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cone)(ões

CCNDOl51wnacoleç.lodlrlplapor Marie Cristina Frana> fenaz e apiamb

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ANt0NIN Al:rAUO - O annlo do corpo te111 cSrgios • Daíd U111

PlATAo-AJ u1imlMa do fingimfflto • M.ril Cristi• fmu;o Fmu

NOISO S8CtAO XXI - Notas sobre arte. IKnica e podera a /inua úiafe DIFm:NçA E NllGAÇÃO NA POE5lA Ofl FEIINANDO Pei&oA a /o,i C,1

PAIIA UMA P0IJncA DA AMIZADl!-Al'ffldt. Omida, Fouault • franci,a, Omge

ENT1a ClllOADO I SARl 01 SI - Sob~ Foucault e a pslanálbe • fotl Bi""'n ALalA: A FORÇA MAIOR 8 CJáNnt ~

()er09cul.o DOS lDOUls- Ou como filolofu com o martelo • Frlolrlclt Nlmldtt

Vu.11GF.NS POH«xlUNA5 - Conflgurlç6es lnstitudonals oontemporlntu • L11â Cmo, F~

Nlltl"ZIOtl - Mdaf&la, nill1smo • Mmin ffridtJgu

MAL D11 Al(IUl\'O - Uma lmpn!ldo freudiana a /,qun Omu.

'fm TDl"05soal! A Hl5IÚtlA O-' LOUallA 8 /acip,a Drrriâ ~ Midtd Foua11II

No dllculO dNICo - Ou por que negar" psicanáliw .. canalhas . litnollffll~ FaacflA DA CAIXA l"IEJA - Ensaioe par. uma futun libo6a da lotograflaa VIJllln....,

N0vt VAIIAÇÕIS .-S TINAS Nl2T2SCHIAN06 a M.ria CristiJw fraco HmC

0 HIMM l'05-GICÃNICO - Corpo. aubjetiYidade e tecnologiu digitais a ,...SlliRM

05 ADO DA SUil'IITA - Nimlcbe e o perspediYismo • Sll1* Púltotta vca.,Ra A~ DO fatA - Blanchoc. Poucaa1t e Oeleuu a 11tia,,1 Sakwr lny 5-luNDA CXlN5lDFJlAÇÃO lNT!Ml'$S11VA - O, utilidJlde e davantagm, d.a histdril. pua a vid1 • Frit4rldt Nittudtt

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Friedrich Nietuche

SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA

Da utilidade e desvantagem da história para a vida

'fRAouçAo Marro Ant6nio Casanova

Rl!LUM c ,lt O U MAR Á

Rio d t f•uiro 2003

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Título Original: Unzeitgemãsse Betrachtungen - Zweites Stiik: Vom Nutzen

und Nachtheil der Historie für das Leben DTV /De Gruyter (Oie Geburt der Tragõdie - Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und

Mazzino Montinari) - KSA Volume 4.

© Copyright 2003 Direitos da tradução cedidos para

01.JMARÁ DISTRIBUIDORA DE PuBUCAÇôES LTDA. Travessa Juraci, 37 - Penha Circular

21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 - Fax: (21) 2590 0135 E-mail: [email protected]

Die Herausgabe diesses Werkes wurde aus Mitteln des Goethe-lnstituts Inter Nationes gefõrdert Este trabalho foi publicado com o apoio do

Instituto Goethe lnter Nationes

Revisão téc11ica da tradução Emani Chaves

Revisão Gustavo Bernardo

Editoração Dilmo Milheiros

Capa Simone Villas-Boas

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

NS81s Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900

03-1554

Segunda consideração intempestiva : da utilidade e desvan­tagem da história para a vida / Friedrich Nietzsche ; tradução Marco Antônio Casanova. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2003

- (Conexões; 20)

Tradução de: Unzeitgemãsse Betrachtungen - Zweites Stük : Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben

ISBN 85-7316-329-1

1. Filosofia alemã. 2. História - Estudo e ensino. I. Título. U. Série.

CDD 193 CDU 1(43)

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autoriz.ada desta pu.blicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial. constitui violação da Lei nº 5.988.

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--------cone)(ões--------

"D e resto, me é odioso tudo o que simplesmente me ins-

trui, sem aumentar ou imediatamente vivificar a minha ati­vidade."1 Estas são palavras de Goethe, com as quais, sem­pre com um expressamente corajoso ceterum censeo, pode­mos começar nossas considerações sobre o valor e a falta de valor da história.2 Nestas considerações, deve ser em ver­dade apresentado, porque instrução sem vivificação, o sa­ber no qual a atividade adormece; a história tomada como um precioso supérfluo e luxo do conhecimento deveriam ser, segundo as palavras de Goethe, verdadeiramente odio­sos para nós - na medida em que ainda nos falta o mais necessário e porque o supérfluo é o inimigo do necessário. Certamente precisamos da história, mas não como o passeante mimado no jardim do saber, por mais que este olhe certamente com desprezo para as nossas carências e penúrias rudes e sem graça. Isto significa: precisamos dela para a vida e para a ação, não para o abandono confortável da vida ou da ação ou mesmo para o embelezamento da vida egoísta e da ação covarde e ruim. Somente na medida em que a história serve à vida queremos servi-la. Mas há um grau que impulsiona a história e a avalia, onde a vida definha e se degrada: um fenômeno que, por mais doloroso que seja, se descobre justamente agora, em meio aos sinto­mas mais peculiares de nosso tempo.

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6 fRIEORICH N IETZSOlE

Esforcei-me em descrever um sentimento que me tem, com freqüência, atormentado suficientemente; vingar-me­ei dele, abandonando-o à esfera pública. Talvez alguém, por meio de uma tal descrição, seja provocado a declarar-me que de fato também conhece este sentimento, mas que eu não o senti de maneira suficientemente pura e originária, que não o expressei de modo algum com a devida seguran­ça e maturidade da experiência. Talvez seja assim com um ou com outro; no entanto, a maioria me dirá que este seria um sentimento completamente perverso, nada natural, de­testável e simplesmente inadmissível, que com ele me mos­trei indigno de um direcionamento tão poderoso do tempo histórico, tal como este, sabemos, deve ser percebido há duas gerações e sobretudo entre os alemães. Em todo caso, po­rém, o fato de me aventurar na descrição da natureza de meu sentimento deve antes favorecer do que ferir o bom decoro geral, uma vez que darei a muitos a oportunidade de render homenagens a um direcionamento tal como o acima mencionado. Para mim, contudo, é bem provável que conquiste algo ainda mais valioso do que o bom decoro ge­ral - ser publicamente instruído e alcançar uma posição correta sobre a nossa época.

Esta consideração também é intempestiva porque tento compreender aqui, pela primeira vez, algo de que a época está com razão orgulhosa - sua formação histórica como prejuízo, rompimento e deficiência da época - porque até mesmo acredito que padecemo~ todos de uma ardente fe­bre histórica e ao menos devíamos reconhecer que padece­mos dela. Todavia, se Goethe disse com toda razão que com nossas virtudes também cultivamos, ao mesmo tempo, nos­sos erros,3 e se, como todo mundo sabe, uma virtude hipertrofiada - tal como me parece ser o sentido histórico de nosso tempo - pode se tomar tão boa para a degradação de um povo quanto um vício hipertrofiado, então deixem-

M ateria! com direitos autorais

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SEGUNDA COr-."SIOERAÇÃO INTEMPESTIVA 7

me fazer isso pelo menos uma vez. Também não deve ser silenciado, para me aliviar, que as experiências que me in­citaram aqueles sentimentos torturantes foram extraídas, na maioria das vezes, de mim mesmo e de outros, o foram ape­nas por comparação; e que eu, apenas eu, enquanto pupilo de tempos mais antigos, especialmente dos gregos, cheguei, além de mim, como um filho da época atual, a experiências tão intempestivas. De qualquer modo, não há mais nada que precise conceder a mim mesmo em virtude de minha profissão como filólogo clássico: pois não saberia que senti­do teria a filologia clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva - ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro.

1.

Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duram.ente o homem porque ele se vangloria de sua huma­nidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade - pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esque­ce o que queria dizer, mas também já esqueceu esta respos­ta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso.

Todavia, o homem também se admira de si mesmo por

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8 FRIEDRICH NIETZSCHE

não poder aprender a esquecer e por sempre se ver nova­mente preso ao que passou: por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto. É um milagre: o instante em um átimo está aí, em um átimo já passou, antes um nada, depois um nada, retoma entretanto ainda como um fantas­ma e perturba a tranqüilidade de um instante posterior. Incessantemente uma folha se destaca da roldana do tem­po, cai e é carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Então, o homem diz: "eu me lembro", e inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite e extinguir-se para sempre. Assim, o animal vive a-historica­mente: ele passa pelo presente como um número, sem que reste uma estranha quebra. Ele não sabe se disfarçar, não esconde nada e aparece a todo momento plenamente como o que é, ou seja, não pode ser outra coisa senão sincero. O homem, ao contrário, contrapõe-se ao grande e cada vez maior peso do que passou: este peso o oprime ou o inclina para o seu lado, incomodando os seus passos como um far­do invisível e obscuro que ele pode por vezes aparentemente negar e que, no convívio com seus iguais, nega com prazer: para lhes despertar inveja. Por isso o aflige, como se pen­sasse em um paraíso perdido, ver o gado pastando, ou, em uma proximidade mais familiar, a criança que ainda não tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em uma bem-aventurada cegueira. E, no entanto, é preciso que sua brin.cadeira seja perturbada: cedo demais a criança é arrancada ao esquecimento. Então ela aprende a entender a expressão "foi", a senha através da qual a luta, o sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no fundo a sua existência -um imperfectum que nunca pode ser acabado. Se a morte traz por fim o ansiado esquecer, então ela extingue ao mes­mo tempo o presente e a existência, imprimindo, com isto,

M ateria! cor direitos autorais

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o selo sobre aquele oonhecimento de que a existência é ape­nas um ininterrupto ter sido, uma coisa que "!Je de se ne­gar e de se consumir, de se autocontradiz.er /

Se uma feliàdade, um anseío por uma· nova felicidade é, em certo sentido, o que mantém o vivente preso à vida e continua impelind<>-<> para ela, então talvez nenhum filóso­fo tenha mais razão do que o cínioo: pois a fellàdade do animal. como a do cínico perfeito, é a prova viva da razão do ci.nism.o. A núnima fellàdade, contanto que seja ininter­rupta e faça feliz, é incomparavelmente maior do que a maior felícidade que só venha episodicamente, como capricho, como um incidente desvairado, entre puro desprazer, de­sejo e privação/No entanto, em meio à menor como em meio à maior felicidade é sempre uma coisa que toma a felicida· de o que ela é: o poder-e6quecer ou, dito de maneira·mals

erudita, a faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duração. Quem pode se instalar no lmúar do instante,

esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem verti­gem e sem medo, nunca saberá o que é felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que tome os outros felizes. Pensem no exemplo mais extremo, um homem que não pos.sllÍSBe de

modo algum a força de esquecer e que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser. tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não aaedita mais em si. vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesta torrente do vir-a-ser: romo o leal discípulo de Heráclito, quase não

se atreverá mais a levantar o dedo.' A todo agir liga-se um esquecer: assim oomo a vida de tudo o que é orgânico diz

respeito não apenas à luz, mas também à obscuridade. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante ao que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse de víver apenas de ruminação e de ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver

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10 fRIEDRJOi NIETZSCHE

quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como o mos­tra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento. Ou, para explicar-me ainda mais faàlmente sobre meu tema: há um grau de insônia, de rumina­ção, de sentido hist6rico, ,w qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo 011 uma cultura.

Para determinar este grau e, através dele, então, o limi­te, no interior do qual o que passou precisa ser esquecido, caso ele não deva se tomar o coveiro do presente, seria pre­àso saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transforman­do e incorporando o que é estranho e passado, curando fe­ridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mes­ma as formas partidas. Há homens que possuem tão pouco esta força que, em uma única vivência, em uma única dor, freqüentemente mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um pequenino corte; por outro lado, há homens nos quais os mais terríveis e horripilantes acontecimentos da vida e mes­mo os atos de sua própria maldade afetam tão pouco que os levam em meio deles ou logo em seguida a um suportá­vel bem-estar e a uma espécie de consciência tranqüila. Quanto mais a natureza mais íntima de um homem tem raízes fortes, tanto mais ele estará em condições de domi­nar e de se apropria.r também do passado; e se se pensasse a natureza mais poderosa e mais descomunal, ela se faria reconhecer no fato de que não haveria para ela absoluta­mente nenhum limite do sentido histórico que possibilitas­se a sua ação de maneira sufocante e nociva; aquele homem traria todo o passado para junto de si, o seu próprio passa­do e o que dele estivesse mais distante, incorporaria a si e como que o transformaria em sangue. O que uma tal natu­reza não subjuga, ela sabe esquecer; esse homem não existe

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SECUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 11

mais, o horizonte está fechado e completo, e nada consegue fazer lembrar que para além deste horizonte há ainda ho­mens, paixões, doutrinas, metas. E isto é uma lei universa~ cada vivente só pode tomar-se saudável, forte e frutífero no interior de um horizonte; se ele é incapaz de traçar um horizonte em tomo de si, e, em contrapartida, se ele pensa demasiado em si mesmo para incluir no interior do próprio olhar um olhar estranho, então definha e decai lenta ou pre­cipitadamente em seu ocaso oportuno. A serenidade, a boa consciência, a ação feliz, a confiança no que está por vir -tudo isto depende, tanto nos indivíduos como no povo, de que haja uma linha separando o que é claro, alcançável com o olhar, do obscuro e impossível de ser esclarecido; que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lem­brar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso ins­tinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é justamente a sentença que o lei­tor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são 11a mesma medida necessários para a sa1íde de 11111 indivíduo, um povo e uma cultura.

De início, há aqui uma observação que cada um pode fazer: a sensação e o saber históricos de um homem podem ser muito limitados, seu horizonte tão estreito quanto o de um habitante de um vale nos Alpes; em cada juízo pode residir uma injustiça, em cada experiência o erro de supor ter sido o primeiro a vivenciá-la - e, apesar de toda injusti­ça e de todo erro, ele se encontra aí com urna saúde e um vigor insuperáveis, alegrando qualquer olho; enquanto isso, bem ao seu lado, um homem muito mais justo e erudito adoece e sucumbe justamente porque as linhas de seu hori­zonte se deslocam sempre de novo, inquietas, porque ele não se desembaraça da rede muito frágil de suas justiças e verdades e novamente se volta em direção a um forte que­rer e desejar. Em contrapartida, vemos o animal que é total-

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12 FR!EDRIOI NnrrzscHE

mente a-histórico e quase mora no interior de um horizonte pontual - no entanto, vive em uma certa felicidade, ao me­nos sem enfado e sem disfarces. Portanto, podemos ter a capacidade de sentir a-historicamente, de perseverarmos em direção ao mais importante e originário, uma vez que aí

reside o fundamento sobre o qual pode crescer algo reto, saudável e grandioso, algo verdadeiramente humano. O a-histórico é similar a uma atmosfera que nos envolve e na qual a vida se produz sozinha, para desaparecer uma vez mais com a aniquilação desta atmosfera. É verdade: somente pelo fato de o homem limitar esse elemento a-histórico pen­sando, refletindo, comparando, separando e concluindo; somente pelo fato de surgir no interior dessa névoa que nos circunda um feixe de luz muito claro, relampejante, ou seja, somente pela capacidade de usar o que passou em prol da vida e de fazer história uma vez mais a partir do que acon­teceu, o homem se toma homem. No entanto, em um exces­so de história, o homem deixa novamente de ser homem, e, sem aquele invólucro do a-histórico, nunca teria começado e jamais teria ousado começar. Onde encontramos feitos que puderam ser empreendidos pelo homem sem antes imis­cuir-se naquela névoa espessa do a-histórico? Ou, para dei­xar as imagens de lado e passar à ilustração através de exem­plos: imagine-se um homem mobilizado e impelido por uma paixão violenta por uma mulher ou por um grande pensa­mento - como o seu mundo se transforma para ele! Olhan­do para trás, ele se sente cego; escutando o que se passa ao seu redor, percebe o estranho como um som surdo e des­provido de significação; o que em geral percebe, ele jamais tinha percebido assim antes; tão sensivelmente próximo, colorido, ressonante, iluminado, como se ele o apreendesse ao mesmo tempo com todos os sentidos. Todas as suas ava­liações se transformaram e se desvalorizaram; tantas coisas ele não está mais em condições de avaliar, porque quase

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SECUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 13

não pode mais senti-las: ele se pergunta se não fora por tan­to tempo senão o bobo de palavras e opiniões alheias; ele se espanta que sua memória gire incansavelmente em órculos e esteja fraca e cansada para dar quiçá um único salto para fora deste órculo. Este é o estado mais injusto do mundo, estreito, ingrato frente ao que passou, cego para os perigos, surdo em relação às advertências, um pequeno e vivo rede­moinho em um mar morto de noite e esquecimento: e, con­tudo, este estado - a-histórico, contra-histórico de ponta a ponta - é o ventre não apenas de um feito injusto, mas mui­to mais de todo e qualquer feito reto; e nenhum artista al­cançará a sua pintura, nenhum general a sua vitória, ne­nhum povo a sua liberdade, sem ter antes desejado e alme­jado vivenciar cada uma delas em meio a um tal estado. Como o homem de ação, segundo a expressão de Goethe, é sempre desprovido de consciência, ele também é desprovi­do de saber, esquece a maior parte das coisas para fazer uma apenas, é injusto com o que se encontra atrás dele e só conhece um direito, o direito daquilo que deve vir a ser agora.5 Assim, todo homem de ação ama infinitamente mais o seu feito do que este merecia ser amado: e os melhores feitos acontecem em meio a uma tal superabundância de amor que, mesmo se o seu valor fosse incalculavelmente grande também em outros aspectos, em todo caso eles ain­da deveriam ser indignos deste amor.

Se alguém estivesse em condições de inalar e respirar em inúmeros casos esta atmosfera a-histórica na qual surgi­ram todos os grandes acontecimentos históricos, então tal­vez lhe fosse possível, enquanto um ser cognoscente, ele­var-se a um ponto de vista supra-histórico, tal como Niebuhr o descreveu certa vez como um resultado possível das con­siderações históricas. "Para uma coisa ao menos", disse ele, "a história, clara e detalhadamente concebida, é útil: para que se perceba também o quanto os maiores e mais eleva-

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14 FRJIDRJCH NIETZSCHE

dos espíritos de nossa espécie humana não sabem o quão casualmente seus olhos assumiram a forma através da qual eles vêem e exigem de cada um com violência que veja; vio­lentamente, em verdade, porque a intensidade de sua cons­ciência é excepcionalmente grande. Quem não compreen­deu e percebeu isto de maneira correta em muitos casos é subjugado pela manifestação de um espírito poderoso que insere em uma forma dada a mais elevada passionalidade."6

Denominaríamos como supra-histórico um tal ponto de vis­ta, porque alguém que o assume não poderia mais se sentir de maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da história, uma vez que reco­nheceria a condição de todo acontecimento, aquela ceguei­ra e injustiça na alma do agente; aquele alguém estaria cu­rado do risco de tomar a partir de então a história exagera­damente a sério, pois aprenderia com cada homem, a cada vivência entre gregos ou turcos, em uma hora do século um ou do século dezenove, a responder à pergunta como e para que se viveu. Quem perguntar a seus conhecidos se eles desejariam atravessar uma vez mais os últimos dez ou vin­te anos de suas vidas perceberá, com facilidade, qual deles está preparado para aquele ponto de vista supra-histórico: com certeza, todos responderão "não!", mas eles irão fun. damentar diversamente este "não!". Uns talvez por se con­solarem com um "mas os próximos vinte anos serão melho­res"; eles são aqueles de quem David Hume fala de manei­ra jocosa:

A11d from the dregs of life hope to receive, What lhe first sprightly running could not give.1

Nós os denominaremos os homens históricos; o olhar para o passado os impele para o futuro, acende a sua cora­gem para manter-se por mais tempo em vida, inflama a es-

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SEGUNDA OONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 15

perança de que a justiça ainda está por vir, de que a felià­dade está sentada por detrás da montanha para a qual es­tão se dirigindo. Estes homens históricos acreditam que o sentido da existênàa se iluminará no decorrer de um pro­cesse. Assim, apenas por isto, eles só olham para trás a fim de, em meio à consideração do processo até aqui, compre­ender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosa­mente; eles não sabem o quão a-historicamente eles pen­sam e agem apesar de toda a sua história, e como mesmo a sua ocupação com a história não se encontra a serviço do conheàmento puro, mas sim da vida.

Mas aquela pergunta, cuja primeira resposta acabamos de ouvir, também pode ser respondida de uma outra for­ma. Com certeza, uma vez mais com um "não!", mas com um não diversamente fundamentado. Com um não do ho­mem supra-histórico, que não vê a cura no processo e para o qual o mundo em cada instante singular está pronto e acabado. O que poderiam dez anos ensinar que os últimos dez não tenham já ensinado?

Então, se o sentido da doutrina é felicidade ou resigna­ção, virtude ou expiação, neste caso os homens supra-his­tóricos nunca estiveram de acordo uns com os outros; no entanto, diante de todos os tipos de consideração histórica do passado, eles chegam à plena unanimidade quanto ao prinópio: o passado e o presente são um e o mesmo, isto é, em toda a multipliàdade tipicamente iguais: enquanto oni­presença de tipos irnpereáveis, dá-se inerte a composição de um valor igualmente imperecível e eternamente igual em sua significação. Como às centenas de línguas diversas correspondem as mesmas necessidades típicas e fixas dos homens de tal modo que quem as compreendesse não con­seguiria aprender nada de novo em todas as Unguas, assim também o pensador supra-histórico esclarece para si mes­mo toda a história dos povos e dos indivíduos a partir dela

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16 FRIEDRIOi Numscm

mesma, decifrando como um visionário o sentido originá­rio dos diferentes hieróglifos e paulatinamente se afasta cansado até mesmo dos sinais que sempre afluem nova­mente: pois, em meio à profusão infinita do que acontece, como não chegaria à saturação e à sobressaturação, sim, mesmo ao nojo?!? De modo que, por fim, talvez o mais ousado esteja pronto para dizer, com Giacomo Leopardi, ao seu coração:

"Nada vive que digno Fosse de tuas emoções, e nenhum suspiro merece

a terra. Dor e tédio são nosso ser e sórdido é

o mundo - nada além disto. Aquieta-te."

Mas deixemos o homem supra-histórico com o seu nojo e a sua sabedoria: hoje queremos muito mais nos alegrar urna vez de todo o coração com a nossa ignorância e nos desejar um bom dia como homens de ação e de progresso, como os adoradores do processo. Gostaria que a nossa ava­liação da história fosse apenas um preconceito ocidental, contanto que venhamos, no mínimo, a progredir no interior deste preconceito e não fiquemos parados! Contanto que aprendamos .cada vez melhor exatamente isto: a impulsio­nar a história a serviço da vida! Neste caso, confessaríamos com prazer aos homens supra-históricos que eles possuem mais sabedoria do que nós, desde que estejamos certos de possuir mais vida do que eles: pois assim nossa ignorância terá de qualquer modo mais futuro do que a sua sabedoria. E para que não subsista absolutamente nenhuma dúvida quanto ao sentido desta contradição entre vida e sabedoria, quero utilizar em meu auxílio um antigo procedimento tes­

tado e aprovado e apresentar diretamente algumas teses.

