deloucura e em homicídios deploráveis.

A aliança de César com Luis XII e a possibilidadede Roma abrir ao francês o caminho de Nápoles, afim de que ele pudesse vencê-la por terra, sem ter deatacá-la por mar, aguçavam o ódio do esposo deLucrécia, que assessorado por conselheiros poucoargutos, não sopitou os impetos de revolta que oconsumiam, promovendo oposição declarada aocunhado.

Ninguém conseguia desafiar impunemente ovingativo filho de Alexandre VI, mas a insensateznão sabe discernir e, desse modo, a precipitação deAlfonso vitimá-lo-ia a curto prazo.

A 15 de julho de 1500, em noite de calor, quandoAlfonso, deixando o Vaticano, atravessava a Praça deSão Pedro, foi fácil vítima de sicários embuçados queo apunhalaram e o deixaram prostrado, semimorto.Os gritos do príncipe no silêncio noturno e o barulhodas imprecações e dos cavalos em disparada,

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alertaram a guarda palatina, que socorreu o ferido elevou-o ao seu palácio.

Todos adivinharam o nome do mandantecriminoso. O carinho de Lucrécia e o devotamento desua irmã Sancha evitaram que fosse envenenadodurante a convalescença.

Era o começo de novas dores.O Papa, atendendo à filha, destacou um

contingente de guardas, para impedir novo ataque.

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Desequilibrado pelo ódio crescente, não refeitoainda dos ferimentos, atacou a César, que passeavaem jardim próximo, utilizando-se de arco e flecha.Inatingido, César sorriu enigmaticamente.

O olhar que então lhe endereçou seriainesquecível. Alfonso tinha agora o destino selado, eo sabia. César não concedia segundo ensejo aoinimigo.

Recorreu à esposa, propondo-lhe nova evasão,ansiando buscar o apoio do tio, em Nápoles, que osalvaria, sem dúvida.

A jovem princesa conhecia demasiadamente oirmão, para ter certeza de que a frustrada e loucatentativa do marido não passaria sem desforço.

Buscou entrevistar-se com o genitor, que amandou tranquilizar-se, preocupado que estava comos negócios do Estado, impossibilitado, nomomento, de dedicar-se às questões que consideravade somenos importância...

Paulatinamente o Papa cansava-se dapusilanimidade do genro, que lhe parecia inapto evenal, cujo atrevimento por pouco não lhe arrebataraCésar, seu general e segurança na construção doImpério Pontifício com que sonhava. No íntimo,talvez quisesse libertar-se do napolitano, já agoraindesejável... Não deu maior importância ao caso.*

Por ocasião da última excursão de César a

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Ferrara, Giuliano, de quem necessitava para o prazere para a defesa pessoal, seguira entre os membros dacomitiva, embora desejasse ficar em Roma.

Nesse comenos, Alfonso, informado da ausênciado músico, a quem passara a odiar, constrangeuGrazia à nova entrevista, na qual se precipitariamnefastos acontecimentos.

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Abrasado pelo desejo de competir com o traidorque o desertara, reiterou à jovem a paixão de que sesentia objeto.

Fazendo-lhe promessas, acenando-lhe comfortuna fácil e glória, e possivelmente com ummatrimônio conveniente, seduziu-a, dominando-lhea débil resistência e arrojando-a ao pântano dacorrupção moral.

A princípio, surpreendido pelas sensações novas,sentiu-se agradado o amante, que mal disfarçava avitória sobre o inimigo detestado.

Esperava-o, em triunfo íntimo, antegozando asatisfação do sucesso.

O concubinato estabeleceu suas intrincadasamarras, enquanto o tempo deslizava célere.

A desafortunada moça, que desconhecia aprópria desdita — pois o maior infortúnio seestabelece na ignorância da Infelicidade que ferefundo as vítimas que lhe caem nas malhas —,continuava acalentando ilusões, não obstante asmaledicências espalhassem informações, queculminaram por alcançar Lucrécia, a esposa traída.

Como se não bastassem as graves conjunturas, alicenciosidade dos amantes conduziu Grazia ao altarda maternidade, por meio de tormentosa gestação,que ao ser interrompida, por determinação doamante, através de processo primitivo e criminoso,roubou-lhe a vida, prematuramente, saciando a sede

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de vingança daquela que fora sua benfeitora...Realmente, vida e morte eram e são fenômenos

comuns, mas as circunstâncias que entãoestabeleciam a manutenção de uma ou outra, nuncaeram levadas em conta, se transcorressem sob aégide de nobres e potentados, ou ocorressem naintimidade das Casas fortes.

Ao retornar, Giuliano, que conseguira introduzirInformante no lar de Alfonso, inteirou-se de todas asinfâmias e desgraças desenroladas na sua ausência.Ferido no âmago do ser, recorreu a César, rogando-lhe justiça.

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O ódio é tóxico que corroi o vasilhame que ocontém. Retido, destroi; espalhado, envenena.

Alfonso fizera-se vítima da impulsividade, eGiuliano, sincronizado na mesma onda deanimosidade, tornava-se fácil presa da alucinação.

César prometera unir a sua à odiosidade doamigo.

Exatamente nesse período, com as mãos aindamanchadas pelo sangue de Grazia e do filho que nãopermitira nascer, Alfonso era vítima da agressãonoturna em S. Pedro, e Giuliano era um dosagressores mascarados.

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3SUCESSOSINFELIZESSELAMDESTINOSA malograda tentativa de homicídio perpetrada

por Dom Alfonso contra César gerou indefinívelclima de insegurança no Vaticano, especialmente naVilia Borgia.

Fâmulos e alas, soldados mercenários e guardaspontifícios, toda a corte frívola sentia a presençaignóbil da desgraça mortuária, rondando,implacável, com soberania, a vida ou vidas poresmagar.

Todos sabiam que aqueles eram dias deamargura e destruição.

O Papa, informado dos acontecimentos eperfeita- mente cônscio do caráter do filho e dapersonalidade mórbida do genro, aguardava que odesfecho aziago acontecesse.

As malhas da Intriga bem urdida apertavam osnós constritores e a suspeita via, com expressão dehorror crescente, o desenrolar das horas, que searrastavam prenhes de inquietação.*

Sem poder explicar o que lhe ocorria, Lucréciapadecia estranhos paroxismos. Presa de horror,assomavam-lhe à mente as atitudes do consorte, aoqual amava com extremos, e, por singularescircunstâncias, sentia-se fundamente magoada, faceà sua infidelidade, nas relações com Grazia, nopróprio lar onde reinava. Traição conjugal não era

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considerada crime; todavia, padecimento atroz amartirizava. O espírito da desencarnada, acoimadopela perturbação no além-túmulo, sintonizavainconscientemente na faixa mental da princesa,estabelecendo tormentosa inquietação recíproca.

Em todas as circunstâncias da vida, em que asantagônicas expressões da desordem íntima açulamtormentos, co- núbios psíquicos com desencarnados,conscientes ou embotados pelo transe da morte,promovem, geralmente, longos processosobsessivos, causando infelizes estados deperturbação, capazes de conduzir à delinquência ouà loucura. Sempre a esfera dos chamados mortosinfluenciou poderosamente a atividade mental doschamados vivos. Interpenetrando-se os doiscontinentes da vida: o físico e o espiritual, é muitodifícil estabelecer marco divisório, capaz de definircom precisão onde um começa e outro termina. Porisso, morte é vida e vida no corpo não deixa de sermorte...

A filha de Alexandre VI, fruto espúrio dossombrios dias da Renascença, que acendia asprimeiras débeis claridades para o porvir da Razão,não tinha como melhor compreender ou discernir.Conhecia César demasiadamente, e embora jovemcomo era, sabia como funcionavam os conciliábulosque resultavam na seleção de amigos e na eliminaçãode adversários, no clã Borgia.

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Demoravam-lhe vivas as lembranças dos ardis deque o irmão se utilizara para libertá-la do primeiromarido, Giovanni Sforza, governante de Pesaro, quefora útil somente enquanto perduraram os interessesfamiliares na politica dos Estados Pontifícios, ora emconsolidação... Assim, Nápoles, que constituíaembaraço ao expansionismo da Igreja, poderia serespezinhada e Dom Alfonso, no momento,representava admirável instrumento para que sepudesse desfechar contra a arrogante Casa deAragão, insubmissa e rebelde ao domínio papal,seguro golpe, prenunciando futuras agressões.

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É claro — pensava, em demorada reflexão, areceosa esposa — que o genitor talvez nãocompartilhasse dos planos de César, quepossivelmente só o notificaria de quaisquer atitudes,após consumá-las. Esse estratagema, informar após aimpossibilidade de evitar os danos, constituíamétodo seguro de êxito em qualquer dos seusempreendimentos. Assim, quanto fazia era urdidoem técnicas tão sutis que sempre envolviam osinteresses estatais na trama pessoal, dificultando sepudesse identificar onde estavam em jogo os valoresda Igreja e do Estado e onde se encontravam asquestões geradas pela sua insânia pessoal. Eranatural — concluía mentalmente — que assim fosse,porquanto os atos venais impõem armadilhas novas,e novos compromissos são impostos, a fim deforjarem aparências que, pela sua fragilidade,necessitam ser renovadas incessantemente.

Dom Alfonso tornara-se fator de impedimentopara César, sob vários pontos de vista, se examinadasas animosidades existentes e as distâncias abertas nalinhagem dos interesses em pauta.

O jovem guerreiro amava a irmã, e ela o queriacom o ardor do temperamento espanhol da família.Realmente, amar, para César, significava possuir comarrebatamento e paixão, dominar, reter com vigor.

Desde cedo o irmão cultivara os sonhosopulentos da dominação e do poder, como se fora

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predestinado à glória, à fama, à governança. Paraconsegui-los, todos os meios pareciam-lhe lícitos,perfeitamente justos. Numa jornada, os que receiamafastar impedimentos não avançam. César, que tinhapor meta a culminância das conquistas, não receavaafastar quanto lhe constituísse impedimento.

Desse modo, desenvolveu-se estimulado pelavolúpia desregrada em torno da supervalorização desi mesmo e dos seus, como na superestima que seatribuía. Sua ordem de valores afetivos começavanele próprio e logo nas pessoas do pai e dela...Depois, os outros, pelo valor que significavam,enquanto valiam. A irmã constituía-lhe razão defelicidade. Sua presença louçã exacerbava-lhe ossentimentos e não poucas vezes, enquantodialogavam, externando as paixões de que se sentiampossuídos — e o faziam em espanhol, procedimentocom que alegravam o genitor, que os habituara àlíngua-mãe —, era impulsionado a exibicionismos earrebatamentos grotescos, que uma ou outra vezculminaram em disputas com soldados hercúleos,incluindo touradas violentas nos pátios ajardinadosda Vilia, em presença do Papa e de selecionadaassistência, na qual ela era destaque especial.Exultava em tais ensejos, recordava. Agradavam-lheas emoções violentas. A monotonia constituía-lheterrível punição. Aliás, esses eram espetáculoscomuns, que conduziam à violência, especialmente

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quando a ociosidade comandava as mentes, fazendorepousar as mãos.

Mais de uma vez fora obrigada a refrear osarroubos do irmão, receando mais graves sucessos,quando em libações alcoólicas ou embriagados deexcitações, a intimidade ameaçava levá-los acompromissos que poderiam ser nefastos...

Amando Dom Alfonso, diminuía-se-lhe a chamaem relação a César, e ele o compreendia. Ela agoraestuava de beleza e juventude. No entanto, erapaciente e piedosa, quanto se poderia sê-lo então,entre cortesãos dissolûtes e vulgares.

As guerras constantes, que se via obrigado amanter, impediam o irmão de permanecer maistempo em Roma, o que impossibilitava convivênciamaior. Ele era antes de tudo um guerreiro.

O nascimento de Rodrigo, o filho que acalentavaem transportes de felicidade, desagradara o tio.

Reflexionando, emocionada, concluiu que omarido não escaparia à sanha do irmão. Amava aambos, embora com amores diversos. Em talconjuntura, resolveu dialogar

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com César, porquanto em toda a Itália não havia umsó lugar, um refúgio seguro ou secreto, onde nãochegassem os sicários do senhor da Fortaleza deSanto Ângelo.*

Giuliano, quando se informara seguramente deque o desafeto sobrevivera à armadilha, alcançandoo Palácio de Santa Maria in Pórtico, por pouco nãoenlouqueceu, vitimado pelo desespero.

Parecia-lhe impossível que o frágil Aragãopudera sobreviver a tantos golpes.

Desarvorado, apresentou-se ao amo, solicitando-lhe nova oportunidade, na qual não havia comofalhar. Urdira hábil, infalível plano, que apresentou aCésar, mas este opôs-se à sua execução.

Necessito do meu artista — elucidou César — enão me arriscarei a perdê-lo em empresa na qualmercenários vulgares podem facilmente triunfar, semperigo ou prejuízo expressivo para mim.— Todavia, senhor — redarguiu o moço impulsivo —

o problema é pessoal, diz-me respeito...— Sei o que faço — interrompeu-o César, que

raramente discutia seus desejos ou os notificava aalguém. — Quem atingir Alfonso, não poderásobreviver...

Ante a precipitação dos acontecimentosinditosos, na noite imediata à agressão de que Césarfora vítima, alguns bandidos adentraram-se pelos

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aposentos dos jovens nubentes e, diante da irmã e daesposa, que se quedaram estarrecidas, Dom Alfonsode Aragão foi cobardemente asfixiado sob umtravesseiro de plumas, rigorosamente aplicado aoseu rosto, sem a mais remota possibilidade de defesaou de sobrevivência.

Os estertores do moribundo e a sua agoniaindefinível estupidificaram as mulheres que,impossibilitadas de qualquer atitude ou reação, faceà surpresa superlativa, tombaram sem sentidos.

A noite romana, velando estrelada,testemunhava mais uma vingança inominável.

Todos sabiam quem era o verdadeiro assassino...Alexandre VI, porém, informado pela versão quedera o filho, apresentou condolências à família dogenro, lamentando a tragédia, e mandou sepultá-loapós exéquias privadas.

Posteriormente consolou a filha, enviando-a aNepi.*

A mesma sofreguidão de Alexandre VI, que lhecorrompeu os sentimentos, devorava, cada dia mais,as entranhas do filho, o implacável conquistador quelhe assegurava a transitória posição política noVaticano.

Giuliano, por sua vez, já não apresentava ascaracterísticas dantes cultivadas: jovialidade, beleza,destreza e cordialidade no trato.

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A perda de Grazia enrijecera-lhe as fibras dacompaixão e respirando o ambiente da criminalidadeorganizada, no qual a impiedade exerciapredominância e o suborno se configurava de lei, emnome da justiça, deixou empedernissem-se-lhe ossentimentos, e corrompido pelas sensações,vilipendiou o espírito, matando qualquer idealsuperior.

Amando e odiando a memória da mulher nãoalcançada, atirou-se à volúpia, desforçando emoutras jovens do mesmo jaez moral que o seu arevolta nascida do malogro íntimo.

Nesse comenos, não obstante filiado ao cultoexterno da religião dominadora a que se vinculava —abastardada em suas profundas finalidades pelaprepotência dos usurpadores que a transformaramnuma força temporal, prejudicando as suaspotencialidades espirituais — experi-

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mentava o vazio da falta de fé e o amargor daausência de objetivos na vida, anatematizada pelasbrutalidades a que se entregara...*

Para assenhorear-se da Romanha, que semprefora sua preocupação, César, desejoso de poderincontido, desde há dois anos conseguira do pai,ante o Colégio dos Cardeais, que fosse aceita suarenúncia ao cardinalato, o que lhe permitiu tornar-se,graças ao matrimônio com Carlota, Duque deValentinois, passando a ser denominado na Itália,desde então, por Valentino. Giuliano, que lheconquistou a confiança, foi designado seu gerente denegócios, indo residir em Faenza, onde César erarelativamente amado.

A ampulheta do destino acionava a roda dosnecessários sofrimentos, envolvendo as personagensda batalha humana, empenhadas no difícil e árduoascenso da evolução.

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4ENCONTROQUEDELINEIATRÁGICOFUTURO

Nas terras da imensa planície da Emília-Romanha, perto de Forli e Ravena, no Norte da Itália,prosperava Faenza, aquinhoada com a aceitação dasua cerâmica, espalhada por toda a Europa. Desde oséculo anterior o artesanato em cerâmica conseguiradestacar-se como obra de arte, merecendo depoistraduzir as belezas do agrado renascentista. Dalisairiam as delicadas “faianças” que iriamentusiasmar artistas vários, em muitos pontos daTerra.

A cidade era progressista, esplêndida, majestosa,ufanando-se da catedral em construção, sob ainspiração da Renascença. Suas águas tornavam-seigualmente conhecidas pelas propriedadesterapêuticas. Salgadas umas, ferruginosas outras,eram identificadas como miraculosas.

Por aqueles sítios transitaram homens ilustres doantigo Império Romano, que deixaram sinaisprofundos da sua passagem.

Ali, Lúcio Cornélio Sila, ditador de Roma e daItália, lograra expressiva vitória sobre Mário e osseus partidários, por ocasião das disputas travadasentre os dois amigos que se fizeram adversários, eseis séculos depois Totila vencera os bizantinos, quehaviam embelezado a cidade e contribuído

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valorosamente para o seu progresso.Naquele ano de 1501, amargurado ainda pelas

vicissitudes que o tornaram revel, Giuliano aspiravaa crescente poder, como desejoso de asfixiar, na vasada perdição, o estrepitoso clamor do coraçãorevoltado. A saída da corte romana significava-lheoportunidade de granjear fortuna e, quiçá, lograralgum título de nobreza, de modo a poder retornarum dia em posição relevante, que não a de músico,guarda-costas ou lugar-tenente que desfrutava juntoa seu amo.

A admiração votada a César emurchecia-se-lheintimamente, substituída por insopitável inveja.Aquele homem, ora soturno, ora transbordante,nascera sob estrela benéfica. Não raro entregava-se ademorados estudos políticos e bélicos na Fortalezade Santo Ângelo, fazendo rutilar sua inteligência ehabilidade militar, conseguindo, nesse ínterim,afogar qualquer outra paixão que não fosse a demanter e ampliar os Estados Pontifícios.

Participara dos exércitos de César, quando este,no outubro passado, avançara em sua campanha deinverno na Província. Como Manfredi resistira aoinvasor, apoiado pelo povo, em Faenza, a cidadepadeceu rude cerco, durante a quadra hibernai,terminando por render-se ante a tentadora propostade paz e promessas de benignidade para com todos,oferecidas por César, inclusive a de perdão a todos os

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que se lhe opuseram nas lutas. Os irmãos Manfredi,capitaneados por Astorre, aceitaram as concessões eforam alçados à categoria de membros do seuestado- -maior, como personalidades de destaque,embora transitoriamente, porque César sabia que uminimigo que se torna amigo, mas volve à posse dopoder, prossegue inimigo. Assim, posteriormentemandou encerrá-los no Castelo de Santo Ângelo,onde encontraram hábil punhal que lhes ceifou asvidas, meses depois...

Para tornar-se os “olhos de César” junto àAdministração, Giuliano trasladou-se para Faenza,logo após a campanha, liberado das funções naimponente comitiva. As dissipações romanas não sehaviam distendido até aquela região, onde oscostumes, relativamente morigerados, não setornavam campo favorável à onda de licenciosidadeque reinava em outras cidades dos EstadosPontifícios. Era comum suceder que, após asbatalhas, quando se Instalavam as forçasconquistadoras, também se fixarem as cortesãs queacompanhavam as tropas mercenárias e osaventureiros, exploradores que passavam a perturbaros costumes e corromper as cidades vencidas. Talprocedimento tornava-os ainda mais abjetos edetestados, Inspirando homens e mulheres retos atrabalharem sem descoroçoamento até a vitória finalsobre os Intrusos.

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Talvez as atividades do campo e a paz daNatureza trabalhassem uma burguesia tradicional,de costumes pacatos, que não aceitava facilmente acorrupção em voga. A religião, ali, gozava deprestígio e, não obstante a animosidade generalizadacontra o Papa estrangeiro e belicoso, acreditava-senas determinações provindas de Roma.

Os sentimentos de pátria, todavia, eramconservados no culto da família e apesar danegociação através da qual sucumbia a cidade e, logoapós, toda a Romanha, então anexada pelo verdugo,sonhava-se com o dia da liberdade.

Aliás, a cadela da escravidão faz com que arda naalma a forja que derrete algemas e trabalha herois.As pegadas sanguinolentas dos conquistadoresImpetuosos e insaciáveis convertem-se em lôbregasfossas por onde um aia retornam os usurpadoresdesiludidos. O direito à liberdade é inalienável. Ahidra da guerra pode lacerá-lo, jamais destruí-lo. Ohomem deve ser livre para, através da própriaescolha, exercer a regência dos seus atos, passando aexperimentar-lhes as consequências. Enquanto osdireitos humanos forem desrespeitados — e há milmaneiras de desonrá-los —, os espectros da desgraçarondarão, em sinistras marchas, sobre os escombrosda desídia dos esbulhadores dos direitos alheios.Contemplarão sua própria queda e o soerguimentodo que denegriram, macularam e supuseram

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esmagar. E a História fará justiça às suas vítimas,proscrevendo-lhes as façanhas ignóbeis.

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Após apresentar-se às autoridades locais,devidamente credenciado pelo amo que orecomendou pessoalmente, Giuliano se localizou noPalácio Geral da Governadoria, fazendo-se destacarmuito facilmente pela destreza na esgrima e noalaúde, pela arrogância e pela verve galante.

O moço, no entanto, içado à escadaria do poder,não olvidava Grazia, a eterna recordada. Lamentavatardiamente não a ter arrebatado quando aconhecera, arrostando então os efeitos da atitudeprecipitada, que agora lhe parecia de menorpadecimento, face à sensação de senti-la perdida...

Essa desesperação provinha da estranhavinculação psíquica, em crescente processoobsessivo que sofria, mediante o qual a moçaleviana, que fora arrancada ao corpoprematuramente, ignorando a realidade do seu novoestado, era irremissivelmente atraída pela mente doatormentado musicista, que a solicitava sem cessar.

Na esfera do sonho, com frequência, sementender a ocorrência, Giuliano reencontrava amulher desejada, que então se lhe afigurava megerainfeliz, retratando na facies deformada as vicissitudesvividas no além-túmulo, em cujas trilhas transitavainconsciente.

Como reação natural, experimentando o vazioíntimo, tomara-se impiedoso, insensível aosofrimento alheio, quando não sistematicamente

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revoltado contra as circunstâncias vigentes.Com a promoção social e política fez-se soberbo,

açulando a maldade dormente, que outrora ocultaraou simplesmente estava embrionária.

Ligou-se por afinidade natural — os excruciadospela insânia da volúpia e da perversão possuem faroespecial, através do qual logo encontram símiles, emcujos círculos se comprazem e fossilizam — a outrosjovens empedernidos, amantes das libaçõesexageradas, do jogo, dos prazeres anestesiantes.

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A vida, mesmo assim, figurava-se-lhe monótona,na cidade laboriosa.

A excitação do Castelo de Santo Ângelo fazia-lhefalta. Não obstante ali a intriga também exercesse suafunção destrutiva, não lograva forjar os homicídiossucessivos, as orgias e as quedas, comuns em Roma.

Como agravante, as autoridades, emboracorrompidas, eram levadas a atitudes às vezessurpreendentes para Giuliano, tomando a defesa dajustiça, em consideração às circunstâncias locais.

No verão, que se tornara abrasador, assaltadopor pertinaz melancolia, Giuliano, cavalgando,afastou-se dos muros da cidade e, extasiado pela pazcampestre, deixou- -se arrebatar pela lembrança dainfância, em Reggio, recordando os fatos múltiplos ecéleres da sua vida, que ora culminavam na glóriabuscada e naquele intérmino sofrimento rebelado,que o desgastava e enlouquecia.

Afinal, refletia, nascera em terras próximas, emplanície arrebatadora, na Reggio inesquecida, quefora obrigado a abandonar. Retornava agora à Emíliaem posição relevante, mas não em situação defelicidade íntima. Talvez a inquietação queexperimentava na cidade procedesse das evocaçõesda terra natal. Parte do antigo ducado da Lombardiaera imponente pela sua nobre catedral e graças àgrandiosa Basílica de São Próspero, erguida cincoséculos antes, um dos orgulhos do seu povo. A

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prefeitura, que fora erguida há algumas décadas, eralição de arquitetura. ..

Reviu-se a correr pelos antigos muros epradarias, tornando mentalmente à casa paterna... Amãe, disseram-Ihe, morrera-lhe quando ele estavaainda na infância, e a verdade é que não fruíra aquelecarinho que a maternidade verte sobre os filhos,como insubstituível chuva a cair nas débeis plântulasque desabrocham.

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O milagre das recordações tomou-o de inopino edescobriu-se comovido, a chorar. Insopitávelconstrição dominou-o todo.

Não poderia dizer o tempo que passou nacontemplação do poente em fogo e ouro — anoitecerna sua terra! — quando se surpreendeu com o trotearde alimárias que acompanhavam imponentecarruagem, adornada e rica, rumando pela estradaestreita.

As cortinas abertas deixavam perceber as duaspassageiras distintas, cujo porte altivo e belo sedestacava no claro-escuro da tardinha, comoemolduradas em diáfana claridade.

Desconhecida emoção assaltou por completo oapaixonado reggiano que, num átimo, pareceureencontrar as antigas emoções nas províncias orasombrias do espírito aflito. Ergueu-se de um salto eacompanhou visualmente, por entre a nuvem de pó,o veículo e os cavaleiros a desaparecerem adiante,por entre os vetustos arvoredos da via sinuosa.

Tomou a montaria e seguiu a caravana, até aherdade opulenta que se lhe descortinou ao olharatônito, momentos depois, e por onde os viajantes seadentraram.

Incapaz de considerar perigos, acercou-se damansão e, mediante hábil e dissimulado inquérito,soube quem eram os residentes da Vilia, planejandoacercar-se da família ao primeiro ensejo,

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apresentando-se às mulheres que lhe provocavamrenovadoras emoções.

Tratava-se da Senhora Contesse de Lunardi e suafilha Béatrice, de 15 anos, que retornavam deRavena, a Capital da Província, onde a meninaaprimorava dotes entre religiosas, afamadas pelosmétodos da educação que ministravam a jovens daburguesia e da nobreza.

