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Tradu rido elo alemão por Marcelo Fagerlande Revisão de texto de Maria Teresa Resende Costa (' M yrna Herzog Prefácio c noras de M yrna Herzog NikolausHarnoncourt o Discurso dos Sons Caminhos para uma nova compreensão musical segunda edição '\ :':. /)- ,- . _. / Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

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  • Tradu rido elo alemo porMarcelo Fagerlande

    Reviso de texto deMaria Teresa Resende Costa

    (' Myrna Herzog

    Prefcio c noras deMyrna Herzog

    NikolausHarnoncourt

    o Discurso dos SonsCaminhos para uma nova

    compreenso musical

    segunda edio

    '\ :':. /)- ,-. _. /Jorge Zahar Editor

    Rio de Janeiro

  • 16 o discurso do.' 5011.1

    A interpretao da msica histrica

    execuo de msica -- um ponto de vista que possivelmente seaplica msica ps-revoluo, mas que de forma alguma vale paraaquela composta nos perodos anteriores,

    Estou Iirrnemcnte convencido de que de importncia decisiva.para a sobrevivncia do esprito europeu, saber viver com a nossacultura, Para tal, no que concerne msica, coloco duas condies:

    Primeira os msicos precisam ser formados atravs de novosmtodos que correspondam queles de duzentos anos atrs. A msicaem nossas esc elas no ensinada como uma lngua, mas somentecorno uma tcnica de prtica musical; o esqueleto tecnocrtico, semvida.

    Segunda: a formao musical geral deveria ser repensada e re-ceber o lugar que merece. Assim, iremos perceber as grandes obrasdo passado por um novo prisma: aquele da diversidade que nosmobiliza e nos transforma (:~que tambm nos prepara para absorver'J novo,

    Todos ns precisamos da msica, sem ela no podemos viver.

    Pelo fato da musica histrica desempenhar um papel preponderantena vida musical de hoje, vale a pena discutirmos, aqui, alguns pro-blemas a ela relacionados. J-LI dois pontos de vista bsicos COIll rc-fao msica histrica que corrcspondern tambm a dois tipos deexecuo: um deles a transporta ao presente, e o outro tenta v-Iacom os olhos da poca l:111 que foi concebida. -', ,

    A primeira concepo a mais natural e comum s pocas emque h uma msica contempornea realmente viva. Ela tambma nica possvel ao longo da histria da msica ocidental. desde osprirnrdios da polifonia at a segunda metade do sculo XIX. e, aindahoje, grandes msicos mantm esta concepo. Este conceito se ori-ginou do fato de que a linguagem da msica sempre foi consideradacomo sendo absolutamente ligada a seu tempo. , por exemplo, oque sucedia no sculo XVIII. Uma pea composta nas primeiras d-cadas deste sculo j estava - mesmo que se lhe reconhecesse valor- inteiramente fora de moda por volta da metade do sculo. sempre motivo de surpresa ver o entusiasmo com que os antigosapreciavam suas composies contemporneas. era como se estasfossem sempre descobertas inditas, A msca antiga era consideradacomo uma etapa preparatria. no melhor dos casos como materialde estudo; ou ainda mais raramente, usada para alguma execuoespecial, quando seria rcarranjada. Nestas raras execues de msicaantiga - no sculo XVII[, por exemplo, - considerava-se impres-cindvel uma certa modernizao, Em contrapartida, os compositoresdo nosso tempo, que adaptam as obras histricas, sabem perfeita-mente que as obras seriam tambm facilmente aceitas pelo pblicosem tais modificaes; esses arranjos, portanto. no so de extremanecessidade como nos sculos anteriores, quando a msica histricaera modernizada de acordo com a concepo pessoal do arranjador.Regentes como Furtwaengler ou Stokowski, que possuam um idealromntico tardio, executavam a msica antiga com esse esprito.

    FernandoLinha

    FernandoLinha

  • 18 o discurso dos sons

    2-)

    Dessa forma, obras de rgo de Bach foram instrumentadas paraorquestras wagnerianas, e suas Paixes foram executadas de maneiraultra-rornntica. com conjuntos gigantescos.

