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Linguagem e Pensamento Autora Claudia Rosa Riolfi 1.ª edição Livro 1.indb 1 26/08/2008 14:06:08

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Linguagem e Pensamento

Autora Claudia Rosa Riolfi

1.ª edição

Livro 1.indb 1 26/08/2008 14:06:08

Todos os direitos reservadosIESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

© 2006 – IESDE BRASIL S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Riolfi, Cláudia Rosa, 1965- Linguagem e pensamento/Cláudia Rosa Riolfi. — Curitiba: IESDE Brasil S.A. 2006.

132 p.

ISBN: 85-7638-419-1

1. Linguagem escrita. 2. Alfabetização. 3. Formação de professores. 4. Escrita - Ensino.

CDD 372.634

R585L

1.ª reimpressão

Livro 1.indb 2 26/08/2008 14:06:09

SumárioApresentação ............................................................................................................................5

As intrincadas relações entre pensamento e linguagem ...........................................................7Pensar não é tão simples como parece ....................................................................................................... 8O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos .................................................... 10Texto complementar ................................................................................................................................. 14Atividades ................................................................................................................................................ 15Para refletir ............................................................................................................................................... 15Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 16Referências ............................................................................................................................................... 16

O imprevisível animal humano ..............................................................................................17Os animais não se organizam do mesmo modo ...................................................................................... 17É conversando que a gente não se entende .............................................................................................. 19Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é ................................................................ 20O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor ........................................................................ 22Texto complementar ................................................................................................................................. 23Atividades ................................................................................................................................................ 25Para refletir ............................................................................................................................................... 27Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 27Referências ............................................................................................................................................... 28

Concepção do homem como ser de linguagem ......................................................................29A linguagem é o que dá nosso contorno ................................................................................................... 30Alguns traços da linguagem humana ....................................................................................................... 31A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste ...................................................................................... 33Texto complementar ................................................................................................................................. 35Atividades ................................................................................................................................................ 37Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 39Referências ............................................................................................................................................... 40

Analisar os modos de falar e de pensar: difícil conquista do ser humano .............................41A capacidade para a reflexão lingüística se ganha na cultura .................................................................. 43A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer ....................................................................... 45Texto complementar ................................................................................................................................. 47Atividades ................................................................................................................................................ 49Para refletir ............................................................................................................................................... 50Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 51Referências ............................................................................................................................................... 51

A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano ...................................53Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais .................................................................. 53Introduzindo o pensamento de Vygotsky ................................................................................................. 55A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano ................................................................ 56Texto complementar ................................................................................................................................. 58Atividades ................................................................................................................................................ 60Para refletir ............................................................................................................................................... 62Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 62Referências ............................................................................................................................................... 63

Livro 1.indb 3 26/08/2008 14:06:09

Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem ..............................65No início era o corpo... ............................................................................................................................ 65O conceito de pensamento verbal em Vygotsky ..................................................................................... 67A dupla função organizadora da palavra .................................................................................................. 69Texto complementar ................................................................................................................................ 71Atividades ................................................................................................................................................ 73Para refletir ............................................................................................................................................... 73Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 74Referências ............................................................................................................................................... 74

O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança ................................75A linguagem torna o homem mais complexo ........................................................................................... 76O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo ............................................ 77A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação ...................... 79Texto complementar ................................................................................................................................. 82Atividades ................................................................................................................................................ 85Para refletir ............................................................................................................................................... 86Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 86Referências ............................................................................................................................................... 86

A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança ....................................89O papel da escola no desenvolvimento intelectual .................................................................................. 90Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano .................................. 92Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos ................................ 95Texto complementar ................................................................................................................................. 96Atividades ................................................................................................................................................ 97Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 99Referências ............................................................................................................................................... 99

O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje .........................................................101A inveção da escrita ............................................................................................................................... 101A mutação das funções sociais da escrita ............................................................................................... 102O papel do professor no processo de aprender a escrever...................................................................... 105Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo .................. 106Texto complementar ............................................................................................................................... 108Atividades ...............................................................................................................................................111Dicas de estudo .......................................................................................................................................115Referências ..............................................................................................................................................115

Perspectiva histórico-social: a aula de língua portuguesa e seus textos aí produzidos .........................................117

O pensamento sobre a alfabetização no Brasil ........................................................................................117A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa ..............................................................................119A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno .............................. 122Texto complementar ............................................................................................................................... 124Atividades .............................................................................................................................................. 125Para refletir ............................................................................................................................................. 129Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 129Referências ............................................................................................................................................. 129

Anotações ............................................................................................................................131

Livro 1.indb 4 26/08/2008 14:06:09

Apresentação

Prezado aluno

O material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase 20 anos de meu traba-lho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho tentado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena: por que em nossos dias não surge um pensador

revolucionário que formule uma idéia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo?

Onde estão hoje os gênios de outrora, aqueles intrépidos pensadores que, ao longo da história da humanidade, “suaram sua camisa”, muitas vezes prejudicaram sua saúde, foram perseguidos por aqueles que questionavam suas “idéias exóticas” e, no final, ofereçam-nos o inestimável presente de um novo modo de pensar sobre o mundo?

Onde estão, agora, os novos pensadores que se tornarão conhecidos mundialmente, terão seus nomes registrados nas enciclopédias – enfim, alterarão o estado atual do conhecimento humano? Eu quero muito saber isso e, por esse motivo, aceitei o convite para preparar este curso para você. Quem sabe você não se encanta com essa linha de reflexão e, assim, eu terei uma companhia agradável para continuar o meu trabalho investigativo?

Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se um dia desejei estudar esse assunto foi porque conclui que conhecê-lo me ajudaria a refletir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez mais rara: o momento em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever e se autoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicos os resultados de sua reflexão.

Ao pensar sobre essa dificuldade, muito se fala que o jovem de hoje não tem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento foi causado por ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colega professor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que ― muitas vezes tendo perdido a esperança de construir para si um futuro melhor ― se interrogam sobre o sentido de ler e escrever na escola.

Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive que trabalhar muito. Espero que, honrando o meu esforço, você se engaje no percurso que ora se inicia e que goste do trabalho.

Claudia Rosa Riolfi

Livro 1.indb 5 26/08/2008 14:06:09

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Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

Claudia Rosa Riolfi

O objetivo deste capítulo é convidar o leitor a se interessar por um tema que, hoje em dia, tem mais relevância social do que nunca: as conseqüências éticas da compreensão da necessidade de nós, professores, insistirmos

vigorosamente em nos mantermos no exercício do pensamento criativo e no desafio que é a mediação da linguagem nas trocas com nossos semelhantes.

É claro para todos que um ser humano não sobrevive muito tempo se for privado de água e de alimento. Recentemente, tem se tornado evidente que, para além dessas necessidades classicamente reconhecidas como sendo as básicas, dificilmente qualquer um de nós teria sobrevivido aos primeiros anos da infância sem receber ao menos um pouquinho de amor daqueles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você pode imaginar quanto tempo agüentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de seus familiares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém a quem confia – em suma, sem falar e sem ouvir palavras?

A observação de pessoas que passaram por longo período de isolamento, como por exemplo doentes graves ou prisioneiros, não deixa dúvidas: o pobre infeliz que está privado de trocas verbais com outros humanos logo perde o interesse em manter os cuidados de higiene e de aparência pessoal, “esquece” de comer nas horas costumeiras, desenvolve distúrbios do sono, perde a noção do tempo. Resumindo, tem toda sua vida mental desorganizada.

Por que isso acontece? Porque não poder falar é uma das maiores agressões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agir contra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem tem sobre nós, é de suma importância para refletir sobre a construção e a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem toda relevância para refletir sobre os sucessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados.

No que se segue, conseqüentemente, optamos por trazer alguns elementos que permitem introduzir a reflexão sobre o pensamento humano desde uma óptica que dá primazia à linguagem, compreendida como sistema de articulação de signos verbais exclusivo do homem. Antes de começarmos, é importante esclarecer, entretanto, que as relações entre pensamento e linguagem vêm sendo, há muito

Você já imaginou como seria sua vida se fosse impedido de verbalizar seus gostos e opiniões?

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Linguagem e Pensamento

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tempo, alvo de polêmica entre os mais diversos estudiosos. São várias as áreas que se dedicam a elucidar essa questão, em especial, mas não exclusivamente, a medicina, a biologia, a psicologia e a lingüística, sem que, entretanto, tenha sido possível alcançar um consenso total na forma de conceber como linguagem e pensamento se articulam para o humano. Por esse motivo, como em tudo na vida, senhor leitor, não existe apenas um lugar onde o sol brilha, sendo necessário “escolher a nossa praia!”. Vamos conhecer uma delas.

Pensar não é tão simples como pareceDesde que o mundo é mundo, os homens têm se interessado por esclarecer as

obscuras origens de seus pensamentos. Sempre houve alguém interessado em dizer de onde tinha se originado uma idéia qualquer ocorrida a outro alguém, nem que fosse para lhe imputar uma origem mística, mais comumente demonológica. Embora há muito tempo tenhamos superado a chamada “época das trevas”, com certeza o leitor já teve oportunidade de testemunhar, frente a um pensamento mais estranho, a acusação de outro menos esclarecido que, piamente declara: “Isso deve ser coisa do capeta!”.

Deixando de lado as crenças religiosas, essa modalidade de olhar o mundo é interessante porque exemplifica um tipo de raciocínio que acredita na correspondência direta e imediata entre

uma causa e sua conseqüência – no caso, a sugestão feita pelo diabinho como causa e o surgimento do “pensamento” na cabeça de um sujeito como conseqüência.

Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como se fossem nossas, as idéias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação de uma reflexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tão idiotas? Com certeza não!

Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas qualidades e potencialidades, tem conseqüências nefastas para a nossa vida em sociedade. Se for legítimo crer que para todo efeito manifesto no mundo será possível encontrar uma causa lógica, acabaremos por funcionar na crença que foi aquela dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos, do que uma bofetada... Não seria muito difícil imaginar até que ponto de destruição a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres.

Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem, é importante fazer a crítica de todos os resquícios desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em nossa cultura, disfarçado de ciência.

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A liguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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A ciência que ignorou a importância da linguagem Visando, portanto, a construir uma noção de pensamento mais adequada

para ser mobilizada no interior da escola, vamos recuperar alguns dos traços de uma das escolas da psicologia que se inscreveu dentre aquelas que não davam a devida relevância ao papel da linguagem na manutenção da nossa organização social: o behaviorismo e as linhas que dele se originaram.

Quando nos referimos a essa corrente do pensamento, provavelmente o primeiro nome de autor que nos ocorre é o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990).1 De fato, esse psicólogo americano se tornou o mais famoso representante do behaviorismo, uma vez que, ao longo de sua vida, empenhou-se grandemente em fazer publicidade de suas próprias idéias, na sua maioria oriundas de suas pesquisas com os animais, realizadas, por sua vez, nos moldes daquelas desenvolvidas pelo fisiólogo russo que, em 1906, publicou achados experimentais sobre o reflexo condicionado: Ivan Petrovisch Pavlov (1849-1936).

A principal descoberta do russo ficou conhecida como condicionamento pavloviano, modalidade de manifestação comportamental que ele percebeu por meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experimentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães, que associavam o som com o gosto da carne.

Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pessoal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias mais “subjetivas”, tais como a moral, a força da vontade e assim por diante. Conseqüentemente, Skinner costumava afirmar que o homem bom só faz o bem porque o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria, ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo.

A elaboração de Skinner no que tange à linguagem é bastante coerente com os demais aspectos de sua teoria (SKINNER, 1957), ou seja, ele reduz a linguagem a mais um dos comportamentos que podem ser controlados. Ao longo de sua realização, o autor elaborou o conceito de condicionamento operante, ligeiramente diferente da noção de condicionamento (uma junção simples de estímulo e resposta) que vinha sendo desenvolvida nas formas anteriores de behaviorismo. Nessa nova elaboração, acrescenta-se a consideração da possibilidade de o organismo emitir respostas, em vez de só obtê-las a partir de um estímulo externo.

Ressalte-se, portanto, que o autor tentou explicar o aprendizado e a linguagem verbais dentro do paradigma do condicionamento operante, isto é, de novo sem mobilizar a categoria do pensamento como uma instância elaborada que pode mediar, por meio da linguagem, as relações entre o homem e o mundo.

Você conhece as principais idéias do behaviorismo?

1Dentre inúmeros sites que contém dados sobre

a bibliografia de Skinner, pela concisão e objetividade, desta-ca-se o seguinte endereço, do qual retiramos alguns dados a respeito da vida do autor: http://www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html.

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Linguagem e Pensamento

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Como o behaviorismo é traduzido na educação? Na educação, o behaviorismo deu origem a uma abordagem aplicada com o

intuito de se obter um determinado comportamento previamente escolhido. Para tal fim, costuma-se dar muita ênfase à utilização de condicionantes e reforçadores arbitrários, como elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos colegas etc. Para quem acredita nesta orientação teórica, que parte do princípio de uma aprendizagem mecânica, com repetições sistemáticas do tipo estímulo-resposta automáticas, o ensino consiste em um arranjo e um planejamento de condições externas que levam os estudantes a aprender, sendo de responsabilidade do professor unicamente assegurar a aquisição do comportamento.

Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se fosse totalmente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica ― criada e desenvolvida de acordo com os princípios behavioristas ― em que, se assim podemos dizer, o homem estaria livre do desconforto de ser possuidor da faculdade do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros. Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descrito na obra de ficção Walden II (SKINNER, 1977).

Nesses seus devaneios, Skinner imaginou uma cultura que poderia ser inteiramente controlada por meio de um dispositivo extremamente simples: a recompensa automática dos bons e a eliminação automática dos maus. Uma olhada mais ingênua naquela sociedade poderia até nos levar a concluir que a eliminação dos maus poderia ser uma boa idéia, mas, dada

a complexidade do ser humano, em face dessa idealização tentadora, resta saber como o governante do local faria para evitar os riscos inerentes à tentativa de tornar o mundo à sua imagem e semelhança. Ou seja, o que o protegeria de decretar, talvez mesmo sem o saber, que todos aqueles que são diferentes de si são “maus”? Como ele faria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção para formar os parâmetros adotados para diferenciar o bem do mal?

Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário foi implementado: para uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamento. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui de nosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto que se segue só nos interessa à medida que nos oferece uma interessante abertura para refletir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento.

O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos

É visando encontrar um caminho alternativo para introduzir as complexas e estreitas relações entre linguagem e pensamento que vamos recorrer a uma

É possível pensar numa sociedade totalitária e

controladora?

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A liguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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brilhante obra de ficção, escrita por Eric Arthur Blair, publicada pela primeira vez em 1949, sob o pseudônimo de George Orwell (2004): o livro 1984.

Sabe-se que essa novela foi inspirada na opressão dos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáfora atualíssima que nos alerta contra os perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça para servir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento.

Narrado em terceira pessoa, a obra-prima conta a história de Winston Smith, um tipo de jornalista ou historiador que, funcionário do Ministério da Verdade, exerce a função de reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Por sua vez, esse órgão onipotente e onipresente exercia feroz vigilância sobre os modos de pensar de cada cidadão, já que seu controle total se dava, justamente, pelas diversas técnicas utilizadas para abolir o livre pensar, nomeado como crimidéia.

Antes de prosseguir com a recuperação de alguns fragmentos do texto de Orwell, é importante frisar que não é a narrativa em si aquilo que nos interessa, mas a possibilidade de, a partir dessa impressionante metáfora, compreender que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das contingências histórico-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida, determinam-no.

Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém, como seria possível controlar o pensamento humano?

Com relação a essa questão, a obra de Orwell nos oferece um importante subsídio para reflexão. No fictício ano de 1984, para além da vigia concreta da população pelo meio das câmaras de vídeo e dos microfones ocultos, do desencorajamento às atividades solitárias, da tortura física e da pura e simples eliminação dos membros dissonantes, o ficcionista nos mostra que, na sociedade de controle que ele vinha denunciando, o principal instrumento de controle e de manipulação do homem era a alteração artificial de sua linguagem.

Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma espécie de lingüista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamente com outros colegas, inventar uma língua artificial para substituir a natural: a novilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma fictício desenvolvido não pela criação de novas palavras, como, aparenta ser o caso dos tempos contemporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela condensação e a remoção delas. A idéia que guiava os “intelectuais” do partido era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se referir a algo, já que é bastante difícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos, aquele algo passaria a não existir.

Antes de prosseguir, saboreemos ao menos um fragmento entrecortado da fala do lingüista, criado por Orwell, em um diálogo com o personagem principal, que se interessou por conhecer maiores detalhes sobre o seu trabalho:

O pensamento de um homem é independente do tempo no qual ele vive?

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Linguagem e Pensamento

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Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050. [...] É lindo destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificativa existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário da outra? Cada palavra contém em si o contrário. [...] Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano? [...] Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já na Décima Primeira Edição, não estaremos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciência sempre uma pausa menor. [...] Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se for abolido o conceito de liberdade? Todo mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência. (ORWELL, 2004, p. 54-55, grifos do autor).

Lendo o excerto acima, podemos claramente perceber que a tese de Orwell é a de que, por meio do controle sobre a linguagem, um governo totalitário seria capaz de impedir que idéias indesejáveis viessem a ocorrer aos cidadãos, uma vez que, completamente anestesiados pela ordem dominante, restaria aos cidadãos apenas um simulacro de “pensamento”.

Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do excerto que você acabou de ler, pois elas contêm uma idéia que nos é bastante cara: a de que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é fruto dos efeitos da linguagem sobre um sujeito, efeitos estes que o engendram. Por esse motivo, se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo diferente do horror retratado por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar.

Na atualidade, as teses behavioristas ganharam nova releitura: as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) que, nos últimos 15 anos, disseminaram-se e consolidaram-se, tanto na medicina quanto na educação. As TCC consistem em técnicas que, sob a luz da psicologia cognitivista, revisitam os estudos comportamentalistas emprestando-lhes uma roupagem atual e dando-lhes um caráter de prática “cientificamente comprovada”.2

As TCC visam a incidir sobre o modo como o homem se comporta alterando-lhe os aspectos cognitivos. Os praticantes das diversas modalidades desta terapia tomam um determinado homem e, em primeiro lugar, identificam o que julgam ser as formas distorcidas e não realistas de pensar para, depois, ajudar o indivíduo a interromper comportamentos qualificados como alterados e a substituí-los por comportamentos que o terapeuta julga serem mais saudáveis.

Funcionando com a premissa da existência de um parâmetro “adequado” para nortear o comportamento do humano, as TCC se propõem a livrar os cidadãos das dificuldades inerentes ao ato de decidir de acordo com o seu próprio desejo.

Estamos longe da ficção na sociedade

contemporânea?

2Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem,

o cognitivo e o comporta-mental se inscreviam, quan-to a sua fundamentação, em concepções teóricas opostas, tendo origens, tradições, pre-cursores e problemáticas to-talmente diferentes. Se para um comportamentalista “his-tórico” o que interessa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse este que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivista “his-tórico” o que interessa são os processamentos, o modo de funcionar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicolo-gia cognitiva, um empobreci-mento teórico brutal.

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A liguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Para tal fim, ensinam àqueles que tratam “o modo correto” de pensar e de agir, isto é, “livram” a população do livre-arbítrio.

Por acaso, esse modo de agir faz você lembrar do Partido do livro de Orwell? Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que queremos nos afastar completamente.

Por esse motivo, é importante frisar que, atualmente, a conduta profissional inspirada nas TCC consiste em um fenômeno mundial que se expressa, de maneira maciça e extravagante, na formação médica e psicológica, nas revistas científicas, nos hospitais, na terapia oferecida na rede pública e nos consultórios privados e, o que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3

Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presente nessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que tange ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos assistindo passivamente aos acontecimentos.

Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que esta conduta ganhava hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro francês Blazy e, posteriormente, disseminando-se entre os clínicos franceses) que, recentemente, recebeu adesão de muitos intelectuais brasileiros.

Trata-se de um grupo de pessoas que, embora adotando diversas perspectivas para refletir sobre as relações entre linguagem e pensamento, não concordam com a existência de quaisquer técnicas ou abordagens que levem alguém a uma coerção mental. Estes pensadores têm em comum a idéia de que, na tentativa de dominar o pensamento, há em jogo um sério problema ético cujos resultados são dramáticos: a exclusão do sujeito da sua cultura.

Não é de se estranhar que, quanto mais se tenta domesticar o real, padronizar as condutas e cientificizar a avaliação dos resultados, não levando em conta as intrincadas relações entre linguagem e pensamento, mais se acaba por causar o aumento de fenômenos “bizarros” na cultura, como a violência gratuita, os crimes sem motivo, o fracasso escolar generalizado etc.

Concluindo, queremos frisar agora que, antes de tudo, somos contrários a qualquer abordagem que pregue a redução do homem a um autômato privado daquilo que, por definição, é próprio do humano: sua singularidade, seu jeito próprio de pensar e de relacionar-se com a linguagem. Por esse motivo, é importante ressaltar que nossa reflexão sobre pensamento e linguagem se inscreve, portanto, nesse movimento de resistência contra o ressurgimento desse fantasma que, há algum tempo, julgávamos esquecido: a sociedade de controle.

Na contramão dessa tendência, queremos convidar você a somar esforços para a construção de um modo de refletir sobre a linguagem e o pensamento humano que, respeitando profunda e amorosamente os modos de pensar e de

Estamos nos deixando controlar passivamente?

3Seguindo o padrão mundial, no Brasil a presença

das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma ferramenta de busca na internet ― no caso, o Google, cujo acesso se faz no endereço http://www.google.com.br ― mostra que havia, no fim de abril de 2005, 650 páginas que as veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem ser eficaz e comprovadamente superados por meio das TCC.

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Linguagem e Pensamento

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aprender de cada um de nossos alunos, possa ajudá-los não só a se inserirem na nossa cultura mas também a ousarem pensar criativamente e, ao inovarem, responsabilizarem-se solidariamente pelos rumos da humanidade.

A novilíngua(GUERRANTE, 1999)

Há um novo linguajar na praça, talvez filho da globalização, que me obriga a refletir cada vez que ouço como se estivessem falando comigo numa língua estrangeira qualquer. Cada vez entendo menos telefonistas, recepcionistas, economistas, aeromoças, jornalistas, enfim, estou me isolando no meio de um palavreado confuso, muitas vezes mal traduzido, um dialeto incompreensível. É bem parecido com o português que aprendi, porque soa como português, os fonemas são da boa língua portuguesa, mas, não tenho dúvida, um português que pede tradução a cada palavra.

Dia desses liguei para um amigo meu. A secretária me disse o seguinte: “Ele não se encontra.” Entendi o que ela falou. Ele estava se procurando, e não conseguia se achar. Não era bem isso. Que seria? Ele não estava sendo encontrado no seu posto de trabalho? Quem inventou essa fórmula confusa para substituir outra muito mais simples (“Ele não está”)?

Não faz muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um cidadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?” Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qualquer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela ficou muda. Não entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço, o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente andasse à procura desse prazer em falar comigo, não voltou a ligar.

Onde é que estão padronizando esse linguajar? Por que substituíram o “quem quer falar”, ou “da parte de quem devo anunciar”? Já fomos mais bem educados e bem mais simples. Ultimamente, estamos nos transformando em autômatos repetidores de chavões decorados.

Os economistas pegaram a palavra apoio e a substituíram por suporte, que eu tenho lá em casa para não deixar a estante cair. Trouxeram diretamente do inglês, sem a menor preocupação com a existência de uma palavra apropriada na língua-mãe.

Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me enviaram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá venho notando uma substituição eufemística de algumas palavras por outras supostamente mais sofisticadas. Morrer tornou-se falecer, ter virou possuir, parentes foi substituída por familiares, aliás foi trocada por inclusive, vender foi vencida por comercializar, definir ocupou o lugar de decidir, pôr virou colocar (exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, felizmente). Todas foram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia.

Já havia me acostumado ao verbo deletar, palavra de boa origem latina, mas importada pelos informatas, quando ouvi um avião de traficante dizer numa entrevista que seu chefe mandara “deletar o cara”. Até bem pouco tempo, o verbo deles era apagar.

Esses informatas são de matar. Mexo no computador cheio de dedos – melhor dizer “pisando em ovos”, já que o uso dos dedos é muito óbvio no caso do computador – e ainda assim dia desses

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A liguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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surgiu na tela uma enorme advertência: “Você executou uma operação ilegal e o programa será desligado.” Tremi nas bases. Logo eu, que nunca fui parar sequer no cadastro negativo do Clube de Diretores Lojistas. Operação ilegal? Me senti o próprio traficante, mandando deletar pessoas. Ah, essa novilíngua, um arremedo do admirável mundo novo, parece que veio para ficar.

Estudando a mídia brasileiraPreparação

1. Dividir a turma em seis grupos.

2. Cada grupo ficará responsável por conseguir exemplares variados e atualizados (de preferência da mesma semana) dos seguintes tipos de publicação:

revistas para crianças;

revistas para adolescentes;

revistas femininas;

revistas para público interessado em temas específicos (trabalhos manuais, surfe, culinária etc.);

revistas masculinas;

jornais variados.

Desenvolvimento

Fazer um levantamento das propagandas presentes em cada um dos veículos, anotando não só os produtos que se procura vender mas também, acima de tudo, os valores agregados à venda desses produtos.

Exposição oral dos resultados do levantamento por cada um dos grupos.

Em plenária, elencar as idéias recorrentes na análise de todos os grupos. Se possível, organizar um quadro demonstrativo dos resultados da pesquisa.

Dado esse levantamento inicial, debater a seguinte questão: em que medida, hoje, a publicidade é um fator determinante na construção do pensamento da população brasileira?

Leia, a seguir, um fragmento do belíssimo poema Salmo perdido, de Dante Milano (1994, p. 89).O mundo não é mais a paisagem antiga,

A paisagem sagrada.

Cidades vertiginosas, edifícios a pique,

Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.

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Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,

As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,

Deus não nos reconhece mais.

A partir desta leitura, vamos refletir sobre uma questão que se enquadra naquelas que vêm sendo classificadas como “paradoxo Tostines”: foi o progresso do mundo que levou a uma alteração do pensamento humano ou a alteração do pensamento humano que o levou a uma percepção diferente do mundo?

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.

Romance inglês, publicado em 1932. Antes da obra 1984, já denunciava alguns dos efeitos da utilização de técnicas de inspiração behaviorista na educação das novas gerações, em especial, quando utilizadas como coadjuvantes da manutenção do poder dos governos totalitários. De forma instigante e extremamente cativante, Huxley conta uma história na qual, seguindo as aventuras e desventuras do pobre Bernard Marx, tomamos conhecimento dos estragos do totalitarismo sobre a cultura e, conseqüentemente, sobre os modos de pensar dos cidadãos.

BUARQUE, Chico. Fazenda modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

Por meio de uma alegoria, a criação de uma novela na qual os personagens principais são bovinos falantes e pensantes, Chico Buarque busca nos levar a uma séria reflexão sobre a realidade brasileira, em especial no que tange ao tratamento desumano que, ordinariamente, é reservado para as classes populares e aos meios que, de quando em vez, tendem a ser usados para que estes sequer tenham condições de perceber a seriedade de sua situação.

BUARQUE, Chico. Fazenda modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

COBRA, Rubem Queiroz. Burrhus Skinner. Disponível em: http://www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.htm. Acesso em: 27 ago. 2005.

GUERRANTE, Romildo. A novilíngua. Nave da Palavra, n. 13, 15 out. 1999. Disponível em: http://www.navedapalavra.com.br/cronicas/novilingua.htm. Acesso em: 27 ago. 2005.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.

MILANO, Dante. Poesias. Petrópolis: Firmo, 1994.

ORWELL, George. 1984. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

SKINNER, Burrhus Frederic. Verbal Learning. Nova Iorque : Appleton-Century-Crofts, 1957.

_____. Walden II: uma sociedade do futuro. São Paulo: EPU, 1977.

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O imprevisível animal humano

Claudia Rosa Riolfi

S e você é pai ou mãe de vários filhos, é proveniente de família com vários ir-mãos ou teve a oportunidade de conviver de perto com diferentes crianças por um tempo prolongado, com certeza concordará com a seguinte afirma-

ção: não é possível prever como um ser humano vai se desenvolver. A experiência nos mostra todos os dias que, mesmo se tratando de filhos de um casal que, supos-tamente, ofereceu a mesma criação para todas as crianças, ao crescer um irmão se torna diferente do outro com relação aos hábitos, crenças, modos de levar a vida e assim por diante. Você já parou para pensar por que isso acontece?

Ao longo do tempo, essa questão tem despertado o interesse de vários estudiosos. Ao definir o padrão do desenvolvimento humano, deu-se para essa questão diferentes tipos de resposta, ou, dizendo de outro modo, conceberam-se modelos teóricos para explicar como nos tornamos adultos. Neste capítulo, vamos conhecer resumidamente alguns desses modelos para que, em outro momento, a questão das relações entre pensamento e linguagem possam ser mais bem colocadas.

Assim sendo, os objetivos do presente capítulo são fazer uma comparação inicial entre os modos de organização social dos homens e dos animais; problematizar as pretensas relações “transparentes” entre linguagem e pensamento; e expor alguns modelos diferentes que explicam como o ser humano chega a tornar-se aquilo que ele é. Mãos à obra!

Os animais não se organizam do mesmo modoSe você tem um animal de estimação que passa muito tempo em companhia

dos humanos, deve estar, no mínimo, desconfiado do fato de que, talvez, as diferenças entre nós e eles não sejam assim tão grandes como pensamos que sejam. Particularmente quando os criamos, temos esta impressão de que a coisa funciona quase como se pudéssemos entender o que eles “pensam” e “desejam”.

Esta aparente “compreensão” dos modos de pensar de nossos animais se dá porque sua gama de necessidades é bastante limitada se comparada às nossas. Qualquer um sabe dizer quando um cachorrinho precisa de água, por exemplo; mas, venhamos e convenhamos, seria impossível descobrir se ele prefere mineral, importada, com ou sem gás etc. Somos, portanto, obrigados a esperar sua reação frente ao que lhe oferecemos para, a posteriori, poder afirmar se era aquilo que ele “queria” ou não.

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Quem tem contato com filhos ou sobrinhos sabe que, com as crianças, a coisa é muito diferente. Quando uma delas decide nos pedir um presente, não se trata de um presente qualquer, mas, pelo contrário, de uma demanda que vem repleta de especificações. Não nos dizem simplesmente “Eu quero um brinquedo!”, mas “Eu quero uma boneca Polly, com o cabelo loiro, que venha com cinco roupas para trocar e não pode ser igual àquela que você me deu no ano passado!”. E ai de você se não achar o modelo exato!

Em suma, por meio desses exemplos iniciais, estamos tentando mostrar que, enquanto um animal é bastante previsível, uma vez que se acha mergulhado no “mundo real” e premido por suas necessidades instintuais, nós, humanos, somos imprevisíveis. Como somos seres de linguagem, aquilo que compreendemos serem as nossas necessidades básicas não é plenamente dominado pelo bom senso da sobrevivência da espécie, mas, grandemente determinado pela discursividade de nosso tempo.

Quadro 1: Modos de organização social dos humanos e dos demais animais que conseguem viver em grupo

Os animais Os seres humanos

São regidos por seus instintos. Sofrem fortíssima influência da cultura na qual estão inseridos.

Têm uma organização grupal bastante rígida e limitada, não conseguindo

inovar em sua “vida social”.

Podem encontrar seu “lugar social” dentro da organização grupal na qual

estão inseridos e, se assim o desejarem, alterá-lo.

Não conseguem transmitir a experiência por meio das gerações: o que um animal “aprende” morre

consigo.

Acolhem e educam os novatos, introduzindo-os na cultura e no saber acumulado pelos seus antepassados.

Não podem planejar o futuro.Utilizam, muito freqüentemente, a

linguagem como um campo no qual é possível planejar e projetar o futuro.

Não podem “comunicar-se” para além do registro limitado de suas

necessidades básicas.

Podem utilizar a linguagem não apenas para comunicar suas necessidades imediatas mas também para criar,

emocionar, alterar a própria realidade etc.

São muitíssimo previsíveis no que tange aos seus padrões de evolução.

Têm seus modos de evolução grandemente variáveis.

Estudando o Quadro 1, é importante compreender que refletir sobre o pensamento humano, sem levar em conta sua inserção cultural e sua relação com a linguagem, é pensar que não passamos de animais que sabem se vestir de modo um pouco mais enfeitado.

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1Sinceros agradecimentos à Cláudia Alaminos por

ter compartilhado esta saboro-síssima história comigo e com meus alunos da Universidade de São Paulo.

Nós que nos preocupamos com a educação e com a formação das novas gerações precisamos ir um pouco além disso. Precisamos, para poder nos aproximar do padrão de pensamento de nossos alunos, compreender que, como conseqüência do fato de falarmos, as relações entre nós não são nem tão homogêneas nem tão estáveis como parecem. Onde quer que olhemos mais de perto, há equívoco, e ele tem conseqüências. Passemos então a esse tópico.

É conversando que a gente não se entende...

Um longo tempo se passa até que possamos declarar que o filhote do humano está de posse de um sistema lingüístico constituído à moda dos adultos. Embora ele “fale” aproximadamente desde os 13 meses, essa fala, para ser analisada convenientemente, tem de ser lida como sendo uma produção que está sendo efetuada por um sujeito para quem o sistema lingüístico ainda está em constituição.

Felizmente para os bebês, entretanto, suas mães ignoram esse fato e tratam suas produções rudimentares, frágeis e imperfeitas como se fossem análogas àquelas que saem de nossas bocas. Isso significa que, na sua imensa sabedoria, essas mamães podem entrever no jovem humano uma inteligência igual à sua, embora ele ainda não tenha tido tempo de vida para se traduzir por meio de palavras articuladas.

Supomos quais sejam essas palavras e nos dirigimos aos nossos filhos muito jovens como se eles pudessem entender o que estamos falando. A informação que se segue fica entre nós para que não corramos o risco de levar uma mamãe a parar de fazer o que é tão importante que elas façam: eles não entendem nada! Somos nós, os adultos, que, por meio de alguns indícios (pequenos ruídos, gestos e olhares), interpretamos o que os nossos filhos “dizem” como se fosse linguagem.

Mas não há qualquer problema nisso, como já adiantamos. O problema se coloca quando nós, os educadores, esquecemo-nos desse processo inicial e sequer levamos em consideração que, em sua juventude, muitos de nossos alunos também não entendem o que estamos falando, embora pareça o contrário, pois, assim como o faz o bebê pequeno, também reagem à nossa fala. A seguir, vamos narrar uma pequena historieta verídica, ocorrida com uma amiga, que é fonoaudióloga, e seu filho único, na ocasião, prestes a comemorar o seu quinto aniversário.1

Trabalhando nos preparativos para a festa de aniversário de seu filho, essa amiga estava ao telefone, falando com fornecedores responsáveis pelo aluguel do salão, pelos convites etc. Seu filho, muito feliz e animado com os cuidadosos preparativos, permanecia sentado muito quieto, atento e silencioso ao seu lado, dando mostras de estar adorando a homenagem que estava recebendo.