Viúva havia cinco anos, a condessa rejeitaraveementemente novas bodas e a convivência, que lheparecia perniciosa, com os da cidade.

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Religiosa afervorada, erguera, desde os dias doesposo, elegante capela nas suas terras, mantendo aexpensas próprias o Frei Carmine, seu amigo econselheiro espiritual. Bela, era uma sobranceiradama de quarenta anos, pouco mais ou menos, quese consorciara com idade relativamente avançadapara aqueles dias.

Seu pequeno feudo, pelo impositivo daanexação, pagava expressiva soma ao governo deRoma, mediante a arrecadação automática emFaenza, a que todos se submetiam.

Afastada espontaneamente do bulício e dosmexericos citadinos, cuidava de preservar-se,devotando-se efusiva- mente à filha que lheconstituía razão essencial para a sobrevivência.

Giuliano, que se acreditava aniquilado até hápouco, pareceu reencontrar-se.

Ante a noite que descia, estrelada e ardente,retornou galopando a Faenza e enredou-se na transavigorosa do destino, que o testaria outra vez.

Ninguém logra evadir-se de si mesmo. Quemarquiteta atos faz-se escravo das suas consequências.

À noite de ansiedades sucederão os dias dolongo porvir, que tem nas mãos, por erguer.

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5AUTO-EXAMENAENCRUZILHADADAVIDA

Fora uma visão a distancia e bastara para que sereacendessem as desordenadas chamas daemotividade, descontrolada no sôfrego lugar-tenentede César. Tempestuosamente, irromperam-lhe noíntimo as inquietações de outrora, que pareciamdormir sob as cinzas dos desencantos e do cansaçoexperimentados.

Retornando a Faenza, o jovem extravasavaalegria esfuziante, e recorrendo astutamente aantigos servidores da Casa Manfredi, onde agoravivia, conseguiu anotar mexericos e informações emtorno da Senhora Condessa de Lunardi e da sua filhaBéatrice.

Ufano, buscou os amigos — digamos a palavracorreta: os comparsas das alucinações, porquanto osamigos estão acima dos estroinas que se reúnemexclusivamente para os prazeres, quais chacais quese fartam nos despojos dos animais abandonados —e deixou-se escorregar pela rampa colorida dasfantasias, que o momento facultava.

Cansado das vacuidades, aspirava à paz;transbordante de gozo ardente, ambicionavaharmonia íntima; exaurido pelas dissipações,gostaria de fruir a pacificação do amor. No íntimo,realmente no âmago do ser, ele continuava- um

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sonhador, vitimado, embora, pelas aziagascircunstâncias da vida a que se arrojara.

Assim, naquela noite ardente, de verão, algoesgotado nas forças juvenis, Giuliano atirou-se aoleito, porém não conseguiu dormir ou sequerrepousar.

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Pelas janelas ogivais abertas nas paredes depedra, as estrelas espiavam o seu leito, como visõesprateadas, e o céu tranquilo convidava-o à reflexão.Havia singular quietação na noite. Fazia tempos queo recolhimento não lhe alcançava o espírito, para omiraculoso exercício da meditação refazedora.*

A meditação oferece o ensejo superior para odesnudamento íntimo, com a resultantecompreensão das ocorrências, que passam, muitasvezes, em tropel vertiginoso e infeliz. Convida aoexame de atitudes, elevando o espírito às regiõesdúlcidas da Espiritualidade, onde o ser sedessedenta, se tranquiliza, abre portas à percepção ese emociona, identificando as próprias fraquezas edescobrindo as potencialidades divinas que vemdesprezando. É convite de Deus, pela inspiraçãoangélica, interfone para conversações sem palavras...Em momentos que tais, mensageiros felizes,convidados pela sintonia automática, espontânea, doapelante mudo, acercam-se-lhe, e com poderosasenergias libertam o que sofre das cordoalhasescravizadoras, ensejando-lhe aspirar psicosferasalutar, em que se desintoxica, de modo a poder,doravante, melhor discernir, e com mais segurançaatuar corretamente.*

Naquele momento, abertas as entradas do espíritoàs forças insondáveis e à inspiração superior, o

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imprevidente deixou-se conduzir ao país donecessário exame de consciência. ..

Mesmo o revel é credor de oportunidadesconcedidas pela Misericórdia Divina, que a todosalcança, em forma de socorros fomentadores dosmeios que conduzem à reabilitação após a queda, ouao progresso, quando no esforço conjugado aodever.

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Assim, Giuliano refez mentalmente o caminhopercorrido. Parecia que mão intangível trabalhava ofio dos sucessos contínuos na sua tumultuadaexistência. A infância, que lhe rutilara na lembrança,à tarde, volvia-lhe à memória, e da genitorarecordava apenas a ternura e a devoção. Diluía-se-lhea recordação materna, mas, num lusco-fusco mental,alguma coisa brilhante, que ela trazia no trancelim deouro pendente do pescoço, ficara-lhe na retinainfantil. Tratava-se de uma madona, pintada emdelicada peça prateada, cravejada de brilhantes, quea seu turno pertencera à genitora do pal e lheconstituía tesouro de valor inestimável. Quantasvezes seus dedos se enrodilharam na delicada joia?!— refletia então, emocionado. Depois — estranhodepois! —, mais nada, ou quase nada conseguiuevocar a respeito dela, exceto o riso jovial e abertoque lhe emoldurava o belo rosto... Tudo mais quantodela soubera foram pequenas informações, talvezimaginárias, simples inverdades, a culminarem como que se referia à sua morte, que se dizia terresultado de enfermidade repentina e cruel. Aliás,nunca procurara saber exatamente como issoocorrera e onde fora inumada. Singular atitude, aque mantivera!

Conduzido ao castelo do pai, todas as suaslembranças eram os prados verdes, os pedagogosdespóticos, as aventuras que lhe advieram então.

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Quando a ruína caiu sobre o pai, vitimado porempresa bélica infeliz, ele, Giuliano. fugindo àscircunstâncias, trasladou-se para Ferrara, e lá, maistarde, soube da culminância do infortúnio paterno eda sua morte.

Não chegara a amá-lo — concluía. — Nunca fora,também, amado. Filho bastardo, era tolerado, e,talvez porque se parecesse à mãe, o genitordialogava pouco com ele.

Aliás, naqueles dias ninguém dialogava comninguém. Os pais se impunham, os fortesesmagavam os menos for-

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tes, a prepotência geria realizações. Genitores havia,porém, que estimulavam os filhos, amavam-nos e osencaminhavam nas diversas artes... O Senhor deBencescu, de Reggio, todavia, atendia ao filho comalgum desprezo. Surda antipatia separava-o dorebento carnal, o que não o impedia de desincumbir-se, com afã, dos deveres que lhe diziam respeito. Eranobre não apenas na linhagem, senão também nocaráter e nos sentimentos. Propiciara-lhe, dessaforma, educação geral e musical, não descuidandoda arte da esgrima. Não esperava, porém, torná-loum cavaleiro, e talvez mesmo não o desejasse.

Vezes sem conto, emocionava-se ouvindo o filhoa cantar e a tanger o alaúde. Recordava-lhe a mãe,cuja voz maviosa jamais silenciara em seus ouvidos.Logo, porém, reagia. A lembrança da infortunadamulher afligia-o. Re- tirava-se, então, da presença dofilho.

É verdade que nunca lhe faltara nada —considerava Giuliano. Digamos, porém, que lhefaltava tudo: a mãe! A madrasta, conquanto gentil,não o suportava. Podia, porém, assinar-se GiulianoGiotto de Bencescu, de Reggio... (Sorriu, aliviado,ante esta certeza.)

Aprofundando a sonda nas íntimas inquirições,agora percebia lacunas imensas na sucessão dos seusanos primeiros, bem como desconcertantesacontecimentos. Porque desejara a vida em Ferrara, o

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genitor deserdara-o, naqueles tristes dias dedesconforto econômico e moral; graças à atraçãofísica que exercia sobre as mulheres, evadira-se dalipara libertar-se; receoso, na corte de Lucrécia, pelamesma razão, traíra os benfeitores e novamentefugira, desta vez para César, complicando ódiosfamiliares... e assim, pouco depois de sentir-seamparado pela felicidade, que lhe abria os braços,generosa, eis que se via atirado,surpreendentemente, às mãos da desgraça, em fugaou em desequilíbrio...

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Num balanço justo, concluía, o saldo daperegrinação apresentava-lhe maior soma desofrimentos. Tudo passara com celeridade. O seuontem mais distante era próximo. (Esse é um dostesouros da juventude: as distâncias e o tempo não seconfiguraram reais, nem exatos.)

Relacionando episódios, descobria-se no fossode uma solidão quase permanente. Amava aagitação, o bulício, a beleza, o brilho dosespetáculos... A música acalmava-o, fazendo-olascivo ou melancólico. A dita era transeunte dassuas horas, nunca demorada hóspeda. Quandoterminavam os risos e as loucuras (sim, chamemosloucura a sede irreversível das sensações novas e dosnovos gozos) experimentava a estranha presença dasolidão, que o obrigava a fugir. Vezes outras, noauge dos estímulos vulgares, sofria a soledade,embora o tumulto à sua volta.

Não chegara a consolidar afeições. A brejeiricedos cortesãos, ávidos de lucros, e o suborno dosbajuladores, repugnavam-no. Pessoalmente sentia-semal classificado no próprio conceito. E quando seestá mal consigo mesmo, não se logra estar bem compessoa alguma.

Cria em Deus; no entanto, jamais Lhe buscara orefúgio. Ora, acreditava em Deus por osmosepsíquica... Acostumara-se a aceitá-Lo, porém nãocogitara sequer de conhecê-Lo. Reservava as relações

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entre ele e o Pai ao clero intermediário e às vezesignominioso, não raro interessado na ignorância e nausurpação, salvo muito honrosas exceções.

Compreendeu, por fim, que lhe faltava amor,aquele amor que transforma o deserto espiritual dohomem em oásis de bênçãos e que faz reverdecer aface crestada das aspirações amortecidas.

Insopitável ternura umedeceu-lhe os olhos. Avisão constante e perturbadora de Grazia, sensual eprovocante, desvaneceu-se, e o espírito instável,lenido pela aragem das reflexões honestas que ovenciam, acalmou-se...

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Tomado pelas mãos invisíveis que o amparavam,Giuliano mergulhou em sono renovador edesprendeu-se parcialmente do corpo.*

Almas da Terra! Quando o fragor dasinquietações estiver a ponto de estraçalhar-vos; senas encruzilhadas não souberdes o caminho a seguire todas as rotas vos parecerem acesso a abismos;quando insuportável desesperação vos houverarrastado a conclusões infelizes que vos pareçam sera única solução; quando os infortúnios, em vosexcruciando, tenderem a tornar-vos indiferentes aopróprio sofrimento — tendes o veículo da oração edispondes do acesso à meditação remediadora!Talvez não vos sejam supressos os problemas, nemafastadas as dificuldades. No entanto, dilatareis avisão, para melhor e mais apurado discernimento;lobrigareis mais ampla compreensão da vida e dassuas legitimas realidades; experimentareis a presençade forças ignotas, que vos penetrarão, vitalizando-vos; elevar-vos-eis a zonas psíquicas relevantes,donde volvereis saturados de paz, compossibilidades de prosseguirdes, não obstantequaisquer difíceis conjunturas existentes ou porexistirem. Porque a prece apazigua e a meditaçãorefaz; a oração eleva, enquanto a reflexão sustenta; opensamento nobre, comungando com Deus, emDeus haure a vida, e dialogando, em conúbio de

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amor, extravasa as impurezas e se impregna com assublimes vibrações da afetividade, que se converteem força dinâmica, para sustentar as combalidaspotencialidades que, então, se soerguem e não maisdesfalecem.

Não vos arrojeis desastradamente nas valas daira irrefreável ou nas vagas da insensatez. Antes quevos assaltem os demônios do crime, erguei-vos docaos, pensando e orando.

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Há ouvidos atentos que captarão vossos apelos ecérebros poderosos que emitirão mensagens-respostas, que não deveis desconsiderar.

Amores que vos precederam no além-túmulovigiam e esperam por vós, amam e aguardamreceptividade.

Não vos enganeis, nem vos desespereis vãmente.Tende tento! Falai ao Pai na prece calma e silenciaipara O ouvirdes através da inspiração clarificadora.

Nada exijais. Quem ora, não impõe. Orar é abrira alma, externar estados íntimos, refugiar-se nadivina sabedoria, a fim de abastecer-se deentendimento, penetrando-se de saúde interior...

E quando retornardes da incursão pela prece,exultai, apagando as sombrias expressões anteriores,superando as marcas das crises sofridas e espargindoalegrias, em nome da esperança que habitará em vós.

Trabalhando pelo bem, o homem ora.Orando, na aflição ou na alegria, o homem

trabalha. E orando conseguirá vencer toda tentação,integrar-se com plenitude no espírito da vida, queflui da Vida Abundante, com forças superiores paratrabalhar e vencer.*

Giuliano despertou horas avançadas, coraçãotranquilo, otimista e cordial.

Assumiu as tarefas que lhe diziam respeito, juntoaos administradores de Faenza, e com as paisagens

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mentais reorganizadas, recorreu ao Governador, nosentido de conseguir maneira própria para ter acessoà herdade do extinto Conde Lunardi.

Apesar de investido de melhores propósitos erecém-visitado por nobres pensamentos, não possuíao suficiente vigor moral para transformar-sedefinitivamente, alterando a diretriz dos hábitosarraigados e ressurgindo, homem- -novo, dospróprios desregramentos.

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Intrinsecamente, continuava o que fora nosbreves anos de sua carreira desenfreada. Havia, noentanto, a presença da paz que acalma, qual delicadoaroma de uma flor cujo perfume passou.

Justificando a necessidade de estabelecer maissólidos vínculos com os donos de terras, nosarredores da cidade, e desejoso de conhecer a nobredama e sua filha, sentia urgência em acercar-se dahabitação, conseguindo, sem mais delongas, cartaselada apresentando-o como pessoa grada doGoverno e lugar-tenente do nobre Duque CésarBorgia.

Um emissário municipal foi despachado, a fimde marcar o encontro entre o jovem legado e aSenhora Condessa, em nome da autoridade local.

Crescente ansiedade passou a comandarGiuliano, que estava no auge da beleza física. Elerealmente não sabia o que desejava naquela casa. Eracompelido a aproximar- -se, por vigorosa,desconhecida imposição, que lhe escapavacompreender. E deixou-se conduzir sem qualquerresistência.

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6INQUIETAÇÕESQUEPRENUNCIAMSOFRIMENTOS

A Condessa de Lunardi enviuvara havia cincoanos, entrando na posse de expressiva fortuna, queadministrava com rara proficiência para uma dama.Sem embargo da alta linhagem a que pertencia oesposo, vivera sempre recatada, recolhida àsdependências da sua propriedade, sem maioresamigos. O conde, mais velho do que ela, venerava-acom extremos de dedicação. Viúvo, quando aconhecera na Capital, nela encontrara a renovaçãodos estímulos para viver. Com o nascimento da filhaBéatrice, a felicidade como que estabelecera morada,em definitivo, no solar.

Bela, de estatura mediana e bem proporcionada,possuía rosto formoso, que rivalizava com as nobresesculturas de Praxíteles, onde se destacavam os olhosfulgurantes, que pareciam estrelas novas no céu daface.

Enquanto vivia o marido, permitia-se excursionarpelos arredores e, uma que outra vez, quandoinevitável, acompanhava-o a ofícios religiosos e afestas na cidade e na Capital. Depois da sua partida,recolhera-se quase totalmente. A verdade é que nãohospedava ninguém e raramente recebia visitas.

Atendida por venerável amigo-conselheiro, queservira ao esposo, e pelo irmão Carmine, confiava ao

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primeiro os bens terrenos e ao segundo asnecessidades espirituais. Servos e trabalhadores daCasa eram dirigidos pela severa

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governanta, que também atendera o senhor, que neladepositava tranquila confiança, tudo transcorrendoem rotina equilibrada, que só se alterava nas épocasda sementeira e da sega.

A filha, seu maior tesouro, constituía o centro emtorno de cuja felicidade gravitava. No estuar dajuventude louça, era graciosa e delicada. Herdara dosgenitores a nobreza de linhas e, na intimidade, eraternamente chamada por fada. A mãe internara-a emRavena, a fim de facultar- -lhe maior convivência coma religião e com outras jovens, educando-a comrefinamento. Augurava-lhe um consórcio ditoso,porquanto para ela estavam reservados os largoshaveres que procediam do falecido progenitor.

Embora tudo parecesse constituir um jardimedênico, a Condessa Isabella de Lunardi não sepodia furtar a constrangedor presságio, que amartirizava. Nas longas conversações com oconselheiro espiritual, narrara-lhe a angústia que apossuía amiúde, como se caminhasse sob augúriosnefastos, prestes a desabarem em clima de tragédia.

O dedicado religioso, que lhe votava entranhadaafeição espiritual desde quando a encontrara, tentavatranquilizá-la com os argumentos da inafastávelconfiança em Deus e do mérito de que se encontravainvestida, pelas obras de caridade junto aos pobres eenfermos, a que se entregava.

Ignorando as sutis faculdades da intuição, da

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premonição e as leis da reencarnação, em que estãoembasados os acontecimentos da vida física,mantinha como recurso, o devotado pastor, aargumentação com a fé, pura e simples, sem maisamplos recursos para estruturar a consolação comque pretendia sustentar a ovelha aturdida.

— Possivelmente — afiançava-lhe o guiareligioso —, os sofrimentos transatos ralaram-na detal modo, que o penso das alegrias incontáveis nãoconseguiu cicatrizar-lhe

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definitivamente as inúmeras feridas, que aindasupuram... Necessário esquecer para perdoarmelhor, arrojando no olvido as cangas da mágoa edas amargas reminiscências. O mal que lhepretenderam fazer resultou em inestimável bem,embora os incalculáveis sofrimentos... E a filha comque Deus a beneficiou veio preencher aincomparável ausência. ..— Não são mágoas, meu amigo — interrompeu

Isabella, comovida. Já não possuo mágoas, nemrancores. O tempo enxugou todas as lágrimas;mas não pôde apagar as tristes lembranças, queasfixio, evitando transmitir tristezas a Béatrice...

E após reflexionar:— São pressentimentos de novas dores! Duas

mulheres, sem o braço forte de um esposo, umpai, um irmão...

— E Deus?! — inquiria, aflito, o amigo. Estáesquecida dAquele que é o Poder e a Diligênciaabsoluta? Genitores e familiares existem que,pensando defender os seus pupilos, se convertemem verdadeiros agressores, abutres que osdevoram!

— Tem razão. Receio que não me libertarei desteestranho pavor que me persegue, absorvendo-meos sorrisos, sugando-me a paz.

— Pobre menina! Você já sofreu muito. Tudo, porém,passou. Há mais de três lustros você encontrou a

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felicidade. Não permita que infortúnios antigostisnem alegrias presentes, sombreando esperançasfuturas.

Os diálogos sempre culminavam comjaculatórias e palavras de carinho.*

O irmão Carmine pertencia à Ordem Agostiniana(dos frades pregadores), que tivera permissãomonástica, há mais de 20 anos, para viver fora dosmuros conventuais. De provecta idade,acompanhava a condessa, desde que

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conseguira liberar-se dos compromissos da clausura,sem renunciar ao ministério da palavra, nem aosofícios religiosos. Procedia de Parma e era conhecidopela humildade, pobreza e elevação dos sentimentoscristãos.

Sua presença assegurava a paz e sua ilimitadaconfiança nos escritos sagrados e em Jesus-Cristoinfundia respeito e admiração.

Austero nos hábitos e disciplinado na conduta,desde os primeiros arroubos da juventude, era,digamos sem rodeios: um apóstolo!

A fim de facultar-lhe meios de pregar, semmaiores sacrifícios, o conde, a instâncias da esposa,erguera belo templo, na herdade, a fim dehomenagear a fé, homenageando-o ao mesmotempo.

Possuidor de verbo fluente, em considerando adialética, cujos estudos aprofundara na Ordem,raramente utilizava toda a sua força deargumentação, considerando o público provincianodos arredores, que acorria às suas práticas. Commenor resistência física, pela idade avançada,ministrava os sacramentos e oficiava, limitando ossermões, ultimamente, a conselhos menosentusiastas, mas profundos de significação.

Todos lhe votavam imensa afeição e a condessatinha-o na condição de pai amoroso e leal, em cujadedicação hauria energias para sobreviver ao caos a

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que fora arrojada...*

O feudalismo, apesar de quase totalmentedesaparecido na Europa, teimava por sobreviver naItália, dividida entre o Papa, os imperadoresregionais e os príncipes absolutistas, que se

sustentavam nos exércitos dos condottieri5 para a

sobrevivência dos Estados e Províncias quegovernavam, nem sempre com sabedoria oudignidade. Quase sempre usurpadores, faziam-sesuseranos impiedosos, espoliadores, em guerraslutuosas, uns contra os outros, resultando dissoanarquias contínuas, de que salteadores, aos bandos,se aproveitavam para o saque sistemático, ovandalismo incessante.

As terras pertencentes ao clã Lunardi eram, dessemodo, imenso feudo, que prosperava a expensas dacondigna administração.

Aos súditos humildes, enfermos e pobres, asmãos generosas de Isabella ofereciam a fartura dapaz, a caridade da assistência, o conforto dabondade. Exercendo justiça na distribuição de terrase na divisão das colheitas, sua mansão era um oásisde progresso, distante poucos pares de quilômetrosda cidade.*

Sem compreender exatamente o motivo da visitaque se propunha fazer-lhe o lugar-tenente de César

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Borgia e após confabular com o administrador e oseu confessor, decidiu-se a senhora a recebê-lo noentardecer do sábado, quando a faina do campohouvesse cessado e os fâmulos pudessemhomenagear o visitante ilustre e — por que não dizê-lo? — sob suspeita.

No dia aprazado, dominando a inquietação e aansiedade que o possuíam, Giuliano Giotto fez-seanunciar e foi introduzido na sala de recepção.

Amável, mas restritivamente recebido, o jovemnão conseguiu quebrar as austeras limitações daetiqueta, ante a reserva da senhora e dos seusauxiliares de confiança. Béatrice, por medida decautela, não compareceu, permanecendo nos seusaposentos.

O jovem trajava elegantemente, como nasrecepções festivas de Santo Ângelo, a que estavaacostumado. A senhora, apesar da discrição e dotraje de luto, com o semblante velado por singularpreocupação, traia toda a beleza de que era dotada.

A custo, o musicista sopitava os desejos infrenesde arrojar-se-lhe aos pés, em fervente declaração deamor. Não sabería dizer quais os sentimentos que operturbavam. Não tinha hábitos de morigeração,porquanto seus últimos anos foram de aventuras e deinsensatez.

Passados os primeiros instantes, em queapresentou a carta de recomendação, em clima da

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mais inibidora formalidade, engrolou justificações,desejoso de quebrar a frieza dos circunstantes.— Aqui estou em nome do Duque de Valentinois, o

nobre César Borgia — arengou com insopitáveldificuldade —, desejoso de travar contacto pessoalcom as famílias nobres da Província, de modo aestreitar laços de amizades valiosos. Como aSenhora Condessa não visita o palácio, resolvitomar a iniciativa.

— Rogo desculpeis a Senhora Condessa — justificouo irmão Carmine —, que vive enclausurada no seuburgo, cultuando a memória do sempre pranteadoesposo, o Senhor Conde Lunardi.

— Mas o nobre senhor faleceu há muito, segundo meconsta — interveio Giuliano. — Não se justifica,portanto, tão grande reclusão.

— Com vossa licença — interrompeu Isabella —, oassunto não interessa senão a mim, por se tratar dequestão muito particular, que não tenho obrigaçãode discutir com o nobre visitante. Não havendomais nada a tratar, que me exija a presença,permito-me retirar-me, deixando-vos emcompanhia do meu administrador, para algumacoisa que se refira a negócios, terras ou tributos,pois é ele a pessoa autorizada e capaz para essetipo de decisões.

Ergueu-se, contrafeita. Quando se ia retirando, oreggiano, ousadamente, levantou-se e interceptou-lhe

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o passo. Segurando-lhe a mão, que tremialevemente, balbuciou, aturdido:

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— Perdoai-me, Senhora Condessa! Não era do meudesejo interferir em tão delicada questão, que vosmortifica. Sede benevolente para com a minhaindiscrição. Sucede que a vossa beleza deslumbrae a nobreza de vossa figura me perturba.

Isabella, assaltada pelo inesperado galanteiodiante dos auxiliares e fâmulos, empalideceu,demorando-se imobilizada, sem haver retirado a suadas mãos nervosas do visitante. Este, num crescendode atrevimento, osculou- -lhe a destra, quecontinuava a reter, enquanto a dama foi acometida desúbita vertigem, tombando inconsciente.

A cena foi rápida. Servas acorreram comessências e bálsamo, e após colocarem-na em canapéforrado de veludo, friccionaram-lhe os pulsos e astêmporas com unguentos, fazendo-a aspirar fortearoma e recobrar a lucidez.

Ante a agitação que se estabeleceu na ampla salade recepção, Béatrice desceu dos seus aposentos,precipitadamente, e vendo a genitora desfalecida,prorrompeu em choro convulsivo.

A governanta assistiu-a, enquanto o irmãoCarmine e as servas cuidavam da condessa.

Despertando sob álgido suor, que a alagava,Isabella, lívida, balbuciou, olhando com vagaexpressão o imprevidente moço louro:— A entrevista... está... terminada... Ide-vos embora!

E novamente desfaleceu.

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Gluliano, furibundo, olhou-a com indefinívelexpressão, indiferente ao pânico reinante, eacompanhado à carruagem pelo administrador,rilhou, azedo:— Pagar-me-eis a ofensa. Sereis minha. Não perderei

esta batalha. Veremos!Tommaso, o velho administrador, mal podia crer

no que escutava, estupidificado.

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Seguiu-o até o veículo, que partiu velozmente,com o indigitado filho de Bencescu, de Reggio, quemergulhava em Inesperada alucinação.