    A segunda concepo, a chamada autntica, consideravelmentemais recente que a primeira, e data aproximadamente do incio dosculo XX. Desde ento, essa execuo "autntica" da msica his-trica tem sido cada vez mais exigi da, e importantes intrpretes pre-tendem fazer disso um ideal. Tenta-se fazer justia msica antiga,recriando-a segundo O' esprito do tempo em que foi concebida. Estaconcepo com relao msica histrica - no traz-Ia ao pre-sente, mas recoloc-la no passado - sintoma da ausncia de umamsica contempornea realmente viva. A msica de hoje no satisfaznem o msico nem o pblico, que, em sua maioria, a rejeita; e parapreencher o' vazio assim criado, ns nos voltamos para a msicahistrica. Nesses ltimos tempos, habituamo-nos mesmo a compreen-der o vocbulo msica como significando, em primeiro lugar, a m-sica histrica e quando muito o aplicamos secundariamente msicacontempornea. Esta situao absolutamente nova na histria damsica. Um pequeno exemplo para ilustrar a afirmao: se hoje emdia retirssemos de uma hora para a outra a msica histrica dassalas de concerto e s executssemos obras modernas, as salas esta-riam rapidamente desertas - exatamente como teria acontecido notempo de Mozart se retirassem do pblico a msica contemporneae s lhes fosse oferecido msica antiga (a barroca, por exemplo).Constata-se ento que a msica histrica, principalmente a do sculoXIX, sustenta a vida musical de nossos dias. Desde o nascimento dapolijonia nunca se dera um caso como este. Da mesma forma, emoutros tempos, nunca se sentira necessidade, na execuo da msicahistrica, de uma autenticidade como a que hoje exigimos. A visohistrica absolutamente estranha a uma poca culturalmente viva.Observa-se O' mesmo, tambm, nas outras artes: assim, por exemplo,no havia antigamente qualquer escrpulo em construir uma sacristiabarroca em uma igreja gtica, em jogar fora os mais maravilhososaltares gticos e colocar os barrocos nos seus lugares, enquanto quehoje tenta-se preservar e restaurar tudo. Esta concepo histricatem, contudo, algo de bom: pela primeira vez na histria da artecrist ocidental, podemos adotar um ponto de vista livre e, dessaforma, a~r toda a criao do passado. isso que explica ofato da msica histrica estar ocupando cada vez um espao maiornos programas de concertos.

    princpios fundamentais da msica e da interpretao 19

    Em msica, a ltima poca verdadeiramente viva e criativa foia fase final do romantismo. A msica de Bruckner, Brahms, Tchai-kovsky, Richard Strauss, entre outros, ainda constitui uma expressoviva de seu tempo. Mas depois disso toda a vida musical se petrifi-cou: ainda hoje, esta msica a que se escuta com mais freqnciae agrado e a formao de msicos nos conservatrios continua aobedecer aos ditames desta poca. Parece at que no queremosadmitir que muitas dcadas j se passaram desde ento.

    Quando executamos atualmente msica histrica, no podemosIaz-lo como os nossos predecessores das grandes pocas. Perdemosaquela espontaneidade que nos teria permitido recri-Ia na pocaatual; a vontade do compositor para ns a autoridade suprema;encaramos a msica antiga como tal, em sua prpria poca, e nosesforamos para recri-Ia de maneira autntica, no por motivos his-tricos, mas porque isso nos parece, hoje, o nico caminho verda-deiro para execut-Ia de forma viva e digna. Mas uma execuo sser fiel se ela traduzir a concepo do compositor no momento dacomposio. Sabemos que isso possvel, mas at certo ponto: aidia original de uma obra deixa-se apenas adivinhar, sobretudoquando se trata de msica muito distante de ns no tempo. Os ind-cios que nos revelam a vontade do compositor se resumem nas indi-caes referentes execuo, na instrumentao e nas vrias prticasde execuo, em constante evoluo, e que o compositor supunhafossem naturalmente do conhecimento de seus contemporneos. Tudoisso nos exige um estudo muito aprofundado que pode levar-nos acometer um srio erro: o de tocarmos a msica antiga de acordoapenas com os nossos conhecimentos. assim que nascem estasexecues musicolgicas que vemos por a: quase sempre irrepreen-sveis historicamente mas que carecem de vida. prefervel umaexecuo inteiramente errnea, do ponto de vista histrico, pormviva musicalmente. Os conhecimentos musicolgicos no devem cons-tituir-se um fim em si mesmos, mas apenas proporcionar-nos os meiosde chegarmos a uma melhor execuo que, em ltima instncia, serautntica se a obra for expressa de forma bela e clara.

    Isto acontece quando o conhecimento e a conscincia das res-ponsabilidades se unem mais profunda sensibilidade musical.

