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ISSN 1413-6651 São Paulo - 2010 XXIII

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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

PareceristasPareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Bar-ros, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Heri-velto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São PauloReitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas

Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de CruzFFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Diretora: Profa. Dra. Sandra NitriniVice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano

Departamento de FilosofiaChefe: Roberto Bolzani Filho

Vice-Chefe: Márcio SuzukiCoord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio

de Ávila Zingano e Carlos Alberto Ribeiro de MouraEndereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

N. XXIII, JUL-DEZ DE 2010 – ISSN 1413-6651

Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2010.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Imagem da Capa:Belvedere (Litogravura)M. C. Escher 1958

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

Este número traz uma diversidade de autores do século XVII: dois artigos sobre Leibniz (em sua complexa relação com a filosofia espinosana e na diferença entre o possível e o existente); dois artigos sobre Hobbes (sobre sua noção de causalidade e sobre o direito natural); dois artigos sobre Espinosa (sobre a política nesse autor); um artigo sobre a noção de liberdade para Descartes; e finalmente um artigo sobre um autor contemporâneo: Merleau-Ponty e sua crítica ao chamado “paradigma cartesiano de pensamento”.

Este número conta ainda com a tradução das anotações de Leibniz sobre o primeiro livro da Ética de Espinosa. Boa leitura!

Os Editores

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SUMÁRIO

LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA DA ÉTICA DE ESPINOSA Ulysses Pinheiro.....................................................................................11

A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADECeli Hirata...............................................................................................33

POSSívEIS E ExISTENTES EM LEIBNIZWilson Alves Sparvoli.............................................................................59

A CONCEPÇãO CARTESIANA DA LIBERDADE NOS PrInCíPIos dA FIlosoFIAMariana de Almeida Campos.................................................................73

IMAGENS E ANALOGIAS DO CORPO E DA MENTE NA POLíTICA DE SPINOZAAlexandre Arbex valadares.....................................................................95

IMAGINAÇãO: ENTRE O MEDO E A LIBERDADEDaniel C. Avila.......................................................................................135

O DIREITO À vIDA NOS ElEMEnTos dA lEI nATUrAl E PolíTICA DE HOBBESRogério Silva de Magalhães..................................................................159

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Para além do corPo-objeto e da rePresentação intelectual: como merleau-Ponty redescobre o corPo COMO vEíCULO DA ExISTêNCIAjosé marcelo siviero.............................................................................187

SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSA G. W. Leibniz............. .........................................................................................215

NOTíCIAS.....................................................................................................254

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................257

CONTENTS...................................................................................................258

LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA DA ÉTICA DE ESPINOSA*

Ulysses Pinheiro**

Resumo: Este artigo analisa as anotações que Leibniz escreveu, em 1678, sobre a então recém-publicada Ética de Espinosa, mostrando como elas prefiguram alguns desenvolvimentos posteriores de sua teoria metafísica. Partindo de uma análise das críticas de Leibniz à Proposição 2 da Parte I da Ética, o artigo mostrará como as discussões sobre a compatibilização entre liberdade e determinismo, que ocuparam o centro de suas preocupações metafísicas nas décadas seguintes, retomam, ainda que com modificações, temas e problemas tratados nessas notas. Particularmente, será mostrado que a relação entre autonomia e poder de escolha pode ser melhor compreendida como um desenvolvimento de teses exploradas nessa leitura inicial da obra de Espinosa.Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade.

Na data de seu encontro pessoal com Espinosa, em 1676, Leibniz já havia lido seu Tratado Teológico-Político, e provavelmente também os Princípios da Filosofia de Descartes1, além de ter tomado conhecimento das teses centrais de sua obra principal (e à época inédita), a Ética, mas teve de esperar até 1678 para finalmente ter o livro entre as mãos. O exame atento de como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as proposições da Ética pode ser usado como um princípio hermenêutico para compreender a elaboração, então ainda em curso, de seu próprio sistema. A partir da exposição de trechos das anotações nas quais as teses

* Este texto foi escrito graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), através do Programa de Apoio a Humanidades 2008 e do Pronex Predicação e existência. O autor também conta com a bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq.** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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em questão foram formuladas, explicar as divergências assinaladas por Leibniz em sua leitura será um dos índices que permitirá avaliar um co-pertencimento e uma distância entre essas figuras centrais da modernidade. Não se trata de elucidar a relação entre eles a partir da difícil noção de “influência”, nem da idéia reguladora de um “diálogo” que tivesse como resultado o estabelecimento de um julgamento final sobre a verdade e a falsidade contidas na teoria de um ou de outro2. Ao invés disso, o método de contraposição aqui adotado é buscar, na figura que Espinosa assume no contexto da teoria de Leibniz, a manifestação de traços essenciais do pensamento desse último.

No inicio dos Novos ensaios, é traçado um conflito dramático constitutivo da obra, o qual não opõe, como se poderia supor, as teorias de Leibniz e Locke, mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido sob a figura de Teófilo, parece confessar, numa espécie de autobiografia intelectual, ter, em certa época, quase se “convertido” ao espinosismo. A resistência a essa conversão é suficientemente importante para justificar o batismo de ninguém menos do que do protagonista do diálogo; Leibniz descreve aí a tentação de aderir à filosofia de Espinosa, para acrescentar logo em seguida: “mas essas novas luzes me curaram, e desde essa época adoto às vezes o nome de Teófilo”3. Não discutiremos aqui se a tentação narrada por Leibniz nesse trecho foi real ou apenas um recurso literário, mas é inegável que ela corresponde a um fato marcante em sua vida: mesmo antes de seu “período parisiense”, que transcorreu entre os anos de 1672 e 1676, Leibniz já tinha conhecimento da filosofia de Espinosa, da qual se aproximou, primeiramente, com reservas4. Em Paris, fez contatos com membros do “círculo espinosista” – principalmente o jovem matemático e cientista Tschirnhaus, cuja indiscrição hesitante lhe permitiu os primeiros contatos com a expressão máxima da obra de Espinosa, o manuscrito da Ética, que circulava entre poucos no movimento “radical” subterrâneo que

se formava então na Europa. Ainda em busca de Espinosa, Leibniz faz um longo desvio de sua viagem de Paris até Hanover, onde ocuparia o cargo de bibliotecário da Corte, passando por Haia para conversar pessoalmente com o autor do livro tão ansiosamente aguardado.

A curiosidade de Leibniz explica-se por um conjunto de motivos – ou, pelo menos, podemos inferir algumas dessas razões a partir de outros escritos da mesma época. Primeiramente, já então envolvido no projeto de formular uma “linguagem universal” para a ciência, mas tendo em vista, sobretudo, o objetivo político maior de pensar os fundamentos da sociedade européia na unidade da Igreja através da reunificação da cristandade, Leibniz via, na anunciada filosofia esotérica de Espinosa, escrita, segundo se dizia no círculo restrito dos que conheciam versões ou trechos da obra, “à maneira dos geômetras”, uma possível contribuição a (ou talvez mesmo a realização acabada de) seu próprio projeto de elaboração de uma língua perfeita que exprimisse a estrutura lógica do pensamento, livre das contingências históricas que contaminam as línguas naturais. A decepção de Leibniz, ao ler a obra póstuma no começo de 1678, manifesta-se nas inúmeras críticas, escritas à margem do texto ou em suas anotações privadas, algumas vezes expressas em tom áspero, contra as demonstrações propostas por Espinosa. Em segundo lugar, Leibniz aparentemente também buscava, na filosofia espinosana, uma contribuição para suas tentativas de elaborar uma prova para a existência do Ser necessário que explicasse, ao mesmo tempo, o estatuto ontológico dos seres contingentes e unisse, em uma única explicação coerente, essas duas modalidades do ser. A decepção aqui talvez tenha sido ainda maior: o necessitarismo implicado pela noção espinosana de substância será, no fim da década de 1670, duramente criticado, e depois incorporado, como uma espécie de slogan filosófico, a todas as suas críticas aos “novos filósofos” (i.e., os cartesianos e os hobbesianos). A partir da década de 16805, o espinosismo será caracterizado como a realização mais

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bem acabada do cartesianismo, mas não merecerá mais nenhum exame detalhado como os que ele lhe consagrou no conjunto de anotações sobre a Ética, datadas de 16786. A crítica a Espinosa ocupa, assim, uma função peculiar no desenvolvimento intelectual de Leibniz: formulada de uma vez por todas nesse primeiro contato, permanecerá como um axioma negativo pelo resto de sua obra. Mostraremos adiante que esse axioma oculto é compatível com alguns desenvolvimentos posteriores do pensamento leibniziano, especialmente com os conceitos de noção completa e com sua concepção acerca da liberdade e da contingência; antes disso, porém, é preciso entender sua formulação nesse momento inaugural.

O cerne da crítica que Leibniz elaborou em 1678 à Ética de Espinosa encontra-se em seu comentário sobre a Proposição 2 da Parte I; diz ele:

Proposição 2. Duas substâncias com atributos diferentes não têm nada em comum. Se por atributos ele entende predicados que são concebidos por si mesmos, concedo a proposição [....] Mas o caso é diferente se essas duas substâncias têm alguns atributos diferentes e alguns em comum, como quando c e d são atributos de A, e d e f, atributos de B. [....] Talvez ele pudesse demonstrar a proposição contra essa objeção, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essência (sendo atributos da mesma substância A, por hipótese), e d e f também expressam a mesma essência, pela mesma razão (sendo por hipótese atributos da mesma substância B), c e f também devem [exprimir a mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B são a mesma substância, o que é contrário à hipótese, sendo, pois, absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em comum. Retruco que não concedo que possa haver dois atributos que são concebidos por si mesmos e ainda assim possam expressar a mesma substância. Pois quando quer que isso ocorra, esses dois atributos expressando a mesma coisa de diferentes modos podem ser analisados, ou pelo menos um deles. Isso posso facilmente provar. (Leibniz 11, GP 1, p.141)

O argumento de Leibniz é labiríntico: em primeiro lugar, concede que, se atributos forem entendidos como predicados concebidos por si mesmos, então duas substâncias com atributos diferentes não têm nada em comum entre si; em seguida, formula uma objeção contra a Proposição 2, negando que seja absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em comum (precisamente, atributos que são concebidos por si mesmos); finalmente, diz que sua própria objeção poderia ser respondida por Espinosa, mas não explicita em que consistiria essa resposta; ao invés disso, recusa o argumento e a própria questão que ele tenta responder porque nega que possa haver dois atributos exprimindo a mesma essência. Entretanto, com esse último movimento, parece ter sido retirada a base de sua crítica inicial, pois o que ele implica diretamente é que, dada a definição de substância a partir de uma de suas propriedades (a de “ser em si”), segue-se imediatamente outra propriedade, a de “ser concebida por si”. Ora, é essa assimilação que, nos comentários sobre a Ética, é enunciada precisamente como o principal ponto de discórdia com relação à teoria de Espinosa7, sendo incessantemente repetido ao longo das notas de leitura redigidas nesse período – por exemplo, ao comentar a Definição 3 da Parte I, diz Leibniz:

Definição 3. Substância é aquilo que é em si e é concebido por si. [....] Então podemos perguntar: [....] a substância é ao mesmo tempo em si e concebida por si? Mas então seria necessário para ele provar que o que quer que tenha uma propriedade também tem a outra, embora o contrário pareça antes ser verdadeiro [....]. E esse [isto é, a tese contrária à de Espinosa] é o modo como os homens usualmente concebem as substâncias. (Leibniz 11, GP 1, p.139)

A importância que Leibniz concedeu à Proposição 2 fica clara à luz desse último trecho: ela é o ponto de partida do qual todo o sistema

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espinosano é derivado, já que a Proposição 1 é, aos seus olhos, supérflua8, e nessa demonstração inicial encontram-se em germe as polêmicas teses do monismo e do determinismo absoluto, contra as quais Leibniz volta todo seu arsenal argumentativo ao longo da polêmica de uma vida inteira contra o “espinosismo”. Dada a tese espinosana segundo a qual duas substâncias numericamente distintas não podem ter nenhum atributo comum entre si, segue-se que cada substância é um princípio único de autodeterminação, o qual, não sendo influenciado por nada de externo, só pode ser explicado, internamente, por sua própria essência – o que implica diretamente, segundo o autor da Ética, o determinismo absoluto, já que todas as propriedades de uma substância (inclusive sua existência) seriam derivadas logicamente de sua essência.

A ambigüidade presente no argumento de Leibniz é explicada em parte pelo fato de, em um certo sentido, ele ter de recusar a conexão entre as duas propriedades da substância discriminadas acima, e, em outro sentido, ter de aceitar essa mesma conexão, tendo em vista a inteligibilidade das substâncias criadas e, no caso dos indivíduos dotados de razão, sua autonomia como agentes livres. Inteligibilidade e autonomia que ele sempre se recusou a separar: se um agente é livre, ele o é tanto mais sua liberdade enraíza-se em uma compreensão (e, veremos adiante, em uma autocompreensão) racional de sua essência. Se é verdade, como dirá Leibniz mais tarde, que o passado está impregnado de futuro, então talvez fosse legítimo supor que a consciência, ainda que implícita, dos desenvolvimentos posteriores de seu próprio sistema guia as anotações feitas à margem da Ética – ou, seria melhor dizer, parece ser parte de seu processo constitutivo. Um indício disso é a constatação de que os paradoxos envolvidos na proposta compatibilista entre liberdade e determinismo, proposta por Leibniz após 1685, e dos quais muitos duvidam que ele tenha conseguido se livrar, manifestam-se desde essa raiz metafísica que é a caracterização do conceito de substância a

partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebida por si”, pois, como veremos adiante, se a recusa da conexão entre elas garante uma explicação para a contingência requerida pelo poder de escolha, a afirmação dessa mesma conexão é o que fundamenta a autonomia das ações. De fato, a teoria leibniziana da noção completa, elaborada em sua forma acabada na década seguinte9, segundo a qual todas as substâncias são individuadas por meios puramente conceituais, parece assimilar as propriedades de “ser em si” e “ser concebido por si”, o que permitiria explicar a autonomia das substâncias através de sua completa independência conceitual, mesmo com relação a Deus: esse último encontra prontas em seu intelecto as idéias das substâncias possíveis. Por outro lado, a contingência do mundo atual e, por transitividade, de todos os acontecimentos que nele ocorrem, só é possível se a criação do mundo por Deus for explicada a partir de uma relação entre o criador e as criaturas, concebidas como substâncias, que inclua uma comunidade de atributos (ainda que sob a forma de limitação e de negação10), o único modo de exprimir de forma inteligível uma relação causal que preserve o poder de escolha dos seres finitos. A questão inicial com a qual temos de nos defrontar diz respeito, pois, ao modo de conciliar essas duas posições aparentemente antagônicas. Para explorar o modo como Leibniz viu essa conciliação, voltemos a seu comentário da Proposição 2 da Parte I da Ética, pois desde esse primeiro contato com o texto tão ansiosamente aguardado por um ano11, a recusa do “fatalismo” necessitarista que ele reconheceu nas páginas recém folheadas guiou suas críticas.

A leitura atenta das anotações de Leibniz revela não só uma crítica ao uso ambíguo que Espinosa faz da palavra “atributo”, mas uma contaminação do próprio Leibniz por essa ambigüidade12: essa palavra é usada tanto por ele quanto pelo autor que critica ora para significar a totalidade da essência da substância (o equivalente do “atributo principal” cartesiano), ora para significar uma das formas ou propriedades que

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constituem a essência da substância. Podemos desfazer essa ambigüidade reservando ao primeiro sentido a palavra “essência” e ao segundo, a palavra “atributo”13. O que Leibniz pretende mostrar é que, em certo sentido, uma substância, que é “em si”, não é “concebida por si”, na medida em que ela tem em comum com as outras substâncias (Deus e as demais substâncias criadas) muitos atributos; em outro sentido, porém, cada substância é “concebida por si”, pois a essência de cada uma delas é qualitativamente diferente da de todas as demais. É só ao manter, simultaneamente, que a cada substância individual corresponde uma única essência, e que essa essência é composta por atributos compartilhados com outras substâncias (e, em sua forma absoluta, com Deus) que Leibniz poderá explicar a criação de substâncias que formam um subconjunto do conjunto de substâncias possíveis.

Feita essa distinção entre “essência” e “atributo”, fica claro por que o comentário de Leibniz sobre a Proposição 2 é compatível não só com a doutrina da noção completa, enunciada de forma clara a partir de 1685, e da qual essa distinção é ao mesmo tempo um signo e uma causa, mas também com o argumento para provar a existência de Deus, elaborado em 1676 durante suas discussões com Espinosa em Haia, e retomado ao longo dos anos seguintes14. De fato, esse último argumento afirma que Deus é um ser dotado de infinitas perfeições ou infinitos atributos, enquanto o argumento de 1678 contra a Proposição 2 afirma que, se mais de uma propriedade exprime a essência de uma substância, então uma delas não é simples, e pode ser analisada até se chegar a algo simples. A divergência com Espinosa15 poderia ser interpretada da seguinte maneira: a propriedade de “exprimir uma essência” só pode ser aplicada a algo simples, de tal modo que vários atributos simples não podem ser predicados de uma mesma coisa se a predicação for entendida como “expressão da essência”. Toda substância tem apenas uma essência simples, embora ela seja, em certo sentido, complexa e completa: essa conjunção do simples e do

complexo se resolve porque a essência é uma lei (ou noção) individual. Nesse sentido, Deus é o sujeito de predicação de todas as formas simples, mas a essência de Deus não é o mero agregado dessas formas, nem cada uma delas tomada separadamente16. Porque as formas são simples17, nenhuma proposição afirmativa verdadeira poderia ser dita da relação que elas estabelecem entre si se elas não estivessem unidas a um sujeito (por exemplo: o pensamento não é a duração, mas o sujeito que pensa dura). Mas isso mostra precisamente a diferença entre as formas e a substância. Ora, é a substância que tem uma essência. As formas simples são todas elas e apenas elas atributos de Deus, elementos primeiros de sua possibilidade, ainda que Deus as preceda todas em ato: “as formas são concebidas por si, os sujeitos o são pelas formas e pelo fato de que são sujeitos”18. A relação entre os atributos e as substâncias (Deus ou as criaturas) é a relação entre abstratos (expressos em predicados) e o concreto (uma coisa substancial, plenamente inteligível) – os primeiros encontram-se em um ser concreto que é a condição de sua existência, mas que encontra neles, por sua vez, a condição de sua essência. A substância não é definida pela lista de seus atributos, como se as variações dos atributos fossem suficientes para singularizar o sujeito19: ela é a razão ou o fundamento que permite deduzir todos os atributos do sujeito que ela designa, o que faz que a relação de inerência seja também uma relação de fundamento explicativo.

Poderíamos tentar discernir nessa última afirmação a “resposta de Espinosa” aludida por Leibniz em sua crítica à Proposição 2. Como vimos, essa resposta permaneceu inarticulada no comentário leibniziano, o qual, lembremos, é formulado nos seguintes termos:

Talvez ele pudesse demonstrar a proposição contra essa objeção, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essência (sendo atributos da mesma substância A, por hipótese), e d e f também expressam a mesma

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essência, pela mesma razão (sendo por hipótese atributos da mesma substância B), c e f também devem [exprimir a mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B são a mesma substância, o que é contrário à hipótese, sendo, pois, absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em comum. (Leibniz 11, GP 1, p.141)

Não fica claro, nesse trecho, o conteúdo completo do argumento, aqui apenas esboçado, que Leibniz sugeriu ao se colocar no lugar de Espinosa e imaginar sua resposta à objeção formulada logo antes. Podemos ensaiar uma hipótese sobre seu significado, desde que reconheçamos desde o início que ela permanecerá sempre uma especulação não comprovável textualmente, como indica o próprio preâmbulo da leitura leibniziana do texto espinosano, enunciado justamente como uma marca de prudência: “... forte demonstrabit hoc modo”. Essa especulação teria a seguinte forma: um exame atento da Proposição 2 deve admitir, inicialmente, que ela pode ser lida de duas maneiras: ou bem como afirmando que, se duas substâncias diferem com relação a todos os seus atributos, então elas não têm nada em comum entre si, ou bem como afirmando que, se duas substâncias têm um atributo distinto de algum atributo da outra, então elas não têm nenhum atributo em comum entre si. É apenas a segunda leitura que permitiria a “resposta de Espinosa” obscuramente sugerida por Leibniz20. Bennett (1, §17) sugere que, dada a tese do racionalismo explicativo (isto é, a tese que afirma a validade irrestrita do Princípio de Razão Suficiente), se houvesse n substâncias com o atributo d, algo teria de explicar esse fato; ora, essa explicação teria de derivar de d, isto é, do que d é, isto é, da definição de d. Mas nenhuma definição exprime um número determinado de indivíduos (pela Proposição 8), uma vez que ela se limita a exprimir a natureza da coisa definida. Logo, dizer que há um número n de substâncias com o atributo d seria uma afirmação para a qual nenhuma razão poderia ser dada

(o que equivale à tese provada na Proposição 5). Essa análise de Bennett poderia servir como base para completar o argumento da Proposição 2, da seguinte maneira: se uma substância A fosse d e c e apenas d e c e se uma substância B fosse d e f e apenas d e f, algo teria de explicar esse fato; ora, o que explicaria esse fato só poderia ser o atributo d (já que nada mais, por hipótese, é dado na realidade de A e de B). Mas isso significaria que d explica ao mesmo tempo fatos diferentes, o que é incompreensível (ainda mais se levarmos em conta que, sendo uma forma simples, d não implica nem c nem f). Logo, a situação descrita na hipótese inicial é impossível porque é inexplicável. Contra essa conclusão, poder-se-ia formular a seguinte objeção: se o atributo d não pode explicar a diferença entre A e B, então ele não pode explicar tampouco por que, no caso em que A tivesse os atributos d e c e B tivesse os atributos f e g, A teria o atributo c – mas só o atributo d parece poder explicar esse fato. Contra essa objeção, seria possível imaginar a seguinte resposta: o que explica a presença de c em A é apenas a compossibilidade entre d e c, a qual é a razão explicativa de sua atribuição a A; se, em seguida a essa resposta, for perguntado por que existem algumas compossibilidades e não outras, a resposta seria: todas as compossibilidades existem (porque tudo o que é possível necessariamente existe); só existe uma única substância (Proposição 14).

Mas basta por ora de especulações sobre o que Leibniz teria podido querer dizer; o que quer que ele tenha pensado sobre esse ponto, o que é importante notar, tomando como base o que ele efetivamente escreveu, é que a mera distinção conceitual entre “essência” e “atributo” não resolve todas as dificuldades relacionadas à caracterização da natureza das substâncias individuais a partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebido por si”. Em particular, a atribuição de liberdade às substâncias individuais proposta por Leibniz deve explicar sua autonomia levando em conta sua versão peculiar da atribuição a elas da propriedade de “ser concebidas por

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si”: enquanto os indivíduos espinosanos (os modos finitos da substância única) podem ser ditos autônomos na medida em que suas ações não são explicadas por causas externas, os indivíduos leibnizianos aparentemente só podem ser, tanto quanto a substância única de Espinosa, inteiramente ativos, já que nada de externo age sobre eles (a não ser Deus, na medida em que os cria). Paradoxalmente, esse excesso de independência traz problemas não só, como era de se esperar, para a atribuição da contingência envolvida no poder de escolha, uma vez que tudo o que acontece a uma substância é uma ação que se segue de seu conceito, mas também para a própria noção de autonomia, uma vez que a passividade deve ser explicada a partir de determinações intrínsecas à substância – todas as suas ações, tanto as ditas “livres” quanto as “involuntárias”, seriam o resultado causal de sua essência, a qual é “concebida por si” (no sentido relevante discriminado acima21). Como se sabe, Leibniz terá uma saída elegante para esse problema, ainda que ela só seja elaborada em textos muito posteriores ao fim da década de 1670 (saída essa que manifestaria uma influência inequívoca de Espinosa (Cf. Friedmann 7, p.292-293)): ele distinguirá ações e paixões a partir de características internas das almas (i.e., de suas percepções: idéias claras e distintas e idéias obscuras e confusas). Esse tipo de explicação será especialmente adequado ao sistema leibniziano, no qual, ao contrário do espinosano, não se admite haver influência real entre indivíduos22. Mas então Leibniz deverá explicar em que consiste essa determinação interna a partir de idéias claras e distintas. É exatamente isso o que ele fará, a partir de uma análise do conceito de juízo. Vejamos, pois, como a filosofia madura de Leibniz, partindo da aceitação desse “axioma negativo” formulado às margens das páginas da Ética, tentará resolver tal impasse. Fazer esse movimento anacrônico nos permitirá discernir mais claramente a forma como a recepção da filosofia de Espinosa moldou as reflexões de Leibniz sobre o problema da liberdade, especialmente a

partir da maneira como as discussões sobre a ontologia fundamental das substâncias desembocam em uma teoria do juízo que pretende explicar a liberdade das substâncias individuais.

Em muitos textos, Leibniz definirá a autonomia envolvida na escolha livre pelo simples exercício da capacidade de julgar, através da qual representamos possibilidades alternativas que exercem a função de causas finais sobre as quais incidem diversos desejos. Os desejos, por sua vez, estão submetidos a uma lei natural instaurada por Deus23, a Lei da Vontade, formulada como instância do Princípio da Perfeição, segundo a qual os homens farão sempre o que lhes parece ser o melhor. Dessa forma, as duas proposições seguintes não são, ao contrário do que aparentam à primeira vista, contraditórias: I- “a mente não escolhe nunca o que no momento [impræsentiarum] lhe parece ser o pior” e II- “a mente não escolhe sempre o que no momento lhe parece ser o melhor” (Leibniz 14, C 21)24. Ora, se fossem dados a um sujeito S dois objetos de escolha, A e B, e se A lhe parecesse ser melhor do que B, por que seria impossível, como afirma Leibniz, para alguém que tivesse acesso aos estados mentais de S anteriores e contemporâneos à deliberação, prever que S escolherá A naquele momento? Ou ainda: se for certo, por uma lei natural, que S não escolherá B, e supondo-se que ele fará uma escolha, por que não é imediatamente certo que ele escolherá A? Leibniz explica: a mente “pode adiar e suspender o juízo até uma deliberação ulterior, desviando a alma [animum] em direção a outros pensamentos” (Leibniz 14, C 21-22)25; qual pensamento finalmente lhe ocorrerá não pode ser o objeto de nenhuma lei pré-definida, pois é pela pura espontaneidade de sua mente26, causa de suas representações, que, no momento seguinte, S (sua alma) pensará em, digamos, C, que aparecerá como melhor do que A (e, a fortiori, do que B), e que será objeto do desejo mais forte. Cumprindo assim a Lei da Vontade (que é válida sem exceções), S escolherá C.

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Novamente aqui, a solução de Leibniz é extremamente engenhosa e original. Enquanto que, para Descartes, a liberdade da vontade se definia por duas características independentes27, a saber, a espontaneidade (ou “facilidade na determinação”) e o poder de escolha entre contrários (a “indiferença positiva”), e que, para Espinosa, a liberdade se definia apenas pela espontaneidade (o livre arbítrio sendo denunciado como uma ilusão), para Leibniz a espontaneidade é equivalente ao poder de escolha. Escolher não significa nada além do que ser a causa autônoma de nossas representações: porque podemos suspender nossos juízos e introduzir autonomamente uma nova representação no curso da deliberação, podemos nos subtrair à ordem das causas eficientes e escolher algo diferente daquilo que indicava a Lei da Vontade (que, ainda assim, será efetiva quando a escolha for feita). A única condição para sermos livres é sermos racionais e dotados de um poder criativo de nos afigurarmos possibilidades alternativas. O único pecado é não nos determos suficientemente na deliberação e na reflexão dessas alternativas e, precipitadamente, escolhermos uma aparência de Bem que esconde o Mal; inversamente, nossa principal virtude é a atenção e a paciência28.

Essa “solução” para o problema da compatibilização entre liberdade e necessidade está longe de ser inteiramente satisfatória – e as infindáveis retomadas do problema por parte do próprio Leibniz poderiam nos levar a suspeitar de que nem mesmo para ele sua solução encontrou uma formulação definitiva29. Mas esse breve resumo de uma de suas etapas iniciais (ou, talvez fosse melhor dizer, de uma de suas discussões preparatórias) nos permitiu, pelo menos, ver de que forma as críticas a Espinosa, escritas no limiar da década decisiva de maturação do pensamento leibniziano, prefiguraram e condicionaram seus desenvolvimentos posteriores. A partir de então, o nome “Espinosa” e o adjetivo “espinosista” serão os signos abreviados de uma divergência teórica que os opôs nesse momento inaugural, em parte pessoalmente, em Haia, e, depois da morte do filósofo, privadamente, em

um gabinete em Hanover. Mas, uma vez acertadas essas contas teóricas, a luta política e religiosa contra o “espinosismo” poderá desde então ser travada publicamente, em um combate incessante em prol de uma Europa a ser libertada de seu principal inimigo. O fracasso desse combate, agora constatado retrospectivamente, tendo em vista os resultados do projeto iluminista em parte inspirado por Leibniz, não pode ser usado para medir o talento do desafiante.

LEIbNIZ, 1678: LECtURE NotES oN SPINoZa’S Ethics

abstract: This paper analyses the notes Leibniz wrote in 1678 on the then recently published Spinoza’s Ethics, showing how they foreshadow some ulterior developments of his metaphysical theory. Taking as the point of departure of this analysis Leibniz’s critics to Proposition 2 of the Part I of the Ethics, the paper will show how the discussions on the compatibility between freedom and determinism, that occupy the center of his metaphysical concerns in the following decades, resume themes and problems considered in these notes, even if they are somehow different from the original context. It will be showed, in particular, that the relation between autonomy and the power of choice can be better understood as a development of theses explored in this first reading of Spinoza’s work.Keywords: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. BENNETT, Jonathan – A Study of Spinoza’s Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

2. BEYSSADE, Jean-Marie – La Philosophie Première de Descartes. Paris: Flammarion, 1979.

3. CHAUI, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

4. DELEUZE, Gilles – Le pli. Leibniz et le barroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988.

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5. DONEY, Willis – “Gueroult on Spinoza’s Proof of God’s Existence”. In: Spinoza – Issues and Directions. Leiden; New York: E.J. Brill, 1990, pp. 32-38.

6. FICHANT, Michel – “L’origine de la négation”. In: Science et métaphysique dans Descartes et Leibniz. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, pp. 85-120.

7. FRIEDMANN, Georges – Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1962.

8. GOLDENBAUM, Ursula – “Why Shouldn’t Leibniz Have Studied Spinoza? The Rise of the Claim of Continuity in Leibniz’s Philosophy out of the Ideological Rejection of Spinoza’s Impact on Leibniz”. In: The Leibniz Review, Vol. 17, 2007, pp. 107-138.

9. LACERDA, Tessa Moura – “Leituras leibnizianas de Espinosa”. In: Cadernos Espinosanos, VI, 2000, pp. 47-74.

10. ______ – “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”. In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241.

11. LEIBNIZ, G. W. – [GP] Die philosophischen Schriften von G.W. Leibniz, ed. por C.J. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1875-1890, reedição Georg Olms, Hildesheim, 1978.

12. ______ – [NE] Nouveaux essais sur l’entendement humain. Paris: Flammarion, 1990.

13. ______ – [Grua] Textes inédits (d’après les manuscrits de la bibliothèque provinciale de Hanovre). 2 volumes. Ed. por Gaston Grua. Paris: PUF, 1998.

14. ______ – [C] Opuscules et fragments inédits de Leibniz. Extraits des manuscrit de la Bibliothèque royale de Hanovre. Ed. por Louis Couturat. Paris: Felix Alcan, 1903.

15. ______ – [Rauzy] Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérités. 24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et métaphysiques. Org. por Jean-Baptiste Rauzy. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.

16. ______ – [A] Sämtliche Schriften und Briefe. Ed. Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin. Darmstad; Berlin: Akademie Verlag, 1923-.

NotaS:

1. Sobre a provável data em que Leibniz leu os Princípios, cf. Friedmann 7, pp. 86-87. Segundo Friedmann, as anotações de Leibniz à margem do primeiro livro publicado por Espinosa são posteriores a sua leitura da Ética, em 1678.2. Ainda assim, para uma bem informada discussão recente sobre as possíveis influências de Espinosa sobre Leibniz, cf. o artigo de Goldenbaum 8, que trata da disputa que contrapôs, no final do século XIX, Erdmann e Stein a Guhrauer, Trendelenbourg, Foucher de Careil e Gerhardt.3. Cf. Leibniz 12, I, 1. Como se sabe, a primeira redação dos Novos ensaios ocorreu em 1703, um ano antes que a morte de Locke interrompesse seu projeto de publicação.4. Leibniz menciona Espinosa pela primeira vez em 1669, em carta de 30 de abril a Jacob Thomasius: ele comenta, não muito favoravelmente, Os princípios da filosofia de Descartes (cf. Friedmann 7, p. 86). Nessa carta, o nome de Espinosa aparece enumerado em uma lista de cartesianos, dentre os quais, segundo Leibniz, “não há quase nenhum que tenha acrescentado o que quer que seja às descobertas do mestre” (apud Friedmann, id. ibid.). É curioso notar que esse juízo preliminar será de certa forma mantido mesmo após ele estudar a obra de Espinosa, na medida em que considerará essa última como o desenvolvimento lógico do cartesianismo. Em 1670, com a publicação do Tratado teológico-político, Leibniz envolve-se em uma intensa troca de cartas, principalmente com correspondentes que, como ele, viam no livro um ataque à religião. No ano, seguinte, porém, escreve a Espinosa uma carta cordial (a única que restou da correspondência entre os dois filósofos, publicada, a contragosto de Leibniz, na edição da Opera Posthuma do filósofo herético).5. Como nota Lacerda 9, p. 54, as objeções de Leibniz a Espinosa formuladas em 1678 se, por um lado, prefiguram o sistema maduro do primeiro, ainda são tributárias

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de uma concepção escolástica de substância que não inclui a noção de força entre suas notas características (nem tampouco, portanto, sua concepção posterior dos atributos, entendidos como eventos): “A crítica a Espinosa é redigida [....] em um universo preso à linguagem escolástica e o seu pressuposto, mesmo que Leibniz já imaginasse incluir nas notas características do conceito de substância individual as reflexões trazidas da dinâmica e da matemática infinitesimal, não deixa de ser uma definição lógica de substância como sujeito, cujos atributos seriam predicados”. É curioso notar que o silêncio progressivo de Leibniz a respeito de Espinosa se dá no mesmo movimento de introdução dessa noção dinâmica de substância em seu próprio sistema – o que, entretanto, o aproximaria da concepção espinosana de substância. Essa discussão é retomada em Lacerda 10, p. 229.6. Leibniz GP 1: 139-152. Há um segundo manuscrito de Leibniz sobre a Ética, reproduzido em Grua I: 277-286. Uma exceção notável ao silêncio que se segue a esses comentários mais extensos é seu exame das teses da Ética a partir de suas notas de leitura do livro Elucidarius cabalisticus, escrito pelo teólogo J.-G. Watcher em 1706. Apesar de ter sido editada por Foucher de Careil na França, no século XIX, sob o titulo um tanto equivocado de Uma refutação inédita de Espinosa, o texto trata principalmente das relações entre a cabala e a filosofia de Espinosa tal como Watcher as figurava. Para uma análise desse texto, cf. Lacerda 10, pp. 237-240.7. Cf. sobre esse ponto Lacerda 10, p. 230, citando Marilena Chauí 3, pp.786-792.8. Cf. seu comentário à Proposição 5 dessa mesma Parte I: “Observo além disso que a Proposição 1 é inútil a não ser para provar esta proposição. Ela poderia ter sido omitida, pois basta que a substância possa ser concebida sem suas afecções, seja ela anterior a elas por natureza ou não”. Com relação a essa crítica de Leibniz, é curioso notar que no Apêndice do Curto tratado, uma espécie de proto-Ética que só será descoberta e publicada no século XIX, os equivalentes das Proposições 1 a 4 da Ética aparecem como axiomas.9. De forma paradigmática, no Discurso de metafísica e na correspondência com Arnauld.10. Os atributos das substâncias finitas (complexos, relativos, em parte negativos) são limitações dos atributos divinos (simples, absolutos, positivos).11. Como atesta sua correspondência com Schüller, um dos responsáveis pelo trabalho secreto e perigoso envolvido na publicação da obra póstuma de Espinosa.12. Desde o inicio de suas anotações críticas sobre a Ética, Leibniz manifestou suas críticas às dificuldades presentes na definição espinosana de atributo (sintoma, a seus

olhos, da deficiência da linguagem lógica do livro); comentando a Definição 4 da Parte I, ele se pergunta “se ele entende por atributo todo predicado recíproco, ou todo predicado essencial, seja ele recíproco ou não, ou, finalmente, todo predicado essencial primário ou indemonstrável da substância”. A crítica de Leibniz deriva, em suma, da constatação da ausência de uma definição lógica de atributo.13. Um dos fragmentos de novembro de 1676 (A VI iii 574) formula precisamente dessa maneira a relação entre essência e atributos: “Um atributo é um predicado necessário que é concebido por si, isto é, que não pode ser reduzido a muitos outros”; “A essência é tudo aquilo que numa coisa é concebido por si, isto é, o agregado de todos os atributos”.14. A nota que Leibniz redigiu durante os dias em que permaneceu em Haia, em novembro de 1676, é conhecida sob o título de Que o ser sumamente perfeito existe (A VI iii 578; G VII 261-263).15. Embora possamos suspeitar se se trata de uma divergência real, pois a doutrina da Ética sobre as relações entre essência e atributos poderia ser interpretada como afirmando precisamente essa distinção.16. O texto Sobre as formas ou atributos de Deus, de abril de 1676 (A VI iii 513-515) elucida essa relação entre “atributos” e “essências”: “Os atributos de Deus são infinitos, mas nenhum envolve a essência total de Deus. Pois a essência de Deus consiste nisto: em que ele é o sujeito de todos os atributos compatíveis”.17. Uma das características do pensamento maduro de Leibniz será um certo ceticismo quanto a nossa possibilidade de apreender essas formas simples – embora ele nunca tenha abandonado a tese acerca da necessidade de pressupô-las em uma explicação metafísica.18. A VI iii 513-516, abril de 1676. Como vimos acima (nota 18), essa solução é em certo sentido similar à de Espinosa: esse último afirma que muitos (infinitos) atributos podem exprimir a mesma essência e que a essência da substância única é o agregado de todos os atributos logicamente possíveis.19. Fichant, 6, pp. 107-108; Deleuze 4, pp. 60-67 (deve-se notar, porém, que ambos se referem primariamente à noção de substância da filosofia madura de Leibniz). Aqui se prenuncia a noção dinâmica de substância, formulada de modo claro nos anos seguintes.20. Sobre essa dupla leitura da Proposição 2, cf. Bennett 1, § 17; Doney 5, pp. 35-36. Como nota Doney, a primeira leitura da Proposição 2 implica a falsidade da Proposição 14, na medida em que essa última tem como premissa que não pode haver

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mais de uma substância com o mesmo atributo: se houvesse outra substância além de Deus, ela teria de compartilhar algum atributo com Deus – o que apenas a segunda leitura da Proposição 2 refuta.21. Isto é, usando a distinção entre “atributo” e “essência”, tomando tal distinção no sentido em que, para cada substância, há uma e apenas uma essência correspondente, e não no sentido em que não há nenhum atributo comum entre as várias substâncias.22. Os indivíduos espinosanos são, como se sabe, coisas finitas que modificam os atributos infinitos de Deus; para esses modos, não há nenhum problema em admitir que eles têm coisas em comum entre si (justamente o atributo do qual eles são modificações). Ao caracterizar os indivíduos como substâncias que são, em um certo sentido, “concebidas por si”, Leibniz deve recusar uma influência real entre elas precisamente porque são essências diferentes. Essa solução, no entanto, traz consigo um novo problema: se o que permite a relação causal (de criação) entre Deus e as criaturas não é uma comunidade de essências (pois a essência de Deus é qualitativamente distinta da essência das criaturas), mas apenas uma comunidade de atributos (no caso da relação das substâncias criadas com Deus, há uma medida comum porque os atributos das primeiras são limitações dos atributos divinos), então por que a comunidade de atributos entre as substâncias criadas não seria suficiente para permitir relações causais entre elas? Esse problema seria provavelmente evitado por Leibniz graças a sua teoria acerca das noções completas: duas coisas finitas com essências distintas não têm nenhuma relação real entre si porque a essência de cada uma delas exprime-se em uma noção completa. No caso da relação entre Deus e as criaturas, a relação causal de criação não interfere nas noções completas das coisas, mas limita-se a acrescentar o predicado de existência a elas – ou seja, a existência não faz parte do conceito completo de nenhuma coisa.23. Cf. Discurso de metafísica, Art. 13 (Leibniz 11, vol. 4, pp. 436-439): há dois decretos primitivos de Deus, o primeiro pelo qual Ele decide fazer sempre o mais perfeito e o segundo pelo qual Ele decide que o homem fará sempre (ainda que livremente) o que lhe parecerá ser o melhor.24. C 21, sem título e sem data. Para a datação desse texto, cf. Rauzy (in: Leibniz 15, p. 325) (segundo Rauzy, a data mais provável é o começo dos anos 1690; segundo Parkinson, trata-se provavelmente de um texto escrito na metade da década anterior).25. Deve-se notar aqui a oposição entre “mente” [mentem] e “alma” [animum], que talvez indique dois níveis mentais distintos, um mais ativo e outro passivo. Um resultado adicional interessante desse exame seria mostrar que Leibniz tem uma teoria

original para explicar o fenômeno da acrasia ou incontinência, assimilando-o a uma espécie de omissão intencional.26. Cf. Ensaios de Teodicéia, 323 (Leibniz 11, vol. 6, p. 308): “a forma ou a alma” (notar aqui uma certa hesitação) “é a fonte da ação, tendo em si o princípio do movimento e da mudança; em uma palavra, τό αύτοχίνητον, como Platão a chama”.27. Pode ser dubitável, porém, que as duas características definitórias da liberdade sejam logicamente independentes para Descartes: mesmo quando a vontade é exercida em uma situação de indiferença negativa, na qual o poder de escolha se sobrepõe à espontaneidade, é requerido que haja autonomia (ausência de coerção) e, portanto, uma certa “facilidade” na autodeterminação. Da mesma forma, nas escolhas “fáceis” do Bem e do Verdadeiro, quando há uma forte inclinação em assentir ao que se apresenta de modo claro e distinto para a mente, deve haver a presença necessária da indiferença positiva (pelo menos se levarmos em conta a famosa carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). Cf. sobre esse ponto Jean-Marie Beyssade 2, Cap. IV (“Le libre arbitre et le moment de l’élection”). A dimensão temporal do ato de escolha, constantemente assinalada por Beyssade em sua interpretação de Descartes, também encontra um lugar de destaque no texto de Leibniz que estamos examinando. Para uma espécie de antecipação cartesiana da resposta de Leibniz, cf. Carta a Mesland de 2 de maio de 1644.28. A deliberação virtuosa deve ter seu término atentamente considerado, tendo como critério de seu fim a “vontade presumida de Deus, tanto quanto possamos julgá-la” – Discurso de metafísica, Art. 4 Leibniz 11, vol. 4, pp. 429-430). Sobre a ação indireta da vontade sobre as ações, será interessante comparar a teoria de Leibniz com a teoria de Descartes, tal como ela é exposta no Tratado das paixões da alma, Art. 27 e 50. O próprio Leibniz realiza essa comparação nos Ensaios de Teodicéia, Primeira Parte, §§ 60-65 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 135-138). Sobre o poder de escolha explicado pelo adiamento de uma decisão, cf. Ensaios de Teodicéia, Terceira Parte, §§ 326-327 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 309-310).29. Em particular, não basta afirmar que a autonomia é equivalente ao poder de escolha; é preciso dar a esse último um sentido que recupere ao menos parte de nossa compreensão corrente do ato de escolher como um evento que envolve a contingência.

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A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE

Celi Hirata*

Resumo: O escopo do artigo é examinar a tese hobbesiana de que todo efeito possui uma causa necessária, indicando como o filósofo a demonstra de modos diferentes, mas complementares: em primeiro lugar, tanto por meio da identificação entre causa integral, causa suficiente e causa necessária, como pela redefinição dos conceitos de potência e ato; em segundo, através da subordinação do princípio de bivalência à determinação necessária dos eventos; e, por fim, pela defesa de que só por meio de uma causa necessária, causa que opera mecanicamente por meio de contato, é possível dar a razão pela qual os eventos possuem tais determinações espaciotemporais ao invés de outras, de modo que a causalidade mecânica necessária se estabelece como o único tipo legítimo de explicação dos fenômenos em Hobbes, transformando-se, então, na forma geral da inteligibilidade. Palavras-chave: causalidade, necessidade, requisito, mecanicismo, lei de inércia.

1. Causalidade e necessidade

Na sua doutrina da causalidade, Hobbes reformula conceitos provenientes da tradição aristotélico-escolástica de maneira a substituir uma concepção qualitativa da natureza por uma física estritamente mecanicista (cf. Leijenhorst 18, p. 426 - 447). Trata-se de uma doutrina absolutamente central em seu sistema, sendo decisiva não apenas no campo da filosofia propriamente natural, mas também no campo da moral e da política, já que ela vale para todo tipo de evento, seja natural ou humano, de forma que tanto a concepção que Hobbes possui das paixões humanas como a que ele tem de liberdade decorrem diretamente do modo como ele pensa a relação entre causa e efeito. Mais do que isso, a doutrina da causalidade

* doutoranda do departamento de Filosofia da usP.

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é determinante para a própria circunscrição da atividade filosófica ou científica, uma vez que a filosofia em geral se define em Hobbes como investigação racional das conexões causais (Hobbes 7, I, §2, p. 2). Por ser uma teoria que está contida na própria definição de filosofia, ela começa a ser constituída antes mesmo que a parte efetivamente doutrinária do De Corpore, a filosofia primeira, que deve fornecer as primeiras definições, seja iniciada. Uma vez que a investigação das relações causais se identifica com a própria filosofia, o estabelecimento do que é causa e efeito torna-se central na instituição do método, que consiste justamente no caminho mais breve possível de investigação dos efeitos pelas causas conhecidas e, inversamente, das possíveis causas a partir de efeitos conhecidos (idem, VI, §1, p. 58 e 59). Assim, Hobbes apresenta no capítulo relativo ao método, parte da Computatio sive logica, a definição de causa:

Causa é a soma ou agregado de todos os acidentes, tanto no agente quanto no paciente, que concorrem para a produção do efeito proposto, de um tal modo que não se pode entender que todos existem sem que o efeito exista, ou que, estando qualquer deles ausente, que o efeito exista. Uma vez conhecendo-se o que é a causa, cabe examinar, um a um, cada um dos acidentes que acompanham ou precedem o efeito e que pareçam de algum modo contribuir para ele, e ver se, algum deles não existindo, pode-se ou não entender que o efeito proposto exista. Separam-se, desse modo, aqueles que concorrem para a produção do efeito daqueles que não concorrem. Feito isto, reúnem-se aqueles que concorrem e considera-se se é possível entender que, existindo todos simultaneamente, o efeito proposto não exista. Se não podemos conceber isso, aquele agregado é a causa integral do efeito, caso contrário, não, e, nesse caso, outros acidentes devem ainda ser buscados e acrescentados (Hobbes 13, VI, §10, p. 151).

Nesta primeira definição de causa apresentada no De Corpore, Hobbes, além de determinar que a relação causal se dá entre acidentes (e não entre corpos ou substâncias) e envolve um agente e um acidente (isto é, dois termos, dos quais um gera ou destrói algum acidente e o outro sofre alguma alteração), realiza duas distinções que serão centrais na defesa da tese de que todo evento tem a sua causa necessária. A saber: a discriminação entre o que é requisito e o que não é, por um lado, e entre causa integral e parcial, por outro.

Em primeiro lugar, Hobbes salienta que a causa é constituída dos acidentes do agente e do paciente que estritamente concorrem para a produção do efeito. Quando o evento se dá, é preciso examinar as circunstâncias que o antecedem para, por meio da análise ou da resolução, isolar os diversos acidentes tanto no agente como no paciente que estavam presentes na realização do evento. Feito isto, deve-se a seguir eliminar dentre estes quais não contribuem para o efeito, o que se faz por meio da hipótese da privação: caso se possa conceber que, na ausência do acidente examinado, o efeito se produza, então não se tratava de um fator ou requisito para a produção do efeito, mas de um acidente que, embora seja antecedente ao efeito, não faz parte de sua causa. É a estes acidentes que se aplica a denominação de contingentes, termo que denota a relação de independência causal de um acidente ou evento em relação a outro (Hobbes 7, IX, § 10, p. 112) ─ sem significar de modo algum a ausência de causa ou de necessidade dos eventos, como se mostrará. Ao contrário, se não se pode conceber a remoção do acidente examinado sem a remoção da própria causa, trata-se de um acidente que concorre para a produção do efeito, sendo ele, então, parte da causa. Fala-se, neste caso, de uma causa sine qua non, isto é, causa necessária por hipótese ou requisito para a produção do efeito, como Hobbes precisará no capítulo concernente à causa e ao efeito (idem, IX, §3, p. 107). Deste modo, só é parte da causa o que efetivamente

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contribui para a sua produção, sendo que todos os outros acidentes do agente e do paciente com os quais o efeito não possui uma relação de dependência são excluídos da explicação causal. Ora, é por meio desta eliminação dos acidentes que não constituem requisitos para a produção do efeito da relação causal que se evitam as superstições, que se originam justamente devido à ignorância do que é a causalidade: como Hobbes diz no Leviatã, a maioria dos homens, rememorando aquilo que eles viram anteceder determinados efeitos, sem examinar pelo raciocínio o que há no antecedente e no consequente que possui uma relação de dependência ou conexão, esperam supersticiosamente determinados eventos a partir de fatos semelhantes, que não possuem parte na sua produção (Hobbes 8, XII, p. 97). Fica claro assim que a relação causal não consiste numa relação de antecedência e sucessão simplesmente temporal, mas lógica, de forma que a imaginação e a memória são, sem o recurso da razão e das suas operações de análise e síntese, insuficientes para o estabelecimento correto das conexões causais.

Em segundo lugar, na definição de causa supracitada, Hobbes determina o que é causa integral. Após a discriminação dos acidentes que constituem fatores para a produção do efeito daqueles que não o são, o que é realizado em parte pela análise ou resolução (distinção dos diversos acidentes que antecedem o efeito) e em parte por síntese (verificação de se o acidente em questão entra ou não na composição da causa), deve-se novamente pela síntese reunir todos os acidentes que constituem requisitos para a produção do efeito e examinar se este agregado é suficiente ou não para a produção do efeito, exame que se faz por uma prova indireta, uma espécie de redução ao absurdo: caso não seja possível conceber que, estando todos aqueles acidentes reunidos, o efeito não se produza, fica patente que aquele conjunto de requisitos constitui a soma de todos os requisitos para a produção do efeito, soma que só pode ter como resultado o efeito proposto.

Isto é, se a concepção da reunião de todos estes acidentes não pode ser separada da concepção da produção do efeito em questão, trata-se da causa integral. Ao contrário, caso a separação da concepção da soma dos fatores até então delimitados daquela do efeito produzido não resulte num absurdo, numa impossibilidade de concepção, então não se trata da causa integral, pois, “supondo-se estar todos [os acidentes tanto do agente quanto do paciente, sem os quais o efeito não pode ser produzido] presentes, não se pode entender que o efeito não se produza no mesmo instante” (Hobbes 7, IX, §3, p. 108). Se a conexão necessária entre a totalidade dos requisitos ou causa integral e o efeito se rompesse, ocorreria algo ininteligível. A relação em questão é, assim, de natureza lógica: uma vez suposto o antecedente, é incompreensível que o consequente não se siga. Por isso, a ausência da produção do efeito sinaliza diretamente a ausência de um ou mais requisitos necessários para a produção do efeito, devendo, então, o agregado dos acidentes em questão ser incrementado com outros acidentes indispensáveis para o engendramento do evento esperado até que a não-produção deste seja inconcebível. Assim sendo, a totalidade exaustiva de todas as condições sine quibus non, isto é, das condições necessárias, para a produção do efeito, que constitui a sua causa integral, será, na filosofia de Hobbes, identificada com a condição suficiente desta produção, que, por sua vez, será identificada com a sua causa necessária, transformando-se causa integral, causa suficiente e causa necessária em termos sinônimos. Eis a sinonímia que constitui o cerne da tese de que todo efeito possui uma causa necessária:

A causa integral é sempre suficiente para produzir o seu efeito, sempre que esse efeito seja de todo possível, porque qualquer efeito que se proponha para ser produzido, caso se produza, torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente; mas se ele não for produzido e ele for, no entanto,

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possível, é evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser produzido, isto é, estava faltando algum acidente que era requisito para a sua produção. A causa não era, portanto, integral, ao contrário do que era suposto. Daí se segue também que, no instante em que a causa se torna integral, neste mesmo instante o efeito se produz; porque se não se produzisse faltaria algo requerido para a produção e não se trataria de uma causa integral como se supunha. Ao definir como causa necessária aquela que, uma vez suposta, o efeito não pode deixar de se seguir, concluir-se-á também que qualquer efeito que se produza o será por uma causa necessária. Porque o produzido, pelo mero fato de sê-lo, teve uma causa integral, isto é, tudo aquilo que, uma vez suposto, não se pode conceber que o efeito não se siga; e essa causa é necessária. E, pela mesma razão, torna-se manifesto que quaisquer que sejam os efeitos que se produzirão no futuro, eles possuem uma causa necessária e que, deste modo, tudo o que tenha sido produzido ou que há de sê-lo, terá sua necessidade em coisas antecedentes (idem, IX, §5, p. 108 e 109; os itálicos do segundo parágrafo são meus).

