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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    FACULDADE DE EDUCAO

    PEDAGOGIAS QUE BROTAM DA TERRA: Um estudo sobre prticas educativas do campo

    Carlos Antnio Bonamigo

    Porto Alegre 2007

  • Carlos Antnio Bonamigo

    PEDAGOGIAS QUE BROTAM DA TERRA: Um estudo sobre prticas educativas do campo

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Educao, sob a orientao da Prof Dra. Marlene Ribeiro.

    Porto Alegre 2007

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO (CIP) BIBLIOTECA SETORIAL DE EDUCAO DA UFRGS. Porto Alegre, BR.RS.

    370.91734 BONAMIGO, Carlos Antnio. Pedagogias que brotam da terra: um B69p estudo sobre prticas educativas do campo / Carlos Antnio Bonamigo. 219 p. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.

    Orientadora: Dra. Marlene Ribeiro.

    1. Educao. 2. Prticas educativas. 3. Prticas educativas do campo. 4. Educao rural. I. Ttulo. II. Carlos Antnio Bonamigo.

    1. Educao rural 370.91734 Catalogao na fonte. Bibliotecria responsvel: Rubia Marcela Aparecido CRB-9/1443

  • Carlos Antnio Bonamigo

    PEDAGOGIAS QUE BROTAM DA TERRA: Um estudo sobre prticas educativas do campo

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Educao, sob a orientao da Prof Dra. Marlene Ribeiro.

    Aprovada em 28 mar. 2007.

    _________________________________

    Prof. Dra. Marlene Ribeiro - Orientadora

    __________________________________________

    Prof. Dra. Carmem Lcia Bezerra Machado (UFRGS) ___________________________________

    Prof. Dra. Clia Regina Vendramini (UFSC) __________________________

    Prof. Dr. Walter Frantz (UNIJU) ___________________________

    Dr. Mrio Maestri (UPF) ____________________________

    Dr. Gaudncio Frigotto (UERJ)

  • Aos meus amigos Armando e Tauri.

    A perda e a permanncia se entrecruzam.

  • Ao concluir este trabalho, quero agradecer...

    A minha orientadora, Professora Doutora Marlene Ribeiro, a quem devo meus

    aprendizados. Os seus compromissos, a sua dedicao, a sua acolhida multiplicaram-se para alm de suas foras, sou lhe muito grato;

    Aos meus familiares, Olivo, Ivone, Nilso, Nelson (in memoriam), Ieda, Nestor, Maria, Mrcia, Milton, Rafael, Marcelo, Bruna, Amanda, Maiquiel, Masa, Rafaela,

    Armando (in Memoriam), Marli e Tiago, que me acompanham e me fortalecem em todos os momentos;

    A minha companheira Daniela, pela capacidade de superao, crtica, pacincia,

    compreenso e amor e a minha filha Tain que, apesar da pouca convivncia, partilhamos felicidade e esperanas em todos os dias;

    A todos os camponeses/as do Assentamento 16 de Maro do MST e os educadores/as, educando/as da Escola 29 de Outubro que se educam e educam a sociedade com suas prticas criadoras e transformadoras;

    banca examinadora Dra. Carmem Lcia Bezerra Machado (UFRGS), Dra. Clia Regina Vendramini (UFSC), Dr. Walter Frantz (UNIJU), Dr. Mrio Maestri (UPF) e Dr. Gaudncio Frigotto (UERJ) pelo dilogo enriquecedor do trabalho.

    Aos meus amigos, amigas, colegas e acadmicos que acompanharam no cotidiano

    as minhas angstias e tambm contriburam para a realizao deste trabalho;

    Ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da UFRGS e Universidade Paranaense Unipar, pelo apoio recebido realizao

    desta pesquisa.

  • ... as tarefas imediatas e as suas estruturas estratgicas globais no podem ser separadas ou opostas umas s outras. O xito estratgico

    impensvel sem a realizao das tarefas imediatas. Na verdade, a prpria estrutura estratgica a sntese global de inmeras tarefas imediatas, sempre renovadas e expandidas, e desafios.

    (MSZROS, 2005, p. 77).

  • RESUMO

    Em Pedagogias que brotam da terra: um estudo sobre prticas educativas do campo,

    identifico e analiso as prticas educativas existentes na Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, combinadas com as prticas sociais do Assentamento 16 de Maro, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, localizados em Ponto-RS. Os fundamentos tericos e metodolgicos desta pesquisa orientam-se pela concepo

    pedaggica que concebe o trabalho como princpio educativo e a educao como processo de formao humana em suas mltiplas dimenses em todos os tempos e espaos da existncia. Objetivando a anlise de prticas educativas do campo, oriento a investigao terica em torno, inicialmente, das caractersticas determinantes da sociedade

    contempornea, a fim de contextualizar a realidade do espao rural, foco principal da pesquisa emprica. Em seguida reflito sobre a singularidade sociocultural dos camponeses, buscando encontrar, na multiplicidade dos sujeitos sociais do campo no Brasil, as caractersticas fundamentais da realidade construda pelos camponeses assentados. A construo de um conceito de educao, compreendida como prxis criadora e

    transformadora, antecede a identificao e a reflexo em torno das prticas educativas existentes no interior da Escola 29 de Outubro, combinadas com as prticas sociais do Assentamento 16 de Maro. Apesar de constituir uma experincia singular, essas prticas educativas trazem em si uma potencialidade educativa que vai muito alm de suas

    circunstncias, uma vez que articula dimenses que na tradicional educao rural estavam distantes e dicotomizados. Ao vincular-se s prticas sociais dos trabalhadores do campo e aos movimentos sociais de luta pela terra, a Escola 29 de Outubro, atravs de seus sujeitos, d novos significados ao processo de construo e socializao do conhecimento e novos

    contornos em sua relao com a realidade social, constituindo experincias humanizadoras e, por isso, profundamente educativas.

  • ABSTRACT

    In Pedagogias que brotam da terra: um estudo sobre prticas educativas do campo, I

    identified and analyzed the educational practices existent in the October 29 State High School, combined with the social practices of the March 16 Establishment, of the Rural Workers Without Land Movement, located in Ponto-RS. The theoretical and methodological foundations of this research are guided by the pedagogic conception that

    conceives the work as educational principle and education process for human formation in its multiple dimensions, considering all times and spaces of the existence. Aiming at the analysis of educational practices, I guide the theoretical investigation focusing on the determinant characteristics of the contemporary society, in order to contextualize the

    reality of the rural space, which was the focus of the empiric research. After that, I

    contemplate about the farmers sociocultural singularity, looking for to find, in the multiplicity of the social subjects of the field in Brazil, the fundamental characteristics of the reality built by the seated farmers/peasant. The concept of education construction,

    understood as creative and changeful, precedes the identification and the reflection around the existent educational practices inside the October 29 School, combined with the social practices of the March 16 Establishment. In spite of constituting a singular experience, those educational practices bring an educational potentiality that goes beyond their

    circumstances, since they articulate dimensions that in the traditional rural education were distant and dichotomized. When linking the workers social practices and the social movements of fight for the land, the October 29 School, through its subjects, gives new meanings to the construction process and knowledge socialization and new outline in its

    relationship with the social reality, constituting human experiences and, for that, deeply educational.

  • 9

    SUMARIO

    INTRODUO............................................................................................................. 12

    I A CONJUNTURA CONTEMPORNEA ................................................................. 25 1.1 Questes preliminares ......................................................................................... 25 1.2 Ainda h tempo................................................................................................... 26 1.3 A crise estrutural do capital................................................................................. 28 1.4 A destrutividade globalizada ............................................................................... 30

    1.5 Os ventos neoliberais no Brasil ........................................................................... 32 1.6 A subordinao do campo globalizao neoliberal............................................ 34

    II A SINGULARIDADE SOCIOCULTURAL DOS CAMPONESES........................ 40

    2.1 A multiplicidade dos sujeitos sociais do campo no Brasil .................................... 40 2.1.1 A categoria campons ...................................................................................... 43

    2.2 A especificidade da formao da classe camponesa brasileira ............................. 46 2.3 As caractersticas do trabalho campons.............................................................. 53 2.3.1 A relao com a terra: a terra de trabalho x a terra de negcio ......................... 54 2.3.2 As formas de realizao do trabalho: entre o individual e o coletivo ................. 56 2.3.3 A racionalidade econmica e as relaes com o mercado ................................. 61 2.3.4 Mecanismos de sujeio dos camponeses: agroindstrias e tecnologia.............. 68 2.4 Confronto com o capital: a proletarizao como horizonte .................................. 71 2.5 O campo: um espao de luta e de conquistas ....................................................... 74 2.6 Dimenso sociocultural dos camponeses ............................................................. 77 2.7 A comunidade: um espao sociocultural.............................................................. 81 2.8 Assentamento 16 de Maro: histrico e organizao interna................................ 84

  • 10

    2.8.1 Alguns impasses no Assentamento 16 de Maro............................................... 88 2.9 O Assentamento 16 de Maro e a Escola 29 de Outubro...................................... 98

    III A EDUCAO COMO PRXIS CRIADORA ....................................................101 3.1 O ser humano: um ser da prtica ........................................................................102 3.2 A centralidade do trabalho na constituio do ser humano..................................107

    3.2.1 A dimenso moral do trabalho.........................................................................112 3.3 As determinaes histricas da diviso social do trabalho ..................................114 3.3.1 A significao imoral do trabalho....................................................................117 3.4 Trabalho e educao: a educao como prxis criadora ......................................120

    3.4.1 Os vnculos histricos entre trabalho e educao .............................................120 3.4.2 Educao: uma prxis criadora........................................................................122

    IV - A ESPECIFICIDADE DA EDUCAO DO CAMPO ......................................137 4.1 Educao rural versus educao do campo .........................................................138

    4.2 Educao do campo: um movimento em construo...........................................142 4.3 Escola 29 de Outubro: uma prtica educativa criadora........................................150 4.3.1 A construo histrica da Escola 29 de Outubro..............................................151 4.3.2 A organizao pedaggica da Escola 29 de Outubro........................................153 4.3.3 Princpios sustentadores da Escola 29 de Outubro ...........................................157 4.3.4 As instncias internas da Escola 29 de Outubro...............................................158 4.3.5 A organizao por ciclos de formao .............................................................160 4.3.6 A organizao curricular da Escola 29 de Outubro ..........................................165 4.3.7 A produo do conhecimento na Escola 29 de Outubro ...................................169 4.3.7.1 Principais atividades tericas e prticas dos Grupos de Pesquisa ..................173 4.3.8 A avaliao anual das atividades educativas ....................................................179 4.3.9 Contradies de um processo em movimento ..................................................182 4.4 Os caminhos do educativo da Escola 29 de Outubro...........................................185

    CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................193

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................197

    ANEXOS ......................................................................................................................208

  • 11

    Anexo 1: Levantamento de dados do Assentamento 16 de Maro ............................208 Anexo 2: Roteiro de entrevista semi-dirigida aos camponeses assentados ................211 Anexo 3: Roteiro de entrevista semi-dirigida aos educadores (as) ............................212 Anexo 4: Roteiro de questes aos educandos (as).....................................................213 Anexo 5: Consentimento Informado ........................................................................214 Anexo 6: Entrevistas realizadas ...............................................................................215 Anexo 7: Composio da Fora de Trabalho Familiar por Unidade Produtiva Camponesa Individual .............................................................................................216 Anexo 8: Composio da Fora de Trabalho Familiar na Unidade Produtiva

    Camponesa Coletiva ................................................................................................218 Anexo 9: Dados estatsticos da Escola 29 de Outubro ..............................................219

  • 12

    INTRODUO

    Ao apresentar este trabalho: Pedagogias que brotam da terra: um estudo sobre prticas educativas do campo, retomo alguns elementos conclusivos de pesquisa realizada durante o mestrado1 porque, de certa forma, este texto continuidade das questes e perspectivas j trabalhadas anteriormente, agora ampliadas com aspectos significativos que no foram abordados naquela oportunidade.