    At o presente, deu-se muito pouca ateno s transformaescontnuas da prtica musical, chegando-se mesmo a consider-Iascomo secundrias. O erro est na concepo de um "desenvolvimen-to" a partir de for~ o~iginais pri~passando por etapas inter-

  • 20 o discurso dos sons

    medirias mais ou menos deficientes at chegar a uma forma defi-nitiva "ideal" que, sob todos os aspectos, seria superior s "etapaspreliminares". Esta viso, resqucio de um tempo em que a arte eraviva, ainda hoje propagada. Aos olhos dos homens de ento, amsica, a tcnica de tocar e os instrumentos musicais se teriam"elevado" e chegado ao nvel mais alto, o de sua poca. Desde quechegamos posio de podermos observar de forma abrangente, estaopinio, no que diz respeito msica, inverteu-se: no podemos maisestabelecer diferenas de valores entre a msica de Brahms, Mozart,Bach, Josquin ou Dufay - a teoria do progresso no mais defen-svel. Atualmente, fala-se da intemporalida~ das grandes obras dearte, e esta concepo, tal como comumente entendida, to err-nea quanto a do progresso. A msica, como toda arte, ligada a seu-tempo, ela expresso viva de sua poca e s perfeitamente com-preendida por seus contemporneos. Nossa "compreenso" da m-sica .antiga s nos deixa adivinhar o esprito no qual ela nasceu.Vemos que a msica sempre corresponde situao intelectual deseu tempo. Seu contedo no pode jamais ultrapassar as capacidadesexpressivas humanas, e tudo o que se ganha de um lado deve serpago com uma perda do outro.

    Em geral, as idias sobre a natureza e a extenso das modifica-es por que passou a prtica musical, em inumerveis etapas, noso muito claras, por isso vale a pena determo-nos um p8UCOmaisneste assunto; o caso da notao, at a metade do sculo XVIIsubmetida a constantes modificaes e da qual certos sinais, tidosento por fixados, no deixaram de ser utilizados de modo muitodiverso at o fim do sculo XVIII. O msico atual toca exatamenteo que est escrito na partitura, sem saber que a notao matemticae precisa s se tornou corrente no sculo XIX. Uma outra fontede problemas a enorme CJ2estoda improvisao que, at mais oumenos o fim do sculo XVIII, no pode ser separada da prticamusical. Para distinguir as diferentes fases da evoluo correspon-dentes a cada perodo, preciso importantes conhecimenos specia-lizados, cujo aproveitamento aparece no aspecto formal e estruturalda execuo. O que, porm, faz uma diferena perceptvel a ima-gem sonora, quer dizer, dentre outros elementos, o carter e a po-tncia dos instrumentos. Da mesma forma que a leitura da notaoou a prtica da improvisao foram submetidas a constantes modifi-caes, segundo o esprito da poca, a cs>ncepo e o ideal so~rotransformaram-se simultaneamente e com eles, os instrumentos, a

    princpios fundamentais da msica e da interpretao 21

    maneira de toc-Ias e at mesmo a tcnica de canto. Ainda relacio-nada questo da imagem sonora, convm acrescentar a importnciado espao, vale dizer, da acstica e das dimenses das salas deconcerto. -=-

    Mesmo com relao transformao do modo de se tocarportanto, da tcnica - no se pode falar de um "progresso"; elase adapta sempre perfeitamente, como os instrumentos, s exignciasde seu tempo. Poder-se-ia contra-argumentar que as exigncias emrelao tcnica de execuo no pararam de crescer, o que verdade, mas apenas com respeito a uma pequena parcela da tcnica,enquanto que as exigncias em outros domnios desta foram con-tinuamente diminuindo. Certamente, nenhum violinista do sculoXVII poderia, por exemplo, tocar o Concerto de Brahms, da mesmaforma que um violinista que toca Brahms no capaz de executarirrepreensivelmente uma obra difcil da literatura violinstica do sculoXVII. Exigem-se tcnicas diferentes num e noutro caso, e cada umapelas igualmente difcil.