Deste modo, causa integral, causa suficiente e causa necessária se tornam conceitos intercambiáveis, pois só é suficiente a causa que é integral, isto é, a causa que dispõe da totalidade dos requisitos ou condições sine quibus non. E uma causa integral ou suficiente não pode, por definição, ser deficiente, sendo necessária a produção do efeito uma vez que a causa é dada. Como Cees Leijenhorst indica, esta identificação entre a causa suficiente e a causa necessária realiza-se por meio de uma reinterpretação destes dois conceitos, que podem ser encontrados em manuais escolásticos. Enquanto os escolásticos distinguiam a causa suficiente da causa necessária por meio da distinção entre condições internas e circunstâncias externas ─ mesmo havendo uma causa suficiente, o efeito pode não se produzir

devido à interferência de uma circunstância externa, como, por exemplo, no caso de um fogo, que possui todas as condições requisitadas para queimar um pedaço de madeira, mas não o efetiva por causa de uma chuva ou vento repentinos, sendo que a causa necessária não se identifica com a causa suficiente porque aquela é a composição desta mais a ausência de impedimentos externos ─, para Hobbes, uma se iguala à outra na medida em que ele extermina a distinção entre condições internas e externas, tomando ambas como requisitos para a produção do efeito (Leijenhorst 18, p. 432). Afinal, requisito denota, como já foi dito, todos os fatores que possuem uma relação de causalidade ou dependência com o efeito, independentemente se estes estão no agente ou no paciente.

Ora, na medida em que a totalidade dos requisitos para a produção do efeito equivale a esta produção mesma, o efeito torna-se a ratio congnoscendi de sua causa, de maneira que do efeito é forçoso deduzir que ele foi produzido por uma causa suficiente: como Hobbes diz, sua produção “torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente”. Inversamente, a ausência do efeito proposto constitui um índice de que a causa não era integral, já que, neste caso, “é evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser produzido”. Assim, de todo efeito produzido, na medida em que é índice de uma causa suficiente ou necessária, conclui-se que ele possui a sua causa necessária, o que vale não só para os efeitos produzidos no passado ou os que estão se produzindo no presente, mas também para os eventos futuros. Em oposição à noção de futuros contingentes, Hobbes atribui, então, necessidade a todos os eventos, independentemente destes serem passados, presentes ou futuros. Afinal, deve vigorar a mesma conexão lógica de antecedência e consequência em todas as relações de causa e efeito, independentemente da posição temporal dos homens em relação ao fenômeno examinado, de forma que “tudo o que tenha sido produzido ou

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que há de sê-lo, terá sua necessidade em coisas antecedentes”.Esta expansão da necessidade da relação da causa e do efeito para

toda a extensão do tempo, independentemente se os eventos em questão são passados, presentes ou futuros, é tornada ainda mais explícita pelo tratamento que Hobbes dá ao par conceitual potência e ato. Atribuindo um significado novo a estes conceitos tradicionais, Hobbes reconduz a distinção entre potência e ato àquela entre causa e efeito, dizendo que ambas são a mesma coisa, ainda que a partir de diferentes considerações: quando o agente e o paciente possuem todos os requisitos necessários para a produção do efeito, dizemos que eles podem produzi-lo, isto é, que eles possuem a potência (potentia, power) para esta produção, sendo que a potência do agente equivale à causa eficiente e a potência do paciente à causa material. A única diferença é que o termo causa diz respeito ao efeito já produzido e o termo potência é relativo a este mesmo efeito a ser produzido no futuro, de modo que “causa” se refere ao passado e “potência” ao futuro. Da mesma maneira, o acidente produzido é, em relação à causa, efeito, e, em relação à potência, ato (Hobbes 7, X, §1, p. 113). Ora, assim como causa e efeito são termos relativos, só havendo causa onde há efeito e, inversamente, efeito apenas na medida em que há uma causa integral ou suficiente, potência e ato são termos correspondentes, de maneira que “um ato só pode ser produzido por uma potência suficiente ou por aquela potência a partir da qual ele não poderia deixar de ser produzido” (idem, X, §2, p. 114). Isto é: só pode haver ato onde há uma potência plena e, reciprocamente, só se pode falar de uma potência plena na medida em que há ato, já que “todo ato é produzido no mesmo instante que a potência é plena” (idem, X, §2, p.114). Ao identificar a relação de ato e potência com a de causa e efeito, potência equivalendo à produção do ato, tal como a causa integral com a produção do efeito, Hobbes assimilará, a partir do conceito de potência, a possibilidade à necessidade e a ausência de potência com a impossibilidade.

É impossível um ato para cuja produção não há uma potência plena. Na medida em que potência plena é aquela na qual todas as coisas que são requisitos para a produção do ato concorrem, se a potência nunca for plena, sempre faltará uma destas coisas sem as quais o ato não pode ser produzido; donde aquele ato nunca poderá ser produzido, isto é, é impossível: e todo ato que não é impossível é possível. Todo ato que é, portanto, possível deve ser produzido em algum momento; pois se ele nunca for produzido, então aquelas coisas que constituem requisitos para a sua produção nunca deverão concorrer; donde ser aquele ato impossível por definição, o que é contrário ao que era suposto (idem, X, § 4, p. 115).

Neste parágrafo, Hobbes reproduz em certa medida aquele argumento supracitado de que todo efeito possui uma causa necessária, argumento que recorre à dupla implicação, seja entre causa e efeito, seja entre potência e ato: a potência plena não pode, consistindo na totalidade dos requisitos para a produção do ato, deixar de produzir o ato, que, por sua vez, só pode ser produzido por uma potência plena, pois, caso contrário, faltaria um ou mais dos acidentes que são condição sine quibus non para a sua produção. Já naquele parágrafo do capítulo concernente à causa e ao efeito, Hobbes afirmava que a necessidade desta relação vigora tanto no passado, como no futuro. Nesta passagem, entretanto, ao abstrair a perspectiva temporal por meio do conceito de potência, ele estende esta necessidade a qualquer momento que se queira, eliminando, assim, a noção de possibilidade enquanto modalidade lógica que não só se opõe à impossibilidade, mas também se distingue da necessidade: na filosofia de Hobbes, aquilo que é possível é necessário, pois um ato só é possível na medida em que a potência de produzi-lo é plena, o que significa que ela o produzirá necessariamente. Logo, o ato que não se produz em algum momento do tempo não é possível, já que sempre falta para esta produção

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algum requisito que impede a potência de ser plena; em outras palavras, ele é impossível. Ou seja, não há nada entre o possível e o impossível, já que o possível se identifica com o necessário. Deste modo, Hobbes elimina a contingência, ou melhor, a redefine: ao invés de se aplicar aos eventos que podem ou não ocorrer, ela exprime tanto a maneira pela qual explicitamos a ausência de conexão causal entre dois eventos, que, embora concomitantes ou sucessivos, são independentes entre si, como, mais frequentemente, a nossa ignorância das causas necessárias (idem X, §5, p. 115 e 116) ─ a contingência não denota a ausência de causas, mas caracteriza apenas a relação do nosso conhecimento com o evento (Hobbes 9, p. 259). Como Luc Foisneau comenta, o tempo não é, em Hobbes, abertura ao possível, mas a limitação do conhecimento em função de nossa consideração, de modo que o possível passa a ser apenas uma modalidade temporal do necessário: um evento possível é um evento necessário que sabemos que se produzirá, sem, no entanto, saber quando (cf. Foisneau 5, p. 88). A oposição a Aristóteles não poderia, então, ser mais clara. Se por meio do par conceitual potência e ato, Aristóteles distinguia dois modos distintos do ser, diferenciando a potência como mera possibilidade do ato, que denota o real e que é, por isso, ontologicamente superior à potência (cf. Metafísica, livro IX, 1045 b 25 – 1052 a 12 - Aristóteles 2, p. 428 - 473), Hobbes, em contraste, eliminará justamente por meio destes dois conceitos a distinção da possibilidade e da atualidade: a potência completa se identifica ao próprio ato, isto é, a possibilidade de um ato já significa a sua efetividade, de modo que todo ato possível deve ocorrer em algum ponto do tempo.1

2. Causalidade e inteligibilidade

Na filosofia de Hobbes, a necessidade estabelecida pela relação causal vai de par com a racionalidade. Se os eventos não fossem necessários, as proposições, que constituem a única espécie de discurso

que possui valor de verdade e das quais todo o conhecimento filosófico é composto, não poderiam ser nem verdadeiras e nem falsas, o que tornaria o princípio de bivalência inválido e, consequentemente, toda pretensão de ciência caduca. Como Hobbes diz no seu comentário crítico ao discurso sobre a liberdade e a necessidade do bispo de Bramhall, a necessidade de todo evento não é apenas provada pela dupla implicação já examinada entre causa suficiente ou necessária e a produção do efeito, como também pela natureza da proposição:

É necessário que amanhã chova ou não chova. Se, portanto, não for necessário que chova, é necessário que não chova, caso contrário, não há necessidade de que a proposição choverá ou não choverá seja verdadeira. Sei que há alguns que dizem que é necessariamente verdadeiro que um dos dois venha a ocorrer, mas não separadamente que choverá ou que não choverá, o que equivale a dizer que uma delas é necessária e que, no entanto, nenhuma delas é necessária; para evitar este absurdo, eles fazem a seguinte distinção, de que nenhuma delas é verdadeiramente determinada, mas indeterminada, o que significa apenas que uma delas é verdadeira, mas nós não sabemos qual e a necessidade, então, permanece, ainda que nós não a saibamos (Hobbes 9, p. 277).

Da mesma forma que uma proposição é ou verdadeira ou falsa, não havendo meio-termo entre a verdade e a falsidade (que é o que o princípio de bivalência estabelece), um evento, como, por exemplo, a chuva futura, é ou necessário (de forma que a proposição que o enuncia é verdadeira) ou não-necessário, o que, como já se disse, equivale, na filosofia de Hobbes ao impossível, já que não há nada entre o necessário e o impossível, sendo a proposição que a enuncia, então, falsa. A indeterminação cabe ao fato e à proposição correspondente apenas do ponto de vista do nosso conhecimento: objetivamente, toda proposição é ou verdadeira ou falsa e todo evento

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é ou necessário ou impossível. Em uma passagem muito semelhante à supracitada, na qual Hobbes igualmente defende a necessidade de todos os eventos por meio do princípio de bivalência, o filósofo acrescenta que a verdade de uma proposição “não depende de nosso conhecimento, mas da anterioridade de suas causas” (Hobbes 7, X, §5, p. 116). Assim, esta prova da necessidade pelas proposições subordina-se àquela prova já discutida da necessidade pelas causas (cf. Foisneau 6, p. 109). De fato, numa outra passagem do Anti-White, o filósofo inglês afirma que a “necessidade das proposições, em função da qual dizemos que um tal evento ocorrerá, segue-se da necessidade que exige que os eventos procedam de causas” (Hobbes 11, XXXV, 13, p. 393; apud Foisneau 6, p. 110). Ora, essa mesma dependência do valor de verdade das proposições em relação à determinação necessária dos eventos por meio de suas causas aparece de maneira explícita na justificação da necessidade na presciência divina, que seria destruída se houvesse livre-arbítrio ou contingência no sentido tradicional do termo: “essas coisas que são chamadas de futuros contingentes, se elas não ocorrem de maneira certa, isto é, a partir de causas necessárias, não podem ser conhecidas de antemão” (Hobbes 10, p. 18). Pois não é o conhecimento que determina os eventos, mas sim o contrário: “que a presciência divina deva ser a causa de alguma coisa, não pode ser verdadeiramente dito, vendo que presciência é ciência, e ciência depende da existência das coisas conhecidas e não estas daquela” (Hobbes 9, p. 246).

Mais ainda, a relação entre a necessidade posta pela causalidade e a inteligibilidade que ela torna possível se estabelece num nível ainda mais fundamental, a saber, na imaginação, anteriormente ao estabelecimento da filosofia propriamente dita. Sem o recurso à causalidade necessária não só a constituição do discurso científico se tornaria impossível, uma vez que o valor de verdade das proposições se fundamenta nas relações causais, como também se tornaria impossível a representação dos eventos

no tempo, já que, neste caso, não se poderia imaginar nem o início e nem o término de qualquer fenômeno. Numa palavra, não se poderia representar ou conceber qualquer alteração na natureza:

Que um homem não pode imaginar nada começando sem uma causa não pode ser conhecido de outra forma senão tentando conceber como ele pode imaginá-lo. Mas, se ele empreender esta tentativa, ele encontrará, se não houver causa para a coisa, tanta razão para conceber que esta poderia começar tanto em um tempo como noutro, de forma que ele teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar em todos os tempos, o que é impossível, e, portanto, ele deveria pensar que houve uma causa especial pela qual ela começou então ao invés de mais cedo ou mais tarde; ou então que ela nunca começou, mas é eterna (idem, p. 276).

A relação necessária entre a causa e seu efeito não só é provada pela imbricação entre o conceito de causa suficiente e de seu efeito e pela dependência que o princípio de bivalência possui em relação a ela, mas também pela imprescindibilidade desta relação na representação dos eventos no tempo, pois é impossível conceber um evento sem uma causa, causa que só pode ser, aliás, necessária.

Como Hobbes diz, a representação do evento no espaço e no tempo é necessariamente acompanhada da representação de sua causa. Sem a intervenção do conceito de causa, haveria tanta razão para conceber que um evento poderia começar tanto num tempo como no outro, de forma que seu início seria inimaginável. Uma vez que Hobbes pensa que toda ideia ou concepção é uma imagem (Hobbes, 8, III, p. 17), sendo que só podemos conceber aquilo que podemos imaginar (razão pela qual não há ideia de infinito, por exemplo), o evento e o seu início seriam ininteligíveis na ausência da representação de uma causa. Dito de outra forma, não haveria

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razão suficiente para imaginar o evento se iniciando em um momento determinado ao invés de outro, mas aquele que representa o evento “teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar em todos os tempos, o que é impossível”. Sem a representação da causalidade não seria possível a representação de nenhum evento, isto é, de nenhuma alteração na natureza, mas só seria possível a representação das coisas como sendo eternas, o que é contrário à estrutura da representação humana, que só pode se dar no espaço e no tempo2. Toda representação de um evento envolve, pois, a concepção de uma causa especial, causa que dá a razão pela qual este evento teve início num momento determinado e não anteriormente ou posteriormente. Assim, na ausência de uma relação causal necessitante não só o valor de verdade das proposições sobre os eventos permaneceria indeterminado, o que feriria o princípio de bivalência, como também a imaginação ou representação de um evento seria indeterminada, sem uma inserção precisa no tempo e no espaço, já que o início de qualquer evento seria ininteligível. Numa palavra, a representação seria impossível. Que todo evento só possa ser representado como possuindo um início prova que todo evento possui a sua causa necessária, pois o evento só pode ter início se a sua causa é suficiente para produzi-lo, isto é, se não falta nada que constitui requisito para a sua produção, como Hobbes argumenta no parágrafo seguinte ao supracitado. Afinal, como a causa suficiente e a produção do efeito se equivalem, o efeito é produzido no mesmo instante em que a causa é integral, de modo que “em toda ação o início (principium) e a causa são tomados pelo mesmo” (Hobbes 7, IX, §6, p. 110).

Assim, é a relação causal que confere inteligibilidade tanto às proposições, na medida em que “a razão das proposições ─ o porquê delas serem verdadeiras ou falsas ─ não é outra que a causa dos eventos” (Foisneau 6, p..111), como aos próprios eventos, já que a razão de qualquer mudança só pode ser encontrada na sua causa, sem a qual o evento teria

razão para se dar em qualquer parte do tempo: “o único modo pelo qual o espírito pode dar razão de uma proposição, assim como de um efeito natural, consiste em exibir sua causa produtora. A causa produtora aparece então como a forma mais universal do princípio de razão. Ela se identifica com a exigência de racionalidade em geral” (Zarka 19, p. 203). A causalidade necessária aparece, então, como a forma geral da inteligibilidade, pela qual tanto a representação dos eventos como a enunciação das suas proposições correspondentes são tornadas possíveis para nós.

3. Causalidade e mecanicismo

Resta indicar como esta identificação entre causa necessária e razão se estabelece no interior do paradigma mecanicista da filosofia moderna, o que tornará ainda mais claro como só uma causa necessária ─ causa que Hobbes concebe como sendo mecânica ─ pode tornar os eventos inteligíveis, dando razão de suas determinações espaciotemporais.

O parágrafo citado na seção anterior, no qual Hobbes defende que um homem não pode imaginar algo começando sem uma causa, já que, na ausência desta, não haveria razão para conceber o início do evento num determinado ponto do tempo, constitui a justificativa (alocada na seção “minhas razões” do Da liberdade e da necessidade) do sexto item listado em “minha opinião sobre a liberdade e a necessidade”, no qual Hobbes afirma que “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum outro agente imediato” (Hobbes 9, p.274). É derivando as consequências desta máxima3 para o campo da moral que Hobbes sustenta que a causa de uma volição não pode residir na própria vontade, mas deve provir de móbiles exteriores, de forma, então, que a acepção da liberdade humana como o poder de iniciar uma cadeia causal nova, sem que ela mesma seja causada por nada, revela-se falsa, que é a concepção que Hobbes visa

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combater neste texto polêmico. Do lado da filosofia natural, esta máxima se identificará à rejeição do movimento espontâneo e terá como consequência a dupla asserção que constitui o cerne do princípio de inércia, a saber, que um corpo em repouso assim sempre permanecerá a menos que um outro corpo o mova e, simetricamente, que um corpo em movimento permanecerá para sempre em movimento a não ser que um outro corpo o pare. Eis como Hobbes prova a inexistência do movimento espontâneo na décima conclusão extraída a partir dos princípios estabelecidos no Short tract on first principles:

Nada pode mover a si mesmo.Suposto (se isso for possível) que A pode mover a si mesmo, é preciso que ele o faça por uma potência ativa que esteja nele próprio (de outra forma, ele não move a si mesmo, mas é movido por outro); e, vendo que ele age sempre em si mesmo, ele deve [...] mover a si mesmo sempre. Suposto, então, que A possui a potência (power) de ser movido na direção de B, então, A deve sempre mover a si mesmo em direção a B. Do mesmo modo, suposto (como nos é permitido) que A possui a potência de ser movido em direção a C, então, A deve sempre mover a si mesmo em direção a C. Ele deve, então, mover-se sempre em direções contrárias, o que é impossível. (Hobbes 12, p. 18 e 20).

De acordo com a demonstração hobbesiana da causalidade necessária de todo evento (demonstração que também se encontra no Short Tract, ainda que não tão desenvolvida quanto aquela que consta no De Corpore), o conjunto de todas as condições necessárias para a produção de um efeito constitui a sua condição suficiente que, como tal, não pode deixar de produzi-lo, sendo, então, necessária. Do mesmo modo, se algo possuísse em si mesmo a potência de se mover ─ o que significa, conforme a definição que Hobbes dá ao termo potência, que esta coisa possuiria

todos os requisitos necessários para se mover ─, ela não poderia deixar de se mover; ora, como esta potência ativa é atribuída à própria coisa, ela dispensa o recurso a qualquer outra circunstância exterior, de forma que ela deveria ter se movido desde a eternidade e, sem a necessidade da intervenção de outros corpos a ela exteriores, em todas as direções. Mas esta suposição só mostra como a atribuição aos corpos de uma potência de se mover é absurda: não se pode conceber que a soma de todos os requisitos para a produção de um efeito não resulte nesta produção mesma, pois, caso contrário, tratar-se-ia de um absurdo matemático, de uma equação desigual, de uma conexão que vai contra a razão, concebida por Hobbes precisamente como a capacidade de calcular, isto é, de somar e de subtrair (Hobbes 7, I, §2, p. 3). Ora, uma vez que a produção do efeito suposto é inconcebível, isto é, incompatível com a estrutura da representação humana, que não pode deixar de imaginar o evento num espaço e num tempo determinados, mostra-se que a hipótese é falsa. Assim, é a concepção matemática que Hobbes possui da causalidade que está no fundamento da rejeição do movimento espontâneo e da cosmologia aristotélica em geral, já que a concepção aristotélica de evento natural, calcada nas noções de potência e ato, forma e matéria, é avessa a qualquer tratamento matemático, sendo aí toda alteração compreendida qualitativamente como um processo. Para Hobbes, ao contrário, a relação causal, que é pensada segundo o modelo da geração ou produção, é estritamente quantitativa, sendo que a causa e a produção do objeto se equivalem, de forma que se conhece a causa de algo quando se é capaz de reproduzi-lo (idem, I, §5, p. 5 e 6) ─ o que se ajusta perfeitamente à concepção de ciência típica da modernidade, segundo a qual o escopo da filosofia reside na utilização dos efeitos previstos para a produção de eventos conforme a comodidade dos homens (idem, I, §6, p. 6).

Rejeitando, então, a concepção de que as coisas possuam uma potência ativa pela qual elas movam a si mesmas, Hobbes concebe que

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toda mudança ─ que, vale dizer, o filósofo inglês reduz ao movimento local (idem, IX, §9, p. 111 e 112), que doravante constituirá não só o único tipo de alteração, mas também a causa mais universal de todas, sendo que um movimento sempre tem como causa outro movimento (idem, VI, §5, p. 62; Hobbes 8, I, p. 2), o que possibilita o tratamento matemático de todo evento ou alteração, já que tanto a causa como o efeito são, neste caso, termos homogêneos, passíveis de composição e de subtração ─ é fruto de uma causa transitiva, de modo que toda relação de causa e efeito envolve um agente e um paciente, uma causa eficiente e uma causa material que compõem a causa integral.4 Uma vez que os corpos são desprovidos de um princípio interno de ação, de uma forma ou essência que os disponha a uma alteração qualquer, a causa da mudança só pode estar em algo exterior. Sem referência a esta causalidade exterior, não só não se poderia conceber por que a mudança, isto é, a passagem do repouso ao movimento ou do movimento ao repouso, iniciou-se num tempo determinado, como também não se poderia explicar por que o movimento se deu numa direção determinada. Ou seja, sem o recurso a esta causalidade exterior e mecânica, a um outro corpo contíguo e em movimento (Hobbes 7, IX, §7, p. 110 e 111), que altera o corpo em questão pela transmissão de seu movimento por meio do contato, não haveria a razão pela qual o evento em questão possui estas determinações espaciotemporais ao invés de outras:

O que está em repouso permanecerá sempre em repouso, a não ser que haja algum outro corpo além dele que, esforçando-se em tomar o seu lugar por meio do movimento, faça com que este não possa mais permanecer em repouso. Pois suponha-se que algum corpo finito existe e está em repouso e que todo o espaço ao seu redor está vazio; se agora este corpo começar a se mover, ele o fará em alguma direção; vendo, portanto, que não havia nada no corpo que não o dispusesse ao repouso, a razão pela qual ele se moveu nesta direção está em algo fora

dele; e, da mesma maneira, se ele tivesse se movido em outra direção, a razão do movimento naquela direção teria estado em algo fora dele; mas, vendo que se supunha que nada havia fora dele, a razão de seu movimento numa direção seria a mesma de seu movimento em todas as outras direções, do que se segue que ele se moveria do mesmo modo em todas as direções simultaneamente, o que é impossível.Do mesmo modo, o que está em movimento, sempre estará em movimento, a não ser que haja algum outro corpo além dele que o leve ao repouso. Pois se supomos que não há nada além dele, não haverá razão pela qual ele deveria entrar em repouso agora ao invés de em algum outro tempo; donde se segue que seu movimento cessaria de forma similar em qualquer partícula do tempo, o que não é inteligível (idem, VIII, § 19, p. 102 e 103, itálicos meus).

O princípio de inércia, que constitui um dos principais pilares da transformação que a concepção de natureza sofre na passagem da filosofia aristotélico-escolástica para a moderna, é, nesta passagem do De Corpore, ainda que apresentado de maneira incompleta, demonstrado, então, por meio da noção de razão. Com o declínio da cosmologia aristotélica, o movimento e o repouso passam a ser concebidos não mais como modos do ser, isto é, como o processo e o seu fim, mas como estados definidos por uma relação entre espaço e tempo5, em relação aos quais os corpos são completamente indiferentes, o que introduz a necessidade de se dar uma razão para explicar por que o corpo passou de um para o outro. Afinal, opondo-se à concepção aristotélica segundo a qual todo ser natural constitui um princípio de atividade dotado de uma essência que lhe proporciona uma finalidade interna, de modo que toda alteração é concebida teleologicamente como um processo de atualização de uma potência (Física III, I, 201 a 10 – 201 a 11 - Aristóteles 3, p. 195), Hobbes não só estabelece que tanto a potência como o ato consistem em movimentos atuais que só diferem

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quanto à perspectiva temporal (Hobbes 7, X, §6, p. 116), como também rejeita tanto a causa formal como a causa final, que, a seu ver, não passam de causas eficientes: enquanto a primeira nada mais é do que uma causa eficiente que ocorre entre conteúdos de conhecimento, na qual um é causa do outro, a segunda só tem lugar nas coisas que possuem sentidos (sensum) e vontade (idem, X, §7, p. 117; III, §20, p. 38 e 39) e indica apenas a relação entre a representação de algo desejado e uma ação, sendo que a primeira constitui a causa eficiente da segunda.6 Ora, uma vez que o corpo é destituído de qualquer princípio de atividade interno, na ausência de uma razão exterior ao corpo, ele permanecerá no estado em que se encontra, e só poderá passar do repouso ao movimento e do movimento ao repouso pela intervenção de outro corpo.

Mas, com o abandono do arsenal aristotélico da teoria do movimento, não é só a passagem de um estado a outro que requer uma razão exterior ao corpo: também a direção na qual o corpo se move deve ser referida a uma razão que não se encontra nem no corpo e nem no espaço, doravante concebido como sendo perfeitamente homogêneo. Em contraste com a concepção de um cosmos qualitativamente organizado e com a noção de lugar natural que lhe é correspondente, segundo a qual cada coisa tende a um lugar determinado conforme a sua natureza própria (Do Céu, IV, 3 – Aristóteles 1, p. 342 - 351), Hobbes concebe o espaço como sendo algo que não é real, mas imaginário (já que não existe fora da representação, mas é a imagem que o sujeito percipiente possui de algo exterior e subsistente por si, isto é, o corpo), apresentando-o como aquilo que não é atualmente preenchido, mas como aquilo que pode ser preenchido (Hobbes 7, VII, §2, p. 82 e 83). Na medida em que o espaço é desprovido de determinações atuais, os corpos são indiferentes a um lugar ou outro, de forma que se não houvesse a comunicação do movimento a partir de um corpo exterior, não haveria a razão pela qual o corpo se

moveu em uma determinada direção ao invés da outra, pois, sem esta referência à disposição do outro corpo em relação ao corpo movido, este seria indiferente a qualquer direção, sendo determinado a se mover em todas as direções, o que é impossível. Do mesmo modo, sem a intervenção de um outro corpo, não se poderia compreender como um corpo passa do movimento ao repouso agora ao invés de antes ou depois, pois não há nenhuma tendência natural no corpo ao repouso, mas, ao contrário, assim como um corpo em repouso assim permanecerá, a menos que um outro corpo se choque com este, o que é comumente aceito, pela mesma razão, a saber, que nada pode alterar-se a si próprio, um corpo em movimento permanecerá eternamente em movimento se um outro corpo não o parar ─ o que, ao contrário, não é facilmente admitido devido à autoridade dos doutores da Escola, que atribuem às coisas inanimadas um apetite pelo repouso, o que, por sua vez, tem por base o antropomorfismo (Hobbes 8, II, p. 3 e 4). Desta forma, a passagem do movimento ao repouso necessita de uma explicação causal tanto quanto a passagem do repouso ao movimento. Se não houvesse a comunicação do movimento por um corpo exterior, haveria tanta razão para que o corpo passasse bruscamente ao repouso em qualquer instante que se queira, e não por graus e num espaço de tempo determinado, como ocorre pela transmissão do movimento de um corpo ao outro, pelo qual os acidentes do agente alteram continuamente os acidentes do paciente (Hobbes 7, IX,§ 6, p. 109), tal qual numa função matemática, concepção que, no entanto, Hobbes não chega a formular (cf. Fiebig 4, p. 31). Numa palavra, os estados dos corpos e suas determinações espaciotemporais seriam ininteligíveis sem a referência a um outro corpo, contíguo e em movimento (isto é, a uma causa mecânica, que não pode deixar de produzir o seu efeito), já que a razão destes não podem ser encontradas nos próprios corpos.

Assim, é a causalidade necessária, que consiste numa relação matematicamente determinada entre a causa integral e a produção do

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efeito, e o seu estabelecimento como único tipo legítimo de explicação dos fenômenos, tanto naturais como humanos, que fundamenta a rejeição da alteração (isto é, movimento) espontânea e, consequentemente, o princípio de inércia. Por isso é que a tese de que nenhum homem pode imaginar algo se iniciando sem uma causa necessária constitui a justificativa ou a razão pela qual “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum outro agente imediato”, como Hobbes expõe no Da liberdade e da necessidade. Dar a razão de um evento significa, doravante, dar conta de sua produção e submetê-lo ao cálculo (cf. Zarka 19, p. 205). Só uma causalidade necessária, causalidade que opera apenas mecanicamente, a partir da transmissão do movimento, pode, então, tornar os eventos inteligíveis, dando razão de sua inserção determinada no espaço e no tempo. Vê-se, desta forma, que a teoria da causalidade constitui o principal pilar na refutação hobbesiana da concepção aristotélico-escolástica de natureza em favor da física mecanicista típica de seu tempo.

* * *

Por fim, é interessante notar que seja justamente por meio de algumas noções empregadas por Hobbes na demonstração de que todo efeito possui a sua causa necessária que Leibniz se oporá ao seu materialismo e necessitarismo, o que ele fará por meio do princípio de razão suficiente. Como se mostrará num de seus textos de juventude, Leibniz demonstrará este princípio precisamente a partir da dupla implicação entre a existência de uma coisa e de sua razão suficiente, argumentando que a totalidade dos requisitos constitui a razão suficiente da existência de uma coisa, que, por sua vez, não poderia existir se um dos requisitos estivesse ausente (Leibniz 16, p. 483). Ora, tal como se pode ver no desenvolvimento de sua filosofia, Leibniz o utilizará para mostrar como a causalidade mecânica é um tipo

insuficiente de razão quando se trata de responder a questão mais essencial de todas, a saber, por que existe alguma coisa e não o nada? (cf. Leibniz 17, §7, p. 158), questão que só poderá ser respondida por meio da introdução da ideia de finalidade e do melhor, já que o “nada é mais simples e fácil do que alguma coisa” (idem), isto é, o nada não possui requisitos, ao contrário da existência do mundo. Enfim, se, por um lado, Leibniz deve o seu princípio de razão suficiente em certa medida a Hobbes, o que ele não deixa de reconhecer, como se pode verificar em seu comentário crítico aos Questions concerning liberty, necessity and chance (cf. Leibniz 15, p. 388- 399), por outro, por meio deste princípio ele se oporá não só ao necessitarismo e materialismo do filósofo inglês, como também à sua tese da impossibilidade de se conhecer Deus pela razão natural, bem como à sua concepção de justiça divina, como ele bem expõe neste apêndice da Teodiceia.

CaUSaLIty IN HobbES: NECESSIty aND INtELLIGIbILIty

abstract: The aim of this paper is to examine the hobbesian thesis that every effect has a necessary cause, showing how he demonstrates it in different but complementary ways: firstly, by means of identification between entire, sufficient and necessary cause and the redefinition of concepts of power and act; secondly, through the subordination of the principle of bivalence to the necessary determination of events; and lastly, by affirming that only through a necessary cause, a cause that can operate only mechanically via contact, is possible to give the reason why the events have these spatial and temporal features instead of others. Therefore the mechanical and necessary cause becomes in Hobbes the unique legitimate type of explanation of phenomena and the general form of intelligibility. Key-words: causality, necessity, requisite, mechanism, law of inertia.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. ARISTÓTELES. On the heavens. Londres: William Heinemann, 1960. Tradução: W. K. C. Guthrie.

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2. _______. Metaphysics. Londres: William Heinemann, 1968. Tradução: H. Tredennick, vol I (livros I – IX).

3. _______. Physics. Londres: William Heinemann, 1970. Tradução: P. Wicksteed e F. Cornford, vol I (livros I – IV).

4.FIEBIG, H. Erkenntnis und technische Erzeugung – Hobbes’ operationale Philosophie der Wissenschaft. Meisenheim am Glam: Anton Hain, 1973.

5. FOISNEAU, L. “Le vocabulaire du pouvoir: potentia/ potestas, power” In: ZARKA, Y. (ed.) Hobbes et son vocabulaire. Paris: Vrin, 1992, p. 83-103.

6. _______. “De la nécessité des choses et des actions. Hobbes critique des futurs contingents”. In: La découverte du principe de raison. Paris: P.U.F., 2001, p. 91-119.

7. HOBBES, T. De Corpore. In: MOLESWORTH, W. (ed.). Opera Latina. Darmstadt: Schrecker, 1966 (2ªedição), vol. I

8. _______. Leviathan. In: MOLESWORTH, W. (ed.). English Works. Darmstadt: Schrecker, 1966 (2ªedição), vol III.

9. _______. Of liberty and necessity. In: English Works, vol. IV.10. _______. The questions concerning liberty, necessity, and chance. In: English

Works, vol. V.11. _______. Critique du “De Mundo” de Thomas White. JAQUELOT e J. JONES,

H. W. (ed.). Paris: Vrin, 1973.12. _______. Court Traité des premiers principes/ Short Tract on First Principles.

Paris: P.U.F., 1988. 13. _______. Do Corpo – parte I: Cálculo ou lógica. Campinas: Unicamp, 2009.

Tradução: Maria Isabel Limongi e Viviane de Castilho Moreira.14. JESSEPH, D. “Hobbes and the method of natural science”. In: SORELL, T. (ed.).

The Cambridge Companion to Hobbes. Nova York: Cambridge University Press, 1996, p. 86 – 108.

15. LEIBNIZ, G.W. Theodicée. In: GERHARDT, C. (ed.). Die philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Darmstadt: Georg Olms, 1961, vol. VI.

16. _______. “Demonstratio propositionum primarum”. In: Philosophischen Schriften herausgegeben von der Leibniz-Forschungsstelle der Universität Münster. Berlim: Akademie – Verlag, 1966, tombo VI, volume II.

17. _______. Princípios da natureza e da graça. In: Discurso de metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução: Alexandre da Cruz Bonilha.

18. LEIJENHORST, C. “Hobbes’s theory of causality and its aristotelian background”. In: The Monist, vol 79, n° 3, julho de 1996, p. 426 – 447.

19. ZARKA, Y. La décision métaphysique de Hobbes. Paris: Vrin, 1999 (2ª edição).20. _______. “First philosophy and the foundation of knowledge”. In: The Cambridge

Companion to Hobbes, p. 62-85.

NotaS:

1. Luc Foisneau indica que Hobbes, ao estabelecer uma relação necessária entre potência e ato, retoma, contra Aristóteles, o necessitarismo dos megáricos, que justamente não reconhecem a potência como um modo de ser intermediário entre o ser e o não-ser, mas, como Hobbes, argumentam que não há potência se não há ato e que não há ato a não ser que haja potência (Foisneau 5, p. 87).2. Após inaugurar a filosofia primeira no De Corpore com a hipótese do aniquilamento do mundo, com a qual Hobbes visa esclarecer a estrutura e o conteúdo da representação humana (Zarka 20, p.66), o filósofo apresenta em primeiro lugar as definições de espaço e de tempo, que não são coisas que existem fora de nós, mas pertencem apenas à mente, uma vez que são os fantasmas “de uma coisa existente enquanto existente” e “de um movimento, na medida em que imaginamos nele um antes e um depois” (Hobbes 7, p. 83 e 84), respectivamente. Na medida em que constituem as imagens da exterioridade e da mudança em geral, “espaço e tempo não são fantasmas particulares entre outros, mas pertencem à forma do nosso conhecimento das coisas que existem e se alteram” (Zarka 20, p. 67).3. A tese de que nada pode iniciar o seu próprio movimento constitui a segunda das cinco máximas que Hobbes lista em “Maximes necessary for those, yt from ye sight of an Effect shall endeavour to assigne its Natural Cause” (Classified Papers, IV (I), nº 30, apud Jesseph 14, p. 90). Apesar de constituir uma máxima de sua filosofia, ela pode ser derivada a partir de sua concepção de causalidade.4. Causa eficiente e causa material não denominam, como em Aristóteles, dois tipos distintos de causa, das quais uma seria externa e a outra imanente ao efeito (Metafísica, livro V, 1018 b 4 – 1018 b 5 – Aristóteles 2, p. 212 e 213), mas indicam apenas dois modos distintos da consideração da causa que denominaríamos eficiente, já que tanto numa como na outra se trata dos requisitos (que são sempre acidentes e não a matéria, isto é, o corpo) que colaboram na produção do efeito.

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5. “Diz-se que está em repouso aquilo que, durante qualquer tempo, está num lugar; e que está em movimento ou foi movido o que, esteja agora em movimento ou em repouso, estava antes em outro lugar do que está agora” (Hobbes 7, VIII, §11, p. 98).6. Como Yves Zarka diz, para Hobbes, “a causalidade final nada mais é do que a aparência subjetiva que a causalidade eficiente adquire na imaginação do homem” (Zarka 19, P. 202).

POSSívEIS E ExISTENTES EM LEIBNIZ

Wilson Alves Sparvoli*

Resumo: Nesse artigo, pretendemos tratar da distinção entre um ser possível e um ser existente em Leibniz. Para tanto, vamos nos apoiar nas reflexões dos comentários de Martine de Gaudemar e de Robert Adams em seus livros. Pretendemos mostrar que um possível é algo que não possui uma força própria, apesar de todo possível exigir existir, essa força não passa da própria força da divindade, não existe alteridade antes da criação. Já um existente possui uma força e uma autonomia própria. Palavras chaves: Leibniz, Existente, Possível, Força, Mônada.

Nosso objetivo nesse texto é verificar qual é a diferença entre um ser possível e um ser existente em Leibniz, ou seja, a diferença entre os vários mundos possíveis e o mundo existente e criado. Para resolver essa questão vamos partir dos comentários de Martine de Gaudemar (Gaudemar 1), e complementá-los com algumas idéias tiradas de Robert M. Adams (Adams 2).

Leibniz, na correspondência com Arnauld, defende que há diversos possíveis não criados e que esses possíveis se encontram no intelecto divino, chamado de o “país dos possíveis”. Um dos motivos para afirmar a existência de possíveis não criados é garantir a contingência tanto da ação divina como da ação humana.

Leibniz enviou para Arnauld um sumário do Discurso de Metafísica. O velho teólogo, ao ver a carta de Leibniz, rapidamente se horroriza com o artigo 13º. No título desse artigo lemos:

* Doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

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“Como a noção individual de cada pessoa encerra duma vez por todas quanto lhe acontecerá, nela se vêem as provas a priori da verdade de cada acontecimento ou a razão de ter ocorrido um de preferência a outro” (Leibniz 3, pág. 127).

Arnauld imediatamente acusa Leibniz de restringir a liberdade divina no ato de criação, instituindo um regime de “nécessité plus que fatale” (Leibniz 7, Pág. 83.), pois, se a noção individual de Adão encerra tudo aquilo que lhe acontecerá, os filhos que terá e a noção desses filhos também, a liberdade divina parece ficar restrita à decisão de criar ou não o mundo. Caso decida criar, tudo se seguirá dessa noção individual necessariamente. A ligação entre Adão e seus predicados pareceu à Arnauld semelhante à ligação existente entre minha essência e a propriedade de ser pensante, isto é, intrínseca e necessária.

Leibniz, é claro, não pode aceitar essa conseqüência, assim como também não vai aceitar nenhuma das outras conseqüências tiradas por Arnauld, que implicam limitação à liberdade de Deus e do homem. Um dos argumentos utilizados por Leibniz para se esquivar desse determinismo é a pluralidade de mundos possíveis.

A contingência da escolha divina e da ação humana se baseia em certa medida nessa pluralidade de possíveis não criados. No texto do artigo 13º do Discurso de Metafísica, Leibniz vai fazer uma distinção muito sutil entre o certo e o necessário. Todos os predicados de uma substância podem ser deduzidos a priori de sua noção individual, já que essa noção é sumamente individualizada. Contudo, mesmo se alguém tivesse um poder de análise grande o suficiente para realizar uma análise completa dessa noção (o que é inviável mesmo para Deus, já que realizar uma análise infinita no tempo é impossível. Apenas na perspectiva da eternidade seria possível “realizar” tal feito), não seria capaz de demonstrar que o contrário de tal predicado implica contradição lógica. Explicando um pouco melhor, segundo o

famoso exemplo das camisas: está contido em minha noção individual que, enquanto escrevo esse texto, visto uma velha camisa vermelha. Isso é certo, entretanto não é necessário, pois não é logicamente impossível (não implica contradição) que hoje eu estivesse vestindo uma elegante camisa branca. Mais do que isso, em outros mundos possíveis, eu trajo uma infinidade de camisas possíveis! A contingência no leibnizianismo é salva por essa distinção e por esse esquema de possibilidade ou impossibilidade lógica. É necessário apenas aquilo cuja negação é logicamente impossível. A necessidade fatal se restringe ao domínio das verdades matemáticas e lógicas, incriadas e imutáveis; elas não poderiam ser alteradas sequer por Deus. Sem dúvida nenhuma, esse é um tema muito rico e complexo do leibnizianismo, entretanto, para nosso objetivo nesse texto, basta frisar que os possíveis garantem a contingência da ação humana e da ação divina: os mundos possíveis não criados abrem um leque de opções possíveis (que não são logicamente contraditórias) para os sujeitos e para Deus. Um problema adicional seria que, no melhor dos mundos possíveis (o que foi realmente criado por Deus), é hipoteticamente necessário que eu use a bendita camisa vermelha... Não posso vestir, ou seja, é certo que eu não vou vestir uma camisa verde e desequilibrar o delicado conjunto do mundo, diminuindo sua perfeição; entretanto, apesar de certo, não é necessário. É logicamente possível vestir essa camisa verde, e essa possibilidade lógica está ligada à pluralidade de mundos possíveis não criados.

Esses possíveis não criados garantem a contingência da ação divina: a criação não é necessária, tanto porque Deus poderia não ter criado nada, quanto porque, ao decidir criar, poderia ter criado um outro mundo dentre os vários possíveis em seu intelecto. No entanto, mais uma vez, a necessidade hipotética intervém, pois é certo que Deus vai criar o melhor dos mundos, embora ele ainda tenha o poder para criar um mundo possível menos perfeito. Esses possíveis são chamados por Gaudemar de

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“matéria” lógica da criação (Gaudemar 1, pág. 33). O mundo existente foi escolhido entre esses possíveis e então criado. Isso evita algumas indesejadas conseqüências espinosistas, como o fim da contingência ou da possibilidade. Como sabido por todos, no espinosismo não existem possíveis. Por outro lado, esse material lógico da criação também evita algumas conseqüências indesejáveis do cartesianismo. Cada um desses mundos foi criado segundo regras lógicas e de bondade pré-existentes (porém co-eternas a Deus). Não houve nem um voluntarismo despótico (caso de Descartes) que cria a partir do nada com uma falsa liberdade absoluta, nem houve um necessitarismo sem escolha, onde todos os possíveis se tornam existentes. O que houve foi uma criação realmente livre, onde a vontade inclinada por considerações sobre o bem e a perfeição (regras pré-existentes à criação e co-eternas a Deus) escolheu o melhor dentre uma infinidade de possíveis não criados (matéria lógica).

Entretanto, essa “matéria” lógica da criação põe seus próprios problemas ao leibnizianismo. Por exemplo, Leibniz diz que os possíveis exigem existir de acordo com o grau de perfeição que possuem. Isso seria um constrangimento para Deus? Um conjunto de possíveis por sua própria força e mérito forçaria sua passagem para a existência? Deus seria, segundo as palavras de Gaudemar, um mero “guarda de fronteira”, e o melhor conjunto de possíveis um “estrangeiro com salvo-conduto”? Parece-me que Gaudemar fornece uma boa resposta para essas questões. Os possíveis não criados não podem ter uma existência separada de Deus (por exemplo, no parágrafo 43 da Monadologia), isso anularia a criação: Deus cria a partir do nada, antes da criação não existe alteridade nenhuma. Não existe um outro ser incriado que possa pôr-se lado a lado com Deus. Ou seja, esses possíveis não são diferentes do próprio Deus. Se eles têm uma pretensão à existência, uma “força” para existir, essa força não pode ser diferente da suma potência divina. Entretanto na criação essa força também não

pode ser um desdobramento necessário da essência divina, porque isso também parece aproximar Leibniz de Espinosa. Esse desdobramento é um desdobramento possível (Deus poderia não criar ou criar outro conjunto), e mais do que desdobramento é uma criação mesmo, pois, diferente de Espinosa, em Leibniz existe uma pluralidade de substâncias, a criação institui uma alteridade substancial. Não se trata de modos brotando da substância única, isto é, o deus-natureza.

Para entender melhor o ato de criação vamos recorrer a duas metáforas tiradas de Gaudemar. Os mundos possíveis são como as sombras que Ulisses encontra no Hades: cada uma delas clama pelo sangue da oferenda imolada (no entanto esse “clamor” não pode ser diferente da potência divina). Já o mundo criado é como Lázaro ao ser ressuscitado. E o Ato criador nada mais é do que um “Levanta e Anda!”. O que isso quer dizer?

Deus escolhe o clamor da sombra correta. Nesse caso, Tirésias é o melhor dos mundos possíveis. E o ato criador dá ao mundo criado potência e força para agir por si mesmo. Como Gaudemar nota, a existência não pode ser um predicado, pois os mundos possíveis são completos, não lhes falta nenhuma determinação ou predicado. A Existência então vai ser outra coisa, ela vai ser uma espécie de autonomia, ou seja, concessão de força própria. O mundo criado, assim como Lázaro, vai “levantar e caminhar” por conta própria. Sua ação não vai ser mais a ação de Deus, vai ser uma ação própria que é análoga à potência de Deus, entretanto, limitada, ao invés de infinita. Como nos diz Leibniz no Discurso de Metafísica em 1686 e nos Princípios da Natureza e da Graça de 1711: “A substância é um ser capaz de ação1”

Para consolidar essa leitura vamos nos dirigir brevemente ao texto “De Ipsa Natura” publicado em 1698. Nesse texto, Leibniz vai contestar algumas posturas ocasionalistas de um interlocutor, Christopher Sturm, e oferecer uma interessante explicação da criação e da natureza.

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O Ocasionalismo foi uma corrente filosófica derivada do cartesianismo, cujo principal expoente foi Malebranche. O próprio Leibniz chegou a flertar com essa concepção em seus textos de juventude, anteriores a 1686, mas, por fim, acabou se tornando um crítico dela. O Ocasionalismo de Malebranche afirmava, entre outras coisas, que nenhuma causa finita era capaz de produzir algum efeito, somente uma causa infinita teria esse poder, logo, apenas Deus poderia ser a causa de todo e qualquer efeito no mundo e os seres finitos seriam apenas as causas ocasionais, daí o nome dessa corrente. Se em sua juventude Leibniz parecia aprovar esse recurso à divindade, em sua maturidade dirigiu algumas críticas a essa postura. Pois considerou um absurdo teológico Deus ter que intervir constantemente na criação. Esse fato, na visão de Leibniz, diminui a potência divina, pois Deus não teria sido diligente o suficiente para criar uma obra que fosse capaz de funcionar sozinha, sem auxílio externo constante. Além disso, nessa hipótese tudo na natureza se explicaria por um milagre contínuo. Na definição de Leibniz, milagre não é um fato raro e extraordinário, milagre é tudo àquilo que ultrapassa as forças e capacidades das substâncias criadas:

“Pois me parece que a noção de milagre não consiste na raridade, será dito para mim que Deus não age nisto senão segundo uma lei geral e por conseqüência sem milagre. Mas eu não concordo com essa conseqüência e eu creio que Deus pode fazer regras gerais em relação aos milagres mesmos” (Leibniz 7, pág. 161.)

Daí que a continuidade do milagre, seu caráter habitual, não o tornaria por isso menos milagre. A natureza nada mais seria que uma criação capenga de um artífice incapaz de dotá-la de suficiente autonomia.

Leibniz criticou duas das posições de Sturm, uma delas acerca da

definição de natureza, a outra sobre a aparente falta de potência (força) no mundo criado. No entanto, o trecho que nos importa se encontra na resposta à primeira pergunta do texto. O que é a natureza? Ao responder essa questão, Leibniz não deixa de afirmar seus principais compromissos referentes à física. Em primeiro lugar, tudo se faz mecanicamente na natureza, o recurso a formas, almas, princípios hilárquicos, naturezas plásticas é inútil e supérfluo, a natureza é uma criação divina infinitamente complexa e com um funcionamento mecânico independente de auxílios. Entretanto, o mecanicismo tem seus limites: se ele basta para explicar os fenômenos naturais em suas particularidades, ele não basta para explicar os seus princípios gerais de funcionamento, daí o recurso a noções metafísicas, como a da força (ação/paixão) e do axioma da igualdade entre o efeito inteiro e a causa plena. A natureza é definida por Leibniz segundo a velha definição de Aristóteles: o princípio de movimento e de repouso.

Sturm, no texto criticado por Leibniz, não deixa de reconhecer, como convém a um físico cristão, que os movimentos ocorrem devido à força da lei eterna dada por Deus na criação e, mais uma vez com acerto, também afirma que não são necessários novos atos ou mandatos de Deus para cada ocasião em particular. Ambas as respostas convêm muito a um pensador cristão, mas ambas encontram um pequeno obstáculo: o mandato divino deu uma denominação puramente extrínseca ou forneceu uma lei interna para todas as mudanças nas criaturas? (Leibniz 4, pág. 487)

Sturm parece não tomar posição nesse ponto de suma importância. Na verdade, se Sturm adotar a primeira postura nada mais estará fazendo do que adotar a postura ocasionalista e recaindo em todos os erros próprios dela. Leibniz vai aprofundar um pouco mais seu pensamento: se o mandato não deixou marca nem denominação intrínseca, não é possível nenhum tipo de explicação razoável e distinta da realidade, pois tudo se realizaria segundo um milagre, as coisas passariam a operar por saltos e sem intermediários (Leibniz 4, pág. 488). Além disso, o próprio Deus se

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tornaria impotente, pois sua vontade não teria sido capaz de produzir um efeito perdurável. Muito pelo contrário, o mandato divino dotou o mundo de eficácia e autonomia para se desenvolver por si próprio, não lhe sendo necessária a constante manutenção de uma máquina defeituosa. Deus cria o mundo segundo certos desígnios e o conjunto da obra vai seguir infalivelmente esses desígnios por si mesmo. Por fim vamos citar um importante trecho do De Ipsa Natura:

“Mas se a lei dada por Deus deixou algum expresso vestígio seu nas coisas, se as coisas foram formadas deste modo mediante um mandato de modo a tornarem-se aptas a cumprir a vontade do mandatário, então deve conceder-se que as coisas encerram uma eficácia, forma ou força que chegou a nós tradicionalmente com o nome de natureza” (Leibniz 4, pág. 488).

Assim sendo, para evitar o que considerava erros ocasionalistas, cartesianos e espinosanos, Leibniz definiu a natureza como essa forma ou força capaz de cumprir por seu desenvolvimento no tempo a vontade do mandatário. O decreto divino tornou as substâncias eficazes e ativas, ou seja, segundo os textos citados do Discurso de Metafísica (parágrafo 8) e dos Princípios da Natureza e da Graça (parágrafo 1), fez dos possíveis substâncias, isso é, aquilo que é capaz de atividade.