    Ao analisar o trabalho realizado pelos associados/as da Cooperativa de Produo Agropecuria Cascata Ltda Cooptar -, localizada no interior do Assentamento 16 de Maro, no municpio de Ponto RS, foi possvel desvelar, na forma de trabalho desenvolvido nessa organizao, o princpio educativo do trabalho cooperativo.

    Esse educativo mostrou-se em duas dimenses combinadas: a primeira, em sua

    dimenso concreta, como situao vivida e experimentada pelas pessoas em seu cotidiano e a segunda, em sua dimenso e significao histrica, ao projetar-se para alm do concreto vivido, ao permitir o desvelamento de uma nova perspectiva ao trabalho, de um novo sentido nas relaes coletivas e interpessoais que definem a organizao do trabalho e a

    apropriao de seus produtos pelos prprios produtores.

    A manifestao concreta desse processo verificou-se, especialmente, pelo rompimento das relaes sociais de produo dominantes, atravs da coletivizao da

    propriedade dos meios de produo e da apropriao dos resultados produzidos; atravs da horizontalizao das relaes de poder e das relaes de trabalho, da fiscalizao

    1 A dissertao foi apresentada em 14 de dezembro de 2001 ao Programa de Ps-Graduao em Educao da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o ttulo: O trabalho cooperativo como princpio educativo: a trajetria de uma Cooperativa de Produo Agropecuria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e editada em 2002 com o ttulo: Pra mim foi uma escola... O princpio educativo do trabalho cooperativo. 2. ed. Passo Fundo: UPF Editora, 2002.

  • 13

    sistemtica das aes dos dirigentes e do rodzio dos associados nos cursos de qualificao

    profissional.

    Alm disso, a prtica do trabalho cooperativo imprimiu uma auto-disciplina estabelecida entre os prprios trabalhadores na realizao das tarefas, na organizao do tempo e dos processos de trabalho. Desenvolveram-se novas formas de vivenciar os ciclos da natureza, os horrios, as estaes do ano. Houve a incorporao de um novo processo de

    trabalho, diferenciado do trabalho familiar praticado anteriormente, com a apropriao e o domnio de novas tcnicas, procedimentos, metodologias, funes diferenciadas, de acordo com os setores produtivos organizados no interior da Cooptar. A aprendizagem de novas tcnicas de trabalho deu-se no seu prprio desenvolvimento, ou seja, no houve um perodo de aprendizagem e/ou treinamento e outro de execuo.

    De forma geral, a prtica do trabalho cooperativo na Cooptar est formando e constituindo sujeitos com identidade prpria no interior da classe-que-vive-do-trabalho e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ao praticarem a cooperao em seu nvel mais profundo, trabalhadores e trabalhadoras desenvolvem uma nova cultura do trabalho, um trabalho coletivo, autogestionrio, negando o individualismo e a propriedade privada, atacando, assim, a raiz da alienao. Ao formar essa nova cultura do

    trabalho, os cooperativados imprimiram-lhe um novo sentido, capaz de contribuir na formao humana, capaz de resgatar a dignidade, a auto-estima, a alegria; capaz de sustentar desejos e projetos de mudana para si e para a sociedade.

    Das possibilidades de novas pesquisas deixadas em aberto pelo trabalho realizado na dissertao, destaquei a possibilidade de estabelecer uma relao do trabalho cooperativo com a educao, em especial com a escola. Afirmei que uma educao que se pretenda humanizadora, poderia ter, nas prticas pedaggicas dos movimentos sociais, um

    de seus pilares de sustentao e poderamos levantar a hiptese de pensar a escola, seus currculos e suas polticas pedaggicas, a partir das prticas construdas pelos sujeitos sociais. Ao mesmo tempo, a escola, ao ser capaz de refletir e estar aberta s prticas pedaggicas dos movimentos sociais, estaria (re)assumindo o seu papel crtico e desalienador.

  • 14

    Ao desvelar o educativo do trabalho cooperativo desenvolvido na Cooptar, a

    pesquisa realizada, dado o seu prprio carter de mestrado, teve um foco bastante especfico ao limitar-se a anlise de uma experincia de trabalho realizado por quatorze (14) famlias cooperativadas de um total de oitenta e duas (82) que fazem parte do Assentamento 16 de Maro. No interior desse Assentamento, so desenvolvidas diferentes formas de organizao do trabalho e de prticas sociais distintas da cooperativa, as quais no foram contempladas. Priorizo, por isso, nesta pesquisa, um estudo em torno das prticas educativas da Escola 29 de Outubro, considerando o seu contexto, o Assentamento 16 de Maro, buscando identificar as relaes entre estas duas realidades.

    As escolhas tericas e metodolgicas desta minha pesquisa orientam-se pela concepo pedaggica que concebe o trabalho como princpio educativo e a educao como processo de formao humana em suas mltiplas dimenses. Conceber o trabalho

    como princpio educativo e agente fundante do ser humano e da sociedade expressa, tambm, uma opo tico-poltica, na medida em que essas escolhas dizem respeito compreenso do papel que o conhecimento cumpre na existncia social.

    Assumir a centralidade do trabalho e das relaes sociais de produo na formao dos indivduos e da sociedade no eqivale, entretanto, a afirmar o menosprezo pelas dimenses culturais, ideolgicas, polticas, religiosas etc. que conformam o ambiente da sociabilidade humana. Apreender as mediaes construdas pelos sujeitos sociais e compreender os significados de suas representaes coletivas reconhecer a totalidade da

    vida humana, manifestada em suas prticas sociais.

    Com base nessa compreenso, que busco como objetivo geral desta investigao analisar as prticas educativas da Escola Estadual 29 de Outubro, combinadas com as prticas sociais, especialmente em torno do trabalho em seus diversos nveis de cooperao, presentes no Assentamento 16 de Maro. Realizo esta anlise compreendida no em sentido geral, mas limitada aos recortes tericos construdos ao longo deste trabalho. Para dar conta deste objetivo geral, vinculam-se inmeras outras tarefas da pesquisa, distribudas e apresentadas ao longo deste texto, combinando a pesquisa terica com a pesquisa emprica.

  • 15

    A abordagem metodolgica

    Sob a perspectiva metodolgica, compreendendo que a metodologia mais do que a descrio formal dos mtodos e tcnicas a serem utilizados, pois indica, sobretudo, as opes e a leitura do quadro terico realizado pelo pesquisador, utilizo-me de uma

    abordagem qualitativa, sob a orientao da abordagem dialtica materialista. (TRIVIOS, 1987, p. 49-79).

    Por tratar-se de uma pesquisa em educao, encontra-se no mbito das Cincias

    Sociais e, enquanto tal, tem seu carter especfico de cientificidade em virtude de seu objeto e de suas metodologias. Minayo (1999, p.13-15) afirma que o objeto das Cincias Sociais tem uma configurao distinta de outras cincias por ser histrico, ideolgico, essencialmente qualitativo. Alm disso, h uma identidade com o sujeito pesquisador e possui conscincia histrica, pois os seres humanos, os grupos e a sociedades do significados e intencionalidade a suas aes e a suas construes. Por isso, o objeto das Cincias Sociais deve ser tratado de forma distinta das cincias da natureza. Da mesma forma Chizzotti (2003, p.79) reitera esta questo afirmando que as cincias humanas tm sua especificidade o estudo do comportamento humano e social e por isso devem ser tratadas com metodologia prpria.

    Por isso, a escolha da abordagem qualitativa justifica-se pela proximidade dos objetivos desta pesquisa com as caractersticas bsicas de uma pesquisa qualitativa. Entre as inmeras caractersticas, destaca-se a forma como apreende e legitima os conhecimentos, numa relao dinmica entre o mundo real e o sujeito. Ao mesmo tempo, acontece uma interao viva entre o mundo subjetivo e objetivo, na medida em que o sujeito pesquisador parte integrante do processo de construo do conhecimento, imprimindo significados, captando a realidade em seu sua existncia mais profunda.

    Outros aspectos presentes na pesquisa qualitativa so elencados por Ldke e Andr (1988, p.11-13) ao afirmarem que a pesquisa qualitativa supe o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situao que est sendo investigada e tem o contexto no qual se desenvolvem as aes, incluindo seus sujeitos, como fonte privilegiada de dados; os dados coletados so predominantemente qualitativos e descritivos; a

  • 16

    preocupao com o processo (aes, procedimentos, interaes) muito maior do que com o produto; o foco de ateno especial do pesquisador volta-se para os significados que as pessoas do s coisas, a sua vida, ao mundo, ao trabalho; a anlise dos dados tende a seguir um processo indutivo, sem evidncias ou hipteses definidas antes do incio dos estudos que precisam ser, ou no, comprovadas durante a pesquisa. So formuladas questes e, na

    medida em que a pesquisa avana, so construdas as generalizaes e as anlises. Em concluso, [...] o estudo qualitativo rico em dados descritivos, tem um plano aberto e flexvel e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada. (LDKE; ANDR, 1988, p. 18).

