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ISSN 1413-6651 São Paulo - 2011 XXV

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ISSN 1413-6651São Paulo - 2011

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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Douglas Barros, José Luiz Neves, Silvana de Souza Ramos

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

PareceristasPareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Edmilson Menezes, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Isadora Bernardo Prévide, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Patrícia Aranovich, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São PauloReitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas

Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de CruzFFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Diretora: Profa. Dra. Sandra NitriniVice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano

Departamento de FilosofiaChefe: Roberto Bolzani Filho

Vice-Chefe: Márcio SuzukiCoord. do Programa de Pós-Graduação: Alberto Ribeiro de Barros

Endereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

N. XXV, JUL-DEZ 2011 – ISSN 1413-6651

Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2011.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Imagem da Capa:Assério de Breda (Gravura)Jacques Callot 1625

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

O filósofo francês Louis Althusser foi um dos principais instigadores do “retorno a Espinosa” que aconteceu na França a partir da década de 1960, e o iniciador de uma prolixa linha de pesquisas que procurou estabelecer as bases para uma confluência entre as obras de Espinosa e de Marx. Tratava-se, para Althusser, de recorrer ao legado espinosano para renovar o vigor crítico da filosofia e da teoria social e, mais especificamente, para atuar teoricamente contra o idealismo dogmático associado com o hegelo-marxismo hegemônico. Embora sua obra (em particular, os dois livros de 1964: Lire Le Capital e Pour Marx) tenha se tornado uma referência inevitável durante as décadas de 1960 e 1970, os anos 80 se empenharam em esquecê-la. Tendência que foi, por sua vez, parcialmente revertida pela publicação póstuma de muitos dos seus textos inéditos, o que permitiu reinstalar mais recentemente a pergunta pela vigência de seu pensamento.

Dado que a ampla referência a Espinosa no pensamento filosófico e político contemporâneo deve muito à leitura althusseriana de Espinosa e sua consecução nos trabalhos de discípulos eminentes, como Pierre Macherey, Étienne Balibar ou Alexandre Matheron, entende-se o interesse que o Grupo de Estudos Espinosanos teve em organizar as Jornadas Althusser, que ocorreram nos dias 8 e 9 de junho de 2011, no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Visto o caráter “preliminar” deste evento (como efeito de uma relativa ausência de estudos sobre Althusser em nosso meio acadêmico), decidimos publicar o conjunto dos textos apresentados nessa oportunidade, de modo que o leitor poderá apreciar, nos diversos artigos, diferentes níveis

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SUMÁRIO

Escatologia à la cantonade. althussEr para além dE dErridaVittorio Morfino.....................................................................................11

althussEr: a política na filosofiaMariana de Gainza.................................................................................31

um maquiavEl dE althussEr: acErca do fundamEnto na filosofia política contEmporânEaDouglas Ferreira Barros..........................................................................47

ação politica E tEmporalidadE nas lEituras contEmporânEas dE maquiavEl: notas para um diálogo entre Althusser, ArenDt e MerleAu-PontyMariana larison......................................................................................69

no vazio dE uma distância tomada: althussEr E a prática da filosofiaAlexandre Pinto Mendes........................................................................89

A constituição DA suBjetiViDADe e A ilusão Do FinAlisMo: ElEmEntos dE uma tEoria da idEologiaAlexandre Arbex Valadares...................................................................113

de aprofundamento na obra do filósofo. Esperamos que sirva como estímulo para a releitura crítica de um autor que é fundamental, além dos estudos espinosanos, para a compreensão dos itinerários teóricos de outras relevantes figuras da filosofia contemporânea, como Foucault, Badiou, Rancière, Negri, Žižek, Butler ou Laclau.

Boa leitura!

Os Editores

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a dificuldadE na lEitura dE o capital dE marX: a posição althussErianaFernando Bonadia de oliveira..............................................................131

maquiavEl, ou o mais longo dEsvio: acontEcimEnto, Encontro E matErialismo na filosofia do último althussErPablo Azevedo......................................................................................145

duas lEituras do capitalismo Em marXrenan Gonçalves rocha ......................................................................167

Pró-Ao-contrA, Vácuo e MAteriAliDADe DA iDeoloGiA. ensAio soBre FrAGMentos De Althusser e PAscAlAntônio herci Ferreira júnior................................................................179

Em dEfEsa do matErialismo alEatórioDiego ramos lanciote..........................................................................199

notícias.....................................................................................................215

instruçÕEs para os autorEs...........................................................216

contEnts...................................................................................................217

EScATOlOgIA à lA cANTONAdE. AlThUSSER PARA AléM dE dERRIdA*

Vittorio Morfino**

Resumo: O autor estabelece uma comparação entre Althusser e Derrida a partir da questão da temporalidade, por meio da leitura que os dois autores propõem de Marx sub specie theatri. A partir disso emerge uma teoria da temporalidade em Althusser que está além tanto da teleologia da tradição hegeliano-marxista, quanto do messianismo sem messias proposto por Derrida em sua releitura benjaminiana de Marx. Nesse sentido, a escatologia em Althusser só é pensável à la cantonade.Palavras-chave: temporalidade, escatologia, teleologia, messianismo.

A leitura de Espectros de Marx provoca no estudioso de Marx uma reação que Derrida, em Marx and sons, retomando Spivak, definiu proprietorial (Derrida 6, p. 222). Desembainhar as armas da filologia marxista para mostrar como na realidade Derrida constroi a sua fascinante leitura de um número de páginas do texto de Marx extremamente exíguo e sem qualquer contextualização: algumas páginas da parte da Ideologia alemã dedicada a refutar o Único de Stirner, a página inicial do Manifesto, as páginas introdutórias do 18 Brumário, algumas páginas da Contribuição à crítica da economia política, poucas páginas de um parágrafo, embora célebre, do Capital. Todavia, a reação “proprietorial”, ou “prioprietorial”, segundo a sugestão de Derrida, evita de fato o fascínio de um desafio

*“Escatologia à la cantonade. Althusser oltre Derrida”. Tradução de Márcio Bilharinho Naves.**Vittorio Morfino é professor de filosofia da Universidade de Milano-Biccoca.

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teórico. Acusar Derrida de ignoratio elenchi ou discutir a interpretação das poucas páginas marxianas com acribia filológica significaria, em um certo sentido, demarcar as fronteiras de um campo disciplinar vigiando as violações a elas. Mais interessante e produtivo, ao contrário, é aceitar o desafio de Derrida no terreno da teoria, e tentar comparar o seu Marx sub specie theatri com aquele apresentado por Althusser exatamente trinta anos antes em um artigo com o título “Il Piccolo, Bertolazzi e Brecht”.

1. A disjunção da temporalidade no Hamlet de Derrida

“The time is out of joint” (Shakespeare 8, p. 1151). O tempo está fora do prumo: está invertido; o mundo está de cabeça para baixo. Em Espectros de Marx o leitor se encontra frente a uma surpreendente e genial operação filosófica que consiste em procurar a vitalidade da tradição marxista, isto que não se pode nem se deve cancelar da herança de Marx, na materialidade de um texto teatral, talvez o mais famoso da tradição ocidental, o Hamlet de Shakespeare. Deve-se ler Marx a partir de Hamlet, através de Hamlet, no sentido daquela extraordinária expressão que declara o tempo out of joint.

Em “The time is out of joint” – escreve Derrida –, Time é umas vezes o tempo mesmo, a temporalidade do tempo, outras vezes o que a temporalidade torna possível (o tempo como história, o correr do tempo, o tempo em que vivemos, os dias de hoje, a época), outras vezes, por conseguinte, o mundo como ele vai, nosso mundo hoje, a atualidade [...]. Time: é o tempo, assim como é a história e também o mundo (Derrida 5, p. 43, tr. 35).

“The time is out of joint”. A invenção literária de Shakespeare produz um fosso entre as diversas tentativas de tradução. Derrida resenha algumas das mais importantes tentativas francesas: a tradução de Yves Bonnefoy “le temps est hors de ses gonds”; aquela de Jean Malaplate “le temps est détraqué”; aquela de Jules Derocquigny “le monde est à l’envers”; aquela, por fim, de André Gide “cette époque est déshonorée”. A tradução de Gide ativa segundo Derrida um sentido fundamental do inglês de Shakespeare, o sentido ético-político da expressão, “a decadência moral ou a corrupção da cidade, o desregramento [dérèglement] ou a perversão dos costumes” (Derrida 5, p. 44, tr. 36-7). A expressão, portanto, deve ser lida em um duplo registro, ontológico e ético-político: “E se esse duplo registro condensasse seu enigma, exatamente, e potencializasse sua superpotência no que confere sua força inaudita à fala de Hamlet (Derrida 5, p. 44, tr. 37)?

“The time is out of joint — O cursed spite. That ever I was born to set it right!” (Shakespeare 8, p. 1151). Hamlet amaldiçoa o destino que lhe atribuiu a tarefa de “fazer justiça [...] corrigir a história [à rendre justice et redresser l’histoire], a tortuosidade da história” (Derrida 5, p. 46, tr. 38). Derrida pensa a herança de Marx a partir dessa possibilidade aberta por Hamlet (propondo uma leitura análoga àquela heideggeriana do Spruch des Anaximanders), de uma disjunção que é ao mesmo tempo aquela do injusto e aquela “que abre a dissimetria infinita da relação com o outro, isto é, o lugar para a justiça”, entendida não como cálculo, mas como incalculabilidade do dom (Derrida 5, p. 48, tr. 40). O tempo de Hamlet, nos diz Derrida, é o próprio tempo do mundo, da história, da sua época. Dando um passo a mais: o tempo do ser é o tempo da consciência. E todavia, a justiça não deve ser pensada como a prestação de contas, como o reajustamento ético-ontológico do tempo, mas como a vinda mesma do evento do qual a disjunção do tempo, do presente, é condição necessária. Exatamente nesse sentido da proposição shakespeariana Derrida encontra

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a herança mais profunda do marxismo, para além do materialismo histórico e do dialético, para além da ideologia incorporada nos aparelhos de partido e nas internacionais operárias. Derrida chama o evento com o seu nome histórico: o messias.

Portanto, a herança de Marx deve ser apreendida através da tragédia de Hamlet, não no sentido mais superficial, na teleologia inscrita em um tempo cuja estrutura ontológica está dominada pela exigência ético-política de uma justiça enfim reinstaurada: não, portanto, segundo a notória canção hegelo-marxista do fim da história. A herança de Marx, que “não se pode nem deve apagar”, está, ao contrário, toda “na espera ou na chamada do que denominamos [surnommons] aqui, sem saber, o messiânico: a vinda do outro, a singularidade absoluta e inantecipável do que chega como justiça” (Derrida 5, p. 56, tr. 47). De outro modo, a justiça “corre o risco de se reduzir novamente a regras, normas ou representações jurídico-morais, num inevitável horizonte totalizador”, enquanto o messianismo marxista proposto por Derrida implica “um rejuntar sem cônjuge [rejoindre sans conjoint], sem organização, sem partido, sem nação, sem Estado, sem propriedade” (Derrida 5, p. 58, tr. 48).

Trata-se de pensar, segundo Derrida,

uma extremidade messiânica, um eschaton cujo último acontecimento (ruptura imediata, interrupção inaudita, intempestividade da surpresa infinita, heterogeneidade sem realização) pudesse exceder, a cada momento, o termo final, de uma physis, como o trabalho, a produção e o telos de toda a história (Derrida 5, p. 68-9, tr. 57).

A herança de Marx se encontraria, portanto, não no discurso manifesto da tragédia shakespeariana (como toda tragédia clássica, intrinsecamente teleológica), mas na possibilidade latente de ler entre

as suas linhas uma escatologia sem teleologia, a disjuntura ontológico-moral do tempo como ruptura “em uma temporalidade geral ou em uma temporalidade histórica feita do encadeamento sucessivo de presentes idênticos a eles mesmos e deles mesmos contemporâneos” (Derrida 5, p. 119, tr. 99), abertura à inserção do instante messiânico preparado por sinais que marcassem o testemunho de uma teologia em ação. Contra a onto-teo-arqueo-teleologia marxista, que neutraliza e bloqueia a historicidade, trata-se, segundo Derrida, de pensar

uma outra historicidade, […] uma outra abertura da eventualidade como historicidade que permitisse não mais renunciar a esta, mas, ao contrário, promover o acesso a um pensamento afirmador da promessa messiânica e emancipatória como promessa (Derrida 5, p. 125-6, tr. 104).

2. A estrutura dissimétrica da temporalidade em El nost Milan de Bertolazzi

Ora, como foi dito, Espectros de Marx não permite qualquer penetração real na filosofia de Marx, apesar de os fragmentos de leitura que Derrida nos dá mostrem uma extraordinária capacidade de evocar a força das metáforas de que é entretecida a escritura marxista, o incrível talento de mostrar o resto de escritura que excede o querer dizer de Marx. Todavia, parece claro que Derrida entrevê a filosofia de Marx onde ela não está, nas Teses sobre o conceito de história e no Fragmento teológico-político de Walter Benjamin; o materialismo histórico, o materialismo dialético, a ideologia dos partidos comunistas e das internacionais operárias, os países do socialismo real, a glória e os erros dessa história são liquidados com leveza pouco maior que a jornalística. E, no entanto, como eu disse, merece ser levado a sério em um outro nível, aquele da pura invenção filosófica:

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neste nível, se torna produtivo o encontro com o pensamento de Louis Althusser. Não com a interpretação althusseriana de Marx a respeito da qual Derrida se declara explicitamente em oposição1, mas no nível da pura invenção conceitual, que também em Althusser se exercita na interpretação do teatro como ponto de observação privilegiado da realidade.

Não Shakespeare, mas Bertolazzi e Brecht. Em julho de 1962, Althusser assistiu à representação parisiense de El nost Milan, dirigida por Giorgio Strehler, e dedicou a ela um artigo, “Le ‘Piccolo’, Bertolazzi et Brecht (Notes sur un théâtre matérialiste)”, que se torna em seguida o verdadeiro centro geométrico e teórico de A favor de Marx.

Nos três atos2 de El nost Milan, Althusser vê representadas duas formas de temporalidade que se alternam na cena sem qualquer nexo causal aparente: a temporalidade vazia da miséria da vida popular milanesa e a temporalidade plena, instantânea, do drama de um pai (El Peppon) que mata um jovem violento e prepotente (Carloeu, dito El Togasso), que bate e explora a jovem filha (Nina). Os três atos apresentam, segundo Althusser, “a mesma estrutura e quase o mesmo conteúdo: a coexistência de um tempo vazio, longo e lento para viver, e de um tempo pleno, breve como um relâmpago” (Althusser 1, p. 134, tr. 117). Entre essas duas formas de temporalidade não há qualquer relação explícita:

Os personagens do tempo são como que estranhos aos personagens do relâmpago: eles lhes deixam regularmente o lugar (como se a breve tempestade do drama os varresse da cena!) para aí retornar no ato seguinte, com outros aspectos, uma vez desaparecido esse instante estranho ao seu ritmo (Althusser 1, p. 134-5, tr. 117).

O tempo vazio é uma “crônica da existência miserável [...] de seres perfeitamente tipificados, perfeitamente anônimos e intersubstituíveis”, é

um tempo “de encontros esboçados, de propósitos cuidados, de disputas cortadas”, um tempo que, do primeiro ao terceiro ato, “tende para o silêncio e a imobilidade”; essa representação do tempo alude à existência de um fato, o subproletariado milanês do fim do século, que vive um

tempo miserável, […] em que nada passa, um tempo sem esperança nem futuro, […] em que o próprio passado é fixado na repetição, […] o futuro é procurado apenas, […] os gestos não têm sequência nem efeito, onde tudo se resume, pois, em algumas trocas ao rés da vida, da ‘vida cotidiana’, […] nas discussões e disputas que abortam ou que a consciência da sua inutilidade faz entrar no nada […] (Althusser 1, p. 135-6, tr. 118).

Em suma, conclui Althusser, “um tempo parado onde ainda nada se passa que se assemelhe à História, um tempo vazio e suportado como vazio: o tempo mesmo da sua condição” (Althusser 1, p. 135-6, tr. 118).

Para Althusser, é magistral a representação espacial que Strehler encena desse tempo da vida miserável das massas. No segundo ato, em particular, esse tempo se torna visível na estrutura espacial do amplo local de um refeitório popular (i cusinn economich):

Ao pé de um imenso muro meio arruinado e quase no limite de um forro inacessível, recoberto de inscrições regulamentares meio apagadas pelos anos, mas sempre legível, eis aí: duas imensas mesas longas, paralelas à rampa, uma no primeiro plano, a outra no segundo; atrás, contra o muro, uma barra de ferro delimitando o caminho de acesso ao refeitório. É por ali que virão os homens e as mulheres. À direita, uma alta parede perpendicular à linha das tábuas separa a sala das cozinhas. Dois guichês, um para o álcool, outro para a sopa. Por trás da parede, as cozinhas, as marmitas fumegando, o

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cozinheiro, imperturbável. Esse campo imenso das mesas paralelas, na sua nudez, esse fundo interminável de muro, compõem um lugar de uma austeridade e de uma vacuidade incríveis. Alguns homens estão sentados às mesas […], vê-se que comem, ausentes, como se vêem todos os ausentes, os outros, que em Milão e em todas as grandes cidades do mundo executam os mesmos gestos sagrados [encher a colher, trazê-la à boca, deglutir], porque é toda a sua vida, e que nada lhes permite viver de outro modo o seu tempo. Não sei de outro modo que tenha figurado com tanta força na estrutura do espaço, na distribuição dos lugares e dos homens, na duração dos gestos elementares, a relação profunda dos homens no tempo que eles vivem (Althusser 1, p. 136-7, tr. 119-20)3.

Esse tempo da miséria e da repetição é suspenso pela irrupção de um outro tempo, o tempo do drama: a chegada de Nina faz aparecer “rapidamente o esboço de uma ‘história’, a figura de um destino” (Althusser 1, p. 132, tr. 115). Esse tempo que irrompe na cena no final dos atos, é um tempo pleno, fechado, dramático, “um tempo onde não se pode passar qualquer história” (Althusser 1, p. 137, tr. 120), “maduro no seu interior por uma força irresistível, e produzindo ele mesmo o seu conteúdo”: é um tempo dialético no qual um telos guia a contradição que o atravessa (Althusser 1, p. 137, tr. 120).

Qual é o sentido dessa sucessão na cena, da ordem de aparição alternada do tempo vazio e parado e do tempo pleno que o rasga sem todavia afetar a sua lenta indiferença? Althusser dá uma resposta paradoxal: “é justamente a ausência de relações que constitui a relação verdadeira”. A obra adquire o seu sentido mais pleno e original quando chega “a figurar e fazer viver essa ausência de relações” (Althusser 1, p. 135, tr. 118). É ainda no segundo ato que Strehler torna visível na cena de modo mais potente essa ausência de relações:

quando os homens deixaram o refeitório e onde só restam Nina, o pai e Togasso, alguma coisa de repente desapareceu: como se os convivas tivessem com eles levado todo o “décor” […], o espaço mesmo dos muros e das mesas, a lógica e o sentido desses lugares; como se o único conflito substituísse esse espaço invisível e denso, irreversível, de uma única dimensão, aquele que o precipita em direção ao drama (Althusser 1, p. 137, tr. 120).

O tempo fora do prumo, de cabeça para baixo, desonrado no drama de Shakespeare é o mesmo tempo do drama do pai de Nina: pouco importa que lá se trate do príncipe da Dinamarca e aqui de um velho homem do povo, a dialética que o atravessa é a mesma, assim como a vingança e a crueldade do destino nela inscritas. O sujeito dessa dialética é o mesmo e a própria desconstrução derridiana não é mais que a desconstrução daquele tempo (porque que coisa é um eschaton sem um sujeito, ainda que somente pensado sob o signo da diferença e não da identidade?). Todavia, na encenação de Strehler, um outro tempo desliza indiferente ao drama. Essa indiferença é para Althusser o sentido mais profundo da obra:

O paradoxo de El nost Milan é que a dialética aí desempenha por assim dizer lateralmente, às ocultas [latéralment, à la cantonade], alguma parte em um canto da cena e ao final dos atos: essa dialética, em vão a esperamos: os personagens não fazem caso dela. Ela toma o seu tempo e só chega no final, à noite [...] (Althusser, p. 138, tr. 120).

The time is out of joint poderia ser traduzido hegelianamente die

Welt ist verkherte [o mundo está de cabeça para baixo]: o verbo alemão verkheren traduz, a meu ver, perfeitamente o sentido ao mesmo tempo

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ontológico e ético-político do inglês shakespeariano. Um tempo de cabeça para baixo é um tempo que inscreveu em si o percurso teleológico do seu fluir. Derrida evita a cada passo o risco de um tal resultado, uma filosofia do fim da história que aprisiona a historicidade, dom que supera a sucessão sempre igual dos presentes, no relato de uma história do Homem. Todavia, ele desconstrói aquele tempo, o tempo da dialética da consciência, sem perceber fora dele esse outro tempo, o cubo vazio do refeitório, da disposição dos lugares e dos gestos, que é indiferente ao tempo dialético e à sua desconstrução escatológica.

Althusser considera essencial a toda tentativa teatral de caráter materialista precisamente aquela estrutura dissymétrique e décentrée que opera in El nost Milan. Em algumas grandes obras de Brecht como Mãe coragem e A vida de Galileu funciona, segundo Althusser, a mesma estrutura latente que permite a crítica das ilusões da consciência “pela realidade desconcertante que está em seu fundo”:

Assim a guerra, na Mãe Coragem, face aos dramas pessoais da sua cegueira, às falsas urgências da sua avidez; assim no Galileu, essa história mais lenta do que a consciência impaciente do verdadeiro, essa história também desconcertante para uma consciência que jamais chega a “possuir-se” duravelmente sobre ela no tempo da sua curta vida (Althusser 1, p. 143, tr. 125).

Nesse sentido, Brecht subverteu as regras do teatro clássico no qual o personagem central reflete na consciência de si o sentido total da obra, no qual o tempo do mundo e seus eventos acompanham a dialética daquela consciência.

3. Temporalidade plural

Tentemos agora avançar mais um passo. Foi dito que o sentido mais profundo da leitura strelehriana da obra de Bertolazzi repousa na ausência de relações entre o tempo da consciência e o tempo da vida das massas. Derrida, desconstruindo o tempo teleológico permaneceria no fundo enredado nele, tomando-o como o único tempo. Em Althusser não apenas a teleologia é à la cantonade, mas também a escatologia. Não messianismo sem messias (ou promessa messiânica sem messianismo, se se preferir), como escreve Derrida, mas messianismo à la cantonade, messianismo às margens, mas não das margens em direção a um centro, antes, às margens de um centro que é indiferente em relação a ele, ou melhor, que não existe.

Mas aquele outro tempo de que fala Althusser, o que é do ponto de vista teórico, fora da representação teatral? Em Ler o Capital Althusser tinha tentado dar uma resposta naquele esboço de uma teoria do tempo histórico que talvez constitua o coração de toda a obra. O primeiro passo foi constituído pela crítica da representação hegeliana do tempo fundada na continuidade homogênea e na contemporaneidade ou categoria do presente histórico, as duas coordenadas da Ideia, sucessão e simultaneidade, no seu aparecer sensível. Das duas, aquela de longe a mais importante é, segundo Althusser, a segunda. De fato, a categoria de contemporaneidade diz precisamente qual é a estrutura da existência histórica da totalidade social, cuja natureza espiritual assegura que cada parte seja pars totalis em sentido leibniziano e que, operando uma seção de essência dessa totalidade, se encontre em todos os níveis da sociedade ao mesmo tempo. Ora, a continuidade do tempo se funda precisamente na sucessão contínua desses horizontes contemporâneos cuja unidade é garantida pela onipresença do conceito.

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Portanto, “elaborar o conceito marxista de tempo histórico a partir da concepção marxista da totalidade social” (Althusser 2, p. 280, tr. 36) significa, em primeiro lugar, tomar distância da teoria hegeliana do tempo histórico. De fato, o todo social marxiano é

um todo cuja unidade, longe de ser a unidade expressiva ou ‘espiritual’ do todo de Leibniz e Hegel, é constituído por certo tipo de complexidade, a unidade de um todo estruturado, comportando o que podemos chamar de níveis ou instâncias distintas e ‘relativamente autônomas’, que coexistem nessa unidade estrutural complexa, articulando-se uns com os outros segundo os modos de determinações específicas, determinadas em última instância pelo nível ou instância da economia (Althusser 2, p. 280-1, tr. 36-7).

O todo, para Marx, é “um todo orgânico hierarquizado”, todo que decide exatamente sobre a hierarquia, o grau e o índice de eficácia entre os diversos níveis da sociedade, cuja temporalidade não pode ser pensada através da categoria hegeliana de contemporaneidade:

a coexistência dos diferentes níveis estruturados: o econômico, o político, o ideológico, etc., portando da infraestrutura econômica, da superestrutura jurídica e política, das ideologias e formações teóricas (filosofia, ciências), não pode ser pensada na coexistência do presente hegeliano, desse presente ideológico em que coincidem a presença temporal e a presença da essência com os seus fenômenos (Althusser 2, p. 283, tr. 39).

Não somente um tempo contínuo e homogêneo “não pode ser tomado como o tempo da história”, mas não é possível nem ao menos pensar “no mesmo tempo histórico o processo do desenvolvimento dos

diferentes níveis do todo”: todo nível tem de fato “um tempo próprio relativamente autônomo dos demais níveis” (Althusser 2, p. 284, tr. 39).

Derrida, que ensinava na École Normale no mesmo período do seminário sobre O capital, não podia não conhecer essa teoria da temporalidade de Althusser. E, com efeito, em uma das entrevistas publicadas em Posições, encontramos uma breve passagem dedicada a ela que nos dá a confirmação disso:

toda a crítica, tão necessária do conceito “hegeliano” de história, e da noção de totalidade expressiva etc., feita por Althusser, visa a mostrar que não existe uma história única, uma história geral, mas histórias diferentes, em seu tipo, seu ritmo, seu modo de inscrição, histórias deslocadas, diferenciadas etc [il n’y a pas une seule histoire, une histoire générale mais des histoire différentes dans leur type, leur rythme, leur mode d’inscription, histoires décalées, différenciées, etc.] (Derrida 4, p. 79, tr. 65).

A cela – acrescenta Derrida – j’ai toujours souscrit. Derrida encontra em Althusser a sua mesma refutação de um esquema linear do desenvolvimento da presença expresso na Gramatologia. Não uma história, portanto, mas muitas histórias – assim sintetiza Derrida e concorda. Mas na passagem sucessiva marca uma distância:

Coloco um outro tipo de questão: a partir de qual núcleo semântico mínimo se chamariam ainda “histórias” esses tipos de histórias heterogêneas, irredutíveis etc.? Como determinar esse mínimo que eles deveriam ter em comum se não é por pura convenção ou por pura confusão que se lhes deve conferir o nome comum de história? […] Tão logo coloquemos a questão da historicidade da história – e como evitá-lo se lidamos com um conceito pluralista ou

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heterogeneísta da história? –, somos tentados a responder por uma definição de essência, de quididade, a reconstituir um sistema de predicados essenciais, e somos levados a rearranjar o fundo semântico da tradição filosófica. Tradição filosófica que acaba sempre por compreender a historicidade precisamente em relação a um fundo ontológico. É preciso, então, não apenas perguntar-se qual é a “essência” da história, a historicidade da história, mas também a “história” da “essência” em geral. E se quisermos marcar uma ruptura entre algum “novo conceito de história” e a questão da essência da história (como conceito que ela regula), a questão da história da essência e da história do conceito, enfim, da história do sentido do ser [...] (Derrida 4, p. 80-1, tr. 65-6).

O risco, segundo Derrida, é a reapropriação metafísica do conceito de História. Esse caráter não está ligado somente à linearidade, segundo Derrida, mas “a todo um sistema de implicações (teleologia, escatologia, acumulação relevante e interiorizante do sentido, um certo tipo de tradicionalidade, um certo conceito de continuidade)” (Derrida 4, p. 77, tr. 64). Para o conceito de história, assim como para qualquer outro conceito, acrescenta Derrida, “não se pode efetuar uma mutação simples e instantânea”: “é preciso elaborar uma estratégia do trabalho textual que, a cada instante, tome de empréstimo uma palavra antiga à filosofia para imediatamente demarcá-la” (Derrida 4, p. 80, tr. 66).

Ora, se retomamos Espectros de Marx, e especificamente a sua definição da temporalidade, isso resulta de todo insuficiente precisamente à luz do projeto apresentado em Posições:

uma extremidade messiânica, um eschaton cujo último acontecimento (ruptura imediata, interrupção inaudita, intempestividade da surpresa infinita, heterogeneidade

sem realização) pudesse exceder, a cada momento, o termo final, de uma physis, como o trabalho, a produção e o telos de toda a história.

Aqui não há afastamento da tradição, mas repetição. Repetição de uma longa tradição teológica que de Paulo leva até a Benjamin, do Deus que vem como um ladrão na noite. E se depois, para marcar a própria diferença em relação a essa tradição, Derrida escreve em Marx & Sons que a “Messianicity” não deve ser reduzida a “religious messianism of any stripe”, mas deve, ao contrário, ser entendida como uma “universal structure of experience” (Derrida 6, p. 248), não faz mais que evidenciar um curtocircuito entre a Alteridade do Evento-Messias e a alteridade de cada evento histórico concreto singular, curtocircuito que tem ao menos o mérito de revelar-se o óbvio contraponto dessa alteridade: a consciência e a sua experiência. Não estamos, seguramente, à altura da radicalidade do projeto de Posições.

Se, ao contrário, retomamos o projeto althusseriano, descobrimos que não há apenas a afirmação de um tempo plural, como considera Derrida, mas também a teoria da articulação desses tempos e a tentativa de redefinir radicalmente todo aquele “sistema de implicações” do conceito de história (seja singular ou plural) precisamente através dessa articulação.

Segundo Althusser a cada formação social corresponde o tempo e a história do desenvolvimento das forças produtivas, das relações de produção, da superestrutura política, da filosofia, das produções estéticas. Cada uma dessas histórias peculiares é escandida segundo ritmos peculiares e pode ser conhecida somente se se determina o conceito da especificidade da sua temporalidade, com o seu desenvolvimento contínuo, as suas revoluções, as suas rupturas. Não se trata de setores independentes, mas relativamente autônomos, autonomia relativa que é apenas fundada sobre um certo tipo de articulação do todo, sobre um certo tipo de dependência:

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a especificidade desses tempos e dessas histórias é portanto diferencial, dado que fundada nas relações diferenciais existentes no todo entre os diferentes níveis […] Não basta dizer, como o fazem alguns historiadores modernos que há [il y a] periodizações diferentes segundo os diferentes tempos, que cada tempo tem seus ritmos, alguns lentos, outros longos, mas é preciso pensar essas diferenças de ritmos e de escansão em seus fundamentos, no tipo de articulação, de deslocamento e de torção que relaciona esses diferentes tempos entre si (Althusser 2, p. 284-5, tr. 40).

Segundo Althusser, Marx foi particularmente sensível a esta problemática: no Capital ele mostra como o tempo da produção econômica não pode ser lido na continuidade do tempo da vida ou dos relógios; trata-se, ao contrário, de um tempo complexo e não linear, um tempo dos tempos que deve ser construído a partir da distribuição e da circulação. Tempo essencialmente invisível e ilegível, opaco, “entrecuzamento complexo dos diferentes tempos, dos diferentes ritmos, rotações, etc.”, tempo que pode ser exibido somente através do conceito e que, portanto, deve ser construído. E Althusser sublinha como na construção deste conceito não têm qualquer utilidade as categorias de contínuo e descontínuo “que resumem o mistério vulgar de toda a história”; trata-se de construir categorias “infinitamente mais complexas, específicas segundo o tipo de história em que ocorrem novas lógicas” (Althusser 2, p. 289, tr. 44).

A contemporaneidade, o momento atual é portanto um entrelaçamenteo diferencial dos tempos. O que ocorre se se sobrepõe este momento a um corte de essência?

A coexistência que se verifica no “corte de essência” – responde Althusser – não revela qualquer essência onipresente, que seja o próprio presente de cada um dos “níveis”. O corte que “vale” para determinado

nível, seja político ou econômico – que portanto corresponda a um “corte de essência” para o político, por exemplo – não corresponde a nada de semelhante para os outros níveis, econômico, ideológico, estético, filosófico, científico –que vivem em outros tempos, e passam por outros cortes, outros ritmos e outras pontuações. A presença de um nível é, por assim dizer, a ausência de outro e essa coexistência de uma “presença” e de ausências é apenas o efeito da estrutura do todo em sua descentração articulada (Althusser 2, p. 290, tr. 44).

Uma formação social é portanto um entrelaçamento de diversos tempos dos quais é necessário pensar a defasagem e a torção produzidos pela articulação dos diferentes níveis da estrutura. O risco implícito nessa teoria da temporalidade consiste em pensar o corte de essência não de modo linear, mas em graus, pensando a ausência de um nível em relação à presença de outro como antecipação ou atraso:

Se fizéssemos isso, – escreve Althusser –, cairíamos como acontece com frequência entre os melhores historiadores, na armadilha da ideologia da história, em que o avanço e o atraso não passam de variantes da continuidade de referência, e não efeitos da estrutura do todo (Althusser 2, p. 291, tr. 45).

Para fazer isso é necessário se livrar das evidências da história empírica e produzir o conceito de história. Se as diferentes temporalidades se referem a um mesmo tempo, cai-se na ideologia do tempo homogêneo:

Se não podemos efetuar na história esse “corte de essência”, há de ser na unidade específica da estrutura complexa do todo que devemos pensar o conceito desses pretensos atrasos, avanços, sobrevivências, desigualdades de desenvolvimento que co-existem na estrutura do presente histórico real: o presente da conjuntura (Althusser 2, p. 293, tr. 45).

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Portanto, para falar através das metáforas de “antecipação” e “atraso”, é preciso pensar o lugar e a função daquela temporalidade diferencial no todo através de um conceito de sincronia que, desvinculada do modelo estruturalista, identifica-se com a eternidade spinoziana: conhecimento da complexidade do real através da produção dessa complexidade em nível conceitual, produção que traça a linha de demarcação entre o verdadeiro e o imaginário (linha de demarcação que a espectrologia de Derrida recusa firmemente traçar), entre a temporalidade simples e singular da imaginação e aquela complexa e plural da história.

Em Posições, Derrida tinha afirmado que o discurso sobre a pluralidade dos tempos althusseriana só pode se verificar na forma do conceito e, assim, que ela termina por recair na metafísica. Mas aqui talvez Derrida seja prisioneiro de uma concepção do tempo que gostaria de elidir, seja prisioneiro de uma epocalização da metafísica, no fundo linear e expressiva. Existe conceito também fora da metafísica, em Spinoza, por certo, mas também naquela tradição que em um escrito póstumo Althusser definirá como do materialismo do encontro: Lucrécio, Maquiavel e outros ainda. É em companhia desses autores que Althusser pode dizer que na história não fala a voz de um logos, mas o inaudível e ilegível traço de uma estrutura de estruturas. E é sobretudo em companhia de Marx que Althusser pode chegar a pensar o conceito que lhe permite articular a pluralidade das histórias: o conceito de modo de produção e, especificamente, de modo de produção capitalista. Esse é o tempo do cubo vazio do refeitório, da disposição dos lugares e dos gestos, em relação aos quais toda teleologia e toda escatologia estão às margens, à la cantonade. Esse tempo é o objeto do Capital, a obra fundamental de Marx, que a escuridão interna de Espectros de Marx exclui do próprio campo de visão ao constituí-lo4.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. ALTHUSSER, L. “Le ‘Piccolo’, Bertolazzi et Brecht (Notes sur un théâtre matérialiste)”, in Pour Marx, 2ª ed., Paris, La Découverte, 1996 ; tr. bras. de D. Lindoso, 2ª ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

2. ______________. L’objet du Capital, in Lire le Capital, Paris, 3ª ed., PUF, 1996; tr. bras. de Nathanael Caixeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

3. BERTOLAZZI, C. El nost Milan e altre commedie, Torino, Einaudi, 1971.4. DERRIDA, J. Positions, Paris, Les Editions de Minuit, 1972; tr. bras. de Tomaz

Tadeu da Silva, Belo Horizonte, Autêntica, 2001.5. ______________. Spectres de Marx, Paris, Galilée, 1993; tr. bras. de Anamaria

Skinner, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.6.______________. Marx & sons, in Ghostly demarcations, introduced by M.

Sprinker, Londres/Nova York, Verso, 1999.7. MACHEREY, P. , Marx dematerialized, or the Spirit of Derrida, in Ghostly

demarcations.8. SHAKESPEARE, W. Hamlet, in The riverside Shakespeare, Boston, Houghton

Mifflin Company, 1974.

ESCHAToloGy à la cantonade. AlTHUSSER BEyoND DERRIDA

Abstract: The author establishes a comparison between Althusser and Derrida from the question of temporality, by means of the reading of Marx sub specie theatri proposed by both. From this emerges a theory of temporality in Althusser that is beyond the teleology of Hegelian-Marxist tradition, as well as the messianism without the messiah proposed by Derrida in his reading of Marx Benjamin. In this sense, eschatology in Althusser is only thinkable à la cantonadeKeywords: temporality, eschatology, theology, messianism

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NoTAS

1. “[ ] opomo-nos [ ] às mais cuidadosas e mais modernas reinterpretações do marxismo por certos marxistas (particularmente franceses e próximos a Althusser) que antes acreditavam dever tentar dissociar o marximo de toda teleologia ou de toda escatologia messiânica (mas meu propósito é precisamente distinguir esta daquela).” (Derrida 5, p. 147, tr. 123).2. Quatro no original, três na “reforma da estrutura da comédia” operada por Strehler.3. Cf. as indicações cenográficas dadas por Bertolazzi (Bertolazzi 3, p. 41).4. Sobre isto, escreve Macherey: “This enterprise of deconstruction, which draws Marx alongside his ghosts, succeeds perfectly on the condition of filtering his inheritance to the point of retaining from Capital only Part I Chapter 1: Marx without social classes, without the exploitation of labor, without surplus-value, risks, in fact, no longer being anything but his own ghost” (Macherey 7, p. 24).

AlThUSSER: A POlíTIcA NA fIlOSOfIA

Mariana de Gainza*

Resumo: Sob que condições uma filosofia pode ser considerada crítica ou revolucionária? Esta é uma das inquietudes que norteia a reflexão althusseriana, e que se encontra também na base de sua releitura, em chave filosófica, do pensamento de Marx. Se trata de uma interrogação pelos modos em que filosofia e política se imbricam, na busca das coordenadas do que poderia considerar-se a intervenção de um pensamento teórico numa conjuntura. Neste artigo, procuramos reconstituir certos traços fundamentais dessa dimensão política da prática teórica althusseriana, na ligação inédita que estabelece entre as obras de Marx, Hegel e Espinosa.Palavras-chave: Marx – Espinosa – Hegel – prática teórica – política

“A filosofia é um campo de batalha”, disse Althusser. Esta afirmação que naqueles anos 60 ou 70 podia resultar mais ou menos inquietante, mas que certamente não escandalizaria os ouvidos acostumados com a onipresença das lutas políticas e sociais, hoje seria botada por muitos na gaveta dos anacronismos. A dimensão confrontadora da filosofia não recebe um reconhecimento universal, e isso certamente se relaciona com os modelos acadêmicos hegemônicos que, acompanhando processos mais profundos, consagraram a primazia de normas e valores comunicacionais, e fizeram do “consenso” o eixo gravitacional responsável pela atribuição e distribuição da “verdade” no campo da enunciação filosófica. Mas para

* Pós-doutoranda em filosofia pela USP.

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além da vigente supervalorização do consenso sobre a discordância, talvez sejam as metáforas bélicas com as quais Althusser se refere à confrontação de idéias as que produzem o maior desconforto entre os leitores contemporâneos de sua obra. “A filosofia é um campo de batalha onde se dirimem posições que se associam, em última instância, com a luta de classes”1. Que soberba intelectual pode conceber tamanha ilusão de que a filosofia seja tão crucial para os rumos do mundo? Que dogmatismo extremo pode ainda sustentar a realidade da luta de classes e, adicionalmente, atribuir-lhe alguma conexão com a história da filosofia, quer dizer, com um âmbito que se proclamaria alheio dos conflitos sociais? Que outra coisa a não ser uma perversa nostalgia de tempos violentos já superados pode justificar esse uso de uma terminologia que remete à guerra como algo que estaria implícito não somente no laço social, mas também nos intercâmbios simbólicos mais sublimados?

Ora, se considerarmos que esse tipo de afirmações althusserianas são fórmulas extremas que assumem, em sua intenção polêmica, a necessidade de provocar um desajuste dentro de um espaço de sentidos sedimentados, devemos evitar a tentação de supor que sua forma de ver a atividade filosófica explicitaria uma imagem facciosa da produção de idéias que, dividindo ao mundo dos pensadores entre amigos e inimigos, encenaria com disfarces filosóficos a grande batalha social da modernidade: de um lado das trincheiras, os filósofos materialistas, representando as posições do proletariado; do outro, os idealistas, expressando a idiossincrasia burguesa. A concepção althusseriana da intervenção filosófica em uma conjuntura, ou seja, sua compreensão da dimensão política envolvida na produção filosófica, é muito mais complexa. Minha intenção neste trabalho é rastrear alguns elementos desta dimensão política da prática teórica althusseriana, com o fim de fazer justiça a sua complexidade.