Agora vamos explorar um pouco mais a fundo a ontologia leibniziana. Já sabemos que a diferença entre um possível e um existente se encontra na força: o possível não tem nenhuma ação independente da ação divina (não é algo diferente de Deus, não existe alteridade antes da criação), já o existente possui uma força própria (uma determinação intrínseca) pela qual é capaz de seguir a vontade do criador, contudo com liberdade. Mas o que precisamente é essa força, ou melhor, com que aspecto(s) da ontologia

leibniziana ela pode ser identificada?Para realizar essa identificação vamos recorrer a dois importantes

opúsculos: O Specimem Dinamicum e o Exame da Física de Descartes. Em ambos os textos citados, Leibniz faz uma catalogação dos

tipos de força existentes: uma primeira divisão é feita entre força ativa e força passiva, e uma segunda divisão é feita entre força primitiva e força derivativa. Leibniz define todos esses conceitos com o objetivo de superar muitos daqueles que considera erros cometidos por outras escolas filosóficas. A extensão, definida por Descartes como o atributo essencial da substância e, portanto, de onde se derivariam todos os seus modos, não é capaz de explicar e derivar muitas das características que empiricamente podemos verificar no mundo. Se em determinado momento de sua vida Leibniz aderiu totalmente ao programa mecanicista vulgar, entretanto, depois de constatar os limites desse programa, reformulou-o de maneira a reabilitar alguns conceitos da antiga escolástica:

“Encantou-me a bela maneira destes de explicar mecanicamente a natureza e reprovei com razão o método daqueles que nada empregavam além das formas ou das faculdades das quais nada se aprende. Mas depois, havendo tentado aprofundar os princípios mesmos da mecânica para fornecer uma explicação das leis da natureza conhecidas por meio da experiência, apercebi-me que a consideração da massa extensa não seria por si mesma suficiente e que seria preciso empregar ainda a noção de força, a qual é plenamente inteligível, ainda que pertença ao domínio da metafísica.” (Leibniz 8, pág. 16)

“Descobri, então, que a natureza das formas substanciais consiste na força” (Idem).

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Os princípios mesmos do mecanicismo não podem ser derivados da mera massa extensa. Isso parece significar que algumas das leis da natureza conhecidas empiricamente não podem ser explicadas a partir da extensão, como, por exemplo, a conservação da quantidade de força (mv2), mas, além disso, muitas das características dos corpos não podem ser derivadas da extensão. Por exemplo, a inércia e a impenetrabilidade dos corpos, ambas envolvem certa resistência que a extensão cartesiana, indiferente, não pode fornecer. O próprio movimento também não poderia ser derivado da extensão, daí os excessos ocasionalistas... Para explicar todas essas noções, que envolvem certa atividade ou passividade, é necessário recorrer a algum substrato dinâmico e não mais meramente geométrico (como a extensão cartesiana), daí o recurso às forças. A ação e a paixão das substâncias vão ser a base primitiva de onde essas noções vão ser derivadas e explicadas, elas vão ser uma espécie de substrato ontológico para as características dinâmicas renegadas pelo cartesianismo. São a força passiva e a força ativa primitivas.

Mais do que simplesmente substrato, a ação e a paixão vão ser a própria substância. Lembremos o primeiro parágrafo dos Princípios da Natureza e da Graça: a substância é um ser capaz de ação. Elas nada mais vão ser do que a forma e a matéria constitutivas da substância leibniziana:

“E a (força ativa) primitiva sem dúvida (que não é outra coisa que a enteléquia primeira) corresponde à alma ou forma substancial” (Leibniz 6, pág. 59).“E sem dúvida a força primitiva de suportar ou resistir constitui o mesmo que, se se interpretou corretamente, se denomina nas escolas matéria primeira” (Leibniz 6, pág. 60).

Essas duas instâncias metafísicas vão constituir a substância leibniziana: a famosa mônada:

“E este mesmo princípio substancial se chama alma nos viventes, nos demais seres forma substancial e, enquanto constitui com a matéria uma substância realmente única, ou seja, uma unidade por si, forma o que chamo mônada”. (Leibniz 4, pág. 493).

Pode parecer muito estranho que um ser, dito realmente uno, seja composto por matéria e forma, mas nesse ponto sigo a interpretação de Adams. Não se trata de dois componentes, mas antes de dois aspectos que apenas por uma abstração podem ser separados. A substância criada tem uma parcela de ser (ação), mas também por seu caráter de criatura necessariamente tem sua parcela de nada (limitação constitutiva das substâncias), a força ativa (ação) nunca se encontra separada da força passiva (paixão). São como um ser e sua sombra, os dois lados de uma mesma moeda absolutamente inseparáveis, apesar de poder haver, se é licito recorrer ao vocabulário cartesiano, uma distinção de razão.

Assim sendo, podemos enfim verificar que as forças concedidas por Deus ao melhor conjunto de possíveis nada mais são do que a própria mônada leibniziana. Pode parecer um tanto óbvio dizer isso, mas a criação transforma os possíveis em substâncias no sentido leibniziano, isto é, em mônadas. Esse é o lugar ocupado pelas forças na ontologia leibniziana, elas são a matéria e a forma das substâncias criadas.

Um último desafio poderia ser colocado: como conciliar matéria e forma com a mônada que tem como apanágio perceber, ou antes, como conceder matéria à mônada não extensa? Mais uma vez vou recorrer ao livro de Adams. A matéria de que se trata aqui é uma matéria metafísica:

“As substâncias tem matéria metafísica ou potência, a qual é passiva enquanto as substâncias expressam algo confusamente, ativa enquanto expressam algo de maneira distinta” (Leibniz 4, pág. 313)

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Assim como a positividade das mônadas criadas pode ser identificada com sua percepção clara do universo, a paixão/imperfeição pode ser identificada com a percepção obscura. Por isso a matéria em questão (paixão, limitação da substância) no limite vai poder ser entendida como uma característica relacionada com a percepção confusa da substância, daí seu caráter metafísico. Não se trata de reabilitar pela porta dos fundos a extensão cartesiana escorraçada com alarde pela porta da frente.

Enfim, para concluir, gostaria apenas de dizer que a diferença entre um possível e um existente é ao mesmo tempo muito simples e envolve muitas mediações. Um possível existente nada mais é que uma substância, ou seja, um conjunto de força ativa e passiva, matéria e forma, ao mesmo tempo em que as articulações entre os diversos aspectos da substância surgem como um complicador: a substância é força ativa e passiva, é matéria e forma, e também percepção clara e confusa. Como conciliar e articular todos esses aspectos? Sem dúvida nenhuma esse seria um assunto para um outro trabalho um pouco mais longo que esse. Já o puramente possível é uma essência em Deus que apesar de ter uma força para a existência, não tem força própria, essa tendência para existir não é algo diverso da potência divina, pois antes da criação não existe alteridade.

PoSSIbLES aND EXIStENtS IN LEIbNIZ

abstract: In this article, we intend to discuss the distinction between a possible being and an existing being, in Leibniz. In order to this, we will use as support reflections on the comments of Gaudemar Martine and Robert Adams, in their books. We intend to show that a possible is something that doesn’t have its own force. Although every possible demands existing, this force is nothing but the divinity’s force itself; there is no otherness before creation. Differently, an existing has its own strength and autonomy.Keywords: Keywords: Leibniz, Existing, Possible, Force, Monad.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. ADAMS, R. M. Leibniz. Determinist, Theist, Idealist. New York. Oxford University Press. 1994.

2. GAUDEMAR, M. Leibniz, De la Puissance au Sujet. Paris. Vrin. 1994. 3. LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica in os Pensadores vol. Leibniz. São Paulo.

Abril Cultural. 1979.4. LEIBNIZ, G. W. Escritos Filosóficos. Buenos Aires. Editorial Charcas. 1982.5. LEIBNIZ, G. W. La Monadologie. Paris. 1990.6. LEIBNIZ, G. W. Escritos de Dinamica. Madrid. Tecnos. 1991. 7. LEIBNIZ, G. W. Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld.

Paris. Vrin. 2000.8. LEIBNIZ, G. W. Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias.

Belo Horizonte. UFMG. 2002.

NotaS:

1. “Ora visto que as ações e paixões pertencem propriamente às substâncias individuais” in Discurso de Metafísica, parágrafo 8. “A substância é um ser capaz de Ação” (Leibniz 4, Pág. 597).

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A CONCEPÇÃO CARTESIANA DA LIBERDADE NOS PRINCíPIOS DA FILOSOFIA

Mariana de Almeida Campos*

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma resposta a dois problemas presentes na teoria cartesiana da liberdade tal como é desenvolvida nos Princípios da Filosofia. O primeiro refere-se às diferenças entre a versão latina e a tradução francesa dos Princípios no que concerne à definição de liberdade. O segundo refere-se à controvérsia, existente no contexto da literatura secundária, sobre se a teoria cartesiana da liberdade desenvolvida nos Princípios seria distinta daquela desenvolvida nas Meditações Metafísicas. Como pano de fundo desta discussão encontra-se um problema clássico, a saber, o problema da relação entre o que parecem ser duas concepções de liberdade: liberdade como livre-arbítrio e liberdade como espontaneidade. Tendo em vista esse problema, é nossa pretensão também responder, sobre como, precisamente, deveríamos compreender a relação entre essas duas concepções na teoria da liberdade desenvolvida por Descartes nos Princípios.Palavras-chave: Descartes, liberdade, livre-arbítrio, espontaneidade, vontade.

Introdução

Descartes começou a trabalhar nos Princípios da Filosofia no início de 1641, logo após a publicação de suas Meditações Metafísicas. Nesse livro, ele pretendia publicar o resultado de suas investigações sob a forma de um manual, destinado a substituir os que existiam à época. Originalmente concebido como uma exposição sistemática de sua filosofia, cujo objetivo era retomar as teses que haviam sido expostas nas Meditações, Descartes não chegou a concluir suas últimas seções, referentes aos seres vivos e ao homem, permanecendo, assim, inacabado. Trataremos aqui somente da Parte I, intitulada “Dos princípios do conhecimento humano”, que, junto

* Doutoranda do PPGFIL – UERJ e bolsista CAPES.

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com o começo da Parte II, contém a parte propriamente filosófica do livro, e é onde podemos encontrar a teoria da liberdade. Conforme a uma ordem constante nos escritos de Descartes, os artigos sobre a liberdade aparecem após os artigos sobre a dúvida (Parte I, artigo I a III e VI), sobre o cogito (Parte I, artigo VII a XIII) e sobre as provas da existência de Deus (Parte I, artigo XIV e seguintes). Assim, os artigos sobre a teoria do erro e sobre a teoria da liberdade são os seguintes: XXXI a XLIV.

O original latino dos Princípios foi publicado em 1644; já a tradução francesa consta de 1647. Embora a versão francesa tenha sido revista pelo próprio Descartes, ela contém omissões e, sobretudo, acréscimos ao texto original. Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia aux Principes: variations sur la liberté, de 1994, apresenta uma detalhada classificação das diferenças existentes entre essas duas versões. Dentre elas, há uma em particular que na sua visão parece revelar uma mudança de pensamento a respeito da liberdade. Assim, a hipótese de uma mudança de pensamento é levantada a partir da comparação entre o que é dito na versão latina e na versão francesa do artigo XXXVII da primeira parte dos Princípios. Segundo Michelle Beyssade, a diferença entre as duas versões desse artigo traz à tona o problema da relação entre o que parecem ser duas diferentes concepções de liberdade: liberdade como “poder dos contrários” e liberdade como poder de sermos determinados em nossos juízos por idéias claras e distintas. Na primeira parte deste artigo, pretendemos investigar se a hipótese de uma mudança conceitual entre os Principia e os Principes a respeito da liberdade é coerente dentro do sistema cartesiano. Na segunda parte, mostraremos que há ainda uma outra controvérsia, no contexto da literatura secundária, sobre se os Princípios marcam uma mudança em relação às Meditações; essa é a tese defendida por Etienne Gilson em seu livro La liberté chez Descartes et la théologie, e por Ferdinand Alquié em seu livro La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes,

defensores de uma evolução na doutrina cartesiana da liberdade. Por outro lado, há autores que negam que tenha havido entre as Meditações e os Princípios tal evolução. Dentre esses autores, analisaremos a posição de Jean Laporte, em seu artigo La liberté selon Descartes, e de Anthony Kenny, em seu artigo Descartes on the will.

Parte 1 - Diferenças entre a versão latina e a versão francesa dos Princípios da Filosofia

Segundo Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia aux Principes: variations sur la liberté, a relação entre os Principia Philosophiae de 1644 e os Principes de la Philosophie de 1647 não é a de uma pura e simples tradução. Segundo ela, a versão francesa contém inúmeras diferenças em relação ao texto original. Neste artigo não nos propomos a analisar todas essas diferenças, mas apenas uma, em particular, que na visão da autora é mais importante do que as demais pelo fato de que parece representar dois pensamentos diferentes a respeito da liberdade. A diferença em questão se encontra no artigo XXXVII da Primeira Parte dos Princípios. Vejamos o que diz a versão latina:

“Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível, isso também convém à sua natureza; e é, em certo sentido, uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade, isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o autor de suas ações e por elas merecendo louvor. Pois não se louvam os autômatos por exibirem com precisão todos os movimentos para os quais foram construídos, porque necessariamente os exibem assim; mas se louva o seu artífice por havê-los fabricado tão precisos, porque não os fabricou necessária, mas, sim, livremente. Pela mesma razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar

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a verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente que o fazemos, do que se não pudéssemos deixar de abraçá-la” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53)1.

Michelle Beyssade observa que a versão latina deste artigo é um dos textos em que, para caracterizar a liberdade, Descartes afirma mais fortemente o “poder dos contrários”. Esse poder é reconhecido como um aspecto de perfeição no homem, como uma suma perfeição, e como condição do seu mérito, por intermédio da idéia de responsabilidade presente no termo “autor”. Além disso, ele é considerado como oposto à necessidade do movimento dos autômatos. Segundo a autora, essa oposição está em harmonia com o que é dito no artigo XXXIX, onde a liberdade também é caracterizada como um “poder dos contrários”: “Mas para que haja liberdade em nossa vontade, e [que], a nosso arbítrio, possamos assentir ou não assentir” (Descartes 4, VIII, 19, Descartes 6, XXXIX, 55); e com a associação entre “liberdade” e “indiferença” no artigo XLI: “[...] estamos de tal modo cônscios da liberdade e da indiferença que está em nós” (Descartes 4, VIII, 29; Descartes 6, LXI, 57). Assim, a caracterização da liberdade na versão latina do artigo XXXVII como um “poder dos contrários” está em harmonia com o que é dito na versão latina dos artigos XXXIX e XLI.

Porém, a versão francesa do artigo XXXVII é muito diferente do original latino. Como observa Michelle Beyssade, o trecho em que a hipótese de uma mudança de pensamento pode ser mais fortemente levantada é o seguinte:

“Igualmente devemos nos atribuir algo mais pelo fato de escolhermos o que é verdadeiro, quando o distinguimos do falso, graças a uma determinação da nossa vontade do que se fossemos determinados e coagidos por um princípio externo” (Descartes 4, IX, 41. Descartes 5, III, 112-113)2.

Como vimos na versão latina do artigo XXXVII, a liberdade é caracterizada como um “poder dos contrários”. Mas na versão francesa, de acordo com o trecho citado acima, a liberdade é considerada como uma determinação interior não constrangida. Face a essa diferença entre as duas versões do artigo XXXVII, Michelle Beyssade se pergunta se não haveria aí o indício de uma mudança no pensamento de Descartes sobre a liberdade. Segundo ela, essa diferença corresponde à diferença entre as duas caracterizações da liberdade que se encontram na Quarta Meditação separadas pela expressão “ou antes”: liberdade como poder dos contrários e liberdade como determinação interna. Assim como há diferenças entre as duas versões dos Princípios, também é possível observar uma variação entre o que Descartes escreve na versão latina das Meditações sobre a liberdade e o que ele escreve na versão francesa. Na versão latina, a liberdade se caracteriza por uma determinação interna; neste caso a expressão “ou antes” tem como função excluir da definição essencial de liberdade a caracterização da liberdade como um “poder dos contrários”. Mas, na versão francesa, esse poder parece não ser mais explicitamente excluído da definição essencial de liberdade. Na verdade, Descartes não se pronuncia sobre essa questão, pois o que de fato ele exclui da definição essencial de liberdade é o estado de indiferença negativa resultante de uma carência de conhecimento. Na versão francesa da Quarta Meditação, a liberdade em seu mais alto grau também se caracteriza por uma adesão irresistível às idéias claras e distintas, mas, diferentemente da versão latina, o “poder dos contrários” não é explicitamente excluído da definição essencial de liberdade. É uma tese defendida por Michelle Beyssade em seu famoso artigo sobre a Quarta Meditação, Descartes’s Doctrine of Freedom: Differences between the French and Latin Texts of the Fourth Meditation, que, após a publicação das Meditationes, há nos

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escritos de Descartes um maior reconhecimento do “poder dos contrários” (Beyssade 2, p. 205). Segundo ela, esse maior reconhecimento pode ser observado pelo que é dito sobre a liberdade na carta a Mesland de 1645 e na versão francesa das Meditações de 1647. Porém a explicação sugerida pela autora para resolver o problema da diferença entre as duas versões das Meditações, a saber, de que há um maior reconhecimento do “poder dos contrários” na caracterização da liberdade após 1641, não serve para resolver o problema da diferença entre as duas versões dos Princípios, e mais especificamente a diferença entre as duas versões do artigo XXXVII da Primeira Parte, que acabamos de apresentar. Pois, se nos Principia a liberdade é caracterizada como envolvendo um “poder dos contrários”, nos Principes ela é caracterizada como uma determinação interna. É compreensível, como argumenta Michelle Beyssade, que em 1644, data da versão latina dos Princípios, Descartes considere a liberdade como um “poder dos contrários”. No período de redação dos Principia Descartes apresenta formulações diferentes daquelas que encontramos em 1641, pois ele tenta evitar as objeções endereçadas às Meditationes (BEYSSADE, M., 1996, p. 44). Mas como compreender essa nova acentuação do caráter interno da determinação na versão francesa dos Princípios? Como explicar ainda o fato de que essa versão é publicada no mesmo ano da versão francesa das Meditações, mas apresenta uma caracterização da liberdade que se aproxima do ponto de vista das Meditationes de que as Méditations se distinguem? Há ou não aí o indício de uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade?

Michelle Beyssade defende a tese de que não há uma mudança no pensamento cartesiano sobre a liberdade no período que se estende entre as duas versões dos Princípios (Beyssade 3, p. 49). A autora afirma que, embora a versão francesa dos Princípios seja diferente da versão latina, essas diferenças não negam o que o texto latino afirmava. De acordo com

essa visão, não há dois pensamentos diferentes sobre a liberdade, mas duas maneiras diferentes de expressar um mesmo pensamento: “A divergência das variações se opõe à idéia de uma mudança de doutrina” (Beyssade 3, p.46). Para sustentar essa tese, a autora mostra que na versão francesa dos Princípios podemos encontrar afirmações em artigos posteriores ao artigo XXXVII que não revelam uma negação do “poder dos contrários”, afirmado na versão latina desse artigo, e que, além disso, atenuam a diferença que destacamos anteriormente entre as duas versões do artigo XXXVII. Vejamos o que diz Descartes no artigo XXXIX dos Principes:

“Quanto ao mais, é tão evidente que possuímos uma vontade livre, que pode ou não dar o seu consentimento quando bem lhe aprouver, que isso pode ser considerado uma das nossas noções mais comuns. Tivemos anteriormente uma prova bem clara: pois, ao mesmo tempo em que duvidávamos de tudo, e que supúnhamos até que aquele que nos criou empregava o seu poder para nos enganar de todas as maneiras, apercebíamos em nós uma liberdade tão grande que podíamos evitar crer naquilo que não conhecíamos ainda perfeitamente bem. Ora, aquilo que apercebíamos distintamente e de que não podíamos duvidar durante uma suspensão tão geral é tão certo quanto qualquer outra coisa que possamos jamais conhecer” (Descartes 4, IX, 40. Descartes 5, III, 112).

Como vimos na versão francesa do artigo XXXVII, Descartes caracteriza a liberdade como uma determinação interna. Porém, no artigo XXXIX dessa mesma versão, ele afirma explicitamente o “poder dos contrários”, como mostra o trecho que acabamos de citar. Embora esse poder seja afirmado, a seqüência do artigo nos mostra que seu exercício não é absoluto, mas se limita aos casos em que não somos plenamente esclarecidos por razões, isto é, aos casos em que experimentamos algum

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grau de dúvida. Desta forma, a versão francesa do artigo XXXIX atenua, sem negar, a afirmação que é feita na versão francesa do artigo XXXVII, a saber, de que a liberdade consiste numa determinação interna. De acordo com o que foi dito, podemos pensar que a versão francesa dos Princípios admite, por um lado, a caracterização da liberdade como uma determinação interna, nos casos em que estamos esclarecidos por razões, como mostra o artigo XXXVII; e, por outro lado, a caracterização da liberdade como um “poder dos contrários”, nos casos em que experimentamos algum estado negativo de indiferença, ou seja, algum grau de dúvida, como mostra o artigo XXXIX. Assim, numa mesma versão é possível compatibilizar as noções de determinação interna e de “poder dos contrários” na caracterização da liberdade.

De modo correlato, como observa Michelle Beyssade, o artigo XLIII também é um texto que atenua a diferença entre as duas versões do artigo XXXVII. Vejamos respectivamente o que diz a versão latina e a versão francesa desse artigo:

“É certo, porém, que jamais viremos a tomar o falso pelo verdadeiro se dermos assentimento somente àquilo que percebermos clara e distintamente. Digo que é certo porque, como Deus não é enganador, a faculdade de perceber que nos deu não pode tender ao falso, nem tampouco a faculdade de assentir, quando se estende somente àquilo que é percebido claramente. E, ainda que de maneira alguma o provássemos, isso está de tal sorte impresso pela natureza dos ânimos de todos [nós] que, todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, VIII, 21; Descartes 6, XLIII, p. 59).

“Mas é certo que nunca tomaremos o falso pelo verdadeiro enquanto julgarmos apenas o que percebemos clara e

distintamente, porque, não sendo Deus enganador, a faculdade de conhecer que nos deu não poderia falhar, nem mesmo a faculdade de querer, quando não estendemos para além do que conhecemos. E mesmo que tal verdade não tivesse sido demonstrada, somos tão naturalmente inclinados a dar o nosso consentimento às coisas que apercebemos manifestamente que não poderíamos duvidar delas enquanto as percebemos dessa maneira” (Descartes 4, IX, 43; Descartes 5, III, 116).

Como argumenta Michelle Beyssade, se na versão latina do artigo

XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como um poder dos contrários, no artigo XLIII dessa mesma versão ele considera a dúvida sobre uma percepção clara e distinta como absolutamente impossível. Isso significa que, embora esse poder seja afirmado no artigo XXXVII, mais adiante no artigo XLIII Descartes afirma que seu exercício não é absoluto, pois diante de uma percepção clara e distinta não temos o “poder dos contrários”. Se na versão francesa do artigo XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como uma determinação interna, no artigo XLIII dessa mesma versão ele omite a expressão latina “nullo modo”, que tornava a dúvida sobre uma percepção clara e distinta impossível, e acrescenta uma frase que não havia no texto latino. Essa adição da versão francesa atenua a tese da impossibilidade de duvidarmos das percepções claras e distintas, na medida em que ela restringe essa impossibilidade ao momento da presença da percepção manifesta e admite ser possível duvidarmos dessas percepções quando a atualidade se esvai. Assim, a versão francesa desse artigo, sem entrar em contradição com a versão latina, que afirma que a dúvida sobre uma percepção clara e distinta é impossível, indica como se exerce o “poder dos contrários” submetendo-o às condições de desatenção características do pensamento humano.

Esses dois artigos que acabamos de analisar atenuam a diferença

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entre as duas versões do artigo XXXVII, que poderia ser considerada como um indício de uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade. As modificações observadas nesses artigos posteriores, com base no estudo de Michelle Beyssade, nos mostram que a versão francesa do artigo XXXVII não nega o que Descartes afirma na versão latina desse texto, mas apresenta uma formulação diferente sobre a liberdade. Essa diferença de formulação a respeito da liberdade entre as duas versões dos Princípios pode ser explicada, como sugere Michelle Beyssade, pelo fato de que ao reler o artigo XXXVII, na ocasião de sua tradução, Descartes estava mais preocupado em mostrar como se manifesta a perfeição da liberdade na adesão da verdade do que em afirmar o “poder dos contrários”, que ele afirma nos artigos posteriores dessa mesma versão (Beyssade 3, p. 39-41). De acordo com essa interpretação, Descartes teria preferido, na versão francesa, ressaltar um outro aspecto da liberdade, a saber, a adesão da vontade às idéias claras e distintas. Assim, acreditamos com Michelle Beyssade que não há uma mudança na teoria cartesiana da liberdade entre os Principia e os Principes, mas duas ênfases distintas de uma mesma concepção geral (Beyssade 3, p. 49).

Parte 2 - Interpretações contra e a favor da tese de que os Princípios da Filosofia marcam uma mudança em relação à doutrina da liberdade exposta nas Meditações Metafísicas

2.1. a posição de E. Gilson

Gilson defende a tese de que os Princípios representam uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade em relação às Meditações (Gilson 7, p. 318). Ele considera que a doutrina da liberdade que é desenvolvida nas Meditações, apoiada na crítica da liberdade de indiferença sob a influência

do pensamento tomista, representa uma crítica à doutrina molinista. Nos Princípios, ao negar a crítica da liberdade de indiferença e afirmar que “indiferença” e “liberdade” são sinônimos – “estamos de tal modo cônscios da liberdade e da indiferença que está em nós” (Descartes 4, VIII, 20; Descartes 6, XLI, 57) – Descartes estaria, na visão de Gilson, claramente se afastando de sua posição anterior e aderindo à doutrina molinista. Segundo o comentador, essa mudança no pensamento cartesiano sobre a liberdade pode ser explicada pela mudança que então havia tomado a controvérsia sobre a graça, e pela preocupação de Descartes em assegurar o sucesso de sua filosofia mediante a aprovação dos jesuítas (Gilson 7, p.319).

Gilson argumenta que, no momento da redação dos Princípios, Descartes se encontrava decepcionado pelo fato de não haverem recebido seus Meteoros com bastante consideração e por não terem introduzido esse texto no ensino, e começa então a redigir os Princípios, esperando a aprovação da Sorbonne de sua obra anterior, as Meditações. Sem uma aprovação oficial dos doutores da Sorbonne, diz Gilson, Descartes sabia que seria imprudente entrar em guerra aberta com a Companhia de Jesus, mas totalmente diferente seria a sua posição na luta se ele pudesse demonstrar aos seus adversários que a física que eles haviam recusado decorria necessariamente dos princípios metafísicos que a Sorbonne havia aprovado. No entanto, as Meditações são recusadas pelos doutores da Sorbonne. Diante desse fato, Descartes renuncia ao desejo que ele tinha de refutar o curso de filosofia difundido nos colégios jesuítas. Para que a filosofia cartesiana triunfasse e substituísse a de Aristóteles, era preciso que Descartes colocasse a Companhia de Jesus a seu favor; pois somente os jesuítas com seus colégios potentes e suas numerosas ligações nas universidades poderiam garantir o triunfo rápido da filosofia cartesiana. Segundo Gilson, Descartes estava consciente disso e, ao escrever os Princípios, tentava conciliar o seu pensamento com o pensamento dos

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jesuítas: “a história dos Princípios é dominada inteiramente pela preocupação de Descartes com os jesuítas” (Gilson 7, p. 332). Na visão de Gilson, é em função da não aprovação dos Meteoros e das Meditações que Descartes evita introduzir nos Princípios tudo o que pudesse ser considerado como uma crítica das doutrinas teológicas em destaque na Companhia. Assim, Descartes exclui dos Princípios a crítica da liberdade de indiferença, pois essa crítica atingiria a Companhia de Jesus inteira, que estava muito engajada na querela da graça e muito sensível sobre essa questão.

A escamoteação da crítica da liberdade de indiferença nos Princípios ocorre, além disso, segundo Gilson, em função das circunstâncias particulares em que Descartes se encontrava, circunstâncias essas que se ligavam à publicação do livro de Gibieuf, De libertate, em 1630 (Gilson 7, p.321). Nesse mesmo ano, Descartes, tendo exposto a Mersenne suas reflexões sobre a liberdade divina, toma conhecimento da aparição do livro de Gibieuf que acabara de ser publicado. Em outubro de 1631 Descartes lê esse livro e demonstra prazer nessa leitura; as idéias de Gibieuf o satisfazem. Naquele ano, a querela que esse livro iria provocar ainda não havia começado; é o momento em que os jesuítas vão a Roma para tentar condená-lo, mas o livro ainda não é conhecido pelo grande público. Descartes deixa de se corresponder com Mersenne sobre a questão da liberdade e, de uma maneira geral, parece espaçar suas correspondências a tal ponto que, durante o período que vai do fim de 1631 a janeiro de 1637, encontramos apenas quatorze cartas a Mersenne, cartas essas consagradas às discussões científicas ou à condenação de Galileu em 1634, que preocupava Descartes. O ano de 1637 marca uma retomada de Descartes da sua correspondência com Mersenne, mas chegamos em 1640, data da redação definitiva das Meditações, sem que ele tenha escrito nada sobre a liberdade humana. O Discurso do Método apenas toca na questão da liberdade sem que Descartes tome algum partido. Em 1640, data da

redação das Meditações, Descartes ainda está ligado ao livro de Gibieuf, livro pelo qual ele confessa uma profunda estima. Gilson chama a atenção para o fato de que entre 1641 e 1644, isto é, no intervalo que separa as Meditações dos Princípios, um fato novo se produz: por via de evolução o tomismo acabava por culminar no jansenismo. O ano de 1640 é o ano em que aparece o Augustinus de Jansenius, em que ele acusa os jesuítas de pelagianismo e de semipelagianismo. Diante dessa acusação os jesuítas não tardam em combater o jansenismo.

Como observa Gilson, entre 1641 e 1644 a mudança que toma a controvérsia da graça é cada vez mais desfavorável para o jansenismo. Os tomistas e oratorianos também manifestavam alguma inquietude. Eles temiam que os jesuítas, vendo a ocasião propícia para comprometer todos os seus adversários, tomassem uns pelos outros – jansenistas, tomistas e oratorianos. Assim, em sua análise Gilson mostra que, depois da publicação das Meditações, o sentido e a orientação de certas doutrinas haviam mudado, os jesuítas triunfavam no momento da redação dos Princípios, e a doutrina de Molina, durante muito tempo suspeita, era agora a única que não era evidentemente jansenista. O tomismo não tinha mais como se defender de Molina, mas ele se esforçava para não ser confundido com o jansenismo. Gibieuf era um dos mais seriamente comprometidos. Gilson defende a tese de que nos Princípios Descartes abandona a posição da Quarta Meditação ao tomar conhecimento da controvérsia jansenista e verificar que a sua doutrina coincidia com a daquela escola, o que o tornaria suspeito aos jesuítas (Gilson 7, p. 373).

2.2. a posição de F. alquié

Essa mesma posição de uma evolução entre as Meditações e os Princípios na teoria cartesiana da liberdade será mais tarde defendida

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por Alquié, embora sob um ponto de vista diferente. Enquanto Gilson considera que a razão da mudança na teoria cartesiana da liberdade diz respeito a uma atitude oportunista de Descartes em tentar ganhar o apoio dos jesuítas para poder difundir a sua filosofia nas escolas jesuíticas, Alquié considera que essa mudança diz respeito a um maior reconhecimento de Descartes do problema moral. Segundo ele, nos Princípios a reflexão sobre a liberdade se torna moral, o problema da responsabilidade aparece e a indiferença entendida como poder de escolha aparece como sinônimo de liberdade. De acordo com Alquié, nesse texto, haveria uma insistência por parte de Descartes da noção de mérito e a introdução da possibilidade de escolhermos o mal e o falso mesmo em presença do bem e da verdade (Alquié 1, p. 287).

Temos assim ao menos dois grandes comentadores e estudiosos da filosofia cartesiana que defendem a tese de uma evolução entre as Meditações e os Princípios. Vejamos agora o que dizem aqueles que defendem a tese de uma não-evolução. Dentre os defensores de uma não-evolução podemos citar alguns autores tais como J.-M. Beyssade e M. Gueroult entre outros, mas neste artigo analisaremos somente as posições de J. Laporte e A. Kenny, que nos parecem mais esclarecedoras para o problema que nos propomos analisar.

2.3 a posição de J. Laporte

Segundo Laporte, o problema da liberdade nos Princípios é introduzido da mesma maneira que na Quarta Meditação, em relação ao erro e para mostrar que Deus não pode ser a causa dos nossos erros. Segundo ele, a argumentação segue a mesma ordem das Meditações. Descartes mostra que o erro reside no juízo e que o juízo depende do concurso de duas faculdades: o entendimento que percebe e a vontade que consente.

“Ora, para julgar requer-se certamente o entendimento, porquanto nada podemos julgar de uma coisa que de nenhum modo percebemos. Mas, também se requer a vontade, para que o assentimento seja concedido à coisa de algum modo percebida” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51).

Porém, a vontade é mais extensa do que o entendimento:

“E certamente a percepção do entendimento não se estende senão às poucas coisas que lhe são oferecidas e é sempre muito limitada. A vontade, porém, pode de algum modo ser dita infinita” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXV, 52).

A vontade é infinita na medida em que só depende dela querer:

“Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível, isso também convém à sua natureza; e é em certo sentido, uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade, isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o autor de suas ações e por elas merecendo louvor” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53).

Há, portanto, desproporção entre o entendimento e a vontade. E o erro ocorre porque não é necessário para darmos o nosso consentimento, isto é, para fazermos um juízo, que tenhamos um conhecimento inteiro e perfeito, mas basta termos algum conhecimento, mesmo que ele seja obscuro e confuso:

“Não se requer, porém (ao menos para julgar de um modo qualquer), uma íntegra e omnímoda percepção da coisa, pois podemos assentir a muitas coisas que não conhecemos

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senão de maneira muito obscura e confusa” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51).

Erramos quando não temos um conhecimento certo sobre aquilo que julgamos:

“Quando, porém, percebemos algo, é manifesto que não nos enganamos, desde que absolutamente nada afirmemos ou neguemos dele. Do mesmo modo, tampouco nos enganamos, quando afirmamos ou negamos só aquilo que clara e distintamente percebemos dever ser assim afirmado ou negado. Mas só [nos enganamos] quando (como sói acontecer), ainda que não percebamos algo corretamente, não obstante julgamos sobre isso” (Descartes 4, VIII, 17; Descartes 6, XXXIII, 51).

Se a percepção obscura e confusa determinasse por ela mesma o assentimento, o erro seria inevitável e Deus, autor de nossa natureza, não poderia ser justificado. É preciso então que diante de uma percepção obscura e confusa possamos dar nosso consentimento, mas que possamos também refutá-lo. Isso é justamente o que ocorre na experiência da dúvida: “experimentávamos, com efeito, existir em nós essa liberdade [que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas” (Descartes 4, VIII, 19; Descartes 6, XXXIX, 55). Mas, com a experiência da dúvida, aprendemos também que há coisas de que não podemos duvidar, a saber, aquelas – das quais a primeira é o cogito – que percebemos clara e distintamente. Diante da evidência atual somos levados a crer em virtude de uma inclinação que é irresistível: “Todas as vezes que percebemos algo claramente lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, 21, VIII;

Descartes Descartes6, XLIII, 59). Para Laporte, a liberdade é antes de tudo aquilo que nos torna dignos de louvor ou vitupério, e temos ou não temos mérito em agir porque somos mestres ou autores de nossas ações e porque não somos nem determinados nem constrangidos por nenhum princípio externo (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53). Segundo o autor, a liberdade nos Princípios, tal como nas Meditações, é essencialmente a faculdade de se decidir por si mesmo, mas, acidentalmente, ela se acompanha de indiferença ou de indeterminação em relação a tudo o que não é claramente conhecido (Laporte 9, p. 128). Quanto à caracterização da indiferença negativa como o mais baixo grau de liberdade que não se encontra explicitamente nos Princípios, Laporte argumenta que podemos encontrar expressões, equivalentes ao que diz Descartes na Quarta Meditação, que mostram que a indiferença é a fonte do erro e que o erro é um defeito no uso da nossa liberdade (ver artigos XXXIII, XXXIV e XXXIX citados anteriormente). Assim, para Laporte não há uma mudança conceitual entre os Princípios e as Meditações.

2.4. a posição de a. Kenny

Para Kenny os Princípios confirmam a doutrina encontrada nas Meditações (Kenny 8, p.132-159). Mas ele chama a atenção para o fato de que, se lermos o artigo XXXVII dos Princípios sem atenção, podemos ter a impressão de que Descartes mudou de idéia sobre a liberdade. Pois na última frase desse artigo a liberdade caracterizada como poder dos contrários parece permanecer no assentimento às idéias claras e distintas: “Pela mesma razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar a verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente que o fazemos, do que se não pudéssemos deixar de abraçá-la” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53). Contudo, Kenny afirma que essa leitura é apenas

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aparente e superficial, uma vez que a impossibilidade de se suspender o juízo diante de uma idéia clara e distinta é explicitamente afirmada no artigo LXIII: “todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, VIII, 21; Descartes 6, XLIII, 59). Desta forma, Kenny, tal como Laporte, defende a tese de que a doutrina das Meditações a respeito do problema da liberdade se mantém intacta nos Princípios.

Considerações finais

Na segunda parte deste artigo, apresentamos duas linhas interpretativas sobre a teoria cartesiana da liberdade: a primeira concernente aos defensores da tese de uma evolução entre as Meditações e os Princípios, tais como Gilson e Alquié, a segunda concernente aos defensores de uma não-evolução, tais como Laporte e Kenny. Em relação à interpretação proposta por Gilson, acreditamos que os elementos externos ao sistema cartesiano, que ele utiliza para defender a tese de uma evolução, tais como o interesse de Descartes em ver aprovada a sua filosofia nos meios teológicos e a mudança de direção tomada pela controvérsia da graça, são inconsistentes com o texto; assim como a afirmação de Alquié, de que a tese da irresistibilidade diante da evidência, afirmada nas Meditações, passaria a ser excluída dos Princípios, o que nos legitimaria a falar de uma evolução. Pois, se por um lado, a crítica da liberdade de indiferença (no sentido negativo) é mantida nos Princípios tal como nas Meditações, como demonstra o artigo XXXIX – “experimentávamos, com efeito, existir em nós essa liberdade [que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas” –, o que vai contra a posição de Gilson; por outro lado, a tese da irresistibilidade diante da

evidência presente nas Meditações se mantém intacta nos Princípios, como podemos conferir no artigo LXIII – “todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, IX, II, 25. Descartes 5, III, 116) –, o que vai contra a posição de Alquié. Não há a nosso ver nenhuma mudança conceitual da parte de Descartes em relação à teoria da liberdade humana entre as Meditações e os Princípios, como defendem Gilson e Alquié. A interpretação de Laporte, que segue passo a passo os artigos concernentes à teoria da liberdade nos Princípios, de modo a mostrar que eles estão em coerência com o que é dito na Quarta Meditação, é extremamente enriquecedora e mostra que em ambos os textos Descartes diz a mesma coisa sobre a liberdade. A interpretação de Kenny segue a mesma linha da interpretação de Laporte e, embora reconheça que uma leitura apressada do artigo XXXVII possa nos levar a pensar numa mudança no pensamento cartesiano, não afirma que há de fato uma mudança, mas, ao contrário, acaba por reconhecer que uma tal leitura seria aparente e superficial, uma vez que ele afirma que a teoria cartesiana, tal como é desenvolvida nas Meditações, se mantém intacta nos Princípios. De acordo com o que foi dito, temos os seguintes resultados:

- Em 1644, na versão latina dos Princípios, o “poder dos contrários” é reconhecido como um aspecto de perfeição no homem e como condição de seu mérito, e, sem negar o que havia sido dito em 1641, na versão latina das Meditações Metafísicas, a respeito da definição essencial de liberdade, Descartes acrescenta que seu exercício permanece excluído dos casos em que a evidência é presente.

- Em 1647, na versão francesa dos Princípios, Descartes retoma a terminologia de 1641 e afirma que a essência da liberdade não inclui o exercício do poder de escolha entre contrários.

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tHE CaRtESIaN CoNCEPt oF FREEDom IN PhilosoPhical PrinciPlEs

abstract: The aim of this article is offering a solution to two different problems in the Cartesian theory of freedom, both of which are developed in the Philosophical Principles. The first of them deals with the contrast between the Latin and the French version of the Principles regarding the concept of Freedom. The second refers to the controversy in the secondary literature in which the Cartesian theory of freedom developed in the Principles would be different from that exposed in the Metaphysical Meditations. Behind this question is the classic problem of correlating what seem to be two distinct concepts of freedom: freedom as freewill and freedom as spontaneity. With this in mind, we will also try to respond precisely how the relationship between these two concepts of freedom exposed in the Principles should be understood.Keywords: Descartes, Freedom, Freewill, Spontaneity, Will.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. ALQUIÉ, Ferdinand. “La liberté humaine”. In : ______. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes. Paris: PUF, 1991. cap. 14, p. 280-299.

2. BEYSSADE, Michelle. “Descartes’s Doctrine of Freedom: Differences between the French and Latin Texts of the Fourth Meditation”. In: COTTINGHAM, John (Org.). Reason, Will, and Sensations: Studies in Descartes’s Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 191-206.

3. ______. “Des Principia aux Principes: Variations Sur la Liberté”. In: PRINCIPIA PHILOSOPHIAE (1644-1994), CONVEGNO PER IL 350 ANNIVERSARIO DELLA PUBLICAZIONE DELL’OPERA, 1994, Parigi. Atti... Napoli: Instituto Italiano Per Gli Studi Filosofici, 1996. p. 37-51.

4. DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes. Ed. par C. Adam et P. Tannery. Paris: Vrin, 1982. 12 v.

5. ______. Oeuvres Philosophiques. Ed. par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v.6. ______. Princípios da Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antonio de

Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.7. GILSON, Étienne. La Liberté chez Descartes et la théologie. Paris: Alcan, 1913.

8. KENNY, Anthony. “Descartes on the will”. In: COTTINGHAM, John (Org.). Descartes. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 132-159.

9. LAPORTE, Jean. “La liberté selon Descartes”. Revue de Métaphysique et Morale, Paris, v. 44, p. 101-164, 1937.

NotaS:

1. Para citação da versão latina dos Princípios da Filosofia utilizaremos a tradução brasileira de Guido Antônio de Almeida, Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos André Gleizer e Ulysses Pinheiro, que se encontra em DESCARTES. Princípios da Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. As notas bibliográficas remetem sempre para duas edições, a edição padrão de Adam e Tannery e a edição brasileira. 2. Para citação da versão francesa dos Princípios da Filosofia faremos uma tradução livre da edição em língua francesa DESCARTES, René. Oeuvres Philosophiques. Ed. par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v. Neste caso, as notas bibliográficas remetem sempre para duas edições, a edição padrão de Adam e Tannery e a edição de Alquié.

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IMAGENS E ANALOGIAS DO CORPO E DA MENTE NA POLíTICA DE SPINOZA

Alexandre Arbex valadares*

Resumo: O presente artigo propõe estudar algumas possibilidades interpretativas suscitadas pela analogia com que Spinoza busca ilustrar, a partir da imagem do corpo humano, a estrutura de composição do corpo político. Começando por discutir a dinâmica de produção de corpos na Natureza, o texto desenvolve uma análise da contradição entre duas teses, presentes na obra de Spinoza – uma, na sua ontologia, e outra, na política –, que se formulam nos termos da analogia do corpo humano com o corpo político; em seguida, essa analogia desdobra-se em uma comparação entre a mente humana e o que se poderia denominar uma “mente” do corpo político, a partir da distinção entre os dois níveis de constituição do político – a cidade (civitas) e o Estado (imperio); por fim, propõe-se uma interpretação do processo de produção de ideias e representações na vida política à luz da teoria althusseriana da ideologia. Palavras-chave: Spinoza, política, corpo, imaginação, ideologia.

1.A analogia entre corpo humano e corpo político é um lugar-comum

da teoria política moderna, e denota a influência, nesta última, das concepções organicistas ou atomistas de mundo. Mais que mero recurso retórico, que, aludindo a uma imagem-síntese, permite atalhar as dificuldades inerentes a uma explicação rigorosa do processo de constituição e funcionamento da vida social, a comparação confere evidência a dois princípios importantes do pensamento político pós-Maquiavel. O primeiro diz respeito à unidade do Estado, à sua integralidade ou ao seu caráter absoluto; o segundo concerne a algo que se poderia chamar identidade entre o todo e suas

*Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

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partes. Tal princípio permeia a tese contratualista do Estado fundado por homens, do Estado-instituição, que, reproduzindo em maior escala a concepção ideal do homem livre e racional, vincula o poder do soberano à sua vontade. A mesma ideia de identidade subjaz às interpretações relativas às condições de legitimidade do poder político, tanto nas teorias do pacto social, que consideram legítimo o poder absoluto emanado da vontade das partes, quanto nas teorias em que a legitimidade assume sentido realista, como em Maquiavel e Spinoza, e não se distingue do conjunto de relações de poder, ou de potência, que sustentam, no presente, certa autoridade ou instituição. Nesse caso, é dito legítimo o poder cuja constituição está de acordo com a natureza humana, não tal como a representam os moralistas, mas tal como ela se dá a conhecer na história e na experiência, isto é, marcada pelas paixões, pela imaginação e pelo conflito. Desse ponto de vista, a legitimidade não decorre propriamente do grau de adequação do poder político ao modo de ser dos homens, mas é, antes, por conformar-se à natureza destes que esse poder tem condições de se conservar; um poder político é legítimo na medida em que existe.

Que Spinoza se inspire em Maquiavel ao lançar mão da analogia entre corpo humano e Estado, o texto mesmo do seu Tratado político (TP, X, 1) nos autoriza a afirmar. Ele se refere, nessa passagem, ao trecho dos Discursos sobre a década de Tito Lívio em que Maquiavel compara um Estado sob risco de dissolução a um corpo doente, cuja situação tende a agravar-se caso não lhe seja aplicado o remédio ou tratamento clínico necessário. A imagem chama a atenção para um fato político essencial: nada ameaça mais a estabilidade de um Estado que seus inimigos internos. O Tratado teológico-político (TTP) faz advertência semelhante ao assinalar os riscos que uma guerra de religião pode acarretar ao Estado, mas esse perigo endógeno não é representado apenas pelos conflitos civis ou pelas conspirações nascidas no seio da aristocracia; a atuação de um legislador

inepto e mesmo a opressão empreendida por um tirano contra os cidadãos são males igualmente nocivos à saúde do organismo político. No TP, Spinoza evoca a ideia de unidade ou integridade desse organismo, tanto para designar, como união de corpos, o processo de composição da potência coletiva que constitui a cidade (II, 15), quanto para descrever, como união de mentes, o direito da cidade fundado na razão (III, 7). Esse “corpo”, a cuja imagem Spinoza assimila a política, é, pois, dotado de uma “mente”, mas, em contradição com a concepção de natureza humana descrita na Ética (E), em especial com o princípio da independência dos atributos pensamento e extensão, essa mente parece exercer, pela vontade, algum poder sobre o corpo: o parágrafo 5 do capítulo III di-lo expressamente, e a definição, ainda que metafórica, do rei como “mente do Estado” no parágrafo 19 do capítulo VI reforça essa correspondência.

Essas passagens, claro está, têm sentido meramente ilustrativo: seus argumentos apelam à imaginação, e estão longe de sugerir um recuo de Spinoza em relação à sua crítica ao livre-arbítrio, abordada na Ética. Mas as aparentes incongruências entre sua política e sua ontologia não se restringem a esse tópico: o enunciado da proposição 4 da parte III da Ética, segundo o qual nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior, contradiz formalmente a tese, presente no TTP e no TP, que situa no interior do corpo político a principal fonte dos males que podem erodir a estabilidade do Estado. Tais contradições são irrespondíveis? Elas atestam, de fato, certo grau de autonomia da política de Spinoza em relação à sua ontologia, esta a desdobrar-se no conhecimento de segundo gênero, das noções comuns ou das ideias verdadeiras, enquanto aquela se vai instalar plenamente, ao lado da religião, no domínio das paixões e da imaginação, da experiência e da história? Seria desaconselhável, como tarefa filosófica, buscar a todo custo uma norma de conciliação que harmonizasse na coerência do sistema essas disparidades. Mas a correlação

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entre a imagem do corpo político como corpo humano, evocada nos dois Tratados, e a ideia de corpo, apresentada na Ética, permite propor uma interpretação da filosofia spinozista que, em consonância o parecer de Negri (4), identifica na ontologia de Spinoza a sua verdadeira política. É este o objetivo do presente estudo.

2.A definição de “corpo humano”, para Spinoza, não se distingue

da definição de “corpo” em geral. Ela abrange dois aspectos principais: a individualidade complexa e a tendência à autoconservação. Um corpo é um indivíduo composto de outros corpos – ou de outros indivíduos – que se mantêm unidos entre si segundo uma relação determinada; essa relação, ou esse regime de composição, singulariza o corpo como um modo de existir, e ele existe na medida em que conserva ou reproduz essa relação. Noutros termos, essa relação é expressão da essência singular desse indivíduo, e singulariza-o, não como somatório de partes, mas como um regime ou uma lei determinada de composição que lhe é própria. A individualidade de um corpo não é definida pelas partes que o compõem: estas podem modificar-se em cada atualidade em virtude da interação com outros corpos. O que distingue um corpo como indivíduo é o modo ou a relação segundo a qual as partes – ou outros corpos – entram na sua composição. A rigor, a tendência mesma de autoconservação do corpo envolve a regeneração de suas partes e o intercâmbio permanente com o exterior, isto é, com outros corpos que o afetam. Um alimento, por exemplo, agrega partes a um corpo, sem entretanto modificar sua relação essencial: essas partes compõem-se com essa relação, ou, o que vem a ser o mesmo, conservam-na. Pode ocorrer, porém, que a afecção provocada por um corpo sobre outro não seja favorável à conservação deste; nesse caso, não há agregação de partes nem composição, mas, ao contrário, um processo de decomposição pelo qual as

partes do corpo são determinadas, pela ação dos corpos exteriores, a entrar em outras relações diversas daquela que caracteriza o modo próprio de composição do corpo afetado e o distingue como um indivíduo singular.

Ora, se a essência de um indivíduo é a lei de composição ou a relação característica sob a qual outros corpos ou partes, mantendo-se unidos entre si, distinguem-no como corpo complexo existente, então nada que decorra dessa essência pode destruir o indivíduo. A essência de uma coisa existente não se diferencia da sua tendência de autoconservação. É este o sentido da afirmação de Spinoza segundo a qual nenhuma coisa pode ser destruída, senão em virtude de uma causa exterior (E, III, 4). A noção de “exterior”, a que Spinoza alude nesse caso, não diz propriamente respeito ao que é externo ao corpo, ao que está “fora”: os choques dos corpos exteriores, percebidos sob a forma de afecções ou modificações em nosso corpo, podem, de acordo com as condições em que se dão esses choques, decompor as nossas relações características, ou seja, as relações em que nossa essência se expressa como um modo de existir ou como um modo da extensão, mas, ao mesmo tempo, a conservação desse corpo depende da regeneração constante de suas partes constitutivas, de um intercâmbio ininterrupto com os outros corpos. Dizer que uma coisa favorece a conservação das relações de movimento de um corpo (E, IV, 39) é o mesmo que dizer que ela aumenta a capacidade desse corpo de ser afetado por outros corpos (E, IV, 38), isto é, de abranger um maior número de partes (ou de corpos menos complexos) sob sua relação característica, ou, dito de outra maneira, de estender a sua lei de composição própria sobre outros corpos. Por essa razão, um corpo é tanto mais apto a conservar-se quanto mais é capaz de ser afetado por outros corpos, e não na medida em que é capaz de se defender deles ou evitá-los. Do exterior, do mundo da extensão, vem todo bem e todo mal: a conservação e a destruição de um corpo explicam-se pelas condições em que ele se encontra ou se choca com outros corpos.

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Um corpo está em comunicação permanente com os corpos exteriores, ou, mais exatamente, as partes ditas internas de um corpo estão em contato contínuo com partes externas a esse corpo, integradas às relações características de outros corpos. A rigor, como observa Deleuze (2002), a distinção entre “exterior” e “interior” não é real: o exterior é um interior projetado, e o interior é um exterior introjetado. Supor semelhante separação significaria considerar a extensão um continente de corpos, isolados uns dos outros por espaços vazios. Mas a extensão, para Spinoza, é um atributo infinito de Deus, ou da Natureza, que se apresenta sempre e já na forma de uma modificação infinita e imediata – o movimento, ou as relações de movimento e repouso –, e, a partir desta, na forma de uma modificação infinita e mediata – a figura do universo em sua totalidade (facies totius universi) (Carta 64 a Schuller). Essa figura total do universo é, por assim dizer, a imagem da permanência, da eternidade, do universo como totalidade material; ela se refere ao que, a despeito das ilimitadas variações que os corpos sofrem, dos desdobramentos sucessivos das relações de movimento e repouso, segue sendo constante no universo: o fato de ele se apresentar como existência material infinita. Os corpos são modos finitos da extensão, efeitos materiais das relações de movimento e repouso, que exprimem as infinitas variações singulares, e de duração limitada, da facies totius universi. É o jogo das relações de movimento e repouso que determina a duração do corpo: sua conservação ou seu aniquilamento advém das relações com os outros copos, das relações através das quais suas partes entram em contato com as partes de outros corpos, ora compondo-se com elas segundo a sua relação característica – que define o modo como sua essência se exprime na extensão –, ora compondo-se com elas segundo outras relações que não a que o caracteriza, de sorte que sua essência deixa de ter expressão na extensão, ou seja, de sorte que tal corpo decompõe-se, deixa de existir.