    Essas caractersticas essenciais da pesquisa qualitativa podem estar presentes em inmeras formas de abordagens ou de orientaes filosficas, como a fenomenologia, a etnografia, a dialtica materialista histrica etc. A escolha por esta ltima justifica-se, em primeiro lugar, pela continuidade das escolhas tericas j concebidas anteriormente e, em segundo, pelas particularidades desta perspectiva metodolgica explicitada, inicialmente, por Marx, em O mtodo da economia poltica. (MARX, 2003c, p. 246-263).

    Contrapondo-se a outros pressupostos, de acordo com Frigotto (2001a, p.75), a concepo dialtica materialista/histrica concebe que o pensamento (as idias) o reflexo (apreenso subjetiva da realidade objetiva), no plano racional, das realidades e leis dos processos que se passam no mundo exterior, os quais no dependem do pensamento. O mundo exterior tem suas leis especficas, nicas, reais. Compete razo apoderar-se

    abstratamente/universalmente, atravs de idias e proposies. A dialtica, portanto, situa-se no plano da realidade, no plano histrico, sob a forma de relaes contraditrias, conflitantes, de leis de construo, desenvolvimento e transformao dos fatos. A concepo materialista funda-se no imperativo do modo humano de produo social da

    existncia. O ser humano constri os prprios meios para sua sobrevivncia. O ser dos homens o seu processo de vida real, histrico e cultural.

    Outra caracterstica da dialtica materialista que o mtodo est vinculado a uma

    concepo de realidade, de mundo e de vida no seu conjunto. Por isso, a postura e a concepo de mundo antecedem a utilizao do mtodo. Se esta postura pressupe que a realidade existe com suas prprias leis de movimento e transformao, independente do

  • 17

    pensamento, devemos nos perguntar, de acordo com Frigotto (2001a), como se produz concretamente um fenmeno social? Quais as leis sociais, histricas, quais as foras reais que o constituem enquanto tal? Estas questes indicam o carter dos objetos que investigamos e definem a relao sujeito/objeto, prprio das cincias sociais.

    As leis sociais so um movimento de superao e de transformao, de crtica, de construo e de novas snteses no plano do conhecimento e da ao. Para atingir o fenmeno em sua totalidade concreta, preciso ter como ponto de partida os fatos empricos; superar as impresses primeiras, as representaes fenomnicas e ascender a

    seu mago, as suas leis fundamentais. Como o pensamento apreende as leis do real? Atravs do [...] movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenmeno para a essncia e da essncia para o fenmeno; da totalidade para a contradio e da contradio para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. (KOSIK, 1986, p. 30).2

    Por fim, o que importa concepo dialtica materialista histrica enquanto prxis, no o conhecimento pelo conhecimento, a crtica pela crtica, mas a crtica e o

    conhecimento para uma prtica que altere e transforme a realidade anterior, no plano do conhecimento e no plano histrico-social. O conhecimento efetivamente se d na e pela prxis. A reflexo terica sobre a realidade no uma reflexo diletante, mas uma reflexo em funo da ao para transformar. (FRIGOTTO, 2001a, p. 81). Para o materialismo histrico, a ao, a prtica o critrio para avaliar a objetividade do conhecimento. na prxis que o homem deve demonstrar a verdade. (TRIVIOS, 1987, p. 63-64).

    2 O concreto concreto por ser a sntese de mltiplas determinaes, logo, unidade da diversidade. por

    isso que ele para o pensamento um processo de sntese, um resultado, e no um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observao imediata e da representao. O primeiro passo reduziu a plenitude da representao a uma determinao abstrata; pelo segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto pela via do pensamento. (MARX, 2003c, p. 248).

  • 18

    As etapas da pesquisa e a coleta de dados

    Em relao s etapas ou momentos da pesquisa, foram elaborados combinando trs momentos distintos, porm, interligados entre si. O primeiro, voltou-se para a pesquisa terica propriamente dita, relacionada especialmente compreenso de alguns traos da

    sociedade contempornea, a singularidade sociocultural dos camponeses, a educao como prxis criadora e a especificidade da educao do campo; o segundo momento constituiu-se no trabalho de campo, de coleta de dados e o terceiro, na anlise final.

    Em relao ao detalhamento do trabalho de campo, apresento algumas de suas questes mais significativas para melhor compreend-lo. Pois, de acordo com Frigotto:

    na investigao que o pesquisador tem de recolher a matria em suas mltiplas dimenses; apreender o especfico, o singular, a parte e seus liames imediatos ou mediatos com a totalidade mais ampla; as contradies e, em suma, as leis fundamentais que estruturam o fenmeno pesquisado. (FRIGOTTO, 2001a, p. 80).

    Realizei este trabalho de campo atravs de um estudo de caso, dadas as possibilidades de reconstruo da realidade que oferece, ao considerar uma unidade social

    como totalidade, apreendendo a multiplicidade de suas dimenses numa perspectiva histrica. (SANTOS, 1978, p. 3).

    Outras caractersticas significativas do estudo de caso, que justificam esta escolha, so elencadas por Ldke e Andr (1988, p. 18-21), entre as quais os pressupostos tericos no engessam o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, mas servem como estrutura bsica a partir da qual podem ser acrescentados novos elementos. Alm disso, para uma apreenso mais completa do objeto necessrio levar em conta o contexto em que ele se encontra e a existncia de uma multiplicidade de dimenses presentes numa determinada situao. De acordo com as autoras, o pesquisador deve procurar revelar estas dimenses tomando-as como um todo de forma profunda, considerando a variedade de fontes de informao e as diferentes representaes e pontos de vista numa dada situao social. Por fim, o estudo de caso possibilita uma forma variada de apresentao dos dados coletados,

    atravs de diferentes linguagens.

  • 19

    No trabalho de campo realizado, objetivei compreender as prticas sociais mais significativas dos camponeses membros do Assentamento 16 de Maro, reconstruindo sua trajetria desde o acampamento, em 1985, at os dias atuais, localizando os seus elementos determinantes, como a organizao do trabalho, as questes econmicas, as questes polticas, culturais, sociais... Alm disso, direcionei o trabalho de campo para identificar e

    compreender as prticas educativas presentes na Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, localizada no interior do Assentamento 16 de Maro, em Ponto, regio norte do estado do Rio Grande do Sul, abordando desde o seu o projeto poltico pedaggico, o seu sistema de avaliao, o seu currculo, a sua formao de professores,

    enfim, as suas prticas pedaggicas essenciais.

    Para a coleta de dados, utilizei, primordialmente, as contribuies advindas da histria oral. De acordo com Alberti:

    [...] a histria oral um mtodo de pesquisa (histrica, antropolgica, sociolgica etc.) que privilegia a realizao de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, vises de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como conseqncia, o mtodo da histria oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos [...]. Trata-se de estudar acontecimentos histricos, instituies, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos etc., luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam. (ALBERTI, 1989, p. 1-2).

    Tambm utilizei, de forma complementar, a observao, os dirios de campo, as

    conversas informais, o convvio com a realidade pesquisada, a consulta a documentos (Atas, Relatrios, Organograma da Escola 29 de Outubro), aproximando-me dos elementos em torno da pesquisa-ao, conforme as consideraes feitas por Thiollent (1988, p. 47-72).

    A coleta dos dados do Assentamento e da Escola se deu em dois momentos distintos. O primeiro foi marcado pela preparao realizao da pesquisa e o segundo, pela coleta dos dados propriamente dita. Na primeira fase, esto includas as atividades realizadas desde a pesquisa anterior, entre os anos 2000 e 2001, em que j havia trabalhado com o Assentamento, a Cooptar e a Escola 29 de Outubro. Naquela oportunidade realizei um levantamento da histria do Assentamento 16 de Maro, desde a preparao do acampamento, em 1984, at o ano de 2001, perodo de finalizao da pesquisa, assim como a histria e o carter educativo do trabalho cooperativo desenvolvido na Cooptar.

  • 20

    Finalizada aquela pesquisa, novamente em julho de 2003, realizei uma visita Escola 29 de Outubro, Coordenao da Comunidade do Assentamento, Cooptar e Coordenao do MST Regional Sarandi para discutir a viabilidade de realizao desta nova pesquisa.

    Nessa visita apresentei a proposta do projeto de pesquisa elaborada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRGS, como requisito parcial passagem direta ao doutorado. Em seguida, discuti esse projeto com as coordenaes da Escola, da Comunidade, do MST e da Cooperativa, apresentando os objetivos, o cronograma e a metodologia que seria utilizada. Houve concordncia na realizao da pesquisa.

    Posteriormente, em janeiro e julho de 2004, fiz novamente duas visitas Escola, ao Assentamento e Cooperativa para iniciar a pesquisa exploratria, com a coleta inicial de dados. No primeiro encontro, em janeiro de 2004, participei de uma reunio com os professores e direo em que, novamente, apresentei os propsitos da minha pesquisa e

    discutiu-se, de forma geral, o Projeto Poltico Pedaggico da Escola, alm de relatos dos professores sobre as suas atividades e as atividades pedaggicas desenvolvidas.

    No Assentamento, visitei seis famlias assentadas, expliquei os objetivos da minha pesquisa e questionei se havia disposio deles em participar com informaes, relatos e conversas sobre a vida, o trabalho, a comunidade... Nesse mesmo momento, apliquei um pequeno roteiro de questes dirigidas sobre os dados da famlia, nmero de participantes, idade, escolaridade, associadas ou no na comunidade e se participavam ou no das reunies do MST. Esse primeiro contado teve o propsito de diminuir o estranhamento

    caracterstico de um trabalho de campo, sobretudo numa realidade em que, como pesquisador, somos um pouco estranhos. Atravs dessas atividades, das visitas, das discusses prvias, do questionrio piloto foi possvel vislumbrar e definir as principais estratgias para a realizao da coleta de dados.

    Para a coleta de dados sobre o Assentamento, junto s famlias de camponeses assentados, utilizei-me de um roteiro contendo um questionrio fechado para ser aplicado para todas as famlias (Anexo 01) e outro em forma de entrevistas semi-dirigidas (Anexo 02), de forma a complementar a coleta dos dados, a fim de poder analisar as principais questes em torno do universo dos assentados.

  • 21

    As entrevistas com os camponeses tiveram um carter complementar, uma vez

    que os principais elementos a serem levantados na pesquisa estavam contidos no questionrio acima referido e tambm devido amplitude do universo de pessoas residentes no Assentamento. Levando isso em conta, foram realizadas oito (8) entrevistas com os camponeses que trabalham individualmente, duas (2) com os camponeses que se organizam na associao e quatro (4) na cooperativa.