O ponto de partida da intervenção de Althusser em sua própria conjuntura é, como se sabe, o reconhecimento de uma paralisia na vitalidade crítica do marxismo. Tudo aquilo que até esse momento tinha se mantido unido, integrado à força de violência interpretativa e coação prática, aparecia pela primeira vez, à vista de todos, na realidade de sua cisão. A unicidade da história do movimento operário organizado, a narração que integrava os grandes sucessos revolucionários em uma seqüência que se orientava para o inevitável e iminente desaparecimento da injustiça e a exploração, tinha estalado: já não era possível sustentar a comunhão histórica entre as lutas operárias do século XIX, as glórias revolucionárias do 17 e a realidade da repressão stalinista. As derrotas dos movimentos de emancipação ao longo do século XX e a frustração das esperanças depositadas nos “socialismos reais” constituíam uma espécie de refutação factual dos postulados da concepção dialética da história que afirmava, em suas versões mais esquemáticas, ou bem que o avanço no sentido da emancipação social e política estava garantido pelo inelutável desenvolvimento das forças produtivas, ou bem que bastava tomar consciência da opressão para liberar-se dela. “Algo tinha se quebrado”. E além dos dramas e vicissitudes da história real, de seus acidentes e contingências, era a teoria marxista da historia que devia ser reconsiderada sem concessões. Pois se, até então, ela tinha garantido a unidade do passado revolucionário com o presente da luta de classes, graças à afirmação de um sentido e um destino da humanidade; e tinha garantido, por outro lado, a unidade da teoria e da prática, a identidade dos meios de interpretação do mundo social e dos meios de organização interna da política revolucionária, acabou por comprovar-se impotente quando a conjuntura exigiu pensar a crise. Somente uma teoria que assumisse que a crise era também seu próprio elemento seria capaz de escapar do assédio paralisante do dogma e participar do esclarecimento das encruzilhadas e perspectivas que, graças à mesma crise, abriam-se para a

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ação. Tratava-se da única resposta que podia estar à altura da compreensão de que “a crise do marxismo era teórica, em um sentido profundamente político” (Althusser 5, pp. 287-298).

Era, então, a hora da filosofia: só a filosofia podia restituir-lhe ao marxismo seu pensamento: sua capacidade de pensar. E pensar significava, também, rever sua filosofia implícita. Pois tanto o economicismo evolucionista dominante nas tendências associadas com o “marxismo oficial” da União Soviética, quanto a reação especular frente a essas tendências, o voluntarismo, que realizava um “chamado urgente à responsabilidade histórica” exaltando a liberdade humana como fonte e motor da transformação do mundo, descansavam sobre um solo filosófico comum: uma leitura simplificadora da relação filosófica existente entre Marx e Hegel.

A resposta curiosa que elaborou Althusser para tentar remover essa dupla falência interpretativa que conduzia para a obsolescência do marxismo incorpora um outro ator filosófico: Espinosa. Que forma estranha de luta teórica é, então, a que concebe Althusser? Que tipo de enfrentamento é esse que faz da filosofia algo suscetível de ser descrito como um campo de batalha? “Essa luta – diz Althusser – toma a forma própria da filosofia”. E essa forma própria da filosofia é a “da demarcação, do rodeio, do trabalho teórico sobre a própria diferença” (Althusser 4, p. 214). Assim, a estratégia teórica para atuar contra o dogmatismo do hegelo-marxismo dominante consistiu na incorporação de outro antecedente filosófico para Marx, o qual, abrindo um novo âmbito de relações conceituais, devia permitir o surgimento de certos impensados da obra marxiana. Impensados que, habilitados por essa relação teórica nova (a de Marx com Espinosa), poderiam operar a crítica interna daquela outra relação filosófica (a de Marx com Hegel) que era a única admitida como legítima dentro do campo marxista. Uma relação teórica atuando contra outra relação teórica, um

diálogo subterrâneo e não reconhecido atuando contra um diálogo explícito e, por isso, cativo da própria força inercial de sua evidência. Duas relações postas em tensão ou, melhor, um desvio atuando sobre outro desvio: “um desvio por Espinosa para ver um pouco mais claramente no desvio de Marx por Hegel” (Althusser 6, p. 195). De tal maneira que se “Marx só se definiu tomando apoio em Hegel, para demarcar-se dele” (Althusser 4, p. 214), esse movimento de identificação e diferenciação, por sua vez, podia ser determinado em sua especificidade ao interferi-lo com outra corrente, outro movimento de identificação e diferenciação, aquele que define o leitor. Pois é assim como Althusser entende o próprio da prática filosófica: “sempre se pensa realizando rodeios por outros pensamentos”, sempre se pensa através de interferências.

Ora, a posta em tensão de ambas as relações (a de Marx com Hegel e a de Marx com Espinosa) justifica-se por certa necessidade teórica que o leitor (Althusser) visualiza a partir da homologia que encontra entre outros laços filosóficos subjacentes:

Estabeleci um paralelismo bastante estrito entre Espinosa contra Descartes e Hegel contra Kant, mostrando que nos dois casos o que estava em jogo e era disputado era uma concepção subjetivista transcendental da ‘verdade’ e do conhecimento. O paralelismo ia mais longe: já não há ‘cogito’ em Espinosa (tão somente a proposição factual ‘homo cogitat’, o homem pensa), já não há sujeito transcendental em Hegel, só um sujeito como processo (sem considerar sua teleologia [imanente]). Não há teoria do conhecimento (quer dizer, garantia a priori da verdade e de seus efeitos científicos, sociais, morais e políticos) em Espinosa, não há tampouco teoria do conhecimento em Hegel, enquanto Descartes apresenta na forma da garantia divina uma teoria da garantia de toda verdade, ou de todo conhecimento – enquanto, por sua vez, Kant produz uma

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teoria jurídica do conhecimento sob o ‘eu penso’ do Sujeito transcendental e as condições a priori de toda experiência possível (Althusser 3).

O que permite, então, fundar uma conexão firme entre Marx e seus dois antecessores filosóficos – aquele universalmente reconhecido e aquele incorporado em virtude das novas exigências de uma conjuntura teórico-política – é o caráter crítico do pensamento de ambos os antecessores. Os dois assumem, com efeito, suas respectivas perspectivas como uma “batalha”, entendida esta como uma operação de demarcação – de posição na oposição – em relação às filosofias dominantes em suas épocas e contextos; batalha em virtude da qual “um novo espaço de liberdade” se abria, graças à crítica dos conceitos que operavam como “garantia” (quer dizer, os conceitos que atuavam estabilizando o impulso de conhecer para que este se adequasse às exigências da ordem social). Um pensamento crítico, desta forma, se constitui distinguindo-se. Mas esse movimento de diferenciação teórica implica, por sua vez, a necessidade de sustentar-se no mesmo solo sobre o qual a crítica opera. O próprio Althusser, crítico de Hegel, continua reconhecendo o trabalho de distinção que o pensar dialético leva adiante, se considerarmos que a dialética hegeliana atua operando uma “inversão” muito particular do argumento do adversário; uma inversão que aceita a necessidade de situar-se da perspectiva da tese a ser combatida e de reconhecer o que há de verdade nela, para logo torcer essa força contra seu detentor originário. Um movimento crítico traduzível, pois, nos termos althusserianos que reivindicam a necessidade filosófica de “tomar apoio em uma perspectiva para desmarcar-se dela”. E que se revela de fato muito próximo ao que Espinosa faz quando, logo de assumir a filosofia cartesiana como ponto de partida, produz uma torção na própria forma do discurso em virtude da qual as mesmas postulações cartesianas (espinosanamente modificadas) são endereçadas contra Descartes.

Em relação com isto, é para dar toda sua força ao fato de que existe uma efetiva confrontação em que se joga a vida filosófica dos autores que podem considerar-se “revolucionários” que Althusser usa aquelas imagens bélicas que dramatizam as alternativas e dilemas do diálogo filosófico. Assim, interpreta: é “começando por Deus” como Espinosa se instala em pleno coração do campo antagônico (o campo da tradição teológica e seus perpetuadores) para, de ali, usando suas próprias armas – trabalhando sobre o léxico e o andaime conceitual consagrado – começar a desconstrução. Uma “suprema estratégia”, diz Althusser, em virtude da qual Espinosa

...começava por cercar a suprema praça forte de seu adversário, ou ainda melhor, instalava-se nela como se ele mesmo fosse seu próprio adversário e assim não suspeito de ser um adversário declarado, e redirecionava essa fortaleza teórica, girando-a completamente, do mesmo modo que se giram os canhões dirigindo-os contra o ocupante. Este redirecionamento consistia na teoria da substância infinita idêntica a Deus (Althusser 3).2

Mas acontece que esse particular começo que Espinosa realiza, o começo por um Deus transfigurado ou por um conceito de totalidade elaborado como diferenciação crítica a respeito de todos seus sentidos tradicionais, é compreendido em seu caráter inédito pelo próprio Hegel, quem, numa espécie de reconhecimento deslocado da peculiaridade da intervenção espinosana, afirma que “ser espinosista é o ponto de partida essencial de toda filosofia”. A tal ponto que, conforme podemos supor, seria essa percepção (associável com uma leitura sensível) a que faria com que Hegel retorne recorrentemente para a filosofia de Espinosa, “para desfazer-se e apoderar-se dela, para distinguir-se e definir-se a respeito da mesma” – tal como Althusser dizia que Marx fez com Hegel ao longo de todo seu percurso teórico. E se essa associação é factível,

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se pode estabelecer-se uma conexão entre tais insistências (Marx insistentemente regressando a Hegel, que insistentemente regressava a Espinosa), é possível então entrever, na seguinte afirmação de Althusser, o sentido desse rodeio teórico que ele empreendeu e que marcou tão profundamente os rumos do pensamento posterior:

Marx se achava próximo de Hegel (...) por razões que têm a ver com a posição crítica de Hegel em relação aos pressupostos teóricos da filosofia burguesa clássica (...). Marx se achava próximo de Hegel pela insistência de este em recusar toda filosofia da Origem e do Sujeito, fosse ela racionalista, empírica ou transcendental: por sua crítica do cogito, do sujeito sensual-empirista, e do sujeito transcendental, por sua crítica, por conseguinte, da idéia de uma teoria do conhecimento. Marx se achava próximo de Hegel pela crítica hegeliana do sujeito jurídico e do contrato social, por sua crítica do sujeito moral, em resumo, por sua crítica de toda ideologia filosófica do Sujeito, que, quaisquer sejam suas variações, dava à filosofia burguesa clássica o meio de ‘garantir’ seus conhecimentos, suas práticas e seus fins, não simplesmente reproduzindo-os, mas elaborando filosoficamente a partir deles as noções da ideologia jurídica dominante. E se se considerar o agrupamento destes temas críticos, é preciso constatar que Marx se achava próximo de Hegel pelo que Hegel tinha herdado de Espinosa, pois tudo isso já pode ler-se na Ética e no Tractatus theologico-politicus (Althusser 4, p. 225. O grifo é nosso).

E Marx se distingue de Hegel, por sua vez, em virtude do que Espinosa permite vislumbrar como diferença entre ambos, de tal maneira que o nunca finalizado retorno marxiano a Hegel, implícito nesse perpétuo diferenciar-se, seria a resposta a um chamado que, de dentro do pensamento de Hegel, realizaria Espinosa. Como se a diferenciação

(“começar por Espinosa para superá-lo”) fosse sempre e necessariamente imperfeita; como se esse Outro de si que é Espinosa para Hegel permanecesse sempre irredutivelmente outro, falando através das fauces hegelianas; e como se um reverso do próprio Marx tivesse a capacidade de escutar essa voz soterrada.

Trata-se de conexões, então, que só podem ser estabelecidas a partir de dobras escondidas: produzindo diferenças, distinções, distanciamentos ativos em relação às associações automáticas e imediatas que se produzem como efeito colateral da vigência histórica de um pensamento: suas derivas rigidificadas. Só mediante tal método indireto pode se compreender que há “profundas afinidades” que existem à maneira de vozes tênues que remetem umas às outras à margem do que a historiografia consagrada está disposta a ouvir. Tampouco no marxismo se consideram esse tipo de afinidades; e isso é assim, diz Althusser,

devido à desestimulante razão de que Marx não falou delas, enquanto se remete toda a relação Marx-Hegel à dialética porque Marx falou sim dela! Como se não houvesse sido Marx o primeiro em advertir que jamais se deve julgar alguém por sua consciência de si, mas sim a partir do processo de conjunto que, às costas de sua consciência, produz essa consciência (Althusser 4, p. 225).

O que se perde de vista, então, é o fundamental, pois tais afinidades negligenciadas são as que verdadeiramente “constituem de Epicuro a Espinosa e Hegel, as premissas do materialismo de Marx” (Althusser 4, p. 225).

A estratégia de Althusser se revela, neste ponto, em sua dimensão “construtiva” ou positiva. Enquanto a dimensão confrontadora consubstancial a uma perspectiva crítica se verifica na tomada de posição

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na oposição, na distinção em relação às coordenadas que configuram certo território de base do qual se parte, existe esta outra fase criativa, ligada à afirmação da diferença específica que um pensamento inovador inscreve em um mundo que resulta transfigurado, justamente, por essa inscrição. Mas somente a leitura, identificando a aparição de algo novo (uma verdade descoberta), pode fazer justiça a essa diferença, pois de modo geral não é habitual que aqueles que produzem uma mudança essencial dentro de um horizonte teórico dado nos deixem também a teoria que explique com precisão por que essa modificação tem sido revolucionária3. Por isso, a leitura, tal como Althusser a entende, é estritamente produtiva. À leitura compete o estabelecimento das conexões teóricas que devem configurar o conceito complexo de uma diferença historicamente relevante. E é para isso, para pensar o conceito complexo de uma diferença histórica, que são mobilizadas aquelas relações cruzadas que subvertem os cânones convencionais da história da filosofia. Relações cruzadas que permitem estabelecer certas “conexões teoricamente necessárias”, que não respondem às sucessões cronológicas, mas implicam, pelo contrário, a possibilidade de efetuar reversões temporais. Assim, por exemplo, Espinosa só pode atuar sobre Hegel, subvertendo-o4, se nos deixarmos orientar pelas exigências de uma outra ordem de necessidade: aquela que autoriza que os acontecimentos singulares da história da filosofia se reordenem segundo uma seqüência que, ao invés de “histórica” em sentido linear ou empírico, deve conceber-se como crítica ou desconstrutiva; quer dizer, que se reordenem segundo uma lógica efetiva que se associa com a potência explicativa, a capacidade compreensiva ou a causalidade teórica.

A intervenção filosófica de Althusser procura, desta forma, configurar uma nova antecedência para Marx, uma antecedência suscetível de ser reconhecida se se atender a aquelas “afinidades profundas” que explicam a apelação recíproca ou a força de atração que se dá entre pensamentos

que, se permitirmos que entrem em relação, ganham intensidade graças ao mútuo esclarecimento. Novos predecessores, então, que constituiriam para o marxismo uma família teórica renovada. Uma família que não se sustenta em antecedências sangüíneas, pois se trata, na verdade, de dar a Marx outra família: uma família substituta, “inventada”, a família que teria tido se houvesse podido escolher. A família teórica que se merecem os “sem pai”, os que têm a força e a capacidade de realizar um verdadeiro “começo teórico”, um descobrimento.

Assim, contra uma “dialética da filiação” que conecta os pensadores segundo a “ideologia jurídica familiar da sucessão” e a herança, trata-se de entender, diz Althusser, que “os Filhos que contam no processo da história não têm pai, pois lhes são necessários vários, os quais por sua vez não são filhos de um só pai, mas sim de vários, etc.”.5 A lógica que articula a história real de um pensamento, quando se trata de um pensador que produz descobrimentos, não é a da herança e a acumulação (uma lógica de pais, filhos e discípulos), mas a do encontro e a subversão. O que esse tipo de parentesco que não responde às ideologias familiares produz, então, é certa tradição teórica que pode ser considerada uma tradição da anti-tradição6, uma trajetória oculta feita de desvios, ou bem, “a corrente subterrânea do materialismo do encontro”.

Tal como adverte Althusser, se se optar por reconstruir a trajetória teórica marxiana respeitando as cronologias lineares que resultariam de sucessivas influências textuais explícitas, poder-se-ia dizer: o pensamento de Marx tem sua origem em Hegel, continua na crítica feuerbachiana de Hegel, e se completa com o agregado dos elementos com que contribuem a economia e a política. Marx iria, desta sorte, acumulando referências, e poderíamos reconhecer como base e sustentação dessa trajetória a identidade do mesmo indivíduo, percorrendo uma linha através da qual seguiríamos passo por passo suas evoluções.

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Mas Althusser tem outra idéia a respeito da forma em que se produzem os movimentos teóricos ao interior de uma biografia intelectual. Neste sentido, é conhecida sua polêmica com o estendido recurso aos Manuscritos marxianos de 1844 como fundamento legitimador das posições que queriam resgatar o progressismo humanista do sufoco que associavam à ênfase nos condicionamentos materiais dos processos sociais. No contexto dessa polêmica, encontramos em “A querela do humanismo” uma descrição bastante peculiar da “ruptura epistemológica” tal como ela atuaria naqueles escritos da juventude teórica de Marx. Nos Manuscritos de 1844, diz Althusser, se dá um triplo encontro teórico: o encontro entre Feuerbach, Hegel e a Economia Política. Feuerbach é o anfitrião, “é Feuerbach que convida. A Economia Política e Hegel são seus convidados, ele os recebe, apresenta-os um ao outro, explicando-lhes que são da mesma família (trabalho), sentam-se e a conversa começa: na casa de Feuerbach” (Althusser 2)... Porém, este encontro “só podia ser um encontro explosivo”, pois aquela pretendida combinação harmônica entre o conceito de trabalho de Smith, o Homem de Feuerbach, e Hegel – que jamais declarou o “trabalho como a essência do homem”, lembra Althusser – encenava, antes bem, a convergência superficial do inarticulável e, por isso, a necessidade do curto-circuito que devia ocorrer enquanto o pensamento de Marx pulsasse mais firmemente, assinalando para além dos protocolos de uma conversa amável. Nas palavras de Althusser: “No momento mesmo onde Marx sustenta este extraordinário Discurso da Unidade que são os Manuscritos, até a própria prodigiosa tensão teórica de seu discurso prova que se trata do discurso não da crítica, mas da crise (...) Esse encontro e esse impossível Projeto eram necessários, para que estoure, irremediável, a crise” (Althusser 2).

O que acontece então? Acontece que, a partir de certo ponto, a crise se transforma em crítica: experiência de uma mudança de posição

que é, também, auto-compreensiva desse movimento. Mudança de posição (produzida pela prática política e por seus efeitos de conhecimento) que consiste na assunção de uma nova perspectiva, e que realmente tem –segundo a concepção althusseriana – o caráter de uma nova disposição territorial: a “conversação” que se dava em Feuerbach passa a ocorrer em Marx. Marx se converte em Marx. Em virtude de uma experiência que é ao mesmo tempo política e teórica, desprende-se, libera-se daquele fundo ideológico que o constitui, produzindo sua inteligibilidade: se autonomiza.

Esse esforço marxiano de elaboração crítica dos pressupostos não refletidos de seu próprio pensamento é o que faz da “casa de Marx” um território instável, não garantido, em si mesmo inadequado para cobrir concílios harmoniosos. O Marx maduro que se torna o “anfitrião impróprio” de outras personagens teóricas recebe, então, de outra maneira. Trata-se, precisamente, do tipo de acolhida que pode brindar uma perspectiva que, tal como Althusser a entende, constitui uma “teoria conflituosa”, uma teoria cuja natureza intrínseca, sua mesma “cientificidade” vive da contestação e da luta (Althusser 1). Um verdadeiro escândalo para o racionalismo, diz Althusser, que pode aceitar, sim, que “uma ciência nova choque contra o poder estabelecido da Igreja e contra os prejuízos de uma época de ignorância”, mas unicamente “como por acidente e só num primeiro momento”, até que a ignorância desaparece, já que “por direito próprio, a ciência, idêntica à razão, acaba sempre por vencer” (Althusser 1, p. 112). Pelo contrário, se “a ciência marxista nos mostrar o exemplo de uma ciência necessariamente conflituosa e escisionista (...), aqui não se trata de um acidente, nem da ignorância surpreendida ou dos prejuízos dominantes atacados em sua comodidade e em seu poder: trata-se de uma necessidade organicamente ligada ao objeto mesmo da ciência fundada por Marx” (Althusser 1, p. 113)7. Uma teoria que abriga em si mesma o conflito, assim, não pode ser pensada como definitiva ou acabada: vive

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na permanente conquista da verdade, uma e outra vez produzida como inteligência ativa do que se produz sem pausa como apreensão imaginária da experiência e elaboração ideológica dos horizontes coletivos, em conjunturas sempre cindidas por lutas que são constitutivas.

Era verdadeiramente possível sustentar, então, desde posições que se reivindicavam marxistas que se possuía de uma vez por todas a fórmula da interpretação verdadeira da história e o programa definitivo para a luta emancipatória? Isto é o que a “crise do marxismo” finalmente revela: que um pensamento consistentemente produtivo e crítico deve ser tão complexo como é exigido pela complexidade de seu objeto, que no caso do materialismo histórico não é senão a constituição singular e a transformação das sociedades. O “conhecimento adequado de um objeto complexo por meio do conhecimento adequado de sua complexidade” (o que Althusser concebe como a “eternidade em sentido espinosista”8) requer de uma filosofia que esteja à altura da ciência conflituosa marxista: uma filosofia crítica que, acompanhando a batalha pelo conhecimento e pela verdade histórica, estabeleça as coordenadas de uma permanente luta contra as reduções, as simplificações, os sentidos comuns ideologicamente formatados, e todos os modos de pensar que, de maneira consciente ou inconsciente, participem da reprodução infinita de trilhas do pensamento funcionais à opressão. Por aí passa, então, a intervenção teórica althusseriana, que tentamos aqui reconstruir em sua qualidade de estratégia que assume a forma do rodeio filosófico – uma maneira peculiar de conceber a filosofia como “batalha”, na busca de uma definição da politicidade própria da filosofia. Intervenção que não é mais do que a interpretação/transformação, quer dizer, a modificação althusseriana da famosa tese XI marxiana sobre Feuerbach: “Até o momento, os filósofos apenas interpretaram o mundo; o fundamental agora é transformá-lo”.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1.ALTHUSSER, L. “Marx y Freud (1976)”, em Nuevos Escritos, Barcelona, Laia, 1978.

2._____________. “La querelle de l’humanisme ”, em Écrits philosophiques et politiques II, Paris, Stock/Imec, 1995.

3._____________. “La única tradición materialista (1985)”, em Youkali. Revista de las artes y el pensamiento, N° 4, Dic. de 2007. Disponível em: http://www.

youkali.net/youkali4d%20Althusser%20launicatradicionmaterialista.pdf4._____________. “Defensa de tesis en la Universidad de Amiens (1975)”, em La

soledad de Maquiavelo, Madrid, Akal, 2008.5._____________. “¡Por fin la crisis del marxismo! (1977)”, em La soledad de

Maquiavelo, Madrid, Akal, 2008.6._____________. “Elementos de autocrítica (1972)”, em La soledad de Maquiavelo,

Madrid, Akal, 2008.7.ALTHUSSER, L. & BALIBAR, E. Para leer El Capital. Madrid, Siglo XXI,

1998.

8.MACHEREY, P. Hegel ou Spinoza. Paris, Maspero, 1979.9.TOSEL, A. Du matérialisme de Spinoza. Paris, Kimé, 1994.

ALtHUSSER: tHE PoLItICS IN tHE PHILoSoPHy

Abstract: Which are de conditions that allow us to say that a philosophy is critic or revolutionary? This is one of the interests that guides the althusserian reflection, and is also in the base of his reading, in a philosophical key, of Marx’s thought. It is an interrogation about the ways in which philosophy and politics articulate themselves, searching the coordinates of what should be understand as the intervention of a theoretical thought in a conjuncture. In this article, we try a reconstruction of certain fundamental lines of this political dimension of the althusserian theoretical practice, considering his original way to connect Marx’s, Hegel’s and Spinoza’s works.Keywords: Marx – Spinoza – Hegel – theoretical practice – politics

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NotAS:

1 Ver o balanço que faz Althusser sobre esta forma sua de entender a filosofia como Kampfplatz (Kant) na “Soutenance d’Amiens” (1975), em Solitude de Machiavel et autres textes, Paris, puf, 1998. Cf. Althusser 4, pp. 213-214.2“Geralmente não é assim com os filósofos procedem – continua Althusser– [pois eles] sempre opõem a partir de certo exterior as forças de suas teses, destinadas a cercar o domínio protegido e defendido por teses precedentes que já ocupam o terreno”. Tampouco é exatamente assim como Hegel procede, pois a contaminação real com o ponto de vista assumido – que se verifica na relação de Espinosa com Descartes – não se dá efetivamente em Hegel. Hegel, na visita que realiza aos outros pensamentos, permanece sempre idêntico a si mesmo (em toda parte se encontra como “em sua casa”).3 Como insistentemente assinala Althusser em Lire Le Capital: se bem é certo que Marx produziu a distinção que o separava de seus antecessores, não pensou adequadamente o conceito dessa distinção. Essa “tarefa”, então, concerne aos leitores contemporâneos.4 O livro que mais agudamente trabalha a hipótese dessa subversão de Hegel por Espinosa é, certamente, o de Pierre Macherey, Hegel ou Spinoza (Macherey 8).5 Althusser, L., “La querelle de l’humanisme ” (1967), em Écrits philosophiques et politiques II (Althusser 2). Utilizo para as citações a tradução espanhola de A. Arozamena, disponível em diversos sítios de internet.6 Tomo esta expressão de André Tosel (Tosel 9).7 Profundiza Althusser: “Não se pode descobrir a essência desta realidade conflituosa senão sob a condição de ocupar determinadas posições no conflito e não outras”; uma condição que “choca contra toda a tradição positivista (...) pois a condição positivista de objetividade é precisamente ocupar uma posição nula, fora do conflito, seja ele qual for”. Aquela tradição da anti-tradição que mencionávamos acima entende, diferentemente do positivismo, que somente de determinadas posições é possível conhecer certas configurações essenciais, ou perceber, a partir da realidade de seus efeitos, a existência de certos objetos como a luta de classes ou o inconsciente.8 Cf. Althusser, L., “Los defectos de la economía clásica. Bosquejo del concepto de tiempo histórico”, em Althusser, L. & Balibar 7.

UM MAqUIAvEl dE AlThUSSER: AcERcA dO fUNdAMENTO NA fIlOSOfIA

POlíTIcA cONTEMPORâNEA

Douglas Ferreira Barros*

Resumo: O presente texto aprofundará a interpretação de Althusser à obra de Maquiavel naquilo que concerne ao tema dos limites da ação humana. Tomando a análise do príncipe novo e as longas referências à oposição entre as noções de Virtù e de Fortuna, que constam principalmente da obra Política e História, pretendemos mostrar por que a leitura de Althusser do filósofo florentino nos remete a uma discussão contemporânea da filosofia política acerca dos fundamentos do poder e da própria filosofia. A questão de que partimos para essa leitura do texto althusseriano é: há sentido em pensarmos um princípio fundante da ação, capaz de definir o que são os homens e daí extrair certas regras norteadoras do agir humano?Palavras-chave: Althusser, Maquiavel, Virtù, Fortuna, fundamento.

O objetivo do presente artigo é aprofundar aspectos da interpretação althusseriana do pensamento de Maquiavel que nos remetem à discussão contemporânea do sentido, ou não, de um fundamento na reflexão filosófica sobre a ação humana e sobre a política em sentido amplo. Partimos da exposição – pouco sistemática, dirão os críticos de Althusser – sobre o príncipe novo. Tema privilegiado do pensamento maquiaveliano que nos põe em face do problema dos limites da ação

* Professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Email: [email protected]

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humana. Encontra-se justamente sobre esse ponto, a nosso ver, uma primeira pista para confirmar nossa hipótese de leitura: a de que o texto maquiaveliano, não obstante sua importância na obra althusseriana, se apresenta também como pano de fundo da discussão sobre o tema do fundamento na investigação filosófica da política.

Trabalharemos, então, associada à muito discutida concepção de príncipe novo, a noção de forma nova. Ao nos darmos conta, segundo o argumento de Althusser, de que a condição do príncipe na cena política tem como inerente a companhia da instabilidade, a noção de forma nova nos remete à análise de um par conceitual espelhado nas categorias de Aristóteles, porém distinto delas, a saber, o par forma e matéria. Daí avaliamos o que significa criar uma forma e introduzi-la na matéria, passando na sequência à análise do conflito entre Virtù e Fortuna. O terceiro item deste artigo avalia a possível formulação da antropologia política maquiaveliana e da fundamentação de sua teoria política sobre esta teoria da natureza humana. Ao final, avaliaremos o tema do fundamento e pretendemos mostrar como a reflexão althusseriana acerca dos temas maquiavelianos acima nos conduzem a um debate contemporâneo da filosofia política.

1.Althusser, mais maquiaveliano do que marxista

Pequena é a bibliografia após a segunda metade do século XX, que reconhece em Althusser um pensador digno de importância no conjunto dos que se dedicaram aos estudos sobre o pensamento de Maquiavel. Embora não encontremos entre os seus textos aquele que se dedique à análise exaustiva e sistemática do pensamento maquiaveliano, não há como deixar de admitir que o pensador florentino seja uma das matrizes centrais da reflexão althusseriana da política. É o próprio Althusser quem o diz: “incontestavelmente, muito mais do que Marx, [Maquiavel] é o autor

que mais me fascinou” (Althusser 4, p.82). No entanto, exemplos deste insuspeito desconhecimento encontramos tanto nos estudos específicos sobre a obra maquiaveliana quanto em trabalhos sobre as interpretações recentes ao pensador renascentista.1

Nossa análise sobre a leitura maquiaveliana feita por Althusser dá como certo que a centralidade da obra do primeiro nos textos do segundo é decisiva para que pensemos um aspecto da filosofia política. Ao assumirmos aqui esta hipótese de leitura não pretendemos realizar um acerto de contas com os críticos e leitores de Althusser. Menos ainda realizaremos o julgamento sobre os discutíveis equívocos metodológicos do autor. O que nos importa é entender como a formulação althusseriana acerca do tema do fundamento nos remete a uma reflexão sobre a filosofia na contemporaneidade. Não nos interessa também testar o rigor das menções ao texto maquiaveliano feitas por Althusser, mas sim nos apropriarmos de um fio condutor de sua leitura que nos remete a uma reflexão sobre a filosofia política mesma.

Uma das pontas de tal fio a encontramos quando Althusser se propõe realizar uma revisão dos principados em Política e História (2007), no qual ele põe em destaque o tema do príncipe novo: “Um Príncipe Novo que dará Forma Nova à matéria existente, que deverá partir da matéria existente, que deverá modelá-la” (Althusser 1, p.2016). Que relação mantêm o príncipe novo e a noção de forma nova?

A condição ativa e autosuficiente que pode denotar a constatação de que cabe ao príncipe o trabalho de engendrar novos contornos à matéria política é, de fato, uma aparência. Althusser observa que na avaliação maquiaveliana do príncipe novo o que prevalece é um antiutopismo: “...a unidade nacional será feita com os homens como eles são, com a matéria italiana como ela é, a partir de sua realidade e de sua diversidade catótica” (Althusser 1, p. 216). É um ponto de partida antiutópico porque pressupõe

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os limites de ação do príncipe, como assim será para qualquer ator político empenhado em realizar o novo no enfrentamento da diversidade histórica: interesses diversos, homens diversos, histórias diversas e apenas um homem tentando estabelecer o ordenamento possível.

Considerando-se o fato de que Althusser se vale – sem o devido rigor, concordamos neste aspecto com os críticos – das categorias aristotélicas (Cf. Aristóteles 6, VII, 1032ª, p.337), realçando as duas dimensões em que deve atuar o príncipe novo – ele vai introduzir a forma na matéria histórica – surpreende que não se encontre aqui a defesa de uma forma ideal, perfeita. Chama a atenção e poderíamos perguntar ao filósofo: se não há forma ideal a ser introduzida na matéria, como o príncipe novo ordenará a história, como instituirá uma ordem política? A forma de que nos fala Althusser não é aquela do ideal que regula o efêmero. Aliás, o real é tão somente o aparente, o circunstancial de que é constituída a matéria histórica.

A matéria italiana, vimos acima, é feita de homens tal como eles são “a partir de sua realidade e de sua diversidade catótica”. Segundo as próprias palavras de Althusser, Maquiavel realiza a “não projeção de uma utopia sobre a matéria, mas procura a inserção do plano político na própria matéria, nas estruturas políticas existentes” (Althusser 1, p. 217). Há, portanto, um negativo que constitui a forma. É um negativo da utopia, um vazio do ideal verdadeiro. A forma é, por assim dizer, uma ausência. Não que o príncipe novo esteja paralisado, que o seu horizonte de ação seja a o estado de apatia diante da complexidade da matéria histórica que o envolve. A dificuldade com a qual ele se depara é tamanha que nos dá a medida da importância e da premência de seu trabalho. Isto não porque a história sobre a qual age tal príncipe seja a difícil conjuntura da Itália. Para Althussser qualquer matéria histórica é também

estado puramente negativo, de importância generalizada dos pequenos Estados italianos, aquela situação de decadência geral (negativo absoluto no qual se acumulam todas as contradições: fraqueza dos Estados, ocupação estrangeira, devastações, etc., descritas na invocação final) é tal que impõe o plano de regeneração nacional, pela constituição de um Estado Novo, por um lado, mas ao mesmo tempo impossibilita ou quase conferir a esse processo um ponto de aplicação, um começo. A matéria, em seu conjunto, exige uma forma nova, mas a matéria está em tal desordem, é ela a tal ponto ausência de forma, contém em si tão pouco esboço, desenho dessa forma, o ponto central em que a forma poderia começar a nascer, que é impossível fixar de antemão na matéria o lugar de nascimento da forma (Althusser 1, 217).

A ausência da forma neste caso não é apenas a menção à potência, em termos aristotélicos, nada antecipa acerca de seu devir. Como negação, ela não contém um projeto em gestação e não eclodirá em um dado momento para realizá-lo. Nem mesmo se pode afirmar um momento exato da passagem de um plano formal para aquele da matéria, “o ponto central em que a forma poderia começar a nascer”. A impossibilidade de que fixemos antecipadamente este lugar de “nascimento da forma” impõe-nos a limitação de afirmar sobre matéria que ela é apenas uma “aspiração à forma”, isto é, “a matéria é puro vazio de forma, pura espera informe. A matéria italiana é uma potência vazia, que espera de fora que uma forma lhe seja trazida e imposta” (Althusser 1, p. 217). Como pensar, então, que a forma seja uma ausência e a matéria também seja uma aspiração à forma, logo, um vazio de forma? Ao pensar ação política estaríamos imersos na indeterminação absoluta?

A ação do príncipe não tem um conteúdo a priori e é desta ausência antiutópica, porque tudo poderá daí ser posto em ação, que se dará início

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ao estabelecimento de alguma forma sobre a matéria. Maquiavel, na acepção de Althusser, leva às últimas consequências a ideia de Estado Novo. É novo não por mera demarcação cronológica em relação aos demais anteriores, mas ele é puro ato de criação sobre a ausência de forma política na matéria histórica. Daqueles estados que previamente já se sabe o conteúdo de sua forma, cuja forma tem uma positividade, por assim dizer, nada se pode esperar. O horizonte de seu conteúdo na matéria histórica está também fixado. São eles os estados hereditários, “...reduzidos ao hábito, a uma experiência natural, ao sono histórico. Também os principados eclesiásticos, que de certa maneira se apresentam tão elevados acima da política (mantidos pela ação de Deus ...), que se situam aquém da política, do nível político” (Althusser 1, p.226).

Neste caso, o “situar aquém da política” que é próprio destes estados significa dizer que os mesmos estão ossificados naquelas formas tradicionais, sendo incapazes de abrirem-se para a criação inerente à ação de uma forma nova. O pensamento sobre as tantas possibilidades que a ação do príncipe novo pode engendrar é o trabalho de pensar o ser mesmo da política. Por isso, o estado novo é o campo fértil da investigação sobre a política e não sobre uma forma política ou de governo particulares, cujos contornos são dados a priori. É nele que a ausência da forma põe aberta uma gama de possíveis formas a serem introduzidas na matéria informe, que é a história.

A introdução da forma nova, por se desenvolver nos conflitos travados entre o príncipe novo e a deformação da matéria histórica está perfeitamente representada na oposição entre a Virtù e a Fortuna. O próprio Althusser ressalta que importa menos saber quem introduzirá a forma nova na matéria: uma classe social, a Fortuna ou a virtù, mas não se pode deixar de constatar que a resultante disso, “o acordo entre o Príncipe e o povo” demarca o instante de arrefecimento do embate.

os Estados Novos, ao contrário, despertam grande interesse, quer tenham sido constituídos por homens cuja promoção política se deva à fortuna ou à virtú, quer tenham sido esses homens chamados ao poder por uma classe social. Nos dois casos (Estado da fortuna-virtù ou Estado formado pela intervenção de uma classe social), esses Estados revelam que o acordo entre o Príncipe e o povo constitui o verdadeiro ‘fundamento’ de seu poder e de sua paternidade (Althusser 1, p.226).

Jamais se poderá afirmar, contudo, que o conflito cessará. No trecho acima, o destaque das aspas sobre termo fundamento nos deixa entrever que o acordo entre o príncipe e o povo consuma o poder, mas não encerra a necessidade da introdução de novas formas, da gestação de novas ações, de uma nova dinâmica na relação entre quem detém o poder e quem a ele se submete, visando à manutenção do acordo. Guardemos por enquanto a acepção conferida aqui ao fundamento. Não se trata, é preciso deixar claro, da fundação política em sentido amplo, mas se refere apenas ao instante de arrefecimento do embate do príncipe, introdutor da forma nova, com a matéria histórica disforme, em que o povo se insere. Mas, como Virtù e Fortuna representam o conflito no instante da instituição da forma nova?

2.Virtú e fortuna

A concepção da forma nova como antiutopia radical põe em evidência o contexto de imprevisibilidade da ação no qual ocorrem a fundação do poder e a efetivação da política. Nenhuma figura traduz melhor a imprevisão dos acontecimentos do que a noção de Fortuna, da qual Maquiavel se valeu em tantos de seus textos. Respeitando o enquadramento afirmado acima, segundo o qual a forma nova é que atuará sobre matéria disforme, a história, parece-nos claro que esta é muito

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bem representada pela noção de Fortuna: “uma figura da espontaneidade insondável, imprevisível e negativa...” (Althusser 1, p.241). A Virtù, que muito se aproxima da imagem da força, da resistência e do enfrentamento visa “instaurar uma ordem. Preservá-la. Necessidade humano-política contra o irracional. Uma continuidade. Constituir um tempo e uma realidade política estáveis. Constituir a necessidade.” (Althusser 1, p.241).

As duas figuras buscam desvendar, portanto, esse contexto de indeterminação no qual se efetivará a ação. Por um lado, uma força ensaiará forjar uma resuloção na ação. Todavia, como pensar tal resolução sem que a mesma resguarde em si um conteúdo positivo, sem que não contenha uma forma prévia, ossificada como dissemos acima? A Virtù como forma nova é um feixe de possibilidades à ação do príncipe ou daquele que pretende se apossar do poder. Ela comporta a ausência do princípio único da ação, mas toda a possibilidade de ações porque tem que se pôr em face da fortuna.

...no mesmo momento em que enuncia que o destino da vitú é transformar a história em curso histórico, em continuidade histórica inteligível porque dominada pela ação humana, nesse mesmo momento ele [Maquiavel] percebe o caráter abstrato da exigência da própria virtù. Sente que essa virtù, que deve ser a origem de toda necessidade, está, por sua vez, submetida no homem que deve ser seu portador a uma contingência radical... (Althusser 1, p.242).

A imagem acima, da virtù submetida a uma contingência radical, não quer afirmar a impotência desta força de resistência. Submissão aqui denota imersão, quase submersão. Todavia, como a virtù é força de ação e de realização de um sem número de possíveis formas novas na contingência radical a sua potência emerge como reação à dinâmica da indeterminação, que tudo pode envolver. A virtù não impõe por ser força apenas, mas ela se constitui como força na ação de confronto com a indeterminação.2 Como afirma o próprio Althusser:

Maquiavel é incapaz de definir a própria vitrtù de outra maneira que não seja por seus próprios efeitos. Ele é incapaz de defini-la de outra maneira que não seja pela resolução na ação, pela continuidade na ação, pela capacidadae de ir até o fim de seu empreendimento, pela radicalidade na necessidade (Althusser 1, p.242).