De repente, o menino se levantou e disse: “Mãe, estou muito decepcionado com você. Não sou mais seu amigo, eu não poderia imaginar que logo você ia fazer

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uma maldade dessa comigo!” Muito surpresa, a mãe permaneceu perplexa por alguns momentos, sem saber o que dizer. Ela se interrogava o que teria ofendido tanto o seu filho? Sua única hipótese era a de que, em seu último telefonema, dirigido a sua própria mãe, ela tivesse se alongado um pouco demais, desse modo entediando seu filho. Mas, mesmo assim, isso não seria uma maldade.

Mais calma, foi conversar com o filho, perguntando que maldade ela havia feito para perder sua amizade. Muito sério, ele respondeu: “Mãe, nós combinamos que só convidaríamos gente legal para a minha festa e você me trai e convida a Má Licuia.” Não tendo qualquer pessoa na sua lista de convidados que se chamasse Licuia, a mamãe estava cada vez mais confusa, até que, conversa vai, conversa vem, pudesse perceber, até pelo

seu treinamento como fonoaudióloga, que esse exótico personagem havia nascido durante a conversa com a avó do garoto. Combinando os detalhes da vinda de sua mãe para a festa, ela, que desejava tê-la em casa durante todo o final de semana, havia dito “Mamãe, venha na sexta, já de mala e cuia.”

Como nossas palavras são escorregadias, nosso jovem amigo, ao ouvir uma expressão idiomática que ignorava — no caso, “trazer a mala e cuia” ― interpretou-a como pôde, entendendo que sua mãe havia pedido a sua avó que, ao vir para a sua festa, trouxesse também a Má Licuia! Prosseguindo com nossa reflexão, entretanto, você talvez não ache tão engraçado passar a imaginar que, dado que a homofonia é um fato concreto, todos os dias centenas de Licuias nasçam em nossas salas de aula sem que sequer sejamos comunicadas ou comunicados de seu aparecimento no mundo. Nós as desconhecemos, mas elas estão por aí, impondo sua presença no curso dos pensamentos de nossos alunos e fazendo com que, ao contrário do que costumeiramente esperamos, eles pensem de modos que sequer podemos imaginar.

Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é

É chegada a hora de esclarecer que a discussão que estamos desenvolvendo ao longo deste capítulo só tem sentido a partir da óptica de um referencial teórico que leve em conta a imprevisibilidade do animal humano. É compreendendo que não é possível fazer uma correspondência imediata entre o homem e modelos preestabelecidos de desenvolvimento que podemos nos responsabilizar pelo ato educativo e nos posicionar de modo mais eficaz em nossas salas de aula.

No Quadro 2, o leitor encontrará, de modo muito sucinto, uma sinopse de três grandes vertentes da análise do desenvolvimento humano.

Você já imaginou quantas “Licuias”

moram na cabeça de nossos jovens alunos?

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Quadro 2: Três possibilidades de modos de análise do desenvolvimento humano

Grande modelo Comportamentalista Teleológico Rizomático

Crença predominante

Existe influência onipotente dos

estímulos do meio sobre o humano.

Existe um padrão de

desenvolvi-mento biológico que segue seu próprio curso,

em alguma medida,

independente do meio.

Não existe unicidade, nem nos padrões de comportamento nem na história de vida de cada um de nossos

alunos.

Papel do adulto que deseja

exercer uma influência do

tipo educativo

Controlar rigidamente os estímulos

fornecidos pelo meio para a criança, de

modo a proporcionar um aprendizado feito de “modo correto”.

Ficar atento às manifestações

da criança, de modo a perceber se ela está se

desenvolvendo de “modo correto”.

Respeitar a singularidade de cada sujeito e, conseqüen-

temente, fornecer-lhe um amplo leque de

experiências culturais para que ele possa

fazer seu próprio percurso.

Embora de forma muito esquemática, e correndo o risco de algum reducionismo simplificador, o quadro acima nos mostra que, na contemporaneidade, caminhamos cada vez mais para a compreensão de que um ser humano, ao contrário de outros animais, não tem o curso de seu pensamento completamente determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie. Não podemos ser reduzidos a este nível da existência de um contato pleno, não mediado, entre o corpo e o mundo. Pelo contrário, temos nosso encontro com a realidade de maneira parcelar e fragmentada e, a partir disso, construímos nosso padrão de pensamento.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari são os precursores de um modo de pensar que, por levar em conta as diversas ramificações de uma dada realidade, ficou conhecido como “modelo rizomático”. Sua obra mais conhecida denomina-se Mil platôs, cuja edição brasileira iniciou-se em 1995, tendo sido concluída dois anos depois. Trata-se de uma obra muito importante para o aprofundamento do assunto que estamos aqui tratando, uma vez que questiona a crença na existência, no pensamento humano, de uma tendência natural para uma verdade única. Em particular, interessa-nos de perto a introdução do primeiro volume (Introdução: rizoma), em que se postula um sujeito capaz de conectar-se com as multiplicidades, de maneira não linear. Do ponto de vista dos autores, a escrita rizomática realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui para a abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência.

Para concluir esta parte de nosso estudo, convido o leitor para refletir sobre um fragmento do importantíssimo trabalho em que Milton Santos (2002) versa sobre a precariedade da percepção que podemos ter sobre as coisas.

As abordagens fundamentadas na percepção individual têm seu ponto de partida no processo do conhecimento. Este é o resultado da apreensão da realidade contida em um objeto. Devido ao fato de que o principal interessado neste mecanismo, ou seja, o sujeito, é ao mesmo tempo um ser objetivo e um microcosmo, o encontro entre objetividade da coisa (ou a coisa objetificada) e a subjetividade de seu decifrador permite uma variedade de percepções. A coisa permanece una, total, intacta, mas as modalidades de sua percepção são diversas, parcelares, freqüentemente deformantes. (SANTOS, 2002, p. 92-93).

É com essa lição de humildade sobre o quanto podemos compreender de nossa realidade nos bolsos, se assim podemos dizer, que vamos concluir este capítulo, tematizando o papel central que a pesquisa sobre os padrões de pensamento de cada um de nossos alunos tem para nossa prática docente.

O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor

Se entendermos que o pensamento humano está longe de se desenvolver de forma linear, compreendemos que, para sermos eficazes em nosso ato pedagógico, não devemos pensar que nossos alunos são completamente previsíveis. Pelo contrário, será bastante saudável ter em mente a necessidade de “realizar um trabalho de detetive” para elucidar o modo pelo qual cada um aprende.

Para ilustrar que tipo de trabalho estamos nomeando por meio da metáfora do detetive, vamos, desta vez, trazer como exemplo a literatura de mistério, cujo precursor básico é Edgar Allan Poe.

Edgar Allan Poe (1809-1849), foi um genial escritor americano que se tornou conhecido em todo o mundo, sobretudo por seus contos de mistério e terror, que constituíram uma fonte de inspiração direta para a renovação literária européia no final do século XIX. Tendo escrito várias histórias que têm como personagem

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principal o francês Auguste Dupin, inteligentíssimo nobre decaído que se dedica a desvendar crimes insolúveis como fonte de diversão e de estímulo intelectual, acabou por fundar a moderna novela de detetive.

Poe escreveu uma obra tão extensa quanto famosa, sem dúvida, digna de comentários. Neste momento, interessa-nos, em especial, relembrar um de seus personagens mais célebres: Auguste Dupin.

Mestre do raciocínio lógico, Dupin enfatizava todos os pormenores relativos ao caso de seu interesse, analisando, com precaução, todas as estranhas possibilidades de comportamento do gênero humano, do qual era exímio conhecedor. Materialista congruente, não acreditava no misticismo e, por este motivo, direcionava as investigações de maneira bastante objetiva, de acordo com métodos investigatórios, tarefa que era facilitada por seu caráter extremamente observador.

Dupin não ficava trancado em sua mansão fantasiando como os crimes teriam ocorrido: ele trabalhava em uma dupla vertente: levava em conta o caráter particular de cada um dos suspeitos, buscando sistematizar qual modo de agir era ou não condizente com a linha de conduta em geral; e examinava atentamente os indícios materiais que cercavam a cena do crime. No entrecruzamento dessas duas vertentes, o magnífico francês conseguia descobrir os padrões de pensamento daqueles a quem se dedicava, podendo compreender melhor o curso de suas ações.

Alertando o leitor para não se esquecer do modus operandi do detetive, vamos terminar este texto convidando-o a encarnar um pouco o Dupin quando entra em sala de aula. Se é verdade que os alunos, como todo ser humano, são imprevisíveis, não é menos verdade que investigar seus padrões de pensamento pode se tornar um aliado importantíssimo na tarefa pedagógica.

Os crimes da rua Morgue(POE, 1974, p. 133-136)

Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós ocupados com os próprios pensamentos, havia já uns 15 minutos que nenhum de nós dizia uma só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras:

― A verdade é que ele é mesmo um sujeito muito pequeno e daria mais para o teatro de variedades.

― Não pode haver dúvida alguma a respeito ― respondi, inconscientemente, e sem reparar a princípio (tão absorto que estivera em minha meditação) a maneira extraordinária pela qual as palavras de meu companheiro coincidiam com o objeto de minhas reflexões. Um instante depois dei-me conta do fato e meu espanto não teve limites.

― Dupin ― disse eu com gravidade ―, isto passa as raias da minha compreensão. Não hesito em dizer que estou maravilhado e mal posso dar crédito a meus sentidos. Como é possível que soubesse você que eu estava pensando em...? ― Aqui detive-me para certificar-me, sem sombra de dúvida, se ele realmente sabia em quem pensava eu.

― ...em Chantilly? ― disse ele. ― Por que parou? Não estava você, justamente, a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à representação de tragédias?

Você conhece o famoso Dupin?

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Era esse precisamente o assunto de minhas reflexões. Chantilly era um antigo sapateiro-remendão da rua de S. Dinis que, fanático pelo teatro, se atrevera a desempenhar o papel de Xerxes, na tragédia de Crébillon, do mesmo nome, tendo por isso merecido críticas violentas.

― Diga-me, pelo amor de Deus ― exclamei ―, qual foi o processo ― se é que há algum ― que o capacitou a sondar o íntimo da minha alma.

Eu estava, na verdade, mais surpreso do que desejava parecer.

― Foi o fruteiro ― respondeu meu amigo ― quem levou você à conclusão de que o remendador de solas não tinha bastante altura para o papel de Xerxes et id genus omne.

― O fruteiro?! Você me assombra... Não conheço fruteiro de espécie alguma.

― O homem que lhe deu um encontrão, quando entramos nesta rua há talvez 15 minutos.

Lembrei-me então de que, de fato, um fruteiro, carregando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase me derrubara acidentalmente, quando havíamos passado na rua C... para a avenida em que nos achávamos. Mas o que tivesse ido que ver com Chantilly é que eu não podia compreender.

Não havia em Dupin uma partícula sequer de charlatanice.

― Vou explicar ― disse ele ― e, para que você possa primeiro compreender tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo o curso de suas meditações, desde o momento em que lhe falei, até o do encontrão com o tal fruteiro. Os elos mais importantes de cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro.

Há bem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de sua vida, procurado divertir-se remontando os degraus pelos quais atingiram certas conclusões particulares de suas idéias. Esta ocupação é, não poucas vezes, cheia de interesse e o que a experimenta pela primeira vez fica admirado diante da aparente distância ilimitada e da incoerência que há entre o ponto de partida e a chegada. Qual não foi pois o meu espanto quando ouvi o francês falar daquela maneira, e não pude deixar de reconhecer que ele havia falado a verdade. Continuou:

― Estávamos conversando a respeito de cavalos, se bem me lembro, justamente antes de deixar a rua C... Foi o último assunto que discutimos. Ao cruzarmos na direção da avenida, um fruteiro, com grande cesto sobre a cabeça, passando a toda pressa à nossa frente, lançou você de encontro a um monte de pedras soltas, escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu aborrecido ou contrariado, resmungou umas palavras, voltou-se para olhar o monte de pedras e depois continuou a caminhar em silêncio. Não estava particularmente atento ao que você fazia, mas é que a observação se tornou para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. Você manteve os olhos fixos no chão, olhando, com expressão mal-humorada, os buracos e sulcos do pavimento (de modo que vi que você continuava pensando ainda nas pedras), até que alcançamos a pequena travessa Lamartine, que foi calçada, a título de experiência, com tacos de madeira, solidamente reajustados e fixos. Ali, sua fisionomia se iluminou e percebendo que seus lábios se moviam, não tive dúvida que você murmurava a palavra esterotomia, sem vir a pensar em átomos e portanto nas teorias de Epicuro. Como não faz muito tempo que discutimos este assunto, lembro-me de lhe haver mencionado quão singularmente, embora muito pouco notado, as vagas conjecturas daquele nobre grego tinham tido confirmação, com a recente cosmogonia nebular, e vi que você não se conteve e erguesse os olhos para a grande nebulosa de Órion, coisa que eu esperava que você

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não deixaria de fazer. Você olhou, pois, para cima e tinha então a certeza de haver acompanhado estritamente o fio de suas idéias. Naquela crítica ferina que apareceu a respeito de Chantilly, ontem, no Museu, o satirista, fazendo algumas maldosas alusões à mudança de nome do remendão ao calçar coturnos, citou um verso latino, a respeito do qual temos tantas vezes conversado. Refiro-me ao verso Perditit antiquum litera prima sonum, que, segundo expliquei a você aludia a Órion, que antigamente se escrevia Urion, e, por causa de certa mordacidade, ligada a esta explicação, estava eu certo de que você não poderia tê-la esquecido. Era, portanto, bem claro que você não deixaria de combinar as duas idéias de Órion e Chantilly. Que você as havia combinado vi pela espécie de sorriso que lhe pairou nos lábios. Pensou na imolação do pobre remendão. Até então estivera você a caminhar meio curvado, mas naquele momento você se endireitou, ficando bem espigado, a toda altura. Certifiquei-me então que você estivera pensando na pequena estatura de Chantilly. Neste ponto interrompi suas meditações para observar que, como, de fato, era ele um sujeito muito baixo, o tal Chantilly daria melhor para representar no teatro de variedades.

A proposta agora é você se tornar um pouco mais consciente dos seus padrões de pensamento. Para tal fim, vão ser necessárias alguma coragem e bastante disciplina, além do material restante:

algum tipo de alarme que você possa carregar sempre consigo, como por exemplo aqueles disponíveis no celular;

um pequeno bloco de anotações que caiba no seu bolso ou bolsa;

papel bem grande;

papel normal para o relatório final.

Passo a passo

Parte I: preparação prévia antes da aula Coloque o seu alarme para tocar a cada hora, levando-o sempre consigo.

A cada vez que o seu alarme tocar, não importa o que você estiver fazendo, pare e registre no seu bloco de anotações a) o que você estava fazendo quando tocou; b) o que você estava pensando.

Repita o processo até conseguir cerca de 20 anotações.

Em um papel bem grande (por exemplo, papel pardo comprado por metro), desenhe uma grande tabela, como a que exemplificamos, em tamanho pequeno, no quadro a seguir.

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Linguagem e Pensamento

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Modalizações das relações entre as atividades (conscientes) e os pensamentos (inconscientes)

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20Horário

Atividade

Frase que sintetiza o

pensamento que foi

interrompido pelo alarme

Marque um x quando houver relação direta entre a

atividade e o pensamento

Estude o produto registrado em sua tabela buscando estabelecer em que medida há correlação direta entre o que você estava fazendo e o que estava pensando. Prepare-se para expor suas conclusões de modo organizado para seu grupo de trabalho.

Parte II: discussão em sala Formar grupos de cerca de cinco participantes, elegendo um relator.

Discutir os exercícios feitos individualmente e organizar uma exposição sobre as conclusões do grupo.

Parte III: plenária Cada relator expõe as conclusões dos pequenos grupos, as quais serão sintetizadas no quadro-

negro por um relator geral previamente eleito pela classe.

Com base em todos os dados recolhidos, a sala deve responder à seguinte pergunta: no que tange ao pensamento humano, trata-se de um padrão linear e firmemente relacionado com a atividade concreta que estamos realizando ou, a todo momento, nosso próprio pensamento nos escapa?

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O imprevisível animal humano

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Aos 4 anos e 11 meses, o filho caçula desta autora afirma já ter decidido: quando crescer, vai ser biólogo, jogador de handebol e poeta. Como diz querer ter uma obra vasta, começou a ditá-la, desde já, aos seus pais, que a transcrevem seguindo sua instrução. Leia abaixo o seu terceiro poema.

Criação (BARZOTTO, 2005)

Quando uma coisa se repete. Não é mais uma fortuna,

e sim, um hábito do mal.

Mesmo uma fortuna, quando se repete,

não é mais uma sorte, e sim,

um hábito do mal.

Você concorda com a criança?

RIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233.

Analisando exemplos concretos de diálogos entre adultos e uma mesma criança em dois diferentes momentos de sua vida (aos dois e aos sete anos), neste trabalho procuramos mostrar como a propriedade de a linguagem causar o equívoco nas trocas verbais não é, ao contrário do que parece, uma coisa negativa. Se bem utilizada, pode, inclusive, acabar sendo solidária com o exercício da expressão verbal criativa e espirituosa, podendo prestar-se como importante auxiliar na construção de uma relação menos autoritária entre adulto e criança.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

Aprender muito sobre a linguagem e seu funcionamento e, ainda por cima, dar boas gargalhadas é o que o leitor conseguirá como lucro ao estudar o livro de Possenti. Com um estilo claro e bastante didático, o autor parte de exemplos de peças lingüísticas concretas – no caso, textos de piadas – para mostrar os dispositivos lingüísticos utilizados comumente para fazer rir. Aqui vai uma das piadas analisadas por Sírio para animá-lo para a leitura:

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Linguagem e Pensamento

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― Sabe o que o passarinho disse pra passarinha?

― Não.

― Qué danoninho?

Gostou? Então leia o livro para entender porque a fonologia é um importante recurso na concepção desta piada, bem como no desvelamento dos modos pelos quais ela nos faz rir.

ABREU FILHO, Ovídio. Resenha: mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n2/2423.pdf>. Acesso em: 08 set. 2005.

BARZOTTO, Domenico Riolfi. Criação. In: _____. Poesia e pensamentos. Mimeo, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.

LURIA, Alexandre Romanovich; YODOVICH, Victor Iosifovich. Linguagem e desenvolvimento intelectual na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

POE, Edgar Allan. Os crimes da rua Morgue. In: _____. Contos. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 133- 136.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

RIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: Edusp, 2002.

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Concepção do homem como ser de linguagem

Claudia Rosa Riolfi

V ocê já parou para pensar em quantas pequenas mentiras inocentes estamos prontos a contar ao longo do dia em nome da manutenção de nossa boa convivência social? Estamos tão acostumados com esse tipo de procedi-

mento que sequer chamamos essas pequenas omissões de mentira. Por exemplo, se o seu superior hierárquico chega bravo, perguntando “Por que você não come-çou a tarefa que eu lhe pedi ainda?”, parece-nos perfeitamente normal responder algo como “Hoje o dia foi muito corrido!” quando a resposta verdadeira seria: “Estou morta de preguiça!”.

Não pense você que nascemos sabendo nos utilizar desses dispositivos retóricos em nome da diplomacia. Quando somos muito pequenos, ainda inocentes, costumamos responder tudo o que nos vem à cabeça, mesmo quando uma pergunta embaraçosa é feita. Todo mundo já deve ter presenciado uma resposta do tipo “Por que não fui com sua cara!” quando um adulto imprudente perguntou a um molequinho “Por que você não me deu um beijo?”

Ou seja: quando somos crianças, utilizamos a linguagem primordialmente para nos comunicar, para dizer, com clareza, a parcela de nossos pensamentos que conseguimos atingir. Isso porque, na nossa inocência, confiamos em todo mundo e não calculamos que, às vezes, um prejuízo a nossa imagem pode ter resultados catastróficos para o andamento da nossa vida.

Como éramos ingênuos! Desconhecíamos a ironia, a denegação, a ocultação deliberada de nossas idéias, as convenções sociais – enfim, tudo aquilo que faz com que, em grande parte da vida da sociedade, usemos uma língua justamente para ocultar o que estamos pensando. Quem tem dúvida sobre isso se lembre do que respondeu a última vez que sua chefe, com quem você tem mantido relações delicadas, acabou de cometer um desastre total no cabelo e perguntou entusiasmada: “não ficou lindo?” Numa situação dessas, pensar rápido nos leva, justamente, a encontrar uma forma polida de não contrariar a dama, se formos escrupulosos, sem exatamente mentir, dizendo algo como “De fato, você mudou bastante!”

Ou seja, mais tarde, aprendemos que a vida social tem muito mais matizes do que podíamos alcançar em nossa inexperiência. Quando adultos, usamos as palavras para lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situação a nosso favor, acalmar-nos e muitas outras funções que, legitimamente, não podem ser chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as

Que efeito tem sobre você um adulto que fala tudo o que pensa, doa a quem doer?

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Linguagem e Pensamento

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palavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse manter as informações que possuímos no mais absoluto sigilo.

Por um motivo ou por outro, que uma coisa fique clara: é o exercício da linguagem, ou na argumentação ou na tentativa de manter nossa privacidade intocada, que nos ajuda a perceber nossa identidade, nosso direito a um espaço próprio cuja conquista deve se renovar todos os dias, na luta intransigente contra os fofoqueiros, os intrometidos, as pessoas que gostam de se aproveitar dos outros e assim por diante.

Por esse motivo, o objetivo deste capítulo é convidá-lo para se aproximar do conceito de linguagem tal como é visto no interior dos estudos lingüísticos. Trata-se da idéia de que a linguagem é um sistema articulado que, consistindo em uma faculdade específica do ser humano, fornece-lhe sua essência de ser de linguagem.

A linguagem é o que dá o nosso contorno Da perspectiva que ora adotamos, a linguagem é aquilo que transforma cada

ser humano que vem ao mundo em humano. Trata-se de uma atividade exclusiva do homem, que, ao constituí-la, organiza seu mundo e suas relações sociais e, a partir desta organização, dá um estilo peculiar aos seus modos de expressão em diversas instâncias. Se não tivéssemos a linguagem, dificilmente formaríamos famílias que se mantêm por um longo tempo ou realizaríamos sonhos de infância ou enterraríamos nossos mortos.

De onde partiu este modo de ver as coisas? A formalização de um modo de ver a linguagem como sendo parte da natureza específica do homem encontra-se nas idéias que o lingüista francês Émile Benveniste (1902-1976) pôde criar e registrar na passagem da década de 1960 para a de 1970. Na impossibilidade de expor aqui toda a extensa obra desse autor, vamos nos limitar a dois de seus trabalhos, que tematizam o fato de que o uso de uma linguagem é uma capacidade meramente humana e foram publicados originalmente em 1952 e em 1958.

É, portanto, “na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1958, p. 286). Lendo esse fragmento que acabamos de citar, esperamos que o leitor perceba que, para esse autor, homem e linguagem formam uma unidade indecomponível, uma vez que, tirando-se a linguagem de um sujeito, pouco mais lhe resta de diferente dos animais.

Conseqüentemente, não é aqui o caso de pensar o homem como alguém que tem a linguagem, mas, ao contrário, de concebê-lo como alguém que é feito por ela.

Admitir a idéia de que somos “seres de linguagem” exige abandonar a concepção de que a linguagem verbal é um instrumento de comunicação como outro qualquer, como, por exemplo, a utilização dos sinais de fumaça entre os indígenas. Benveniste trabalhou duramente para convencer seus pares de que esse modo de ver as coisas consistia em um erro. Para ele, humano e linguagem são feitos da mesma matéria, não podendo ser separados um do outro.

A linguagem humana é muito mais do que

um instrumento de comunicação.

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Concepção do homem como ser de linguagem

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O corajoso francês se afastou, portanto, da concepção de linguagem que estava em alta naquela época afirmando que, ao se refletir sobre a linguagem, não se pode criar uma ilusão segundo a qual ela estaria fora da natureza humana. Assim discorre o estudioso:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (BENVENISTE, 1958, p. 285).

De acordo com Benveniste, ao inserirmos um jovem humano no sistema lingüístico e na produção linguageira, que nossa cultura vem acumulando ao longo do tempo, estamos fazendo com que esse pequeno animal se torne um homem. A linguagem tem nessa missão a dupla tarefa de fazer de um humano aquilo que ele é e, para além disso, de fornecer-lhe os dispositivos para se reconhecer como um eu, para ter uma identidade.

Compreendendo que uma pessoa só pode se anunciar como sujeito quando se refere a si próprio por meio da utilização da primeira pessoa do singular (eu), o autor faz uma importante afirmação sobre o fundamento da subjetividade: “É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Se quisermos refletir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele sobre si mesmo.” (BENVENISTE, 1988, p. 288). Ou seja: poder referir-se a si próprio, compreendendo-se como diferente de todos os demais de sua espécie, é prerrogativa do homem, uma vez que, sendo efeito de linguagem, não é compartilhada com nenhum outro ser vivo.

Neste ponto da reflexão, é comum que ocorra ao leitor a seguinte dúvida: se não podemos chamar de linguagem aquilo que um animal faz, como podemos compreender os fenômenos de comunicação que, com certeza, estão lá presentes? Neste momento, as idéias de Benveniste (1952) também são importantes o suficiente para que nela nos detenhamos com mais detalhes.

Alguns traços da linguagem humanaBenveniste sempre foi muito claro ao afirmar que, aplicada ao mundo

animal, a noção de linguagem só tem crédito por um abuso de termos. Mesmo quando emitem ruídos, como é o caso do papagaio, eles não configuram um modo de expressão que tenha os caracteres e as funções da linguagem humana. Ao entrar em contato com alguns estudos que biólogos vinham fazendo para elucidar o comportamento das abelhas, viu aquela sua certeza vacilar e teve necessidade de se aprofundar mais nessa comparação.

Por um momento, teve sua certeza abalada ao considerar que, como tudo parecia indicar, as abelhas tinham um modo muito eficaz de se comunicarem entre si, a saber:

Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o vôo uma solução açucarada por meio da qual cai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto se alimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelha volta depois à sua colméia. Alguns instantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre as quais não se

Se bicho não fala, o que é que ele faz?

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Linguagem e Pensamento

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encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colméia. Esta deve haver prevenido as companheiras. É realmente necessário que estas hajam sido informadas com precisão, pois chegam sem guia ao local que se encontra, freqüentemente, a grande distância da colméia e sempre fora de sua vista. Não há erro nem excitação na localização: se a primeira escolheu uma flor entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após a sua volta se atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou às companheiras o lugar de onde veio. (BENVENISTE, 1952, p. 61).

Retomando os estudos de Karl von Frisch, o autor descobriu, então, que as abelhas conseguem ser muito precisas no repasse de dados, tais como distância da flor encontrada, sua posição exata e a natureza do achado por meio da dança. Ou seja: as abelhas conseguem comunicar-se com seus pares transmitindo informações úteis para a sobrevivência da espécie, mas não o fazem com o auxílio de qualquer tipo de interação verbal.

Descobrir isso sanou a dúvida de Benveniste. Conclusivamente, para ele, a comunicação animal e a linguagem humana são bastante diversas em relação a sua essência. O caráter específico da primeira é “o de propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que é típico do nosso simbolismo e o fundamento da tradição lingüística” (BENVENISTE, 1952, p. 56). Verifique, no Quadro 1, uma sinopse da comparação feita pelo autor.

Quadro 1: Comunicação das abelhas versus linguagem humana

Comunicação da abelha Linguagem humana

Comunicação gestual: a mensagem é restrita à dança, sem intervenção de

um aparelho vocal.

Comunicação vocal: a mensagem restrita tem a voz como seu principal

suporte.

Só ocorre em condições que permitem a percepção visual.

Não sofre os limites da percepção visual.

Sua mensagem não provoca qualquer tipo de resposta no ambiente, não há

diálogo.

Falamos com aqueles que nos falam, ou seja, sempre provocamos algum

tipo de resposta no ambiente.

Não há possibilidade de reprodução da mensagem desvinculada do

testemunho empírico, da experiência objetiva.

No diálogo, a referência à experiência objetiva e a reação à manifestação lingüística se misturam ao infinito,

livremente.

Não é possível analisar a mensagem das abelhas: podemos ver apenas seu

conteúdo global.

Caracteriza-se pela capacidade de ser potencialmente infinita, uma vez que, cada enunciado permite análise e rearranjo de suas partes com as de

outros enunciados.

Trata-se de um código de sinais.Vai muito além de um código de

sinais, uma vez que é fonte de criatividade.

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A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste

Até o século XIX, antes que os estudos de gramática comparada estivessem se solidificado, pensava-se que uma língua é uma coletânea de palavras que, ao darem nome aos objetos do mundo, serviam para a expressão do pensamento.

Essa visão da linguagem como uma espécie de coleção de palavras foi superada quando, de 1907 a 1911, Ferdinand de Saussure ofereceu na Universidade de Genebra três cursos nos quais transmitiu oralmente os fundamentos da lingüística moderna. Combatendo a visão do leigo, ele substituiu o conceito de palavra pelo de signo lingüístico, ou seja, a menor unidade completa que tem um significado.

No Quadro 2, o leitor encontrará de forma esquemática o modo pelo qual Saussure concebeu o signo lingüístico.

Quadro 2: Composição do signo lingüístico

Signo Lingüístico: SignificanteSignificado

Analisando a composição do signo lingüístico registrada no Quadro 2, podemos perceber que Saussure, pela primeira vez, pôde perceber que a palavra não é monolítica. Ao contrário, trata-se de uma unidade de duas faces, conforme segue.

O significante – trata-se da “imagem acústica” de uma palavra, isto é, aquilo que nossos ouvidos captam e o cérebro registra, mesmo que não entendamos a língua em questão. Apenas por amor à clareza, propomos a seguinte situação para exemplificar: se você, leitor, não fala nem entende nenhuma palavra de japonês e acaba de chegar em Tóquio, você vai ouvir muitas “palavras”, mas não vai entender nenhuma, ou seja, não vai ter acesso ao signo como um todo. Os sons articulados que saem da boca dos japoneses e chegam aos seus ouvidos são os seus significantes.

O significado – trata-se do conceito ao qual a palavra remete. Quando temos conhecimento de mundo, podemos muito bem discutir o conceito veiculado por um dado significante, mesmo que não conheçamos a língua na qual ele foi originariamente cunhado, uma vez que os significados relacionam-se ao campo das idéias, e não de uma ou outra língua em particular. Desse modo, voltando para nosso exemplo de sua chegada em Tóquio, você pode muito bem, digamos, discutir o significado do haraquiri na cultura tradicional japonesa com o primeiro japonês que fale português que você encontrar, mesmo que não aprenda a pronunciar a palavra corretamente.

Por meio dessa dissociação, Saussure pôde dar um segundo passo bastante importante para a lingüística moderna: postular que não há correspondência exata entre significantes e significados. Esse deslocamento é muito importante para que reflitamos sobre as complexas relações entre pensamento e linguagem,

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Linguagem e Pensamento

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uma vez que, a partir dele, Saussure nos mostra que não há qualquer possibilidade de recobrimento dos objetos do mundo e de nossos pensamentos utilizando nossas palavras. Vale dizer: a partir das elaborações da lingüística, sabemos que nossos pensamentos são sempre fugidios e apenas parcialmente compartilháveis como nossos pares.

A esta altura, o leitor deve estar se perguntando como os humanos chegam a se entender. Trata-se de uma excelente questão, uma vez que ela nos remete a uma ordem maior que organiza as palavras e faz com que, mesmo não falando a mesma língua, possamos fazer algum tipo de troca de idéias: a linguagem como um sistema.

Saussure nos mostrou que os significados podem ser compartilhados entre nós não por remeterem a objetos do mundo, mas por funcionarem dentro de uma lógica de ordenamento de significantes. Para o autor, ao se oporem uns aos outros em uma rede de relações, os significantes acabam por adquirir um valor lingüístico, isto é, acabam por fazer sentido para nós.

Saussure explica essa noção por meio de uma bela metáfora: a do jogo de xadrez. Comparando uma palavra a uma peça do jogo (no caso, o cavalo), o autor nos explica que, para que o jogo funcione, pouco importa a peça em si, mas o fato de que os dois jogadores tenham pactuado de que se trata de uma peça legítima. Em benefício da clareza, transcrevemos um trecho do autor:

Tomemos um cavalo; será por si só um elemento do jogo? Certamente que não, pois, na sua materialidade pura, fora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada para o jogador e não se toma elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor e fazendo corpo com ele. Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a ser destruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? Decerto: não somente um cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, como a língua, nos quais os elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo com regras determinadas, a noção de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente. Eis porque, em definitivo, a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade. (SAUSSURE, 1962, p. 128).

Lendo o excerto acima, é importante o leitor perceber que o principal deslocamento causado pela ciência lingüística foi mostrar que as palavras em si não significam absolutamente nada: se podemos usá-las para suporte de nosso pensamento,

é justamente na medida em que elas se encontram organizadas em um sistema (a linguagem, a cultura) que lhes dá consistência.

Concluindo, por meio de um percurso de mais de 100 anos dessa ciência, fomos paulatinamente compreendendo que a linguagem é, ao mesmo tempo, o que nos une e o que nos separa das coisas e das pessoas. Liga-nos ao mundo porque fornece um aparelho por meio do qual podemos manter o contato com a realidade: a possibilidade de nomear os objetos. Por outro lado, a linguagem nos separa dos objetos justamente porque nos torna dependentes de um conceito para apreendê-lo. Traduzindo: se é verdade que “o que os olhos não vêem o coração não sente”, não é menos verdade que “o que a linguagem não nomeia a percepção não registra”.

Se a relação significante e significado é frágil,

como chegamos a nos entender?

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Teoria do medalhão(ASSIS, 1994)

― Estás com sono?

― Não, senhor.

― Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

― Onze.

―Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus 21 anos. [...] Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. [...]. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida [...].

― Sim, senhor.

― Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

― Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

― Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. [...]

― Entendo.

― Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

― Mas quem lhe diz que eu...

― Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado

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com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. [...]

― Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

― Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos etc. [...] O bilhar é excelente. [...] Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

― Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

― Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa. [...] Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois anos –, reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

― Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

― Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas. [...] Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. [...] Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. [...]

― Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.

― Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. [...]

― Upa! que a profissão é difícil!

― E ainda não chegamos ao cabo.

― Vamos a ele.

― Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que Dom Quixote

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Concepção do homem como ser de linguagem

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solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. [...] Percebeste?

― Percebi. [...] Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.

― Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! [...].

― Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

― Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

― Nenhuma filosofia?

― Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade etc. etc.

― Também ao riso?

― Como ao riso?

― Ficar sério, muito sério...

― Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente – e este ponto é melindroso...

― Diga...

― Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?

― Meia-noite.

― Meia-noite? Entras nos teus 22 anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O príncipe de Maquiavel. Vamos dormir.

Refletindo sobre o ato de falar sem nada dizerA reflexão que ora propomos foi inspirada em um livro escrito por Carlos Queiroz Telles

(1991). Este manual ao mesmo tempo nos diverte e, a exemplo do que Machado de Assis fez no texto

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Linguagem e Pensamento

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complementar que você acaba de ler, denuncia a existência de uma mediocridade que acaba ficando disfarçada por meio da linguagem empolada, cheia de frases de efeito.

Brincando conosco, o autor sintetiza um conjunto de vocábulos supostamente mais usados por diferentes profissões para demonstrar a “erudição” do locutor quando aquele que fala, mesmo sem ter preparo para tanto, deseja causar uma falsa boa impressão.