    O critrio de escolha das pessoas pesquisadas foi entrevistar a primeira famlia visitada e, posteriormente, a cada oito (8) famlias novamente uma nova entrevista e assim, sucessivamente. Com as famlias que fazem parte da associao e da cooperativa utilizei-me de um sorteio (escolha aleatria). Alm disso, coletei informaes contidas no Livro de Atas da Comunidade, disponibilizado pela atual coordenao do Assentamento 16 de Maro. Realizei esta coleta de dados em janeiro, fevereiro, abril, junho e julho de 2006.

    Sobre as questes que envolveram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - a sua atuao, as suas opinies/concepes/avaliaes, as suas relaes com a Escola e com o Assentamento, entrevistei duas pessoas: uma que representa o Movimento

    na coordenao da comunidade e outra que a coordenadora liberada da Regional Sarandi do MST, responsvel pelo trabalho e organizao dos ncleos de base do Movimento no interior do Assentamento 16 de Maro.

    Para coletar os dados referentes Escola 29 de Outubro, participei de reunies com os educadores (as), com a direo, com os ncleos de base, alm da convivncia, observao e acompanhamento das atividades educativas desenvolvidas ao longo do ano de 2006. Entre os educadores (as) da Escola, de um total de dezessete (17), entrevistei treze (13), a partir de um roteiro mnimo de perguntas (Anexo 3). O objetivo era entrevistar todos os educadores (as) da escola, mas isso no foi possvel porque em todas as visitas que realizei na Escola, trs professoras nunca se encontravam, por estarem em atestado, licena ou no terem aula naquele perodo.

    Outra fonte significativa de dados foram as reunies com os ncleos de base e suas coordenaes. Com os educandos no fiz entrevistas individuais, apenas reunies coletivas com o grupo, questionando-os e anotando as informaes a partir de um roteiro

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    de questes previamente elaborado (Anexo 4). Ao mesmo tempo, acompanhei e observei as suas atividades durante a realizao das oficinas, apresentao das pesquisas dos ncleos e das turmas de progresso do primeiro e segundo ciclos (turno da manh).

    Em relao identificao dos entrevistados (as), conforme o Consentimento Informado (Anexo 5), no foram nominados/identificados os entrevistados e entrevistadas, apenas identifico-os como: Campons (a), idade, ms e ano da entrevista ou Educador (a), idade, ms e ano da entrevista. A relao completa dos entrevistados/as encontra-se no Anexo 6.

    A no identificao nominada dos entrevistados/as se deve, sobretudo, pela caracterstica social/coletiva dos processos que esto sendo construdos por estes sujeitos. A organizao na luta pela terra, o acampamento, o assentamento, a conquista da escola, a

    organizao do trabalho, da produo (crdito, comercializao...) so resultantes da organizao coletiva, atravs dos movimentos sociais. Por isso, os indivduos constituem-se, organicamente, relacionados com essas aes coletivas. No h, entretanto, de forma alguma, anulao da subjetividade singular de cada sujeito da pesquisa. Apenas o eixo orientador da coleta de dados pretendeu colher justamente esses processos sociais mais amplos, e no limitar-se a suas percepes individuais.

    A apresentao da pesquisa feita em quatro captulos, alm das consideraes finais. No primeiro captulo, busco fazer uma contextualizao da atual gesto de

    acumulao e reproduo do capital, seus elementos determinantes e seus desdobramentos, sobretudo ao mundo do trabalho, priorizando uma anlise sobre o espao rural, do campo. no interior desse contexto que analiso o Assentamento 16 de Maro e as prticas educativas da Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro.

    No segundo captulo, objetivando identificar a singularidade sociocultural dos camponeses, sujeitos sociais desta pesquisa, retomo, em seus aspectos gerais e especficos, a multiplicidade dos sujeitos sociais do campo no Brasil e a sua formao social singular, incluindo uma abordagem terica s caractersticas de seu processo de trabalho. Alm disso, em torno desta singularidade sociocultural, trato as relaes com a terra, a racionalidade econmica, as relaes com o mercado e os principais mecanismos atuais de

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    sujeio dos camponeses totalidade social do capital. Outra questo significativa diz respeito aos espaos de luta construdos pelos camponeses, a sua dimenso sociocultural existente em torno das comunidades. Foi realizado tambm um levantamento histrico do Assentamento 16 de Maro e da sua organizao interna, trazendo elementos da realidade vivida e construda pelas famlias assentadas num espao territorializado pelo Movimento

    dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com suas contradies, avanos e dificuldades na organizao social e produtiva.

    No terceiro captulo, objetivo construir um conceito de educao, a partir da centralidade do trabalho na constituio do ser humano, buscando na especificidade da atividade humana em geral, no trabalho e na educao, seus elementos constitutivos ontolgicos, gnoseolgicos e tico-polticos, compreendendo a prxis humana numa unidade e complementariedade dessas dimenses. Outro propsito desta parte do trabalho

    de pesquisa terica foi explicitar as determinaes histricas e sociais nas quais se do as prticas do trabalho e da educao, encontrando os seus vnculos histricos para, enfim, sinalizar para uma concepo de educao como prxis criadora e emancipatria. Sob os critrios dessa abordagem terica em torno da educao que se dar a anlise das prticas

    educativas da Escola 29 de Outubro e suas relaes com o Assentamento 16 de Maro.

    Por fim, no ltimo captulo, combino uma abordagem terica em torno da educao do campo, identificando sua especificidade e a sua contraposio histrica chamada educao rural e o trabalho emprico na Escola 29 de Outubro. Partindo da hiptese que em torno das prticas educativas da Escola 29 de Outubro combinam-se as dimenses em torno do conceito de educao trabalhadas no captulo anterior, retomo a sua construo histrica, o seu projeto poltico pedaggico e, especialmente, atravs do trabalho de campo, identifico e analiso algumas prticas educativas desenvolvidas no

    interior da Escola, combinadas com as prticas sociais do Assentamento 16 de Maro, que do condies de afirmar aspectos educativos significativos vividos e construdos ao longo dessa experincia singular. Alm desses aspectos, analiso tambm as contradies atuais presente na Escola, sobretudo em torno de suas relaes com o MST e com o prprio

    Assentamento.

  • 24

    Nas consideraes finais, procuro sintetizar os principais elementos de toda a

    pesquisa, desde a abordagem terica ao trabalho de campo, dando destaque identificao do educativo captado e refletido ao longo do desenvolvimento do trabalho.

  • 25

    I A CONJUNTURA CONTEMPORNEA

    1.1 Questes preliminares

    Ao tratar das questes tericas da pesquisa, entendo que o desafio integrar, de forma dinmica, todas as suas fases e dimenses, combinando desde as escolhas tericas at o trabalho emprico de coleta de dados. Sem dvida, o objeto e os sujeitos da pesquisa, assim como a problematizao em torno construda, exigem uma determinada abordagem no s metodolgica, mas tambm terica, pois os objetivos da pesquisa interferem nas escolhas metodolgicas, assim como os pressupostos tericos decidiro os rumos da anlise dos dados coletados. De acordo com Minayo (1999, p.13-15), objeto das cincias sociais tem uma configurao distinta de outras cincias, pois histrico, ideolgico e

    essencialmente qualitativo. Alm de possuir identidade com o sujeito pesquisador possui conscincia histrica e por isso deve ser tratado de forma especfica.

    Em relao s escolhas tericas, estas dizem respeito prpria concepo de

    mundo do investigador. De acordo com o professor Trivios, at podemos usar no trabalho de investigao conceitos que tenham as suas razes em ideologias divergentes, pois as aquisies do ser humano pertencem humanidade, mas cabe ao pesquisador, por coerncia e disciplina, em primeiro lugar, ligar a apropriao de qualquer idia a sua

    concepo de mundo e, posteriormente, inserir essa noo no quadro terico especfico que lhe serve de apoio para o estudo dos fenmenos sociais. (TRIVIOS, 1987, p. 13).

    Considerando estes aspectos e ao tomar como foco de pesquisa a anlise das

    prticas educativas da Escola Estadual 29 de Outubro, combinadas com as prticas sociais presentes no Assentamento 16 de Maro, acredito que uma das questes fundamentais

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    contextualizar o entorno da realidade do Assentamento e da Escola, a fim de conceber esta

    realidade histrica como unidade de mltiplas determinaes. (KOSIK, 1986, p. 31-32).

    Destaco, num primeiro plano de anlise, na qual est inserida a investigao emprica, especialmente algumas determinaes econmicas, polticas e sociais do atual

    estgio do sistema do capital e suas implicaes na definio das relaes sociais especficas em torno do trabalho campons, sobretudo das formas atuais de incorporao e de controle do capital sobre o trabalho. Alm disso, recupero, em traos gerais, o significado das aes dos trabalhadores do campo em sua luta contra proletarizao,

    colocada como horizonte e como ameaa permanente sob a lgica do capital, e das suas aes para instituir novas formas produtivas e novas formas de organizao do trabalho e da vida, sobretudo em torno da educao.

    1.2 Ainda h tempo...

    Nunca digam Isso natural! Diante dos acontecimentos de cada dia.

    Numa poca em que reina a confuso, Em que corre o sangue,

    Em que o arbitrrio tem fora de lei, Em que a humanidade se desumaniza...

    No digam nunca: Isso natural! A fim de que nada passe por ser imutvel.

    (Bertold Brecht 1898-1956)

    Em tempos de conexo instantnea entre o local e o global, cotidianamente, somos surpreendidos com informaes e notcias de toda ordem. A realidade contempornea, em sua expresso fenomnica, manifestada na multiplicidade de

    acontecimentos (mortes, violncia, conflitos, guerra, fome, desemprego, destruio ambiental, catstrofes naturais, corrupo...), comentrios e interpretaes, cria e induz, no iderio coletivo, uma sensao de perplexidade e, contraditoriamente, quanto mais meios se dispe para compreender o atual estado das coisas, exercida uma ao ideolgica

    sobre a coletividade para que se torne cada vez mais refratria interpretao e interveno social.

    Uma expresso dessa ao ideolgica afirmar que no h alternativas viveis a

    serem construdas em direo ao presente e ao futuro, constituindo-se, assim, representao

  • 27

    aparente da mxima: tudo natural. Diante de tantas manifestaes Em que a humanidade

    se desumaniza... esse fenmeno explicativo traz imbricado o perigo de, nesse incio de milnio, justificar-se as atuais relaes sociais pela afirmativa de que tal processo nada mais do que decorrncia de leis intrnsecas realidade, e esta compreendida como determinao natural. A insistncia de Brecht, pronunciada h mais de seis dcadas,

    permanece to ou mais atual do que no seu breve tempo de vida. No jogo das palavras, da sensibilidade e da conscincia, o tempo nas mos do poeta o barro que se molda por mos de escultor: passado, presente e futuro no existem separados, um no exclui o outro, o tempo manifestao viva da unidade dos contrrios. Num jogo dialtico e criativo, o futuro torna-se presente e o passado revivido e atualizado.