A extensão, como o pensamento, é um dos infinitos atributos de Deus, isto é, Deus pode ser concebido como coisa pensante e como coisa extensa. O atributo tem um sentido adjetivo em relação à Substância, que é Deus ou a Natureza. O modo infinito mediato da extensão – a facies totius universi – concerne ao mundo material infinito, designa o que se poderia chamar o “corpo” de Deus. Quanto ao atributo pensamento, também constitutivo da natureza divina infinita, pode-se supor, além de um modo infinito imediato – o intelecto infinito de Deus –, um modo infinito mediato – a ideia infinita de Deus, que, por analogia, se assimilaria à “mente” de Deus. A mente divina seria, portanto, a ideia infinita que abrange todas as ideias das modificações da natureza de Deus. Contudo, se as relações de movimento e repouso no atributo extensão dão existência aos corpos singulares ou a suprimem, mas segundo a dinâmica de produção da existência eterna e infinita de Deus como coisa material, as ideias se afirmam todas simultaneamente na ideia infinita de Deus; a rigor, quer um modo singular exista ou não exista, é possível formar uma ideia a seu respeito: ele é pensável, sua ideia compõe-se com as outras ideias no atributo pensamento, assim como as essências de todas as coisas se compõem na essência eterna e infinita de Deus. Se, na extensão, a dinâmica de produção e destruição dos corpos singulares inspira a imagem da finitude, isto se deve a que os homens são determinados a perceber seus próprios corpos como entes materiais distintos, separados dos outros corpos, ante os quais exerce sua potência de existir e de agir, cujos limites são assinalados pela potência de existir e de agir de todos esses outros corpos.

Essa dinâmica concorrencial que, do ponto de vista dos modos singulares da extensão – dos homens –, parece presidir aos choques e encontros dos corpos, não explica o processo de produção da existência eterna e infinita de Deus. Do ponto de vista da totalidade – de Deus ou da Natureza –, não há decomposição: dos choques e encontros dos corpos

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resulta sempre a afirmação de uma coisa como existente, isto é, um modo de ser que exprime, em grau limitado, finito, o ser ou essência eterna e infinita de Deus, concebido pelo atributo extensão. Os choques ou encontros entre os corpos, decorrentes das relações de movimento e repouso, constituem o modo infinito imediato pelo qual a existência de Deus ou da Natureza é produzida eterna e infinitamente. O processo de constituição da realidade é um processo de produção de existências singulares por composição de corpos, determinado pela ordem das relações de movimento e repouso. A infinita variedade dos modos de ser ou essências singulares que ganham atualidade ou passam à existência a partir dessas relações explica a heterogeneidade do real; por outro lado, uma vez que cada corpo exprime, em certo grau, a essência ou o ser de Deus concebido pelo atributo extensão, isto é, uma vez que cada corpo, ao mesmo tempo que afirma sua essência como existente, afirma a materialidade do real, este se apresenta sempre sob a unidade homogênea e permanente da facies totius universi.

No entanto, as leis de produção dos modos no atributo extensão, ou, para dizer o mesmo, as leis de movimento que determinam que as partes extensas se agreguem ou se desagreguem sob a forma deste ou daquele conjunto corporal, podem, em seus efeitos, ser destrutivas para um corpo em particular. Da perspectiva da totalidade, de Deus, não há decomposição: todos os efeitos que se desdobram na extensão afirmam a essência de Deus sob este atributo, exprimem-na em grau determinado, e integram a facies totius universi; quando um corpo em particular é destruído, isto significa que, na ordem de produção da existência de Deus ou da Natureza, se deram causas que excluem a existência singular desse corpo, ou que os demais corpos que, nesse processo causal, entraram em contato com ele infligiram-lhe modificações que alteraram o regime de composição de suas partes, e estas passaram a agregar-se sob outras relações estranhas à essência desse corpo; noutros termos, embora a essência desse corpo não se perca com a

sua aniquilação, isto é, embora a essência siga sendo concebível sob outros atributos, ela não se concebe mais sob o atributo extensão, não se exprime mais sob a forma de um modo desse atributo. A identidade entre a ordem de produção das ideias e a ordem de produção das coisas, tal como enunciada na proposição 7 da parte II da Ética, não justifica a suposição, demasiado citada entre comentadores, de um paralelismo entre o atributo pensamento e o atributo extensão: por “coisas”, deve-se entender “essências”, e não “corpos”. A ordem de produção destes, conquanto não possa ser distinta da ordem de produção das ideias – uma vez que exprime sempre a mesma essência de Deus –, não a espelha nem a reproduz em ato: a duração indefinida da existência dos corpos não se confunde com a eternidade das ideias adequadas ou das ideias das essências, que podem referir-se a coisas existentes ou não existentes na extensão.

Como é preciso compreender, à luz das considerações precedentes, a proposição segundo a qual uma coisa não pode ser destruída senão por uma causa exterior? Que um corpo seja destruído, que as suas partes sejam determinadas a entrar em outras relações em virtude da ação de outros corpos, é algo que a simples experiência permite perceber: um corpo dotado de uma propriedade corrosiva, por exemplo, pode extinguir outro cuja natureza não seja capaz de assimilar seus efeitos; um corpo, que nos convém sob uma dada relação (combinado a outros corpos ou em certas quantidades, como o remédio), pode tornar-se-nos letal sob uma relação diferente (o veneno). Mas não é disso que trata a proposição. As coisas são destruídas pelo que é exterior, não propriamente ao seu corpo – porque sua conservação depende do intercâmbio com corpos externos –, mas à essência delas. A afirmação da essência de uma coisa entra em contradição com a afirmação da essência de outra coisa: suas definições se limitam ou se excluem na mente. Mas, se uma ideia limita outra ideia, e um corpo limita outro corpo (E, I, def.2), a contradição lógica no pensamento se exprime

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como conflito físico na extensão (MATHERON, 3); e, da mesma maneira que, por um lado, a afirmação de uma essência, no pensamento, dá-se como ideia verdadeira ou adequada, como modo de pensar que persevera no seu ser, na sua verdade intrínseca, a afirmação dessa essência como coisa existente na extensão, como corpo, toma a forma de uma tendência de autoconservação.

Um corpo individual é sempre complexo: ele é um composto de corpos, unidos, como suas partes constitutivas, por uma relação característica segundo a qual elas comunicam entre si certa quantidade de movimento, ou seja, certa potência; o que torna singular um indivíduo corporal é, não o número de suas partes – que é sempre infinito –, mas a relação específica que as agrupa e que, exprimindo a essência desse corpo, exprime a potência que afirma essa essência como coisa existente na extensão, na materialidade. A potência do corpo é uma potência causal, cujos efeitos concordam com sua essência, e, nessa medida, favorecem a tendência de autoconservação do corpo; noutras palavras, os efeitos que se seguem da potência de um corpo, de sua ação, ainda que possam diferenciar-se quanto aos objetos sobre os quais se aplicam, têm em comum o fato de concorrerem para a conservação desse corpo, não porque a dinâmica interna deste seja animada por uma teleologia, por um finalismo, mas porque esses efeitos se explicam sempre pela essência singular desse corpo e afirmam, na extensão, a relação característica ou a identidade dominante que exprime essa essência. Quer isto dizer que o corpo reproduz indefinidamente as condições de sua própria atividade, isto é, a relação característica, estrutural, que o singulariza como um composto de corpos, investido, por assim dizer, de certo quantum de movimento, de uma potência que afirma, em face de outros corpos, a tendência de autoconservação desse corpo singular. Bove (2) encontrará aí o fundamento da ideia segundo a qual os homens, na condição de modos finitos de ser cuja essência se exprime simultaneamente como modo de

existir – corpo – e como modo de pensar – mente –, são definidos por uma dinâmica interna de resistência.

A mente é uma ideia do corpo, um modo de perceber o corpo. Mas mente e corpo não produzem efeitos um sobre o outro; os efeitos que limitam a maneira pela qual uma essência singular se afirma, ou seja, que definem a potência com que tal essência se expressa como realidade, se encadeiam de maneira independente e distinta em cada atributo. Cumpre assinalar que essa correlação não presume uma duplicidade de efeitos; pensamento e extensão são atributos de uma substância única, assim como a mente e o corpo são apenas modos através dos quais se exprime uma mesma essência singular, modos de a conceber em relação a outras realidades, outras essências singulares. Quanto ao atributo pensamento, o efeito de uma ideia dada sobre nossa mente (ela própria uma ideia) pode ou determiná-la a produzir uma ideia adequada ou verdadeira, caso em que a ideia dada favorece a potência de pensar da mente e lhe permite afirmar a existência do nosso corpo como expressão de nossa essência adequadamente concebida; ou pode, por outro lado, determiná-la a gerar uma ideia inadequada ou falsa, caso em que a ideia dada limita a potência de pensar da mente e a coage a afirmar, não a existência de nosso corpo, mas a de um corpo externo, cuja imagem é ligada à ideia dada. Quanto à extensão, o efeito de outro corpo sobre nosso corpo pode ou favorecer nossa tendência de autoconservação e a potência que a realiza, caso em que suas partes compõem-se com as partes que nos constituem, sob a relação característica que as mantêm unidas e na qual se exprime nossa essência singular; ou pode limitar essa tendência de autoconservação, caso em que suas partes não se compõem com as nossas e, assim, tornam instável a relação característica sob a qual elas se mantêm unidas, a ponto de desfigurá-la de forma que tal relação perde em alguma medida sua identidade com nossa essência, e esta já não pode afirmar-se, com a mesma

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potência, como coisa existente na extensão. Mas, se está claro que, na extensão, a contradição ou o efeito de

afecções contrárias à nossa essência (que se exprime na extensão, vale repetir, como tendência de autoconservação) se apresenta como ameaça à integridade do corpo, é possível todavia afirmar que o corpo é sujeito de contrários, um “lugar de guerra”, de conflito? Como observa Bove (2, p.13), os corpos podem ser sujeitos de contrários, ou seja, podem sofrer afecções ou modificações que se opõem à sua tendência de autoconservação, desde que essa contradição não atinja a “a identidade dominante do corpo na relação de suas partes”. A dinâmica interna do corpo caracterizar-se-ia, então, como um esforço de resistência, que buscaria expulsar de si a contradição, deslocando-a indefinidamente, e empregando, nesse esforço, sua potência, determinada pelas condições atuais em que o problema da autoconservação se lhe apresenta. O corpo não é, entretanto, um substrato onde se desenrola o conflito; tal conflito constitui a determinação atual desse corpo, e prescreve, na extensão, o espaço e a duração da expressão de sua potência. Um corpo é um complexo de relações de força, de potências que se afirmam umas sobre as outras, ao mesmo tempo que se conjugam em uma potência mais complexa, que afirma a existência desse corpo como uma indivíduo singular (composto).

O princípio de resistência identificado por Bove na tendência de autoconservação do corpo faz supor, entretanto, que a perseverança indefinida do indivíduo na existência tem, no conflito, a sua dinâmica fundamental. Pode-se, decerto, afirmar que o corpo é sujeito de contrários, na medida em que é sujeito a afecções que limitam sua tendência de autoconservação, isto é, na medida em que sofre modificações cujas causas não se explicam pela sua essência e cujos efeitos, por essa razão, não favorecem a potência que afirma essa essência como existente. Contudo, o indivíduo corporal não persevera na existência em reação a outros corpos

que se lhe opõem, isto é, não realiza a sua autoconservação pela destruição de tudo quanto não se submeta à lei de sua essência singular. A exposição constante do indivíduo a afecções contrárias traduz uma condição própria dos modos finitos: sua passividade. E tal condição não engendra um poder de resistência. Os indivíduos, de fato, afirmam sua potência sempre no âmbito das relações sob as quais entram em contato uns com os outros, e sua potência é limitada pela estrutura mesma dessas relações, mas a expressão dela não é uma forma de reação pela qual ela responderia a uma causa externa: ela é sempre expressão da essência singular do indivíduo, e se explica, não pela sua “pessoalidade”, pela sua existência, mas, antes, pela participação do indivíduo no processo de produção da Natureza, pelo grau determinado com que a potência de Deus ou da Natureza produz, a partir dessa essência singular, os efeitos que dela se seguem necessariamente. Isto significa que a potência de agir dos indivíduos não atende ao objetivo de conservar seu corpo, como se ele pudesse captar a potência de Deus ou da Natureza para fazê-la servir a essa finalidade; a conservação do corpo é um efeito da afirmação de uma essência singular, que se exprime como modo da extensão, mas essa essência não envolve a existência do corpo. Se, por certo, não há distinção real entre uma coisa e sua tendência a perseverar no ser, é porque sua essência concorda com sua potência, e ambas são apenas expressões ou modos de ser da essência de Deus e da potência de Deus. A potência singular individual é antes uma potência causal que uma potência de autoconservação: a conservação de um indivíduo explica-se, pois, menos por sua capacidade de resistência que pela sua capacidade de produção de efeitos necessários do ponto de vista da essência de Deus, não em termos absolutos, mas na medida em que ela se exprime na forma de sua essência singular.

Ora, dizer que o indivíduo é uma potência causal não é senão afirmar que sua potência se integra à ordem de produção do ser, à ordem

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de produção das coisas, como consta na proposição 7 da parte II da Ética. Essa produção, no atributo extensão, se realiza por composição de corpos, segundo relações de movimento e repouso. Por isso, a tendência de autoconservação dos corpos ou a dinâmica interna dos indivíduos corporais encontra sua razão fundamental, não em um princípio de resistência, mas em um princípio de composição, de união; essa diferença pode ser entendida, do ponto de vista dos homens, como uma regra de prevalência do indivíduo, complexo de corpos em constante modificação e definido por uma relação característica, sobre o sujeito, “lugar” de contrários, em cujo interior uma potência de permanência, de afirmação do “mesmo”, reage em face do “outro”, das afecções ou modificações que a limitam.

3.A concepção spinozista de indivíduo envolve três elementos

essenciais: a) a complexidade, isto é, sua natureza composta; b) a relação característica que conserva essa composição, ainda que suas partes constitutivas se modifiquem de momento a momento; e c) a tendência à autoconservação, que não se distingue do grau de potência que a realiza, ou seja, da força pela qual o indivíduo persevera no seu ser. Nos indivíduos humanos, na medida em que são constituídos de um corpo e uma mente, essa tendência à autoconservação exprime-se, por um lado, por meio de uma prática material, da busca pelas coisas úteis e necessárias à existência, ou das coisas que se compõem com a natureza do indivíduo e cujas partes se integram, preservando-a, à sua relação característica, e, por outro lado, por uma reflexão ou imagem consciente através da qual o indivíduo percebe essa prática e afirma, à luz dela, a continuação de sua existência. Esse conceito de indivíduo, abrangendo corpo e mente, deve repercutir sobre a analogia traçada por Spinoza entre o ser do homem e o ser da política. Noutros termos, a sociedade pode ser compreendida

como um indivíduo extraordinariamente complexo, definido por uma tendência de conservação, de reprodução do modo de ser desse indivíduo, ou de reprodução das relações constitutivas que o caracterizam, e por uma imagem ou representação mental, igualmente complexa, dessas relações e das práticas que delas decorrem.

As relações constitutivas de um corpo político, como as relações dos corpos em geral, são relações de potências ou de forças que se afirmam umas em face das outras, mas das quais resulta, ao mesmo tempo, certo regime de composição, que as agrega em uma potência tão complexa quanto a união das partes que se conjugam na sua constituição e que responde pela conservação do corpo político em sua totalidade. Está visto que uma coisa só pode ser destruída por uma causa exterior, e que, se é possível afirmar que o corpo é sujeito de contrários ou lugar de modificações que se opõem à conservação de sua existência, é apenas na medida em que elas não pertencem à sua essência ou não se encadeiam, nele, segundo a relação característica em que a essência desse corpo se exprime. Esta dicotomia entre o conflito de potências das partes constitutivas de um corpo e a unidade de afirmação da potência através da qual esse corpo, como indivíduo complexo, se conserva é, do ponto de vista da política, o fundamento da ideia segundo a qual o maior perigo à estabilidade de um Estado reside em seu interior: é a guerra civil. Hobbes, a propósito, sustenta que o medo à guerra generalizada é o que compele os homens a aderir ao pacto e a obedecer à vontade do soberano, renunciando ao direito natural de se conduzir segundo a sua própria vontade. Isto significa, em primeiro lugar, que o estado civil seria um estado de trégua, não propriamente de suspensão do conflito que está na sua gênese, mas, ao contrário, de reprodução das condições de determinação desse mesmo conflito e, com elas, da necessidade de reiterar, eventualmente com mais rigor, a adesão dos cidadãos ao pacto. A guerra civil, assimilada ao estado de natureza,

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corresponderia, por assim dizer, à ideia latente da qual o estado civil seria o conteúdo manifesto. Além disso, o pacto hobbesiano supõe que esse conflito fundamental só pode reduzir-se a uma unidade a partir de uma extrema polarização: a transferência de todos os direitos naturais a uma autoridade cujo mandato é fazer cumprir o pacto social, isto é, a trégua, e que, para tanto, é investida de um poder absoluto.

Para Spinoza, o poder constituinte da vida civil não se dissocia da própria potência coletiva resultante da composição das potências singulares de seus cidadãos. A multidão, nome que Spinoza dá a essa composição, não subentende, está claro, uma conciliação perfeita em uma unidade formada por simples agregação de partes: ela engloba, na sua individualidade complexa, os conflitos existentes nas relações entre suas partes, isto é, nas relações entre os cidadãos. Mas, se a constituição da vida civil envolve algum grau de contradição, ou, noutros termos, se também a multidão pode ser “sujeito de contrários”, por outro lado somente ela atua como poder constituinte precisamente porque tal contradição não pertence à sua essência nem se exprime nas relações que a caracterizam – a multidão é, com efeito, segundo observa Bove (2, p.12), atravessada de conflitos e contradições, e, contudo, ela afirma, com a potência coletiva que a define, uma unidade política. A questão está, pois, em explicar o processo de constituição dessa potência ou, mais pontualmente, em compreender por que os homens se tornam cidadãos, por que eles constituem uma cidade.

A teoria spinozista do direito natural permite-nos lançar uma primeira luz sobre essa indagação. Spinoza não faz distinção entre o direito natural e a potência singular de um indivíduo: o direito deste sobre a natureza vai até onde vai sua potência de agir, e tudo quanto um indivíduo faz em virtude de sua potência singular pertence ao seu direito natural. Isto significa que o direito natural de um indivíduo não atende a nenhum outro critério de legitimidade senão à sua própria potência, e esta coincide

perfeitamente com a existência atual desse indivíduo. Cada indivíduo existe tanto quanto está em sua potência afirmar-se como existente. A potência singular é sempre em ato; o direito natural não é uma faculdade de agir, mas uma ação necessariamente determinada, uma necessidade em ação. Potência singular e direito natural são apenas a expressão de uma essência singular que persevera no seu ser, ou, do ponto de vista do corpo, a expressão da tendência de autoconservação da existência. Todos os homens buscam conservar-se, e recorrem a todos os meios que estão em sua potência para tanto. Spinoza (E, III, 9) afirma que todos os homens são conscientes disso, o que não quer dizer senão que eles percebem uma conexão imaginária ou real entre, de um lado, seu modo de agir ou operar no mundo, e, de outro, o desejo de permanecer em vida.

Essa tendência pela qual os homens são determinados a perseverar no ser opera neles em dois níveis diferentes.

Em um primeiro nível, o da imaginação, essa tendência toma a forma específica de um desejo, que se dirige a um objeto específico, representado por este mesmo desejo como algo bom ou útil porque causa um acréscimo de potência, sentido sob a forma de uma paixão, um afeto passivo porque se prende à imagem do objeto externo, representado como sua causa. Assim, um homem imagina que deseja uma coisa não porque ela lhe é boa ou útil sob dada relação, mas porque ela é boa ou útil em si mesma, ou melhor, porque ela é um Bem, uma vez que a alegria passiva que ele sente ao imaginá-la sob sua posse parece depender da natureza própria dessa coisa. Essa percepção invertida constitui, com um só movimento, a forma da consciência, ou seja, a demarcação entre um sujeito e um objeto, e o conteúdo moral desta consciência, que representa as imagens das coisas como valores. Mas essa percepção imaginária ou inadequada não é rigorosamente falsa: embora os homens ignorem as causas verdadeiras em virtude das quais tendem a buscar tais coisas, eles percebem, simplesmente

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porque são determinados a desejá-las e se alegram com sua posse, que elas favorecem a sua potência de perseverar no ser. Na ignorância das causas, o desejo e os afetos alegres são guias seguros na busca das coisas que lhes são úteis, e a imaginação que os induz a considerar tais coisas como causas do desejo ou da alegria representa essa busca como uma teleologia ou como um finalismo da ação, orientado por ideias valorativas ou juízos morais.

Mas, em um segundo nível, o da razão, essa tendência de perseverar no ser envolve uma ideia verdadeira da utilidade recíproca dos homens, ou, o que vem a ser o mesmo, uma noção comum da utilidade. Essa noção comum não tem outro ponto de partida que os afetos passivos e as ideias inadequadas da imaginação; contudo, nesse segundo nível, já não se trata de ideias de objetos externos, de ideias de imagens, e sim de ideias de relações. Um homem não considera como intrinsecamente boas ou úteis as coisas para as quais tende; elas lhe parecem boas ou úteis na medida em que ele entretêm com elas uma relação favorável à sua potência, isto é, na medida em que compreende essa relação como uma composição entre a sua natureza singular e a natureza das coisas. Ora, essa composição favorável só pode ocorrer se as relações que um homem estabelece com as coisas que o afetam se realizam por meio das propriedades comuns de seus corpos. É certo que, no nível da imaginação, ainda que um homem suponha que sua alegria derive do fato de ele – sujeito – ter entrado na posse do objeto desejado, o que ocorre não é senão uma relação de composição entre a sua e a natureza desse objeto, a partir de suas respectivas propriedades comuns. Mesmo que, na imaginação, a causa dessa alegria seja percebida por uma ideia inadequada, no plano das essências, do real, o que a explica é uma composição de naturezas; noutros termos, os homens podem estabelecer composições favoráveis à sua potência – e são determinados a isso pelo desejo –, pondo-se em relação com outros corpos a partir de suas propriedades comuns, sem necessariamente terem uma ideia dessa relação, isto é, uma noção comum.

Uma noção comum se produz quando é dado ao homem apreender as causas verdadeiras de uma afecção ou de uma modificação percebida no seu corpo. Spinoza (E, I, 3) afirma que apenas as coisas que têm propriedades em comum com nossa natureza podem causar modificações em nós. Isto significa que os efeitos produzidos em nós pela ação de outros corpos envolvem sempre as propriedades comuns existentes entre nossa natureza e a desses corpos, e, por conseguinte, as ideias dessas modificações ou afecções, pelas quais elas são percebidas, envolvem essa relação. Esse conteúdo verdadeiro, porém, não se nos apresenta, por assim dizer, em estado puro, como uma ideia verdadeira dada. Ele reveste, quase sempre, uma forma falsa ou inadequada: ao percebermos uma afecção, somos determinados a considerar a imagem do corpo externo que nos afeta, uma imagem parcial, na medida em que é delimitada pela parte do nosso corpo que é afetada; e, assim, acabamos por confundir essa imagem parcial com a natureza do corpo externo, julgando-a boa ou má segundo essa afecção nos cause alegria ou tristeza, favoreça ou diminua a nossa potência singular. Podemos formar noções comuns apenas quando nos é possível encadear essas ideias de imagens ou ideias de afecções, não na ordem acidental em que as percebemos na sucessão dos choques e encontros de corpos na natureza, mas na ordem necessária de sua produção, isto é, quando nos é possível relacionar uma ideia de afecção e outra ideia de afecção a partir das propriedades comuns que nelas se afirmam e por meio das quais o intelecto pode transigir de uma à outra. Uma vez que a noção comum é a ideia da relação entre as propriedades comuns de nosso corpo e do corpo que nos afeta, propriedades estas que explicam por que esse corpo pode ser causa de modificações em nós, é apenas em presença de uma afecção que favoreça nossa potência de agir, ou seja, de uma relação de composição, que temos condições – necessárias, mas não suficientes – de apreender a noção comum; do ponto de vista dos afetos, apenas em estado de alegria

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podemos efetuar essa passagem. O processo de constituição da sociedade política – ou da cidade

– sintetiza esses elementos conceituais, e permite reintroduzir a questão do direito natural. Spinoza, como foi visto, considera esse direito idêntico à potência singular dos indivíduos, a potência pela qual eles agem, com todos os meios de que dispõem, para conservar sua existência. No entanto, tomada em si mesma, e em oposição à potência de todas as coisas exteriores, essa potência singular em que consiste o direito natural individual tem uma existência puramente hipotética; Spinoza chamá-la-á no TP (II, 15) de simples abstração. A potência singular de um homem é infinitamente ultrapassada pela potência que sobre ele exercem os corpos externos.

Os homens são partes da Natureza ou modos de ser de Deus que não existem por si mesmos, isto é, modos de ser cuja essência não envolve a existência; em outros termos, nenhum homem é de constituição corporal ou mental tão complexa que possa, contando apenas com sua potência, produzir todas as coisas de que necessita para seguir vivendo. Por isso, a tendência mesma que determina os homens a buscar na Natureza as coisas que são boas ou úteis à conservação de sua existência determina-os a compor sua potência singular com outras potências singulares, a formar, pois, uma potência mais complexa, por meio da qual possam produzir coletivamente as coisas de que têm individualmente necessidade. Quanto mais propriedades comuns houver entre a natureza de um homem e a natureza de outros corpos, tanto mais lhe é possível estabelecer com eles relações de composição que favoreçam a sua potência singular; assim, uma coisa é tanto mais útil ou boa para um homem quanto mais propriedades comuns houver entre suas naturezas singulares, quanto mais essas forem semelhantes entre si. Ora, na Natureza, a coisa que mais tem propriedades comuns com a natureza singular de um homem é a natureza singular de outro homem; isto quer dizer que, quando um homem se empenha na produção

de efeitos que favoreçam a afirmação de sua potência ou a conservação de seu ser, esses efeitos são igualmente úteis ou bons a todos os corpos de natureza semelhante à sua, ou seja, a todos os homens; por isso, na Natureza, nada é mais útil ao homem que outro homem (E, IV, 35).

Este enunciado traduz a ideia de utilidade recíproca dos homens, descrita no quinto capítulo do TTP como um processo de divisão social do trabalho, que se explica, por um lado, pela tendência em virtude da qual os homens são determinados a buscar as coisas necessárias à conservação de sua existência, e, por outro, pela impossibilidade de empreenderem essa busca contando somente com sua própria potência singular. Os homens, diz Spinoza, precisam alimentar-se, vestir-se, proteger-se contra as intempéries, alegrar o espírito e muitas outras coisas cujas exigências excedem os limites de sua potência. Eles não podem ser suficientemente hábeis em todas as tarefas, não dispõem de tempo para executá-las, e, ademais, em boa parte de suas vidas, na infância, na doença ou na velhice – que nada mais são que afecções ou modificações impostas ao seu corpo pela ação dos outros corpos existentes na Natureza –, têm reduzida a sua capacidade de agir, a ponto de dependerem, com frequência, da potência de outros homens para obter as coisas de que necessitam. Ao mesmo tempo, porém, como as naturezas singulares dos homens têm numerosas propriedades comuns entre si, o alimento que um homem cultiva e o nutre, o agasalho que fabrica e o protege, a casa que constrói e o abriga, ou a música que ele compõe e o enternece, são coisas úteis à conservação da existência de todos os indivíduos cujas naturezas são-lhe semelhantes. Essa utilidade recíproca explica por que o modo pelo qual os homens tendem a conservar sua existência determina-os a estabelecer relações uns com os outros, a compor entre si suas respectivas potências singulares, de maneira que, através da potência coletiva assim constituída, possam produzir as coisas necessárias às suas existências individuais. As relações

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de composição de potências singulares são, pois, relações de produção, e a potência coletiva que se forma a partir destas – a potência da multidão – é o próprio fundamento constituinte da vida política, da cidade. É apenas na vida política, na constituição de relações de composição de potências em um processo de produção comum das coisas necessárias à existência, que os homens podem realizar o seu direito natural de autoconservação; a natureza dos homens é, pois, política (TP, II, 15).

4.Ao afirmar que nada é mais útil ao homem que outro homem,

Spinoza promove a desalienação da idéia de Bem: ele a desloca de um objeto, representado pela imaginação como bom em si mesmo, como portador intrínseco de um valor, para situá-la em uma relação. Mas esta diferença indica também por que uma mesma coisa pode ser-nos útil ou nociva (E, IV, 30): sua utilidade é acidental, ou seja, não decorre de uma propriedade inerente à natureza da coisa, mas se explica pela relação sob a qual ela nos afeta e pelo modo sob o qual essa relação é percebida por nós. Spinoza afirma que os homens, quando dominados pelas paixões, são inconstantes e variáveis, a ponto de não ser possível dizer que suas naturezas concordam entre si: eles podem, com efeito, opor-se uns aos outros (Et., IV, 32) e perceber suas relações mútuas, não sob a ideia verdadeira de sua utilidade recíproca, mas sob a imagem de um antagonismo que os representa uns para os outros como causas de afecções que limitam sua potência de agir e os afetam de tristeza. Se, por exemplo, os homens aspiram a um mesmo bem, representando-o como causa de alegria, é certo que suas naturezas estão de acordo, e o desejo que cada um sente de possuir esse bem é alimentado pelo desejo similar do outro. Eles passam a diferir em natureza, no entanto, se, imaginando que esse bem só pode ser apropriado por um deles em detrimento do outro, são afetados de paixões divergentes, na medida em

que um o possui e o outro o perde. Então, imaginando cada qual que a alegria de um é causa da tristeza do outro, ou seja, que a apropriação por um deles desse bem desejável exclui o outro de sua posse, tais homens odiar-se-ão, e desejarão destruir-se (E, IV, 34 esc.).

Contudo, essa ideia de utilidade recíproca não é auto-evidente. Em suas relações, os homens não se governam orientados pela noção comum de que dependem uns dos outros, e não é raro, como a história e a experiência atestam, que grandes rivalidades, nascidas das paixões, se enraízem entre eles. O conflito marca a vida política precisamente porque a imaginação e as paixões constituem a forma imediata e universal pela qual os homens percebem o mundo em que vivem e se relacionam uns com os outros. Tal percepção não é unívoca nem invariável: ela é atualizada constantemente, em cada indivíduo, a partir das modificações ou afecções de seu corpo. As afecções do corpo são percebidas, na mente, sob a forma de ideias de afecções. As ideias de afecções são ideias das imagens das partes do corpo afetadas e, portanto, representam, na mente, o estado atual do corpo, sua existência em ato. Mas as ideias de afecções não são causadas pelas afecções: como a natureza de um homem, sua essência singular ou seu modo de ser, exprime-se, simultaneamente, como um modo de existir na extensão – o corpo – e um modo de pensar – a mente –, cada modificação ocorrida na natureza desse homem exprime-se como uma modificação do corpo e uma modificação correspondente da mente. Noutros termos, seguindo-se uma afecção no corpo, é impossível que não se siga uma ideia dessa afecção na mente, através das qual essa afecção é percebida ou representada. Essa afecção pode convir ou não à essência singular de um homem, compor-se ou não com ela, favorecer ou limitar a sua potência: em caso positivo, ele perceberá essa variação sob a forma de um afeto de alegria; em caso negativo, sob a forma de um afeto de tristeza.

Os afetos são sintomas da variação da potência singular, e esta

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aumenta ou diminui segundo as afecções sofridas pelo corpo concordem ou não com sua natureza, isto é, componham-se ou não com ela a partir de suas propriedades comuns. Um afeto, entretanto, é dirigido ao objeto externo que é causa da afecção e cuja imagem é representada na ideia dessa afecção. Nesse nível de percepção – o da imaginação e das paixões – duas ilusões se infiltram: em primeiro lugar, a afecção, que é sempre parcial, circunscrita à forma da relação sob a qual um corpo nos afeta, é inadequadamente apreendida como uma expressão da natureza ou essência desse corpo, e a ideia dessa afecção é interpretada como a representação dessa essência; em segundo lugar, o afeto de alegria ou de tristeza que nos advém com essa afecção, e que não indica senão a variação de nossa potência, é pensado como um signo de uma característica intrínseca do corpo que nos afeta, um signo a partir do qual julgamo-lo bom, se nos causa alegria, ou mau, se nos causa tristeza. Ora, todos os homens tendem a perseverar no seu ser, a conservar a sua existência, e têm consciência disso (Et., III, 9), porque percebem e afirmam o seu corpo como seu. Eles não têm da natureza das coisas um conhecimento prévio que os permita identificar quais entre elas favorecem sua potência singular; no entanto, por meio dos afetos de alegria e tristeza, têm um conhecimento espontâneo e imediato das coisas que lhes convêm ou não, e é à luz das paixões e da imaginação, ou seja, da imagem de tais coisas, que eles se orientam no seu esforço de autoconservação. Afirmar, como Spinoza, que eles têm consciência disso significa apenas dizer que esse esforço toma, na prática, uma direção específica, fá-los voltar-se a um ou outro objeto que, na sucessão das relações, dão conteúdo aos seus desejos, isto é, são representados, na imaginação, como coisas boas, como bens cuja posse causa alegria. Eles julgam boas as coisas porque as desejam, e não o contrário, e esse julgamento substitui neles conhecimento das causas. Com isso, seu modo de conduzir-se no mundo torna-se essencialmente finalista, na medida em que se resume a

um empreendimento de apropriação de um objeto visto como um bem em si mesmo, e individualista, porque é governado por julgamentos parciais, por ideias que não põem em evidência as propriedades comuns das coisas, as relações, mas apenas os critérios de valor derivados das paixões que particularizam, na forma de uma consciência subjetiva, a percepção que os homens têm acerca de seu modo de operar no mundo.

É porque todos os homens buscam conservar sua existência singular e têm consciência disso, e, por outro lado, porque essa busca é, no mais das vezes, presidida pela imaginação e pelas paixões, que a composição de potências na produção coletiva das existências individuais, ou seja, a divisão social do trabalho, que define, para Spinoza, a cidade, acaba por ser dissimulada sob a aparência de um individualismo competitivo, que evoca a imagem hobbesiana da guerra de todos contra todos. A vida política transcorre no elemento da imaginação e das paixões, e por isso é lugar de conflito, ainda que seu fundamento – o fundamento da cidade – seja a potência coletiva dos homens que a compõem e que se constitui a partir das suas relações recíprocas. Esta é, a rigor, a razão de ser da política, mas as rivalidades nascidas entre homens por efeito do desacordo de suas paixões pode comprometer o funcionamento essencial da cidade: uma guerra civil interrompe os processos sociais de produção que geram a oferta dos bens de que os homens precisam para subsistir, e põe fim à segurança em nome da qual a vida política se organiza. Como, então, conferir estabilidade à convivência comum dos homens ante a instabilidade das paixões?

É impossível suprimir as paixões nos homens: eles são passionais em virtude da constituição de sua natureza. No primeiro capítulo do TP, Spinoza rejeitará a perspectiva moral da teoria política, que identifica nas paixões uma imperfeição da natureza dos homens, e adota, para remediar esse mal, um viés normativo, centrado no controle do corpo. Em lugar disso, ele afirmará que as paixões são modos de ser que pertencem à

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natureza dos homens e se explicam por causas determinadas. A história e a experiência demonstram que, em todas as épocas, os homens viveram em sociedade e sob a influência das paixões, e que essas duas dimensões só podem harmonizar-se se eles são capazes de estatuir um regime ou regra de vida comum que, em vez de confiar ao arbítrio de cada um, invariavelmente suscetível à força dos afetos, o dever de conduzir-se em paz nas suas relações com outros homens, ganhasse uma institucionalidade tal que os determinasse, contra ou a favor de sua vontade, a agir sempre em conformidade com o bem comum. A estrutura das relações comuns de produção, isto é, o campo da composição de potências singulares em uma potência coletiva, é, pois, complementada por uma superestrutura de instituições, que diz respeito às leis, aos costumes, aos aparelhos de poder, em suma, à forma de governo segundo a qual a potência coletiva dos cidadãos – a soberania – se distribui na dinâmica das relações que eles são determinados a estabelecer entre si.

No TP, Spinoza designa essas duas dimensões por dois conceitos distintos. A cidade (civitas) concerne ao nível das relações e é o próprio fundamento constituinte da vida política; sobre esta base, constitui-se o nível das instituições, o Estado (imperio). É nesse segundo nível que se coloca o problema das formas de governo como o problema da conciliação das paixões e dos desejos dos homens em um regime ou regra de vida comum que os torne tão livres quanto possível, ou seja, que favoreça o máximo possível seu direito natural, a potência singular pela qual afirmam a singularidade de sua essência. A afirmação da essência singular, que caracteriza essa liberdade, não se dá senão na política, e abrange os dois modos sob os quais essa essência se exprime: o corpo – e, portanto, o acesso às coisas necessárias à conservação da existência, a autonomia de deslocamento, de associação etc. – e a mente – a liberdade de pensamento, de expressão etc.

Spinoza afirma que, se os homens se conduzissem antes pela razão que pelas paixões, se a natureza que faz deles seres passionais permitisse-lhes igualmente ter uma compreensão adequada de suas paixões, seriam dispensáveis os meios que, no Estado, os constrangem ou os persuadem a obedecer às leis. A figura mesma da autoridade seria prescindível. Os homens comporiam uns com os outros suas potências, engajando-se nas relações de produção que constituem a cidade, determinados pela noção comum de sua utilidade recíproca, sem se deixarem inimizar por efeito das paixões. Nesse caso, dispostos livremente a viver sob essa regra comum de vida, eles não precisariam submeter suas relações recíprocas ao mecanismo institucional e normativo de um Estado. Contudo, como observa Bove (2, p.12), a multidão é atravessada de conflitos e contradições, e a unidade de sua afirmação sempre está em questão. O projeto político do TP, com efeito, não é pôr em discussão as formas de governo, elegendo a melhor entre elas, mas, antes, oferecer um conjunto de princípios práticos que permitam organizar, sob um regime monárquico, aristocrático ou democrático, uma sociedade de cidadãos livres. Com efeito, trata-se de constituir um regime comum de vida que permita aos homens exercer sua potência singular com máxima intensidade, o que significa promover entre eles o máximo possível de relações comuns, de modo a fazer-lhes presente a ideia de sua utilidade recíproca. Noutras palavras, um Estado onde os cidadãos são livres é aquele onde a distribuição da soberania favorece o mais possível a expressão dos direitos naturais individuais, e, nessa medida, expressa o mais possível o seu fundamento constituinte imanente: a potência coletiva da multidão.

É à luz dessa concepção que Spinoza considerará a democracia o mais natural dos regimes. O paradoxo da obra política de Spinoza consiste em que a democracia, forma de governo para a qual ele não indicará um receituário específico, é precisamente a única sobre a qual o

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TP verdadeiramente fala: seu objetivo aí não é outro senão dotar as formas monárquica e aristocrática de um conteúdo radicalmente democrático. A vida política é então pensada a partir de seu fundamento constituinte, isto é, a cidade, a dinâmica produtiva das relações que compõem o corpo político; e as formas de governo, conjunto das instituições que formam o Estado, são interpretadas, não como determinantes da vida política, mas, antes, como imagens dela.

Essa distinção permite trazer novamente à baila a comparação entre o homem-indivíduo e a sociedade-indivíduo. A cidade corresponderia, nos termos dessa analogia, ao corpo político, abrangendo o conjunto das relações comuns de produção em que se compõem umas com as outras as potências singulares dos cidadãos. A conhecida sentença de Marx, segundo a qual uma sociedade não é uma soma de indivíduos, sintetiza essa formulação: com efeito, a sociedade não se define pelos homens que fazem parte dela, mas pelas relações sob as quais essas partes, os homens, se mantêm unidas entre si. Essas relações estruturam a cidade como um corpo e exprimem a essência desse corpo político; isto significa que a conservação desse corpo político depende da reprodução de suas relações constitutivas. A dinâmica de produção dessas relações é, pois, uma dinâmica de reprodução das condições em que essas relações se dão, uma dinâmica de conservação de seu equilíbrio interno. Se, de acordo com Spinoza, uma coisa só pode ser verdadeiramente conhecida pela sua causa, então o que define uma sociedade-indivíduo, um corpo político, é seu modo de produção social, o modo através do qual essa sociedade conserva sua existência, reproduzindo a forma de suas relações características – as relações sociais –, ao mesmo tempo que, por meio delas, produz as coisas ou os bens de que têm necessidade para “regenerar continuamente”(E, II, post. 4), como o corpo humano, as suas partes constitutivas.

De outra parte, o Estado, entendido como o conjunto das instituições,

pode ser assimilado à mente da cidade. Ele consubstancia o modo pelo qual a cidade – ou o conjunto de relações que a constitui – se percebe. O Estado é, por assim dizer, a consciência da cidade, uma ideia de sua imagem, sua representação inadequada, que, em lugar de exprimir a essência da cidade – a soberania da potência coletiva da multidão –, confunde-a com seus símbolos – como, por exemplo, a pessoa do soberano e sua autoridade, a letra da lei, a tradição etc. –, reconhecendo nestes, e nas formas de governo que com eles se identificam, o fundamento constituinte da vida política. A inversão operada por esse reconhecimento é similar à que a imaginação individual engendra com respeito à mente e ao corpo, supondo residir naquela, e não neste, a razão de ser dos estados da individualidade. O Estado é, como a mente, um modo de afirmar o corpo político como existente, e de afirmá-lo tal como ele é percebido. Os “órgãos” dessa percepção são as instituições sociais, os seus “aparelhos ideológicos”, segundo a célebre conceituação de Althusser (1). Pode-se dizer, com esse mesmo autor, que as ideias produzidas por essas instituições são ideias materiais, isto é, são ideias que correspondem a uma prática material determinada e através das quais essa prática material é percebida e afirmada.

A relação entre a imagem ou representação da figura do Estado, afirmada no plano das instituições, e a imagem ou representação sob a qual os homens consideram a si mesmos, pode ser ilustrada pela demarcação que Althusser traça entre as noções de indivíduo e sujeito e pela forma através da qual este prevalece sobre aquele no processo político. Como os homens, indivíduos, são convertidos em sujeitos? Althusser propõe que essa passagem se realiza pela via da ideologia: a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. A ideologia é produzida e reproduzida por “aparelhos” do Estado, por instituições – a família, a escola, a igreja, a fábrica etc. – cuja função política é reafirmar um determinado modo de perceber as relações entre os homens, ou, antes, tornar reiteradamente

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presente uma determinada percepção que os homens têm de sua prática. Tais aparelhos não funcionam à maneira de máquinas de propaganda ou de manipulação: as ideias que se produzem a partir deles são, efetivamente, as ideias que correspondem à prática social, são representações que fazem sentido com a materialidade dessa prática. A ideologia, compreendida como conjunto de ideias ou representações sob as quais os homens percebem suas relações, nasce com essas mesmas relações, não como efeito delas, mas como o modo pelo qual os homens tomam consciência delas, isto é, as reconhecem e se reconhecem nelas. É esse reconhecimento que transforma os indivíduos, cujas relações constituem a cidade, em sujeitos de um Estado.

5.Mas como essa transformação pode ser descrita a partir da teoria

política spinozista? A vida política, segundo Spinoza, é um processo de organização

das relações entre os indivíduos, de composição de suas potências singulares ou direitos naturais em um processo de produção comum. Como visto, a tendência pela qual um homem é determinado a perseverar no ser, buscando o que convém à sua natureza ou essência singular, somente se pode efetivar na cidade, na vida política, através das relações que ele estabelece com outros indivíduos de natureza semelhante à sua e que, por isso, podem compor com ele uma potência coletiva mais eficaz na busca ou produção das coisas de que cada um, em particular, tem necessidade. A vida política é, pois, o lugar onde os homens podem entreter uns com os outros relações favoráveis às suas respectivas potências singulares e, portanto, ao seu esforço de autoconservação. Dessa perspectiva, a vida política apresenta-se, então, como um modo de organização dos “encontros” entre os indivíduos, dos encontros dos corpos e das mentes

individuais, em oposição aos “choques” aleatórios e imprevisíveis com que, na solidão hipotética do estado de natureza, um homem se defrontaria a todo instante. Na cidade, as relações dos homens se subordinam a um regime de regularidade: a sua produção é também reprodução das condições sob as quais produzem, e sua dinâmica interna de autoconservação é, ao mesmo tempo, um elemento constitutivo e dependente da dinâmica social de conservação do corpo político. Assim, uma vez que sua existência individual envolve, como sua causa, a existência da cidade, a tendência que determina os homens a produzir sua existência também os determina a reiterar as relações por meio das quais se engajam nessa produção – as próprias relações sociais.

Essas relações realizam-se, pois, sob a determinação da “essência” do corpo político que constituem, isto é, a forma característica das relações sociais em uma cidade exprime seu modo de ser, seu modo de produção. Isto significa que, na vida política, as relações comuns que os homens são determinados a estabelecer revestem determinada forma de acordo com o modo pelo qual essa sociedade existe e se reproduz, conservando essas mesmas relações constitutivas. Por isso, os homens, na vida política, pensam e operam dentro da lógica de conservação do corpo político: eles estão submetidos a certos tipos, e não outros, de afecções, e estas são percebidas por certos tipos, e não outros, de ideias de afecções na imaginação. Em virtude da contínua reiteração das relações através das quais o indivíduo pensa e opera, e das condições sob as quais essas relações se dão, o regime de reprodução social em que ele está inserido como “parte” tende a fazê-lo imaginar sua prática como uma sucessão estável. Os objetos – as afecções – apresentam-se-lhe constantemente sob as mesmas relações e seguem freqüentemente uma mesma ordem, de tal sorte que, por mais complexa que seja a dinâmica social, um indivíduo é capaz de reconhecer as coisas que o afetam e os efeitos que pode esperar delas. Essa previsibilidade permite-

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lhe supor que as coisas atendem a fins próprios, e, assim, ele pode colocar-se, em relação a elas, como sujeito, confundindo as afecções, derivadas de causas externas que determinam sua percepção dos outros corpos e do seu próprio corpo, com “objetos” acerca dos quais ele é capaz de formar uma percepção autodeterminada.

A percepção espontânea que os homens fazem acerca das coisas, cujas imagens lhes são recorrentemente presentes em virtude da regularidade das afecções, produz neles uma ideia reflexiva, isto é, uma ideia que tem por objeto a ideia de uma afecção, a ideia de uma imagem: assim, um corpo exterior modifica o corpo de um homem por meio de uma afecção, de uma imagem material; tal homem percebe a existência desse corpo exterior por uma ideia de sua imagem ou afecção, e, em um nível reflexivo, percebe como seu o corpo afetado e como sua a mente que forma dessa afecção uma ideia. A mente é uma ideia do corpo, uma ideia do conjunto de afecções que modificam o corpo em dada atualidade. Ela afirma, pela percepção dessas afecções, a existência do corpo, mas, no nível reflexivo, converte-se ela mesma em objeto de outra ideia, pela qual se percebe a si própria. A mente tem, pois, uma ideia de si mesma, uma consciência; na medida em que a mente é uma ideia do corpo e este é percebido por suas afecções, a mente existe como um conjunto de ideias de afecções que corresponde ao conjunto das partes afetadas do corpo. Como as ideias de afecções envolvem, sempre, uma imagem do corpo afetante e uma imagem do corpo afetado, o substrato comum a todas as ideias de afecções é a imagem desse corpo, e por isso a mente percebe-o como seu. O que reduz a variedade das ideias de afecções à unidade da consciência é a ideia que a mente é determinada a formar de si mesma, a capacidade da mente de vincular as representações das coisas percebidas a uma representação de si mesma, na medida em que as percebe. Essa percepção espontânea toma nela a forma de uma consciência subjetiva.

A imaginação, segundo Spinoza, é, em todos os homens, a percepção comum e espontânea das modificações produzidas por causas externas sobre seu modo de vida. Se, no estado de natureza, um homem viveria ao acaso de encontros, que fariam variar indefinidamente suas representações imaginárias de mundo, ele é, na vida política, submetido a um tal regime de previsibilidade que sua imaginação é determinada a revestir a forma de uma composição estável de representações, de idéias de afecções constantemente concertadas nas mesmas associações, cujos conteúdos informam sua visão de mundo. Desse modo, a imaginação individual tende a estabilizar-se na forma determinada de uma consciência subjetiva. As idéias de imaginação – idéias dos efeitos ou das imagens materiais das coisas que nos afetam – são o elemento constitutivo da consciência, e é precisamente neste teatro de formas que são plasmados, com aparência de criações espontâneas do espírito, os juízos e opiniões, os valores e, por conseguinte, as disposições de obediência e de reconhecimento de autoridade.

A consciência é a imaginação socialmente estruturada, modificada pela interpelação ideológica. O repertório estável das representações dos homens corresponde ao regime regular de suas práticas sociais, exprime a percepção dominante ou universal que eles têm acerca de tais práticas, e estas exprimem a forma dominante ou universal das relações sociais que eles estabelecem uns com os outros, cuja reprodução é efeito e condição da dinâmica de conservação do corpo político. Noutros termos, a consciência é a imaginação estruturada segundo a ideologia dominante (ou universal) correspondente à forma dominante (ou universal) das relações sociais que caracterizam o corpo político, que definem sua dinâmica imanente de conservação ou seu modo de produção.

A diferença entre “imaginação” e “consciência”, no plano individual, é análoga à diferença entre “multidão” e “povo”, no plano político, e remete à distinção conceitual, cunhada por Althusser (1), entre

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“indivíduo” e “sujeito”. A noção de “povo” designa sempre um sujeito político, que se define em relação a um Estado, tanto no sentido de “sujeição” – sujeito ao direito, isto é, à lei, à autoridade do Estado – quanto no sentido de “autonomia” – sujeito de direito, ou seja, sujeito coletivo cuja vontade faz o direito e legitima a autoridade do Estado. A multidão, conforme foi visto, é anterior, por definição, ao povo, assim como a cidade é anterior ao Estado. Ela não constitui um sujeito, segundo a acepção dada há pouco: ela é um indivíduo, definido por suas relações de produção, de composição de potências, e consiste, como potência coletiva assim constituída, no corpo político, no corpo da cidade. O Estado é, por assim dizer, uma superestrutura mental em relação a essa estrutura corporal: o conjunto de suas instituições diz respeito ao modo pelo qual as relações constitutivas desse corpo são percebidas, e abrange, na sua unidade, uma visão de mundo determinada pelos efeitos dessa percepção. É no nível do Estado – na esfera das instituições – que a multidão, indivíduo composto de indivíduos, se concebe como povo, sujeito composto de sujeitos; e é nesse mesmo nível que as imaginações individuais – e os juízos particulares acerca do bom e do útil – convergem em uma mesma forma de consciência subjetiva –, em um conjunto de valores morais universais.

A multidão, pois, é sempre sujeito no Estado? Sim, se considerarmos que ela se representa como povo, na medida em que sua potência coletiva – a soberania – é, no Estado, no âmbito de uma forma de governo definida, exercida como poder por uma autoridade. A multidão, está visto, engloba dominantes e dominados: todos são partes do corpo político. A separação ocorre no nível do Estado, isto é, no nível das instituições, segundo o lugar ou a função que cada cidadão desempenha nelas, e às quais corresponde um grau determinado de poder, uma parcela da potência da multidão. Spinoza não se ocupa de distinguir os variados mecanismos de legitimação dessa autoridade: quer tenha ela obtido anuência dos demais cidadãos para

ocupar essa posição, quer a ocupe em virtude de um direito hereditário, divino ou de guerra, o fato é que, dada a maneira pela qual a potência da multidão se distribui, como graus de poder, entre os cidadãos, aqueles que se apropriam de uma parcela maior dessa potência são aqueles que governam o Estado. O fundamento do poder político no Estado é a potência da multidão, e a legitimação desse poder reflete apenas o modo através do qual essa potência se distribui entre os cidadãos.