Quem é a figura de César Bórgia (Maquiavel 7, VII, p. ) senão a do homem incapaz de comprovar a força de sua virtù na ação de resistência à fortuna. A força deste celerado em face de homens frágeis foi apenas um indício de virtù. Ao ser posto à prova em outras ocasiões, César Bórgia iludiu-se quanto ao seu poder para decifrar os desígnios erráticos da Fortuna. Mesmo que tenha lutado, seu esforço foi em vão: “a fortuna lhe arrebatou aquilo que lhe dera, apesar de seus esforços para transformar a contingência do começo em necessidade histórica” (Althusser 1,p.243). Como então um homem qualquer conseguiria provar a força de sua virtù? Se César Bórgia pereceu em face dela como um comum poderá dominá-la? Por agirmos, todos os possíveis se abrem ao horizonte de nossa ação. Todos portamos alguma virtù, alguma força para agir, mas, por si mesma, esta é simples ausência de conteúdo positivo. Como nem todos somos capazes de introduzir uma ordenação na indeterminação, então, nem todos provamos nossa virtù na ação. Por isso, ela não é uma força, uma barreira, por si mesma, sem que se ponha à prova na ação. Ela “nada mais é do que fenômeno da Fortuna – e não o seu contrário; a necessidade não é produto da virtù, mas a virtù é produto da necessidade” (Althusser 1,p.244). Não por outro motivo Althusser insiste em mostrar que a análise desse termo não poder estar descolada da experiência histórica, da matéria disforme

Que reflete com exatidão a situação política de Maquiavel, a impossibilidade em que ele está de mostrar o vínculo entre a necessidade que anuncia o novo Príncipe e a

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contingência radical de seu surgimento. Aquele que deve fundar a ordem, fazer da história um rio pacífico a correr entre seus diques, é ao mesmo tempo requisitado pela situação, por uma necessidade surda mas cega da história... (Althusser 1, p.244-5).

Haverá quem afirme que a figura de César Bórgia representa a fortuna negativa, ele encarnaria nessa acepção a má sorte na ação política. Por que atribuir seu fracasso à indeterminação e não àquilo que nele falhou quando este deveria impor resistência à fortuna? Tal personagem condensa sobre si o exemplo do erro, de uma impotência radical que não diz respeito ao quantum da força, mas à qualitas da compreensão sobre como agir na matéria histórica.

A fortuna (negativa) nada mais é que a incompreensão humana da necessidade dos tempos, aqui estamos numa necessidade de direito inteligível ao homem. Toda a (má) fortuna humana é a incompreensão e a cegueira humana para as transformações dos tempos, ou seja, para o fenômeno de crescimento e de devir da sociedades. E a fortuna positiva é a capacidade dos homens de adaptar-se às situações existentes e à evolução delas (Althusser 1,p.245-6).

Ao afirmar a fortuna positiva que é matriz da virtù positiva, pois esta introduz a forma na matéria informe e consegue se impor às variações incessantes daquela, Althusser remete a discussão ao tema da natureza humana, ainda que não a mencione. O que está em jogo nessa habilidade transitiva, porque pressupõe uma adaptação que ultrapassa inúmeras novas circunstâncias trazidas pela fortuna, é a resistência para manutenção da força da Virtù, apesar das transformações. Como destaca o próprio Althusser: “a capacidade dos homens de adaptar-se às situações existentes e à evolução delas”. O que seria esta leitura sobre a capacidade humana senão uma tentativa, pelo menos, de afirmação de uma antropologia?

3. Antropologia política e o fundamento como problema

Althusser dá como certo que a habilidade humana para realizar ações variadas é o que produz maior segurança a quem deseja se manter no poder. Ele se vale da já muito discutida avaliação de Maquiavel sobre a relação entre a boa e a má fortuna com o modo segundo o qual os homens procedem no tempo. De fato, o florentino cita os tempos, no plural, em acordo com a ideia das variações.

Já considerei várias vezes que a razão da má e da boa fortuna dos homens vem do ajuste [riscontro] de seu modo de proceder com os tempos: porque se percebe que alguns homens, em suas ações, procedem com ímpeto, e outros com circunspecção e cautela. E como, nesses dois modos, são ultrapassados os limites convenientes, por não se observar a verdadeira via, em ambos se erra. Mas erra menos e tem a fortuna próspera quem, como já disse, ajusta seu modo aos tempos e sempre procede conforme a força da natureza (Maquiavel 8, III, 9, p.213ª; p.351).

São as variações o índice de uma virtù que se revitaliza em face dos desmandos da fortuna. Não por outro motivo o próprio Althusser destaca o trecho no qual Maquiavel argumenta em favor das repúblicas como portadoras da boa fortuna se comparadas às monarquias. Nas primeiras, todos os homens são livres para agir e, por isso, se ajustam às variações com mais perspicácia do que aqueles que vivem sob o comando de um governante. Lembremo-nos, como mencionados acima, dos estados ossificados em suas formas políticas: estes estão fadados a se depararem com a dissolução do poder e dos liames que conferem a forma do ordenamento político: experimentarão a deformação completa da matéria histórica.

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O que garante às repúblicas vida mais longa e fortuna mais constante do que às monarquias é o fato de poderem, graças à variedade de gênio de seus cidadãos, adaptar-se com muito mais facilidade do que estas às variações dos tempos (Maquiavel 8, III, 9, p.213b, Apud Althusser 1, p. 246).3

As qualidades da virtù indicam e explicam, mas não determinam, pois “erra menos e tem a fortuna próspera quem, como já disse [Maquiavel], ajusta seu modo aos tempos e sempre procede conforme a força da natureza”, a relação dos homens com a boa ou a má fortuna. Não obstante o destaque dado por Althusser a essa tendência − errar menos e ter fortuna próspera − ele não admite que encontremos nas referências maquiavelianas ao “proceder dos homens nos tempos” uma antropologia. “Em Maquiavel não se tem o equivalente a uma teoria antropológica genética como a que se encontra em Hobbes e Espinosa” (Althusser 1, p.252). Diferentemente do que encontramos nestes filósofos, as referências aos comportamentos gerais humanos, às tendências das ações, aos modos comuns e às consequências semelhantes de certas ações, bem como aos aconselhamentos de caráter geral estabelecidos por Maquiavel – porque os homens têm esta ou aquela características semelhantes –, tudo isso não nos autoriza afirmar que se trata aí da formulação de uma antropologia ou da demonstração da teoria geral da natureza humana. “Na verdade, acredito [diz Althusser] que seria possível afirmar que a antropologia maquiaveliana não serve de fundamento à sua teoria política, porque não é uma verdadeira antropologia. Só tem aparência de antropologia...” (Althusser 1, p.253). Não apenas em Maquiavel não há menção específica à natureza humana, como tais caracteres gerais humanos são apenas indicativos de tendências. Acima destacamos uma expressão que sintetisa bem a posição maquiaveliana, quando conclui sobre os homens que ajustam seu modo de proceder à variação aos tempos: eles erram menos. Por sua vez, se pode

concluir também que não há como dizer que não erram. Resta saber, então, por que tais apontamentos não configuram uma antropologia?

A discussão sobre o tema da antropologia política nas obras maquiavelianas é de uma riqueza ímpar. Estudiosos vários da obra maquiaveliana destacam que sobre o tema dos limites da ação política, cujas análises priorizam quase sempre a figura do príncipe novo, encontram-se valiosas observações sobre as componentes mais fundas e precisas do caráter humano em toda a história da filosofia. Ao se concentrar no estudo de la verità effettuale della cosa, Maquiavel pretende decifrar o que são os homens e o que realizam por meio de suas ações e não se ocupa da investigação do que eles deveriam ser. Menos ainda ele julga o que eles são por um modelo pré-estabelecido do modo como deveriam ser. Todavia, avalia Bignotto (9, p. 92-3) que, ao nos depararmos com uma afirmação como a de que os homens são maus, localizável em vários trechos de obras de Maquiavel, é inevitável que nos perguntemos sobre uma antropologia que ampararia as formulações do pensador de florença. Ele ilustra seu argumento com o próprio Maquiavel dos Discursos:

Todos aqueles que se ocuparam com o estudo da vida política, e a história está cheia de exemplos que os apóiam, concordam em dizer que quem quiser fundar uma república e lhe dar leis, deve pressupor que todos os homens são maus, e que usarão da maldade de seu ânimo todas as vezes que tiveram a ocasião (Maquiavel 8, I, 3, p. 100, Apud Bignotto 9, p. 92).

Bignoto observa que Maquiavel afirma certa universalidade,

“mas não a descreve”. A preocupação do florentino não é estabelecer “um estatuto ontológico à maldade”, a afirmação não é categórica em dizer que os homens são maus,

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mas sim que o legislador deve supor que eles o sejam. Assim a maldade não é uma categoria ontológica, e sua descrição fenomenológica é apenas uma pressuposição, que deve ser levada em conta no momento em que se dispõe a criar novas formas. Trata-se, portanto de um cálculo, que permite ao legislador reduzir o número de varáveis com as quais terá de lidar num momento em que todas as referências estão em questão (Bignotto 9, p.92-3).

A dificuldade apontada por Maquiavel, precisamente assinalada por Bignotto, é que não somos nem perfeitamente bons nem terminantemente maus. “Cada um de nós hesita numa condição intermediária, na qual a variedade de nossos sentimentos, desejos e medos faz com que tenhamos um comportamento errático, que torna quase impossível saber como reagiremos em cada situação” (Bignotto 9, p.93). A distância que se pode notar entre a perspectiva de Bignotto em face da de Althusser no que se refere ao tema da antropologia maquiaveliana, embora elas quase concordem quanto ao resultado, reside em que para o primeiro o que temos não é uma verdadeira antropologia, mas

sim o uso de uma constante antropológica negativa, que reduzindo a margem de erros de apreciação, daqueles que buscam inovar ou fundar um novo corpo político, permitem tratar os momentos especiais nos quais o corpo político se cria, de um ponto de vista menos instável do que aquele ocupado por atores políticos, que decidem encampar o problema em toda sua complexidade e acabam derrotados, tanto no plano da ação quanto no plano da teoria, por um conjunto de atos, que impedem as mudanças de acontecer, ou mergulham o corpo político no caos e na confusão (Bignotto 9, p. 97).

Althusser destaca que a antropologia maquiaveliana tem um caráter factício, artificial, porque tem a intenção de rejeitar uma antropologia positiva advinda da filosofia – que os homens são naturalmente gregários, por exemplo – e da religião – segundo a qual, todas as esferas da atividade humana devem ser entendidas a partir de sua relação a Deus. Bignotto mostra que a perspectiva do pensador florentino realiza um giro e o coloca “à distância de um pessimismo teológico com relação à natureza humana e numa posição diferente daquela defendida por escritores como Leonardo Bruni, que exibia uma crença quase ingênua nas capacidades humanas de realização de formas livres de governo” (Bignotto 9, p.97).

A artificialidade apontada por Althusser sustenta a conclusão de que em momento algum Maquiavel poderia apoiar seu pensamento político sobre uma teoria da natureza humana. Especificamente, por trás desta aparência superficial de uma antropologia ou de uma não-teoria da natureza humana, o que encontramos é a descrição de comportamentos políticos e sociais. “Sua antropologia, na medida em que existe, permanece negativa e crítica. De resto, ela só é positiva como aparência de sua política” (Althusser 1, p.255-6).

Interessa saber por que, depois de negar que há em Maquiavel uma antropologia positiva, Althusser afirme que esta só é positiva como “aparência de sua política”. A meu ver, o tema que subjaz a essa constatação é o do fundamento sobre um pensamento da política.

4. Conclusão: a solidão de Maquiavel e o debate sobre o fundamento na filosofia política contemporânea

Pretendemos neste texto estabelecer um horizonte de inteligibilidade a partir da relação entre as ações humanas e a política, tomando como pano de fundo a interpretação althusseriana ao pensamento

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de Maquiavel. Haverá quem levante inúmeras suspeitas acerca desta interpretação, por motivos muito defensáveis. Uma delas é a carência de contextualização histórica das afirmações sobre o pensamento maquiaveliano. Outra, a ausência de referências comparativas à história da filosofia, comprovando rigorosamente a singularidade e a originalidade da perspectiva maquiaveliana em relação à tradição.

Nenhuma delas parece abalar, contudo, os propósitos do trabalho althusseriano sobre Maquiavel. Ele defende que os filósofos façam somente a teoria de suas experiências, dentro dos próprios limites de das condições materiais de sua experiência (Althusser 2, p.76). Os intérpretes contemporâneos encontram-se em posse de outros limites e de distintas condições materiais: “enunciamos resultados e teorias bem diferentes, mas sem jamais contradizer os antigos, simplesmente porque as condições de nossas experiências mesmas são outras que não as deles” (Althusser 2, p.76).

Todavia, apesar deste insuspeito reconhecimento, as intenções de Althusser são claras ao reler os clássicos, ao elaborar sua “pequena teoria pessoal da filosofia como atividade de posição de teses para que se pergunte sobre as teses existentes” (Althusser 2, p.77). O que está em curso em sua indagação é a procura pelo espaço de liberdade que uma filosofia abre para a investigação e para a ação. O trabalho do pensador, ele confirma, não se reduz a decifrar e expor sua [da filosofia] forma de exposição. É neste espaço de abertura e liberdade que ele vislumbra “a verdade de uma filosofia”. Toda filosofia, diz Althusser, é nela mesma dogmática, no sentido de que ela põe teses sem que se possa comprovar de imediato tais afirmações empiricamente.

A exposição sistemática não tem absolutamente nada de contraditório com os efeitos filosóficos produzidos, bem ao contrário, ela pode, pelo rigor do encadeamento de suas razões, não apenas estreitar mais o espaço que ela intenciona abrir, mas

tornar a coerência de sua própria produção infinitamente mais rigorosa e mais sensível e fecunda (em sentido forte) para a liberdade de espírito (Althusser 2, p.77).

Althusser admitiria que o pensamento maquiaveliano nos fornece essa abertura de liberdade. A “verdade filosófica” de Maquiavel residiria na ousadia de estabelecer um pensamento sobre a política que não se funda em uma antropologia e de tomar como elemento insubstituível desta reflexão os limites da ação humana na matéria histórica. Ele mira o ser e não o dever ser da política. Todavia, essa inquirição do ser da política ancorada na observação das ações humanas na história é o índice mais significativo da solidão de Maquiavel em relação à tradição da filosofia política. Motivo por que não se faz necessária uma comparação exaustiva de seu pensamento com o passado filosófico. Em sua posição, Maquiavel é um solitário.

Essa dupla exclusão, tanto do objeto clássico da filosofia política, quanto da operação de fundamento teórico de suas descrições e de suas conclusões políticas, constitui toda a solidão de Maquiavel, mas ao mesmo tempo é reveladora, pois indica o nexo orgânico que existe, na filosofia política, entre a natureza do objeto político e a operação de fundamentação desse objeto. A singularidade e a solidão de Maquiavel ressaltam, por contraste, a especificidade da reflexão política clássica, que só pode pensar seu objeto político nas categorias que o constituem como tal desde que fundamentada numa antropologia filosófica que, por sua vez, pode redundar numa filosofia da história (Althusser 1, p.260).

Surpreende que Althusser identifique aqui “um nexo orgânico entre a natureza do objeto político e a operação de fundamentação desse objeto”. Como poderia Maquiavel falar ao mesmo tempo de um fundamento sem

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fundamento da política? É sobre esse ponto que podemos comprovar nossa hipótese de que Althusser toma sua análise do pensamento maquiaveliano como pressuposto da investigação sobre o tema do fundamento na filosofia política e ao fazê-lo ele se antecipa ao debate contemporâneo sobre o caráter pós-fundacional do pensamento sobre a política.

Ao comentar sobre a inovação que representou o fato de pensadores contemporâneos se concentrarem na investigação sobre “o político” e não retomar a discussão clássica sobre “a política”, Oliver Marchart avaliou que pretenderam pôr em relevo a crise do paradigma fundacionista da filosofia política tradicional, que remonta aos gregos e chega aos fins da modernidade.

A diferença política parece indicar a crise do paradigma fundacionalista (representado cientificamente por espécies tão diversas como o determinismo econômico, o conductismo, o positivismo, o sociologismo, etc). O que surgiu nas fissuras do fundacionalismo foi o novo horizonte do pensamento pós-fundacional, através do qual se fez possível acordar com a experiência do que Lefort chama de ‘dissolução dos marcadores de certeza’ e com a impossibilidade de postular, para as teorias (fundacionalistas), um marcador de certeza específico como fundamento positivo do social (Marchart 10, p.19).

Parece-nos evidente que o percurso analítico de Althusser sobre Maquiavel que procuramos ressaltar aqui acentuam sua posição crítica em relação a certos marcadores de certeza como fundamento positivo do social. Aquilo que identificamos como uma ausência de antropologia para explicar o nascimento do ordenamento político, assim como tentativa de entender o ser da política a partir do enfrentamento da ação do príncipe novo na matéria histórica operam criticamente, em relação à tradição da

filosofia política, como fatores de “dissolução dos marcadores de certeza. Já os liames que vinculam o pensamento de Althusser com a perspectiva contemporânea nos parecem muito mais estritos do que ele próprio pôde prever em sua avaliação”:

...não de poderia dizer que essa solidão de Maquiavel seja a solidão de uma crítica. Maquiavel não está além da operação teórica clássica e de sua fundamentação; está aquém. Pode-se até considerar que o fracasso de suas tentativas antropológicas e histórico-filosóficas refletem mais uma impotência de fato, uma incapacidade para expressar o que ele tinha para dizer em conceitos filosóficos consagrados, do que uma verdadeira consciência crítica. Será preciso esperar vários séculos para que seja conscientemente recusado e criticado o esforço de fundamentação filosófico-antropológica do objeto político como tal. Digamos, pois, que ele é crítico sem querer, ingenuamente, tanto por sua impotência quanto por sua recusa (sua recusa: recusa de esboçar uma antropologia ética, mesmo para constatar seu fracasso). Ele está aquém da filosofia política e, a fortiori, aquém de sua crítica consciente (Althusser 1, p.260).

Não se passaram ainda décadas das análises de Althusser. Não

foi preciso então “esperar vários séculos para que seja conscientemente recusado e criticado o esforço de fundamentação filosófico-antropológica do objeto político como tal”. Como ele, importantes filósofos de nosso tempo se puseram a denunciar a insuficiência das teorias clássicas fundacionistas para explicar a dimensão da instituição da sociedade e da política. O curioso desse capítulo instigante e atual da filosofia política é que vários desses filósofos foram ao encontro do pensamento de Maquiavel para que este iluminasse as inúmeras dimensões de instituição da política no presente. A despeito da sugestiva avaliação de Althusser,

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tais pensadores contemporâneos vêm mostrar, mais e mais, que Maquiavel não está tão só no vasto campo dos filósofos que se ocupam de desvendar o possível ser da política.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1.ALTHUSSER, L. Política e História. São Paulo: Martins Fontes, 2007.2._______, “L’unique tradition materialiste”. In.: Lignes. N. 18. 1993. P.72-119.3._______, “Le courant souterrain du materialisme du rencontre (1982)” In.: Écrits

philosophiques et politiques. Paris: Stock/Imec, 1994.4._______, L’avenir dure longtemps. Paris: Stock, 1992.5.AUDIER, Serge. Machiavel, conflit et liberté. Paris : Vrin, 2005.6.ARISTÓTELES. Metaphysics. Trad. Hugh Tredennick, Cambridge: Harvard

University Press, 1996.7.MAQUIAVEL, N. “Il Principe”. In.: Tutte le Opere. Firenze Sansoni, 1992; Trad.

Diogo Pires Aurélio. Lisboa : Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011.8._______, “Discorsi”. In Tutte le Opere. Firenze: Sansoni, 1992; Trad. MF. São

Paulo : Martins Fontes, 2007.9.BIGNOTTO, N. “A antropologia negativa de Maquiavel”. In.: ANALYTICA, Vol.

12, nº 2, 2008, p. 77-100.10.MARCHART, Oliver. El pensamiento politico posfundacional – la diferencia

política em Nancy, Lefort, Badiou y Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2009.

11.SCHMITT, C. Political Theology. Trad. George Schwab. Chicago: University Press, 2005.

A MACHIAVELLI by ALtHUSSER: oN tHE FoUNDAtIoN oF CoNTEMPoRARy PolITICAl PHIloSoPHy

This paper will develop Althusser’s interpretation of Machiavelli’s work in what concerns the limits of human action. Taking the analysis of the new prince and the long references to the opposition between the notions of Virtù and Fortuna, which appear mainly in the political and historical works, we intend to show

why Althusser’s reading of Machiavelli lead us to a contemporary discussion of political philosophy about the foundations of power and philosophy itself. The question that we set for this reading of Althusser is: is there any sense in thinking one grounding principle of action that could define what men are and from this draw certain guiding rules of human action?Keywords: Althusser, Machiavelli, Virtù, Fortuna, foundation.

NoTAS

1. Talvez com receio de se comprometerem com a polêmica obra de Althusser alguns intérpretes terminam por comprometer a sua própria leitura crítica, não comentando com justiça a centralidade de Maquiavel no pensamento desse pensador que, queiram seus críticos ou não, fez escola e tem o reconhecimento de vários dos importantes filósofos da política na França deste final do século XX. Entre estes, cito apenas Jacques Rancière e Étienne Balibar. Certamente esse problema de interpretação não ocorre no texto de Serge AUDIER, Machiavel, conflit et liberté (2005). Todavia, surpreende que ao avaliar as interpretações francesas ao pensamento de Maquiavel no século XX, Audier mencione em nota que o florentino “incontestablement, c’est beaucoup plus que Marx, l’auteur qui m’a [Althusser] le plus fasciné”(Atlhusser 4, p.82, Apud, Audier 5, p.33) mas não desenvolva maiores análises de conceitos que, na interpretação althusseriana, têm tanta importância quanto o têm na de outros autores por ele fartamente avaliados, como Raymond Aron.2. A ação que exprime Virtù difere daquela vislumbrada por Schmitt na pessoa do soberano: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção” (Schmitt 11, p.05). A exceção ensada nestes termos é ruptura com o ordenamento legal para a instauração da simples força. O que se pensa a partir do texto maquiaveliano é que toda investida da virtù, apesar de se apresentar como ação que visa instaurar uma nova ordem, esse movimento jamais tira de seu horizonte a necessidade de que se opere “o acordo entre o Príncipe e o povo”. Por isso o próprio Althusser defende que este encontro entre a virtù de quem detém o poder e o povo “constitui o verdadeiro ‘fundamento’ de seu poder e de sua paternidade” (Cf. Althusser 1, p. 226).3. Valho-me neste trecho da tradução feita a partir do texto de Althusser, em francês, e não da tradução feita para o português diretamente do original em italiano, a qual contém diferenças importantes na comparação com a primeira.

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AÇÃO POlITIcA E TEMPORAlIdAdE NAS lEITURAS

cONTEMPORâNEAS dE MAqUIAvEl: NOTAS PARA UM

dIÁlOgO ENTRE AlThUSSER, ARENdT E MERlEAU-PONTy

Mariana larison*

Resumo: No presente trabalho tentaremos apresentar, em um primeiro momento, os aspectos gerais da leitura que Althusser fez da obra de Maquiavel (sobretudo no que tange ao modo como esta se apresenta em textos como Machiavel et nous e La solitude de Machiavel), com o fito de compreender de que modo nosso autor entende o momento político da fundação do Estado. Em um segundo momento, objetivamos contrapor essa posição com outros dois modos de entender a instituição ou fundação do político, embora também a partir de Maquiavel, considerando as propostas de Hanna Arendt e de Maurice Merleau-Ponty. Por fim, esforçar-nos-emos por extrair algumas conclusões a respeito da produtividade e dos limites que cada um desses modelos hermenêuticos oferecem-nos para pensar o fenômeno da instituição política.Palavras-chave: Althusser – Arendt – Merleau-Ponty – Instituição – Politica

Como sabemos, Althusser foi, ao longo de toda sua vida, um grande leitor e admirador tanto da figura quanto da obra de Maquiavel. Os primeiros cursos que Althusser dedicou à obra do florentino datam do ano de 1962, cursos estes que foram repensados e retrabalhados pelo menos até meados dos anos 80 e, muito provavelmente, até a sua morte. No entanto, embora mantenha uma constante admiração pelo pensamento maquiaveliano que o leva a uma permanente leitura de sua obra, a função

* Doutora em Filosofia pela Université Sorbonne, Paris 1 e pos-doutoranda em filosofia pela USP

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que essa leitura ocupa no campo teórico althusseriano parece variar a partir do ano 1977.

Com efeito, sabemos que durante os anos 77-78 ocorre uma virada crítica em relação à posição que Althusser mantém no que diz respeito ao marxismo-leninismo, seja do ponto de vista teórico (como atestam textos como Marx dans ses limites), seja enquanto militante (como mostram textos como Ce qui ne peut plus durer dans le parti communiste).

Do ponto de vista teórico – que é o único que examinaremos aqui –, interessar-nos-á assinalar sobretudo as críticas que Althusser dirige à tradição marxista: por um lado, a falta de compreensão da dimensão autônoma do político (no que tange aos conflitos sócio-econômicos) e, por outro, a ainda idealista dependência de uma metafísica teleológica da história.

É então no final dos anos 70, no momento de elaboração dessas duas críticas, que uma nova leitura de Maquiavel surge na obra de Althusser. É nesse contexto que a leitura de Machiavel permitirá ao filósofo francês pensar além dos limites do marxismo, de um lado, a autonomia do político inscrita em um momento fundador do poder e, de outro, um novo dispositivo teórico – alternativo ao da filosofia da história hegeliana – para dar conta do encontro entre teoria, conjuntura e prática política.

Pois bem, em um primeiro momento, nosso objetivo será o de apresentar os aspectos gerais da leitura que Althusser fez da obra de Maquiavel (sobretudo no que tange ao modo como esta se apresenta em textos como Machiavel et nous e La solitude de Machiavel), com o fito de compreender de que modo nosso autor entende o momento político da fundação do Estado (que a teoria marxista, dados seus limites, não permitiria pensar). Em um segundo momento, objetivamos contrapor essa posição com outros dois modos de entender a instituição ou fundação do político, embora também a partir de Maquiavel, considerando as propostas de Hanna Arendt e de Maurice Merleau-Ponty. Por fim, esforçar-nos-emos

por extrair algumas conclusões a respeito da produtividade e dos limites que cada um desses modelos hermenêuticos oferecem-nos para pensar o fenômeno da instituição política. I. o Maquiavel de Althusser: a radicalidade do presente

A leitura althusseriana da obra de Maquiavel, tal como está desenvolvida nos cursos editados postumamente sob o título Machiavel et nous, parte de uma tese fundamental que organiza e dirige sua interpretação: a velha disputa a respeito da orientação ideológico-política de Maquiavel – a saber, a respeito de sua orientação ser republicana ou tirânica – é completamente irrelevante e constitui definitivamente um falso problema. Do ponto de vista de Althusser, o problema de Maquiavel não consiste em estabelecer a melhor forma de governo entre as existentes, mas sim, estabelecer as condições necessárias para o surgimento e a conservação do Estado italiano. Nesse sentido, O príncipe e os Discursos sobre a primeira década de Tito Livio devem ser lidos como dois momentos que respondem a um único objetivo, que seria o objetivo político de Maquiavel: a fundação e a permanência de um Estado nacional italiano.

A análise althusseriana, guiada então por esta hipótese fundamental, nortear-se-á por dois sentidos complementares: por um lado, a exposição do projeto maquiaveliano; por outro, a consideração das consequências desse projeto, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático.

Considerando o primeiro momento da análise – trata-se do primeiro momento do ponto de vista lógico, dado que a narratividade do curso althusseriano move-se paralelamente entre esses dois momentos analíticos –, as linhas gerais da leitura de Althusser podem resumir-se do modo que segue.

Maquiavel releva um problema político indicado “negativa, mas objetivamente” pela conjuntura em que se encontra, isto é, pela miséria,

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pelas guerras, pela fragmentação dos principados, pelo poder do Papa, pelas intervenções estrangeiras. Althusser assinala, parcialmente na esteira de Gramsci, que esses elementos põem em evidência o problema da unidade de um Estado novo, donde seu objetivo, a unificação da Itália. Então, a questão consiste em encontrar a maneira de reunir o material disponível para dar forma a esse objetivo político. Pois a forma será, segundo Althusser, a de um príncipe novo. Essa “forma” será analisada por Maquiavel no que Althusser denomina a “teoria do Príncipe Novo”, cujas linhas gerais enquadrar-se-iam nos nove primeiros capítulos do Príncipe e cujos argumentos situam-se ainda nos oito primeiros capítulos do Livro I dos Discorsi. Uma vez vislumbrado o problema, bem como a forma de sua solução, Maquiavel estabelecerá, segundo Althusser, a prática política que levará a cabo essa tarefa – e cujo tema é o segundo objetivo das obras citadas.

Ainda de acordo com Althusser, o projeto de Maquiavel supõe um problema, uma teoria e uma prática políticos. Antes de tudo, vejamos em que consistiria pois a “teoria do Príncipe Novo”.

I. a. A exposição althusseriana do projeto maquiaveliano

O problema de Maquiavel, insiste Althusser, consiste na constituição da unidade nacional italiana. Partindo da perspectiva do florentino, a conjuntura – isto é, a matéria a ser formada por um Príncipe Novo em um Principado novo – é favorável. Em troca, toda a dificuldade consiste nesta forma que, para Maquiavel-Althusser, deve ser absolutamente nova, donde o tema da novidade.

Seguindo ainda a leitura de Althusser, se começarmos pelos primeiros capítulos do Livro I dos Discorsi, veremos os argumentos que sustentam essa teoria do Príncipe Novo: o tema da fundação e do começo,

o rechaço de todo modo de dominação e, com isso, a necessidade de estabelecer a independência desde a origem, além do caráter das leis, que devem pertencer ao Estado novo. Este deve encontrar seu começo somente em si mesmo, e em nenhum caso numa origem externa. Ele deve ser portanto nacional. Mas esse Estado deve também cumprir um segundo quesito, a saber, o de ser um Estado em cuja origem encontra-se a potencialidade de permanência no tempo.

O caso de Roma ilustra assim o objetivo maquiaveliano na medida em que coloca em evidência as condições de um Estado duradouro: sua fundação como monarquia e sua continuidade como república, bem como seu caráter de governo combinado e seu traço distintivo: as leis. Estas ocuparão um lugar central na teoria maquiavelico-althusseriana do Príncipe Novo, por marcarem a passagem da fundação à manutenção do Estado; do momento do absoluto poder solitário do Príncipe ao momento do trabalho em comum. Mas, cumpre assinalar aqui, o aparato jurídico-legal do Estado não precede os conflitos e as lutas de classe que são, em troca, a causa das leis, que surgem para controlá-los. Assim, aos olhos de Althusser, as leis surgem como uma função dos conflitos de classe. A causa das leis encontra-se no povo, cujas agitações desembocam na conquista de leis que, por sua vez, limitam a luta.

Nesse conflito de classes entre a classe dominante e o povo, o rei deve tomar o partido do povo promulgando leis. Para que o Estado dure, deve dotar-se de leis que expressem a relação de forças existente na luta de classes, apoiando-se nas causas do povo.

Infere Althusser em sua leitura de Maquiavel, pois, que para fundar e produzir um começo novo, o Príncipe deve estar só. Essa solidão consiste na exclusividade de sua autoridade, na concentração do poder em uma única autoridade. Para constituir, a partir do nada, um Estado, o fundador deve estar só; deve ser onipotente no vazio da conjuntura e de seu porvir

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aleatório. Não obstante, isso não significa que o Príncipe deva ser um tirano, pois será fundador de um Estado duradouro somente aquele que seja capaz de dotá-lo de leis por meio das quais renuncia a seus plenos poderes, saindo, assim, de sua solidão.

Distinguem-se desse modo dois momentos na constituição do Estado, (1) o do começo absoluto, que pode ser realizado somente por uma pessoa, sendo intrinsecamente instável, na medida em que pode resvalar tanto para a tirania quando para um Estado de direito; (2) o momento da duração, que pode ser assegurado somente pela concessão de leis e pelo fim do poder absoluto.

Assim, podemos entender que, nesse duplo aspecto, as duas obras maquiavelianas apontam para os dois momentos essenciais da constituição de um Estado duradouro: o momento da fundação – como tema do Príncipe – e o momento da durabilidade – como tema dos Discorsi.

Assinala então Althusser, o núcleo que constituiria as condições de existência do novo Estado conforme a teoria do Príncipe Novo: por um lado, o encontro da fortuna (a matéria, a conjuntura objetiva) com a virtù (forma, condições subjetivas de um indivíduo indeterminado). Por outro, o efeito desse encontro: a permanência do Estado, i.e. a fortuna transformada em forma política.

Até aqui apresentamos os aspectos gerais da exposição althusseriana do projeto de Maquiavel, principalmente no que concerne a sua teoria do Príncipe Novo, dimensão independente e auto-instituinte do político. Vejamos agora a consideração de Althusser no que tange às consequências desse projeto.

I. b. A originalidade de Maquiavel: a solidão do presente

Vimos como Althusser entende o problema político de Maquiavel concernente à necessidade da instituição de um Estado nacional italiano,

Estado este que não existe e que deve portanto criar-se a partir do nada para dar conta das necessidades conjunturais das novas formas de produção que, naquele momento, manifestam-se somente como um vazio de miséria e de particularismos, mas que se abrem em direção a um futuro aleatório. Vimos que essa tarefa poderia ser realizada somente por meio de uma forma nova que, estritamente falando, não existe: a de um Príncipe novo dotado de virtù.

“Irresistivelmente, o centro de interesse de Maquiavel fixa-se então na Antiguidade, o que ordenará toda a sua análise, isto é, que impulsionará todas as questões que sejam levantadas. Esse centro é Roma, um Estado que dura. O centro de Roma e seu começo. [...] Aqui, voltamos a encontrar, no coração da reflexão e do discurso de Maquiavel, o mesmo ir e vir entre o passado e o presente, entre a teoria geral e o problema concreto [...]” (Althusser 4, p. 99). Mas, complementa Althusser, “o tratamento da Antiguidade por parte de Maquiavel é interessante por outra razão, a de ter permitido-nos captar a originalidade de nosso autor” (Althusser 4, p. 99).

Em que consiste a originalidade de Maquiavel em seu tratamento da Antiguidade? Ora – e com isso chegamos ao ponto que nos interessa em nossa exposição da leitura althusseriana de Maquiavel – a originalidade do pensador florentino consiste no fato de que “não tem necessidade, como diz Marx, de recorrer ao passado para pensar seu presente” (Althusser 4, p. 103).

A pesar desse “ir e vir entre o passado e o presente”, a originalidade de Maquiavel consistiria precisamente em prescindir do passado para pensar o presente, e é desse modo que Maquiavel se aproximaria da concepção marxista da revolução moderna ao mesmo tempo em que se afastaria das concepções utópicas das revoluções burguesas. Com efeito, Althusser compara o recurso a Roma por parte de Maquiavel ao de Marx no começo do 18 Brumário de Louis Bonaparte, no qual este opõe a

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nova revolução anunciada pelo Manifesto à Revolução Francesa. A nova revolução não precisa da utopia, ou seja, da busca “no passado, da garantia e da forma do futuro” (Althusser 4, p. 100), pois só começará sua tarefa ao despojar-se completamente do passado (isto é, ao despojar-se da veneração supersticiosa do passado).

Segundo Marx, recorda Althusser, avançar olhando para trás é uma característica das revoluções burguesas, que necessitam da ideologia da igualdade, da fraternidade e da liberdade – o seja, da virtude política romana –, para mobilizar e mobilizar-se em direção a uma revolução que, de fato, só alcançará uma liberdade formal e uma desigualdade real.

Nesse sentido, segundo Althusser, Maquiavel antecipa-se à revolução proclamada pelo Manifesto marxista, pois não tem necessidade de apresentar seus objetivos políticos concretos sob a égide da forma de uma ideologia moral emprestada de um mito do passado.

II. Maquiavel segundo Arendt: a fundação no futuro

Como sabemos, Arendt, como Althusser, volta-se para a figura de Maquiavel ao longo de quase toda sua obra, destacando em suas análises sobretudo um aspecto fundamental da obra do florentino, a saber, o fato de Maquiavel ser um dos primeiros pensadores – e, nesse sentido, o fato de ser um dos pais – das revoluções modernas; isto, segundo Arendt, graças a uma original releitura maquiaveliana da experiência, originalmente “romana”, da fundação.

De fato, segundo Arendt, Maquiavel “viu que toda a história e a mentalidade romanas dependiam da experiência da fundação e acreditou ser possível repetir essa experiência por meio de uma Itália unificada, que deveria constituir para o organismo político “eterno” da nação italiana a mesma pedra angular sagrada que fora a fundação da Cidade Eterna para o povo latino” (Arendt 5, p. 183).

Conforme Arendt, com os romanos Maquiavel teria entendido que a fundação era a ação política central, “o único grande feito que estabelecia o domínio público-político e que tornava possível a política” (Arendt 5, p. 184).

Mas, em conformidade com o ponto de vista de Arendt em seu ensaio Que é autoridade?, a fundação de que se trata aqui é um fenômeno ligado – conceptual e experiencialmente – de maneira essencial a outros fenômenos, a saber, os da autoridade e da tradição. Sem esses fenômenos como seu horizonte de sentido, a fundação perderia seu caráter propriamente político.

Assim, pois, desde a queda do Império Romano na Modernidade – bem como daquela que seria sua sucessora na manutenção da tríade estrutural fundação-tradição-autoridade: a Igreja Católica –, ter-se-iam perdido as bases da noção mesma de autoridade e, com ela, o elemento propriamente político da tríade.

Sustenta Arendt que, desde então, “enquanto que todos os modelos, protótipos e exemplos de relações autoritárias [...], todos de origem grega, foram fielmente preservados e, posteriormente, articulados até se tornarem palavras vazias, a única experiência política que trouxe a autoridade como palavras, conceito e realidade a nossa história – a experiência romana da fundação – parece ter sido completamente perdida e esquecida” (Arendt 5, p. 180-181).

Contudo, para Arendt existe um acontecimento na história política moderna que retoma o fenômeno da fundação com toda sua força: esse acontecimento é o das revoluções modernas. Ora, o primeiro teórico dessas revoluções, o primeiro a pensar o caráter decisivo da fundação a partir de uma releitura original da experiência romana é, como nos mostra a autora, Maquiavel.

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No entanto, Arendt faz notar que, diferentemente dos romanos, Maquiavel não teria interpretado essa fundação como um acontecimento do passado, mas sim como uma ação ancorada no futuro.

Lembremos que, para Arendt, a experiência da fundação de Roma – aquela ação política central em torno da qual todas as demais ações políticas adquirirão seu valor e sentido – constitui um único começo destinado a estender-se, a aumentar, dentro de um solo comum e de geração em geração. Assim, a autora infere que é a partir da fundação que a religião romana deve ser entendida “literalmente [como] re-ligare: ser ligado ao passado, obrigação para com o enorme esforço de lançar fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade” (Arendt 5, p. 163). “A religião e a atividade política podiam assim ser consideradas como praticamente idênticas” (Arendt 5, p. 163). Por fim, nesse contexto a tradição asseguraria a transmissão, de geração em geração, do testemunho dos antepassados, testemunho este de que “inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos” (Arendt 5, p. 166).

Mas para Maquiavel, bem ao contrário, a fundação enquanto ação política central seria pensada sob o modelo de uma ação futura. Por essa razão, assinala Arendt, uma vez transladado o fenômeno da fundação de um passado mítico para um telos futuro, Maquiavel teria compreendido a ação política da fundação como um modelo da poiesis, a qual envolvia essencialmente um movimento de violência, e não como um modelo da praxis, cuja característica principal é a persuasão.

Como sabemos, Arendt tem assinalado amplamente as características dessas duas ordens de atividade, bem como o problema da redução de uma à outra. Enquanto a ação política é constitutiva de um espaço de liberdade dado seu caráter imprevisível – o qual, juntamente com a palavra, constitui um espaço da vida não-biológica, isto é, da vida

intersubjetiva, pública e propriamente política –, o restante das atividades humanas conduz a um elemento de violência “inevitavelmente inerente a todas as atividades do fazer, do fabricar e do produzir, isto é, a todas as atividades pelas quais o homem confronta-se diretamente com a natureza, em contraste com atividades tais como a ação e a fala, as quais dirigem-se basicamente aos seres humanos” (Arendt 5, p. 151).

A reinterpretação da experiência romana da fundação em termos de justificação da violência para alcançar a um fim é o que faz de Maquiavel, segundo Arendt, o pai das revoluções modernas; e, talvez, também seja o ingrediente responsável por seus fracassos.

III. Maquiavel a partir de Merleau-Ponty: a intratemporalidade da fundação

Até aqui, Arendt. Vejamos agora a proposta merleau-pontyana de leitura de Maquiavel no tocante a essa questão.

Antes de tudo, é necessário lembrar que a noção de fundação aparece inscrita, segundo o pensamento de Merleau-Ponty, no quadro mais amplo à luz do qual ganha sentido: referimo-nos à noção de instituição. A noção merleau-pontyana de instituição surge da tradução que o filósofo francês fez do conceito husserliano de Stiftung (também passível de ser traduzido para fondation/fundação). A discussão em meio à qual aparece esse termo na obra husserliana (mais especificamente, na obra do chamado “último” Husserl) é aquela relacionada à instituição originária, reinstituição e instituição final dos sentidos e hábitos culturais e sociais, tema este próprio de textos como a Crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. A partir de uma reapropriação particular, Merleau-Ponty retomará essa ideia de instituição e a desenvolverá em diversas estruturas, dentre as quais interessar-nos-á analisar aqui aquelas da vida política e da história.