    Apesar do poeta no ter presenciado as vulgatas de que no h alternativas, sobretudo a partir das ltimas duas dcadas do sculo XX, Hegel j havia, na transio do sculo das Luzes, prognosticado e insistido no fim da Histria o nada para alm da mxima manifestao do Esprito o Estado Absoluto. (HEGEL, 1997, p. 200-204). Tambm, do seu jeito, no Estado Positivo, Augusto Comte identificou o mximo desenvolvimento do pensamento da humanidade e nada restava a no ser repetir, com

    ordem, o progresso da ordem do capital. Em seu Catecismo positivista, assim escreveu: O progresso o desenvolvimento da ordem. (COMTE, 2005, p. 231). Absolutizou de tal forma seus propsitos que acabou criando, um pouco antes de sua morte, em 1857, uma religio para tornar eterno o atual estgio das coisas. Sem remorsos pelas crticas que havia feito ao Antigo Regime (o Segundo Estado de desenvolvimento da Humanidade), Comte voltou-se ao passado, a fim de que nenhuma desordem viesse a abalar o futuro positivo. (COMTE, 2005, p. 127).

    A insistncia de Brecht: No digam nunca: Isso natural! A fim de que nada

    passe por ser imutvel atualiza, em tempos contemporneos em que reina a confuso,

    corre o sangue e o arbitrrio tem fora de lei, a necessidade, por um lado, de compreenso do atual estgio das coisas e, por outro, de interveno social, a fim de que nada passe nos domnios da histria e das prticas humanas, como imutveis e eternas. Acima de tudo,

    ainda h tempo...

  • 28

    1.3 A crise estrutural do capital

    Os sujeitos sociais que participam desta pesquisa educadores e educandos da Escola 29 de Outubro e trabalhadores e trabalhadoras do Assentamento 16 de Maro fazem parte das complexas relaes econmicas, sociais, polticas e culturais redesenhadas regional, nacional e internacionalmente, sobretudo a partir do incio dos anos de 1970. No interior desse contexto, desenvolvem suas atividades de trabalho, cultura, educao, lazer... mediados pelas configuraes dessa conjuntura, que buscamos agora apresentar de forma sinttica alguns elementos centrais.3

    No contexto internacional, aps um perodo de expanso econmica capitalista, depois da Segunda Guerra Mundial, o incio da dcada de 1970 foi marcado pela falncia de um modelo de produo, de acumulao e dominao do capital, evidenciando uma crise sem precedentes, diferente das crises cclicas vividas em outras pocas pela sociedade capitalista (ANTUNES, 2000, p. 26). De acordo com Istvn Mszros (2000, p. 7), trata-se do incio de uma crise estrutural, profunda e perigosa do sistema do capital em escala

    internacional, que altera radicalmente as condies de reproduo expandida do sistema, colocando agora, em primeiro plano, as suas tendncias destrutivas, decretando, por isso, o fim da ascenso histrica do capital.4

    O desencadeamento dessa crise afeta o sistema econmico mundial em sua totalidade e com mais intensidade sobre os pases empobrecidos. A supremacia do capital financeiro sobre a economia aciona mecanismos que desestruturam a capacidade dos pases destinarem recursos s atividades produtivas, ampliando o consumo, os servios,

    emprego, renda etc. Dessa forma, o sistema como um todo encontra dificuldades para se organizar de maneira que suas estruturas no percam seus alicerces.

    As razes dessa crise estrutural do sistema do capital esto na queda da taxa de

    lucro. (MARX, 1982b, p. 15-17; ANTUNES, 2000, p. 29). Para o economista Robert

    3 Em outras duas oportunidades (BONAMIGO, 2002, p. 20-38 e 2006, p. 7-26) abordei de forma mais

    detalhada estas questes. 4 Lenine, ao analisar os desdobramentos da Primeira Guerra Mundial, j alertava para o fim das

    possibilidades de desenvolvimento das foras produtivas sob a lgica do capital. Ver mais em: LENINE, 1986, p. 649.

  • 29

    Brenner (1999, p. 12-3), trata-se de uma crise secular de produtividade no setor industrial que provocou deslocamento do capital para as finanas, provocando estagnao e compresso dos lucros desse setor. Apesar de toda a explorao imprimida aos trabalhadores e sociedade, o capital no se apropria e centraliza quantidade de riquezas que necessita. Franois Chesnais, por sua vez, afirma que o sistema capitalista como um

    todo no produz mais bastante valor; a acumulao no produz suficiente capital novo, criador de valor e de mais-valia. (CHESNAIS, 1996, p. 9).

    As respostas e/ou as reaes do capital, na tentativa de superao de sua crise

    estrutural, fazem acentuar ainda mais os elementos destrutivos da lgica capitalista, a fim de garantir a produtividade, a competitividade e a lucratividade, a qualquer preo. Nas palavras do socilogo Ricardo Antunes (2000, p. 15), o neoliberalismo e a reestruturao produtiva da era da acumulao flexvel so expresso desta lgica. O que vimos,

    portanto, a partir do ltimo quartel do sculo XX, foi a implementao de um movimento de reao do capital a sua crise de acumulao e dominao. (FERRARO, 1999, p. 25).

    A intensidade dessa crise fez o capital reordenar qualitativamente os mecanismos

    de recuperao de suas taxas de lucro, atravs de inmeras medidas, marcadas, preponderantemente, pela destruio do Estado de Bem-Estar Social,5 pela implementao dos planos e/ou ajustes neoliberais, pela apropriao dos avanos cientficos e tecnolgicos, pelas privatizaes, pela reestruturao dos processos produtivos, com conseqncias na materialidade e na subjetividade da vida individual e social, tanto no espao urbano quanto no espao rural.

    Esses acontecimentos so decorrentes, de acordo com Mszros, da prpria natureza do sistema do capital que deve ser compreendido no apenas como um conjunto de entidades materiais organizadas e reorganizadas historicamente sempre que necessrias, mas entendido como...

    5 O Estado de Bem-Estar Social, Estado Social, Welfare State, Estado-providncia e outras denominaes

    no assumiu a mesma forma nos diferentes pases. Ver mais em: RIBEIRO; FERRARO; VERONEZ, 2001, p. 40; FERRARO, 1999, p. 35; RIBEIRO, 1999c, p. 108.

  • 30

    [...] um sistema orgnico de reproduo sociometablica, dotado de lgica prpria e de um conjunto objetivo de imperativos, que subordina a si [...] todas as reas da atividade humana, desde os processos econmicos mais bsicos at os domnios intelectuais e culturais mais mediados e sofisticados. (MSZROS, 2004, p. 16).

    Esse sistema alastra-se das estratgias de conquista e ampliao dos grandes conglomerados econmicos internacionais, em todos os espaos possveis, s relaes de

    trabalho no interior das pequenas empresas, marcadas por controle, fiscalizao e subjugao implacvel, a fim de que nenhum imprevisto possa prejudicar o domnio econmico e ideolgico do capital.

    1.4 A destrutividade globalizada

    Por isso, as respostas do capital, objetivando recuperar suas taxas de lucro (e sua permanncia histrica) provocaram uma fase de imensas mudanas estruturais da economia mundial, de reordenamento poltico/institucional, uma complexificao sem precedentes na cultura, nas cincias, na educao, na ideologia, nas relaes sociais, nos processos produtivos da indstria e da agricultura. O que se verifica, portanto, no incio

    desse novo milnio, o alastramento da mundializao neoliberal - verso da dominao do capital financeiro (CHESNAIS, 1998, p. 7), com intensidade e violncia impressionantes, sacrificando pases, estados, nacionalidades, etnias, direitos...

    Para Marco Ral Meja, essa intensidade da ao do capital acaba colocando em crise os prprios movimentos sociais, sobretudo em suas questes ideolgicas e aes prticas. Uma vez que, para este autor, a caracterstica fundamental do capitalismo dos anos 1990 em diante, a forma como subjuga e submete os interesses do resto dos pases aos dos pases centrais, usando o pretexto de que no existe outro modelo de desenvolvimento possvel. Assim, elimina-se o valor da autonomia dos processos sociais e polticos do mundo no desenvolvido, que acabam submetidos a uma srie de transformaes profundas sem deixarem de ser capitalistas. (MEJA, 2003, p. 35).

    As conseqncias dessas medidas aprofundam o desemprego estrutural crnico, acentuam as desigualdades entre os pases centrais e os perifricos. E, internamente aos pases, sejam eles denominados desenvolvidos ou subdesenvolvidos, aumentam a

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    desigualdade social e, por conta da impossibilidade objetiva do capital imperialista e neocolonialista exportar para outros pases e continentes, em escala satisfatria, as perdas geradas pela crise estrutural, intensificam as taxas de explorao do trabalho em sentido global, no isentando do flagelo nem mesmo as classes trabalhadoras das sociedades ps-industriais mais desenvolvidas. (MSZROS, 2004, p. 15; FORRESTER, 1997, p. 7-22; CHESNAIS, 1996, p. 63; IANNI, 1999, p. 50; SADER, 2000, p. 35).

    Especificamente em relao ao desemprego, torna-se estrutural crnico e se manifesta e se intensifica no apenas a um setor dos trabalhadores no-qualificados ou a

    setores ou regies industriais pouco desenvolvidos, mas abarca, objetivamente, a totalidade da fora de trabalho, esteja ela localizada ao Norte ou ao Sul do globo. Expande-se desde os bias-frias das usinas de cana-de-acar no Brasil at a indstria espacial e aeronutica dos Estados Unidos e da Europa. Nas palavras de Mszros (2002, p. 1005), esta realidade manifesta uma contradio fundamental do modo de produo capitalista como um todo, transformando at as ltimas conquistas do desenvolvimento (Keynes), da racionalizao (Weber) e da modernizao (Rostow) capitalista em fardos paralisantes de subdesenvolvimento crnico.

    Ao mesmo tempo, a gesto atual do capital, por suas prprias contradies6, est gerando uma polarizao poltica, ideolgica e social sem precedentes. Na raiz de todas essas contradies est o antagonismo entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de subordinao estrutural e hierrquica do trabalho ao capital,

    no importando o grau de elaborao e mistificao das tentativas de camufl-las (MSZROS, 2003, p. 19), como fazem os idelogos ps-modernos.