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Um fenômeno histórico, conhecido pura e completamen­te e dissolvido em um fenômeno do conhecimento, está morto para aquele que o conheceu: pois ele reconheceu nele a ilusão, a injustiça, a paixão cega e em geral todo o hori­zonte profano envolto em obscuridade daquele fenômeno, e, ao mesmo tempo, justamente aí o seu poder histórico. Para o que detém o saber, este poder tomou-se agora impo­tente - mas talvez ainda não para o vivente.

Pensada como ciência pura e tornada soberana, a histó­ria seria uma espécie de conclusão da vida e de balanço fi. nal para a humanidade. A cultura histórica só é efetivamente algo salutar e frutífero para o futuro em conseqüência de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura, por exemplo; portanto, só se ela é dominada e conduzida por uma força mais elevada e não quando ela mesma domina e conduz.

A história, uma vez que se encontra a serviço da vida, se encontra a serviço de um poder a-histórico, e por isto jamais, nesta hierarquia, poderá e deverá se tomar ciência pura, mais ou menos como o é a matemática. Mas a pergun­ta "até que grau a vida necessita em geral do auxílio da his­tória?" é uma das perguntas e preocupações mais elevadas no que concerne à saúde de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois, em meio a um certo excesso de história, a vida desmorona e se degenera, e, por fim, através desta degeneração, o mesmo se repete com a própria história.

2.

Mas que a vida necessite da história precisa ser tão cla­ramente concebido quanto a formulação que precisará ser posteriormente demonstrada - que um excesso de história prejudica o vivente. A história é pertinente ao vivente em três aspectos: ela lhe é pertinente conforme ele age e aspira,

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preserva e venera, sofre e carece de libertação. A esta tripla ligação correspondem três espécies de história, uma vez que é permitido diferenciar entre uma espécie monumental, uma espécie antiquária e uma espécie crítica de história.

A história diz respeito antes de tudo ao homem ativo e poderoso, ao homem que luta em uma grande batalha e que precisa de modelos, mestres, consoladores e que não per­mite que ele se encontre entre seus contemporâneos e no seu presente. É desta forma que ela parecia a Schiller: pois, como dizia Goethe, nosso tempo é tão ruim que o poeta não encontra mais na vida humana à sua volta nenhuma natu­reza utilizável.8 Para retomar os que agem, Polybio, por exemplo, denomina a história política como preparação cor­reta para o governo de um Estado e a mestra mais primo­rosa9 que, por intermédio da lembra.nça dos infortúnios alheios, nos exorta a suportar firmemente as oscilações da sorte. Quem aprendeu a reconhecer aí o sentido da história deve ficar aborrecido de ver os viajantes curiosos ou os mi­crologistas desagradáveis tentando escalar as pirâmides de grandes eras do passado; lá onde ele encontra a inspiração para imitar e fazer melhor, não deseja se deparar com o passeante que, ávido por distração ou excitação, vagueia como se estivesse entre os tesouros pictóricos acumulados em uma galeria. Para que o homem de ação não se desani­me e sinta nojo em meio aos passeantes fracos e sem espe­rança, em meio aos seus contemporâneos que aparentemen­te agem, mas que em verdade permanecem apenas agita­dos e irrequietos, ele olha para trás e interrompe o curso até sua meta, a fim de respirar pelo menos uma vez. Mas sua meta é uma felicidade qualquer, talvez não a sua própria e sim, freqüentemente, a de um povo ou a da humanidade como um todo; ele foge da resignação e utiliza a história como um meio contra a resignação. Na maioria das vezes não há o aceno de nenhum pagamento a não ser a fama, ou

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seja, a candidatura a um lugar de honra no templo da histó­ria onde ele mesmo pode ser uma vez mais mestre, conso­lador e admoestador. Pois o seu lema é: aquilo que uma vez conseguiu expandir e preencher mais belamente o conceito "homem", também precisa estar sempre presente para pos· sibilitar isso. Que os grandes momentos na luta dos indiví­duos formem uma corrente, que como uma cadeia de mon­tanhas liguem a espécie humana através dos milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso - este é o pensa­mento fundamental da crença em uma humanidade, pen· sarnento que se expressa pela exigência de uma história mo­numental. Mas justamente nesta exigência de que o gran­dioso deve ser eterno inflama-se a luta mais terrível. Pois todo o resto que vive grita "não"! O monumental não deve surgir - esta é a solução contrária. O hábito embrutecido, o pequeno e baixo preenchendo todos os recantos do mundo, fumegando em tomo de tudo o que é grandioso como o ar pesado da terra, se lança como obstáculo, enganando, re­

primindo, sufocando o caminho que o grande tem de per· correr até a imortalidade. Este caminho, no entanto, con­duz através de cérebros humanos! Através dos cérebros de animais temerosos e de vida curta que sempre emergem uma vez mais para as mesmas penúrias e só afastam de s~ com esforço, a degradação por um curto espaço de tempo. Pois eles só querem a princípio uma coisa: viver a qualquer preço. Quem poderia suspeitar neles esta difícil corrida de tochas característica da história monumental, onde apenas o que é grande sobrevive! E, contudo, sempre despertam novamente alguns que se sentem tão felizes considerando a grandeza passada e fortalecidos através de sua contem­plação. Tudo se lhes dá como se a vida humana fosse uma coisa maravilhosa e como se os frutos mais belos desta planta amarga soubessem que alguém antes caminhou orgulhoso

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e forte por esta existência, um outro meditativo, um tercei­ro misericordioso e solícito - mas todos deixando uma dou­trina atrás de si mesmos, a daquele que vive mais belamen­te, que não respeita a existência. Enquanto o homem vulgar assume o espaço de tempo da existência de maneira tão aca­brunhada, séria e ávida, aqueles homens sabiam, em seu caminho para a imortalidade e para a história monumen­tal, trazer para a existência um riso olímpico ou ao menos um escárnio sublime; freqüentemente eles entraram com ironia em seus túmulos - pois o que havia neles a enterrar! Somente o que sempre os oprimira como escória, resíduo, vaidade, animalidade e o que agora cai no esquecimento, muito depois de eles o terem abandonado ao seu desprezo. Mas uma coisa irá viver, o monograma de sua essência mais íntima, uma obra, um feito, uma rara iluminação, uma cria­ção: ela viverá porque a posteridade não pode prescindir dela. Nesta forma mais transfigurada, a fama é algo mais do que a parte mais deliciosa de nosso amor-próprio, tal como Schopenhauer a denominou, ela é crença no compa­nheirismo e na continuidade do que há de grandioso em todos os tempos, ela é um protesto contra a mudança das gerações e a perecibilidade.

Através de que se mostra útil para o homem do presen­te a consideração monumental do passado, a ocupação com o que há de clássico e de raro nos tempos mais antigos? Ele deduz daí que a grandeza, que já existiu, foi, em todo caso, possível uma vez, e, por isto mesmo, com certeza, será al­gum dia possível novamente; ele segue, com mais coragem, o seu caminho, pois agora suprimiu-se do seu horizonte a dúvida que o acometia em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo o impossível. Admitindo-se que alguém acreditasse não serem necessários mais do que uma centena de homens produtivos, educados em um novo es­pírito e atuantes, para dar um fim neste tipo de educação

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que hoje se tomou moda na Alemanha, o quanto não o for­talece.ria saber que a cultura da Renascença se elevou por sobre os ombros de uma tal multidão de cem homens.

E, contudo - para aprender com o mesmo exemplo ime­diatamente uma coisa nova - o quão inexata, fluida e pen­dente seria essa comparação! O quanto da diversidade pre­cisa ser desconsiderado aí para que a comparação possa produzir aquele efeito fortalecedor, o quão violentamente a individualidade do passado deve se encaixar em uma for­ma universal e o quanto todos os seus ângulos e linhas acen­hlados precisam ser destruídos em favor da concordância! No fundo, aliás, o que foi possível uma vez só se poderia produzir uma segunda vez como possível, se os pitagóricos tivessem razão em acreditar que uma mesma constelação dos corpos celestes também se deveria repetir, igualmente, sobre a terra, e isto até os eventos singulares e diminutos: de modo que sempre e de novo, quando as estrelas estives­sem em uma certa posição umas em relação às outras, um estóico se ligaria a um epicurista para matar César e nova­mente em uma outra relação Colombo descobriria a Améri­ca. Somente se a terra sempre começasse a cada vez de novo sua peça teatral a partir do quinto ato, somente se estivesse assegurado que o mesmo complexo de motivos, o mesmo deus ex machína, a mesma catástrofe se repetiria em determi­nados intervalos, o poderoso te.ria o direito de cobiçar a his­tória monumental em sua plena veracidade icônica, isto é,

cada fato em sua peculiarid~de e unicidade exatamente for­mada: provavelmente, portanto, não antes de os astrôno­mos terem se tomado uma vez mais astrólogos. Até aí a história monumental não precisará utilizar aquela plena veracidade: ela sempre aproximará o desigual, generalizan­do-o e, por fim, equiparando-o; ela sempre enfraquecerá novamente a diversidade dos motivos e ensejos a fim de apresentar o effectus monumental como modelo e digno de

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imitação, à custa das causae: de maneira que se poderia de­nominar este efeito, uma vez que ele abstrai o máximo possível das causas, com um pouco de exagero, como uma coletânea dos "efeitos em si", como acontecimentos que se tomam efeito para todos os tempos. O que é celebrado nas festas populares, em comemorações religiosas ou de guer­ra, é propriamente um tal "efeito em si": é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que se encontra para os empreende­dores como um amuleto junto ao coração, mas não o conexus verdadeiramente histórico entre causa e efeito, que, com­pletamente conhecido, apenas demonstraria que jamais poderia acontecer algo inteiramente igual em meio ao jogo de dados do futuro e do acaso.

Enquanto a alma da historiografia residir nos grandes estímulos que um homem poderoso retira dela, enquanto o passado precisar ser descrito como digno de imitação, como imitável e como possível uma segunda vez, aquela alma estará em todo caso correndo o risco de se tomar algo distorcido, embelezado e, com isto, próximo da livre inven­ção poética; sim, há tempos que não conseguem estabelecer distinção nenhuma entre um passado monumental e uma ficção mítica: pois de um mundo podem ser extraídos exa­tamente os mesmos estímulos que do outro. Se a considera­ção monumental do passado gcroema sobre os outros tipos de consideração, ou seja, sobre o tipo antiquário e o tipo crítico, então o passado mesmo é prejudicado: grandes seg­mentos do passado são esquecidos, desprezados e fluem como uma torrente cinzenta ininterrupta, de modo que ape­nas fatos singulares adornados se alçam por sobre o fluxo como ilhas: nas raras pessoas que se tomam em geral visí· veis salta aos olhos algo não natural e estranho, semelhante ao quadril de ouro que os discípulos de Pitágoras supunham ter visto em seu mestre. A história monumental ilude por meio de an~logias: através de similitudes sedutoras, ela

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impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fa. natismo. E se imaginarmos esta história nas mãos e cabeças de egoístas talentosos e de salafrários exaltados, então im­périos podem ser destruídos, príncipes assassinados, guer­ras e revoluções podem ser provocadas e a quantidade de "efeitos em si" históricos, isto é, de efeitos sem uma causa suficiente, aumenta de novo. Mas é o bastante lembrarmos os danos que a história monumental pode causar entre os homens de poder e de ação, sejam eles bons ou maus: que efeito ela não provoca, porém, quando os impotentes e os indolentes se apoderam e se servem dela!

Tomemos o exemplo mais simples e mais freqüente. Imaginem-se as naturezas não-artísticas e as artisticamente fracas, blindadas e armadas pela história monumental dos artistas: contra quem elas agora vão apontar as suas armas?!? Contra seus arquiinimigos, os espíritos artísticos fortes, ou seja, contra os únicos realmente capazes de aprender de urna forma verdadeira a partir daquela história, isto é, em nome da vida, e de transformar o que foi aprendido em uma práxis elevada. Então, o caminho é vedado e o ar, obscurecido, quando se dança idolátrica e zelosame.nte em volta de um monumento semiconcebido de algum grande passado, como se se quisesse dize.r: "Vede, esta é a arte verdadeira e efeti­va: o que vos importa os que vêm a ser e os que querem!" Esta chusma dançante aparentemente possui até mesmo o privilégio do "bom gosto": pois o criador sempre se encon­trou em desvantagem frente ao que apenas fica olhando e não coloca ele mesmo as mãos na massa; exatamente como em todos os tempos o homem politizado das tabernas sem­pre foi mais inteligente, mais justo e prudente do que o es­tadista que efetivamente governa. Todavia, se quisermos transpor o referendo popular e a maioria numérica para o domínio da arte e obrigar o artista a se autodefender ante o foro dos que não fazem absolutamente nada em termos

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24 FRIEDRJCH NratZSOiE

estéticos, então pode-se ter certeza de antemão de que ele será condenado: não apesar de, mas justamente porque seu juiz proclamou, festivamente, o cânone da arte monumen­tal, ou seja, segundo o esclarecimento dado, o cânone da arte que em todos os tempos "produziu efeito": na medida em que para o juiz toda e qualquer arte que, por ser con­temporânea, ainda não é monumental, parece-lhe em primeiro lugar desnecessária, em segundo, desprovida da pura inclinação e, em terceiro, desprovida mesmo da auto­ridade da história. Em contrapartida, seu instinto lhe reve­la que a arte poderia ser aniquilada pela arte: o monumen­tal não deve ressurgir jamais; e, para isso utiliza a autorida­de que o monumental tem a partir do passado. Assim, os juízes são conhecedores de arte porque gostariam de pôr de lado a arte em geral; assim, se comportam como médi­cos de quem copiaram, no fundo, o posto de envenenadores; assim, eles cunham o seu paladar e o seu gosto, a fim de esclarecer a partir de seus mimos porque rejeitam, teimosa­mente, os alimentos artísticos mais nutritivos que lhes são oferecidos. Pois eles não querem que o grande surja: seu meio para isto é dizer: "Vede, o grande já está aí!" Em ver­dade, o grande que já está aí lhes importa tão pouco quanto o grande que surge: sua vida dá provas disto. A história monumental é um traje mascarado, no qual seu ódio contra o que é poderoso e grande em seu tempo se faz passar por uma admiração saciada pelo que há de grande e poderoso nos tempos passados. Envoltos neste disfarce, eles inver­tem o sentido próprio daquele tipo de consideração históri­ca e o transformam em seu contrário; quer eles o saibam claramente ou não, agem em todo caso desta forma, como se o seu lema fosse: deixem os mortos enterrarem os vivos.

Todas as três espécies de história existentes só encon­tram plenamente o que lhes cabe em um único solo e sob um único clima: em qualquer outra condição a história se

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transforma em uma excrescência desertificadora. Se o ho­mem que quer criar algo grandioso precisa efetivamente do passado, então ele se apodera dele por intermédio da histó­ria monumental; em contrapartida, quem quer fincar pé no familiar e na veneração do antigo cuida do passado como o historiador antiquário; e somente aquele que tem o peito oprimido por uma necessidade atual e que quer a qualquer preço se livrar do peso em suas costas carece de uma histó­ria critica, isto é, de uma história que julga e condena. Al­guns infortúnios são causados pela transplantação impen­sada destas árvores: o critico sem necessidade, o antiquário sem piedade, o conhecedor do grande sem o poder do gran­de, são tais árvores alienadas de seu solo matemo natural e, por isto, degeneradas.

3.

Assim, a história pertence em segundo lugar ao que pre­serva e venera, àquele que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar de onde veio e onde se criou; por inter­médio desta piedade, ele como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existência. Conforme cuida, com mão muito precavida, do que ainda existe de antigo, busca pre­servar as condições sob as quais surgiu para aqueles que virão depois dele - e assim ele serve à vida. A posse dos bens de seus ancestra.is altera o seu significado no interior de uma tal alma: pois esta alma é muito mais possuída por eles. O diminuto e circunscrito, o esfacelado e obsoleto mantêm sua própria dign.idade e inviolabilidade pelo fato de a alma preservadora e veneradora do homem antiquário se transportar para estas coisas e preparar aí um ninho pátrio. A história de sua cidade transforma-se, para ele, na história de si mesmo; ele compreende os muros, seu portão elevado, suas regras e regulamentos, as festas populares

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como um diário ilustrado de sua juventude e reencontra a si mesmo em tudo isto, sua força, sua aplicação, seu prazer, seu juízo, sua tolice e seus vícios. Aqui era possível viver, ele diz a si mesmo, pois viver era permitido; aqu~ será pos· sível viver, pois somos teimosos e não seremos derrubados da noite para o dia. Então, com o auxílio deste "nós", ele lança o olhar para além da vida individual estranha e pas­sageira e sente a si mesmo como o espírito da casa, da espé­cie, da cidade. Por vezes, atravessando longos séculos de obscurecimento e confusão, ele mesmo saúda a alma de seu povo como à sua própria alma; uma habilidade para sentir o caminho que se encontra às suas costas e um sentido ·para perceber como as coisas eram, um faro para rastos quase apagados, um instintivo ler corretamente o passado ainda tão indistinto, uma rápida compreensão do palimpsesto, sim, polypsexto - estes são os seus dons e virtudes. Com eles, Goethe parou frente ao monumento de Erwin Steinbach;10

em meio à tempestade de suas sensações, o véu de nuvens históricas que se estendia entre eles se rasgou: ele viu a obra de arte alemã pela primeira vez novamente "exercendo o seu poder através de uma alma alemã forte e rude". Um tal traço e um tal sentido conduziram os italianos do Renasci­mento e despertaram de novo em seus poetas o antigo gê­nio italiano para "uma maravilhosa ressonância das cordas arcaicas", como diz Jacob Burckhardt.11 Mas aquele sentido histórico-antiquário de veneração tem seu mais elevado valor onde quer que ele difunda um simples sentimento tocante de prazer e satisfação para além das condições mo­destas, rudes, mesmo atrofiadas, nas quais vive um homem ou um povo; Niebuhr, por exemplo, admite com honorável candura viver alegremente no pântano e na lama, entre cam­poneses livres que possuem urna história, e não sentir ne­nhuma falta da arte. Como a história poderia servir melhor à vida, a não ser se conectasse as gerações e as populações

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menos favorecidas à sua terra natal e aos hábitos de sua terra natal, enraizando-as e impedindo-as de vagueax por aí em busca do que é melhor no estrangeiro e de se engajar em urna luta ferrenha por ele? Por vezes parece teimosia e insensatez o que prende finnemente o indivíduo aos seus próprios companheiros e ao seu ambiente, a este hábito penoso, a estes cumes nus - mas esta é a insensatez mais salutar e a mais exigida pelos interesses da comunidade; como bem o sabe, aquele que tem clareza quanto aos efeitos terríveis do prazer em expedições aventureiras, especial­mente para hordas populares inteiras, ou para aquele que vê em sua proximidade a situação de um povo que perdeu a fidelidade em relação à sua própria origem e se entregou a uma avide.z incansável e cosmopolita pelo novo e pelo cada vez mais novo. A sensação oposta, o contentamento da árvore com as suas raízes, a felicidade de não se saber totalmente arbitrário e casual, mas de crescer a partir de um passado como a sua herança, o seu florescimento e fru. to, sendo através daí desculpado, sim, mesmo justificado em sua existência - é isto que se designa agora propriamen­te como o sentido histórico apropriado.

No entanto, esta não é com certeza a situação em que o homem estaria maximamente capacitado a dissolver o pas­sado em um puro conhecimento; de modo que também aqui percebemos o que já tínhamos apreendido com a história monumental, o fato de que o próprio passado sofre, enquan­to a história serve à vida e é dominada por pulsões vitais. Dito com alguma liberdade poética: a árvore sente suas raízes mais do que poderia vê-las. No entanto, este senti­mento mede a sua grandeza pela grandeza e pela força de seus galhos. A árvore gostaria de se enganar, como ela pode estar errada quanto a toda a floresta que se encontra à sua volta?!? A floresta da qual ela só sabe e sente algo, tanto quanto ela lhe impede ou exige - e nada além disto! O sen-

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tido antiquário de um homem, de um muniápio, de todo um povo tem sempre um campo de visão maximamente restrito; ele não percebe a maior parte do que existe e, o pouco que vê, ele vê muito próximo e isolado; não conse­gue mensurá-lo e, por isto, toma tudo como igualmente importante, cada indivíduo toma-se importante demais. Desse modo, não há para as coisas do passado nenhuma diferença de valor e de proporção que fizesse, verdadeira­mente, justiça às mesmas, sua medida e proporção: sua medida e proporção passam a ser estabelecidas pelo o.lhar antiquário para trás de um indivíduo ou povo.

Aqui se está sempre bem próximo de um perigo: enfim, tudo toma-se antigo e passado, mas continua no interior do campo de visão, é assumido por fim como igualmente venerável, enquanto tudo o que não vem ao encontro deste antigo com veneração, ou seja, o que é novo e o que devém, é recusado e hostilizado. Assim, mesmo os gregos tolera­ram o sentido hierático de suas artes plásticas ao lado do que é livre e grandioso; sim, eles não apenas toleraram mais tarde os narizes empinados e o riso frio, mas fizeram mes­mo deles um fino petisco. Quando o sentido de um povo se enrijece desta forma, quando a história serve de tal modo à vida passada, quando o sentido histórico não conserva mais a vida, mas a mumifica: então a árvore morre de maneira nada natural, de cima para baixo, paulatinamente em dire­ção às raízes - por fim. mesmo as raízes perecem junto. A história antiquária degenera-se justamente no instante em que a fresca vida do presente não a anima e entusiasma mais. Neste momento a piedade se debilita, o ha'bito erudito con­tinua subsistindo sem ela e gira de maneira egoisticamente auto-satisfeita em tomo de seu próprio eixo. Então se ofe­rece aos olhos o espetáculo repulsivo de uma ira coletiva cega, de um incansável ajuntamento de tudo o que um dia existiu. O homem envolve-se com um cheiro de mofo; atra-

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vés da mania antiquária, ele consegue mesmo reduzir uma disposição mais significativa, uma necessidade nobre, a uma sede insaciável por novidade, ou, mais corretamente, por antigüidade, e por tudo e por cada coisa; freqüentemente ele desce tão baixo que acaba por ficar satisfeito com qual­quer migalha de alimento e devora com prazer mesmo a poeira de minúcias bibliográficas.

Mas mesmo se aquela degeneração não entrar em ce.na, se a história antiquária não perder o único fundamento so­bre o qual pode ser enraizada para a cura da vida: sempre restam de qualquer modo perigos suficientes, caso ela se tome com efeito poderosa demais e sufoque os outros mo­dos de considerar o passado. Ela compreende a vida só para co11servá-la, não gerá-la; por isto, ela sempre subestima o que devém porque não tem nenhum instinto para decifrá-lo -como o tem, por exemplo, a história monumental. Assim, impede a forte decisão pelo novo, paralisa o agente que sem­pre ferirá e precisará ferir enquanto agente uma piedade ou outra. O fato de que algo envelheceu dá agora ensejo à exi­gência de que ele precisa se tomar imortal; pois quando al­guém calcula tudo o que uma tal antigüidade - um hábito antigo dos pais, uma crença religiosa, um privilégio poüti­co herdado - experimentou em meio à duração de sua exis­tência, qual soma de piedade e veneração por parte do in­divíduo e das gerações, então parece arrogante ou mesmo vicioso substituir uma tal antigüidade por uma novidade, para contrapor a esta acumulação numérica de atos de pie­dade e veneração aquela do que devém e está presente.