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O texto central para uma análise desse tipo encontra-se no curso do anos 1954-1955, proferido por Merleau-Ponty no Collège de France e denominado L’Institution. La passivité. Ali, Merleau-Ponty estende e elabora o conceito husserliano de Stiftung às diversas ordens da experiência humana, desde a experiência vital até a experiência histórica, passando pela experiência artística, bem como pelo campo do saber e da cultura. “Entender-se-á aqui, pois, por instituição esses acontecimentos de uma experiência que a dotem de dimensões duráveis, por relação às quais toda uma série de outras experiências terão sentido – ou ainda, os acontecimentos que depositam ao menos um sentido, não a título de uma relíquia ou de um resíduo, mas como um chamado a uma continuidade, como a exigência de um futuro” (Merleau-Ponty 7, p. 124).

Uma instituição é aqui definida como um acontecimento a partir do qual abre-se uma dimensão temporal de sentido à qual toda uma série de acontecimentos referir-se-á. Estruturalmente, a instituição supõe uma origem ou fundação, uma tradição que permita o momento da transmissão e reativação, uma unidade de sentido e uma unidade espaço-temporal, além de uma reativação / reinstituição desse sentido ou a inauguração de outros novos.

A título de exemplo, nesse contexto Merleau-Ponty apela para fenômenos propriamente políticos com a finalidade de dar conta de dois aspectos centrais da noção de instituição: por um lado, o fenômeno revolucionário, que ilustrará o momento da reinstituição do sentido; por outro lado, o problema do sentido da ação política na história, que servirá para ilustrar o modo como se deve entender o sentido de fundação.

Pois bem, quem permite entender, aos olhos do filósofo francês, a relação intrínseca entre o sentido e o tempo da ação política central, bem como a violência à qual encontra-se ligada, é mesmo Maquiavel.

O texto que nos serve de guia, a “Note sur Machiavel”, é o único que Merleau-Ponty dedica inteiramente a esse autor. Essa nota, que aparece em Signes, foi publicada pela primeira vez em Les Temps Modernes, no ano de 1949 e, dois anos mais tarde, nas atas do Congresso Internazionale degli Studi Umanistici, sob o título “Maquiavelisme et Humanisme”.

O problema que Merleau-Ponty busca pensar por meio do pensador florentino é o da instituição ou reinstituição de um poder político que não produza a anulação do conflito que é inerente a sua origem e, em última análise, à vida em comum; ou, dito de outro modo, o que Merleau-Ponty busca ao encontro de Maquiavel e de encontro com o marxismo hegeliano é um meio de pensar uma revolução que não dê lugar a uma restauração ou a um totalitarismo.

Lembremos que o problema retomado pela “Note sur Machiavel” é o problema do humanismo, entendido de um modo extremamente neutro como o problema das condições de existência de uma vida comum. Nesse sentido, Merleau-Ponty assinala que o problema de Maquiavel é o problema de Marx. Só que, se observamos os resultados da revolução marxista de 17, notamos que esse problema permanece intacto: como sugere o filósofo francês, alguma coisa fracassou na maneira de pensar novas formas políticas capazes de instituir uma nova forma de poder (que prescinda da exploração do proletariado) sem, contudo, anular o conflito constitutivo da vida em comum.

Para pensar esse problema com seriedade, uma filosofia da história que espera a anulação do conflito em uma síntese ulterior ou ainda uma filosofia que elimine a contingência a partir de uma concepção determinista ou teleológica da história não serve. Poder-se-ia acrescentar, na esteira de Althusser, que tampouco serviria uma filosofia que não pensasse seriamente no problema do poder no campo político, reduzindo-o a relações econômicas e sociais.

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Seguindo, pois, Maquiavel, Merleau-Ponty afirma: “A luta originária sempre ameaça reaparecer [...]. A ferocidade das origens é reprimida quando, entre um e outro, estabelece-se o elo entre o trabalho e o destino comuns [...]. Colocando o conflito e a luta na origem do poder social, [Maquiavel] recusa a condição de um poder que não seja mítico e que não derive da participação de uma situação comunitária” (Merleau-Ponty 6, p. 272).

Maquiavel ensina-nos assim que a política é um espaço de reconhecimento e de tensão que surge da vida coletiva, na qual toda possibilidade de poder estável produzir-se-á a partir do reconhecimento dessas tensões e em seu manejo, por meio da sedução, do engano e da força, mas também por meio da atenção à situação comunitária, considerando sua participação. Desse modo, as qualidades do Príncipe são vistas e suas ações intervêm em um espaço de opinião, no qual seu sentido é transformado.

Merleau-Ponty infere que, por essa razão, as ações refletem-se em uma constelação de olhares, como se fosses postas em frente a espelhos dispostos em círculo, e os reflexos desse reflexo criam uma aparência que consiste na verdade da ação política. O próprio poder é prisioneiro desse jogo de reflexos que ele mesmo não vê e não controla. Por isso, a virtù consiste em estar atento a essa imagem, em não se tornar prisioneiro dela.

A política desenvolver-se-ia então no plano da aparência, pois se desenvolve no plano do público, isto é, no espaço dos espelhos em círculo, como pura exterioridade sem sujeito; ou melhor, uma exterioridade cujo sujeito é o conjunto retomado por cada um.

Maquiavel introduz, assim, uma relação profunda entre a contingência da história e a liberdade da ação: a adversidade não elimina, mas sim reclama a ação; o acaso exige a compreensão do tempo presente. A possibilidade de operar sobre a contingência depende da compreensão da mesma, o que equivale a dizer que necessidade e contingência não

são forças externas contra as quais o homem nada pode: como bem mostraria Maquiavel, segundo Merleau-Ponty, não é somente no caso de renunciarmos a compreender as circunstâncias de nosso tempo que podemos atuar sobre a contingência, ao passo que os acontecimentos são necessários somente no passado.

Como afirma Marilena Chaui, “a discussão de Merleau-Ponty sobre a relação entre virtù e fortuna coloca, portanto, a contingência no primeiro plano. A interpretação de Merleau-Ponty, em última instância, é a afirmação de que a ação livre realizada pela virtù sobre a fortuna consiste em tornar necessário o que era contingente, em determinar o que era pura indeterminação.”1 E isto, segundo a devida interpretação do tempo presente. Conclusões

Uma vez expostas – ainda que muito brevemente – estas diversas leituras contemporâneas de Maquiavel, só gostaríamos de indicar algumas das conclusões que podemos extrair delas.

Qual é, com efeito, a pergunta em comum e quais sãos as respostas em cada uma das perspectivas? Em que medida essas leituras permitem-nos pensar hoje a partir de Maquiavel?

Vimos que, no caso de Althusser, o retorno a Maquiavel – dirigido por um duplo objetivo, por um lado, o de fazer uma reavaliação do lugar do político, bem como de sua função em relação ao antagonismo social e, por outro o de efetuar uma crítica à filosofia marxista da história – é conduzido a uma interpretação do momento da instituição do poder político como fundação ex-nihilo. Uma fundação proveniente de um nada anterior e em direção a um futuro aleatório que se encontra aberto somente do ponto de vista teórico, em uma conjuntura vazia e, com isso, num presente radical que, enquanto tal, se situaria fora da ordem temporal da ação.

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Vimos com a análise de Arendt como se produz, a partir de Maquiavel, uma ruptura com o passado que tange à concepção propriamente romana da fundação. Neste sentido, desde a perspectiva de Arendt, a noção de fundação perde com Maquiavel e os revolucionários modernos seu caráter propriamente político, pois ela deixa de ser pensada a partir de sua referência a um passado mítico para ser pensada como ação futura. Por essa razão, para a autora a fundação será política no caso de Roma, pelo fato desta encontrar-se na base de uma experiência que funcionou articulada pelos laços com o passado e por meio da comunicação, dando lugar assim a uma organização política que foi a mais importante e duradoura da história. Em troca, a fundação não será política no caso das revoluções modernas, uma vez que ali aparece como um tipo específico de ação (aquele que introduz no tempo um acontecimento novo) que se desenvolve segundo o modelo da póiesis, e não segundo o modelo da praxis: segundo o modelo da violência e não segundo o modelo da persuasão. O elemento diferencial em um caso e em outro seria o fato de que, no caso romano, a fundação encontra-se no passado, assim como a sua produtividade resulta de uma referência ao passado, prescindindo da violência, uma vez que se vale da comunicação (tradição) e de laços (religião). No segundo caso, ao contrário, e de acordo com o pensamento de Maquiavel, a fundação encontra-se no futuro, e naquilo que a aspiração a esse fim é capaz de produzir. Os meios para alcançá-la são obedecidos e justificados tendo em vista esse fim ulterior que os redime. Nesse sentido, tanto a perspectiva da filosofia da história marxista quanto a do futuro aleatório que propõe Althusser estariam inscritas nessa concepção mais ampla da fundação como ação futura que, segundo Arendt, Maquiavel teria inaugurado.

Pois bem, seguindo essa linha de análise e contra essas interpretações, Merleau-Ponty propõe outra maneira de pensar o fenômeno da fundação que nem a análise de Arendt nem a de Althusser parecem contemplar. O

que aconteceria, com efeito, se se pensasse um modo de relação com a “origem” que não a subordine nem ao passado, nem ao futuro, nem a um presente desligado de sua trama temporal, mas que não se situe entretanto fora do tempo? Que consequências teria essa nova ideia de fundação para a compreensão da praxis ou da ação política? Pois, apesar da elegância e da produtividade da análise arendtiana, as consequências que se seguem daí no que concerne a sua concepção da ação política, parecem pouco satisfatórias. Com efeito, o descrédito do caráter político da ação toda vez que esta incorpora a violência – isto é, que ela se transforma em póiesis em termos arendtianos – nos permite realmente compreender o momento de fundação de uma ordem política?

Contra essa concepção, dizíamos, do sentido orientador da praxis política – que é outro modo de nomear a noção de fundação –, Merleau-Ponty propõe-nos uma alternativa. Por um lado, assim como Althusser e, seguindo os ensinamentos de Maquiavel, Merleau-Ponty considera que o momento de fundação de uma instituição política viria a dar conta de um conflito que se encontra nessa própria origem (neste sentido, e contra a posição de Arendt, ambos autores supõem que se o conflito não se identifica com a violência, é inegável que esta seja uma de suas possibilidades). Como Althusser, então, Merleau-Ponty encontra em Maquiavel um modo de pensar a dimensão autônoma do político frente às lutas e movimentos socioeconômicos.

Por outro lado, também como Althusser mas de modo diferente, ele encontra em Maquiavel uma alternativa à filosofia da historia hegeliano-marxista. Com efeito, diferentemente de Althusser e de Arendt, para Merleau-Ponty o sentido orientador da experiência comum que o momento da fundação propiciaria não se encontraria no passado ou no futuro, mas sim na tensão que a compreensão das circunstâncias presentes estabelece entre o dado e as possibilidades abertas, entre a fortuna e o possível.

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“Nem mímica do passado (Guérin), nem fulguração do futuro (Trotsky); essas duas noções são, decerto, correlativas (a mímica do passado e a antecipação do futuro, todas as revoluções se parecem: a burguesia como instituída reconhece-se no Antigo Regime como instituído e desmente a burguesia instituinte). O tempo originário não é decadência (demora em si mesmo) ou antecipação (avanço sobre si mesmo), mas sim está em tempo, é o tempo que é” (Merleau-Ponty,7, p. 36).

Nesse sentido, a ação política central, a virtù, é pensada como a introdução de um sentido orientador segundo as determinações do tempo e as circunstâncias presentes: “A reativação não é somente a explicitação do implicado, mas também o despertar da intenção originária total da qual não era mais que uma expressão parcial. Contemporaneidade de todas as verdades ou de todas as histórias. Husserl encontra aqui um dos sentidos da Revolução Permanente: a antecipação do futuro no passado total e em seus horizontes não esclarecidos. Cada época antecipa e demora-se em si mesma. Por seus horizontes, as épocas guardam relação entre si. Revolução contínua, mas porque já começou. Para fundar essa contra-concepção revolucionária, é necessário mostrar em que sentido o futuro é gestiftet na intenção fundadora, em que sentido a continua tanto quanto a muda” (Merleau-Ponty 7,2 p. 42).

Em outras palavras, pensada para além da alternativa entre passado e futuro, a experiência da fundação pode perfeitamente dar lugar a uma compreensão da praxis ou ação política, fora da oposição entre momento instituinte e momento instituído da ordem política. “Eis aí, escreve Merleau-Ponty em uma nota, o sentido muito geral da instituição: [ela] não é o contrário de [a] revolução: [a] revolução é outra Stiftung” (Merleau-Ponty,2, p. 44).

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. Althusser, L., Ce qui ne peut plus durer dans le parti communiste, Paris, Maspero, 19782. ______, La solitude de Machiavel”, in Multitudes, Nro 2, 19903. ______,“Marx dans ses limites”, in Ecrits philosophiques et politiques I, Paris,

LGF, 1995.4.______,Machiavel et nous, Paris, Tallandier, 20095. Arendt, H., Que é autoridade?, in Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva, 20096. Merleau-Ponty, M., “Note sur Machiavel”, in Signes, Paris, Gallimard, 19607. ______,L’institution. La passivité. Notes de cours au Collège de France (1954-

1955), Paris, Belin, 2003

PolITICAl ACTIoN AND TEMPoRAlITy IN CoNTEMPoRARy READINgS oF MACHIAVELLI: NotES FoR A DIALogUE bEtwEEN

ALtHUSSER, ARENDt AND MERLEAU-PoNty

Resumé : Nous voudrions présenter ici, tout d’abord, les aspects généraux de la lecture que Althusser fait de l’œuvre de Machiavel (surtout de la manière dont celle-ci est présentée dans de textes comme Machiavel et nous et La solitude de Machiavel), à fin de comprendre de quelle manière Althusser interprète, chez Machiavel, le moment de la fondation de l’Etat. Ensuite, nous voudrions confronter cette lecture avec d’autres manières de comprendre, toujours à partir de Machiavel, l’institution ou fondation du politique : celles de Hanna Arendt et de Maurice Merleau-Ponty. En fin, nous essayerons de tirer les conséquences et de penser les limites de ces modèles herméneutiques concernant le phénomène de la institution politique.Mots-clés : Althusser – Arendt – Merleau-Ponty – Institution – Politique

NoTAS

1. Seminário inédito ditado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2009, 5ta aula.

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NO vAzIO dE UMA dISTâNcIA TOMAdA:AlThUSSER E A PRÁTIcA dA fIlOSOfIA

Alexandre Pinto Mendes*

Resumo: Nosso objetivo é discutir as condições e implicações do deslocamento realizado por Althusser entre a definção da filosofia como “teoria da prática teórica” e a definição da filosofia como luta e tomada de posição sobre o vazio. Levantamos a hipótese sobre se seria adequado aplicar à obra de althusser o conceito de ruptura ou corte epistemológico, o que nos permitiria compreender a passagem do materialismo dialético ao materialismo dos encontros ou aleatório como “revolução teórica” do próprio Althusser.Palavras-chave: Althusser; definição; filosofia; prática; luta.

1. observações iniciais

O que pretendemos abordar nesta comunicação é o deslocamento que se dá na obra de Althusser entre uma primeira definição da filosofia como “teoria da prática teórica” e uma segunda definição da filosofia, a partir de 1967/68, como “luta de classes na teoria”. Neste deslocamento, podemos ver não só uma concepção muito particular do exercício filosófico, associada ao materialismo e indistinta da própria produção teórica de Althusser, mas também a constatação de que as ideias de “ruptura” ou

* Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. Graduado em Filosofia pela UFRJ.

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“corte epistemológico” não são, pois, estranhas ao próprio pensamento de Althusser, algo que ele mesmo percebia.

O que ninguém pode contestar, ao me ler, é que sempre tive a consciência de minha solidão radical em face de minha intervenção, da extrema responsabilidade que, em última análise, repousava sobre mim, e dos ‘riscos e perigos’ aos quais minha solidão e minha responsabilidade me impunham (…) Como, nessas condições, não dar a meu pensamento a forma abrupta de um corte, de uma ruptura? Aí se reconhecerá um de meus temas, na realidade objetivamente muito dúbios, que sempre freqüentaram minha reflexão. Como igualmente escapar da necessidade de marcar, na própria linguagem de meu discurso, o abrupto desse corte pelo abrupto de fórmulas abruptas (…)? (Althusser 11, pp. 155-156)

No seu “curso de filosofia para cientistas” (1967), Althusser enuncia a tese de que “(...) a filosofia não se ilustra, não se aplica. Não pode aprender-se senão praticando-a, porque ela não existe senão em sua prática” (Althusser 4, p. 33). Althusser rejeita, portanto, qualquer possibilidade de conceber o movimento de definição da filosofia na forma de uma “tomada de consciência” pelo sujeito de conhecimento. Aliás, “(...) nunca há definição, a não ser de uma diferença (...)” (Althusser 7, p. 12). O que é captado pela definição, contudo, não é uma diferença de objeto mas de relação com o objeto. E o que determina a forma específica desta relação que será designada pela definição não é uma disposição do aparelho cognitivo do sujeito, mas a estrutura do campo de problemas ou problemática na qual está situada a relação:

Não é a matéria da reflexão o que caracteriza ou qualifica a reflexão, mas a modalidade de reflexão, a relação efetiva

que esta reflexão mantém com seus objetos, ou seja, a problemática fundamental a partir da qual são pensados os objetos desse pensamento. (Althusser 1, p. 54)

2. A filosofia como teoria da prática teórica: a Favor de Marx e ler o capital

Esta ideia de que a relação de um pensamento filosófico com seus objetos é determinada por sua problemática constitui o recurso fundamental para a reflexão sobre a filosofia de Marx. Os conceitos bachelardianos como “ruptura epistemológica” e “obstáculo epistemológico” intervêm na medida em que permitem conceituar as relações entre as problemáticas de Marx e de seus antecessores como relações de descontinuidade radical.

O que marca a passagem da ideologia à ciência, no caso da leitura marxiana da Economia Política seria, pois, uma mudança de problemática, uma mudança estrutural, já que a problemática não é senão a estrutura de um campo teórico no qual surgem os objetos de conhecimento. A filosofia intervém aqui como reflexão sobre a estrutura do campo teórico desenhado pela ciência, razão pela qual será definida como “teoria da prática teórica”. É importante, portanto, situar as condições e limites do recurso à noção de estrutura na definição de uma problemática. Pensar um campo ou problemática como estrutura significa, sobretudo, estabelecer o primado das relações sobre os elementos do campo. Todavia, Althusser criticará o “estruturalismo” “que se quer chegaria a ser uma “filosofia”1– por seu formalismo, ou por não pensar a combinatória de elementos na estrutura sob a determinação de dominância-subordinação de certas relações por outras no interior de um todo: no caso, a determinação “em última instância” pela economia. Ou seja, o estruturalismo ignoraria relações de causalidade estrutural entre os elementos do todo, postulando a produção do real como processo arbitrário ou fortuito (aleatório) de combinação de elementos.

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A originalidade de Marx, sua “imensa revolução teórica” na história da filosofia, estaria justamente em ter “mudado de terreno”, em ter inaugurado uma nova problemática filosófica, seguindo o legado de Spinoza. Marx teria então alterado radicalmente a relação que a prática filosófica estabelece com seus objetos, ao conceber o conhecimento como produção no interior do modo de produção da totalidade social. Isto apesar do fato de que o próprio Marx não tenha refletido sobre esta “mudança de terreno” que realizou na sua prática. Althusser realiza seu próprio desenho teórico da problemática clássica da filosofia a partir do pensamento de Marx: com efeito, grande parte da polêmica de A Favor de Marx e Ler O Capital é dirigida contra o idealismo e o empirismo, filosofias que o pensamento marxista ou o materialismo dialético permitiu designar como “ideológicas”, justamente pela natureza peculiar das relações entre estas filosofias e seus objetos, natureza determinada pela estrutura ideológica dessa problemática.

Como dirá Althusser em A Favor de Marx, “(...) não é o conteúdo imediato dos objetos pensados, senão a forma de colocar os problemas que constitui a essência ideológica última de uma ideologia (...)” (Althusser 1, p. 55). A ideologia coloca problemas e constitui objetos ideológicos, a ciência coloca problemas e constitui objetos científicos. Em ambos os casos, temos duas estruturas de problemáticas diferentes. O mérito do materialismo dialético, ou a filosofia de Marx, foi ter estabelecido a forma da relação entre o “ideológico” e o “científico”: não há uma relação de continuidade entre ciência e ideologia, ao contrário

A ciência só se obtém quando se abandona o campo no qual a ideologia tem a ver com o real, ou seja, se abandona sua problemática ideológica (o pressuposto orgânico de seus conceitos fundamentais e, junto com esse sistema, a maior parte dos conceitos mesmos) para fundar ‘em outro

elemento’ o campo de uma nova problemática, científica, a atividade de uma nova teoria. (Althusser 1, p. 159)

Toda a história da filosofia anterior se fundaria, por seu turno, em um problema ideológico: o “problema do conhecimento”. Um problema artificial, para o qual se tem a resposta na sua própria formulação: as correspondências estabelecidas de antemão entre o sujeito de conhecimento e o objeto de conhecimento, entre objeto de conhecimento e objeto real. A operação de conhecimento seria de abstração/extração do que no objeto real é essencial, separando-o de sua parte inessencial. Esta essência do objeto de real é objeto de conhecimento conhecido pelo sujeito. Ela está escondida no próprio objeto real, portanto já dada no real, tanto quanto a capacidade de abstrair o inessencial e reconhecer o essencial é dada para o sujeito de conhecimento: ele já carrega em si a garantia de resolução do problema resolvido, pois todas as condições de possibilidade de todas as etapas da operação de conhecimento já existem antes mesmo do processo ter início. Tal garantia reside, em última instância, na natureza espiritual ou ideal do que é “essencial”. Daí porque há uma analogia perfeitamente possível entre sujeito e objeto. No fundo, tanto a dialética hegeliana quanto o empirismo, racionalista ou sensualista, compartilham dessa ideia do conhecimento como uma espécie de reconhecimento2, pela qual se sai em busca do que já se tem.

Marx, por sua vez, concebe o objeto de conhecimento como distinto do objeto real, e o processo de conhecimento como algo que se passa inteiramente no pensamento, e sem correspondência imediata com o processo real. Baseado no texto da Introdução à Crítica da Economia Política3, Althusser insiste a todo o momento sobre a diferença estrutural entre a dialética de Marx (materialista) e de Hegel (idealista), justamente

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porque, em Marx, há uma “desigualdade de origens” entre o processo de pensamento e o processo real, entre as contradições reais e a forma pela qual são apreendidas, não sendo o pensamento senão uma estrutura dentro da estrutura de um todo real articulado de maneira complexa. Ao passo que, em Hegel, o real e o pensamento são partes de uma totalidade articulada de maneira simples sobre uma “unidade espiritual” que é

“(...) o tipo de unidade de uma ‘totalidade expressiva’, isto é, de uma totalidade cujas partes sejam cada quais ‘partes totais’ expressivas uma das outras, e expressivas cada uma da totalidade social que as contêm, porque contendo cada uma em si, sob a forma imediata de sua expressão, a própria essência da totalidade” (Althusser 8, p. 33)

A relação entre objeto real e objeto de conhecimento é estabelecida através dessa ordem do discurso de conhecimento. Ela se dá como efeito de conhecimento do objeto real, não como reprodução ideativa do objeto no pensamento: ela é o produto de uma prática teórica, que se distingue das demais práticas pelo tipo de combinação “existente entre sua matéria-prima própria (objeto da prática teórica) seus meios de produção, e suas relações com as demais práticas da sociedade” (Althusser 7, p. 43). Esta matéria-prima não é o objeto real dado, mas “fatos ideológicos” anteriores.

Na estrutura da nova problemática filosófica, o materialismo dialético, um novo objeto de conhecimento torna-se visível para o filósofo: a prática teórica, seja de natureza científica, seja de natureza ideológica:

A prática teórica cai sob a definição geral da prática. Trabalha sobre uma matéria (representações, conceitos, fatos) que lhes é proporcionada por outras práticas, quer sejam ‘empíricas’, ‘técnicas’ ou ‘ideológicas’. Em sua forma mais geral a prática teórica não compreende só a prática teórica científica, mas

também a prática teórica pré-científica, ou seja, ‘ideológica’ (as formas de conhecimento que constituem a pré-história de uma ciência e suas ‘filosofias’) (Althusser 1, p. 137).

Se o conhecimento ou teoria tem em geral essa natureza de prática que, como vimos, trabalha sobre uma matéria-prima com meios de produção determinados e produz um resultado, o próprio objeto de conhecimento, a especificidade da prática filosófica é ser uma “teoria da prática teórica” ou simplesmente Teoria com t maiúsculo:

Chamaremos Teoria (maiúscula) à teoria geral, quer dizer, a teoria da prática em geral, elaborada a partir da Teoria das práticas teóricas existentes (das ciências), que transforma em ‘conhecimentos’ (verdades científicas) o produto ideológico das práticas ‘empíricas’ (atividade concreta dos homens) existentes. Esta Teoria é a dialética materialista, que é a mesma coisa que materialismo dialético (Althusser 1, pp. 137-138).

Esta definição, no entanto, não satisfaz o critério acima enunciado. Ela não nos dá a conhecer o modo próprio de relação da filosofia com seus objetos (práticas teóricas). O próprio Althusser falará em seus Elementos de Autocrítica de um “desvio teoricista”4: O “desvio” a que se refere Althusser estaria em definir nestes textos a filosofia por analogia à ciência, não por sua diferença. Podemos aplicar ao próprio Althusser sua teoria da leitura sintomática, e nos perguntar o que produz essa ausência no discurso no qual lemos que a filosofia é uma “teoria da teoria”. A resposta estaria, da mesma forma que Althusser trata os autores que estuda, na sua problemática: na relação entre a teoria e a prática teórica, o sentido do termo prática muitas vezes se confunde com o sentido de práxis que encontramos em Feuerbach e no jovem Marx, ou seja, práxis como atividade sensível, atividade de

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modificação/transformação de uma matéria com que a prática tem uma relação imediata, ao passo que a teoria só estabelece com esta mesma matéria uma relação mediada. Paradoxalmente, portanto, é a estrutura da problemática do jovem Marx que se insinua no texto.

A (re)solução da teoria na prática poderia ser explicada, portanto, pelo recurso à analogia das diferentes práticas sociais com a prática econômica. Haveria então uma prática teórica que lida com objetos de conhecimento ou objetos ideológicos, e uma prática teórica de segundo nível, Teoria ou materialismo dialético, que lida com os resultados das práticas teóricas “aplicadas” a objetos. Um problema filosófico diria respeito então a “um conceito ou conjunto de conceitos que atingem necessariamente as próprias formas da cientificidade ou da racionalidade (teórica) existente, as formas que definem, num momento dado o Teórico em si, isto é, o objeto da filosofia” (Althusser 8, p. 137).

Onde está o problema nesta definição analógica? Porque não desenvolvê-la?

Em primeiro lugar, ela não permite apreender a especificidade da filosofia enquanto prática superestrutural, ou seja, sua eficácia própria enquanto nível ou instância de uma totalidade social. Não é nosso objeto aqui tratar das relações entre superestrutura-infraestrutura, mas o que precisamos dizer é que a ideia de “eficácia própria” pressupõe justamente a diferença qualitativa entre as práticas superestruturais e infra-estruturais, o que a analogia com a prática econômica não permitiria captar.

Em segundo lugar, a definição tampouco é compatível com a crítica feita ao “problema do conhecimento”, pois ela pressupõe uma mudança na estrutura da problemática filosófica. Ora, como o próprio Althusser reconhece a respeito da eficácia própria da ciência, de seu modo de produção peculiar, é necessário que o objeto de conhecimento sofra uma transformação. Como explicar, se a filosofia é um discurso sobre as

formas puras da cientificidade, a ocorrência de revoluções teóricas em filosofia, de “acontecimentos filosóficos de alcance histórico, isto é, muito precisamente, fatos filosóficos que produzem mutação real nas relações estruturais filosóficas existentes” (Althusser 8, p. 42)? Produz-se aqui uma espécie de “vazio epistemológico”, termo utilizado para designar o “efeito de desconhecimento” de uma ideologia (Althusser 1, p. 106.)

Já em Ler O Capital, contudo, encontramos indicações do que seria mais tarde desenvolvido para resolver esta “impostura” quanto à definição da filosofia. Trata-se da definição do pensamento como aparelho de pensamento:

(...) o ‘pensamento’ de que Marx trata no caso não é a faculdade de um sujeito transcendental ou de uma consciência absoluta, que o mundo real enfrentaria como matéria: esse pensamento também não é a faculdade de um sujeito psicológico, embora os indivíduos sejam agentes dele. Esse pensamento é o sistema historicamente constituído de um aparelho de pensamento (...) (Althusser 7, p. 42)

Que a prática da filosofia se dê em um “aparelho de pensamento” historicamente constituído nos ajuda a compreender como um efeito de conhecimento pode se processar no interior do próprio conhecimento: sem correspondência com os processos do concreto mesmo, há uma história própria dos modos de produção teórica, que tal como a história dos modos de produção econômicos, é feita de descontinuidades, rupturas e remanejamentos.

Mas a constatação do fato destas mutações estruturais não nos dá ainda a diferenciação da prática filosófica, uma vez que as estruturas, em geral, mudam. Em A Favor de Marx e Ler O Capital, Althusser parece mais preocupado em determinar a relação necessária que estas mudanças estabelecem com o todo da estrutura social, ou seja, a

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relatividade da autonomia dos diferentes níveis e instâncias do todo social, articulado como estrutura determinada em “última instância” pela economia. Apenas esta relação de necessidade” a “unidade de ruptura” das contradições sociais, “sempre-já-dado de uma unidade complexa estruturada” (Althusser 1, p. 164) – permite tornar as relações entre mudanças e permanências inteligíveis

(...) não como variações e mutações acidentais produzidas pelas ‘condições’ exteriores sobre um todo estruturado fixo, suas categorias e sua ordem fixas (nisto consiste o mecanismo), senão como reestruturações concretas, inscritas no ‘jogo de cada categoria; em essência, o ‘jogo’ de cada contradição; em essência o ‘jogo’ das articulações da estrutura complexa de dominância que se reflete nelas (Althusser 1, p. 174)

Caso contrário, teríamos uma pulverização da eficácia das superestruturas em “fatos e acontecimentos infinitesimais, ou seja, acasos” (Althusser 1, 1967, p. 98). A dialética materialista, portanto, é um modo de pensar no qual não há espaço para a mudança aleatória, contingente, tema que será caro, como veremos, aos últimos textos de Althusser. A determinação estrutural dá conta de todas as variações possíveis como necessidade de sua contingência (Althusser 7, p. 46). As revoluções teóricas determinam mudanças na estrutura da problemática e, consequentemente, na estrutura do objeto da prática científica, inaugurando um novo domínio de conhecimento. Tal é o caso de Marx, com relação aos economistas clássicos: tratava-se um novo olhar para os fenômenos econômicos que ia além do imediatamente dado, buscando formular o conceito das determinações estruturais destes fenômenos.

Poderíamos perguntar: o que há de necessário na contingência do acontecimento teórico produzido por Marx? Marx não exprime

teoricamente a novidade de seus descobrimentos, e o faz justamente pelos condicionamentos que o estado da teoria lhe impôs ou a combinação específica que foi possível produzir nos limites de uma aparelho teórico. O mesmo se deu com Freud: não encontrou “pais na teoria”, ou seja, procurou em vão precedentes teóricos de sua descoberta e teve que “pensar a sua descoberta e a sua prática com conceitos teóricos importados, emprestados à Física energética, então dominante, à Economia Política e a Biologia de seu tempo” (Althusser 10, p. 52). De todo modo, a ideia de uma história dos modos de produção teóricos marcada por descontinuidades e rupturas, parece se chocar com esse sentido de causalidade estrutural que dita a “lei de suas variações”. Althusser chega a dizer que pensar na necessidade da contingência significa substituir todo um sistema de categoria clássicas (Althusser 7, p 46).

Há, contudo, algumas indicações importantes fornecidas por Althusser, sobre como pensar este sentido de necessidade. Elas caminham na direção da política. Para compreendê-lo precisamos de uma “teoria da conjuntura teórica”. Com efeito, a prática política tem por objeto o momento presente, a conjuntura, e seu modo próprio de relação com este objeto é a transformação de uma acumulação/condensação de contradições numa unidade de ruptura. De modo análogo, uma intervenção teórica numa conjuntura teórica de acumulação de contradições pode explicar a “necessidade da contingência” de uma ruptura epistemológica. Há problemas, por certo, em fazer uma analogia entre a prática teórica e a prática política, tanto quanto havia em fazê-lo com relação à prática econômica. Mas é no interior desta analogia que Althusser conceberá a diferenciação entre filosofia e ciência. Se é verdade que não há definição senão de uma diferença, não há como conceber uma verdadeira definição sem antes produzir esta diferença.

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Um acontecimento teórico em ciência, tal como em política, depende da transformação estrutural de um todo complexo já dado. Este todo, no caso da ciência, seria o que Althusser chama de pré-história ideológica.

Quando se constitui uma ciência, por exemplo, a física com Galileu ou a ciência da formação e da evolução das formações sociais (materialismo histórico) com Marx, trabalha-se sempre com conceitos já existentes (Vorstellungen), ou seja, uma Generalidade I, de natureza ideológica prévia. Não se ‘trabalha’ sobre um ‘dado’ objetivo puro, que seria o dos fatos puros e absolutos. Seu trabalho consiste, ao contrário, em elaborar seus próprios fatos científicos através de uma crítica dos fatos ideológicos elaborados pela prática teórica ideológica anterior. (Althusser 1, p. 151)

O mesmo se daria em filosofia: as revoluções teórico-filosóficas, como as de Spinoza e Marx, transformam a “ideologia filosófica” sobre a qual trabalham.

3. A definição da filosofia como luta

Ao transformarem esta ideologia filosófica, contudo, as filosofias de Spinoza e Marx não se constituem como ciências. Afirmar isto seria cair nos equívocos da filosofia dos cientistas, bem como renunciar à compreensão dos efeitos que estes dois acontecimentos filosóficos, as filosofias de Spinoza e Marx, produzem na própria historia da filosofia. As respostas e autocríticas de Althusser parecem confirmar esta lacuna:

Ao reduzir e concretizar a “ruptura” nesta única oposição, inclusive recorrente, continuada, “sem fim”, entre ideologia e ciência, adotava sem crítica o ponto de vista da “ciência” em si mesma (e não só em si mesma, evidentemente!); ou

melhor, esta fórmula é ainda o ponto de vista dos “agentes” da prática científica acerca de sua prática e a história de seus resultados; ou melhor ainda - pois essa fórmula segue sendo idealista - o ponto de vista da “filosofia espontânea dos cientistas” (Althusser 2, p. 32)

Na produção posterior a A Favor de Marx e Ler O Capital, portanto, o jogo fundamental das posições filosóficas se dá não mais entre “ideologia” e “ciência”, mas entre “ideologia” e “filosofia”, justamente porque há uma “filosofia espontânea” dos cientistas, de natureza ideológica, da qual é preciso distanciar-se. O problema então será aprofundar as pesquisas já existentes sobre a natureza própria da ideologia, seu “modo de relação” com seus objetos ideológicos, o tipo de combinação específica de seus elementos. Em resumo, a ideologia formula problemas que já carregam em si sua resposta, ou melhor, reconhece nas respostas que dá a formulação de seus problemas. Esta estrutura de reconhecimento-desconhecimento como estrutura de “inconsciência” guarda perfeita sintonia com o conceito de inconsciente da psicanálise. Com efeito, o inconsciente freudiano nos dá, segundo Althusser, os caracteres de um aparelho ideológico, pois do mesmo modo que o aparelho psíquico não é uma unidade centrada na consciência, e o ego não é senão “parte interessada no conflito do recalque inconsciente” (Althusser 10, p. 90)

A consciência é obrigatória, para que o indivíduo realize, em si, a unidade exigida pela ideologia burguesa, a fim de que os sujeitos se adequem à própria exigência ideológica de unidade, ou seja, para que a conflitiva cisão da luta de classes seja vivida pelos agentes como uma forma superior e espiritual da unidade (Althusser 10, p. 85).

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O problema não formulado na concepção de ideologia do jovem Marx é o da necessidade da representação imaginária dos indivíduos de suas condições de existência. Haveria ali, então, apenas uma reprodução da filosofia da alienação de Feuerbach, reduzindo a ideologia a um sistema de ideias, uma relação ideal invertida e distorcida entre a consciência e o real. A questão estaria, portanto, mal formulada, pois mesmo em ciência a passagem do “falso para o verdadeiro”, a transformação de certos objetos teóricos em conhecimentos não se processa na consciência de um sujeito, mas no interior de uma prática teórica determinada pelo conjunto da estrutura social, ou de um “aparelho de pensamento” numa formação social dada. Tal passagem, mesmo quando ela ocorre para um sujeito, é um processo “sem Sujeito nem Fim(s)”5.

O caráter de relação imaginária com as condições reais de existência evidencia-se quando os indivíduos vivenciam esta realidade cindida como uma unidade: há um verdadeiro processo de recalcamento da luta de classes. A tomada de posição ideológica está presente na atitude espontânea do indivíduo enquanto sujeito diante da realidade cindida estruturada sob a luta de classes: ela implica um efeito de reconhecimento-desconhecimento das estruturas sociais que determinam esta mesma tomada de posição, projetando a subjetividade, o resultado de uma constituição complexa por diversos aparelhos ideológicos, na origem mesma das relações sociais. Os problemas da origem e do fim são necessariamente ideológicos: a origem nunca é mais do que a simples “faticidade do fato”6 de um todo social sempre-já-dado. Neste sentido, Althusser dirá que “a ideologia não tem história”, de modo semelhante a Freud quando afirmou que o “inconsciente era eterno”, pois (oni)presente em qualquer formação social humana estruturada a partir da luta de classes. A luta de classes torna-se, assim, o verdadeiro “sujeito” do processo:

A história é certamente um ‘processo sem Sujeito nem Fim(s), cujas circunstâncias dadas, nas quais ‘os homens’ agem como sujeitos sob a determinação de relações sociais, são o produto de uma luta de classes. Portanto, a história não tem, no sentido filosófico do termo, um Sujeito, mas um motor: a luta de classes (Althusser 5, pp. 70-71)

Retornamos à luta de classes e, portanto, à política. E é no seu interior que poderemos compreender a especificidade da prática filosófica. A segunda definição da filosofia será forjada não apenas a partir da política enquanto objeto teórico, mas no interior de suas próprias lutas políticas, contra “personagens conceituais”7, mas também adversários reais, muitas vezes se confundindo entre si. O principal deste híbrido de “personagem conceitual-adversário político” será o stalinismo: justamente o stalinismo que adotará, em sua filosofia oficial, a concepção do materialismo dialético como “ciência das ciências”, nos fala Althusser em um de seus textos de intervenção na conjuntura política8. O mesmo stalinismo que tornar-se-á uma prática ideológica pautada por “conclusões sem premissas” (Althusser 6, 1978, p. 35). Na mesma direção, a urgência em romper com a “filosofia espontânea dos cientistas”, ou seja, com uma concepção ideológica da filosofia como meta-ciência, está em se demarcar da noção de que a filosofia “resolve” problemas da ciência, ou busca estabelecer a origem última e a finalidade do mundo cujas leis são estabelecidas pela ciência. O “curso de filosofia para cientistas” (1967) e Lênin e a Filosofia (1968)9 podem ser consideradas, a nosso ver, como “obras de corte”, onde se busca apresentar uma descrição da maneira de ser e de agir próprias da filosofia, de sua prática, para além da oposição entre ideologia e ciência.

É nestes textos que a analogia entre a prática política e a filosófica aparece pela primeira vez com nitidez e com todo seu vigor, no enunciado polêmico “a filosofia é, ‘em última instância’, luta de classes na teoria”

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(Althusser 5, p. 17). É na “tomada de posição” que a filosofia nos exige que está contida sua especificidade, qual seja a de “traçar linhas de demarcação, produzindo novas questões filosóficas sem fim” (Althusser 4, 1976, p. 64), ou seja, que estabelecer distinções faz surgir novas linhas de demarcação, produzindo novas questões filosóficas, ao infinito.