    Nessa subordinao hierrquica do trabalho, como necessidade imperativa de

    manuteno do atual estado de coisas, aprofundam-se os mecanismos de controle nos ambientes de trabalho em geral e nos processos produtivos em especial, assim como um desmedido autoritarismo nas tomadas de deciso que se alastram de cima para baixo,

    6 Mszros (2003, p. 19-20) destaca algumas dessas principais contradies inconcebveis de superao no

    interior da lgica do capital: produo e consumo; produo e controle; produo e circulao; competio e monoplio; desenvolvimento e subdesenvolvimento; produo e destruio; dominao estrutural do capital sobre o trabalho e sua dependncia insupervel do trabalho vivo; produo de tempo livre e sua negao; expanso do emprego e gerao do desemprego; economia e desperdcio de recursos materiais e humanos; crescimento da produo e destruio ambiental; tendncia globalizadora das empresas transnacionais e

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    desde o microcosmo das pequenas empresas econmicas at os nveis mais altos de

    deciso poltica ou militar. (MSZROS, 2003, p. 54).

    Esse antagonismo entre capital e trabalho faz tornar mais viva a contradio na medida em que o capital, ao mesmo tempo em que domina estrutural e autoritariamente o

    trabalho, depende insuperavelmente do trabalho vivo para existir e necessita do consenso na implementao de suas medidas. E, por mais criativas e inovadoras que sejam as estratgias de gesto do capital na incorporao aos iderios de suas empresas e ao seu sistema, as relaes sociais estabelecidas assentam-se, nas palavras de Mszros, numa

    desigualdade substantiva, marcadas pelo binmio explorao/opresso, o que potencializa, na raiz do sistema, conflitos insuperveis.

    A crise de reproduo e ampliao do capital em curso nas ltimas trs dcadas

    no s no foi superada, como amplia-se enormemente. Apesar de toda intensidade das medidas implementadas para este fim, a crise se intensifica acionando mecanismos cada vez mais destrutivos e incontrolveis, com conseqncias particularmente graves para o presente e futuro, colocando em risco a prpria existncia humana. A precarizao e

    destruio da fora de trabalho, o avano da destruio das condies de habitabilidade no planeta, sobretudo atravs do desmatamento e da poluio e do risco de uma catstrofe nuclear, so processos em curso do carter estrutural da crise do capital em sentido global. (MSZROS, 2000, p. 7; 2003, p.53-54).

    1.5 Os ventos neoliberais no Brasil

    No contexto nacional, depois de se manter no Brasil um modelo econmico predominantemente agro-exportador por mais de trs sculos, alterando-se da produo de acar ao caf, passando pela explorao do ouro, baseado no trabalho escravizado secularmente estabelecido e de industrializao7 dependente por mais de cinco dcadas8

    restries exercidas pelos Estados nacionais contra seus rivais, alm de outras. 7 A industrializao brasileira iniciou-se tardiamente, no perodo entre as duas grandes guerras, e foi

    acelerada apenas a partir da dcada de 1950, por meio da adoo de poltica de desenvolvimento que se convencionou chamar de modelo de substituies de importaes. De fato, esse processo teve por base a macia importao de tecnologia, beneficiada pelo ambiente internacional propcio, no que se refere disponibilidade de tecnologias e de capitais externos, aliada proteo do mercado nacional, via barreiras tarifrias. Em que pese esta poltica ter efetivamente gerado a industrializao razoavelmente completa do

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    (FURTADO, 2002, p. 136, 234-242), inicia-se, sobretudo a partir dos anos 1980, um novo modelo econmico, de subordinao ao capital internacional, hegemonizado pelo capital financeiro. (FURTADO, 2000, p. 233-250; STDILE, 2002, p. 40-41).

    Depois de uma dcada de transio de modelo, a partir dos anos 1990, efetiva-se o enquadramento do pas ao iderio internacional marcado pelas polticas neoliberais, manifestao da crise estrutural do capital, desencadeando alteraes de toda ordem, desde o processo de desnacionalizao da economia, passando pela reestruturao produtiva e pela alterao de modelos agrcolas, at o sucateamento das polticas sociais e dos servios

    pblicos destinados populao trabalhadora. (ANTUNES, 2000, p 29-30; GONALVES, 1999, p. 23-48; BIONDI, 1999, p. 5-18; BIONDI, 2001, p. 23-37).

    Ao analisar o advento do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990, Marilena Chau, sintetizando, de certa forma, inmeras anlises realizadas por vrios autores sobre esta temtica, destaca duas direes principais dessa nova forma que assume o capitalismo: uma econmica e outra poltica: Em relao economia, desenvolve-se um processo de acumulao de capital que no necessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho e

    de consumo, provocando e aumentando o desemprego estrutural. Em relao poltica, acontece a privatizao do pblico, que vai desde o abandono das polticas sociais por parte do Estado e a opo preferencial pelo capital nos investimentos estatais ao recrudescimento da estrutura histrica da sociedade brasileira, centrada no espao privado e na diviso social sob a forma de carncia popular e do privilgio dominante, reforado

    agora por trs novos mecanismos:

    1) a destinao preferencial e prioritria dos fundos pblicos para financiar os investimentos de capital; 2) a privatizao como transferncia aos prprios grupos oligoplicos dos antigos mecanismos estatais de proteo dos oligoplios, com a ajuda substantiva dos fundos pblicos; 3) a transformao de direitos sociais (como educao, sade e habitao) em servios privados adquiridos no mercado e submetidos sua lgica. (CHAU, 2001, p. 94).

    pas, ela resultou tambm na atribuio de importncia menor cincia e ao desenvolvimento de tecnologia, refletida no pequeno esforo nacional em pesquisa e desenvolvimento [...]. (VARGAS, 1995, p. 8). 8 O perodo de 1930 marcado por uma srie de revolues para derrubar o sistema da ordem oligrquica,

    mas o que acontece de fato um reajuste da antiga ordem com os novos setores da sociedade e a implantao definitiva do capitalismo. A crise de 1929 teve, no Brasil, um efeito paradoxal para o desenvolvimento industrial e a ampliao crescente do mercado interno, ocorrendo uma transferncia do setor tradicional (agrcola) para o moderno (industrial). (ROMANELLI 2001, p. 47-50).

  • 34

    Para Chau, a aplicao do neoliberalismo no Brasil significa levar ao extremo a

    polarizao social entre a carncia e o privilgio e a excluso econmica e sociopoltica

    das camadas populares, caractersticas histricas da formao da sociedade brasileira. E com a potencializao do desemprego, amplia a desorganizao e a despolitizao da sociedade anteriormente organizada em movimentos sociais e populares, aumentando o

    bloqueio construo da cidadania como criao e garantia de direitos. (CHAU, 2001, p. 95). De forma geral, as conseqncias dessas medidas econmicas e polticas manifestam-se nos indicadores sociais oficiais e na visibilidade cotidiana da violncia, da pobreza e dos conflitos que invadem os centros urbanos e rurais do pas.

    1.6 A subordinao do campo globalizao neoliberal

    No setor rural, especificamente, para no nos distanciarmos por demais dos nossos propsitos, o que se verifica a intensificao e/ou reatualizao da modernizao da agricultura mecanismo de expanso do capital, atravs da subordinao e controle do trabalho do campo - iniciada ainda na dcada de 1940 e sobejamente ampliada nos anos 1950 em diante.9 Para Graziano da Silva (1998, p. 30), houve um processo de integrao da agricultura ao sistema capitalista industrial, sobretudo atravs de inovaes tecnolgicas, de rupturas no processo produtivo e de subordinao ao capital comercial e financeiro.

    Essa modernizao da agricultura, entendida como ampliao das teias capitalistas no campo, marcada por concentrao de terras, expropriao, monocultura, migrao... provocou profundas transformaes no campo brasileiro, especialmente nas

    ltimas quatro dcadas, marcadas por inmeros elementos, como analisa Bernardo Manano Fernandes:

    9 Inmeros autores analisam as transformaes histricas ocorridas no campo brasileiro, entre os quais se

    destacam: Abramovay (1998); Graziano da Silva (1998,1999); Kageyama (1996); Oliveira (2004); Passos Guimares (1982); Sorj (1980); Tavares (1983); Veiga (1991, 2000).

  • 35

    O campo brasileiro passou por profunda modernizao, em alguns setores da agricultura, onde o capitalismo fincou sua mais espetacular expanso nas ltimas dcadas. Esse processo gerou uma extraordinria migrao rural, por meio da expulso de 30 milhes de pessoas, entre 1960 1980, sendo que 16 milhes migraram somente na dcada de 1970. [...] O impacto social foi a extrema concentrao urbana, o desemprego e a violncia. O impacto econmico foi a implantao do parque industrial brasileiro. (FERNANDES, 1999, p. 55).

    Frei Srgio Antnio Grgen (2004, p. 30), por sua vez, afirma que este modelo de ampliao e dominao da agricultura capitalista no campo, conhecido e propagandeado como a revoluo verde, caracterizou-se, ao longo das ltimas dcadas, por distintas

    fases que expressam as diferentes estratgias de expanso do capital.

    Os anos de 1960 a 1990 foram marcados pelo modelo extensivo de agricultura - aumento da produo e da extenso das reas plantadas; pela industrializao/mecanizao

    mquinas, sementes e insumos qumicos; por uma poltica de crdito para financiar apenas as indstrias, mdios e grandes produtores; pela expanso da monocultura e abandono das culturas de subsistncia e, por fim, essa fase marcada por uma organizada assistncia tcnica, paga pelo governo federal, para transferir da indstria ao agricultor, o

    pacote tecnolgico mecanizao, sementes hbridas, animais, raes, produtos veterinrios e venenos qumicos. (GRGEN, 2004, p. 30-31).

    A implementao desses mecanismos na produo agrcola teve inmeras

    conseqncias. De acordo com Gritti (2003, p. 221): A expulso do homem do meio rural comeou a intensificar-se com a mecanizao da agricultura e com a crescente concentrao da propriedade da terra. Conforme os dados do IBGE, no perodo de 1970-1990, migraram para as cidades brasileiras cerca de 30 milhes de pessoas oriundas do campo. No Rio Grande do Sul, apesar da populao rural, em nmeros absolutos, j ser minoria (46,7%) em 1970, diminuiu vertiginosamente nas dcadas seguintes, chegando em 2000 a apenas 18,4% do total. Esse processo significou uma transferncia de 1.243.079 pessoas do campo para a cidade, em todas as regies do Estado. (Censo Demogrfico do IBGE de 1980, 1990, 1996 e 2000). De acordo com Ribeiro (2004b, p. 55-80), esse processo de expulso, expropriao e proletarizao se d numa relao de violncia do capital sobre os trabalhadores.