A seguir, você encontrará um exemplo de quadro que, com prosódia entusiasmada e entonação convincente, pode ser a salvação de um empresário ou político que deve falar e não pode dizer nada de concreto...

Primeiro passoComo funciona? Aquele que deve “enrolar” sua platéia só tem uma regra a seguir: escolher

quaisquer segmentos das colunas I, II, III e IV que constituem a Tabela 1, sempre nesta ordem, sem repetir segmentos e falando quanto tempo quiser. Antes de irmos adiante, convidamos você e seus colegas a exercitarem um pouco as possibilidades de compor um texto oral com aparência de ser perfeitamente normal utilizando-se da tabela para montar falas convincentes. Divirtam-se!

Segundo passoApós esse exercício informal, montar grupos para realizar um exercício de análise mais

fundamentado. Cada grupo deve ter previamente coletado material escrito por seus alunos para análise (textos variados e respostas de questões abertas). Com esse material na mão, tentar responder a seguinte questão: quais marcas lingüísticas presentes na materialidade observável do trabalho do aluno indiciam que, ao contrário de Janjão (Machado de Assis) e de Telles (Cara-de-Pau), ele pensou antes e durante a escrita de seu trabalho?

Tabela 1: Um exemplo de fala cara-de-pau

COLUNA I COLUNA II COLUNA III COLUNA IV

Caros colegas a execução das metas do programa nos obrigará a análises

das condições financeiras e

administrativas exigidas.

Por outro lado a complexidade dos estudos efetuados

cumpre um papel essencial na formulação

do sistema de participação geral.

No entanto, não podemos esquecer

que

a estrutura atual da organização

auxilia a preparação e a composição

das posturas dos órgãos dirigentes

com relação às suas atribuições.

Livro 1.indb 38 26/08/2008 14:06:15

Concepção do homem como ser de linguagem

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COLUNA I COLUNA II COLUNA III COLUNA IV

Do mesmo modoo novo modelo estrutural aqui preconizado

durante a contribuição de um grupo importante na determinação

das novas proposições.

A prática cotidiana prova que

o desenvolvimento contínuo de distintas formas de atuação

assume importantes posições no

estabelecimento

das direções preferenciais no

sentido do progresso.

Nunca é demais lembrar o peso e o significado destes

problemas, uma vez que

a consolidação das estruturas

obstaculiza a apreciação da importância

das condições inegavelmente apropriadas.

Acima de tudo, é fundamental ressaltar

que

a consulta com diversos militantes

oferece uma interessante

oportunidade

dos índices pretendidos.

O incentivo ao avanço tecnológico,

assim como

o início da atividade geral de formação de

atitudes

acarreta um processo de reformulação e

modernizaçãodas formas de ação.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.

Obra fundamental para o leitor iniciante que se interessou por aprofundar seu estudo sobre a linguagem, este dicionário discorre sobre as principais escolas, expõe os domínios da pesquisa sobre a linguagem e, finalmente, explica de modo claro e compreensível os principais conceitos metodológicos e descritivos com os quais a lingüística trabalha.

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Linguagem e Pensamento

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ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In: _____. Obra completa. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BENVENISTE, Émile. Comunicação animal e linguagem humana. In: _____. Problemas de lingüística geral I. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1988, p. 60-67.

_____. Da subjetividade na linguagem. In: _____. Problemas de lingüística geral I. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1988, p. 284-293.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1962.

TELLES, Carlos Queiroz. Manual do cara-de-pau. 3. ed. São Paulo: Best Seller, 1991.

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Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano

Claudia Rosa Riolfi

Geralmente, se uma pessoa fala sem pensar, logo aparece algum conheci-do pronto para diagnosticá-la: “Fulano parece uma criança!” Maldade à parte, essa pessoa que fez a crítica tem certa razão naquilo que diz, uma

vez que demora muito para conquistarmos a capacidade de nos distanciar de nossa própria fala e analisar nossos modos de expressão e de pensamento.

Mesmo respeitando as variações individuais de ritmo do desenvolvimento humano, a capacidade de tomar a linguagem como objeto específico de análise é uma conquista que raramente ocorre antes do término da chamada “primeira infância”, uma vez que depende de um longo processo de inserção do jovem na cultura em que vive.

Quando muito pequeno, o ser humano pode falar, mas não pode escutar de forma crítica e distanciada o que ele mesmo diz. É justamente por essa razão que, em toda parte, circulam piadinhas sobre o caráter extravagante do raciocínio das crianças. Essas piadas podem ser muito divertidas, mas em si não nos ajudam muito a transcender a denúncia da ingenuidade dos pequenos em nossas conversas em diversos âmbitos.

Entretanto, é preciso fazê-lo. Se quisermos entender melhor como a mente humana funciona, nós, profissionais da educação, necessitamos nos interrogar sobre as causas desta dificuldade.

Como o objetivo aqui é elucidar algumas das diferenças entre o pensamento dos pequenos e dos adultos, vamos iniciar o trabalho ao qual nos propomos neste capítulo nos deleitando com alguns exemplos que mostram o modo diferente da criança pensar sobre a língua.

Eles foram recortados da comunidade virtual Criança Diz cada Uma, que consiste em um ponto de encontro virtual baseado “na coluna que o falecido jornalista e dramaturgo Pedro Bloch escrevia na extinta revista Manchete, contando histórias engraçadas e inusitadas acontecidas com crianças”. A página de abertura convida os seus participantes a darem depoimento sobre o que merece ser registrado do que seus filhos andam falando. Está hospedada no site de relacionamentos pessoais Orkut.1

Por que, freqüentemente, o que a criança pequena diz nos parece exótico?

1Ressalvando que só po-dem entrar neste site as

pessoas que forem convidadas por um amigo, informamos que os excertos que se seguem estão disponíveis no seguinte endereço: http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=68850&tid=2970165. Acesso em: 18 set. 2005.

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Para ilustrar nosso trabalho, selecionamos alguns fragmentos de textos que podem ser encontrados em um dos tópicos do fórum da comunidade virtual, iniciado em 18 de setembro de 2005. Trata-se do seguinte: uma das participantes instigou os participantes a completarem a seguinte frase “Quando eu era criança eu pensava que...” Esse fórum destacou-se porque ao ler seu conteúdo torna-se evidente que aqueles que aceitaram o convite da proponente foram forçados a se lembrar do período de sua vida no qual ele teve predominantemente pensamentos exóticos e inconsistentes.

Vejamos alguns fragmentos desses depoimentos, transcritos no Quadro 1 do modo como foram escritos pelos participantes da comunidade.

Quadro 1: Fragmentos de depoimentos dos participantes da comunidade virtual Criança Diz cada Uma

AndréaCara, quando eu era criança eu pensava que cheque sem

fundo era algum tipo de cheque sem nada no fundo, com um buraco...

Ana Selene

Uma amiga da minha mãe disse braba, enquanto esperávamos para atravessar a rua: “tem que morrer um para eles colocarem uma sinaleira”. Toda vez que eu via um sinal de trânsito, eu ficava com pena da pessoa que

tinha morrido naquele lugar.

Camila

Eu achava que “Grande Elenco” era um ator muito famoso, como o Grande Otelo. Só que eu nunca o tinha visto ainda porque ele era um ator de teatro,

sempre citado junto com os melhores atores: Fernanda Montenegro, Paulo Autran, e Grande Elenco!

Zé Roberto

Mirocecê, eu achava que isso era o lugar de origem da dona Francisca!

“atirei o pau no gato-to/ mas o gato-to/ nao morreu-rreu-rreu/ dona Chica-ca/ dimiro-se-se/ do berro/ do berro/

que o gato deu .. miau!”

Esperamos que os exemplos acima, muito saborosos, tenham lhe causado riso! Agora, perceba que, em todos eles, nosso riso foi causado por um mesmo motivo: trata-se de um equívoco por parte da criança, que toma algumas expressões, se assim podemos dizer, ao pé da letra, ou seja, do modo como chegam aos seus ouvidos.

Os significados “errados” atribuídos pela criança às expressões “cheque sem fundo” e “grande elenco” foram, muito provavelmente, causados por uma ignorância vocabular e cultural. Ou seja: sem conhecer o significado culturalmente partilhado dessas expressões, a criança criou, do jeito que pôde, algum jeito para se virar com seu desconfortável desconhecimento.

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Por sua vez, embora semelhante, o nascimento da cidade “Mirocecê” é um pouco mais complexo. Em primeiro lugar, é evidente que a criança desconhece o significado do verbo “admirar”. Em segundo lugar, não foi capaz de delimitar onde começava e onde terminava uma palavra, fato este que nos indicia que esta criança também não era capaz, naquela ocasião, de reconhecer a função do pronome reflexivo se, o que acabou fazendo com que ela ignorasse o padrão da canção, que é o da repetição da última sílaba das palavras.

O que esses exemplos nos mostram? Esses exemplos nos mostram que, como a linguagem humana é, por assim dizer, escorregadia quando ainda não temos a vivência cultural de um adulto, não conseguimos analisar convenientemente os segmentos que compõem os enunciados e, por este motivo, não nos é possível nem delimitar convenientemente seus segmentos nem articulá-los de modo adequado com os demais segmentos que compõem o enunciado.

É importante ressaltar que, por esse motivo, enquanto não nos é possível manter um certo distanciamento das palavras que falamos, nosso pensamento tende a ser, ao mesmo tempo, limitado e limitante, uma vez que, para poder criar, é necessário, antes de tudo, interrogar a realidade que nos circunda.

A capacidade para a reflexão lingüística se ganha na cultura

A capacidade de interrogar os modos de dizer que são habituais na comunidade em que vivemos é uma tarefa bastante complexa. É, mais ou menos, como tentar se lembrar, depois de uns 30 minutos, por qual mecha você começou a desembaraçar seus cabelos no meio do banho. Isto é, quando estamos imersos em uma prática, nós a automatizamos e, conseqüentemente, ela praticamente se torna invisível para nós.

Para aprofundar um pouco mais esta idéia, vamos agora explorar o trabalho de Blikstein (1990, p. 86), que escreveu um livro visando a cutucar um pouco a nossa inércia e levar-nos a uma interrogação sobre nossa “confortável ilusão referencial”.

Para fazê-lo, o autor partiu das seguintes perguntas que vêm sendo repetidas há muitos séculos: “Até que ponto o universo dos signos lingüísticos coincide com a realidade extralingüística: como é possível conhecer a realidade por meio de signos lingüísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?” (BLIKSTEIN, 1990, p. 71). Retomar aqui essas questões antigas se justifica porque elas vêm nos mostrando que, no processo da cognição, há uma insuficiência da relação entre signo e coisas.

Essa insuficiência vem sendo insistentemente assinalada na lingüística, na psicologia, na antropologia, na teoria do conhecimento etc., tendo gerado inúmeras tentativas de construção de modelos teóricos que possam servir de modos pelos quais possamos nos aproximar da intrincada relação entre a linguagem e as coisas.

O que esses exemplos nos mostram?

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Um dos modelos mais clássicos para explicar como pensamento e linguagem estão entrelaçados é o triângulo de Odgen e Richards, criado em 1956 (ver Figura 1). Segundo Blikstein, foi este triângulo que deu origem a uma tendência dominante na lingüística moderna: considerar a língua como “organizadora da estrutura conceitual do universo, e já se tornou lugar comum afirmar que ela é o ‘molde do pensamento’ ou ‘o instrumento de análise ou recorte da realidade’” (BLIKSTEIN, 1990, p. 40).

Figura 1: O triângulo de Odgen e Richards

Quando surgiu, esse modelo despertou bastante interesse, uma vez que mostrava claramente a existência de uma separação entre três instâncias:

1) o mundo real;

2) as palavras que usamos para nomear os objetos que lá se encontram; e

3) os pensamentos/percepções que podemos ter tanto de uma coisa quanto de outra.

Mesmo reconhecendo a pertinência dessa tripartição, Blikstein ficou incomodado com a ausência de uma reflexão sobre a influência da prática cultural em nosso modo de ver as coisas. Por esse motivo, defendeu a necessidade de recuperar o trabalho de Schaff (1974), articulando-o ao modelo já descrito, uma vez que ele poderia nos ajudar a reformular a lição clássica a respeito das relações entre linguagem, percepção e pensamento, tornando claro que tanto a percepção quanto a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social. Nas palavras de Blikstein, a língua amarra a percepção, a cognição, e impede o indivíduo de ver qualquer realidade que já não esteja previamente marcada em sua língua.

Você já ouviu falar do trabalho de Schaff? Trata-se de um pensador que ficou bastante famoso por suas tentativas de ligar a linguagem à práxis social. Em especial, é bastante conhecido o seu exemplo que trata a percepção que os esquimós têm da cor branca. Segundo o autor, essa população não vê a neve em

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geral, do mesmo modo como faríamos nós que habitamos regiões temperadas. Como, para eles, conhecer a neve muitíssimo bem consiste em uma questão de vida ou de morte, os esquimós têm palavras para nomear 30 tipos de neve, pois distinguem-na de acordo com as diversas tonalidades de branco que seus olhos conseguem distingüir. Bem diferente de nós, que, basicamente, trabalhamos com as categorias “branco bem lavado” e “branco encardido”, não é mesmo?

Mesmo concordando parcialmente com a conclusão do autor, não podemos deixar de ressaltar que, com algum treino, muito trabalho e dedicação, somos capazes de atravessar, em certa medida, os efeitos homogeneizadores da cultura e tornar nossa vida mais refletida e nossos modos de pensar, mais criativos. Mas isso não é coisa fácil! É preciso “suar a camisa” e investir na direção de tomar a própria língua como objeto de análise.

A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer

Quando cresce, o homem torna-se o único animal que tem o privilégio de contar com esta grande fonte de prazer: tomar sua língua materna como objeto de reflexão e nela efetuar transformações para criar “efeitos especiais”. Por exemplo, os humoristas que fazem o chamado “humor inteligente” costumeiramente utilizam-se desse recurso para nos fazer rir. Leia, por exemplo, um fragmento de uma das colunas do famosíssimo José Simão (2005).

1 Brasil Urgente! Habeas corpus pra macaca. Um promotor baiano pediu habeas corpus para uma macaca não ficar enjaulada no zoológico de Salvador. HABEAS MACACUS! E quer devolver a macaca para seu habitat em Sorocaba. O quê? Ela é de Sorocaba? E o que ela foi fazer na Bahia? Foi passar o Carnaval na Bahia e ficou! Essa macaca vai acabar entrando para o É o Tchan! e substituir a Scheila Carvalho!

E depois do habeas corpus pra macaca, o Maluf vai se sentir injustiçado! Depois do habeas macacus, o Maluf vai pedir um HABEAS BRIMUS! Rarará! E olha a notícia: “Maluf chora e ameaça deixar a política”. Então não é ameaça. Ameaça: “Maluf chora e ameaça continuar na política”.

2345678910

Para pontuar apenas uma das muitas brincadeiras feitas por Simão nesse excerto, observe as seguintes transformações feitas pelo humorista a partir da expressão latina, que de fato

existe e é usada na linguagem jurídica: habeas corpus (linha 1). Ao ironizar sobre um advogado que tomou uma macaca como cliente, Simão, inventou a expressão “habeas macacus” (linha 3) para finalmente, aludindo à etnia de Paulo Maluf, que, na ocasião da escrita de sua coluna havia sido recentemente preso, inventou ainda o habeas brimus (linha 8).

Como alguém consegue fazer isso?

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Linguagem e Pensamento

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Brincar com a linguagem pressupõe a construção prévia de uma capacidade que, como já vimos apontando, é exclusiva do humano: a possibilidade de refletir também sobre a forma de expressão e não meramente sobre o conteúdo. Para ficar mais clara qual a diferença entre uma ação e outra, propomos, neste momento, a comparação entre os seguintes enunciados fictícios:

LOCUTOR 1: Eu só bebo água mineral.

LOCUTOR 2: A composição química da água é H2O, porém, quando ela recebe esgotos, encontram-se também coliformes fecais, como é o caso desta amostra que acabo de examinar.

Se, no primeiro dos casos, o locutor tem como tema específico de sua enunciação o seu gosto particular no que tange à água, no segundo, ao contrário, nada sabemos sobre suas preferências. No segundo caso, sabemos que, após ter realizado exames apropriados em uma amostra de água qualquer, um investigador pôde referir-se à sua composição estrutural.

Trazer esse exemplo para o contexto específico de nossa discussão deve ajudar-nos a sermos mais claros. Comparem, agora, os enunciados abaixo.

LOCUTOR 1: Eu só namoro homem bonito.

LOCUTOR 2: Bonito é um adjetivo vago, uma vez que a determinação de seu sentido depende do gosto pessoal do falante.

Do mesmo modo como aconteceu no primeiro par de exemplos, enquanto o locutor 1 fala uma frase que tem como objeto principal os seus gostos pessoais, nada sabemos da pessoalidade do locutor 2. Mas, por outro lado, sabemos que ele é maduro o suficiente para conseguir refletir sobre a linguagem.

Ao se concretizar em uma língua que pode ser falada ou escrita, a linguagem se torna passível de ser observada, analisada e descrita com relação a sua estrutura e seus modos de funcionamento em diferentes tempos e espaços, mas isso não é nada fácil. Exige uma experiência de vida na cultura que proporcione ao sujeito um repertório que lhe permita analisar devidamente os enunciados que nela circulam.

Feitas todas as considerações precedentes, optamos por concluir esta reflexão sobre a capacidade de refletir sobre a língua de um modo um pouco diferente. Em vez de explicitar aqui a “moral da história”, que, esperamos, já ficou transparente para o leitor ao longo de sua leitura, deixaremos registrado um exemplo que nos parece mostrar, de modo especialmente claro, a potência de deslocamento que tem a reflexão sobre a linguagem.

Terminamos, então, com uma pequena historieta verídica, vivenciada por uma garota de quase oito anos e alguns de seus familiares. Ao lê-la, esperamos que o leitor se sinta convocado a, em seu dia-a-dia, fazer o mesmo tipo de trabalho lingüístico que foi feito pela menina e, deste modo, criar novas realidades.

É fácil refletir sobre a linguagem?

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Um pequeno apólogo familiar2

Aos sete anos e seis meses, já pronta para um passeio familiar, L. brinca entusiasmadamente com seu irmão menor. Pouco antes de sair, sua maria-chiquinha despenca declaradamente. Afeita a pentear o cabelo em inversa proporção a que é à pilhéria espirituosa, L. não chama sua mãe para refazer o penteado.

Ao notar o desastre, impaciente e já com pressa, seu pai lhe dirige abruptamente a palavra:

― L., você vai sair com este cabelo mexido? Desmanchou tudo!

Impassível, a garota dirige-se para a porta com os cabelos no mesmo estado e responde, sorridente:

― Ó, pai, “cabelo mexido”?!! “Cabelo mexido” deve ser o prato predileto de canibal pobre...

2 Confira trabalho anterior deste autor (RIOLFI, 2005)

para uma exploração mais aprofundada desta historieta.

O enigma de Kaspar Hauser (1812[?]-1833): uma abordagem psicossocial

(SABOYA, 2001)

Trabalhando com a perspectiva histórico-cultural em psicologia, que enfatiza que cada ser humano se constitui como uma pessoa totalmente única (por suas experiências e sua história de vida) e que ressalta a importância das práticas culturais na definição do desenvolvimento psicológico do sujeito, buscou-se selecionar um personagem humano (Kaspar Hauser) que não correspondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões de comportamento tidos ou esperados como “normais” dentro da cultura da época. Pretende-se analisar neste trabalho o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, buscando a compreensão de fatores que concorreram para a construção de seu psiquismo. [...]

Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam; sabia falar apenas uma frase: “quero ser cavaleiro” e não sabia andar direito. Parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comportamento, estranho para os padrões socioculturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como um “garoto selvagem”, apesar de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía algumas habilidades peculiares interessantes, descritas tanto no filme de Herzog quanto na obra de Masson: conseguia enxergar muito longe, no escuro e sabia tratar os animais, principalmente os pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas e fugia delas aterrorizado. Numa das cenas, atraído pela chama de uma vela, colocava seu dedo no fogo e, ao sentir dor, aprende que a chama queima. Graças à sua curiosidade infantil e memória notável, aprendeu várias coisas muito depressa. [...]

Criado no isolamento e privado de educação, condicionamento e repressão, é este processo de integração que Kaspar Hauser sofrerá em Nuremberg, e seu instrumento principal será a linguagem, pela qual a sociedade tentará fazê-lo conceber aquilo que sua natureza não concebe: a representação. O século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela perspectiva positivista,

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Linguagem e Pensamento

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evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao protótipo do homem “civilizado” eram classificados como primitivos, atrasados e deveriam ser “ajudados” a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado. [...]

Com o tempo aprende a falar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. [...] A paisagem em que Kaspar Hauser foi colocado, apesar de explicada pela linguagem, pelas palavras, por signos lingüísticos, permanece, para ele, indecifrável. Muitas vezes, pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia verbalizar o conteúdo pensado. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos lingüísticos, parece não ser suficiente para Kaspar Hauser [...]. Nesse sentido, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originam independentemente, fundindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna que constitui a maior parte do pensamento maduro.

Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas impõem todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o insólito ambiente que o cerca. Como Kaspar Hauser poderia compreender o significado das palavras e que elas representam coisas se não passou por um processo de aprendizado e socialização necessários para que compreendesse a representatividade dos signos? Blikstein diz que a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade; ou seja, a educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É justamente esse processo que Kaspar Hauser não vivenciou. [...]

Os objetos não eram percebidos por Kaspar Hauser da forma como a prática social definia previamente, ou seja, Kaspar Hauser estava despido dos “filtros” e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento. Tais “filtros” ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por uma contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem.

A forma como Kaspar Hauser compreende o mundo e se relaciona com ele indica que a percepção depende sobretudo da prática social. Sabemos que, do nascimento à adolescência, Kaspar Hauser esteve isolado de qualquer contexto ou prática social. O que podemos verificar no seu percurso de desenvolvimento psicológico é que, a despeito da ação da linguagem (adquirida na fase adulta) ou de um eventual “potencial” inato, Kaspar Hauser não consegue captar o mundo como o faz a sociedade que o cerca, ou seja, decodifica à sua maneira, com uma lógica diferente da estabelecida, a significação do mundo. Fica evidente, então, que o seu sistema perceptual está desaparelhado de uma prática social necessária para gestar o referencial cultural de interpretação da realidade.

Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um processo de socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social, não consegue atribuir significado às coisas, mesmo tendo adquirido a linguagem. Assim, analisando o caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais “modelam” a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.

Em virtude de não ter sido exposto a essa “modelagem” cultural, Kaspar Hauser era visto como um ser “incompleto”, como se estivesse sempre em déficit em relação aos outros; teria Kaspar instrumental de reflexão internalizado para construir a compreensão da diferença? Aqui parece ser possível detectar uma inverossimilhança no filme de Werner Herzog: numa das cenas, Kaspar Hauser diz a uma das pessoas que o acolheu: “Ninguém aceita Kaspar.”

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Segundo o filme, ele tem consciência de sua situação. Porém, na realidade, parece não ser possível esse grau de consciência em alguém que não tem instrumental de reflexão internalizado. Kaspar Hauser se sente perturbado pelo mundo: “o mundo é todo mau”, comenta com seu tutor após perceber que alguém pisou as flores que plantara no jardim. [...]

Vygotsky, citado por Oliveira, diz que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os sistemas simbólicos são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo; porém, tendo vivido no isolamento, Kaspar Hauser não aprendeu nem internalizou este sistema simbólico que, para ele, não fazia sentido. Somente depois de muito tempo convivendo com a comunidade de Nuremberg é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica e a relação de representatividade entre os signos e as coisas concretas. [...]

Kaspar Hauser não é reconhecido como parte da sociedade e ele próprio não se reconhece como parte dela. Em uma reunião para a qual fora convidado a participar, em que estavam vários membros da alta sociedade, foi apresentado à esposa do prefeito de Nuremberg, que lhe perguntou como era sua prisão e ele respondeu: “melhor do que aqui fora”. Vai sofrendo, assim, um processo de estigmatização que o marca, não apenas como “diferente” ou “anormal,” mas também como alguém que não possui identidade. [...]

O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra-nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas conseqüência de um longo processo de aprendizado com o grupo social.

Através desse processo, o indivíduo se integra ao grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e costumes, o indivíduo está se socializando, reprimindo suas características instintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, fazendo, assim, a “passagem da natureza para a cultura,” aprendendo a ver com os “óculos sociais,” tornando-se, como nos disse Charles Dickens, “um animal de costumes”. Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época.

A atividade que se segue visa a familiarizar o professor com a idéia de que refletir sobre a linguagem é uma conquista difícil e tardia para a maioria dos humanos. Para tal fim, convidamos você, juntamente com um pequeno grupo de colegas, para investigar a capacidade que as crianças de diferentes idades têm para interpretar metáforas ou expressões idiomáticas.

Material necessário Lista de metáforas e de expressões idiomáticas que são usadas cotidianamente pelos adultos

de sua região. Segue-se uma como mera sugestão, tomando-se como referência a capital do estado de São Paulo, mas o seu grupo pode criar a sua ou adaptá-la à realidade local.

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Estar com dor-de-cotovelo.

Ser mais chato do que gilete.

Estar morta de cansaço.

Ser tudo de bom!

Ser bacana à beça.

Estar com o saco cheio.

Gravador e fitas para gravação.

Sujeitos de pesquisa dispostos a responder sua investigação. Vale apelar para filhos, sobrinhos, alunos da creche perto da sua casa etc. O número de entrevistados não é tão importante: o importante é que você encontre ao menos uma criança de cada uma das faixas etárias – a) crianças de 2 e 3 anos; b) crianças de 4 e 5 anos; e c) crianças de 6 e 7 anos.

PreparaçãoEm um lugar calmo, faça a criança realizar as duas tarefas a seguir.

Explicar como ela entende cada uma das expressões idiomáticas que constam na sua lista. Pergunte de modo claro e objetivo, por exemplo: “O que é uma pessoa que está com dor-de-cotovelo?”

Fazer uma frase com a expressão que acabou de explicar.

Grave e transcreva todas as respostas obtidas, separando-as por faixa etária. Se a criança não cumprir integralmente a tarefa, não deixe de anotar os indícios que ela der de que compreende ao menos parcialmente o que você está falando.

Discussão em salaCada grupo obtém os resultados de suas entrevistas, explicitando quando a criança conseguiu

explicar as expressões previamente selecionadas pelo grupo. Com base nos dados obtidos, responder coletivamente às questões abaixo.

Foi possível perceber uma idade a partir da qual o número de respostas corretas aumentou visivelmente?

Existe alguma idade na qual a ocorrência de respostas corretas revelou-se impossível?

É possível descrever um período de transição? Em caso afirmativo, como ele pode ser descrito?

Não conhecemos fatos, mas interpretações. Nietzsche

Você acha que a afirmação do filósofo é coerente com o que discutimos neste capítulo?

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Analisar os modos de falar e de pensar

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Você gosta de cinema? Se você respondeu afirmativamente, está com sorte, pois, desta vez, sugerimos que você assista ao filme que está pressuposto ao longo deste capítulo!

O ENIGMA DE KASPAR HAUSER (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle). Direção de Werner Herzog. Alemanha, 1974 (109 min).

Para animar você, já adiantamos que este belíssimo filme se baseia na história verídica e obscura de Kaspar Hauser, um homem doce, generoso e, ao mesmo tempo, melancólico. Ele foi encontrado numa praça de Nuremberg, em 1829, com, presumivelmente, 18 anos. Ao que tudo indica, cresceu num calabouço, acorrentado até o dia em que foi levado por um guarda a uma praça e aí abandonado. Um cidadão o encontrou e o levou para a casa do capitão de cavalaria que o entregou às autoridades. Kaspar passou, então, um tempo de pesadelo, durante o qual foi exposto em uma feira de curiosidades.

Um dia, ele conseguiu fugir com alguns companheiros, tendo sido acolhido por um protetor mais humano. Dois anos depois, Kaspar tinha aprendido a falar e a escrever, mas, surpreendentemente, até o dia em que foi enigmaticamente assassinado, o pobre rapaz ainda pensava de modo completamente diferente do modo como faziam os outros seres humanos de sua época.

BLIKSTEIN, Izidoro. Kasper Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 1990.

LOPES, Chico. Herzog: em defesa da desrazão pura. Disponível em: <http://www.verdestrigos.com.br/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=303>. Acesso em: 10 out. 2005.

ODGEN, Charles K.; RICHARDS, Ivor A. The meaning of meaning. Nova Iorque: Hartcout, Brace & Co., 1956.

RIOLFI, Claudia Rosa. Erro de leitura ou equívoco constitutivo (de sujeito)? A singularidade na fala de uma criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura, múltiplos olhares. Campinas, 2005, p. 219-233.

SABOYA, Maria Clara Lopes. O enigma de Kaspar Hauser (1812?-1833): uma abordagem psicossocial. In: Psicologia USP, n. 2, v. 12, São Paulo, 2001, p. 105-116. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642001000200007&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em: 10 set. 2005.

SHAFF, Adam. Langage et conaissance. Paris: Anthropos, 1974.

SIMÃO, José. Buemba! Galácticos viram farinhaláticos! Disponível em: <http://www.noolhar.com/opovo/colunas/josesimao/>. Acesso em: 21 set. 2005.

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

Claudia Rosa Riolfi

N este capítulo, temos como objetivo primordial tematizar o surgimento do pensamento na espécie humana. Convém ressaltar que, como ninguém entre nós tem máquina do tempo, trata-se de um empreendimento bastante

ousado e exploratório, demandando a utilização de nossa capacidade de abstração.

Por esse motivo, vamos utilizar o que costumamos chamar de muletas para o pensamento, ou seja, aqueles recursos por meio dos quais torna-se mais fácil imaginar como é algo que não podemos ver para que nosso caminho se torne menos árduo. Então, para começarmos nossa reflexão sobre como o antepassado do homem teria vivido quando ainda era um animal sem pensamento e sem linguagem, vamos recuperar aqui o filme A guerra do fogo, de Jean-Jacques Annaud.

Você já o assistiu? Se não o fez, não perca esta oportunidade de fazê-lo por nada neste mundo! Trata-se de um primoroso trabalho que, tendo como centro a descoberta do processo para acender o fogo, consiste em uma representação ficcional do momento em que o Homo erectus tornou-se Homo sapiens, o “homem cultural” como o conhecemos.

Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais

Na hipótese que o filme trabalha, o contato ou, se assim podemos dizer, a fricção entre culturas em diferentes estágios de evolução tem papel central na gênese da linguagem e do pensamento humano.

Sendo assim, para seu realizador, a passagem do homem animal para o homem cultural coincidiu com o momento no qual, motivado pela necessidade de sobrevivência, nosso antepassado remoto procurou estreitar laços com seus semelhantes mais evoluídos para aprender como utilizar instrumentos imprescindíveis para a sobrevivência da tribo.

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Que tal conhecer um pouco o enredo de A guerra do fogo? Annaud partiu da hipótese de que, em um determinado estágio de sua evolução

biológica, o ancestral do homem sentiu necessidade de preservação de um importante conhecimento que tinha acabado de adquirir: a manipulação de instrumentos. Por sua vez, esse desejo de não deixar perecer uma conquista tão importante o levou a sofisticar a sua organização social e, conseqüentemente, aproveitar-se dos recursos sonoros que seu corpo oferecia para criar um rudimento de linguagem.

Para nos mostrar este “ancestral da linguagem”, que estava a meio caminho entre a comunicação animal e a linguagem humana tal qual a conhecemos hoje, o realizador da obra, em vez de fazer somente uma sonoplastia sem sentido sair da boca dos personagens, contou com o trabalho especializado de Anthony Burgess,1 que assinou o roteiro e ― a partir de um detalhadíssimo estudo das línguas antigas ― escreveu as “falas” dos personagens (na verdade, gritos, gemidos, grunhidos, rudimentos de palavras articuladas).

Por meio de imagens muito impressionantes, Annaud retrata as venturas e as desventuras de dois grupos pré-históricos que teriam vivido há 80 mil anos e mostra os efeitos que um encontro entre eles gerou. Para falar desses efeitos, é importante marcar que um dos grupos estava bem mais próximo dos primatas e o segundo já era um pouco mais evoluído: já dominava a tecnologia de fazer o fogo e havia construído alguns elementos culturais, como habitações fixas.

O drama narrado no filme é iniciado pelo apagamento acidental do fogo da tribo menos evoluída, que não têm a mínima idéia do que fazer para acendê-lo novamente. Como todo mundo naquela época gelada dependia do fogo para proteção e aquecimento, eles passaram a correr seriíssimo perigo de vida e, por conseguinte, decidiram enviar três membros da tribo numa perigosa aventura para procurar uma nova chama.

Evidentemente, os três heróis passaram pelos mais variados problemas em seu caminho e, neste ponto, chegamos à parte que mais nos interessa. Annaud é muito cuidadoso para mostrar que, como os primitivos foram forçados a encontrar soluções muito rapidamente para não morrerem, acabaram por desenvolver uma habilidade reflexiva que sequer podiam imaginar que tinham. Na visão do filme,

a cada novo esforço conjunto para superar um obstáculo eles acabam ganhando ao menos um rudimento de linguagem e de pensamento.

Esse processo torna-se ainda mais acentuado quando os “três mosqueteiros” encontram a tribo mais evoluída e, evidentemente, muito se surpreendem com seu modo de organização cultural. Para eles, é particularmente surpreendente o fato de saberem acender o fogo, possibilidade sequer entrevista anteriormente. Ou seja: por meio dos contatos com os mais evoluídos, sofrem grande influência e desenvolvem um germe de idéia.

Embora possamos desconfiar que, por se tratar de um filme, as coisas não se passaram bem assim, podemos tirar desse trabalho uma importante lição: a gênese do pensamento na espécie humana não ocorreu quando um primeiro homem se

Que lição podemos tirar dessa história

de ficção?

1Anthony Burgess (1916-1993) foneticista e escritor

britânico, célebre por seu romance A laranja mecânica (1962), levado ao cinema por Stanley Kubrick em 1971. Burges também escreveu O homem de Nazaré (1979) e Poderes terrenos (1980).

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trancou solitariamente em sua caverna e colocou do lado de fora uma placa com o aviso “gênio pensando”!

Apesar de muito divertida, essa hipótese é completamente inverossímil, pois, como já sabemos, a gênese do pensamento humano ocorreu em situação de franco conflito entre o homem animal e a natureza e, em especial, entre os diferentes modos de fazer dos membros dos grupos humanóides. Ao encontrar quem “fizesse diferente”, o menos evoluído “descobriu”, como diria Shakespeare, que talvez houvesse mais coisas entre o céu e terra do que sonhava sua vã filosofia...

Assim, teve vontade de que sua grama fosse tão verde como a de seu vizinho, para continuar nossa linha de metáforas... Hipótese curiosa esta: o pensamento adveio da inveja saudável dos seus semelhantes! Curiosa, sem dúvida, mas será tão inverossímil assim? Não sabemos. Mas sabemos que, ao descobrir usos cada vez mais sofisticados para os instrumentos, os homens logo trataram de compartilhá-los com seus semelhantes e preservá-los para seus descendentes. Pronto: estava fundada a família e a vida em sociedade.