Produzir a diferença é, portanto, o objeto da filosofia:

Teoricamente podemos exprimir esse efeito dizendo que a filosofia ‘divide’ (Platão), ‘traça linhas de demarcação’ (Lênin), produz (no sentido de tornar manifestas, visíveis) distinções, diferenças. Toda a história da filosofia o demonstra: os filósofos passaram o seu tempo a distinguir entre a verdade e o erro, a ciência e a opinião, o inteligível e o sensível, a razão, o entendimento, o espírito e a matéria etc. (Althusser 4, p. 16)

Estas distinções e demarcações, próprias ao exercício da filosofia, não são “objetos de conhecimento”, tal como os objetos da prática científica. A filosofia enuncia teses10 que são tomadas de posição numa conjuntura teórica dada, teses estas que não podem ser provadas ou verificadas por um discurso demonstrativo, mas obedecem uma outra lógica: a da polêmica, a do choque ou encontro de argumentos opostos. Assim, a filosofia não tem objetos (Althusser 4, pp. 70-71) no sentido que uma ciência os tem, mas sim campos de intervenção nos quais ela atua para fazer aparecer o ideológico e, ao fazê-lo, tornar o “científico” visível. Esta intervenção tem por resultado prático uma re-distribuição das relações conflituais entre os termos de um determinado campo teórico, uma alteração nas relações de força entre ideias dominantes e dominadas neste campo. Assim, a luta travada em filosofia remete, em última instância, às posições de classe ligadas a estas ideias dominantes e dominadas, pois são estas posições que estruturam o campo ou uma problemática: todo trabalho “ideológico” em filosofia será produzir um

“efeito de desconhecimento” sobre esta realidade cindida que está na base de sua problemática. Por isso mesmo, o paradoxo da intervenção filosófica, enquanto tomada de posição tout court, é estar situada num limiar de indiscernibilidade com relação à tomada de posição ideológica. Althusser nos diz, inclusive, que as palavras teóricas da ideologia e da filosofia seriam as mesmas, com a diferença de que “a filosofia age modificando as palavras e sua disposição” (Althusser 4, p. 76). A filosofia, pois, age sobre a repetição dos mesmos termos que a ideologia, e neste posicionamento produz diferença, ao passo que o posicionamento ideológico repete os termos para manter as relações de força entre eles exatamente como as encontra. No limite, esta repetição seria a repetição de uma luta entre duas tendências fundamentais: o idealismo e o materialismo (Althusser 3, p. 34.). Em última instância, todo “jogo” da filosofia se daria na colocação estratégica de um dos termos do par matéria-espírito “no poder” (mise en pouvoir), ao passo que a ideologia apenas reproduz as relações de poder existentes. Mas estes termos, neles mesmos, seriam indefiníveis: sua definição é apenas oposicional, ou seja, um termo deve sua definição apenas à subordinação do outro. Há, portanto, um “jogo por nada”: “a filosofia é este lugar teórico estranho onde não se passa propriamente nada, nada a não ser esta repetição de nada. Dizer que não se passa nada em filosofia é dizer que a filosofia não leva a nenhuma parte por que ela não vai a nenhuma parte”11.

Esta forma paradoxal de apresentar a prática filosófica – o “vazio de uma distância tomada” (Althusser 3, p. 40) – e, portanto, de tomar uma posição em filosofia é essencial para que situemos os últimos textos de Althusser, relativos ao “materialismo dos encontros” ou “materialismo aleatório”: nestes textos, reaparece esta ideia de que a filosofia é um Kampfplatz, campo de batalha entre tendências – cuja origem é Kant – a que Althusser se refere em Lênin e a filosofia. Ela obedece a uma necessidade, a um só tempo filosófica e política, de provocar um

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“escândalo materialista”, enunciando, a exemplo de Maquiavel “teses-limite, em que, para tornar o pensamento possível se ocupe o lugar do impossível” (Althusser 5, p. 135).

Esse lugar do impossível é o lugar da própria filosofia althusseriana: uma filosofia que não tem objeto – ou cujo “objeto único” é o vazio, nas palavras de François Matheron12 – mas implicações polêmicas e práticas (Althusser 11, p. 152.), que é exercida mas não ilustra ou se aplica a nada. Neste exercício, contudo, pretende-se anunciar a necessidade de categorias inteiramente novas com relação às que a filosofia sempre utilizou, como Sujeito, Origem, Causa, Essência etc. Enunciar “teses-limites” significa, portanto, propor esta renovação sem querer adiantar na proposição o resultado a que devem conduzir. Trata-se do que Althusser chama de “primado do materialismo” sobre a dialética na sua Sustentação de Tese: “para tornar as coisas mais claras, quando se rejeita a origem radical das coisas, faz-se indispensável forjar categorias inteiramente diferentes das categorias clássicas para pensar essas delegações de origem que são a essência, a causa ou a liberdade” (Althusser 5, p. 144). O fato de que já na década de 1970 Althusser adote tal posicionamento nos possibilita considerar seus últimos textos como consumação desta “subordinação da dialética”.

A subordinação em questão assumirá a forma de uma rejeição de qualquer necessidade das determinações dos acontecimentos, seja políticos, seja filosóficos. Estamos diante de uma radicalização da “teoria da conjuntura” e, portanto, de uma ruptura com a teoria da necessidade da contingência - exposta anteriormente a partir da dialética de Marx - cujo predecessor seria Maquiavel.

Nos últimos textos achamos uma problemática comum e familiar a Althusser: a preocupação em definir o que seria “a verdadeira tradição materialista” ou a “tradição materialista aleatória explícita”

(Althusser 12, p. 180), “recalcada” ao longo da história da filosofia, da qual fariam parte Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Maquiavel, Hobbes, Spinoza, Rousseau, Marx, Heidegger, Deleuze e Derrida. Se Althusser já havia apresentado a concepção da história da filosofia como luta entre idealismo e materialismo, trata-se agora de realizar uma “sondagem profunda”13 nesta história. Assim, no subterrâneo dela descobrimos um materialismo do encontro e da contingência, que deve ser recuperado do seu recalcamento para combater o idealismo e

(...) que se opõe como um pensamento inteiramente outro aos diferentes materialismos conhecidos, aí compreendido o materialismo frequentemente atribuído a Marx, a Engels e a Lênin que, como todo materialismo da tradição racionalista é um materialismo da necessidade e da teleologia, ou seja, uma forma transformada e disfarçada de idealismo (Althusser 12, p. 554)

Como vimos, a teleologia é uma posição ideológica em filosofia, pois determina a “origem radical” das coisas pela projeção de uma finalidade sobre a história. Há, por isso mesmo, um materialismo teleológico, especialmente no caso do marxismo: um discurso ideológico da inevitabilidade da revolução proletária, que redimirá a humanidade e inaugurará uma nova história no futuro. Isto seria, para Althusser, o oposto de uma leitura materialista de Marx.

Há, portanto, um verdadeiro deslocamento de problemática e estamos autorizados a falar mesmo em “ruptura epistemológica” de Althusser: da necessidade da contingência à contingência da necessidade: “em lugar de pensar a contingência como modalidade ou exceção da necessidade, é preciso pensar a necessidade como devir-necessário de encontros de contingentes” (Althusser 12, p. 581)14. Com efeito, é possível que um encontro dure e que, por isso, seja fixado na ordem histórica: mas

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ele o será sob uma instabilidade radical, sob a possibilidade da ocorrência de uma transformação aleatória.

Poderíamos, então, dizer que a teoria da necessidade da contingência seria uma forma para Althusser de lidar com o aleatório determinada pelos limites impostos pela ideia ainda dominante de seu tempo: a dialética? Como explicar a sua leitura singular de Marx, senão por essa tentativa de eliminar a teleologia hegeliana do horizonte teórico de Marx, tentativa mais adequada às questões da própria conjuntura teórica de Althusser? Essa tentativa resulta, ela mesma de uma subordinação da contingência à causalidade estrutural, que seria “a lei de todas as suas variações”. No último Althusser temos, portanto, a “explosão” definitiva da contingência na direção de outro posicionamento filosófico. Uma repetição dos mesmos termos “necessidade” e “contingência”; mas a colocação da contingência “no poder”, diante de uma conjuntura “aleatória”, na sua leitura, como a da década de 1980.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. ALTHUSSER, Louis. La Revolución Teórica de Marx (Pour Marx). Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1967.

2. ______. Elementos de Autocrítica. Barcelona: Editorial Laia, 1974.3. ______. Lénine et la Philosophie suivi de Marx et Lénine devant Hegel. Paris:

François Maspero, 1975.4.______. Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientistas. Lisboa: Editorial Presença,

1976.5.______. Resposta à John Lewis; Sustentação de Tese em Amiens. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1978.6._______. Ce qui ne peut pas durer dans le parti communiste. Paris: Fraçois Maspero, 1978.7._______. Ler O Capital. Tomo I. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.8. _______. Ler O Capital. Tomo II. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 9. _______. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Edições

Graal, 1985.

10. _______. Freud e Lacan, Marx e Freud. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

11. _______. O futuro dura muito tempo seguido de Os fatos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

12. _______. Écrits Politiques et Philosophiques. Tome I. Paris: Éditions STOCK/IMEC, 1994.

13. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2ª ed. São Paulo: Ed. 34, 1997.

14. MATHERON, François. Présentation aux Écrits Politiques et Philosophiques – Tome I de Louis Althusser. Paris: Éditions STOCK/IMEC, 1994.

IN tHE EMPtINESS oF A DIStANCE tAKEN – ALtHUSSER AND tHE PRACTICE of PHIloSoPHy

Abstract: My aim is to discuss the conditions and implications of the displacement performed by Althusser from his inicial definition of philosophy as the “theory of theoretical pratice” to a later definition of philosophy as struggle and as position-taking over the emptyness. We issue as an hypothesis that it would be accurate to apply to althusserian works the concept of an epistemological rupture or cut, and that it could lead us to understand the passage from the dialetical materialism to aleatory materialism as Althusser’s own “theoretical revolution”.Keywords: Althusser; defintition; philosophy; pratice; struggle.

NoTAS

1. O estruturalismo não seria uma “filosofia de filósofos” mas uma “ideologia filosófica dos investigadores” em etnologia, lingüística, etc. “No limite (e isto pode se ler em certos textos de Lévi-Strauss, em certos lingüistas e em outros lógicos filosofantes) o estruturalismo (seria exato dizer certos estruturalistas) tende ao ideal da produção do real sob a combinatória de quaisquer elementos”. Althusser 2, 1974, p. 41.2. “Toda filosofia ocidental moderna, dominada pelo ‘problema do conhecimento’ , está assim de fato dominada pela formulação de um ‘problema’ colocado nos termos e numa base teórica produzidos (pouco importa se conscientemente por uns e inconscientemente por outros) desse reconhecimento em espelho. Althusser 7, 1979, p. 55.

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3. Esta Introdução contém uma seção intitulada “O método da economia política”, texto decisivo na formulação das teses de Pour Marx e Lire le Capital. Ela faz parte dos manuscritos redigidos por Marx entre 1857 e 1858, que constituem os Grundrisse der kritik der poltischen öikonomie (rohentwurf).4. “Nunca desautorizei meus ensaios, não tive oportunidade de fazê-lo. Mas, em 1967, ou seja dois anos depois da sua aparição, na edição italiana de Lire le Capital (tal como em outras edições estrangeiras) reconheci que estes dois textos estavam afetados por uma tendência errônea. Indiquei a existência desse erro e lhe dei um nome: teoricismo”. Althusser 2, 1974, p. 11.5. Esta ideia de “processo sem sujeito nem fim(s)” aparecerá em Resposta a John Lewis (1972), texto no qual Althusser procura diferenciar a concepção da história em Marx, um processo cujo motor é a luta de classes, e aquela apresentada por Lewis a partir do jovem Marx, segundo a qual “os homens fazem a história”.6. Expressão utilizada por Althusser para designar a postura de Spinoza com relação ao “problema do conhecimento”. Althusser 11, 1992, p. 192.7. Como dizem Deleuze e Guattari, os personagens conceituais são, para o filósofo, “os que operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor, e intervém na própria criação de seus conceitos”. Deleuze 13, 1997. p. 85.8. Refiro-me a Ce qui ne peut plus durer dans le parti communiste. Althusser 6, 1978, p. 91.9. Embora tenha sido publicado em brochura apenas em 1972, Lénine et la Philosophie foi uma conferência proferida na Société Française de Philosophie em 1968, logo depois do “curso de filosofia para cientistas” publicado como Filosofia e Filosofia espontânea dos Cientistas.10. “Ela [a filosofia] intervém de outra maneira: enunciando Teses que contribuem para desimpedir a via para uma justa posição destes problemas”. Althusser 4, 1976, p. 27. 11. Tradução livre do seguinte trecho “(...) la philosophie est ce lieu théorique étrange où il ne se passe proprement rien, rien que cette répétition de rien. Dire qu’il ne se passe rien em philosophie , c’est dire que la philosphie ne mène nulle part puisqu’elle ne va nulle part (...)”. Althusser 3, 1975, p. 34.12. “Não há uma palavra final de Louis Althusser: sua obra para no caminho, essencialmente inacabável. Mas se fosse necessário designar alguma coisa como o motor de sua produção teórica, nos arriscaríamos a mencionar o vazio. Da conjuração do vazio necessário do ensaio sobre Hegel, ao “vazio de uma distância tomada”, de Lênin e a Filosofia, para terminar no vazio como “objeto único” da filosofia”; Tradução livre de “Il n’ya a pas de dernier mor de Louis Althusser: son œuvre s’arrête em

chemin, essentiellment inachevable. Mais s’il fallait désigner quelque chose comme le moteur de sa production théorique, nous nous hasardons à mentionner le vide. De la conjuration du vide necessaire du mémoire sur Hegel au “vide d’une distance prise” de Lénine et la Philosophie, poru aboutir au vide comme “objet unique” de la philosophie”. Matheron 14, 1994, p. 20.13. Althusser compara seu método a uma sondagem profunda, tal como uma escavação petrolífera: “sabe-se que a pesquisa filosófica de grande profundidade faz-se por sondagens”. Althusser 11, 1992, p. 150.14. Tradução livre de “(...) au lieu de penser la contingece comme modalité ou exception de la nécessité, il faut penser la nécessité comme devenir-nécessaire de la recontre de contingents”.

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A cONSTITUIÇÃO dA SUBjETIvIdAdE E A IlUSÃO dO fINAlISMO: ElEMENTOS dE

UMA TEORIA dA IdEOlOgIA

Alexandre Arbex Valadares*

Resumo: Este artigo propõe estabelecer uma correlação entre a concepção de Spinoza acerca da imaginação e a teoria da ideologia de Althusser. Compreendida em seu modo de funcionamento e nos seus efeitos sobre a percepção dos homens acerca de seu corpo, de suas ideias e das coisas que a afetam, a imaginação, segundo a acepção spinozista, passa a constituiria a forma da consciência subjetiva ao operar no mundo da política. Marcada pela regularidade e previsibilidade dos processos causais e pela reprodução das relações, a ordem política se afiguraria à imaginação como uma ordem teleológica, cuja repetição fixaria, como verdades universais, as ideias das imagens das coisas na forma com que estas se apresentariam mais recorrentemente à percepção dos homens. À estabilidade das relações e das imagens sob as quais os homens as representam corresponderia a estabilidade dos modos de pensar sob os quais eles representam a si mesmos no interior da ordem política. Os conteúdos da consciência – da imaginação politicamente estruturada – seriam, desse ponto de vista, sempre conteúdos ideológicos. Palavras-chave: Spinoza, imaginação, Althusser, ideologia.

Para Spinoza, o conhecimento que os homens têm do corpo e da mente resulta da operação espontânea pela qual a mente, que é ideia do corpo, constitui a si mesma como objeto de uma ideia. A mente é a ideia

* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; membro do Grupo SpiN: estudos sobre Spinoza e Nietzsche.

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das afecções do corpo; mais exatamente, ela é um complexo de modos de pensar correspondente ao conjunto atual das modificações dos estados corporais. Da mesma forma, a consciência, ou a ideia da mente acerca de si mesma, é a ideia da ideia dessas afecções, ou melhor, é a ideia que a mente tem de si mesma na medida em que se percebe pelas ideias das afecções do corpo (Spinoza 6, E, II, 12-23).2

Ao perceber uma coisa, isto é, ao ser, em virtude de uma ideia de afecção, determinado a considerar uma coisa como existente, um homem percebe, ao mesmo tempo, sob o prisma dessa ideia, sua maneira presente de pensar e de existir. Um homem assiste a uma missa ou segue um discurso num seminário de filosofia: todas essas coisas lhe são presentes na medida em que o modificam materialmente. Ele é determinado a considerá-las como existentes em ato – ou a imaginá-las – em razão das afecções que elas produzem sobre seu corpo e das ideias dessas afecções por meio das quais a mente as percebe, ou antes, por meio das quais a ideia do corpo, que é a mente, se atualiza. Em resumo, uma afecção é uma imagem material ou uma modificação sensível cuja percepção envolve uma imagem do corpo. Uma ideia de afecção é uma ideia de uma imagem.

O corpo modifica-se conforme as afecções e as relações em que elas se dão: na missa, o homem se ajoelha, admira o altar; num seminário, ele corrige a postura quando sente que o amolecimento do corpo coincide com a distração da inteligência. Nessas variações, o homem percebe as modificações do corpo pela sucessão das coisas cujas imagens, ou afecções, a sua mente é determinada a considerar. Mas, além de perceber o corpo e de afirmá-lo como existente a partir de sua imagem, a mente percebe simultaneamente a ideia dessa imagem, ou a ideia do corpo, e afirma essa ideia como existente. Traduzindo, para o ponto de vista da imaginação subjetiva, uma tese de Matheron (12, p. 68), pode-se dizer que a mente percebe-se a si mesma, converte a ideia que ela é em objeto

de uma ideia que ela tem, como sujeito, e que está, para ela, na mesma relação que uma afecção está para uma ideia de afecção; noutros termos, a mente se “imagina”. A mente afirma, então, não o corpo tal como ela percebe pelas ideias das afecções, mas sua própria existência como ideia, e, assim, como que se apropria de si mesma. Se as ideias de afecções são espontaneamente imaginadas na mente, esta supõe que, ao converter essas imaginações em objeto de outras ideias, isto é, ao objetivá-las como ideias de ideias, autonomiza-se em relação às coisas representadas e entra, como sujeito, na posse formal do pensamento.

Spinoza denuncia que essa consciência subjetiva da imaginação não encerra conhecimento adequado algum: na medida em que se limita ao conteúdo de uma afecção e se inscreve em uma relação determinada entre seu corpo e a coisa que o afeta, essa ideia não dá ao homem senão um conhecimento parcial da coisa, de seu corpo e sua mente (Spinoza 6, E, II, 29-31). Para Spinoza, conhecer uma coisa é conhecê-la em sua causa. A causa pela qual se explicam os efeitos que uma coisa produz em nós é a natureza atual dessa coisa. As ideias de afecções, visto que são ideias dos efeitos das coisas sobre nós, encadeiam na mente apenas a imagem dessas modificações, ou a imagem de nosso corpo a partir das afecções a que ele é relacionado, sem todavia exprimir a natureza das coisas que o afetam. Pode-se assim dizer que a ideia de uma afecção é conhecimento parcial porque é a ideia de um efeito alienado de sua causa.

A mente que imagina, porém, não está advertida dessa insuficiência (Pires Aurélio 13, p.66): como ela recolhe imagens parciais das coisas, a mente é privada das ideias que, exprimindo a causa de tais imagens, a fariam notar a parcialidade desse conhecimento. O que fará, então, a imaginação? Suspenderá provisoriamente todos os juízos? Não: ela suprirá essa insuficiência através de uma inversão. A imaginação reterá os efeitos das coisas, as ideias das afecções, e os tomará como causa final da ação

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delas (Deleuze 4, p. 29). Como a imaginação abstrai, por não poder percebê-las, as causas externas das ideias de afecções que ela percebe e que dão a forma presente da consciência, ela então, em vez de relacionar os efeitos dessas afecções à natureza das coisas que a afetam, julgará que tais efeitos predeterminam ou explicam as suas afecções correspondentes; noutros termos, é como se a verdade das coisas estivesse na consciência que temos delas, e elas não fizessem mais que encontrar, na nossa imaginação, como seu destino, a representação sob a qual essa verdade se faz reconhecer.

A ilusão da subjetividade conjuga-se, aqui, à ilusão do finalismo: para a imaginação, que percebe o mundo por ideias de afecções, é como se os efeitos das coisas externas, tendo percorrido longas genealogias sob as leis universais de causalidade, deixassem os domínios da natureza ao penetrar a jurisdição da consciência, para realizar aí o ciclo de sua finalidade. Esse movimento opera o corte idealista que aparta a existência do indivíduo humano da vida das coisas naturais, e instala, no império da natureza, o império do Homem (Spinoza 6, E, III, Pref.; TP, 6).

A consciência subjetiva inspira, pois, uma ordem finalista de explicação do mundo (Deleuze 4, p. 64). Partindo das ideias que nos são imediatas – as ideias das afecções –, imaginamos, ignorando as causas verdadeiras que as vinculam às naturezas dos corpos externos, que essas ideias se explicam pela consciência que temos delas, e derivamos daí uma relação causal entre as ideias que se apresentam à mente e a consciência pela qual as fazemos “nossas”. A mente imagina então constituir, por sua autonomia, os objetos de seu pensamento. Essa inversão, operada na imaginação, tem, porém, importância essencial, por assim dizer prática, à percepção dos homens acerca de suas relações; é ela que lhes permite criar uma ordem de inteligibilidade do mundo, ainda que esta não corresponda à ordem de produção do real.

Para criar uma ordem de inteligibilidade do mundo – e toda ordem é suspensão do aleatório –, a imaginação sobrepõe, às relações

aparentemente fortuitas, uma associação coordenada entre as ideias das coisas. Como uma ordem reclama uma norma, cumpre haver um critério que presida às associações de ideias e as organize de tal sorte na mente que elas componham um sistema de explicação do mundo que reproduza, tão fielmente quanto possível, a ordem comum de percepção das coisas (Spinoza 6, E, II, 29, corolário.), a ordem da práxis. Para o homem que imagina o mundo, esse princípio ordenador capaz de conferir sentido às coisas e suas relações deve situar-se no fato comum de todas elas se fazerem representar, como ideias de afecções, na sua mente, e assim lhe restituírem a todo instante uma imagem de seu corpo, da mente que o percebe como seu e que, ao percebê-lo, percebe a si mesma. A consciência subjetiva se apresenta, então, ao homem como eixo fixo em meio ao fluxo contingente dos eventos, e permite à imaginação desfraldar seu mapa de pólos invertidos: substituindo o que ignora – as ideias das causas das afecções –, pelo que percebe – as ideias de seus efeitos –, a imaginação estende sobre o mundo uma ordem finalista centrada na autonomia da consciência.

Assim, ao considerar as coisas da perspectiva das ideias de seus efeitos, a percepção do homem acerca do mundo é matizada pela percepção que tem de si mesmo. Representamos as coisas apenas na medida em que nos afetam, e elas nos afetam apenas na medida em que reconhecemos, nas suas imagens, uma imagem de nós próprios; dito de outro modo, as ideias de afecções representam as coisas na sua relação conosco e a nós na nossa relação com elas. Tais relações são imaginárias porque mediadas pela consciência subjetiva, que é a imagem em que nos representamos como sujeitos no centro da ordem de explicação do mundo segundo a qual as coisas podem ser conhecidas à luz de nossa natureza. Podemos, com base nisso, dizer que se acham, na teoria spinozista da imaginação, os elementos que, para Althusser (3, p. 72), definem as

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ideologias: representação imaginária do real, inversão das relações reais e ilusão do sujeito consciente como seu centro ordenador.

A analogia não é perfeita, e o próprio Althusser, que a sugere, não se ocupa dela demasiado. Há, a princípio, uma diferença de monta: em Spinoza, a imaginação se apresenta inicialmente como traço característico do homem individual, ao passo que a ideologia, para Althusser, não pode ser entendida fora das relações políticas tomadas em conjunto. Essa diferença, porém, pode ser resolvida fazendo encarnar esse indivíduo imaginativo – pensado em “estado de natureza” na segunda parte da Ética – na teoria política de Spinoza.

Com efeito, como diz o TP (II, 15), os indivíduos humanos não existem nem podem ser concebidos isoladamente: o conatus, essência atual em virtude da qual eles perseveram no ser, não pode efetivar-se se, para isso, conta somente com a potência singular ou o direito natural individual. A potência singular, considerada em si mesma, é uma abstração, ineficaz frente à potência das coisas a cujas afecções o corpo humano está suscetível. Para que ela se efetive e possa afirmar como coisa existente – como corpo – a essência singular que nela se exprime, a potência singular de um homem precisa compor-se a outras potências singulares sob dadas relações: relações de produção das coisas necessárias à conservação dos seus corpos, relações de resistência às afecções nocivas a que todos os corpos semelhantes estão sujeitos. Uma relação é dita de composição se dela resultam efeitos favoráveis à afirmação da existência de um homem, à expressão de seu conatus individual. Mas com que indivíduos um homem tem mais ocasião de estabelecer relações de composição? Com aqueles cujas naturezas têm mais propriedades em comum com a sua, de sorte que, agindo para conservar a si mesmos, operam efeitos úteis também a ele. Ora, o que há de mais parecido na natureza com um homem é outro homem: o alimento que um homem produz para si também deve servir

a outro, o agasalho que este cose para proteger-se do frio deve aquecer também ao outro. Por isso, porque seus corpos têm muitas propriedades semelhantes, para um homem nada é mais útil que outro homem (Spinoza 6, E, IV, 18, escólio).

O que há de comum aos homens, então, é a necessidade contínua de produzir sua existência e a impossibilidade de fazê-lo sozinhos, e é nessa medida que Spinoza afirma nada objetar aos filósofos que consideram o homem um animal político. As relações de composição que os indivíduos são determinados a estabelecer entre si para realizar seu conatus podem então ser entendidas como relações coletivas de produção das existências humanas singulares. O processo de constituição de relações de potência entre homens para a produção comum de suas existências singulares funda sua maneira de existir na Natureza como uma existência necessariamente política.

As relações de composição de potências constituem, então, um modo coletivo de existência, um “indivíduo” mais complexo – o político. O político seria, então, um indivíduo composto de relações de potências através das quais suas partes – homens singulares – operam em comum os efeitos necessários à sua permanência em vida. Essas relações de produção são as relações constitutivas do político, cuja existência, como indivíduo complexo, se produz através da reprodução dessas relações. Nas suas relações de produção ou, o que é o mesmo, nas suas relações políticas, os homens não produzem uma existência em si, mas o modo determinado pelo qual existem e agem no político. Assim, ao operarem uns com os outros segundo as relações políticas sob as quais sua existência se produz, os homens reproduzem o modo de ser desse indivíduo político através da reprodução das relações que o caracterizam – as relações de produção. A produção da existência individual envolve a reprodução da existência do político na medida em que as relações através das quais elas se realizam são as mesmas.

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Existir, diz Althusser, é reproduzir-se (Althusser 1, p.240), e se o modo de existir de um indivíduo é seu modo de produção, o modo de produção dos homens é o modo de produção do político. O homem é efeito do conjunto em cujas relações sua existência é concebível; ao mesmo tempo, através dessas relações, os homens produzem as condições de determinação de sua produção, isto é, as condições que os levam a produzir sua existência de certo modo. Essa dinâmica de produção-reprodução do ser político estabiliza as relações dos homens em uma ordem de regularidade.

Mas, em termos spinozistas, o que são as condições que dispõem os homens a operar nessas relações? São afecções. Os efeitos que as afecções os determinam a operar se explicam ou pela natureza dessas afecções ou pela natureza dos homens modificada por afecções. Modificados por uma afecção, os homens operam efeitos que exprimem sua potência de existir em relação ao que os afeta; existem, não em termos absolutos, mas de modo determinado pela relação em que sua existência se produz (politicamente). Ao mesmo tempo, a ideia dessa afecção, a imagem do corpo que os afeta determina-os a considerar esse corpo presente na forma dessa relação. Ora, se as ideias representam na mente as relações que temos com as coisas que nos afetam, está claro que tais representações são tanto mais estáveis quanto mais constantes são as afecções ligadas a tais relações. Afetados seguidamente por afecções semelhantes, sujeitos ao contato regular das mesmas imagens, reiteramos na mente os mesmos agregados de ideias: a recorrência das afecções, na ordem da produção-reprodução das relações políticas, corresponde à recorrência das ideias de afecções; a regularidade da prática material encontra equilavente na composição estável dos modos de pensar essa prática como existência.

A sujeição regular de um homem à sucessão previsível de afecções ou imagens materiais que descrevem o ciclo de reprodução das relações políticas sedimenta na sua imaginação uma estrutura estável de

representação das coisas que ele é determinado a perceber, e na ordem em que elas se oferecem à sua percepção. Vimos que é a partir da imagem de nosso ser individual que se forma a ideia reflexiva espontânea que funda a consciência subjetiva como centro de uma ordem finalista. Na política o conteúdo ideal dessa consciência – sua imagem subjetiva, as representações das coisas – é reiterado como sistema aparentemente imutável de ideias, correspondente à dinâmica conservadora das relações: como um pano de fundo entretecido de ideias sempre associadas nos mesmos motivos e imagens, a consciência do homem na política é a representação constantemente restaurada das relações através das quais sua existência se produz. A consciência é a imaginação politicamente estruturada.

Para Spinoza como para Althusser, a consciência é uma percepção de mundo inadequada, invertida, arraigada à ilusão da autonomia do sujeito e determinada de fora pelas relações que ela espontaneamente representa. Os três graus de alucinação do real abrangidos na teoria da ideologia de Althusser – (1) representação > (2) imaginária > (3) das relações imaginárias dos indivíduos com o real – correspondem, em certa medida, a três passos do que se poderia chamar teoria spinozista da formação da consciência na imaginação. Esta se compõe de: (1) ideias/consciência (2) das ideias/percepção > (3) das imagens das coisas (Althusser 1, p. 203). Se parece complicado conciliar a ideia spinozista de que as representações mentais dos homens variam ao acaso das afecções, por outro lado conjecturar que a imaginação tende a se estabilizar na forma de uma consciência subjetiva em virtude da reprodução regular das relações no político concorda com o fato de que as ideias das afecções afirmam continuamente, para um homem, uma imagem de sua natureza, e que esta somente pode ser concebida como existente no político.

Da perspectiva espinosista, a consciência é externamente determinada em seu conteúdo, isto é, nas ideias de afecções ou imagens

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materiais que, por contínua reiteração, estruturam o repositório de representações estáveis de entre as quais sobressai, como ponto comum de referência, a imagem de auto-identificação do sujeito. Em Althusser, as consciências subjetivas são constituídas através da interpelação exterior de uma ideologia dotada de existência material. Essa materialidade não é da mesma espécie que a de uma pedra – de um “fuzil”, diz Althusser –, assim como o substantivo “pobreza” não é tão abstrato quanto a hipotenusa; essa materialidade concerne ao fato de que a ideologia não pode ser dissociada do aparelho de Estado na qual se efetivam as relações que ela representa e das quais os homens participam, porque é através delas que produzem sua existência.

Tal como Spinoza afirma que é impossível que, modificados por uma afecção, não se siga em nós a ideia dessa afecção, Althusser nota que a prática material dos homens se associa, neles, inelutavelmente, a uma representação mental correspondente. Os homens não representam mentalmente senão o que percebem, e só percebem o que, ao afetá-los, estabelece com eles uma relação. Para Spinoza, nossa essência é, também, material: imaginamos porque somos compostos de um corpo. As associações de ideias que compõem a consciência, estrutura estável de representação das relações políticas, têm uma existência material porque, dado que a essência dos homens envolve modos de extensão e pensamento, não se pode conceber modificação corporal a que não corresponda uma modificação mental. Da mesma forma, ao afirmar que Deus é coisa pensante e material, Spinoza (6, E, II, 1-2) não está a dizer que o pensamento se amolda à matéria que representa nem que esta só existe enquanto objeto de pensamento: o que ele assinala é que, tal como os corpos, na medida em que são pensáveis, têm existência ideal, também as ideias, visto que são concebíveis e podem ser afirmadas como realmente existentes, têm existência material.

A proposição spinozista segundo a qual Deus é coisa material encontra ressonância na tese althusseriana acerca da materialidade das ideias. Althusser sustenta que as ideias são materiais (Althusser 1, p. 280), que a ideologia, como sistema de ideias imaginativas através das quais os homens percebem suas relações com as condições de existência, tem uma materialidade própria. A ideologia sempre se inscreve na prática material que a realiza, da mesma maneira que essa prática se representa sob forma de ideologia. Por essa razão, afinal, toda relação econômica, material, é dita, simultaneamente, relação político-ideológica: apreender uma relação social ora da perspectiva material ora da perspectiva ideológica, considerando-a respectivamente como momento da estrutura ou da superestrutura, não implica dar chancela a uma concepção paralelista de mundo, mas, antes, chama a atenção para o fato de que, assim como a essência singular, na filosofia spinozista, pode ser explicada por mais de um atributo, a essência do político pode ser concebida por um ou mais “atributos”. De outra parte, a materialidade das ideias é o que resta oculto sob a ilusão da autonomia de consciência: incutindo nos sujeitos a crença de que suas representações mentais são lavra legítima de sua inteligência criadora, tal ilusão abstrai as causas materiais das ideias de imaginação. A consciência – assimilação subjetiva da ideologia, para Althusser – é também efeito da inversão das relações de determinação das ideias: os homens estimam que, conscientes das relações que os afetam e condicionam suas práticas materiais, passam a ter parte nelas, não por necessidade, mas adesão, e tanto mais se persuadem dessa autonomia quanto mais ignoram as causas que os determinam a considerar as coisas de certo modo e a agir, com respeito a elas, segundo esse modo determinado de considerá-las.

Nas ideias de afecções, o verdadeiro confunde-se, na forma da simples presença da coisa, com o fenômeno espontâneo de sua aparição. Nossa sujeição às afecções, conjugada à abstração de suas causas, induz-nos

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a julgar que, considerando a imagem material de uma coisa “dada”, podemos formar a seu respeito um conhecimento “concreto”. Mas por mais concreta que seja a coisa que buscamos conhecer, considerá-la-emos sempre de uma perspectiva abstrata se não a referirmos a suas causas, seu modo de produção. Assim, por exemplo, no indivíduo político “capitalismo”, as mercadorias afetam-nos normalmente na condição de valores-de-troca designados sob a forma “preço”. A ideia da afecção dissimula sua causa: com base nessa ideia refletida da imagem material “preço”, não conhecemos que a afecção que nos determina considerar a mercadoria como valor-de-troca resulta da relação entre trabalho social abstrato, cristalizado na forma “valor” do equivalente-geral (dinheiro) e o trabalho concreto cristalizado na forma “valor-de-uso” de outra mercadoria. Percebemos o valor-de-troca, o preço, como um efeito alienado de sua causa, de sua produção, e investido num objeto como se fora sua essência: é a sujeição às afecções reiteradas nas relações características do indivíduo político “capitalismo” que acaba por fazer necessária a ilusão pela qual a relação entre os trabalhos sociais se apresenta na forma de uma relação entre coisas, como assinala Marx ao tratar do fetichismo da mercadoria em O Capital (I, 1, seção 4).

A ideologia e a imaginação, presas à ilusão das imagens materiais, supõem que o conhecimento é autônomo em relação a toda a exterioridade: a imaginação povoa a consciência de universais, abstraídos da singularidade das coisas representadas, e crê consistir nisso a razão; a ideologia, constituindo a consciência subjetiva através da reprodução material de suas representações imaginárias, empresta a estas o valor de verdades eternas porque aliena as condições históricas de sua produção. A consciência subjetiva constitui-se na medida em que se faz presente na imaginação individual o reconhecimento espontâneo de um mundo regular, onde as coisas freqüentam as mesmas relações e são determinadas a promover as mesmas conseqüências. Por efeito da imaginação, essa previsibilidade

da dinâmica social oculta o seu caráter de produção sob a aparência de instituição: assim como, na descoberta de uma lei natural, a observação contínua de seus efeitos e o estabelecimento de padrões de regularidade levam a concluir que dado evento sempre seguiu e há de seguir idêntico curso por toda a eternidade, também no político a percepção constante dos mesmos efeitos e imagens materiais persuade as consciências de que a forma dominante pela qual se realizam as relações entre os homens é a forma universal. No fundo comum da consciência subjetiva, a imaginação abstrai as causas das coisas cujos efeitos percebe, e a ideologia imprime uma constelação de verdades eternas que denegam o caráter histórico de sua produção.

A realização da ideologia depende da sua materialização. No político, os indivíduos tendem a operar os mesmos efeitos reais nas suas relações e a conservar, através deles, o modo de ser do indivíduo político que constituem. Esses efeitos tocam ao corpo e à mente, tanto na forma de uma reiteração espontânea das práticas materiais quanto na conservação da composição da consciência em que tais práticas são representadas. A reprodução dos efeitos pelos quais os homens conservam seu modo de ser envolve afecções, estruturas materiais com que eles necessariamente se relacionam porque não podem conceber, sem elas, as práticas materiais que conservam sua existência. Por isso, eles tendem a associar seu modo de existir a um modo de produzir a existência que não se pode dar fora das relações e estruturas que caracterizam o indivíduo político. Sob a forma da consciência, a imaginação é, por natureza, conservadora: ela nos faz conservar a vida que levamos e a percebê-la como a única vida que podemos levar.

A materialização de uma ideologia produz no político a assimilação das imaginações individuais na forma da mesma consciência subjetiva ou visão de mundo. Pode-se dizer que a tese althusseriana da materialidade

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da ideologia se anuncia no esboço de uma teoria da materialidade da imaginação desenvolvida por Spinoza no capítulo V do TTP, onde se demonstra que, materializado na sua simbologia, o imaginário das cerimônias religiosas (e civis) ajuda a consolidar suas instituições. Mas na regularidade do político, a estabilização da imaginação na forma de consciência subjetiva envolve mais que a inversão dos efeitos em causas: no tecido homogêneo da existência política, as representações que os indivíduos fazem espontaneamente de suas ações passam a se lhes afigurar como projeções dessas ações. Como opera por mecanismo de imaginação, a consciência subjetiva não pode senão deduzir que a existência das coisas atende a uma finalidade, que elas são determinadas em função de seus efeitos. A previsibilidade comuta-se em necessidade. Sem ter em conta que a consciência só reflete a ordem comum segundo a qual percebemos as relações, imaginamos que estas se apresentam, por coincidência, sob uma ordem tal que podemos explicá-las pela consciência que temos delas. Se a imaginação não pode ser dita gênero adequado de conhecimento, ela pode ser chamada “gênero de reconhecimento”, como propõe Althusser (1, p. 211) acerca da ideologia: a imaginação opera com ideias-prontas, percepções “evidentes”, que replicam, para confirmá-las, as representações fixadas por ideias das afecções ou interpelações materiais em uma consciência politicamente estruturada. A ideologia dominante é a substância do consenso.

Mas a ideologia e a imaginação não são rigorosamente negativas: elas são, antes, os únicos pontos de partida para a transformação política. Marx, no prefácio de Para a crítica da economia política, assinala ser na esfera da ideologia que os homens se fazem conscientes do conflito entre forças produtivas e relações de produção, sem pressupor, é claro, que essa consciência lhes dá todo conhecimento do processo histórico. E Spinoza não cessa de advertir que a imaginação é necessária em virtude de suas

causas e, por isso, encerra um grau de positividade: é pelo conhecimento das causas da sua imaginação que um homem – sem deixar de imaginar – pode ter um conhecimento das causas das afecções que sofre. A razão, para Spinoza, é um modo de conhecer que, como tal, sofre a ação contínua de outros modos de pensar, como a imaginação e as paixões.

Conta certa anedota que São Tomás de Aquino, recolhido a um aposento para redigir a Suma teológica, ergueu-se de súbito para ver o céu quando um frade gaiato lhe veio dizer: “Senhor, mirai, um boi a voar!”; o exemplo ilustra a necessidade que nos determina a imaginar presente o que a ideia dessa afecção propõe. De resto, o caráter necessário da imaginação põe a descoberto a necessidade da própria consciência e seus mecanismos, já no que tange à condição do homem singular, já no que toca à vida civil. A falsidade de uma ideia não obsta a produção de efeitos práticos a partir dela, não apenas nas mentes que não a distinguem corretamente, mas ainda naquelas que, conhecendo seu caráter inadequado, não podem porém deixar de ter em consideração uma ideia falsa quando uma afecção a faz presente. E, assim como é impossível, dada a natureza dos homens, excluir dela a imaginação, ainda que se trate de São Tomás, é também impossível constituir uma sociedade sem ideologia, ainda que se trate de uma sociedade comunista, como diz Althusser (2, p. 205). Por isso, uma revolução não transforma a ordem social sem combater a ideologia desta com outra ideologia, que possa limitar e contrapor-se aos efeitos da primeira na consciência social, tal como um modo de pensar limita outro modo de pensar na mente dos homens.

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REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Editora Vozes: Petrópolis, 1999.

2._________ Análise crítica da teoria marxista (Pour Marx). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

3._________ Éléments d’autocritique. Paris: Hachette, 1974.

4.DELEUZE, G. Spinoza. Paris : P.U.F, 1970.

5._________. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Les Editions de Minuit, 1968.

6.SPINOZA, B. Ética. Trad. Thomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

7.SPINOZA, B. Tratado da reforma da inteligência. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

8.SPINOZA, B. Tratado político. Lisboa: Editorial Estampa, 1977.

9.SPINOZA, B. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

10.MARX, K. O capital, I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

11.__________. Para a crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

12.MATHERON, A. Individu et communauté chez Spinoza. Paris : Les Editions de Minuit, 1988.