  • 36

    Combinado com esse processo de expropriao, aumentou a concentrao de

    terra,10 a dependncia dos agricultores com a indstria e com o sistema financeiro. A produo voltou-se para a exportao, acarretando diminuio da produo de alimentos para o mercado interno. Houve crescimento da indstria de mquinas e implementos agrcolas e crescimento acelerado de um sistema cooperativo voltado s monoculturas,

    combinado com a implementao de rgos de assistncia tcnica para vender o pacote econmico e ideolgico aos agricultores (TEDESCO, 1994, p. 122; OLIVEIRA, 2004, p. 11; GRGEN, 2004, p. 31-32).

    Outro perodo caracterstico do campo brasileiro estendeu-se entre os anos de 1990 a 1999, marcado, preponderantemente, pelo uso intensivo de herbicidas associado ao plantio direto. Somando-se a esses dois elementos centrais, esto presentes nesta segunda fase, outras caractersticas: a necessidade de rotao e manejo das culturas, o uso de mquinas e equipamentos mais sofisticados, a busca pelo aumento da produtividade, a combinao de dois tipos de cultivos (da monocultura para a bicultura) e o uso de tcnicas de conteno de eroso e conservao de solos. (GRGEN, 2004, p. 33-34).

    As principais conseqncias desta segunda fase de implementao da revoluo verde so: aumento dos investimentos em mquinas e insumos; exigncia de maior especializao e profissionalizao do trabalho agrcola; integrao e dependncia cada vez maior da produo com a agroindstria; controle pelo mercado internacional dos custos de produo e dos preos finais dos produtos e, pelo uso indiscriminado de agrotxicos,

    ocorrem desequilbrios no solo e no meio ambiente, surgindo novas pragas/ervas daninhas cada vez mais resistentes aos venenos, aumentando a venda e o consumo destes produtos. A intensificao da aplicao de herbicidas cada vez mais fortes por um lado, combinados, por outro, com a permanncia e o alastramento de determinadas pragas em vrias reas da

    produo de alimentos acabam por colocar em evidncia o esgotamento tecnolgico do modelo desta segunda fase da revoluo verde no Brasil. (OLIVEIRA, 2004, p. 22; GRGEN, 2004, 34-35;).

    Por fim, um terceiro momento da revoluo verde ou modernizao da agricultura que inicia a partir de 2000 e permanece, em seus elementos principais, aos

    10 Sobre a estrutura fundiria brasileira ver: OLIVEIRA, 2004, p. 9-14.

  • 37

    dias atuais, marcado pelo advento do agronegcio e pelo aprofundamento das medidas do

    mesmo modelo iniciado h quatro dcadas atrs. Nas palavras de Grgen (2004, p. 35):

    A terceira fase da revoluo vem justamente para tentar resolver os problemas por ela criados na segunda fase. Usa novos recursos das cincias biolgicas, da mecnica, do geoprocessamento e da informtica, mas no sai dos marcos do modelo, antes aprofunda suas principais tendncias.

    Ao analisar este perodo na agricultura brasileira, o economista Joo Pedro Stdile afirma que houve uma alterao de modelo tecnolgico - da revoluo verde biotecnologia - com a intensificao das pesquisas e cultivo de produtos geneticamente

    modificados, da retirada do Estado dos financiamentos, assistncia tcnica, controle do comrcio e preos mnimos. (STDILE, 2002, p. 40-41).

    Os principais elementos presentes nessa terceira fase so: mtodos e tecnologias

    de controle rigorosos da produo agrcola e pecuria, com utilizao de computadores, satlites etc.; utilizao de recursos cientficos da biologia molecular e da engenharia gentica (transgenia, clonagem...) e controle das tecnologias pelas indstrias multinacionais, atravs de grandes empresas agropecurias e agroindstrias, intensificando

    a integrao e a subordinao do trabalho e da produo agrcola, especialmente atravs da assistncia tcnica privada e controle rgido dos preos dos produtos e insumos. Como se trata de um modelo que utiliza alta tecnologia e mtodos de controle externos rgidos, desenha-se uma tendncia, num curto espao de tempo, de excluso da produo da

    maioria dos pequenos e mdios agricultores, com conseqncias sociais e ambientais ainda mais desastrosas, aumentando o desemprego, a fome, a expropriao camponesa, a favelizao, a contaminao das guas e alimentos, alm de muitas outras. (GRGEN, 2004, p. 36-44).

    Uma caracterstica marcante e permanente desse perodo analisado diz respeito s polticas pblicas vigentes e que, atualmente, continuam fortalecendo as estratgias de insero e controle da produo agrcola pelo capital industrial e financeiro, manifesto nos

    grandes produtores, latifndios, agroindstrias e investidores externos. Nos ltimos dez anos, o governo federal perdoou e renegociou dvidas dos grandes proprietrios de terras, isentou de imposto sobre comercializao e servios a produo destinada exportao, isentou igualmente de impostos a importao de insumos qumicos, criou linhas de

  • 38

    financiamentos baratos e a longo prazo para estruturar o agronegcio, imprimiu aos

    pequenos agricultores uma poltica de migalhas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), direcionando as pesquisas e recursos pblicos para desenvolver o modelo tecnolgico apenas funcional aos grandes produtores e empresas multinacionais. (OLIVEIRA, 2004, p. 26-28; GRGEN, 2004, p. 40-42).

    De forma geral, a agricultura brasileira passou, nestas ltimas quatro dcadas, por um longo e intensivo processo de modernizao capitalista, marcado pela intensificao da mecanizao/informatizao, pela utilizao de insumos industriais, pela expanso do

    crdito rural, pela expanso das lavouras de monoculturas destinadas exportao, pela integrao e subordinao dos camponeses s agroindstrias, pela produo de sementes e animais geneticamente modificados, pela utilizao inadequada dos recursos naturais, pela expanso das florestas secas/deserto verde - eucalipto, accia, pinus eliotis etc. e pelo

    avano do cooperativismo empresarial. Para Stdile e Grgen:

    Esse desenvolvimento manteve e aumentou a concentrao da propriedade da terra, baseando-se fundamentalmente na grande propriedade. Esse modelo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura reforou e aumentou as desigualdades regionais, sociais e dos diferentes tipos de agricultura praticados nas regies. Por outro algo, tornou-se profundamente excludente, beneficiando apenas uma minoria de grandes proprietrios rurais e marginalizando ainda mais uma ampla camada da populao rural. (STDILE; GRGEN, 1993, p. 97).

    Considerando as alteraes e modificaes no campo brasileiro nas ltimas dcadas, inmeros aspectos acrescentam-se aos tradicionais problemas historicamente existentes na formao da sociedade brasileira no que diz respeito, especialmente, s questes agropecurias: baixa produtividade das lavouras de gros e da mo-de-obra;

    ociosidade das terras que, nos imveis classificados como latifndios, a ociosidade das terras chega a atingir 80%; a utilizao da terra como especulao, aplicao de investimentos financeiros e reserva de valor e no para a produo agropecuria. Apenas 10% das terras utilizadas para a agricultura se destina lavoura. A produo de alimentos

    destinada prioritariamente para a exportao. A maior parte da produo de alimentos do pas produzida pelas mdias e pequenas propriedades. A combinao desses indicadores impulsionam a expropriao dos camponeses, a perda de direitos sociais dos trabalhadores do campo e a ampliao da pobreza e dos conflitos agrrios. (OLIVEIRA, 2004, p. 80-86; STDILE; GRGEN, 1993, p. 98-101; TODESCHINI & MAGALHES, 1999, p. 13-14).

  • 39

    por isso que, diante de situaes e condies to contraditrias, sujeitos e movimentos sociais, nacionalidades e etnias, pem-se em luta pela sobrevivncia, por

    direitos, trabalho, terra, dignidade... fazendo parte do processo dinmico da luta de classes que definir, em ltima instncia, de que forma se dar a superao dessa crise histrica da sociedade produtora de mercadoria, que atinge de forma geral todos os setores sociais, manifestando-se, ao mesmo tempo, de forma especfica no espao rural, conforme

    podemos observar em alguns elementos aqui expostos.

    no interior desse universo e desse contexto que se localiza esta nossa pesquisa. A realidade camponesa e as experincias pedaggicas existentes em torno da Escola 29 de Outubro so perpassadas por essas contradies. A construo histrica do campesinato brasileiro e as suas lutas por terra, trabalho e educao relacionam-se diretamente com esta totalidade social, interferindo e sendo influenciada objetivamente, como poderemos perceber pelos elementos que passamos a abordar, iniciando pela singularidade

    sociocultural dos camponeses e os elementos presentes no Assentamento 16 de Maro.

  • 40

    II A SINGULARIDADE SOCIOCULTURAL DOS CAMPONESES

    [...] alm de querer a posse e uso da terra e uma certa apropriao do produto do trabalho, o campesinato representa um modo de vida, um modo de organizar a vida, uma cultura, uma viso da realidade: ele representa uma comunidade. (IANNI, 1986, p. 173).

    2.1 A multiplicidade dos sujeitos sociais do campo no Brasil

    Partimos da hiptese de que os sujeitos sociais includos na categoria terica de campons, constituem-se, de forma especfica, no interior da totalidade social estabelecida pelas relaes sociais capitalistas. Distinta das relaes majoritrias e determinantes institudas entre capital e trabalho, compreendido como fora de trabalho assalariada, o campons tem uma forma de realizao de seu trabalho, de relao com a propriedade e com a natureza, de relao social com o capital e com o mercado que lhe do caractersticas socioculturais singulares, constituindo uma totalidade econmica, social,

    poltica e cultural especfica, sem, porm, estar alheio s determinaes de domnio da relao com o capital em dimenso geral.

    preciso afirmar, inicialmente, a impossibilidade de compreenso destas especificidades em sua totalidade, essa riqueza social e cultural expressa na epgrafe de Ianni, pois h uma multiplicidade de abordagens tericas em torno da realidade camponesa, dependendo do ngulo que se pretenda tratar o assunto. Qualquer tentativa de reviso destas abordagens ou sntese a partir delas seria, neste momento, muito difcil visto que possvel identificar um movimento de redefinio terica em torno das questes que

    envolvem os sujeitos sociais que vivem no e do campo, na e da terra.