Introduzindo o pensamento de Vygotsky Não foram apenas os cineastas os interessados em refletir sobre os modos

pelos quais o advento do pensamento ocorreu na humanidade. Essa questão interessou profundamente toda uma linhagem de pesquisadores, em especial o russo Lev Semiótnovitch Vygotsky.

Você sabe quem foi Lev Semiótnovitch Vygotsky? Ex-estudante da Universidade de Moscou, esse brilhante pesquisador viveu apenas 38 anos. Nasceu, trabalhou e morreu na passagem do século XIX para o XX (1896-1934), tendo enfrentado as restrições que o isolamento de um sistema político fechado coloca para todo aquele que tem vocação para a vida intelectual. Especificamente, referimo-nos às dificuldades de circulação de idéias que, naquele contexto, fazia com que tanto fosse difícil expor sua produção para além de Moscou quanto tomar contato com trabalhos de colegas de outros países. Apesar da vida curta e do isolamento, Vygotsky teve tempo suficiente para formalizar algumas idéias que, embora passíveis de alguma crítica, causaram profundas impressões entre os educadores e demais interessados na formação do ser humano.

Por causa de sua pertinência e clareza, optaremos, aqui, por iniciar esta introdução à obra de Vygotsky utilizando-nos de um parágrafo escrito pelo professor James V. Wertsch para apresentar um de seus livros.

A perspectiva teórica delineada por Lev Semenovich Vygosky pode ser compreendida em termos de três temas gerais que estão presentes em todas as suas obras: a) o uso de um método genético, ou de desenvolvimento; b) a afirmação de que o funcionamento mental superior no indivíduo provém de processos sociais; e c) a afirmação de que os processos sociais e psicológicos humanos são moldados fundamentalmente por ferramentas sociais, ou formas de mediação. (WERTSCH apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 9).

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Perseguindo os temas citados acima ao longo do seu trabalho, o psicólogo russo tentou superar a crise que grassava no campo da psicologia praticada em sua época, apresentando uma proposta teórica inovadora: a idéia segundo a qual a consciência humana é determinada historicamente. Dizendo de outro modo, segundo Jerome S. Bruner ― que assina a introdução do livro Pensamento e linguagem (VYGOTSKY, 1998) ―, um dos principais avanços do psicólogo russo foi o conceito de atividade mediada, ou seja, compreender que as ferramentas sociais moldam nossos modos de lidar com o mundo.

Ao fazer essa afirmação, Vygostky se opôs às concepções clássicas das antigas escolas de psicologia que ainda não haviam percebido a conexão entre pensamento e linguagem como sendo originária do desenvolvimento humano e, inovando ao longo de seu trabalho, procurou construir uma teoria geral das raízes genéticas dessa conexão. Por esse motivo, para Oliveira (1992), por sua vez, referir-se a Vygotsky é algo análogo a referir-se à dimensão social do desenvolvimento humano, uma vez que um dos pressupostos básicos do autor é o de que o “ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro social” (OLIVEIRA, 1992, p. 24). Nessa visada, a cultura torna-se parte da natureza humana em um processo histórico.

Deixemos, neste momento, o próprio psicólogo russo nos apresentar qual conclusão, alcançada por ele após a realização de suas pesquisas, ele julga ser a mais importante.

O fato mais importante revelado pelo estudo genético do pensamento e da fala é que a relação entre ambos passa por várias mudanças. O progresso da fala não é paralelo ao progresso do pensamento. As curvas de crescimento de ambos cruzam-se muitas vezes, podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até mesmo fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente. (VYGOTSKY, 1998, p. 41).

Ainda voltaremos a tirar maiores conseqüências do parágrafo acima, mas agora cumpre ressaltar que, por meio dele, o autor nos dá uma importante pista para refletir sobre a nossa prática de sala de aula: pressupor que o aluno vai ser capaz de falar sobre um determinado assunto tão logo o tenha aprendido é, no mínimo, falacioso, uma vez que tanto podemos falar muito sobre algo de que não entendemos nada (talvez até em uma tentativa de entender) como podemos precisar do silêncio por algum tempo mesmo depois de a explicação estar bastante clara.

Portanto, senhores professores, ao pedir que o aluno reproduza uma explicação que você acabou de dar, lembre-se: muita calma nessa hora!

A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano

Para entender as relações entre a história e a cultura no desenvolvimento humano, vamos recorrer a um outro exemplo, o trabalho de um dos maiores historiadores contemporâneos: Carlo Ginzburg. Em especial, interessa-nos seu trabalho que reconstituiu, a partir de um exame minucioso de documentos da Igreja

Você já percebeu que a gente não

consegue falar sobre tudo que

sabe?

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Católica, os modos de pensar dos praticantes de um culto da fertilidade que viveram entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII, na Itália.

Para nós, o mais importante do trabalho de Ginzburg é que, por meio do exame rigoroso de fatos reais da história (e não mais da ficção, como no caso do filme que estudamos), o italiano nos mostra que, na história da humanidade, os modos de pensar estiveram sempre em fricção, ou dizendo de outro modo, eram fruto de pertencer a um determinado grupo histórico-social.

Sem compreender muita coisa das crenças bizarras dos camponeses (que simplesmente buscavam, com meios “mágicos” ― muito parecidos com as simpatias que ainda hoje persistem entre nós ― fazer com que suas colheitas fossem bem sucedidas), a Igreja da época tomou-os como sendo participantes de um culto demoníaco, coisa que estavam bem longe de ser. Por meio da tortura, essa mesma Igreja buscou fazer com que confessassem seu “pacto com o diabo”, confissão essa que os pobres coitados faziam sem sequer entender as conseqüências.

O exame dos documentos, na maioria transcrição dos depoimentos dos pobres camponeses torturados, mostrou que os inquisidores se viam constantemente em maus lençóis, pois, embora neles aparecessem palavras como inferno e diabo, não apareciam do modo como era esperado pelos torturadores.

Para maior clareza, tomemos aqui, dentre os muitos depoimentos analisados pelo pesquisador, um exemplo qualquer no qual dá para ver uma grande “confusão” em andamento:

O acusado, Thiess, um velho com mais de 80 anos, confessa abertamente aos juízes que o interrogam ser um lobisomem. [...] O velho diz que o seu nariz fora quebrado, no passado, por um camponês de Lemburg, Skeistan, morto já há bastante tempo. Skeistan era um feiticeiro; juntamente com os seus companheiros, tinha levado as sementes de trigo ao inferno para que as messes não crescessem. Acompanhado por outros lobisomens, Thiess fora ao inferno e lutara contra Skeistan. Este, armado de um cabo de vassoura (o atributo tradicional das bruxas) enrolado num rabo de cavalo, havia golpeado o nariz do velho naquela ocasião. Não se tratava de um confronto ocasional. Três vezes por ano, nas noites de Santa Lúcia, antes do Natal, de Pentecostes e de São João, os lobisomens vão a pé, como uma alcatéia, até um lugar situado “onde termina o mar”: o inferno. (GINSBURG, 1988, p. 50).

Você já imaginou em que embrulhada ficaram os pobres que escutaram esse depoimento? “Thiess confessa ser um lobisomem, logo ele é do mal”, pensam os inquisidores, porém sua conclusão não pode se manter intacta por muito tempo, pois, se ele confessa que vai ao inferno, justifica que o faz para combater o feiticeiro do mal que estava prejudicando as colheitas (Skeistan) – logo, ele é um tipo de “herói do bem”.

Todo mundo que conhece a história da Idade Média sabe que, na prática, esse conflito terminou muito mal. Incapazes de compreender uma lógica outra, que, por ser tão diferente, escapava-lhes completamente, os inquisidores não duvidavam: fogueira para eles! Por sua vez, incapazes de entender a lógica dos inquisidores, esses pobres camponeses (em especial as mulheres, mais freqüentemente acusadas de serem bruxas) eram completamente incapazes de defesa própria, pois não conheciam o que

Você já parou para pensar por que os padres da Idade Média localizavam tantas bruxas no mundo?

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2Fragmento da tradução realizada por Claudia Rosa

Riolfi para o texto Erótica y hermenéutica, o el arte de amar el cuerpo de las palabras.

3Docente da Universidade de Barcelona, Espanha.

poderia ser utilizado como um argumento plausível do raciocínio do outro grupo. Tudo o que diziam, para se defender, era logo transformado em mais um argumento de acusação.

O que foi que eles aprenderam, então? Aprenderam que, para se manterem vivos, havia um “discurso certo” a fazer, que poderia ser proferido aberta e publicamente, e algumas práticas nas quais acreditavam para esconder, para serem feitas na calada da noite e negadas a todo e qualquer preço. O que começou a ser praticado de forma “inocente” passou então a ser feito de forma “maliciosa” e “pecaminosa”, pois, devido ao contato com os inquisidores, os camponeses agregaram às suas práticas uma carga “maléfica” que anteriormente não estava lá.

Pensando mais detidamente sobre os dois exemplos contidos neste capítulo e concluindo nossa reflexão, podemos compreender melhor a tese de Vygotsky segundo a qual o ser humano constitui-se na sua relação com o outro social. É a sociedade que lhe ensina o que pode e deve ser dito e, nas últimas conseqüências, dita-lhe os modos de pensar. Nesta visada, então, a cultura não é algo separado do humano, mas uma instância que, a partir de um processo histórico, torna-se parte da natureza humana.

Erótica e hermenêutica, ou a arte de amar o corpo das palavras2

(LARROSA,3 2000)

Nietzsche sabia que ensinar a falar, a escrever e a ler é ensinar a falar, a escrever e a ler como está ordenado, quer dizer, a experimentar a realidade, a do mundo e a de si próprio, como está ordenado ou, o que é o mesmo, a portar-se como está ordenado. Para perverter a ordem e o conformismo, para aprender a falar, a escrever e a ler de outro modo, para interpretar o mundo e a nós mesmos de outro modo, para ser de outro modo, Nietzsche nos convidava a sermos filólogos rigorosos. É com o nome de Nietzsche que eu também apelo aqui, leitor amigo, para a tua cumplicidade de filólogo [...] no amor às palavras. [...]

Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonados das palavras com uma forma de amizade e de amor que não passe pelo conhecimento, nem pelo uso, nem pela vontade de apropriação. Também, talvez essencialmente, Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonado do corpo das palavras. [...] O corpo das palavras opera como simples portador de seu sentido, como representante ou vicário, ou lugar-tenente de seu sentido, como o lugar que tem e contém o sentido. Desse ponto de vista, a compreensão consiste em obter esse sentido arrancando-o do corpo e abandonando depois o cadáver como letra morta, inanimada. Uma palavra sem sentido é só um corpo, uma palavra que não expressa nada, que não diz nada. [...]

Se as palavras não são outra coisa além do lugar da materialização, da encarnação ou da transmissão de algo que é, por sua essência incorpórea, colocar o acento na compreensão ou na interpretação é conceber a relação com as palavras como acesso ao espírito que está encarnado na letra ou como apropriação do

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sentido que está materializado e transportado no signo. Compreender é aceder à profundidade espiritual e invisível encarnada na linguagem ultrapassando nela a superfície material de sua corporeidade visível. Para a hermenêutica tradicional e, especialmente, para os modelos de interpretação simbólica, o objeto da compreensão é o espírito do texto: por isso a interpretação apenas pode realizar-se por meio da marginalização de sua dimensão corporal. Mas, como poderia ser possível amar sem corpo?

[...]

Escutemos a confissão de um amante-apaixonado do corpo das palavras, de um homem (ou de um nome) que, na esteira de Nietzsche, está nos ensinando a ler e a escrever de outro modo e que, como Garcia Calvo, está nos convidando para amar aquilo que nas palavras pode funcionar para destecer o funcionamento servil do sentido, sua relação constitutiva com a ordem e com a esperança:

É verdade que só as palavras me interessam... amo as palavras... Para mim, a palavra incorpora o desejo e o corpo... eu só gosto das palavras.... O que eu faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal não apareça no verbal. Quer dizer, faço funcionar as palavras de tal maneira que, em um dado momento, deixam de pertencer ao discurso... E, se amo as palavras, é também por sua capacidade de escapar de sua própria forma, ou ainda, por interessar-me como coisas visíveis, como letras representando a visibilidade espacial da palavra ou como algo musical ou audível. Quer dizer, também me interessam as palavras, ainda que paradoxalmente, pelo que tem de não discursivas, naquilo que podem ser usadas para explodir o discurso... na maioria de meus textos existe um ponto no qual a palavra funciona de maneira não discursiva. De repente, desorganiza a ordem e as regras, mas, não graças a mim. Presto atenção ao poder que as palavras, e às vezes, as possibilidades sintáticas também, têm para transformar o uso normal do discurso, o léxico e a sintaxe.... me explico a mim mesmo através do corpo das palavras – e creio que apenas se pode falar verdadeiramente do “corpo da palavra” levando em conta as reservas oriundas do fato de que falamos de um corpo que não está presente em si mesmo – e é o corpo de uma palavra o que me interessa no sentido de que não pertence ao discurso. Assim que estou realmente apaixonado pelas palavras, as trato sempre como corpos que contêm sua própria perversidade – sua própria desordem regulada. Enquanto isto ocorre, a linguagem se abre às artes não verbais... Quando as palavras começam a enlouquecer desta maneira e deixam de comportar-se com respeito ao discurso é quando têm mais relação com as demais artes.4

[...]

Amar o corpo das palavras não é, então, nem conhecê-las nem usá-las, mas senti-las: senti-las no que têm de perverso, em seu poder para subverter a normalidade própria do discursivo, e senti-las também no que têm de inapreensíveis, de incompreensíveis, de ilegíveis, de ininteligíveis. Assim, o corpo das palavras, como o corpo da amante, se nos oferece plenamente e sem reservas e, ao mesmo tempo, retira-se de nós escapando de qualquer apropriação, de qualquer captura apropriadora. O que o corpo das palavras revela é, justamente, a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância e sua ausência de respeito para consigo própria. Por isso, no corpo das palavras, o que amamos é, precisamente, aquilo de que nós não podemos nos apropriar, aquilo que nós nunca poderemos tornar nosso, aquilo que, inevitavelmente, escorre e se extravia de nós.

4Em BRUNETTE, Peter; WILLS, David. Las

artes espaciales. Una entre-vista con Jacques Derrida. Disponível em: <http ://ale-ph-arts.org/accpar/numero1/derrida1/htm>.

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O corpo das palavras é a revelação do que nelas não pertence ao discurso, a irrupção da não-linguagem no âmago da linguagem. Mas de uma não-linguagem que subverte a linguagem, de um não-discurso que, contudo, é capaz de fazer explodir o discurso, de desestabilizá-lo, de subverter sua normalidade e de transtornar suas regras. O corpo das palavras é sua insignificância, porém não uma insignificância neutra, mas uma insignificância que faz a significação enlouquecer. O corpo das palavras não fica absorvido na significação, não fica dissolvido na pura função da representação, mas tampouco se mantém exterior a ela. Não há nem correspondência, nem harmonia, nem integração entre a letra e o espírito, mas tampouco há ausência de relação, pura exterioridade. [...] Por isso, amar o corpo das palavras é fazê-las explodir, fazê-las funcionar pervertendo ou enlouquecendo qualquer tentativa de mediação encaminhada para a fabricação de sentido. O corpo das palavras é o lugar do desfalecimento da compreensão, o lugar do colapso do sentido, a ameaça permanente da interrupção da positividade ordenada de nossos discursos produtores de sentido.

Como se o corpo das palavras fosse lugar de sua liberdade, dado que revela que as palavras são sempre outra coisa além de servidoras do desejo de sentido que determina o bom funcionamento da ordem do discursivo. Amar o corpo das palavras, portanto, significa nem iludir nem recalcar, mas sim assumir e preservar o perigo de não haver sentido, porque o corpo das palavras é o que, em todo discurso, pode abrir-se à perda do sentido, ao não-sentido.

Leia cuidadosamente a letra de canção que se segue, gravada por Ney Matogrosso em Quem não vive tem medo da morte (Gravadora CBS):

Chavão abre porta grande (ASSUMPÇÃO; GUARÁ, 1988)

Não adianta vir arreganhando Os dentes pra mim

Porque sei que isso não é um sorrisoPenso logo existoPenso que existo

Ou penso que pensoPenso que penso Penso que penso Penso que penso Canto logo existo

Canto enquanto issoConto enquanto posso

Enquanto possoEntre o sim e o não existe um vão Entre o sim e o não existe um vão Entre o sim e o não existe um vão

Você já portou luvas no porta-luvas?

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[...]O real, o real é a rocha que o poeta lapida

Doando à humanidade mal-agradecidaPoeta talvez seja melhor

Afinar o coro dos descontentes[...]

Após a leitura e a discussão da letra, atente para o fato de que, logo no início, o eu lírico diz para o interlocutor a quem dirige sua fala: “Não adianta vir arreganhando os dentes pra mim porque sei que isso não é um sorriso”. Ao fazê-lo, aponta para a dimensão do logro nas relações sociais: o riso amarelo, o falso elogio, a promessa sem intenção de ser cumprida e assim por diante. Tendo esse apontamento em mente, refletir, discutindo em pequenos grupos, sobre as questões abaixo.

1. Que indícios (por exemplo, modo de vestir, tom de voz, expressão facial, uso de maquiagem etc.) fazem com que, quando você observa um desconhecido, antes mesmo de poder conversar, você fique desconfiado de que se trata de alguém

falso;

desonesto;

prostituído;

confiável;

lento para entender as informações;

paciente.

2. Quais são os indícios que fazem com que, antes mesmo de haver uma conversa, você saiba dizer, com relação a uma pessoa que você conhece muito bem, que ele está

com raiva de você;

preocupado;

prestes a romper o relacionamento;

contente;

desconfiado;

com ciúmes.

3. A partir de que idade você pensa que aprendeu fazer a leitura que lhe permitiu responder às questões 1 e 2? Aprendeu sozinho ou teve auxílio dos mais velhos, que lhe deram dicas?

4. Você procura ensinar aos mais novos (filhos, sobrinhos, alunos) como reconhecer, por exemplo, uma pessoa perigosa? Como faz para que compreendam quais traços, em sua opinião, devem ser observados?

5. Que conclusões sua turma pôde tirar com relação às influências das questões culturais sobre a percepção e o pensamento por meio da reflexão causada pelas perguntas propostas nesta atividade?

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Leia, a seguir, a letra da canção “Há”, de Luiz Tatit. Ela foi gravada pela cantora Daúde, no CD homônimo, da Natasha Records.

Há (TATIT, 1995)

Ah! Não pode usar qualquer palavraEntão é por isso que não dava ?

Eu tentava repetiaAchava lindo e colocava se não cabe se não pode

tem que trocar de palavraAh! mas é tão bom essa palavra

Carregada de sentidoe com o som tão delicado

Agora eu vou ter que trocar ?Ah! Vão se danar!

Você acha que nós humanos temos mesmo um amor todo especial por algumas palavras?

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

Com escolha criteriosa de verbetes e apresentação cuidadosa das diversas acepções nas quais pode ser tomado, este dicionário constitui-se em um instrumento de trabalho imprescindível para todos aqueles que desejam vir a construir um trabalho com as produções verbais de uma perspectiva da análise do discurso, área que, afastando-se de uma concepção de linguagem como expressão do pensamento, ajuda-nos a decifrar o não-dito presente nos enunciados e nos silêncios de um dado sujeito.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas/Londrina: Editora da Unicamp/Eduel, 2003.

Este grande livro, de 683 páginas, é um atual e completo panorama de um dos ramos da lingüística que mais se relaciona com a especificidade do ser humano: a semântica, área de estudo que pretende responder ao que faz com que as palavras e as sentenças signifiquem. Sem perda de qualidade ou de conteúdo, Chierchia aborda a matéria de modo informal e simples, recorrendo, além disso, a outros expedientes para nos ajudar a adentrar nesta área tão complexa: exercícios, exemplos, indicações bibliográficas para leituras suplementares, entre outros.

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A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano

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ASSUMPÇÃO, Itamar; GUARÁ, Ricardo. Chavão abre porta grande. In: MATOGROSSO, Ney. Quem não vive tem medo da morte. Rio de Janeiro: CBS, 1988.

BRUNETTE, Peter; WILLS, David. Las artes espaciales: una entrevista con Jacques Derrida. Disponível em: <http ://aleph-arts.org/accpar/numero1/derrida1/htm>. Acesso em: 20 set. 2005.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas/Londrina: Editora da Unicamp/Eduel, 2003.

GINSBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

LARROSA, Jorge. Erótica e hermenêutica, ou, a arte de amar o corpo das palavras. Revista Nexos - Estudos em Comunicação e Educação, n. 6, ano IV, jan.-jul. 2000.

OLIVEIRA, Marta Khol de. Vygotsky e o processo de formação de conceitos. In: LA TAILLE, Yves de et al. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992, p. 23-34.

TATIT, Luiz. Há. In: Daúde. Rio de Janeiro: Natasha Records, 1995. f.8.

VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______; LURIA, Alxander Romanovich. Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

Claudia Rosa Riolfi

P ara introduzir este capítulo, que tem como tema específico os modos de enganchamento entre pensamento e linguagem, vamos propor a você um exercício pequeno, mas nada simples. Ele vai exigir muita imaginação e

capacidade de desprendimento, pois seu objetivo é levá-lo para um tempo anterior ao advento de seu pensamento e de sua inscrição na linguagem. Tempo de susto e de perplexidade, quando todas as palavras estavam do lado do outro.

No início, era o corpo...Trata-se do seguinte: transporte-se agora para os minutos que precederam seu

nascimento. Provavelmente, sua mãe está nervosa. Por esse motivo, buscou ajuda profissional para ajudá-la a cumprir essa missão que todas as outras mamíferas fazem sozinhas: dar à luz um bebê. Acompanhe-a durante o trabalho de parto, tentando projetar como esse processo se deu para você. Vamos lá?

Até há pouco tempo, era você quem decidia como e quando mexia seu corpo. Virava, torcia, encaixava-se. De repente, não mais que de repente, está sofrendo fortes empurrões para todos os lados e sente que, inevitavelmente, querendo ou não, vai escorregar. Lá vai você rumo ao desconhecido. Agora, seu corpo deixou o meio líquido e o ar faz fricção em sua pele. Como está frio! Os ruídos tornaram-se muito altos e invadem seus ouvidos. Há luz. Alguém lhe pendurou e começou a esfregar um pano no seu corpo. Aposto que você está com medo.

Com sorte, alguém mais apostou nessa hipótese e lhe colocou sobre um ventre macio – do lado de fora, evidentemente. Há um cheiro lá. Seu instinto falou mais forte e você achou um mamilo que, curiosamente, encaixava-se perfeitamente em sua boca. Sua língua se mexeu e você sugou e, então, eis que, pela primeira vez, o gosto do leite inundou o céu de sua boca. Como é bom, Santo Deus, até que valeu a pena todo aquele empurra-empurra.

Se você conseguiu fazer o exercício proposto, pôde perceber que, ainda na primeira hora de vida de uma criança nascida em condições normais, os órgãos dos sentidos entram em ação: audição, visão, olfato, tato e paladar são convocados e, de algum modo, começam a ligar o bebê ao mundo, dando-lhe motivos para viver.

Como o cérebro do bebê reagiu a tanta excitação?

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Linguagem e Pensamento

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No início, portanto, há o predomínio da pura percepção, seguida da sensação que essa percepção provoca no corpo. O mundo é mudo, não nos diz seu nome. O bebê passou por uma experiência riquíssima, mas nem sabe quem é e nem conseguiria explicar o que de fato viveu. Ele se reduz a seu corpo e às sensações agradáveis ou desagradáveis que este possa lhe proporcionar. A palavra existe, mas, como ele ainda não transita por ela, está sujeito a um funcionamento muito parecido aos demais mamíferos, a alternância entre prazer e desprazer.

É interessante notar que, em 1895, ao descrever a experiência de satisfação do bebê humano no texto Projeto para uma psicologia científica, o psicanalista austríaco Sigmund Freud aproximava-se muito da perspectiva aqui descrita. A título de curiosidade, leia agora um fragmento desse trabalho que fala sobre o que acontece quando o bebê precisa lidar com sua sensação de fome.

Uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo [...], que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. [...] Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. Isso porque três coisas ocorrem no sistema: (1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causou desprazer em; (2) produz-se no pallium a catexização de um (ou de vários) neurônio(s) que corresponde(m) à percepção do objeto; e (3) em outros pontos do pallium chegam as informações sobre a descarga do movimento reflexo liberado que se segue à ação específica. Estabelece-se então uma facilitação entre as catexias e os neurônios nucleares.

Você já se deu conta de quanto tempo demora para que a educação (familiar ou institucional) tire o bebê desse funcionamento mínimo e o faça interagir com o mundo de maneira refletida? No melhor dos casos, não menos de um ano, pois é apenas quando pode dispor de rudimentos de palavras que o humano começa a organizar um pensamento elaborado que difere daquilo que um chimpanzé, animal bastante inteligente, também consegue construir.

Ou seja, estamos aqui afirmando mais uma vez que a linguagem tem uma função primordial na organização de nossas complexas formas de pensar e, dada a reiteração dessa tese principal, é chegada a hora de, com Vygotsky, interrogarmos mais aprofundadamente as relações entre pensamento e linguagem.

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Significado da palavra

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O conceito de pensamento verbal em VygotskySe você tem mais de 15 anos, com certeza absoluta já ouviu a seguinte

interrogação: “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?” Também deve saber que nos lembramos de reproduzir essa frase toda vez que nos parece muito difícil determinar onde alguma coisa começou, não é mesmo?

Quando nos interrogamos sobre as relações entre pensamento e linguagem, logo aparecem acaloradas discussões de igual teor: para alguns, o pensamento aparece primeiro e nos dá condições de aprender as palavras, e para outros ocorre o contrário. Vygotsky encontra-se dentre os partidários do último grupo. De fato, pode-se afirmar que, para o autor, a palavra é o material do pensamento ou, melhor dizendo, ela é o meio pelo qual o pensamento se estrutura. Para ele, “o pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir” (VYGOTSKY, 1998, p. 156-157).

Neste momento, é importante ressaltar dois aspectos cruciais na teoria do significado da palavra adotada por Vygotsky.

O autor não comete o mesmo erro comum entre os não-especialistas em linguagem, que é o de pensar que uma palavra refere-se a um objeto isolado do mundo. Afastando-se desse ponto de vista inadequado, ele concebe cada palavra como uma generalização que consiste em “um ato verbal do pensamento e reflete a realidade de modo bem diverso daquele da sensação e da percepção” (VYGOTSKY, 1998, p. 6).

Embora foque na análise dos significados das palavras, o autor não ignora que elas só funcionam na presença de um sistema de signos que lhes dá consistência. Somente dentro do sistema, utilizando os termos do autor, pode haver entendimento entre as mentes por meio da linguagem como expressão mediadora.

É importante ressaltar que o psicólogo russo não explica o papel de ligação entre pensamento e linguagem exercido pela palavra considerando sua materialidade sonora (significante). Muito pelo contrário. Para Vygostsky, a parte da palavra que interessa é o significado.

Vejamos, nas palavras do próprio autor, essa centralidade do significado: “Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da ‘palavra’, seu componente indispensável. [...] do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito.” (VYGOTSKY, 1998, p. 151). Lendo essa citação, podemos concluir, portanto, que, para o autor, são os significados que associam o pensamento à representação da realidade feita pelos sujeitos.

Não temos contato direto com o mundo, mas incidimos parcialmente sobre ele na forma de nossos juízos (Ex.: “Que mulher feia!”), de nossos conceitos (Ex.: “Uma mulher feia é aquela em que as partes do corpo não combinam entre si”), ou de nossas deduções (Ex.: “Fulana, que dá muita importância à aparência física, está muito reticente sobre a nova namorada do filho: ela deve ser feia”).

Como a palavra poderia dar origem ao pensamento?

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É importante notar que, embora os três exemplos do parágrafo precedente sejam perfeitamente compreensíveis para todos nós, eles não nos fornecem qualquer descrição mais concreta de como seria uma mulher considerada feia pelo seu locutor. Inclusive, pode ser que, ao nos encontrarmos com a pessoa, a julguemos bastante apresentável.

O que isso significa? Que ninguém tem acesso direto aos objetos que são alvo do pensamento do outro. No máximo, temos acesso às palavras escolhidas por ele para descrevê-los para nós. Dada essa compreensão, é importante notar que, para construir sua teoria sobre as relações entre pensamento e linguagem, Vygotsky (1998) afastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em sua época, quais sejam:

a identificação – perspectiva que consiste na fusão entre o pensamento e a fala, isto é, na compreensão de que se tratava de fenômenos indissociáveis; e

a disjunção – perspectiva que consiste na segregação entre o pensamento e a fala, isto é, na compreensão de que são fenômenos que nada têm em comum.

Ao fazê-lo, construiu uma terceira vertente aproximativa, a intersecção (termo a ser entendido do modo como é feito na teoria dos conjuntos, ou seja, referindo-se àquele subgrupo de elementos que é comum a dois conjuntos maiores). Observe a Figura 1, para uma melhor visualização da teoria de Vygotsky sobre a relação entre pensamento e linguagem.

Figura 1: O pensamento verbal como locus da união entre pensamento e linguagem

Observando a Figura 1 mais atentamente, o leitor notará que, para o psicólogo russo, no cérebro humano pensamento e linguagem estão ligados numa zona que consiste no pensamento já recortado e formatado por meio da palavra. Vygotsky chama essa entidade híbrida de pensamento verbal.

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Significado da palavra

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A dupla função organizadora da palavra Para Vygotsky, a palavra tem importantes funções de organização interna e

externa do ser humano. Ao recortar uma massa indistinguível de pensamento em pensamento verbal, permite que um sujeito compreenda as coisas que vê e vive e, também, que possa partilhar essa compreensão com seus pares e descendentes. Confira a Figura 2, para uma primeira tomada de conhecimento dessa dupla função.

Figura 2: A dupla face da palavra

Ser uma unidade interna do pensamento generalizante.

Ser uma unidade do intercâmbio social.

De acordo com a Figura 2, podemos pensar que, funcionando tanto em uma vertente interna quanto em uma externa, o significado da palavra dá aos homens uma coerência em sua reflexão e mantém aos olhos de seus pares uma consistência de seu lugar no mundo. Retomando um pouco mais esquematicamente:

função interna da palavra – organizar o pensamento do homem, por meio de operações como, por exemplo, a classificação e a seriação;

função externa da palavra – permitir aos homens que possam a) compartilhar as conclusões a que chegaram a partir da organização prévia de suas idéias; b) inserir-se nas relações sócio-históricas por meio de um lento processo de apropriação dos conceitos; c) transmitir esses conceitos aos descendentes de uma cultura.

Em suma: nesta visada, a palavra tem uma importante função no desenvolvimento intelectual do humano. Não se pode esquecer que, em grande parte, esse processo se deve ao fato de que as palavras evoluem, não são estáticas. Isto é verdade tanto se considerarmos a história da humanidade quanto se isolarmos a história de uma criança em particular.

Para ilustrar a riqueza em que consiste o acompanhamento da evolução dos modos de pensar sobre o mundo e expressar os pensamentos de uma criança, trago aqui um testemunho escrito por um pai de uma menina brasileira que, na ocasião em que os fatos relatados ocorreram, estava com 18 meses.1

1Agradeço a Valdir Heitor Barzotto a gentileza de

autorizar a divulgação deste encantador parágrafo de uma carta escrita por ele para João Wanderley Geraldi, em 20 de janeiro de 1997.

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Observe que o narrador, que na ocasião estava fazendo parte de seu doutorado em lingüística em Paris, mostra-se encantado com as inegáveis mostras de refinamento conceitual de sua pequena filha e, por esse motivo, gasta algum espaço de uma longa carta escrita para seu orientador no Brasil visando a partilhar a experiência que vivia naquele momento narrando uma parte de sua vida familiar.

Não se trata, entretanto, de uma narrativa vã. Se o leitor prestar bastante atenção, vai perceber que, para além do pai, lá está o lingüista. Ele não se limita a narrar acontecimentos, mas o faz estabelecendo as relações existentes entre a ampliação vocabular e a compreensão de mundo testemunhado por sua garotinha. Acompanhemos sua saborosa narrativa.

Quem produz conhecimento a todo vapor é mademoiselle Lorrá (Laura para os poucos íntimos que ela tem por aqui). Na área de zoologia, é difícil acompanhá-la. Primeiro, ela descobriu o cachorro e o chamou de vau. Depois, resolveu incluir toda a fauna nessa categoria. Com um pouco mais de observação e de reflexão, ela criou a categoria pato, na qual incluiu todas as aves e as tartarugas. Passou um pouco mais e ela dividiu ainda mais a fauna, inventando a categoria pexe, que logo foi aperfeiçoada para peixo, e as tartarugas, jacarés e cobras foram reclassificadas, ficando neste último grupo. Veio então o tempo de redefinir o grupo vau: ganharam autonomia dois grupos, o mó (englobando geralmente os vaus que têm chifres) e o cavao (os vaus que pareçam meio grandes). Como grupo isolado, figuram em sua classificação o popote (hipopótamo) e o giiafa. Aproveitando essa fase produtiva, ontem fomos com ela ao Zoológico. Penso que a partir de agora sua análise vai ficar ainda mais refinada. Para mim, ela resolveu de uma vez por todas o problema de classificação das focas: quando está nadando é peixo, quando põe a cabeça fora d’água é vau.

Laura adora museus. Quando a gente entra, ela já sabe onde está e vibra. Ela já desenvolveu até um balanço de corpo específico para fazer quem estiver com ela no colo ir para o quadro seguinte. Depois, ela faz voltar várias vezes naquele que ela mais gostou. A cada vez, ela vai descobrindo coisas menores nos quadros. Nas igrejas, é a mesma coisa. Em geral, ela vê primeiro os bida (umbigo), os nalijo (nariz) e os pé dos anjos!

Sua língua é, sem dúvida, o português. No começo, ela ria quando a gente falava francês com ela, achava que era brincadeira. Agora, ela já sabe que muita gente fala francês e até fala alguma coisa como boju (bon jour), ovoá (au revoir), maintnant, vavá (ça va?), tô (manteau). E canta uma musiquinha que tem um longínquo parentesco com a nossa A barquinha virou, é: batô, batô, batô.”

Morando na França, descobrindo o mundo em duas línguas, a menininha fala como pode, sempre meio estranho, mas, segundo seu pai, sempre de modo mais pertinente. Ao fazê-lo, ela se inscreve no mundo e, dando testemunho dessa delicada operação, contamina os adultos que a cercam com a agudeza de seu olhar.

Ainda bastante necessitada de usar a mímica e os movimentos de corpo, ela já esta em uma situação que é bastante diferente daquela do bebê pequeno com a qual

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Significado da palavra

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iniciamos esta investigação. Suas percepções e sensações já não são mais corpóreas: estão sujeitas aos dispositivos culturais e, na forma de suas palavras, neles deixam sua marca.

Se no início da aventura do homem sobre a Terra há o predomínio da pura percepção, seguida da sensação que esta percepção provoca no corpo e, como não estamos sozinhos sobre a face da terra, nossos semelhantes logo passam a dizer os nomes das “coisas do mundo”, às quais nos apresentam. A palavra tem uma importante função no desenvolvimento intelectual do humano. Essa operação não é vã: ela nos leva a construir categorias cada vez mais elaboradas para conduzir nossa reflexão. Este é um outro modo de dizer que somos seres de linguagem.