Os homens fracos, que são fortes apenas nabrutalidade, não sabem lutar, nem são capazes deexaminar circunstâncias ou dignidades. Somentepodem tomar, agredir... Por isso sua força é a suafraqueza.

Tormentos excruciantes se avizinhavam.

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7NUVENSBORRASCOSASSEAVOLUMAMIsabella recuperou de imediato a lucidez, sob a

carinhosa assistência do abnegado religioso, deBéatrice e dos fâmulos. Singular abatimento,todavia, prostrava-a. Conduzida à alcova, tentourepousar, o que redundou infrutífero. O singularacontecimento, desagradável sob todos os aspectos,martirizava-a. Sem dúvida, o atrevimento do visitantefazia-a pressentir que amargas aflições chegavam àsua vida e iriam irromper, irrefreáveis. Sinistrosaugúrios afligiam-na, parecendo corporificar-se, paraculminar em processo de imprevisíveis tragédias.

O moço louro e audaz — aqueles olhostransparentes e azuis, que recordações lheimpunham?! —, gentil, mas repulsivo, provocava-lheterrível mal-estar e fizera que Irrompessemsentimentos propositalmente esquecidos eaparentemente sepultados, porém latentes e vivos.

Sentindo-se velada a distância por uma serva epelo amigo religioso que orava, deixou-se conduziratravés da imaginação convulsionada e sonhadora, e,sem dar-se conta, fugiu na direção da infância.

De origem modesta, ásperos haviam sido oscaminhos percorridos, na terra natal. Enquantooutras crianças corriam, gárrulas, fora entregue aoscuidados de abastada família, para servir econquistar um possível futuro menos atribulado.Obrigara-se a calcar as aspirações do período lúdico

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e superar dificuldades quase intransponíveis. Entreos serviçais, sentia-se igual aos filhos dos amos, comquem brincava e aos quais servia.

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Os seus atuais domínios refletiam as paisagensda meninice de angústias, venturas e dissabores.

Elegida pela lubricidade do senhor, foraseduzida. Conhecera de perto a inquietação e, logodepois, ante os destroços dos sonhos de moçoila, oconúbio afetivo que lhe soube ele despertar. Belo esobranceiro, terminou por conquistá-la, arrebatando-a. Graças à ternura de jovem inocente e afetuoso,nele se produziram expressivas modificações.Abrandou-se-lhe o temperamento irascível ealteraram-se-lhe os hábitos de comportamento,mesmo em relação a outras mulheres... Libertou-sedos compromissos irregulares, e apesar de ser a suauma ligação ilícita, tornara-se tacitamente aceita.

Ele lhe concedera uma Vilia nos arredores dacidade e ali passava noites e dias sucessivos, como sefora um lar estabelecido em bases morais e legais.Explique-se que o seu consórcio obedecera ainteresses mais políticos e econômicos do queafetivos, vindo a se tornarem os cônjuges, ao fim dealgum tempo, “amigos” que se detestavam recíprocae cordialmente.

A senhora, acostumada às costumeirasinfidelidades conjugais do marido, não dera maiorimportância ao seu caso, até perceber-se preterida.Desprezada sempre fora, porém jamais substituídapor uma serva que se fazia amar. (Sutilezas daargúcia, dos sentimentos femininos, capazes de

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inesperados lances e reações, na íntima problemáticada urdidura afetiva!) Passou a detestá-la. Inda maisquando a soubera dignificada pela gestação, numprenuncio de maternidade que a faria impor aigualdade entre o seu espúrio e os filhos legítimos...

Vieram depois a calúnia soez, a perda do filho, aexpulsão das terras amadas, o exílio imposto, assombras espessas de uma morte em vida...

Não pôde furtar-se às lágrimas e prorrompeu emconvulsivo pranto, refreado desde muito.

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O irmão Carmine acudiu-a:— Acalme-se, menina! Tudo passou e terminará

bem. Recolhamo-nos à reflexão, aguardando osacontecimentos, mas não os soframos porantecipação. Possivelmente os mal-entendidosresultarão aclarados e sorriremos todos, felizes,passadas estas horas abomináveis.

Isabella não podia externar o vazio, o imensoabismo dalma. A verdade é que o Conde Lunardi lhefora não um esposo e sim um protetor... Amou-o, erespeitava-lhe a memória. Todavia, aquela afeiçãoera calma, feita mais de reconhecimento e deternura... Antes, conhecera o arrebatamento,embriagara-se na excitação dos sentidos, na paixão,quando ainda não havia entendido que o verdadeiroamor é dúlcido e calmo, repousante e digno. Oprimeiro companheiro significou-lhe, por isso, oarrebatamento dos sentidos, mas o segundorepresentou a paz da afeição.

O confessor conhecia-lhe o íntimo, desvelado emlongas e edificantes conversações. Não parecia lícitoafligi-lo na atual conjuntura. Reunindo forças,procurou refrear a emotividade desordenada e, apouco e pouco, vencida pela exaustão, adormeceu,enquanto o astro-rei declinava, num incêndio de luze cor, entre as nuvens irisadas e o infinito azul.*

Giuliano mal podia domar a cólera. Ferido na

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varonilidade impetuosa, pela altivez da senhora, eperturbado na razão, encontrava-se prestes a umacrise apoplética, pela ira transbordante. E, como soiacontecer a tais temperamentos, próprios de espíritosinseguros, demandou um albergo e entregou-se alibações desordenadas. Presa de si mesmo, à medidaque o álcool lhe exacerbava os sentidos emdesalinho, irascível e blasfemo, terminou por agredirhumilde serva da tasca, culminando o ato emescândalo que lhe poderia acarretar prejuízo e talveza própria vida.

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Aliás, é do talante dos cobardes e dos venaisdescarregar a pequenez moral na humildade dos quejá estão vencidos pelas circunstâncias em querespiram, de modo a se afirmarem perante a própriafraqueza, sob a aparência de uma força que sabemnão possuir.

Atendido pelo palafreneiro e pelo condutor dacarruagem, foi conduzido a palácio, semi-inconsciente, quando as estrelas já espiavam atravésda escumilha transparente da noite.*

No dia imediato, o reggiano, recobrando a lucideze repassando os surpreendentes fatos da véspera,não se perdoava a precipitação. Durante largoperíodo convivera em Roma com as táticasdiplomáticas e a dissimulação, fracassando pelaimperícia, vítima da sofreguidão irreprimida.

Antes de erguer-se do leito, em demoradaconjectura, chamou um escriba e ditou-lhe expressivacarta, na qual se desculpava, rogando o perdão danobre senhora. Extravasava toda a angústia que olanceava, narrando episódios comovedores daexistência e rogando-lhe, por fim, permissão pararetornar à herdade, prometendo brindar os aliresidentes com a sua arte, no alaúde que tangia comrara sensibilidade. Era como se, transformado emterra crestada pela ardência do sol, necessitasse doorvalho com que reverdeceria, adornando-se de

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flores.Selou a missiva, despediu um servo e preparou-

se para novo dia.Em crescente inquietação, sobraçando

expectativas, aguardou a resposta. Irresponsável,perdulário, supunha-se desculpado.

Os que menosprezam os valores éticos, na suainsânia, são incapazes de medir sentimentos ecaracterizar atitudes em toda a magnitude.Desculpar-se, significa-lhes humilhação, comocredencial para acesso a novos desatinos, a que seafeiçoam persistentemente. A distância que medeiaentre uma agressão e uma explosão de generosidadeé apenas a circunstancial da emotividade. Sem onecessário senso, dão aos fatos a tradução que lhesconvém.

Cientificada da chegada do mensageiro, aCondessa Lunardi mandou despedi-lo, mandando-lhe dizer ao seu amo que aqueles sitios lhe eramvedados e que não mais volvesse a importuná-la,abusando das prerrogativas de que se diziainvestido.

Ato continuo, reuniu o administrador, osacerdote e mais alguns velhos amigos do clã, enomeou um grupo para dirigir-se às autoridades,dando ciência do sucedido e solicitandoprovidências, de modo a impedir novas elamentáveis interferências.

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Nuvens borrascosas se adensavam e o ar abafadoque prenuncia calamidade asfixiava, no solar.*

Assegurado da inteireza moral da condessa e damensagem que lhe enviara, Giuliano entregou-se adesordenada revolta. Não podia compreender arecusa, e crendo-se capaz de investir contra adignidade pessoal e os invioláveis direitos de cadaum, começou a urdir habilidoso plano, com o qualpretendia vencer a teimosia da dama cobiçada. Elemesmo não se sabia explicar a entranhada atraçãoque ela exercia sobre os seus sentidos. Na tela mentalrevia-a, imponente qual uma deusa, e lhe tornava àrecordação o seu desdém, nas palavras de angústia edesespero com que o expulsara do seu lar. Ao invésde experimentar compaixão, sentia o açular dosdesejos e o descompasso da ambição retalhando-opor dentro. Encontraria, sem dúvida, uma solução. E,taciturno, mergulhou em infelizes conjecturas.*

Efetivando, dois dias depois do incidente, asdecisões adotadas, e ostentando as flâmulas com ascores de Lunardi, os representantes da condessadirigiram-se ao Governador de Faenza, e foram porele recebidos em caráter confidencial, paraapresentação da queixa contra o procedimento dolugar-tenente de César Borgia, e para exigir aconsideração a que faziam jus os serviços prestados

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pela senhora à cidade. Impunha-se que o Castelo deSanto Ângelo fosse informado oficialmente, ouentão seria encaminhada correspondência, pordelegado especial, ao vencedor da Romanha,cobrando as promessas que ele fizera quando darendição da cidade, tais como: proteger os direitosdos nobres e defendê-los de qualquer abuso,mediante um governo de justiça e benignidade.

Sem dissimular a preocupação, o Governador,que não passava de mesquinho títere subalterno,tentou tranquilizar os emissários, prometendointerferir pessoalmente junto a Giuliano que,segundo pensava, fora vítima de transitóriodesequilíbrio.

Ante a seriedade dos representantes da CasaLunardi, capitaneados pelo venerando sacerdote, detodos conhecido através da excelência das virtudescristãs de que sempre dava mostras, ficou deliberadoque tudo seria necessariamente aclarado e que aintrusão não voltaria a repetir-se.

Embora devesse ficar tranquilizada corn osucesso da ação junto à autoridade, Isabellacontinuava experimentando estranho martírioíntimo, insopitável receio. As noites se lhe tornaramtormentosas, inquiétantes. Quando mergulhava nosono sentia-se vítima de dolorosos pesadelos,despertando abruptamente, coberta de suor. Tornou-se inapetente e diante da filha era tomada por

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continuas crises de pranto, que não podia controlar.Uma semana após o incidente, a bela mulher

estava desfigurada. A filha, por sua vez, a fim dedistraí-la, convidava-a a passear pelos arredores, e,na idade da tagarelice, buscava apagar as impressõesdolorosas que insistiam em afligi-la.

O amor possui incomparáveis e ignorados dons.As orações do afeto, proferidas por Carmine e ossorrisos de Béatrice, com a esponja do tempoconseguiram leni-la, fazendo-a esquecer, ou pelomenos deixar de valorizar o dissabor. Todos no larcooperavam para que a paz voltasse à senhora,infundindo-lhe confiança, inspirando-lhe alegria.

Ao cair das tardes seguintes, ora na carruagemaberta, ora a pé, mãe e filha passaram a jornadearalém da porta de entrada da Vilia, buscando asbelezas crepusculares, enriquecendo-se dapaisagem, espairecendo, atendidas pelo velho pastorque, diga-se de relance, não suportava mais aslongas marchas, e por uma que outra serva. Isabella,no aconchego da filha, se foi recobrando do choquesofrido. Não, porém, de todo. Surpreendia-se comfrequência pensando no jovem; revendo-lhe os olhose a cabeleira loura, sedosa, anelada, percutiam-lhenos ouvidos da alma os ecos daquela voz cativante enervosa. Sabia-o muito jovem, e por isso não lhecompreendia o interesse. Não se encorajava aconfessar os intimos pensamentos ao sacerdote,

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procurando conselhos, porquanto ela própria não ospodia definir. Complexas, perturbadoras, confusasideias atormentavam-na. Momentos lhe acudiam emque desejava revê-lo... Inquietava-se então aindamais, esforçando-se por expulsar a lembrança elibertar-se da perversa reminiscência.

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Como nenhum outro fato desagradável tornassea ocorrer nas semanas subsequentes, relativa calmapassou a reinar na herdade e o incidente ficouesquecido.

Mãe e filha, então descontraídas, entregaram-seàs tarefas normais e às excursões renovadoras,enquanto a tranquilidade antiga retornava.

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8TRAMANEFASTAEDESGRAÇAIMINENTE

Como prometera, naquela mesma noite oGovernador solicitou a presença de Gluliano eadmoestou-o acremente. Reprochou-lhe ocomportamento, ameaçando notificar César quantoao problema que se lhe figurava de graveimportância e podería tomar corpo, face à adesãoprovável das demais Casas de Faenza à consideradaviúva Isabella de Lunardi.

Fê-lo examinar o seu atrevimento, tendo em vistaa atitude por meio da qual violara as sagradas regrasda hospedagem dispensada às visitas, ali muitoconsideradas e tidas como questão de honra, e, semdelongas, proibiu-o de voltar àquelas terras ou tentarperturbar a dama, recatada, benquista e admirávelpagadora dos impostos e tributos, fato que acolocava em destaque ante as autoridades locais e asde Roma.

O moço, aturdido e profundamente mortificado,buscou recalcar temporariamente as ilusões que setransformavam em alucinação irreversível, enquantorefletia sobre o processo mais eficaz de realizarquanto antes o desforço às humilhações de que seconsiderava vítima.

Intoxicado pelas dissipações, as coisas se lheafiguravam conforme as medidas da licenciosidade

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que se permitia e aos demais.Renascido no corpo para liberar-se de velhas

tramas Infelizes em que se enredara, apesar desolicitado, pela nobreza da senhora, a reflexõessuperiores, na sua desídia mais se facultava rebelar,transformando amor-próprio ferido em surdaanimosidade.

Semelhando-se ao ofídio que espreita a vítimainerme que avança na sua direção, o reggiano passoua vigiar com ferocidade a movimentação no burgodos Lunardi, colocando como objetivo de suafelicidade a paixão desconcertante para a qualtransferiu as aspirações e ansiedades.

Assim, pela insistente observação, a regulardistancia da Casa, no cume de um cerro arborizado,inteirou-se dos frequentes passeios da familia nahora crepuscular, pelos campos imensos ao redor daherdade.

Espicaçado pelos propósitos inferiores que sedesenvolviam num crescendo, planeou e pôs empaulatina execução uma tática especial, que supunhainfalível.

Dirigindo-se a Parma, sob pretexto defiscalização, em nome de César, lá conseguiucontratar dois jovens mercenários de origemespanhola, sob a justificativa de, ele próprio, ter avida defendida, em considerando a missão de quefora incumbido em Faenza e, extraordinariamente,

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nas cidades circunjacentes.Uma semana após retomou, agora acolitado

pelos ardentes e ambiciosos guarda-costas,aventureiros, amantes da baderna e da força, aosquais concedia liberdade quase total, por falta demisteres Imediatos, e retornou ao posto de suasobservações crepusculares, enquanto ultimavaplanos e conferia detalhes.

Aqueles dias mornos de agosto atrasavam achegada da noite, que, mesmo vitoriosa, vestia-se decoruscantes estrelas, na transparência da atmosfera.

As passeantes, transcorridos quase dois mesesdo incidente desagradável, de nada suspeitavam,demorando-se cada vez mais e indo mais longe dolar, ante a esplêndida beleza do cair da tarde.

Giuliano, em intimidade com os mercenários,contratados por breve tempo, colocou-os a par dosplanos que elaborava, Informando ser aquele oúnico recurso disponível para lenir uma paixãoavassaladora, e fê-los compreender a importânciaque atribuía ao cometimento para o qual osremunerava.

Obviamente não informara quem seria a vítimado seu abrasamento íntimo, apesar de suasconfidências levianas aos sequazes.

Quando houvesse consumado o programa,acreditava que teria condições de tudo justificar,coroando de felicidade os resultados que

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ambicionava. Embora parecessem surpreendentes osmétodos que utilizava, tais recursos eram habituaisna época e muitos deles se aproveitavam parasatisfazer desejos infelizes.

Preparava-se mentalmente, armando-se até dadisposição de matar, se necessário, caso algumasurpresa viesse dificultar a realização do seu ardil.

Familiarizando os sicários com a região, demodo a que se pudessem evadir sem problemas,logo que isso se tornasse Imperioso, alugouagradável e solitária Vilia fora da cidade, ondedesejava concluir a trama em desdobramento elograr a ventura que lhe parecia justa.

A casa, cercada de pomar exuberante, espiava apradaria a escorrer na direção do nascente, semprerenovada pelas cores cambiantes da luz do dia.

Esperava poder construir naqueles sítios afelicidade definitiva, caso os deuses não lhenegassem a dita incessante. Acreditava, sem dúvida,nos resultados ditosos da urdidura cuidadosamenteplanejada.

Fazendo-se acompanhar dos moços, prontospara qualquer urgência, Giuliano escolheu a ocasiãoem que mãe e filha saíram de carruagem,desacompanhadas, sem os servos e sem o sacerdote,tão seguras se sentiam nos seus bucólicos recreios,embora aqueles fossem dias maus.

Quando as vislumbrou desguarnecidas,

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indefesas, afastou-se pela via sinuosa, na direção dosmontículos próximos, deu-lhes tempo, e seguindo-as, com os sequazes, surpreendeu-as quando járetornavam, álacres, joviais...

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Ostentando meias-máscaras, qual faziam osbandoleiros comuns, bandidos que também o eram,acercaram-se da pequena carruagem aberta,dominaram os animais e as ameaçaram.— Nada vos acontecerá — disse o bandido, com a

voz embargada pela emotividade incontrolável —se fordes dóceis e vos resolverdes a obedecer.

A distinta senhora fez-se lívida, estupidificadaante a ordem, enquanto Béatrice desfalecia. A mãeprocurou socorrê-la, enquanto um dos sequazestomou das rédeas do veículo, após atar o seu animalà parte ulterior do carro, e, estimulado pelo senhor,disparou, a toda a brida, com a condessa e a filhavencidas pela surpresa infeliz, deixando espessacamada de pó pela estrada.

A noite se abatera totalmente quando alcançarama Vilia.

No momento da chegada, a senhora, estimuladapor estranho vigor, recusou-se a descer, indagandode que se tratava: se de um sequestro para extorsãode dinheiro ou de quê.— Ser-vos-á aclarado logo mais — retrucou o artista

do alaúde, convertido em salteador — e de vósdependerá a imediata ou a difícil solução doproblema. Nenhum mal vos acontecerá, a ambas,exceto se vos rebelardes.

Ouvindo novamente aquela voz de entonaçãoarrogante, a condessa reconheceu-a, agora que se

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sentia mais revigorada, não obstante possuída dehorror.

A necessidade de defender a filha conferiu-lhe,no entanto, surpreendente força moral para a luta,mesmo com a perda da vida física, se preciso.— Dizei o que desejais, antes que a nossa falta seja

percebida e em minha casa se estabeleça umalarme geral.

— Não haverá como vos encontrarem, porquantoaqui poderemos mesmo ser sepultados sem que ocrime venha a ser conhecido... Entrai! Nãodiscutamos inutilmente, retardando soluções quede vós somente dependem.

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Isabella, apoiando a filha, mal conseguiasustentar-se a si mesma. Tremor angustianteassaltava-a, face à crescente premonição de iminentetragédia. Toda ela se transformava em um servencido. E junto à filha semidesfalecida, que searrastava lamentosamente, foi ajudada por um dosasseclas de Giuliano, até ampla sala, após o hali deentrada.

A carruagem, com as alimárias, foi conduzida devolta ao local do sequestro e ali deixada, a fim deocultar possíveis pistas, dificultando o aclaramentoda ocorrência.

Conduzindo as vítimas à parte inferior da casa,que arranjara com certo cuidado, deixou-as emcárcere privado, sem maiores esclarecimentos,prometendo retornar no dia imediato para aelucidação necessária.

Sobre velha cômoda estavam frutos, uma bilhadágua, o indispensável para uma noite de repouso,se possível fosse, em tais circunstâncias, repousar.

Grossas velas ardiam naquele local de difícilaeração, adrede escolhido para evitar a bisbilhoticedos passantes, donde não se ouviríam gritos ouimprecações.

Isabella, percebendo que o seu verdugo sedispunha a sair, deixando-as prisioneiras, arremeteu,tresloucada, e agrediu-o, em estranha, violenta crisede ódio e lágrimas.

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Mais estimulado, ante o desespero da damacobiçada, o moço segurou-a, defendendo-se dosgolpes desordenados, e assegurou, dominador:— Haverá tempo, minha corça... Acalmar-vos-ei...

Não se despreza nem se ofende um homem,quando ele ama! Amanhã regularizaremos tudo.Dormi. Asserenai-vos. Ninguém vos importunará,eu vos afianço. Repousai e tende calma, a fim dealcançarmos resultados felizes para todos.

— Mamãe! Mamãe! — suplicou, quase sem forças,Béatrice. — Venha para cá, mamãe. Esperemos!

— Apelo ajuizado, menina — retrucou o mascarado.— Dormi em paz, enquanto ultimo providências.

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Fechou a porta a chave e as prisioneiras ouviramos passos das botas nas lajes, desaparecendo nadistância...*

Ante a ausência do inimigo e o silêncioassustador que se abateu sobre o cômodo em que seencontravam, as infelizes vítimas da trama hediondaabraçaram-se e prorromperam em desordenadopranto. Somente então se davam inteira conta dadesventura que as surpreendia, som- breando de dore luto as suas mais auspiciosas esperanças.— Não pode ser real, Senhor Deus! — imprecava

Isabella: Não é possível! Este pesadelo passarádepressa e despertaremos em nossa casa. SenhorDeus, Senhor Deus, que fizemos?!

Agachada, qual pequenino animal que buscaamparo, Béatrice tinha as pupilas dilatadas e tremiadescontroladamente. A cena do assalto era repassadana tela mental, sem cessar. O pavor crescentetransformou-se em chispa de ódio, e como se fossevítima de uma alucinação, teve a visão de Giuliano àporta.

Incontinenti, desembaraçou-se dos braçosmaternos, atirou-se contra a porta de velho carvalho,fechada, e blasfemando golpeou-a, repetidas vezes,ferindo-se e arrancando os cabelos.

Só a custo a genitora conseguiu acalmá-la,reconduzindo-a ao leito e acalentando-a com a

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esperança.— Deve tratar-se de sequestro para resgate —

afiançou, desejosa de crê-lo. — Pagaremos a somaque for exigida e tudo se normalizará. Depois,passadas estas horas, iremos para a Capital e tudoficará esquecido...

No íntimo, todavia, experimentava o recrudescerdos maus presságios que a assaltavam antes.Pensava no capataz, no frade, nos servos e tutelados,banhando a face com grossas lágrimas.

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— Eu conheço, filha — disse vagarosamente —, osalteador. É o bandido que esteve em nossa casa háquase dois meses, recorda-se? Identifiquei-lhe a voz,reconheci os olhos do cobarde folgazão.Resgataremos nossa liberdade e lutaremos porjustiça.

Enquanto tentava tranquilizar a filha e aquietar-se intimamente, a condessa, que por processo ignotosentia conhecer o vândalo, esperava comprar a sua ea libertação de Béatrice, custasse a soma que fosse ede que imediatamente pudesse dispor.

A pouco e pouco, amolentadas pelas emoçõesdescontroladas, foram vencidas pelo cansaço,mergulhando em fundo abatimento, enquanto anoite avançava na direção do novo dia.*

Tommaso foi o primeiro a preocupar-se com ademora da condessa e de sua filha.

Inquietando-se, mandou preparar um animal esaiu a procurá-las, em crescente aflição. Assomavam-lhe à mente incoercíveis angústias e, tomado pordolorosa apreensão, refez o caminho habitual poronde passeavam as damas, sem lograr encontrá-las.

Autoculpando-se por deixá-las sair semcompanhia, o velho servidor ameaçava tomaratitudes drásticas, se por acaso algum sucesso infelizhouvera acontecido.

Na Vilia Lunardi o alvoroço se fez geral.

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Tocheiros ardentes, matilha colocada no pátiointerno, servos em correria e alvoroço, sob ocomando de Frei Carmine, aguardavam o retorno doadministrador para darem início às buscas. Tudoindicava que superlativa desgraça surpreendera asenhora e a filha.

Tommaso imediatamente despachou ummensageiro à cidade, a fim de notificar a Guarda doGovernador e suplicar-lhe urgente ajuda, o mesmofazendo em relação às famílias das redondezas.Depois, dividiu os fâmulos, ajudantes e posseiros,em grupos, e mandou-os proceder a minuciosabatida pelos arredores, enquanto chegavam osreforços.

O Conde de Lunardi sempre recusara mantersoldadesca ociosa em casa, aguardandoacontecimentos infelizes. Acreditava no valor moraldo homem, e, pautando os atos nas linhas austerasdos deveres, não duvidava de ninguém, senãoquando os fatos atestavam a indignidade e odemérito daquele em quem depunha confiança.

As turmas, em grupos, a pé ou a cavalo,espalharam- -se em todas as direções, empunhandoarchotes e gritando pelas desaparecidas, enquantoTommaso, em extremos de ira, jurava intimamentenão mais repousar enquanto não esclarecesse oocorrido e se vingasse dos culpados. Esbravejava,imprecava e dava ordens aqui e ali.

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Frei Carmine, que a tudo acompanhava em segeaberta, em razão da idade avançada, que não maislhe permitia fácil movimentação, tomava parte nogrupo capitaneado por Tommaso, que seguia aestrada real, entre a herdade e a cidade, daliseguindo cavaleiros a Forli, Lugo e Imola, paranotificarem as autoridades locais e ofereceremprêmios, em dinheiro, por qualquer informação quepudesse conduzir às pessoas procuradas, estivessemelas vivas ou mortas.

Passava da meia-noite quando chegaram asprimeiras autoridades à Vilia, ao mesmo tempo emque o grupo de Tommaso retornava com a carruagemencontrada a esmo, na via de Forli, com os animais apastar... Ficou claro que se tratava de rapto, pois nãohavia sinais que denunciassem homicídio ou outrotipo de crime. O capitão da guarda sugeriu, então,que se aguardasse a manhã, para um trabalho dedevassa pelos sítios circunjacentes, porquanto, nasua opinião, ambas haviam sido vítimas deinesperado assalto, devendo estar com vida, queseria negociada a pesado tributo financeiro.Convinha, portanto, esperar...