    Constatamos mudanas semelhantes na instrumentao e nos ins-trumentos. Cada poca tem o seu gnero de instrumentos que melhorconvm sua msica. Na sua imaginao, os compositores ouvem osinstrumentos de seu tempo; eles escrevem freqentemente para cer-tos instrumentistas; sempre houve a exigncia de que a msica fossetocvel em funo das possibilidades de cada instrumento; intocveiseram somente as peas mal compostas, e os seus autores cobriam-sede ridculo. Que se considere muitas obras de antigos mestres impos-sveis de ser tacadas (por exemplo, as partes para instrumentos desopro na msica barroca) uma conseqncia da maneira pela qualos instrumentistas hoje em dia abordam tais obras, utilizando instru-mentos modernos e uma tcnica tambm moderna. Infelizmente uma exigncia quase impossvel de ser cumprida, a de fazer comque msicos da atualidade saibam tocar instrumentos antigos e coma tcnica antiga. No se deve culpar os compositores antigos por umapassagem impossvel de ser tacada ou por qualquer outra dificulda-de, ou, como comumente acontece, considerar a prtica musical depocas anteriores como tecnicamente insuficiente. Assim, chegamos concluso de que, 'em todos os tempos, os msicos mais brilhan-tes eram capazes de executar as obras dos compositores seus con-temporneos.

    Tudo isso deixa adivinhar as monstruosas dificuldades que seenfrenta na tentativa de fazer msica com a chamada autenticidade.

  • 22 o discurso dos sons

    Certos compromissos so inevitveis: h tantas perguntas ainda semresposta, tantos instrumentos no mais encontrados, ou para os quaisno se acham mais msicos. Contudo, onde possvel atingir umalto grau de autenticidade de estilo, somos recompensados por ri-quezas insuspeitadas. As obras se revelam sob uma luz ao mesmotempo nova e antiga e vrios problemas resolvem-se por si mesmos.Executadas desta maneira, as obras no s soam historicamente maiscorretas, como tambm muito mais vivas, pois so apresentadas comos meios que lhes so correspondentes. Com isto tem-se uma idiadas foras espirituais que fizeram o passado fecundo. A prtica damsica antiga adquire, ento, para ns, alm do prazer esttico, umsentido profundo.

    Compreenso da msica e formao musical

    H vrios indcios de que estamos caminhando para um colapso totalda cultura, do qual a msica naturalmente no estaria excluda. Ela apenas uma parte da nossa vida espiritual e intelectual, e comotal s pode expressar e refletir o que se passa no todo. Se a situao realmente to sria quanto eu a vejo, no correto que fiquemosde braos cruzados, esperando que tudo se acabe de vez.

    A formao dos msicos desempenha neste sentido um papelimportante - por msicos entendo qualquer profisso ligada ati-vidade musical, incluindo os ouvintes profissionais e, no fundo, ato pblico. Consideremos, neste sentido, primeiramente, o valor e o'ugar que a msica ocupa na histria. interessante saber que ~mvrias lnguas "poesia" e "canto" se exprimem pela mesma palavra.'Ou seja, a partir-do momento em que a linguagem transcende a suafuno. de informao prtica e adquire profundidade, ela est asso-ciada ao canto, pois com a sua ajuda, a mensagem, que ultrapassaa simples informao, poder ser expressa com maior clareza. Isto difcil de compreendermos j que est to distante da nossa atualconcepo musical. A palavra falada pode, atravs de notas, me-lodias, harmonias, ter o seu sentido verbal intensificado, permitindo-nos atingir uma compreenso que extrapola a simples lgica.

    Mas o efeito da msica no ficou reduzido a um fortalecimentoe aprofundamento da expresso da linguagem;. a msica encontrourapidamente sua esttica prpria (cuja relao com a linguagem con-tinua reconhecvel) e tambm' um grande nmero de meios de ex-presso particulares: ritmo, melodia, harmonia, entre outros. Destaforma, surgiu um vocabulrio que deu msica um enorme podersobre o corpo e o esprito do homem.

    Basta observarmos pessoas ouvindo msica, para perceber oquanto ela incita ao movimento; ficar sentado imvel exige realmenteuma concentrao defensiva. Cada movimento pode intensificar-seat chegar ao xtase. Mas, o simples encadeamento de dissonncia