Dialogismo: a linguagem verbal como exercício do social (LUKIANCHUKI, 2005)

O pensamento de Bakhtin revelado em suas obras, apesar de plural, tem uma unidade garantida pela centralidade da linguagem, cujo método de análise é a dialética. Dialogismo é o conceito que permeia toda a sua obra. É o princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que toda a vida da linguagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A concepção dialógica contém a idéia de relatividade da autoria individual e conseqüentemente o destaque do caráter coletivo, social da produção de idéias e textos. O próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra com o outro. Pensar em relação dialógica é remeter a um outro princípio — a não-autonomia do discurso. As palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas palavras do outro: o discurso elaborado pelo falante se constitui também do discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em linguagem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social. Nos seus escritos, Bakhtin aborda os processos de formação do eu através de três categorias: o eu-para-mim, o eu-para-os-outros, o outro-para-mim. Da formulação dessa tríade, pode-se entrever sua inquietude frente a algumas questões: Como o eu estabelece sua relação com o mundo? Existe uma oposição entre o sujeito e o objeto? De acordo com Maria Teresa de Assunção Freitas, “Para ele, não há um mundo dado ao qual o sujeito possa se opor. É o próprio mundo externo que se torna determinado e concreto para o sujeito que com ele se relaciona.”

[...] A consciência individual é, portanto, um fato social e ideológico. Dito de outra maneira, a realidade da consciência é a linguagem e são os fatores sociais que determinam o conteúdo da consciência – do conjunto dos discursos que atravessam o indivíduo ao longo de sua vida, é que se forma a consciência. O mundo que se revela ao ser humano se dá pelos discursos que ele assimila, formando seu repertório de vida. Pelo fato de a consciência ser determinada socialmente, não se pode inferir que o ser humano seja meramente reprodutivo, o que se ressalta é, portanto, a criatividade do sujeito humano: é influenciado pelo meio, mas se volta sobre ele para transformá-lo. Duas vezes nasce o homem: fisicamente (o que não o faz inserir na história) e socialmente determinado pelas condições sociais e econômicas. Posto isso, não se pode sustentar

O que podemos concluir dessa leitura de parte do percurso de construção do pensamento de uma criança?

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a idéia — tão propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista — de que a ideologia deriva da consciência. Sob a forma de signos é que a atividade mental é expressa exterior e internamente para o próprio indivíduo. Sem os signos a atividade interior não existe. A palavra não é só meio de comunicação, mas também conteúdo da própria atividade psíquica.

[...] Retomando a questão do dialogismo, e, ainda com relação à palavra diálogo, além do seu sentido estrito — o ato de fala entre duas ou mais pessoas —, pode-se tomá-la também em seu sentido amplo, a saber, qualquer tipo de comunicação verbal, oral ou escrita, exterior ou interior, manifestada ou não. O livro, por exemplo, é um ato de fala impresso. Segundo Bakhtin, “O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.”. Tudo está em constante comunicação. À idéia de diálogo agrega-se um outro elemento que não se refere apenas à fala em voz alta de duas pessoas, mas a um discurso interior, do qual se emanam as várias e inesgotáveis enunciações, que são determinadas pela situação de sua enunciação e pelo seu auditório. Conforme Bakhtin, “A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação.”. A toda essa questão está relacionada a formação de repertórios, que, no dizer de Bakhtin, são formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pela circunstância.

Dessa maneira, as formas estereotipadas no discurso da vida cotidiana respondem por um discurso social que as consolida, ou seja, possuem um auditório organizado que mantém a sua permanência, refletindo, assim, ideologicamente a composição social do grupo, evidência da afirmação de Bakhtin ao dizer que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” ou “todo signo é ideológico”. Por essa razão é que, mesmo em uma aparente simples anedota que se conta sobre o negro, o judeu, o nordestino, a mulher etc., os preconceitos que afloram nada mais são do que exercício constante dos elementos culturais desse grupo social. O enunciatário, no entanto, pode oferecer obstáculos à sua realização/manutenção provocando rupturas que vão infiltrando sensíveis mudanças iniciais, mas que podem ganhar corpo. Daí o entendimento de que todos são sujeitos da enunciação – enunciador e enunciatário – porque o caráter interativo nada mais é do que a possibilidade de transformação, seja pelo enunciador, seja pelo enunciatário, passando a refletir e refratar a realidade dada. É a idéia da palavra em movimento, o poder da palavra. Por meio dela, os sujeitos são postos em ação para reproduzir ou mudar o social.

[...] Por todas essas considerações, pode-se perceber por que o dialogismo é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões referentes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a importância desse conceito reside, inclusive, no fato de ratificar o conceito de comunicação como interação verbal e não verbal e não apenas como transmissão de informação. A contribuição à complexidade desse conceito também se verifica por implicar outros: interação verbal, intertextualidade e polifonia. Esses termos parecem designar um mesmo fenômeno com pequenas variações entre si. São estas especificidades que vão estabelecer as diferenças entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus diferenciados. O mais importante é perceber que todos eles, independentemente de suas particularidades, rompem com a arrogância e a onipotência do discurso monológico. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem.

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O objetivo da atividade que se segue é estudar, de forma prática, o papel central da palavra na formação da consciência individual e no estabelecimento de laços sociais.

PreparaçãoProcure observar mães interagindo com bebês de idades variadas até 12 meses. Não importa

onde ou como você vai fazer isso (entre seus familiares, na sua igreja, no seu círculo de amigos, em algum parque infantil de sua cidade etc.). O importante é que, sem interferir na relação do par, você possa observar dois pontos principais.

A mãe observada por você mostra o mundo para a criança? Ela, por exemplo, aponta para animais dizendo seu nome, mostra conhecidos que passam por eles, explica algum ruído estranho e assim por diante? Ou será que você encontrou uma mãe que está cuidando de seu bebê sem se preocupar em introduzi-lo na cultura contemporânea?

Em caso afirmativo, como a criança reage? Ela acompanha com os olhos o que a mãe lhe mostra? Sorri? Tenta balbuciar alguns ruídos que parecem ser uma tentativa de repetir o nome do objeto ou da pessoa apontada? Caso você tenha encontrado uma mãe que não coloca as palavras para os objetos que a criança percebe, o bebê parece se incomodar com isso?

DesenvolvimentoAnalise as situações observadas por você à luz da teoria estudada ao longo deste capítulo.

Posteriormente, escreva um texto argumentativo composto de três partes:

a descrição da relação entre mãe e bebê observada por você;

as partes do capítulo que a observação desta relação fizeram você lembrar; e

sua posição pessoal com relação à teoria de Vygotsky a partir do que você pode observar empiricamente.

Seria ideal que você e seus colegas circulassem estes trabalhos de modo que todos se beneficiassem da exposição de diferentes pontos de vista.

O seguinte diálogo teria ocorrido entre o célebre pintor Degas e o não menos célebre poeta Mallarmé:

Degas:

― Não sei por que não faço belos poemas. Tenho tantas belas idéias.

Mallarmé:

― Acontece que não se faz poemas com as idéias. Faz-se com as palavras.

Você concorda com a resposta dada por Mallarmé?

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LURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

Esta obra trata de diversos temas articulados entre si: a relação entre a linguagem e a consciência; a palavra e a estrutura semântica; o desenvolvimento das palavras; campos semânticos; a linguagem interior; a linguagem oral e a organização cerebral. Dentre essas tantas contribuições, destaca-se o conceito de comunicação verbal desdobrada, que, por sua vez, refere-se ao processo psíquico interno (para o autor, projeto de alocução) que precede um determinado ato de fala. Estudar o projeto de alocução é, portanto, uma tentativa de estudar o pensamento propriamente dito ou, melhor dizendo, a parte deste que é possível conhecer, uma vez que ele não se deixa apreender totalmente pela linguagem.

Ressalte-se que este é uma publicação de fundamental importância para os professores que trabalham com a expressão oral, leitura e escrita, uma vez que deixa claro que uma enunciação verbal não é um simples ato de materialização de uma idéia previamente formada, mas precedida por um complexo mecanismo interior, que tem por finalidade a expressão verbal.

FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: _____. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

LUKIANCHUKI, Cláudia. Dialogismo: a linguagem verbal como exercício do social. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/claudia2.html>. Acesso em: 10 set. 2005.

LURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

_____; YUDOVICH, Victor Iosifovich. Linguagem e desenvolvimento intelectual da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

Claudia Rosa Riolfi

ocê já parou para pensar que, em nossa cultura, não existe consenso sobre as possibilidades e limitações da educação na formação de uma criança?

De um lado, está um grande número de adultos descompromissados que justificam sua falta de habilidade para exercer uma ação formativa por meio de uma posição determinista. Ela pode ser expressa pelo ditado popular “Pau que nasce torto, morre torto.” Segundo sua lógica, já há no bebê, em estado latente, tudo aquilo que um homem virá a ser um dia, não existindo, conseqüentemente, qualquer possibilidade de sucesso para alguém que, em determinado momento de sua vida, tendo se dado conta, por exemplo, de um erro cometido na educação de um filho, deseja corrigi-lo.

Do outro lado, estão os corajosos que assumem o desafio de sustentar o ato educativo desde a mais tenra idade daqueles pelos quais se sentem responsáveis. Segundo sua lógica, embora seja verdadeiro que, desde o nascimento (e talvez até antes) seja possível detectar diferenças de comportamento, gostos, caráter etc. em nossos bebês, não é menos verdadeiro que essas tendências ― em certa medida, constitucionais ― possam ser refreadas ou encorajadas de acordo com as normas da cultura na qual a criança está sendo inserida. Ainda recorrendo ao campo dos ditados populares, sua posição pode ser descrita do seguinte modo: “É de pequenino que se torce o pepino.”

O primeiro grupo, portanto, acredita em uma espécie de petrificação do homem: ao longo de sua vida, cada um permanece do jeito que sempre foi e sempre será. Como uma espécie de múmia viva, ele vem e vai no mundo sem nunca ter deixado sobre ele qualquer tipo de marca. O segundo grupo, ao contrário, é partidário da possibilidade do movimento, da alteração qualitativa da situação de um sujeito. Muito comumente, reconhecem que a possibilidade de alterações não é infinita, uma vez que encontra limites no real do corpo e em todo tipo de contingência social (condições socioeconômicas muito precárias, ausência de adultos comprometidos com a criança, inserção em uma comunidade de criminalidade etc.).

V

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Vamos propor, agora, então, uma brincadeira que, ao mesmo tempo é uma pergunta séria. Se Vygotsky fosse vivo e estivesse fazendo fofoca sobre os filhos dos vizinhos aí pertinho da sua casa, em que grupo ele estaria? Você disse que estaria no grupo dos que acreditam na necessidade de “torcer o pepino”? Muito bem! Esta resposta indica que você está pronto para compreender o papel que a linguagem exerce no desenvolvimento intelectual de uma criança.

A linguagem torna o homem mais complexoAs teses que devem sua origem ao pensamento vygotskyano defendem

uma concepção de homem segundo a qual o adulto humano é um ser que nasce portando várias de suas futuras qualidades em estado latente. Entretanto, ele se afasta da visada que defende a existência de uma espécie de “programação de computador genética” responsável por fazê-lo amadurecer e tornar-se adulto por meio da passagem do tempo e da absorção das informações que um organismo poderia conseguir interagindo diretamente com o meio.

Ao contrário, como resultado de suas inúmeras pesquisas, o autor defendia a tese de que toda e qualquer aquisição de conhecimento por parte de um humano é sempre intermediada (explícita ou implicitamente) pelas pessoas que rodeiam a criança. Dentro desta visada, portanto, o adulto tem um papel absolutamente primordial no desenvolvimento intelectual de uma criança. Isto é: ninguém nasce “inteligente”, mas torna-se um ser capaz de construir e usar um complexo sistema de “processamento de dados” que corresponde aos complexos mentais superiores.

Neste ponto, é importante ressaltar que Vygotsky não imaginava que o pai e a mãe de um bebê deveriam se portar como uma espécie de professores antecipados na educação de seus filhos. Quando ele defendia a importância do papel dos adultos no desenvolvimento dos pequenos, não se tratava de uma posição de douto conferencista, mas simplesmente do fato de poder portar condignamente os significados sociais e históricos das coisas e palavras com as quais o bebê toma contato.

Mesmo correndo o risco de tratar a questão de modo um pouco superficial, vamos trazer aqui um exemplo muito simples. Tomemos o caso de uma criança assustada com o barulho de fogos de artifício. Aquela que vamos chamar de mãe 1, diz “Cala a boca, seu tonto, que besta!” Enquanto isso, aquela que vamos chamar de mãe 2 diz “Não se assuste. São fogos de artifício. As pessoas sempre usam para comemorar quando estão contentes.”

Analisando os dois enunciados fictícios aqui reproduzidos, veremos que a primeira mãe limita-se a insultar seu próprio filho e opta por mantê-lo na ignorância no que diz respeito às causas de seu medo. A segunda, por sua vez, realiza as seguintes operações por meio de sua fala: 1) acalma a criança; 2) nomeia o objeto que está produzindo o ruído; 3) esclarece a criança sobre os usos sociais do objeto; 4) usando a palavra sempre, previne a criança de que aquela situação tende a se repetir. Por

Como se porta o adulto que exerce a importante função

de introduzir os novatos na cultura

elaborada?

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último, de maneira mais indireta, testemunha de que, também ela, não tem medo de fogos de artifício, uma vez que pode falar tranqüilamente sobre o assunto.

Ou seja, a mãe 2 é capaz de portar os significados sociais e históricos das coisas e transmiti-los ao seu filho. Teorizando um pouco mais esse processo que acabamos de tratar de maneira intuitiva, vamos recorrer ao trabalho de Luria e Yudovich (1985). Após um extenso e rigoroso processo de pesquisa envolvendo crianças de variadas idades, esses seguidores de Vygotsky chegaram a uma conclusão que muito interessa a todos que se responsabilizam pela educação de crianças: a descoberta de que as mudanças qualitativas no uso na linguagem não se fecham em si, mas, ao contrário, introduzem diferenças na formação dos complexos processos mentais superiores do homem. Nas palavras dos autores:

As primeiríssimas palavras da mãe, quando mostra a seu filho objetos e os nomeia, atribuindo-lhes uma palavra determinada, têm uma importante influência, não avaliável, porém decisiva, na formação dos processos mentais da criança. A palavra, relacionada à percepção direta do objeto, isola seus traços essenciais. O fato de nomear o objeto percebido “copo”, acrescentando o seu papel funcional “para beber”, isola as propriedades essenciais do objeto e inibe as menos essenciais (como seu peso ou forma exterior). (LURIA; YUDOVICH, 1985, p. 12).

Concluindo: os autores afirmam que a palavra, ao transmitir a experiência de gerações tal como foi incorporada à linguagem, liga um complexo sistema de conexões no córtex cerebral da criança. Por ser portadora do saber acumulado na cultura e na história, a palavra “toma corpo”, inscreve-se num organismo e, ao fazê-lo, altera-o. De posse da palavra contextualizada, a criança ganha uma poderosíssima ferramenta que sofistica a percepção infantil, dotando-na de formas de análise e de síntese que a criança seria incapaz de desenvolver sem o auxílio de um adulto parecido com aquele que chamamos de mãe 2.

Dizendo de outro modo, as abordagens educativas que tiveram sua origem na teoria vygotskyana concebem a aprendizagem como um fenômeno que se realiza somente quando há oportunidade de interação de um sujeito com o outro. Essa posição é coerente com a premissa do psicólogo segundo a qual o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento geral de nossa espécie, ou seja, fruto de nossa organização social. Até o presente momento, entretanto, estivemos discorrendo sobre o papel do adulto no desenvolvimento intelectual infantil, mas nada falamos sobre o que ocorre do lado do bebê. É chegada a hora, portanto, de discorrer sobre o que ocorre com a criança a partir da disponibilização deste cabedal de informações.

O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo

O bebê humano pressuposto na teoria de Vygotsky não é um ser passivo. Ao contrário, ele só caminha na direção da complexificação de seus padrões

O que a criança faz com as informações que lhe são disponibilizadas pelos adultos?

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de pensamento caso se engaje em um processo de reelaboração daquilo que “aprendeu” para transformar as palavras que escutou em outras que sejam mais adequadas à sua “linguagem interna”.

Compreendendo que a faculdade da linguagem diferencia o homem dos demais animais inteligentes, o autor destaca que, para nós humanos, o uso de signos faz com que se crie um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Conseqüentemente, ele classifica os signos como estímulos de segunda ordem, cuja lógica, ao se impor para o bebê, substitui o processo simples de estímulo e resposta por um ato complexo, isto é, mediado pela linguagem (VYGOTSKY, 1988, p. 45).

Pode-se dizer, portanto, que o signo funciona como elo entre nós e o mundo. Ele cumpre a importante função de fazer com que os elementos que nossa percepção capta façam sentido para nós. Esse processo tem extrema importância para o processo do desenvolvimento humano, pois dificilmente, ao escutar uma palavra cujo significado nos escapa ou ao encontrar um objeto cujo uso desconhecemos, vamos tentar utilizar uma coisa ou outra, o que limita nosso campo de experiência. Isso ocorre porque o homem é um animal que precisa que as coisas “façam sentido” para que ele se autorize a incidir sobre elas.

Ressalte-se, neste ponto, portanto, que os signos têm a importante propriedade de exercer uma ação, não só sobre o ambiente externo mas também, em primeiro lugar, sobre o indivíduo, oferecendo-lhe não só um campo maior de objetos nos quais ele se autoriza a incidir como igualmente formas de operações psicológicas novas e superiores.

Por meio de experiências clínicas com crianças de várias idades, o psicólogo e seus seguidores perceberam que a conquista dos processos psicológicos superiores demora a ser construída no pequeno humano, dando-se da maneira como sistematizada no Quadro 1.

Quadro 1: A conquista dos processos psicológicos superiores

Idade pré-escolar Idade escolar Adulto

A criança ainda não é capaz de controlar previamente seu comportamento quando deseja realizar tarefas concretas, estando sujeita às contingências.

A criança já pode controlar seu comportamento com o auxílio de signos externos e, desse modo, é mais eficiente na realização de tarefas às quais se propõe.

O signo lingüístico age como um instrumento da atividade psicológica, organizando-a. Conseqüentemente, seu comportamento pode permanecer mediado, ou seja, planejado e refletido com antecedência.

Você já notou que nós temos medo de pegar

objetos cuja forma não “entendemos”?

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Idade pré-escolar Idade escolar Adulto

Exemplo: não verifica se pegou todos os bonecos que vai precisar para montar a encenação de uma guerra, tendo que voltar ao seu armário muitas vezes.

Exemplo: para não esquecer de pegar um livro na biblioteca, amarra uma fita em torno do braço.

Exemplo: antes de começar fazer um bolo, a dona-de-casa experiente verifica se dispõe, em seu armário, de todos os ingredientes de que precisa.

Dada esta sinopse, é necessário nos interrogar como uma fase dá lugar à outra. Para responder a essa interrogação, o autor parte da premissa de que a troca de palavras em meio social possibilita ao sujeito a apropriação de conhecimentos que circulam no lugar onde vive por meio de uma internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas. Nas suas palavras, “a internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana” (VYGOTSKY, 1988, p. 65).

Para ele, todo processo de aprendizagem se inicia por uma atividade externa. Na vida cotidiana, percebemos, por exemplo, que a criança não fica indiferente às atividades dos adultos. Quando vê os outros fazendo algo que ela não conhece, a criança não só costuma observar atentamente como interroga o praticante sobre diversos aspectos de seu interesse. A partir de sua curiosidade, portanto, num primeiro tempo se estabelece um processo que é interpessoal.

Num segundo momento, esse processo torna-se intrapessoal. A criança, por assim dizer, fala consigo como o adulto fez durante o primeiro momento. Observando-a mais detidamente, podemos escutar, inclusive, que ela censura: “Você não está fazendo isso direito”, dá recomendações para si mesma: “Faça isso com mais calma”, relembra-se do próximo passo a ser seguido: “Agora tem que fechar a perna do o...” Ela incorpora, portanto, a voz do outro que previamente lhe ensinou.

Vygostsky conclui desta constatação empírica que o processo de internalização consiste no resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento humano. Curiosamente, todas as funções no desenvolvimento do homem aparecem duas vezes: uma primeira no nível social e, posteriormente, no nível individual.

A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação

Prosseguindo o raciocínio sobre os processos de internalização que acabamos de mencionar, Vygotsky (1988) busca estabelecer dois níveis de desenvolvimento para compreender como se dão as relações entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizagem.

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Linguagem e Pensamento

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O que o conceito de zona de

desenvolvimento proximal nos ensina sobre ser professor?

Nível de desenvolvimento real: refere-se à capacidade que a criança apresenta para solucionar atividades ou funções sem o auxílio de outra pessoa. Caracteriza-se, portanto, pelo desenvolvimento já consolidado.

Nível de desenvolvimento potencial: refere-se àquelas ações que a criança tem dificuldade para realizar, necessitando da ajuda de um adulto ou de uma criança mais experiente que ela para ser bem-sucedida. Nível que denota desenvolvimento, uma vez que não somos capazes de fazer determinadas coisas sem auxílio.

Examinando os dois níveis que acabam de ser descritos, o leitor poderá concluir que entre um e outro existe uma zona a ser preenchida. Ela é chamada por Vygotsky de zona de desenvolvimento proximal e compreende, portanto, a distância entre o conhecimento real e o potencial, uma vez que comporta as funções psicológicas ainda não consolidadas, mas que já estão presentes na criança em estado embrionário. Ela caracteriza prospectivamente o desenvolvimento mental.

O mais importante para a reflexão sobre nossa prática pedagógica é, entretanto, entender que, nessa linha de raciocínio, o processo de desenvolvimento cognitivo depende da possibilidade de o sujeito ser sempre colocado em situações-problema que, a partir de sua zona de desenvolvimento proximal, provoquem a construção de conhecimentos e conceitos.

A possibilidade concreta de construção e consolidação de um conhecimento novo não está no eterno repetir daqueles que já foram consolidados, mas em sua desestabilização por novas informações que, ao serem processadas, irão gerar a mobilização de outros conhecimentos e de outros sujeitos.

O que o conceito de zona de desenvolvimento proximal nos ensina sobre o professor? Para estudar esse conceito e sua utilidade para a reflexão sobre a prática do professor, julgamos relevante retomar algumas das considerações desenvolvidas em estudo anterior (RIOLFI, 1999). Concluímos aquele texto defendendo a necessidade de apresentar aos alunos um conteúdo que, ao contrário da “papinha industrial que costuma ser o conteúdo dos nossos livros didáticos”, consistisse em “um osso duro de roer”.

Evidentemente, tratava-se de uma metáfora forjada para a compreensão da necessidade de apresentar os conteúdos sempre na forma de um enigma e não previamente mastigados pelo professor. Já naquela ocasião, afirmávamos que ninguém ensina a ninguém, cada um aprende por si próprio. Só que isto não quer dizer que alguém aprenda seja lá o que for sozinho. Ninguém aprende nada sozinho e para que se aprenda o professor tem um

papel absolutamente fundamental. Seu papel é o de transmitir um desejo bastante específico: o desejo de saber, o desejo de sustentar um trabalho que o leve a saber sobre algo que diz respeito ao sujeito que aprende, qualquer que seja a matéria curricular em jogo naquele momento.

Para argumentar a favor dessa tese, recorremos ao exemplo do desenho animado O rei leão, da Disney – grande sucesso de venda entre as crianças e

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os adultos desde o seu lançamento, em 1995. Acho que todo mundo se lembra da história: após uma infância feliz, vivida lado a lado com seu pai, um adulto cônscio de seu lugar na comunidade e exercendo com sucesso sua função de pai – que é basicamente a de transmitir ao jovem os valores da cultura, preparando-o, por sua vez, para encontrar o seu lugar na linhagem –, o jovem leão é forçado a se separar de sua família.

Exilado, junta-se a uma turma de outros jovens, mais interessados em “curtir a vida” do que em fazer valer sua saída da infância. Nessa turma, entrega-se aos prazeres de uma vida irresponsável, o avesso daquilo que seu pai lhe ensinara. Isso somado aos arrotos sonoros, à juba mal penteada, à maneira dançante de andar, às conversas disparatadas – em suma, a uma exibição de desrespeito pelos conteúdos construídos historicamente por sua comunidade de origem.

Efetivamente, o leão apaixona-se por sua ex-companheira de infância, desde sempre prometida como sua noiva, reencontrada por acidente no meio da selva, mas, já que não estava disposto a arcar com suas responsabilidades, ele não entabula qualquer relacionamento de compromisso com ela.

A saída desse período irresponsável se dá por uma ação decidida de um adulto, pela ação incisiva de alguém que encarna o papel do sábio, portador de um saber construído e transmitido por gerações: o velho macaco, que assume seu papel sem vacilação. Por uma ação decidida (uma pancada com um pedaço de pau para lhe por “algumas idéias na cabeça”), esta “explicação” sobre qual era o seu lugar social faz com que o leão se insira novamente na comunidade, forme família e cumpra seu papel de bom rei, há muito previsto na cadeia das gerações.

O que essa história nos ensina? Antes de tudo, a fábula do desenho animado nos mostra que é por meio da intervenção da geração precedente que a nova geração assume suas responsabilidades sociais. Mostra-nos que, no caso específico do professor, cabe a ele mostrar ao aluno que este vai à escola para aprender os valores acumulados durante séculos pela cultura. Cabe ao professor auxiliar o jovem a encontrar uma direção na vida, que, no mundo moderno, o da crise e o do desemprego, parece tão incerta. É pena quando os professores são levados a abrir mão também da sua função de adultos...

Em um texto muito curto, escrito em 1910 para criticar um diretor de escola que tentava eximir-se da responsabilidade pelo suicídio de alguns de seus alunos, Freud é preciso com relação a este ponto, afirmando que a escola

[...] deve lhes dar [a seus alunos] o desejo de viver e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior. Esta não é a ocasião oportuna para uma crítica às escolas secundárias em sua forma presente; mas talvez eu possa acentuar um simples ponto. A escola nunca deve esquecer que ela tem de lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis (FREUD, 1969, p. 243-244 , grifo nosso).

O que essa história nos ensina?

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Concluindo aqui nossa reflexão sobre o papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança, é necessário frisar que o educador que procura inspiração na teoria de Vygotsky para conduzir a sua prática encontra-se convocado a conduzir seu cotidiano educacional de modo a formar um aluno que interaja com seu meio, com seus colegas e com o próprio professor.

Faz também parte do papel do professor compreender que os erros devem ser vistos como sendo um indício do que a criança não consegue realizar sozinha ainda. Apostando em seu papel para o desenvolvimento intelectual da criança, o educador passa a encarar o erro como aquilo que revela o espaço no qual o professor deve oferecer auxílio. Não se trata, portanto, de julgar a criança, mas de fazer seu papel de educador, ou seja, transformar a falha em mais uma das conquistas de uma criança em formação. Vejamos o que Esteban afirma a esse respeito:

Nesta perspectiva, o processo ensino-aprendizagem é fortalecido e, ao mesmo tempo, redimensionado. A preocupação não se reduz apenas a alcançar a resposta certa e a aceitar os “erros” que porventura a precedam. Trata-se de priorizar a possibilidade de alunos e professores, num processo interativo, construírem novos conhecimentos que realimentem o processo. O coletivo é recuperado como espaço de construção e apropriação do conhecimento. (ESTEBAN, 1992, p. 83).

Finalmente, cumpre ainda dizer que aqueles que aderem à teoria sócio-histórico-cultural de Vygotsky assumem, portanto, um importante desafio: conhecer cada um dos seus alunos ao iniciarem suas atividades em sala, respeitando e compreendendo que o conhecimento adquirido no seu meio e as especificidades dos modos de pensar de seu grupo cultural interferem na aprendizagem e no desenvolvimento do estudante e são instrumentos importantíssimos para serem utilizados a seu favor.

Aula particular(NUNES, 1988, p. 51-60)

O canário na gaiola cantou; Maria olhou. A gaiola estava pendurada na janela, batia sol no canário, ele parou de cantar e começou a pular de um lado pra outro, será que ele queria sair? Mas a porta estava fechada, uma gaiola de nada, como é que prendiam ele assim apertado com tanto lugar pra voar? Escutou a voz de dona Eunice:

― Mas antes você me diz se esses números são divisíveis por três, por dez e por mil.

Antes? Antes por quê? O que é que ela tinha falado primeiro? Será que tinha explicado muita coisa?

Dona Eunice tirou um fiapo que estava preso na saia e botou ele dentro de um pratinho.

― É pra escrever, dona Eunice?

― É.

Maria fez força pra pensar. dona Eunice levantou a mão, sacudiu o braço, e tudo quanto é pulseira foi pro cotovelo, uma esbarrando na outra. Quando dona Eunice sacudia o braço daquele jeito é porque estava meio sem paciência, era melhor escrever logo uma coisa, mas o quê?

Uma coisa qualquer, depressa, correndo. Escreveu. Vai ver estava tudo errado. Dona Eunice foi dizendo:

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― Certo. Certo. Certo. Esse aqui tá errado!

Maria pegou o lápis.

― Não, não, não!

Que tanto não-não era aquele?

― Não risca, Maria! Eu já disse que não se risca caderno. Fica uma coisa feia, suja. E não tem nada pior do que a sujeira. Usa a borracha.

Maria pegou a borracha. Dona Eunice viu um fiapo no tapete e se levantou pra pegar. A borracha escapou da mão de Maria, rolou pro chão, caiu tão perto do focinho do cachorro que ele nem precisou se mexer pra começar a cheirar a borracha vendo se era coisa de comer. Maria olhou de rabo de olho e viu dona Eunice descobrindo outro fiapinho no tapete; aproveitou e pegou disfarçado a borracha de dona Eunice, que estava dentro de uma caixinha azul; começou a apagar com cuidado, pro papel nem enrugar nem rasgar. Dona Eunice sentou de novo.

― Isso. Agora escreve certo. ― Puxou tudo quanto é farelinho de borracha pra palma da mão, puxou o pratinho pra botar o farelo dentro, largou tudo de repente, prato, farelo, fiapo, a vontade de espirrar vinha vindo, vinha vindo, [...]

O espirro não veio e dona Eunice falou:

― E então, Maria?Maria olhou pra dona Eunice mas continuou pensando no cachorro: e se ele cismava de engolir

a borracha? Era uma borracha grandona, boa mesmo pra ficar entalada em garganta de cachorro. Imagina se ele ficava todo engasgado e...

― Acorda, Maria!

― Hmm?

― Você não fez errado? Não apagou? Então? Faz direito! Mas vamos de uma vez, você tá mole demais.

Maria começou a escrever. [...] O que é mesmo que ela tinha que escrever? Ah! Antes ela tinha feito errado, bom, se antes tava errado, o jeito era fazer ao contrário. Mas será que ele tinha engolido mesmo a borracha? Firmou o olho no caderno e acabou de escrever.

― Tá certo, dona Eunice?

Dona Eunice suspirou “até que enfim” e começou a explicar matéria nova. Maria ficou olhando pra ela. Só quando dona Eunice olhava pro livro é que Maria olhava pro chão. O cachorro não se mexia [...] vai ver engasgo de borracha não fazia barulho! E se o cachorro tinha se engasgado baixinho? E morrido bem baixinho? Dona Eunice falava, escrevia, a dormência do pé foi subindo, subindo, Maria já não sentia a perna direito, por que que a dona Eunice tinha virado o caderno pra ela?

― Você vai efetuar essas adições e subtrações de frações com denominadores iguais e desiguais.

Fração? Mas elas não estavam em número divisível?

― Mas, olha, Maria, eu quero que você use o MMC.

― MMC? (Ai, com a perna tava esquisita! Como ia ser bom sacudir ela bem.)

Livro 1.indb 83 26/08/2008 14:06:21

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― Menor múltiplo comum. Ou será que você já esqueceu?

― Não esqueci, não. (Mas de que jeito? Se sacudia a perna, batia no cachorro.)

― E o MDC?

― MDC? (e se a perna batia... e o cachorro, não mexia?)

― É.

― Que que tem? (Bom, se ele não mexia...)

― Você está lembrada do MDC?

― Tô, sim senhora. (...é porque tinha mesmo morrido baixinho.)

― Então, vamos ver: faça aí as operações.

Maria se debruçou no caderno. [...]

Maria começou a somar as frações. Resolvendo que só ia pensar no múltiplo e mais nada. [...]

A aula continuou.

Mas Maria não conseguia mais se lembrar o que ela tinha que fazer com o menor múltiplo. Desatou a morder o lápis. A unha de dona Eunice começou a puxar de novo a pelezinha do polegar. Maria olhou pro relógio em cima da cristaleira (era relógio-despertador, tocava na hora da aula acabar).

― Temos tempo, Maria, temos tempo. Endireita as costas. Atenção com a coluna. Não morde o lápis desse jeito, estraga ele todo. E olha só sua boca, o lábio tá preto! Tudo sujo de casca de lápis.

[...] Dona Eunice suspirou. O cachorro voltou para baixo da mesa e o canário cantou. Maria sentou na mesma posição que estava antes. A aula continuou.

― Você sabe o que é um segmento?

― Um o quê?

― Segmento.

― Não.

― Você sabe o que é uma semi-reta?

― Só reta.

― Alguma vez você já ouviu falar em paralelismo e perpendicularismo?

― Bom ... ― Lembrou-se do circo: às vezes eles falavam em botar os cabos de aço paralelos. O pensamento ficou no circo; só voltou quando a dona Eunice parou de falar pra pegar o lencinho de bolso. [...]

Maria sentou em câmara lenta; endireitou as costas em câmara lenta; encolheu as pernas em ― hmm! ― quanto tempo ia agüentar naquela posição? E foi só o cachorro deitar que a dona Eunice botou o pé em cima dele e falou:

― Agora vou explicar contorno, figura aberta e figura fechada. ― Olhou pra Maria; franziu a testa, mal podendo acreditar: ― Mas o que é isso?!

― O quê?...

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― Você tá com a boca toda preta outra vez!

Ai: ia começar tudo de novo?

Mas o despertador tocou bem comprido e a aula particular acabou.

Em primeiro lugar, convidamos você para ler um fragmento de uma bela canção composta por Gonzaguinha. Ao lê-lo, logo perceberá que seu conteúdo manifesto explicitamente consiste em uma espécie de aconselhamento sobre estratégias para que alguém possa se sair bem em um jogo de futebol. Vejamos.

Geraldinos e Arquibaldos (GONZAGA JR., 1975)

Olha cama-de-gatoOlha a garra deleÉ cama-de-gatoMelhor se cuidar

No campo do adversárioÉ bom jogar com muita calma

Procurando pela brechaPra poder ganhar

Acalma a bola, rola a bola, trata a bola,Limpa a bola, que é preciso faturar

E esse jogo tá um ossoÉ um angu que tem caroço

E é preciso desembolar

E se por baixo não tá dandoÉ melhor tentar por cima,

Oi, com a cabeça dá

Você me diz que este goleiroÉ titular da seleção

Só vou saber mas é quando eu chutar.

[...]