13.PIRES AURÉLIO, D. Introdução. In: ESPINOSA, B. Tratado Teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

tHE CoNStItUtIoN oF tHE SUbJECtIVIty AND tHE FINALISM’S ILLUSIoN: ELEMENtS oF A tHEoRy oF IDEoLogy

Abstract: This text proposes to establish a correlation between Spinoza’s conception of imagination and Althusserian ideology theory. Understood in its mode of functioning and in its effects over men’s perception about their body, their ideas and the things that affect it, imagination would constitute, to Spinoza, the characteristic form of subjective conscience by operating in political world. Marked by the regularity and predictability of causal processes and by the reproduction of relations, political order would be present to imagination as a theological order, whose repetition would represent as universal truths the ideas of images of things in the form under which they would be present more

recurrently to men perception. The stability of relations and images under which they represent it would correspond to stability of modes of thinking under which men represent themselves in political order. The contents of conscience – of politically structured imagination – would always be, from this point of view, ideological contents.Keywords: Spinoza, imagination, Althusser, ideology.

NoTAS

1. As referências às obras de Spinoza designam-nas por abreviações – E, para a Ética; TP, para o Tratado político; TTP, para o Tratado teológico-político; TRI, para o Tratado da reforma do intelecto – e indicam o lugar de onde foram extraídas segundo a divisão original de partes e proposições (no caso da Ética) e de capítulos e parágrafos (no caso dos Tratados) que caracteriza suas respectivas estruturas.

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A dIfIcUldAdE NA lEITURA dE O cAPITAl dE MARX: A POSIÇÃO AlThUSSERIANA

Fernando Bonadia de oliveira*

Resumo: As dificuldades que envolvem a leitura e compreensão de O Capital de Karl Marx são consideradas por Louis Althusser em seu prefácio à edição francesa desta obra. Este artigo tem como objetivo investigar o problema da dificuldade na leitura do livro de Marx, a partir de uma análise da recomendação althusseriana, segundo a qual se deve iniciar a leitura de O Capital deixando de lado, a princípio, sua seção primeira. Posteriormente, será mostrado como o próprio filósofo alemão aborda as dificuldades de compreensão de sua obra e de que forma é possível rever a recomendação do filósofo contemporâneo francês.Palavras-chave: Louis Althusser, Karl Marx, O Capital (1867), abstração, dialética.

Introdução

O Capital de Karl Marx, obra inicialmente projetada para ser composta em quatro livros, teve seu primeiro volume publicado no ano de 1867. Esta primeira parte, que trata do processo de produção do capital, resume, em seu capítulo 1, conforme salienta o próprio autor no “Prefácio” da primeira edição, a Contribuição à Crítica da Economia Política, lançada em 1859.

Esta obra, um dos pontos mais elevados da filosofia moderna e contemporânea, apresenta uma profunda e rigorosa crítica à chamada

* Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo

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economia política burguesa, desenvolvida no século XIX. Composta a partir de um método dialético de construção que requer detalhada reflexão e aprendizagem filosófica, ela teve ampla recepção, assumindo até a atualidade o caráter indubitável de um texto clássico2.

Segundo o parecer de Ítalo Calvino,

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes) (Calvino 7, p. 11).

Este livro de Marx, em virtude de suas importantes conseqüências históricas e de sua ampla capacidade de explicação da realidade, tornou-se um clássico que mereceu sempre novas leituras. A obra recebeu, desde sua publicação, um grande número de tentativas de aproximação por parte de historiadores, economistas, pedagogos e cientistas sociais. Não raro, porém, a primeira leitura desta obra é qualificada como difícil e o próprio Marx, como será evidenciado adiante, assume sua dificuldade.

Alguns comentadores de Marx centram a dificuldade da leitura de O Capital na consistência do seu “modo de exposição” dialético e fenomenológico, que parte do “aparentemente verdadeiro” ou “geralmente aceito”3 para só depois efetuar sua negação, criando uma análise dinâmica, pautada em um movimento que deve ser acompanhado até o final4. Para outros estudiosos do marxismo, a dificuldade principal na leitura desta obra reside na ação de abstrair, frequentemente solicitada por Marx para a compreensão mais perfeita de seus conceitos e raciocínios.

Louis Althusser dedicou-se a atenuar o grau da dificuldade do primeiro contato de um leitor com O Capital (Marx 8), elaborando, em

seu prefácio à edição francesa da obra (assinado em março de 1969)5, uma espécie de guia por meio do qual os principais ardis para o entendimento do livro pudessem ser mais suavemente superados.

Este artigo tem como finalidade explicar qual é a compreensão althusseriana dessa dificuldade e, em seguida, analisar a forma pela qual o próprio Marx considera os obstáculos de seu livro, de modo que, a título de conclusão, seja permitido rever a posição de Althusser segundo a qual é recomendável ao leitor leigo iniciar sua leitura da obra saltando a seção inicial do livro I. 1. As dificuldades de leitura de o capital segundo Althusser

Os problemas relativos a O Capital animaram continuamente a produção de Althusser, que chegou a escrever (em colaboração com outros teóricos) um livro intitulado Lire Le Capital (1965), além de inúmeros opúsculos que tocam, de alguma maneira, o pensamento econômico marxista. Leitor atento do texto de Marx, Althusser oferece àquele que se aproxima da famosa obra marxiana um conjunto de esclarecimentos, indicações e recomendações de leitura.

Segundo seu prefácio à edição francesa, há um paradoxo inerente à leitura de O Capital: esta obra, apesar de suas dificuldades, é mais incompreendida por especialistas e intelectuais do que por militantes do movimento operário e trabalhadores assalariados. A razão da maior facilidade de leitura por parte do proletariado se deve, para ele, à proximidade que esta classe tem do objeto de estudo de Marx, qual seja, a exploração promovida pelo sistema capitalista. O motivo da dificuldade mais acentuada sentida pelos especialistas e intelectuais é, por sua vez, sua submissão à ideologia capitalista, que, repetidas vezes, os impede de ter “condições de criticar eles mesmos as ilusões em que vivem e que contribuem para manter” (Althusser 3, p. 8).

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A leitura de O Capital possui, no entender de Althusser, dois gêneros de dificuldades: a primeira é uma dificuldade ideológica e política; a segunda é uma dificuldade teórica6.

Quanto ao primeiro gênero de dificuldade, os leitores que têm experiência direta com a exploração capitalista (sobretudo os proletários urbanos e rurais) não sofrem com a leitura da obra, uma vez que Marx trata, em suas páginas, de sua vida concreta. Os leitores que não têm experiência direta com a exploração engendrada pelo capital e que mantêm em suas mentes a ideologia dominante, ao contrário, sofrem com isso: há uma “incompatibilidade política entre o conteúdo teórico de O Capital e as idéias que têm na cabeça” (Althusser 3, p. 9).

Quanto ao segundo tipo de dificuldade, a teórica, Althusser afirma que os leitores habituados ao pensamento teórico (os intelectuais), deveriam experimentar menos dificuldades com esta leitura. Ao contrário, os que menos possuem cultura teórica (os operários) deveriam enfrentar maiores problemas em sua compreensão. No entanto, isso não ocorre efetivamente: “(...) até indivíduos sem prática nos textos teóricos (como os operários) experimentaram menos dificuldade ante O Capital que os indivíduos doutos em prática de teoria pura (como os sábios ou falsos sábios muito ‘cultivados’)” (Althusser 3, p. 9).

Em torno desta questão, o pensador francês assegura aos futuros leitores da obra que as dificuldades políticas e ideológicas são as mais determinantes para a leitura.

Tratando a dimensão teórica do problema, Althusser destaca a questão da abstração. A prática da abstração é, para ele, uma “verdadeira aprendizagem” (Althusser 3, p. 10) e, conforme afirma o próprio Marx, é um instrumento para o conhecimento filosófico, assim como o microscópio é uma ferramenta fundamental para a Biologia7.

A certa altura de seu comentário, Althusser afirma que, resumidamente, O Capital apresenta apenas uma dificuldade, que é teórica. Trata-se, de acordo com ele, de uma dificuldade real e objetiva, apenas superável através de uma aprendizagem da abstração, o que não se alcança apenas em um dia (Althusser 3, p. 12).

A fim de superar os problemas que emergem no momento em que o leitor abre essa obra para uma primeira aproximação, Althusser indica três conselhos, a saber, (1) compreender que esta é uma obra de teoria que tem como objeto os mecanismos do modo de produção capitalista; (2) não almejar encontrar naquelas páginas um livro de história ou de economia política, mas uma obra teórica que cuida de examinar o modo de produção capitalista e (3) tomar as medidas necessárias para reverter as dificuldades teóricas cada vez que elas se apresentarem8.

A análise de tais dificuldades é dividida por Althusser em dois pontos: o primeiro contém conselhos de leitura com a finalidade de evitar os obstáculos de entendimento e o segundo dispõe indicações sobre as dificuldades teóricas do livro I de O Capital.

Acerca do primeiro ponto, o comentador de Marx aconselha que a primeira leitura do livro coloque entre parêntesis toda a seção I (sobre mercadoria e dinheiro), iniciando-a pela seção II (sobre a transformação do dinheiro em capital)9. Posteriormente, é recomendado ler as seções III (a produção da mais-valia absoluta), IV (a produção da mais-valia relativa) e abandonar a seção V (que contém novas investigações sobre a mais-valia). Em seguida, Althusser indica que se leia com atenção as seções VI (sobre o salário), VII (sobre a acumulação do capital) e VIII (sobre a acumulação originária). Finalmente, defende que o leitor inexperiente em O Capital comece – com numerosas precauções – a leitura da seção I, sabendo que ela será muito difícil de compreender.

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A respeito do segundo ponto, Althusser afirma que há duas ordens de dificuldades. A primeira delas emerge do fato de que o livro I de O Capital deva ser compreendido tendo em vista que há outros três livros que o completam. Embora Engels tenha afirmado que o livro I encerre em si uma unidade, “o conhecimento dos três livros restantes permite resolver certo número de dificuldades teóricas muito graves do livro I, principalmente as que estão concentradas na terrível seção I (a mercadoria e o dinheiro), em torno da famosa teoria do ‘valor-trabalho’”. A segunda consiste na necessidade de se “ler O Capital muito de perto”. Esta leitura deve ser praticada e exercitada com intensidade, atenção e rigor. (Althusser 3, p. 27).

Para compreender esta obra de Marx, finaliza Althusser, “é necessário ‘tomar posições de classe proletária’, quer dizer, situar-se no único ponto de vista que torne visível a realidade da exploração da força de trabalho assalariada que realiza todo o capitalismo” (Althusser 3, p. 39).

2. As dificuldades de o capital segundo Karl Marx

O problema da dificuldade foi tratado pelo próprio Karl Marx em seu “Prefácio” para a primeira edição de O Capital. O filósofo alemão começa sua abordagem sobre os ardis de sua obra, afirmando que “todo começo é difícil” e que essa afirmação “vale para qualquer ciência” (MARX 9, p. 129)10.

Nas palavras do autor,

O entendimento do capítulo I, em especial a parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior. Quanto ao que se refere mais especificamente às análises da substância do valor e da grandeza do valor, procurei torná-las acessíveis ao máximo. A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do dinheiro, é muito simples e vazia de conteúdo. Mesmo assim, o espírito humano tem

procurado fundamentá-la em vão há mais de 2000 anos, enquanto, por outro lado, teve êxito, ao menos aproximado, a análise de formas muito mais complicadas e replenas de conteúdo. Por quê? Porque o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a célula do corpo (Marx 9, p. 129-130).

Como se depreende do texto transcrito, Marx reconhece a dificuldade das primeiras páginas de sua obra, assegurando que teve o cuidado de tornar o texto sobre a grandeza e a forma do valor o mais acessível a seus leitores.

Detendo-se à questão sobre a forma do valor, o filósofo argumenta que, não obstante a ausência de conteúdo de sua figura mais completa (o dinheiro), houve uma dificuldade histórica em compreendê-la, porque “o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a célula do corpo”. Com esta sentença, entende-se que a causa da dificuldade de compreensão da primeira seção é o aspecto microscópico do objeto submetido a exame e a ausência de um aparelho que sirva ao filósofo como o microscópio serve ao biólogo e os reagentes ao químico.

Neste caso, como seria possível compensar a falta de um instrumento tão objetivo como o microscópio é para a ciência natural? O próprio Marx responde:

A faculdade de abstrair deve substituir ambos [o microscópio e os reagentes químicos utilizados nas investigações em ciência natural]. Para a sociedade burguesa, a forma celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Para o leigo, a análise parece perder-se em pedantismo. Trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas daquele de que se ocupa a anatomia microscópica (Marx 9, p. 130).

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Nesta perspectiva, é a faculdade de abstração (já discutida por neste trabalho através da análise althusseriana) que deve ocupar o lugar do microscópio; será esta técnica ou este método o que proporcionará o entendimento da forma celular da economia em uma sociedade regida pelo modo de produção capitalista. Como em toda análise que se pretende microscópica, no parecer de Marx, cai-se em pedantismo, porém, trata-se de um pedantismo necessário, que deve ser enfrentado para uma compreensão cabal do problema pesquisado. Isso, para o leigo, é um incômodo e um obstáculo, todavia, sua superação é o fundamento da compreensão do problema que ele intenta conhecer.

O autor de O Capital conclui esta passagem afirmando que, afora a questão sobre a forma do valor, “não se poderá acusar este livro de ser de difícil compreensão”. Ele pressupõe, afinal, “leitores que queiram aprender algo de novo e queiram, portanto, também pensar por conta própria” (Marx 9, p. 130).

Com esta alegação, Marx evidencia também o aspecto educativo de sua obra: ela se destina a aprendizes e foi escrita para eles, tendo o autor procurado – como expositor didaticamente precavido – tornar todas as coisas necessariamente difíceis “acessíveis ao máximo”. Tal aprendizado tem por objeto, mais do que qualquer outra coisa, a abstração e a o domínio da arte dialética11.

Conclusão

Se forem examinadas atentamente as duas ordens de dificuldade apontadas por Althusser para uma leitura inicial de O Capital (a ordem ideológica/política e a ordem teórica), será certamente fácil concordar com a primeira; entretanto, o mesmo não ocorrerá com as consequências que o filósofo francês extrai de sua consideração a respeito dos embaraços teóricos do livro.

É inegável que a dificuldade ideológica, de cunho político, opera intensamente sobre a primeira aproximação da obra de Marx, afinal, sendo ela extensa e exigindo do leitor alguma familiaridade com o estudo da economia política clássica, a perseverança na leitura até o final é profundamente prejudicada quando se pensa que o assunto é abstrato e quando não se sabe que são tratadas ali, na verdade, coisas muito concretas.

É válido notar que Althusser tem plena razão sob esse aspecto, pois o leitor só sentirá a concreção do tema abordado por Marx quando se desvencilhar da ideologia dominante, isto é, quando – de alguma forma – se aproximar do ponto de vista da classe operária.

O próprio livro se incumbe, porém, de provocar no leitor essa adesão à perspectiva proletária, pois à proporção que se lê e relê suas páginas durante alguns dias e se mantém a lida cotidiana, vai-se notando, amiúde, sua materialidade e concretude, seja na hora de entrar em um supermercado ou no momento em que se passa por um corredor de vendedores ambulantes. A riqueza da sociedade capitalista que, antes da primeira passada de olhos pela obra, aparecia de fato como uma “imensa coleção de mercadorias” (tese da economia política burguesa), com os primeiros movimentos de leitura, “se manifesta como imensa coleção de contradições” e a luta de classes se define como sua “contradição fundamental”, presente em cada mercadoria (Benoit 5, p. 35).

A transição de um conceito a outro – promovida pelas linhas de O Capital – efetua uma passagem do “instinto de classe burguês” a uma “posição (objetiva) de classe proletária”12. Àqueles que não foram determinados a compreender o texto por sua experiência pessoal sob a exploração capitalista diária, a revolução teórica advinda da leitura dessa obra lhes restitui, de alguma forma, a consciência proletária. Do contrário, não teria sido possível a Marx e Engels, como lembra Althusser, elaborar uma teoria revolucionária13.

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Se a dificuldade dita ideológica tem suas formas de minimização na própria literalidade do texto de Marx e no conhecimento efetivo do modo de produção capitalista, dispensando qualquer esquema de leitura além daquele que a própria obra apresenta, resta inquirir se o mesmo acontece com a dimensão teórica das dificuldades.

A dificuldade teórica para o bom entendimento de O Capital não se restringe ao problema da abstração, apesar de Althusser se centrar neste ponto. É necessário ler o texto de Marx tendo consciência que seu autor está, a cada passagem, dialogando ou se dirigindo a alguma ou a algumas tradições de pensamento densas e complexas, como a economia política clássica e o hegelianismo. Para bem compreender o trabalho do filósofo alemão, é necessário valer-se de conceitos nem sempre facilmente inteligíveis e de um outro método de raciocínio raramente empregado e experimentado nos tempos atuais: a dialética.

O método (dialético) de O Capital mistura-se profundamente com o modo de exposição escolhido para a obra e, inclusive, com a ordenação precisa de seus capítulos. O próprio Marx manifestou, como já foi evidenciado, sua preocupação com a clareza de suas ideias14. Portanto, qualquer alteração no roteiro de leitura da obra – como desejou Althusser, ao sugerir, por exemplo, saltar a seção I – resultaria equivocada, afinal, romper com o modo de exposição do filósofo, impediria a adequação entre o leitor e o movimento dialético do livro.

Consideramos fundamental a defesa da literalidade e o respeito rigoroso do modo de exposição de Marx. Não se trata de uma exigência vinculada a uma defesa incondicional de um suposto “marxismo ortodoxo”, ou de uma defesa fetichista do texto de Marx. Esta exigência coloca-se, para nós, pois, a nosso ver, estaria no próprio modo de exposição, na própria disposição das diversas

partes da obra O Capital, na literalidade do texto último que Marx nos deixou, particularmente, no primeiro livro de O Capital (o único acabado), estaria ali, nesta literalidade, um conteúdo conceitual fundamental jamais suficientemente compreendido e pensado por grande parte dos próprios marxistas: ali, na própria disposição das partes, estaria a manifestação do pensamento de Marx, enquanto devir, enquanto processo transitório, em uma expressão, enquanto movimento dialético (Benoit 6, p. 82)15.

Diante da breve investigação aqui apresentada, conclui-se que o equívoco da posição althusseriana acerca das dificuldades de leitura de O Capital é sua tentativa de facilitar um trabalho de compreensão (teórica) do modo de produção capitalista que, uma vez facilitado, não dá conta da compreensão desejada, por querer evitar o difícil, isto é, o começo. Não só a ordem escolhida por Marx é a mais adequada do ponto de vista teórico, como foi objeto de sua preocupação expor seu pensamento de maneira clara. A dificuldade surge da complexidade do próprio objeto (como aponta o autor), mas recusar o seu enfrentamento consiste justamente em não compreender a obra ou então, em compreendê-la numa ordem indevida.

Experimentar uma primeira leitura de O Capital dentro da ordem proposta por Althusser, a saber, aquela que principia pela seção II, deve, sem dúvida, tornar menos ardiloso o contato da segunda leitura. No entanto, quando se parte da certeza de que é impossível, de fato, compreender todo o livro na primeira lida, nada parece mais razoável do que realizar a primeira leitura já na ordem planejada pelo autor, isto é, partindo da seção I do Livro I, com a confiança de que, na segunda leitura, o processo de abstração já será mais comum e palatável ao leitor, uma vez que ele já estará acostumado com o método.

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Neste caso, o clássico é aquele livro que os homens sempre lêem pela segunda vez16. É impossível, portanto, uma leitura “mais de perto” de O Capital, como recomenda Althusser, sem que esta seja sempre uma nova leitura.

tHE MAIN ISSUES oN tHE READINg oF MARX’S CAPItAL: tHE AlTHUSSERIAN PERSPECTIVE

Abstract: The difficulties related to the reading and comprehension of Karl Marx’s Capital are considered by Louis Althusser in its preface to the French edition of the book. The goal of this article is to investigate the difficulties on its reading, starting by the analysis of Althusser’s recommendation, in which on one should begin the reading of Capital by skipping the first section. Thereafter, it will be shown how Marx himself approaches the comprehension issues of his work and how it is possible to review the suggestion of the contemporary French philosopher.Keywords: Louis Althusser, Karl Marx , Capital (1867), abstraction, dialectics.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1.ALTHUSSER, L. Advertencia a los lectores del libro I de El Capital. In:_______________ Escritos. Barcelona: Laia, 1975. Traducción: Albert Roies Qui.

2. ______ Comment lire Le Capital. In: ____________ Positions (1965-1975). Paris: Sociales, 1976.

3. ______ Guía para leer el Capital. Revista de Filosofia y Teoria Social. Buenos Aires, ano 1, nº 2, 1992. Tradução: Dario Diaz.

4. ARISTÓTELES. Tópicos. In:_________ Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Tradução: Leonel Vallandro & Gerd Bornheim.

5. BENOIT, H. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista. São Paulo, nº. 3, 1993, p. 14-43.

6. ______ Pensando com (ou contra) Marx? Sobre o método dialético de O Capital. Revista Crítica Marxista. São Paulo, nº. 8, 1999, p. 81-92.

7. CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das letras. 1993.8. MARX, K. Le Capital. Paris: Garnier-Flammarion, 1969.

9. ______ . O Capital. Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Tradução: Regis Barbosa & Flávio Kothe. (Col. Os Economistas).

10.PLATÃO. Político. In: _________ Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983. Tradução: Jorge Paleikat e João Costa.

NoTAS

2. A crise econômica global de 2008 gerou na Alemanha um grande aumento das vendas de O capital. Além disso, nos três últimos anos foram produzidas, em função das sucessivas crises, recriações dessa obra no cinema (Histórias da Antiguidade Ideológica, de Alexandre Kluge, 2009) e até mesmo em versão mangá, lançada no Japão em 2008 e traduzida recentemente para a língua portuguesa pela editora JBC.3. Convém mencionar qual é a posição de Aristóteles, nos Tópicos, acerca deste traço definidor da dialética: “o raciocínio é dialético quando parte de opiniões geralmente aceitas (...). São (...) ‘geralmente aceitas’ aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos – em outras palavras: todos, a maioria, ou os mais notáveis e eminentes” (Aristóteles 4, 100b 18-22).4. Não é incomum encontrar citações fragmentadas de Marx que, equivocadamente, expõem como posição do autor aquilo que ele apenas admite previamente para depois refutar.5. Há edições castelhanas deste texto sob o título “Advertência a los lectores del libro I de El Capital” (ver Althusser 1, 3). Foi publicada também em Positions (1964-1975) uma súmula das principais ideias deste texto (Althusser, 2).6. Em Positions (1964-1975), o pensador francês qualifica expressamente a primeira dificuldade como “determinante” e a segunda como “subordinada” (Althusser 2, p. 50).7. A esta altura, o autor de Lire le Capital faz um importante registro sobre o problema da abstração. Esta espécie de abstração sustentada por Marx não é “abstrata” no sentido que o senso comum confere a esta palavra: “(...) conceito abstrato quer dizer, então, fórmula aparentemente abstrata, mas, na realidade, terrivelmente concreta, por causa do objeto que designa” (Althusser 3, p. 11). Para ele, os conceitos marxistas apresentados em O Capital, são mais concretos do que as coisas que todos podem tocar com as mãos, embora não seja possível toca-los. Assim se passaria com os conceitos de “valor de troca”, “capital social total” e “trabalho social necessário”.8. O leitor não deve se apressar em ler a obra, mas voltar a leitura, com vagar, avançando quando estiver esclarecido de suas dúvidas (Althusser 3, p. 13).

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9. Para ele, esta seção II contém o coração de O Capital, isto é, a teoria da mais-valia.10.Althusser comenta essa afirmação de Marx da seguinte forma: “Dentro de uma concepção hegeliana da ciência (para Hegel há ciência só se esta é filosófica e é por isso que toda verdadeira ciência deve fundar seu próprio começo), Marx pensava, então, que ‘em toda ciência, o começo é árduo’” (Althusser 3, p. 27).11. Conforme afirmara Estrangeiro ao jovem Sócrates no Político (Platão 10), a finalidade de todo diálogo – para além de seus objetivos específicos – é tornar os interlocutores “melhores dialéticos a respeito de qualquer assunto” (284a). Estes aprendizes pressupostos por Marx são, como este mesmo filósofo defendeu, os que querem aprender o novo e a pensar por si mesmos.12.Vale lembrar que Althusser distingue três situações: o “instinto de classe burguês”, o “instinto de classe proletária” e a “posição (objetiva) de classe proletária”. Somente esta última, em seu parecer, é plenamente adequada. O Capital auxilia os operários fornecendo-lhes “educação teórica sob a forma de explicações e demonstrações objetivas” (Althusser 3, p. 40).13. “O próprio Marx [era] filho de burguês liberal (advogado) e Engels da alta burguesia capitalista e, durante vinte anos, ele mesmo [era] capitalista em Manchester. Toda a história intelectual de Marx pode e deve se compreender assim: uma larga, difícil e dolorosa ruptura (...) que [ele] ajudou a definir de maneira decisiva em O Capital” (Althusser 3, p. 40).14. Vale lembrar a afirmação de Marx: “as análises da substância do valor e da grandeza do valor, procurei torná-las acessíveis ao máximo” (Marx 9, p. 129)15. O autor aprofunda ainda mais a crítica aos que pretendem facilitar O Capital: “Pensam (...) que podem ser mais didáticos que Marx (...) ou que podem melhorar ou ainda aperfeiçoar o pensamento de Marx alterando a ordem de Marx, recortando seu texto, tirando pedaços, juntando e sobrepondo outros textos (às vezes, esboços do próprio Marx, manuscritos não publicados, etc.). Ora, se esquecem que Marx gastou anos e anos lutando para encontrar a unidade dialética entre forma e conteúdo, ou para usar as palavras do próprio Marx, se esquecem que ele gastou muito tempo para encontrar ‘a vida da matéria’ (...), a disposição correta das partes, disposição esta que constitui a superação do momento” (Benoit 6, p. 82).16. Nas palavras de Ítalo Calvino, “os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo...’ e nunca ‘Estou lendo...’” (Calvino 7, p. 9).

MAqUIAvEl, OU O MAIS lONgO dESvIO: AcONTEcIMENTO, ENcONTRO E MATERIAlISMO NA

fIlOSOfIA dO ÚlTIMO AlThUSSER

Pablo Azevedo*

Resumo: O presente texto pretende esboçar a leitura de uma teoria do acontecimento no “último Althusser”, a partir de dois textos de capital importância no conjunto de sua obra póstuma: Machiavel et nous (1972-1986) e Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre (1982). No primeiro texto, Althusser busca através da análise do pensamento do secretário florentino refletir uma teoria da práxis da transformação política; enquanto no segundo ensaio, procura empreender a tarefa de construir genealogicamente uma corrente materialista onde o primado ontológico do encontro substitua a teleologia do materialismo dialético. A partir destes pontos, gostaríamos de buscar uma leitura compositiva dos dois textos, no sentido de percebermos se é possível ler na ontologia althusseriana do materialismo do encontro e em sua interpretação de Maquiavel uma teoria do acontecimento.Palavras-Chave: Althusser, Acontecimento, Encontro, Maquiavel, Materialismo

Chove. É com esse simples enunciado que Althusser inicia seu texto Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre (1982), inicialmente afirmando discorrer sobre a simplicidade de um evento corriqueiro, o ato de chover. Ação impessoal, sem um “sujeito” providencial ou contraprovidencial que execute tal ação (na verdade, isso pouco importa), a chuva emerge na estrutura do texto para além de sua dimensão

* Doutorando em Filosofia UFRJ.

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puramente factual, para tornar-se um princípio ontológico ao redor do qual toda a escritura irá orbitar. Contudo, antes de prosseguirmos com o tema da chuva, nos perguntamos aqui, qual a preocupação que orienta Althusser ao abordar tal questão?

A princípio, a recorrência à chuva nos parece um desvio com relação às preocupações internas ao pensamento althusseriano dos anos 70, que podemos resumir sinteticamente como uma reversão do hegelianismo interno ao marxismo do século XX, operando fundamentalmente a crítica das categorias de sujeito e fins mistificados pela dialética hegeliana – propondo como ferramenta de reversão da dialética um “desvio” via outros operadores materialistas (ALTHUSSER 3, p.67). A partir deste ponto, onde o “desvio” é proposto, Althusser reelabora seu terreno de operação conceitual, sendo que o resultado dessa tarefa nos parece atingir seu clímax em dois textos publicados postumamente: Machiavel et nous (1972-1986) e Le courant souterrain (1982). Apesar do problema da chuva não ser colocado no texto dedicado a Maquiavel, cremos que exista na relação entre estes dois ensaios o espaço para uma reflexão produtiva para pensarmos uma teoria do acontecimento assentada sobre uma ontologia materialista. Antes de propormos esta leitura, voltemos à chuva tal como é abordada no texto Le courant souterrain.

Com relação ao problema da chuva, apesar do tom casual da abertura do ensaio, um feixe complexo de problemas se instaura logo em seus primeiros parágrafos. A recorrência ao tema da chuva é rapidamente interligada a uma reflexão que está posta nos primórdios da filosofia que chamamos de “materialista”1: a tese epicureana da chuva de átomos. Tese esta reelaborada, alguns séculos depois de Epicuro, por Lucrécio em sua teoria do clinamen (o desvio original que daria origem ao encontro primordial, que faria as séries paralelas da chuva de átomos convergirem produzindo o mundo). O resgate efetuado por Althusser das teses de

Epicuro e Lucrécio visa afirmar o problema da chuva de átomos e do desvio infinitesimal (clinamen) como os princípios constituintes de uma filosofia materialista. Uma ontologia da chuva – um materialismo da chuva – que afirma o desvio originário como constituinte do Encontro que afirma o mundo como um fato consumado, negando, portanto, qualquer causa originária ou teleologia (ALTHUSSER 1, p.542). Na origem, há o vazio de sentido (chuva de átomos), onde o primeiro desvio produz o primeiro encontro, que ao durar, produz uma lógica turbilhonaria e relacional (o fluxo dos encontros) contra qualquer primado do sentido, da causa, da razão e dos fins (ALTHUSSER 1, p.541). Do nada e do vazio de sentido da chuva de átomos o desvio produz um encontro, e a duração deste encontro (o que Althusser chama de “pega”), produz a base ontológica para que o mundo seja uma relação complexa de encontros que duram (ou não), sucedendo-se infinitamente no tempo. É desta base ontológica epicureana/lucreciana que o filósofo francês irá, num primeiro momento, estabelecer genealogicamente o princípio do que ele chama de um materialismo do encontro.

A afirmação do primado do encontro numa ontologia materialista emerge em seu segundo momento, nesta genealogia proposta por Althusser, através da figura de Maquiavel (ALTHUSSER 1, p.543). Para o filósofo, o secretário florentino pensa o materialismo do encontro através da política, ou seja, parte de uma complexa lógica relacional para poder pensar a produção de um “fato” em política - um acontecimento político (ALTHUSSER 1, p.548). Sabemos que Maquiavel não conta com um suporte ontológico em sua obra, e que muito menos há no interior de seu pensamento alguma referência direta a esta ontologia epicureana/lucreciana resgatada no texto de Le courant souterrain. Mas, o que importa para Althusser não é a filiação genética de Maquiavel com relação a Epicuro e Lucrécio, mas a semelhança do topos estrutural-relacional de funcionamento entre o pensamento maquiaveliano e epicureano/lucreciano (ALTHUSSER 1, p.546)2.

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Para Althusser, a ontologia relacional dos encontros opera subterraneamente no pensamento político de Maquiavel. Enquanto na superfície do pensamento maquiaveliano só vemos os dados imediatos de uma realidade política (efeitos, acontecimentos políticos), o filósofo marxista percebe nas entranhas das reflexões do secretário florentino um funcionamento profundamente relacional. Assim, a obra de Maquiavel não edificaria em si mesma uma ontologia relacional, mas colocaria um dispositivo de reflexão relacional e aleatório a serviço de um objetivo específico, ou melhor, em função da realização de uma tarefa política: a unidade nacional italiana. Neste sentido, Maquiavel intenta em sua obra estabelecer as condições da produção de um “fato” político que rompe com as condições históricas dadas, compondo em seu pensamento um tecido conjuntural que “agregue” os elementos aleatórios (espalhados na realidade da Itália renascentista) e que permitam constituir o Encontro que produza o estado nacional italiano. Não é apenas constituir este encontro (produzir este fato político, este acontecimento), que preocupa o pensador florentino, mas também conferir alguma durabilidade intrínseca ao mesmo – dito de outra maneira, fazer com que ele “pegue”. Althusser nos explicita da seguinte maneira como lê o pensamento político de Maquiavel:

Seu projeto é conhecido: pensar, nas condições impossíveis da Itália do séc. XVI, as condições da constituição de um Estado nacional italiano. Todas as circunstâncias eram favoráveis para imitar a França ou a Espanha, mas não tinham ligação entre si: um povo dividido mas ardente, a fragmentação da Itália em pequenos Estados perimidos e condenados pela história, a revolta generalizada mas desordenada de todo um mundo contra a ocupação e a pilhagem estrangeira, além de uma profunda e latente aspiração popular pela unidade, da qual encontramos testemunho em todas as grandes obras da época (...). Em

suma, um país atomizado, do qual cada átomo cai em queda livre sem encontrar seu vizinho. É necessário criar as condições de um desvio e, portanto, de um encontro, para que “pegue” a unidade italiana (ALTHUSSER 1, p.543-44 / 12 – Grifos meus).3

Produzir um desvio que provoque o encontro dos pequenos estados italianos atomizados, que tal como na chuva epicureana, caem em queda livre sem se encontrarem: essa é a tarefa do pensamento maquiaveliano para Althusser. Neste sentido, poderíamos nos arriscar a dizer que a leitura althusseriana incorre em interpretar a obra de Maquiavel como uma tentativa de estruturar um desvio aleatório que produza, através de um encontro de séries de acontecimentos heterogêneos, um novo acontecimento político. Portanto, o aparecimento da filosofia política do pensador florentino em Le courant souterrain nos parece uma tentativa de estruturar, por meio de uma operação reflexiva que passa pela obra de Maquiavel, uma ontologia do acontecimento em política. Desta maneira, Althusser percebe a ontologia relacional emergindo indiretamente no texto maquiaveliano:

É no vazio político que se deve realizar o encontro e que deve “pegar” a unidade nacional. Mas este vazio político é, em princípio, um vazio filosófico. Não se encontra nenhuma Causa que preceda seus efeitos, nenhum Príncipe de moral ou de teologia (como em toda a tradição política aristotélica: os bons e os maus regimes, a decadência dos bons em maus); não se raciocina dentro da Necessidade do fato consumado, mas na contingência do fato a ser consumado. Como no mundo de Epicuro, todos os elementos já estão aí e além, prontos para chover (...), mas eles não existem, são só abstratos, até que a unidade de um mundo os tenha reunido no Encontro que constituirá sua existência (ALTHUSSER 1, p.546 / 14 – Grifos meus).

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As nuvens estão prenhas, o horizonte escurece - mas o que falta para chover? Posto em outros termos, os “elementos afins” que podem concorrer para o Encontro capaz de produzir a unidade nacional italiana estão dispostos no espaço histórico do século XVI, mas por que este acontecimento político não ocorre? É essa angústia que perpassa a reflexão política maquiaveliana: os elementos constituintes do acontecimento político que o pensador florentino almeja construir estão aí, no mundo, espalhados aleatoriamente; contudo, falta algo que os reúna, que promova seu encontro e constitua sua existência. É em busca do lugar onde se opera o desvio (da própria estrutura do desvio), que o pensador florentino procurara incessantemente reunir todas estas séries paralelas de elementos espalhados, pensando o encontro em suas conseqüências materiais mais radicais, no limite do impossível (ALTHUSSER 2, p.62 e 105). Para Althusser tal situação é, em Maquiavel, pensar a conjuntura:

Para que um ser seja (um corpo, um animal, um homem, um Estado ou um Príncipe), é necessário que tenha havido encontro, no pretérito perfeito. Para ficarmos somente em Maquiavel, é necessário que tenha ocorrido encontro (entre affinissables), como, por exemplo, um tal indivíduo e uma tal conjuntura, ou Fortuna � pois a conjuntura é ela mesma junção, conjunção, encontro fixado, embora movente, que já teve lugar, e que reenvia por sua vez ao infinito suas causas antecedentes, assim como reenvia ao infinito, por outra parte, o resultado [da] série de causas antecedentes, que é um indivíduo determinado (ALTHUSSER 1, p.565-66/ 28 – Grifos meus).

A percepção acerca da presença de uma ontologia relacional em Maquiavel nos soa estranha num primeiro momento, e não encontra lugar em nossas velhas cartilhas e resenhas filosóficas de como se deve ler O Príncipe.

O ponto de partida para tal reflexão está elaborado, sobretudo, num ensaio de Althusser publicado postumamente: Machiavel et Nous. Neste ensaio opera-se toda uma reviravolta na perspectiva clássica de como se efetiva a leitura de O Príncipe: desconstrói-se todo a velha “receita de bolo” que lê no opúsculo o princípio de toda a ciência política moderna para, ao invés disto, analisar a obra como um Manifesto Político - estruturalmente semelhante à forma do manifesto paradigmático de Marx e Engels (ALTHUSSER 2, p.54). Não nos cabe aqui discutir a sofisticada elaboração desta perspectiva, mas o que importa é frisar que tal leitura incorre num deslocamento do topos ocupado pelo príncipe (tomado enquanto indivíduo) no interior da obra. A subjetividade do príncipe (sujeito-príncipe) é desconstruída através de uma elegante inversão de pontos de vista, estruturada pela análise de diversos deslocamentos de perspectiva operados no interior da própria obra de Maquiavel (ALTHUSSER 2, p.66-76):

Maquiavel se coloca no ponto de vista do povo, mas, este Príncipe ao qual ele designa a missão de unificar a Itália, deve tornar-se um Príncipe popular – ele não é em si mesmo o povo. Da mesma maneira, o povo não é conclamado a tornar-se Príncipe. Há aqui uma dualidade irredutível entre o lugar do ponto de vista político e o lugar da força e da prática política; entre o “sujeito” do ponto de vista político, o povo, e o “sujeito” da prática política, o Príncipe. Esta dualidade, esta irredutibilidade, afeta ao Príncipe e ao povo. Estando o Príncipe definido única e exclusivamente pela função que deverá cumprir, ou seja, pelo vazio histórico que deverá preencher, ele é em si mesmo uma forma de vazio, um puro possível-impossível aleatório: nenhum pertencimento de classe irá dispô-lo a empreender sua tarefa histórica, nenhum vínculo social o une ao povo que deverá unificar em nação. Tudo está entregue a sua virtú, ou seja, as condições individuais de seu sucesso. Quanto ao povo, que está à espera deste Príncipe impossível que irá transformá-

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lo em nação – este povo a partir do qual Maquiavel irá definir toda a política do Príncipe – Maquiavel nada lhe exige, nem ao menos lhe sugere que se constitua em povo, que se transforme em povo; nem ao menos o aconselha a tornar-se uma força política. É fato, que veremos Maquiavel distinguir os senhores feudais – aqueles que não trabalham e apenas regozijam-se em oprimir – dos homens do povo que trabalham a terra, a lã ou o ferro, como daqueles que comerciam e especulam. Mas, este povo trabalhador esta começando a se dividir: e nada nos indica que Maquiavel tentou algo para superar esta divisão. A história deve ser feita pelo Príncipe a partir do ponto de vista do povo, mas, o povo ainda não é concebido como o “sujeito” da história (ALTHUSSER 2, p.70. Tradução minha, grifos meus).

Com a desconstrução de que a perspectiva subjetiva do governante é norteadora da prática política buscada em O Príncipe (lugar comum das leituras que compreendem Maquiavel como o fundador da ciência política e como pensador do estado moderno), Althusser compreende o “príncipe” não mais como uma subjetividade que empreende um programa político específico, mas como o lugar de um encontro complexo e como uma força política que produz um “fato” (ALTHUSSER 2, p.55). Tal leitura incorre em desconstruir a perspectiva de que a produção de um acontecimento seja tributária de um Sujeito que orienta a produção da história, para perceber a produção própria da história como uma trama complexa de encontros, cada um dos quais pode “pegar” ou não, pode ser breve ou duradouro, mas sempre sendo provisório (MORFINO 6, p.96). A complexidade de cada encontro não pode ser reduzida a um sujeito operador dado (ou então, às singularidades das partes envolvidas numa relação), mas é tomada como algo que se produz “entre” os termos da relação, sendo que este “entre” próprio de cada relação, é o que constitui a realidade intrínseca à singularidade complexa de cada encontro.

A leitura althusseriana de Maquiavel visa, portanto, perceber a produção política dos fatos fora de uma filosofia da história, deslocando o terreno acontecimental para uma complexidade relacional que não pressupõe como dado o sentido da produção da história. Trata-se, assim, da confrontação direta de um “materialismo aleatório” contra um “materialismo dialético” que, travestido de um idealismo racionalista, recoloca em seu interior todo o problema da necessidade e da teleologia (ALTHUSSER 1, p.539-40) . Tal posição fica clara em Machiavel et nous a partir do investimento teórico por parte de Althusser em ler O Príncipe como um manifesto político. Se ali parece estar presente a inspiração gramsciana de ler o opúsculo maquiaveliano como um manifesto político, se encontra co-presente a tal inspiração uma recusa da teoria do partido como príncipe moderno (MORFINO 6, p.93)4.