  • 24 o discurso dos sons

    c resoluo produz sentimentos de tenso e descontrao. Na melo-dia tambm encontra-se o mesmo- fenmeno: cada sucesso me-ldica obedece a certas regras, e quando a melodia correspondeexatamente a estas regras, sabe-se, aps quatro ou cinco notas, quaissero a stima e a oitava; este ouvir antes produz ento um certorelaxamento interior. Caso o compositor queira provocar o estadode tenso no ouvinte, ele o far .. frustrando a sua expectativa, levan-do a melodia alhures, para s em outro momento satisaz-lo coma seqncia meldica esperada. Este um processo extremamentecomplicado, ao qual recorreram os compositores durante os vriossculos da histria da msica ocidental. Quando estamos num con-certo que de fato estamos escutando e concentradamente -' admi-tindo-se, claro, que esta seja uma boa execuo - sentimos osestados de tenso e descontrao, bem como as mudanas que seprocessam em nossa crculao, em nossa "audio corporal". Omesmo vale para a representao dos sentimentos, desde os de na-tureza calma, leve, positivos, ou dolorosos, at aqueles de alegriamais intensa, de fria ou de clera; todos eles so de tal formaexpressos na msica que sacodem o ouvinte e provocam sensaescorporais. A todas estas transformaes do homem atravs da m-sica acrescentam-se, naturalmente, as de ordem espiritual. Neste sen-tido, a msica tem tambm uma funo moral, e esteve durantesculos na posio de influenciar espiritualmente e transformar ohomem.

    Obviamente a msica no internporal, ao contrrio, est ligadaao seu tempo, e, como toda expresso cultural do homem, deimportncia primordial para sua vida. Durante um milnio, msicae vida caminharam juntas no panorama musical do Ocidente, o quequer dizer que a msica era parte essencial da vida - a msica domomento presente. Em nossos dias, j que esta unidade no maisacontece, precisamos encontrar uma nova compreenso para a m-sica. Quando pensamos na msica atual, observamos, de imediato,que ela est dividida em: "msica folclrica", "msica popular" e"msica sria" (esta ltima expresso, para mim, inexistente), Dentrodestes grupos, encontram-se ainda parcelas da unidade - mas aunidade msica e vida, e a msica como um todo se perderam.

    Na msica folclrica, pode-se ainda descobrir uma certa unida-de, dela 'Cffi' o povo que a produziu, mas to logo seja reduzidaa uma forma de enclavc, passar a fazer parte dos costumes, o queno deixa de representar um declnio cultural, j que os costumes

    princpios fundamentais da msica e da interpretao

    no deveriam ser algo "cultivado", mas sim algo pertencente vida.A partir do momento que a designamos "costume", ela se tornaobjeto de museu. Na .!!!.f1~~ca.popular encontramos, tcdavia, aindavestgios da antiga funo da msica. Neste caso, a influncia cor-poral do ouvinte claramente perceptvel. Considero importante re-fletir sobre a seguinte questo: pcr que h atualmente, de um lado,uma msica popular que desempenha na vida cultural um papel toimportante, mas nenhuma "msica sria" contempornea, de outro,desempenhando algum papel?

    Na msica popular encontram-se vrios aspectos da antiga com-preenso musical: a unidade poesia-canto, que nos primrdios damsica foi to importante, a unidade ouvinte-artista, e ainda a uni-dade msica-tempo; a msica-popular nunca t~;;m.ais de uns cinco ... u dez anos, portanto, parte integrante do presente. Talvez COI1la ajuda da msica popular possamos ler uma idia do que a msicaantigamente representava na vida das pessoas; de qualquer forma,em seu domnio, apesar de restrito, a msica popular atualmenteuma parte essencial da vida.

    Chegamos agora ao nosso "primo pobre", "~~~ica sria", quens dividimos em "moderna" e "clssica". A m~~ic_a._rngE~!!!.

  • de msica, mas sabia toc-Ia. Sua compreenso musical era instin-tiva; mesmo que ele nada pudesse explicar teoricamente, mesmo queno conhecesse as relaes histricas, estava preparado para fazer amsica que fosse necessria. Como ilustrao, tomemos um exemplode linguagem: o lingista conhece' e compreende a construo e ahistria da lngua. O homem da rua, o contemporneo, no temidia deste tipo de coisa, e mesmo assim fala bem esta lngua e adomina convincentemente, j que a linguagem de sua poca. Tal a situao dos instrumentistas e cantores durante mil anos de his-tria ocidental; eles no sabem, mas podem e compreendem semsaber.

    Havia ainda o "msico completo", o que era tanto terico quan-10 prtico. Este conhed"ae~ntendia -li teoria, mas no a consideravacomo uma coisa isolada e dissociada de uma prtica auto-suficiente;ele podia compor e executar msica, no sentido de que conhecia ecompreendia todas as relaes. Era mais conceituado do que o terico~ o prtico, pois dominava todas as formas do conhecimento e saber.