Aqui fica claro o quão necessa.riamente o homem, ao lado do modo monumental e antiquário de considerar o passa­do, também precisa muito freqüentemente de um terceiro modo, o modo crítico: e, em verdade, este também uma vez mais a serviço da vida. Ele precisa ter a força e aplicá-la de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a

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fim de poder viver: ele alcança um tal efeito conforme traz

o passado para diante do tribunal, inquirindo-o penosamen­te e finalmente condenando-o; no entanto, todo passado é digno de ser condenado - pois é assim que se passa com as coisas humanas: sempre houve nelas violência e fraqueza humanas potentes. Não é a justiça que se acha aqui em jul­gamento, nem tampouco a misericórdia que anuncia aqui o veredicto: mas apenas a vida, aquele poder obscuro, impulsionador, inesgotável que deseja a si mesmo. Sua sen­tença é sempre impiedosa, sempre injusta porque ele nun­ca fluiu a partir de uma pura fonte do conhecimento; na maioria dos casos a sentença seria idêntica, mesmo se prer nunciada pela própria justiça. "Pois tudo o que surge mere­ce perecer. Por isto, seria melhor que ele não tivesse surgi­do." ~ necessária muita força para poder viver e para es­quecer, na medida em que viver e ser injusto são uma coisa só. O próprio Lutero chegou um dia a achar que o mundo só podia ter surgido por uma distração oriunda do esqueci­mento de Deus; com efeito, se Deus tivesse pensado na "ar­tilharia pesada", não teria criado o mundo. Por vezes, per rém, justamente a mesma vida que precisa do esquecimen­to exige a aniquilação temporária deste esquecimento; en­tão fica claro o quão injusta é a existência de uma coisa qual­quer, de um privilégio, de uma casta, de uma dinastia, por exemplo, o quanto cada uma destas coisas merece o pereci­mento. Então, seu passado é considerado criticamente, cra­va-se com uma faca as suas raízes, caminha-se por cima de toda piedade. Trata-se sempre um processo muito periger so, a saber, muito perigoso para a própria vida: e homens ou épocas, que servem desta maneira à vida, ao julgarem e aniquilarem um passado, são sempre homens e épocas pe­rigosos e arriscados. Pois porque somos o resultado de ge­rações anteriores, também somos o resultado de suas aber­rações, paixões e erros, mesmo de seus crimes; não é possí-

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vel se libertar totalmente desta cadeia. Se condenamos aque­las aberrações e nos consideramos desobrigados em rela­ção a elas, então o fato de provirmos delas não é afastado. O melhor que podemos fazer é confrontar a natureza her­dada e hereditária com o nosso conhecimento, combater através de uma nova disciplina rigorosa o que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um novo hábito, um novo instinto, uma segunda natureza, de modo

· que a primeira natureza se debilite. Esta é uma tentativa de se dar, como que um passado a posteriori, de onde se gosta­ria de provir, em contraposição ao passado do qual se pro­vém - sempre uma tentativa perigosa, porque é sempre muito difíàl encontrar um limite na negação do que passou e porque, em geral, as segundas naturezas são mais fracas do que as primeiras. O que acontece de maneira por demais freqüente é que conhecemos o bem sem fazê-lo porque tam­bém conhecemos o que é melhor sem poder fazê-lo. Mas aqui e ali, contudo, a vitória é alcançada, e há até mesmo para os combatentes, para estes que empregam a história crítica a serviço da vida, uma notável consolação: ou seja, saber que também aquela primeira natureza foi algum dia uma segunda natureza e que toda segunda natureza vito­riosa se torna uma primeira natureza.

4.

Estes são os serviços que a história pode prestar à vida; de acordo com suas metas, forças e necessidades, todo ho­mem e todo povo precisa de um certo conhecimento do passado, ora sob a fonna da história monumental, .ora da antiquária, ora da crítica: não corno um grupo de puros pen· sadores que apenas contemplam a vida, não como indiví­duos ávidos de saber, que só se satisfazem com o saber e para os quais a ampliação do conhecimento é a própria meta,

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mas sempre apenas para os fins da vida. e, portanto, sob o domínio e condução suprema d.estes fins. Esta é a ligação natural que uma época, uma otltura, um povo d.eve ter com a história - evocada pela fome, regulada pelo grau de suas necessidades, mantida sob' limites pela força plástica que lhe é própria - se o conhecimento do passado, em todas as épocas. só é de$tjado a serviço do futuro e do presente, não para o enfraquecimento do presente ou para o desenraiza­mento de um futuro vitalmente vigoroso: tudo isto é sim­ples como a verdade é simples e conventt Imediatamente também aquele que não se deixou levar, irudalmente, pela

cativa histórica. agora lancemos rapidamente um olhar sobre o llOSliO

empol Nós nos assustamos, recuamos diante dele: para onde foi toda clareza, toda natutalldade e pureza daquela ligação entre a vida e a história, o quão confusamente, ex­cessivamente, inquietamente aflui agora este problema ante os nossos olhos! A culpa está em nós, os observadores? Ou a constelação entre vida e história realmente se alterou. de tal modo que um astro poderoso e inimigo se intrometeu entre elas? Outros gostariam de mostrar que enxergamos tudo falso: só queremos dher o que pensamos ver. E o que vemos é efetivamente um tal aslTo, um astro luminoso e divino se Intrometendo, a constelação realmente se alteran­do - llfTQffl da dincul, lltmlts da aigb1t:i11 dt qut li his16ri11 -su ciê11ci11. Agora, a vida não rege mais sozinha e nem o ronhecimento domestica o passado: todos os marais foram derrubados e tudo o que foi um dia se abate sobre os ho­mens. Tio looge um vir-a-ser se volte para trás, tão longe também todas as peispectivas são deslocadas até o infinito. Um espetáculo tão inabarc:ável não foi visto por nenhuma geração, tal como agora a ciência do vir-a-ser universal, a história, mostra: mas, sem dúvida. o mostra com a audácia

p<rig,oa do """' fi,J ""'"",,...., ,,il ;

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Jtotmemos agora uma imagem do processo espírltual ,,u,· 4 produzido através disso na alma do homem moder· "°· O saber histórico irrompe, aqul e a.li, sempre novamen­h· • partir de fontes inesgotáveis, o estranho e incoerente ~ a memória abre todas as suas portas e, ainda

nunca estão suficientemente abertas; a natureza em-1Jellha-te em receber bem, organiur e honrar estes estra­(fíbos hc»pedes, mas estes mesmos encontram-se em luta

com os outros, e parece necessário subjugá-los e dominá­todos, a fim de não perecer em meio à sua lu~ hábito um tal ser doméstico desordenado, tem~stuoso e

wnflítuoso toma-se paulatinamente uma segunda nature-u , mesmo se estiver imediatamente fora de questão o fato de· esta segunda natureza ser muito mais fraca, muito mais 1~1quleta e em tudo menos saudável do que a primeira. Por tim. o homem moderno arrasta consigo por aí uma massa descomunal de pedras indlgeriveis de saber que, então,

, como nos rontos de fadas, podem ser às vezes ouvidas ro­lando ordenadamente no inte.rior do corpo. 13 Com estes eolavancos denuncia-se a qualidade mais própria a este homem moderno: a estranha oposição entre uma interiori­dade à qual não corresponde nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corresponde nenhuma interiori­f!de - uma oposição que os povos antigos nJo conheciam./ ' O saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a necessidade, não atua mais como um agente transformador que impele para fora e permanece velado em um certo mun­do interior caótico, que todo e qualquer homem moderno designa com um orgulho curioso como a "interi.oridade" que lhe é característica. Diz-se então prontamente que se tem o conteúdo e só falta a forma; mas, em todo vivente, esta é uma oposição inteiramente impertinente. Nossa cuJ. nua moderna não é nada viva, porque não se deíxa de modo algum conceber sem esta oposição; ou seja, ela não é ne-

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nhuma cultura ~ mas apenas uma espécie de saber em tomo da cultur ermanece-se nela junto ao pensamento da cultura, junto a sentimento da cultura: não advém daí nenhuma decisão em nome da cultura. Em contrapartida. o que é realmente inspirador e se expressa visivelmente como ação signífica freqüentemente nada mais do que uma con­venção indiferente, uma lastimável imitação ou mesmo uma caricatura tosca. Na interioridade repousa assim rertamen­te uma sensação similar à daquela serpente que engoliu coelhos inteiros e então se deita ao sol silenciosamente sacia­da, evitando qualquer movimento desnecessário. O processo interior é agora a coisa mesma, a própria "cultura". Qual­quer um que passa por perto só t~ um desejo; que uma tal cultura não pereça de indigestão/ r~ como exemplo um grego que passasse por perto desta cultura. Ele~ beria que para os homens modernos "culto"' e ~cultura his­tórica"'• parecem tão conectados como se elas fossem uma só coisa e fossem diferentes apenas pelo número de pala­vras.. Ele pronunciaria então sua sentença: alguém pode ser muito culto e, no entanto, não ter necessariamente nenhu­ma cultura histórica; então acreditaria não ter ouvido direi­to e balançaria a cabeça em sinal de desaprovação. Aquele conhecido povozínho de um ~ o não muito distante -tenho em vista aqui justamente os gregos - conservara tei­mosamente, no perlodo de sua mais grandiosa força, um i,entido a-histórico; se um homem sintonizado com o seu tempo precisasse retomar àquele mundo como que por um passe de mágica. ele talvez achasse os gregos muito "'in­cultos#, através do que certamente o segredo tio penosa­mente escondido da cultura moderna seria exposto publi­camente ao ridfculo: pois nós modernos não temos absolu· tamente nada que provenha de nós mesmos; somente na medida em que nos entulhamos e apinhamos com ~ hábitos, artes, filosofias, religiões, conhecimentos alheios,

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tornamo-nos dignos de consideração, a saber, enciclopé­dias ambulantes, com o que talvez um antigo heleno ex­traviado em nosso tempo nos dirigisse a palavra. No entan­to, nas enciclopédias todo o valor acha-se circunscrito ao que tem dentro, no conteúdo, não no que se encontra por fora, ou na encadernação e na capa. Desta feita, toda a cul­tura moderna é essencialmente interior; na parte de fora, o encadernador imprimiu algo assim como: "manual de cul­tura interior para bárbaros exteriores". Sim, esta oposição entre dentro e fora torna o exterior ainda mais bárbaro do que precisaria ser, se um povo rude crescesse somente a partir de si e segundo suas necessidades grosseiras. Pois que meios restam ainda à natureza para dominar o que se impõe de maneira superabundante? Apenas um único meio: acolhê-lo tão facilmente quanto possível para rapidamente afastá-lo e expeli-lo uma vez mais. Daí emerge um hábito de não levar mais a sério as coisas reais, daí emerge a "per­sonalidade fraca", em conseqüência da qual o efetivo, o exis­tente, impressionam muito pouco; as pessoas se tornam, por fim, mais desleixadas e acomodadas com a sua aparência exterior, alargando-se o grave fosso entre conteúdo e forma até o ponto da completa insensibilidade para a barbárie, se a memória é sempre estimulada apenas pelo novo, se só as coisas novas afluem sempre como dignas de serem conhe­cidas, coisas que podem ser guardadas asseadamente nas gavetas daquela memória. A cultura de um povo enquanto a antítese da barbárie foi designada certa vez, e, segundo minha opinião, com algum direito, como a unidade do esti­lo artístico em todas as expressões da vida de um povo; esta designação não deve ser por isso mal compreendida, como se se tratasse da oposição entre barbárie e estilo belo; o povo ao qual se atribui uma cultura só deve ser em toda realidade uma única unidade vivente e não esfacelar-se tão miseravelmente em um interior e um exterior, em conteú-

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do e fonna. Quem aspira e quer promover a cultura de um povo deve aspirar a promover esta unidade suprema e tra­balhar conjuntamente na aniquilação deste modelo moder­no de formação em favor de uma verdade.ira fonnação, atre­vendo-se a refletir sobre o modo como a saúde de um povo, perturbada pela história, pode ser restabelecida, como ele poderia reencontrar seus instintos e, com isto, sua honesti­dade.

Eu gostaria de falar agora diretamente de nós alemães do presente, uma vez que mais do que qualquer outro povo temos de sofrer daquela fraqueza de personalidade e da contradição entre conteúdo e fonna . A forma é válida para nós, pura e simplesmente, como uma convenção, como disfarce e camuflagem, e por isto toma-se, se não odiada, em todo caso não amada; seria ainda mais correto dizer que temos um medo extraordinário da palavra convenção e sem dúvida também da convenção como tal. Neste medo, o ale­mão abandonou a escola dos franceses: pois ele queria se tornar mais natural, e, por meio disso, mais alemão. Toda­via, ele parece ter cometido um erro de cálculo neste "por meio de": evadindo-se da escola da convenção, ele se dei­xou ir de qualquer modo para onde tivesse vontade e, desleixada e arbitrariamente, acabou no fundo por imitar em semi-esquecimento o que imitara anteriormente de ma­neira escrupulosa - freqüentemente, com sucesso. Com isto, comparado a tempos passados, vive-se ainda hoje também em uma cópia negligentemente incorreta da convenção fran. cesa, como bem o mostra o modo como andamos, como fi­camos parados, como conversamos, nos vestimos e mora­mos. Conforme acreditávamos nos refugiar no natural, es­colhia-se apenas o ir atrás, a comodidade e a menor medida possível de auto-superação. Façamos um passeio por uma cidade alemã - toda convenção, compuada com a peculia­ridade nacional de cidades estrangeiras mostra-se aqui ne-

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5ECUNOA CONSIDERAÇÃO INTEMl'ESTIVA 37

gativamente, tudo é incolor, gasto, mal copiado, negligen­te, cada um age à sua vontade, no entanto, não segundo uma vontade forte, rica em pensamentos, mas segundo as leis que prescrevem primeiro a pressa universal e, então, a busca geral por comodidade. Uma peça de roupa, cuja in­venção não quebra a cabeça, que não demanda tempo al­gum para ser vestida, ou seja, uma peça de roupa tomada de empréstimo do estrangeiro e copiada da maneira mais descuidada possível, vale imediatamente para os alemães como uma contribuição para o vestu.ário nacional. O senti­do formal é diretamente recusado por eles com ironia - pois já se tem, sim, o sentido do conteúdo: pois eles são o célebre povo da interioridade.

Mas há agora também um célebre risco desta interiori­dade: o próprio conteúdo, do qual se supõe que não pode ser absolutamente visto de fora, poderia mesmo por vezes evaporar; no entanto, não se notaria nada de fora nem so­bre este desaparecimento, nem sobre a sua presença ante­rior. Porém, pense-se ainda assim, o povo alemão o mais distante possível deste perigo: os estrangeiros terão sem­pre alguma razão quando nos censuram que nossa interio­ridade é muito fraca e desordenada para produzir um efei­to na exterioridade e para se dar uma forma. Neste caso, a interioridade dos alemães pode ser delicadamente acolhi­da em um grau excepcional, mostrar-se séria, poderosa, pro­funda, boa e talvez mesmo mais rica do que a interioridade de outros povos: todavia, ela permanece, no geral, fraca, porque todos os seus belos fios não estão amarrados em um forte nó, de modo que o ato visível não é o ato conjunto e a auto-revelação desta interioridade, mas apenas uma tí­bia ou tosca tentativa de um fio qualquer de querer apare­cer como válido para o todo. É por isto que o alemão não deve ser julgado por uma ação e como indivíduo: também após esta ação, ele permanece totalmente encoberto. Como

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se sabe, deve-se avaliá-lo de acordo com os pensamentos e sentimentos que ele expressa agora em seus livros. Ah, se justamente estes livros não despertassem mais do que nun­ca uma dúvida quanto a se a famosa interioridade ainda estaria sentada realmente em seu templozinho inacessível: seria um pensamento terrível o de que ela desapareceria, permanecendo apenas ainda a exterioridade arrogantemen­te grosseira e humildemente relaxada, como característica do alemão. Algo quase tão terrível quanto se aquela inte­rioridade, sem que se pudesse perceber, se sentasse aí falsificada, maquiada, retocada e se tomasse atriz ou algu­ma outra coisa pior. ~ isto, por exemplo, que Grillparzer, colocando-se à parte e considerando tranqüilamente, pare­ce assumir de sua experiência dramático-teatral. 15 "Nós sen­timos com abstrações", diz ele, "quase não sabemos mais como as sensações se exteriorizam junto a nossos contem­porãneos; nós as deixamos saltar, como eles não as deixam mais hoje em dia. Shakespeare arruinou a todos nós, mo­dernos."

Este é um caso singular e talvez tenha sido generaliza­do muito rapidamente: mas o quão terrível seria sua legíti­ma generalização, se os casos particulares se impusessem com uma freqüência demasiado intensa ao observador? O quão desesperada soaria a sentença: nós alemães sentimos em abstrações? Nós todos fomos arruinados pela história -uma sentença que destruiria em suas raízes toda esperança em uma cultura nacional ainda vindoura: pois toda espe­rança deste gênero surge a partir da crença na autenticida­de e imediaticidade do sentimento alemão, a partir da cren­ça na interioridade íntegra; o que ainda se pode esperar, em que ainda se pode acreditar, se a fonte da crença e da espe­rança é maculada, se a interioridade aprendeu a dar saltos, a dançar, a maquiar-se, a se expressar com abstração e cál­culo e a perder a si mesma paulatinamente? E como o gran-

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dioso espírito produtivo pode ainda se manter entre um povo que não está mais certo de sua interioridade homogê­nea, que se desfaz no homem culto em uma interioridade deformada e seduzida e, no inculto, em uma interioridade

inacessível? Como ele pode perdurar aí, se a unidade do sentimento do povo se perdeu, se ele sabe que o sentimen­to está falsificado e retocado justamente em meio a uma

parte que se denomina a parte culta do povo e que arroga para si o direito aos espíritos artísticos nacionais? Pode ser que aqui e ali o próprio juízo e gosto dos indivíduos tenha se tomado mais sutil e mais sublimado - isto não lhe traz nenhuma vantagem: o atormenta que precise falar como que apenas para um grupo e de não ser mais necessário no inte­rior de seu povo. Talvez ele prefira enterrar agora o seu tesouro, porque sente nojo de ser insolentemente subvencio­nado por um grupo, no momento em que seu coração se encontra cheio de compaixão por tudo. O instinto do povo não vem mais ao seu encontro; é inútil para ele tentar nos­talgicamente estender os braços para alcançá-lo. O que lhe resta agora senão voltar o seu ódio entusiasmado contra esse encanto inibidor, contra as barreiras erigidas em meio à assim chamada formação de seu povo, a fim de ao menos condenar como juiz o que para ele, enquanto vivente e ge­rador de vida, é aniquilador e aviltante? Assim, ele troca a profunda intelecção de seu destino pelo prazer divino do criador e do auxiliador, acabando como um solitário ho­mem do saber, como um sábio ultra-saturado. Este é o mais doloroso dos espetáculos: quem, em geral, vê isso, reconhe­

cerá aqui uma necessidade sagrada: ele diz para si mesmo, aqui, algo requer ajuda, aquela unidade suprema entre a natu.re.za e a alma de um povo precisa ser restabelecida, aquele rasgo entre o interior e o exterior precisa desapare­cer de novo sob as batidas de martelo da necessidade. Ora, mas que meios ele pode empregar? O que permanece para

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ele uma vez mais como o seu profundo conhecimento se­não o seguinte: ele espera semear uma necessidade expres­sando este conhecimento, ampliando-o e disseminando-o com as mãos cheias: e o feito vigoroso surgirá um dia da necessidade vigorosa. Com isso, não deixo nenhuma dúvi­da de onde tomo o exemplo daquela necessidade, daquela privação, daquele conhecimento: assim, aqui deve constar expressamente o meu testemunho, que é a unidade alemã neste sentido supremo que nós almejamos, e a almejamos mais ardentemente do que a reunificação política: a unidade do espírito e da vida alemães depois da aniquilação da oposição t11tre forma e conteúdo, entre interioridade e convenção.

5.

A super-saturação de uma época pela história parece ser nociva e perigosa à vida em cinco aspectos: por meio deste excesso é gerado aquele contraste até aqui discutido entre interior e exterior, e, com isto, a personalidade é enfraque­àda; por meio deste excesso uma época acaba por arrogar­se a posse da mais rara virtude, a justiça, em um nível mais elevado do que qualquer outro tempo; por meio deste ex­cesso perturbam-se os instintos do povo e dos indivíduos, assim como se impede o amadurecimento do todo; por meio deste excesso é semeada, a todo momento, a crença pemiào­sa na velhice da humanidade, a crença de se ser tardio e epígono, e por meio deste excesso uma época recai na peri­gosa disposição da ironia sobre si mesmo e, a partir dela, na disposição ainda mais perigosa do cinismo: nesta, po­rém, desenvolve-se cada vez mais uma práxis astuta e egoís­ta, através da qual as forças vitais são inibidas e, por fim, destruídas.

Mas voltemos agora à nossa primeira sentença: o ho­mem moderno sofre de uma personalidade enfraqueàda.

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Como o romano da época imperial tomou-se a·romano em relação ao mundo que se encontrava a seu serviço, como ele mesmo se perdeu em meio às ondas migratórias estran­geiras e se degradou num carnaval cosmopolita de deuses, hábitos e artes, então o mesmo deve suceder ao homem moderno, que prepara continuamente a festa de uma expo­sição universal através de seus artistas históricos; ele setor­nou o espectador errante e fruidor, transposto para uma condição na qual mesmo grandes guerras e grandes revo· luções raramente possibilitam mudar algo mais do que um instante. A guerra nem bem acabou e já se transformou em cem mil páginas impressas, já foi oferecida como o mais novo meio de excitação aos paladares cansados dos vicia­dos em história. Parece quase impossível que um som per­feito e forte seja produzido por meio do mais poderoso ata­que às cordas: ele imediatamente se perde de novo, no ins­tante mais próximo já diminui, historicamente suavizado, etéreo e fraco. Expresso moralmente: vós não sois mais ca­pazes de manter o sublime, vossas ações são rompantes re­pentinos e nunca trovão repicante. Acontece, então, o mais grandioso e o mais maravilhoso: deve-se, apesar disso, sem som e lamento, atraí·lo para o Hades. Pois a arte foge, quan­do vós, imediatamente, cobris vossas ações com a tenda histórica. Quem quer compreender, calcular, conceber, no instante em que deveria manter em longo abalo o incom­preensível como o sublime, gostaria de ser chamado com­preensivo. Todavia, apenas no sentido em que Schiller fala da compreensão dos compreensíveis: ele não vê algumas coisas que a criança efetivamente vê, ele não ouve algumas coisas que a criança ouve; estas coisas são justamente o mais importante: porque ele não compreende isto, sua compre­ensão é mais infantil do que a da criança e mais simplória do que a simplicidade - apesar das muitas dobras astutas de seus rolos de papel em forma de pergaminhos e do exer·

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áóo virtuoso de seus dedos em desembaraç.ar o que está emaranhado.16 Isto signilka o seguinte: ele aniquilou e per· deu seu instinto, ele não pode mais, confiando no "animal sagrado", soltar as rédeas, se seu entendimento vacila e seu caminho conduz através de desertos. Assim, o indivíduo toma-se covarde e inseguro, não podendo mais acreditar em si mesmo: ele afunda em si mesmo, no seu interior, que aqui não significa apenas: confusão arumulada do que foi aprendido - não se produz nenhum efeito no exterior, a Instrução não se toma vida. Lançando-se o olhar mais wna vez para o exterior, nota"* então como a expulsão dos ins­tintos pela história quase transfonnou os homens em /auttr obstractis e sombras: ninguém mais ousa aparecer como é, mas se mascara como um homem culto, como eru.dito, como poeta, como político. Se se pegam tais máscaras - porque acredita-se que se trata de uma roísa séria para eles e não simplesmente de um espe~culo de marionetes, uma vez que todos tomam ares de seriedade -, logo têm-se, de ime­diato, apenas trapos e remendos coloridos nu mãos. Por isso, não se deve mais se deixar enganar por elas, por isso

deve-se submet!-las a uma nova voz de comando: 'Tirai vossos casacos ou sede o que pai,!(Cisl" Todo homem sério de nascença não deve mais tomar-se um Dom Quixote, uma vez que ele tem roísa melhor a fazer do que se engalfinhar rom tais supostas realidades. Em todo caso, porém, ele pre­cisa olhar incisivamente e gritar para cada máscara o seu 'Alto! Quem vem lá?' e arrancá-la do rosto. Estranho! P~ der-se-ia pensar que a história, sobretudo, encorajaria um homem a ser sincero - mesmo que fosse apenas para ser um louro sina!ro; e este sempre foi seu efeito, só que agora não é mais! A formação histórica e a rocha burguesa universal dominam ao mesmo tempo. Nunra se falou de maneira tão tonitruante da #livre personalidade", não se vêem nunca personalidades; silencia-se arerca das que são livres, mas

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SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 43

fala-se muito alto de homens-universais escondidos e ame­drontados. O indivíduo retraiu-se na interioridade, fora não se nota mais nada dele, o que nos dá o direito de duvidar se é possível que haja causas sem efeito! Ou deveria ser neces­sária uma geração de eunucos para vigiar o grande harém histórico do mundo? Todavia, a pura objetividade figura, bela, diante do rosto. Quase parece que a sua tarefa fosse vigiar a história da qual nada surge a não ser histórias, mas nenhum acontecimento;17 que a sua tarefa fosse impedir que a história tome qualquer personalidade "livre", ou seja, que ela atue verdadeiramente contra si, contra os outros, e, em verdade, em palavras e ações. Somente através de uma tal atuação verdadeira, a penúria, a miséria interior do homem moderno virá à tona e, no lugar daquela convenção e da· quela mascarada amedrontadas e encobridoras, a arte e a religião poderão finalmente entrar em cena como as verda· deiras salvadoras, a fim de cultivar conjuntamente uma cultura que corresponda às verdadeiras necessidades e não apenas ensine - como a cultura geral de hoje - a nos iludir· mos quanto a estas necessidades e a nos tomarmos, por meio delas, mentiras ambulantes.