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Cansados, os demais grupos tambémretornaram, sem melhores noticias.

O sacerdote mandou abrir o templo e a longavigília de espera, entre orações, jaculatórias erecitativos, teve início, na voz cansada e lacrimosa dehomens e mulheres humildes, que as consideravammortas, lamentando o lu- tuoso acontecimento.

Homens armados e proprietários das cercanias,em solidariedade prestimosa, acorreram ao solar e seuniram ao grupo policial, oferecendo serviços.

O dia amanheceu brumoso, já abafado esombrio, com prognósticos pouco animadores.

De faces esfogueadas, os olhos traduzindo aalma ferida, Tommaso era o espectro da dor. FreiCarmine, em quem a fé era chama crépitante, nãoocultava os seus receios e a desesperança tomava osespíritos em agonia...*

Infâmias que tais, mesmo quando os seusautores conseguem permanecer incógnitos, nãoescapam à Divina Justiça. Insculpindo a ferro embrasa, na consciência, as calamidades perpetradas,seus hediondos executores podem anestesiar-se naembriaguez do cinismo e do disfarce, caminhandoentre os homens, sem que deles se desconfie, nunca,porém, deixarão de resgatar os crimes que ocultam.

Quais flores do pântano, acabam sempre seerguendo do fundo da inconsciência, em que

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esperavam sepultar seus delitos, que assomam, emroxas marcas lepromatosas, até que se lhes esgotemos resíduos pútridos.*

Filhos da Terra!Antes que culmineis desatinos ou que vos

acumplicieis com a criminalidade, estugai o passo,meditai! De que vos valerão algumas horas deloucura e vão desforço, em troca

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de séculos de dor?! O erro macula os que lhe sãoservis. As pseudovitórias decorrentes da Infâmia, datraição, e das conquistas indébitas, convertem-se emlabirintos de sombra e dor, que se há de percorrerinelutavelmente. Nos dédalos da consciênciaultrajada pelo crime a felicidade não reluz, nemsequer aparece qualquer salvador fio de Ariadne, quenão seja o da justa reparação do mal perpetrado.Praticado o erro, consuma-se a auto-sentença,mediante a qual a paz se vê banida do espíritoculpado e a harmonia do amor cede lugar àstormentas.

Bendizei a cruz, vós que ora caminhaisfustigados pelo desconforto, pela soledade ou sob osvendavais da aflição!

Agradecei a dor retificadora e ponde o azeite daesperança na vossa lâmpada de resignação, para ademorada vigília reparadora!

Hoje, sofrendo, resgatais torpes cometimentosque olvidastes, mas que não estão mortos na vossaconsciência espiritual, nem ignorados pelo DivinoEstatuto!

Não invejeis, à socapa, a dita alheia, nemdesejeis mudar miraculosamente, ou por mercê decondenáveis métodos, a posição que ora desfrutais!

Enxugai as lágrimas e velai no altar dareabilitação!

Vosso pranto atual tem nascente nas lágrimas

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que fizestes outros verterem e que agora vos chegamde retorno.

... Simultaneamente, há os que sorriem e sãoapenas espectros mascarados, no palco das diversõesalucinadas. Fugindo à responsabilidade, avançampor sítios em que deambulastes e de cujasrecordações inditosas gostaríeis de vos libertar...

Se lhes falardes, porém, das lúridas heranças quede lá trazeis, zombarão, tachando-vos deatoleimados religiosos ou mesmo de esquizóldes.

Orai por eles, quanto por vós mesmos, osaliciadores da desonra, os capitães da iniquidade, eaprendei com a mansuétude do Filho de Deus amaravilhosa lição da felicidade sem jaça, da alegriasem mescla, da paz sem receio. ..

Do tumulto que desgoverna o mundo, cultivai aponderação, refletindo antes de vos atirardes aofosso da perversão ou dos agravos de reparaçãopenosa.

O sorriso de um minuto não vale as lágrimas dashoras sem conta que afligem a consciência emdesperta- mento.

Antes, portanto, da agressão criminosa, daconsumação da vindita, pensai!

Recordai o Justo sem débito, na cruz das misériashumanas, e imitai-O!

Houve ressurreição e glória, porque existiramCalvário e crucificação, traição e abandono... Não

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esqueçais!Os que transpusemos a porta do túmulo, em vos

asseverando estes conceitos, somos as personagensvivas dos dramas que a sepultura não apagou.

Se vos falamos, é porque desejamos a vossafelicidade.

Crede e esperai, confiantes no amor do NossoPai!*

Deixando as prisioneiras no lôbrego local quelhes reservara, Giuliano dirigiu-se com os asseclas àcidade, fazendo-se notar no grupo da soldadesca, nataverna que frequentava e no Palácio do Governo,engendrando álibi que o liberasse das suspeitasimediatas, assim que chegassem as alarmantesnotícias do desaparecimento das proprietárias daherdade Lunardi.

Exteriorizando grande júbilo entre os amigos,graças às circunstâncias da empresa, que lheprometia êxito, deixou-se permanecer entre osgrupos ociosos, até quando o mensageiro deTommaso alcançou o palácio governamental.

A notícia ganhou logo as ruas, como rastilho depólvora a arder...

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Giuliano e os seus assalariados foram dosprimeiros a apresentar-se para ajudar na busca,dissipando, com essa atitude, possíveis suspeitas.

Quando o capitão alcançou o pequeno condado,os assaltantes faziam-se membros da justiça, emescabroso arremedo de solidariedade, com que, noentanto, não fugiriam de si mesmos, oportunamente,quando se lhes despertasse a consciência.

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9CRIME,SURPRESAELOUCURA

O ar pesado, no cômodo que Giuliano prepararacom certo esmero, para transformar em cela deprisioneiras, asfixiava, e fosse pelo estrugir dasemoções desconexas ou pelo tempo desagradável,Isabella 'e Béatrice sofriam as tenazes do martírio,exsudando abundantemente.

A fadiga natural que as abatia não conseguira,todavia, conceder-lhes o lenitivo do repouso. Antes,produzia-lhes invencível mal-estar, como setransitassem, sobressalta- das, em sombria esfera desonho aterrador.

Esforçando-se por vencer a depressão que avitimava, a condessa logrou, com muito esforço,superar a prostração, de modo a coordenar as ideias,ajustando as peças desconhecidas daquele sórdidoacontecimento.

Que desejaria, afinal, da sua fragilidade, oestranho moço louro? Na reclusão voluntária a quese entregava, desde a desencarnação do esposo, nãovoltara a aspirar a outro que não fosse o desejo defelicitar a filha, favorecendo-a com a paz que elamesma sempre desejara fruir. Qual o sortilégio quecolocava aquele estranho, repentinamente surgido,no caminho da sua dorida existência? Nãoexperimentara da vida senão esperanças que sedesvaneceram e alegrias que se esfumaram. Poucos e

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reduzidos foram os seus períodos de ventura —como se a ventura pertencesse à Terra! —, sempresuperados por doridas cargas de inquietação e medo.Esse monstro insaciável, o medo, sempre seimiscuíra nas suas apreensões, cravando-lhe afiadasgarras, e ela conhecia de perto o abandono, odesprezo, a miséria de vária ordem...

Olhando Béatrice, que parecia envolta empesadelo e se movimentava, inquieta, na mornaprostração que a derreara, não pôde sopltar aslágrimas. Não era, porém, o choro convulso queexpele a lava vulcânica do espírito em ebulição. Eramas vertentes do sofrimento profundo, externando amágoa inominável e o receio incoercível decorrentesda incerteza e da fragilidade de que se sentiapossuída. Que aconteceria à filha adorada, caso omóvel do rapto não fosse o resgate, qual pensava?Não temia pela própria vida, antes receava pelo quepoderia acontecer à filha. A incompreensão do queestava ocorrendo constituía- -lhe superlativaangústia.

Pelo milagre das evocações, Isabella recordououtra amarga circunstância passada, quandopadecera o tridente da suspeita e do banimento dolar, semimorta, pela crueldade de que fora vítima, eDeus, o Pai Onipotente, lhe colocara no roteiro aabnegação do frade agostiniano, que a livrara doesquife para onde a sombra da morte a conduzia,

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ajudando-a a recomeçar, a refazer a trilha.Sim — pensou com inesperado alívio —, o

Senhor nunca abandona quem nEle confia e se Lheentrega com devoção. (Pobre mulher, ingênua, nasávidas mãos da impiedade, jornadeira de pretéritoterrível, que lhe cumpria ressarcir sob a coroa domartírio!) Assim, com expressiva unção, ajoelhou-see mergulhou o pensamento azorragado nas águasbalsâmicas da oração.

Oh! o refrigério imediato da prece! Orar é alçar-se à paz, librando-se acima das torpezas humanas,antegozar as delicias do porvir, embora as cruezas edesmantelos do presente.

Embevecida na comunhão com Deus, dilatou-se-lhe a percepção psíquica, quando buscava sintoniasuperior (logo rompendo os condicionamentosgrosseiros da limitação material, mediante osofrimento sem revolta, que sutiliza as vibrações eeleva o espirito às augustas fontes da ExcelsaMisericórdia), passando a experimentardesconhecido conforto na áspera conjuntura. Teve,então, a sensação de um repouso reparador, que lhedominava os sentidos excitados e o corpo exaurido.Não perdeu, no entanto, a consciência.Desconhecidas energias, dantes jamaisexperimentadas, fizeram-na deslocar-se do corpo,facultando-a ver-se a jazer no solo e, ao mesmotempo, movimentar-se no amplo cômodo em que se

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encontrava encarcerada. Aguçando os sentidos, apósa surpresa inicial, percebeu que a débil luz das velasnão dissipava as sombras reinantes, que identificou,em breves momentos, povoadas de seresturbulentos, blasfemos e repulsivos, que acusavam aela e à filha, com ditos mordazes e expressõesferinas, parecendo dispostos a agredi-las.

Antes, porém, que o terror a imobilizasse, suave,diáfana claridade emergiu da treva, assustando eafastando os pérfidos fantasmas. Envolvida pelaexteriorização luminosa, renovou-se-lhe o ânimo.Não se refizera ainda do assombro, quando viucorporificar-se sublime personagem feminina, aconduzir o austero Conde Lunardi, cuja presença deimediato lhe infundiu confiança e paz.

Sem compreender o fenômeno mediúnico a sedesdobrar, arrojou-se, emocionada, aos braçosfraternos e amorosos do esposo desencarnado eprorrompeu em soluços comovedores.

A Entidade, consternada, mas vigorosamentesustentada pelo Guia Espiritual que a conduzia,envolveu Isabella em expressivo amplexo de ternurarestauradora e expôs-lhe com meiga, porém seguraInflexão de voz:

— É chegado o momento de sorver o cálice defel, em testemunho reparador, que não podestransferir.

“Aquilato as rudes aflições que te vergastam,

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submetendo tuas frágeis forças ao relho darecuperação que rogaste, para a edificação dosantuário de amor a que te dedicarás no futuro.’’

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Enquanto lhe falava, com entonação decomovedor afeto, acariciava-a, reclinada que estavano seu regaço protetor. Isabella experimentavaconfortador refrigério, que a lenia.— A vida se desdobra — prosseguiu o esposo

desencarnado — em sucessivos elos na corrente daevolução. Interrompe-se uma etapa, a fim deiniciar-se outra. A morte, à semelhança da sementeque se despedaça para germinar, é vida que sedesenlaça, compensadora. Além da sepultura asdores dos que sofrem desaparecem e as incertezasse convertem em segurança. Indispensável saberenfrentar as rudes provações, de modo a saldar ospesados tributos de sombra e desarmonia de quese foi causador.

“Não receies o testemunho rigoroso que logo tealcançará. .. É imperioso que a gema preciosa sofra aação do buril que a lapidará, para poder refletir apujança da luz e irisar-se. O mesmo sucede aoespírito: necessita sofrer a lapidação moral, a fim delimpar-se de quaisquer nódoas, sublimando-se pelarenúncia e pelo amor, para ascender no rumo dabem-aventurança.

“Não te agastes com o atual agressor da tua paz,que ressurge da noite do tempo, transformado emarbitrário comensal da loucura, para fazê-las expiar omal de outrora... Enquanto emerges na direção daliberdade, ele imerge nos sórdidos fossos da sombra

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e da agonia de longo curso..Fazendo uma pausa oportuna, de modo a

facultar melhor entendimento a Isabella, não afeita acolóquios de tal magnitude, o consorte, afável,prosseguiu:— A oração a que recorreste foi a ponte feliz para o

nosso reencontro. É necessário esvaziar de ira oespírito, para repletá-lo de harmonia, e, nessesentido, a prece é o filtro sublime para operaçõesdesse gênero. Permanece, portanto, apesar danatural angústia que continuará a lacerar-te ainda,por um pouco, rogando auxílio à celeste proteção,a fim de que não se interrompa o intercâmbio

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que a partir de agora encetamos e continuará... Nãoestarás sozinha na expiação. Ninguém caminha aoabandono, mesmo que aparentemente esteja só. Asvitimas se alam para a luz, guiadas pelos EspíritosFelizes, e os algozes se rendem à sombra ululante,jungidos às mentes escabrosas que os comandam...Estaremos a teu lado, sustentando-te e dando-tecoragem em cada lance, até o momento capital, parao qual necessitas de forças redobradas...

Singularmente emocionada, ela o fitou,martirizada.— E Béatrice, nossa filha?! — arguiu, com tênue fio

de voz. — Que acontecerá à nossa menina?— Deus proverá — redarguiu, sem ocultar a emoção

que também o visitava —, arregimentandorecursos salvadores, no momento azado. Estáestabelecido que ela sobreviverá. .. Diverso é oseu rumo de aflição. Depois de tudo consumado,velaremos por ela e a ampararemos pelos sítiospor onde seguirão seus pés cansados e sua almasequiosa de redenção...

— Ajudai-me, doce companheiro — externou,comovedoramente —, na travessia do vale dasombra e da morte. Tenho tanto medo!

— Nada receies! — retrucou, sereno. — Não se pagauma dívida além dos limites do débito contraído.Ninguém é compelido a carregar um fardosuperior às próprias forças ou constrangido a

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sofrer senão a dor que corrige, disciplina e liberta.Portanto, não temas. A hora que se aproxima é demagnitude definitiva para todos nós. JesusCrucificado é o mesmo Amigo dos pescadoressofridos de Genesaré e das mulheres desoladas daGalileia... dEle não ouvimos nenhuma queixa,nenhuma revolta, embora as circunstânciaspenosas do seu martírio... Pensa nEle e ergue-te aEle, entregando-te com mansa submissão...

Nova pausa, e o visitante imortal concluiu:— É claro que não se fazia imperioso que fossem

essas as condições para o teu resgate, que de certomodo é meu também. Há outros meios deredenção de que se utiliza a

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Lei Divina, sem a interferência humana... Noentanto, como cada um é livre para agir, Giuliano,enceguecido e tresloucado, coloca-se na infelizcondição que o fará purgar, em longo cativeiro, aprecipitação e a insensatez destes momentos...Oremos por ele, quanto por nós próprios. ..

“Também eu só agora estou informado de taiselucidações sobre o mistério da vida.

“Nada mais te posso esclarecer, porquanto nãotenho melhores informações. Bom ânimo! Agora,repousa em paz, a fim de despertares na realidadeque logo advirá...

“Espero-te! Confia!”Delicioso refazimento fê-la perder o medo, e

aconchegando-se mais ao tórax do esposodesencarnado, mergulhou em repousante quietação.

As Entidades visitadoras, representando aresposta divina à angústia humana, tomaram Isabellae a filha, em parcial desdobramento pelo sono, e asconduziram à estância de paz espiritual, de modo asustentá-las para os lances vindouros, que se faziamister sofressem, resgatando débitos cármicos deantanho.*

Face à inquietação de que Béatrice dava mostras,Isabella despertou, com a manhã entrando pelasfrestas da porta, no cárcere em que se encontravam.

Sentia, não obstante as dúlcidas vibrações que a

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percorriam interiormente, o ambiente asfixiante,impregnado do odor da cera e do fumo das velas, norecinto fechado, sem correntes de ar renovadoras...

Béatrice acordou estremunhada, retratando naface o desgaste físico e o abatimento moral que avenciam. Debilitada pelos tormentos que lheirromperam inesperadamente, transformara-se numespectro aparvalhado, minada nas suas melhoresenergias, como que sugadas pela ulceração interior.

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Sem dar-se conta realmente de tudo o queocorria, recebeu da ternura materna a exteriorizaçãoda mansuétude e da coragem, hauridas durante otranse espiritual que vivera. Ao influxo maternoasserenou-se e, apesar de esgotada, passou aexperimentar alguma tranquilidade, ante a firmeza eserenidade da genitora que a animava com extremosde amor.

Assim estimulada, procedeu à sua higienecorporal e, amparada pela devoção materna,alimentou-se frugalmente com os frutos ali deixadospelo usurpador da sua liberdade.— Tudo logo estará terminado — animou-a Isabella.

— As circunstâncias más surpreendem todos osque transitam pela Terra, minha filha. A felicidadenão são apenas os sorrisos, a saúde, as concessõesda fortuna; são também a forma como se encaramos infortúnios, os desenganos, as aflições.

Sentindo-se inspirada e impulsionada para armara filha, ante as ocorrências porvindouras que se lheafiguravam trágicas, recompôs a voz e continuou emcolóquio de afetividade:— Não devemos valorizar demasiadamente as coisas

infelizes que nos ocorrem.“A ventura, como a desgraça, tem o valor que se

lhe dá. Quando sabemos valorizar as rosas,respeitamos os espinhos que as preservam dasagressões. Por isso, convém que nos preparemos

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para todas as circunstâncias da vida.“Sempre estaremos juntas pelo amor que nos

une. A aflição que nos martiriza não conseguiráaniquilar-nos. E se for necessário que eu morra paraque você sobreviva, isso será para mim o mais altogalardão da vida.” (Isabella estava transfigurada pordiáfana claridade que a envolvia.)— Mamãe! — exclamou a jovem, recobrando alento.

— Não me atemorize. Você é a força vital que mesustenta, o sol que me ilumina. Não percebe quetudo quanto lhe

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ocorrer, a mim própria sucederá? Se algo lheacontecer, eu a seguirei ao túmulo...— Cale-se, filhinha, e não blasfeme. O suicídio é

ultraje sem reparação, contra a Divindade. Bem seique nada nos acontecerá; todavia, sempre desejeifalar-lhe sobre essa importante questão, e como omomento nos incita a reflexões mais profundas,não posso adiar o velho anelo... Gostaria de rogar-lhe que, se me acontecer algo fatal, você se faça achefe do nosso clã, a lembrança ditosa da nossapassagem terrena: minha e de seu pai,prosseguindo a prodigalizar justiça e bondade,ornando o seu espírito com legítimos laureis.

E refletindo nos momentos que viviam,continuou, com segurança e fé:— O crime não pode destruir em nós os ideais da

justiça; a mentira não tem credenciais parasombrear a verdade; a traição não é capaz defazer-nos descrer da lealdade; a infâmia nãoconsegue que menosprezemos os valores daconfiança que nos devemos uns aos outros... Estasnão são palavras deste momento, minha filha!Resultam de maduros diálogos com o nossopastor Carmine, que a esta hora deve estarsofrendo tanto quanto nós, e que me afluem àmente, fáceis e lúcidas, como auxílio divino paraenxugar o pranto abundante que nasce em nossoscorações lanceados... Persevere, haja o que

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houver, nos firmes ideais que lhe foraminfundidos no lar, no Convento e em toda parteonde você tem vivido, porque a vitória do bemresulta da supremacia do amor, em todas asvicissitudes. ..

Enquanto falava, com blandícia na voz, o condedesencarnado e os Espíritos Protetores ali presentesministravam-lhes a terapêutica do passe, a fim de quea moça gravasse no imo dalma aquele colóquio, quedeveria ser inesquecível.

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— Nunca nos separaremos, minha santa mãe! —contestou a jovem, em choro sofrido, masresignado.

— Eu sei, minha filha, eu sei! — anuiu a genitora. —A vida, porém, nem sempre transcorre conforme onosso desejo. Quem poderia prognosticar-nosontem as dores que ora nos cruciam, enquantocorríamos felizes pela várzea, sob as luzes datarde esfogueada? Entretanto...

"O amanhã, pela mesma forma, é imprevisível.“Minha menina agora amadurece. A Idade física

não é o mais importante na complexa conquista dasabedoria e da madureza. (Deu à voz diferenteinflexão.) Pouco mais idosa do que você, por meuturno, fui impulsionada a experiências amaríssimas esobrevivi, apreendendo de chofre, em pouco tempo,o que muitos não logram em sucessivos anos deaprendizagem... Agora, chega, da mesma forma, asua vez, e assim será, sucessivamente, enquanto “oamor não abraçar todos os homens como irmãos”,como afiança o nosso confessor.”

A conversa, em modulação de despedida e com aforça da coragem advinda da Esfera Espiritual,alongou-se como uma pausa na trama inditosa emdesenvolvimento.

No entanto, sem fim são os minutos da amargurae Indescritíveis as emoções de quem aguarda oimprevisível. Tempo e espaço ali pareciam eternizar-

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se, num infinito de expressões e sensaçõesintraduzíveis...

Envolvidas pelas vibrações poderosas daEspiritualidade, mãe e filha esperaram, sob aconstrição da incerteza, os acontecimentosporvindouros.*

Antes que o dia se firmasse, aos primeirosclarões da alva, grupos armados, com matilhasadestradas, como em preparativos de caça, sob aorientação do capitão da guarda, foram distribuídospela região.

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Giuliano, com os asseclas que se apresentaram,desde que a notícia tomou de surpresa a cidade, nãopôde libertar-se da franca animosidade de Tommaso,que o encarou fria e colericamente, acusando-o depossível autor do rapto, por ter sido a única pessoa ahaver criado problemas naquela Casa. O bandido,hábil no disfarce, desafiou o opositor a prová-lo ouenfrentá-lo naquele momento mesmo, quandoesperava lavar a honra, maculada pela crua suspeita.

A interferência de prestimosos circunstantesimpediu nova desgraça. Todavia, a instâncias doadministrador e do sacerdote, os serviços do reggianoe o de seus assessores foram dispensados.

Nada podendo fazer, os jovens retornaram àcidade e, após algumas rodadas de bebidas, numatasca, buscaram o leito. Giuliano, porém, estimuladopela crescente ansiedade, aguardou no leito achegada da noite para retornar à Vilia, sequioso deconsumar o plano hediondo que o desgovernava.

Enquanto isso, todos os sítios, nos arredores deFaenza, eram vasculhados, e nenhuma explicaçãoparecia válida, exceto a do rapto bem trabalhado, porvingança ou para resgate mediante elevada soma...

Todos estavam aturdidos.Ao cair da tarde e com a chegada da noite, sob

fadiga pesada, ninguém possuía qualquer informe,ou pista que esclarecesse o caso.

O desespero tomara conta dos servos da Casa e o

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desânimo já diminuía o ardor dos cavaleiros maisaudaciosos. Falava-se de alguma quadrilhaorganizada que, possivelmente, iniciava com aqueleuma série de perigosos sequestros, contra os quaistodos se deviam acautelar...

Tommaso, porém, insone, mal alimentado e decenho carregado, convocou as pessoas relevantespara uma reunião, a fim de definir providências.Relatou, passo contínuo, o Incidente provocado porGiuliano e a frase que este deitara à saída, odiento,acrescentando que apenas aquele estranho cruzara oportal da Vilia, no último ano. Suas suspeitas sefundamentavam ainda mais, agora, quando eleaparecera, prestimoso, para ajudar, acolitado pelosmarranos estrangeiros, assalariados, de que secercava. Propunha ao capitão submeter osmercenários a rigoroso interrogatório, porquantotinha a certeza de que, com ele, muita luz seprojetaria nas sombras do caso. Aqueles eram osúnicos estranhos que visitavam a cidade,habitualmente calma, e portanto, os suspeitosnaturais, ante os fatos que se desenrolavam.

Frei Carmine concordou com as ponderações deTommaso, opinando fossem tomadas urgentesprovidências, face à premência de tempo, antes daculminação de alguma desventura maior: a morte dasprisioneiras ou a fuga dos assaltantes.

E acrescentava que, meditando, chegara à rude

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conclusão de que o crime fora cometido por alguémque observou os hábitos das vítimas, as suas usançasao entardecer, e que tudo fora consumado desurpresa, porquanto no veículo não se encontraramsinais de luta, nem mesmo as alimárias davammostras de excessivo cansaço, como ocorreria nocaso de uma perseguição.

Os ouvintes concordaram de pronto que semandasse buscar os guarda-costas de Giuliano, demodo a, comprovada a trama, tomar-se atitude contrao legado de César Borgia, e então justiçá-lo, apóssalvar suas vítimas.

O capitão, acompanhado de alguns policiais,volveu à cidade, notificou o Governador sobre asocorrências e, sem qualquer dificuldade, prendeu osestrangeiros, conduzindo- -os, manietados, à Vilia doConde Lunardi.

A noite ia avançada.

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Os ânimos se reacenderam, exaltados, e quandoa escolta chegou, trazendo os prisioneiros, ouviram-se gritos apelando para o linchamento puro esimples, enquanto pedradas zurziram no ar.*

Na trama do desespero, os maus fadosespicaçam suas vitimas e as exaurem a golpes decontínua alucinação, sem conceder-lhes trégua quelhes facilite o discernimento. Aberto o caminho dadesonra e iniciado o mergulho no pélago do ódio,todo impulso se faz no sentido de maiorcomprometimento, em quase irreversíveldesequilíbrio.

Giuliano, telecomandado por infelizesfomentadores da desdita, que o dirigiampsiquicamente, na condição de obsessores odientos,seus e das vítimas que ele retinha, irrompeu deinopino na cela particular, congestionado. Digamossem titubeios: possuído pela lubricidade e vitimadopelos inimigos espirituais que o sitiavam desde hámuito, gélidos adversários que eram da condessa ede sua filha.