Gramsci edifica a teoria do partido como príncipe moderno a partir de uma reflexão crítica da leitura de O Príncipe. Tal crítica de Gramsci a Maquiavel incide sobre a utopia interna a O Príncipe de se conclamar um sujeito inexistente e, portanto, incapaz, de dar concretude ao projeto político de unificação da Itália. Dito de outra forma, o fracasso desta obra seria conclamar um sujeito inexistente historicamente para que este expressasse o desejo popular/coletivo de unidade pela criação de um novo estado (o estado nacional popular italiano - o principado novo). Contudo, para Gramsci o partido surge como príncipe moderno ao ser capaz, justamente, de operar aquilo que a utopia maquiaveliana do Príncipe Novo não fora capaz de concretizar:

O moderno príncipe, o mito príncipe não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto, só pode ser um organismo; um elemento complexo de sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Este organismo já

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está dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais (GRAMSCI 5, p.16 – Grifos meus).

Quando Althusser lê O Príncipe equiparando-o ao modelo do Manisfesto Comunista de Marx e Engels, o que o filósofo francês objetiva criticar é a idéia de que exista um elemento “dado historicamente” capaz de efetivar a transformação de uma realidade política presente em outra distinta (seja ela a unificação da Itália renascentista, ou a passagem revolucionária do capitalismo ao comunismo): a tese principal é a de que não existe uma necessidade histórica, ou uma razão transcendente, que se concretize como um sujeito que faz a história - seja ele o Príncipe, seja o Partido Comunista. A crítica a um Sujeito (individual ou coletivo) que transforma a história, não é uma apologia a imobilidade política ou uma recusa à possibilidade de se transformar a história; antes disto, é uma afirmação de que apenas uma relação de forças complexa é capaz de transformar a história e de que não existem condições dadas para estruturar esta transformação (ALTHUSSER 2, p.62-63). A questão fundamental é a recusa a qualquer teoria que afirme a prática política a partir de uma filosofia da história, ou seja, que sonhe com a pretensão de que seja possível a partir das compreensões de leis internas à história dar conta da totalidade constitutiva da realidade, e daí, afirmar antecipada e positivamente seu fim último (ALTHUSSER 4, p.285). Esta profunda recusa à teleologia é a um só momento um resgate da dignidade ontológica dos encontros como produtores dos acontecimentos, das relações como constituintes de uma realidade complexa e a negação de qualquer finalidade que orienta a produção acontecimental da história.

Esse combate a teleologia e a idéia de um sujeito da história percorre tanto a ontologia apresentada em Le courant souterrain, como

a estrutura de Machiavel et Nous – antes de tudo, é necessário dizer que o pensamento maquiaveliano que surge na Corrente subterrânea é aquele desenvolvido em Machiavel et Nous. Se num primeiro momento podemos ler o texto de Le courant souterrain apenas como uma genealogia que funda um materialismo aleatório, é preciso que nos lembremos que a preocupação do texto não é apenas efetuar uma reflexão puramente ontológica da produção dos encontros ou dos acontecimentos. Não se trata apenas de afirmar a ontologia de um materialismo aleatório, mas de pensarmos, assim como Maquiavel, o materialismo aleatório em política. A recusa de uma filosofia da história (ou seja, de uma leitura teleológica da produção dos acontecimentos) e a afirmação do acontecimento como produto de encontros complexos e aleatórios, antes de ser apenas uma tese filosófica é, também, uma tese política. Sendo assim, é importante que ao pensarmos a produção filosófica do último Althusser, não nos equivoquemos em estabelecer uma ruptura política com relação ao seu pensamento dos anos 70, para afirmarmos puramente uma ontologia do encontro, um materialismo aleatório ou uma filosofia do acontecimento (MORFINO 6, p.81). Sem dúvida, existe, em sua última obra, um deslocamento conceitual e ontológico mas não político. Da mesma maneira que nos anos 70, o Althusser de Machiavel et Nous e de Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre é, paradoxalmente, um filósofo comunista que não cessou de desconstruir o comunismo (em sua forma marxiana) como algo imaginário, como triplo mito da Origem, do Sujeito e do Fim” (TOSEL 7, p.39) .

Se tomarmos a ontologia do encontro proposta pelo materialismo aleatório como um primado da relação sobre seus termos, entendemos que as partes envolvidas numa relação só podem ser compreendidas na e pela própria relação, assim como os produtos de tal relação (fatos ou acontecimentos) não podem ser reduzidos aos seus componentes e nem a uma lógica causal e linear de produção (ALTHUSSER 1, p.565-567).

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Contudo, se levarmos em conta a ligação entre a política do primeiro Althusser e esta ontologia proposta em seus últimos escritos, podemos ver que a tese do primado do encontro sobre seus termos está presente na filosofia althusseriana desde os anos 70:

A tese do primado da relação sobre os elementos caracteriza os escritos do primeiro Althusser. Neste sentido, é célebre a posição tomada na Réponse à John Lewis na qual, em oposição a concepção humanista segundo a qual o homem faria a história transcendendo a história precedente, Althusser afirma que 1) apenas as massas fazem a história 2) que a luta de classes é o motor da história. Todavia, as duas teses não estão sobre o mesmo plano, porque a primeira só pode ser entendida corretamente se subordinada à segunda: “Isto significa que o poder revolucionário das massas não é tão potente em função da luta de classes”. Em outras palavras, não é pensável a existência das classes separadamente e anteriormente à luta: “Se deve partir, portanto, da luta de classes para se compreender a natureza e a existência das classes. È preciso colocar a luta de classes em primeiro lugar”. E ao longo de poucas linhas conclui: “Primado absoluto da luta de classes” (MORFINO 6, p.82. Minha tradução).

As conseqüências políticas do primado do encontro sobre seus

termos dá uma nova tonalidade à luta de classes, que desloca-a da idéia de um sujeito constituinte da história (O Homem), para a concepção de que a luta de classes constitui o processo de produção da história na e pela própria luta, sendo seus produtos (fatos ou acontecimentos) irredutíveis aos termos da relação, sendo entendidos apenas na e pela relação. Tal ontologia, ao descolar o processo de produção da história e da política das amarras de um Sujeito, lança-o no seio dos conflitos de classes e de

sua relação imediata de produção dos acontecimentos: assim, assume-se integralmente o presente como vazio para o futuro, afirmando a luta política como o único terreno de uma práxis constitutiva do futuro (ALTHUSSER 2, p.62). É nesses termos que Althusser, ainda nos anos 70, irá propor o marxismo como uma teoria finita em oposição a uma filosofia da história:

Eu creio que a teoria marxista é “finita”, limitada: que ela é limitada à análise do modo de produção capitalista, e de sua tendência contraditória, que abre a possibilidade da passagem para a abolição do capitalismo e sua substituição por “outra coisa”, que se delineia já “como um vazio” e positivamente, na sociedade capitalista. Dizer que a teoria marxista é “finita” significa sustentar a idéia essencial de que a teoria marxista é totalmente distinta de uma filosofia da história, que pretenda “englobar” todo o devir da humanidade pensando-o efetivamente, e que seria, portanto, capaz de definir, antecipadamente e de modo positivo, o seu fim: o comunismo. A teoria marxista (se se deixa de lado a tentação de uma filosofia da história, à qual o próprio Marx às vezes cedeu, e que dominou de modo esmagador a Segunda Internacional e o período staliniano) está inscrita na fase atual existente, e é limitada a ela: a fase da exploração capitalista. Tudo que ela pode dizer do futuro é o prolongamento alusivo e em negativo da possibilidade objetiva de uma tendência atual, a tendência ao comunismo, que pode ser observada em toda uma série de fenômenos da sociedade capitalista (da socialização da produção às formas sociais “intersticiais”). É preciso observar que é a partir da sociedade atual que pode ser pensada a transição (ditadura do proletariado, sob a condição de não se desvirtuar instrumentalmente esta expressão) e a extinção ulterior do Estado. Tudo o que se diz sobre a transição só pode ser uma indicação induzida por uma tendência atual que, como toda tendência em Marx, é contraposta a outras

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tendências e só pode se realizar por meio de uma luta política. Porém, esta realidade não pode ser prevista já na sua forma positiva determinada: é apenas no curso da luta que as formas positivas podem aparecer à luz do dia, se descobrir, se tornar realidade (ALTHUSSER 4, p. 285-286 / 65 – Grifos meus).5

A afirmação de uma lógica relacional e aleatória do acontecimento (subordinada à tese político-filosófica do primeiro Althusser que funda o primado do encontro sobre seus termos: afirmação do primado absoluto da luta de classes) incide, no campo político, em uma recuperação da dignidade da práxis e da experiência humana como produtiva do futuro para além de qualquer teleologia mistificadora. A desconstrução de uma perspectiva teleológica do pensamento marxiano no fim de Le courant souterrain (ALTHUSSER 1, p.569-576), e a tentativa de se estabelecer uma leitura que se alicerce a partir do primado do encontro sobre seus termos, nos parece seguir na mesma direção que já era apontada pelo filósofo marxista desde os anos 70. Em Le marxisme comme théorie “finie”(1978) já vemos a aplicação de toda uma lógica de análise da política, do capitalismo e da luta de classes, perpassada pelos elementos constituintes do pensamento do último Althusser. Ali a recusa do marxismo como uma filosofia da história já se alicerçava numa concepção aleatória dos encontros, preocupada com a produção de um acontecimento a partir da “imediaticidade” das relações, das lutas e alianças, das séries complexas de encontros que produzem a realidade, sendo que “esta realidade não pode ser prevista já na sua forma positiva determinada: é apenas no curso da luta que as formas positivas podem aparecer à luz do dia, se descobrir, se tornar realidade” (ALTHUSSER 4, 286 / 65). Conceber o marxismo como teoria finita, e, portanto, alicerçada na aleatoriedade dos encontros, incorre em deslocar o terreno da práxis de sua subordinação a uma teoria fechada (que enclausura

a produção dos acontecimentos numa lógica teleológica, submetida a uma finalidade circunscrita desde sempre na história) para afirmar a práxis como terreno único de produção dos acontecimentos:

Conseqüentemente, a idéia de que a teoria marxista é “finita” exclui totalmente a idéia de que ela seja uma teoria “fechada”. Fechada é a filosofia da história, na qual está antecipadamente contido todo o curso da história. Somente uma teoria “finita” pode ser realmente “aberta” às tendências contraditórias que descobre na sociedade capitalista, e aberta ao seu devir aleatório, aberta às imprevisíveis “surpresas” que sempre marcaram a história do movimento operário; aberta, portanto atenta, capaz de levar a sério e assumir em tempo a incorrigível imaginação da história (ALTHUSSER 4, p.286 / 65 – Grifos meus).

A recusa a um Marx teleológico é proposta a partir de uma função teórica fundamental, que é exercida pelo lugar que Maquiavel ocupa na genealogia do materialismo aleatório: o de pensador do materialismo do encontro pela política. As reflexões do secretário florentino põem a ontologia relacional do encontro a serviço de um objetivo político específico - a construção de um desvio potente, capaz de agregar elementos dispersos no presente para concretizá-los num acontecimento político inovador. Contudo, a produção deste acontecimento não está subordinada a um funcionamento teleológico da história, que produz as condições dadas e objetivas para a sua concreção; antes disso, parte-se da ausência (do vazio) de qualquer sentido que produza o encontro entre as tendências dispersas (cada qual com sua história, cada qual independente uma da outra no que se refere ao complexo de relações que a constitui) para se pensar a força política capaz de agregar estas tendências. Neste sentido, longe de ser um utópico, Maquiavel é um pensador do

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acontecimento sob a aleatoriedade que lhe é própria, pensando que a instauração de um acontecimento que “rompa” com a forma política atual só pode ser efetivado a partir de uma nova práxis e de uma nova forma de organização das forças políticas, que só pode dar-se a partir de uma conjuntura material específica (ALTHUSSER 2 , 134-160).

se a ontologia apresentada em Le courant souterrain preocupa-se em estabelecer genealogicamente uma ontologia do materialismo aleatório, vemos que esta preocupação ganha um matiz político com a entrada de Maquiavel como filósofo do materialismo do encontro. A inspiração que empurra Allthusser em direção a uma ontologia do encontro é a necessidade de fugir aos modelos teleológicos de produção de um fato (acontecimento): negar uma filosofia da história e afirmar o marxismo como uma teoria finita é, no que se refere à política, recusar as “receitas de bolo” que o marxismo, em suas concepções mais dogmáticas e ortodoxas, extrai de um determinado feixe de leituras teóricas para nortear sua prática política (ALTHUSSER 4, 288-92). Retirando a “ordem” dos fatos de uma leitura teleológica, Althusser objetiva produzir uma perspectiva não teleológica da prática política: centrada na práxis sobre a conjuntura (luta de classes), na tentativa de produzir um desvio (que não está dado pelos elementos aleatórios e descasados em séries heterogêneas); ou seja, uma nova força e prática política capazes de gerar um novo fato, de produzir “pega”, de efetivar um encontro durável – enfim, de produzir uma diferença acontecimental em política (desvio), uma transformação que supere as lógicas sedimentadas pelas disjunções seriais reproduzidas no seio do mundo contemporâneo. Desta maneira, a proposta da leitura de uma teoria do acontecimento na filosofia althusseriana não nos parece um “delírio filosófico” se levarmos em conta as seguintes questões:

1) A relação entre as questões políticas do Althusser dos anos 70 e de sua obra póstuma nos possibilita estabelecer uma ligação entre a

afirmação do primado do encontro sobre seus elementos (presente em Le courant souterrain e Machiavel et Nous) no que diz respeito a afirmação do primado da luta de classes.

2) Perceber que na afirmação do primado absoluto da luta de classes repousa uma profunda crítica a teleologia como produtora dos fatos (acontecimentos) e norteadora das práticas (práxis) que orientam as lutas políticas. A crítica à teleologia e a uma filosofia da história – elementos que tornam a teoria marxista “fechada” –, incorrem na tentativa de transformar a teoria marxista numa teoria aberta, ou seja, capaz de radicalizar a concepção da práxis transformadora da luta de classes como espaço “absolutamente presente” onde se produzem os acontecimentos (vazio para o futuro).

3) O elogio a Maquiavel como pensador do materialismo aleatório através da política coloca a questão fundamental de se entender o materialismo do encontro para além de uma especulação conceitual-abstrata acerca dos acontecimentos; antes, põe a prática da política no centro das preocupações ontológicas althusserianas. Contudo, cremos que só é possível compreender a função teórica de Maquiavel (em sua máxima intensidade) na ontologia althusseriana (tal como proposta em Le courant souterrain) nos apropriando da interpretação proposta pelo filósofo marxista em Machiavel et Nous.

Resta-nos, ainda, um último ponto que contribui para justificar o caminho de se buscar em Althusser uma teoria do acontecimento. A negação de uma leitura teleológica de Marx no seio da filosofia althusseriana se conduz, como já colocamos antes, por uma questão política. Essa discussão política orbita ao redor de um acontecimento que norteia toda a construção da práxis política marxista: o comunismo. Ligar as preocupações políticas de Althusser nos anos 70 às de sua produção filosófica dos anos 80 incorre em não podermos nos desviar desta questão. Contudo, pela forma como apresentamos o materialismo aleatório ao

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longo deste texto, cremos que nosso leitor não confundirá o problema que Althusser se coloca ao pensar a “produção do comunismo”, com as fórmulas clássicas pelas quais o marxismo apresentou esta questão política. A crítica althusseriana a um pensamento teleológico que orienta a práxis política e a produção da história, incide, fundamentalmente, sobre a crítica de uma imagem estereotipada do comunismo, ou da utopia do comunismo como o fim da história – pensando, por outro lado, aquilo que poderíamos chamar de “comunismo”, como a análise (no seio da realidade capitalista) de uma “tendência contraditória, que abre a possibilidade da passagem para a abolição do capitalismo e sua substituição por “outra coisa”, que se delineia já “como um vazio” e positivamente na sociedade capitalista” (ALTHUSSER 4, p.285). Neste sentido, cremos que o problema do “comunismo” compreendido enquanto “acontecimento”, estruturado pela perspectiva ontológica do materialismo aleatório, é um ponto importante para permitir-nos ligar a produção teórica do filósofo marxista dos anos 80 às preocupações políticas internas a sua primeira obra:

Pode parecer gratuito nos deixarmos levar por esses jogos teóricos. No entanto, a experiência demonstra que a representação do comunismo que os homens — e especialmente os comunistas — fazem, por mais vaga que seja, não é estranha ao seu modo de conceber a sociedade atual e as suas lutas imediatas e futuras. A imagem do comunismo não é inocente: ela pode nutrir ilusões messiânicas que garantiriam as formas e o futuro das ações presentes, desviá-las do materialismo prático da “análise concreta da situação concreta”, alimentar a idéia vazia de “universalidade” — que se encontra em algumas expressões equívocas similares, como o “momento geral”, no qual uma certa “comunidade” de interesses gerais será satisfeita, como se fora a antecipação daquela que

poderá ser um dia a universalidade do “pacto social” em uma “sociedade regulada”. Esta imagem alimenta, enfim, a vida (ou a sobrevivência) de conceitos dúbios (...). Para decifrar o enigma é necessário retornar à imagem que Marx fazia do comunismo e submeter esta imagem problemática a uma crítica materialista. É através desta crítica que se pode perceber o que ainda resta em Marx de uma inspiração idealista do Sentido da história. teórica e politicamente, vale a pena fazê-lo (ALTHUSSER 4, 292 / 72 – Grifos meus).

Compreendemos, assim, que a necessidade de se efetivar uma crítica materialista da “imagem” do comunismo feita pelos seguidores de Marx possa alicerçar o ponto comum da elaboração da ontologia do materialismo aleatório composta, simultaneamente, em Le courant souterrain e Machiavel et Nous. Se na ontologia da corrente subterrânea o filósofo marxista se propõe a desconstruir a perspectiva dialética e mistificadora do materialismo histórico (ALTHUSSER 1, p.540), sua última interpretação do pensamento do secretário florentino edifica o mesmo “como o maior filósofo materialista da história” (ALTHUSSER 2, p.161). A imagem de Maquiavel, como filósofo materialista e pensador do materialismo aleatório em política, nos explicita a importância que as reflexões acerca da obra do pensador florentino possuem no interior das reflexões do último Althusser. Na década de 70, o filosofo marxista propunha a necessidade de um desvio na leitura de Marx através de Spinoza para que pudéssemos eliminar o hegelianismo (a dialética e sua teleologia) do marxismo (althussEr 3, p.67). Contudo, no que se refere à história da filosofia, o desvio efetivado por esta operação crítica ocorreu de maneira ainda mais longa do que havia sido proposta: um desvio através de Maquiavel. Em Althusser, Maquiavel não é apenas o pensador do desvio aleatório em política, mas é também por meio das reflexões do secretário florentino que é efetivado o mais longo

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desvio teórico – desvio através do qual é realizada a crítica materialista ao materialismo dialético.

Chove. Ainda hoje, como nos tempos de Maquiavel, as nuvens estão pesadas e escuras, e não sabemos como ou o que falta para chover. Os “elementos afins”, “as tendências virtuais”, que podem concorrer para o Encontro capaz de produzir a superação do capitalismo “por outra coisa” estão dispostos na realidade, mas por que este acontecimento político não ocorre? Talvez seja isso que faz com que Maquiavel ainda nos soe estranhamente familiar e seu pensamento nos pareça insólito (ALTHUSSER 4, p.314): assim como o pensador florentino, precisamos pensar as condições políticas de um desvio produtor de um novo acontecimento. Enquanto não há uma nova práxis sobre a conjuntura, chove.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1.ALTHUSSER, Louis. Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre. In: Écrits philosophiques et politiques. Tome I. Paris: STOCK/ IMEC, 1994. / A corrente subterrânea do materialismo do encontro. In: Crítica Marxista n°20. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005.

2.______. Machiavel et nous. In: Écrits philosophiques et politiques. Tome II. Paris: STOCK/ IMEC, 1995.

3.______.Élément d’autocritique. Paris: Hachete Littérature, 1974.4.______. Le marxisme come théorie “finie” e Solitude de Machiavel (1977). In:

Solitude de Machiavel et autres textes. Paris: PUF, 1998. / O marxismo como teoria “finita”. In: Revista Outubro n°2. São Paulo: Instituto de Estudos Socialistas, 1998.

5.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Vol 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2000.

6.MORFINO, Vittorio. La storia come “revoca permanente dell fato compiuto”: Machiavelli nell’ultimo Althusser. In: Spinoza e Il non contemporaneo. Verona: ombre corte, 2009.

7.TOSEL, André. Les aléas du matérialisme aléatoire dans la dernière philosophie de Louis Althusser . Cahiers Philosophique, nº84 – Septembre, 2000.

MACHIAVELLI oR tHE LoNgESt DEtoUR: HAPPENINg, MEEtINg AND MAtERIALISM IN tHE LASt ALtHUSSER’S PHILoSoPHy

Abstract: This paper intends to outline a reading of a theory of the event in the “last Althusser” based in two texts of capital importance in the group of his phostumous works: Machiavel et nous (1972-1986) e Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre (1982). In the first text, Althusser analyses the thought of the Florentine secretary reflecting about a theory of praxis of the political transformation, while in the second essay, he seeks to undertake the task to build a genealogical stream of materialism where the primacy of the encounter replaces the teleology of dialetic materialism. Based in these writings, we would like to seek a compositive read of these two essays in order to perceive if we can read on the althusserian ontology of the encounter and in the interpretation of Machiavelli’s thought a theory of the event.Keywords: Althusser, Event, Encounter, Machiavelli, materialism

NoTAS

1. Dizemos aqui que o epicurismo está nos primórdios de uma reflexão materialista não apenas por uma questão referente a história da filosofia, mas nos referindo mais propriamente ao fato de que o epicurismo esteve no princípio das reflexões materialistas de Marx – questão muito bem conhecida por Althusser. Ver: MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Tr. Edson Bini e Armandina Venâncio. São Paulo: Global Editora, s.d.2. Cf. ALTHUSSER 1, p.546 : “Poder-se-á dizer que, neste caso, se trata somente de filosofia política, sem enxergar que há ali, ao mesmo tempo, uma filosofia em funcionamento. Filosofia singular, que é um “materialismo do encontro” pensado através da política, e que, enquanto tal, não supõe nada preestabelecido.” Ver também ALTHUSSER 2, p.81.3. Com relação às citações textuais de Le courant souterrain, optamos aqui, por utilizar a tradução para o português de Mónica G. Zoppi Fontana presente na revista Crítica Marxista n°20 -2005. Tal opção se deve não apenas a excelente qualidade da tradução, mas também, para divulgar a mesma – visto que não existe uma tradução brasileira do tomo I dos Écrits philosophiques et politiques. Para que o leitor possa consultar nossas referências textuais nesta tradução brasileira, colocaremos após a página do original em francês a página da tradução brasileira em negrito (Ex: ALTHUSSER 1,

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p 534/12). Tal tradução pode ser acessada através do seguinte endereço eletrônico: www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/critica20-A-althusser.pdf 4. Cf. MORFINO 6: “Althusser parece repetir a interpretação gramsciana de Maquiavel como teórico do Estado nacional. Esta repetição tem na verdade a função precisa de opor-se a filosofia da história, de romper o jogo de espelhos entre príncipe e partido fundado pela teleologia” (Minha tradução). 5. Utilizamos aqui a tradução de Márcio Bilharinho Naves para a Revista Outubro n° 20. Para que o leitor possa consultar nossas referências textuais nesta tradução brasileira, colocaremos após a página do original em francês a página da tradução brasileira em itálico ( Ex: ALTHUSSER 4, p. 285-286 / 65). A tradução em português pode ser acessada na internet pelo seguinte link: www.revistaoutubro.com.br/edicoes/02/out2_05.pdf.

dUAS lEITURAS dO cAPITAlISMO EM MARX*

renan Gonçalves rocha**

Resumo: A compreensão piramidal do sistema capitalista em Marx, isto é, a concepção que estabelece a determinação da base econômica sobre a superestrutura (direito, Estado e ideologias) foi uma formulação bastante difundida pela teoria athusseriana. Não obstante, essa compreensão piramidal do capitalismo negligencia o papel determinante do aparato jurídico-político sobre os processos econômicos. Dessa forma, pretende-se mostrar que na relação entre economia e Estado em Marx há co-determinação, e não uma determinação unidirecional da economia sobre o Estado. Palavras-chave: Althusser, Marx, Estado, economia, determinação, co-determinação.

Há uma análise do capitalismo atribuída a Marx, que estabelece que os processos socioeconômicos determinam de forma unidirecional o aparato jurídico-político. É uma compreensão piramidal do capitalismo, na qual a infraestrutura econômica determina a superestrutura jurídico-política e a ideológica. Tal analise do capitalismo foi atribuída a Marx tanto por teóricos marxistas (como Louis Althusser1), quanto por estudiosos não marxistas (como Norberto Bobbio2).

* Este texto foi apresentado com o título Uma reflexão crítica sobre o edifício social em Althusser. Por considerar que não é propriamente uma crítica ao pensamento de Althusser, mas uma releitura de Marx (partindo, de certa forma, de Althusser) decidimos mudar o título do texto.** Renan Gonçalves Rocha ([email protected]) é mestre em filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG).

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No entanto, ao examinar a obra O Capital, o Estado capitalista (aparato jurídico-político) não aparece apenas e tão-somente como determinado pela economia. Distintamente da leitura de Althusser e Bobbio acerca da relação entre a economia e o Estado capitalista em Marx, este aparece também como determinante da economia.

Vejamos o que Marx diz em O Capital ao analisar os casos do desenvolvimento do capitalismo alemão e francês no período de Jean-Baptiste Colbert, que ocupou um dos cargos mais importantes, o de ministro das finanças, no governo de Luis XIV no século XVII:

O mínimo da soma de valor que deve dispor um possuidor individual de dinheiro ou mercadorias para metamorfosear-se em capitalista varia em diferentes graus de desenvolvimento, é diferente nas diferentes esferas de produção, conforme as condições técnicas específicas de cada uma. Certas esferas de produção exigem já nas primeiras etapas da produção capitalista um mínimo de capital que ainda não se encontra em mãos de indivíduos isolados. Isso leva, em parte, o Estado a subsidiar tais particulares, como na França no tempo de Colbert, e em alguns Estados alemães até a nossa época, em parte à constituição de sociedades como monopólio legal para explorar determinados ramos industriais e comerciais (Marx 6, p. 234).

Essa análise do pensador alemão é importante para explicitar que o desenvolvimento econômico capitalista, desde seu surgimento, utiliza o Estado para que possa tornar-se uma economia ampla, no sentido de expandir para vários setores produtivos. Portanto, Marx contribui para esclarecer que a economia capitalista depende do Estado para existir e se desenvolver, em vários ramos da produção.

Em outro momento de O Capital, a mesma ideia é desenvolvida, porém não mais partindo dos exemplos francês e alemão, mas do exemplo britânico. Explica Marx: “A influência [...] da Inglaterra no mercado mundial, uma influência que, ao que parece, não decorre das leis naturais da produção capitalista, torna necessária a intervenção do Estado, a saber, a proteção daquelas leis da natureza e da razão pelo Estado” (Marx 6, p.142).

Isto é, o desenvolvimento da economia capitalista, que é considerado um desenvolvimento natural por alguns pensadores liberais, não tem a naturalidade que eles proclamam. Sem a intervenção do Estado moderno capitalista, não se poderia universalizar o sistema do capital. Consequentemente, não se poderia falar de capital global, muito menos de mercado mundial, conceitos indispensáveis na compreensão do capitalismo contemporâneo. A expansão capitalista para além das fronteiras nacionais tem como pré-requisito a intervenção do Estado capitalista moderno.

A dinâmica produtiva do capital, como falavam Adam Smith e Marx, é uma produção em escala sempre ampliada (Smith 8, p. 15). Por isso, o sistema capitalista não poderia manter-se como um modelo produtivo reduzido aos limites das fronteiras nacionais. O imperativo capitalista de produzir sempre mais implica a busca de novos mercados, fora dos limites nacionais.

Os limites nacionais, ou melhor, os limites do mercado nacional são insuficientes para que os consumidores comprem toda a produção das unidades produtivas que estão alocadas em uma determinada nação. Por conseguinte, a produção capitalista, com o imperativo de produzir em escalas sempre maiores – uma vez que esta é a possibilidade de obter lucros também sempre ampliados –, recorre à intervenção do Estado capitalista na esfera internacional. Recorrer ao Estado é uma condição indispensável para a continuidade da produção e a reprodução sempre ampliada de mercadorias.

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É o Estado capitalista o responsável pela ampliação de novos mercados para os produtos de unidades produtivas que estão dentro de suas fronteiras. Dessa forma, ele assume a posição não só de interventor para a expansão de novos mercados, mas também de protetor das mercadorias nacionais.

Para Marx, a economia capitalista, desde suas primeiras fases, tem como co-determinante, e base de sua existência, o Estado capitalista. No entanto, não se pode esquecer que o Estado capitalista também tem como co-determinante, e base de sua existência, a economia capitalista. Portanto, a relação entre economia e Estado capitalista em Marx não é, como pensam Althusser e Bobbio, uma questão de determinação unidirecional. A relação entre ambos não é um movimento mecânico, no qual a economia impulsiona o surgimento e o funcionamento do Estado.

A íntima relação entre Estado e economia no capitalismo parece ser mais adequadamente pensada em termos de co-determinação. E, nesse caso, a temporalidade não é a do antes e depois. Para Marx, o que está em questão não é se o Estado moderno é anterior à economia capitalista ou o inverso. Quando se pensa em termos de co-determinação, a simultaneidade está no âmago (temporal) da relação entre Estado e economia.

O Estado moderno não pode, por conseguinte, ser compreendido de maneira simplista, como uma superestrutura determinada pela economia, uma vez que sua ação pertence à própria base material do paradigma produtivo do capital. Isto é, para o filósofo alemão não há economia capitalista sem Estado capitalista, e não há Estado capitalista sem economia capitalista.

Na verdade, o Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital e corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para a expansão e para a extração do trabalho excedente. É isto que caracteriza todas

as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da ordem sociometabólica do capital (Mészáros 7, p.121).

Outro fator importante, quando se abandona a perspectiva do Estado como uma superestrutura, é que Estado e a economia capitalista, como elementos distintos de uma mesma base (a base material do sistema do capital), não só se determinam mutuamente, mas também, como elementos distintos, podem se contradizer,3 que é o que acontece em diversos momentos do processo de desenvolvimento do capitalismo. Um importante fato histórico que demonstra a contradição entre Estado e economia são as legislações fabris inglesas que foram exaustivamente analisadas por Marx em O Capital.

O papel co-determinante do Estado capitalista na formação da economia é explicitado por Marx no processo de acumulação originária do capital. Segundo Marx, uma das características do capitalismo é a necessidade de se ter a “ocupação simultânea de um número relativamente grande de assalariados no mesmo processo de trabalho [...] [Esta] coincide com a existência do próprio capital” (Marx 6, 252). Todavia, para o filósofo alemão a existência desse elevado número de trabalhadores assalariados não é um fato histórico acidental, muito menos surge espontaneamente com o desenvolvimento da economia capitalista. A economia que tem por base o capital dependeu, desde o princípio, de recursos externos a si para poder se consolidar e desenvolver.

No caso da formação dos trabalhadores assalariados foram necessárias as intervenções estatais que determinaram de maneira significativa a criação do proletariado. Tais intervenções, entretanto, só fizeram algum sentido quando já se tinha um grau de desenvolvimento econômico capitalista. De nada adiantaria o Estado intervir para a formação da classe de trabalhadores assalariados, se não houvesse unidades

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produtivas para acomodar pelo menos parte da força de trabalho. Portanto, a intervenção do Estado depende do desenvolvimento econômico e o desenvolvimento econômico, simultaneamente, da intervenção do Estado.

Por exemplo: para a constituição do vasto número de trabalhadores assalariados – base para o desenvolvimento econômico industrial, que é eminentemente capitalista – foi necessária a utilização da violência estatal (violência extraeconômica) que se observa nas legislações inglesas, que impõe a dissolução dos séquitos e a inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho. A dissolução dos séquitos dependeu de um conjunto de fatores, entre eles, as ações diretas do Estado absolutista, que contribuíram para expropriar os camponeses, os quais tinham como único meio de produção e subsistência suas propriedades, transformando-os – uma vez que estavam na condição de despossuídos, salvo de seu próprio corpo – em trabalhadores assalariados.

Como analisa Marx,

o prelúdio do revolucionamento, que criou a base do modo de produção capitalista, ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI. Uma massa de proletários livres como os pássaros foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos feudais [...]. [E] o poder real, ele mesmo um produto do desenvolvimento burguês, [acelerou] violentamente a dissolução desses séquitos [...] (Marx 6, p. 254).

O camponês expropriado – agora não mais na condição de camponês e sim de força de trabalho, com potencial para se tornar trabalhador assalariado – que se recusasse a submeter-se à grande indústria nascente na Inglaterra, já no século XVI, não poderia deixar de ter uma ocupação na produção. Isso porque Henrique VII e Henrique VIII

implementaram legislações com o objetivo de eliminar os desocupados. Dessa forma, os camponeses foram forçados a se submeter ao mercado de trabalho. Como expõe Marx:

Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse proletário livre como os pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo.4 Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos [...] na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. [...] A legislação os tratava como criminosos ‘voluntários’ (Marx 6, pp. 265-266).

Na Inglaterra, tais legislações começaram no reinado de Henrique VII5 e se prolongaram até o século XVIII. No período de 1530, durante o reinado de Henrique VIII, a intervenção do aparelho jurídico-político para formação dos trabalhadores assalariados deu-se da seguinte maneira: todos os “esmoleiros velhos e incapacitados recebem licença para mendigar” (Marx 6, pp. 265-266). No entanto, aqueles que tivessem condições de trabalhar e não o fizessem eram condenados ao “açoitamento e encarceramento” (Marx 6, p. 265) e à execução. Vale dizer que, só no reinado de Henrique VIII, foram assassinadas cerca de 72 mil pessoas por causa dessa legislação6.

Concluindo Marx sobre a intervenção do aparelho jurídico-político para a formação dos trabalhadores assalariados:

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Assim, o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas [...] numa disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura. Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro pólo como pessoas que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem voluntariamente (Marx 6, pp. 265-266).

O que Marx põe em evidência, ao examinar os termos dessas leis, é que a economia, ou o simples advento de uma forma produtiva nova, não é suficiente por si mesma para se consolidar e se desenvolver. Para que se constitua o elevado número de trabalhadores assalariados – necessários ao surgimento e ao desenvolvimento do modelo econômico capitalista – não são determinantes somente os novos desenvolvimentos econômicos industriais. Sem o violento processo político-jurídico – a intervenção do Estado – que obriga os indivíduos à inserção no embrionário mercado de trabalho, o sistema econômico capitalista não poderia chegar a existir.

A análise histórica realizada pelo pensador alemão sobre a constituição da massa de trabalhadores assalariados, principalmente na Inglaterra, com as legislações sanguinárias, permite perceber o quanto a economia capitalista (mesmo em seus momentos incipientes, nos quais ainda não é o modelo econômico predominante), depende da intervenção externa. Com a generalização do modelo produtivo capitalista, ou melhor, com a produção de mercadorias generalizadas por todos os ramos da atividade produtiva, a violência político-jurídica não é o principal método para a subordinação do trabalhador à dinâmica do trabalho assalariado – por mais que ela ainda seja utilizada esporadicamente.

Com o pleno desenvolvimento da economia capitalista, o simples fato de se ter um elevado número de trabalhadores dispostos a ocupar uma vaga no mercado de trabalho já é suficiente para que a economia seja proclamada como de livre iniciativa. Dessa forma, em seu estágio mais avançado o capitalismo não depende tão frequentemente de medidas como as legislações sanguinárias.

Como observa Marx,

a violência extraeconômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, o trabalhador pode ser confiado às ‘leis naturais da produção’, isto é, à sua dependência do capital que se origina das próprias condições de produção, e por elas é garantida e perpetuada (Marx 6, p. 267).

O debate sobre a destruição dos séquitos feudais e a implementação das legislações sanguinárias faz compreender como, para Marx, a economia capitalista é determinada por legislações estatais. Outra dimensão que se visualiza ao explicitar-se essa dinâmica dos primórdios capitalistas é que o capitalismo para o filósofo alemão não é fruto de uma escolha livre dos indivíduos. O capitalismo é resultado de um violento processo de subsunção do trabalho ao capital. Vale dizer também que as relações econômicas capitalistas precisaram do

poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica (Marx 6, p. 276).

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Isso mostra que o Estado para o teórico alemão é determinante para a estruturação, consolidação e permanência continuada do sistema capitalista. Esse papel determinante do Estado impossibilita reduzi-lo conceitualmente a superestrutura, pois suas ações pertencem à própria base do sistema do capital.

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’Etat. In Louis Althusser position. Paris: Editions Sociales. 1968.

2. _____. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiro de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1985.

3. _____. Sobre a reprodução. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: editora Vozes. 1999.

4. BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1992

5. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Maria Helena Barreiro Alves. São Paulo: editora Martins Fontes. 1983.

6. _____. O Capital. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

7. MÉSZÁROS, István. Para além do Capital. Trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo Editorial. 2002.

8. SMITH, Adam. A riqueza das nações. Trad. Alexandre Amaral Rodrigues e Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes. 2003.

tHE two READINgS oF tHE CAPItALISM IN MARX

Abstract: The pyramidal understanding of the capitalist system in Marx, that is to say the conception which establish the design of the determination of the economic base over the superstructure (Rights, State and Ideologies) it was a wording fairly widespread by althusserian theory. Nevertheless, this understanding of pyramid of capitalism negligence the decisive role of the judicial apparatus-political on the economic processes. Thus, the intention is to show that the relationship between

economic and State in Marx there is a co-determination, and not a unidirectional determination of the economy upon the State. Keywords: Althusser, Marx, State, economy, determination, co-determination.

NoTAS

1. Segundo Althusser, em Marx a estrutura do capitalismo é “constituída por níveis ou instâncias, articuladas por uma determinação específica: [a determinação da infraestrutura sobre a superestrutura] a infraestrutura ou base econômica (unidade entre as forças produtivas e as relações de produção), e a superestrutura, que comporta em si dois níveis ou instâncias: o jurídico-político (o direito e o Estado) e o ideológico (as diferentes ideologias, religiosas, morais jurídicas, políticas etc.)” (Althusser 1, p. 74, tradução nossa).

2. Para Noberto Bobbio “Marx considera o Estado como [...] pura e simples superestrutura que reflete o estado das relações sociais determinadas pela base econômica” (Bobbio 4, p. 164). 3. A dialética entre Estado e economia capitalista fica impossibilitada com a concepção althusseriana de Estado capitalista. Para Althusser o Estado moderno é uma instância determinada pela base econômica. Ou seja, o Estado obedece invariavelmente à determinação da ‘base econômica’. Dessa forma, em Althusser, o Estado não se contradiz com a economia.4. Isso demonstra que o surgimento do proletariado, já em seus primeiros momentos, está na condição de excedente de força de trabalho, pois se a manufatura não absorve todos aqueles que estão se tornando a nova classe econômica, isto é, a dos trabalhadores assalariados, o que resta a eles é a desocupação permanente. Essa condição é extremamente desejável para uma indústria que desde o princípio tem por objetivo a redução dos salários dos que conseguiram um posto de trabalho. O fato é que estes que possuem uma ocupação ficam permanentemente ameaçados de perder a ocupação que possuem, e, por isso, sujeitos a diminuir os salários, quando se tem em vista um elevado número de miseráveis que fariam a mesma atividade por um salário inferior. 5. Legislações análogas foram efetivadas na França, no reinado de Luis XVI. Como observa Marx, “na França, [...] em meados do século XVII se estabeleceu um reinado de vagabundos em Paris. Ainda nos primeiros anos de reinado de Luis XVI (ordenança de 13 de julho de 1777) todo homem com boa saúde de 16 a 60 anos, sem meios de existência e sem exercer uma profissão, devia ser mandado às galés. Analogamente o

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estatuto de Carlos V para os Países Baixos, de outubro de 1537, o primeiro edito dos Estados e Cidades da Holanda, de 19 de março de 1614, e o das Províncias Unidas de 25 de julho de 1649 etc.” (Marx 6, pp. 266-267). 6. As legislações de Eduardo VI, ou melhor, em “um estatuto de seu primeiro governo” (Marx 6, pp. 265-266), de 1547, determinava que “se alguém se recusa a trabalhar, deverá ser condenado a se tornar escravo da pessoa que o denunciou como vadio” (Marx 6, pp. 265-266). O denunciante passava, então, a ter o direito de forçar o denunciado “a qualquer trabalho, mesmo o mais repugnante, por meio do açoite e de corrente” (Marx 6, pp. 265-266). Caso o condenado por vagabundagem não cumprisse essas imposições passaria a ser compreendido como um traidor e, por conseguinte, seria “executado como traidor do Estado” (Marx 6, pp. 265-266). No reinado de Elisabeth, no ano de 1572, a intervenção do aparelho jurídico-político no processo de formação do trabalhador assalariado deu-se nos seguintes termos: “esmoleiros sem licença e com mais de 14 anos de idade devem ser duramente açoitados e terão a orelha esquerda marcada a ferro, caso ninguém os queira tomar a serviço por dois anos” (Marx 6, pp. 265-266), e se tal criminoso não realizar sua inserção no mercado de trabalho até os dezoito anos, este deveria “ser executado [...] sem perdão, como traidor do Estado” (Marx 6, pp. 265-266). No período do governo de Jaime I, o aparelho jurídico-político também exerce sua contribuição no processo de formação dos trabalhadores assalariados, estabelecendo que a pessoa que “perambule e mendigue será declarada um malandro e vagabundo” (Marx 6, pp. 265-266). Qualquer pessoa tinha o direito de denunciar esse tipo de crime e os juízes de paz estavam “autorizados a mandar açoitá-los publicamente” (Marx 6, pp. 265-266). Nesse governo, os condenados pelo crime de vagabundagem, na primeira vez, eram “encarcerados por seis meses, na segunda por dois anos” (Marx 6, pp. 265-266). E, além do cárcere, esses prisioneiros deveriam “ser açoitados tantos e tantas vezes quanto os juízes de paz” (Marx 6, pp. 265-266) considerassem adequado para a punição de tal crime.