Em que situações desnaturadas, artificiais, e, em todo caso, indignas, há de cair, em uma época que sofre de cuJ. tura geral, a mais verdadeira de todas as ciências, a deusa nua e sincera, a filosofia?!? Em um tal mundo da uniformi· dade exterior imposta, ela permanece um monólogo erudi· to do passeante solitário, uma presa casual do indivíduo, um segredo oculto de alcova ou uma tagarelice inofensiva entre velhos acadêmicos e crianças. Ninguém deve ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive filosofica· mente, com aquela simples lealdade que obrigava o homem antigo a portar-se como estóico onde quer que estivesse, no que quer que empreendesse, caso tivesse algum dia jurado lealdade ao Pórtico. Todo filosofar moderno é político e

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policialesco, limitado à aparência erudita pelos governos, igrejas, academias, hábitos, e pm pusilanimidade dos ho­mens: ele permanece suspirando "mas se ... • ou reconhe­cendo '"era uma vez. •. ". No Interior da rultura histórica, caso queira ser mais do que um saber Interiormente contido e sem efeitos, a filosofia não tem direito algum; fosse o ho­mem moderno corajoso e decidido, ele não seria. mesmo em suas inimizades, somente um ser interior: ele ba.niria a filosofia; agora. ele se contenta em disfarçar envergonhada­mente sua nudez. Sim, pensa-te, escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente - até aí tudo é mais ou menos pennitido; somente no agir, na assim chamada vida. é diferente: aí apenas uma única coisa é permitida e todo o resto é simplesmente impossível: assim o quer a cultura his­tórica. Será que ainda são homens - perguntan»nos entio - ou talvez somente máquinas de pensar, de esawer e de falar?

Goethe disse certa vez acerca de Shakespeare: "Ninguém despttzOU mais o traje material do que ele; ele conhece multo bem o ~je interior dos homens, e, neste ponto, todos se equivalem. Diz-se que ele mostrou primorosamente os ro­manos. Não acho; eles não passam de ingleses enamados, mas certamente sào homens, homens desde o fundo, e nos quais rom certeza cai igualmente bem a toga romana." Agora me pergunto se não seria também possível apresentar nos­sos literatos atual$, homens do povo, funcionários, polfti­cm. como romanos; isto não pode ser levado a cabo porque eles não são homens, mas apenas compêndios encarnados e como que concrde Abstracta. Se é que têm caráter e um modo de ser próprio, tudo isto está tio profundamente es­condido que não pode absolutamente desentranhar-se à luz do dia: se é que eles são homens, eles só o são para aquele que "examina as entranhas". Para qualquer outro eles são algo diverso, não homens, não deuses, não animais, mas

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íorm.açóes históric:o-cultwais, 11 total e completamente ruJ. tura, imagem, forma sem um conteúdo comprovável; ln· ftlb:mente apenas formas ruins, e, alán disto, uniformes. Minha sentença poderia ser então compreendida e ponde­fada da seguinte maneira: a histdrla s6 t suportada por pmo­wlidldts fortes, as pmoruuithuks fraC'llS são rompletamentt dlzi­*'1S por tla. A{ reside o fato de que ela confunde o senli­.D\ento e a sensa~ onde quer que estes não sejam fortes o tu6cientt- para medir o passado em si mesmo. Aquele que ilio ousa mais confiar em si mesmo, mas involuntariamen-1*, para sentir, pede um conselho à história: "Como devo Jentir aqui?", toma-se paulatinamente, por pusilanimida­clt, um ator, e desempenha um papel, na maioria das vezes até mesmo muitos papéis e, por isto, cada um deles de ma­lltira muito ruim e superfióaL Aos poucos passa a faltar Ioda congruência entre o homem e o seu âmbito histórico; vemos pequenos rapazolas petulantes passeando por aí oom os romanos como se estes fossem seus iguais: e nos restos mortais dos poetas gngos eles revolvem e escavam, como 1e também estes a,rpor11 estivessem aí prontos para a sua dis9ecação e não passassem de vilúr, 19 como podem ser seus próprios corpm literários. Suponhamos que alguém se OCU·

pe com Demócrito, então, a pergunta sempre fica para mim na ponta da língua: Por que não Hericlito? Ou Pilon7 Ou Baron? Ou Descartes? - e assim por diante, arbitrariamen­le. E, então: por que justamente um filósofo? Por que não um poeta, um orador? E: por que em geral um grego, por que não um ingl&, um turco? O passado não é grande o sufiàente para encontrar algo em que vós não vos apresentais de maneira tão risivelmente arbitrária? Mas, como dissemos, trata-se de uma geração de eunucos; para o eunuco, uma mulher é como qualquer outra, justamente apenas mulher, a mulher em si, o eternamente inatingível -e, com isto, é indiferente o que vos impulsiona, contanto

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que a própria história permaneça bela e "objetivamente" co~rvada, especialmente por aqueles que nunca podem fa~r história por si ·mesmos. E como o eterno feminino nunca vos atrai rá para si, lO vós o r,!baixais att' vós, e tomai, como neutros, tan:IMm a história como algo neutro. Mas para que .não se acredite, com Isso, que comparo a sério a história com o eterno-feminino, antes gostaria muito mais de expressar dar.unente que a CQ!'\Sidero, ao amtrário, como sendo o eterno-masculino; a questão é que para aqueles que são inteíramente "formados historicamente", deve ser to­talmente indiferente se ela é uma coisa ou a outra: eles pro­prios não são nem homens nem mulheres, nem mesmo ain­da uma mmunhão dos dois, mas sempre apenas neutros, ou. expresso de maneira mais culta, apenas os eternamente objetivos.

As personalidades devem se tomar, antes de tudo, da maneira descrita. como 5eJII subjetividade, ou, como se diz, objetividades: assim nada mais consegue agir sobre elas; pode acontecer algo bom e justo, como ato, como poesia, como música: Imediatamente, o oco homem da cultura lan­ça o seu olhar para além da obra e pergunta pela história do autor. Tenha este homem já ai.ado muitas obras, é imedia· tamente obrigado a ter esclarecido para si o curso prévio e o curso ulterior presumível de seu desenvolvimento, é Ime­diatamente a>locado ao Jado de outros artistas e compara· do com eles, é dissecado, esf:acelado em função da escolha de seu material, do RU modo específico de tra.tá•lo. Em se­guida, ele é uma vez mais sabiamente ruomposto, adverti­do e coaigido no todo. A coisa mais espantosa possfvel pode acontecer, a horda dos homens historicamente neutr.o, já está sempre a postos para visual.12.ar o autor a uma distân­cia considerável. Instantaneamente ressoa o eco, mas sem­pre como "critica", por mais que po11co tempo antes o aiti­co não conseguisse nem mesmo sonhar com a possibllida-

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SECUNDA CONSIDERAÇÃO lNTEMPliSTIV A 47

de do que aconteceu. Em parte alguma chega-se a um efei­to, mas sempre apenas a uma nova "crítica"; e a própria crítica não produz nenhum efeito, só experimentando no­vamente a crítica. Por isto, concordou-se em considerar muita crítica como efeito e pouca, como fracasso. Mas, no fundo, mesmo em meio a este tipo de "efeito", tudo perma­nece como ant.es: fala-se, de fato, há muito tempo, em algo novo. No entanto, logo surge uma vez mais algo novo e faz-se então o que sempre se fez. A cultura histórica de nos­sos críticos não permite mais de maneira alguma que se chegue a um efeito em sentido próprio, a saber, a um efeito sobre a vida e a ação: eles passam imediatamente a borra­cha mesmo sobre o escrito mais negro possíve~ eles borram o desenho mais gracioso com suas pinceladas grossas que devem ser vistas como correções: e uma vez mais não resta mais nada. Todavia, sua pena crítica não pára de correr, pois eles perderam o poder sobre ela e são mais conduzi­dos por ela do que a conduzem. Exatamente nesta imode­ração de suas e.fusões críticas, na falta de domínio sobre si mesmo, nisto que os romanos chamavam impote11tia revela­se a fraqueza da personalidade moderna.

6.

Mas deixemos de lado esta fraqueza. Voltemo-nos para uma das forças muito celebradas do homem moderno com a pergunta, aliás constrangedora, se ele tem direito de se denominar, por sua conhecida "objetividade" histórica, for­te, isto é, justo, e em um grau mais elevado do que o homem de uma outra época. É verdade que aquela objetividade tem sua origem em uma elevada necessidade e exigência por justiça? Ou desperta, como efeito, causas totalmente diver­sas, de fato apenas a aparência, como se a justiça fosse a causa apropriada deste efeito? Ele seduz talvez, para um

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preconceito nocivo, demasiado bajulador, sobre as virtu­des do homem moderno? - Sócrates ronsidera uma doen­ça, que é multo próxima do desvario, imaginar-se de posse de uma virtude e não possuí-la: e certamente uma tal pre­sunção é mais perigosa do que a ilusão opos~ de so&er por um erro, por um vicio. Pois através desta ilusão talvez ainda seja possível tomar-se melhor; aquela presunção, porém, toma o homem ou uma época dia após dia pior -neste caso, portanto. mais injusto e injusta.

Em verdade, ninguém faz íus em um grau mais elevado à nossa veneração do que aquele que possui o impulso e a força para a justiça. Pois nela unificam-se e escondem-se as mais elevadas e mais raras virtudes romo em um mar in­sondável que recebe rorrentes de todos os lados e as erigo­

le. A mão do justo, que é autorizado a julgar, não treme mais quando segura a balança; ele coloca implacavelmente peso por peso diante de si mesmo, seu olhar não se turva quando os ponteiros sobem e descem e sua voz não soa nem dura nem embargada qu.ando pronuncia o veredicto. Fosse ele um frio demônio do conhecimento, então estenderia em tomo de si a atmosfera glacial de uma majestade sobre-hu­mana e terrivtl, que teríamos de temer, nãp de venerar. mas na medida em que é um homem e tenta ascender da dúvida negligente à certeza rigorosa, da mais tolerante benevolên­cia ao imperativo · tu deves", da rara virtude da generosi­dade à mais rara de todas, a da justiça; na medida em que, agora. assemelha-se àquele demônio sem ser desde o prin­dpio algo mais do que um pobre homem; e., sobretudo, na medida em que tem de expiar a todo instante em si mesmo sua humanidade e se consumir tragicamente em urna vir­tude Impossível - tudo isto o roloca em uma altura solitá­ria, como o exemplar nuús vtnlrlfvel do gênero humano; pois ele quer a verdade, s6 que não apenas como am conheci­mento frio e sem conseqüências, mas romo uma juíza que

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~ e pune, a verdade não como posse egoísta do indi­wfdoo. mu como o direito divino de tresloucar todos os Nra)S das propriedades egoístas, em UJJU palavra. a ver­d.ide como o tribunal do mundo e como algo inteiramente dlvcno da presa capturada e do praur de um único caça­dor. Apenas na medida em que o veraz quer inmndidonal-11wnte ser justo, a aspiração à verdade, tão impensadamen­te glorificada por toda parte, se toma algo grandioso, en-11uanto diante de olhos obtusos conflui um grande número doil mais diversos impulsos como curiosidade, medo do tMio, inveja. vaidade, impulso do jogo, impulsos que nada 1M1 a ver com a verdade, com qualquer aspiração à verda­dr, que tenham sua raiz na justiça. Assim, realmente, o mlQ.\do parece estar repleto daqueles que •servem à verda­dl.,. e, no entanto, a virtude da justiça é tão rara, tão rara­mente reconhecida e quase sempre odiada até a morte. Por ()litro lado, • bord.a dos aparentemente virtuosos é honrada erpomposamente aclamada em todas as épocas. Em verda­de poua>S servem à verdade, porque apenas poucos têm a },lVt3 vontade de ser justos; e, mesmo entre estes, pouqu.ís­,.imos lfm a força para serem justos. Não é absolutamente eufidente, para isto, ter só a vontade: e os mais lerriveis sofrimentos recaem justamente sobre os homens que pos­suem a pulsão para a justiça sem a faculdade de julgar; por isto, nada promoveria mllis o bem-estar geral do que disse­.minar as sementes da faculdade de julgar tão amplamente quanto possível, a fim de que permanecessem distintos o fanático do juiz. o detejo cego de ser juiz da necessidade de julgar da força ronsciente. Mas onde se encontraria um meio de plantar a faruldade de julgar?!? - d.aí que, quando se fala aos homens de verdade e justiça, eles permanecem eterna­mente numa dúvida amedrontada, se quem lhes fala é o fanático ou o juiz. Desta feita, deve-se desculpá-los por te­rem sempre cumprimentado com especial boa vontade

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aqueles ·servidores da verdade" que não possuem nem a força nem a vontade de julgar e que se colocam a tarefa de buscar o "conhecimento puro, sem conseqüências", ou, mais distintamente, a verdade da qual nada provém. Há muitas verdades indiferentes. Há problemas cujo julgamento cor­reto não exige nem mesmo superação, para não ~r de sa­criffdo. Em um tal ãmbito ind.íferente e inofensivo, um ho­mem pode muito bem se tomar um demônio frio do conhe­cimento; e, apesar disto! Mesmo se, em épocasespeàalmente favoráveis, batalhões inteiros de eruditos e de pesquisado­res se transformassem em tais d.emônios, sempre permane­ceria Infelizmente possível que uma tal época so&a da falta de uma justiça rigorosa e grandiosa, em SWJlll, do cerne mais nobre d.a as.sim chamada pulsão para a verdade.

Façamos agora uma imagem do virtuoso histórico do presente: ele é realmente o homem mais justo de seu tem­

po? ~ verdade que ele formou em si uma tal delicadeza e suscetibilidade da sensação, uma vez que absolutamente nada de humano lhe pennanece distante; os tempos e as pessoas mais diversas soam familiares imediatamente em sua lira. Ele se tomou uma placa passiva de ressonãnda que age, através de seus repiques, sobre outras placas congêneres, até que por fim toda a atmosfera de uma época se enche com tais ecos con.fusamente sibilantes, delicados e aparentados. No entanto, parece--me que s6 se ouvem os tons maiores de cada ornamento histórico original: não se consegue mais adivinhar a solidez e o poder do original em meio às vibrações esfericarnente magras e agudas destas cordas. O tom original despertava atos, nec:essídades, pa­vores; esta nota nos embala e nos transforma em mansos degustadores: é como se tivéssemos feito um arranjo para a Sinfonia Htr6iC'Jl com duas flautas e a tivmemos em seguida destinado ao djvertimento de sonhadores fumadores de ópio. Já se pode mensurar agora como se encontram as coi-

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SliCVNOA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 51

sas para estes virtuosos em relação à exigência suprema do homem moderno por urna justiça mais elevada e mais pura; esta virtude nunca tem algo agradável, não conhece nenhu­ma excitação deliciosa, ela é dura e terrível. Em compara­ção com ela, o quão baixo se acha na escala das virtudes

mesmo a magnanimidade, que é a qualidade de alguns ra­ros historiadores! Um número bem maior deles, porém, só alcança a tolerância, a validação do que não conseguem nem mesmo negar, a ordenação e o adorno comedidamente be­névolo, na suposição astuta, de que o inexperiente inter­pretará como a virtude da justiça, o fato de o passado em geral é narrado sem um acento incisivo e sem qualquer ex­pressão de ódio. Todavia, somente a força superior pode julgar, a fraqueza precisa tolerar, se não simular força e fa. zer da justiça urna atriz na cadeira do juiz. Mas ainda resta uma espécie temível de hlstoriadores com caráter hábil, ri­goroso e sincero - no entanto, com cabeça estreita; aqui, a boa vontade para ser justo está tão presente quanto o páthos da magistratura. Entretanto, todos os veredictos são falsos, e mais ou menos com a mesma razão pelas quais as senten­ças do corpo de jurados são, em geral, falsas. O quão im­provável é com isto a abundância do talento histórico! Abstraímo-nos aqui dos egoístas e dos homens de partido disfarçados que, contra a sua vontade, representam com uma máscara corretamente objetiva. Abstraímo-nos domes­mo modo das pessoas totalmente insensatas que, enquanto his toriadores, escrevem com a crença ingênua de que justa­mente a sua época teve razão em todas as opiniões popula­res e de que escrever de acordo com ela equivaleria a ser em geral justo; urna crença na qual vive cada religião e so­bre a qual, no caso da religião, não precisamos dizer mais nada. Aqueles historiadores ingênuos chamam "objetivida­de" à mensuração de opiniões e feitos passados a partir das opiniões mais disparatadas do momento; aqui eles encon-

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tram o cânone de todas as verdades; seu trabalho é adequar o passado à trivialidade contemporânea Em contraparti­da, eles denominam "subjetivo# toda historiografia que não tome as opiniões populares romo canônicas.

B mesmo uma ilusão não poderia imiscuir-se na inter­pretação mais elevada da palavra objetividade? Compre­endHe então com esta palavra uma condição do historia­dor, na qual ele contempla am acontecimento em todas as suas motivações e ronseqüências de modo tão puro que este aconteàmento não produz nenhum em sua subjetividade: tem-se em vista aqui aquele fenômeno estético, aquele des­prendimento do interesse pessoal. com o qual o pintor di­ante de uma paisagem tempestuosa, sob raios e trovões ou sobre o mar revolto, olha sua imagem interior; tem-se em vista a plena imersão na coisa. Não obstante, não passa de uma superstição que uma imagem, ao mostrar as a>isas em um homem afinado de uma tal maneira. restitua II essênôa empírica das coisas. Ou deverá naquele momento como que desenhá-las, retratá-las, fotografá-las através de sua própria atividade, em um meio puramente passivo?

Isto seria uma mitologia, e, além disto, uma mitologia muito ruim. Além disto, esquece-se justamente que aquele momento é mais forte e mais espontâneo de aiação na inte­rioridade do artista, um momento de composição do tipo mais elevado possível, cujo 1'$1ltado seni certamente um.a pintura artisticamente verdadeira e não historicamente ver­dadeira. Pensar a hist.óóa como objetiva é o trabalho silen­cioso do dramaturgo, a saber, pensar tudo conectado, tecer

o esporádico no todo - por toda parte, sob a pressuposição de que uma unidade do plano nas coisas deve ser alcançada, quando ela não estiver presente. Assim, o homem estende a sua teia sobre o passado e o domestica, a55im se expressa seu impulso artístico - mas não o seu impulso para a verda­de, para a justiça. Objetividade e justiça não tem nada a ver

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uma com a outra. Dever-se-ia pensar uma historiografia qu.e nio tiveMe em si nenhuma gota da verdade empírlca co­mum e que pudes.,e requisitar o predicado da objetividade no grau mais elevado. De fato, Grillparur ousa declarar: ·o que é a história senão o modo como o espúito do ~ rnem arolhe tom/os impaidnfwis pan, ele; que, sabe Deus, se SI! coaespondem; que substitui o incompreensível pelo com­preensfvel; através de algo, desloca seus c:ona!itos de con­veniência para fora do todo, que só oonhece movimento para o seu interior; e novamente assume o acaso, onde mil pe­quenas causas agiram. Cada homem tem ao mesmo tempo sua ,própria necessidade individual, de tal modo que mi· 1hões de direções correm paralelamente em linhas tortas e retàs, umas ao lado du outras, se entrecruzam, exigem, oostruem. aspiram seguir em frente ou voltar atrás e assu­mem atrav& dat reciprocamente, o caráter do acaso. Por­unto, descontadas as influências dos acontedmuttos natu­Táis, toma-se impossível comprovar uma necessidade abrangente, radical, de todo acontecido." Supõe«, porem. ·que justamente uma taJ necessidade deve ser trazida à luz como o resultado daquela visão "objetivaH das coisas! Esta é uma pressuposição que, se é expressa como proposição de fé do historiador, só pode assumir uma figura muito es­tranha; Schiller tinha em verdade completa clareza quanto ao caráter propriamente subjetivo desta suposição, ao di­zer em relação ao historiador: •um fenômeno depois do outro começa a se esquivar ao domínio do aca50 cego, da liberdade sem lel, e a tomar seu lugar como o membro ade­quado de uma totalidade harmônica - que lcdmroi, triste apt-

1111$ em sua rtprestntOÇM."11 Mas, como se deve considerar a afirmação de um célebre virtuoso histórico que é introduzi­da com tanta fé e que paira artificialmente entre a tautologia e o contra-senso: "não se trata de outra questão, a não ser de que toda ação e toda motivação humanas estão submeti-

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das ao curso silencioso das coisas, freqüentemente desaper· cebido, mas violento e irresistível"?22 Em uma tal proposi­ção não se percebe mais o enigmático da verdade como não­verdade sem enigma; tal oomo na expressão do jardineiro da corte no texto gotheano: "a natureza pode até se deixar forçar, mas não pode ser coagída•,n ou no cartaz de uma barraca de feira, contada por Swift "aqui podemos ver o maior elefante do mundo, com a exceção dele mesmo". Pois qual é afinal a diferença entre a açJo e a motivação dos ho­mens e o curso das coisas? Em geral ocorre-me que historia­dores como este que acabamos de citar deixam de instruir no momento em que começam a generalizar e, então, rev~ 1am o sentimento de suas fraquezas por meio de obscwida­des. Em outras ciências, as generalidades são o mais impor· tante, uma vez que contêm as leis. No entanto, se sentenças tais como a acima menàonada devessem valer como lei, então, precisaríamos contrapor que, neste caso, o trabalho do historiador desapareceu; pois em geral o que permane­te verdadeiro em tais sentenças. depois da retirada daqu~ le resto obscuro e indissolúvel de que falamos, é algo fami­liar e mesmo trivial; pois está diante dos olhos, nos âmbitos mais diminutos da experiência. Mas incomodar povos in­teiros por isto e aplicar nisto anos de trabalho árduo não significaria mais do que acumular nas ciências da natureza wn experimento após o outro, depois de a lei já ter sido há multo deduzida do tesouro presente dos experimentos: um excesso sem sentido de experimentos, do qual padece a àéncia da natureza atual desde o tempo de Zõllne.r. Se o valor de um drama residisse apenas no pensamento coo· dusivo e centra~ então o próprio drama seguiria um cami­

nho o mais extenso pos.gveL indireto e fatigante até a meta; e assim espero que a significação da história não seja reco­nhedda nos pensamentos universais, como em uma espé­cie de Oor e de fruto: mas que seu valor seja ~ver

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e11plrltuosamente e elevar um tema conhecido, talvez habi­lual, uma melodia do cotidiano, alçá-lo a símbolo abran­~\'nte e assim deixar pressentir no tema original todo um mundo de profundidade, poder e beleza.