No campo do adversárioÉ bom jogar com muita calma

Procurando pela brechaPra poder ganhar

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A partir dessa leitura, propomos a escrita de um texto argumentativo, cuja tese central seja a seguinte:

Nós educadores podemos considerar o fragmento da canção “Geraldinos e Arquibaldos” como uma metáfora de um bom conselho para guiar nossa prática educacional. No jogo de nossa aula, é necessário descobrir maneiras inovadoras e criativas para fazer nosso gol.

Na medida do possível, utilize-se dos conteúdos estudados ao longo do capítulo para sustentar sua argumentação.

O diálogo abaixo está no belíssimo romance Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles. Trata-se da despedida de uma personagem que decidiu ofertar a si mesma a chance de uma vida diferente e da reação de alguém que a amava muito.

— Meu pai me ajudará no começo. Depois, hei de me arrumar, quero dar esta oportunidade a mim mesma. ― Apertou-lhe a mão. ― Uma vez você me citou um verso, era mais ou menos assim: “Nascemos todos os dias quando nasce o sol.” E depois?

― Começa hoje mesmo a vida que te resta.

Você acredita que a perspectiva de recomeço esboçada na conversa entre os dois jovens existe na vida real?

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

Neste livro, que traz numerosas sugestões práticas de atividades que podem ser reproduzidas ou adaptadas pelos professores das séries iniciais, Gianni Rodari propõe uma série de expedientes para que os educadores consigam manter um contato prazeroso e afetivo com seus alunos; para que, por meio de atividades muito ricas e divertidas, consigam trabalhar o desenvolvimento da linguagem, da lógica, da estética; e que, por meio do exercício pleno da sua fantasia, consigam o fortalecimento da imaginação e a construção da criatividade, compreendida não como um dom concedido a poucos, mas como sendo parte da essência do humano.

ESTEBAN, Maria Teresa. Repensando o fracasso escolar. Cadernos Cedes. O sucesso escolar: um desafio pedagógico. Campinas: Papirus, 1992, p. 75-86.

FREUD, Sigmund. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio. In: _____. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s.d.

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GONZAGA JR., Luiz. Geraldinos e arquibaldos. In: _____. Plano de vôo. Warner/Chapel: 1975, f. 12.

LURIA, Alexander Romanovich; YUDOVICH, Victor Iosifovich. Linguagem e desenvolvimento intelectual na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

NUNES, Lygia Bojunga. Aula particular. In: _____. A corda bamba. Rio de Janeiro: Agir, 1988, p. 51-60.

RIOLFI, Claudia Rosa. Escola e violência: uma dúzia de pontos para pronto socorro. Revista de Estudos de Educação, Sorocaba, ano 1, n. 2, nov. 1999, p. 31-48.

TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de pedra. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

_____. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

_____. VYGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

Claudia Rosa Riolfi

Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa? Será que essa “hora certa” chega ao mesmo tempo para todos? Ela chega como fruto de um tra-balho ou é conseqüência do desenvolvimento natural de uma criança?

Enfim, são muitas as perguntas que um professor se coloca quando o assunto em questão é a introdução, aprofundamento e progressão de conteúdos. Essas interrogações costumam ser desconfortáveis, já que, na maioria das vezes, geram insegurança quanto ao melhor ritmo para o desenvolvimento de seu trabalho.

Para os professores que se inspiram na perspectiva vygotskyana para organizar o seu modo de trabalhar, talvez a angústia para tentar respondê-las seja um pouco menor, uma vez que, nessa orientação, a educação não fica à espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas, ao contrário, entende que sua principal função é dar origem ao desenvolvimento. Não se trata, portanto, de esperar a criança se desenvolver primeiro para fazê-la aprender depois, mas, ao contrário, de fazê-la aprender para que possa se desenvolver.

Para você, essa perspectiva parece muito pouco familiar? Provavelmente, sim, uma vez que essas idéias demoraram um bom tempo para chegar ao nosso país. Lembremos que, embora Vygotsky tenha sido autor de vasta obra ― iniciada quando ele contava apenas 21 anos ―, ela permaneceu censurada na Rússia (seu país de origem) durante muitos anos. Por esse motivo, ela tornou-se pública em diversos países apenas a partir do final dos anos 1950 e início da década de 1960, quando algumas de suas obras chegaram às universidades americanas e européias e, assim sendo, foram traduzidas para várias línguas.

Quem foi Vygostsky?(http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=431, 2005)

Vygotsky formou-se em literatura e direito pela Universidade de Moscou. Mais tarde, iniciou estudos de história e filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii e de Medicina de Kharkov e Moscou. Não concluiu estas

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodol-ogias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Facul dade de Educação da USP.

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últimas formações, mas nelas encontrou os subsídios que precisava para desenvolver os estudos na área de psicologia. A partir de 1917, iniciou uma carreira extremamente rica em produções. Ainda na cidade de Gomel, onde esteve até 1923, fundou uma editora, criou uma revista literária, estruturou um laboratório de psicologia, dirigiu a seção de teatro do departamento de educação e ainda proferiu várias palestras cujas temáticas centrais eram a ciência, a literatura e a psicologia. Morreu de tuberculose em 1934, mas sua obra não terminou junto com ele. Teve continuidade a partir do trabalho de dois pesquisadores que colaboravam e participavam de seus projetos: Alexei Leontiev e Alexander Luria.

Lembremos ainda que, em suas pesquisas para identificar as mudanças qualitativas dos fundamentos do pensamento, encontram-se as influências marxistas do materialismo histórico. Essas teses levaram-no a conceber uma teoria que explica o desenvolvimento do comportamento humano em sua relação com o contexto social e, por este motivo, dar muita importância aos lugares em que o aprendizado se faz de modo sistemático e socialmente organizado, como veremos a seguir.

O papel da escola no desenvolvimento intelectual

Desde o início do capítulo, frisamos a importância de ensinar uma criança para que ela possa se desenvolver na plena potencialidade como os demais membros de sua espécie.

Isso significa que, segundo essa perspectiva, a função da escola é a de soterrar as crianças com o maior número de conteúdos possíveis? De forma alguma! Aprender, nessa visada, não é sinônimo de tomar contato com uma lista de pontos registrada no currículo escolar, mas forçar uma passagem: transformar

os conceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência social) em conceitos científicos (aqueles que são formalizados de acordo com as regras da cultura elaborada). Vejamos na citação a seguir o argumento utilizado pelos autores para defender a necessidade da intervenção do adulto no desenvolvimento intelectual da criança:

a criança não consegue pensar de maneira suficientemente lógica e consistente para perceber que conceitos associados ao mundo exterior podem ser colocados em vários níveis e que um objeto pode pertencer ao mesmo tempo a uma classe mais estreita e outra mais ampla [...] pode-se dizer que o pensamento da criança é sempre concreto e absoluto (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149).

As crianças, quando são espontâneas, divertem-nos muito, não é verdade? Você, com certeza, já ouviu a seguinte anedota circular entre as mães que são suas conhecidas, nas mais diversas variações.

Você já ouviu falar que “uma andorinha não

faz verão”?

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Criança:

― Me compra aquela boneca?

Mãe:

― Não posso, não tenho dinheiro.

Criança:

― Então compra com cheque, ué!

Por que elas fazem isso? De acordo com a perspectiva aqui exposta, elas o fazem porque têm indiferença pelas contradições e, por este motivo, não conseguem, por exemplo, alcançar soluções para problemas lógicos cujas soluções não podem ser inferidas por meio da observação direta do mundo real. Para tal fim, elas precisam ser inseridas na lógica da cultura.

Neste ponto, uma importante constatação se apresenta: a necessidade da organização coletiva do grupo da escola, capaz de, às vezes, pelo simples testemunho do modo como se organiza, dar a ver para um pequeno ser humano que certas soluções não são passíveis de serem alcançadas pela observação direta, necessitando de um cálculo. Para o professor, trabalhar no sentido de organizar o grupo é mais importante que imitar um super-herói, um cavaleiro da luz que trabalha sozinho e anônimo para o bem comum, tendo pouco “poder de fogo”.

Para dar um exemplo sobre o tipo de organização ao qual nos referimos, vamos trazer aqui o trabalho de Pacheco (2004), famoso mundialmente pelos bons resultados que vem conseguindo com “crianças difíceis” na Escola da Ponte, em Portugal. Interrogado sobre as razões de seu sucesso, Pacheco afirma que o segredo de seu trabalho é o estabelecimento de uma cultura de escola, composta por normas, todas levadas muito a sério, estabelecidas há cerca de 30 anos. Deixemos Pacheco comentar a primeira de suas regras:

A primeira delas é: “Quem não é solidário não permanece aqui. ” Esse valor de solidariedade é um valor que é avaliado permanentemente. Ninguém se disfarça de solidário. Não se pode disfarçar uma coisa dessas para jovens de 10, 11, 12, 14, 16 anos ou mais. Eles percebem a mentira nos gestos das pessoas. Se o professor não é solidário com o outro professor, também não vale a pena pensar que eles vão agir solidariamente. (PACHECO, 2004, p. 199)

Lendo o trabalho de Pacheco, podemos ganhar em nossa compreensão sobre a tese, defendida por Vygotsky e Luria (1996), pela qual os fatores mais importantes para o desenvolvimento psicológico são “[...] o desenvolvimento da tecnologia e, em correspondência a isso, o desenvolvimento de uma estrutura social” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.148). No nosso caso específico, podemos salientar a importância de uma cultura de escola que, como um todo, desafie o aluno e lhe forneça, não só um ambiente seguro para suas explorações intelectuais como, também, a presença inquestionável do saber acumulado pela geração anterior.

Tendo aqui concluído nossa exploração sobre o que Vygotsky e Luria chamam de desenvolvimento de uma estrutura social, é hora de nos interrogarmos sobre o que os autores chamam de tecnologia. Para tal fim, daremos privilégio à formulação que foi feita em suas próprias palavras:

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A tecnologia avançada resulta na separação entre as leis da natureza e as leis do pensamento [...] paralelamente a um nível superior de controle sobre a natureza, a vida social do homem e sua atividade de trabalho começam a exigir requisitos ainda mais elevados para o controle do próprio comportamento. Desenvolve-se a linguagem, o cálculo, a escrita e outros recursos técnicos da cultura. Com a ajuda desses meios, o comportamento do homem ascende a um nível superior. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149, grifo nosso).

Se você entendeu a citação que acaba de ler, entendeu também um assunto que nos interessa muito de perto: a importância do ensino deliberado e sistemático das funções sociais da escrita, seus modos de apropriação pela comunidade do aluno e as maneiras como ela circula no grupo escolar do qual você e o seu aluno fazem parte.

Que se frise, portanto, neste momento: não se pode esperar o aluno escrever por si só – é preciso instigá-lo e desafiá-lo para que tenha vontade de fazê-lo. Se você nos permite uma expressão muito popular que bem qualifica este ponto da reflexão, devo dizer que “é aí que a porca torce o rabo”!

Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano

Neste momento de nossa reflexão, aposto que você já deve estar se perguntando sobre quais aspectos são os mais importantes se quisermos construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano. Para responder a essa pergunta, é necessário dizer que, em primeiro lugar, devemos levar em conta que nossas salas de aula estão longe de serem homogêneas com relação à sua procedência cultural.

Esta heterogeneidade de nosso público-alvo, por sua vez, leva-nos à necessidade de pensar sobre as escolas que adotam o chamado multiculturalismo crítico. Vejamos, no que se segue, o que Cortesão (2004) tem a nos acrescentar sobre os efeitos positivos e potencialmente negativos daquilo que chama de práticas educativas e interculturais.

Nós devemos valorizar as características socioculturais, mas se não estivermos atentos e não analisarmos as coisas profundas, nós podemos estar somente folclorizando as diferenças, não vendo as armadilhas postas ali.

Nós podemos contribuir para maior afirmação social de grupos minoritários, mas ao mesmo tempo podemos, quando eles se assumem com uma identidade e têm consciência dela, acentuar o exotismo das diferenças, tornando a questão bizarra.

Podemos ainda contribuir para a melhoria da auto-imagem pessoal e grupal, entretanto, essa melhoria pode ser acompanhada da inculcação da ideologia da incompetência, é a questão do “que coitadinhos”.

Podemos também contribuir com algo que para mim é muito claro, que é o caráter lúdico, a alegria do processo da aprendizagem. É preciso que as escolas deixem de ser chatas, de ser soturnas, que haja alegria na aprendizagem, mas é preciso que isso não seja pago com o preço de as pessoas aprenderem menos. Pode-se aprender bem e contente, bem e feliz, isso acontece quando as pessoas percebem porque estão aprendendo, qual o significado e para que serve o aprendizado.

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Finalmente, podemos produzir um processo de aquisição de poder, de consciência dos direitos de cidadania, mas pode ser uma situação em que, com a folclorização das diferenças e a acentuação do exotismo, haja o isolamento, o enfraquecimento e até mesmo a guetização dos grupos, fazendo-os se isolarem da sociedade. Esse ponto eu tenho trabalhado com os ciganos, o isolamento desse grupo diante da sociedade moderna. (CORTESÃO, 2004, p. 262-263).

A professora Cortesão, que mora e leciona em Portugal, mostra-nos, na lista de oposições encontradas acima, que, embora o discurso sobre o “respeito às diferenças” esteja muito disseminado, muitas vezes, por não ser suficientemente digerido, ele acaba sendo uma armadilha para seus defensores, que, sem perceber, acabam criando na escola um ambiente de segregação para as crianças cujos padrões de pensamento não são os da maioria. Para transpor essa discussão para o contexto brasileiro, vamos recorrer a um exemplo e a algumas das considerações analíticas desenvolvidas por Barzotto (2005). Como ponto de partida, em uma palestra sobre os discursos que circulam no interior da escola brasileira, o autor utilizou-se de uma gravação em áudio feita por uma de suas alunas, há alguns anos, numa primeira visita a uma escola. Trata-se de um diálogo do qual participam um aluno de aproximadamente oito anos e um supervisor escolar.

Tomemos contato com esse diálogo.

Aluno:

― A tia Rose taí?

Supervisor:

― Que cê qué c’a Rose? Ahn?

Aluno:

― Falá um negócio pr’ela.

Supervisor:

― Que negócio cê qué falá c’a Rose?

Aluno:

― Um negócio.

Supervisor:

― Ué, negócio é negócio, meu fio. Vem cá. Vem cá. Que conteceu?

Aluno:

― (incompreensível) e eu fui lá vê na sala e lá tem outro professor.

Supervisor:

― Quem é a outra professora? Que sala que cê foi?

Aluno:

― Ahn?

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Supervisor:

― Qual sala que cê foi. Qual a professora sua?

Aluno:

― Estudo c’a Marta.

Supervisor:

― E tá, qual a professora que tá lá agora?

Aluno acena com a cabeça indicando que não sabe.

Supervisor:

― Uma Leda, uma de óculos?

Aluno:

― É.

Supervisor:

― É naquela sala qué pu cê entrá mesmo, é lá mesmo qué pra entrá...

Na análise desse excerto, Barzotto mostrou que um primeiro nível de abordagem ao diálogo que foi transcrito seria o de focalizar o seu conteúdo, atendo, portanto, apenas aos fatos narrados. Nesse caso, a pergunta “De que fala o excerto acima?” nos levaria a uma resposta do seguinte tipo: trata-se do relato envolvendo um aluno, que foi até a sala em que estuda e encontrou outra professora. Sem entender direito o que estava acontecendo, procurou por uma pessoa a quem chamava de “tia Rose” e não a encontrou. Então, um supervisor da escola, um tanto impaciente, esclareceu que era para o aluno entrar na sala assim mesmo.

Afirmando que esse nível de exploração é bastante superficial e não nos leva a compreender de fato o impasse que está em jogo na relação desse adulto com a criança, Barzotto também aponta para a possibilidade de abordar o excerto a partir da pergunta “as falas dos personagens estão em conformidade com as regras da gramática normativa da língua portuguesa?”. No entanto, para ele, essa pergunta teria utilidade apenas na medida em que a variedade de língua utilizada pelos dois falantes servisse de indício para se especular sobre a classe social a que podem pertencer os envolvidos no diálogo, dado que, em si, não nos ajuda a aprofundar a reflexão sobre o cotidiano escolar.

Por esse motivo, o autor nos propõe um terceiro nível de exploração: refletir sobre a escolha dos enunciados realizada por cada um dos falantes. Defende que a pergunta proposta por Foucault (1987) como fundamental para a análise do discurso ― “Por que apareceu o enunciado X e não outro possível?” ― tornaria a análise mais produtiva. Para explorar esta vertente da análise, o autor salienta que é interessante notar, por exemplo, que na primeira vez que o supervisor fala, ao invés de responder à pergunta que lhe foi feita, ele interpela o aluno com uma outra pergunta, quebrando, ao mesmo tempo, as regras do diálogo e da etiqueta social.

Perseguindo a escolha de enunciados feita pelo supervisor, é possível formular uma hipótese segundo a qual ela parece estar menos interessada em auxiliar o aluno

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e a lhe fornecer um espaço para pensar do que começar uma luta pelo poder. De fato, segundo a análise de Barzotto, a pergunta feita pelo supervisor demonstra que o poder de quem está num determinado lugar de prestígio lhe confere o direito de fazer perguntas que aquele que está em posição desprestigiada não tem. Dentro dessa lógica, a pergunta da criança ameaça o poder do adulto, que, de pronto, recupera-o.

Na continuidade de sua análise, mostra que a criança não ficou indiferente à posição do supervisor: ao contrário, ela entendeu muito bem que uma disputa estava instalada. Assim sendo, a criança também se deu o direito de não responder, embora tenha feito semblante de quem dá uma resposta. Ela é evasiva, esconde o jogo, dizendo simplesmente “Falá um negócio pr’ela”, mantendo sua posição de esquiva quando nova pergunta é feita de novo, ela diz apenas “Um negócio.”

Ou seja, Barzotto nos mostra que a criança disputa o poder com o supervisor. Já que este tomou de volta o direito de perguntar (e o poder que tal ato confere), a criança lhe nega o direito de obter resposta e resiste o quanto pode. É como se ela fizesse questão de deixar claro o seguinte: “não é com você que eu quero falar, não é a você que eu confio minhas dificuldades”.

Tendo acompanhado a exposição feita por Barzotto, agora pensemos juntos: o que é possível ensinar para uma criança que, em conseqüência de nossos atos, está nos dizendo “eu não quero falar com você”? Muito pouco, sem dúvida!

Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos

Infere-se do exemplo explorado anteriormente, bem como de todo trabalho de Vygotsky, que não são tanto os conteúdos em si que contam, mas, em primeiro lugar, o que faz diferença é a instalação de uma relação de confiança na qual a criança, a partir do que pôde concluir por suas investigações solitárias, tenha vontade de fazer as perguntas corretas aos adultos responsáveis por sua formação.

Na concepção vygotskyana, portanto, o sujeito não é apenas ativo, mas interativo, uma vez que se constitui a partir das relações interpessoais. Por esse motivo, é importante compreender que, nesta visada, o aluno é visto como alguém que aprende junto com o seu grupo social. De fato, ele está, antes de tudo, amarrado por tudo o que o seu grupo social produz: os valores, as práticas sociais, os modos de circulação do conhecimento e assim por diante.

Por esse motivo, julgamos imprescindível que a escola recupere a identidade de ser o lugar onde a intervenção pedagógica intencional visa a desencadear o processo de aprendizagem. Assim, o professor não deve se omitir. Ao contrário, como mediador entre a criança e a cultura elaborada, ele tem o papel explícito de interferir no processo da criança.

Faz parte do trabalho do professor, portanto, organizar sua prática pedagógica levando em conta que a aula não é um ambiente informal no qual a criança aprende por imersão em um ambiente cultural, mas sim um espaço em que, na troca com outros sujeitos, os conhecimentos, seus papéis e suas funções sociais sejam internalizados.

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Para concluir, gostaríamos agora de retomar a questão com a qual esta nossa discussão foi aberta “Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa e tentar substituí-la por outra que nos parece bastante mais produtiva?”, “Será que nossa relação com nossos alunos e a relação deles entre si está organizada de modo que seja possível aprender alguma coisa?”. Em caso afirmativo, a boa hora chega, com certeza!

A favor dos videogames(KANITZ, 2005, p. 22)

O cérebro humano é um órgão que absorve quase 25% da glicose que consumimos e 20% do oxigênio que respiramos. Carregar neurônios ou sinapses que interligam os neurônios em demasia é uma desvantagem evolutiva e não uma vantagem, como se costuma afirmar.

Todos nós nascemos com muito mais sinapses que precisamos. Aqueles que crescem em ambientes seguros e tranqüilos vão perdendo essas sinapses, que acabam não se conectando entre si, fenômeno chamado de regressão sináptica.

Portanto, toda criança nasce com inteligência, mas aquelas que não a usam vão perdendo-a com o tempo. Por isso, o menino de rua é mais esperto do que filho de classe média que fica tranqüilamente assistindo às aulas de um professor. Estimular o cérebro da criança desde cedo é uma das tarefas mais importantes de toda mãe e todo pai modernos.

Sempre fui a favor de videogames, considerados uma praga pela maioria dos educadores e pedagogos. Só que bons videogames impedem a regressão sináptica, porque enganam o cérebro fazendo-o achar que seus filhos nasceram num ambiente hostil e perigoso, sinal de que vão precisar de todas as sinapses disponíveis. O truque é encontrar bons jogos, mas não é tarefa impossível.

O primeiro videogame que comprei para meus filhos foi o famoso SimCity, um jogo em que você é o prefeito de uma pequena vila e, dependendo, de suas decisões, ela pode se tornar uma megalópole ou não. Se você for um péssimo prefeito, a população se mudará para a cidade vizinha, e fim de jogo. Em vez de eleger prefeitos, seria muito melhor se empossássemos o vencedor do campeonato de SimCity em cada cidade.

Um dia, eu estava brincando de prefeito quando meus filhos de 11 e 13 anos de idade, analisando meu planejamento urbano inicial, balançaram a cabeça em desaprovação: “Tsk, tsk, tks. Pai, daqui a 50 anos você vai dar com os burros n’água.” Eu, literalmente, caí da cadeira. Quantos de nós, aos 11 anos, tínhamos consciência de que os feitos na época poderiam ter conseqüências nefastas 50 anos depois? Quantos de nós pensaríamos em prever um futuro dali a 50 anos?

A lição que me deram com o famoso videogame Mario Brothers foi ainda melhor. Não tendo a paciência de meus filhos, eu vivia cortando caminho pelos vários atalhos existentes no jogo, quando novamente me deram o seguinte conselho: “Não se podem queimar etapas, senão você não adquire a experiência e a competência necessárias para as situações difíceis que ainda estão por vir.” A frase não foi exatamente essa, mas foi o suficiente para me deixar com os cabelos em pé. Dois garotos estavam me ensinando que cada etapa da sua vida tem seu tempo e aprendizado, e nela não se pode sair apressado.

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No jogo Médico, as crianças aprendem a fazer um diagnóstico diferencial, a pior das alternativas sendo uma apendicite. Nesses casos, elas têm de operar “virtualmente” o paciente seguindo condutas médicas corretas. Um dos procedimentos é a assepsia da pele, e ai de quem não escovar o peito do paciente, com o mouse nesse caso, por três minutos, o que é uma eternidade num videogame e para uma criança. Quem gasta menos do que isso é sumariamente expulso do hospital por erro médico. Que matéria ou professor ensinam esse tipo de autodisciplina?

Em A-Train, o jogador é um administrador de empresa ferroviária. A criança tem de investir enormes somas colocando trilhos e locomotivas sem contar com muitos passageiros no início das operações. Aprende-se logo cedo que uma empresa começa com prejuízo social e tem de ter recursos para suportar os vários anos deficitários.

Aos 12 anos, meus filhos já tinham noção de que os primeiros anos de um negócio são os mais difíceis, e controlar o capital de giro é essencial. Avaliar riscos e administrar o capital de giro, nem grandes empresários sabem fazer isso até hoje.

Como em tudo na vida, é necessário ter moderação nas horas devotadas ao videogame. Mas ele é uma ótima forma de estimular o cérebro da criança e impedir sua regressão sináptica, além de ensinar planejamento, paciência, disciplina e raciocínio, algo que nem sempre se aprende numa sala de aula.

Neste capítulo, você teve a oportunidade de ler, na qualidade de texto complementar, um ensaio escrito por Stephen Kanitz, que, segundo a revista Veja, é administrador de empresas e, portanto, leigo no campo da educação.

Como parece ser partidário da lógica segundo a qual “de médico, de educador e de louco, todo mundo tem um pouco”, Kanitz inclui em seu interessante trabalho a favor dos videogames uma série de críticas mais ou menos veladas ao trabalho dos profissionais da educação, dentre as quais destacamos as seguintes:

O menino de rua é mais esperto do que filho de classe média que fica tranqüilamente assistindo às aulas de um professor. Estimular o cérebro da criança desde cedo é uma das tarefas mais importantes de toda mãe e todo pai modernos.

Que matéria ou professor ensina esse tipo de autodisciplina?

Ele (o videogame) é uma ótima forma de estimular o cérebro da criança e impedir sua regressão sináptica, além de ensinar planejamento, paciência, disciplina e raciocínio, algo que nem sempre se aprende numa sala de aula.

Após considerar esses excertos à luz da releitura do texto todo, responda às questões.

1. Que tipo de educação o articulista está criticando?

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2. Na avaliação de seu grupo, o tipo de educação ao qual ele se refere é o predominante em sua comunidade escolar? Dê exemplos de procedimentos pedagógicos análogos aos criticados pelo articulista e de outros que não têm qualquer relação.

3. Em caso afirmativo, que medidas poderiam tornar a sala de aula um espaço que evite a regressão sináptica?

4. Em caso negativo, o que sua escola já faz para tornar o ato de aprender tão desafiador quanto o de participar ativamente de um videogame? Argumente a favor dos exemplos de ações elencados por você.

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CERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: _____. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 221-246.

Partindo de uma perspectiva teórica conhecida como antropologia cultural, Certeau defende a tese de que o termo escritura é o nome que foi dado a uma triunfal conquista da economia que se consolidou nos séculos XVII e XVIII. O autor nos explica que, sob o domínio de uma sociedade na qual a escritura serve como princípio organizacional, o ato de escrever não pode mais ser compreendido como uma ação mecânica. Ao contrário disso, segundo o autor, construir um texto sobre a página em branco pode ter um poder sobre a exterioridade. Ou seja, este interessante texto de Certeau nos mostra como, a partir de um certo período histórico, a escrita não mais se limita a ser um registro do mundo, mas pode mudar a realidade.

BARZOTTO, Valdir Heitor. Análise do discurso, formação de professores e ensino: que química é essa? Conferência proferida no Instituto de Química de Universidade de São Paulo, 2005.

CORTESÃO, Luisa. O arco-íris e o fio da navalha. In: GERALDI, Corinta Maria Grisolia; RIOLFI, Claudia Rosa; GARCIA, Maria de Fátima (Orgs.). Escola viva: elementos para a construção de uma educação de qualidade social. Campinas: Mercado de Letras, 2004, p. 243-285.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Forense, 1987.

KANITZ, Stephen. A favor dos videogames. Veja, São Paulo, ano 38, n.41, p. 22, 12 out. 2005.

PACHECO, José. Organizar a escola para a diversidade. In: GERALDI, Corinta Maria Grisolia; RIOLFI, Claudia Rosa; GARCIA, Maria de Fátima (Orgs.). Escola Viva: elementos para a construção de uma educação de qualidade social. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 195-242.

QUEM foi Vygostsky? Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=431>. Acesso em: 4 out. 2005.

VYGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich. Estudos sobre a historia do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

Claudia Rosa Riolfi

V ocê já parou para se perguntar por que o ato de escrever é uma dificuldade bastante acentuada para tanta gente? Se não o fez ainda, com certeza pelo menos assistiu a algum filme ou novela que representa a seguinte cena

clássica: a pilha de papéis amassados na cesta de lixo ao lado do escritor vai cres-cendo assustadoramente e o pobre infeliz vai ficando cada vez mais entristecido,

pois, apesar de tanto trabalho, ele nada produz...

Pensando sobre essa inibição frente ao ato de escrever afirmamos, em trabalho anterior (RIOLFI, 2005b), que o trabalho com a escrita é, ao mesmo tempo, fascinante e dilacerante. Ressaltamos que a escrita pode ter a magia de perpetuar uma idéia, um pensamento, sentimentos e emoções à condição de que seu autor se autorize a sustentar um exercício constante de reflexão, paciência e perseverança. Reflexão sobre a questão mobilizada antes de escrever; paciência para a busca das palavras mais adequadas; perseverança para reescrever quantas vezes forem necessárias para alcançar a palavra justa. Naquela ocasião, dizíamos ainda que escrever é um exercício constante de transformação. Se aquele que escreve está disposto a pagar o preço de se perder para se reencontrar em seu próprio texto, a escrita pode transformar tudo, inclusive o ser humano.

Será que sempre foi assim?

A invenção da escritaSabemos que a potência transformadora da escrita demorou a se instalar na

humanidade. A escrita surgiu em lugares diferentes, com funções diferentes. Para alguns povos, tinha função predominantemente religiosa. Para outros, de acordo com Manguel (1998), a escrita foi desenvolvida por uma necessidade econômica: a de registrar quantidades de terras e de animais, bem como a de delimitar regiões geográficas. Para tais fins pragmáticos, os sumérios desenvolveram uma tecnologia apropriada para suas necessidades específicas – a escrita cuneiforme. Manguel mostra que, ao se apropriar dessa escrita rudimentar para fins diferentes daqueles originariamente imaginados, nossos antepassados remotos foram, paulatinamente, construindo um instrumento ainda mais potente e que causou uma grande revolução da humanidade: o alfabeto fonético.

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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Por possibilitar infinitas combinações, podendo ser utilizado para atingir um grande número de pessoas com uma única emissão (como é o caso, por

exemplo, dos outdoors) e oferecendo uma fixidez maior que a da fala, essa tecnologia foi, pouco a pouco, tornando-se central na organização e na manutenção de nossa cultura. Registrando normas e procedimentos, compartilhando idéias e checando a aprendizagem, a escrita é o instrumento que pode proporcionar uma coerência de princípios filosóficos e operacionais nas várias instâncias, pois, para além da fala, que pode ser negada ou omitida, a escrita tem força de lei.

Com o advento das chamadas novas tecnologias, que agregaram valor ao alfabeto, oferecendo suportes variados para

sua realização, a escrita é utilizada largamente e, em certa medida, tem sofrido mutações muito rápidas. Essas transformações têm sido, inclusive, alvo da brincadeira de diversos humoristas. Dentre estas produções, destacamos, a seguir, o trabalho de Ramil (2003).

Tô precisando conversar um pouco mais com minha filha, senão daqui a pouco vamos precisar de tradução simultânea.

Pra piorar ainda mais, inventaram o ICQ, essa praga da internet onde elas ficam horas e horas escrevendo abobrinhas umas pras outras, em código secreto. Tipo assim:

“ kct! vc tmb nunk tah trank, kra. Eh d+, sl. T+ Bjoks. Jubys.”

Em português:

“ Cacete! Você também nunca está tranqüila, cara. É demais, sei lá. Até mais, beijocas. Jubys.”

Jubys, que deve ser pronunciado diúbis, é isso mesmo que você está imaginando, a assinatura.

Será que estamos caminhando para uma nova mutação das funções sociais da escrita ou o fenômeno que acabamos de trazer como exemplo incide apenas sobre a escrita que se faz em meio eletrônico? Parece muito cedo para responder, mas com certeza não é prematura a tentativa de reflexão sobre esse assunto.

A mutação das funções sociais da escrita1

Nos mais variados lugares de nosso país aonde vou para ministrar cursos de formação de professores, uma mesma pergunta é repetida por aqueles que se dedicam ao ensino da escrita: “É ainda possível transmitir o amor pela escrita às novas gerações?” De uns tempos para cá, mais do que nunca, penso como responder a isso de forma sincera o dia inteiro. Ao fazê-lo, uma vozinha interna me diz: “Claudia, não esquece que você foi formada em outro tempo, é fruto de outras regras e, portanto, tem que explicar direito seu amor pela escrita.” Para contextualizar meu confesso amor pela escrita, devo dizer que nasci em 1965,

Escrita cuneiforme.

1Nesta parte do texto, em decorrência da natureza

bastante singular da argu-mentação que fiz no texto que lhe serve de base (RIOLFI, 2004), aqui apresentado de maneira adaptada, peço li-cença ao leitor para usar a primeira pessoa do singular.

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O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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mas como sou filha de pai velho, cresci em cidade do interior, e fui aluna de professores que, na data de minha graduação, tinham bem mais do que 50 anos, a tradição cultural que em mim deixou sua marca indelével é, sem dúvida, aquela anterior aos anos 1950.

Com certeza há, entre os meus leitores, pessoas que compartilham dessa herança cultural, mas isto não é verdade para um grande número de pessoas que estão na ativa como professores hoje, e ainda menos verdade para os alunos que, atualmente, povoam as carteiras das escolas básicas. Hoje em dia, o laço cultural que organiza nossas trocas sociais é outro. Cada um vale mais ou por sua (boa) aparência ou pelo que tem do que pelo que é. Ou seja: nos últimos 40 anos, o discurso capitalista se impôs como uma realidade indiscutível, sendo poucos os redutos nos quais não é ele quem dá as cartas e dita as regras do jogo. Seu centro é o objeto, ou seja, aquilo que pode ser comprado por via do dinheiro, usufruído para um prazer ou resultado imediato e, de preferência, rapidamente trocado por um objeto mais novo, mais moderno. Corremos como baratas tontas atrás das novidades, alimentando um mercado que demanda sempre mais dinheiro, enriquece sempre alguém.

A maioria de nossos alunos funciona nessa lógica. Confrontados com os conteúdos escolares, os alunos querem saber que tipo de prazer imediato os conteúdos podem lhes dar ou a sua serventia direta para ganhar dinheiro. Tive oportunidade de escutar diversos relatos de professoras magoadas por alunos que as interpelavam em sala de aula dizendo a seguinte frase ou suas variações: “Não vou fazer nada do que a senhora está propondo, ganho mais em um dia ajudando os traficantes do meu bairro do que a senhora em um mês dando aulas aqui.” Eles não estão mentindo, é bom deixar claro. Estão apenas verbalizando em alto e em bom som um processo que, em maior ou menor medida, é comum a todos: a diluição dos valores morais e dos ideais formadores de conduta.

Os psicanalistas têm explicado essa diluição nos seguintes termos: eles dizem que rompemos com a lógica de uma cultura centrada no pai, caracterizada por um certo pensamento monotemático, por uma unidade de pensamento e de orientação. É isso que tenho em mente quando me lembro dos meus quase 40 anos. Quando fui educada, os pais tinham poucas dúvidas sobre a direção na qual deveriam encaminhar seus filhos e filhas. Na cabeça do meu pai, fã dos ditos populares, o que valia no exercício de uma profissão era a seguinte frase: “Você pode até ser um coveiro, mas seja um bom coveiro.”

Resumindo: o que estou querendo mostrar é que, para essas pessoas “antigas”, a letra tinha muito peso na tradição cultural, tendo quase um valor de fetiche. Aprendíamos a cultuar o bem escrever e a admirar os bons autores. Na corrida matrimonial, ganhava pontos como parceiro quem soubesse escrever uma poesia ou, ao menos, uma bela carta de amor ressaltando nossas qualidades.