  • 41

    Acrescente-se a esse movimento terico, o movimento potencializado pelos sujeitos sociais que vivem no e do campo no Brasil, em seus diferentes tempos e espaos, que imprimem uma luta pela construo de sua identidade coletiva, em suas aes concretas na defesa e na luta por seus direitos elementares de moradia, terra para trabalhar,

    condies de trabalho, polticas pblicas etc. Por isso, qualquer modelo terico predefinido incapaz de dar conta da complexidade da realidade daqueles que vivem do seu trabalho no campo.

    Alm disso, esse trabalho de sntese e reviso em torno da questo camponesa, inmeros autores j realizaram no Brasil e em outros pases, dependendo de suas condies histricas e necessidades tericas. Destacam-se, nesse sentido, Jos Vicente Tavares dos Santos em Colonos do vinho (1978), Jos de Souza Martins em Expropriao & violncia (1982); Ricardo Abramovay em Paradigmas do capitalismo agrrio em questo (1998), Bernando Manano Fernandes em Delimitao conceitual de campesinato (2004), Mrio Maestri em A aldeia ausente (2002), Horcio Martins de Carvalho em O campesinato no sculo XXI (2005), Eduardo Sevilla Guzmn e Manuel Gonzlez de Molina em Sobre a evoluo do conceito de campesinato (2005), alm de muitos outros.

    Sem falar nos chamados clssicos da temtica: Lnin, sobretudo na obra O desenvolvimento do capitalismo na Rssia (1982), Karl Kautsky em A questo agrria (1972); Rosa Luxemburgo em La acumulacin de capital (1985), e Karl Marx, especialmente em Formaes econmicas pr-capitalistas, (1991), O Capital (2003a) e O Dezoito Brumrio de Louis Bonaparte (2003b), Chayanov em La organizacin de la unidad econmica campesina (1974), Henri Mendras em Sociedades camponesas (1978).

    Guzmn & Molina (2005, p. 77-78), ao considerarem as inmeras obras e debates em torno da questo camponesa, especialmente se o campesinato constitui ou no uma classe ou uma frao de classe, se uma categoria integrante de uma parte maior, se tem uma racionalidade econmica prpria, se faz parte de um regime de produo j concludo (feudalismo), se o termo correto para denomin-lo campons, agricultor familiar, pequeno produtor etc. chegam a afirmar que, tratar estas questes nesses termos, um falso debate e no contribui, teoricamente, para esclarecer muita coisa.

  • 42

    Aceitar como vlida esta proposio, me parece simplificar a questo, na medida em que estes mesmos autores, depois de conclurem pela confuso terica, adotam uma perspectiva, a agroecolgica, afirmando que [...] o campesinato mais que uma categoria histrica ou sujeito social, mas, acima de tudo, uma forma de manejar os recursos naturais vinculada aos agroecossistemas locais e especficos de cada zona [...] (GUZMN; MOLINA, 2005, p. 78).

    O que se percebe ao longo do debate sobre a questo camponesa que cada autor

    estabelece determinados critrios para analisar os sujeitos sociais de suas pesquisas. Por exemplo, Fernandes (2004, p. 1) afirma que a delimitao conceitual de campesinato um exerccio poltico. Maestri (2002, p. 150-151), por usa vez, adota os diferentes nveis de relao e propriedade com a terra para identificar a formao do campesinato; Abramovay

    (1998, p. 110) destaca a propriedade e a racionalidade econmica como fatores decisivos para compreender a realidade camponesa, e assim por diante. Na verdade, o que se infere dessa discusso, que cada autor analisa sob determinado ponto de vista essa identidade camponesa. Mais do que oporem-se, acredito que h uma complementariedade,

    possibilitando uma compreenso ampliada desse fenmeno social.

    De fato, os conceitos de campons, de pequeno agricultor, de agricultor familiar, de trabalhador da roa, de lavrador, de posseiro, meeiro, de sem-terra, de assalariado rural, alm de outros, e sua relao/conseqncia interpretativa nos trabalhos tericos e

    empricos de pesquisa, esto sendo reconstrudos, na medida em que novas lutas sociais redefinem os estudos sobre as caractersticas histricas singulares da formao da sociedade brasileira.

    No nosso propsito examinar teoricamente toda esta complexidade, mas estabelecer alguns critrios e/ou elementos explicativos na tentativa de reconstruir categorias de anlise capazes de abarcar, de forma geral, esta parcela de trabalhadores e trabalhadoras do campo, da terra, para melhor encontrar, compreender e analisar os

    sujeitos sociais desta pesquisa, sem terras no passado e hoje assentados do MST, membros do Assentamento 16 de Maro e participantes da comunidade da Escola 29 de Outubro, considerados neste trabalho como camponeses.

  • 43

    2.1.1 A categoria campons

    A que sujeitos sociais abarca a categoria campons? possvel considerar os participantes do Assentamento 16 de Maro e da comunidade da Escola 29 de Outubro como camponeses? Para iniciar a reflexo em torno dessa questo, parto de dois pressupostos: a formao social do campons um processo histrico singular, que varia de lugar para lugar e de tempo para tempo, de acordo com suas lutas e vivncias e que a

    apropriao terica desse sujeito social tambm uma construo histrica, ideolgica e poltica, como assinalado anteriormente. Por isso, qualquer transposio mecnica de modelos explicativos incapaz de dar conta das singularidades sociais e culturais construdas em cada espao e tempo em que se desenvolvem, historicamente, estas formas

    de vida de uma parcela significativa da populao brasileira.

    No processo de formao da sociedade brasileira contriburam inmeras etnias, todas com seus traos e jeitos culturais, sociais, religiosos, polticos... advindos dos diversos continentes e que conformam singularidades culturais do pas. A sociedade colonial escravista existente por quase quatro sculos, a forma de incluso no cenrio capitalista mundial atravs do processo precrio de industrializao no incio do sculo passado, marcou a ferro e fogo, a organizao econmica, social e poltica dos tempos

    atuais, tendo como pano de fundo as gritantes diferenas de classe social, marcadas pela desigualdade de propriedade e de renda, sobretudo.

    As relaes sociais institudas, ao mesmo tempo, manifestam a singularidade geral

    da sociedade e, em particular, das relaes sociais em que se encontram os camponeses. Ser possvel construir um recorte capaz de dar conta de encontrar os rostos dos sujeitos sociais que fazem parte do Assentamento 16 de Maro? De alguma forma, estamos buscando encontrar uma resposta, no completa verdade, mas que nos situe num grau de

    segurana interpretativa satisfatria. Vamos construir algumas hipteses e, a partir delas, tentar desvelar algumas dvidas que nos perseguem.

    O campo no Brasil expressa uma diversidade de formas de ocupao do espao e

    de formas de organizao do trabalho. Inclui inmeras atividades: a agricultura, a pecuria,

  • 44

    a pesca, o extrativismo, a pesquisa gentica, a agroindstria... Para a pesquisadora Clia

    Regina Vendramini (2006, p. 3), essas diversas formas de ocupao do campo expressam a grande desigualdade social existente no pas e indicam a presena de diversos sujeitos sociais, com uma forte oposio de classes. Ao mesmo tempo, o campo brasileiro constitui um espao de vida, de lazer, de cultura, de relaes sociais de pequenos agricultores e

    espao de explorao, de precarizao, de especulao, de agronegcio, de tecnologias e de modificaes genticas coordenadas e apropriadas pela classe dominante.

    O socilogo Ricardo Antunes, por sua vez, em Os sentidos do trabalho (2000, p. 101-117), analisa profundamente as mutaes histricas da classe operria, especialmente na diversificao e heterogeneidade fenomnica do trabalho, do trabalho produtivo e improdutivo, dos novos ramos de trabalho e servios e conclui pela necessidade, atualmente, de construo de uma nova categoria terica, capaz de abarcar esta diversidade

    da classe trabalhadora, sem perder de vista o carter essencial de conceber o capital como capital relao, relao com o trabalho.

    Para Antunes, a classe-que-vive-do-trabalho abarca esta variedade daqueles e

    daquelas que vivem do seu trabalho, ou seja, daqueles trabalhadores e trabalhadoras que vendem sua fora de trabalho e que se encontram expropriados de qualquer posse de meios ou instrumentos de produo: fbricas, terras, mquinas, ferramentas, bancos... constituindo-se na classe explorada e dominada no interior das relaes socais capitalistas. Apesar da diversidade, permanece inalterado o recorte de classe, carter indiscutvel nas

    formaes capitalistas.

    No Brasil, a construo terica em torno da categoria campons no homognea, por no abarcar um sujeito social com caractersticas e fronteiras claramente definidas. Em nenhuma das elaboraes tericas que tivemos acesso foi possvel singularizar este sujeito social. O que se conclui que, sob o conceito de campons, no se encontra um nico rosto. Nativos, negros, caboclos, imigrantes/migrantes, colonos, agricultores familiares, pequenos agricultores, meeiros, parceleiros, arrendatrios, sem terra, seringueiros, pescadores,

    acampados, assentados... so includos por vrios autores como camponeses. Outros, ao contrrio, ao filiarem-se a uma determinada abordagem terica, estabelecem determinados critrios e/ou caractersticas para incluir determinados sujeitos sociais na denominao de

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    camponeses, excluindo os demais. Por exemplo, camponeses so aqueles sujeitos sociais que tem a propriedade da terra e de instrumentos de trabalho, organizando o trabalho em torno da unidade familiar.

    Sem propor uma transposio terica das relaes assalariadas, possvel

    compreender e definir o campons, incluindo esta multiplicidade de sujeitos sociais, com suas especificidades sociais e culturais, a partir, igualmente, de um recorte de classe e defini-los como a classe-que-vive-do-seu-trabalho na terra e da terra, ou, no campo e do campo e que detm, para isso, em menor ou maior grau, determinada propriedade ou

    domnio de terra e de instrumentos de trabalho, assim como as diversas formas de relao e intercmbio com a terra. Incluem-se, por isso, nessa categoria campons, os nativos, os negros, os caboclos, os imigrantes/migrantes, os colonos, os agricultores familiares, os pequenos agricultores, os quilombolas, os caipiras, os lavradores, os roceiros, os

    agregados, os bia-fria, os meeiros, os parceleiros, os arrendatrios, os sem terras, os seringueiros, os pescadores, os assentados.

    O reconhecimento da diversidade dos povos do campo est presente na

    DECLARAO 2002, elaborada no final do Sem