Para tanto, porém. é requerida antes de tudo uma gran­de potência artística, um pairar criativamente acima de tudo, urna immão amorosa nos dados empíricos, imaginar além Jo tipo dado - aliás, tudo isto diz respeito à objetividade, mas somente como uma qualidade positiva. Todavia, obje­tividade é muito freqüentemente apenas uma palavra. No lo,gar daquela quietude internamente relampejante, exter­namente imóvel e obscura do olhar do artista, entra em cena i1 afetação da quietude; como se a falta de pdthos e de força moral se revestisse de uma frieza aguda da reflexão. Em Cêrtos casos, a banalidade da meditação, a sabedoria de qualquer um, que só através do seu tédio dá a impressão de quietude e tranqüilidade, ousa aparecer a 6m de legitimar :luda condição artística na qual o sujeito silencia e se toma wcnpletamente imperteptfvel. Busca-se tudo o que em ge­nl não estimula e a palavra mais seca toma-se a mais exa­tamente ro~. Sim, chega-se mesm.o ao ponto de evocat aquele homem para o qual um momento do passado não signifia, llbsol11llm1mte nAdA para representá-lo. Assim se com­portam. com freqüência. os filólogos e os gregos, uns em relação aos outros: eles não se interessam por nada - cha­ma-se isso também "objetividade"! É precisamente onde o mais elevado e mais raro devem ser representados, o inten­cional e solenemente exposto ser desinteressado, a selecio­nada arte da motivação sóbria e trivial, francamente cho­cante - a saber, quando a tlllidade do lústoriador impele-o a esta indiferença que assume ares de objetividade. Aliás, tais autores levam a concordar com o prinópio de que cada homem tem tanto mais vaidade quanto mais lhe falta en­tendimento. Não, sede ao menos sincero! Não buscai a apa-

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rência da força artística, que deve ser chamada d.e efetiva objetividade, não buscai a aparência da justiça. se vós não celebrais o clamor terrível do justo! Como se a tarefa de cada época, para ser justa, devesse ser contra tudo o que foi uma vez. ~pocas e gerações nunca têm o direito de, até mesmo, serem juízes de todas as épocas e gerações anteriores: mas sempre apenas aos indivíduos e, em verdade, aos mais ra­ros entre eles, cabe, pelo menos uma vez., uma missão tão desconfortável. Quem vos obriga a julgar? E ainda além -colocai-vos à prova, apenas para ver se podeis ser justos, se vós o quiserdes! Enquanto juízes, precisaríeis permanecer superiores em rela.ção ao que deve ser julgado; mas vós apenas chegastes depois. Os convidados que chegam por último à mesa devem com razão ficar com os últimos luga­res: e vós quereis ter os primeiros lugares? Então fazei ao menos o que há de mais elevado e mais grandioso; talvez se vos conceda neste caso realmen.te um lugar, mesmo se vós chegares por último.

Somente a partir da suprema força do presente tendes o direito dt interpretar o pasSlldo: somente na mais intensa tensão de vossas qualidades mais nobres desvendareis o que há no passado digno de ser conhecido e conservado. O igual pelo igual! De outro modo, vós conduzireis o passado para bai­xo juntamente convosco. Não acrediteis em uma historio­grafia, se ela não emergir da cabeça dos espfritos mais ra­ros, mas sempre percebereis qual é a qualidade de vosso espírito, se lhe é necessário expressar uma vez mais algo universal ou conhecido por todos: o autêntico historiador precisa ter a força para converter o que é conhecido por to­dos em algo inaudito, a força para anunciar o universal de maneira tão simples e profunda que não vé a simplicidade para além da profundidade e a profundidade para além da simplicidade. Ninguém pode ser ao mesmo tempo um gran­de historiador, um artista e um cabeça..cl~vento: em contra-

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5ECI.INOA CONSIDERAÇÃO MEMPcSTlVA 57

partida, não se devem subestimar os trabalhadores que car­regam, armazenam e ordenam o material, porque eles cer­tamente não puderam se tornar grandes historiadores; não se devem tampouco confundir historiadores com tais tra­balhadores, màs compreendê-los enquanto aprendizes e aju­dantes necessários a serviço, do mestre: assim mais ou me­nos como os franceses, com uma ingenuidade maior do que é possível aos alemães, costumam falar dos historiens de M. Thiers.24 Estes trabalhadores devem se transformar paulati­namente em grandes eruditos, mas por isto nunca podem ser mestres. Um grande erudito e um grande cabeça-de-ven­to - estes dois já se coadunam melhor um com o outro.

Portanto: a história, escreve-a o homem experiente e superior. Quem não vivenáou algo maior e mais elevado do que tudo também não saberá interpretar nada grandio­so e elevado no passado. A sentença do passado é sempre oracular: apenas como construtores do futuro, como conhe­cedores do presente, vós a compreendereis. O efeito extra­ordinariamente profundo e amplo de Delfos se esclarece agora, em espeáal pelo fato de que os sacerdotes délficos

eram conhecedores exatos do passado; agora convém saber que apenas aquele que constrói o futuro tem o direito de julgar o passado. Por isso, vós olhais à frente, cravando urna grande meta, domando, ao mesmo tempo, todo impulso voluptoso e analítico, que agora vos desertifica o presente e torna quase impossível toda calma, todo cresámento e ama­dureámento tranqüilos. Envolvei-vos com a cerca de uma grande e abrangente esperança, uma aspiração esperanço­sa. Formai em vós uma imagem à qual o futuro deva corresponder e esquecei a superstição de ser um epígono. Vós tereis o sufiáente para ponderar e inventar, na medida em que meditais sobre aquela vida futura, mas não requisi­teis à história que ela vos mostre o "como?", o "com o quê?". Se ela, ao centrá.rio, vos imiscuir na história dos grandes

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homens, então aprendereis dela um comando supremo para amadurecer e para escapar daquele encanto educacional paralisante da nossa époa1, que vê sua utilidade em não vos deixar amadurecer para dominar e explorar a vós, os imaturos. E se desejais biografias, então não aquelas a>m o refrão •o senhor tal e tale uma época", mas aquelas em que os frontispícios deveriam chamar-se "um guerreiro contra seu tempo#. Saciai vossas almas com Plutarco e ousai aae­ditar em vós mesmos, acreditando ao mesmo tempo em vossos heróis. Colll uma centena de tais homens educados de maneira não moderna, isto é, amadurecidos e habitua­dos ao heróico, toda a subcultura25 barulhenta deste tempo poderia ser eternamente silenciada.

7.

O sentido históric:o, quando vige son lrRUfl:$ e retira to­das as suas conseqüências, desenraiza o futuro, porque des­trói as ilusões e retira a abnosfera das coisas existentes, a única na qual podiam viver. A justiça histórica, mesmo se real e exercitada com pureza de intenção, é, por isso, uma virtude terrível, à proporção que confunde o vivente e o leva à deca.dfncia: seu julgar é sempre um aniquilar. Se por detrás do Impulso histórico não age nenhum Impulso cons­trutivo, se nada é destruído e limpo para um futuro já vivo, na esperança de construir sua morada sobre o solo libera­do, se a justiça vige sozinha, então o instinto aiador é en­fraqueddo e desencorajado. Uma religião, por exemplo, que precisasse se converter em saber histórico sob a vigência da pura justiça, uma religião que precisasse ser inteiramente conhecida cientificamente, acabaria ao mesmo tempo ani­quilada ao fanai deste caminho. A razão disto está em que, no ajuste de contas história>, sempre vêm à tona tantas coi­sas falsas, toscas, inumanas. absurdas e violentas, que a dis-

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posição para a ilusão piedosa, a única na qual tudo o que quer viver pode viver, necessariamente se dissipa: somente no amor, porem, somente envolto em sombras pela ilusão do amor, o homem cria; ou seja, somente na crença in.condi­cionalno que é perfeito e a>neto. Todo aquele a que se obriga a não mais amar incondicionalmente cortou as raízes de sua força: ele se toma ressequido, ou seja. insincero. Sob tais efeitos, a história é o oposto da arte: e somente se a história suporta convenu-se em obra de arte, ou seja, tornar-se p1118 forma artística, ela pode, talvez,. conservar instintos e, até mesmo, despertá-los. No entanto, uma tal historiografia poderia contradizer inteiramente o traço analítico e não ar­tístico de I\O$Sil é~ sim, sentida por ele oomo uma falsi. ficação. A história. porém. que não apenas destro~ sem que um impulso CQnStrutivo interno a conduza, toma a longo prazo as suas ferramentas esnobes e desnaturadas: pois tais homens destroem ilusões e •quem destrói ilusões em si e nos outros pune a natureza como o tirano mais crueJ•. ~ certo que podemos ocupar-nos por um bom tempo com a história de maneira totalmente inofensiva e irrefletida, como se esta fosse uma ocupação tão boa oomo outra qualquer; em particular, a moderna teologia deixou-se envolver com a história por pura inocfulcia e, ainda agora. não se dispõe a notar que, com isto, provavelmente em muito contra a sua vontade, está a seIViço do 6:rasa voltairiano. Ninguém su­pôs por detrás dela novos ínstintos construtivos podero­sos; se deveria então legitimar a assim chamada associação protestante romo o rolo matemo de uma nova religião e o jurista Hol.zendorf (o editor e prefaciador da ainda mais problemática biblia dos protestantes~ mais ou menos como João no rio Jordão. Por algum tempo a filosofia hegeliana, ainda fumegante em cabeças mais velhas, talvez auxilie na propagação daquela inocência por diferenciar a "idéia do cristianismo" de suas múltiplas e imperfeitas ffformas de

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manifestação" e buscar convencer de que seria Ma ocupação preferida da idéia# revelar-se sempre em formas cada vez mais puras, até que, por fim, se revele como a forma certa­mente mais pura de todas, a mais transparente, SUi\, rara­mente visível, no cérebro do thlologus libtralis tndgoris atual. Todavia, escutando estes cristianísmos maximamente imaculados se expressarem sobre os cristianismos ímpuros mais antigos, o ouvinte ímparcial tem freqüentemente a ímpressão de que não se fala absolutamente do cristianis­mo, mas de ... - em que devemos pensar agora? Se encon· trarmos o aistianlsmo caracterizado pe]os "maíores teólo­gos do século" como a religião que permite "sentir-se irma­nado com todas as religiões reaís e ainda com algumas ou­

tras religiões meramente possíveis", e se a Mverdadeira igre­ja" deve ser aquela que •se toma uma massa fluida na qual não rui nenhum contorno e na qual cada parte se acha ora aqui ora lá e tudo se mistura pacificamente entre si" ·- - uma vez mais: em que devemos pensar?

O que se pode aprender com o cristianismo é o fato de ele ter se tomado esnobe e desnaturado sob o efeito de um tratamento hlstorlcizante, até que, finalmente, um tratamen­to plenamente histórico, isto é, um tratamento justo, o dis· solveu em puro saber acerca do aistia.nlsmo e, com isso, o aniquilou. Pode-se estudar esta circunstância em tudo o que tem vida e que deíxa de viver ao ser dissecado até o fim e vive dolorosamente doente, se iniciamos a faz.er nele exer· ódos hístóriros de dissecação. Há homens entre os alemães que acreditam em um poder curativo, transformador e reformador da música alemã: eles se sentem encolerizados e consideram uma injustiça contra o que rui de maís vivo em nossa cultura quando homens como Mozart e Beethoven se vêem j4 agora soterrados por todo um deserto erudito de biografias e devido ao sistema de tortura da crítica são obri· gados a responder a uma míriade de perguntas impertinen·

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tes. Não é inteiramente desprezível que, em seus efeitos vivos, o fora do tempo, o ainda não esgotado ou ao menos paralisado, julgue o nosso desejo pela infinita micrologia da vida e obra e aí procure problemas do conhecimento onde se deveria aprender a viver e a esquecer todos os proble­mas. Transportemos em pensamento apenas uns poucos destes modernos biógrafos para os lugares de nascimento do cristianismo ou da reforma luterana; sua moderna curio­sidade sóbria e pragmática seria mais do que suficiente para tomar impossível qualquer fantástica actio i11 distans: exata­mente como o animal mais miserável pode impedir o surgi­mento do mais poderoso carvalho simplesmente engolin­do as sementes. Todo vivente necessita de uma atmosfera à sua volta, de uma névoa completamente misteriosa; quan­do lhe retiramos este invólucro, quando condenamos uma religião, uma arte, um gênio, a girar como um astro sem atmosfera: então não devemos nos espantar mais se ele rapidamente se tomar árido, rígido e infrutífero. Como Hans Sachs diz no Meistersinger, o mesmo acontece com todas as coisas grandiosas "que nunca têm sucesso sem alguma ilusão".

Mas, mesmo este povo, sim, este homem que quer ama­durecer, carece de um tal invólucro ilusório, de uma tal névoa protetora e veladora. Agora, porém, se odeia o ama­durecimento em geral, porque se honra a história mais do que a vida. Sim, triunfa-se pelo fato de que agora "a ciên­cia começa a dominar a vida": é possível que se alcance isso. Todavia, uma vida dominada desta maneira não é certamente muito valiosa porque é muito menos vida e assegura muito menos vida para o futuro do que a vida outrora dominada não pelo saber, mas pelos instintos e pelas poderosas imagens ilusórias. No entanto, como dis­semos anteriormente, a época atual não é urna época de personalidades prontas e amadurecidas, de personalida-

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des harmônicas, mas a época do trabalho conjunto mais útil possível. E isto não significa mais do que o seguinte: os homens devem ser ajustados aos propósitos da época, para ajudarem o mais cedo possível; eles devem trabalhar na fábrica das utilidades genéricas antes de estarem ma­duros, sim, e com isso, não amadurecerão - pois isto seria um luxo que retiraria do "mercado de trabalho" uma quan­tidade enorme de forças. Cegam-se alguns pássaros para que eles cantem melhor: não acredito que os homens de hoje cantem melhor do que seus avós, mas sei que eles são cegados muito cedo. O meio, contudo, o meio infame que se aplica para cegá-los é a luz demasiado clara, demasiado súbita, demasiado variável. O homem jovem é chicoteado através de todos os milênios: rapazolas que nada enten­dem de uma guerra, de uma ação diplomática, de uma política comercial, consideram corno louvável a sua intro­dução na história política. Mas assim corno o homem jo­vem passeia pela história, nós modernos passeamos pelas galerias de arte e ouvimos concertos. Sente-se prontamente que uma coisa soa diferente da outra e produz um efeito diferente do outro: perder cada vez mais este sentimento de estranheza, não se espantar excessivamente com coisa alguma e, por fim, estar contente com tudo - é isto que se chama de sentido histórico, de cultura histórica. Dito sem dourar a pílula: a massa do que aflui é grande; o estranho, o bárbaro e violento, "acumulado em pilhas medonhas", penetra tão poderosamente na alma jovem que ela só sabe se salvar com uma estupidez proposital. Onde uma cons­ciência mais sutil e mais forte é a base, uma outra sensa­ção também se introduziu: o nojo. O homem jovem se tor­nou demasiado apátrida e duvida de todos os hábitos e conceitos. Agora ele sabe uma coisa: em todas as épocas, isso foi diferente, não importa como você é. Em meio a uma melancólica apatia, ele deixa passar ao seu lado uma

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opinião após a outra e compreende as palavras e a dispo­sição afetiva de Holderlin ao ler o livro de Diógenes Laér­cio sobre a vida e a doutrina dos filósofos gregos: "eu tam­bém experimentei aqui uma vez mais o que já tinha me ocorrido algumas vezes, o fato de a transitoriedade e va­riabilidade dos pensamentos e dos sistemas humanos me tocarem mais tragicamente do que os destinos que costu­mam ser denominados as únicas coisas reais." Não, uma tal historicização transbordante, atordoante e violenta não é certamente necessária para a juventude, como bem o mostram os antigos, e é mesmo perigosa no mais alto grau, como mostram os modernos. Mas consideremos agora jus­tamente o estudante de história, o herdeiro de um esno­bismo que se mostra já muito cedo, quase na adolescên­cia. Agora o "método" tomou-se o seu próprio trabalho, a pegada correta e o tom do mestre; um pequeno capítulo do passado totalmente isolado é sua perspicácia e o méto­do aprendido é sacrificado; ele já produziu, sim, com as palavras mais orgulhosas, ele "criou", ele se tomou então um serviçal da verdade por meio da ação e senhor no âmbito do mundo histórico. Se já estava "pronto" como rapazola, ele está agora completamente pronto: precisa-se apenas sacudi-lo e então a sabedoria cai com um grande estampido no colo; no entanto, a sabedoria é preguiçosa e toda maçã tem seu verme. Acreditem em mim: se os ho­mens devem trabalhar na fábrica da ciência e se tomarem úteis antes que amadureçam, então a ciência está arruina­da do mesmo modo que todos os escravos utilizados nes­ta fábrica desde cedo. Grosso modo, lamento que já tenha­mos a necessidade de nos servir do jargão lingüístico do proprietário de escravos e do empregador para a designa­ção de tais relações que deveriam ser em si pensadas como livres de utilidade, desprovidas de necessidades vitais: mas involuntariamente vêm à boca as palavras "fábrica, mer-

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cado de trabalho, oferta, utilização" - como quer que pos­sam se chamar os verbos auxiliares do egoísmo -, quando se querem descrever as gerações mais jovens dos erudi­tos. A autêntica mediocridade toma-se cada vez mais me­díocre, a ciência cada vez mais utilizável no sentido eco­nômico. Os eruditos mais recentes só são propriamente saôios em um ponto e aí certamente eles são mais sábios do que todos os homens do passado, em todos os outros pontos eles são apenas infinitamente diferentes - dito com atenção - de todos os eruditos de velha cepa. Apesar dis­to, eles exigem honras e vantagens para si, como se o Esta­do e a opinião pública fossem responsáveis por tomar as novas moedas como tendo o mesmo valor das antigas. Os trabalhadores braçais firmaram um contrato de trabalho e decretaram o gênio como supérfluo - ao mesmo tempo em que cada um deles foi rebatizado gênio: provavelmen­te, uma época posterior vai considerar suas edificações como tendo sido não construídas, mas ajuntadas por eles. O incansável e moderno grito de batalha e sacrifício "Di­visão do trabalho! Em fila!n, deve ser dito, ·algum dia, de maneira clara e distinta; se vós quereis fomentar o mais rápido possível a ciência, então também ireis aniquilá-la o mais rápido possível, exatamente como as galinhas pere­cem se as impelimos artificialmente a colocar ovos rápido demais. Bem, a ciência foi exigida nos últimos séculos de uma maneira espantosamente rápida. Considerai agora, porém, também os eruditos, as galinhas exaustas. Eles não constituem verdadeiramente nenhuma natureza "harmô­nica": só conseguem cacarejar mais do que nunca porque põem ovos mais freqüentemente: é certo que os ovos tam­bém foram se tomando cada vez menores (por mais que os livros tenham se tomado cada vez mais grossos). Como um resultado derradeiro e natural temos a "popularização" universalmente apreciada (ao lado da "feminilização" e

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da "infantilização") da ciência, ou seja, o famigerado cor­te da saia da ciência a partir do molde fornecido pelo corpo do "público em geral": para utilizar aqui, pelo menos uma vez, uma expressão própria à alfaiataria, uma vez que esta é uma atividade de alfaiates alemães. Goethe viu aí um abuso e exjgiu que as ciências só atuassem sobre o mundo exterior apenas por intermédio de uma práxis elevada. Além disto, para as antigas gerações de eruditos, um tal abuso parecia, por boas razões, difícil e enfadonho: em todo caso, por boas razões, os eruditos mais jovens consideram-no fácil, pois, exceto no caso de um pequenino canto do co­nhecimento, eles mesmos não passam de um público mui­to geral e trazem consigo as necessidades deste público. Eles só precisam se instalar comodamente para que lhes seja possível também abrir o seu pequeno campo de estu­do à curiosidade e à avidez do público em geral. Além disto, pretende-se chamar este ato de comodidade de "con­descendência modesta do erudito em relação ao seu povo", mas no fundo o erudito não fez outra coisa senão descer ao seu nível, uma vez que ele não é um erudito, mas plebe. Criai-vos o conceito de um "povo": jamais podereis pensar este conceito de maneira suficientemente nobre e elevada. Se pensásseis com grandeza o povo, então também seríeis caridosos em relação a ele e procuraríeis se precaver para não oferecer o vosso solvente histórico como bebida refres­cante da vida. No mais íntimo, contudo, vós o desprezais porque não estais em condições de cuidar verdadeira e fundamentadamente de seu futuro e agis como pessimistas práticos, ou seja, como homens que são guiados pelo pres­sentimento de um desastre e que se tomam por isto indife­rentes e desleixados diante do bem-estar próprio e alheio. Ah, se ao menos o solo continuar nos suportando! Mas se ele não nos suportar mais, também não há problema algum - assim eles sentem e vivem uma existência irônica.