Em todo conluio criminoso enredam-se, emtecedura complexa, as mentes dos homens com asdos desditosos espíritos desencarnados que osinfluenciam, às vezes de modo tão seguro que sepode dizer que são estes que comandam aqueles,que sendo algozes, são também vítimas de outras

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miseráveis mãos.Deixara Giuliano que a noite chegasse,

objetivando vencer pelo cansaço a resistência dasvítimas e acautelar- -se para evitar suspeitas.

Quando as mulheres indefesas o viram chegar,não conseguiram dominar-se, abraçando-se sobcompreensível pavor.

Exibindo o sorriso cínico que é o esgar daparanoia, sentou-se em silêncio, possuído de súbitafrieza, tal como um animal feroz que contemplasseas suas vítimas.

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Experimentava com esse gesto a néscia vitória dacobardia sobre a fragilidade que lhe sofria o domíniovingador.

O silêncio era quebrado apenas pelodescompasso da respiração das prisioneiras. Osminutos eram então ilimitada dimensão do tempo,que parecia sem fim.

Seguro do triunfo e dele ufano, falou, medindoas palavras:— Tudo está conforme planejei. Não há por que

temerdes. Esta é uma empresa de paz e não umaluta de destruição. Se concordardes, senhora, comos termos que vos proporei, facilmenteregularizaremos a situação e todos seremosfelizes. Foi este o único recurso de que me pudeutilizar a fim de falar-vos, já que recusastes osmeus pedidos de desculpas, impedindo-mequalquer outra entrevista. Que fazer, então?Quando a estrada está interrompida e se éobrigado a avançar, qualquer caminho éabençoada saída.

Fez uma pausa. Isabella não enunciou qualquerpalavra; nem sequer desprendeu-se da filha que aapertava, tremendo, em vigoroso amplexo, mas, sobo influxo dos benfeitores invisíveis, mantinha-secalma.— Poderia ter sido diferente — prosseguiu —, mas

não o quisestes, senhora. Eu vos amo e vos terei

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por qualquer preço...— Mamãe, que horror! — balbuciou Béatrice,

interrompendo-o.— Acalme-se, minha filha — redarguiu a genitora —,

ouçamo-lo até o fim, para saber o que ele nos querimpor.

— Fácil, Senhora Condessa — apressou-se. —Almejo o vosso amor. Tenho tudo planejado.Ouvi-me: evadir-nos-emos logo mais, aoamanhecer, rumando para Roma, onde nos esperaa felicidade. Disponho de uma carruagem pronta ede dois mercenários que serão a nossa guarda.Ninguém nos alcançará. Sou senhor da situação.Antes que se refaçam do cansaço e da surpresa,estaremos longe.

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César nos receberá e dar-nos-á segurança. Nenhumaembaixada daqui resgatar-vos-á, nem me prenderá,mesmo porque, então já me amareis. Vossa filhapoderá seguir conosco, ou ficar, segundo vosaprouver. Ficando, viremos buscá-la mais tarde, apósapagadas as primeiras impressões destesacontecimentos. Lá disporemos de tudo e sereisrainha...— Arrematada loucura, meu jovem — obtemperou

—, Roma não me seduz, nem os seus recreios e osseus luxos. Sou mulher simples, do povo, emboraguindada a uma situação de destaque epossuidora de um título por herança conjugal.Nada mais. Não vos amo e esforço-me porcompreender-vos, o que, porém, não consigo.Creio-vos enfermo.

— Não me ofendais!— Impossível para mim ofender-vos. Inspirais-me

compaixão.— Não necessito da vossa piedade. Antes exijo o

vosso amor.— Jamais o tereis. Nada me atrai em vós. Enquanto

desabrochais para o viço, eu emurcheço, nadireção do túmulo.

— Quero-vos, assim mesmo. Sereis minha, nem queeu vos tenha de matar. A outro não pertencereis.

— Sois um louco impénitente. Respeitai minha filha,o único, o último amor de minha vida...

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Béatrice, incapaz de suportar o que ocorria edebilitada pelas emoções superlativas, foi acometidade súbita alucinação. Gritando, desprendeu-se doregaço materno, transtornada, arrojando-se contraGiuliano e agredindo-o.

Como um felino, o moço desviou-se, segurou-afurioso e aplicou-lhe nas faces um par de bofetadas,para em seguida esganá-la e atirá-la ao solo.

O sangue jorrou, abundante, pelas narinas damoça, que caiu desmaiada.

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Sacudida por violenta convulsão, ao ver a filhatombada, Isabella arremeteu contra o desgraçado,gritando:— Jamais me tereis. Mil vezes a morte ao vosso

nauseante contacto. Deus fará justiça, bandido!Impossibilitada de atingi-lo, debatia-se nos

braços dele, soluçando. Libertando-semomentaneamente, dobrou- -se sobre a filha quesangrava, tomou-lhe a cabeça ao colo, mas não apôde socorrer porque, em incontrolável desespero,Giuliano arrastou-a para o leito e, golpeando-a,investiu contra a sua honra. Com as forçasredobradas pela insânia, dominava a angustiadamulher que, impossibilitada de livrar-se, choravacompungidamente:— Oh! Deus meu! Salvai-me, meu Deus!— Sereis minha. Ninguém me dá um não,

impunemente. Amo-vos!E batia em Isabella, desesperado e vil.Semivencida na luta desigual, a condessa

desvencilhou-se, num movimento brusco, e dirigiu-se para a filha, que despertava no solo, abraçando-a.

Então, espumando de ira, Giuliano sacou de umpunhal, mediu as duas mulheres à luz das velas, nolusco- -fusco da chama tremeluzente e grunhiu:— Ela é o vosso único e último amor? Pois bem:

retirá-la-ei do meu e do vosso caminho!O rosto congestionado, com um filete sanguíneo

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no canto da boca em rictus, avançou com a armafortemente segura e tentou golpear Béatrice.

Isabella, no entanto, num impulso hercúleo,antepôs- -se, e a lâmina da arma cravou-se-lhe nopeito.

Cego pela ira, o vândalo repetiu o golpe e oinstrumento penetrou reiteradas vezes no colo damulher, que tombou ensanguentada, enquanto afilha, novamente vencida pelo estupor, jazia semsentidos, no solo.

Dando-se conta do que fez, o reggiano,acometido de terrível tremor, dobrou-se e ergueu amulher, que se esvaía em sangue, prorrompendo emincontrolável pranto:

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— Disgraziato, disgraziato! Que fiz eu? Perdonami,perdonami amata! Mia ben amatal Ascoltamil

Isabella, ofegante, descerrou as pálpebras. Osangue lhe descia também pelos lábios. O suorabundante e gelado lhe Inundava a face e o corpodorido. Quase não via nada.

Segurando-a, na loucura que o acometeu,Giuliano viu o trancelim de ouro que ela trazia aopescoço. Pendurada nele, uma joia coruscante erarodeada por pequenas e fulgurantes pedraspreciosas.— Béatrice!... — chamou a moribunda.— Não vos pode ouvir; está sem sentidos.— Não a mateis... Por Deus, eu vos suplico... É

inocente! Necessita viver! Eu, sim, sou pecadora...Resgato os meus erros de mulher...

A voz saía-lhe apagada e rouca.Subitamente Giuliano recordou-se da joia. Sim, a

conhecia.— Quem vos deu o trancelim e a joia, quem? —

perguntou.— O homem... que amei... em Reggio e foi o pai do

meu filho... Bencescu...— Bencescu? (Os olhos quase lhe saíram das órbitas

e a baba pegajosa fez-se-lhe abundante nagarganta túrgida e ressequida.) Sois de Reggio?

— Sim, sou de Reggio...— Vosso nome?

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— Anamaria Ponti...— Aliora, sei la mia mamma!— ?!

— Disseram-me que estáveis morta. Papai... Al!...(Era agora um animal mortalmente ferido.) Sim!...Mandaram matar-me e pensaram consegui-lo! FreiCarmine... encontrando-me à morte, salvou-me...

Conscientizando a terrível realidade, bradou,desesperado:

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— Mamãe!... Mamãe, perdoai-me!— Filho, meu filho!... Eu sentia que vos amava, mas

não sabia como! Fa? frio, meu filho... muito frio...Beatri...

A cabeça pendeu. Estava morta.Giuliano circunvagou o olhar esgazeado e, ato

continuo, tomou da mesma arma e desferiu segundogolpe no próprio coração, caindo ensanguentado aolado do cadáver da mãe e perto da irmã desfalecida.

O quarto asfixiava, e o odor do sangue,misturado ao do fumo das velas, era como o hálito damorte.

Giuliano contava, então, vinte e cinco anos deidade.

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10APRIMAVERAREFLORESCERAOCORAÇÃOOUTRAVEZ

Submetidos os jovens mercenários a rigorosoinquérito, no qual não faltaram agressões e ameaçasde mais rudes métodos, conseguiu-se minudenteconfissão, na qual Giuliano assomava como o realverdugo da Casa infelicitada. Narrando com detalhesa trama de que tomaram parte, terminaram porelucidar que a condessa e sua filha encontravam-sevivas, aprisionadas em Vilia próxima, estando empauta a fuga para aquela ou para a noite imediata.

Ante a narração do odioso plano, os ânimos seexaltaram e, não fosse a intervenção do capitão daguarda, Tommaso teria dado cabo daquelas vidasperniciosas, tal a cólera que o dominouabruptamente.

Incontinenti, os moços foram empurrados paraas alimárias paradas no pátio, e logo se formou umgrupo encolerizado que partiu a galope, guiadopelos estrangeiros. Frei Carmine, sem esconder ainquietação de que se via possuído, correu àcarruagem, que seguiu os cavaleiros.

Crescente angústia assaltava o velho monge,que, não obstante acostumado às vicissitudes,pressentia irreparável desgraça. Enquanto o cochesacolejava pela estrada maltratada, ele procurava orefrigério da oração, sem conseguir, porém, acalmar-

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se suficientemente.Meia hora depois, chegaram à casa que Giuliano

alugara, afastada da estrada real e em sítio discreto,cercada de árvores frondosas.

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Sob vozerio exaltado e imprecações sucessivas,os prisioneiros conduziram o capitão, seus soldados,Tommaso e mais alguns senhores, residentes nosarredores, ao corredor subterrâneo e à câmara ondeas cativas foram deixadas ao anoitecer do diaanterior.

Forçada a velha porta de carvalho, deparou-se acena hedionda: a condessa, morta, estampava nosemblante de cera uma máscara de indescritívelsofrimento. A seu lado, o bandido jazia vitimadopela arma ainda cravada no peito. O sanguecoagulado, em derredor, completava a cena,produzindo náuseas. Um pouco afastada, com oolhar esgazeado e a fisionomia embotada, Béatricedespertava da Inconsciência em que caíra, sem claranoção dos acontecimentos.

Aqueles homens rudes, acostumados a cenasdolorosas, não puderam dominar as lágrimas. Ospróprios empregados de Giuliano, aliciados para orapto, mas que não esperavam tal desfecho, caíramde joelhos. Subitamente o clamor da revolta fez comque Tommaso Investisse contra o cadáver do reggianoe o agredisse a pontapés, numa terrível explosão devandalismo, sendo contido em sua fúria peloscircunstantes. Então, os ódios se voltaram contra oslevianos mercenários.

Nessa hora, esfogueado e suarento, o fradeIrrompeu na câmara da tragédia, e diante do horror

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que quase o fulminou, impôs respeito, ajoelhando-seante os cadáveres e dando início ao ofício pelosmortos. A seguir, tomou Béatrice, com extremadozelo, e ajudado por alguns servos introduziu-a nacarruagem, expedindo ordens para que viesse umacarreta, a fim de trasladar o corpo da SenhoraCondessa Isabella de Lunardi, a ignorada Anamaria,de Regglo, à sua casa.

Estranho sortilégio, ou austero impositivo da Lei!Os dois destinos: o da mãe caluniada e roubada aofilho, por este assassinada sob estranha paixão; e odo filho, que ignorava a sobrevivência da genitora,vitimado por suicídio nefasto!

Arrastados para fora da casa, os jovens foramcondenados sumariamente ao enforcamento, comoresponsáveis pela tragédia, agindo todos sob ainsuflação da ira de Tommaso, que pareciaenlouquecido. Foi porém, novamente, a serenidadecristã de Frei Carmine, que impôs equilíbrio àsituação, dizendo:— Não enlutemos ainda mais estes sítios, tornando- -

nos tão bandidos quanto estes infelizescriminosos. Entreguemo-los à Justiça regular, afim de que sejam julgados como de direito. Matá-los não fará que sobreviva a senhora; pelocontrário, estimularíamos a desordem e nosfaríamos bandoleiros, homicidas também.Cuidemos de sepultar os mortos e velemos pela

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menina sobrevivente.— Que faremos com o cadáver do assassino? —

interrogou alguém.— Sepultem-no no bosque, em cova rasa —

respondeu o sacerdote —, pois não vamosabandoná-lo aos lobos e às aves de rapina. Étambém atitude de piedade cristã, que devemos terpara com os inimigos, como predicou Jesus, nãoobstante seja um monstro como esse...

Voltando-se para o capitão, que parecia aguardarordens, e considerando a impossibilidade de atitudesconexas por parte de Tommaso, o frei apressou-se aesclarecer:— Infelizmente, senhor capitão, a empresa culmina

em sangue, luto e dor... Peço-vos dar ao SenhorGovernador a devida ciência dos fatos ocorridos.Iremos velar o corpo da senhora até amanhã aoentardecer, quando será inuma- do, na capela daherdade.

E contemplando os jovens, que se mostravamaturdidos, concluiu:— Cuidai do destino deles. Agi com serenidade e

justiça. Um crime não justifica outro. De certomodo, esses rapazes são também dois infelizes,colhidos nas redes da própria loucura. Podeis ir!

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A noite de intérmina agonia continuava atra.Providenciou-se o sepultamento de Giuliano,

sem cerimônia de qualquer natureza, porquanto osuicida não recebe o perdão eclesiástico. O corpo dapobre dama foi transferido para o burgo do seufalecido esposo e colocado em catafalco armado paraas horas de vigília e oração.

No andar superior, Béatrice continuava sacudidapor crises de choro e constantes convulsões, emboraa assistência carinhosa do frade e o desvelo dasservas houvessem conseguido arrancá-la doalheamento provocado pelo choque, para as duras,mas salvadoras realidades do sofrimento.Desarmada para as circunstâncias, não podia elacompreender as ocorrências, passando a sofrerdoloroso processo de perturbação mental, que adebilitaria por algum tempo, desde aquela noitehedionda.*

O Conde Lunardi, em espírito, acolitado pelo seuanjo guardião, seguiu os lances terríveis que sedesenrolaram a partir da sua chegada à câmara doimprovisado presídio. Assim, não se pôde furtar detambém sofrer a agressividade doentia do moçocontra a esposa e filha, caídas na armadilha dopretérito culposo, de cujos débitos deviam reabilitar-se.

No momento da fúria do jovem louro, teve a

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sensação de que se lhe arrebentavam as resistências.A vigilância do mentor espiritual, porém, sustentou-opara o momento em que viu a esposa tombar,traspassada pela afiada lâmina da arma assassina,reiteradas vezes acionada. Viu também o homicida adebater-se em poder da malta de espíritos criminososque o dominavam e percebeu que da turba infeliz,que demonstrava sede de sangue, como se fosseformada por vampiros terríveis, se destacava Grazia,a jovem úmbria que desde a desencarnação, por ummecanismo sutil da mente, se vinculara a Giuliano.

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Sem dar-se conta da própria situação, elabaldoava, inquieta e sem suficiente lucidez paracompreender os tenebrosos acontecimentos que aliocorriam...

No instante em que a condessa identificou ofilho, no auge da tragédia, descarregaram-se-lhe asreservas do medo e da revolta, e, ante a evocação doamor, todo o passado ressuscitou, dulcificando-lheos minutos finais na roupagem orgânica. Nemsequer lhe advieram preocupações com a filha.Sabia, pela informação que recebera nodesdobramento espiritual, que ela sobreviveria eseria amparada. A emoção de reencontrar o filho,pouco lhe importando as circunstâncias, fez-se-lhesublime lenitivo para as dores.

Por isso o amara! — pensou. — Quando o viu àentrada de sua casa, reviu o amor da sua juventude: ovisitante era o amado de outrora, no esplendor damocidade. Sem saber por que magia o moço louroviera ao seu lar, e intuída, desde aquela hora, dosofrimento que experimentaria, tomara a decisão deo não ver mais, poupando-se às dores que previainsuportáveis...

Ao chamá-lo de filho, naquele momento extremo,a ternura de mãe atormentada arrebentou as amarrasque a atavam violentamente ao corpo, e aomergulhar na inconsciência que a desencarnação lheproduzia, foi recolhida pelo esposo fiel que a

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aguardava, emocionado, no portal da vida nova.No regaço do amigo desencarnado,

experimentou o júbilo do reencontro e o repousocapaz de acalmar-lhe as angústias e as apreensõesdaquelas horas de aspérrimas dificuldades.

Conduzida pelo devotado esposo e pelo seu guiaespiritual a sítio diverso daquele, mensageirosencarregados da libertação total dos liâmes físicos alicontinuaram desenovelando os fluidos e laçosretentivos, a fim também de impedir o vampirismosobre as suas vísceras, em face da

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presença de espíritos vulgares e doentes,participantes da tragédia múltipla.

Expulso do corpo pela ruptura violenta de órgãosvitais, o tresloucado homicida-autocida, sem perderin totum a consciência, foi arrebatado pelosdelinquentes desencarnados em cuja companhia secomprazia e passou a sofrer processo devampirização de longo curso, em que iria sucumbirinúmeras vezes, para despertar tantas outras, até queo tempo, em nome da Lei, lhe conseguisseexperiência nova na carne, depois de processosabortivos que lhe desadensassem as energiasdeletérias que o intoxicavam...

...Por fim, muito mais tarde, retornaria comsegurança à Terra, em cenário novo, abençoado pelahanseníase, para recomeçar a luta com o nome deLucien...*

Sob sentidas comoções e demoradas preces, avigília ao corpo da condessa culminou nas exéquias ena inumação ao lado dos despojos do esposo, nahumilde capela em que Frei Carmine ainda poralgum tempo oficiaria, entre saudoso e emocionado,com lágrimas de evocação à filha adotiva do coraçãodevotado.

Béatrice por longos meses esteve dementada,despertando, vezes que outras, sem conseguirlibertar-se da constrição mental provocada peladesgraça que a desagregava interiormente.

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Com as preces e a devoção do religioso, afidelidade de Tommaso e de alguns servos, e aassistência de sábio herbanário, sob a misericórdiado Alto e com o abnegado concurso da genitoradesencarnada, Béatrice recuperou a pouco e pouco asaúde. O tempo se encarregou de dulcificar-lhe asdores acerbas e a encontrar no matrimônio, anosdepois, a recuperação das energias gastas,facultando ao clã dos Lunardi a dádiva decontinuadores nos sítios prósperos de Faenza...

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A lei, por seu turno, alcançou os marranosaprisionados fazendo-os resgatar, nos corpos jovens,os delitos da juventude insana...

Na cronometria majestosa da Divina Lei,retornaram mais tarde as mesmas personagens aopalco das realizações humanas, para o recomeçoenobrecedor. Isabella tomaria o corpo de MyrianVasconcelos, a fim de ajudar Lucien, seu antigo filhoe verdugo, a suportar as ulcerações lepromatosas,através das quais muito teria que expungir.

O Conde Lunardi ser-lhe-ia novamente o esposoafeiçoado, que a precederia no berço e no túmulo,deixando-a, todavia, investida na sublime fé espírita,para poder semear estrelas pelos caminhos, noexercício da iluminação das consciências.

O velho amigo espiritual igualmente tornaria àmesma ribalta, agora na trilha do Consolador,ajudando-se e auxiliando os antigos membros dafamília, em busca da redenção libertadora que ofuturo, por fim, se encarregará de conceder a todosnós, que pretendemos seguir resolutos as pegadasdo Inocente Crucificado, que até hoje constitui oexemplo máximo da vitória do bem, da luz e doamor, de que o mundo tem notícia.

Na esteira das vidas sucessivas, continuam astramas da evolução, com as suas enérgicasadvertências.

Em cada primavera de bênçãos reflorescem sobre

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os charcos das paixões os lírios da paz, cujas ramasverde- j antes simbolizam a esperança que nunca nosdeve faltar, mesmo quando tudo parece abismo elodo sob os nossos pés. Nessas primaveras demisericórdia, reflorescem também os corações.

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LIVROTERCEIROLIBERTAÇÃOFELIZ

1REENCONTROEMCAMPODELUZ“Em verdade, em verdade te digo, que se alguém não

nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” JOÃO: 3-3.Quatro séculos! As dimensões tempo e espaço

constituem limites para demarcar estágios e situaçõespara a mente, nas faixas experimentais da evolução.A medida, porém, que o espírito progride, se lheampliam tais conceituações, e ele adquireincalculáveis percepções de infinito e eternidade,superando as linhas de que necessita para localizar elocalizar-se.

Pelos impositivos reencarnatórios, todo ultrajeque se comete se há de resgatar, embora nãonecessariamente numa reencarnação imediata oumuito próxima, após o gravame cometido.

O atentado à Lei se insculpe no espírito,sensibilizando-lhe o perispírito, ou psicossoma, nadireção da sede da alma, e dali repercutindo, atravésdos tecidos sutis da estrutura espiritual, no própriocorpo somático. Dia surge no qual irrompe, sob aforma de limitação orgânica ou deformidadeteratogênica, distonia emocional ou paroxismo

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nervoso, ulceração maligna ou câncer traiçoeiro, ouentão mediante estranhas constrições morais,amargas conjunturas ou restrições sociais,financeiras, sexuais ou familiares,

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pelas quais a iniludível justiça da vida alcança os seusdefraudadores.

Com invulgar licitude asseverou Jesus anecessidade de “nascer de novo”, a fim de que sepaguem as dívidas inteiras, moeda a moeda, até que,liberado, o devedor alcance o reino dos céus, queimplantará, através da auto- purificação, na própriaconsciência.

Pode dar-se o resgate reequilibrador na etapaseguinte, ou ocorrer em escalada futura, masninguém ludibriará a Justiça.

Num avatar, o espírito, se erra, também podedescartar-se de mazelas outras, adquirindo valiosasexperiências, que armazena para momento próprio,registrando-as em seu mapa evolutivo.

Numa encarnação adquire-se determinadaexpressão de vitória, não obstante os equívocos quese perpetre. Somadas as realizações dignificantes esubtraídas as dívidas, transfere-se o saldo, positivoou não, das conquistas pessoais.

Trasladam-se de uma para outra vida realizaçõese problemas, aquisições e perdas, que ressumamoportuna- , mente, quando se fazem favoráveis ascircunstâncias, do que decorre o adágio, segundo oqual “Deus não concede fardo superior às forças dequem o carrega”.

Como consequência, a qualidade da vida resultadas múltiplas operações que o ser se impõe, caindo

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agora, levantando-se depois, sobraçando sempre umsaldo, que o favorece ou não com recursos para afinal redenção.

Através de provações abençoadas e expiaçõeslibertadoras, a Divina Sabedoria nos conduz aocompromisso de ascender e progredir, nasdimensões da Imortalidade.*

Encetando novas etapas da evolução, após ostumultuados dias em que se vitimou com o infelizautocídio,

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Giuliano sofreu as consequências doenvenenamento perispiritual pelos fluidos tóxicosacumulados nas fracassadas tentativas derenascimento compulsório, que redundaram emprocessos abortivos dolorosos. Por fim, o AugustoCoração lhe facultou reencarnar, na segunda metadedo século XVII, aturdido e inditoso, na mesma Itáliaque fora palco dos seus dessisos anteriores, a fim deretificar a interrompida história que escrevera com osseus torpes atos no século transato.

Assim, as exteriorizações lepromatosas de agoratêm suas raízes nos dias sombrios das alucinaçõespassadas, exigindo-lhe a reparação das maldadescometidas, entre aqueles mesmos que lhe sofreram aparanoia.

Longos teriam que ser os dias de soledade etumultuadas as noites de evocação, no leito daenfermidade liberadora. Grazia, a quem amara comsincera e digna afeição, ressurge-lhe, então, nacondição de amiga da juventude, reencontrando-o,ainda transtornada psiquicamente por insidiosaobsessão, na enfermaria de hanseníase, masclarificada igualmente pelas sublimes luzes doConsolador, após longa jornada pelos escuroscaminhos da alucinação.

Quantos novos incidentes lhes estariamreservados, de modo a renovarem sentimentos esublimarem aspirações!

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Na primeira noite na Colônia, Lucien se inteirarada vida pregressa que lhe dava causa aossofrimentos. De coração compungido,compreendera a necessidade da própria liberação,aceitando a aflição pungente com humilderesignação.

Entretanto, sua alma de artista, antiga amante doconforto e da beleza, permanecia sonhadora eatormentada, divagando com surdas revoltas, nãoobstante as seguras informações de que seenriquecia, pelo conhecimento do Espiritismo.

A sensualidade do passado revivia suasexigências, enquanto o corpo se dilacerava, emdecomposição contínua. Sentindo asco de si mesmo,anelava os prazeres fortes e

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as sensações devastadoras, em conúbios refertos delicenciosidade, nos quais corpos jovens e belosesfogueassem na luxúria e nas paixões. Com aimaginação abrasada e o espírito sequioso, aardência dos desejos surpreendia-o, mesmo nochavascal das feridas em que o corpo se putrefazia.

Somente a prece e as lágrimas conseguiamlevantar- -lhe dessas crises o coração inquieto e amente sôfrega.

Não poucas vezes via-se obrigado a esmagar odragão das utopias do prazer, que transformava seuespírito em arena de terríveis batalhas entre Ormuzde Arimã, consumindo-lhe forças físicas e psíquicaspreciosas.

Medicamento de superior natureza e excelenteelaboração, a Revelação Espirita é, na atualidade, amais eficaz terapêutica para o homem moderno, cujainteligência rutilante, capaz de impulsioná-lo nadireção das estrelas, não raro o encarcera namasmorra do ceticismo.

Se ontem os sectarismos religiosos incentivaramo materialismo, hoje o cientificismo estiola o homemque o elaborou, punindo-lhe a presunção.