    Mas, quem seria essa figura, atualmente? O compositor de hoje certamente um msico nesse ltimo sentido que descrevemos. Elepossui o saber terico, conhece as possibilidades prticas; mas falta-lhe o contato vivo com o ouvinte, com as pessoas que tm umaimperiosa necessidade de sua msica. Sem dvida alguma, ele carecedaquele desejo vivo de uma msica nova, daquela que precisa-mente feita para satisfazer esse reclamo. J o prtico, o instrumen-tista, em princpio to ignorante como o era h vrios sculos.A ele, interessa principalmente a execuo, a perfeio tcnica, aovao num concerto, ou o sucesso. No cria msica, simplesmentea toca. Como no h mais uma unidade entre sua poca e a msicaque toca, falta-lhe o conhecimento natural sobre esta msica, ao con-trrio dos msicos das pocas anteriores que s tocavam obras deseus contemporneos.

    Nossa vida musical, portanto, encontra-se numa situao fatal:por todo lado h peras, orquestras sinfnicas, salas de concerto,enfim, uma rica e variada oferta para o pblico. Mas ns tocamos,nestes lugares, uma msica que no compreendemos, uma msicafeita para pessoas de outras pocas; e o mais curioso desta situao que ignoramos tudo sobre este problema, pois acreditamos que nadah para ser compreendido, j que a msica fala diretamente ao co-rao. Todo msico aspira beleza e emoo, o que lhe pareceperfeitamente natural, e constitui a base de suas possibilidades de

    26 o discurso dos SOn.1

    ele no passar de um simples parodista produzindo imitaes sobencomenda.

    I" ',. ----- E ns, o que fizemos? Ns "fugimos", isto , tentamos refu-,/1 ': 'r .. ,giar-nos no passado desde que a unidade formada pela criao cul-

    tural e a vida deixou de existir. Ento, o chamado "homem culto"tenta salvar e trazer ao presente a parcela da herana cultural emusical dos ltimos mil anos, que, pela primeira vez, tem a opor-tunidade de observar de forma abrangente. Nesta tentativa ele toma.contudo, apenas um ou dois aspectos do todo, que julga vlidos epensa compreender. Esta a maneira pela qual a msica feita eouvida nos dias de hoje: ns isolamos, do conjunto da msica dosltimos milnios, os componentes estticos e, nesses, encontramos onosso prazer. Utilizamo-nos apenas dos trechos que agradam aosnossos ouvidos, do que "belo"; com isto, no percebemos quedegradamos completamente a msica. No nos interessa absoluta-mente se estamos deixando de ouvir o contedo essencial desta m-sica: procuramos apenas a beleza que talvez no complexo geral daobra ocupe um espao bem pequeno.

    E, aqui, chego seguinte questo: que posio deveria ocupara msica nos dias de hoje? Seria possvel uma mudana? E se for,essa far algum sentido? Seria absolutamente falso o papel que amsica desempenha na vida atual? Na minha opinio, a situao grave, e se no conseguirmos criar uma unidade entre o ouvirmsica, entre nossa necessidade de msica e nossa vida musical -seja atravs de um equilbrio entre a oferta e procura da msicacontempornea, seja atravs de uma nova compreenso da msicaclssica, antiga -, vejo o fim prximo. Neste caso, somos ainda maisque conservadores de museus. e no fazemos nada alm de mostraro que j houve um dia; eu me pergunto se h muitos msicos inte-ressados nisto.

    Tratemos agora do papel do msico, Na Idade Mdia, haviauma separao definida entre tericos, prticos e msicos "comple-tos". O terico era aquele que compreendia a construo da msica,mas no' a executava. Ele no. tocava. nem compunha. mas entendiaa montagem e a construo terica da msica e gozava de alta estimapor parte de seus contemporneos, pois a teoria da msica era vistacomo uma cincia autnoma, para a qual a msica tocada na ver,dade no possua importncia alguma. (Ocasionalmente, encontramoscertos reflexos deste concepo nos musiclogos atuais.) O prt~..r!,Lao contrrio, no possua qualquer conhecimento terico a respeuo