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Deve parecer, de fato, estranho, mas não contraditório quando, apesar de tudo, atribuo a uma época que costuma

irromper tão perceptível e inoportuna. em melo à exaltação mais despreocupada acerca de sua cultura histórica, uma espécie de IJdDconsdbtcia ir6niu, uma suspeita pairando de que nada aqui seria exaltável, um medo de que talvez em breve esta época terá passado, com toda a festa do co­nhecimento histórico. Goethe apresentou-nos um enigma similar em relação à personalidade individual por intermé­dio de sua notável caracterização de Newton: ele encon· trou no fundo (ou melhor: no ponto mais elevado) de sua essência "um turvo pressentimento de seu erro#, a expres­são como que perceptível, em um momento singú)ar, de ama t'On9dênda reflexiva judicativa que alcançou uma cer­ta visão irônica abrangente sobre a natureza necessária que o habitava. Assim, justamente nos maiores e elevados ho­mens desenvolvidos historicamente encontra-se com fre­qüência uma consciência sufocada e levada até o ceticismo mais universal, do quanto acreditar-se-ia no absurdo e na superstição de que a educação de um povo deveria ser tão preponderantemente história t'OJJ\O ela é agora; pois preá­samente os povos mais vigorosos, e, em verdade, vigorosos em seus feitos e obras, viveram de outra maneira, educa­ram a sua juvenhlde diferentemente. Todavia. este absur­do e esta superstiçio nos são adequados - assim diz a obje­ção mtica - , a nós que chegamos atrasados, a nós. a última prole empalidecida de gerações mais poderosas e mais feli­us, a nós que devemos ser interpretados pela profecia de Hesfodo de que os homens um dia j.i nasceriam com cabe­los grisalhos e de que l.eus extenninaria esta geração assim que esse sinal se tomasse visível neles. A cultura histórica é também, realmente, uma espécie de encanecimento inato e

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aqueles que trazem consigo seu sinal desde a infãncia pre­cisam chegar certamente à crença instintiva no mwlhtcimtnlo d4 humJ11tidAdt, mas por este envelhed.mento paga-se agora com uma ocupação senil, a saber, olhar para trás, acertar contas demasiado, fechar-se, buscar um consolo no que foi. pelas lembranças, em suma, pela cultura lústórica. Mas a espécie humana é uma coisa tenaz e persistente e não quer ser ronsi.derada em seus passos - pan &ente e para bis -em termos de milênios, sim. mesmo em termos de cem mil anos, ou seja. ela nio quer ser absoluhnnmk considerada pelos indivíduos como um todo composto de pontinhos atomi· zados infinitamente pequenos. O que querem dizer a.final alguns milênios (ou expresso de outra maneira: o espaço de tempo de 34 gerações COJtSeCUtivas com 60 anos cada) para que ainda se possa falar, no começo de um tal tempo, de •juventude• e, no fim. já de "velhice da humanidade"! Já não se imiscui muito mais nesta crença paralisante de que a humanidade se encontra em declínio uma incompreensão caraderl.stica da representação teológico-cristã herdada da Idade Média, o pensamento do fim próximo do mundo, do juízo final esperado com temor?!? Esta representação assu· me uma nova roupagem em meio à crescente necessidade de um juiz histórico, como se a nossa época. a última possí· vel, tivesse sido ela mesma autorizada a promover aquele julgamento do mundo sobre tudo o que passou. um julga­mento que a crença cristã não esperava de maneira alguma por parte dos homens, mas pelo " filho do homem"? Anti·

gamente, este " lflffllt1l1o mori", proclamado para a humani­dade assim como para o individuo, era sempre um espinho torturante e como que o ápice do saber e da consciência medievais. Em contrapartida. a sentença evocada pelo tem· po moderno, "nwnento vivtrt", soa, para falar francamente, ainda um pouco Intimista; não é enunciada a plenos puJ· mães e tem em si algo insincero. Pois a humanidade ainda

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está firmemente .wentada sobre o tnmlfflta num e o denun­cia através de sua necessidade histórica. universal: apesar do seu mais poderoso bater de asas, o saber não pôde se desprender e se lançar no espaço aberto. Um sentimento profundo de desesperança restou e assumiu aquela tonali­dade histórica pela qual toda educação e cultura elevada estão melancolicamente ensombrecidas. Uma religião ~ entre todas as horas de uma vida humana. toma a última a>mo sendo a mais importante, que profetiza um ténnino da vida na terra em geral e condena todos os viventes a viver no quinto ato da tragédia. excita certamente as forças mais profundas e mais nobres. En.t:retanto, ela é a inimiga de todo novo plantio, de todo experimento ousado, de toda aspiração livre; ela resiste a todo vôo em direção ao desco­nheci.do, porque ela ai não ama, nada espera: ela só deixa o que vem a ser se impor rontra a vontade, para alijA-lo ou sacrificá-lo no tempo certo como algo que seduz para a exi&­tmda. como algo que mente quanto ao valor da existência. O que os florentinos fizeram ao promoverem, sob a influ&l­cia dos sermões de penitência de Savonarola, » aquelas fa. mosas queimas sacrificiais de quadros, manuscritos, espe­lhos e máscaras, o cristianismo gostaria de fuer com toda e qualquer cultura que estimule o continuar aspirando e conduza aquele mtn1t11lo viout como lema; e se não é possf • veJ fa7.er isto sobre um caminho reto, sem rodeios, a saber, por um exc:esso de força, então ele atinge igualmente a 5Ua

meta ao se aliar com a cultura histórica, na maioria das ve­zes até mesmo sem o seu conhecimento; então, falando a partir dela, ele recusa, dando de ombros, tudo o que vem a ser e estende sobre ele o sentimento de que chegou tarde demais e de que ele é neste sentido epigonal, em suma, o sentimento do encanecimento inato. A consideração amar­ga e profundamente rigorosa sobre a íalta de valor de todos os acontecimentos passados, sobre o amadureoer do mun-

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do para o dia do juízo, volat:izou-.se na forma da consciên­cia cética de que em lodo caso seria bom conhecer tudo o que passou po.rque já seria tarde demais pata fazer algo melhor. Com isto, o sentido histórico toma seu RrViçal pas­sivo e retrospectivo; e quase s6 a partir de um esquecimen­to repentino, quando justamente este sentido experimenta uma certa intermítênc:ia; o adoentado pela febre histórica toma-se ativo para dissecar sua ação logo que eJa tenha passado, para impedir o prolongamento de sua efetivação por meio da consideração analítica e para metamodoseá­lo, -por fim, em "história". Desta feita, continuamos a viver na Idade Média e a história não é senão uma teologia disfarçada: exatamente como a veneração, com a qual o lei­go sem instrução trata a casta científica, é uma veneração herdada do dero. O que se entregava outrora para a igreja concede-se agora, mesmo que parcimoniosamente, à ciên­cia. Mas o fato de se fazer uma tal con~ foi propiàado outrora pela igreja e não, irudalmente, através do espírito moderno, que tem. muito mais, em meio a suas outras boas propriedades, como se s.ibe, algo de avareza, e não passa de um ignorante na nobre virtude da generosidade.

Talvez esta observação desagrade, tão pouco, talvez, quanto aquela dedução do exoesso de lústória a partir do mnnenfo mori medieval e da desesperança que o cristianis­mo traz no coração em relação a todos os tempos vindouros da existência terrena. No entanto, deve-se buscar incessan­temente substituir este esclated.mento que dou rom algu­ma hesitação por outros melhores. Pois a origem da cultura histódca - e sua oposição interna completamente radical ao espírito de um "novo tempo", de uma "consciência moder­na" - prtcisa ser ela mesma ronhecida uma vez mais histori­camente; a história prtelsa resolver o próprio problema da história, o saber precisa voltar o seu ferrão contra si mesmo - esta nectSSidadt tripla é o imperativo do espírito do "novo

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tempo", caso ainda haja nele realmente algo novo, podero­so, originário e promissor para a vida. Ou será verdade que nós alemães - para não levar em conta os povos românicos - precisamos ser sempre em todas as questões mais eleva­das da cultura apenas "herdeiros" porque nunca podertmOS ser mais do que isto, tal como o disse uma vez, Wilhelm Wackemaget de maneira memorável: "Nós alemães somos um povo de herdeiros, não somos senão, com todo o nosso saber superior, com toda a nossa aença, permanentemente seguidores do mundo antigo; mesmo os que,, movidos por uma disposição hostil, não o querem sê-lo, respiram próxi­mo do espírito do cristianismo sem perder o espírito imor­tal da cultura dássica; e se alguém consegue, a partir do sopro de vida que envolve o mundo interior dos homens, eliminar estes dois elementos, então não restaria muita coi­sa para, com isso, prolongar a vida espiritual."27 Todavia, mesmo se fôssemos, nesta tarefa, seguidores da antigüida­de, nos tranqüilizaria bastante se decidíssemos apenas em tomá-la expressa e corretamente a sério e reconhecer nisto nossa prerrogativa espeáfica e única - então sedamos, ape­sar disto, obrigados a perguntar se este preá.sarla ser eter­namente nosso destino, o de ser pupilos da antigüidade deca­dtntt. Algum dia talvez seja possível colocar a nossa meta, passo a passo, mais elevada e mais distante, algum dia tal· vez conquistemos o direito de sermos louvados pela recria­ção, em nós, de forma tão frutífera e grandiosa do espírito da cultura romano-alexandrina - também por intermédio de nossa história universal - a fim de, entã.o, como a recom­pensa mais nobre, podermos nos colocar a tarefa ainda mais violenta de dar um passo atrás deste mundo alexandrino, de ansiar para além dele e buscar nossos modelos de uma visão corajosa no mundo originário dos grandes, naturais e humanos gregos antigos. Entrl!tanto, também mcontramos /4 a efdiuidadt dt uma cultura esstneúllmmtt a-hist6rica t dt uma

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cultura que l, apesar disto ou muito exatamente por isto, i,uiescritroel~nte rica e plena dt vida. Se os alemães mesmos não fossem nada além de herdeiros, na medida em que olhássemos para uma tal rultura como uma herança a ser apropriada por nós, não poderíamos ser jamais grandes e orgulhosos, a não ser como herdeiros.

Com isto não se tem em vista senão o fato de mesmo a idéía freqüentemente penosa e encantadora de ser ep.ígon.o poder garantir, pensando de maneira grandiosa, tanto para os indivíduos quanto para um povo, grandes efeitos e um desejo cheio de esperanças no futuro, na medida em que nos compreendemos mesmo como herdeiros e sucessores de poderes clássicos e espantosos, vendo aí nossa honra, nossa espora - portanto, como empalidecidos e atrofiados descendentes tardios de gerações mais fortes, que prolon­gam numa vida gélida antiquários e coveiros destas gera­ções. Tais descendentes tardios vivem com certeza uma exis­tência irônica: a aniquilação segue de perto o curso coxeante de suas vidas; eles estremecem diante dela ao se alegrarem com o qu.e passou, pois são mem6rias vivas e, no entanto, suas lembranças não fazem sentido sem herdeiros. Assim, eles são tomados peJo turvo pressentimento de que sua vida seria uma injustiça, porque não lhes dá o direito de nenhu­ma vida futura.

Mas, suponhamos que tais epfgonos antiquários repen­tinamente trocassem o descaramento por aquela modéstia i.ronieamente doloroS<I; suponhamos que se anunciem com voz estridente: a nossa geração está no seu zênite, pois so­mente agora ela atingiu o saber sobre si e o revelou a si mesma - assim, terlamos um espetáculo no qual, como em uma alegoria, se desvendasse o enigmático significado de uma certa filosofia muito célebre para a cultura alemã. Acre-­dito que não houve nenhuma oscilação perigosa ou mudança da cultura alemã neste século que, por meio da monstruosa,,

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e até o presente instante inintetrUpta, influência desta filo­sofia, a füosofia hegeliana, não tenha se tomado bem mais perigosa. Na verdade, paralisante e desanimadon é a cren­ça em ser um filho tardio de sua época. Uma ru crença. porém. pattce aterradora e dizimadora, se um dia idolatra com uma franca exaltação este filho tardio como • meta e o sentido verdadeiro de todos os amntedmentos #lteriores, quando a sua miséria sapiente é equiparada a um acaba­mento perfeito da história do mundo. Uma tal forro.a de consideração acostumou os alemães a falar em "proresso do mundoH e a justificar a sua própria época como o resul­tado necessário deste processoí uma tal forma de conside­ração colocou a história - na medida em que ela é "o con­ceito que reaJiza a si mesmoH, "a dialética do espírito dos povos" e o "tribunal do mundo" - no lugar d()s outros poderes espirituais, a arte e a religião, como a única força soberana.

Oiamou-$e, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus alado por sua vez através da história. Todavia este Deus se tomou transparente e compreensível pala si mes­mo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo que, para HegeL o ponto culmi­nante e o ponto final do processo do mundo se (OJ\fundi.

riam com a sua pnSpria existência berlinense. Si1'\, ele po­deria ter dito que todas as c:oisas por vir depois dtJe teriam de ser avaliadas propriamente apenas oomo uma wda mu· sical do rondó históáco-mundial, e, mais propriamente aín· da, como supérfluas. Mas não o disse! Em vez disto, disse­minou nas gerações por ele fermentadas aquela admiração diante do "poder da história" que praticamente converte todos os instantes em desguarnecida admiração ar.te os re­sultados positivos e conduz à idolatria do factual: para este

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culto, em geral, se treinou agora expressão mitologizante e, além disto, com todo o direito, bem alemã: "ter em conta os fatos". Mas quem aprendeu inicialmente a se curvar e a in­clinar a cabeça diante do "poder da história" acaba, por úl­

timo, dizendo "sim" a todo poder, balançando mecanica­mente a cabeça como os chineses, quer se trate de um go­verno ou de uma opinião pública ou de uma maioria numé­rica, movimentando seus membros no exato compasso em que qualquer "poder" puxa os fios. Se todo evento contém em si uma necessidade racional, todo acontecimento é a vi­tória do lógico ou da "idéia" - então se ajoelhem depressa e louvem agora toda a escala dos "eventos"! O quê, não ha­veria mais nenhuma mitologia dominante?!? O quê, as reli­giões teriam entrado em extinção?!? Vede somente a reli­gião do poder histórico, atentai para os padres da mitolo­gia das idéias e em seus joelhos esfolados! Não estão até mesmo todas as virtudes no séquito dessa nova crença? Ou não se trata de abnegação quando o homem histórico se deixa modelar pelo vidro do espelho da objetividade? Não é magnanimidade abdicar de toda potência no céu e na ter­ra, uma vez que se reverencia em toda potência a potência em si? Não é justiça ter sempre em mãos os pratos da balan­ça e analisar com finura qual deles se inclina como o mais forte e o mais pesado? E que escola de bom-tom é uma tal consideração da história! Tomar tudo objetivamente, não se exasperar com nada, não amar nada, tudo conceber: como isto toma suave e maleável: e mesmo se uma pessoa educada nesta escola chegar algum dia a se exasperar e se irritar publicamente, então isto causa alegria, pois se sabe efetiva­mente que não se tem em vista senão um efeito artístico; trata-se de ira e studium, e, porém, totalmente si11e ira et studío.28

Que pensamentos antiquados tenho em meu coração

contra um tal complexo de mitologia e virtude! Mas algum

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dia eles terão de se expor, mesmo que provoquem o riso. Eu diria, então: a história sempre cunha um "era uma ver."; a moral: "vós não deveis" ou •não devíeis". ~ a histó­ria toma-se um compêndio de amoralidade fática. O quão pesadamente se equivocaria aqui alguém que entreves.,e a história ao mesmo tempo como juíza desta amoralidade fálica! Ofende, por exemplo, à moral, que um Rafael tenha morrldo aos 36 anos: um tal ser não deveria morrer jamais. Se vós quisésseis auxiliar agora a história, como apologetas do factual. vós diríeis: ele disse tudo o que havia nele; em uma vida mais longa, ele s6 teria podido sempre criar o belo corno o mesmo belo, não como um novo belo, e coisas do gênero. Desta feita, sois os advogados do diabo; e, em verdade, justamente por transformardes o evento, o fato, em vosso ídolo: enquanto o fato é sempre buno e, em todos os tempos, sempre se assemelhou mais a um bezerro do que a um deus. Além disto, como apologetas da história, a ignorlncia vos insufla pois somente porque não sabeis, como Rafael, o que é uma tal natul'll miturans, não ficais irritados ao perceber que ela foi um dia e não será mais. Sobre Goethe, alguém quis recentemente ensinar-nos que ele, com seus 82 anos, se teria esgotado: e, no entanto, eu troaria de bom grado alguns anos do Goethe "esgotado" por todo um com­bolo cheio de novos caminhos de vida ultramodemo,, para ainda poder tomar parte em convetSaS tal como Goethe teve com Eckermann. e desta maneira, me manter resguardado ante a todos os ensinamentos contemporâneos transmiti­dos pelos legíonários do instante. Quão poucos viventes~ em oomparação com estes mortos, dittíto à vida! Que mui­tos vivam e aqueles poucos não vivam mais, não é senão uma verdade brutal, ou seja, uma estupidez incorrigível, um grosseiro "assim é" em contraposição à moral "isto não deveria ser assim". Sim, em contraposição à mo.rali Pois se pode falar da virtude que se quiser, da justiça, da magnani-

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midade, da coragem. da sabedoria e da compaixão do ho­mem - por toda parte ele é virtuoso, à proporção que se levanta contra aquele poder cego dos fatos, contra a tirania do real, e se submete a leis que não são as leis daquelas flutuações da história. Ele sempre nada contra as ondas his­tóricas, seja porque combate suas paixões como a facticidade estúpida mais próxima de sua exis.tência, seja porque se compromete com a sinceridade enquanto a mentira urde ao seu redor sua teia cintilante. Se a história não fosse em geral nada além do "sistema mundial de paixão e erro", então o homem precisaria lê-la como Goethe aconselhou seu leitor a l.er o Wtrtha, como se ele gritasse: "sê um ho­mem e não me sigas!• No entanto, ela também conserva feliz;mente a memória dos grandes guerreiros que Lutaram amlTo o história, isto é, contra o poder cego do real e por isso colocando a si mesma no cadafalso, ronforme destaca como as naturezas propriamente históricas justamente aqueles homens que se preocupam pouco com o "assim rt', a fim de seguir muito mais, com um orgulho sereno, o ·assim deve ser". Não levar a sua geração para o túmul.o, mas fundar uma nova geração - ísto o impele continuamente para fren­te: e se eles mesmos tiverem nascido tardiamente há um modo de viver que produz o esquecimento disso-; as gera­ções vindouras os conhecerão apenas como primogênitos.

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t talvez o nosso tempo um tal primogênito? De fato, a veemência do seu sentido histórico é tão grande e se exterioriza de uma maneira tão universal e simplesmente irrestrita que, ao menos neste ponto, o tempo vindouro elo­giará a sua primogenitude - caso houver afinal tempos vi11-douros, entendidos no sentido da cultura. Justamente quan­to a isto, porém, resta uma dúvida pesada. Bem ao lado do

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orgulho do homem moderno enconlra·$e a sua ironhi em relação a si mesmo, a sua consciência. de que precisa viver em uma disposição historicizante e como que noturna, seu temor de nada mais poder.salvar, no .fututo, de suas forças e. esperanças juvenis. Aqui e ali, adentra-se ainda mais além no dnisnw e justifica-se o curso da hlstórla, sim, o desenvol­vimento conjunto do mundo, totalmente apropriado ao llSO

do homem moderno, segundo o cânone dnico: as coisas devem acontecer exatamente como agora e o homem deve tomar-se como agora osho~ns o são e não de outro modo, ninguém se pode insurgir contra este imperativo. Aquele que não consegue suportar a ironia busca refúgio no bem­estar de um tal cinismo; além -disto, ele ofereceu como pre­sente na última década uma de su.as mais belas :invenções, uma frase perfeita e acabada para aquele cinismo: ele cha­ma seu modo de viver-de acordo rom o seu tempo e com­pletamente sem .reflexão. de •a entrega total da pasonali­dade ao prooesso do mundo'". A pasonalidade e o pl'OCl!S­so do mundo! O processo do mundo e a personalidade da pulga terrena! Se ao menos não tivés.wmos de ouvir etetna­men.te a hipérbole de Iodas as hipérboles, a palavra: mun­do, mundo, mundo; enquanto cada um, sincera.mente, s6 deve.ri.- falar de homem, homem, homem! Herdeiros dos gregos e dos romanos? Do aistianismo? Tudo .isto parea! nada para aqueles cínicos: apenas herdeiros do processo do mundo! Ápices e alvos de vidro do processo do mundo! Sentido e solução de todo o enígma do vir a ser expressos no homem moderno, o fruto mais maduro da árvore do oonhecimentol -eu denomino isto uma grandiosa exaltação; nestes sinais devem ser reconhecidos os primogênitos de todos os tempos se, apesar disto, eles chegaram atrasados. Mesmo em sonho, a consideração histórica .nunca voou para tão longe; -pois a história dos homens é agora apenas a con­tinuação da história dos animais e das plantas; sim, nas

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profundezas mais abbsais do mar, o universalista histórlco encontra ainda os vestígios de si mesmo, mmo lama viva; o caminho de5comu:naJ. que o homem já pttcorreu admira­do, como um milagre, osciJa ao olho diante de um milagre ainda mais admin(ve~ diante do próprio homem moderno, que encobre este caminho. Ele R encontra orgulhosamente postado no alto da pirâmide do processo do mundo: no que ele. coloca af em óma a pedra conclusiva de seu conheci­mento, ele parece conclamar a natureza curiosa à sua volta: "nós atingimos a meta, nós somos a meta, nós somos a na­tureza aperfeiçoada!•

Europeu super~rgulhoso do século dezenove, tu estás fora de til O teu saber não aperfeiçoa a natureza, ele apenas mortifica a tuá própria natureza. Compara, pelo menos. uma vez, a tua altura, como homem de c:onhedme:nto, oom a tua

baixeza, romo homem de ~ . Tu escalas em direção ao céu pelos raios do sol do saber, mas também deK'eS rumo ao caos. Teu modo de andar, mais exatamente como andas enquanto homem de conhecimento, é tua fatalidade; fundamento e solo, segundo pensa,, rearas para o interior da Incerteza; pata a tua vida. não há mais nenhum suporte, s6 tms de aranha rompidas a cada nova intervenção de teu conhedmento. Mas não desperdicemos mais nenhuma palavra séria sobre isto, uma vez que ainda é possível dizer algo mais sereno.

O raivoso e impensado estilhaçamento e desmantela­mento de todos os fundamentos, sua díssolução em um vir a ser que sempre se dilui. o desfiar e a historidzação incan­sável de tudo o que veio a ser, através do homem moderno, a grande aranha auzeira no nó da tela cósmica - os mora­listas, os artistas, os homens pios e mesmo também o políti­co, gostariam de se ocupar e se preocupar com isso; por agora devemos apenas nos divertir com o fato de vermos tudo isto no espelho mágico e brilhante de um parodista fi­losófico em cuja cabeça o tempo alcançou uma consci@ncia

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irônica de si mesmo, e, em verdade, claramente "até a infâ­miaH (para falar como Goethe). Hegel ensinou-nos certa vez: "quando o espírito muda de direção, nós filósofos também vamos junto": nosso tempo tomou a direção da auto-ironia, e vede! E. von Hartmann também estava aí e já tinha escrito a sua célebre FilosofiA do inconsdtntt - ou para falar mais claro - a sua filosofia da ironia consciente. Raramente le­mos uma invenção mais divertida e uma pândega mais fi­losófica do que a de Hartmann; qt1em não é esdareddo por ele quanto ao vir II ser, sim. quem é internamente organiza­do, está realmente maduro para o ter-sido. Começo e meta

do processo do mundo, do primeiro rasgo de consàênàa até o lançar do vir a ser de volta ao nada, incluindo a tarefa exatamente determinada de nossa geração para o processo do mundo, htdo apresentado a partír da fonte de inspira­ção do inconsc::iente, inventada de maneira tão engraçada e brilhando sob uma luz apocalíptica, tu.do tão ilusório e macaqueado, com uma seriedade tão proba, como se fosse realmente uma filosofia séri.a e não apenas jocosa: uma tal totalidade marca o seu aiador oomo um dos primeiros pa­rodistas filosóficos de todos os tempos: portanto, saaifi­quemos um cacho de cabelo em seu altar, saaifiquemo-nos a ele, o invento.r de uma verdadeira medicina u.niveTSal -para inclulr uma expressão de admiração de Schleiermacher. Pois que medicina seria mais saudável contra a sobremedida de cultura histórica do que a paródia hartmanniana de toda a história do mundo?