Valia até copiar uma poesia do outro, mas que fosse bela, transcrita sem erros! Se, por um lado, tratava-se de um tempo em que havia muitos analfabetos, por outro, a letra estava no centro da cultura, e mesmo os analfabetos não lhe negavam o valor. Se verificarmos a história de nossas famílias, com certeza muitos de nós nos depararemos com grandes sacrifícios feitos por algum antepassado

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analfabeto para educar seus filhos, pois havia um certo consenso no fato de que deveria ser preparado um melhor destino para as crianças e que este se obteria por via da introdução dos descendentes na cultura letrada.

Por milhões de anos, mantivemos o caráter original da escrita: o de objeto sagrado, originariamente inventado para servir de intermediário entre os homens e Deus. Quem conhece a história da Bíblia sabe que em um de seus livros (Ex 31,8) está claramente indicado o fato de que as tábuas da aliança entre os homens e o reino dos céus eram tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus. Independentemente das crenças religiosas de cada um, estudando a história do advento da escrita, somos obrigados a admitir que a escrita alfabética como a conhecemos hoje surge na cultura ao mesmo tempo em que a invenção do monoteísmo, tendo, por longo tempo, funcionado como aliada na manutenção da cultura centrada nos valores de um pai, como apontei logo acima.

O que estou querendo mostrar com este recuo até a instalação do monoteísmo é que o estudo da história da escrita nos mostra, antes de tudo, como seu advento e seus usos estão completamente ligados com o laço maior da cultura. Portanto, não é possível estudar os fenômenos ligados ao uso, ao ensino e à conservação da letra como prática social sem nos remetermos ao laço social de forma mais ampla. É diferente considerarmos a letra como um fragmento do sagrado, exigindo cuidado, conservação e transmissão sistemática, e a consideramos como uma tecnologia entre tantas outras possíveis. Manter a letra em seu pleno funcionamento, persistindo no difícil esforço de bem articulá-la no texto, demanda, pelo menos em algum grau, a insistência na manutenção de uma sociedade na qual as regras são claras, e que, antes de tudo, é claro o fato de que há regras a serem cumpridas e ensinadas para as crianças.

Isso que acabo de afirmar no parágrafo precedente equivale a dizer que, para aquelas pessoas que são fruto de uma tradição cultural contemporânea, na qual um pai não vale por sua mera condição de pai, mas pelo que pode ofertar em termos de conforto material para sua mulher e filhos, a letra deixou de ter um valor central. Estamos em face de um estranho paradoxo: no momento em que caminhamos para “o extermínio” do analfabetismo, uma vez que, como nunca, temos pessoas consideradas alfabetizadas, a letra foi esvaziada do seu valor. Perdemos o amor pela escrita como um fator social generalizado, mantendo-no, apenas, como um fenômeno isolado e pontual. O que temos hoje é uma insistência no uso da letra como uma tecnologia instrumental.

Escrever para conseguir emprego, redigir para ser secretária e dissertar para passar no concurso público são ações solidárias com a lógica da cultura capitalista, ou seja, quanto mais “funcionarmos” dentro de uma lógica utilitarista, mais faremos com que a letra perca seu poder, uma vez que a transformamos num objeto como outro qualquer. Nossa cultura contemporânea é caracterizada pelo fato de ser plural. Em seu seio, praticamente não há predomínio de uma opção em detrimento das outras: quase tudo se pode escolher.

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O problema principal nessa perda de estatuto sofrida pela letra é o fato de que ninguém ama um objeto. A gente pode comprá-lo, usá-lo, trocá-lo, destruí-lo, mas quase nunca amá-lo. Conseqüentemente, cada vez mais, escreve-se de qualquer jeito, sem cuidado, sem carinho, sem requintes de ternura para com a mulher amada. Não é de se estranhar que, de norte a sul, uma mesma queixa sobre a má qualidade da escrita dos alunos se imponha e, o que é pior, seja real. Insistir nessa queixa é ajudar a enterrar os restos mortais da letra. Ninguém convence a quem quer que seja a voltar ao passado, até porque seria impossível.

Assim sendo, o que resta ao professor fazer?

O papel do professor no processo de aprender a escrever

Dadas as considerações de cunho cultural que acabamos de fazer no item precedente, convidamos o professor para “deixar de chorar o leite derramado” e olhar de frente a crise em que nossa geração se meteu. Para sermos eficazes no ato de ensinar a ler e a escrever, é necessário abdicar completamente das vãs esperanças de fazer com que nossos alunos vejam o mundo com os olhos de 50 anos atrás, porque, muito evidentemente, mesmo o professor mais competente não tem uma máquina do tempo.

Retomando a pergunta que os professores costumam se fazer (“É ainda possível transmitir o amor pela escrita às novas gerações?”), é necessário ressaltar que sua reposta é, ao mesmo tempo, negativa e afirmativa. Ela é negativa para todo aquele que pretende transmitir o seu amor pela escrita ao outro, sem levar em conta o fato de que, na contemporaneidade, as crianças estão regidas por uma outra lógica.

Entretanto, ela é positiva para todo aquele que, não temendo aprender com as lições do passado, olhe de frente para as mazelas do presente e, incluindo-se nelas, reflita sobre sua eventual responsabilidade e participação no estado atual de coisas e ouse criar para si um novo modo de viver e para seus alunos um novo modo de aprender. Tracemos, portanto, outros modos para trabalhar com a escrita. É hora de nós, educadores, transformarmo-nos em “operários do amanhã”. De preferência por escrito, dada a natureza de nossa profissão.

Tendo considerado essa decisão a respeito da importância de exercer seu papel de mediador, é hora de trazer algumas informações de natureza mais técnica que podem ajudar o professor a ensinar a escrever. Vamos dividir essa reflexão em duas partes: a primeira versa sobre o que não se deve fazer no momento de auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético; e a segunda, por sua vez, traz algumas indicações para facilitar o trabalho no momento de auxiliá-la a redigir melhor.

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Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo

Para discutir sobre a centralidade do papel de mediador exercido pelo professor para que a criança possa se apropriar do código escrito, vamos analisar um fragmento de aula de alfabetização registrado por Smolka (1989, p. 33).

São 35 crianças na sala de aula de uma 1.ª série. Os “ruins” ocupam duas fileiras à esquerda, mas distante da mesa da professora, que se encontra no canto à direita. A professora começa e escrever na lousa, em linha horizontal e letra cursiva: ma me mi mo mu mão.

Pede para as crianças lerem a última sílaba dizendo:

― Aqui vocês vão ler com ão.

As crianças “lêem”.

A professora escreve uma segunda linha e pede para que as crianças leiam: na ne ni no nu não.

As crianças repetem. A professora pede para as crianças copiarem cada linha no caderno de classe e depois no de casa. [...]

De frente para a lousa e de costas para as crianças, a professora pergunta:

― Se eu puser isso (aponta bo) aqui (na frente do né), como é que fica?

Uma criança fala:

― Boneca.

A professora pergunta, virando-se para as crianças:

― Quem falou boneca?

Ninguém responde.

Em sua análise a partir do fragmento acima, Smolka salienta que as crianças não correspondem às expectativas da professora quando planejou sua aula. Elas nem entendem o que era para fazer e nem realizam a tarefa conforme era esperado. Tendo constatado essa falha no processo educativo, a autora passa a se ater no que a professora diz aos seus alunos no prosseguimento da aula.

Para nossa maior comodidade, em vez de transcrever a seqüência da aula toda, recortamos, a seguir, algumas das falas da professora.

― Quedê, você não fez nada? Nem o cabeçalho?

― Tem que fazer. Você não deixou espaço. Olha lá. Eu deixei espaço lá.

― Esse aqui é o bo. Tá errado, tá errado. Olha bem lá! Já copiou errado.

― Ta feio! Feio, fio. Seu o parece um a. Tem que melhorar a letra.

― Assim eu não gosto. Tem que fazer certinho, senão fica aquela misturança. (SMOLKA, 1989, p. 8).

Todos sabemos como é desagradável criticar nossos colegas, mas, neste momento, convidamos você a fazer uma reflexão sincera: se entendermos que o trabalho do professor como mediador é, em primeiro lugar, fazer com que as crianças entendam a função dos conhecimentos que devem aprender para, apenas

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em um segundo tempo, introduzi-los, nós poderemos dizer que essa professora sabia o que estava fazendo em sua sala de aula?

Se você entendeu o que estivemos discutindo até aqui, com certeza respondeu que não. Embora ela tenha se agitado muito, andado por todos os lados na sala de aula, olhado os cadernos etc., somos obrigados a admitir que ela não ajudou em absolutamente nada para que seus alunos pudessem se apropriar do alfabeto fonético como um instrumento e, a partir dessa apropriação, desenvolvessem padrões de pensamento que pudessem proporcionar a instalação do complexo trabalho da escrita propriamente dito.

Deixemos que Smolka conclua a respeito do que acontece quando um adulto age desse modo:

Os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos índices de evasão e repetência, mas nos resultados de uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e alienação. (SMOLKA, 1989, p. 38).

Para concluir esta parte da reflexão, gostaríamos de registrar, ainda, que caso tivéssemos tido a oportunidade de dar apenas um conselho para a professora que serviu de informante para a pesquisa de Smolka, esse conselho seria ao mesmo tempo simples de ser enunciado e bastante complexo de ser cumprido. Ele se resumiria na seguinte frase: não negue conhecimento aos seus alunos.

Auxiliando a criança a redigir melhorPara refletir sobre o trabalho que se faz para ensinar

a redigir após a aquisição do alfabeto propriamente dita, queremos recuperar as idéias desenvolvidas em um de nossos últimos trabalhos (RIOLFI et al., 2005).

Nossa equipe de pesquisa esteve um tempo muito curiosa para entender porque escrever bem parece ser tão difícil para um grande número de pessoas e, de fato, gastamos bastante tempo para explicar isso. A partir de um cuidadoso trabalho de pesquisa, chegamos à conclusão de que a instalação do “trabalho da escrita” (isto é, das operações que nos levam a escrever direito) depende da relação que o sujeito tem com o seu outro, para quem escreve. Traduzindo em miúdos: se o indivíduo é um leitor sofrível, aí estará um escritor medíocre...

Por que isso acontece? Porque, se for um bom leitor, o professor sabe onde incidir para levar o seu aluno a aprender a ler criticamente o que ele mesmo escreveu. Não é possível produzir um bom texto apenas andando para frente: é preciso aprender olhar para trás, analisar o que está escrito e deixar que o próprio texto, por assim dizer, diga-nos como melhorá-lo. Quando o ato de escrever deixa de ser uma tarefa chata e se transforma em um importante ganho cultural, o aluno entra em contato com um tipo bastante específico de trabalho de retroação que pode alterar sua relação com sua palavra, sua história, sua vida.

Você já parou para refletir como escrever bem é extremamente difícil?

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Tomando-se o que uma criança ainda pequena pode produzir como parâmetro, podemos dizer que um texto está bem escrito quando ele não apresenta grandes dificuldades de compreensão para um grande número de leitores, ou seja, quando se trata de um texto que tenha vocação à universalidade.

O que é necessário para escrever um texto assim? Ora, essa complexa tarefa demanda duas pré-condições no que tange a relação com o leitor:

que o escritor possa assumir parcialmente o lugar do outro e deixar que seja este lugar que lhe dê as diretrizes norteadoras para decidir sobre a manutenção, supressão ou alteração de cada um dos segmentos que compõem o texto escrito;

que o escritor possa esquecer parcialmente este mesmo lugar, deixando que a lógica interna do texto vigore, podendo, assim, sustentar e justificar cada uma das operações discursivas realizadas para a construção da ficção textual. (RIOLFI et al., 2005).

Concluindo, a qualidade do produto final da escrita é estritamente dependente da representação que faço de meu sujeito leitor e dos modos por meio dos quais o incluo (ou não) no texto que estou escrevendo. Se, para os escritores proficientes, é possível já ter incorporado em si o outro que se torna puro cálculo durante o trabalho, para os escritores iniciantes esse cálculo é realizado de modo precário a partir dos indícios que pode obter do seu professor, argumento este que só reforça a importância da função do professor como mediador.

Prefácio2

(POMMIER, 1993, p. 5-14)

Na maior parte das vezes, minha mão me obedece. Não obstante, a mestria sobre as formas que traço usualmente me escapa quando escrevo. Relendo minhas notas, e pensando no que queria exprimir, me descubro freqüentemente em falta, se não de ortografia, pelo menos de estilo ou legibilidade. Teria eu verdadeiramente escrito para ser lido? A quem se endereçam os rabiscos feitos na margem de um pedaço de papel, rabiscados quando as idéias se apressam e devem ser anotadas antes de desaparecer? Desse modo, o lugar de onde vem a minha escrita é o que primeiramente me escapa no momento de interrogar sobre a origem da escrita. A aprendizagem escolar não caracteriza essa proveniência e, quando me acontece não poder escrever, não é graças a uma técnica ensinada que consigo superar a angústia da folha em branco.

Aquele que acabou de escrever é capaz de dizer de onde procede aquilo que, na forma de suas letras, pertence exclusivamente a ele mesmo? Ele poderá explicar facilmente o conteúdo, os pensamentos, as ficções, as informações comunicadas por seu texto, mas não dirá nada sobre a origem de sua escrita, independentemente do que ela significa. Eis o motivo para interrogar a história das grafias, observar as primeiras evoluções formais das letras, examinar as condições e as modalidades desse desenvolvimento. Buscando responder a essas questões, aprenderei, quem

O que determina a qualidade final de um texto?

2Tradução de Cristine Maria Tedeschi Conforti

e Andreza Roberta Rocha.

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sabe, que um cuidado idêntico ao dos primeiros inventores me habita quando procuro alinhar palavras sobre o papel.

O problema da origem da escrita pode ser abordado considerando sua evolução ao curso dos últimos milênios. Trata-se de examinar o importante material arqueológico hoje disponível, de organizá-lo segundo suas invariantes e sua cronologia e, eventualmente, interpretar suas modificações. A gênese da escrita pode também ser estudada examinando-se sua aquisição individual. É conveniente, então, observar como as crianças se põem a escrever segundo os procedimentos conhecidos das regras gerais e das exceções. As dificuldades de integração da leitura e da escrita merecem uma atenção particular, porque elas permitem desembaraçar os pontos de sustentação externa e, por conseqüência, as etapas dessa iniciação. Lá, ainda, o pesquisador poderá tentar interpretar essa evolução.

Uma longa história de escrita precede o momento em que uma criança se apodera dos signos do alfabeto. Que analogias existem entre a aprendizagem individual da escrita e as etapas que a humanidade precisou atravessar para descobri-la? Há quem pense que tal semelhança de destino determinaria que a escrita seja um instrumento de comunicação progressivamente aprimorado por aproximações sucessivas. Uma vez experimentada sua técnica, ela teria sido em seguida transmitida às gerações seguintes. Segundo uma tal concepção, bem ocidental, a escrita teria progredido por etapas, e sua forma mais prática, o alfabetismo, teria finalmente superado a pictografia e o silabismo. Esses aprimoramentos sucessivos de procedimentos de transcrição das mensagens seriam, em seguida, aplicados à aprendizagem a ser cumprida por cada criança. Em conseqüência, o conhecimento da história da escrita e de seus estágios poderia ainda ser útil para fazer os escolares compreenderem como formalizar suas letras.

Os egípcios, por exemplo, utilizavam a acrofonia para isolar algumas de suas consoantes. Quem não seria tentado a imaginar que a descoberta dessas letras se efetua do mesmo modo como o alfabeto continua a ser ensinado às crianças? A letra A não é compreendida graças a sua acrofonia com Ana, a letra B graças a balão etc.? Nos esqueceríamos, assim, que se trata de um método mnemônico inventado pelos adultos e que resiste a numerosos sintomas que têm o valor de uma útil evocação à ordem: um modelo histórico não pode ser comparado a técnicas destinadas a facilitar a aprendizagem, pois elas não são, indubitavelmente, a própria aprendizagem. Dentro de um louvável cuidado pedagógico, deseja-se ajudar as crianças com procedimentos supostamente análogos aos da invenção do alfabeto, mas transmitir-lhes um instrumento inventado antes delas não será sempre o mesmo que deixá-las descobrir por si mesmas. Quando a hora chega, as crianças não inventam, por si próprias, a chave da escrita e, se elas não fazem esse trabalho solitariamente, não se torna impossível transmitir-lhes as formalizações gráficas próprias de sua cultura?

Possivelmente, a descoberta histórica da escrita e sua aprendizagem individual seguem o mesmo caminho. Mas, para sustentar essa hipótese de uma correspondência entre filogênese e ontogênese, é preciso mostrar que as etapas de certas invenções, elaboradas em alguns milênios, devem ser novamente transpostas em poucos anos por cada criança. Se assim sucede com a escrita, ela brilhará muito pouco por sua originalidade. De outras descobertas, conhece-se o mesmo destino: é duvidoso que o homem soubesse caminhar ereto se ele crescesse fora do abrigo cultural. Mesmo a possibilidade de falar depende de um aprendizado, senão de uma técnica. No entanto, a língua não se aprende no sentido usual do termo, pois, se a linguagem constitui o objeto dessa iniciação, o próprio sujeito faz parte desse objeto. Essa apropriação da língua é um fato cultural, se bem que, por outro lado, cada criança se engaja na palavra segundo seu ato próprio de apreensão.

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Existem muitas invenções semelhantes na história da humanidade. Cada um deve refazê-las por si, porque é sujeito delas. A escrita faz parte dessas descobertas. É verdade que existem sociedades ditas “sem escrita”, que não parecem ter se imposto tal obrigação. Não obstante, todas as civilizações, sem exceção, têm uma prática da arte, seja por meio do desenho ou da escultura. Suas representações artísticas, o denominador mínimo comum da humanidade, quiseram se fazer portadoras de uma mensagem que ainda se endereça a nós. Entre esta universalidade, um número maior de culturas elaborou uma escrita ideográfica. Mais raras ainda foram aquelas que utilizaram ideogramas. Por fim, apenas algumas utilizaram o recurso dos alfabetos.

[...] Quando traça um desenho, a criança se representa e apresenta inicialmente seus sonhos; seus desenhos são traçados segundo as dimensões oníricas que ela projeta: a evolução de suas representações segue então o mesmo trajeto que o de seus sonhos, cuja lembrança se perde sempre, mais ou menos, no recalcamento. Sabemos no que nossos sonhos transformam: esquecemo-los quase todos, pois eles encenam um prazer que ocultamos. Da mesma forma, se os primeiros desenhos possuem um valor idêntico ao dos sonhos, não serão eles, em si, sujeitos a um recalcamento cujo resto será escrita?

Eis, então, o que este livro deseja explorar: os primeiros desenhos apresentam os fantasmas que estarão sujeitos ao recalcamento até o ponto em que o retorno do recalcado se escreve na letra. Entre o espaço do desenho e o da letra, convém, conseqüentemente, localizar o evento diacrônico do recalcamento. Se uma criança não consegue escrever antes de certa idade, não é porque ela seria incapaz tecnicamente mais cedo. Com efeito, antes de estar em condições de formar as palavras, ela já conduziu a termo operações mais complexas que a de fazer corresponder um som e um signo. Se ela não pôde fazê-lo até então, é provavelmente porque sua relação com a representação pictórica, seu valor psíquico, impedia-a. Quando completar um certo caminho com relação aos desenhos, a criança se porá a escrever, ainda que, quão inteligente fosse ela, não pudesse tê-lo feito antes.

[...] Se alguém deseja manter a hipótese de uma invenção da escrita comum à história da humanidade e à de cada um de seus membros, será necessário igualmente examinar uma origem da letra pertinente em todas as ocorrências em que está em questão a transmissão de uma mensagem e estabelecer uma definição mais ampla que aquela à qual estamos acostumados. É necessário examinar o que pode haver em comum entre o sonho, o desenho, o pictograma e a letra do alfabeto. A instância da letra no inconsciente, tal como a psicanálise a define, não permite situar essa primeira formalização da escrita, comum a todos, ainda que cada um deva reinventá-la? Qualquer que seja a maneira pela qual comunique sua mensagem, poder-se-á mostrar que o grafismo do homem descende do pensamento.

[...] O que há em comum entre o que hoje me permite traçar letras e aquele que, há muito tempo, atribuiu um significado estável a alguns desenhos? Diante dessa questão, descobri, talvez, o que me faz irmão do escriba e do mandarim. Do sacerdote do faraó, mestre da escrita, dando seu beijo da manhã à estátua divina, recitando-lhe nos ouvidos seus próprios textos, como se, sem ela (a estátua), não pudesse rememorá-los. Do adivinho chinês lendo os primeiros signos do destino graças aos bastões incandescentes que ele guiava sobre cascos de tartaruga, escrevendo os primeiros caligramas no fundo de vasos onde a ninguém ocorreria lê-los: no início, escrito para os deuses! Irmão da criança rabiscando seus desenhos cuja forma não convém mais a suas obsessões, riscando seu desenho como se explorasse inocentemente o interdito da representação, rasurando e descobrindo uma letra que não se parece com nada e, portanto, significa.

A cada vez que escrevo uma palavra nova, em que me assemelho ao escriba, ao mandarim ou à criança? Como os corpos dormindo à noite, dissolvidos na obscuridade, ligam-se ao

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fio de suas vidas graças à escrita tenaz de seus sonhos? Como aqueles em vigília bem tarde, quase até a manhã, debruçados sobre o papel branco: as letras que eles traçam não guardariam seus semelhantes, os adormecidos, e elas não lhes permitiriam repousar em paz? Espécies de sentinelas, irmãs do hieróglifo onírico, elas tecem sobre a cidade a rede que impede os sonhadores de se perderem em suas canções, elas os acompanham até o despertar e lhes chamam para o dia. Como foram traçados os primeiros signos capazes de falar por nós em nossa ausência? Aprenderemos a traçá-los sempre em nós para além de nossa aparência?

Material necessário: exemplares do livro O apanhador no campo de centeio (J. D. Salinger) em número suficiente para serem lidos em grupo.3

Fase 1 – Atividade de pré-leitura.

Em um pequeno grupo, leia a resenha que se segue. A partir da sua discussão, anote as expectativas que a resenha criou no grupo sobre as possíveis cenas que estarão narradas no livro.

O apanhador no campo de centeio: o livro que inventou uma geração

(BART, 2004)

O que faz com que um livro narrando acontecimentos quase banais, ocorridos com um adolescente que não tem nada de extraordinário, transforme-se na mais acurada e sensível crônica da juventude deste século? Só os espertos que chegaram a ler O apanhador no campo de centeio, do escritor americano J. D. Salinger, é que podem dizer com certeza.

Prestes a completar 47 anos de publicação – surgiu em 1951, antes mesmo dos pais da maioria de vocês nascerem –, a novela de Salinger é não só uma das mais marcantes obras da literatura norte-americana contemporânea; é também um marco na longa estrada que os jovens trilharam (e ainda trilham) para provar que têm direito a uma voz e a uma visão de mundo próprias.

É bastante possível que você nunca tenha lido O apanhador. No entanto, se você tem um mínimo de “antenidade” com o mundo que o cerca, muito provavelmente já leu ou ouviu alguma alusão ao livro no cinema, em jornal, revistas ou em outros livros. O fato é que este singelo romance de 1951 virou lenda ao longo dos anos, e fez de seu autor, Jerome David Salinger, um dos maiores mistérios da história recente da literatura. A pequena revolução que O apanhador causou no comportamento da juventude americana – e por tabela, no comportamento da juventude do mundo todo – ecoa até hoje, fazendo parte da cultura da segunda metade de nosso corrente século [século XX].

O Apanhador narra um fim-de-semana na vida de Holden Caulfield, jovem de 17 anos, vindo de uma família abastada de Nova Iorque. Holden, estudante de um pomposo internato para rapazes, volta para casa mais cedo no inverno

3As atividades que se seguem consistem em

uma adaptação daquelas pre-viamente apresentadas em RIOLFI, 2004.

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depois de ter levado bomba coletiva em quase todas as matérias. Na volta para casa, ao se preparar para enfrentar o inevitável “esporro” da família, Holden vai refletindo sobre tudo o que (pouco) viveu, repassa sua peculiar visão de mundo e tenta enxergar alguma diretriz para seu futuro. Antes de se defrontar com os pais, procura algumas pessoas importantes para si (um professor, uma antiga namorada, sua irmãzinha) e tenta lhes explicar a confusão que passa por sua cabeça.

E é só isso aí. Não há nada de mais trágico, ou dramático, na história; é só um adolescente voltando para casa. A grande magia de O Apanhador é justamente esta: ser uma história de e para adolescentes, e não meramente um livro “recomendado para leitores em idade escolar”. Foi a primeira vez na literatura americana (ou mesmo na mundial) que o universo próprio dos jovens foi estudado a fundo e exposto de maneira absolutamente natural, sem nenhuma pretensão ou didatismo. As idéias, conceitos, bobeiras, burrices, enfim, toda a loucura de ser jovem, nunca tinham sido traduzidos de uma maneira tão profundamente sintonizada com a realidade.

Vale um aparte aqui: antes de O Apanhador, simplesmente não existia esta coisa que há hoje de “cultura jovem”. Pode ser difícil de acreditar, mas há meros 50 anos os jovens (e sua maneira de pensar, suas idéias próprias e suas aspirações) não eram levados a sério pelos adultos de forma alguma. Ser jovem, nos anos pré-Elvis Presley, era apenas estar em um estágio irritante entre criança e o “homem feito”, uma fase que devia passar o mais rápido possível e sem maiores dores. O que não quer dizer que os jovens não tivessem seus anseios e preocupações – que não eram infantis nem adultas –, mas que eram ignorados pelos mais velhos. O apanhador, com seu relato sem retoques de tudo aquilo que realmente se passa na mente de um adolescente, ajudou a tornar a sociedade mais atenta à barra (às vezes pesada) que é ser jovem.

E o talento sem tamanho de J. D. Salinger é um dos maiores responsáveis pelo status cult do livro até hoje. Apesar de já ter passado longe da adolescência quando escreveu a obra (estava com 32 anos quando o livro saiu), o autor penetrou de forma admirável na maneira própria que os jovens têm para se expressar. O livro marcou época por seu uso ousado de gírias, e expressões e referências “chulas” – que andavam na boca da rapaziada da época. Salinger colocou em Holden Caulfield, de forma realista e convincente, tudo o que se passa na cabeça de um rapaz de 17 anos: as preocupações com o futuro, a incerteza de todo o mundo que passa por esta fase, as garotas (claro!)... Tudo de uma maneira que nunca havia sido vista antes, com liberdade de estilo, inteligência e um raro sentimento de proximidade com o universo jovem.

O mesmo sucesso que consagrou de vez o talento de Salinger (que já vinha, desde os anos 1940, publicando contos em revistas) foi sem dúvida o responsável pelo rumo inesperado que sua carreira (e sua vida) tomou desde então. O apanhador, seu primeiro romance, tornou-se uma coqueluche instantânea entre os jovens americanos, enlouquecidos ao finalmente conseguirem se identificar de forma tão perfeita com um herói de literatura. Engraçado, comovente e forte, o livro é literatura de primeira: leve e ágil, próprio para gente jovem (que ainda não “tem paciência com esta coisa de literatura”). Mas com estilo totalmente próprio e marcante.

Depois de vender 15 milhões de exemplares e virar uma celebridade mundial, J. D. Salinger – notoriamente tímido e agressivamente modesto em relação a seu talento – primeiro isolou-se em uma casa no topo de uma montanha, em uma cidadezinha de mil habitantes. Depois foi diminuindo o ritmo de produção (publicou seu último conto, Hapworth 16, 1924, em 1965, na revista The New Yorker) e afinal cortou qualquer contato com a mídia. Não concede entrevistas, não se deixa fotografar e nunca permitiu que nenhum dos seus livros fosse adaptado para o cinema (assim como o próprio Holden Caulfield, Salinger odeia cinema). Em dezembro do ano passado, o escritor, do

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alto de seus 78 anos, autorizou afinal o lançamento de seu quinto livro (justamente a publicação em capa dura de Hapworth 16, 1924), o primeiro em 34 anos. (Parece o My Bloody Valentine.)

A mística sobre o autor de O apanhador não se sobrepôs ao impacto da obra em si. Holden Caulfield e suas desventuras se tornaram precursores do mito da juventude rebelde – Holden contesta os mais velhos e não quer se tornar como eles, a quem considera farsantes. Toda a sua luta é para preservar os valores que ele acha verdadeiros e sinceros. Pode-se dizer que a figura de James Dean, o rebelde sem causa, é filhote da cruzada de Holden por sua integridade. O livro foi citado por incontáveis bocas célebres ao longo dos anos, em filmes e outros livros. Uma das notas tristes na “biografia” da obra é que o livro teria inspirado o maluco Mark Chapman a cometer o ato que o tornou macabramente famoso – assassinar John Lennon, em 1980. Mas nem por isto O apanhador deixou de ser um dos livros indispensáveis (talvez o único realmente indispensável) na formação de qualquer jovem que deseja compreender melhor a si mesmo, e como o mundo o enxerga – e a seus colegas.

Fase 2 – Checando as hipóteses construídas durante a atividade de pré-leitura.

Na seqüência, você encontrará uma tabela na qual o livro O apanhador no campo de centeio está dividido em nove cenas. Compare as cenas que você e seu grupo imaginaram no exercício de pré-leitura com as que você encontrará abaixo. Será que você pode antecipar muitas das coisas efetivamente descritas no livro? Em caso afirmativo, como conseguiu? Discuta no grande grupo sobre as pistas que usamos em nosso cotidiano para antecipar tanto as ações dos outros quanto as seqüência lógicas dos textos.

Cena Capítulos Sinopse Usos da escrita presentes na cena.

1 1 e 2

Caulfield propõe-se a contar como saiu do colégio. Despede-se do professor de

história. Escuta a crítica sobre a qualidade medíocre de seu texto escolar.

2 3 a 7

Caulfield permanece em seu quarto e convive com alguns de seus colegas.

Escreve um texto para servir como lição de casa de terceiros.

3 8, 9 e 10Caulfield deixa o colégio e vai para um

hotel barato. Declara-se “burro”. Insone, desce até a boate do hotel.

4 11 a 14

Caulfield vai a um bar chamado Ernie’s. De volta ao hotel, aceita a oferta de receber uma prostituta, mas nem mantém relações sexuais com ela, nem paga integralmente o valor combinado pelo serviço. Confuso

e deprimido, fala em voz alta com o irmão morto. É violentamente espancado pelo

cafetão, que vem buscar o dinheiro devido.

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Cena Capítulos Sinopse Usos da escrita presentes na cena.

5 15 e 16

Caulfield tenta, sem sucesso, encontrar sua irmã caçula. Procura uma ex-namorada e a leva ao teatro. Explicita que detesta a escola e a hipocrisia de seu meio social.

6 18, 19 e 20

Caulfield telefona a um amigo mais velho e marca um encontro. Enquanto espera, vai ao cinema. Em um bar grã-fino, embebeda-se. Chora. Por acidente,

quebra o disco que havia comprado como presente para sua irmã caçula.

7 21 e 22

Finalmente, decide ir até a casa de seus pais, visitar sua irmã, que logo descobre que ele havia sido novamente expulso do

colégio. Justifica-se qualificando-o de “nojento”. Explicita sua incapacidade de aderir a um ideal social e “escolhe uma profissão”: ser apanhador no campo de centeio. Telefona ao professor Antolini.

8 23 e 24

É quase surpreendido pelos seus pais, mas consegue ir embora sem ter sido percebido, levando um pouco de dinheiro da caçula.

Vai para a casa do professor Antolini, que, bêbado, faz, para Holden, uma preleção

sobre a necessidade de construir o futuro. Com medo da possível orientação sexual

do professor, foge apressadamente.

9 25

Caulfield passeia pela decoração de Natal da Quinta Avenida. Resolve fugir de casa e marca um encontro de despedida com a caçula. É surpreendido pela resolução dela de fugir com ele. Leva-a para brincar no

carrossel. Decide voltar para casa. Doente, vai recuperar-se em um sanatório.

Fase 3 – Primeiro contato com o texto literário.

Atividade de leituraPara este primeiro contato com o livro propriamente dito, dividir a turma em nove grupos. Cada

grupo escolhe uma das cenas da tabela acima para trabalhar. Com os volumes do romance na mão, cada grupo lê os capítulos compreendidos em sua cena.

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O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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Nesta primeira abordagem, cada grupo fica responsável por:

completar a tabela acima, anotando se há usos da escrita em sua cena e, em caso afirmativo, quais são eles;

escolher um título para sua cena – este título pode ser descritivo ou metafórico, mas, em todo caso, deve adiantar para o grande grupo o que a equipe considerou como essencial nos capítulos que leu.

Atividade de discussãoEsse primeiro contato com o texto é compartilhado no grande grupo. O exercício de

completar a tabela é “corrigido” e os títulos, comunicados. Neste momento, os comentários devem ser, o quanto possível, os mais livres possíveis. Vamos fazer um inventário de idéias, opiniões, sentimentos, emoções que o primeiro contato com O apanhador nos despertou. É importante destacar os assuntos abaixo.

A resenha que você leu faz jus a O apanhador?

Como a escrita se coloca na vida do personagem central?

O que há de especial com a luva de beisebol do irmão do personagem central?

A partir da discussão sobre o título do livro, o que podemos aprender sobre tornar-se adulto na cultura de hoje ao prestar atenção nessa belíssima metáfora?

Fase 4 – Brincando e aprendendo com o texto literário

Cada grupo deve preparar uma encenação artística (peça teatral) de sua cena. Não é necessário expor todo o conteúdo dos capítulos que compõem a cena, mas, apenas, aquilo que o grupo julgou fundamental nele. Se necessário, um narrador pode ser eleito, para ir explicando o que for necessário para dar coerência à apresentação. A idéia é completarmos esta atividade com a encenação de uma pequena peça caseira baseada no texto. Como referência, cada grupo terá cerca de dez minutos para expor sua produção aos outros.

ALLOUCH, Jean. Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.

Este livro não é um daqueles que se destaca por sua clareza e, muito menos, pelo fato de se tratar de um texto fácil para se ler. Entretanto, todos aqueles que se dispuserem a pagar o preço de gastar algumas (muitas) horas de estudo perseguindo o raciocínio deste francês incansável para compreender os três registros distintos do ato de escrever que são dissecados pelo psicanalista (transcrever, traduzir e transliterar) com certeza ganhará em profundidade e em consistência na reflexão sobre o ato de escrever. Embora não se trate de um livro sobre o ensino da escrita, ao tomar a letra como seu objeto de estudo ele nos dá alguns elementos muito significativos para refletir sobre a história da escrita na humanidade, sua apropriação pelos sujeitos e, conseqüentemente, sobre seu ensino.

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ALLOUCH, Jean. Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.

BART, Marco Antônio. O apanhador no campo de centeio: o livro que inventou uma geração. Disponível em: <http://www.screamyell.com.br/literatura/apanhador.htm.> Acesso em: 10 abr. 2004.

BÍBLIA, V.T. Êxodo. Português. Bíblia Sagrada: edição pastoral. Tradução de: Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990. Cap. 31, vers. 8.

CERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: _____. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Rio de Janeiro, 1994, p. 221-246.

MANGUEL, Alberto. Primórdios. In: Uma história da leitura. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 205-215.

KLEIN, Lígia Regina. Alfabetização: quem tem medo de ensinar. São Paulo: Cortez, 1997.

POMMIER, Gérard. Préface. In: _____. Naissance et renaissance de l’écriture. Tradução de: Cristine Marie Tedeschi Conforti e Andreza Roberta Rocha. Paris: Presses Universitaires de France, 1993, p. 05-14.

RAMIL, Kledir. Tipo assim... PA: RBS Publicações, 2003.

RIOLFI, Claudia Rosa. Escrevendo para um outro encarnado: há trabalho da escrita na educação à distância? Texto base do projeto de pesquisa em desenvolvimento no Departamento de Métodos e Técnicas de Educação Comparada. EDM da Faculdade de Educação da USP, 2005b.

_____. O declínio do império da letra: implicando-se na invenção de uma “nova transa” com a escrita. In: TRIVELATO, Sílvia L. Frateschi. Alfabetização e letramento: um compromisso de todas as áreas. São Paulo: Fafe/Feusp, 2004.

_____; ROCHA, Andreza Roberta; ANDRADE de Jesus, Emari. O sujeito e o trabalho da escrita: perseguindo os meandros do ato de escrever. São Paulo: Edusp, no prelo.

SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1999.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1989.

VYGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich. Estudos sobre a historia do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos aí produzidos

Claudia Rosa Riolfi

V ocê já parou para refletir como são diversificados os modos de relação dos professores com as teorias que circulam no meio universitário? Se já o fez, com certeza pode perceber o seguinte: alguns professores estão engessados

por suas opções teóricas, as quais elevaram ao estatuto de dogma. Outros, que não tiveram a oportunidade de aprofundar seus estudos e compreenderem-nas profunda-mente, carregam-nas como se fossem profissões de fé. Os mais aguerridos agitam-nas ao público como se tratasse de causas a serem defendidas a qualquer preço. Por último, os discretos consideram-nas como opções particulares necessárias para dar coerência e consistência a sua prática investigativa e pedagógica.

Tão diversos entre si, tão parecidos no seguinte traço: todos acham desagradável quando alguém questiona as suas opções, uma vez que é necessária muita coragem para colocar anos de experiência na balança e refletir sinceramente se o que você aprendeu com eles continua valendo no presente. Por esse motivo, iniciamos este capítulo visando a refletir sobre a aula de Língua Portuguesa e analisar os textos aí produzidos sob uma perspectiva histórico-social. Para tanto, convidamos o leitor para se afastar o máximo possível de “sua opinião formada sobre tudo” e, como recomendava nosso saudoso Raul Seixas, estar permeável para tornar-se uma “metamorfose ambulante”. Feiso este primeiro alerta, façamos nossa primeira parada no Brasil.

O pensamento sobre a alfabetização no BrasilPara melhor contextualizar as diversas tendências de discurso sobre a

alfabetização em nosso país, é importante recuperar uma denúncia que serve como ponto de partida para o trabalho de Magnani (1997): o fato de que, contaminados pelo que se pode chamar de furor novidadeiro, os brasileiros estão sempre tentando se desvencilhar das tradições para que se produzam “novas metodologias”, supostamente mais adequadas para superar os desafios concretos que os professores encontram em sala de aula.

Visando a superar essa prejudicial tendência que apaga nosso passado e, conseqüentemente, condena-nos a um eterno patinar no mesmo lugar, a autora faz uma rigorosa pesquisa de fundo histórico para mostrar como a crescente importância dada à alfabetização pelos governos esteve sempre atrelada a um projeto político

Psicanalista. Doutora em Lingüística pela Unicamp. Mestre em Lingüística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa, Lingüística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

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de modernização social. No Quadro 1, a seguir, o leitor encontrará os principais momentos de um século de discussão sobre a alfabetização, conforme Magnani.

Quadro 1: Tensão entre os “modernos” e os “antigos” em cem anos de alfabetização no Brasil

Antes de 1880 Predomínio dos métodos que ensinam a escrever a partir da insistência na soletração e na silabação.

1880Silva Jardim divulga o “revolucionário método” João de Deus, baseado na palavração, para o ensino da leitura (método sintético).

Início da República

Miss Márcia Browne introduz no Brasil a seguinte diretriz: iniciar o ensino de leitura pelo todo, e decompô-lo (método analítico).

1930

A polêmica criada entre os seguidores de Silva Jardim (partidário do método sintético) e Márcia Browne (partidário do método analítico) começa a decrescer a favor da tentativa de construção de uma solução intermediária: o método misto (ou eclético).

1934

Lourenço Filho publica os testes ABC – medidas de maturidade para o aprendizado na leitura e na escrita, objetivando a “organização racional e homogênea” das classes de alfabetização.

Década de 1970

A discussão sobre o método mais eficaz cede lugar à investigação sobre as causas da repetência e da evasão. Cresce o número de investigações sobre as “patologias” e, depois, sobre os condicionantes sociais e econômicos do fracasso escolar.

Década de 1980

O construtivismo, inspirado nos trabalhos de Piaget e seguidores (em especial, Emília Ferreiro), ganha hegemonia em nosso país.Com a “descoberta” do interacionismo, iniciam-se as críticas ao construtivismo.

Década de 1990Começam a se configurar as disputas pela hegemonia de projetos para o ensino inicial da leitura e da escrita em estreita relação com os projetos político-sociais.

Magnani justifica o esforço gasto para pesquisar 100 anos de história de nosso país: evitar um efeito nefasto que as discussões levadas a cabo no interior das universidades costuma exercer sobre os professores – cegá-los para o seu cotidiano educacional. Identificados com uma perspectiva que aprendem primeiro “no papel”, sem a necessária reflexão sobre ela, os profissionais da educação passam a divulgar sua experiência com a certeza de estarem de posse de uma verdade inquestionável (MAGNANI, 1997, p. 46). Por esse motivo, constrói uma sistematização da cronologia

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aqui previamente exposta, desta vez destacando qual era a “verdade inquestionável” que predominava em cada um dos períodos. Para conhecê-las, confira o Quadro 2.

Quadro 2: Momentos históricos cruciais para a constituição da alfabetização como objeto de estudo no Brasil

Época Discussão predominante No que ela consiste?

1876-1890Método João de Deus Xmétodos sintéticos

Os partidários da palavração condenam os partidários da soletração e da silabação.

1890-1930Métodos analíticos X métodos sintéticos

Os partidários dos métodos analíticos condenam os partidários dos métodos sintéticos.

Meados da década de 1920-final da década

de 1970

Métodos ecléticos X métodos analíticos

Os partidários dos métodos ecléticos condenam os partidários dos métodos analíticos.

Final da década de 1970-final da década de 1990

Construtivismo X métodos tradicionaisInteracionismo X construtivismo

Os partidários do construtivismo condenam os partidários de tudo o que foi feito antes, atribuindo a todos a mesma importância: a dos métodos tradicionais.Os partidários do interacionismo condenam os partidários do construtivismo.

Como você já deve ter percebido, a pesquisa de Magnani conclui-se com o fim do século XX, e é exatamente aqui que nosso trabalho começa. Guardemos essa lição sobre a relevância de não se “perder o pé” da história de nosso país e agreguemos a ela uma perspectiva política que defenda o aprendizado da leitura e da escrita como um direito da participação do sujeito humano na cultura de seu tempo e também uma perspectiva de ser um produtor de sentidos válidos no presente e aptos a construir um futuro. Esta recomendação é feita aqui no sentido de nos fornecer um terreno mais seguro para alargar nossa reflexão e interrogar os padrões de interlocução verbal e seus efeitos na aula de Língua Portuguesa.

A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa

Para melhor contextualizar nossa reflexão, a interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa, vamos recorrer brevemente a um exemplo já explorado por nossa equipe de trabalho (RIOLFI et al., 2005) com maior detalhamento. A

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seguir, você vai encontrar um registro de uma aula de Língua Portuguesa feito em 2003 por uma das autoras do livro Ensinar a Língua Portuguesa no século XXI: desafios e perspectivas para o Ensino Fundamental II, em um momento de sua vida em que ainda não era professora de Língua Portuguesa, mas aluna de Letras, cumprindo suas obrigações de estagiária.

Trata-se do retrato de um acontecimento registrado pela pesquisadora em seu diário de campo com riqueza de detalhes, inclusive com seus comentários de cunho pessoal. É importante perceber preliminarmente o olhar perplexo de quem anotou a aula, olhar este ainda não gasto/contaminado pela indiferença e o descrédito que grassa na contemporaneidade. Antes de prosseguirmos com nossa reflexão, examinemos as cenas descritas pela “novata”.

Cada qual faz o que quer!Neste dia, no primeiro horário, observei uma “aula” surreal! Com o

desenrolar dos eventos, fiquei pensando que o acompanhamento individual da escrita do aluno é importante, mas não do modo como ele estava sendo feito. Percebi dois problemas: 1) a professora estava corrigindo somente a forma das redações (no caso, se o mesmo seguia o padrão de “abaixo-assinado”) e ignorando os aspectos ligados à Língua Portuguesa propriamente dita; e 2) dado que não havia nenhuma outra atividade preparada para o restante da sala, o acompanhamento individual estava sendo prejudicial à classe como um todo. A professora dirigiu uma única frase para o grupo durante os 45 minutos que lá permaneceu: “Pessoal, quem já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto, traz que eu vou dar visto.” Obedientemente, os alunos levavam o texto até a professora, que os verificava protocolarmente.

...enquanto isso...

Dois ou três grupinhos ficaram conversando baixo.

Um aluno ficou cantando e beijando o rosto de quase todas as meninas da sala.

Um casal permaneceu com os rostos encostados na carteira, beijando-se e cochichando ao mesmo tempo.

Um outro aluno fazia ginástica no meio da sala, dançando capoeira, “plantando bananeira” etc.

Uma aluna deitou sua cabeça na carteira e dormiu durante a aula toda.

Algumas alunas olhavam silenciosamente o ambiente de bagunça e a indiferença da professora. Depois, olhavam para mim, parecendo constrangidas com a situação.

A professora continuava indiferente a tudo isso e, maquinalmente, escrevia o “visto” nos cadernos dos alunos. Tocou o sinal. Acabou a “aula” de Língua Portuguesa.

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Refletindo sobre a aula de Língua Portuguesa cuja descrição você acaba de ler, você pode até acreditar na boa-fé da professora, que estaria cumprindo sua obrigação de “dar visto nos cadernos”, mas, provavelmente, terá mais dificuldade para fazer uma lista sobre os conteúdos relativos à escrita que foram aprendidos durante essa aula.

Não se trata nem do fato de que a professora não apresentou conteúdos novos durante 45 minutos, pois todos sabemos que, muitas vezes, em nome de um maior aprofundamento de um ou outro tópico, é necessário permanecer nele por um período maior. Ao contrário disso, nossa restrição incide sobre o fato de que não houve nenhum esforço, por parte da professora, para organizar um ambiente de trocas verbais entre os alunos que pudesse levá-los a se engajarem em um trabalho e, conseqüentemente, desenvolverem um estágio mais elaborado de seus conhecimentos sobre a escrita. Paralelamente, sua própria “produção verbal” é muito restrita, apresenta baixíssimo nível de informatividade e não apresenta qualquer desafio intelectual a seus alunos. “Pessoal, quem já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto, traz que eu vou dar visto” é o tipo de fala que mantém os sujeitos exatamente no lugar onde estão.

Independentemente da filiação teórica declarada pela professora cuja aula nossa estagiária assistiu, uma coisa é certa: em sua prática concreta, essa profissional não estava levando em conta a importância que tem sua ação para auxiliar a mediação necessária para a construção dos conhecimentos em aula. Em suma: aquilo que ela fazia parecia vir de nenhum lugar e ir para lugar algum, ou dizendo de outro modo, a interlocução entre professor e aluno existente em sua aula de escrita não estava inscrita na história – limitava-se a um fazer estereotipado e sem maiores questionamentos.

Para concluir nossa reflexão sobre a aula de Língua Portuguesa e os textos aí produzidos vistos sob a óptica da perspectiva histórico-social, vamos recorrer ao trabalho de Klein (1997), um dos principais expoentes brasileiros no que se refere à investigação sobre a alfabetização vista desta óptica.

É importante frisar, preliminarmente, que, longe de fazer um discurso partícipe do narcisismo humano, que coloca as individualidades em primeiro lugar, a autora parte do princípio de que, acima de tudo, e em primeiro lugar, é necessário não negar ao aluno as “condições de civilização”, ou seja, assumir que o processo de humanização se dá “pela radical e inteira socialização do indivíduo” (KLEIN, 1997, p. 86).

Especificamente no que tange ao ensino da escrita, a autora afirma:A partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, é possível afirmar que o contato da criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que esses símbolos estejam organizados correta e significativamente como linguagem, não garantem, por si sós, que a criança aprenda a linguagem escrita. Isso porque, nesta circunstância, o aprendiz estará diante de um punhado de “coisas” que não configuram a linguagem escrita. É preciso que haja homens utilizando de forma real a linguagem para que ela se configure enquanto tal. (KLEIN, 1997, p. 99-100).

Você acha que alguém aprendeu alguma coisa?

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A citação é bastante rica, mas, em primeiro lugar, parece-nos necessário destacar que, na perspectiva adotada pela autora, não se pode tentar ensinar uma criança a escrever sem levar em conta sua inserção no “mundo dos homens”. Não se trata de aprender a escrever por escrever: pelo contrário, trata-se de fazer nosso aluno compreender que aprender a escrever consiste em uma importante conquista de um instrumento precioso.

Acompanhando a evolução da humanidade, é possível perceber que a escrita não serve apenas para registrar a história ― aliás, uma de suas importantes funções ― mas também, em grande medida, ao nos auxiliar a compor textos que possam formatar novos modos de pensar em nossa sociedade, fornece-nos alguns meios para construí-la.

A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno

Para concluir de maneira mais concreta nossa reflexão sobre uma prática de ensino de escrita que não alije nem o professor nem seu aluno da história da qual são partícipes, vamos recorrer a um belo trabalho de ensino de Língua Portuguesa já explorado parcialmente em trabalho anterior (RIOLFI, 1999).

Como será que isso aconteceu? Não vamos recuperá-lo em sua integralidade, evidentemente. Trata-se aqui apenas de recortar um pequeno fragmento da prática pedagógica da professora S que, ao compreender o caráter histórico do homem, levou-o em conta no planejamento de suas aulas e, com bastante insistência, conseguiu uma preciosa conquista: fazer

com que um aluno de 13 anos, que vinha se negando obstinadamente a escrever qualquer coisa que fosse, produzisse seu primeiro texto escrito.

É importante ressaltar que este primeiro sim dito à escrita não se deu de modo isolado: ele foi contemporâneo à suspensão do emudecimento de alguns alunos, que, vindo a se envolver profundamente com um longo projeto de trabalho de pesquisa sobre as histórias de suas famílias e da construção da sua cidade ― Foz do Iguaçu ―, acabaram por poder assumir, em primeira pessoa, sua história de vida. Em equipe, os alunos produziram o volume Escrevendo a história de Foz do Iguaçu, cujo sumário segue abaixo para maior conhecimento do leitor.

1. História de Foz do Iguaçu

2. Pontos Turísticos

2.1 Parque Nacional do Iguaçu

2.2 Cataratas do Iguaçu

2.3 Marco das Três Fronteiras

2.4 Salto do Macuco

2.5 Ponte da Amizade

Que lições podemos tirar da citação que

acabamos de ler?

Como será que isso aconteceu?

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2.6 Ponte da Fraternidade

2.7 Itaipu Binacional

2.8 Ecomuseu

2.9 Aeroporto Internacional

2.10 Cassino Acaray e Cidades Paraguaias

3. História de Nossa Turma

4. Comentário

5. Referências Bibliográficas.

Assim sendo, após o trabalho quase heróico para organizar uma turma de adolescentes para, de fato, construir um projeto comum, a professora S – que, durante um longo tempo lamentava o fato de que dois de seus alunos nada escreviam, e mesmo quase nada falavam se não se levasse em conta os momentos de bagunça generalizada – teve o prazer de se surpreender com a boa adesão de um de seus alunos ao trabalho em um dia decretado por ela como sendo o “dia de falar sobre a vida”, atividade de transição entre a pesquisa dos documentos oficiais da cidade e a investigação das histórias oficiosas das famílias.

Nesse dia, seu aluno Pedro, cuja voz mal conhecia, falou ao grande grupo pela primeira vez, ainda que apenas para responder, bastante laconicamente, às perguntas dos colegas sobre sua vida. Embora não parecesse muito à vontade, após quase um ano de trabalho intenso por parte da professora, nosso aluno escreveu um texto pela primeira vez.

Não era um texto qualquer, pois, como o leitor poderá comprovar logo abaixo, inscreve o menino em uma linhagem, dando a ele um lugar na história de Foz do Iguaçu. Convido, então, o leitor a ler generosamente o texto de Pedro.

Tenho 13 anos meu nome e pedro meu pai tem 39 anos seu nome e sebastião e minha mãe tem 39 anos seu nome e maria eu naci no paraguai o meu pai na bahia e minha mae nasceu em minas gerais e eles foram morar no paraguai mas meu pai ouviu falar uma conversa que tinha uma obra grande no brasil e ia ficar muita gente e dai o meu pai comprou um lote aqui no brasil isto já faz 10 anos que nos viemo morar aqui para o meu pai trabalhar na obra logo que nos viemo para ca o meu pai ja fichou na obra e trabalhou seis anos depois eles foi despedido ele voutou para o paraguai trabalhou na agricultura mas ele deijou nos no brasil para estudar e ele de todo 15 dias ele vem visistar nos.

Remontando às suas origens, Pedro narra, ao mesmo tempo, seu drama familiar e dá a ver os efeitos da construção da hidrelétrica de Itaipu nas correntes migratórias em seu local de implantação. Seu texto, embora muito problemático do ponto de vista da norma padrão, consiste numa bela denúncia sobre as dificuldades

O que, de uma perspectiva histórico-social, o trabalho da professora S nos ensina sobre a aula de Língua Portuguesa?

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enfrentadas pelas famílias cujos “chefes”, acossados pelo desemprego, são obrigados a mudar não só de cidade mas até de país.

Concluindo nossa reflexão sobre a aula de Língua Portuguesa, relembremos que levar em conta a necessidade de assumir-se como partícipe no processo de humanização de seus alunos – que se dá pela sua socialização, isto é, sua inserção conseqüente na civilização em que grande parcela da população está à margem – exige do professor que, ao longo de todas as fases de seu trabalho, ele não esqueça do caráter histórico do homem, incluindo ele próprio.

Ao relembrar o que tem sido a história da humanidade e analisar o papel de cada um dos instrumentos que construímos em suas grandes transformações, aquele que ensina a escrever não corre o risco de tornar-se o títere vivo das tendências da moda e, conseqüentemente, conduzir sua prática de um modo que, até por ele mesmo, é ignorado. Se, por um lado, é verdade que jamais temos inteira consciência de tudo o que fazemos, por outro, não podemos esquecer que, para além do trabalho mecânico, há o gosto por aquilo que fazemos, o prazer de partilhar as conquistas, a obrigação ética de registrar nossas descobertas, para que outros dela também se beneficiem.

Nessa direção, a discussão sobre qual seria o melhor método perde sua centralidade, uma vez que é substituída por uma reflexão cultural mais ampla na qual a questão dos métodos e técnicas localizados é apenas um detalhe.

A vida não é torre de Hanói(MITSUMORI, 2005)

Eu, por tantas e tantas vezes, desejei que a vida fosse torre de Hanói. Sabe aquele jogo em que você tem que transportar uma “pirâmide” de discos de uma haste para outra, intercambiando-os de um em um entre essas duas colunas, usando também uma terceira como intermediária?

Pois é, o objetivo desse jogo é fazer um número mínimo de movimentos. Para isto, basta descobrir a lógica da relação entre as ações e estabelecer minimamente a ordem de seu encadeamento. Pronto: tudo se torna passível de previsão e de planejamento. Os movimentos estão todos conectados por uma interdependência. Assim, a consideração da jogada anterior é suficiente para antecipar o deslocamento da seguinte.

Está certo... no começo o jogo nem sempre é assim tão simples: em geral, a gente erra, volta, se atrapalha, faz um monte de movimentos totalmente “inúteis”. Mas quando se percebe que o que se tem ali é um sistema lógico, fica fácil inferir as regularidades, as leis que compõem a sua estrutura; o mistério é desfeito.

Como eu ia dizendo, muitas vezes desejei que a vida fosse como esse jogo. Pensem como seria legal: eu, professora, frente a um aluno rebelde (desses que adoram desafiar a “autoridade”, ou que se recusam a fazer qualquer coisa que não contraria o outro), só teria que procurar a técnica e os meios adequados e planejar o momento certo de sua aplicação. Além disso, um livro de receitas bastaria para que eu me tornasse uma boa cozinheira. Afinal, ele não me mostra todos os passos para se fazer um belo bolo, por exemplo?

Livro 1.indb 124 26/08/2008 14:06:26

Sim, a vida, se fosse torre de Hanói, seria (quase) perfeita: meus alunos seriam todos uns “anjos”, como professora eu não teria problema algum, meu bolo seria comestível... Mas a vida não é assim.

Por mais que se reflita, raciocine e planeje uma ação, nunca é possível saber ao certo o que virá depois. As regras, as leis que regem os acontecimentos não estão dadas de antemão e as decisões são quase sempre uma aposta. Uma aposta de que aquele é o melhor caminho, o mais certeiro, o que nos ajudará a chegar aonde queremos. Enfim, a marca da vida é essa imprevisibilidade, essa incerteza que nos deixa sempre a sensação de que as coisas “escapam por entre os dedos”.

Mas então, se tudo na vida é incerto e se os desdobramentos das ações nunca são passíveis de antecipação, porque a pedagogia insiste tanto em falar em planejamento? Planejamento educacional, planejamento pedagógico, projeto de escola, plano de aula... Não seria tudo isso uma inutilidade, uma perda de tempo?

Se pensarmos nesse tal planejamento como escudo contra toda e qualquer falha no processo, como possibilidade de previsão dos resultados, talvez possamos dizer que sim.

Porém, não seria possível pensar nessa questão em outros moldes?

Não podemos esquecer que falamos de um trabalho que é direcionado a uma outra vida humana. Assim, como não esperar que esse alguém a quem nos dirigimos saia do lugar em que estava e passe a ocupar uma outra posição? Não é essa causa que abraçamos?

Sim, e com certeza é isso que nos orienta e que nos leva a querer... planejar as ações. Mas esse planejar tem que considerar aquele imprevisível que é a marca da vida de todos nós; não pode deixar de levar em conta o desejo do outro sujeito, que pode, em última instância, seguir por rumos totalmente diversos daqueles por nós “planejados”. Caso contrário, esse planejamento vira “camisa-de-força”.

Enfim, a educação nos lança esse enorme desafio de planejar o implanejável, de prever o imprevisível, numa busca incessante (e sempre frustrada) de uma vida (quase) perfeita, feito torre de Hanói.

1

Você se lembra de uma peça que se compra em papelarias ou outras casas do ramo que se chama livro de ouro? Trata-se de um caderno grande, feito à moda de um livro, normalmente encadernado de maneira primorosa, com tecido ou couro. Além dos velórios, onde cumpriam a tarefa de registrar para as famílias quem tinha honrado os funerais de um ente querido, eles normalmente eram usados em minha cidade natal para anotar os “feitos” ilustres de seus habitantes.

Na época, cada escola tinha o seu livro de ouro, e para lá iam os registros dos sucessos publicamente reconhecidos de seus alunos, como por exemplo, a história de alguém que ganhou os cem metros rasos, ou o torneio de xadrez, ou o concurso municipal de redação promovido pela Caixa Econômica Federal. Quando criança, eu era fascinada por esses livros em branco. Suas páginas sem tinta eram para mim um permanente convite para preenchê-las, com os

1As atividades que se seguem consistem em

uma adaptação daquelas pre-viamente apresentadas em Riolfi, 2004.

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pequenos “feitos” de minha vida de menina. Embora em outros tempos, nós também temos direito ao nosso livro de ouro. No momento preciso, cada um vai transcrever lá (na página indicada pelo monitor da turma), com sua melhor letra, a versão final de seu texto. Que seja também o melhor que cada um de nós puder produzir!

Passo 1 – Preparação em grupo para o trabalho Trabalhando em pequenos grupos por cerca de meia hora, leia o texto “Um

dia de Professor” e, em voz alta, tente lembrar-se de um momento semelhante ocorrido em sua vida. Ou seja: a idéia central do trabalho no pequeno grupo é tentar recuperar historietas verídicas nas quais a escrita exerceu um papel importante em sua prática pedagógica. Valem lembranças de algo que alguém escreveu para você ou que você escreveu para alguém.

Também pode ser a narrativa dos efeitos da leitura de um texto (de um livro ou de um texto menor), ou seja, pode ser o testemunho da influência de um escrito sobre sua formação como professor, mesmo que o autor não tenha ficado sabendo de seu sucesso. Anote os pontos importantes de sua própria narrativa oral e leve para casa. Marque também as eventuais reações de seus companheiros de grupo (perguntas, expressão de surpresa ou de descrédito, riso etc.) e, mais tarde, organize suas anotações na forma de um esboço descompromissado e informal.

Passo 2 – Trabalho individualConsidere atentamente seu primeiro esboço como ponto de partida. Então,

sigamos os procedimentos adotados por uma autora americana: Lucy Calkins, pessoa para quem a escrita ainda mantém a sua mística e a sua mágica. Para ela, escrever não é uma ação entre outras, mas corresponde à opção por um estilo de vida, como se lê no belo excerto abaixo sobre o texto ensaístico.

O ensaio é, acima de tudo, um modo de vida. As pessoas que escrevem regularmente vivem com um senso de “sou alguém que escreve”, e esta consciência engendra uma extra-suscetibilidade, uma consciência extra. “As estórias acontecem para aqueles que escrevem” diria Tucídides. Exatamente como os fotógrafos estão sempre observando fotos potenciais, também os escritores vêem histórias em potencial, onde quer que olhem. (CALKINS, 1989, p. 30).

Estamos agora atrás dessa “extra-suscetibilidade”, visando a transformar os esboços trazidos como lição de casa por nós narrando um fragmento de nossa vida real em um belo texto ficcional ou ensaístico. Precisamos tocar o outro com nossa escrita, comovê-lo, tentar resgatar nele o prazer de escrever que talvez se esconda ainda em um belo lugar. Transcrevi, abaixo, um texto que, há poucos anos, teve o poder de resgatar em mim lembranças adormecidas sobre o início de minha carreira, quando também eu andava nos ônibus de minha cidade carregando enormes pacotes de redação para corrigir. Escolhi-o como “modelo” porque o achei belo e sensível e, também, porque parece muito com sua autora, uma vez que mostra um pouco dela.

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Um dia de professorGisane Márcia Carvalho Dinnouti 2

Ah! Minhas aulas na graduação! Tantos sonhos! Uma sensação que se sabe de tudo, pode tudo. Mudar o mundo? Fácil! Ser um professor carismático, competente e influente? Tranqüilo! Mas no meio do caminho havia uma pedra.

Uma não! Milhares! Penso eu, já professora efetiva, cansada daquele dia, daquele ônibus que não chega nunca, daquela bolsa cheia de trabalhos para corrigir. Parada no ponto do ônibus, movo-me em pensamentos sobre o que sou, onde estou, por que e para que estou ali.

“Ninguém dá valor ao nosso trabalho, ninguém vê as horas que gastamos para preparar uma atividade pensando em uma aula legal, lendo. Ninguém contabiliza as horas gastas na correção de exercícios, na leitura de redações e trabalho”, penso eu, chutando as pedras que incomodam no meu caminho.

Lembro-me das aulas daquele dia: nas oitavas e na 6.ª B. As oitavas são um desafio a qualquer especialista em motivação de adolescentes. Os alunos já chegam perguntando: “Algum professor faltou hoje? Tem aula vaga? Vamos sair mais cedo?” As oitavas já tinham me colocado em “modo de segurança”.

Quando isso acontece, evito sorrir, falo menos, já chego em sala colocando os objetivos da aula na lousa. Agora, era a vez da 6.ª B: depois do recreio, alunos suados e recarregados. Respirei fundo.

Entrei na sala sem dizer muita coisa. Apaguei a lousa e dei algum tempo para que eles se sentassem, se acalmassem. Comecei a aula pedindo atenção, silêncio: umas dez vezes para começar. Comecei a chamá-los pelos nomes:

― André! Volte para o seu lugar que a aula já começou!

― Luana! Você já ouviu o que eu disse? Luana!

Cheguei bem perto e apelei para nossa amizade, em tom mais duro:

― Luana, por favor!

Daí por diante, ela ficou em silêncio total. Não adiantava eu chamar para que ela participasse do debate da aula: a Luana tinha ficado muda.

Chegou o ônibus, começou o trajeto que duraria 50 minutos até a minha casa. A bolsa estava pesada sobre a minha perna. Então, lembrei-me dos trabalhos que ali estavam para serem corrigidos. Abri a bolsa e logo vi um envelope feito à mão endereçado a mim. Abri. Era um bilhete da Luana.

Nele, ela pedia desculpas pelo seu comportamento. Ela disse que gostava das aulas, mas não conseguia parar de falar. Ela disse que era assim com sua mãe também: ela brigava com a sua mãe sem saber por quê. E terminou dizendo:

— Um beijo, te amo, Luana.

Guardei com cuidado aquele bilhete. Guardei. Não vou corrigir, não vou devolver. E a beleza daquele momento inundou a minha vida inteira.

2Professora da Rede Municipal de Cam-

pinas - SP.

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Passo 3 – Trabalho em grupoTrabalhar em pequenos grupos, se possível fazendo bem pouco barulho, para não atrapalhar a

concentração dos demais. São sugeridos os passos abaixo.

1. Mostre o seu esboço a um colega e, por sua vez, receba o que ele trouxe para ser trabalhado.

2. Com relação ao texto que você recebeu para ler, seja muito generoso. Ou seja, não se limite a dizer algo genérico como “está ótimo”, mas ajude o seu parceiro a construir um bom produto escrito. Lembre-se que agora não é a hora de trabalhar na correção do texto, mas na sua idéia. Em uma folha à parte, anote:

as sensações que o texto lhe causou;

as eventuais estranhezas no encadeamento das idéias;

o que você julga ser o ponto alto;

as coisas que você eventualmente não teria escrito, uma vez que estão sobrando no texto;

as lacunas percebidas por você, no sentido de colocar a idéia de forma mais precisa.

Devolva o texto e suas anotações ao seu parceiro e receba o seu.

3. Desfaça esse primeiro grupo de trabalho. Solitariamente, considere as anotações recebidas e escreva no papel sulfite um primeiro esboço, um pouco mais elaborado, de seu texto.

4. Monte novo grupo de trabalho com um novo parceiro, que ainda não leu seu texto. Peça a ele para revisar cuidadosamente o que você escreveu e faça o mesmo com o texto dele. Na dúvida, agora é a hora de usar os dicionários e as gramáticas. Seu parceiro usou palavras repetidas, ajude-o a encontrar sinônimos. Ele usa sempre a mesma estrutura (por exemplo, começa todos os parágrafos com “então”), ajude-o a encontrar alternativas. Uma frase ou parágrafo ficou “chata” de se ler, pense em uma nova formulação que possa torná-la mais interessante. Usando um lápis, rabisque à vontade o texto do parceiro. Ele também está fazendo isso no seu – logo, não há motivos para se envergonhar. Colabore e trabalhe ativamente, não tenha preguiça, não pule pedaços. Após vocês dois terminarem, conversem sobre as mudanças sugeridas. Reflitam conjuntamente sobre as sugestões feitas.

5. Solitariamente, pense sobre tudo que ouviu e decida como é que você vai transcrever a versão final do seu texto no papel almaço. Escreva lá um pequeno currículo seu. Se tiver vontade, coloque um meio de contato, para as pessoas poderem encontrar você. Entregue sua versão final ao monitor.

Passo 4 – Finalizando individualmente o trabalho O monitor de sua turma deve organizar um sistema de revezamento por meio do qual todos

possam ter a oportunidade de transcrever a versão final de seus textos no livro de ouro. É a hora de pensar em sua forma! Você prefere transcrever em uma única cor ou vai usar várias? Vai fazer um pequeno desenho ou caricatura como ilustração? Vai desenhar uma bela borda para separar as informações de seu currículo do texto? Vai usar lápis de cor para tornar o fundo de sua página (ou páginas) diferente das demais? Vai colar uma foto sua no cabeçalho? Isso tudo é você quem decide.

O importante agora é trabalhar na imagem do seu texto para deixar a sua página do livro “com a sua cara”. Como ninguém melhor do que você para saber como ela é, torne-a sua, editando do seu modo.

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Leia o fragmento em que Calkins reflete sobre a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Às vezes, as pessoas perguntam-me o que penso ser a mensagem mais importante a transmitir para os professores de crianças pequenas. Minha resposta é simples: quero que os professores saboreiem aquilo que os alunos fazem. (CALKINS, 1989, p. 58).

Você concorda com o que ela diz?

CALKINS, Lucy McCormick. A arte de ensinar a escrever: o desenvolvimento do discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

Tematizando o “ensino de redação”, trata-se de um livro muito abrangente, escrito de um modo simples, bastante agradável para se ler. Está repleto de sugestões que podem ser colocadas em prática, desde a pré-escola até o segundo grau, por todos aqueles que desejam ensinar a escrever. Contem capítulos sobre o ensino de poesia, ficção e escrita de relatórios, consistindo, portanto, em leitura imperdível para todos que estão preocupados com o desenvolvimento do discurso escrito de seus alunos.

CALKINS, Lucy McCormick. A arte de ensinar a escrever: o desenvolvimento do discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

KLEIN, Lígia Regina. Alfabetização: quem tem medo de ensinar? São Paulo/Campo Grande: Cortez/Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 1997.

MAGNANI, Maria do Rosário Mortati. Os sentidos da alfabetização: a questão dos métodos e a constituição de um objeto de estudo – São Paulo, 1876-1994. Presidente Prudente, 1997. Tese de Livre-docência. Unesp.

MITSUMORI, Nanci Miyo. Matizes da educação inclusiva: um diálogo psicanálise-educação. São Paulo, 2005. Tese de Doutorado em Educação. Feusp.

RIOLFI, Claudia Rosa. O discurso que sustenta a prática pedagógica: Formação de professor de língua materna. Campinas, 1999. Tese de doutorado. IEL/Unicamp.

_____. Ensinar a escrever: considerações sobre a especificidade do trabalho da escrita. Revista da Associação de Leitura do Brasil. Campinas, n. 40, p. 47-51, jan./jul. 2003.

_____. O declínio do império da letra: implicando-se na invenção de uma “nova transa” com a escrita. In: TRIVELATO, Sílvia L. Frateschi. Alfabetização e letramento: um compromisso de todas as áreas. São Paulo: Fafe/Feusp, 2004.

RIOLFI, Cláudia Rosa et al. Ensinar a língua portuguesa no século XXI: desafios e perspectivas para o Ensino Fundamental II. São Paulo: Fafe/Feusp, no prelo.

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Anotações

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