Esta distribuição de poder não resulta de um contrato social. Ela é, por assim dizer, conjuntural, uma vez que exprime a institucionalidade atual dada às relações que os cidadãos estabelecem entre si. Se, por um lado, a cidade, o corpo político, é o fundamento constituinte que atravessa todas as formas de organização da existência dos homens – porque os homens, conforme a história o demonstra, sempre viveram em sociedade, e, conforme sua natureza determina, não podem efetivar seu direito natural senão nas relações comuns com outros homens –, por outro lado a forma de governo sob a qual tais relações se institucionalizam não é perene, e a sua estabilidade no tempo depende da conservação da estrutura de relações a partir da qual ela se erigiu. Noutras palavras, para que uma forma de Estado siga existindo, é preciso que os homens que dele participam, ao mesmo tempo que se empenham na produção de efeitos bons ou úteis à conservação de suas existências singulares, sejam determinados a produzir efeitos bons ou úteis à conservação do Estado. No entanto, quando essa correspondência deixa de existir, isto é, quando os homens deixam de perceber, em uma dada forma de Estado, um elemento útil ou bom à conservação de suas existências singulares, eles podem buscar outras formas de estabelecer relações, de conjugar suas potências, dando ao corpo político uma outra composição. Nesse caso, pode-se dizer que a multidão se reapropria de sua potência coletiva, da soberania, e, a partir disso, refunda o Estado. Ela deixa de operar como sujeito, e passa a atuar como

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indivíduo. É essa inflexão que caracteriza o processo revolucionário, tal como Spinoza sugere no TP (III, 9).

Da mesma forma que o corpo humano, sob ação de afecções, pode ser “sujeito de contrários”, a unidade da multidão não exclui o conflito do corpo político. Em um, como em outro, a conservação da existência não diz respeito à ausência de modificações, à imobilidade – o equilíbrio dinâmico dos corpos depende da regeneração de suas partes constitutivas, assim como a estabilidade dos Estados pode requerer a realização de reformas em suas instituições –, mas concerne, antes, à preservação da estrutura característica das relações em que suas partes constitutivas se compõem. No corpo político, essas relações são as relações sociais de produção, e é da reprodução da estrutura característica das relações sociais que depende a conservação do Estado, entendido como forma de governo ou regime de distribuição, entre os cidadãos, da potência coletiva da multidão.

Dentro do Estado, a parcela de poder – político, econômico, simbólico – de cada cidadão é determinada por sua posição nessa distribuição, e não por sua potência singular isoladamente considerada. Por outro lado, uma vez que os homens tendem, por natureza, a buscar modos de composição de relações melhores e mais úteis à sua conservação, o Estado, ao dar institucionalidade às relações, estabiliza-as e as faz convergir para a reprodução da estrutura de relações que caracteriza a sua forma. Como os homens empreendem essa busca, guiados pelas paixões e pela imaginação, a conservação do Estado como conjunto de instituições passa pelos mesmos mecanismos imaginativos e passionais pelos quais os homens operam. Por isso, as instituições, que definem o espaço da prática social ao delinear o circuito através do qual se dão as relações, funcionam como grandes “corpos” dentro do corpo político, “corpos” que determinam por assim dizer o tipo de afecções a que os homens desse corpo político são sujeitos. São as ideias dessas “afecções políticas”, isto

é, a percepção espontânea de sua prática social, que informam o conteúdo da imaginação e das paixões dos homens. Por essa razão, se assegurar a estabilidade do Estado implica conter a multidão dentro de certos limites – afetivos, imaginativos –, as instituições que caracterizam essa forma de Estado tendem a incitar as paixões ou fazer circular as imagens que concorrem para a manutenção de sua estrutura de poder por meio da qual a potência da multidão se distribui entre os cidadãos.

Seria controverso sustentar que Spinoza defende, no TP, a saída revolucionária, visto que, em variadas passagens, ele define, como razão de ser do Estado, a garantia da paz e da segurança. Por outro lado, as diretrizes práticas de organização que Spinoza recomenda, no TP, aos Estados monárquico e aristocrático – a divisão de poderes, a criação de assembleias e conselhos de composição multitudinária e rotativa, a propriedade comum do solo etc. – não têm outro fim que, preservando os símbolos e aparências de cada uma, dotar essas formas de governo de uma institucionalidade democrática. A democracia, como Spinoza a concebe, é o mais natural dos regimes porque favorece em maior grau a realização do direito natural dos homens, na medida em que produz uma estrutura mais dinâmica e equânime de distribuição da potência coletiva da multidão. Permitindo aos cidadãos tomar parte nas deliberações políticas e assegurando-lhes a liberdade de pensamento e o acesso aos bens necessários à vida, ela favorece a busca de cada um deles por estratégias de composição de relações melhores e mais úteis. Embora, por essas mesmas razões, o regime democrático pareça mais suscetível à instabilidade, a liberdade de constituir relações, de conjugar suas potências em uma prática comum tende a tornar mais presente aos homens a ideia de sua utilidade recíproca. Se o corpo humano é tanto mais potente quanto maior sua capacidade de ser afetado e assimilar modificações (E, IV, 38), e se a mente se torna, por isso, tanto mais apta a perceber um grande número

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de coisas e formar uma ideia mais perfeita de seu estado, pode-se dizer que a potência coletiva do corpo político é tanto maior quanto mais as suas relações constitutivas favorecerem a afirmação dos direitos naturais individuais. Assim também, o Estado será tanto mais conforme à natureza dos homens (e por isso mais estável) na medida em que suas instituições favorecerem as paixões ou afetos que disponham os homens a perceber como coisa boa ou útil as suas próprias relações comuns.

ImaGES aND aNaLoGIES oF tHE boDy aND tHE mIND IN SPINoZa’S PoLItICS

abstract: This article proposes to study some interpretative possibilities raised by analogy of the image of the human body and the structure of the political body. Beginning by discussing the dynamics of production of bodies in nature, the text provides an analysis of the contradiction between two thesis presented in the work of Spinoza - one in his ontology, and another in politics -, which are formulated in terms of the analogy of human body with the political body . Then this analogy spreads in a comparison between the human mind and what might be called a “mind” of the political body, by discussing the two levels of politics - the city (civitas) and the State (imperio). Finally it is proposed an interpretation of the production process of ideas in political life in the light of Althusserian theory of ideology.Keywords: Spinoza, politics, body, imagination, ideology.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche).Positions. Paris: Les Éditions Sociales, 1976.

2. BOVE, Laurent. Introduction. In: SPINOZA, B. Traité Politique. Paris: LGF, 2002.

3. MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Minuit, 1988

4. NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem. São Paulo: Ed. 34, 1993.

5.. SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

6.. SPINOZA, Baruch. Tratado da reforma da inteligência. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

7.. SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político. Tradução e prefácio de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

8.. SPINOZA, Baruch. Tratado político. Lisboa: Editorial Estampa. 1977.

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IMAGINAÇÃO: ENTRE O MEDO E A LIBERDADE

Daniel C. Avila*

Resumo: Medo e esperança aparecem na história da filosofia como problemas situados na dimensão temporal da existência. Espinosa acompanha essa tradição, bem como o uso da filosofia como uma medicina animi, porém reserva para si algumas diferenças. Ressaltando o papel da imagem na constituição de medo e esperança, demarca a via pela qual estes dois afetos são necessariamente produzidos pela limitação da imaginação à duração dos corpos. No entanto, quando livre dos impedimentos à sua potência, a mente é capaz de ordenar e concatenar as afecções do corpo, considerando a si mesma sem relação ao corpo, sob uma nova perspectiva. O tratamento do problema do medo, portanto, não se localiza no tempo presente, mas sim na eternidade. Palavras-Chave: Benedictus de Espinosa, esperança, medo, imaginação, liberdade.

Mostre-me um homem que não é um escravo; um é escravo do sexo, outro do dinheiro, outro da ambição; todos são escravos da esperança ou do medo (Sêneca 4, Ep. 47, p. 95)

Em uma imagem poética que Sêneca emprega na carta V da correspondência mantida com Lucílio, esperança e medo marcham “juntas, como um prisioneiro e a escolta à qual se prendem suas algemas” (Sêneca 4, Ep. 5, p. 38). Mas ainda que a afinidade íntima entre esses afetos possa ser considerada fonte de temor a um aprendizado ético, o estóico prescreve

* Mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano - Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo.

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uma solução, tomando emprestado um escrito de Hecato: “’Deixe de ter esperança’, ele diz, ‘e você deixará de ter medo’” (idem).

Para o estóico romano, medo e esperança, assim como as outras paixões, seriam doenças das quais o homem deve ser curado. Mas como a medicina, enquanto técnica do bom funcionamento do corpo, não alcançasse em seu ofício tal empresa, à filosofia é feita a convocação a agir sob a forma de uma terapia, sob as vestes de uma medicina animi. O exame filosófico que apresenta Sêneca é que medo e esperança

pertencem a uma mente em suspense, a uma mente em estado de ansiedade por mirar sempre o futuro. Ambos são devidos principalmente à projeção de nossos pensamentos além de nós mesmos em lugar de nos adaptarmos ao presente. É assim que a previsão, a maior benção que foi dada à humanidade, é transformada em maldição. Animais selvagens fogem dos perigos que realmente vêem e, uma vez que tenham escapado, não mais se preocupam. Nós, entretanto, somos atormentados de maneira idêntica pelo que já aconteceu e o que irá acontecer. Um número de bênçãos fazem-nos mal, pois a memória traz de volta a agonia do medo enquanto a previsão a traz prematuramente. Ninguém confina sua tristeza ao presente (idem).

Sêneca demarca, portanto, o problema do medo e da esperança na dimensão temporal da existência. São paixões que afetam o homem em um descompasso cognitivo envolvido em conflitos com presente, que o assolam de tal maneira que ele pode apenas recorrer ao deslocamento dos seus mecanismos imaginários a instantes transcendentes, refugiando-se em outro tempo. Tal atividade patológica da imaginação torna possível que um medo futuro seja tão ameaçador quanto um já passado, e por isso ela deve ser o centro do tratamento. Pois, reduzida a potência de prever a esse

uso, o homem se depara com uma situação completamente desfavorável, até mesmo se comparado com os animais, sem encontrar em tempo algum qualquer paz. Por outro lado, a constituição de um modo de vida correto, curado das paixões nocivas, é possível a partir de um aprendizado ético que, por uma educação da imaginação, combatendo sua ignorância, retorne ao tempo atual. No diagnóstico final de Sêneca, apenas encontrando no presente sua força de agir e existir é que o homem pode exercer um bom uso de suas faculdades projetivas, em prol de uma vida plena e feliz.

A questão do medo e da esperança na filosofia de Espinosa estabelece-se, em uma primeira aproximação, sobre as mesmas considerações que são abordadas por Sêneca. Assim por exemplo, Espinosa afirma que o “medo é uma tristeza e, já que a esperança não existe sem o medo, ela também não tem nada em si que a faça útil ao homem” (Spinoza 5, E V, P47 dem, p. 324). Isso não significa que, para Espinosa, medo e esperança sejam necessariamente maus ao homem, dado que o medo pode ser utilmente empregado na supressão de uma alegria excessiva, assim como a esperança pode evitar o desespero quando se imagina algo que exclui a idéia de algo que certamente causaria mal no futuro. A utilidade de ambos afetos, no entanto, é indireta e não depende deles em si. Não obstante, o medo e, sobretudo a esperança, adquirem um papel fundamental na constituição da melhor forma que pode adotar um regime qualquer, tema exposto no Tratado Político, porém que escapa do escopo do atual trabalho.

Da mesma maneira que Sêneca, Espinosa também acredita que medo e esperança são afetos que se originam a partir de uma disposição inadequada da imaginação, atrelada a uma temporalidade transcendente isto é, uma temporalidade dada na imaginação e que está para além do presente atual, indo em direção ao passado ou ao futuro: “a esperança nada mais é do que uma alegria instável, surgida da imagem de uma coisa futura ou passada de cuja realização temos dúvida. O medo, por outro lado, é uma

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tristeza instável, surgida igualmente da imagem de uma coisa duvidosa” (Spinoza 5, E III P18 esc 2, p. 187). Espinosa também afirma que o problema da esperança e do medo deve ser resolvido em uma dimensão cognitiva, pois são afetos que indicam uma carência de conhecimento e uma impotência da mente. Conseqüentemente, quanto mais o homem se esforça em viver sob a condução da razão, tanto menos depende da esperança e se livra do medo.

Apesar dos pontos comuns, a chave para compreender a solução proposta por Espinosa como tratamento está localizada em uma outra dimensão temporal. Para Sêneca, como vimos, o homem livre do medo e da esperança vive voltado para o presente, enquanto que para Espinosa, a estratégia para esse combate é “dominar, o quanto pudermos, o acaso; e por dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão” (Spinoza 5, E IV, P47 esc, p. 321). Trata-se, na visão espinosana, não apenas de viver o presente, mas de confrontar a ordem comum da natureza, com seus encontros fortuitos que produzem um conhecimento confuso e mutilado, e submetê-la ao império da razão, do conhecimento claro e distinto. Mais ainda, trata-se de operar um esforço para que a mente seja internamente determinada e possa compreender a si mesma, a Deus e às coisas, sob um aspecto de eternidade, em sua maior parte com relação à parte sua cuja determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva, efeito da imaginação orientada à transcendência.

Essa incrível potência da imaginação em representar, no tempo presente, afetos ligados ao passado e ao futuro, tem as suas causas necessárias explicadas na segunda parte da Ética, onde Espinosa dedica parte de seu texto à demonstração do modo de funcionamento da imaginação. De acordo com a proposição 17 dessa parte: “Se o corpo humano é afetado de uma maneira que envolve a natureza de algum corpo exterior, a mente humana considerará esse corpo exterior como existente em ato ou como algo que

lhe está presente, até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua a existência ou a presença desse corpo” (Spinoza 5, E II, P17, p. 111). Ainda que a idéia de uma coisa presente e existente seja diferente da idéia de uma coisa não presente, isto é, sobre a qual não se pode ter certeza sobre a sua existência, a força com que a imaginação pode fornecer explicações à mente sobre a realidade atual é a mesma com a qual ela torna presentes as imagens das coisas que já não estão à sua percepção. Assim, no escólio dessa proposição, Espinosa afirma que a diferença da idéia de Pedro, que constitui a mente do próprio Pedro, e a idéia desse mesmo Pedro que existe em outro homem (Paulo) é que a primeira explica a essência do corpo de Pedro e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe, e a segunda indica mais o estado do corpo de Paulo (ou seja, a afecção cuja causa é o corpo de Pedro), que a natureza de Pedro. Assim, enquanto durar o estado do corpo de Paulo, sua mente considerará Pedro como lhe estando presente, mesmo que Pedro já não mais exista.

Após essa passagem, Espinosa define a noção de imagem: “as afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos exteriores como estando presentes, embora elas não restituam as figuras das coisas” (Spinoza 5, E II, P17 esc, p. 111), o que anuncia uma verdadeira liberdade da mente quando esta despreza o erro da faculdade de imaginar e a supera como fonte única de conhecimento. De fato,

a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é considerada como privada da idéia que exclui a existência das coisas inexistentes como se lhe estando presentes. Pois, se a mente, quando imagina coisas inexistentes como se lhe estivessem presentes, soubesse, ao mesmo tempo, que essas coisas realmente não existem, ela certamente atribuiria essa potência de imaginar não a um defeito de sua natureza, mas a uma virtude, sobretudo se essa faculdade de imaginar dependesse exclusivamente de sua natureza, isto é, se ela fosse livre (idem).

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A causa necessária, portanto, que determina que a mente seja afetada de maneira idêntica pelas imagens de uma coisa presente e de outra não presente é a servidão da imaginação à duração. Ora, sendo determinada pela ordem comum da natureza e pela presença e ausência das coisas, a mente despreparada pode apenas imaginar a sua existência, afastando de seu julgamento suas respectivas durações. Espinosa alerta o leitor da Ética para o perigo que emana de tal propriedade da imaginação, afirmando nas proposições 30 e 31 que da duração do nosso corpo e das coisas singulares que nos são exteriores não se pode ter senão um conhecimento extremamente inadequado. Isso se dá, como ele demonstra, porque a duração de um corpo não depende de sua essência (pelo axioma 1 dessa parte) nem da natureza absoluta de Deus (pela proposição 21 da primeira parte). A duração do corpo e das coisas singulares depende apenas da ordem comum da natureza e do estado das coisas, de modo que a idéia imaginativa a respeito da duração desses corpos é inadequada por não se referir à sua essência nem à natureza de Deus e, assim, não permite considerar as idéias que não têm como objeto este corpo.

Em contraposição à força com a qual a idéia referida à duração exprime a extrema inadequação da imaginação, Espinosa apresenta a idéia clara e distinta do conhecimento adequado, necessariamente existente em Deus visto que ele, em seu intelecto divino, possui as idéias do corpo humano e de todas as outras coisas. A forma adequada de conhecer a realidade é, portanto, aquela que parte da idéia que “a mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus” (Spinoza 5, E II, P11, p. 95) para apreender o conhecimento da duração do corpo em Deus, isto é, para além da ordem comum da natureza e dos estados de corpo, referindo-o à sua essência e à natureza de Deus.

O arremate de tal denúncia é apresentado no corolário da proposição 31 dessa parte, quando Espinosa, por meio da afirmação de

que todas as coisas particulares são experimentadas como contingentes e corruptíveis, deduz que não se pode ter delas, em sua duração, qualquer conhecimento adequado. E, como complementa o escólio da proposição 33, não há “nenhuma outra razão para se dizer que uma coisa é contingente, a não ser a deficiência de nosso conhecimento” (Spinoza 5, E I, P33 esc, p. 57). É o conhecimento inadequado, engendrado pelo binômio imaginação-duração, que explica, portanto, a potência da imaginação em persistir na representação de idéias transcendentes ao presente e, por esse mesmo caminho, a servidão ao medo e à esperança. Espinosa demonstra, assim, a via cognitiva pela qual estes dois afetos são necessariamente produzidos por uma imaginação limitada à duração. De maneira paradoxal, é como se o sujeito esperançoso ou medroso estivesse, como na definição de Sêneca, alienado de seu presente; contudo, ao mesmo tempo, esse apelo à transcendência deve ser compreendido como causado por uma “intoxicação” do presente, limitada à duração dos corpos.

É de se notar que o próprio Espinosa já se dava conta dos riscos que corria com tais afirmações, o que se verifica na digressão ao final de um escólio da segunda parte da Ética, no qual solicita que elas somente sejam julgadas quando o leitor tenha “lido tudo até o fim” (Spinoza, E II, P11 esc, p. 95). A razão de tal cautela se explica pela severidade com que esse pensamento, implicando a afirmação de uma ontologia do necessário, choca-se com a tradição teológico-metafísica do possível (Chaui 1 e Chaui 3).

A corrente teológico-metafísica à qual Espinosa se contrapõe é aquela fundada sobre a oposição entre os binômios liberdade-vontade e necessidade-natureza, com a conseqüente localização de Deus no primeiro termo, associando-o à imagem de um agente que opera por vontade própria tendo um fim em vista. Tendo Deus criado o mundo porque quis - assim como poderia não tê-lo criado se assim o quisesse -, os seres singulares da Natureza são considerados como frutos de uma ação voluntária e, por isso,

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condenados a realizar aquilo que lhes é necessário e involuntário. Nessa oposição entre o reino da liberdade e o da necessidade, qualquer objeto de escolha é contingente, pois as leis da natureza só são necessárias na medida em que Deus teve essa vontade. E, assim, a tradição teológico-metafísica conjuga liberdade e necessidade em uma seqüência causal, de modo que da vontade de Deus surge a necessidade da Natureza.

Contudo, quando esse pensamento se aplica no interior do campo político, a transcendência teológico-política transfere o direito de governar do monarca celeste ao monarca terrestre sob a égide da Teoria da Monarquia Absoluta. Trata-se da base da teocracia: o rei é soberano pela vontade de Deus - ou pela graça divina -, de quem recebe não só o poder, mas também as marcas que o tornam semelhantes ao monarca celeste. Este é uma pessoa transcendente ao universo, dotado de inteligência onisciente e vontade onipotente, criador do mundo a partir do nada, simplesmente por um ato contingente de sua vontade que assim o quis. Da mesma maneira, o monarca terrestre, escolhido de forma contingente pela vontade divina, inaugura o espaço social que está fora e acima da sociedade, depositando em sua vontade a força da lei (Chaui 1).

Desse modo, a metafísica se constitui enquanto ciência do possível na medida em que “seu objeto são os transcendentais segundo os quais se definem os universais como essências possíveis aptas à existência, que passam a existir por um ato da vontade divina criadora“ (Chaui 1, p. 2). E a vinculação do desejo ao futuro, à falta, à ausência, isto é, a tudo aquilo que é considerado como possível, determina a servidão voluntária do homem. Inversamente, portanto, a filosofia espinosana trata de fundar uma ciência do necessário por meio de um conhecimento dos universais (isto é, as noções comuns) e das essências singulares que existem devido à necessidade absoluta de Deus. E, por fim, de exercer um vínculo do desejo à necessidade de uma potência plena, determinando-o por uma livre necessidade.

Essa vinculação é possível na medida em que a mente age, isto é, em que se converte em causa total dos afetos. Pois a mente interiormente disposta torna-se a causa adequada do conhecimento de si, de Deus e das coisas, constituindo a via cognitiva (isto é, por meio do conhecimento) à liberdade. E, nessa nova perspectiva, a mente funda uma nova relação com a eternidade ontológica.

O conhecimento em estado de servidão à duração do corpo e das coisas singulares é um conhecimento inadequado por não se referir à sua essência nem à natureza de Deus. Por outro lado, como Espinosa afirma na proposição 38 da parte II: “Aqueles elementos que são comuns a todas as coisas, e que existem igualmente na parte e no todo, não podem ser concebidos senão adequadamente” (Spinoza E II, P38, p. 129). Essa é uma proposição importante à epistemologia espinosana na medida em que é nela, e mais ainda na exposição de seu corolário, que Espinosa afirma a existência de idéias ou noções comuns a todos os homens, dado que todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos presentes no todo e nas partes, os quais devem ser percebidos por todos adequadamente, ou seja, clara e distintamente.

O critério que define tal adequação é apresentado posteriormente, na proposição 40: “Todas as idéias que, na mente, se seguem de idéias que nela são adequadas, são igualmente adequadas” (Spinoza E II, P40, p. 133). Assim, as idéias que são causadas pela essência da mente, e não mais originárias da imagem corporal das afecções, são idéias adequadas, e causa das noções comuns que constituem os fundamentos da capacidade humana de raciocínio. Espinosa agrega a essa afirmação, no segundo escólio da proposição, uma discussão sobre a formação dos conceitos universais transcendentais. A elaboração de seu argumento é a explicação, já apresentada no escólio da proposição 17, de tal formação por sua causa necessária, a saber, a limitação do corpo humano em formar em si próprio,

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distinta e simultaneamente, apenas um número preciso de imagens, sendo incapaz de apreender a imagem de muitas coisas singulares. E a própria dedução do universal transcendental é efeito de tal limitação, pois no “momento em que as imagens se confundem inteiramente no corpo, a mente imaginará todos os corpos também confusamente e sem qualquer distinção, agrupando-os, como se de um único atributo se tratasse, a saber, o atributo de ente, coisa, etc” (Spinoza E II, P17 esc, p. 109).

O exemplo dado por Espinosa para demonstrar a constituição dos universais transcendentais é o da formação do conceito de homem. Assim, por se formarem, simultaneamente no corpo humano, um número de imagens de homens que supera a capacidade de imaginar, a mente se torna incapaz de imaginar as pequenas diferenças singulares como, por exemplo, a cor, o tamanho etc., de cada um. Desse estado, a mente é capaz apenas de imaginar aquilo que, em todos os homens – conquanto o corpo é por eles afetado –, está em concordância. Essa afecção mais comum no conjunto das imagens dos homens que se formaram no corpo é exatamente aquela que, por intermédio de cada indivíduo, mais afetou esse corpo. E é esse algo, em que todos os homens estão em concordância, que a mente exprime pelo nome de homem, formando o conceito que designa uma multiplicidade de coisas singulares.

Espinosa alerta, entretanto, que essas noções não são formadas por todos os homens da mesma maneira. Tudo depende da razão da coisa pela qual o corpo foi mais vezes afetado, e a razão pela qual a mente imagina ou lembra mais facilmente. Assim, os que admiram a estatura do homem associarão à palavra homem um animal de estatura ereta, outros, acostumados a outro aspecto, formarão dos homens uma outra imagem comum: um animal que ri, um bípede sem penas, um animal racional etc. “E, assim, cada um, de acordo com a disposição do seu corpo, formará imagens universais das outras coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 133).

Dada a multiplicidade de disposições dos corpos que formam imagens de homens, tais corpos entram em descordo sobre qual é o conceito possível e certo. Como Espinosa completa, não se deve surpreender-se pelo fato de “que dentre os filósofos que pretenderam explicar as coisas naturais exclusivamente pelas imagens dessas coisas, tenham surgido tantas controvérsias” (idem). A invenção de Espinosa está, portanto, na fundação de uma nova forma de conhecimento, baseada nos universais imanentes formados pela mente a partir de elementos reais e concretos, presentes ao mesmo tempo nas partes e no todo, assim como nas relações entre as partes e das partes com o todo. As noções comuns, justamente por isso, são igualmente compartilhadas por todos os homens, independentemente do estado de seus corpos e dos corpos exteriores.

No mesmo escólio, são apresentadas três maneiras de formar noções universais. A primeira maneira se dá a partir de coisas singulares, representadas mutilada e confusamente pelos sentidos do corpo, sem a ordem própria do intelecto. Como demonstra a proposição 29 da segunda parte, a idéia de uma afecção do corpo humano não envolve o conhecimento adequado do próprio corpo e, por não exprimir sua natureza está em discordância com a mente, isto é, consiste em uma idéia inadequada. A tais percepções, Espinosa dá o nome de conhecimento originado da experiência errática, pois sempre que a mente humana percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza e por meio das idéias das afecções, ela não tem, de si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento confuso e mutilado.

Afirmo expressamente que a mente não tem, de si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento confuso, sempre que percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza, isto é, sempre que está exteriormente determinada, pelo encontro fortuito com as coisas, a

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considerar isto ou aquilo. E não quando está interiormente determinada, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo, a compreender suas concordâncias, diferenças e oposições (Spinoza, E II, P29 esc, p. 123)

Além do conhecimento originado da experiência errática, Espinosa agrega também a esse gênero o conhecimento a partir de signos: “por exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos recordamos das coisas e delas formamos idéias semelhantes àquelas por meio das quais imaginamos as coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). De uma maneira geral, esse primeiro gênero de conhecimento tem como característica a determinação externa da mente por meio da idéia imaginativa inadequada. Em contraposição, quando a mente se encontra interiormente arranjada, as coisas são consideradas de forma clara e distinta de acordo com o segundo e o terceiro gênero de conhecimento.

O segundo gênero de conhecimento se caracteriza pelas noções comuns e as idéias adequadas das propriedades das coisas. Para demonstrar o modo de funcionamento desse gênero, Espinosa compara a resolução de um mesmo problema, efetuada por comerciantes e por um geômetra: “Sejam dados três números, com base nos quais quer se obter um quarto que esteja para o terceiro como o segundo está para o primeiro” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). Os comerciantes, limitados ao primeiro gênero, não hesitam em multiplicar o segundo pelo terceiro e dividir o produto pelo primeiro, “ou porque não esqueceram ainda o que ouviram seu professor afirmá-lo, sem qualquer demonstração, ou porque experimentam-no, freqüentemente, com números mais simples” (idem). Já o geômetra resolve o problema por meio da demonstração da proposição 19 do livro 7 dos Elementos de Euclides, isto é, por causa da propriedade comum dos números proporcionais, empregando um conhecimento de segundo gênero.

Certamente, no caso de uma série de números simples, o cálculo do comerciante e o do geômetra têm como efeito o mesmo resultado. A diferença é que a explicação geométrica faz uso de uma propriedade comum à série numérica, isto é, a proporção ou razão, deduzida a partir da relação entre os dois primeiros números, na medida em que o comerciante apenas emprega operações com as quais já está se acostumou por meio do hábito. Para o primeiro existe uma idéia clara que envolve as idéias dos elementos singulares, enquanto que o segundo a ignora. Ainda que, no caso dos números simples, o conhecimento de primeiro e segundo gênero cheguem ao mesmo resultado, o mesmo não é valido para uma série de números complexos. Por outro lado, apesar da diferença entre os dois gêneros, quando aplicados a números simples, um não contradiz o outro, isto é, não há hierarquia entre os gêneros de conhecimento, no sentido de que um suprime, anula ou elimina o conhecimento obtido pela via de um outro. O que existe é uma diferença de potência, dado que um gênero pode mais ou menos que outro, em uma construção ativa da mente na qual os conhecimentos de distintos gêneros ocupam partes maiores ou menores da mente em uma situação de colaboração conjunta.

Uma das propriedades do conhecimento de segundo gênero é a de produzir as condições sob as quais a mente pode concatenar as afecções corporais em uma ordem própria à sua essência e, assim, determinar-se a si mesma. Isto ocorre porque, como mostra a proposição 10 da parte final da Ética: “Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos que são contrários à nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto” (Spinoza, E V, P10, p. 379). Justifica-se, assim, a necessidade humana por regras de vida que afastem da mente quaisquer afetos que sejam contrários à sua natureza (idéias inadequadas e afetos passivos), pois durante esse afastamento toda a sua potência pela qual se esforça em

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compreender a natureza das coisas não está impedida.A idéia de potência da mente é explicada na proposição 26 da

quarta parte da Ética: “Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós nos esforçamos, não é senão compreender; e a mente, à medida que utiliza a razão, não julga ser-lhe útil senão aquilo que a conduz ao compreender” (Spinoza 5, E IV, P26, p. 293). De fato, a razão é o modo finito que compartilha absolutamente a essência da mente, pois a essência da razão não é senão a mente, à medida que compreende clara e distintamente (Spinoza 5, E IV, P26 dem, p. 293 - 295). De maneira inversa, em virtude da razão significa uma ação da mente em compreender clara e distintamente. Assim, não apenas a razão está em conformidade com a constituição ontológica da mente, mas também com o seu conatus, pois o “esforço por se conservar nada mais é do que a essência da própria coisa, a qual, à medida que existe como tal, é concebida como tendo força para perseverar no existir e para fazer aquilo que se segue, necessariamente, de sua dada natureza” (Spinoza, E IV, P26 dem, p. 293).

Da mesma maneira, um impedimento à potência da mente é uma idéia que, sem o ordenamento próprio da razão, apresenta-se como conhecimento inadequado e, assim, contradiz a natureza da mente. Tal contradição tem como efeito a diminuição da potência da mente em fazer aquilo que se segue de sua natureza, isto é, compreender clara e distintamente. Segue-se daí o critério que define se algo é bom ou mau, isto é, se algo nos leva efetivamente a compreender ou pode impedir que compreendamos. Porém, de que maneira pode-se fazer com que não sejamos facilmente mobilizados por estes afetos? Como chegamos a alcançar este ordenamento e concatenação racionais das afecções do corpo? Com efeito, dado que, como afirma a proposição 7 da quinta parte, quando se leva o tempo em consideração, isto é, a duração, os afetos que provêm da razão ou que ela suscita são mais potentes do que aqueles que estão referidos

às coisas singulares que são consideradas como ausentes, exigindo-se, para refrear os afetos ordenados e concatenados segundo a ordem própria do intelecto, uma força maior do que a requerida para refrear os afetos imprecisos e erráticos.

Um aprendizado ético, enquanto não atinge um conhecimento adequado dos afetos, exige um princípio correto de viver, orientado por noções comuns. Essas regras seguras de vida, quando confiadas à memória e aplicadas continuamente aos casos particulares podem afetar continuamente a imaginação e, estando sempre à disposição na experiência cotidiana, tornam a mente, tanto quanto possível, afastada dos afetos que compõem um impedimento à sua potência.

Seguindo essa orientação, Espinosa deduz, no escólio da proposição 10 da quinta parte, o principio de que ódio deve ser combatido com amor em vez de ódio recíproco. Essa noção comum convém para que a razão esteja sempre à disposição dos homens, todas as vezes que se depararem com um encontro carregado de ódio. Ora, se um conhecimento inadequado poderia conduzir a uma reação de ódio igual ou mais forte nesse tipo de situação, com essa noção o homem passa a pensar e a refletir sobre as ofensas habituais dos outros e de si mesmo, bem como a maneira e a via pelas quais elas podem ser mais efetivamente rebatidas por meio da generosidade. Nesse caso ocorre que, no interior da imaginação, a imagem da ofensa está unida à imaginação dessa regra e, por isso, está sempre à sua disposição. Espinosa invoca, aqui, a proposição 18 da segunda parte da Ética, afirmando que se o corpo humano foi simultaneamente afetado por dois ou mais corpos, sempre que a mente imaginar um desses corpos, imediatamente se recordará também dos outros. A associação imaginativa pode ser, portanto, um mecanismo complementar à razão no que concerne à presença da noção comum ainda que no interior de uma experiência da contingência. Em seguida, Espinosa fornece um segundo exemplo e

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apresenta, sob o princípio da verdadeira utilidade, o bem que se segue da amizade mútua e da sociedade comum, e que a suprema satisfação do ânimo provém do princípio correto de viver, pois a satisfação consigo mesmo pode surgir apenas da razão e essa satisfação consigo mesmo é, na realidade, a maior coisa que se pode esperar (Spinoza 5, E IV P52 e seu esc, p. 325).

Um outro exemplo refere-se ao modo pelo qual “para acabar com o medo, é preciso pensar com firmeza, quer dizer, é preciso enumerar e imaginar, com freqüência, os perigos da vida e a melhor maneira de evitá-los e superá-los por meio da coragem e da fortaleza” (Spinoza 5, E V, P10, p. 380). Espinosa identifica o pensar com firmeza com a ação de imaginar perigos e a melhor maneira de evitá-los e superá-los. Para isso contribuem a coragem (animi praesentia), isto é, a presença ou força de ânimo, e a fortaleza (fortitudine). As definições de presença de ânimo e de fortaleza se encontram na terceira parte da Ética, quando Espinosa remete “todas as ações que se seguem dos afetos que estão relacionados à mente à medida que ela compreende, à fortaleza, que divido em firmeza e generosidade” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). Assim, quando a mente age sob a fortaleza ela é a causa adequada de seus afetos. A fortaleza, assim como a razão, se encontra firmemente apoiada na afirmação do conatus, pois é definida pelo “desejo pelo qual cada um se esforça por conservar seu ser, pelo exclusivo ditame da razão” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). A generosidade, por sua vez, é compreendida como o desejo pelo qual cada ser se esforça, pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar os outros e para unir-se a eles por amizade. Chama a atenção o fato de Espinosa empregar de maneira reiterativa a expressão “pelo exclusivo ditame da razão” (ex solo rationis dictamine), como uma modalidade afetiva. De fato, existem diversas maneiras pelas quais o homem se esforça por conservar seu ser, todas elas agrupadas sob o conatus, assim

como maneiras pelas quais ajuda os outros e se une a eles, porém nem todas elas são de fato reguladas pela razão. O exclusivo ditame da razão garante que a proposição 10 se encontre no âmbito do segundo gênero de conhecimento. A divisão da fortaleza em firmeza e generosidade se dá pelo contraste entre as ações que têm por objetivo a exclusiva vantagem do agente e aquelas que têm por objetivo também a vantagem de um outro, respectivamente. E, da mesma maneira, como completa este escólio, “a temperança, a sobriedade e a coragem diante do perigo, etc., são espécies de firmeza” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259).

A razão liberta o homem do medo e da esperança por meio do império sobre a fortuna. Ainda que a experiência da acaso, e a conseqüente paixão pelo possível, tenham causas absolutamente necessárias, trata-se de exercer, tanto quanto se pode, o domínio sobre a contingência. Não se trata, obviamente, de afirmar que a razão possa exercer um império sobre a ordem da natureza, mas sim de exercê-lo sobre si mesma, engendrando a determinação interna da mente. E Espinosa finaliza o escólio da proposição 10 concluindo a verdadeira importância do segundo gênero:

Assim, quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas causas, e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas e não, absolutamente, por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los, nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade. Quem observar com cuidado essas coisas (na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em pouco tempo, dirigir a maioria de suas ações sob o comando da razão (Spinoza 5, E V, P10 esc, p, 381)

Sendo essas regras seguras de vida pertencentes ao segundo gênero, tem-se que a moderação do medo e da esperança se dá por uma

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via cognitiva, isto é, pelo uso da razão. Pela disposição freqüente dessas normas comuns, a mente pode se encontrar internamente disposta a refletir sobre os medos singulares que se apresentam na vida cotidiana. De fato, como enuncia a proposição 28 dessa parte, o esforço ou o desejo por conhecer as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento não pode provir do primeiro, mas, sim, do segundo gênero de conhecimento, pois das idéias mutiladas e confusas do primeiro gênero, não se seguem idéias claras e distintas.

O conhecimento de segundo gênero demonstra-se, de fato, necessário para que se alcance um terceiro gênero de conhecimento, ao qual Espinosa dá o nome de ciência intuitiva. Trata-se do conhecimento obtido a partir da idéia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência das coisas. Com relação ao tempo, a razão consiste no melhor remédio para moderar os afetos de medo e esperança, pois, segundo o escólio da proposição 44 da segunda parte da Ética, é da natureza da razão considerar as coisas como necessárias, não como contingentes e deve-se exclusivamente à imaginação que as coisas possam ser consideradas, quer com respeito ao passado, quer com respeito ao futuro, como contingentes.

Para demonstrar como se processa o mecanismo de associação imaginária, Espinosa propõe a seguinte cena: uma criança que avista Pedro de manhã, Paulo, ao meio-dia, e depois Simão à tarde, se no dia seguinte visse Pedro novamente de manhã, esperaria que Paulo aparecesse novamente ao meio-dia, e Simão à tarde. E, se visse Simão, à tarde, imaginaria que Pedro e Paulo haviam passado durante o dia. Porém, se em lugar de Simão, a mesma criança visse no dia seguinte Jacó passando à tarde, sua imaginação flutuaria entre as idéias dos dois, e consideraria ambos como dois futuros contingentes. E para todas as outras coisas em relação com um tempo passado ou com um tempo presente, haveria

a mesma flutuação da imaginação, e tais coisas seriam consideradas contingentes. Espinosa já antecipa no segundo corolário dessa proposição, uma idéia que só encontrará seu pleno desenvolvimento na quinta parte: “É da natureza da razão perceber as coisas sob uma certa perspectiva de eternidade” (Spinoza 5, E II, P44 esc, p. 141).

É importante notar que o sujeito da cena proposta por Espinosa não é um homem, mas uma criança, agente que será retomado mais tarde como aquele que não tem conhecimento adequado de si mesmo, de Deus e das coisas.

Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas, não há dúvida de que podem ser de uma natureza tal que estejam referidos a mentes que tenham um grande conhecimento de si mesmas e de Deus, e cuja maior parte, ou seja, cuja parte principal é eterna, e que, por isso, dificilmente temem a morte (...) E, de fato, aquele que, tal como um bebê ou uma criança, tem um corpo capaz de pouquíssimas coisas e é extremamente dependente das causas exteriores, tem uma mente que, considerada em si mesma, quase não possui consciência de si, nem de Deus, nem das coisas. Em troca, aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma grande consciência de si, de Deus e das coisas (Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407)

O esforço do homem no sentido de sua liberdade é o de relacionar-se de uma maneira plena com o tempo, isto é, encontrar a eternidade divina a partir da experiência da duração das coisas singulares. Trata-se de um exercício para que o corpo da infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, capaz de muitas coisas e referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas “de tal maneira que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou à imaginação não

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tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância” (Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407). Mas qual seria esta nova relação com o tempo, pela via da eternidade?

Até a quarta parte da Ética, Espinosa define o primeiro e único fundamento da virtude ou do princípio correto de viver como sendo a busca daquilo que é útil para si, segundo o corolário da proposição 22 e a proposição 24 da quarta parte. Porém, na proposição 41 da última parte, ele afirma que mesmo ignorando a eternidade da mente, o homem que se orienta pelo exclusivo ditame da razão chega à mesma conclusão e considera como primordiais todos os afetos referidos à firmeza e à generosidade.

O tema da duração da mente, ou a mente considerada sem relação ao corpo, aparece sob a forma de um enigma no texto da Ética ao final do largo escólio da proposição 20 da quinta parte. A explicação do enigma aparece somente na proposição 40, que afirma que a mente tanto mais é perfeita quanto age. Deste modo, a parte da mente que permanece, isto é, que é eterna, é o intelecto, pelo qual o homem exclusivamente age. Por outro lado, a parte da mente que Espinosa demonstra perecer é a própria imaginação, por meio da qual exclusivamente o homem padece. Pois embora a mente não possa imaginar nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo, conforme a proposição 21, há uma parte sua que não é destruída quando o corpo perece e, segundo o escólio da preposição 40, “fica evidente que a nossa mente, à medida que compreende, é um modo eterno do pensar” (Spinoza 5, E V, P40 esc, p. 407).

Espinosa não atribui à mente humana, portanto, nenhuma duração possível de ser definida pelo tempo senão enquanto exprime a idéia atual do corpo, isto é, enquanto dura o corpo. Porém, dado que a expressão da essência do corpo na mente é concebida pelo próprio intelecto de Deus, essa expressão é algo que pertence à essência da mente e é necessariamente eterno.

Essa idéia que exprime a essência do corpo sob a perspectiva da eternidade é, como dissemos, um modo definido do pensar, que pertence à essência da mente e que é necessariamente eterno. Não é possível, entretanto, que nos recordemos de ter existido antes do corpo, uma vez que não pode haver, nele, nenhum vestígio dessa existência, e que a eternidade não pode ser definida pelo tempo, nem ter, com este, qualquer relação. Apesar disso sentimos e experimentamos que somos eternos. Com efeito, a mente não sente menos aquelas coisas que ela concebe pela compreensão do que as que ela tem na memória. Pois, aos olhos da mente, com os quais ela vê e observa as coisas, são as próprias demonstrações. Assim, embora não nos recordemos de ter existido antes do corpo, sentimos, entretanto, que a nossa mente, enquanto envolve a essência do corpo sob a perspectiva da eternidade, é eterna, e que esta existência da nossa mente não pode ser definida pelo tempo, ou seja, não pode ser explicada pela duração. Portanto, pode-se dizer que a nossa mente dura e que a sua existência pode ser definida por um tempo preciso apenas à medida que envolve a existência atual do corpo; e, apenas sob essa condição, ela tem o poder de determinar a existência das coisas pelo tempo e de concebê-las segundo a duração (Spinoza 5, E V, P23 esc, p. 391)

A permanência de uma parte da alma resolve o aparente problema de um modo finito ser eterno. Mais ainda, lança as bases de um aprendizado ético contra o medo, por meio de uma educação da imaginação. A compreensão verdadeira e livre do tempo na filosofia de Espinosa não está, como vimos, no presente, mas no seio da eternidade. Contudo, para alcançar essa relação plena com a dimensão temporal, a mente necessita tornar-se, tanto quanto possível, internamente disposta. A condição de existência desse movimento afetivo e cognitivo, contudo, não se limita ao seguimento de regras e princípios de vida que estimulem

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a razão como um exercício do desejo para além da duração, do medo e da esperança. É o próprio exercício da potência de pensar, livre dos impedimentos que lhe constituem as idéias inadequadas e os afetos passivos, que permite à mente conceber o corpo, Deus e as coisas sob a perspectiva da eternidade. Pois, quando internamente disposta, a mente considera os demais modos como estritamente necessários, ao passo que quando é afetada pelo medo e pela esperança vincula-se à imaginação da contingência temporal do passado e do futuro.

Restaria agora perguntar-nos qual seria a relação mantida pelo homem, plenamente orientado pela razão, com o medo e a esperança. Ora, sabemos que o medo é e sempre será uma paixão, isto é, tem e terá causas externas necessárias. Além disso, tendo uma origem externa, o medo não nasce da ignorância nem é suprimido pelo saber da verdade, o que poderíamos também dizer da esperança. Suas causas necessárias decorrem da própria constituição finita do homem, desde sempre rodeado e envolvido por outras partes da natureza, cuja potência de longe supera a do seu conatus e, assim, constantemente o amedrontam e conduzem a imaginar formas de evitar a sua própria aniquilação. O certo é que um aprendizado ético de forma alguma se dirige à anulação desses afetos, assim como a ciência intuitiva não elimina o conhecimento de outros gêneros. Trata-se de um esforço para que a mente mantenha uma maior parte internamente determinada e guiada à eternidade comparada àquela cuja determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva, efeito da imaginação orientada à transcendência. Afinal, o que podemos esperar de uma compreensão livre e verdadeira do tempo, senão a fortaleza para enfrentar e conhecer nossos verdadeiros medos e esperanças?

ImaGINatIoN: bEtwEEN FEaR aND FREEDom

abstract: Fear and hope appear in the history of Philosophy as problems located in temporal dimension of existence. Espinosa follows this tradition, as well as the use Philosophy as a medicina animi, but sets apart for himself some differences. Giving prominence to the role of image in fear and hope constitution, he delimits the way by which these affects are necessarily produced by the limitation of imagination to body duration. However, when freed of the impediments to its potency, the mind is able to ordinate and concatenate body affections, considering itself without relation to the body, under a new perspective. Fear problem treatment, therefore, is not in present time, but in eternity. Keywords: Benedictus de Espinosa, hope, fear, imagination, freedom.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. CHAUI, M. Espinosa: poder e liberdade. Filosofia política moderna. De Hobbes a marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/06_chaui.pdf

2. . Imperium ou moderatio? Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 9-43, jan.-dez. 2002.

3. . o fim da metafísica do possível: Espinosa e a ontologia do necessário. Anotações para aula de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade de São Paulo, 2009

4. SÊNECA, L. A. Letters from a Stoic: Epistulae morales ad Lucilium. Penguin Classics: Londres, 1969.

5. SPINOZA, B. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Autêntica: Belo Horizonte, 2008.

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O DIREITO À vIDA NOS ELEMENTOS DA LEI NATURAL E POLíTICA DE HOBBES

Rogério Silva de Magalhães*

Resumo: Este artigo visa examinar os limites da liberdade de ação do homem, isto é, de seu direito natural, levando-se em consideração a finalidade última desse direito nos Elementos da lei natural e política de Hobbes. Essa finalidade seria a auto-preservação do homem. Entretanto, para que esse direito seja efetivamente respeitado, Hobbes alega ser necessário a constituição de um poder soberano. Não basta assim uma simples convenção entre os homens para garantir a paz. Ou seja, se faz necessário a existência de uma ordem política regida por um poder soberano absoluto para que a preservação da vida tenha efeito jurídico. Hobbes entende que somente o estado civil é o único capaz de estabelecer as condições efetivas para que esse objetivo seja atingido. Palavras-chave: poder soberano, auto-preservação, direito natural, estado civil, liberdade.

1. Introdução

Ao longo da história da filosofia, o pensamento filosófico-político e jurídico de Hobbes foi alvo das críticas mais vorazes possíveis, talvez perdendo somente para Maquiavel. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Ribeiro afirma que, após Maquiavel, Hobbes teria assumido o posto de pensador maldito da modernidade.

O hobbista sucedeu ao maquiavélico – na galeria que mais tarde incluiria o niilista – num imaginário corrente que associa uma filosofia à perversão, mostrando a que vilanias leva a razão desassistida da autoridade religiosa, o pensamento sem a Igreja; designando-se como ateu um

* Mestrando em filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e bolsista CAPES.

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pensamento que é leigo não por rejeitar Deus, mas por libertar-se da instituição eclesiástica (Ribeiro 7, p. 50).

Ora sob a injusta alcunha de pensador ateu1, ora rotulado como defensor desprezível do despotismo2, o fato é que, uma análise sóbria e, portanto, menos superficial, nos mostra que o pensamento hobbesiano está comprometido com a produção de uma reflexão sólida e científica baseada na experiência política e jurídica de sua época, a qual pode ser atestada nas duas partes que compõem Os elementos da lei natural e política. Isso significa que o pensamento de Hobbes pode ser considerado um retrato qualitativo dos conflitos e medos da modernidade, mas, trata-se, sobretudo, da construção de uma ciência da arte política. De fato, Hobbes deduz sua teoria política de suas observações científicas acerca da natureza humana.

Mas o que realmente parece ter atraído a ira de seus detratores foi a proposta de gerenciamento da sensualidade e da ambição de bens e prestígio sugerida por Hobbes quando da instituição do poder soberano. O filósofo inglês estava completamente ciente da impossibilidade de se extinguir a natureza desejante do homem. Não era essa, portanto, a sua intenção ao escrever Os elementos da lei natural e política. Pelo contrário, essa natureza é necessária para a nossa existência porque o desejo é o que concede movimento à vida. Para Hobbes, não há assim homens no mundo que não sejam dotados de natureza desejante, pois, esta é a força motriz que impele o homem em direção a um determinado objeto que pode lhe proporcionar prazer. Isso pode ser atestado pela seguinte passagem:

Existem duas espécies de prazer, dos quais um parece afetar o órgão corpóreo da sensação, e que eu chamo de sensual (sensual). O seu papel principal é fazer com que através dele sejamos incitados a perpetuar nossa espécie, e o secundário é aquele pelo qual o homem é incitado à

carne, para a preservação da sua pessoa individual. A outra espécie de deleite não é particular a nenhuma parte do corpo, e recebe o nome de deleite da mente, aquele deleite a que denominamos alegria (joy) (Hobbes 3, p. 50).

Ou seja, é natural que o homem aspire obter glória porque esta lhe proporciona prazer, porém, desde que esta seja fundada em uma imagem adequada de si. Caso contrário, ela é vã glória e, como veremos mais adiante em profundidade, pode desencadear um estado beligerante. Diz Hobbes:

Além disso, a ficção (que também é imaginação) das ações realizadas por nós, mas que nunca realizamos, é glorificação; mas porque ela não gera apetite nem ímpeto para qualquer tentativa futura, ela é meramente vã e inútil; como quando um homem imagina a si mesmo realizando as ações que leu em algum romance, ou sendo como algum outro homem cujos atos ele admira. [...]. Os sinais da vã glória nos gestos são a imitação de outrem, o falsearem seu interesse por coisas que não compreendem, a afetação do vestuário, a busca da honra a partir dos seus sonhos e outras historietas sobre si mesmos, sua terra natal, seus nomes e coisas afins (Ibid., p. 58).

É absolutamente natural que o homem busque a satisfação de seus interesses. Hobbes não nega ou sugere, portanto, que o homem iniba, ou melhor dizendo, extingua sua natureza desejante. Em seu estado natural, Hobbes alega que o homem tem direito a tudo que lhe apraz, mas, sobretudo, tem direito a tudo aquilo que julgar necessário para a sua conservação. “Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e usufruir todas as coisas que quiser e puder” (Ibid., p. 95). Vemos assim que o desejo é a medida do movimento humano em direção a algo.

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Se compararmos a vida do homem com uma corrida – na qual, embora ele não possa ocupar todas as posições, pode porém manter-se nela à caça dos seus propósitos -, poderemos tanto constatar quanto recordar quase todas as paixões mencionadas anteriormente. Mas devemos entender que essa corrida não tem nenhum outro objetivo ou outro prêmio além de nos mantermos em primeiro lugar, [...] (Ibid., p. 67).

2. Estado de natureza e o conflito entre os homens

É justamente esse o ponto nevrálgico da filosofia hobbesiana, isto é, o estado de natureza. Se, em um primeiro momento, por natureza, Hobbes concebe que todos possuem direito a tudo que julgam necessário para a sua preservação, em um outro, diante desse cenário de conflito em potência, Hobbes procura entender como o homem pode atingir sua finalidade última de auto-preservação.

Na medida em que o direito a tudo está distribuído entre todos, os homens tendem a entrar em conflito no momento da satisfação de seus desejos. Todos são uma ameaça constante aos outros. O direito natural não nos impede de realizar nada que almejamos, a não ser aquilo que não podemos realizar por conta da nossa impotência. Todo o resto é legítimo. Esse seria o retrato do célebre estado de guerra hobbesiano onde um tenta dominar o outro. Esse estado é assim por ele apresentado:

Considerando então a ofensividade da natureza dos homens uns com os outros, deve-se acrescentar um direito de todos os homens a todas as coisas, segundo o qual um homem invade com direito, e outro homem com direito resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência, e estudam como devem se preocupar uns com os outros.

O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado de guerra (Ibid., p. 96).

Embora todos os homens sejam iguais por natureza3, segue que tomados pelas paixões, tais como, o medo, a competição e a glória, os homens entram freqüentemente em atrito uns com os outros. Sem saber o que se passa na mente do outro e com o intuito de preservar a si mesmo e seus direitos, o homem concebe uma imagem ameaçadora do outro. O homem vive assim em constante pavor de ser atacado por outros, isto é, vive em função de um medo expectado, o qual não é, desse modo, presente. “Mas com respeito ao desprazer expectado, chama-se medo (fear)” (Hobbes 3, p. 48). Ocorre que, por intermédio da sensação de medo, o homem conjectura uma imagem futura desagradável de sua própria condição em relação ao outro.