Todavia, apesar das nem sempre razoáveisambições humanas, o túmulo faz tábua rasa paratodos e induz, cedo ou tarde, às cogitações elevadassobre a sobrevivência espiritual. Nesta hora, então, aDoutrina Espírita guinda o atormentado ser na

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direção dos astros, liberando-o do charco em que sedetém por impositivo da própria insânia, fazendo-ofeliz, por fim.*

Os dois amigos, em Opala, no dia inesquecívelem que voltaram a ver-se, permutaram, durante todoo dia, impressões e esperanças, planos futuros eprogramas de trabalho redentor, com vistas amelhores dias...

Lucien, após minudenciar as lembrançasarquivadas na memória perispiritual, referentes aosacontecimentos dos dias do Papa Alexandre VI e daCasa Borgia, escutou

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Armando, que por sua vez lhe confidenciou aspróprias preocupações, receios e sonhos, porquetambém lutava consigo mesmo.

Davam a impressão de que ambicionavam alibertação definitiva, depois de demorada prisão emcárcere de sombras.

Comovente ouvir-lhes a narrativa das aspiraçõesque anelavam, cheios de coragem ante o sofrimentosantificante e o serviço renovador.

Despediram-se, por fim, bafejados, no mesmodia, pela musa Esperança, prometendo-se afeiçãocontínua, em incessante trabalho de fortalecimentorecíproco, com indeclinável e coerente fidelidade aosprincípios da filosofia religiosa abraçada, pela qualse empenhariam até o último hausto, vivendo-a,divulgando-a e exaltando-a na própria dor.

Já declinava o sol quando se apartaram. Apaisagem era um festival de luz sobre o campo deespigas louras e flores exuberantes explodiam, numpoema de louvor à Natureza.

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2DORESQUERETORNAMPUNGITIVASLucien, agora absorvido pelos planos edificantes

de serviços proveitosos para os companheiros desofrimento, dedicava-se à poesia, quando ainspiração o dominava, ou se entregava aoartesanato, preparando grupos de futuros egressosque se organizavam para as tarefas do porvir.

Simultaneamente, encontrava tempo paracolaborar na Clínica Psiquiátrica, o que lhe granjeoua estima do médico-chefe, através de cujainterferência conseguiu, junto à Administração,pequeno e agradável apartamento no hospital, ondese podia permitir mais ampla convivência com oslivros, a música, a pintura e especialmente com apoesia...

É compreensível que, embora fosse merecidoesse regime de exceção, muitos pacientes, picadospela inveja, passassem a mover campanha contra ojovem, na qual a intriga e a impiedade se disputavamos lances mais ousados. No novo clima, o antigodéspota se reencontrava não poucas vezes, urdindomentalmente revides e desforços que logo buscavasuperar...

Em contrapartida, o seu êxito literário fazia-oreceber volumosa correspondência, graças àdiscrição de uma Caixa Postal pertencente a amigosadio residente na cidade, o que lhe facultavaagradável intercâmbio epistolar, através do qual

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passou a semear as consolações espiritistas.Nesse comenos, foi conduzido ao leito, a fim de

submeter-se a diversas cirurgias plástico-reparadoras, objetivando restaurar a mobilidade dealguns dedos e também melhorar o aspecto da face.

Antiga ulceração no pé constituía-lhe incessantemartírio. Aguardava cirurgia no local, na esperançade lograr possível restauração dos tecidos emdecomposição. Receava, porém. Aquela era umachaga típica, que parecia dever permanecer, nacondição de cruel estigma, a identificar o infortunadoportador do mal de Hansen.

Recordava-se de que, nos agitados dias dopassado, quando em tratamento numa dasenfermarias da Colônia, seu leito fora requisitadopara um paciente recém-chegado. Considerando opróprio estado de abatimento, a febre e a pústulahedionda, argumentara com a médica sobre anecessidade de demorar-se mais algum tempo emtratamento. A moça, porém, sem qualquersentimento de piedade e sem o tato psicológico deque deveria ser portadora, revidara com sarcasmo:

— Vocês!... (Na palavra havia total desprezo.)Necessito do leito para um que está pior do quevocê... E fique sabendo que a hanseníase não temcura\ Você sempre terá este expurgadouro! Dou-lheuma hora para deixar esta enfermaria. Quanto aotratamento, você poderá fazê-lo em ambulatório.

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Ali ruíram todas as técnicas psicológicas deassistência aos enfermos. Num momento de irritaçãoe petulância, a insensibilidade destruíra todo umedifício de esperanças, de paciência e de renovação...

Voltaram-lhe à mente, então, os ditos sobre alepra, e teve de recomeçar tudo intimamente, outravez.

O retorno à clínica cirúrgica significou-lhetambém, inúmeras e doridas evocações. Sabia, noentanto, que sofrimento é impositivo de evolução eque ninguém padece o de que não necessita.

Nesse estado de espírito internou-se, sendooperado com êxito. Foram-lhe aplicados no narizalguns transplantes de cartilagem e pele, retificando-se-lhe também a expressão labial. Intervieramigualmente nos dedos, já dolorosamente recurvados,com a expressão de garras, remodelando-os quantopossível. Caberia ao tempo e ao repouso responderpelos resultados.

Embora se houvesse resguardado num pré-operatório cuidadoso, seu organismo debilitadorejeitou parte dos transplantes, que infeccionaram,tornando-o febril e inquieto.

A recuperação, face à imprevista reação orgânica,fez-se-lhe mais demorada.

Encontrava-se otimista, já em convalescença,quando Márcia, como lhe fora habitual tempos antes,irrompeu na enfermaria.

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Era um domingo úmido de junho e o frio sopravadesagradável.

Vendo-a, Lucien experimentou insopitávelalegria, mas súbito presságio agourento dominou-o.

A verdade é que a amava! Quanto sonharaconseguir um lar, construído sobre as bases domatrimônio ditoso!Sentia, porém, em considerando a enfermidade quelhe destroçara as aspirações, ser isso impossível.Mesmo conseguida a alta, haveria sempre o espectroda récidiva. E considerava: “Ela é jovem e atraente,embora as marcas do cansaço de que dá mostras e adistonia psíquica que a martiriza com frequência;merece um companheiro em quem se apoie ecompraza. Um egresso de leprosário é semelhante auma sombra que detesta a claridade. Até quando elao suportaria? Depois, os longos anos de martírio esoledade influíram negativamente no seu própriotemperamento, tornando-o arredio, silencioso...”Ante a agressividade e as ameaças da genitora dajovem, e considerando as demais circunstânciasnegativas, resolvera, desde algum tempo, retirá-la damente, apesar do pesado tributo da contínuaamargura. Pode-se viver com falta de quase tudo,menos de esperança!

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Mesmo assim, sempre se sentia reviver quandoela o visitava.

Naquela conjuntura, ela lhe significava aclaridade que se almeja durante a noite de sombras eque se aguarda com ansiosa expectativa.

Desde os conturbados dias em que a genitora deMárcia o ameaçara com a perspectiva de umescândalo, caso ele continuasse estimulando ointeresse da jovem, a seu pedido as visitasescassearam e ela quase deixara de fazê-las.

Não temia tanto o espocar da agressão damatrona, a que já se acostumara. Seu grande receioera a hanseníase em si mesmo, quando a amada seapercebesse do que era realmente estar consorciadacom um leproso... A simples conjectura atormentava-o. Preferia, pois, não a ter, a perdê-la após a posse.

Dessa forma, a intempestiva chegada de Márciaproduziu-lhe sentimentos antagônicos. Não refeitoda surpresa, percebeu que a moça, algo ofegante,não estava psiquicamente bem. Os olhos injetados,ligeiro tremor labial e um tique nervoso na pálpebra,denotavam-lhe desequilíbrio emocional.

Lucien armou-se, então, com a oração, enquantomantinha a expressão da face asserenada.— Não suporto mais a vida! — declarou, lívida. — Eu

tinha que vir vê-lo hoje, antes que fosse tarde...Sem saber como responder com a necessária

segurança, o interlocutor manteve-se compreensivo,

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em silêncio.— Mamãe enlouquece-me. Odeio-a, odeio-a! —

baldoou, em lágrimas. — Ajude-me, Lucien,ajude-me!

O moço, igualmente emocionado, argumentoucom delicadeza:— Todo socorro promana do Pai, a quem devemos

dirigir nossas súplicas, confiando com tranquilasegurança. Sabemos, os espíritas, que o rio daslágrimas tem suas nascentes no pretéritoespiritual. Há dores que funcionam comoreparação de culpas; reeducação disciplinadora, edores que constituem o aguilhão, impelindo-nospara a frente. Face a isso, é Inútil recalcitrar. Emcasos de tal natureza, o ódio somente complica, arevolta mais desequilibra. Uma atitude serena,todavia, logra alcançar resultados positivos,inesperados.

E depois de breve pausa, sugeriu:— Narre-me calmamente o que ocorre, a fim de

verificarmos como você pode proceder com êxito,para acertar em definitivo.

Envolvida pelas vibrações de simpatia, Márciaasserenou-se e elucidou:— Desde quando mamãe passou a implicar com a

nossa afeição, tudo tem feito para afligir-me. Nãoapenas se refere a você com expressões ferinas,como não cessa de ameaçar-me. Creio-a louca!

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Depois de muito refletir, amparada pelo consoloda fé e compreendendo os empecilhos que nosdistanciam no momento, resolvi aquiescer à suavontade, tendo passado a visitá-lo apenas uma queoutra vez. Isso, no entanto, em nada modificou osmeus sentimentos íntimos, nem os dela, emrelação a você... Há pouco mais de quatro mesesapareceu-me um moço, portador de lamentávelprocesso obsessivo, que granjeou as simpatias demamãe e a minha animosidade. Apesar deconstituir-me motivo de desagrado e asco, a suaInsistência afetiva e o seu atrevimento chegam aocúmulo de desesperar-me...

Silenciou por pouco e logo prosseguiu:— Imagine que, agredida emocionalmente, estando

ele com o beneplácito de mamãe, esbofeteei-o,numa crise de revolta. E o canalha devolveu-me obofetão!

“Estarrecida, ouvi mamãe gritar: “Muito bem! Édisso que essa rebelde está necessitando.” E oapoiava. Compreendi então que também ela étotalmente desequilibrada. Já o suspeitava; agoratenho certeza.

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E como se alinhasse mais expressivosargumentos, por você, com terrível urdidura demaldade, estimulando o comparsa a que aqui viessetomar-lhe satisfações.

“Avisei-os de que, se se atrevessem a incomodá-lo, arrepender-se-iam amargamente. Estou disposta aqualquer atitude, a fim de preservá-lo de um possívelincômodo.”— Acalme-se, minha boa Márcia, tentou Lucien, com

jovialidade. — Já lhe disse que não me defendessenos duelos verbais com a sua genitora. Ela mechama leproso, mas, por maldosa que nos pareça aacusação, é verdadeira e não me ofende. Aocontrário, esse estigma me liberta e apazigua.Necessário enxergarmos as coisas na sua legítimaconfiguração, para não incidirmos em erros deinterpretação. Examinemos as ocorrênciasserenamente.

“Quanto nos acontece, à revelia da nossavontade, conduzindo-nos ao sofrimento, édecorrência do passado culposo que somosconstrangidos a resgatar. Pessoas e acidentes que nosafligem, retalhando nossas esperanças ouespezinhando nossas forças, procedem do fundo dostempos, alçados à condição de severos cobradores,graças aos quais nos poderemos libertar doscondicionamentos e viciações infelizes. Desse modo,somente padecemos o que se faz indispensável à

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nossa vitória sobre nós mesmos. O adversárioaparente merece também nossa compaixão, e operseguidor torna-se digno da nossa amizade. Elesnão sabem, realmente, o que estão fazendo.Sintonizar com as faixas do ódio em que se demoramé dar-lhes novas forças constrangedoras, que sevoltarão contra nós, fazendo-os ainda maisinditosos...”

“E como se não bastasse, expôs-lhe a minhaafeição prosseguiu, generoso:— O túmulo e o berço deixaram de ser misteriosos

sítios, representativos do fim e do começo da vida,para se transformarem em pórticos de acesso anovos estágios da existência. O ser, espiritual everdadeiro é indestrutível. Mortal é só o corpo,através do qual a alma coleta experiências,aprimora sentimentos e ascende sem cessar.Vitimas e algozes refundem as expressões de amore de ódio em sucessivos recomeços, atéexpungirem todo o vinagre da animosidade dovaso do coração.

“Perdoe, portanto, sua progenitora. Somos-lhedevedores de altas dádivas afetivas, e permanecemosao seu lado com a finalidade precipua de conquistá-la, reparando os males que antes lhe impusemos. Éclaro que a sua é a mais dorida condição, e por isso amais importante. Não resultaram do acaso os liâmesda consanguinidade dolorosa que as atam... O

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desvairo de que ela se vê possuída, ante a chegadado energúmeno com quem se compraz, denota tersido ele sua vítima, sendo esta a hora do resgate quelhe chega, inapelável.”

A ouvinte parecia magnetizada pela palavracalma, ponderada e impregnada de verdade. Osolhos úmidos brilhavam, enquanto quaseautomaticamente assentia com a cabeça. Lucien,inspirado, continuou:— Não hesitemos ante o desafio da reparação

impostergável. De mim mesmo, já há algumtempo, venho transferindo as aspirações da Terrapara o além-túmulo... Reabilitado da hediondasucessão de crimes a que me vinculei, enredadonas sombras espessas do ódio e da loucura, aspirohoje à madrugada do futuro, entretecendo desdeagora a coroa de bênçãos do porvir. Em todosesses anelos, tenho-a presente. Não a mereço, porenquanto. Não engendremos maioresconsequências, indo contra o aguilhão que nossepara... (Estava emocionado!) Meu corpotransformou-se num monturo, mas os corpos sãoformas transitórias...

— Oh! Lucien! — exclamou a jovem sofredora,desejando sentir-lhe o amplexo afetuoso. — E semamãe obrigar-me a receber o meu repelenteadmirador? Se me ameaçarem outra vez? Se eleatrever-se a vir até aqui, armando uma situação

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irreversível? Eu sei que não suportarei. Reconheçominhas fraquezas...

— Também eu sei das minhas deficiências —anuiu, humilde. — A todas essas interrogações otempo responderá no momento próprio. Nãoantecipemos angústias, nem acalentemosdesesperos. A cada coisa a atenção na oportunidadeprópria. Cultivemos a bondade e a paciência, semnos afligirmos com as perspectivas sombrias.

“Se você for constrangida, sob ameaças, adecisões contrárias à sua vontade, ore e entregue-seao Senhor. Quando nos falecem os valores próprios,sempre nos é possível recorrer às fontes sublimes davida. Não estamos ilhados no mar do abandono,nem deixados à mercê do mal.

“Juntemos as nossas orações, e, desde que nãodevemos unir os corpos, reunamos nossas forçasmorais e espirituais, num todo de amor e fé,auxiliando-nos mutuamente e aos nossos verdugos,confiados em Jesus.

“Volte renovada e reencoraje-se. Trate o inimigocomo a um irmão enfermo, e a sua genitoradesequilibrada qual padecente, que é, de gravedistúrbio obsessivo, por cujo intermédio adversáriosdesencarnados nos martirizam o coração..

O esforço para manter o controle das emoçõesesgotou-o. Palor acentuado, com suor abundante,marcaram- -lhe a face, tornando-o ofegante e

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fazendo-o experimentar fortes dores nos lábiosoperados, não aptos ainda para longas conversações.

Márcia fitou-o demoradamente. Os olhos negrose amendoados que nadavam em lágrimas no rostoovalado, inspiravam imensa ternura e possuíambeleza singular.

Um pressentimento terrível feriu-a, como se nãomais fosse voltar a vê-lo. Com muito esforçosegurou-lhe delicadamente o ombro magro edespediu-se com um sorriso de expressivamelancolia.

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O enfermo olhou-a até que desaparecesse noretângulo da porta. Só então deu curso às lágrimasabundantes.*

Rudes figurações da luta humana!Quando o homem se supõe liberado, ei-las que

irrompem de inopino, exigentes, intempestivas. Nãofoi por outra razão que Jó exclamou: “Como nuvempassou a minha felicidade”, porquanto, na Terra, ésempre célere a sua passagem.

A obsessão, por seu turno, encontra-sevulgarizada amplamente, graças à incúria e àrebeldia das criaturas; grassa vitoriosa, torna-seresponsável por um sem-número de males, quesurgem em toda parte, e aumenta o número dasvítimas que lhe caem, inermes, nas redes intrincadas.

Nosso planeta de provações será transformadoem jardim de bênçãos, à medida que os obreiroshumanos da esperança esparzam o pólen do amor.*

Márcia retornou a Opala ao cair da tardenevoenta e úmida, sendo recebida pela mãe, que seencontrava agitada.

Eronildo, o infeliz apaniguado, fora passar o diaem sua casa e ambos, inquietos, aguardavam a moçacom in- disfarçado mau humor.

Exigindo esclarecimentos, Eronildo interrogou-a,agressivo, tutelado pela senhora em desalinho,

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despejando violenta catilinária oral sobre a moçaainda não refeita do cansaço da viagem.

A psicosfera da casa tumultuada era climafavorável para os dissabores severos que seavizinhavam, e a presença de entidades espirituaisinferiores, que empestavam

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ainda mais o ambiente, estimulava reaçõesimprevisíveis, nos contendores invigilantes.

Márcia, fortalecida pelas vibrações positivas deLucien, tentou explicar, apesar de enervada, a razãoda demora involuntária, enquanto, ao aspirar osfluidos tóxicos ambientes, mal continha a insopitávelantipatia que lhe causava o perturbador do seu lar.

Entrementes, Dona Inès, a genitora desassisada,intuída por vigoroso sicário desencarnado, que adominava psiquicamente, perguntou se ela foravisitar Lucien...

Os lábios de Márcia tremeram, os olhosinquietaram- -se nas órbitas e a testa franzida,transformou-se numa hedionda máscara de ódio.— Estou cansada, mamãe! — desabafou, trêmula. —

Fui, sim, visitar Lucien, e estou muito cansada!A progenitora arremeteu violentamente contra

ela e agrediu-a. Espumejante, bradou:— Ele me pagará. Amanhã iremos lá: Eronildo e eu...

Daremos um jeito naquele cão leproso...— Não, mamãe! — gritou, com um filete de sangue a

escorrer-lhe do lábio. — Ele não tem culpa. Eu soua responsável. Busquei-o para encontrar forças, afim de suportar vocês, a quem odeio.

— Miserável! Não é uma filha, é um monstro! —esbravejou.

— Oh! meu Deus! Não me desampare! — balbuciouMárcia, quase a desmaiar.

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A cabeça da jovem ardia e o tremor nervosotransformou-se em convulsão.— Se vocês forem lá... — ameaçou, com o rosto

sombrio.— Que acontecerá? — inquiriu Eronildo, segurando-a

violentamente. — Vou surrá-lo! Você será minha ede mais ninguém, haja o que houver!

Dona Inês começou a gargalhar, bradando:

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— Muito bem! Assim é que se fala! Aja comohomem!

A loucura generalizou-se e o que aconteceu foimuitorápido, para que se pudesse evitar.

Márcia ergueu-se, quase fora de si, e disse, comestranha calma:— Nunca, Infame! Mil vezes a morte a suportar-te.

Livrar-me-ei de vocês imediatamente!De um salto alcançou a janela, que dava para a

rua e arrojou-se no ar, espatifando-se no asfaltomolhado.

Não houve tempo de segurá-la, nem sequer sepensou fazê-lo. Quando se deram conta, a tragédiaestava consumada.

Dona Inês correu para a janela abertaacompanhou com o olhar o corpo que caía, até baterno solo, onde logo foi cercado pela curiosidade epelo espanto dos passantes.

Pela porta falsa do autocídio, evadira-se a moçaatormentada. Olvidara que o suicídio, antes deresolver problemas, complica-os insuspeitadamente,conduzindo aos dédalos de inenarráveis alucinações,com retornos punitivos ao corpo, em dolorosascondições reparadoras. Trocara breve prova porlongas décadas de martírio, esquecida de que o Paipossui meios para modificar as situações maisterríveis, através de soluções inesperadas e

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liberativas.Quando o homem se dispõe a confiar e esperar,

surgem caminhos nos mais intrincados cipoais dodesespero e naus salvadoras nos mares maisrevoltos.

Deus conhece todas as constrições que afligemos espíritos, e dispõe de recursos para saná-las nomomento próprio.

Rebelar-se é desafiá-Lo; fugir, significa Indébitoadiamento de uma quitação; reagir pela ira ouatravés da mágoa, aumenta a quota de sofrimento.Somente uma atitude esclarecida e equilibrada podegranjear valores que superem o mal.

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Pobre espírito, desatinado e cego! Começavam,para ele, pela sua precipitação, novas dores, paralongo curso de lágrimas, sem próximo termo.*

Levado o corpo para o Instituto Médico-Légal esubmetidos à inquirição policial Dona Inès eEronildo, foram sepultados os despojos de Márcia,no dia Imediato.

A inditosa mãe, internou-se logo depois,totalmente vencida, no Sanatório Psiquiátrico deOpala, onde expunge, dementada, os erros eviciações do espírito enfermo, enquanto Eronildo,psicótico e aturdido, experimenta remorsos,alucinações, e contínuos estágios em clínicasespecializadas, dominado também pela insanidademental.

Na semana seguinte, quando os amigos espíritasda Capital volveram à Colônia e informaram a Luciensobre a tragédia, ele passou a sofrer Inominávelangústia, entre as sucessivas crises de saudades,lavadas com as lágrimas do sofrimento resignado.

Como, porém, é da Lei Suprema que ninguém seliberará da dívida antes de resgatá-la integralmente,o caminho da provação surgia como rota a sernecessariamente percorrida, a preço de renúncia.

Aquele junho cortante não apenas enregelavapor fora, na Colônia, como dilacerava por dentro umcoração solitário, um espírito devedor.

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3RETORNOAOLAREPROGNÓSTICOSSOMBRIOS

A pouco e pouco Lucien se foi recuperando dochoque sofrido com o suicídio praticado pelaatormentada Márcia.

O organismo debilitado sofrerá amarga refrega,e ele, embora inconscientemente, passou quase adesinteressar-se pela existência física. Experimentavasingular, dolorida constrição no tórax. Não obstantecontasse apenas 28 anos de idade, parecia-lhe queestranho distúrbio cardiovascular tivera início, após oimpacto das novas angústias.

Assistido pela ternura dos Bons Espíritos, cujodevotamento granjeara, graças aos contínuostestemunhos de paciência, resignação e humildade, esocorrido pela afeição de abnegada religiosa daColônia, que lia caridosamente para ele páginas defúlgida beleza, saiu da prostração que o acometera,apresentando, nos dias sucessivos, animadoramelhora, a par de expressiva recuperação da cirurgiaa que fora submetido.

Nesse ínterim, significativo movimento espíritatomava corpo em Safira.

A Senhora Myrlan Vasconcelos convidaraArmando para proferir conferências na cidade, quese engalanava ante a próxima inauguração debenemérita obra de assistência social, dedicada à

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infância e aos sofredores, conforme a recomendaçãoevangélica, de que os espiritistas se fazem lídimosseguidores.

Havia, naqueles dias um grande interesse noPais, em torno do Espiritismo. Noticiário bombásticoda Imprensa

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entretecia considerações em torno da Doutrina e daMediunidade, apesar dos lamentáveis equívocos quesurgiam, como normalmente ocorre, produzindo emtoda parte inesperado interesse sobre a imortalidade,as comunicações, a reencarnação... Médiunsnumerosos estavam sendo entrevistados e suasrespostas produziam emoções novas, enquantoreligiosos apressados, aturdidos pelo impactocausado pela Revelação Espírita, igualmenteopinavam, tornando-se os periódicos, e os canais deTV de maior audiência, veículos de acalorados einjustificados debates.

Não obstante o toque sensacionalista de que serevestiam os entreverás e a impossibilidade deveicularem mais amplos esclarecimentos através dosórgãos de informações, os espiritistas granjeavammaior soma de simpatias em todos os lugares. E oEspiritismo, como soi acontecer com os ideaisnobilitantes da Humanidade, sempre perseguidos,mas nunca vencidos, passou a ocupar lugar dedestaque nas manchetes dos noticiários, recebendoaceitação natural e animadora compreensão dopúblico brasileiro, sacudido pela promoçãoinesperada.

Sem dúvida, os renitentes adversários daDoutrina retornavam à carga da difamação, ehipnólogos sarcásticos, dispostos a ridicularizar osaprendizes modernos do Evangelho, saíram a

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campo, em torpes, porém ineficazes campanhas.Digamos melhor: proveitosas campanhas, em

considerando que as mentiras assacadas contra oEspiritismo eram desmentidas pelos fatos e pelaselucidações valiosas que as desconcertavam com asua lógica de bronze, analisando a problemáticahumana sob nova luz.

A cada agressão, mais ampla adesão, em ritmosurpreendente. Por pouco não se tornou moda ocognome espirita.

Por toda parte, salões e auditórios abriram-separa cursos improvisados de hipnose elementar, emataque à mediunidade clara e pura, sob a rotulagemde experiências da moderna Parapsicologia, abrindo-se, com isso, arenas de indesejáveis lutas verbalistas.

Espiritistas conscientes, dinâmicos eesclarecidos, não se permitiam descanso, utilizando-se das ensanchas para mais amplos esclarecimentos emais pormenorizados informes sobre a Doutrinacodificada por Kardec.

Deve-se, entretanto, compreender que oEspiritismo não tem necessidade da propagandaintempestiva ou apressada. Possuindo suas raízesnas terras férteis do Evangelho, em que haurevitalidade e luz, afirma-se e difunde-se graças aobem que propicia aos seus profitentes.

No clima de necessárias elucidações e acaloradosdiscursos, Armando deveria, após a inauguração do

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santuário dedicado à infância, em Safira, proferiruma série de palestras espíritas, nas quais aincomparável figura de Jesus retornaria àconvivência dos ouvintes sequiosos e dos sofredores,como ocorrera outrora nas claras manhãs e nas tardesdouradas da bela Galileia, onde brotaram asnascentes da Boa Nova... Igualmente revisariaconotações sobre conquistas científicas, à luz doEspiritismo, formulando conceitos elevados ecristãos, acerca da ética da Nova Era, a instalar-se naTerra em dias futuros.