    principios fundamentais da msica e da interpretao 27

  • 28 o discurso dos sons

    expresso. O saber. que seria indispensvel pelo fato mesmo de tCIdeixado de existir uma unidade entre a msica e a poca, no lheinteressa, alis nem poderia interessar, pois ele no avalia a impor-tncia deste conhecimento. Resultado: expressa somente os compo-nentes estticos e emocionais da msica e ignora o restante docontedo. Esta situao ainda reforada pela imagem do artistaque se forjou no sculo XIX; o romantismo fez do artistavgrada-tivamente, uma espcie de "siiper-homem" que, com ajuda da intui-o, extrapola os limites do-homem "normal". Ele se tornou numaespcie de "semideus", se julgava como tal e como tal se fazia de-vidamente incensar. Este "sernideus" um fenmeno absolutamenteincrvel no romantismo - pensemos em Berlioz, Liszt ou Wagner,tudo se encaixa perfeitamente na poca. Se verdade que se beijavaa fmbria do roupo de Wagner, isto perfeitamente compreensvelpara o seu tempo. Mas a imagem do artista, tal como foi formadanesta poca decadente, ficou petrificada, como tantas outras coisasdesse sculo.

    Agora a pergunta: o que deveria ser o artista, na realidade? Amaneira como deveria ser compreendida a msica hoje em dia nospoderia dar a resposta. Se o msico tem realmente a misso detransmitir toda a herana musical - em toda a extenso daquilo quenos interessa - e no s nos seus aspectos estticos e tcnicos, paraisso ele precisa adquirir os conhecimentos necessrios. No h outrasoluo possvel. Devido ao seu distanciamento do presente, e se-parao de sua poca, a msica do passado tornou-se, no decorrerda histria e em seu contexto geral, uma lngua estrangeira. Certosaspectos particulares podem at possuir valor universal e intemporal,mas sua mensagem particular ligada poca e no pode ser reen-contrada, a no ser que se tente um tipo de traduo para"os diasatuais. Dito de outro modo: caso a msica de outras pocas aindaseja atual para o presente, num sentido mais amplo e profundo, casosua mensagem deva ser transmitida - ou pelo menos parte desta,como acontece hoje em dia, na maioria dos casos - necessrioque a compreenso desta msica seja reaprendida a partir de suasprprias leis e regras. Precisamos saber o que a msica quer dizer,para compreender o que ns queremos dizer atravs dela. O saberdeve agora preceder o puro sentimento e a intuio. Sem este co-nhecimento histrico, impossvel transmitir a msica antiga, a cha-mada "msica sria", de maneira adequada.

    princpios fundamentais da msica e da interpretao 29

    Quanto formao dos msicos, esta se dava da seguinte ma-neira em pocas anteriores: o msico formava aprendizes de acordocom a sua especialidade; quer dizer, havia uma relao entre aprendize mestre na msica, similar quela que, durante sculos, houve entreos artesos. Ia-se a um determinado mestre para aprender com ele o"ofcio", sua maneira de fazer msica. Tratava-se, antes de mais nada.da tcnica musical: c~f!lpo~!o ,e instrumento; a esta acrescentava-sea .retrica, a fim de se tornar a msica eloqente. Sempre se pregou,especialmente no barroco musical, desde cerca de 1600 at as ltimasdcadas do sculo XVIII, que a msica uma linguagem de sons.que nela se trava um dilogo, uma discusso dramtica. O mestreensinava ao aprendiz sua arte, todos os aspectos desta arte. Ele noensinava somente a tocar um instrumento, ou cantar, mas tambma interpretar a msica. Nestas circunstncias, no havia problemas,a evoluo dos estilos se processava gradativamente, passando de umagerao outra, de maneira que qualquer mudana nos conceitos,nas idias, no era uma mudana propriamente dita, mas sim umcrescimento e uma transformao orgnicos.

    ~lI-elll tdo'-e-ste desenvolvimento algumas interessantes ruptu-ras que passaram a questionar e modificar a relao mestre-aprendiz.Uma destas rupturas 'iC RevoluoFrancesa. 'Dentre as transfor-maes que a Revoluo promoveu, se distingue a funo fundamen-talmente nova que passaram a ter a formao e a vida musical demodo geral. A relao mestre-aprendiz foi ento substituda por umsistema, por uma institui,~o:o conservatrio. Pder-se-ia qualificaro sistema deste conservatrio de educao poltico-musical. A Revo-luo Francesa tinha quase todos os msicos descu lado, e logo sepercebeu que, com a ajuda da arte, em especial da msica - jque esta no trabalha com palavras, mas sim com "venenos" de efeitosecreto -, se poderia influenciar as pessoas. Naturalmente que oaproveitamento poltico da arte para clara ou imperceptivelmentedoutrinar o "cidado'" ou o sdito j vem de longa data; apenas istoainda no tinha sido aplicado msica de forma to sistemtica