A concepção do futuro nada mais é que uma suposição do mesmo, proveniente da recordação do que é passado; e nós somos capazes de conceber que alguma coisa irá acontecer daqui por diante somente à medida que sabemos que existe algo no presente que tem a potência de produzi-la (Ibid., p. 53).

O ponto fundamental está na produção de uma imagem distorcida da potência de si e daquilo que o outro faz ou irá fazer que possa, de alguma forma, afetar a honra do homem, sem base alguma no real. O conflito surge assim como resultado das distintas crenças (beliefs) sobre a própria potência e, por conseqüência, a respeito dos meios que podem ser empregados para a auto-preservação. O apego a essa imagem inadequada da própria potência constitui um perigo para a preservação do homem4.

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Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado – ou ofendido – pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer. [...]. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído (Ribeiro 8, p. 59).

Antes de prosseguirmos, a essa altura, talvez não seja nenhum exagero dizer que o pensamento filosófico de Hobbes esteja engajado não só em uma reflexão consistente sobre o choque de interesses individuais, mas, também uma reflexão a respeito do choque de crenças envolvendo a efetiva extensão da própria potência.

Diante desse cenário, resulta que os homens concebem que é mais razoável atacar o outro preventivamente a fim de garantir que as suas naturezas desejantes não sejam tolhidas na busca da satisfação de seus interesses. Nas palavras de Ribeiro:

Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante – eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o que farei. Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens (Ibid., p. 55).

Desse modo, a princípio, poderia parecer que o homem hobbesiano possui uma propensão natural para fazer o mal ao outro sem causa aparente ou somente pelo desejo de provar que a potência de um é superior à do outro. Contudo, como podemos perceber até o dado momento, não é tão simples assim. A idéia que subjaz o pensamento hobbesiano é a de garantir a

auto-preservação porque o outro representa uma ameaça à minha potência. “Os homens, segundo o relato de Hobbes, não desejam prejudicar outros homens pelo prazer de prejudicá-los; eles desejam ter poder sobre eles, é verdade, mas poder somente para assegurar a sua própria preservação” (Tuck 11, p. 65 - nossa tradução).5

É importante deixar claro que esse estado conflituoso retratado na filosofia de Hobbes não é necessariamente histórico e, por conseqüência, datado, isto é, preso a um determinado tempo e espaço. Esse estado de natureza poderia ser considerado hipotético e, dessa forma, pode-se dizer que seria utilizado por Hobbes como um mero recurso metodológico para explicar o constante estado de atrito entre os homens, mas é um pouco mais do que isso porque esse estado não é irreal, isto é, pura ficção da mente.6

3. a origem do corpo político e a constituição do poder soberano

Baseado na experiência7, Hobbes nota que esse estado não é extinto quando da constituição do estado civil. Isso significa que o estado de natureza hobbesiano se encontra, de certo modo, presente no estado civil. O homem do estado de natureza é o mesmo do da sociedade. “[...]: o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social” (Ribeiro 8, p. 54).

A natureza apetitosa do homem, a qual se encontra em constante busca de prazer, não se extingue assim no estado civil. Ela é somente ordenada, pois o homem abdica da liberdade de subjugar e matar o outro para se preservar. “[...] para Hobbes o conceito de natureza se divide em direito e lei – por ela pode cada homem lutar pela vida, contra todos, mas também deve procurar a paz, renunciando à plena liberdade de guerrear e matar” (Ribeiro 7, p. 25). Se o estado de natureza é composto

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de instabilidade, de conflito, em suma, se sua característica principal é a insegurança, e, embora o homem possua liberdade de potência para agir como lhe aprouver para garantir seus direitos, ocorre que ele pode não conseguir resistir às investidas do outro. Nesse ponto, surge uma questão: como sair desse estado lastimável de total insegurança?

Para Hobbes, não é racional que o homem deseje viver permanentemente nesse caos. Nenhum homem pode racionalmente aspirar viver nesse constante estado de incerteza em relação à própria existência, pois “o direito de natureza é tão pleno que não comporta infração” (Ibid., p. 87). Nesse estado natural, é lícito ao homem empregar os meios que julgar necessário para se preservar, incluindo, a prática de crimes, pois não há transgressão a lei alguma. Ora, viver no estado de natureza porque acredita-se aí ter liberdade para exercer plenamente todos os seus direitos em vista de seu próprio bem constitui um atentado contra si na medida em que os homens se tornam adversários na tentativa de consumação de seus desejos. Por isso, para o filósofo inglês, o estado de natureza não é o mais apropriado para se adquirir todos os bens almejados para a própria conservação. Antes, notamos a visão que Hobbes nos apresenta do homem no estado de natureza. É ainda importante ressaltar que o estado de natureza é o homem sem a lei civil, mas não sem desejos. E contra o desejo de se viver nesse estado, Hobbes escreve:

[...], aquele portanto que deseja viver num estado tal como é o estado de liberdade e direitos de todos sobre tudo (all to all), contradiz a si mesmo. Pois todo homem, pela necessidade natural, deseja o seu próprio bem, ao qual aquele estado é contrário, no qual supomos haver disputa entre os homens que por natureza são iguais e aptos a se destruírem uns aos outros (Hobbes 3, p. 96).

Sendo assim, em busca da paz que permitiria a realização da felicidade de cada um, os homens concorrem racionalmente para a submissão às leis de natureza.8 Trata-se de regras engendradas pela razão. O homem se vê obrigado a obedecê-las por conta de seus elementos racionais se realmente desejar a sua conservação. É pela lei, isto é, por um ordenamento racional da ação que o homem se aproxima da paz. Eis a importância da paz no pensamento político-jurídico de Hobbes. A lei natural fundamental, prescrita pela razão, diz que o homem deve buscar a paz. Vale lembrar que essa lei não é fruto simplesmente de uma naturalis ratio, mas, de um raciocínio. E a paz serve para atender a um fim último: a vida. “O objetivo da paz, para Hobbes, é extraído do estudo positivo da natureza humana, o qual mostra que o homem, dominado pelo instinto de conservação, considera a vida como o valor supremo” (Bobbio 1, p. 106). A razão deve orientar o homem para que este alcance aquilo que lhe causa prazer. Porém, esse prazer só pode ser atingido se o homem não correr risco algum de morte. Para Hobbes, a felicidade do homem pode ser obtida, então, pelo cálculo.

A razão não é menos da natureza humana do que a paixão, e ela é a mesma em todos os homens, porque todos os homens concordam na vontade de serem dirigidos e governados no caminho para aquilo que eles desejam alcançar, a saber, o seu próprio bem, o qual é obra da razão. Não pode haver, portanto, outra lei de natureza além da razão, nem outros preceitos da lei natural (natural law) do que aqueles que declaram para nós os caminhos para a paz onde esta pode ser obtida, e os caminhos para a defesa onde não se puder obtê-la (Hobbes 3, p. 100).

Esse é o primeiro passo para que os homens possam gozar das benesses da paz. Reconhecer racionalmente que viver em um estado onde

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impera a ausência de lei e, por conseguinte, onde a felicidade é algo incerto é o primeiro passo jurídico em direção à constituição de um corpo político ou comunidade (Commonwealth).

Assim se constitui um corpo político, ou comunidade (ou Commonwealth), definido pela presença dessa força de um novo tipo, incomparavelmente mais poderosa do que qualquer outra força individual, orientada no sentido do bem público, towards a more contented life, e inteiramente submetida à autoridade de um homem ou de uma assembléia, o soberano (Polin 6, p. 115).

Nesse estágio, os homens em conjunto estabelecem uma convenção onde se obrigam a respeitar essas leis. “[...] a concórdia entre os homens é artificial, e se dá pelo caminho da convenção” (Hobbes 3, p. 130). Entretanto, Hobbes está ciente de que essa convenção pode não ser duradoura porque um homem ou um grupo de homens pode voltar a infringir qualquer uma das leis conduzindo todos ao temido estado de guerra de uns contra os outros (bellum omnium contra omnes). Conforme vimos nas páginas anteriores, a competição, o medo e a glória são as fontes de conflito entre os homens. É importante ter essa idéia em mente porque ela é o fundamento central da construção do edifício político no pensamento hobbesiano. Essas causas fornecem a justificativa racional para a constituição de um corpo político.

A pressão combinada de competição, medo e glória leva à guerra de todos contra todos, e a uma vida de pobreza, solidão, desagradável, bruta e curta. Para escapar dessa condição, os homens devem erigir instituições que façam cumprir as normas de conduta que garantam a paz (Ryan 9, p. 222).

A convenção em si não é, então, suficiente para garantir a paz, isto é, não é suficiente para evitar a desconfiança mútua entre os homens. Para impedir efetivamente que haja risco do surgimento de um estado de guerra novamente, Hobbes concebe a instituição de um poder comum capaz de manter as partes unidas que constituem um corpo político. É esse poder que Hobbes sublinha ao dizer:

Portanto, mantém-se ainda que o consenso, pelo qual eu entendo a concorrência da vontade de muitos homens para uma ação, não é segurança suficiente para a sua paz comum, sem que se levante algum poder comum, por cujo temor eles possam ser compelidos tanto a manter a paz entre eles quanto a reunir suas forças conjuntamente contra um inimigo comum. E que isso pode ser feito, não existe maneira imaginável senão unicamente pela união, que é definida – no capítulo XII, seção 8 – como sendo o envolvimento ou a inclusão das vontades de muitos na vontade de um homem, ou na vontade da maioria numa quantidade de homens, ou seja, na vontade de um homem, ou de um conselho (council) (Hobbes 3, p. 130-131).

Por intermédio de um acordo de vontades, os homens transferem seus direitos individuais de se protegerem a um homem ou a uma assembléia. Pelo pacto, o soberano passa assim a ter a obrigação de proteger seus súditos. Com efeito, no ato da transferência, é justamente isso que os súditos esperam do soberano. A esse respeito, Hobbes nos diz o seguinte:

O fim pelo qual um homem outorga ou transfere para outro, ou outros, o direito de proteger e defender a si mesmo por intermédio de sua própria capacidade, é a proteção que ele, através dessa transferência, espera para ser protegido e defendido daqueles a quem ele transferiu o direito (Ibid., p. 136).

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Desse modo, o poder soberano passa a ter poder político e jurídico, pois não só conta com o respaldo da vontade geral, mas com o direito de estabelecer leis que possam garantir a segurança dos súditos na república. Uma socialização administrada por um poder comum pavimenta o caminho para a paz. Esta última torna-se pré-condição para a realização do desejo de cada homem.

[...], pertence também ao julgamento do mesmo poder soberano publicar e tornar conhecida a medida comum pela qual todo homem deve saber o que é seu e o que é de outrem, o que é bom e o que é mau, o que ele está obrigado a fazer e o que não está, e ordenar que o mesmo seja observado. Estas medidas das ações dos súditos são aquelas que os homens chamam de leis políticas ou civis (laws politic, or civil). A elaboração destas deve, de direito, caber àquele que tem o poder da espada, pelo qual os homens são compelidos a observá-las, pois, de outra forma, elas teriam sido elaboradas em vão (Ibid., p. 138).

Todavia, para que esse poder seja eficiente, Hobbes estabelece que ele seja absoluto. Como vimos anteriormente, ao longo da história da filosofia, Hobbes foi taxado de defensor do despotismo por defender a teoria do poder absoluto. Contudo, a soberania absoluta hobbesiana não significa necessariamente dizer que o filósofo exija que o poder soberano seja déspota.

O pensamento hobbesiano não é assim do despotismo (à Montesquieu) nem só do absolutismo (à Luís XIV), é da soberania: reconhecer, no interior do corpo político, um poder soberano perante o qual nenhum privilégio localizado, nenhum direito adquirido subsista; fundar tal

poder na representação, fazendo este foco central haurir dos súditos a sua força (Ribeiro 7, p. 53).

Há um motivo para que o poder soberano seja supremo na república. De modo a garantir a realização do fim último para o qual ele foi constituído, o poder soberano não pode ser divisível. “[...] - a soberania é indivisível” (Hobbes 3, p. 141). E esse poder soberano absoluto também não pode estar subordinado a uma outra autoridade, seja ela civil ou não. Caso contrário, não só não seria soberano como também poderia ser constantemente coagido a não realizar a sua função primordial: garantir a segurança dos súditos e manter, por conseqüência, a paz na república. “E assim em nenhum caso pode o poder soberano de uma república estar sujeito a uma autoridade eclesiástica, além daquela do próprio Cristo” (Ibid., p. 194).

4. o poder absoluto do soberano e o direito dos súditos

O percurso realizado até o momento permite-nos compreender como surge a figura do soberano no pensamento hobbesiano. Apesar de absoluto, sua função não é de se preocupar somente consigo mesmo. Pelo contrário, o soberano deve prioritariamente se preocupar e fazer, portanto, de tudo pelos súditos e, conseqüentemente, isso se reverterá em um bem para ele também. “[...] há para os soberanos esta lei geral, que eles obtenham, para o máximo do seu empenho, o bem do povo” (Ibid., p. 206). Nos Elementos da lei, haveria, então, uma lei que regeria o poder pleno do soberano. A esse respeito, Ribeiro nos diz o seguinte: “O soberano representante age em nome dos súditos, não por amor a eles; por isso não é um estrato a mais na sociedade, mas o soberano; [...]” (Ribeiro 7, p. 46).9

Sendo assim, contrariamente ao que se possa pensar, o homem

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não tem menos direito no estado civil do que no estado de natureza. Nos Elementos da lei, Hobbes insiste nesse ponto, pois a escolha de um soberano, ou seja, de um poder supremo que vigie o curso de nossas ações em uma república, não implica no fim dos direitos dos súditos, tais como, o direito à vida.

Ao propor o poder soberano absoluto, Hobbes não visa estabelecer a paz às custas do sacrifício dos direitos naturais dos homens. É importante ter em mente que não é pela força que o poder soberano surge, mas pelo consentimento. Em outras palavras, é a vontade de ter segurança que propicia o surgimento do poder soberano. Ao abdicar de sua liberdade de exercer a sua potência de agir como desejar para se preservar e obter assim o que desejar para atingir esse objetivo, Hobbes nega que o súdito esteja abdicando do seu direito à vida, da possibilidade de acumular riquezas e do direito à propriedade. Pelo contrário, a instituição do poder soberano teria como meta viabilizar a realização desses direitos com o mínimo de atrito possível entre os homens. De fato, escreve ele:

A comodidade da vida consiste em liberdade e riqueza. Por liberdade eu quero dizer que não existe proibição sem necessidade de alguma coisa para um homem, que seria legítimo para ele na lei de natureza; ou seja, que não existe restrição da liberdade natural, senão naquilo que é necessário para o bem da república, e que os homens bem intencionados possam não cair no perigo das leis, como em armadilhas, antes que sejam alertados. Diz respeito também a esta liberdade que um homem possa ter uma passagem cômoda de um lugar a outro, e não ser aprisionado ou confinado com a dificuldade de caminhos e falta de meios para transporte de coisas necessárias. Quanto à riqueza do povo, ela consiste em três coisas, a boa ordenação do tráfico, a obtenção de trabalho, e a proibição de consumo supérfluo (Hobbes 3, p. 207).

Mais adiante, no mesmo capítulo dos Elementos, Hobbes acrescenta o seguinte:

[...] é necessário estipular para cada súdito a sua propriedade e terras e bens distintos, sobre os quais ele pode exercer e receber os benefícios da sua própria indústria, e sem os quais os homens discutiriam entre si, como fizeram os pastores de Abraão e Ló, cada um deles se aproveitando e usurpando tanto quanto podiam do benefício comum, tendendo assim à disputa e à sedição (Ibid., p. 207-208).

Nota-se assim que quando da criação do poder soberano, o súdito não perde o seu direito à alimentação, à propriedade, ao trabalho, em suma, à vida. O súdito não fica assim à completa mercê do soberano no sentido de que ele possa sem justa causa impedi-lo de obter o necessário para a sua subsistência. Embora possa teoricamente fazê-lo, essa atitude seria insana porque o direito à vida é um valor inalienável e, por essa razão, o estado de guerra poderia ressurgir a qualquer momento na medida em que o súdito buscar reaver sua liberdade com o intuito de lutar por sua conservação. “A vida é valor supremo e incondicionado: [...]” (Ribeiro 7, p. 93). Esse poder soberano não é, portanto, pura força bruta. O soberano deve agir pautado por princípios razoáveis com a finalidade de garantir a segurança, principalmente, a dos súditos. Em qualquer situação, é preciso respeitar o direito à vida. “É do apetite de cada corpo a preservar-se que decorre o direito de todo homem a manter sua vida” (Ibid., p. 114). Portanto, dentre todos os bens, o mais importante que o soberano pode oferecer aos súditos é a segurança. “A causa em geral que move um homem a se tornar súdito de outro é (como eu já disse) o medo de não preservar a si mesmo por outros meios” (Hobbes 3, p. 132). Em seu Hobbes: a very short introduction, Tuck aponta:

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O nosso único direito que o soberano possui, ou que ele exerce em nosso nome, é o direito de considerar quais os meios necessários para a nossa sobrevivência, e o de introduzir qualquer programa que vá além das necessidades de sobrevivência física (Tuck 11, p. 83 – nossa tradução).10

Não só porque os súditos carecem desse bem no estado de natureza, isto é, de tranqüilidade por viverem em constante ameaça de extermínio, mas também porque, a partir da segurança do estado civil, é criada condições básicas para que o súdito possa satisfazer o seu desejo de glória desde que este não constitua nenhuma ameaça ao poder soberano. Sendo assim, o homem possui a liberdade para agir desde que seja nos limites da sujeição política e jurídica ao poder soberano. O estado civil garante uma disputa mais civilizada para a fruição dos bens que os homens almejam para serem felizes.

Os homens não querem apenas viver – mas viver bem. Não os levou à sociedade só o medo da morte, mas também a esperança de conforto; e, afastados o homicídio e a fome, expande-se o seu desejo, almejando mais e mais. Sendo incondicionado o direito à vida, deve o soberano respeitar a natureza insaciável dessa matéria humana: por mais que os artífices de uma república cuidem de instruir os cidadãos em seus deveres, de prevenir as seduções, resta que cada homem é movido por um apetite infinito. [...]. A questão não é condenar o conatus sem fim, mas agenciá-lo mecanicamente (as imagens da máquina e do autômato), de modo que os apetites inesgotáveis não mais se destruam (Ribeiro 7, p. 117-118).

5. Controvérsias em torno da figura do poder absoluto do soberano e a liberdade dos súditos

Dentre as críticas que poderiam ser feitas à teoria política do poder soberano de Hobbes, poderia objetar-se que o súdito hobbesiano não possui direito real à propriedade, pois, esta é delegada pelo poder soberano. Todavia, como vimos no capítulo IX da segunda parte dos Elementos da lei natural e política, Hobbes não deixa de reconhecer o direito à propriedade, mas, para evitar controvérsias entre os súditos, ele sugere a intervenção do poder soberano na partilha de terras. Por outro lado, se alargarmos a nossa compreensão do conceito de propriedade para além do campo dos bens materiais e vinculá-lo ao sentimento de pertença daquilo que é mais íntimo e vital ao homem, propriedade seria aquilo que é permitido ao homem fazer, isto é, definiria a linha limítrofe de seu agir.

A propriedade se conceitua, no século XVII, de maneiras diferentes da nossa. [...]. No Seiscentos, porém, o conceito é mais abrangente: para Locke também inclui vida, liberdade e estates de um homem. Hobbes, que tampouco limita a propriedade aos bens, vincula-a à Justiça, e portanto a todas as ações que são próprias de um homem, àquelas que é direito seu (e, talvez, exclusivamente seu) praticar: designa assim o agir do homem, a dimensão em que é lícito o seu fazer (Ibid., p. 81).

É também equivocada a idéia de que a sujeição ao poder soberano constitui uma escravidão. Hobbes rejeita essa idéia porque ela é fruto da imaginação. Os homens que assim pensam acreditam que um poder misto é melhor do que um indivisível. “A divisão, portanto, da soberania não realiza efeito algum na supressão da simples sujeição ou introduz a guerra, na qual a espada particular outra vez tem lugar” (Hobbes 3, p. 140-141).

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Para Hobbes, essa divisão de poderes independente do poder soberano (uma assembléia para elaborar leis, uma para a judicatura e uma para administrá-las) leva os homens à sedição. Assim, a instituição de um poder soberano não constitui inconveniente algum para o súdito, a não ser em sua mente. “Os inconvenientes do governo em geral para um súdito não existem, se bem considerados, senão em aparência” (Ibid., p. 167).

Além desses dois expostos acima, há outros motivos pelos quais alguns súditos podem crer que haja uma coibição de seus direitos e liberdade com a instauração de um poder soberano. O primeiro reside na religião. A discórdia entre súdito e soberano oriunda da religião surge normalmente entre aqueles que exigem liberdade de consciência.

Essa dificuldade, portanto, permanece em meio àqueles cristãos (e perturba apenas a eles), a quem é permitido tomar como o sentido da Escritura aquilo que eles fazem a partir dela, seja por sua própria interpretação particular, seja por uma interpretação tal como as que podem ser colocadas pela autoridade pública. Aqueles que seguem continuamente a sua própria interpretação pedem pela liberdade de consciência; [...] (Ibid., p. 174-175).

Hobbes defende o argumento de que o súdito não tem motivo para se rebelar contra o poder soberano por causa de religião. Os preceitos fundamentais da religião não constituem empecilho algum para que o súdito respeite e se submeta ao poder soberano. Pela experiência, Hobbes sabe que aqueles que contestam o poder soberano alegando a necessidade de liberdade de pensamento dificilmente se contentam em somente utilizar a mente como desejarem no âmbito privado. Ademais, a atividade da mente não se restringe ao campo mental. “Mas a verdade é evidente, pela experiência contínua, de que os homens buscam não apenas a liberdade de consciência, mas de suas ações; [...]” (Ibid., p.

186). Admitindo a ineficácia das leis contra o que se passa na mente dos súditos, Hobbes propõe um controle sobre as ações dos homens porque as ações são regidas pelas opiniões. “Quanto às ações dos homens que procedem de suas consciências, a regulação de tais ações é o único instrumento para a paz, [...]” (Ibid., p. 175). Porém, por outro lado, desde que as opiniões e ações não venham a colidir com as determinações do poder soberano, inclusive as religiosas, o homem possui uma margem de liberdade para a especulação. “As consciências especulem, desde que sábias – isto é, que não queiram interferir na soberania” (Ribeiro 7, p. 46). Não se trata, portanto, de um controle arbitrário para evitar somente injúrias contra o soberano, mas também para evitar as dissenções entre os homens. Lembremos que o que Hobbes deseja evitar é o estado de guerra entre os homens, isto é, um estado onde a autoridade política seria inexistente e onde não haveria a necessidade de se cumprir a lei. Nesse sentido, para Hobbes, não há nada que possa justificar a sedição no corpo político.11 Contra essas ameaças, Polin argumenta:

A sedição é a doença ou o vício do corpo social. Não há justificativa possível: não há rebelião legítima nem em nome da religião, nem em nome da consciência, nem em nome da justiça. A ameaça de revolta, a presença virtual de forças rebeldes não devem então contar no cálculo do equilíbrio político (Polin 6, p. 124).

6. Considerações finais

Para completar a nossa exposição, é preciso ainda dizer que o limite da liberdade da potência de agir do homem em prol do seu bem-estar esbarra no respeito ao poder soberano e às leis estabelecidas. A individualidade do súdito se realiza assim a partir do poder soberano. Ao assegurar o direito à

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segurança e bem-estar na república, o súdito passa a gozar de liberdade para atingir seus objetivos porque agora se encontra livre dos perigos eminentes do estado de guerra. Ou seja, na esfera privada, o homem tem o direito de agir livremente, porém, dentro das regras do poder público. O direito natural máximo de preservação da própria vida é mantido quando da instituição do poder soberano. É somente como parte componente de um corpo político que o homem tem, de fato, a sua vida garantida. Vemos assim que Hobbes tinha sensibilidade para perceber que, para garantir a preservação da vida dos súditos, é preciso unidade política, pois sem essa unidade, não seria possível haver paz suficiente que pudesse garantir o direito natural maior do homem que é a conservação da própria vida.

No entanto, é digno de nota que esse direito deixa de ser natural para se tornar civil quando da instituição do poder soberano. Desse modo, o direito à vida ganha força para ser cumprido porque agora há um poder soberano. De fato, a preservação da vida parece ser o ponto de intersecção entre direito e lei natural no pensamento filosófico de Hobbes. Vemos que a lei de natureza é o que a razão mostra como a conduta mais adequada para a preservação do homem. E o poder soberano nasce para garantir que a vida esteja em primeiro lugar, pois a experiência mostra que sem obediência a esse poder não há ordem política e, por conseguinte, o soberano fica impedido de cumprir sua obrigação que é a garantia do direito à vida.

Com o surgimento do poder soberano, aquilo que era um ditame para a razão do homem, isto é, preservar-se, assume o status de civil. Nesse exato momento, aquilo que dependia somente da potência racional do homem ganha caráter jurídico, isto é, as leis de natureza se tornam civis.

Para Hobbes, o fato de que as leis naturais obrigam apenas em consciência significa simplesmente que elas nos induzem a desejar sua realização. A passagem do desejo de realização para a realização ocorre somente quando estamos seguros

de poder cumpri-las sem prejuízo para nós. Isto quer dizer que as leis naturais obrigam condicionalmente, ou seja, na condição de que, da realização delas, não nos derive nenhum dano. Como se vê, o princípio utilitarista da moral hobbesiana entra em jogo também nesse ponto. Se as leis naturais não prescrevem ações boas em si mesmas, e menos ainda remetem à sanção divina, mas são simplesmente meios para atingir um determinado fim vital (a paz), então seria contraditório que aquele que as executasse retirasse delas um prejuízo e não uma utilidade. Em outras palavras: já que as leis de natureza não são absolutas, mas relativas a um fim, a obrigação que delas deriva não é incondicional, mas condicionada pela obtenção de um fim. Ora, quando é que o homem se encontra em melhores condições para agir de acordo com a lei natural sem sofrer nenhum prejuízo? Quando está seguro de que o outro fará o mesmo. [...]. Mas essa segurança só pode ser obtida no estado civil, ou seja, naquela situação onde as ações dos homens não são mais impostas condicionalmente, e sim de modo incondicional. O que significa que sou obrigado a realizar o que as leis naturais me prescrevem somente quando estas leis naturais são transformadas em leis civis (Bobbio 1, p. 111-112).

Dessa forma, com a instauração do poder soberano e a submissão do homem às leis do estado civil, Hobbes consegue garantir o princípio máximo de sua filosofia que é a vida como valor supremo. Como nos diz Tuck: “Está claro que ele acreditava que nosso único direito natural é o direito de apenas nos preservarmos e usar qualquer meio que consideremos necessário para esse propósito” (Tuck 11, p. 70 – nossa tradução).12 Agora entendemos porque Hobbes acentua que somente no estado civil e sob a tutela de um poder soberano o homem pode perseverar em sua existência. A ética hobbesiana está comprometida com o estabelecimento de uma

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moral mínima alicerçada no direito à vida. Se nos fosse exigido definir um princípio universal que perpassa o pensamento hobbesiano, este seria o melhor candidato, levando-se em consideração, conforme exposto, o intrigante fato de que mesmo sendo aceito por todos os homens como um princípio válido universalmente em si, isto é, com o qual todos estariam de acordo, ele não seria suficiente para garantir a paz. E Hobbes tinha plena consciência disso.

Argumentos sobre o escopo do direito de conservação estava no coração da teoria hobbesiana, porque ele reconhecia que mesmo com a aceitação geral desse princípio moral, os homens não viveriam em paz: as opiniões difeririam acerca do que realmente ameaçava a segurança de cada homem, e os homens agiriam com base nessas opiniões díspares (Tuck 12, p. 189 – nossa tradução).13

A insistência de Hobbes na periculosidade de uma vida subjugada aos ditames do estado de natureza e sua defesa incondicional do estado civil denota que no núcleo central de seu pensamento encontra-se uma preocupação social com a vida, não só em uma dimensão elementar como a da integridade física, mas, em todos os desdobramentos posteriores. Por isso, a transição para o estado civil é, na verdade, a luta para tornar universal um princípio que Hobbes considera irrenunciável para qualquer ser humano. A defesa da vida humana deixa de ser assim um privilégio para determinados grupos sociais para se tornar um direito de facto. Não mais particular, mas, para todos os súditos da Commonwealth. Por detrás da filosofia política-jurídica hobbesiana, o que temos é a defesa do princípio básico dos direitos humanos: o direito à vida.

Em um primeiro momento, o plano político de Hobbes pode parecer autoritário, brutal e antipático aos nossos olhos, mas não podemos

nos esquecer que seu objetivo maior é pôr fim à instabilidade reinante no estado de natureza que rege as relações humanas e que não deixa de existir com a fundação da república. “A política é a continuação da ‘guerra de todos contra todos’ por outros meios” (Comte-Sponville 2, p. 107). Desse modo, pode-se dizer que sua política está comprometida com a segurança dos súditos e, por conseqüência, de seu bem-estar. Seu fim último parece, então, ser o equilíbrio nas relações humanas para que haja vida – condição básica para o progresso do homem. Hobbes quer, portanto, um mundo mais seguro que sirva de base para que cada um, com mais equilíbrio de condições, possa lutar por sua felicidade.

tHE RIGHt to LIFE IN HobbES’S ELEmENtS oF Law NatURaL aND PoLItIC

abstract: This article aims to examine the limits of man’s freedom of action, that is, of his natural right taking into account the final goal of this right in Hobbes’s Elements of law, natural and politic. This final goal would be man’s self-preservation. However, in order for this right to be effectively respected, Hobbes claims that it is necessary the rise of a sovereign power. Thus, a simple pact among men is not enough to live in peace. In other words, the existence of a political order ruled by an absolute sovereign power is necessary for the preservation of life to be lawfully effective. Hobbes understands that the civil state is the only one capable of imposing effective conditions for this goal to be achieved. Keywords: sovereign power, self-preservation, natural right, civil state, freedom.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4ª ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

2. COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do desespero e da beatitude. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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3. HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política: tratado da natureza humana, tratado do corpo político. Trad. Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2002. (Col. Fundamentos do direito).

4. ________________ . Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os Pensadores).

5. MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Col. Pensamento Crítico).

6. POLIN, Raymond. O mecanismo social no Estado civil. In: QUIRINO, Célia Galvão e SADEK, Maria Teresa (Orgs.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 113-128.

7. RIBEIRO, Renato J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

8. _______________ . Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. Vol. 1. São Paulo: Ática, 1989. p. 51-77. (Série Fundamentos, 62).

9. RYAN, Alan. Hobbes’s political philosophy. In: SORELL, Tom (Org.). The Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 208-245.

10. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Unesp/Cambridge University Press, 1999.

11. TUCK, Richard. Hobbes: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2002.

12. _____________ . Hobbes’s moral philosophy. In: SORELL, Tom (Org.). The Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 175-207.

NotaS:

1. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o tempo, Ribeiro afirma que a acusação de ateísmo que recaiu sobre Hobbes em sua época se fundava menos em argumentos teológicos ou pela falta de fé dele na existência de Deus e mais

na proposta de subordinação da Igreja ao poder do Estado. Além disso, Hobbes também faz uma crítica ao excesso de princípios vinculados à religião e, portanto, ao dogmatismo religioso. Tudo isso com o intuito de dizer ao leitor cristão que, como veremos mais adiante, não há contradição alguma entre a fé religiosa e a obediência ao poder soberano. “Mas, em seu tempo, foi mais complexa e grave a acusação de ateu dirigida a Hobbes. A teologia hobbesiana conforta: reduz os princípios do cristianismo à crença mínima em que ‘Jesus é o Cristo’, torna arbitrários os demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da ‘morte eterna’ prometida aos maus apenas uma segunda e definitiva morte” (Ribeiro 7, p. 49). Essa interpretação encontra respaldo na seguinte passagem dos Elementos da lei natural e política: “Consideradas estas coisas, aparecerá facilmente que sob o poder soberano de uma república cristã não existe perigo de danação a partir da simples obediência às leis humanas; pois naquilo que o soberano permite a cristandade nenhum homem está compelido a renunciar à sua fé, que é suficiente para a sua salvação, isto é, os pontos fundamentais” (Hobbes 3, p. 184-185). 2. Em sua obra Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Ribeiro nos oferece o exemplo de um famoso filósofo moderno que contribuiu para denegrir o pensamento político-jurídico de Hobbes, alegando ser este uma defesa do despotismo. “[...]: escrevendo pelo fim da vida de Hobbes o Segundo Tratado sobre o Governo, Locke converte o soberano absoluto hobbesiano em inimigo de todos, em besta merecedora de morte, porque desumanizada, déspota oriental ou Jaime II” (Ribeiro 7, p. 51). 3. Essa afirmação encontra respaldo no Cap. XIV da primeira parte dos Elementos. “Em primeiro lugar, se considerarmos quão pouca é a diferença de força ou de sagacidade existente entre os homens na idade adulta, e com quão grande facilidade aquele que é o menos potente em força ou em senso, ou em ambas, pode apesar disso destruir o poder do mais forte, com base nisso não é necessária muita força para que se retire a vida de um homem, podemos concluir que os homens, considerados na sua simples natureza, devem admitir igualdade entre elas” (Hobbes 3, p. 94). Pode-se dizer, então, que, considerando a natureza humana em si, os homens possuem uma certa igualdade de potência. Em termos de capacidade, não há um desnível absoluto. 4. No Cap. X da primeira parte dos Elementos, Hobbes deixa claro que o homem não pode se apoiar na imaginação se deseja adquirir conhecimento exato das coisas. Somente o juízo ou discernimento pode fazer com que a mente do homem tenha conhecimento verdadeiro. “E essa virtude da mente é aquela pela qual os homens

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atingem o conhecimento exato e perfeito. O prazer, aí, consiste na instrução contínua, e na distinção de lugares, pessoas e estações, o que recebe comumente o nome de juízo (judgement). Afinal, julgar nada mais é do que distinguir ou discernir” (Hobbes 3, p. 71). Skinner tece o seguinte comentário acerca desse assunto nos Elementos: “Decorre daí que, embora as qualidades da fantasia e do discernimento possam ser ambas descritas como formas de inteligência, elas se mantêm como faculdades opostas. Nos Elementos, não há lugar para a possibilidade de que a fantasia seja capaz de cooperar com o juízo na produção do saber e, por conseguinte, na construção de uma ciência verdadeira” (Skinner 10, p. 481).5. Reproduzimos, a seguir, o original em inglês: “Men, on Hobbes’s account, do not want to harm other men for the sake of harming them; they wish for power over them, it is true, but power only to secure their own preservation”.6. Em sua obra A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke, Macpherson alega que a fonte do estado de natureza hobbesiano é as paixões. “O estado de natureza, de Hobbes, tal como é geralmente reconhecido, é uma hipótese lógica, não histórica. É uma ‘Dedução oriunda das Paixões’; relata ‘que maneira de vida haveria se não existisse um Poder comum a temer’” (Macpherson 5, p. 31). Fica assim patente que não se trata de um estado primitivo, oposto ao social ou civil. Não é uma condição presente no homem somente em um passado remoto.7. No Cap. XIII do Leviatã, Hobbes convida o leitor a averiguar a veracidade de sua reflexão de acordo com a própria experiência do leitor. Na passagem a seguir, nota-se que Hobbes destrói o paradigma aristotélico de que a convivência humana não é conflituosa e de que a pólis teria surgido a partir de uma propensão natural do homem para viver em comunidade. “Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência” (Hobbes 4, p. 109). O realismo hobbesiano reside justamente em tomar a experiência como ponto de partida para o desenvolvimento de sua filosofia política. Para Hobbes, a experiência nos mostra que é necessário viver em paz para que os homens possam usufruir dos bens que almejam com menos dificuldade. E nada melhor do que o estado civil para garantir a possibilidade de acesso a esses bens. “A filosofia política pode ser deduzida da filosofia natural, da ciência física; mas também pode ser aferida pela experiência pessoal (do leitor): e então se situa entre duas confissões. O filósofo refina e cifra, como teoria – ou ‘doutrina’ -, a própria

experiência; o leitor confronta com a sua experiência essa ciência que recebeu, e assim pode também metamorfosear em ciência a sua prudência” (Ribeiro 7, p. 21). 8. Ver Parte I, Cap. XVI e Cap. XVII dos Elementos da lei natural e política. 9. Em seu texto O mecanismo social no Estado civil, Polin afirma que o governante hobbesiano tem como lei máxima buscar o bem-estar do povo. Para atingir tal empresa, Hobbes atribui deveres aos soberanos. E esses deveres estão vinculados às leis de natureza, isto é, a um princípio racional, pois, como vimos, fazer o bem ao povo é fazer bem a si mesmo. “E Hobbes, conseqüentemente, atribui ao soberano um certo número de deveres (duties) como conformes à lei da natureza: o soberano deve estabelecer a melhor religião, deve deixar aos cidadãos toda a liberdade compatível com a ordem pública; deve definir a propriedade e repartir os impostos proporcionalmente à riqueza” (Polin 6, p. 122). 10. Reproduzimos, a seguir, o texto no idioma original: “The only right of ours which the sovereign possesses, or which he exercises on our behalf, is the right to consider what means are necessary to our survival, and it would introduce any programme which went beyond the considerations of physical survival”.11. No Cap. VIII da segunda parte dos Elementos da lei, Hobbes discorre acerca das possíveis causas que podem levar os homens a se rebelarem contra o poder soberano. Elas são baseadas no descontentamento, na pretensão e na expectativa de êxito. Ele argumenta que nenhuma dessas causas são razoáveis o suficiente para uma rebelião contra o poder soberano. Todas são imagens falsas que tornam a mente do súdito confusa. 12. Transcrevemos, a seguir, o texto original: “It is clear that he believed that our only natural right is the right barely to preserve ourselves, and to use whatever means we take to be necessary for that purpose”.13. Reproduzimos, a seguir, a citação no original em inglês: “Argument about the scope of the right of self-preservation was at the heart of Hobbes’s theory, for he recognized that even with the common acceptance of this moral principle, men would not live in peace: opinions would differ about what actually threatened each man’s security, and men would act on the basis of these disparate opinions”.

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PARA ALÉM DO CORPO-OBjETO E DA REPRESENTAÇÃO

INTELECTUAL: COMO MERLEAU-PONTy REDESCOBRE O

CORPO COMO vEíCULO DA ExISTêNCIA

josé marcelo siviero*

Resumo: Este ensaio analisa as objeções elaboradas por Merleau-Ponty ao que ele chama de “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre alma e corpo. Concentrando-nos nos dois primeiros capítulos da primeira parte da Fenomenologia da Percepção, trata-se de identificar, nas críticas dirigidas à fisiologia mecanicista e à psicologia subjetiva, como o filósofo delega ao corpo sensível um novo estatuto filosófico, colocando-o como principal veículo da existência, ao mesmo tempo em que redescobre a experiência pré-objetiva. Palavras-chave: Merleau-Ponty; existência; corpo; subjetividade; fisiologia.

Introdução

A filosofia merleau-pontyana coloca o corpo como pivô da existência, como o esteio do ser no mundo. Por outro lado, esse corpo do qual fala o filósofo não é um mero aparato mecânico, um pedaço de matéria a perceber o seu mundo na simplicidade das relações lineares entre estímulos e respostas pontuais, como se sua percepção se reduzisse a um sistema de engrenagens e de mecanismos pré-engatilhados. Nem mesmo esse corpo é tão-somente invólucro para a alma, mera vestimenta material para um Cogito privilegiado no circuito da existência. Também de Merleau-Ponty podemos afirmar que, em sua filosofia da existência, há a desmontagem do paradigma cartesiano de separação entre alma e corpo, ou seja, que há enfim a tentativa de uma articulação entre as ordens do em-si e do para-si, sem que haja a prevalência de uma das dimensões.

* Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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Como o filósofo consegue superar essa dicotomia, examinando as objeções da fisiologia moderna e da psicologia clássica a essa objetivação do corpo? E, uma vez de posse de tais objeções, como ele trabalha para situar o corpo, não mais reduzido a objeto ou a representação, no centro da existência mesma?

1. o corpo-objeto ultrapassado a partir da fisiologia e a sua ambiguidade essencial

O que seria, pois, a definição estrita do corpo como objeto? Para o autor, um objeto é caracterizado pelo fato de que “existe partes extra partes e que, por conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo e os outros objetos relações exteriores e mecânicas.” (Merleau-Ponty 1, 111). O corpo humano tomado segundo essa definição seria, pois, um corpo percipiente no qual cada sentido ocuparia um compartimento estanque, como se fossem peças independentes: tato, visão, audição e outros não se relacionariam entre si, os dados captados por eles seriam qualidades independentes e isoladas, e para cada um dos sentidos corresponderia uma superfície ou um órgão pontual de captação. A rigor, não haveria percepção efetiva, pois os sentidos não se desdobrariam no espaço e o corpo, ao elaborar sua resposta aos estímulos do mundo, nada mais emitiria senão uma reação mecânica. Não haveria propriamente uma relação intrínseca do sujeito com seu mundo, mas tão-somente o choque entre dois elementos estranhos entre si, entre duas categorias de fenômenos tão discrepantes que a simples ideia de uma articulação por si só recairia em contrassenso e em antinomia.

Supondo-se esse corpo no qual para cada sentido corresponde uma região determinada, o que ocorreria caso tais organelas de captação fossem lesionadas? Ou mais profundamente, se a lesão se localizasse nos condutos neurais responsáveis pela sua comunicação ao cérebro, ou ainda

se fossem os centros cerebrais que estivessem prejudicados? Uma resposta mais apressada postularia a perda de certos dados sensoriais pelos danos no instrumento material responsável pela sua captação. O que não ocorre, pois, como aponta Merleau-Ponty, “as lesões dos centros e até mesmo dos condutos não se traduzem pela perda de certas qualidades sensíveis ou de certos dados sensoriais, mas por uma diferenciação da função.” (Merleau-Ponty 1, 112). Não são os dados que são perdidos, mas é a maneira pela qual a percepção deles se desdobra que é distorcida, é a maneira pela qual o corpo responde ao mundo que é adulterada.

Isso fica mais claro no exemplo citado por Merleau-Ponty, de como um doente com lesões centrais percebe as cores (cf. Merleau-Ponty 1, 112): não há uma perda efetiva da visão, o que há é uma simplificação do espectro de tonalidades as quais o olho do paciente tem acesso. Lentamente, os tons vão esmaecendo, para se limitarem ao amarelo, verde, azul e púrpura, até que por fim todas as cores se dissolvem em tons acinzentados. Assim, ao invés de interromperem a captação dos dados em cada um de seus aparatos sensórios, as lesões levam a uma “decomposição da sensibilidade”, a um distúrbio geral do corpo que afeta a organização espacial do campo perceptivo e o desdobramento do percebido. A rigor, observamos aqui pela primeira vez uma espécie de integração funcional dos sentidos corporais, o que afasta, num primeiro momento, a hipótese dum corpo organizado partes extra partes.

Deste modo, o que antes era exterioridade pura entre sentidos e estímulos advindos do ambiente encontra um ponto de articulação, um terreno comum. O exame da percepção alterada das cores leva a crer que a percepção do mundo exterior reclama uma participação ativa do corpo, e a estrutura deste, por sua vez, é responsável por desdobrar os dados sensoriais numa percepção efetiva e não numa resposta linear a um estímulo qualquer. Consequentemente, “a exteroceptividade exige uma

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enformação dos estímulos, a consciência do corpo invade o corpo, a alma se espalha em todas as suas partes, o comportamento extravasa seu setor central.” (Merleau-Ponty 1, 114) Desaparece a clivagem entre o interior subjetivo e o corpo exterior; em-si e para-si se confundem na experiência do mundo percebido, a tal ponto em que não há mais distinção entre eles. Todo o corpo participa de maneira integral da percepção, e é isso o que as teses da fisiologia moderna desvelam, contribuindo para a refutação do argumento dum corpo reduzido a objeto.

Merleau-Ponty aprofunda esta problemática ao analisar os casos de pacientes acometidos pelos sintomas do membro fantasma e da anosognose. O autor os escolhe com uma intenção clara: seus distúrbios não encontram explicação plausível em nenhuma das categorias objetivas, a saber, nem do lado do funcionamento orgânico e nem do lado estritamente psicológico. Em ambos, tais explicações conduzem mais a equívocos do que a soluções.

No caso do membro fantasma, o paciente sente no coto a presença dum braço ausente, captando dados dos sentidos numa estrutura material que não mais existe em seu corpo. Além disso, para o doente o seu braço mutilado permanece na mesma posição do instante de seu ferimento, e ele até mesmo sente a dor dos estilhaços de obus que antes estiveram incrustados em seu braço real (cf. Merleau-Ponty 1, 115).

Se nos ativéssemos à explicação somática desse caso, limitar-nos-íamos a localizar o distúrbio nos condutos neurais dos cotos, e a sua secção anularia tal sintoma. Entretanto, se a manifestação desse braço fantasma fosse meramente um efeito orgânico, a anestesia pela cocaína faria sua sensibilidade desaparecer, como o faz nas outras regiões do corpo, o que não ocorre. Além do mais, como nos escreve Merleau-Ponty, o membro fantasma ataca até aqueles pacientes de lesões cerebrais que nunca sofreram mutilação alguma (cf. Merleau-Ponty 1, 115). Logo, as explicações que

delimitam o membro fantasma ao campo somático mostram-se limitadas e, em algumas vezes, incapazes de chegar a um diagnóstico conclusivo. É a fraqueza do paradigma objetivo do em-si que Merleau-Ponty aqui quer explicitar, encarnado numa fisiologia mecanicista e fiadora duma causalidade linear, na qual há a prevalência do exterior.

Contudo, se trasladássemos esse distúrbio ao campo das especulações psicológicas, teríamos menos sucesso, logo nos enredaríamos nas mesmas dificuldades do mecanicismo e da causalidade linear. Não somente um ferimento ou uma mutilação, mas Merleau-Ponty coloca que também “uma emoção, uma circunstância que relembre as do ferimento fazem aparecer um membro fantasma em pacientes que não o tinham.” (Merleau-Ponty 1, 115). Vicissitudes do psiquismo e circunstâncias influem também no aparecimento do membro fantasma, a ponto até mesmo de reabsorvê-lo no coto e fazê-lo desaparecer sem qualquer sinal orgânico mais claro ou alguma alteração significativa no estado de saúde do paciente. Relacionar estritamente o membro fantasma a fenômenos somáticos é portanto enxergar somente uma das faces do fenômeno do corpo, ignorando sua amplitude e sua complexidade; porém, a entrada em cena do psiquismo e da subjetividade arrastam a experiência corporal para um plano ambíguo, no qual a aplicação de categorias é problemática.

Tal é o mesmo impasse que se encontra na observação da anosognose, moléstia que curiosamente é a antípoda do membro fantasma: nela, o doente aparentemente não possui nenhum defeito físico, mas ignora uma das partes de seu corpo, como um braço ou uma perna, que nele é parcialmente insensível e a qual o doente até mesmo chega a tratar como um anexo inerte, uma “serpente longa e fria” atada ao seu corpo (Merleau-Ponty 1, 116). Tal qual no membro fantasma, há aqui um curioso fenômeno de ambivalência: nos mutilados, encontrávamos uma ausência sentida como presença efetiva, já nos anosognósicos o que se observa é

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uma presença concreta que é tomada erroneamente como ausência ou falta. Se adotássemos uma explicação pautada exclusivamente no corpo como objeto material, a anosognose seria um erro grosseiro, pois o braço ignorado continua ali, como uma peça perfeitamente encaixada no todo do aparato corporal. Porém, abordá-la como uma espécie de esquecimento ou desvio deliberado por parte do paciente, como um tipo de “recalque orgânico”, ou seja, aplicando-se a categoria diametralmente oposta da psicologia, também não nos conduz a uma conclusão plausível: de quaisquer perspectivas que se abordem os dois problemas, o que se impõe é uma espécie de disjunção exclusiva, ou causalidade objetiva ou cogitationes, o em-si ou o para-si, sem que haja uma articulação entre ambas.

Não se trata aqui de escolher entre alternativas de paradigmas ou de enquadrar o fenômeno numa categoria; o que Merleau-Ponty procura é o meio em que se articulam as duas ordens de fenômeno, o domínio no qual não haja clivagem entre em-si e para-si, entre a alma e o corpo, entre a causalidade objetiva e a subjetividade. Só uma tal instância seria capaz de reunir as duas dimensões e de dar razão de suas ambiguidades e ambivalências.

“É preciso compreender então como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas engrenam-se uns aos outros: não se concebe como o membro fantasma, se depende de condições fisiológicas e se a este título é o efeito de uma causalidade em terceira pessoa, pode por outro lado depender da história pessoal do doente, de suas recordações, de suas emoções ou de suas vontades.” (Merleau-Ponty 1, 116)

Certamente, o membro fantasma e a anosognose não são apenas

processos em terceira pessoa, visto que não dependem exclusivamente do corpo e de suas condições fisiológicas; posto que também não se limitam à primeira pessoa, pois não são, como vimos, desvios deliberados ou

pensamentos elaborados pela vontade do paciente, mero derramamento do psíquico no terreno do somático. Primeira ou terceira pessoa, a particularidade do subjetivo frente ao anonimato generalizante, tal é o impasse que se nos apresenta. Como Merleau-Ponty responde a tal impasse?

O filósofo vai curiosamente buscar suas respostas na observação dum experimento comportamental aplicado com insetos. Sua escolha não é por acaso ou por capricho: no comportamento instintivo do inseto submetido à experiência é impossível operar uma distinção entre categorias, ou seja, ele se encontra de tal maneira engajado em seu ambiente e aberto aos seus estímulos que é incapaz de separar o que é da ordem do corporal e o que é da ordem do psiquíco.

Ora, poderíamos então facilmente afirmar que o comportamento instintivo do inseto é unicamente uma reação mecânica e pré-programada aos estímulos exteriores; contudo, há um inusitado fenômeno de substituição no uso das patas que ocorre quando ele é mutilado ou aprisionado, que é o que Merleau-Ponty aborda a seguir:

“Quando, em um ato instintivo, o inseto substitui a pata cortada pela pata sã, isso não significa, nós o vimos, que um dispositivo de auxílio previamente estabelecido se substitua por desencadeamento automático ao circuito que acaba de ser posto fora de uso. Mas também não significa que o animal tenha consciência de um fim a atingir e use seus membros como diferentes meios, pois então a substituição deveria produzir-se a cada vez em que o ato fosse impedido, e sabe-se que ela não se produz se a pata apenas está presa.” (Merleau-Ponty 1, 117)

Em resumo, quando a pata está presa, o inseto não necessita

fazer a sua substituição, pois ele ainda conta com seus movimentos e sua disponibilidade; o que não ocorre quando ela é seccionada e o inseto

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precisa operar uma reorganização de sua estrutura corporal. O que muda no inseto é a maneira pela qual ele investe de sentido os seus reflexos e os encaixa numa situação concreta; em resumo, quando há a necessidade de substituição da pata o inseto altera a maneira pela qual o seu corpo se abre e se projeta no mundo que o envolve.

Como já foi exposto, não há mecanismos sensório-motores programados e previamente engatilhados para que a substituição ocorra em determinada situação, como se o corpo do inseto fosse dotado de instrumentos de emergência; frente à mutilação, ele simplesmente altera o uso que comumente faz de seu corpo, ele adota um comportamento diferenciado. Também não se trata duma decisão planejada e/ou presumida, pois não podemos falar de consciência de si num ser vivo de tal proporção sem cair numa hipótese absurda e fantasiosa. O que está por trás do fenômeno de substituição das patas, escreve-nos o filósofo, “é o movimento do ser no mundo” (Merleau-Ponty 1, 117), isto é, é a maneira pela qual, através de seu corpo capaz de perceber e de projetar-se no mundo sensível que o rodeia, o inseto se engaja em uma situação concreta e a investe de sentido.

Descobrindo-se esse “ser em situação” e esse engajamento mundano que é proporcionado pela percepção, os reflexos corporais não podem mais ser reduzidos a uma soma de dados isolados colhidos pela sensibilidade; ao percebê-los, o corpo os desdobra numa situação, inserindo-os num contexto global organizado como um campo perceptivo. Os dados sensíveis não são mais dados isolados, eles se estendem e se correlacionam com o seu horizonte total. Podemos estender a reflexão até o domínio da subjetividade: o pensamento deixa de ser assim um projeto particularíssimo, restrito à primeira pessoa e à interioridade do Cogito, para se transformar na intenção total do sujeito ao se dirigir ao mundo. Desta maneira, conclui Merleau-Ponty que “o reflexo, enquanto se abre ao

sentido de uma situação, e a percepção, enquanto não põe primeiramente um objeto de conhecimento e enquanto é uma intenção de nosso ser total, são modalidades de uma visão pré-objetiva que é aquilo que chamamos de ser no mundo.” (Merleau-Ponty 1, 118-119)

Será esse domínio da experiência pré-objetiva que unirá os dois paradigmas extremos, o do em-si e do para-si, o exterior ou o interior, a causalidade objetiva e as cogitationes, ou, lançando mão do jargão cartesiano, a res cogitans e a res extensa, propiciando a sua articulação através dum ponto comum no qual inexiste a clivagem do pensamento objetivo. Contudo, não se trata duma síntese ulterior entre as duas posições paradigmáticas, mas antes duma experiência prévia, na qual a separação é sempre posterior.