Myrian, informada dos novos e pesadossofrimentos de Lucien, proporcionou-lhe viajar deOpala a Safira, a fim de viver aquelas horas deEspiritualidade, no solo em que nascera e onde foraconvidado pela Lei à sublime expiação, de que selibertava estoicamente.

Em esfera de felizes expectativas, os dois amigosse abraçaram, no aeroporto de Safira, em manhãchuvosa e úmida de agosto, retemperando o ânimocom a esperança e a fé.

Podiam-se perceber os efeitos estéticos dacirurgia plástico-reparadora na face de Lucien. Onariz retomara forma agradável e os lábios seapresentavam com os contornos corretos;desapareceu-lhe a expressão deformada, e os olhosfulgurantes, embora tristes, pareciam círios festivosnum painel harmonioso. Alguns dedos da destra

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recuperaram os movimentos, apesar denecessitarem, oportunamente, de enxertos ósseos enovas cirurgias.

Não fossem o pé direito deformado, os lóbulosdas orelhas um pouco aumentados e macilentos, ealguns outros sinais de somenos importância, não seidentificariam as marcas da hanseníase, de que seliberava exteriormente. No íntimo, porém, como quegravados a ferro em brasa, havia sinais psicológicosde muito difícil erradicação. Os longos anos deexpectativa, soledade e amargura, as cargas deemoções contínuas e choques inesperados,misturados a frustrações e renúncias incessantes,operaram nele expressivas modificações. Tornara-sereservado e triste, como de esperar-se. Contudo, oespírito sensível, amante da arte e da beleza esustentado pela fé inexaurível, possuía valiosasreservas de resignação e coragem. Anelava superartodos os óbices, para resgatar o pretérito,acondicionando ambições superiores, com opensamento no futuro.*

Considerando o benefício que se recolhe na dorresignada, exoro:

Almas sofridas que lutais, sem quartel, noscampos da redenção: não desespereis!

Fitai os astros que brilham no Empíreo e retendea esperança! Esses ninhos luminosos e balouçantes,

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não apenas adornam as noites sombrias, comoanunciam eternas primaveras, nas quais fruireislenitivos para vossa amargura e consolo para vossador.

Vós que caminhais a sós, na multidão, sem oafago do amor, nem o enlevo da ternura, esperai umpouco mais e crede no amanhã. Se hoje vos parecemdemorados os dias de inquietação, intérminos serãoos tempos de ventura que experimentareis, saldada adívida e cumprido o compromisso remissório.

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Mãos devotadas enxugarão as lágrimas queainda retiverdes, entoando canções de felicidadejunto aos vossos ouvidos.

Não recueis ante o testemunho mais assustador,nem fujais às aflições do dia-a-dia, ainda que tenhaiscravados nos pés os acúleos de mil ignomínias.

Erguei-vos, tristes e desconsolados da Terra, pelaoração impregnada de confiança.

Concluída a áspera provação, saireis do corpo,qual borboletas coloridas, libertadas pelatransformação das lagartas vagarosas e rastejantes,voejando no leve ar do dia em luz. Bendireis, então,haverdes sofrido, e louvareis o corpo generoso quevos serviu de casulo.

Esperai, portanto, almas que chorais sem nadapossuirdes além da consolação da fé e do murmúriodas próprias orações!

Jesus vos conhece e sabe das vossas agonias.*

Aqueles dias significavam o retorno ao“Caminho”, nos quais se voltariam a ouvir as“Vozes” e sentir as presenças espirituais alvissareirase benéficas, como na primitiva comunidade cristã,quando os pregoeiros da Mensagem passavamreanimando os lutadores e recordando o MessiasDivino.

Os genitores de Lucien, apegados ao orgulho decasta e perenemente inconformados com a

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enfermidade do filho, ou melhor, digamos de umavez: com a sobrevivência do filho, construírampequena peça, no quintal da vivenda luxuosa, para osdias em que o Serviço Social do leprocômiopermitisse a volta do jovem ao lar, dentro doprograma de readaptação dos egressos. Pretextavamque o filho, portador de artritismo déformante e decompreensível distonia nervosa, precisava derepouso, de que podia dispor no pequeno bungalow,enquanto na mansão isso se tornaria difícil, emcontacto com os irmãos, sobrinhos e servos... Emverdade, Lucien utilizara-se compulsoriamente daresidência familiar por duas vezes, nas quais ficaraterminantemente proibido de sair à rua ou de receberamigos, de modo que se evitassem perguntascuriosas e indiscretas, que os familiares temiam.Estivera em voluntária prisão domiciliar, paraaquietar o orgulho e os receios dos seus.

Assim, desta vez, resolvera hospedar-se comArmando, na residência da Senhora Vasconcelos.

Na primeira noite, minutos antes da conferênciaprogramada, repetindo, para surpresa geral, os anostransatos, Lucien apareceu, trajando smoking eapoiado a Myrian, vestida de longo, e abriu asolenidade de inauguração da Obra Social para aInfância, dedicando ao amigo e ao seu público avalsa Tristesse, do Noturno n.° 3, de Frédéric Chopin.

Ensaiara antecipadamente, com inaudito esforço,

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a suave e dulçorosa melodia, fazendo, inclusive, atransposição de mãos, no que lograra êxitosignificativo.

O teclado submisso, logo aos primeiros acordesda música envolvente, passou a derramar ondas desonora beleza.

Lucien ressurgia, naqueles minutos, como Fênix,das próprias cinzas, no proscênio que a SenhoraVasconcelos preparara, com carinho, para a rentréedo pupilo amado.

Sobre o Esenfelder negro fora adredementecolocado um castiçal de prata com 6 longas velasacesas, qual se fossem uma materialização de círioscelestes.

Quando o jovem sentou-se ao piano, as luzesforam apagadas e a música vibrou emocionante naacolhedora penumbra, criando embevecedorasemoções.

Inspirado, Lucien executava a melodia como seestranhos numes tutelares movimentassem os seusdedos, que conseguiam quase perfeito virtuosismo.O artista renascia, sem poder conter as lágrimas defelicidade. Na tela mental recordava Márcia, e comose estivesse diante de um

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oratório, recitava seu poema de amor não fruido, nasenvolventes vibrações musicais.

Ao terminar, a ovação explodiu. Todos seergueram a aplaudir, tocados de júbilo. Quandocessou o ruído e no mesmo clima de emoção, ojovem pianista prosseguiu com a “Valsa em LáMaior, Opas 17, número 4”, composta em Viena, nosdias nobres do Romantismo, em 1831, na qual sesentem as suas ânsias de ternura e amor, em estadosde doce languidez.

Durante o Romantismo, misturavam-se os poemasde Musset e de Leopardi, os estros de Byron, Heine eVigni confundiam-se com a melancolia doce esofrida de Lamartine, enquanto Frédéric Chopinespalhava as melodias comovidas dos seus Noturnose das suas Mazurcas, que inundaram a Europa...Nesses dias Chopin compôs a “Valsa em Lá Maior”...

Repetiu-se o entusiasmo geral e a demoradaovação. No íntimo, Lucien retornava aos já distantesdias do Concurso Internacional de Piano, aos sonhosque se desfizeram em pesadelos e não podia sopitaras lágrimas, que pareciam nascer dos júbilos daquelahora, mas realmente coroavam quase doze anos deperegrinação pelo “vale da sombra da morte”, a quese refere Davi, no Salmo 23.

Concluída sua triunfal apresentação, as luzesforam acesas e a solenidade prosseguiu, festiva.

A conferência, que estudava a “Delinquência

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Juvenil à luz do Espiritismo”, dissecou os problemasda juventude e, principalmente, os do jovemdelinquente, apontando caminhos para a suareeducação, na metodologia do Evangelho: amor,disciplina e trabalho. Por 70 minutos contínuos deestudo e arroubo, conceituações felizes e exame doscânceres sociais que respondem pela marginalizaçãode incontável número de criaturas, na misériaeconômica, moral e social, o conferencista sugeriusoluções espíritas para o terrível mal que flagela omundo, e concluiu com

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emocionante peroração em louvor do trabalhoedificante, no qual todos nos devemos empenhardenodadamente.

“O problema é de todos nós — concluiu. —Portanto, cada um de nós tem que se empenhar emsua solução. Não se trata de uma questão remota,convergente para os outros, mas de grave mal quecresce e a todos ameaça. Investir na sua erradicação éhonra que nos devemos disputar.”

Entreteceu considerações finais e terminou a belaoração sob manifestações de alegria dos ouvintessatisfeitos.

À saída do auditório, Dona Angelina convidouLucien a almoçar com Armando e Myrian, no diaimediato, em seu lar.

Era do prazer da senhora receber pessoas gradas,de renome, projetadas nesta ou naquela esfera doscomentários sociais, com que exaltava a própriavaidade. Era tida por hostess perfeita, em Safira, doque muito se ufanava.

Ante o sucesso logrado pelo filho naquela noite eque a colheu de surpresa, e a presença doconferencista que se fizera preceder de brilhanterenome, desejou homenageá-los, isto é,homenagear-se, através deles.

Aliás, este é um procedimento muito em voga:cuidar das exterioridades, com o desprestígio doessencial. Todos os luminosos conceitos emitidos

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naquela noite passaram-Ihe quase despercebidos,interessando-se ela apenas pelos valores aparentes,os que rendem vantagens sociais.

Graças a tais conceitos, é ainda muito difícil aconquista do “Reino de Deus” para os que prezam asposses, as coisas pueris, as frivolidades; para os quese sobrecarregam com as riquezas da mesquinhez eda usura, da vaidade e do orgulho...

Delicadamente, o filho e o amigo aquiesceramem aceitar a gentileza e despediram-se, sorridentes.

No íntimo, estuavam de são contentamento. Nolar da Senhora Myrian, no momento do lanche queprecedeu o

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repouso, espíritos em festa, renderam graças, ememocionante oração, na qual reuniam gratidão eesperanças novas em relação ao futuro.

Dona Angelina estava esfuziante de alegria.Retornava, por fim, o júbilo fugitivo, que erarecebido com inusitada festa íntima.

“Afinal — conjeturava, recostada ao leito, sob oimpério das emoções da noite — o tempo conseguirautilizar sua esponja valiosa, apagando as sombras eos sofrimentos dos paineis da sua vida.

“Naqueles momentos em que Lucien tocava,sentimentos desordenados tumultuavam-lhe oespírito. Não poderia dizer exatamente se era amor oque sentia, ou simplesmente uma explosão devaidade materna. Sopitara as dores, ocultara aslágrimas, graças à desgraça que ele trouxera ao lar...”

Fez uma pausa nas reflexões, atendendo aoesposo que buscava o descanso, para prosseguir deimediato:

“O clã dos Menezes — relacionava mentalmente— procedia de Portugal e desde o século XVIII sefixara no Brasil, onde alcançou destaque desde osdias da Guerra do Paraguai, quando membros dafamília participaram da célebre “Retirada daLaguna”, de 1867. Aqui consolidaram o prestígiosocial e econômico que agora desfrutavam comelevada honra.

“Pelo casamento com o Dr. Euricles de Medeiros,

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uniram-se duas poderosas famílias de Safira, cujosbens formavam precioso latifúndio, onde sedestacava a criação de gado bovino, de rendososresultados.

“Mãe de vasta prole, todos os filhos lograram asvantagens do título universitário e da projeção naRepública — o que lhe significava indizíveis alegriase citações encomiásticas nos jornais, que adesvaneciam — menos Lucien...

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“Quando nele Irrompera a enfermidade, nelanascera o ódio.

“Sim, recordava-se, pois jamais conseguiraesquecer aquilo.

“Quando ouviu o diagnóstico do mal queinfelicitava o filho: “lepra”, ficara estarrecida.Recuara no espaço... e no tempo. Pareceu-lhe reverestranho porão, onde uma mãe assassinada jazia aolado do infame homicida, ensanguentado também, emorto.

“Não sabia explicar o que ocorreu então. Oassomo de ódio quase a enlouqueceu. Desejouestraçalhar o filho, pois nele via a figura hedionda dohomicida que a atormentava. — Quantas vezesaquela cena a perturbara em pesadelos horrendos?!Era como se a jovem desmaiada ao lado doscadáveres fora ela própria... Odiou-se a si mesma porhaver gerado e carregado aquele corpo, ora adesfazer-se em lepra.

“Gostaria de destruí-lo, se pudesse, mas não teveforças para fazê-lo. — Que singular visão tivera!

“Desde então, procurara lutar contra o estranhoestado dalma, sem lograr grande êxito. Longe deLucien, parecia-lhe suportá-lo... À lembrança, porém,de que ele sobrevivia à doença e ameaçava o renomeda família com o estigma da enfermidade odienta,pensava em exterminá-lo... (Ignorava, a atormentadagenitora, que na sua carne renascera o matricida que

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um dia, na distante Faenza, trucidara a mãe, sua edela. A Lei os reuniu no mesmo sangue, a fim de quese liberassem da culpa, lavando os ódios... Giuliano,sim, expungia sua culpa, mas Béatrice, aindadespreparada para a verdade, tropeçava em dúvidase relutava nas paixões...)

“Esperava que no dia seguinte, com o filho àmesa, livre da doença atroz, seria mais fácil suportá-lo e superar a antipatia. Podendo, novamente, honraro nome da família... Oh! tudo faria para que eleconcluísse a recuperação. Isso mesmo: ajudá-lo-ia.”

Sorrindo sob os augúrios das perspectivasfelizes, adormeceu.*

Safira faz lembrar muito Faenza: seu clima, suasituação geográfica e suas paisagens, possuemsimilaridades surpreendentes. Embora a italiana sejauma cidade muito antiga, alguns dos seus habitantesde outros tempos hoje se encontram renascidos nabrasileira. Certos hábitos artesanais, artísticos eculturais, de tradição e fé, em Safira, foram trazidospor aqueles espíritos vindos de Faenza, emprocessos reencarnatórios...

Toda vez que Lucien retomava à sua cidade eravitimado por múltiplas e desencontradas emoções.

Revia a infância dourada, os amigos triunfantes,os lugares queridos e, logo depois, os dolorososlances da enfermidade ... Tudo ali estava

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impregnado de sorrisos e lágrimas. Tambémrecordava, embora inconscientemente, os locais emque envenenara o próprio espírito, no passado... Esofria profundamente. Alterava-se-lhe o equilíbrioorgânico e experimentava desagradável instabilidadepsíquica.

A possibilidade de reconquistar a familia surgiu-lhe como bênção inesperada, face ao convitematerno.

O almoço no lar dos Menezes de Medeirostranscorreu agradável, senão alegre.

A elegante anfitrioa ultrapassara-se em cuidados.Lucien dedilhara o teclado, jovialmente, e os

sorrisos inundaram a casa senhorial, bem decorada econfortável.

Logo após, formaram-se grupos álacres eArmando, inquirido por todos, respondia comdelicadeza e segurança de argumentação, àsquestões que lhe eram propostas, em torno dosmagnos problemas da vida e da atualidade, à luz doEspiritismo.

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Sem que fosse percebida, a senhora,discretamente, convidou Lucien a uma entrevista, eos dois sentaram-se no amplo gabinete do Dr.Euricles, onde passaram a conversardescontraidamente.

A princípio, falaram de nonadas, intercambiandopalavras comuns, até que Dona Angelina perguntou,diretamente:— Você já teve alta clínica, meu filho?— Sim, mamãe! — respondeu o moço, com

naturalidade. — Encontro-me, porém, na Colônia,terminando uma agradável tarefa junto aosfuturos egressos. Aproveito-me do ensejo,também, para as cirurgias de que necessito, a fimde melhorar a aparência... (E sorriu, tranquilo.)

— Quanto a isto, às cirurgias — acentuou a genitora— contrataremos um especialista, em Opala, paraganharmos resultados mais compensadores...

Lucien novamente sorriu, canhestro.— Quando você pretende sair definitivamente? —

voltou a interrogar, interessada.— Muito em breve.— Não lhe conviria uma viagem ao exterior, para

esquecer, renovar-se?... Talvez, mesmo, paravoltar a tocar. .. Quem sabe das possibilidades quevocê tem?

— Nunca mais, mamãe! Estes dedos — e mostrou amão direita ainda marcada — estão

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definitivamente deformados... O que fiz ontem ehoje, somente o consegui por concessão especialde Deus. (Os olhos tornaram-se-lhe úmidos.)

Havia imensa tristeza em sua voz, um singularsofrimento nos gestos e um grande abatimento nasatitudes. A mãe percebeu e comoveu-se. Desejouabraçá-lo, mas refreou o ímpeto. Temia-o, emboranão soubesse a razão disso.— Receia alguma coisa, Lucien? — interrogou,

bondosa. Você agora está curado, filho!...

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— Sim, receio, mamãe — respondeu. A enfermidadeestacionou e passou o perigo da contaminação.Ficarei, porém, sob controle semestral. Há sempreo perigo da récidiva... E eu temo ter de recomeçartudo outra vez...

Depois de ligeira pausa, aduziu:— Nestes longos anos, quase todas as mãos que me

tocaram fizeram-no por necessidade médica, emfunção do tratamento! Eram injeções, pequenascirurgias, socorros... Quanto acalentei o desejo deuma carícia verdadeira, fosse de irmão, deconhecido, de alguém amado !... Não me queixo,não reclamo. Estou, apenas, cansado de sofrer.Oh! mamãe! (O olhar do filho envolveu-ainteiramente e ambos prorromperam emlágrimas.)

— E há tal possibilidade?— Sim, há. A volta é cruel.— Você, nós não voltaremos a sofrer mais, meu filho,

como dantes. Eu não o permitirei. Você nãoenfermará novamente. Juro que isso não se daráoutra vez. Eu prometo, meu filho...

Lucien, colhido pelas palavras de dona Angelina,percebeu-lhe alguns sinais de desequilíbrioemocional. Só então se deu conta do quanto tambémela deveria ter sofrido.

No silêncio que se fez natural, quase incômodo,Lucien começou a refletir no conteúdo daquelas

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palavras banhadas pelas lágrimas: “Juro que isso nãose dará outra vez...”

No olhar de quase desvario materno, a expressãode medo e ódio por um momento cintilou.

Nada mais puderam falar. O silêncio gravepermaneceu na sala adornada. E os dois,caminhando automaticamente, retornaram ao grupo.

Armando notou o semblante nublado do amigo eo rosto congestionado da anfitrioa, que se tornaravisivelmente inquieta.

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Alegando compromissos e fazendo-se seguir porMyrian, despediu-se, tendo o Dr. Medeiros seprontificado gentilmente a conduzi-los de volta aolar.

Lucien nada referiu ao amigo, nem este, pordelicadeza, lho perguntou.

Declarando-se indisposta, a senhora Dr.Medeiros não compareceu às demais solenidades, eseu esposo passou a preocupar-se, confessando aofilho quanto vinha observando em torno doequilíbrio psíquico da companheira.

Lucien foi visitá-la às vésperas da viagem,notando-a singularmente abatida e algotranstornada.

A sua instância, prometeu retornar antes departir.

Algo de estranho pairava no ar, prenunciandosombras adversas, que pareciam conspirar.

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4GULOSEIMAEPREOCUPAÇÃOMATERNAL

Embora aqueles hajam sido dias de renovaçãointerior e de alegrias hauridas nas fontes evangélicas,donde fluem os risos do conforto, Lucien, após odiálogo mantido com a genitora, passou a afligir-seinteriormente, sob a angústia de sucessosinesperados.

Sua mãe ultrapassava os sessenta anos e, noentanto, se demorava imatura. As dores acerbas quepadecera não a modificaram. Prosseguia maisinteressada nas superfluidades do que nosprofundos objetivos da vida. A condição econômicade que desfrutara, guindando-a desde cedo àsfacilidades sociais, perturbou-lhe a faculdade dodiscernimento; mergulhada no mundo vão dasartimanhas, do engodo exterior, não se conseguiaaprofundar nos intrincados problemas do espírito.Portadora de regular cultura, não adquirirasabedoria, adicionando conhecimentos, semarmazenar sensatez. Não se poderia considerá-la má;todavia, não se definia pelos rumos do bem. Faziaparte do imenso grupo dos neutros, dos que sevinculam à mornitude da conveniência, na qual seperdem e perturbam a marcha do progresso.

Conforme prometera, visitou-a antes de partir, efoi, por ela, delicada e largamente mimoseado.

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Parecia que ela retornara ao já distante passado,anterior à enfermidade que o vitimara. O filho,porém, que se acostumara à lição dos sofrimentos, acompreender as criaturas adentrando-as

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além das exterioridades, sofreu, à despedida,percebendo mais do que lhe convinha identificar.

No aeroporto, em companhia de Armando,Myrian e amigos, partiu para Opala, no mesmo vooque traria o devotado confrade ao lar, em Hermínia,onde novos deveres o aguardavam.

Enquanto se apresentavam, arrumando abagagem de mão, Armando, deparando com osmimos do amigo, diante do bem acondicionadopannettone, disse, com humor, objetivandodesvanecer-lhe a tristeza:— Que belo presente! Espero ser aquinhoado com

uma régia fatia deste suculento pão doce!Lucien fitou-o, triste, e tentou sorrir, sem

qualquer comentário.Logo a aeronave decolou. Passados os minutos

primeiros, quando o bulício dos serviços começava abordo, Armando notou a extrema palidez de Lucien.Indagando- -lhe do que sofria, este tranquilizou-o,informando tratar- -se de natural reação orgânica àinstabilidade do avião, na turbulência que o agitava.

Quando o bólido alcançou a velocidade decruzeiro e o céu azul, infinito, suplantara as nuvensborrascosas, Lucien, justificando o próprio mal-estar,começou a elucidar:— Desculpe-me a indelicadeza de há pouco, quando

entramos e você me ajudou com a equipagem...— Ora, meu amigo — contestou Armando. — Que é

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isso?— Necessito explicar-lhe — retornou ele. (A voz era

débil.) Estava pensando se deveria inteirá-lo ounão do ocorrido. Afinal, não pretendo ser ingrato,ou parecer que censuro a minha própria mãe...

Ato contínuo, narrou a entrevista que mantiveracom a progenitora, iludida quanto às realidadeshumanas e espirituais.

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— Quando fui abraçá-la e ela me obsequiou com opannettone, foi explicita: “É seu. Não o dê aninguém; nem uma fatia. Fi-lo para você, somentepara você. Imagine que me levantei do leito paraprepará-lo. Desgostar-me-á muito se você o der aalguém ou o distribuir no hospital. Eu o saberei eficarei desolada. Sei que você não comeu o outro eignoro o que dele fez. Este, porém, é seu,unicamente seu. Serei feliz se você me atender,filho.” — E sorriu, pobrezita!

“Prometi atendê-la. Ela fitou-me, então, demaneira indefinível; emocionou-se e disse-me:“apesar de tudo, eu o amo... a meu modo. Perdoe-metudo!” Falava com sinceridade, comovida, como senão nos fôssemos voltar mais a ver.”

O jovem silenciou, como se estivesse arrolandolembranças que desejava ordenar. Logo depois deucurso à narração:— Há dois anos, quando vim de visita ao lar, na

programática de reintegração social, fuisubmetido a testes para constatação dapossibilidade de alta. Foram dias tormentosospara mim. Procediam-me exames mensais, naexpectativa de estar em fase negativa de contágio,o que, após 12 meses em condição liberativa,possibilitaria o atestado de “cura clínica”. Eu vinhacom excelentes resultados e tudo indicava minhapróxima saída do hospital. Já me readaptava

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psicológica e socialmente. Transcorrida a semanaem casa, sem que mamãe me visitasse uma vezsequer, no apartamento do quintal, onde meencontrava, na hora da viagem foi-me ver edespedir-se. Justificou a ausência, naquelatemporada, dizendo-se vítima da enxaqueca, adesagradável indisposição que sempre aprostrava... Entregou-me um pannettone depresente, asseverando: “Preparei-o com especialcarinho para você, que sempre o preferiu. Alegrar-me-ia muito se o comesse todo, quando láchegar... Não o dê a ninguém. É uma carinhosalembrança que eu dedico a você... Saberei se vocêo deglutiu ou não.” E ofertou-mo. Mamãe éexcelente artista culinária, que deleitava a família,de quando em quando.

“Agradeci-lhe, emocionado e confundido, poissupunha que me detestasse. Despedimo-nos e viajei.

“Sempre amei os animais, como você bem osabe. Comigo, no apartamento da Clínicapsiquiátrica, onde já me encontrava cooperando,mantinha um querido gato angorá: Gris, como eu onominara.

“À noite, após a fadiga da viagem, arrumei-mepara o lanche, perseguido por Gris, sempreesfaimado, com seu pelo reluzente e macio.

“Doei-lhe larga fatia do pão e dispunha-me àrefeição, quando fui chamado a atender um amigo

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que entrara em crise depressiva, havendo tentado osuicídio.

“Segui apressadamente e busquei ajudá-lo, como enfermeiro plantonista, até acalmá-lo, horasdepois.”

Lucien passou a medir as palavras, que lhe saiamdos lábios, lentas, quase inaudíveis.

— Quando retornei, exausto — prosseguiu —,deparei com o Gris morto, à entrada da sala... Fuiacometido por terrível desespero. Não podiaentender o ocorrido. No solo, sobre o seu prato derefeição, estavam os restos do pannettone. Comoentender? Aturdido, convoquei o enfermeiro-analistae, numa necropsia improvisada, ele diagnosticou acausa mortis do meu bichano: envenenamento porarsênico, colocado no pão, conforme constatamos deimediato. Ante o infausto acontecimento e aindaprofundamente abalado, justifiquei-me,esclarecendo que eu trouxera a isca envenenadapensando nas ratazanas que empestam a Colônia enão poucas vezes se locupletam em pacientesinsensíveis, no "ferro-velho” ... (6)

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“Ninguém pode saber o que se passou comigo.Minha própria mãe desejava libertar-se de mim.Recordei-me de uma frase sua: “Com sua morte,filho, todos descansaremos: você repousará,libertando-se do infortúnio, e eu ficarei tranquila,sem este pavor, que me alucina, de que alguémdescubra o seu mal e faça a vergonha se abater sobrea nossa família...”

“Infeliz mamãe!”Ele estava desfeito, ferido.