    No mtodo francs, tratava-se de integrar a msica ao processopoltico geral, atravs de uma minuciosa uniformizao dos estilosmusicais. O princpio terico era o seguinte: a msica deve ser su-ficientemente simples, para que possa ser por todos compreendida(contudo, a palavra "compreender" perde aqui o seu sentido pr-prio); ela deve tocar, excitar, adormecer. " seja a pessoa culta ou

  • 30 () discurso dos sons

    no; ela deve ser uma "lngua" que todos entendam, sem precisaraprend-Ia.

    Estas exigncias s foram necessanas e possveis porque a m-sica da poca precedente dirigia-se primeiramente aos "cultos", spessoas que aprenderam a lngua musical. A educao musical noOcidente sempre foi parte integrante e essencial da educao. Quandose renunciou educao musical tradicional, a comunidade elitistade msicos e ouvintes cultos deixou de existir. A partir do momentoem que a msica deve ser dirigida a todos, que o ouvinte no precisamais compreender nada da msica, torna-se necessrio eliminar qual-quer discurso que exija compreenso; o compositor precisa escr.everuma msica que, da forma mais fcil e acessvel possvel, se dirijadiretamente sensibilidade do pblico. (Os filsofos dizem a esterespeito: quando a arte nada mais faz do que agradar, ela serve

  • n o tli.\cur'io (/0\' .\011\

    Ainda um aspecl0 do ponto dc vista do pblico: a que couccr-~,)S vamos') Somente queles onde sento executadas msicas que co-nhecemos- Este um fato que pode ser comprovado por qualquer',.lrganiLador de concertos, Por mais quc o programa descmpenheU111a funo. o ouvinte s quer ouvir aquilo que j conhece, Isto.cru a ver C0111os nossos hbitos auditivos, QUCindo, no desenvolvi-mente de uma obra musical, os efeitos so concebidos para que o,\UVlnte seja conduzido c Clt~ mesmo literalmente dilaccrado por essaobra. nesse caso, supe-se que ns no a conheamos, a obra estejavendo ouvida pela primeira WL. Desta forma, o compositor pode,contr;lriando nossas expectativas, dar-nos um choque, como por exem-plo ao escrever :,\ prcparaC\o de urna cadencia pcrcuu, que conduza,: uru.: cadencia intcrrompida;* s que uma cadnc.a interromp:Jaju conhecida no ntcn onipc coisa alguma, ela deixa de ser umacadencia inte!wmpiLla, Ex:stem infinitas possbilidaLlcs dessa espciee nossa msica justamente constitudLl destes efeitos: conduzir ouuvinte idia da obra, ao seu contedo, atravs de surpresas echoques, Porm, estas surpresas c choques no mais ocorrem nos dias.uuais: quando ouvimos uma sinfonia c!ssica. na qual o compositor.nscriu centenas de sustos desse tipo, ns j aguamos os ouv;dosuns dois compassos antes da passagem cin questo, para ouvir "cornoda deve soar", Rigorosamente ralando. se no fosse, talvez, pelol'omo da execuo, no haveria mais porque executar tal pea, poisafinal ela j ~ to conhecida, que incapaz de suscitar qualquersusto, surpresa ou encantamento, Ora. o encantamento, j no l)sentimos tanto, pois no queremos mais ser cativados nem surpreen-didos; nos interessa bem mais extrair da msica um certo prazer esaber: como ser que e-sc ou aquele msico ir tccur tal pea? Ser.ique aquela "bela" passagem no poderia ficar ainda mais bela rocadude outro jeito? Aquele ralentando no poderia ser ainda mais ralcn-iado, ou quem sabe, um pouco menos') E assim, nessas pequena')comparaes de diversas possibilidades se esgota toda nossa audiomusical e, C,)11I ela, chegaml)~ a Ul11 estgio rldicularmcl1te primitivode percepo. O desejo que possumls - totalmente estranho ao

    Na tcr minulogia alcrn a cadl'ncia interrompida dcnorninada tr/t.~."clzlll"sschl uss = cad0nl'ia. final: "/rug do ve r bo tru ecn -" iludir. ellganar - I

    'llldo este um termo mais completo para a fUI\\'o d;t r