Logo, remontando ao pré-objetivo, as categorias aferradas aos processos em primeira e terceira pessoa se dissolvem; os dois paradigmas antagônicos, diametralmente opostos, rivais ao extremo, agora se confundem entre si, entrelaçados numa mesma dimensão originária, abarcados num esteio comum. Assim sendo,

É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio, de todo conhecimento em primeira pessoa- e que ele poderá realizar a junção do ‘psíquico’ e do ‘fisiológico’. (Merleau-Ponty 1, 119)

Retornemos aos casos do portador do membro fantasma e do anosognósico, transplantando a eles as conclusões que Merleau-Ponty tirou do exame do comportamento do inseto e a constatação duma visão pré-objetiva subjacente a todos os fenômenos perceptivos.

Caso adotássemos uma das explicações díspares que nos são oferecidas pelo pensamento objetivo, seja do lado da fisiologia e seja do

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lado da psicologia, os diagnósticos do membro fantasma e da anosognose seriam excludentes, suas justificativas seriam por demais limitadas e, obviamente, não conduziriam a quaisquer conclusões mais sólidas. Se nos fiássemos no paradigma fisiologista, o membro fantasma nada mais seria senão a persistência de estimulações interoceptivas numa região do corpo que não mais existe, e os sintomas do anosognósico, por sua vez, seriam a sua supressão ou a perda de sensibilidade num membro aparentemente saudável (cf. Merleau-Ponty 1, 119-120). Nos dois casos, adotando-se os juízos emitidos pelo pensamento fisiologista, tratar-se-ia tão-somente dum funcionamento anômalo da estrutura neural do paciente, um prolongamento e uma interrupção errôneos em cada um dos doentes.

Porém, reportando-nos às explicações da psicologia, não encontramos ainda um terreno firme. Nela, a fraqueza é tão evidente quanto nas conclusões dum exame estritamente fisiológico. A ambiguidade das duas moléstias é encarada pela psicologia como a permanência de certas representações, matizadas como pensamentos ou juízos do sujeito em relação ao seu corpo e às partes dele. Deste modo, o membro fantasma, enquanto presença invisível dum braço ou duma perna já ausentes, é definido como uma recordação, juízo positivo ou uma percepção, e, do outro lado, o membro esquecido do anosognósico é análogo a um esquecimento ou juízo negativo (cf. Merleau-Ponty 1, 120). Segundo este paradigma, tais distúrbios na infraestrutura do corpo dependem unicamente das cogitationes dum sujeito absoluto, residente na sua subjetividade interna, cujo corpo é apenas um invólucro carnal do qual ele é capaz de decidir tudo. Tal como nas explicações fisiológicas, o impasse não se resolve, não alcança um desfecho. A problemática continua em aberto.

Agora desloquemos o problema para o domínio do ser no mundo, isto é, para a experiência pré-objetiva que a análise do comportamento do inseto nos trouxe a lume. O pequeno inseto, enfrentando um problema

de ordem prática, isto é, a obstrução de suas ações sensório-motoras através da imobilização de seu corpo ou de sua mutilação, faz um uso diferenciado de suas funções corporais, refletindo o impasse que lhe é imposto pela situação na qual está mergulhado. O inseto substitui a pata quando sofre a mutilação ao perceber que ele não conta mais com os movimentos e a sensibilidade da pata cortada; por esse motivo é que ele não a substitui quando ela está somente imobilizada, pois o membro preso, ao contrário do seccionado, ainda está aberto ao mundo, às suas solicitações e às suas possibilidades. O problema não está em determinar o domínio fisiológico e psicológico, mas em entender tais fenômenos a partir do engajamento do sujeito em seu mundo através do corpo integral, e não de uma ou outra de suas províncias.

Como a experiência do inseto pode nos ajudar a esclarecer os dois fenômenos, que vínhamos discutindo até então? Será possível, de que maneira e por quais vias, ligar o experimento comportamental do inseto e suas conclusões aos problemas ambíguos diretamente relacionados ao membro fantasma e à anosognose? Os dois domínios se aproximam quando pensamos o corpo como engajado numa situação concreta, aberto a ela pela percepção e profundamente envolvido no ambiente mundano segundo as suas respostas sensoriais e motoras. Assim, pois,

Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiências ou de amputações, e que, nessa medida, não as reconhece de jure. A recusa da deficiência é apenas o avesso de nossa inerência a um mundo, a negação implícita daquilo que se opõe ao movimento natural que nos lança a nossas tarefas, a nossas preocupações, a nossa situação, a nossos horizontes familiares. (Merleau-Ponty 1, 121)

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Dito dessa maneira, encontramos o membro fantasma como uma região corporal que, mesmo ausente e desligada de todo o aparato sensório-motor, ainda persiste em se manter aberta ao seu mundo, retendo até mesmo os caracteres sensíveis do momento de sua destruição (no caso, como já expusemos, da paralisação de sua posição no momento da mutilação e da dor ainda presente dos estilhaços do obus que o ferira). Já no anosognósico o que há é o fenômeno oposto, o fechamento ou a recusa do mundo localizada num dos membros, que não mais se move e não mais sente o meio circundante, omitindo-se a responder ao que o mundo lhe solicita.

Logo, desvelamos, através dessas conclusões parciais, a importância capital do corpo na filosofia de Merleau-Ponty: “O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles.” (Merleau-Ponty 1, 122). Entretanto, ao colocar o corpo no centro da existência, Merleau-Ponty acaba também por lançar luz sobre o fenômeno da ambiguidade. Tomemos esse questionamento de outra perspectiva: como o mundo pode ainda solicitar determinados comportamentos e condutas, certos movimentos e reações sensoriais, de um corpo que é incapaz de engajar-se nelas, como no caso do portador do membro fantasma?

Esse é o caso paradoxal do mutilado; embora seu corpo seja o pivô de sua existência, o veículo com o qual ele se dirige ao seu mundo, este ainda o obriga a manejar objetos movimentando o seu braço ausente. De certa maneira, o paciente retém o uso que no passado ele fazia de seu corpo, do tempo anterior ao seu ferimento de guerra, e tal sedimentação de gestos e reações motoras ainda aflora no seu corpo atual e nas situações mundanas em que ele atualmente está inserido. O paciente, como cita Merleau-Ponty no interior de seu texto, continua a tentar pegar e mover objetos com a mão

do membro fantasma, utilizando-se do coto como se ali ainda houvesse seu membro; mesmo o fracasso de suas tentativas não o desencoraja da tarefa.

Do interior de sua ambiguidade, o corpo do doente ainda percebe tais objetos como manejáveis, embora a parte de seu corpo que se abria a tal fenômeno não exista mais. Como isso é possível, indaga o autor? Como a existência pode comportar tal ambiguidade? Será um erro por parte da percepção do indivíduo ou um distúrbio nas solicitações do mundo sensível?

Novamente, é preciso ultrapassar as antinomias do em-si e do para-si. Desçamos ao reino da experiência pré-objetiva e pré-pessoal, onde não existe ainda essa separação em categorias. Nela convivem em harmonia tanto a dimensão pessoal quanto a generalidade; assim, a ambiguidade deixa de ser um juízo errôneo para se tornar um caractere intrínseco da experiência. Assim, sobre as solicitações dirigidas ao membro inexistente e à ambivalência de tal experiência perceptiva, adverte-nos Merleau-Ponty de que “é preciso que o manejável tenha deixado de ser aquilo que manejo atualmente para tornar-se aquilo que se pode manejar, tenha deixado de ser um manejável para mim e tenha-se tornado como que um manejável em si.” (Merleau-Ponty 1, 123). O corpo, antes limitado pela dimensão do para-si, agora descobre uma região de generalidade que lhe é própria; em resumo, o uso que se faz atualmente do corpo depende de toda uma sedimentação de seu passado, impressa em hábitos, gestos e cacoetes. É isso o que permite a Merleau-Ponty caracterizar a ambiguidade do corpo como a sua composição em duas camadas existenciais, a saber, o corpo habitual e o corpo atual (cf. Merleau-Ponty 1, 122), sendo que o primeiro é o “fiador” deste último. Assim, no mutilado, as intenções motoras solicitadas ao seu braço fantasma fazem referência a esse corpo habitual, que se faz presente na atualidade mesmo quando seu braço está ausente. A ambiguidade aqui não é mais um problema, mas faz parte da estrutura de seu ser no mundo.

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O corpo, que opera tanto o fechamento quanto a abertura ao seu mundo, comporta harmonicamente essa mescla de generalidade e atualidade.

Saímos desse modo da disjunção exclusiva entre as duas alternativas, o impasse que era suscitado pelos paradigmas do pensamento cartesiano. A ordem do em-si e do para-si, representados pelo corpo habitual que mantém o passado vivo e no corpo atual que desfecha a existência em situação, agora são as duas faces da mesma moeda, duas dimensões constitutivas dum único fenômeno, advindas duma origem comum encontrada na vivência do pré-objetivo. Entre elas não há separação ou isolamento; tal clivagem só ocorre num momento posterior, quando da necessidade de elaboração dum discurso e dum pensamento objetivo, como é o caso das ciências empíricas e seus juízos e asserções. Entretanto, na experiência que dá sustentação a qualquer objetividade, nessa experiência originária e espontânea do ser no mundo, nessa existência mundana mais direta e autêntica, o que encontramos primeiramente é uma oscilação entre os atos em primeira e terceira pessoa que, contudo, não os separa, mas reforça a sua imbricação, como salienta Ramos:

Há assim um movimento integrado da existência normal que pendula entre os atos em terceira pessoa e os atos pessoais, sem que isso signifique uma desintegração da conduta. Quer dizer, neste caso, o corpo próprio retoma ou mobiliza os hábitos adquiridos (o passado do sujeito), mas também se abre para novas aquisições (ou seja, ele se projeta num presente vivo que reativa o passado, e se dirige a um futuro inédito ao improvisar e, consequentemente, adquirir novos comportamentos). O doente, por sua vez, é um ser fragmentado e fadado à repetição de um tempo perdido. (Ramos 3, 74)

A experiência do recalque, que Merleau-Ponty toma de empréstimo

da psicologia, clarifica ainda mais o fenômeno da ambiguidade temporal vivenciada pelo portador do membro fantasma. Num objeto material, regido por leis mecânicas, como queria a fisiologia ao abordar o corpo humano, seria impossível falar de uma tal ambiguidade, especialmente se ela levar em conta o passado e a atualidade do objeto. Com isso, retornamos à reflexão com a qual iniciamos esse trajeto, para alcançar enfim o cerne das objeções que Merleau-Ponty move em direção ao fisiologismo mecanicista: num objeto mecânico, cujos movimentos se caracterizam pela linearidade e regularidade entre estímulo e reação, cujas reações mecânicas estão previamente determinadas e são perfeitamente previsíveis, não há espaço para a sedimentação de um passado e a sua consequente atualização. Os objetos mecânicos não conhecem o tempo, não guardam o passado, não constroem hábitos, não acumulam memórias; seu horizonte é o das determinações imóveis do presente, e, sendo um prisioneiro do puro atual, não há espaço para uma mudança nas suas reações ou para um uso diferenciado de seus movimentos. Em resumo, para um objeto como esse dos mecanicistas, não há engajamento, não há ser no mundo.

Entretanto, o corpo não é um objeto estritamente material; ele arrasta consigo todo o seu passado sedimentado, projeta-se no seu presente com vistas a um futuro ainda em estado virtual e reage de maneiras diferenciadas ao mundo que o engloba e o inquire, sempre levando em conta as configurações da situação na qual está inexoravelmente engajado, com seu corpo ora abrindo-o e ora fechando-o à experiência perceptiva do mundo. O sujeito está, desde o início, encarnado num corpo que é ambíguo, amparando uma experiência existencial que é ambígua em seu âmago. Por isso, não sendo uma mera máquina corpórea, não há mais sentido em se falar de separação entre corpo e alma, entre sujeito e meio exterior, entre para-si e em si.

Entretanto, isso é o que descobre Merleau-Ponty ao interrogar de

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dentro os postulados científicos elaborados pela fisiologia clássica. E quanto ao outro lado, o dos juízos da psicologia, o que o filósofo questiona neles? O que Merleau-Ponty descobre ao perscrutar o domínio da subjetividade absoluta, ou seja, quando o corpo é abandonado em detrimento das representações do intelecto? Como ele resolverá o impasse a partir de seu outro lado, articulando-o com a descoberta das duas camadas existenciais do corpo? Examinemos a seguir as suas objeções quanto aos juízos da psicologia clássica. 2. a experiência do corpo vista pela psicologia clássica: contribuições e objeções

A psicologia clássica, segundo o filósofo, é a primeira a se afastar das interpretações que tomam o corpo como objeto, introduzindo em seu seio um interior, representado pelo “psiquismo”. Será essa interioridade do corpo próprio que o moverá por si mesmo e que colocará os objetos no horizonte de sua experiência, seja na aquisição de hábitos e seja no manejo e no exame perspectivo dos objetos que chegam à sua percepção, afastando-o das reações lineares do paradigma mecanicista.

Como nos mostra Merleau-Ponty, as contribuições da psicologia aprofundam a crítica aos paradigmas mecanicistas e iluminam a experiência do corpo; entretanto, ela falha ao desvelar o engajamento efetivo do corpo nos fenômenos ao recair na dimensão do psíquico e voltar a se confinar na perspectiva do para-si. É necessário, pois, analisar essas contribuições teóricas legadas pelo exame do psiquismo, para logo depois objetá-las e continuar no trajeto da articulação das ordens do em-si e do para-si. É esse o andamento que o filósofo adota para essa seção de seu texto.

Primeiramente, o corpo não é um objeto dentre outros, perfilado por entre eles, misturado ao cenário do mundo: ele “se distingue da mesa

ou da lâmpada porque ele é percebido constantemente, enquanto posso me afastar daquelas. Portanto, ele é um objeto que não me deixa.” (Merleau-Ponty 1, 133) O primeiro caractere atribuído pela psicologia clássica é a permanência, a constância do corpo próprio em todas as suas experiências sensório-motoras; e, ao denominá-lo como um objeto que nunca o abandona, faz cair por terra quaisquer interpretações objetivistas, posto que “o objeto só é objeto se pode distanciar-se e, no limite, desaparecer de meu campo visual.” (Merleau-Ponty 1, 133). Os objetos que se podem manejar estão ao alcance do corpo, seja de seus dedos ou, no caso daqueles mais afastados, na linha de seu campo visual. Da mesma maneira que estão próximos, eles podem também se distanciar, variando o grau de ação que podem sofrer; podem até mesmo desaparecer do campo da experiência sensorial. Desdobram-se em várias perspectivas, podendo ser examinados de inúmeros ângulos; logo, o objeto pode ser percebido em sua miríade de variações. Já o corpo é percebido constantemente, ele não pode ser deixado de lado, ele se mostra sempre sob a mesma perspectiva, furtando-se a uma exploração mais detalhada, nem mesmo é possível se afastar dele na experiência perceptiva. E, mais do que isso, é através dele que se pode visar e tocar os objetos exteriores.

Como emparelhar, dessa maneira, o corpo aos objetos por ele utilizados? Devido à sua permanência, como vimos, o corpo está sempre presente no campo visual do sujeito; não podemos, pois, afirmar que ele está simplesmente solto na tessitura do mundo, pois isso implicaria na possibilidade de sua dissolução ou de seu ocultamento, como acontece aos outros objetos. O corpo, por se mostrar por uma única e constante perspectiva, não se perfila sobre o horizonte o mundo; já os objetos por ele visados “só podem aparecer para mim em perspectiva, mas a perspectiva particular que a cada momento obtenho deles só resulta de uma necessidade física, quer dizer, de uma necessidade da qual posso me servir e que não

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me aprisiona: de minha janela, só se vê o campanário da igreja, mas esse constrangimento me promete ao mesmo tempo que de outro lugar se veria toda a igreja.” (Merleau-Ponty 1, 134). O exemplo do prisioneiro é ainda mais assertivo: de sua cela, ele está limitado a um único ângulo, e sua visão do campanário é sempre truncada. Desse modo, o corpo permanece ao lado de toda experiência possível do sujeito, e a variação de perspectivas e inclusive o desaparecimento dos objetos de seu campo visual depende de sua posição e de sua movimentação em meio a esse cenário mundano. Ente sem perspectivas, é o corpo que as fornece.

Assim, o corpo não é mais um fragmento de matéria lançado ao mundo, com o privilégio de ser um objeto especial a ser percebido constantemente, invariável; é ele que, tal como as janelas, abre uma perspectiva sobre o mundo. Desprovido de perspectivas, mas capaz de desdobrá-las no mundo; percebido permanentemente, mas sem se reduzir a objeto; dotado de percepção, mas impossível de ser perscrutado pelas potências de seu próprio aparato sensorial: o corpo, sob o argumento da permanência proposto pela psicologia clássica, encerra em si tais contradições: “observo os objetos exteriores com meu corpo, eu os manejo, os inspeciono, dou a volta em torno deles, mas, quanto ao meu corpo, não o observo ele mesmo: para poder fazê-lo, seria preciso dispor de um segundo corpo que não seria ele mesmo observável.” (Merleau-Ponty 1, 135). Em outras palavras, é o corpo que nos abre ao mundo, é o fato de ele mesmo se furtar à nossa percepção que permite que ela se efetive.

Assim, tal presença originária não constitui somente um interior para o corpo, a moradia de sua subjetividade, a presença clara e imediata de si a si; a permanência emana um campo de potencialidades ao redor do sujeito, no qual os objetos se perfilam e se oferecem à sua experiência. É por manter essa sua permanência intrínseca que o corpo consegue sentir a presença dos outros entes e, com eles, desdobrar a sua experiência,

tornando-se seu fiador: “a presença e a ausência dos objetos são apenas variações no interior de um campo de presença primordial, de um domínio perceptivo sobre os quais meu corpo tem potência [...], como também a apresentação perspectiva dos objetos só se compreende pela resistência de meu corpo a qualquer variação de perspectiva.” (Merleau-Ponty 1, 136). Tal constância, ao abrir o campo de experiência do corpo, fornece-nos também a medida de seu engajamento na existência mundana.

A permanência é, portanto, a descoberta essencial da psicologia, mas ela não a ultrapassa; o corpo é sempre percebido ao lado de toda experiência possível, mas, para a psicologia subjetivista, tal permanência continua como avesso da experiência objetiva, e o corpo não sai de seu status de invólucro material para o pensamento. Após identificar a contribuição, Merleau-Ponty não tarda a confrontá-la com a objeção de que, caso a psicologia se debruçasse mais apuradamente sobre a permanência do corpo próprio, “podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do mundo, mas como meio de nossa comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados, mas como horizonte latente de nossa experiência.” (Merleau-Ponty 1, 136-137).

Esse é o primeiro caractere identificado por Merleau-Ponty, e também a primeira contribuição da psicologia na ultrapassagem do para-si; o segundo apontado pelo autor é o fenômeno das “sensações duplas”, quer dizer, de uma ambivalência interna estabelecida entre os dados dos sentidos. É a experiência de se apertar a própria mão: nesse contexto, é impossível determinar com distinção qual é a mão que toca e a mão que recebe o toque, a sensação é ambígua e o contato entre as duas mãos é confuso. Diz-nos o filósofo que “quando pressiono minhas mãos uma contra a outra, não se trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto, como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma organização ambígua em que as duas mãos podem alternar-se na função de ‘tocante’

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e ‘tocada’”. (Merleau-Ponty 1, 137). A ambivalência das sensações, que o psicólogo constata mas erroneamente classifica como uma duplicação de dados sensoriais, evidencia um viés afetivo do corpo em mão dupla com o mundo: ao segurar a própria mão, o corpo toca ao mesmo tempo que é tocado, o que é característico do circuito de existência. Ao mesmo tempo em que é paciente, o corpo é agente; ele é afetado pelo exterior no ato mesmo de explorar as suas regiões.

O caractere afetivo é crucial para se identificar outra fragilidade das teorias psicológicas no que tange ao corpo próprio. Se nos pautarmos apenas pelo lado da subjetividade, aos elementos do exterior caberiam certos tipos de afeto, e a eles, no momento em que influenciariam o corpo, corresponderia uma representação pontual no intelecto. O que não ocorre: indica-nos Merleau-Ponty que, no caso de um incômodo acarretado por um prego a ferir o pé, não se pensará que ele seria a “causa” ou a “representação” da dor, mas que ele é a região dolorosa mesma, ou seja, “a dor indica seu lugar, [...] ela é constitutiva de um ‘espaço doloroso’” (Merleau-Ponty 1, 138) que é intrínseco ao corpo. É o resvalar do mundo circundante na subjetividade que a experiência de dor evidencia, posto que a dor, mesmo que advinda dum afeto externo, nunca se decompõe em “pensamento de dor” ou em mero significado doloroso.

Desta maneira, na experiência afetiva, o corpo nunca é uma massa inerte e passiva; ele é, não somente pela sua permanência e pela sua capacidade imediata de reflexão, diferente dos objetos externos pela maneira com a qual projeta diante e ao redor de si um fundo afetivo, no qual esses elementos sensíveis do mundo externo se perfilam e estabelecem relações. É esse fundo afetivo que, a rigor, é o responsável por impulsionar a consciência para fora de si mesma (cf. Merleau-Ponty 1, 138), e que é involuntariamente desvelado pela psicologia clássica.

Por fim, o último caractere investigado por Merleau-Ponty é o

das “sensações cinestésicas”, isto é, dos movimentos parciais do corpo em direção a determinado fim e as sensações derivadas diretamente daí. Os psicólogos tendem a decompor o movimento total do corpo em partes objetivas e, uma vez em posse delas, reconstituir passo a passo tal movimentação, até a síntese do movimento global. A rigor, o que há é uma antecipação do final desses movimentos, ignorando-se o movimento originário desfechado pelo corpo próprio. No manejo de objetos externos, é natural que haja tal decomposição de etapas; contudo, o que podemos dizer da movimentação do corpo próprio? Será que podemos decompor sua motricidade em eventos separados, servos de um fim, como intenta tal vertente da psicologia?

O corpo, como vimos, está sempre presente; não é necessário, pois, um movimento de preparação para alcançá-lo a distância, pois “eu o movo diretamente, não o encontro em um ponto do espaço objetivo para levá-lo a um outro, não preciso procurá-lo, ele já está comigo.” (Merleau-Ponty 1, 138). Sua movimentação é, antes de tudo, espontânea, anterior ao surgimento dum espaço compartimentado e quantificável. Há para o corpo uma presença inalienável, um atestado de existência própria a qual não cabem questionamentos, um campo de presença que o harmoniza com os objetos que o rodeiam, afetando-se mutuamente e entranhando-os numa mesma duração, fazendo-os habitar um mundo comum, que exprime, em suma, esse transbordamento da subjetividade.

Assim, tal como com a fisiologia mecanicista, Merleau-Ponty faz uso dos argumentos internos de tal paradigma a fim de questioná-lo de dentro. Porém, todas essas contribuições que lhe permitiram repensar a subjetividade e superar a ordem restritiva do para-si vieram da própria psicologia, que, mesmo avançando em tais conclusões, não conseguiu ir além da subjetividade confinada ao interior. Por que, afinal, a psicologia acaba acertando em suas conclusões parciais, mas erra ao tentar dar um

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passo além? Por que ela, tal como o mecanicismo, termina por defender um dos extremos do pensamento objetivista, a saber, a ordem do para-si, a subjetividade soberana face ao mundo exterior?

Para Merleau-Ponty, trata-se duma orientação teorética dos psicólogos clássicos que reforçava a separação total entre sujeito e objeto, desta vez favorecendo o primeiro, ou seja, um reforço do paradigma cartesiano de pensamento. Em suas palavras, “eles se situavam no lugar de pensamento impessoal ao qual a ciência se referiu enquanto ela acreditou poder separar, nas observações, o que diz respeito à situação do observador e as propriedades do objeto absoluto.” (Merleau-Ponty 1, 139). De certa maneira, os paradigmas da psicologia cometem os mesmos erros do mecanicismo, mas com sinal trocado; aqui, valorizou-se o sujeito em detrimento de seu mundo. É o outro polo da problemática.

Os psicólogos que se pautam por tal matriz teórica, nas conclusões do autor, tomam como objeto de seus estudos o “psiquismo”, ou seja, a vida da consciência devidamente objetivada e, distanciando-se dele, isolando-se tal qual na relação entre sujeito e objeto, limitam-se a determinar suas leis e suas relações através de um pensamento impessoal, uma visão de sobrevoo, para utilizarmos um célebre bordão merleau-pontyano. Assim, mesmo que suas conclusões parciais abrissem uma brecha para novas considerações filosóficas, a psicologia clássica enfocada por Merleau-Ponty se esquece do fundo existencial fundado pelo subjetivo e, desprezando toda a riqueza da vida da consciência, limita-se a tomar os fenômenos mentais como simples fatos. O corpo, por sua vez, não tarda a recair no plano da representação intelectual; o subjetivismo de cunho cartesiano se fortalece.

Novamente, o problema das relações entre alma e corpo; novamente, o impasse do pensamento objetivo, agora pendendo para o lado do intelecto. Desta maneira, alerta-nos Merleau-Ponty de que

A incompletude de minha percepção era compreendida como uma incompletude de fato, que resultava da organização de meus aparelhos sensoriais; a presença de meu corpo, como uma presença de fato que resultava de sua ação perpétua sobre meus receptores nervosos; enfim, a união entre a alma e o corpo, suposta por essas duas explicações, era compreendida, segundo o pensamento de Descartes, como uma união de fato cuja possibilidade de princípio não precisava ser estabelecida porque o fato, ponto de partida do conhecimento, eliminava-se de seus resultados acabados. (Merleau-Ponty 1, 140)

Contudo, por se colocar justamente numa perspectiva impessoal e destacada do mundo, a mirá-lo duma distância segura, o psicólogo, na visão do filósofo, ignora que é o seu próprio psiquismo que está sendo analisado, que são as leis universais da vida de sua consciência que estão em evidência. Ao enumerar fatos em seus estudos, o pesquisador também ignora a abertura originária ao mundo que é sua raiz, seu fundamento, o campo primordial de vivências que lhes confere um significado. É o campo afetivo da consciência do qual já falamos que é necessário retomar.

Deste modo, ser uma consciência não é se fechar no interior da subjetividade e, uma vez encastelado nessa dimensão, contemplar um mundo representado. Pelo contrário: “ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles. Ocupar-se de psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do pensamento objetivo que se move entre as coisas inteiramente prontas, uma primeira abertura às coisas sem a qual não haveria conhecimento objetivo.” (Merleau-Ponty 1, 142).

Sendo assim, reencontramos também nas análises da psicologia clássica a experiência do pré-objetivo, testemunha dessa abertura primeira

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do corpo ao mundo, anterior às separações categoriais, meio onde se encontram unidas, anterior à sua polarização, as ordens do somático e do psíquico. É a pá de cal jogada sobre o corpo reduzido a objeto material do mundo e sobre a representação nascida do intelecto: por impor uma perspectiva sobre o mundo, por se situar em seu estofo e não acima ou numa dimensão lateral, é o corpo que, pela sua permanência, garante o acesso do sujeito à esfera mundana. Poderíamos dizer mais: que é pela ação do corpo que o subjetivo ganha o exterior, ou que o para-si da interioridade psíquica transborda para além de suas fronteiras.

3. Considerações finais

O “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre a alma e o corpo, uma das mais conhecidas fórmulas filosóficas, é objeto de críticas constantes por parte de Merleau-Ponty. Nele, as relações entre ambas as dimensões ontológicas são marcadas por uma forte oposição: ambas são substâncias separadas, distintas entre si, cada uma com a sua dimensão própria. Tanto nas críticas à fisiologia mecanicista quanto na análise dos discursos da psicologia clássica, o filósofo desemboca inexoravelmente no domínio do pré-objetivo. É essa dimensão que está antes das categorias, que é subjacente aos discursos categoriais da fisiologia e da psicologia, que permite dar ao corpo percipiente e às suas capacidades sensório-motoras um novo estatuto filosófico: o de veículo da existência, acesso ao ser através da percepção do mundo e, em outras palavras, como o ser no mundo mesmo. Ser no mundo é, antes de tudo, ter um corpo em contato permanente com um mundo de caracteres sensíveis.

O paradoxo do corpo habitual e atual, reforçado pelos sintomas do membro fantasma e da anosognose, além de contestar o argumento do corpo como um objeto material como os outros, contamina-o com o germe

da duração e da temporalidade: pelo hábito, o corpo traz consigo, em perene atualização e retomada, todo o seu passado. Já o campo afetivo da subjetividade que entrevemos pela análise dos argumentos dos psicólogos, especialmente no que toca à permanência do corpo próprio e à sua capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo que o cerca, confere-lhe um horizonte, um campo de possibilidades de experiência, em resumo, abre-o para um devir, para uma dimensão futura. Reforça-se, portanto, a duração que já era entrevista nas análises da fisiologia. Se o corpo tem um passado, não podemos mais considerá-lo como um objeto estável e regido por leis mecânicas, como queriam os fisiologistas; já se ele emana ao redor de si um campo de virtualidades, que nada mais é do que o transbordamento da subjetividade no exterior, também não mais podemos contar com a impessoalidade e a atemporalidade dum intelecto soberano.

Portanto, o corpo que emerge das reflexões de Merleau-Ponty é o pivô da existência primeiramente porque ele a acompanha em todos os seus passos; é ele que pulsa nessa duração subjacente a todas as vivências do ser humano, fazendo a junção entre seu passado e seu devir. O corpo como pivô da existência é, por si só, atualidade mesma. É nele que se deposita a dimensão temporal, é no corpo pré-objetivo que o somático e o psíquico não travam conflito algum.

bEyoND tHE obJECt boDy aND tHE INtELECtUaL REPRESENtatIoN: How mERLEaU-PoNty REDISCovERS tHE

boDy aS tHE EXIStENCE’S vEHICLE.

abstract: This essay analyses the objections made by Merleau-Ponty to what he calls “cartesien paradigm of thinking”, the separation between soul and body. Concentrating in the two first chapters of Phénomenologie de la perception’s first part, it’s an intent to identificate, in the critics directed to the mechanicist physiology and to the subjective psychology, how the philosopher gives a new philosophical statute for the sensitive

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body, putting it as the main existence’s vehicle, in the same time that he rediscovers the pre-objective experience. Keywords: Merleau-Ponty; existence; body; subjectivity, physiology.

REFERÊNCIaS bIbLIoGRÁFICaS:

1. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

2. FERRAZ, Marcus Sacrini Ayres. O transcendental e o existente em Merleau-Ponty. São Paulo: Humanitas, 2006.

3. RAMOS, Silvana de Souza. A Prosa de Dora: Uma leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo, 2009. Tese (Doutorado em Filosofia). FFLCH, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo.

NotaS:

1. Observemos o comentário de Marcus Ferraz: “O território em que o psíquico e o somático estão integrados é a dimensão em que eles ainda não foram cindidos. Na vivência encarnada do ser no mundo, no movimento de transcender-se em um meio significativo, não há separação entre ambos, e sim a experiência de um ‘corpo habitual’, ou seja, de um conjunto de respostas às situações mundanas que se sedimentam e podem mesmo ganhar autonomia em relação à consciência atual do corpo.” (Ferraz 2, 88-89). Não falaremos diretamente da contraposição entre corpo habitual e corpo atual nessa passagem; ela aparecerá em breve em nosso texto. Por ora, da leitura do comentador e do texto merleau-pontyano, descobrimos o pré-objetivo como um elemento subjacente ao pensamento objetivo, e não como a sua contraparte. Deste modo, tanto a objetividade quanto a subjetividade se radicam nesse domínio originário da experiência, nessa vivência primeira e espontânea do ser no mundo. A cisão, portanto, é secundária e dependente. Merleau-Ponty identifica a experiência

pré-objetiva justamente num ser irracional pelo mesmo motivo que se utiliza de exemplos de doente para clarificar os meandros da percepção: é nessas situações nas quais o pensamento objetivo está ausente que se verifica a presença preponderante de seu fundamento, na qual só se pode encontrar esse engajamento mundano primordial. Em resumo, nas situações que escolhe para analisar, Merleau-Ponty parte não das categorias mas da vivência bruta e espontânea, o que seria dificultoso (para não se dizer problemático) se ele tomasse as categorias objetivas como ponto de partida. Trata-se, a rigor, duma questão de método que é suscitada pelo próprio pré-objetivo.2. É interessante notar como Merleau-Ponty busca conceitos em outros ramos do conhecimento, no caso a psicologia, para iluminar os estudos e reflexões que elabora ao longo de sua filosofia. No caso do membro fantasma, quando uma determinada recordação ou contexto emocional o manifestam no doente, a associação com o recalque do qual fala a psicanálise é inevitável. Escreve-nos o filósofo sobre o recalque que ele “consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via [...], encontra uma barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obstáculo nem para renunciar ao empreendimento, permanece bloqueado nessa tentativa e emprega indefinidamente suas forças em renová-la em espírito.” (Merleau-Ponty 1, 123) A rigor, o indivíduo recalcado ou traumatizado tem a existência imobilizada por um episódio ou elemento de seu passado, que o impede de se projetar ao futuro, condicionando-o a um horizonte impossível que ele não cessa de alimentar em cada segmento de sua vida. Aqui vemos o peso do passado que o corpo atual é fadado a carregar: toda recordação, ou qualquer elemento que faça referência a ela, como no caso dos mutilados que ainda sentem o membro inexistente na extremidade do coto, reabre esse passado, torna-o presente a quem o viveu e obriga o indivíduo a retomá-lo a partir de sua atualidade. Por outro lado, em se considerando o retorno inesperado dessa vivência passada, “todo recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica dessa existência, que vive para uma experiência antiga ou antes para a recordação de tê-la tido” (Merleau-Ponty 1, 124). O recalque, tal como a permanência dum braço fantasma, aprisiona o sujeito numa experiência em terceira pessoa, isto é, dissolve a experiência do atual no anonimato e na generalidade. Como no exemplo apontado por Merleau-Ponty nessa altura do texto, o indivíduo continua a se empenhar num amor adolescente ou numa obra malfadada, mesmo sabendo-os impossíveis, embora novas experiências e novos fatos vão lhe acontecendo. Porém, essas experiências são arroladas num domínio geral e vivenciadas pelo sujeito em seu anonimato, tendo pouca ou nenhuma influência em seus projetos pessoais. Além de reforçar o fenômeno

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de ambiguidade temporal do corpo em sua marcha existencial, o recurso a conceitos advindos de outros domínios do conhecimento é, mais do que um recurso estilístico frequentemente empregado por Merleau-Ponty, uma maneira de colocar a filosofia em diálogo com a experiência integral do ser humano.

TRADUÇÃO

APRESENTAÇÃO À TRADUÇÃO

DE AD ETHICAN B. DE SP. DE LEIBNIZ

Leibniz recebeu a Opera posthuma de Espinosa em 1678, provavelmente depois de 25 de janeiro* (quando Schuller comunica o envio dela a Leibniz) e, a partir dessa data, fez uma série de anotações nas margens de seu exemplar. Sem a preocupação de relacionar os textos comentados entre si, leu, sugere Belaval**, como um criador, a partir de sua própria filosofia.

Há dois manuscritos de Leibniz sobre a Ética de Espinosa: um comentário mais detido sobre a parte I da Ética (publicado por Gerhardt em 1875: Leibniz – Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962 – vol. I, p.139-150) e uma releitura dos cinco livros da Ética na qual Leibniz redefine de maneira muito breve, em notas curtas, alguns conceitos espinosanos (publicado por Grua: Textes inédits. Ed. G. Grua. Paris: PUF, 1948 – vol. I, p.277-286). A tradução que agora apresentamos é do primeiro desses manuscritos, escrito, certamente depois de uma segunda leitura do livro I

* Cf. Morfino, V. – Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678). Milano: Edizioni Unicopli, 1994. – p.115.** Belaval, Y. – “Leibniz lecteur de Spinoza” in Archives de philosophie, 1983, 4.

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Apresentação: Tessa Moura Lacerda

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da Ética, como sugere V. Carraud* depois de F. de Careil**. Esse texto, que recebeu de Gerhardt o título Ad Ethican B.

de Sp., apresenta uma crítica cerrada do primeiro livro da Ética de Espinosa, acompanhando o duplo movimento que define o De Deo***, isto é, a demonstração da unicidade substancial (nas proposições 1 a 16) e a demonstração da causalidade eficiente imanente necessária (proposições 17-36). Podemos observar uma diferença sutil no comentário de Leibniz a cada um dos grupos de proposições. É verdade, como observa Morfino****, que o adjetivo que domina o manuscrito de Leibniz é “obscuro” (usado para as definições 2, 3, 4, axioma 1, proposições 5, 8, 20, 21, 22, 29). Em outras palavras, a crítica à forma lógica do texto de Espinosa aparece ao longo de todo o livro I da Ética, mas quando Leibniz se dedica às proposições que demonstram a essência do absoluto, seus comentários mostram um interesse particular em compreender o que está sendo dito e não apenas em criticar as teses espinosanas*****. Nas primeiras proposições, a crítica à forma lógica do texto leva Leibniz inclusive a refazer demonstrações, oferecendo alternativas para o que considera mal demonstrado. Em certo sentido, poderíamos dizer que, por mais críticos que sejam os comentários às proposições 1-16, Leibniz é mais generoso em sua leitura do que na

* Carraud, V. in Leibniz – “Sur l’Éthique de Spinoza” in Philosophie, n.2, avril 1984. Paris: Les Editions de Minuit – p.2. ** Foucher de Careil – Ménmoire sur La Philosophie de Leibniz. Paris: 1905 – tomo I, p.166.*** Cf. Chaui, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Cia. das Letras, 1999 – p.750-751, p.816.**** Morfino, V. – “Il manoscrito leibniziano Ad Ethicam” in Quaderni materialisti volume II, 2003. Milano: Edizioni Ghibli – p.108.***** O adjetivo “obscuro” denota, no comentário às primeiras 16 proposições, apenas uma incompreensão ou uma discordância, ao passo que nas proposições seguintes, as críticas são muito mais ásperas, como, por exemplo, na proposição 20 “os raciocínios desse gênero são familiares àqueles que não possuem a arte verdadeira da demonstração.”; na proposição 25 “essa prova não tem nenhuma importância”; na proposição 29 “A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas proposições precedentes, elas também abruptas, obscuras e duvidosas”; na proposição 30, “essa proposição, tão clara de acordo com as precedentes, (...), nosso autor a demonstra, a sua maneira, por elementos obscuros, duvidosos e afastados” e, mais adiante ainda na P30, “O espírito do autor, parece, é bastante tortuoso: raramente ele avança por um caminho claro e natural, mas sempre abruptamente e com desvios. E a maior parte das demonstrações enganam o espírito mais do que o esclarecem.”.

leitura das proposições 17 a 36, razão pela qual Friedmann* chega a considerar a hipótese de que o comentário à segunda parte do De Deo, sobretudo a partir da proposição 20, tenha sido escrito um pouco mais tarde. De qualquer maneira, o fato é que a acidez das críticas do manuscrito leibniziano na segunda parte do livro I da Ética pode ser perfeitamente compreendida pelo tema a que se dedicam essas proposições de Espinosa, a causalidade eficiente imanente necessária, tema que vai de encontro a teses fundamentais da filosofia leibniziana, como a criação do mundo por um Deus bom e sábio, a liberdade divina e a humana etc. Mesmo que possamos admitir que a filosofia leibniziana ainda não estava madura em 1678 e que alguns temas ainda não estavam perfeitamente definidos**, há certos pressupostos de que Leibniz jamais poderia se desfazer – a criação do mundo por um Deus sábio é um deles, a contingência desse mundo criado por uma ação da vontade divina também.

As anotações de Leibniz ao De Deo, traduzidas para o português por Homero Santiago, constituem um documento importante para a compreensão das relações entre a filosofia de Leibniz e a filosofia de Espinosa, para a compreensão das possíveis influências de Espinosa no pensamento leibniziano, para a compreensão, enfim, de determinadas posições filosóficas de Leibniz.

Tessa Moura Lacerda.

* Friedmann - Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1963. ** Cf., por exemplo, a definição de substância ou a relação entre a essência simples de Deus e seus atributos. Ver nosso Lacerda, Tessa - “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”. In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241.

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AD ETHICAM B. D. SP.(G.W. LEIBNIZ)

PaRS PRIma DE DEo.

DEFINITIO 1. CAUSA SUI est id cujus Essentia involvit

existentiam.

DEFINITIO 2. obscura est, quod res sit finita, quae alia sui generis

terminari potest. Quid est enim cogitationem cogitatione terminari? An qua

datur alia major? uti corpus terminari ait quo aliud majus concipi potest.

Adde infra prop. 8.

DEFINIT. 3. SUBSTANTIA est quod in se est et per se concipitur.

Etiam haec obscura. Quid enim in se esse? Deinde quaerendum est,

cumulative an disjunctive inter se conjungat: in se esse, et per se concipi,

id est an hoc velit: substantiam est id quod in se est, item substantia est id

quod per se concipitur; an vero velit substantiam esse id in quo utrumque

hoc concurrit, ut nempe et in se sit et per se concipiatur. Aut necesse erit

ut demonstret, qui unum habeat etiam alterum habere, cum contra videatur

potius, esse aliqua quae sint in se, etsi non per se concipiantur. Et ita vulgo

homines substantias concipiunt. Subjicit: substantia est cujus conceptus

SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSAG. W. LEIBNIZ

(tradução de Homero santiago e revisão de tessa moura lacerda*)

PRImEIRa PaRtE: DE DEUS

DEFINIÇÃO 1. CAUSA DE SI é isso cuja essência envolve existência**.

DEF. 2. É obscura: que a coisa finita seja a que pode ser delimitada por outra de seu gênero. O que é, com efeito, um pensamento ser delimitado por um pensamento? Dá-se um maior que outro, tal como se diz que um corpo é delimitado por se poder conceber outro maior? Acrescente-se a prop. 8 abaixo.

DEF. 3. SUBSTÂNCIA é isso que é em si e concebido por si. Também esta é obscura. Com efeito, o que é ser em si? Ademais cabe perguntar se ser em si e ser concebido por si conjugam-se entre si cumulativa ou disjuntivamente; ou seja, se isto quer dizer que substância é aquilo que é em si, bem como que a substância é aquilo que é concebido por si; ou se quer dizer que a substância é isso em que concorrem ambas as coisas, a saber, que seja em si e por si concebida. Ou será necessário demonstrar que ter uma coisa é também ter a outra, já que, pelo contrário, mais parece haver algumas coisas que são em si, se bem que não sejam concebidas por si. e é assim que os homens comumente concebem as substâncias. Ele

* Professores do Departamento de Filosofia da USP.** Os trechos em itálicos correspondem a passagens do texto de Espinosa, embora freqüentemente nas transcrições de Leibniz faltem termos presentes no texto de Espinosa. (N.R.)

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Cadernos Espinosanos XXIII

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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non indiget alterius rei conceptu a quo formari* debeat. Sed in hoc quoque

difficultas, nam in sequenti definitione ait AttrIbUtUm ab intellectu de

substantia percipi tanquam ejus essentiam constituens. Ergo attributi

conceptus necessarius est ad formandum conceptum substantiae. Si dicas

attributum non esse rem, te vero requirere saltem ut substantia non indigeat

conceptu alterius rei, respondeo. explicandum est ergo, quid vocetur res, ut

intelligamus definitioneni, et quomodo attributum non sit res.**

DEFINIT. 4. etiam obscura est, quod attributum sit id quod intellectus

de substantia percipit, ut essentiam ejus constituens. Quaeritur enim an per

attributum intelligat omne praedicatum reciprocum, an omne praedicatum

essentiale sive reciprocum sive non; an denique omne praedicatum

essentiale primum seu indemonstrabile de substantia. Vide definit. 5.

DEFINIT. 5. Modus est quod in alio est, et per aliud concipitur.

Videtur ergo in eo differre ab attributo, quod attributum est quidem in

substantia, attamen per se concipitur. Et hic explicatione adjecta cessat

obscuritas definitionis 4.

DEFINIT. 6. Deum, inquit, definio Ens absolute infinitum, vel

substamiam constantem infinitis attributis, quorum unumquodque aeterriam

et infinitam essentiam exprimit. Ostendere debebat has duas definitiones

esse aequipollentes, alioqui unam in alterius locum substituere non potest.

Erunt autem aequipollentes, ubi ostensum erit plura esse in rerum natura

attributa seu praedicata, quae per se concipiuntur; item ubi ostensum erit

* No original, firmari; corrigimos seguindo Carraud c o próprio texto espinosano; logo a diante se vê: ad formandum conceptum... A edição italiana ndo procede à correção.** Segundo Morfino, este parágrafo está à margem do manuscrito; Gerhardt incorpora-o ao texto.

acrescenta: substância é isso cujo conceito não carece do conceito de outra coisa a partir do qual deva ser formado. Mas nisso igualmente há uma dificuldade, pois na definição seguinte, ele diz que ATRIBUTO é o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela. Logo, o conceito de atributo é necessário para formar o conceito de substância. Se disseres que atributo não é uma coisa, e que tu na verdade requeres ao menos que a substância não precise do conceito de outra coisa, respondo: cabe então explicar, para entendermos a definição, o que é chamado de coisa e como o atributo não é uma coisa.

DEF. 4. Também é obscura: atributo é isso que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela. Com efeito, pergunta-se se por atributo ele entende todo predicado recíproco; ou se todo predicado essencial, recíproco ou não; ou se, finalmente, todo predicado essencial ou indemonstrável da substância. Ver a def. 5.

DEF. 5. Modo é isso que é em outro, pelo qual também é concebido. Portanto parece diferir do atributo nisso: o atributo deveras está na substância, todavia é concebido por si. E aqui, ajuntada esta explicação, desaparece a obscuridade da definição 4.

DEF. 6. Defino Deus, diz ele, o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e [140] infinita. Ele devia mostrar que essas duas definições são eqüipolentes; de outra forma não pode substituir uma pela outra. Ora, serão eqüipolentes quando se mostrar que na natureza há vários atributos ou predicados que são concebidos por si, bem como quando se mostrar que vários predicados podem estar juntos. Além disso, é imperfeita toda definição (ainda que possa ser verdadeira e clara) entendida a qual se possa duvidar que a coisa definida seja possível. Ora, esta é assim; com efeito, pode-se ainda duvidar que o ente que tem infinitos atributos não implique [contradição]; e isso porque se pode duvidar de que a mesma

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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plura praedicata posse stare, inter se. Praeterea omnis definitio imperfecta est (tametsi vera et clara esse possit) qua intellecta dubitari potest an res definita sit possibilis. Talis autem ista est, dubitari enim adhuc potest an Ens infinita habens attributa non implicet. Vel ideo quia dubitari potest, an eadem essentia simplex pluribus diversis attributis exprimi potest. Equidem plures sunt definitiones rerum compositarum, sed rei simplicis non nisi unica est, nec ejus essentia nisi unico modo exprimi posse videtur.

DEFINIT. 7. RES LIBERA quae ex suae naturae necessitate existit et ad agendum determinatur, RES COACTA quae ab alio determinatur ad existendum et operandum.

DEFINIT. 8. Per ETERNITATEM intelligo ipsam existentiam quatenus ex rei essentia sequi concipitur. Has definitiones probo.

AxIOm. 1. Omnia quae sunt, vel in se vel in alio sunt.Ax. 2. 1d quod per aliud non potest concipi, per se concipitur.Ax. 3. Ex data determinata causa sequitur effectus, si non detur, non sequitur.Ax. 4. Effectus cognitio ex cognitione causae dependet et eam involvit.Ax. 5. Quae nihil commune secum invicem habent, etiam per se

invicem intelligi non possunt.Ax. 6. Idea vera debet cum suo ideato convenire.Ax. 7. Quicquid ut non existens potest concipi, ejus essentia non

involvit existentiam.Circa AXIOMATA haec noto: Primum tamen obscurum est, quam

diu non constet quid sit esse in se. Secundum et septimum annotari nihil necesse erat. Sextum parum congruum videtur; omnis enim idea cum suo ideato convenit, nec video quid sit idea falsa. Tertium, quartum, quintum

demonstrari posse arbitror.

essência simples possa ser exprimida por vários atributos diferentes. De fato, são várias as definições das coisas compostas, mas de uma coisa simples não há senão uma única, e sua essência parece não poder ser exprimida senão de um único modo.

DEF.7 COISA LIVRE é a que existe a partir da necessidade de sua natureza e determina-se por si, COISA COAGIDA aquela que é determinada por outro a existir e a operar.

DEF. 8. Por ETERNIDADE entendo a própria existência enquanto concebida seguir da definição da coisa eterna. Aprovo estas definições*.

Ax. 1. Tudo que é, ou é em si ou em outro.Ax. 2. Isso que não pode ser concebido por outro é concebido por si.Ax. 3. De uma causa determinada dada segue um efeito; se não for

dada, não se segue.Ax. 4. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa

e envolve-o.Ax. 5. Coisas que nada têm em comum uma com a outra também

não podem ser inteligidas uma pela outra.Ax. 6. A idéia verdadeira deve convir com o seu ideado.Ax. 7. O que quer que possa ser concebido como não existente, sua

essência não envolve existência.**

Acerca dos AXIOMAS noto: o primeiro é obscuro enquanto não constar o que é ser em si. Do segundo e do sétimo não era necessário anotar nada. O sexto parece pouco conforme: com efeito, toda idéia convém com seu ideado, e não vejo o que é a idéia falsa. O terceiro, o quarto e o quinto julgo que podem ser demonstrados.

* Trata-se, como indica Gehardt, das definições 7 e 8 (N.T.).** Leibniz transcreve os axiomas à margem do manuscrito-, Gerhardt os dá em nota; nós o incorporamos ao texto como faz Morfino (.Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678). Milano: Edizioni Unicopli, 1994). (N.T.)

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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PROPOSITIO 1. Substantia est natura prior suis affectionibus, id

est modis, nam ad defin. 5. dixit se per substantiae affectiones intelligere

modos. Caeterum non explicuit quid sit esse NAtUrA prIUS, ideoque nec

potest haec propositio ex praecedentibus demonstrari. Videtur autem per

NAtUrA prIUS AlIO intelligere id per quod aliud concipitur. Caeterum fateor

et in hoc aliquam esse difficultatem; videntur enim non tantum posteriora

per priora, sed et priora per posteriora concipi posse. Licebit tamen natura

prius hoc modo definire, quod concipi potest non concepto alio, ita ut contra

alterum concipi non possit nisi concepto ipso. Verum ut dicam quod res est,

natura prius paulo latius est: nam exempli causa proprietas denarii ut sit 6

+ 4 posterior natura est hac ut sit 6 + 3 + 1 (quia ista est propior omnium

primae: denarius est 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1) et tamen concipi

potest sine priore, imo quod amplius est, potest sine, ea demonstrari. Addo

aliud exemplum: In Triangulo proprietas illa, quod tres anguli interni sint

aequales duobus rectis, posterior natura est hac- quod duo anguli interni

sint aequales externo tertii, et tamen illa sine ista concipi, imo forte (etsi

non aeque commode) sine ipsa demonstrari potest.

PROP. 2. Duae substantiae diversa attributa habentes nihil inter

se commune habent. Si per attributa intelligit praedicata quae per se

concipiuntur, concedo propositionem, posito duas esse substantias A

et B et substantiae A attributum esse C, substantiae B attributum esse D,

vel si substantiae A atribula omnia sint C. E, substantiae vero B attributa

omnia D. F. Secus est si duae illae substantiae quaedam habeant attributa

diversa, quaedam coramunia, ut si attributa ipsius A sint C. D. et ipsius B

PROPOSIÇÃO 1. A substância é anterior por natureza a suas afecções, isto é, a seus modos, pois à def. 5 ele disse entender por afecções da substância os modos. De resto não explicou o que é ser anterior por natureza, e por isso não pode demonstrar esta proposição a partir do que a precede. Ora, parece que por anterior por natureza a outro ele entende aquilo pelo que o outro é concebido. De resto, confesso que também nisso há alguma dificuldade; com efeito, parece que se podem conceber não apenas os posteriores pelos anteriores, mas também os anteriores pelos posteriores. Todavia, seria lícito definir anterior por natureza [141] deste modo: o que pode ser concebido não concebida outra coisa; assim como, do contrário, não se possa conceber outro a não ser concebido o próprio. Para dizer a verdade, anterior por natureza é algo um pouco mais amplo, pois, por exemplo, a propriedade da dezena de ser 6 + 4 é posterior por natureza a de ser 6 + 3 + 1 9 (já que esta é mais próxima da primeira de todas: o número 10 é 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1), e todavia pode ser concebida sem uma anterior; e mais, é mais ampla e pode ser demonstrada sem ela. Acrescento outro exemplo: no triângulo, a propriedade de serem os três ângulos internos iguais a dois retos é posterior por natureza à de serem os dois ângulos internos iguais ao externo do terceiro, e todavia aquela pode ser concebida sem esta, e porventura até pode (embora não com a mesma comodidade) ser demonstrada sem ela.