— Não é necessário que se aflija tanto — apressou-seArmando, para poupá-lo às melancólicasrecordações. — Eu compreendo todo esse drama.Esqueça o mal, e oremos, confiantes no bem.

— Sim, sim! — aduziu, paciente. — É o que procurofazer. Todavia, no ano passado, quando retomei acasa, ela agrediu-me, censurando-me por não meter servido do pão. Dissimuladamente redargui-lhe:

— “E como o sabe, a senhora? Pois tenha a certeza deque nele nutri-me, em companhia de amigos daColônia.

— “Você mente — acentuou, colérica. — Se você setivesse dele alimentado, eu o saberia.

— “Ora, mamãe — espicacei-a, rebelde —, nada mataleprosos, nem mesmo a lepra! A própria doençarouba as energias, a fim de que o assassino davida seja outra enfermidade... Esteja tranquila.

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— “Você não ficará impune — esbravejou,golpeando a mesa — por zombar de mim.”

“E saiu do apartamento, deixando-memergulhado em duras, amargas reflexões.

“Confesso que, pela primeira vez, detestei-a.Impulsos inferiores assomaram-me, sendonecessário hercúleo esforço por dominar-me.”

Lucien suava e tremia. Além das doridasrecordações, padecia as contingências do voo, que setornara desagradável, em face do mau tempo.

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Cerrou os olhos, silenciosamente, e as lágrimaslhe escorreram pela face magra e macilenta.— Agora, novamente — reiniciou a conversa, com

lentidão —, mamãe faz outra tentativa infeliz...Perdoe-me, estou tenso. Receio esquecer-me dessepresente e que alguém, encontrando-o... Somentena Colônia me poderei libertar delesatisfatoriamente, queimando-o...

— Rejubile-se — acrescentou Armando, dandoinflexão otimista às palavras — por estar emsublime expiação, resgatando-a com êxito. DonaAngelina sempre esteve enferma, encontrando-seagora em agravada situação. Recorde-se do ensinoevangélico: “Bem-aventurados os que choram,porque serão consolados!... Alegrai-vos e exultai,porque é grande o vosso galardão nos céus!...”Ditosos aqueles que dispõem da moeda-resignação, para o ressarcimento dos débitosmorais que trazem do pretérito!

“Não somos outros, senão os espíritosagressores, usurpadores de ontem, nos recomeçosInadiáveis de hoje. Por tal motivo, reencamação éjustiça de braços abertos para acolher os antigostrânsfugas. Você consegue agora as láureas que nosfaltam a quase todos, transformando-se em lição vivade fé, atestado do que pode a bendita DoutrinaEspírita realizar nas províncias da alma,especialmente quando esta se encontra azorragada

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por rudes borrascas. .— Armando, sinto-me cansado — balbuciou,

compungidamente. — Já não vejo alvoradas, maspoentes... Tudo: aspirações, sonhos, esperanças,trasladei-os para o Além... Parece-me que a horase avizinha...

Os amigos se apertaram as mãos, sem palavranenhuma. Já não havia o que dizer, nem se fazianecessário.

A aeronave aterrissou e os passageiros saltaram.Após desembaraçar a bagagem, Lucien

despediu-se de Armando, que prosseguiria viagem.— Até breve! — tartamudeou o poeta.

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— Até logo mais... — assentiu o mensageiro, queficou olhando-o, a claudicar na direção do táxi,atravessando o Imenso saguão do Aeroporto deOpala, vagarosamente, acompanhado pelocarregador da bagagem.

Sem saber-se explicar, Armando experimentouaguda aflição, estranha amargura, vendo o amigoalquebrado que se ia, em solidão.

Vencido por impulso incoercível, correu e oabraçou, como se desejasse, naquele amplexo, dizertudo quanto não sabería, nem conseguiria expressarde outra forma.

Conduzindo-o ao veículo, ambos choravam.O táxi partiu, buscando a cidade tumultuosa,

enquanto ele ali ficou, contemplando a floresta deconcreto, a distância, pensando no amigo...

Os alto-falantes anunciaram a partida do voo.Cabisbaixo, Armando seguiu na direção de outrasrealidades, carregando, túmido de angústias, oespírito saudoso. Fazia- -se imprescindível seguir,mesmo com a alma ferida, confiando em Deus.

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5LUCIENROMPEASALGEMASArmando não se podia libertar da estranha

compressão íntima que o afligia desde que seseparara de Lucien. Parecia-lhe que as débeis forçasdo amigo se esvaíam irreversivelmente. A despedidanão parecia prenunciar novo encontro no planofísico. As informações que lhe ministrara o amigo, abordo da aeronave, afligiam-no. Somente umaDoutrina fundamentada na reencarnação, qualocorre com o Espiritismo, possui a chave paraelucidar os enigmas da atormentada personalidadehumana, traduzindo a misericórdia e a justiçadivinas. Por trás das ocorrências externas, quantasdesconhecidas matrizes de acontecimentos jazemocultas! Na Terra sucedem-se os desfechos, cujosfatores causais vêm das existências pregressas, nelaigualmente gerados. Tudo são componentes decomplexo quadro, que não pode ser considerado porângulos isolados.

“Aquela viva animosidade — reflexionouArmando — mantida pelo inconsciente de DonaAngelina, a ponto de aspirar a destruir o filho,remanescia do pretérito quadris- secular de que nãosabia libertar-se. Quantos crimes que diariamenteocorrem resultam da fraqueza atual de antigasvítimas, que se convertem em algozes infelizes!ódios no lar, paixões açuladas, enfermidadesnefastas, idiossincrasias persistentes, antipatias

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violentas, assomos de loucura e diversos outrosfatores que afetam a estrutura moral, social eespiritual do homem, se enraízam no ontem de cadaum!

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“Que sublime futuro está reservado aoEspiritismo, no ministério de esclarecer e conduzir oespírito humano! Dia virá em que reverdecerão aspaisagens espirituais da Terra, e o amor — alma daCriação! — espargirá felicidade, conforme asauspiciosas promessas do Cristo de Deus.

“Tudo, portanto, está certo, ocorre dentro de umesquema que se realiza conforme o esforço que cadaqual empreende, granjeando méritos ou não.”

Intimamente compreendeu que chegavam osdias da libertação do amigo. Como, porém, a dor daseparação pela morte é a mais terrível, quando seama, na Terra, o amigo passou a sentir a presença doaguilhão da saudade...

Em Hermínia, ao retornar, os labores doquotidiano absorveram-no. Recordava-se, porém,amiúde, do companheiro querido. Sem embargo,havia tanto que fazer, nos deveres a que se afeiçoara,que as lágrimas e as dores de quantos o buscavam,ansiosos, tomaram-lhe o tempo mental.

Ocorre que a caravana dos “filhos do Calvário”,isto é, dos sofredores de todos os tempos, é cada vezmaior. Poucos, porém, são aqueles que se dispõem adistender-lhes mãos amigas, amparando-os namarcha, como a irmãos dos seus sofrimentos. Essesescassos obreiros do Consolador, em razão disso,mais sobrecarregados se encontram, a cada dia e atoda hora.

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Os meios de comunicação, que não cessam demultiplicar-se, noticiam diariamente as tragédias emque se consomem a esperança e a dignidade,fomentando a insensatez, a soldo da violência e dacriminalidade, e ampliando a sementeira dalicenciosidade e da loucura.

Armando não media esforços no labor socorrista,lecionando otimismo e paciência, distribuindo o pãode luz e o de trigo, o medicamento e o agasalho,juntamente com outros valorosos trabalhadores,devotados à vivificação do Evangelho, nas provínciasde dor e sombra dos infelizes que os buscavam.

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Lucien retornou igualmente ensimesmado. Nãoobstante as alegrias hauridas — prenunciadoras dedespedidas —, o diálogo com a progenitoraproduzira-lhe indescritível mal-estar. Sabia dosintentes que a pobre senhora acalentava e foraconstrangido a carregar, em forma de presente, asentença fatal... No entanto, queria-a, apesar de tudo.Dela guardava recordações muito queridas e devia-lhe, senão afeto, pelo menos a oportunidade deviver. Identificava-a como a desventurada Béatrice,que a sua insânia arrastara a superlativas dores, nopassado, e sabia que o seu resgate resignado deveriacomovê-la e abrir-lhe as portas da alma ao perdãoIncondicional.

A valiosa intuição da proximidade do fimorgânico anunciava-lhe chegado o tempo, o azadomomento da liberdade.

Assim, sustentado na fé, redigiu longa missiva àgenitora, narrando-lhe sucintamente as razõespregressas da enfermidade que o martirizara portodo um decênio e falando-lhe do seu perdão.

— “Anelei — escreveu, emocionado —, durantetodos estes anos, a sua compreensão, senão a suapiedade. A princípio, aguardava uma carta do lar,qual um prisioneiro das sombras, que sonhasse comum raio de sol, enquanto jazia a ferros, no grabatodo abandono. Bem sei, porém, que a senhora nãotem culpa. Nossos destinos voltaram a unir-se, para

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que nos reajustássemos ao código das LeisSoberanas...

“Graças a Deus, parto do corpo pelo fenômenoda morte natural, sem que algo ou alguém me hajaapressado o fim... Assim, avançarei feliz, porque nãoterei sido causa de nova desgraça, nem o remorso seaninhará em coração algum.

“O passado volta, mamãe. Apaziguemo-nos comele, enquanto nos sorriem as oportunidades!

“Um dia, a senhora compreenderá muito mais, anosso respeito. Aqui, tenho visto e acompanhado odesagregar

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de mil ilusões. Como agradecer a Deus o abençoadocatre em que renasço definitivamente para a vida?!

“Logo mais, quando chegar-me o instante dapartida, seguirei sem mágoas, sem rancores. Esperofitar a retaguarda com amor e gratidão. Repassodesde já, mentalmente, os dias que se foram, e sóentão descubro quanto me foram preciosos. Sou umnovo Jasão da paz, que encontrou inesperadamenteo “Velocino de Ouro”, onde jamais supunha queestaria. A minha Cólquida começava depois daentrada do leprocômio e os meus Argonautas forama oração, a paciência, o silêncio e a fé incessante.Vend o Dragão que surgiu dentro de mim, na formade ulcerações lepromatosas, mas não me utilizei dosartifícios de Medeia, nem me deixei sucumbir às suaspérfidas maquinações. O meu Pélias, que é o meupassado, agora está em paz, e a dívida, sem maisódio, resgatada...

“Oro pela sua paz e lamento não ter sido umadas suas joias, conforme dos filhos se ufanavaCornélia, a célebre mãe dos Gracos. Tudo fiz paraevitar desgostos à senhora e à família... Aenfermidade, porém, vivia comigo antes do berço,nos tecidos sutis do perispírito, aguardando ensejopara manifestar-se.

“Perdoe-me, mamãe, e recorde-se de mim compiedade, se não me conseguir amar.

“Tudo o mais se consumará dentro em breve.

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Passado esse dia, que já chega, recomponha suavida. Estaremos livres, eu e a senhora cada um na suaprópria esfera...”

A mensagem era pontilhada de carinho e de fé,de ternura e de bondade.

“Volte-se para Deus! — concluía. — Ninguémvive em paz sem fé. Jesus é o Gula Divino: busque-O!”

E despedia-se comovedoramente.Cerrou o envelope, subscritou-o e o guardou.No dia imediato escreveu também a Armando e a

Myrian, os dois corações amados, uma só missiva.

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Acalmadas as ansiedades e acreditando-se empaz, deu curso às atividades que lhe diziam respeitoe aguardou, confiante e paciente...*

A epistola estava assinada pela Reverenda MadreMaria Auxiliadora, e Armando leu-a com crescenteemoção.

“É do meu dever — narrava a religiosa —notificar-lhe o falecimento de Lucien, conforme mefoi por ele solicitado antes.

“Foi um anjo e agora está aos pés de NossoSenhor! (A linguagem traía a mentalidadeeclesiástica.)

“Éramos muito amigos e nos identificávamos,apesar de algumas diferenças de opinião religiosa.

“Paciente na vida, também o foi na morte.“Nenhuma reclamação, revolta alguma.“Foi vítima de um enfarte do miocárdio,

sobrevivendo por algumas horas, e não resistiu anova crise. Nesse ínterim, após a dor crudelíssima,estive à sua cabeceira, orando...

“Com estoicismo, aguardou o momento e fez-mealgumas recomendações, de que me desincumbo.

“Quando percebeu que estava prestes a partir,solicitou-me orar a “Prece dos agonizantes” (7) eembora o sofrimento que lhe arrebentava asalgemas, no corpo cansado, esboçou um sorriso ebalbuciou:

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— “Deixe-me chamá-la... mamãe!...“Acostumada, como estou, à aparição do anjo da

morte, ao lado de muitos pacientes, não contive asminhas lágrimas, como se alguma coisa dentro demim houvesse morrido também.

“Demorei-me ali, olhando-lhe a facedescontraída, quase sorridente... Cerrei-lhe aspálpebras e pus-me a pensar no mistério da morte.

“Onde, agora, a força que acionava músculos eórgãos? Que foi feito da luz que até há poucobrilhava naqueles olhos e do som que aqueles lábiosemitiam?

“Diante de um corpo morto, ninguém há que senão pergunte pela vida. Só a teimosa descrença tentareduzir a vida a um nada estúpido, aliás inutilmente.

“Bem-aventurados os que creem, porquantoviverão!

“Anexo-lhe a missiva que ele me entregou, aosenhor endereçada.”

As palavras finais, de despedida, eram corteses,de alma humilde, forjada nos fornos do sacrifício eda abnegação ao próximo.

Armando abriu o envelope e deixou-se envolverpelas agridoces recordações, lendo a corretacaligrafia do amigo sempre vivo, a narrar gratidão eprogramar recomeços após o desgaste orgânico.

“A vida — registrara com firmeza — não sãoapenas queixumes, amarguras, desencantos, mas,

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também, esperanças de paz e anelos de amor, emfecundo programa de imorredouras realizações.

“Ante a indestrutibilidade da alma, não cessamos sonhos de felicidade, nem diminuem asaspirações aos júbilos. A vida são belezas e não sótristezas, porquanto estas traduzem apenas o nossoatraso mental e moral; são os dias que alvorecem enão as noites sombrias, que nascem da ausência daluz solar; são os amores, e não os ódios, quetraduzem primitivismo; são as experiências decrescimento e não os estacionamentos na sendaevolutiva; são as canções de paz e fraternidade, emritmo de entendimento e música de ternura, e não osruídos desordenados do desespero ou da rebeldia...São as maravilhas da Natureza e as flores miúdas docampo, não os espinhos, a urze, a terra adusta; são afé e a caridade, não a descrença, nem a indiferença;são a solidariedade e o trabalho edificante, não oegoísmo ou a preguiça nefasta... A vida é o hálito doPai Celeste que a tudo vitaliza e sustenta...

“Se eu pudesse doar algo aos que ficam, deixariaas noites de luar para os que amam; as praias desonho para os que têm sede de beleza; as flores dacampina para os que pesquisam, e as montanhas dafé para os que meditam, dizendo-lhes: amai,porquanto só o amor permanece: — frui-o em toda asua grandeza!

"Gostaria que vocês me lembrassem,

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recordando-me feliz. As lembranças despidas deamargura são benéficas aos que sobrevivem à mortee os envolvem em sinfonias de bênçãos. Oxalá aminha passagem pelos seus caminhos não haja sidode sombra ou de melancolia.”

Armando enxugou as lágrimas discretas e o suora porejar-lhe pelo rosto pálido. Não saberia dizerquais os sentimentos que então o visitavam.

Volveu mentalmente à carta cujo texto reatara osliâmes com o amigo agora desencarnado, na qual elerogava ajuda para o artesanato que iria beneficiar osfuturos egressos da hanseníase.

O tempo parecia não ter existido nesse ínterim.Lucien agora estava livre. O prisioneiro

arrebentara as correntes e rompera com a retaguarda.Amanhecia no seu caminho imortal, após sublimadae vitoriosa expiação.

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6ABÊNÇAODAPAZAs distonias nervosas que já vinham inquietando

a Senhora Medeiros, desde o último encontro quemantivera com o filho, agravaram-seexpressivamente.

Após o diálogo franco entre ela e Lucien,enraizara-se-lhe no espírito a disposição de encerraraquele terrível capítulo da existência, através daeliminação pura e simples do moço. Por isso nãohesitou em brindá-lo com o pannettone envenenado.Na sua mente enferma, aquele era um segurométodo de tranquilização para todos. Sem saber-seexplicar o que acontecera, o reencontro propiciara-lhe estranha piedade. Não lhe ocorrera antes oexpressivo valor do tributo que o hanseniano pagavaà dor. Pensara exclusivamente em si própria, nos seusinteresses contrariados. No entanto, quando ouviraas sofridas exclamações daquela alma martirizada,resolvera-se libertá-la da canga pelo assassínio. Seriaum ato de piedade, uma aplicação da eutanásia. Nãorecearia fazê-lo, nem sequer pensara nasconsequências legais, desde que as questões moraisdo crime, mesmo na primeira tentativa frustrada, nãolhe vieram à razão atormentada.

À despedida, acompanhando o filhoenfraquecido, al- quebrado, como se fora construídode delicados cristais, transparentes e destroçados, acarregar o veneno que o iria destruir, dominou-a

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incoercível tristeza. Desejou arrebatar a guloseimafatal, gritar-lhe a confissão que a aliviaria de todaaquela dor, mas não pôde fazê-lo. O orgulho a que seaferrara durante a vida e a indiferença pelo filho,

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o entranhado ódio, sustentado por muitos anos,impediram-na salvar-se do que viria depois.

Pela imaginação em desalinho acompanhou todaa viagem, concebeu a cena da tragédia, meditou nosresultados, experimentou os desencontradossentimentos de alegria tresloucada e dearrependimento tardio...

Refugiou-se, depois, à espera das notícias doinfausto acontecimento. A excitação a pouco e poucodominou-a, passando a estado de hipersensibilidadeparanoica.

Vinculada a adversários do pretérito e emdesequilíbrio psíquico, rendeu-se a mortificadoraobsessão. Mentalmente via Lucien contorcendo-sesob a ação do tóxico letal — remanescente dasubconsciência, que fora fixada fortemente natragédia de Faenza —, descambando do descontrole,que se lhe tornou total, à alucinação de longo curso.

Francamente: Dona Angelina enlouqueceu,vítima da incúria e da rebeldia. Não soube, sequer,da desencarnação do filho, que se desenovelara dostecidos físicos, vinte dias após haver retornado àColônia.

O Dr. Euricles Medeiros providenciou psiquiatraamigo para assistir a esposa no lar, receoso deconduzi-la a um frenocômio, e preferindo arcar comos efeitos do desequilíbrio dela, capaz deconfidências que deveriam morrer ignoradas. É claro

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que também ele conhecia, de certo modo, os planosda consorte, e esforçava-se por ignorá-los. DetestavaLucien e sempre o tivera em conta de abjeto. Os rarosmomentos em que o suportara foram resultantes doverniz social que se impunha. Parecia conhecê-lo eodiá-lo desde priscas eras. Singular estado dalma!

(Tommaso, o antigo administrador da Herdadedos Lunardi, reencarnara-se para o consórcio comBéatrice, a fim de lavarem juntos, nas águas lustraisdo amor, a vasa do ódio, abrindo o coração àpiedade, à misericórdia.)

Cúmplice, portanto, e responsável indireto pelodesequilíbrio psíquico da esposa, foi surpreendidopela desencarnação do filho, quando planeavareparar os males da Indiferença, mandando buscá-lode volta para o seio da família. "Dis aliter visum.” (8)

Quando, porém, a caridade tarda demais, seusesforços podem restar infrutíferos. O empenho pelobem, a reabilitação, as experiências do amor, quedevem clarear os espíritos, têm regime de prioridade,em qualquer clima de serviço. Adiar o bem é formade retardar ou obstar o progresso, perturbando avida.

Ante o lacônico telegrama que lhe fora enviadopela religiosa, em nome do hospital, o Dr. Medeirosdeixou-se dominar pelas refreadas emoções e nãosuportou o peso da realidade. A esposa, prestes aseguir na direção de um hospital psiquiátrico, e

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Lucien, agora desencarnado, constituíam-lhesuperlativo dissabor.

"Sim — refletiu —, gostaria que tudo houvessetranscorrido de maneira diversa. Agora que a velhiceo surpreendia com desencantos inesperados, quenão daria para refazer o caminho, contornarobstáculos, modificar situações? O orgulho perdera-o. Sentia-se muito só. Fora apologista do "après moi

le deluge’’9. Os filhos, educados para o egoísmo e a

ambição desordenada, brilhavam no proscênio domundo, muito longe dele. Eram amigos apenasgentis, sorridentes. Todavia não aprenderam a sercompanheiros na dor, solidários no testemunho daamargura e da soledade. Ele não se preocupara embrindá-los com o conhecimento profundo das liçõescristãs, de modo aquinhoá-los com os tesouros daafeição desinteressada. Enriquecera-os de benstransitórios e estava quase só.

“Poderiam os filhos compreender todas aquelastristes conjunturas, cujo desfecho também a elesurpreendia?

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Detestavam Lucien, receosos do contágio, dahumilhação. Aliás, aquele nome só fortuitamente eraenunciado naquele lar..

Nesse estado dalma leu a carta que o filhodirigira à mãe.

Era quase um poema, digno de Keats, cujosversos eram prosa de amor e ternura, salmodiandoaspirações transcendentes.

Nem uma única vez, sequer, apresentava queixa;antes, era toda de gratidão a missiva de despedida.

Dona Angelina, desvairada, não pôde tomarconhecimento do seu conteúdo, delirando entre asevocações da hediondez passada e o tormento docrime cuja não consumação ignorava.

A conselho de Myrian Vasconcelos, que seprontificara assisti-la numa Casa de Saúde dirigidapor espiritistas, em cidade do interior de Opala, paraali foi transferida a inditosa senhora.

Sem olvidar Lucien, que sabia venturoso,Myrian, portadora de apurada sensibilidademediúnica, passou a cooperar nas tarefas dedesobsessão, no hospital, com que se beneficiavalargamente a amiga antiga e dileta filha. Sem dúvida,a cristã veneranda nutria grande afeição pela damatranstornada. O pretérito espiritual sempre ressurge,e os liâmes, ao se reatarem, fazem desabrochar ossentimentos que dormem. Ante, porém, os doisafetos, Lucien, pelos amaríssimos sofrimentos, mais

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lhe requisitara a afeição, de que necessitava emmaior dose. No entanto, face ao estado dedesequilíbrio em que mergulhara, Dona Angelinadespertava na genitora espiritual as vibrações deinefável ternura, socorro e proteção.

No desequilíbrio que a vencia, referia-sedesconexamente aos acontecimentos transatos,ressuscitando lembranças afligentes.

Através do concurso mediúnico aos padecentesdos desvairos psíquicos e graças aos excelentesserviços dedicados

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ao bem, a admirável trabalhadora do Evangelhopassou a sintonizar com Lucien, em esfera derepouso e paz.

Com o tempo, pelo processo da inspiração,conseguiu recompor as peças da antiga tragédia eassessorar com mais eficiência a personagemsofrida, arrancando-a das espessas sombras dodesespero em que se refugiara.

Os perseguidores desencarnados foramcaridosamente atendidos e, com a bênção do tempo,Lucien, recuperado da cirurgia profunda realizadapela morte, retornava para ajudar Myrian nocometimento salvacionista.

Ajudada pela preciosa terapêutica psiquiátrica,de eficientes resultados na reorganização dosimplementos da emotividade, a organização psíquicade Dona Angelina se rearticulou lentamente,facultando-lhe participar da psicoterapiadesobsessiva.

Após as alucinações, advieram os estados deentorpecimento e desinteresse, que cederam lugar aoreacender dos centros da vida mental, que aconcitavam a voltar à realidade.

Seis meses depois de internada e já em relativatranquilidade, retornou ao lar, como medida dereadaptação familial, para consolidação dotratamento.

A acolhida jubilosa do esposo e dos demais

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familiares propiciou-lhe renovação e entusiasmo,antecipando-lhe a possibilidade de reconstruir a vidaquase destroçada.

Estimulada pela sadia convivência ao lado deMyrian, passou a assistir às preleções doutrinárias doCentro Espírita “Discípulos da Verdade”,reajustando-se intimamente ao programa dacaridade.

Os resultados foram de imediato e salutar efeito.Acalmaram-se-lhe os estados de inquietação

espiritual, enquanto descobria, no serviço aopróximo, a alegria de ser útil a si mesma.

Substituiu a rotina social pela festa contínua dasolidariedade, a que se entregou, recuperando-sesurpreendentemente, sem necessidade de retornar àCasa de Saúde.

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A caridade é luz na estrada, abençoando assombras e tornando-as claridade.

O Senhor e a Senhora Euricles Medeirosreencontraram Jesus e recomeçaram o labor,assistidos por Lucien, que, do Mundo Espiritual, setornou a pouco e pouco, o filho diligente e o amigodevotado, abrindo-lhes os horizontes infinitos daesperança, a benefício dos deserdados e dossofredores da Terra, jamais esquecidos de Deus. Areencarnação expiatória libertou o calceta, ensejandoa ventura àqueles que lhe sofreram o guante cruel.

Jornadeando pela senda humana, prosseguemeles crescendo através do amor e aprendendo que sóo amor poderá implantar na Terra o legítimo “Reinode Deus”.

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Notas

[←1]Todos os asteriscos pertencem ao Autor espiritual.

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[←2]Por motivos óbvios, os nomes das personagens

e das cidades onde ocorreram os acontecimentos empauta, foram pro- posltalmente mudados.

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[←3]52ª edição FEB.

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[←4]“Obras Póstumas”, Segunda Parte, "Minha Missão”, 15*

ed. FEB.

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[←5]Condutores de mercenários.

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[←6]"Ferro-velho” 6 gíria hospitalar com que se apelidam os

mutilados Irrecuperáveis, postos em enfermarias próprias enem sempre assistidos convenientemente.

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[←7]De "O Evangelho segundo o Espiritismo", de Allan

Kardec, cap. XXVIII, n« 57, 71» ed. FEB.

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[←8](•) "Os deuses resolveram de outra maneira", dizia

Virgílio (Eneida, II, 428).

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[←9]“Depois de mim o dilúvio”, célebre frase atribuídaa Luis XV, Rei de Franca.