Se quisés$emos enunciar secamente o que Hartmann nos diz acerca do tripode enfumaçado da ironia inconsciente, ter.íamos de <ilur: ele nos conta que nossa época só poderia ser exatamente assim como ela é, se pudesse acolher seria­mente, pelo menos urna vez, a humanidade dessa existên­cia: o que acreditamos de todo coração. Esta tenível ossifi. cação da nossa época, este choc.alhar inquieto dos ossos -

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tal como nos descreveu Ingenuamente David Strauss como a mais bela factiddade - é justificado por Hartmann não só de trás para frente, u causis tfficitntibus, mas até mesmo desde o prlnc:fpío, a C11US11 ftnali; desd.e o dia do juízo final o pândego deixa a luz brilhar sobre a nossa época e aí se des­cobre que ela ~ muito boa, a saber, para aquele que quer padecer o mais ímtemente possível de indigestão da vida, e que este juízo final não pode ser desejado de maneira su­ficientemente rápida. Em verdade, Hartmann denomina a idade da qual a humanidade está agora se aproximando de "a idade do homem". Porém, esta é, segundo a sua descri­ção, a feliz condição em que há ainda uma #sólida medio­cridade" e a arte é o que a "comédia grosseira# é. à noite, "para os homens de negócios de Berlim", onde os "gêníos deixaram de aer uma riecessidade da época. porque isso sig­nificaria jogar pérolas aos porcos ou também porque o tem­

po progrediu além do estágio que gerou gênios, para um outro, mais importante• - aquele estágio do desenvolvimen­to social em que cada trabalhador, "tendo um dia de traba­lho que permita ócio suficiente para a. sua formação intelec­tual, conduz uma existência confortável". Pi.ndego de to­dos os pi.ndegos, tu enuncias a nostalgia da humanidade atual. No entanto, ao mesmo tempo, sabes muito bem que, ao final desta idade do homem. o resultado será uma for­mação intelectual voltada para a sólida mediocridade - o nojo. De manelra evidente. as coisas já se acham totalmente deploráveis e elas ainda ficarão ainda mais deploráveis, pois "de maneira evidente, o Anticristo agarra cada vez mais o que está em volta dele" - mas isso deot ser wim, acontecer as.sim, pois desse modo, estamos no melhor caminho - o do nojo pelo existente. #Por isto, em frente, vigorosos no pro­cesso do mundo, caminhemos como trabalhadores nas vi­nhas do senhor, pois somente o processo pode nos oondu­zir à redenção!#

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A vinha do senhor! O processo! Para a redenção! Quem não vê e não escuta aqui a cultura histórica, esta cultura que só conhece a palavra "vir a ser'', quem não vê como ela se disfarça aqui intencionalmente em uma deformidade paródica, como ela diz as coisas mais pérfidas sobre si mes­ma apresentando-se com uma máscara grotesca?!? Pois o que almeja, de verdade, este último clamor velhaco dos tra­balhadores nas vinhas do senhor? Em que trabalho eles devem ansiar por ir, vigorosamente, à frente? Ou para per­guntar de outra maneira: o que resta ainda fazer ao homem com cultura histórica, ao moderno fanático do processo que vai nadando e se afogando na corrente do vir a se.r a fim de colher aquele nojo, a uva mais deliciosa daquela vinha? -ele não precisa fazer nada além de continuar vivendo como ele viveu, continuar amando o que amou e odiando o que odiou, lendo os jornais que leu, pois para ele, só há um úni­co pecado - viver de maneira diversa da que sempre viveu. Mas o modo como ele viveu, nos é dito na sua exorbitante clareza de caracteres de pedra, aquela célebre página im­pressa com grandes proposições, sobre as quais toda a for­mação da turba cultural contemporânea caiu em um des­lumbramento cego e em um êxtase encantado porque acre­ditava ler nestes caracteres sua própria justificação, e, em verdade, sua justificação sob uma luz apocalíptica. Pois o parodista inconsciente exigia de cada indivíduo "a plena entrega de sua personalidade ao processo do mundo, por causa de uma meta, querer a redenção do mundo". Ou ain­da mais luminosa e claramente: "a afirmação da vontade de viver é proclamada como a única coisa provisoriamente correta; pois apenas na entrega plena à vida e suas dores, não na renúncia e no recolhimento pessoal covarde, é pos­sível realizar algo para o processo do mundo"; "o ansiar pela negação individual da vontade é tão tolo e inútil ou mesmo mais tolo do que o suiódio". "O leitor pensante com-

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preenderá mesmo sem uma elucidação ulterior como uma filosofia prática erigida sobre estes princípios se configura­ria e que uma tal filosofia só pode conter em si não a cisão, mas apenas a plena reconáliatão com a vida."

O leitor pensante o compreenderá: pode-se interpretar mal Hartmann! E o quão indescritivelmente engraçado é tê-lo interpretado mall Deveriam ser os alemães de hoje muito refinados? Um inglês digno sente nele a falta de ddJCllcyof percq,tion29 e ousa mesmodizer"in thegerm1111 mind thm dotS s«m to be SDmething splay, somllhing blw,N!llged, unluzndy tmd infolicitous"30 - e se o grande parodista alemão o contradissesse totalmente? Em verdade, segundo a sua explicação, estamos nos aproximando ·daquele estado ideal em que a espécie humana cria sua história com consáên­cia"': mas evidentemente estamos longe daquele estado tal· vez ainda mais ideal em que a humanidade lê o livro de Hartmann com consciência. Se isto acontecer, então nenhum homem permitirá mais que a expressão "processo do mun­do" escape de seus lábios sem que estes somam. pois esta época será lembrada como aquela que escutava, absorvia, contestava, venerava, propagava e canonizava o Evange­lho pa.ródiro de Ha:rtmann com toda a probidade da "gmnim mind" ,31 sim, com a "seriedade contorcida da coruja'\ como diz Goethe. Mu o mundo precisa seguir em frente, aquele estado ideal não pode ser aiado em sonho, é preciso lutar por ele e conquistá-lo, e somente através da serenidade o caminho segue até a redenção, até a redenção daquela serie­dade de coruja. Ainda virá o tempo em que se abdicará sa­biamente de todas as construções do processo do mundo ou mesmo da história da humanidade, um tempo em que não se considerará mais de modo algum as massas, mas, novamente, os .indivíduos que estabelecem uma espécie de ponte sobre a conente desértica do vir a ser. Os indivíduos não dão continuidade, por exemplo, a um processo, mas

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vivem, simultaneamente, fora do tempo; graças à história que permite uma tal atuação conjunta, eles vivem como a república do gênio da qual Schopenhauer íalou t'erla vez; um gigante condama o outro através de intervalos desérticos entre os tempos, e, imperturbado pela algazarra de pérfi­dos anões que se ~~ aos seus pés, prossegue o eleva· do diálogo espiritual/ A ~ da história é a de ser a media· dora entre eles e assun dar incessantemente lugar à geração do grande homem e lhe emp.restar forças. Não, a meta da humanidade não pode resi7z:· no fim, mas apenas em seus mais elevados exemplares.

Em contrapartida, o divertido personagem fala com aquela dialética digna d.e nota que é exatamente tão autêntica quanto os seus admiradores são dignos de consi­~ : "'Ião pouco poder-.ia suportar isso, rom o mn­ceito de desenvolvimento, ao qual o processo do mundo atribui, no passado, uma duraçãoinfinlta, po.niueentão todo desenvolvimento pensável de qualquer coisa já deveria ter acontecido, o que não é a.inda o casoH (6, maroto!); "domes­mo modo, tão pouco podemos conced.er ao processo uma duração infinita no futuro; as duas coisas colocariam em suspenso o conceito de desenvolvimento em direção a uma meta" (6, uma vez mais, ó maroto!) "e equiparariam o pro­cesso do mundo aos jarros d'.igua das Danaides. Mas a vi­tória total do elemento 16gico sobre o ilógico" (ó, maroto entre todos os marotos!) "deve coincidir com o fim tempo­ral do procaso do mundo - o juízo final". Não, tu espírito lúàdo e trocista, enquanto o ilógico predominar tanto como hoje em dia, enquanto se puder ainda falar, por exemplo, de "processo do mundo" com a aprovação geral tal como tu falas, o juízo final ainda estará muito distante: pois se está ainda muito tranqüilo sobre a terra, ainda O.oresrem algumas ilusões; por exemplo, a ilusão de teus contempo­râneos contigo. Não estamos maduros ainda para sermos

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arremessados de volta ao nada, pois acreditamos que as coisas tomaMe-ão mesmo ainda mais divertidas por aqui se começarem a te compreender, a ti, homem do incons­óente incompreendido. Se apesar disto, contudo, o nojo ti­vesse de surgir com força, tal como tu o profetizaste aos teus leitores; &e tiv~ efetivamente razão em tua descri­ção de teu presente e teu futuro - e ninguém desprezou tanto os dois, ninguém desprezou com tanto nojo os dois quanto tu -, estou realmente pronto a concordar com a maioria sob a forma proposta por ti, de que na noite do próximo sábado, exatamente à meia-noite, teu mundo deve perecer; e o nosso decreto pode firmar: a partir de amanhã não haverá mais nenhum tempo e não será publicado mais nenhum jornal. Contudo, ele talvez não tenha efeito algum e nós o decretamos em vão: de qualquer modo, não nos fal­ta tempo para um belo experimento. Nós pegamos uma balança. colocamos em um dos pratos o elemento incons­ciente de Hartmann e no outro o seu processo do mundo. Há homens que acreditam que os dois terão exatamente o mesmo peso: pois em cada prato teríamos uma palavra igual­mente p(fla e uma piadil igualmerue boa. Mas se a piada de Hartmann for ao menos compreendida, então não se utili­zaria mais a sua expressão "processo do mundo" senão jus­tamente como piada. De fato, já está mais do qu_e na hora de atacar as digzessões do sentido histórico, o prazer desmedi­do no processo à rusta do ser e da vida, o insensato deslo­camento de todas as perspectivas, com todas as tropas de maldades satfricas; e é preciso sempre que se diga em lou­vor do autor da Filosoji4 do inamsdmlt que ele foi o primei· roa sentir intensamente risível o que há de ridículo na~ presentação do "proa!SSO do mundoH e a permitir ser IInl­tado ainda mais Intensamente, por intermédio da serieda­de de sua apresentação. Porque o mundo está aí, porque a humanidade está aí, não deve, por enquanto, absolutamen-

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te nos preocupar, pois isso seria como se quiséssemos fazer uma piada conosco mesmos: pois a presunção do pequeno verme humano é agora a coisa mais divertida e mais hila­riante sobre o palco terrestre. Mas, para que tu, indivíduo, estás ai, eu te pergunto e nenhum de vós nada diz, para justificar, mesmo que a posteriori, o sentido da tua existên­cia, de tal modo que tu mesmo antevejas uma meta, um alvo, um "para isso", um elevado e nobre - não sei de ne­nhuma meta melhor para a vida do que perecer junto ao que é grandioso e impossível, animae magnae prodigus.32 Se, ao contrário, as doutrinas do vir a ser soberano, da fluidez de todos os conceitos, tipos e gêneros, da falta de toda dife­rença cardinal entre homem e animal - doutrinas que tomo por verdadeiras, mas letais - no furor habitual por instru­ção, sejam ainda jogadas no povo durante uma geração, então ninguém deve se espantar se o povo naufragar no que é egoisticamente pequeno e miserável, na ossificação e ganância, ou seja, para ser, antes de mais nada, povo muti­lado e extinto: no seu lugar talvez adentrem na arena do futuro um sistema de egoísmos singulares, irmandades vi­sando à exploração abusada dos não irmãos, e criações si­milares da vulgaridade utilitária. Para preparar o caminho destas criações, continua-se escrevendo a história desde o ponto de vista das massas, para procurar nessa história aque­las leis que são deduzidas das suas necessidades, ou seja, as leis do movimento das camadas mais baixas de lama e de argila da sociedade. As massas me parecem dignas de consideração apenas em três aspectos: primeiro, como có­pias esmaecidas dos grandes homens, produzidas com um papel ruim e com chapas gastas; em seguida, como obstá­culo aos grandes e, por fim, como ferramenta dos grandes; no resto, que o diabo e a estatística as carreguem! Como, a estatística não demonstrou que haveria leis na história?!? Leis?!? Sim, ela demonstrou o quão vulgar e repugnante é a

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,massa na sua uniformidade: devwe denominar o efeito das forças gravitacionais l.ei da estupidez, do macaquear, do .amor e dalome?!? Ora, admitam.o-lo, também se firma com ISto a sentença: tanto mais haja leis na histórla, elas nada valem e a his.«Sria tamWm. No entanto, valodza.se em ge­ral agora justamente.esse tipo de história que toma os gran­des impulsos das rna5ÂS como o mais importante e prlnci· pa1 na história e considera todos os grandes homens ape­nas como· a sua expressão mais nítida. como bolhinhas que se tomaram visíveis sobre a torrente das águas. Neste caso1 a massa deve gerar de si mesma o grande: o caos deve gerar de si mesmo a ordem; por fim, é entoado1 então, o hino à m.as.sa geradora. Denomina-se "'grand.e", então, tudo o que .movimentou. pot umJongo tempo uma tal massa e foi, como se costuma di2er, "u,m poder histórico". Mas isto não sigm· fica confundir com mão, deliberadamente, qu.alidade e quantidaiie? Se a tnassa tosca encontrou u.m pensamento qualquer, por exemplo, um. pensamento religioso efetiva­mente adequado, defendendo-<> obstinadamente e amstan­do-o por séculos: então, justamente. o aí.ador e fundador daquele pensamento deve ser tomado como grande?!? Por que, afinal7!? O mais nobre e elevado l'íio produz efeito aJ. gum sobre as massas; o su~ histórico do cristianismo, seu poder histórico, tenacidade e duração temporal, tudo isto felizmente nada prova quanto à grandeza de seu fun­dador, pois Isso, ·no fundo~ voltar~ contra ele mesrn()! mas, entre ele e aquele sucrsso histórico reside uma cama­da muito profana e obscura de paixão, erro, avide2 por po­der e honra, de forças que preservam os efeitos do imperium romanum, uma camada quE recebeu do crislia.nismo aquele gosto e resíduo tecrenos que possibilitou sua continuação neste mu.ndo e como que lhe concedeu sua durabilidade. A grandeza não deve depender do sucesso e Demóstenes f grande mesmo sem ter tido nenhum sucesso. Os dísdpulos

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mais puros e mais verdadeiros do cristianismo sempre co­locaram acima de tudo em questão seu su~ mundtaL seu conhecido .,poder histórico" e o obstnrlram mais do que o promoveram; pois eles tratavam de colocar "o mundo" fota deles e não se preocupavam com o "processo da idéia cristã"; por isto, em sua maioria. permaneceram tot-almente desconhecidos e anónimos para a história. Expresso de maneira aistã: o diabo é o regente do mundo e o mestre dos suces.,os e dos progressos. Ele é, entre todos os poderes históricos, o poder propriamente dito e, no essencial. é as­sim que ele permanecerá - mesmo se isto soar penosamen­te aos ouvidos de uma época que se acostumou à idolatria do sucesso e do poder histórico. Pois ela mesma se exerci­tou, justamente, em .renomear as coisas e em rebatizar o próprio diabo. Esta é de fato a hora de um grand.e perigo: os homens parecem próximos de descobrir que o egoísmo dos indivíduos, dos grupos ou das massas sempre foi em todos os tempos a alavanca dos movimentos históricos; ao mesmo tempo, porém., esta descoberta não é nada tranqüi· liz:adora, embora dea:ete-se: o egoísmo deve ser nosso deus. Com esta nova crença. prepara-se a construção, a partir de si mesmo. com intenções bem claras, da história por vir: este egoísmo deve apenas ser muito arguto, que se impo­nha algumas limitações. que o fixem. de maneira duradou­ra. como um egoísmo que estuda história justamente para conhecer o egoísmo tolo. Em meio a este estudo aprendeu­se que o Estado possui uma missão totalmen1e particular no sistema mundial do egoísmo a ser fundado: ele deve tor­nar-se o patrão de todos os egoísmos aTgulos, a fim de protegê-los com sua força militar e policial das terríveis irrupções do egoísmo tolo. ~ para a mesma meta que a his­tória - e, em verdade, enquanto história do animal e do homem - também é cuidadosamente inculcada nas massas perigosas porque tolas, e nas camadas dos trabalhadores,

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porque se sabe que um grãozinho de cultura histórica está em condições de romper os instintos e desejos rudes e tos­cos ou dirigi-los para o caminho do egoísmo refinado. Em suma: para falar agora, como E. von Hartmann, •poru1era, olhando cuidadosamente para o futuro, mobiliar sua casa prática e confortavelmente, na p,tria terrena". O mesmo escritor denomina um tal período "a idade do homem na história da humanidade" e escarnece, com isso, do que é chamado agora de "homem" - como se sob este termo só se compreendesse o moderado egoísta; romo ele profetiza; em todo caso, após esta idade, uma idade encanedda ligada a ela tam~ não deixa, evidentemente, de escarnecer de nossos anciãos contemporâneos: pois ele fala da sua con­templação madura com a qual "abarcam com o olhar todo o sofrimento que irrompe no deserto de sua vida passada e compreendem a vaidade de sua ânsia, até aqui, por preten­sas metas". Não, uma idade do -homem do egoísmo desnor· teado e fotmad.o historicamente, corresponde a uma idade encaneáda e agarrada à vida com uma avidez iepulsiva e indigna; assún, então, um último ato, com o qual

·esta ma, alternante história termina

como segunda búi.nda, como total eiique<tt,

sem olhos. dentes, paladu, coisa alguma".-"

Os perigos de nossa vida e de nossa cultura provêm então, ou destes anciãos ressequidos, sem dentes e sem pa· ladar ou daqueles "homens"' de Hartmann: diante destas duas possibilidades queremos afirmar o direito de nossa íuvmtude com unhas e dentes e ni-0 cansa.remos de defen­der, na nossa juventude, o futuro contra as imagens arrui· nadas do futuro. Nesta luta, porém, também precisamos perceber algo particulannente ruim: aige-se, mcortrja-se - e utiliz.a-st o txct$SO dt senHdo hist6rico, do qual o prtSentt padta.

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Mas utiliza-se tudo isso contra a juventude, a fim de dirigi-la para aquela idade madura do egolsmo almejada por toda parte, as pessoas utilizam-no para quebrar a resis-­tênda natural da juventude por intermédio de uma ilumi­nação transfiguradora, mais propriamente mágico-dentffi­ca. deste egoísmo viril-não viril Sim. sabHe que a história possibilita uma certa preponderância. atram da qual algo que conhecemos com exatidão deseruafza os _instintos mais fortes da ju.ventude: seu logo, sua rebeldia, seu auto-esque­cimento e seu amor, diminuindo o calor de seu sentimento de justiça. amad~do lentamente os desejos através do contradesejo de estar rapidamente a postos, útil e frutífero para dominar ou reprimir, para. ceticamente, tomar doen­tes a seriedade e a ousadia das sensações: sim, a própria história consegue até mesmo iludir a juventude quanto ao seu privilégio mais belo, quanto à sua força para semear em si um grande pensamento com uma fé exuberante e para deixar crescer • partír dele um pensamento ainda maior. Um CfflO excesso de história possibilita tudo, nós o vimos: e, em verdade, à proporção que, por meio de deslocamen­tos do horizonte de perspectivas, da eliminação de uma atmosfera envoltória, não permite mais sentir e agir a-lústo­ricamtntt. Ele se retrai, então, ao domínio do menor dos egoísmos, tornando-se aí árido e seco: provavelmente, isso o leva à argúcia, nunca à sabedoria. Ele deixa de ser intran­sigente, acerta as contas e se pacifica com os fatos, não se exalta. pi5ca e compreende que é necessmo procurar o pró­prio proveito ou o do seu partido nas vantagens e desvan­tagens alheias; ele desaprende o pudor supérfluo e trans­forma-se assim gradualmente no "homem" e no Nanci.ão" de Hartmann. Mas para isto ele der1t i;e transformar, é justa­mente este o sentido da "plena entrega da personalidade ao processo do mundo", agora tão cinicamente exigida -em tomo de suas metas, de querer a redenção do mundo,

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como E. von Hartmann, o pândego, nos assegura. Então, vontade e meta daqueles "homens e anciãos" de Hartmann dificilmente trazem consigo a redenção do mundo. Entre­tanto, o mundo estaria, certamente, mais redimido, se ele o fosse por estes homens e anciãos. Pois assim chegaria o império da juventude.

10.

Pensando neste lugar da juventude grito, Terra! Terra! Suficiente e mais do que suficiente, apaixonada busca e viagem errante, por mares estranhos e obscuros! Agora finalmente mostra-se uma costa: como quer que ela seja, nela deve-se ancorar e o pior porto emergencial é melhor do que retornar vacilante para a ínfinitude cética e sem esperanças. Fiquemos em terra firme; encontraremos mais tarde bons portos e facilitaremos a chegada dos que vie­rem depois.

Perigosa e excitante foi esta viagem. O quão longe estamos agora da contemplação tranqüila com a qual vi­mos inicialmente nosso navio lançar-se ao mar. Perceben­do os perigos da história, encontramo-nos expostos o mais intensamente possível a todos estes perigos; nós mesmos ostentamos os vestígjos daqueles sofrimentos que, em con­seqüência do excesso de história, se abateram sobre os ho­mens da nossa época, e justamente este ensaio mostra, como não quero me esconder na desmedida de sua crítica, na imaturidade de sua humanidade, nas freqüentes passagens da ironia ao cinismo, do orgulho ao ceticismo, o seu caráter moderno, o caráter da personalidade fraca. No entanto, con­fio no poder inspirador que, na ausência do gênio, dirige a embarcação por mim, confio na juventude, ela me conduziu aqui corretamente, quando impulsionou a um protesto con­tra a educação histórica da juventude, conduzida pelo homem mo-

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demo, e quando exigiu daquele que protesta que o homem. sobretudo, aprenda a viver e só utilize a história a stroiço da vida aprtndida. lt preciso ser jovem para entender este p~ testo, sim; podMe. em meio ao encanedmento precoce de nossa juventude atual, ser raramente jovem o bastante para pressentir contra o que se está propriamente protestando aquL Gostaria de lançar mão de um exemplo. Na Alema­nha. não muito mais do que há cem anos, despertou em alguns jovens um instinto natural para o que se denomina poesia. Será que se supõe que a geração anterior e a da épo­ca destes jovens não teria falado absolutamente nada sobre essa arte que para eles era internamente tão estranha e arti­ficial? Sabe-se o contrário: que eles refletiram, escreveram e discutiram com todas as forças corporais sobre "poesia", com palavras e mais palavras. A eclosão deste despertar de um.a palavra para a vida não implicou ao mesmo tempo a morte daqueles artífices da palavra; em um certo sentido, eles vivem ainda, pois, se como Gibbon diz,34 se nada mais que tempo, mas muíto tempo, é necessário para que um mundo pereça, então também não é neassário senão tem­po, mas muito mais tempo ainda, para que na Alemanha, no "pafs do gradualmente", um conceito falso pereça. Não obstante: há agora talvez cem homens a mais do que há cem anos atrás que sabem o que é poesia; talvez haja daqui a cem anos novamente mais cem homens que, entrementes,

também aprenderam o que é cultura e que os alemães nun­c.a tiveram cultura até aqui, po_r mais que gostem e se o_r­

gulhem de falar dela. O contentamento generalizado dos alemães com sua #cultura" lhes parecerá inacreditável e tolo, exatamente como nos parece o caráter clássico de Gottsched, 35 outrora aclamado, ou a legitimação de Ramler como um Píndaro alemão. Eles talvez julguem que essa cul­tura teria sido apenas uma espécie de saber sobre a cultura, e, além disto, um saber efetivamente falso e superficial Fal-

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so e superficial, em verdade, porque se sustentou a contra­dição entre vida e saber, porque não i;e viu absolutamente o característico na formação de verdadeiros povos aculturados: que a cultura só pode crescer e florescer a par­tir da vida, enquanto ela foi abandonada pelos alemães como uma flor de papel ou lançada sobre eles como uma cobertu­ra de açúcar e, por isto, deve pennanecer sempre mendaz e

infrutífera. Todavia. a educação da juventude alemã parte justamente deste conceito falso e infrutífero: sua meta, pen­sada como pura e elevada, não é de maneira alguma o ho­mem culto livre, mas o erudito, o homem de ciência. e. em verdade, o homem de ciência. o mais rapidamente útil. que se separa da vida a fim de reconhecê-la clara e distintamen­te; seu resultado, visto de modo empíriro-comum, é o filisteu da cultura históriro-estética, o tagarela premce e sabichão que não pára de falar sobre o Estado, a igreja e I arte, o smsori11m para uma miríade de estímulos, o ettõmago insa­ciável que, porém, não sabe o que é uma fome e wna sede honestas. Que uma educação com tais metas e oom estes resultados seja antinatural, isso sente apenas o homem que ainda não foi formado nela, que sente apems o instinto da juventude porque esta ainda tem o instinto da natureza, que só é rompido artificial e violentamente por esta educação. Mas quem quiser romper esta educação deve ajudar a ju­ventude a ganhar voz, deve iluminar o caminho de sua re.,

sistência inconsciente com a da.rez.a de amceitos e transfor­má:Ja em consciência consciente e que fale alto. Como ele pode alcançar uma meta tão estranha?