PROP. 2 Duas substâncias que têm atributos diversos nada têm em comum entre si. Se por atributos ele entende predicados que são concebidos por si, concedo a proposição, posto serem duas substâncias A e B, e o atributo da substância A ser c e o atributo da substância B ser d; ou se todos os atributos da substância A são c, e; todos os atributos da substância B são d, f. Seria diferente se aquelas duas substâncias tivessem alguns atributos diversos e alguns comuns, como se os atributos de A fossem c, d, e os atributos de B fossem d, f. Se ele nega que isso possa ocorrer,

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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sint D. F. Quod si negat hoc fieri posse, demonstranda est impossibilitas.

Propositionem ipsam in casu objectionis forte demonstrabit hoc modo:

quia D pariter et c eandem essentiam exprimit (cum ejudem substantiae A

attributa sint ex hypothesi) et ob eandem rationem etiam D et F (cum etiam

ex hypothesi ejusdem substantiae 13 attributa sint); ergo et C et F. Unde

sequitur, eandem esse substantiam A et B, contra hypothesin, absurdum

ergo duas substamias diversas aliquid commune habere.* Respondeo,

non concedi a me quod possint dari duo attributa quae per se concipi, et

tamen idem exprimere possint. Nam quandocunque id contigit, tunc duo

illa attributa idem diverso modo exprimentia tandem resolvi possunt, vel

saltem eorum alterutrum. Quod facile possum demonstrare.

PROP. 3. Quae res nihil coramune inter se habent, earum una alterius

causa esse non potest, per axiom. 5. 4.

PROP. 4. Duae aut plures res distinctae vel inter se distinguuntur**

ex diversitate attributorum substantiarum, vel ex diversitate affectionum.

Desmonstrat ita: Omnia quae sunt, vel in se vel In alio sunt per axiom. 1.,

hoc est per defin. 3. et 5. extra intellectum nihil datur praeter substantias,

earumque affectiones. [Hic miror eum oblivisci attributorum, nam defin. 5.

per substantiae affectiones intelligit tantum modos. Sequitur ergo aut eum

ambigue locutum, aut attributa non numerari ab eo inter res extra intellectum

existentes, sed tantum substantias et modos. Caeterum propositionem fácilius

poterat ostendere, modo addidisset, res quae scilicet concipi possunt per

attributa vel affectiones, necessario cognosci adeoque et distingui.]

* Richiamento com um asterisco à margem do manuscrito (Morfino).** Gerhardt, distinguntur; corrigimos seguindo o texto espinosano.

cabe demonstrar a impossibilidade. No caso de objeção, talvez demonstre a proposição deste modo: porque d e igualmente c exprimem a mesma essência (como são por hipótese atributos da mesma substância A) e em vista dessa mesma razão também d e f (como também por hipótese são atributos da mesma substância B); logo, também c bem como f. Donde se segue que A e B são a mesma substância, contra a hipótese; logo é absurdo duas substâncias diversas terem algo em comum. Respondo que não é concedido por mim que se possa dar dois atributos que sejam concebidos por si, e todavia possam exprimir o mesmo. Pois, cada vez que isso acontece, então aqueles dois atributos, exprimindo o mesmo de modo diverso, podem finalmente ser resolvidos, ou pelo menos um dos dois. O que posso demonstrar facilmente.

PROP. 3. De coisas que entre si nada têm em comum uma com a outra, uma não pode ser causa da outra, pelos axiomas 5 e 4.

PROP. 4. Duas ou várias coisas distintas distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias, ou pela diversidade das afecções das mesmas substâncias. Duas ou várias coisas distintas distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias, ou pela diversidade das afecções das mesmas substâncias. Ele demonstra assim: tudo o que é, ou é em si ou em outro, pelo ax. 1, isto é, pelas def. 3 e 5 nada se dá fora do intelecto além da substância e suas afecções. (Admira-me aqui que ele tenha esquecido dos atributos, pois a def. 5 entende por afecções da substância apenas os modos. Logo, segue-se que ou falou de forma ambígua ou os atributos são enumerados por ele entre as coisas existentes fora do intelecto, mas apenas substâncias e modos. De resto, pudera apresentar mais facilmente a proposição, contanto que acrescentasse que as coisas que podem ser concebidas pelos atributos em afecções necessariamente são conhecidas e por isso também distinguidas.).

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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PROP. 5. In rerum natura non possunt, dari duae aut plures substantiae

ejusdem naturae seu attributi.

[Hic annoto obscurum videri quid sit hoc: in rerum natura. An

intelligat: in universitate rerum existentium, an vero in regione idearum

vel essentiarum possibilium. Deinde obscurum est an velit dicere, non

dari plures Essentias ejusdem attributi communis, vel an velit, non dari

plura individua ejusdem essentiae. Miror etiam, cur hic vocem naturae et

vocem attributi pro aequipollentibus sumat, nisi per attributum intelliga

quod totam continet naturam. Quo posito non video quomodo possint dari

plura attributa ejusdem substantiae quae per se concipianturj Demonstratio:

Si distinguerentur, aut affectionibus aut attributis distinguerentur; si

affectionibus, ergo cum substantia sit natura prior suis affectionibus per prop.

1., depositis affectionibus etiam distingui debent, ergo attributis; si attributis,

ergo non dantur duae substantiae ejusdem attributi. Respondeo subesse videri

paralogismum. Nam duae substantiae possunt, distingui attributis, et tamen

habere aliquod attributum commune, modo etiam aliqua praeterea habeant

propria. Ex. gr. A C. D et B D. E quorum illius attributum sit c. d, hujus d. e.

Annoto: prop. 1. non. esse utilem nisi ad hanc. Verum ea potuisset

careri, quia sufficit substantiam concipi posse sine affectionibus, sive sit

natura prior, sive non.

PROP. 5. Na natureza das coisas não podem ser dadas duas ou várias substâncias de mesma natureza, ou seja, de mesmo atributo.

(Noto aqui que parece obscuro o que seja isto: “na natureza das coisas”. Entende “na universalidade das coisas existentes” ou “na região das idéias ou essências dos possíveis”? Ademais, é obscuro se quer dizer que não se dão várias essências de mesmo atributo comum, ou se quer dizer que não se dão vários atributos de mesma essência. Admiro-me também por que ele toma aqui natureza e o termo atributo como eqüipolentes; a não ser que entenda por atributo o que contém a natureza inteira. Isto posto, não vejo de que modo se possam dar vários atributos de mesma substância que sejam concebidos por si). Demonstração: se se distinguissem, distinguir-se-iam ou pelas afecções ou pelos atributos; se pelas afecções, então, como a substância é por natureza anterior a suas afecções pela prop. 1, despojadas das afecções elas devem também distinguir-se, então, pelos atributos; se pelos atributos, logo não se dão duas substâncias de mesmo atributo. Respondo que parece que subjaz um paralogismo. Pois duas substâncias podem distinguir-se e todavia ter algum atributo em comum, contanto que tenham alguns próprios. Por exemplo, A (c-d) e B (d-e), em que os atributos daquele são c-d, e o deste d-e.

Noto: a prop. 1 não é útil a não ser para esta demonstração. Poderia, contudo, abster-se dela, já que basta poder conceber a substância sem afecções, seja ou não seja ela anterior por natureza.

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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PROP. 6. Una substantiam non potest produci ab alia substantia,

nam duae substantiae per prop. 5. non sunt ejusdem attributi, ergo nihil

commune babent per prop. 2, ergo non potest una* esse alterius causa per

axiom. 5. Idem aliter et brevius, quia quod per se concipitur, non potest

concipi per aliud velut causam per axiom. 4. Caeterum respondeo, concedi

a me demonstrationem, si substantia sumitur pro re quae per se concipitur,

secus est si sumatur pro re quae in se est, uti vulgo honúnes sumunt, nisi

ostendatur idem esse in se esse et per se concipi.

PROP. 7. AD NATURAM SUBSTANTIAE PERTINET EXISTERE.

Substantia non potest produci ab alio prop. 6. Ergo est causa sui, id est

per definit. 1. ipsius essentia involvit existentiam. Hic non immerito

reprehenditur, quod causam sui modo ut definitum aliquod sumit, cui

peculiarem significationem definit. 1. ascripsit, modo eo in coramuni ac

vulgari suo significatu. utitur. Remedium tamen facile est, si definitionem

illam 1. in axioma convertat et dicat- Quidquid non ab alio est, id est a se

ipso, seu ex sua essentia. Verum aliae hic supersunt difficultates: Nempe

procedit tantum ratiocinatio, posito substantiam existere posse. Necesse

est enim tunc ut, quia ab alio produci non potest, a se ipso existat, adeoque

necessario existat- possibilem autem substantiam, id est concipi posse

demonstrandum est. Demonstrari posse videtur ex eo quia si nihil per

se concipitur, nihil etiam per aliud concipietur, adeoque nihil omnino

concipietur. Quod ut distincte ostendatur, considerandura est, si ponatur a

concipi per B, in conceptu ipsius A esse conceptum ipsius b. Et rursus Si

* Gerhardt, unum; corrigimos seguindo o texto espinosano e Carraud.

PROP. 6. Uma substância não pode ser produzida por outra substância, pois, pela prop. 5, não há duas substâncias de mesmo atributo; logo, nada têm em comum, pela prop. 2; logo, uma não pode ser causa de outra, pelo ax. 5. o mesmo, de outra forma e mais brevemente: já que o que é concebido por si não pode ser concebido por outro como por uma causa, pelo ax. 4. De resto, respondo que concedo a demonstração desde que se tome substância como coisa que é concebida por si. Será diferente se se tomar como uma coisa que é em si, assim como comumente tomam, a não ser que seja mostrado que é o mesmo ser em si e ser concebido por si.

PROP. 7. À NATUREZA DA SUBSTÂNCIA PERTENCE EXISTIR. A substância não pode ser produzida por outro, prop. 6. Logo, é causa de si, isto é, pela def. 1, sua essência envolve existência. Aqui, com justiça, se o repreende por ora tomar causa de si como algo definido, a que a def. 1 adscreve uma definição peculiar, ora utilizá-la em seu significado comum e vulgar. O remédio é fácil, todavia; contanto que se converta aquela 1ª. definição em axioma e se diga: o que quer que não seja por outro, é por si próprio, ou seja, é a partir de sua essência. Porém, restam aí outras dificuldades, a saber, o raciocínio só precede se afirmado que a substância pode existir. Com efeito, é então necessário que ela, por não poder ser produzida por outro, exista por si própria e, dessa forma, exista necessariamente; ora, que a substância é possível, isto é, que possa ser concebida, é algo a demonstrar. Parece que pode ser demonstrado a partir disto: se nada é concebido por si, nada também será concebido por outro, e dessa forma absolutamente nada será concebido. A fim de mostrar distintamente, cumpre considerar que se se afirma A concebido por B, no conceito de A está o conceito de B. e de novo, se B é concebido por C, o conceito de C estará no conceito de A, e assim por diante até o último. Se alguém responder que não se dá um último, respondo que tampouco se dá um primeiro, o que mostro assim: como no conceito do que é concebido

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b concipitur per C, in conceptu b esse conceptum ipsius C, et ita conceptus

ipsius c in conceptu ipsius A erit, et ita porro usque ad ultimum. Quid si quis

respondeat non dari ultimum, respondeo nec dari primum, quod sic ostendo.

Quia in ejus quod per aliud concipitur conceptu nihil est nisi alienum, ideo

gradando per plura, aut nihil omnino in eo erit aut nihil nisi quod per se

concipitur. Quam demonstrationem novam plane, sed infallibilem esse

arbitror. Ejusque ope demonstrari potest id quod per se concipitur concipi

posse. Sed adhuc tamen dubitari potest, an ideo sit possibile eo modo quo

hoc loco sumitur possibile, nimirum non pro eo quod concipi potest, sed

pro eo cujus aliqua concipi potest causa, resolubilis tandem in primam.

Nam quae a nobis concipi possunt, non ideo tamen omnia produci possunt,

ob alia potiora quibus incompatibilia sunt. Ideo Ens quod per se concipitur

actu esse probari debet adhibita experientia, quia existunt quae per aliud

concipiuntur, ergo existit etiam id per quod concipiuntur. Vides quam longe

alia sit opus ratiocinatione ad accurate probandam rem per se existentem.

Forte tamen hac ultima cautione non opus.

PROP. 8. Omnis substantia est necessario infinita, quia alioqui

terminaretur ab alia ejusdem naturae per definit. 2. et darentur duae

substantiae ejusdem attributi contra. prOp. 5. Haec propositio ita intelligenda

res quae per se concipitur, in suo genere infinita est, et ita admittenda.

Demonstratio autem laborat tum obscuritate quoad illud: terminatur, tum

incertitudine, ratione prop. 5. In Schol. elegantem habet ratiocinationem ad

probandara rem quae per se concipitur esse unicam, in suo scilicet genere

quia ponantur esse plura individua, ideo debet esse ratio in natura, cur sint

por outro nada há senão o que é alheio, por isso, procedendo por graus, ou não haverá absolutamente nada nele, ou somente o que é concebido por si. julgo que esta demonstração é completamente nova, mas infalível. E com ajuda dela pode-se mostrar que o que é concebido por si pode ser concebido. Mas se pode ainda duvidar, todavia, se isso é possível, do modo como aqui se toma o possível, seguramente não como aquilo que pode ser concebido, mas como aquilo de que se pode conceber uma causa, resolúvel finalmente na primeira. Pois as coisas que podem ser por nós concebidas, nem por isso, todavia, podem ser todas produzidas, devido a outras preferíveis com as quais são incompatíveis. Por isso, deve-se provar que o ente que é concebido por si existe em ato, com ajuda da experiência, já que existem coisas que são concebidas por outro, logo existe também aquilo pelo que são concebidas. Vê quão diferente é o raciocínio necessário para provar cuidadosamente a coisa existente por si. Todavia, talvez não haja necessidade dessa última precaução.

PROP. 8. Toda substância é necessariamente infinita, pois de outra maneira seria delimitada por outra de mesma natureza, pela def. 2, e seriam dadas duas substâncias de mesmo atributo, contra a prop. 5. cabe entender assim esta proposição: a coisa que é concebida por si é infinita em seu gênero, e assim cabe admiti-la. Ora, a demonstração sofre tanto de obscuridade quanto àquele “é delimitado”, como de incerteza, em razão da prop. 5. No escólio há um elegante raciocínio para provar que a a coisa que é concebida por si é única, em seu gênero decerto: sendo postos vários indivíduos, deve haver na natureza a razão por que [144] sejam tantos, não mais. A mesma razão, como faz o porquê deles serem tantos, faz o porquê

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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)

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tot, rion plura. Eadem cum fáciat cur sint tot, fáciat cur sit hoc et hoc. Ergo

et cur sit hoc. Ea ratio autem non est in uno horum potius quam in altero.

Ergo extra oninia. Una objectio feri posset, si dicatur numerum earum esse

interminatuin sive nullum, sive omnem numerum excedere. Verum corrigi

potest, si aliqua tantum ex ipsis sumamus et quaeramus cur illa extiterint,

vel si sumainus plura aliquid cominune: habentia, v. g. in eodem loco

existentia, cur illa in hoc loco extiterint.

PROP. 9. Quo plus realitatis aut esse unaquaeque res habet, eo plura

attributa ipsi competunt. [explicandum erat quid intelligatur per realitatem

aut esse, sunt enim haec obnoxia aequivocationibus.] Demonstratio: patet

ex defin. 4. Haec autor. Mihi eam inde patere non videtur. Nam potest una

res plus realitatis habere quam alia, ideo quod ipsa major est in. suo genere

seu majorem attributi alicujus partem habet. V. g. circulus plus extensionis

habet quam quadratum inscriptum. Et dubitari adhuc potest an plura dentur

attributa ejusdem substantiae, eo modo quo autor attributa sumsit. Fateor

interim hoc admisso et posito attributa esse compatibilia, eo perfectiorem

esse substantiam, pro: plura habet attributa.

PROP. 10. Unumquodque unius substantiae attributum per se concipi

debet per definit. 4. et 3. Sed hinc ut aliquoties objeci sequitur rion dari nisi

unicum unius substantiae attributum, si quidem totam essentiam exprimit.

PROP. 11. Deus seu substantia constans infinitis attributis quorum

unumquodque aeternam et infinitam essentiam exprimit, necessario existit.

Tres affert: demonstrationes. PRIMA, quia substantia. Ergo per prop. 7.

existit. Sed hoc supponit et substantiam necessario existere, quod ad prop. 7.

disto ou daquilo existir. Logo, também o porquê disto existir. Ora, essa razão não está em um deles mais que em outro. Logo, está fora de tudo. Uma objeção poderia ser feita: se se diz que o número deles é indeterminado ou nulo ou excede todo número. Pode-se, porém, corrigi-lo se dentre eles tomamos apenas alguns e perguntamos por que existem; ou se tomamos vários que têm algo em comum, por exemplo, existem no mesmo lugar, [e perguntamos] por que existem no mesmo lugar.

PROP. 9. Quanto mais realidade ou ser cada coisa tem, tanto mais atributos lhe competem. (cabia explicar o que é entendido por realidade ou ser, com efeito, são coisas sujeitas a equívocos). Demonstração: é patente pela def. 4. Isto, diz o autor. A mim não parece que seja patente a partir daí. Pois uma coisa pode ter mais realidade que outra, porque ela própria é maior em seu gênero ou tem uma parte maior de algum atributo. P. ex., o círculo tem mais extensão que o quadrado inscrito. E pode-se ainda duvidar se podem ser dados vários atributos da mesma substância, do modo como o autor tomou atributos. Reconheço, por ora, que admitido e posto que os atributos são compatíveis, a substância é mais perfeita quanto mais atributos tem.

PROP. 10. Cada atributo de uma substância deve ser concebido por si, pelas def. 4 e 3. Mas segue-se daí, como objetei por vezes, que não se dá senão um único atributo de uma substância, se deveras ele exprime a essência inteira.

PROP. 11. Deus, ou seja, a substância que consiste em infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente. Ele apresenta três demonstrações. PRIMEIRA, porque é substância. Logo, pela prop.7, existe. Mas isto supõe que a substância existe necessariamente, o que não foi suficientemente demonstrado para a

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non fuit satis demonstratum, et Deum esse substantiam possibilem, quod nori

aeque facile demonstratu est. IIda. Semper causa esse debet tam cur res sit quam

cur non sit. At nulla ratio esse potest cur Deus rion existat, non in ipsius natura,

neque enim implicat contradictionem, nori in altero, nam alterum aliud vel erit

ejusdem naturae et attributi adeoque jam erit Deus, vel non erit adeoque nihil

habebit commune cum Deo, adeoque existentiam ejus nec ponere nec impedire

potest. Respondeo 1. nondum probatum, Dei naturam non implicare, tametsi

id asserere autor sine probatione absurdum esse dicat. 2. Poterit esse ejusdem

naturae cuni Deo in quibusdam, non in oninibus. 3. Entia finita existunt (per

experientiam). Ergo si infinitum non existit, erunt: ipsa potentiora Ente infinito.

Respondetur, si implicet, Ens infinitum nullam potentiam habebit. Ut taceam

improprie dici potentiam de existendi vi.

PROP. 12. 13. Nullum substantiae attributum potest vere concipi, ex

quo sequatur substantiam posse dividi, seu substantia absolute sunita est

indivisibilis. Nam destruetur dividendo, partes non erunt infinitae adeoque

nec substantiae. Darentur plures substantiae ejusdem naturae. Concedo de

re per se existente. COROLLARIUM hinc sequitur, nullam substantiam

adeoque nec corpoream esse divisibilem.

PROP. 14. Praeter Deum nulla dari neque concipi potest substantia.

Quia Deo oninia competunt attributa, nec dantur plures substantiae ejusdein

attributi, ideo nulla datur substantia praeter Deum. Omnia haec supponunt

definitionem substantiae, quod sit Ens quod per se concipitur, et alia multa

supra notata non admittenda. [Mihi nondum certum videtur, corpora esse

substantias, Secus de mentibus.1

prop. 7, e também que Deus é uma substância possível, o que não é tão fácil de demonstrar. SEGUNDA, sempre deve haver causa tanto por que uma coisa é como por que não é. Mas não pode haver nenhuma razão por que Deus não exista, não em sua própria natureza – e com efeito, não implica contradição –, não em outro, pois esse outro ou será de mesma natureza e atributo, e dessa forma será Deus, ou não será e dessa forma não terá nada em comum com Deus, e assim não pode nem pôr nem impedir a existência dele. Respondo: 1º. Ainda não foi provado que a existência de Deus não implica [contradição], mesmo que o autor diga sem prova que é absurdo; 2º. poderá ser de mesma natureza que Deus em certas coisas e não em todas; 3º. os entes finitos existem (por experiência). Logo, se o infinito não existe, eles serão mais potentes que o Ente infinito. Responde-se, se implica [contradição], o Ente [145] infinito não terá nenhuma potência. Para calar que impropriamente fala-se de potência acerca da força de existir.

PROP. 12, 13. Nenhum atributo da substância pode verdadeiramente ser concebido do qual siga que a substância possa ser dividida, ou seja, a substância absolutamente tomada é indivisível. Com efeito, ela seria destruída se fosse dividida; as partes não seriam infinitas nem, portanto, as substâncias. Seriam dadas várias substâncias de mesma natureza. Concedo isso da coisa que existe por si. COROLÁRIO: segue-se daí que nenhuma substância, dessa forma, é corpórea nem divisível.

PROP. 14. Além de Deus nenhuma substância pode ser dada nem concebida, porque todos os atributos competem a Deus e não se dão várias substâncias de mesmo atributo, por isso não se dá nenhuma substância além de Deus. Tudo isso supõe a definição de substância, que é o ente que é concebido por si, e muitas outras coisas observadas acima como inadmissíveis. (Ainda não me parece certo que os corpos sejam substâncias. Diferentemente para as mentes).

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COROLL. 1. Deum esse unicum.

COROLL. 2. Rem cogitantem vel rem extensam esse vel Dei attributa

vel per axiom....* affectiones attributorum Dei. [Hoc est confuse loqui,

praeterea nondum ostendit extensionem et cogitationem esse attributa seu

per se concipi.]**

PROP. 15. Quicquid est, in Deo est, et nihil sine Deo esse neque

concipi potest. Quia enim nulla praeter Deum substantia prop. 14., ideo

oninia alia erunt affectiones Dei seu modi, quia praeter substantias et

modos nil datur. [rursus omittit attributa.]

PROP. 16. Ex necessitate Divinae naturae infinita infinitis modis, hoc est

omnia quae sub intellectum infinitum cadere possunt, sequi debent, per defin. 6.

COROLL. 1. Hinc sequitur Deum omnium quae sub intellectum

cadunt, esse causam efficientem.

COROLL. 2. Deum esse causam per se, non vero per accidens.

COROLL. 3. Deum esse absolute causam primam.

PROP. 17. Deus ex solis suae naturae legibus et a nemine coactus

agit, quia nihil extra ipsum.

COROLL. 1. Hinc sequitur 1. nullam dari causam quae Deum extrinsece

vel intrisece praeter ipsius naturae perfectionem incitet ad agendum.

COROLL. 2. Solum Deum esse causam liberam.

In Scholiis fusius explicat, Deum omnia quae in. ipsius intellectu

sunt creavisse (cum tamen videatur ea tantum creasse quw voluit). Dei

* Axioma 1, conforme o texto espinosano.** O trecho entre parênteses está à margem do manuscrito; é chamado ao texto por um asterisco (Cf. Morfino - Spinoza contra Leibniz. Ed. cit.)

COROL. 1. Deus é único.COROL. 2. a coisa extensa e a coisa pensante são ou atributos

de Deus ou (pelo ax...*) afecções dos atributos de Deus. (Isto é falar confusamente; além do que, ainda não mostrou que a extensão e o pensamento são atributos, ou seja, concebidos por si.)

PROP. 15. Tudo que é, é em Deus, e nada sem Deus pode ser nem ser concebido. Com efeito, porque [não há] nenhuma substância além de Deus, prop. 14, por isso todas as coisas serão afecções de Deus ou modos, porque nada é dado além de substâncias e modos. (De novo ele omite os atributos).

PROP. 16. Da necessidade da natureza divina devem seguir infinitas coisas em infinitos modos (isto é, tudo que pode cair sob o intelecto infinito), pela def. 6.

COROL. 1. Segue daí Deus ser causa eficiente de todas as coisas que caem sob o intelecto infinito.

COROL. 2. Segue Deus ser causa por si, e não por acidente.COrOl. 3. Segue-se Deus ser absolutamente causa primeira.

PROP. 17. Deus age somente pelas leis de sua natureza e por ninguém é coagido, pois nada há fora dele.

COROL. 1. Donde segue: 1º não ser dada, exceto a perfeição de sua própria natureza, nenhuma causa que extrínseca ou intrinsecamente incite Deus a agir.

COROL. 2. Segue: 2° só Deus ser causa livre. [146]Nos escólios** ele explica mais longamente que Deus criou tudo o

que está em seu intelecto (porém, como parece, criou apenas o que quis). Diz que o intelecto de Deus também em essência difere de nosso intelecto, e a não ser equivocadamente pode-se atribuir a um e outro o nome de * Trata-se do axioma 1. (N. T.).** Note-se que a prop. 17 tem um único escólio (N. T.)

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intellectum etiam in essentia a nostro intellectu ait differre, nec nisi

aequivoce tribui posse utrique nomen intellectus, quemadmodum canis

sigrium caeleste et canis animal latrans. Causatum differt a sua causa in co

quod a causa habet. Homo ab homine quoad existentiam quain ab homine

habet, a Deo quoad essentiam quam a Deo habet.

PROP. 18. Deus est rerum causa iminanens, non vero transiens.

Sequitur ex eo quod supra visus sibi est ostendisse, Deum solum esse

substantiam, caetera ejus modos.

PROP. 19. Deus sive omnia ejus attributa sunt aeterria. Nam essentia ejus

involvit existentiam, et attributa ejus involvunt ejus essentiam. Citat praeterea

autor ac probat modum quo id demonstravit prop. 19. Principiorum Cartesii.

PROP. 20. Dei essentia et ejus existentia unum et idem sunt. Quia omnia

ejus probat ex eo, quia attributa Dei quia aeterna (per prop. 19) existentiam

exprimunt (per definitionem aeternitatis). Eadem autem et essentiani exprimunt

per definitionem attributi. Ergo essentia et existentia sunt idem in. Deo.

Respondeo id non sequi, sed hoc tantum, quod ab eodem exprimantur. Noto

etiam prop. hanc supponere praecedentem, quod si ergo loco praecedentis ipsius

denionstratio in. hujus demonstratione adhibeatur, patebit inepta circuitio. Hoc

modo: Dei essentia et existentia sunt unum et idem, probo: Quia attributa Dei

et existentiam et essentiam exprimunt. Essentiam exprimunt ex definitione

attributi, existentiam exprimunt, quia aeterna; aeterna autem, quia involvunt

existentia, exprimunt enim Dei essentiam quae involvit existentiam. Quid opus

ergo mentione aeternitatis attributorum et propositione 19., cum res eo tantum

redeat ut probetur Dei existentiam et essentiam esse uriuni et idem, quia Dei

essentia involvit existentiam, eaetera enim adhibita sunt inanis apparatus causa,

ut in speciem demonstrationis tornarentur. Hujusmodi ratiocinationes illis valde

familiares qui veram denionstrandi artem rion tenent.

intelecto, tal como cão, signo celeste, e cão, animal que ladra. O causado difere de sua causa pelo fato de ter causa. O homem difere do homem quanto à existência que recebeu do homem e, de Deus, quanto à essência que recebeu de Deus.

PROP. 18. Deus é causa imanente das coisas, mas não transitiva. Segue-se de que acima, parece-lhe, ele mostrou que só Deus é substância, e o restante são seus modos.

PROP. 19. Deus, ou seja, todos os seus atributos são eternos. Pois, sua essência envolve existência, e seus atributos envolvem sua essência. Além disso, o autor cita e aprova o modo como demonstrou-o na prop. 19 dos Princípios de Descartes.

PROP. 20. A existência de Deus e sua essência são um só e o mesmo. Prova-o a partir do fato de os atributos de Deus, porque eternos (pela prop. 19), exprimirem existência (pela definição de eternidade). Ora, eles exprimem também essência, pela definição de atributo. Logo, essência e existência são em Deus o mesmo. Respondo que isso não se segue, mas apenas isto: são exprimidos pela mesma coisa. Noto também que esta prop. supõe a precedente, portanto, se em lugar da precedente, aplicamos a demonstração daquela, nesta, será patente a inutilidade do desvio. Que a essência e a existência de Deus são uma só e a mesma coisa provo deste modo: porque os atributos de Deus exprimem existência e também essência; exprimem essência pela definição de atributo; exprimem existência porque eternos; ora, são eternos porque envolvem existência; com efeito, exprimem a essência de Deus, a qual envolve existência.

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COROLL. 1. Hinc sequitur Dei existentiam pariter atque essentiam

esse aeternam veritatem. Haec propositio non video quomodo ex

praecedente sequatur, imo longe praecedente verior et clarior est. Statim

enim patet, posito quod Dei essentia involvat existentia, tametsi non

admittatur esse ununi et idem. COrOll 2. Deus est iminutabilis oraniaque

ejus attributa. Ista obscure et conffise proponit probaque autor.

PROP. 21. Quae ex absoluta natura alicujus attributi Dei sequuntur,

semper et infinita existere debuerunt, sive per idem attributum aeterna et

infinita sunt. Demonstrat satis obscure et prolixe, cuni sit facile.

PROP. 22. Quicquid ex aliquo Dei attributo quatenus modificatum

est tali modificatione quae et necessario et infinita per idem existit,

sequitur, debet: quoque necessario et infinitum existere. Ait procedere

demonstrationem ut in praecedenti. Ergo etiam obscure. Vellem exemplum

talis modificationis dedisset.

PROP. 23. Omnis modus qui et necessario et infinitus existit,

necessario sequi debuit vel ex absoluta natura alicujus attributi Dei, vel

ex aliquo atributo modificato modificatione quae et necessario et infinita

existit, id est modum talem sequi ex absoluta natura alicujus attributi vel

iminediate vel mediante alio modo tali.

COROL. 1. Segue-se daí que a existência de Deus, e igualmente sua essência, é uma verdade eterna. Não vejo como esta proposição siga da precedente; ao contrário, é de longe mais verdadeira e mais clara que a precedente. Com efeito, é de imediato patente, posto que a essência de Deus envolve existência, ainda que não se admita que sejam [147] uma só e a mesma coisa. COROL. 2. Deus é imutável e todos os seus atributos. É o que o autor propõe e prova de maneira obscura e confusa.

PROP. 21. Tudo que segue da natureza absoluta de algum atributo de Deus deve ter existido sempre e infinito, ou seja, pelo mesmo atributo é eterno e infinito. Ele demonstra bem obscura e prolixamente, embora seja fácil.

PROP. 22. Tudo que segue de algum atributo de Deus, enquanto é modificado por uma modificação tal que, pelo mesmo [atributo], existe necessariamente bem como infinita, deve também existir necessariamente bem como infinito. Diz que a demonstração procede como na precedente. Logo, é também obscura. Gostaria que desse um exemplo de tal modificação.

PROP. 23. Todo modo que existe necessariamente bem como é infinito deve ter seguido necessariamente ou da natureza absoluta de algum atributo de Deus, ou de algum atributo modificado por uma modificação que existe necessariamente bem como infinita, isto é, um tal modo segue da natureza absoluta de algum atributo, ou imediata ou mediante outro modo como tal.

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PROP. 24. Rerum a Deo productarum essentia non involvit existentia,

alioqui per defini. 1. causa essent sui, quod est contra Hypothesin. Res

aliunde manifesta. Sed haec demonstraflo est paralogismus. Causa enim sui

per ejus definitionem 1. non cominunem sensuni retinuit, sed peculiarem

nacta est. Non potest ergo conimunem vocis sensuin in locum proprii pro

arbitrio a se assumti substituere autor, nisi ostendat eos aequivalere. [Ex:

hac propositione sequitur, contra ipsum Spinosam, res non esse necessarias.

Hoc enim necessariuni non est, cujus essentia existentiam non involvit.]*

PROP. 25. Deus non tantuin est causa efficiens reruni existentiae,

sed. etiam essentiae. Alioqui posset rerum essentia sine Deo concipi, per

Axiom. 4. Sed haec probatio nullius momenti est. Nam ut concedamus

essentiam rei-um sine Deo concipi non posse ex prop. 15., non ideo

sequitur Deum esse essentiae rerum causam. Axioma enim quartuin non

hoc dici: sine quo quid non concipi potest, id est ejus causa (quod sane

falsum esset, nam circulus linea sine centro puncto concipi non potest:

non ideo centrum punctum circuli lineae causa) sed. hoc tantum, effectus

cognitionem involvere cognitionem causae, quod longe aliud est. Neque

enim hoc axioma est convertibile. Ut taceani aliud esse involvere, aliud

sine ipso concipi non posse. Parabolae cognitio involvit in se cognitionem

foci, potest tamen sine eo concipi.

COROLL. Res particulares nihil sunt nisi Dei attributorum affectiones

sive modi, quibus attributa Dei certo ac determinato modo exprimuntur. Hoc

ait patere ex defin. 5. et prop. 1 S., sed non apparet quomodo hoc corollar.

* A observação ente paremeses está à margem do manuscrito; Gerhardt dá em nota.

PROP. 24. A essência das coisas produzidas por Deus não envolve existência, de outra forma, pela def. 1, seriam causa de si, o que é contra a hipótese. Com efeito, causa de si, pela def. 1, não reteve seu sentido comum, mas adquiriu um peculiar. O autor não pode, portanto, substituir o sentido comum da palavra em lugar do próprio sentido, assumido por ele arbitrariamente, a não ser que mostre que eles se equivalem.*

PROP. 25. Deus é causa eficiente não apenas da existência das coisas, mas também da essência. De outra forma, a essência das coisas poderia ser concebida sem Deus, pelo ax. 4. Mas esta prova não tem nenhuma importância, pois que concebemos que a essência das coisas não possa ser concebida sem Deus a partir da prop. 15, nem por isso segue-se que Deus é causa da essência das coisas. Com efeito, o quarto axioma não diz: aquilo sem o que algo não pode ser concebido é sua causa (o que seria certamente falso, pois não se pode conceber o círculo / a linha sem centro/ ponto; e não por isso o centro / ponto é causa do círculo / da linha), mas apenas isto: o conhecimento do efeito envolve o conhecimento da causa, o que é de longe outra coisa. E, com efeito, este axioma não é reversível. E isso para não falar que uma coisa é envolver, outra não poder ser concebido sem isso. o conhecimento da parábola envolve em si o conhecimento do foco, mas pode ser concebido sem ele.

COROL. As coisas particulares nada são senão afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos, pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira certa e determinada. Diz que isso é patente a partir da def. 5 e prop. 15, mas não aparece de que modo este corolário conecta-

* À margem do manuscrito Leibniz observou: “Desta proposição segue-se, contra o próprio Espinosa, que as coisas não são necessárias. Com efeito, não é necessário aquilo cuja essência não envolve existência”. (N.R.)

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connectatur cum hac prop. 25. Certe Spinosa non est magnus demonstrandi

artifex. Corollarium hoc ex supra dictis satis patet, sed verum est si sano

sensu intelligatur, non quidem res esse tales modos, sed modos concipiendi

res particulares, esse modos determinatos concipiendi attributa divina.

PROP. 28. Quodcunque singulare sive quaevis res quae finita est

et determinatam habet existentiam, non potest existere nec ad operandum

determinari nisi ad existendum et operandum determinetur ab alia causa,

quae etiam finita est et determinatam habet existentiam, et haec iterum ab

alia, et sic in infinitum. Quia nihil determinatum, finitum et certo tempore

existens ex absoluta Dei essentia sequi potest. Ex hac opinione recte

expensa multa absurda sequuntur. Revera enira res ex natura Dei hoc modo

non sequentur. Ipsum enim determinans ab alia re iterum determinatur, et

sic in infinitum. Nullo modo ergo res determinantur a Deo. Deus tantum

absoluta quaedam et generalia de suo contribuet. Rectius dicendum, unum

particulare non determinari ab alio, progressu in infinitum; alioqui enint

revera semper manent indeterminata, utcunque progrediaris: sed potius

omnia particularia determinari a Deo. Nec posteriora priorum esse causam

plenam,* sed Deunt potius posteriora creare ita ut connectantur prioribus

secundum sapientiae regulas. Si dicimus priora et causas efficientes

posteriorum, vicissim erunt posteriora quodammodo causae finales

priorum, apud eos qui ponunt Deum secundura finem operari.

* Carraud propõe Nec ptiora posteriorum esse causam plenam.

se com esta prop. 25. Certamente Espinosa não é um grande mestre na arte de demonstrar. Este corolário é bem patente a partir do que foi dito acima; mas na verdade, se for entendido no sentido certo, as coisas certamente não são tais modos, mas os modos de conceber as coisas particulares são os modos determinados de conceber os atributos divinos.

PROP. 28. Qualquer singular, ou seja, qualquer coisa que é finita e tem existência determinada, não pode existir nem ser determinado a operar, a não ser que seja determinado a existir e operar por outra causa, que também seja finita e tenha existência determinada, e por sua vez esta causa por outra, e assim ao infinito. Porque nada determinado, finito e existente num certo tempo pode seguir da essência absoluta de Deus. Desta opinião, se bem pesada, seguem-se muitos absurdos. Porque as coisas realmente não seguirão da natureza de Deus desse modo. Com efeito, o próprio determinante é de novo determinado por outra coisa, e assim ao infinito. Logo, de nenhum modo as coisas são determinadas por Deus. De sua parte, Deus contribuirá apenas com algumas absolutas e gerais. Mais corretamente, é preciso dizer que um particular não é determinado por outro, numa progressão ao infinito; pois, diferentemente, sempre permanecem realmente coisas indeterminadas, por mais que prossigas; mas, antes, todas as coisas particulares são determinadas por Deus. E as coisas posteriores não são a causa plena das anteriores*, mas Deus cria preferivelmente as posteriores tal como são conectadas com as anteriores segundo as regras da sabedoria. Se dizemos que as anteriores são também causas eficientes das posteriores, inversamente as posteriores serão de certo modo causas finais das anteriores, entre os que põem que Deus opera segundo fins.

* Certamente se trata de uma inversão involuntária de Leibniz, a frase correta seria “as coisas anteriores não são a causa plena das coisas posteriores”. (N. R.).

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PROP. 29. Na natureza das coisas nada é dado de contingente, mas tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e operar de maneira certa. A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas proposições precedentes, abruptas, obscuras, duvidosas. A coisa depende da definição de CONTINGENTE, que ele não deu em parte alguma. Eu, com outros, tomo contingente como aquilo cuja essência não envolve existência. Nesse sentido, as coisas particulares serão contingentes, segundo o próprio Espinosa, pela prop. 24. Mas se tomas contingente à maneira de certos escolásticos, desconhecido de Aristóteles e do uso da vida de outros homens, como aquilo que acontece,* sem que de modo algum se possa dar a razão por que acontece assim e não e outro modo, e cuja causa, estando posto tudo que é requerido tanto dentro quanto fora dela mesma, esteve igualmente disposta a agir como a não agir, penso que tal contingência implica [contradição], e que todas as coisas, por sua natureza e segundo [149] a hipótese da vontade divina e do estado de coisas, são certas e determinadas, embora inexploradas por nós, e têm sua determinação em si mesmas, mas por suposição, ou seja, por hipótese, das coisas externas.

PROP. 30. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, deve compreender os atributos de Deus e as afecções de Deus, e nada outro. Esta proposição suficientemente clara a partir das precedentes e, em sentido correto, verdadeira, nosso autor prova-a à sua maneira por coisas obscuras e duvidosas, a saber, que a idéia verdadeira deve convir com o ideado, isto é, como é por si noto (ele diz isso, embora eu não compreenda de que modo isso seja por si noto e tampouco verdadeiro), aquilo que está contido objetivamente no intelecto deve necessariamente dar-se na natureza; que não se dá senão uma única substância, a saber, Deus. Essas proposições entretanto são obscuras, duvidosas, e muito afastadas. Parece

* Como aquilo que acontece traduz pro eo quod contingit. É preciso notar o jogo de palavras no latim: a origem do adjetivo contingens é o particípio presente do verbo contingeo, acontecer. (N. T.).

PROP. 29. In rerum natura nullum datur contingens, sed omnia ex

necessitate divinae naturae determinata sunt ad certo modo existendum et

operandum. Demonstratio obscura et praerupta est, ducta per propositiones

prwcedentes praeruptas, obscuras et dubias. Res pendet a definitione

CONTINGENTIS quam nuspiam dedit. Ego cum ahis contingens sumo pro

eo, cujus essentia non involvit existentiam. Hoc sensu res particulares erunt

contingentes secundum ipsum Spinosam per prop. 24. Sed si contingens

sumas more quorundara Scholasticorum, Aristoteli et aliis hominibus

usuique vitw incognito, pro eo quod contingit, sic ut ratio reddi non possit:

ullo modo cur sic potius evenerit quam aliter, et cujus causa positis omnibus

requisitis tam. intra quam extra ipsam, aeque disposita fuit ad agendum quam

non agendum, puto tale contingens implicare, omniaque esse sua natura, ex

hypothesi voluntatis divinae statusque rerum, certa ac determinata, tametsi

nobis inexplorata, neque in se ipsis sed. per suppositionem sive hypothesin

externorum suam determinationem habentia.

PROP. 30. Intellectus actu finitus et actu. infinitus Dei attributa Deique

affectiones comprehendere debet et nihil aliud. Hanc propositionem satis

claram ex praecedentibus, et sano sensu veram noster autor per alia obscura

et dubia et remota more suo probat: nempe quod idea vera convenire: debet

cum ideato, id est ut per se notum (sic ait, etsi ego quomodo id per se notum,

imo verum sit non capiam), id quod in intellectu. objective: continetur, debet

necessario in natura dari; quod non nisi una substantia datur, nempe Deus-

quae tamen propositiones obscurae et dubiae et longe remotae sunt. Videtur

autoris ingenium fuisse valde detortum: raro praecedit via clara et naturali,

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que o engenho do autor é muito tortuoso: ele raramente procede por uma via clara e natural, avança sempre por vias abruptas e desvios; a maioria de suas demonstrações mais afligem (surprennent*) que ilustram o animo.

PROP. 31. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, assim como a vontade, o desejo, o amor etc., deve ser referido à natureza naturada, não à naturante. Entende por natureza naturante Deus e seus atributos absolutos, por naturada, seus modos. Ora, o intelecto não é nada mais que um certo modo de pensar. Daí, aliás, ele dizer que, propriamente, Deus não entende nem quer. No que não concordo com ele.

PROP. 32. A vontade não pode ser chamada causa livre, mas somente necessária, a saber, porque é livre o que é determinado apenas por si. Ora, a vontade é um modo de pensar e dessa forma é modificada por outro.

PROP. 33. As coisas não puderam ser produzidas por Deus de nenhuma outra maneira e em nenhuma outra ordem do que aquelas em que foram produzidas. Segue-se, com efeito, da imutável natureza de Deus. Esta proposição é verdadeira ou falsa conforme é explicada. Na hipótese de uma vontade divina que escolhe o melhor, ou seja, que opera de maneira perfeitíssima, certamente não puderam ser produzidas senão estas coisas; mas segundo a própria natureza das coisas considerada por si, as coisas não puderam ser produzidas de outra maneira. Do mesmo modo dizemos que os anjos confirmados não podem pecar, salva a liberdade deles; poderiam se quisessem, mas não querem. Absolutamente falando, podem querer, mas neste estado de coisas existente, não podem querer mais. O autor reconhece corretamente no escólio que algo torna-se impossível de dois modos, ou porque em si mesmo implica [contradição], ou porque não se dá nenhuma causa externa apta para produzir. No segundo escólio, nega que Deus produza tudo em vista do bem. Não é de admirar, negou-lhe a vontade e pensa que os dissentâneos submetem Deus ao destino, embora também ele confesse que Deus age em vista do perfeito.

* Surpreendem – em francês no texto. (N.T.)

semper incedit per abrupta et circuitus- pleraeque ejus demonstrationes

magis animum circumveniunt (surprennent) quam filustrant.

PROP. 31. Intellectus actu sive finitus sive infinitus, ut et voluntas,

cupiditas, amor etc. ad naturam naturatam, non ad naturantem referri debet.

Intelligit per naturam naturantem Deum ejusque attributa absoluta, per

naturatam ejus modos. Esse autem. intellectum nihil aliud quam certum

cogitandi modum. Hinc alias dicit Deum proprie non intelligere: nec velle.

Hoc ipsi non assentior.

PROP. 32. Voluntas non potest vocari causa libera, sed tantum

necessaria, quia scilicet liberum id quod tantum a se determinatur.

Voluntatem autem esse modum cogitandi adeoque ab alio modificari.

PROP. 33. Res nullo alio modo neque ordine a Deo produci potuerunt

quam productae sunt. Sequuntur enim ex immutabili natura Dei. Haec

propositio vera falsave, prout explicatur. Ex hypothesi voluntatis divinae

eligentis optima seu perfectissime operantis certe non nisi haec produci

potuerunt, secundum ipsam vero rerum naturam per se spectatam aliter

produci res poterant. Quemadmodum angelos confirmatos dicimus non posse

peccare, salva eorum libertate; possent si vellent; sed non volent. Possent velle

absolute loquendo, sed hoe rerum statu existente amplius non possunt velle.

Recte autor et in Scholio agnoscit, duobus modis aliquid impossibile reddi

vel quia in se implicat, vel quia causa nulla eaeterna datur ad producendum

apta. In Scholio secundo negat Deum omnia sub ratione boni agere. Nin-

úrum negavit ei voluntatem, et dissentientes putat Deum fato subjicere, cum

tamen ipse fateatur Deum omnia sub ratione perfecti agere.

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PROP. 34. A potência de Deus é sua própria essência, porque segue da natureza da essência, que ele é causa de si e de outras coisas.

PROP. 35. O que quer que concebamos estar no poder de Deus, necessariamente é, isto é, segue de sua essência.

PROP. 36. Nada existe de cuja natureza não siga algum efeito, porque exprime a natureza de Deus de um modo certo e determinado, isto é, pela prop. 34, a potência de Deus; é verdadeiro, embora não se siga satisfatoriamente.

Segue um Apêndice contra os que pensam que Deus opera por causa de fins, no qual ele mistura coisas verdadeiras e falsas. Com efeito, embora seja verdadeiro que nem todas as coisas foram feitas por causa dos homens, todavia não se segue que Deus age sem vontade, ou seja, sem intelecção do bem.

PROP. 34. Dei potentia est ipsa ejus essentia, quia ex natura essentiae

sequitur eum esse causam sui et aliorum.

PROP. 35. Quicquid in Dei potestate existit, id necessario est, id est

ex essentia ejus sequitur.

PROP. 36. Nihil existit, ex cujus natura effectus aliquis non sequatur,

quia Dei naturam certo ac deterininato modo exprimit, hoc est per prop.

34. Dei potentiam, (non sequitur satis) verum est tamen.

Subjicit Appendicem contra eos qui Deum propter finem operari

putant, miscens vera falsis. Etsi enim verum sit non omnia hominum causa

fieri, non tamen sequitur sine voluntate sive, boni intellectu agere.

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NOTíCIAS

DEFESaS DE DoUtoRaDo:

marcelo Gross villanova Hobbes e a reciprocidade. Uma investigação sobre a relevância da regra de ouro das leis naturais na teoria política hobbesiana Orientador: Maria das Graças de SouzaData :06.08.10

Resumo: Base da postulação da comunidade política, as leis naturais são resumidas por duas frases, “faça aos outros o que gostaria que fizessem a si” e a outra “não faça aos outros o que gostaria que não fizessem a ti”. Hobbes denomina essa síntese das leis naturais de “princípio de reciprocidade”. Fora essas duas frases, Hobbes não apresenta maiores esclarecimentos quanto ao seu significado. A presente pesquisa pretende refletir sobre a teoria política hobbesiana a partir da problematização do sentido do princípio de reciprocidade, colocando em evidência algo que não está bem explicado e que não ocupa um lugar de pouca importância na sua teoria política. Na literatura crítica é bem conhecida a controvérsia a respeito do papel das leis naturais, da relação entre as leis naturais e leis civis, do direito de resistência, do direito de punir, “silêncio” das leis. Reflete-se sobre essas e outras questões tendo em vista a perspectiva da elucidação do princípio de reciprocidade. Ainda que situar adequadamente o locus conceitual das dificuldades não seja uma garantia

de resolução dos problemas teóricos da formulação hobbesiana, pode-se obter um ganho no sentido de melhorar o trato com essas dificuldades. Palavras-chaves: Hobbes, reciprocidade, antropologia, filosofia política

DEFESaS DE mEStRaDo:

wilson alves Sparvoli Questão das substâncias corporais em Leibniz Orientador: Luís César Guimarães Oliva Data: 09.08.2010

Resumo: Nosso objetivo principal foi esclarecer o papel e o estatuto ontológico dos corpos dos seres vivos no leibnizianismo. Para tanto, partimos da ontologia cartesiana que transforma os corpos em substâncias cuja essência é a extensão entendida geometricamente. Depois disso, analisamos as críticas que Leibniz fez a esta ontologia, bem como a nova ontologia de forças e mônadas que usa para superar todas as limitações e erros do cartesianismo. Enfim, terminamos considerando que, devido a todas as críticas realizadas contra a extensão cartesiana, não existe, como sustentam alguns comentadores, uma noção de substância corporal que reabilite a materialidade ou a extensão; na verdade, a substância corporal leibniziana tem que ser entendida segundo uma ontologia idealista. Nesse percurso, também pudemos constatar alguns dos desdobramentos científicos que a nova ontologia leibniziana acarretava, como, por exemplo, o surgimento de uma física dinâmica e a tese da pré-formação dos seres vivos no âmbito da fisiologia. Palavras-chave: Descartes, Leibniz, Substância e Corpo.

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Rafael augusto de Conti Liberdade para além do Estado em Thomas Hobbes: o rei nu em busca da equidade soberana (ou do homem à máquina e da máquina ao homem: a liberdade como reino da ética) Orientador: Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros Data: 23.09.2010

Resumo: A reconstrução do pensamento hobbesiano acerca do Estado, com foco no tema da liberdade, é o que foi feito neste trabalho. Como é possível a compatibilidade entre liberdade e necessidade?; Qual a relação entre liberdade, guerra e paz?; Como a justiça está relacionada com a questão da liberdade?; Qual a liberdade dos cidadãos frente ao Estado?; Qual a liberdade do soberano pelo Estado? - constituem questionamentos que refletem o caminho percorrido. Sempre possuindo a liberdade como foco, foi-se do homem à máquina e da máquina ao homem, por meio da exploração articulada do pensamento hobbesiano acerca dos campos da Física, da Antropologia/Psicologia, do Direito e da Moral. Palavras-chave: liberdade, poder, Estado, soberania, justiça, natureza humana

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:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.

:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição.

:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

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CONTENTS

LEIBNIZ, 1678: LECTURE NOTES ON SPINOZA’S EThICsUlysses Pinheiro.....................................................................................11

causality in Hobbes: necessity and intelligibilityCeli Hirata...............................................................................................33

POSSIBLES AND ExISTENTS IN LEIBNIZWilson Alves Sparvoli.............................................................................59

THE CARTESIAN CONCEPT Of fREEDOM IN PhIlosoPhICAl PrInCIPlEs Mariana de Almeida Campos.................................................................73

images and analogies oF tHe body and THE MIND IN SPINOZA’S POLITICSAlexandre Arbex valadares.....................................................................95

IMAGINATION: BETWEEN fEAR AND fREEDOMDaniel C. Avila.......................................................................................135

THE RIGHT TO LIfE IN HOBBES’S ELEMENTS Of lAw, nATUrAl And PolITICRogério Silva de Magalhães..................................................................159

beyond tHe object body andtHe intelectual rePresentation: How merleau-Ponty rediscovers tHe body as tHe existence’s veHicle. josé marcelo siviero.............................................................................187

ON SPINOZA’S EThICs G. W. Leibniz........................................................................................................215

NOTICES.......................................................................................................254

INSTRUCTIONS fOR AUTHORS................................................................257

CONTENTS....................................................................................................258