Antes de tudo destruindo uma superstição, a da crença na ntctSSidade desta operação educacional Pensa-se, então,

· que não haveria nenhuma outra possibU!.dade do que justa· mente a da nossa realidade atual completamente desagra­dável. Examine-se justamente a literatura de nosso ensino superior e de nosso sistema educadonal nas ú.ltimas déca-

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das: para o seu mal-humorado espmto, o examinador des­cobrirá quão uniformemente é pensada a intenção conjunta da educação em meio a todas as oscilações das propostas, a toda a veemência das oontra.dições, o quão imediatamente o resultado~ aqui. o "homem culto", tal como ele é tom­

preen<lido agora, é assumido como fundamento necessário e racional da educação mais ampla. As.sim sendo, aquele cânone monocórdico seria formulado mais ou menos as­sim: o homem jovem tem de começar com um saber sobre a cultura, nem ao menos com um saber sobre a vida. nem tampouco com a vida e a própria vivência. E, em verdade, este saber sobre a cultura é injetado ou Inoculado, como um saber histórico, no jovem; ou seja. sua cabeça é pmmchida com uma quantidade descomunal de amceitos extraídos do conhecimento maximamente mediato das épocas e dos po­vos do passa.do, não da intuição imediata da vida. Seus de­sejos de experimentar algo por si mesmo e de sentir crescer em si um sistema coerente de suas próprias experiências -um tal desejo é anestesiado e como que embriagado pela exuberante ilusão, como se fosse possível em poucos anos som.ar em sí as experiências mais extraordintrias e mais espantosas dos tempos antigos, e, justamente, dos mais gran­diosos. S exatamente o mesmo método absurdo que con• duz nossos jovens artistas plásticos para o interior das pi­nacotecas e galerias, ao invés de levá-los para o interior da oficina de um mestre, sobretudo da única o.fid:na da mestra única, a natureza. Sim. como se pudéssemos nos apropóar do estilo e das artes do passado, de seu modo de vida p~ prlo, enquanto passeantes distraídos no interior da histó­ria! Sim, como se a vida mesma não fosse um ofício que, do mais profundo, precisa ser aprendido constantemente e exercitado sem comiseração, se é que ele não deve deixar ignorantes e tagarelas saírem do ovo!

Platão considerava indispensável que a primeira gera-

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ção de sua nova sociedade (no estado perfeito) fosse educada com a ajuda de vigorosas mentiras necessárias; as crianças deveriam aprender a acreditar que todas elas já tinham, sonhando, morado por algum tempo sob a terra, onde ha­veriam sido moldadas e conformadas pelo mestre-de-obras da natureza! ~ impossível se rebelar contra este passado! Impossível reagir à obra dos deuses! Ela deve valer como uma lei inviolável da natureza: quem nasceu como filósofo tem ouro no corpo, quem nasceu como guardião apenas prata e, como trabalhador, ferro e bronze. Como não é pos­sível misturar estes metais, Platão explica que não seria possível misturar e confundir a ordem de castas; a crença na aeterna veritas36 desta ordem é o fundamento da nova educação e, com isto, do novo Estado. Assim, o alemão mo­derno também acredita agora na aeterna veritas de sua edu­cação, de sua espécie de cultura: e, no entanto, esta crença desmorona, exatamente como o Estado platônico desmoro­naria, quando se vê colocada diante de uma verdade necessá­ria: a de que o alemão não tem nenhuma cultura porque, em razão de sua educação, não pode absolutamente ter cul­tura. Ele quer a flor sem raiz e sem caule, ou seja, ele a quer em vão. Esta é a verdade simples, uma verdade verdadeira e necessária, desagradável e grosseira.

Mas nossa primeira geração deve ser educada nesta ver­dade necessária; ela certamente sofre bastante por isso, pois preása educar a si mesma através dela, e, em verdade, a si mesma contra si mesma, em direção a um novo hábito e a uma nova natureza, para fora da antiga e primeira nature­za e do antigo e primeiro hábito: de modo que ela poderia falar consigo em espanhol arcaico Defienda me Dias de my (Deus defenda-me de mim), a saber, da natureza já inculcada em mim. Ela preása provar daquela verdade gota por gota, como um remédio amargo e violento; e cada indivíduo des­ta geração preása se superar, julgar por si mesmo o que ele,

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como julgamento geral sobre toda uma q,oca, já suportada mais faàhnénte: nós somos sem cu1tuta, mais ainda, estamos estragados para a vida, para o ver e o ouvir corretos e sim· pies, para a apreensão feliz do que há de mais próximo e natural e não temos até agora nem mesmo o fundamento de uma cultura, porque não estamos convencidos de ter­mos uma vida verdadeira em nós. Esfacelado e despedaça­do, deromposto no todo em um dentro e um fora. de ma­neira semlmecãnica, roberto com ronceitos como com den­tes de dragão, produzindo dragões conceituais, sofrendo, ai~ disto, de uma doença das palavras e sem confiança em qualquer sensação própria, que ainda não esteja selada com palavras, como uma tal faôrica de conceitos e palavras sem vida, e, entretanto, estranhamente ativa, talvez ainda tenha o direito de dizer de mim cogw,, trgO sum, mas não rmio, ergo a,gito. O "ser" vazio, não a "vida" plena. e verde­jante me é garantida; minha sensação originária assegura· me apenas, que sou um ser pensante, não de que sou um vivente, de que eu não sou nenhum animal, mas no máxi­mo um ser a,gitamt. Presenteai-me primeiro com a vida e então, a partir disso, terei prazer em criar-vos uma cultural Assim grita cada individuo singular desta primeira gera­ção e todos estes indivíduos reconhecerão uns aos outros em meio a este grito. Quem lhes presenteará. com esta vida?

Nenhum deus e nenhum homem: somente a sua pró­pria jin,tntude: arrancai-a dos grilhões e tereis com isto, li· bertado a vida. Pois a vida estava apenas oculta. na prisio, ela ainda não apodreceu e se extinguiu - perguntai a vós mesmos!

Mas ela está doente, esta vida desagrilhoada, está doen­te e precisa se:r curada. Ela está enferma de muitos males e não sofre apenas da lembrança de seus grilhões - ela sofre, o que nos diz respeito especialmente, da dotnç,i híst6rica. O excesso de história a!etou a sua força plástica, ela não sabe

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mais se servir do pas&1do como de um alimento poderoso. O mal é terrível, e, apesar disto! Se a juventude não tiv~ o dom da vidência da natureza, então ninguém sabeda que isso é um mal e que um paraíso da saúde foi petd.ldo. Esta mesma juventude, porém, com os instintos curativos da mesma natureia, também decifra como ganhar este paraíso de novo; ela conhece os bálsamos e os medicamentos con­tra a doença histórica, contra o excesso de história: como é que eles se chamam?

Entio, que não se espantem. Estes são os nomes dos venenos: os antídotos contra o histórico chamam-se - o a­história, t o supra-histórico. Com estes nomes retomamos ao ~ de ll06Sa consideração e à sua quietude. / Com a palavra "a-histórico" deno.mino a arte e a força

de poder aqvtar e de se inserir em um boriz.onte limitado; com a palavra "supra-hist6rico" denomino os poderes que desviam o olhar do vir a ser e o dirigem ao que dá à existên­cia o cardter do eterno e do estável em sua significação, para a ame a rtügiio. A cibtda - pois é ela que falarja de venenos - vê nesta força. nestes poderes, forças e poderes contrários; pois ela só toma por v~rdadeira e correta, ou seja, por cien­tífica. a consideração das coisas que vê por toda parte algo que veio a ser, algo histórico, e nunca vê um ente, algo eter­no; ela vive em uma contradição Interna, do mesmo modo contra os poderes eternizantes da arte e da religião, quando odeia o esquecer, a morte do saber, quando procura sus­pender todas as limita~ do horizonte, lançando o homem em um mar de ondas tummos,s Infinitamente Ilimitado, no mar do conhecido vir a ser/

Se ele ao menos pudesse viver aí! Como as ddades des-­moronam e parecem desertos com um terremoto, e o ho­mem tremendo e fugidio constrói sua casa sobre o solo vul­cânico, assim também a própria vida surumbe em si e tor­na-se fraca e desalentada quando o tmnor dt tma amcdhUl

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que estimula a ciência retira do homem o fundamento de toda a sua segurança e tranqüilidade, a O'ffiça no que per­dura e se eterniza. Será então que a vida deve dominar o conhecimento, a ciência, ou será que o conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é o mais elevado e decisivo? Ninguém duvidará: a vida é a .mais elevada, o poder dominante, pois um conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo tempo a si mesmo. O conhecer pres­supõe a vida: ele tem, portanto, o mesmo interesse na con­servação da vida que todo e qualquer ser tem na continua­ção de sua própria existência. Assim, a ciência necessita de uma inspeção e de um controle superiores; uma doutri1111 dJl saúdt dJl vida coloca-se bem ao lado da ciência; e uma sen­tença desta doutrina da saúde diria: o a-histórico e o supra­histórico sã.o os antídotos naturais contra a asfixia da vida peJo histórico, contra a doença histórica. É provável que nós, os doentes de história, também tenhamos de sofrer com os antídotos. Mas o fato de sofrermos com eles não é nenhuma prova suficiente contra a correção do tratamento escolhido.

E é aqui que reconheço a missão daquela ;uventudt, da­quela primeira geração de lutadores e matadores de cobras, que precede o aparecimento de uma cultura e uma huma­nidade mais feliz e mais bela, sem ter desta felicidade vin­doura e da beleza mais do que um pressentimento promis­sor. Esta juventude sofrerá ao mesmo tempo deste mal e de seu antídoto: e, apesar disto, acredita poder se vangloriar da posse de uma saúde mais vigorosa e, em geral. de uma natureza mais natural do que os seus predecessores, os "ho­mens cultos" e os "anciãos" do presente. No entanto, sua missão deve abalar os conceitos que o presente tem de "saú­de" e "cultura", provocando escárnio e ódio contra mons­tros ronc:e.ituais tão h.ibridos; e o sinal que garante a sua saúde mais vigorosa deve ser justa.mente este, o fato de ela, a saber, de esta juventude, não poder usar por sua parte

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nenhum conceito, nenhuma palavra de ordem oriunda das moedas nocionais e conceituais do presente para a designa­ção de sua essência, mas ser convencida apenas por um poder divisor, excludente, ativo e combatente nela e por um sentimento de vida cada vez mais elevado, em toda boa hora. Pode-se contestar que esta juventude já tenha cultura - mas para que juventude isto seria uma censura? Pode-se acentuar o seu caráter tosco e imoderado - mas ela ainda não é velha e sábia o suficiente para se resignar; sobretudo, ela não precisa simular e defender nenhuma cultura perfei­ta e goza de todos os consolos e privilégios da juventude, sobretudo o privilégio da sinceridade corajosa e irrefletida e o consolo entusiasmado da esperança.

Sobre estes esperançosos, sei que compreendem todas estas generalidades bem de perto e com suas experiências mais íntimas, traduzidas em uma doutrina pensada como pessoal; os outros nada gostariam de perceber, senão tige­las cobertas que podem muito bem estar vazias, até verem, surpreendidos, com os próprios olhos, que as tigelas estão cheias, e que ataques, exigências, impulsos de vida, paixões estavam misturados e comprimidos nestas generalidades, e que não poderiam continuar tanto tempo encobertos. Re­metendo este cético à época que tudo traz à luz, volto-me por fim para aquela sociedade dos esperançosos, a fim de contar-lhes alegoricamente o curso e o decurso de sua cura, de sua salvação da doença histórica e, com isto, de sua pró­pria história até o ponto em que eles podem uma vez mais se tomar suficientemente saudáveis, impelidos pela nova história, e se servir do passado sob o domínio da vida na­quele sentido triplo, a saber, no sentido monumental, anti­quário ou critico. Nesse ponto, eles se tomarão mais igno­rantes do que os "homens cultos" do presente, pois desa­prenderão muito e perderão até mesmo o prazer segundo o qual esses homens cultos querem, sobretudo, saber; suas

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caracteústicas são, consideradas a partir do campo de visã.o dos homens cultos, justamente a sua "falta de rultunt·, a sua indiferença e a sua reserva diante do que é muito repu­tado mesmo diante de algumas coisas boas. Nesse ponto 6nal de sua cura, porém, eles terão se tomado homtns uma vez mais e deixado de ser agregados similares a homens -isto é alguma coisa! Aqui vemos ainda esperanças! Nosso coração não se alegra com isto, seus esperançosos?

B como chegamos a esta meta?, vós perguntareis. O deus délfiro chama por vós, logo no começo de vossa jornada em direção à meta, mostrando sua sentença "'conhece-te a ti

. mesmo". ~ uma sentença difíól: pois aquele deus "não es­conde, nem anuncia.nada, mas apenas aponta#, como disse Heráclito.37 Para onde ele aponta?

Houve,séculos em que os gregos se encontravam diante de perigo semelhante àquele no qual nos encontramos, a saber: o da inundação pelo estranho e pelo passado, de pe­rec:er junto à "história". Eles nunca viveram em uma orgu­lhosa inviolabilidade: por muito tempo, su& "cultura" foi muito mais um caos de formas e conceitos estrangeiros, semitas, babilôniros, lídios, egípcios, e sua reli.gião era uma verdadeira batalha entnl os deuses de todo o Oriente: maís ou menos semelhante como agora a "'cultura alemã" e are­ligião são, um caos em si cheio de lutas entre todos os es­trangeiros e todo o passado. Entretanto, gntças à sentença apollnea, a cultura helênica não se tomou nenhum agrega­do. Os gregos aprenderam paulatinamente a organizar o caos, conforme se voltam para si de acordo com a doutrina délfica, ou seja, para suas necessidades autênticas, e deixam mor­rer as aparentes. Desta feita, eles se apossaram novamente de si mesmos; não pennaneceram por muito tempo os her­d.eiros e os epígonos sobrecarregados de todo o Oriente; eles se tomaram eles mesmos, depois de um doloroso combate consigo e por meio da interpretação prática daquela sen-

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tença, os mais felizes enriquecedores e proliferadores do tesouro herdado e os primogênitos e modelos de todos os povos de cultura vindouros.

Isto é uma alegoria para cada índivíduo, entre vós: cada um precisa organizar o t:aOS em si, de taJ modo que se con­centre nas suas necessidades autênticas. Sua sinceridade, seu caráter vigoroso e verdadeiro preàsa se opor algum dia ao que apenas sempre repete o j.i dito, o já aprendido, o já copiado Assim, ele começará a compreender que a cultura também pode ser outra coisa do que d«Drapio da vida, o que no fundo significa ainda sempre dissimulação e disfarce; pois todo adorno oculta o adornado. Assim, se lhe desvela­rá o conceito grego de cultura - em contraposição ao roma­no - o conceito de cultura como uma p1rysis nova e aprimo­rada, sem dentro e sem fora, sem dissimulação e conven­ção, como uma unanimidade entre vida, pensamento, apa­rência e querer. Assim. ele aprende com sua própria expe­rimda que foi a partir da ptÕpda força S\lprema da nature­za ttica que os gttgos conséguiram a vitória sobre todas as outras culturas, e que toda ampliação da veracidade tun­bém deve ser um fomento preparatório da vmf4deinJ cultu· ra: por mais que esta veracidade possa ocasionalmente pre­judicar seriamente a formação que agora é justamente esti­mada, por mais que ela mesma possa propordonar a queda de toda uma cultura decorativa.

N OTAS

1. Esta afirmação fflC'lllltrHe em WN carta de GoetM a Schllltt da­tada do cfu, 19 de claembro de 1798.

2. Cdtntm -. expresão latin& q~ tígnífka • II\IS tu sou da opl· n110•. (N.T.)

3. O. Goethe. Diddw1tJ uoul Wllhrlwif, llL 13. 4-. N'ltl:Debe referMe nesta pasAgelll ao so6stl Crlh1o. Cdtilo E m1

verdade um aptlldo e significa literalmente •o poder" (tnlof) ·do

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dedo" (daktylos). Aristóteles nos fala da tentativa do sofista de refutar toda e qualquer possibilidade de dizer o ser geral dos en· tes no livro IV de sua Mttafísica: "Desta concepção surgiu, com efeito, a opinião mais extremada entre as que mencionamos, a dos que afirmam estarem de acordo com Heráclito, tal como a sustentava Crátilo. Crátilo acreditava que não se devia diz.er nada, limitando-se a mover o dedo." Aristóteles, Mttafísica IV, 1010a. (N.T)

S. Cf. Goethe, Máximas e refltxões, 251 e 296, e Kunst und Altertum V 1, 1824.

6. Carsten Niebuhr (1733-1815), viajante alemão e pesquisador. Como agrimensor, chefiou, em 1760, a convite de Fredrico V da Dinamarca, uma exped.ição científica para o Egito, Síria e Arábia e retomou apenas em 1767. Ele foi, dentre os cientistas, o único que sobreviveu à missão. A origem exata da citação é desconhe­cida. (N.R.)

7. "E dos detritos da vida esperam receber/ O que o primeiro vivo jorro não pôde conceder." Hume, Dúf/ogos sobre rtlígítio natural, X. (N.T)

8. Carta de Goethe a Eckermann de 21 de julho de 1827. (N.T.) 9. Polybio, historiador grego nascido em Megalópolis entre 210 e

205 a.C. Autor de uma Histdria geral de seu tempo da qual não restam senão 5 livros inteiros. (N.T.)

10. Cf. Goethe, Von duetschtr Bau/cunst (Da arquitetura alemã). O mo­numento ao qual Goethe se refere é a Catedral Notre-Dame des V osges, em Strasburg, que embora seja uma obra coletiva, cons­truída entre os séculos XI e XV, seu traçado e plano mais impor· tantes são atnl>uídos ao arquiteto alemão Erwin Steinbach. Du­rante sua estada em Strasbourg, em 1770, Goethe foi tomado de intensa emoção ao contemplar a obra. Uma tradução do texto de Goethe "Von Deutscher Bau.kunst", se encontra em Lobo, Luí.za (Org.). Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aber· to, 1987. (N.R.)

11. Cf. Jacob Burc:khardt, A cultura do renascimento na /tdlia. 12. "Que se faça a verdade e que pereça a vida!" 13. Nietuche refere-se nesta passagem ao conto de fadas intitulado

"O lobo e as sete cabritas·, narrado pelos irmãos Grimm. 14. li importante frisar aqui uma significação presente na palavra ale­

mã Bildung, que estamos traduzindo invariavelmente por c:u.Jtu­ra. A palavra deriva-se do verbo bildtn que significa literalmente

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"formar". Neste sen.tido, exp!U!ÕeS como o homem cuJto e a cuJ. tura hist.ódca possuem um acento no processo de formação da cultura mesma. (N.T.)

15. Fraiu Grillpaner (1791-1872). poeta dramático austríaco. (N.T.) 16. Schiller, Dk Worlt des Glaubens (1198). 17. Nietzsche joga nesta passagem com o fato de o tmno história

( Gesclticltlt) em alemão derivar-se on'glnariamente do termo •acon­tecimento" (Gtschthnis~ Uma história em que nada aamtea: esta­ria em franca COlllradição com o seu próprio sentido etimológico. (N.T.)

18. Nietzsche utiliu-se nesta passagem de um artifício JingÜÍJtico .,.n l'e$Altar o fato de o homem moderno ser completamente marcado pela dinâmica de realização da cultura. O termo acima traduzido pela expressão "formações 'histórico-culturais" é Biül1111gsgtbllk. Este termo é composto a partir de Bilg,md (culru­ra - formação) e gebildt ( o que nasce do processo de fonnação i (N.T.)

19. Do latim tn1is: coisa barata e insignificante. (N.T.) 20. Nietzsche fu uma alusio às linhas finais do Fausto II de Goethe:

•o eterno feminíno/ nos 11lça (Das Ewig-Wtiblidrd Zkbt binan)." 21. Cf. Schiller, W«s btisst und zw welclrem Endt studitrt m•n

UniVU'5111gtSdrichte (O que significa e com que finalidade se estu· da a história universal?).

22. Nietzsche refere-se aqui a Ludwig von R.anke. 23. Carta de Goethe a Schiller, de 21 de fevcn!iro de 1198. 24. Adolfo lhlers (1797-1817), político e historiador francês. (N.T.) 25. Afterkultur, traduzida por "subcultura", remete à Afttrp/riu,logit,

título da resposta de Erwin Rodhe à crítica de WiUamowitz­Mõllendo.rf ao -Nascimento da Tragidia". • Alter", literalmente "ânus", significa neste conrexto, o que é considerado baixo e re­trógrado. Ao traduzir por "subcultura•, seguimos a sugestão da ~ .ição francesa do texto de Rhode-Sous-Plrtlologit- que conside­ramos adequada (cl. •Qu_erelle autour de la nalssance de la tragédie", Pa.r:is, Vrin, 1995, p. 176. nol3 1). Além dis5o, ressalte­se que Rodhe leu atentamente o manusaito da ·Segunda lntem· pestiva", fazendo diversas 5ugestõea e observ~. (N.R.)

26. Jérome Savonarole (1452-1498), dominicano italiano que tentou fundar em Aorença uma constituíçã.o meio teocrática. meio de­mocrática. e que foi condenado à morte na fogueira por heresia. (N.T.)

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27. Wllhàm W~AINnllllllfga nwMdanr Lilit11tu11f'dúddt (EnNiol ,obre a história da lil!entura uml).

28. Sem in e dedlc.açio. (N.T,) 29. Satün.. de percrpçio. (N.T.) 30. No eplrito alemão parece haver algo cldpropotcional, algo loe-

camente -suÇMto, al.go desajewlo e infeliz. (N.T.) 3L Espírito alemio. (N,T.) 32. Que sacrlfia a sua vida. (N.T.) 3.1. Williml Shampare, C- piais, Ato li, UM VJl 3t. Edouud Gibbon (1737-1796). histoNdor ingJ,h, autor de A lásf6.

,;. M iltaetllteàl e. ,pai, llo lllqlirlo "-no. (N.T.) 35. Johann Oviltoph Cottscbed (1700-17'6}. litt-rato almiio. (N.T.) 36. Verdade eterna. (N. T.) 37. Her4dlto,' fragmento 93.

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ISSN 85-7316-329-1

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