PRó-AO-cONTRA, vÁcUO E MATERIAlIdAdE dA IdEOlOgIA. ENSAIO SOBRE fRAgMENTOS dE

AlThUSSER E PAScAl1

Antônio herci Ferreira júnior*

Aos moradores da Comunidade Pinheirinho: assujeitados e sujeitos ideológicos.

Resumo: No artigo “A única tradição materialista”, Althusser (2,4,5) apresenta alguns fundamentos de sua teoria da materialidade da ideologia referenciados explicitamente em Pascal: 1) o pró-ao-contra e a condição material da verdade (que pode tomá-la por contrária sem contraditório); 2) a intuição [sic] do vácuo como assunto filosófico (postulação capaz de negar o substrato para a matéria). Caracteriza a produção ideológica como um trabalho humano capaz de incorporar as contradições de classe e impregnar diretamente os aparatos ideológicos e postula a necessidade da formulação de uma doutrina dogmática, para combater numa arena de dogmáticos. Apresenta-se aqui uma das ferramentas centrais de tal teoria: o aparato dos corpos – que também tributa a Pascal – efetivamente uma forma de expressar a materialidade da ideologia. Palavras-chave: aparato dos corpos; transferência; contratransferência; materialismo.

Assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo.

(Pascal 9, §298|103)

* Bacharel em Filosofia pela FFLCH - USP

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Já havia lido devidamente Pascal no cativeiro. (Althusser 5, p.133)

1.

Normalmente os textos sobre filósofos ou sobre as filosofias são produzidos sob a notabilidade e importância de um possível resgate, pois tal ou qual movimento de ideias humanas o incita. Talvez em Althusser o mais notável seja que, periodicamente, precisemos retornar aos seus textos para verificar se está morto mesmo!

O que impressionam não são as tentativas de resgatar Althusser. Mas a quantidade de vezes que de fato, metafórica, material ou abstratamente, afirmou-se e reafirmou-se repetidas vezes – como que para constatar que ocorreu mesmo, como fato consumado – a morte, (ultra)passagem e sepultamento dele, para que se pudesse, afinal, selar tudo com uma generosa pá de cal e uma arrojada certeza de fundamentos e independência de consciência.

No entanto, seus textos continuam tendo uma capacidade peculiar de causar incômodo, pois parecem solapar a base para um possível descolamento crítico da ideologia: não obstante a evidente necessidade de fazer a crítica da ideologia, não se pode criticá-la de dentro, pois a visão do observador, neste caso, já se acha comprometida; mas parece não haver lugar fora dela que permita criticá-la.

“A única tradição materialista” é a rubrica sob a qual está etiquetado um conjunto de textos, que Althusser separou de sua famosa “autobiografia”, organizados sob três subtítulos: “Espinosa”, “Maquiavel” e “Situação política: análise concreta?”.

Foram substituídos por um resumo, na primeira edição francesa de L’avenir dure longtemps (3). E publicados pela revista Lignes (2),

sob a edição de Baudrillard, como um artigo, no qual constam as duas primeiras seções [Espinosa e Maquiavel], tendo sido mantido o nome original do conjunto e a titulação. Existe ainda uma tradução da primeira parte para o inglês (4).

A edição da Lignes foi integralmente traduzida para o espanhol pela revista Youkali (5), edição referenciada neste trabalho pela disponibilidade, mas principalmente pela primorosa e cuidada edição.

O dogmático pode propor um pensamento libertador ou não? Essa é a pergunta de fundo que permeia todo o artigo.

O texto apresenta-se como uma elegia do dogmatismo, defendido a partir da tese de que é inviável imaginar uma resistência ideológica desancorada de suas condições históricas; provocando aqui aquele mal-estar citado quanto à possibilidade de nossas mais altas convicções estarem assentadas em nada mais do que afirmações dogmáticas, pois vez ou outra nos vemos compondo essa paisagem, a confundir-nos a certeza do quadro que vemos com a certeza de que estaremos certos no próximo quadro do pensamento, ainda não ocorrido.

A única forma de ancorar – materialmente – a crítica ou análise sobre as condições históricas é, diz o filósofo, recorrendo a uma categoria por definição supra-histórica, a ideologia, já que esta não tem história e manifesta-se sujeitando (ou assujeitando, como se prefere aqui) mesmo antes do surgimento do sujeito, como termo burguês (Althusser 6, p. 210).

A afirmação da ideologia está, por sua vez, vinculada à produção de um discurso que enfrente o dogmatismo em seu próprio campo, afirmando certezas e construindo uma barreira material, um enfrentamento corpo a corpo pelo espaço “do que é o caso”, afirma citando Wittgenstein [do Tractatus].

Para Althusser o espaço do Logos e o espaço da ideologia são equivalentes: é o espaço do “ser do movimento e da vida” (Althusser 6, p. 210). O dogmatismo é o aparato da razão que pode materializar a certeza do

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logos e incitar a ação correspondente, sem a qual não existe ação ideológica efetiva: através da repetição e reiteração de verdades ideológicas. Tornar o pensamento palavra e desta fazer um enfrentamento de tal forma que não admita o ajuizamento de seu oponente, pois este seria o caso de uma perda factual, mesmo diante de uma vitória teórica.

Althusser (5, p.134s) argumenta que, para vencer dogmáticos implacáveis como Descartes e Kant; Spinoza e Hegel, respectivamente, devem ser convocados para uma arena dogmática. Reconhecendo, solenemente, integrar esse rol de resistência de dogmáticos, bem como a necessidade de combater ideias falsas com ideias verdadeiras. (Althusser 6, p. 200)

Aponta (Althusser 5, 134) em Espinosa uma estranha e positiva contradição: um espírito profundamente dogmático que pode ser também profundamente libertador!

E do que esse dogmatismo nos libera? Das garras da imaginação e da ilusão, travando um combate com outro dogmatismo! Por isso deve ser firme, pois combate a ilusão e o escamoteamento da verdade.

A novidade, entretanto, é que existe a possibilidade de que, nesse combate por palavras e ideias – parte desse processo de libertação – possamos contar com a própria imaginação! A ideologia pode dar consequência material para a imaginação, pois interpela e assujeita historicamente o indivíduo. E faz isso através de um tipo estrito de ação – a ação ideológica – que mobiliza materialmente a certeza cuja verdade não está mais no limite do logos original, pois o extrapolou ao extrapolar sua ideologia.

Althusser parece estar aqui acrescentando algo sutil, mas que muda sensivelmente o caráter que a ideologia adquirira na tradição marxista e funda uma das bases para a sua teoria do aparato dos corpos: o fato de que, além de assujeitados, também somos sujeitos da ideologia, queiramos ou não.

2.

O que me fascinava [em Pascal] era a teoria da justiça e da força, a teoria das relações entre os homens e, sobretudo, a

teoria do aparato do corpo (Althusser 5, p.133).

Segundo afirma Althusser, é fato que elas, as ideologias, são materiais. Não porque existam como objetos no mundo, mas porque se EXPRESSAM e ORGANIZAM materialmente a vida das pessoas. Por outro lado, são materialmente a expressão dos indivíduos em sujeitos históricos, movimento explorado mais profundamente em sua teoria da interpelação (Althusser 6 cap. VI, p. 210). Manifesta-se materialmente: através de hábitos, códigos e linguagens, relações de diversos tipos, que compõem a forma de vida.

Tão grande é a força do costume que, daqueles que a natureza fez apenas homens, se fazem todas as condições dos homens (Pascal 9, § 97|634).

A ideologia, entretanto, não é virtual, ou seja, um logos que pensa a sociedade. A ideologia é material: não apenas organiza, mas valoriza e classifica ordens diferentes de espaços, temporalidades, posses e organização para a produção, inclusive do conhecimento e do significado.

Tal ideologia é imposta através de aparatos.

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, os arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os palácios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário. […]

é mostrar, pelos cabelos, que se tem um criado grave, um perfumista, etc.; pelo ornato, o fio, os passamanes, etc. Ora, não é simples aparato, nem simples arnês, ter vários braços. Quanto mais braços se tem, mais forte se é. Ser elegante é mostrar a própria força (Resp. §§ *82|44 e 316|95).

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Como nos aponta o próprio Pascal, provavelmente sem o saber (mas mantendo a tradição de bastarda às filiações filosóficas) tal aparato não é apenas um aparato. O primeiro é necessário nas formas de significação.

A manifestação ideológica pode operar-se em dois sentidos: pode expressar-se habitualmente da ideologia para o indivíduo, como citado nos casos de interpelação:

Psiu, você aí! (Althusser 6, p. 212).

Mas, se pode convocar indistintamente os indivíduos com argumentos fortes, também sob tais argumentos o indivíduo expressa certezas e convicções:

“É evidente! É mesmo! É mesmo verdade!” (Althusser 6, p. 211)

A individualidade, ainda que assujeitada, também é sujeito ideológico no processo de interpelação. Existe uma convivência entre contrários não contraditórios nesse movimento de interpelação, que permite que Althusser desenvolva a teoria da ação ideológica.

3.

Pascal teria, segundo Althusser (5, p.133), pronunciado a extraordinária [sic] frase: “podemos, sem contradizê-los (aos antigos) afirmar o contrário do que eles diziam! ”. Apresentando, assim, a essência de uma verdadeira teoria da história, pois pode ver que a verdade é dependente e instância2 da vida concreta e, justamente por isso, pode revirar-se, do pró ao contra, afirmando verdades contrárias não contraditórias. Ou seja, é referenciada não em suas possibilidades, mas em suas condições materiais de existência histórica.

[…] Sem contradizê-los: porque as condições de nossas experiências científicas mudaram, e já não são as mesmas que a dos antigos. […] Frase, infinitamente mais profunda que tudo o que os filósofos do século das luzes puderam dizer (no final muito simples, por teleologia) sobre a história (Althusser 5, p.133).

O contrário não contraditório e a verdade instanciada materialmente segundo os limites das condições materiais incorporam a idéia de uma composição complexa de classe, que agregue contrários ideológicos.

Isso é uma decorrência direta do fato de que não se pode postular, materialmente, uma bipartição efetiva entre os que têm e os que não têm ideologias. A unidade de classe deve ser aceita como é: contraditória e guardando traços contraditórios de diversas ideologias e constituindo-se como unidade ideológica no combate dogmático pela ocupação do espaço.

Pascal, de fato, divide as verdades em dois tipos: as demonstráveis e as indemonstráveis. Essa tese é defendida mais tecnicamente em textos que podem ser encontrados na coletânea Opúsculos (8), por exemplo, em “Resposta ao Pde. Noel”, pp. 29s. Toda a seção “Do método das demonstrações geométricas” (pp. 82s) por outro lado tem essa tese das verdades demonstráveis e indemonstráveis como pano de fundo: tenta mesmo desfazer, diante de um público de geômetras, teses consagradas que apontam para a demonstrabilidade de tudo, ou que confundem os campos do demonstrável e não demonstrável.

As demonstráveis são verdades das quais a afirmação de seus contrários geram contradição: este número par é ímpar, por exemplo. As indemonstráveis são as que não são passíveis de demonstração, ou por impossibilidade ou por não ser o caso: as verdades sensíveis, morais ou naturais, por exemplo.

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“O sol nascerá amanhã” não pode ser demonstrado, justamente porque a afirmação de seu contrário, por mais que desafie o bom senso, não é contraditória; “o sol não nascerá amanhã” é uma frase totalmente coerente e compreensível. Ocorre que as verdades mais importantes para a vida humana são da categoria das indemonstráveis. Mas também, por conveniência de algo em nossa própria natureza, são, mesmo que indemonstradas, tomadas como verdades muito certas e seguras: são certezas.

Essa passagem do pró ao contra, em questões que não se pode demonstrar, acontece através da absorção de argumentos e instanciação desses mesmos argumentos ou proposições em escopos mais abrangentes, de tal modo que as antes verdades continuem sendo verdade onde eram, mas o deixem de ser atualmente, sob novas luzes. A não contradição deixa de ser sinal de boa verdade:

A contradição é um mau sinal de verdade: muitas coisas certas são contraditas; muitas coisas falsas ficam sem contradição. Nem a contradição é sinal de mentira, nem a não contradição é sinal de verdade (§384|177).

Além disso, podemos também encontrar em Pascal uma questão sobre materialidade e instanciamento da palavra e seu significado:

Sabem bem, aqueles que possuem o espírito do discernimento, quanta diferença existe entre duas palavras semelhantes, segundo os lugares e as circunstâncias que as acompanham. […] todos os que dizem as mesmas coisas não as possuem da mesma maneira (Pascal 8, p. 111).

Segundo Pascal o pensamento por contradição, no campo da moral, tem uma ação particularmente danosa: quando se chega a um impasse ou, com dirá magnificamente Althusser, “quando chega num

limite”. Pois nem a afirmação nem a negação são contraditórias e tende-se a considerar que estamos diante de verdades incertas. E que tal incerteza pode ser um sinal de fraqueza, falta de movimento ou ação. Casos em que somos instados a considerar equidistantes as posições consideradas e acabamos por nos iludir que todas as ações humanas também o sejam. Nestes casos, as demonstrações podem ser instrumentos de ocultação das relações de dominação.

Os jesuítas não tornaram a verdade incerta, mas tornaram a impiedade certa. A contradição sempre foi deixada para cegar os maus; pois tudo o que choca a verdade ou a caridade é ruim; eis o verdadeiro princípio (§902|962).

“A razão, por mais que grite, não pode valorizar as coisas” (§82|44). Existem certezas que não podem ser demonstradas e princípios tais que, quando tomados são verdadeiros, “mas as conclusões são falsas porque os princípios opostos são também verdadeiros” (§394|619). E justamente aqui é que podemos ver o ÚNICO PONTO forte [sic] dos dogmáticos (se é que têm algum) segundo Pascal:

Que falando de boa fé e sinceramente, não podemos duvidar dos princípios naturais (§434|131).

Mas Pascal, como o sabemos, é antidogmático, chegando mesmo às raias da acusação de cético por isso. Quanto às garras da imaginação, tem um pensamento bastante próprio, pois admite dois sentidos de enganação: dos sentidos para a razão, o tradicionalmente adotado pela filosofia; e da razão para os sentidos, residindo aqui uma particularidade.

Os sentidos, com suas falsas aparências, enganam a razão; e essa mesma fraude que oferecem à razão recebem-na dela, por sua vez (§82|44).

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4. As verdades em Pascal podem passar ao contrário sem contradição,

pois tais verdades são instanciadas em universos mais ou menos amplos de interpretação. Uma primeira afirmação é verdadeira onde está afirmada, mas pode ser negada sem contradizer a sua primeira afirmação onde ela ocorreu, afirmando-a falsa, entretanto, onde ocorre agora. Permitindo assim que se situe a verdade: onde pode ser tomada por verdadeira e onde é falsa; mas principalmente entender as razões dos efeitos que podem cambiá-la de valor, sem cair em contradição. E isso Althusser identificou como traço permanente em si mesmo:

A teoria do hábil e do semi-hábil, a teoria do reconhecimento e do desconhecimento [que] voltaria a encontrar depois em minha própria teoria da ideologia (Althusser 5, p.133).

Parece existir uma gradação na compreensão do que está em jogo, de forma que a primeira negação de uma verdade tem um escopo maior do que a verdade que nega e terá um escopo menor do que a que a negará.

Razão dos efeitos — Graduação. O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hábeis as honram, não pelo pensamento do povo, mas pelo pensamento oculto. Os devotos, que têm mais zelo do que ciência, as desprezam, malgrado essa consideração que as faz honrar pelos hábeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes dá. Mas os cristãos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim, vão-se sucedendo as opiniões do pró ao contra, segundo a luz que se tem (§337|90).

Em cada hábito ou afirmação habitual de verdade, por outro lado, podemos postular relações que nos remetem a um aparato do corpo que,

de forma material instancia valores também em escopos aninhados. Um preceito moral, dessa forma, está sempre acompanhado da força de sua aplicação, ainda que não reconhecível essa força em um outro escopo. Um valor tem, oculto, um aparato que fixa socialmente seu valor.

Razão dos efeitos — Esta é boa: não querem que eu honre um homem vestido de brocado e acompanhado de sete ou oito lacaios! Como! Se o não saudasse, mandava bater-me. Esse hábito é uma força; não acontece o mesmo com um cavalo bem arreado em relação a outro? (§315|89).

5.

Na genealogia do materialismo, Pascal é destacado pela intuição [sic] de ter incorporado a discussão do vazio como assunto filosófico. Nesta tradição estariam juntos, numa linhagem bastante original: Pascal, Lênin, Freud e Wittgenstein.

Podemos compreender tais autores como autores que – cada um ao seu modo – se insurgem contra o fundamento estabelecido na universalidade, acabam instanciando algo que se supôs ter um valor universal e abalando todo o alicerce da certeza material do mundo.

Lênin questionando a democracia universal, através de sua famosa pergunta: “democracia para quem?”. Freud acabando com o mito da universalidade da consciência e Wittgenstein passando com rio [de Heráclito] e tudo sobre o fundamento da própria certeza.

E por que materialista e por que o vácuo é uma intuição dessa linhagem? Porque funda a matéria no nada, ou seja, esvazia dela uma possível substância que não esteja ali. Vejamos o fragmento de Pascal:

Que, horror é [esse do] vácuo? Que haverá no vácuo suscetível de amedrontá-los? Que haverá mais vil e ridículo? Não é

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tudo: mesmo que tenham em si próprios um princípio de movimento para evitar o vácuo, terão braços, pernas, músculos, nervos? (§75|958).

Althusser parece extrair daí uma interpretação materialista de Pascal, justamente por detrás da idéia de vazio. Pois supor um substrato vazio para a matéria está a um passo de esvaziar de fundamentos também as ideias, e torna-las função da impressão.

Não há princípio, por natural que seja, mesmo desde a infância, que não se faça passar por falsa impressão, ou da educação ou dos sentidos.

[…] Porque acreditastes desde a infância que um cofre se achava vazio, por nele não verdes nada”, dizem-nos, “acreditais ser possível o vácuo. E uma ilusão de vossos sentidos, fortalecida pelo hábito e que a ciência precisa corrigir,” E dizem outros: “Porque vos disseram na escola que o vácuo não existe, corromperam vosso bom senso que o compreendia tão nitidamente, antes dessa má impressão, que cabe corrigir recorrendo à vossa primeira natureza”. Quem enganou? o sentido ou a instrução? (§82|44).

Parece que existe uma necessidade de obter segurança sobre as ações da vida e parece que essa segurança vem da crença e do hábito.

O espírito crê naturalmente, e a vontade ama naturalmente; de modo que, na ausência de objetivos verdadeiros, se apegam aos falsos (§81|661).

Ajoelha e reza! Althusser (5, p.133), citando Pascal, parece afirmar que essa crença natural pode transformar-se em força material de uma ideologia, justamente através desse espaço natural que guarda em sua natureza o homem, enquanto materialidade de existência e forma de vida.

A materialidade submete o espírito soberbo, que tudo quer demonstrar; e possibilita, através da materialidade e do hábito, o “entendimento material e sensível” que a interpelação ideológica parece suscitar.

Tal materialidade se expressa, para Pascal, através principalmente da confissão (ou profissão) da fé acompanhado do ato de ajoelhar-se. Esse ato, diz Pascal, é importante em dois sentidos: para os hábeis e para o povo, sabendo-se que são estes dois que compõem o trem do mundo (§273|173).

É preciso que o exterior se junte ao interior […] isto é, que nos ponhamos de joelhos, oremos movendo os lábios, etc. […]

Ela [a religião cristã] eleva o povo no interior e baixa os soberbos no exterior, não sendo perfeita sem os dois, pois é preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam o seu espírito à letra (§§ 250|944 e 251|219).

A materialidade do hábito pode expressar a própria materialidade da ideologia mesma, onde reconhecer determinadas verdades sejam, em si, atos!

Mais adiante, seguindo a Espinosa e Pascal neste assunto, eu insistiria veementemente na existência material da ideologia; não apenas em suas condições materiais de existências (suas relações com os interesses, cegados pela imaginação, de um grupo social) que encontramos em primer lugar em Rousseau, em Marx e em numerosos autores, a materialidade de sua própria existência! (Althusser 5, p.138).

E a característica que Althusser aponta que pôde alinhar tais pensadores, é que eles podem “pensar e atuar no limite”. No limite

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entre o que seja o pensamento e o que é sua expressão material através do aparato dos corpos.

A força é a rainha do mundo, não a opinião. — Mas a opinião é que usa a força. — A força é que faz a opinião. A fraqueza é bela, segundo pensamos. Por quê? Porque quem quiser andar na corda bamba estará sozinho; e eu arranjarei uma “claque” mais forte com gente que dirá que isso não é decente (§303|554).

O povo, diz Pascal, tem opiniões muito sadias, entre elas:

Trabalhar pelo incerto; viajar por mar; passar sobre uma tábua (§324|101).

Sabendo-se que mesmo o maior filósofo do mundo

[…] sobre uma tábua, por mais larga que seja, se houver embaixo um precipício, embora a razão o convença de sua segurança, a imaginação prevalecerá. Muitos não poderiam pensar sequer nisso sem empalidecer e suar (§82|44).

6.

Tal tipo de posicionamento parece ter encontrado modelos3 na realidade das lutas democráticas e populares na América Latina das últimas décadas do século XX: as guerrilhas em El Salvador e Nicarágua, as mobilizações em torno da Teologia da Libertação ou o MST, que levantavam os povos através de algo que pode ser visto como uma ação dos aparatos dos corpos.

Uma das surpreendentes formações de resistência, bastante recorrente nesse aparato dos corpos – nas ocupações de terra, por exemplo

– era a de dispor as mães com filhos de colo nas frentes das manifestações, juntamente com as avós, como se percebe fartamente em um dos mais abrangentes registros de imagens, sonho e poesia legados pelo século das resistências: Terra (10), com imagens de Sebastião Salgado comentadas por Chico Buarque e José Saramago (mas também em vasta bibliografia historiográfica e de relatos). Ressaltando-se, entretanto, que o essencial não está – e nem deveria estar – referenciado.

Um hábito, uma certeza e evidência, portanto uma verdade ideológica – a de salvaguardar o filho – é aqui utilizado paradoxalmente, para constranger o opressor e ocupar um lugar. De fato está-se aqui contando com a força habitual e ideológica que torna tão evidente o argumento da necessidade da preservação, que, suposta universal, é capaz de mobilizar-se, tornando indivíduos – sós diante daquele monte de mães – em sujeitos históricos, através do que o filósofo chamou de interpelação.

Vale dizer: soldados que estão sob um aparato de estado, de dominação ideológica (neste caso carregando a concretude do chumbo), mas podem ser vistos como indivíduos convocáveis, que assujeitados tornam-se sujeitos de um rompimento com uma ideologia primeira, em nome de uma ideologia segunda, mas com um valor – o de salvaguardar o filho – que pôde dar valor a tal operação de interpelação.

Apenas a afirmação incondicional da certeza de forma material, ou seja, através do aparato dos corpos, pôde enfrentar a situação com tal ímpeto e arrogância, diante de uma arrogância quase intransponível da força bruta das armas.

Poder-se-ia argumentar sobre a contradição que desumaniza tais frentes de ação, esmagando seus indivíduos e mesmo seus bebês. Afinal já se acreditou que comunistas comessem criancinhas.

As cordas que ligam o respeito de uns para com os outros são em geral cordas de necessidade; pois é preciso que

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haja diferentes graus, porquanto todos os homens querem dominar e todos não podem fazê-lo: alguns, contudo, podem-no (§304|828).

Assim como podemos aventar muitas razões para mostrar como é retrógrada ou, mais tecnicamente, anacrônica, essa forma, diante de uma outra muito mais evoluída de convocar cidadãos justamente a preservar o que temos de mais precioso: o filho, a grávida, o idoso. Preservar a vida da terra e os direitos do homem. Por fim, teóricos e equipes inteiras poderiam dedicar-se a encontrar, diante de tal fato, os motivos pelos quais estão enfraquecendo os valores todos da sociedade para tal banalização dos corpos! Para gáudio da cabala pirrônica (§392|109) que logo afirmaria a incerteza da verdade…

As realidades da luta de classes são ‘representadas’ por ‘ideias’ que são representadas por palavras. Toda luta de classes pode, às vezes, ser resumida na luta por uma palavra, contra uma outra. Algumas palavras lutam entre si como inimigas. Outras são o lugar de um equívoco: a meta de uma batalha decisiva, porém indecisa. (...) O combate filosófico por palavras é uma parte do combate político (Althusser 1, p. 112).

Essas novas relações de sentido entre o preservado e a preservação estão dispostas à frente de uma multidão que se lhes vem por detrás com bandeiras, foices e enxadas e, surpreendentemente – num primeiro plano antes não notado – alguém tocando uma flauta. As mulheres sorriem, as crianças rolam e atiram-se pelo barranco. Como explicar a contrariedade de que o que deve ser preservado deve ser exposto para a preservação? Como explicar que haja justamente felicidade nesses momentos? Como explicar que, diante de um enterro novamente anunciado de Althusser, possamos esboçar tanta vida que parece inconsciente em seus textos, como

ele gostaria de ter dito. Assim como a canção de liberdade viera do cárcere, também poesia parece brotar da toda uma brutalidade.

Grandeza do homem que, mesmo de sua concupiscência, soube tirar um regulamento admirável e fazer um quadro da caridade (§402|118).

Segundo Althusser (5, pp.146s), atuar no limite pôde ligar todos esses filósofos da única tradição materialista. E atuar no limite é “atuar no risco”, “por conta e risco”. Ocupar um lugar que ele mesmo confessa que quase nunca soube ocupar direito: “estar só diante da mãe”.

Sozinho, mas com os grandes – como Pascal, Freud, Lenin, Wittgenstein. “A lista é infinita, mas encontra-se fechada (exceto por Derrida, a Teologia da Libertação e o pensamento militar)” (Althusser 5, p.146).

REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1.ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

2.__________. L’unique tradition matérialiste [1985]. Lignes [Paris], n. 8, pp. 72-119, 1993a.

3.__________. L’avenir dure longtemps. Paris: STOCH/IMEC, 1993b.4.__________. The only materialist tradition. Part I: Spinoza. In: The new Spinoza.

Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.5.__________. La única tradición materialista. [L’unique tradition matérialiste].

Trad. Juan Pedro García del Campo. Youkali - Revista crítica de Las Artes e El Pensamiento [Madri], n. 4, pp. 132-154, dez. 2007. Edição virtual consultada em agosto de 2011: http://www.youkali.net/youkali4d%20Althusser%20launicatradicionmaterialista.pdf

6.__________. Sobre a reprodução. [Sur la reproduction]. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes. 2o ed., 2008.

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7.OLIVA, Luís César Guimarães. As marcas do sacrifício: um estudo sobre a possibilidade da história em Pascal. Coleção Estudos Seiscentistas. São Paulo: Humanitas, 2004.

8.PASCAL, Blaise. Opúsculos [Coletânea de textos]. Trad. A. Ferreira. Lisboa: Guimarães Editores, 1960.

9.__________. Pensamentos [Pensées]. Trad. S. Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

10. SALGADO, Sebastião; SARAMAGO, José; BUARQUE, Chico. Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

PRo-to-CoUNtER, VACUUM AND MAtERIALIty oF IDEoLogyESSAy oN ALtHUSSER’S & PASCAL’S FRAgMENtS

Abstract: In the article “The only materialist tradition” Althusser (2,4,5) presents some fundamentals of his materiality of ideology theory referenced, explicitly, in Pascal. 1) the pro-to-counter and truth material condition (which can take it for contrary without contradiction); 2) the intuition [sic] of vacuum as a philosophical matter (postulate that is able to deny this substrate to the matter). It characterizes the ideological production as a human work, that is able to incorporate the class contradictions and to impregnate directly the ideological apparatus, and postulates the necessity of formulating a dogmatic doctrine, in order to discuss it in a dogmatic field. It is presented here one of the central tools of such theory: the apparatus of the body – which relies on Pascal too – a mean of expressing the materiality of ideology, effectively.Keywords: apparatus of the body; transference; counter-transference; materialism.

NoTAS

1. Utiliza-se aqui apenas o número da referência precedido do símbolo “§” para referenciar os Pensamentos (9) – as poucas citações referenciadas nos Opúsculos (8) serão indicadas. Os números dos fragmentos referem-se, respectivamente, à numeração de Brunschvicg e Lafuma, separados por “|”, seguindo a providencial Tábua de Conversão apresentada pelo professor Oliva em seu livro (7).Na ausência de indicação, as citações de Althusser serão sempre da obra aqui interpretada, A única tradição materialista (5). Os destaques em negrito nas citações são meus, salvo indicação.

2. Instância é aqui é utilizado no sentido de “um contexto ou escopo de interpretação”, que pode ser variado e visto sob novas luzes e pontos de vista (re-instanciado). Instanciar é situar uma determinada afirmação ou proposição nesse contexto.3.Modelo é aqui tomado no sentido que a lógica dá ao termo, segundo o qual se diz que “uma teoria é consistente se apresenta um modelo”.

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EM dEfESA dO MATERIAlISMO AlEATóRIO

Diego ramos lanciote*

Resumo: A última fase do filósofo Louis Althusser desperta amplo interesse pela resolução da maioria das questões suscitadas desde suas primeiras publicações na década de 60, dentre as quais a mais relevante delas sobre a teleologia no materialismo histórico. No entanto, suas publicações sobre o chamado “Materialismo de Encontro” só apareceram post mortem e, ainda, o fatídico episódio da morte de sua esposa contribui para o repúdio e esquecimento do autor. O materialismo de encontro, ou aleatório, é o empenho resultante da tentativa de compreensão dos processos históricos isentos da teleologia . O materialismo de encontro é, ainda, a realização de um projeto mais ambicioso que é o estabelecimento de uma filosofia para o marxismo. No caso, uma filosofia assistemática aberta aos eventos histórico e também impulsionadora de um projeto político de transição. Filosofia que se estabeleça de maneira a escapar à interpelação dos indivíduos em sujeitos, um desvio à Ideologia dominante. Trataremos, então, da categoria de clinamen como o desvio do assujeitamento e, sobretudo, como categoria habilitadora de uma ação política. Observaremos as principais linhas de fundamentação, como núcleo invisível, da assertiva teórica althusseriana do aleatório no seio do materialismo de Charles Darwin, na análise elaborada pelo professor Vittorio Morfino. Numa conjectura, a questão da dialética e seu papel reservado à Teoria, à Ideologia, às formações sociais e a possibilidade de uma ação política inscrita no clinamen.Palavras-chave: aleatoriedade, dialética, ideologia, materialismo, política.

Althusser em seus primeiros trabalhos teóricos constrói

condições para a compreensão e fundação do Materialismo de Encontro

* Graduando em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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que, embora ainda precárias com relação às teses deste, são bastante alusivas; aproximações que, no entanto, possuem seu determinado rigor. Se notarmos atentamente, a pluralidade de contradições existe no concreto em que são articuladas de maneira desigual estabelecendo-se aleatoriamente a dominância de uma com relação às outras, não havendo qualquer lei ou parâmetro para determinar como a dominância estabelece-se. No conceito de sempre-já-dado (Althusser, 1, 1969), a exasperação das contradições é deveras aleatória. Não há como prever, ou mesmo, estabelecer através das fórmulas de uma dialética positiva, ou seja, regida por leis próprias, um momento ou situação revolucionária. O sempre-já-dado é uma categoria muito próxima do vazio, porque quaisquer elementos unívocos são dados e podem concatenar-se, i.e., podem encontrar-se e podem durar ou não numa pega destes. A sobredeterminação (Althusser, 1, 1969) é um evento, acontecimento, de encontro e pega das contradições que ocorre num topos vazio, num sempre-já-dado, por isso não há como nos furtarmos às elaborações primeiras de Althusser como dispensáveis à compreensão do materialismo do encontro; há deveras uma continuidade em seu pensamento. A vigência do alea e da Dialética: concreto e assujeitamento

No encontro não há dialética, ou mesmo, ela é inoperante. Tal qual a exasperação das contradições é imprevisível no sempre-já-dado, a dialética é interditada em seu princípio. Porém, tão somente quando há pega no encontro é que podemos compreender a vigência da dialética ela mesma, na duração deste, como possibilidade, nessa posteridade de encontro pego duradouro, do desvelar das formas que dele emanam.

Os encontros enquanto pegos só nos deixam a certeza do tendencial, muito embora as formas que surgem no momento de encontro

pego estabeleçam-se de tal maneira que podemos nessa posteridade de encontro pego duradouro interpor através de suas imagens, formas, a dialeticidade em busca da arké (Benoit, 10, 2004). Somos tentados a reconhecer que a dialética na medida em que estabelece seu movimento a fim de refundar o princípio, a arké, pela negatividade ao dar ser ao não-ser, nunca pode refundar-se, ela é interditada a completar seu movimento, fadada a re-estabelecer-se nas delimitações, visto que ela vige somente pelo encontro e pela pega duradouros os quais são aleatórios. A dialética não possui vigência no originário, pois operante num continuum que se furta ao discreto, ao alea enquanto origem, fonte do florescimento das imagens. A vigência é aquilo que está numa condição de prosperidade, é o que floresce, no sentido pleno de sua ligação com a terra.

Com efeito, se no encontro e pega duradouro vige o reino da razão, da necessidade e, pois, da forma, trata-se então, na localidade de uma determinada formação social, de um momento constitutivo do assujeitamento, da interpelação dos indivíduos em sujeitos. Esta vigência (uigeo) é a instância material da vivência dos indivíduos, o florescer calcado na poiésis: a ideologia tem suas raízes nas formas valorativas que dela emanam na práxis do homem inserido no que podemos denominar concreto, uma determinada formação social fruto de um encontro pego duradouro.

Só se pode conceber a pluralidade dos encontros e pegas em sua duração nas suas respectivas temporalidades plurais, por isso podem as formas perenes desfazerem-se ou mesmo perpetuarem-se. O que garante a vigência e justamente a forma que do encontro e pega origina-se é sua reprodução que, inscrita na duração do encontro pego, é correspondente à poiésis. A poiésis resgata sua semântica na produção, na maneira ou modo de produzir.

A diversidade dos modos de produção, tese cara a Althusser, é latente, tendo em conta a dominância de um sobre os demais em suas

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formas todas e, assim, seu complexo ideológico. Os modos de produção coexistentes são cada qual um concreto, fruto do aleatório encontro e pega de seus elementos em sua duração. Tal qual um átomo, ou entidade particular, pode durar ou não em seu encontro pego, o mesmo ocorre com os encontros e pegas que se concretizam na composição do florescimento de um modo de produção.

Faz-se mister precisarmos uma definição do conceito de concreto que aqui tratamos para adentrarmos na questão dos encontros e pegas aleatórios em sua duração. No vernáculo latino, a palavra “concreto” é con-cresco. Cresco é crescer, crescimento orgânico, tornar-se existente, nascer e ascender, portanto, concresco seria crescer junto, ser formado junto, condensar-se junto, existir junto. Concretus, então, é composto, construído, formado, condensado. O que seria o concreto senão um encontro e pega que dura?

Ilustremos, então, a partir da concepção mais corrente de concreto, aquilo que é designado na construção civil enquanto tal. Concreto é uma composição de água, pedra, cimento e areia, sendo útil ao provimento de sólidas estruturas de edifícios, casas, etc., das mais simples às mais complexas construções. Notemos que esse concreto ao qual nos referimos é composto, ou seja, formado do encontro e mistura de elementos específicos: água, cimento, pedra e areia. Por isso, podemos considerar a definição de concreto a partir do encontro desses elementos que, não obstante, devem pegar numa mistura, pois se não pegarem ou derem liga não se obtém o concreto almejado.

Para que haja a pega no encontro dos elementos, estes devem possuir atributos determinantes quanto à forma ou ao estado físico e a específica quantidade, bastando, assim, que sejam afins. São, também, o cimento, a pedra, a água e a areia também compostos, isto é, compostos de elementos mais simples, elementos químicos como hidrogênios, oxigênio, etc., que também se encontraram, pegaram e duraram.

Por uma regressão sucessiva, podemos ainda dizer que tais elementos químicos são o encontro e a pega de elétrons, prótons e neutros que, por sua vez, são encontro e pega de elementos mais simples, por precisão de vocabulário, partículas – pequenos corpos. Em última instância, a pega e encontro de quarks e glúons (curiosamente do inglês glue, “cola”), as partículas mais fundamentais conhecidas. Em todos os casos da regressão, as partículas possuem estados específicos necessários para que o encontro pegue. O que nos importa, longe de ser a partícula originária, é a articulação, relação, dos encontros e pegas duráveis.

É relevante que, conforme haja encontros e pegas sucessivos das partículas, estas atingem certa complexidade tornando possível sua percepção. O fato das partículas menores não serem perceptíveis aos homens não invalida sua existência e, como definido, o fato de serem concretas.

Portanto, concreto é o encontro e pega que duraram. Aquilo que se atribui à concretude toma o ser em sua forma constitutiva-constituída como sempre-já-sendo, cuja definição encontra-se ainda na aleatoriedade dos encontros.

O sempre-já-dado de Althusser em seus primeiros escritos é concreto. A materialidade dos traços espaço-temporais de um sempre-já-sendo, o concreto contém as contradições na composição dos seres em momento constitutivo na imersão de um vazio de possibilidades prenhe de encontros; como os eventos, acontecimentos, de encontro e pega, o concreto é sobredeterminação. Todavia, o concreto não é homogêneo nem heterogêneo em si guardando sua imersão no vazio das contingências; ele é um aspecto que interliga espaços-temporais estabelecidos em sua simultaneidade e identidade. O concreto é um ente exasperado de vazio em sua anterioridade de encontro possível; assim, não podemos mencionar o espaço, o tempo e os corpos imersos no vazio nesta anterioridade, cujo aspecto principal é a existência no próprio vazio in abstracto. Trata-se de

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um topos de possibilidades. A materialidade do concreto é a massa-crítica de seu sentido no encontro pego que ex-plode as confetes formais.

A forma carrega em si estética enquanto sentido do ser imerso num concreto orientado pela maneira de produzir, poiésis, propondo a necessidade enraizada na contingência que Althusser preconiza: “(...) em lugar de pensar a contingência como modalidade ou exceção da necessidade, é necessário pensar a necessidade como o vir-a-ser-necessário do encontro de contingentes” (Althusser, 4, 1994).

A necessidade enraíza-se na contingência, o encontro no vazio é origem, fonte, da necessidade e, isso tudo, na articulação complexa do encontro: o concreto é a articulação contingente dos encontros que pegaram e duraram num vazio prenhe de possibilidades; dele emana a necessidade orientada às formas em sua posição deôntica no processo de interpelação dos indivíduos. As formas emanadas do concreto interpelam o indivíduo estabelecendo-se como princípio, sentido, no âmbito de um dever-ser, na forma.

Na forma, a imersão do concreto constitui um abismo, um desvio do assujeitamento. O abismo é a palavra justa, se considerarmos a menção que Althusser faz a Rousseau (Althusser, 9, 2007), quem assinala que o contrato social repousa sobre um abismo. Este é espacialmente desmesurado e, em nossa compreensão, o tempo-espaço onde repousam os possíveis encontros e pegas perde-se no topos abismal, que assume na simultaneidade do concreto a contagem na forma do encontro pego; assim, por sua vez, o tempo também é desmesurado: está fora da metáfora. Então, é interditado a qualquer sujeito – qualquer indivíduo assujeitado, inserido num concreto – o tempo e espaço abismal, pelas formas oriundas do próprio concreto. Nisso não há contradição por tratarmos do concreto como massa-crítica, pois não se trata de uma origem unívoca, tampouco de uma origem stricto sensu; tão somente de traços espaço-temporais da materialidade dos encontros, ou antecipações extra-temporais em conjunção relativa às

antecipações in-temporais: o vazio está hors de champs, é interditado nas suas circunstâncias que propõem um antes e um depois. No vazio do topos abismal inscrevem-se os acontecimentos. Deleuze, no Paradoxo do Puro Devir, lança-nos algumas palavras a respeito do acontecimento:

“Alice assim como Do outro lado do espelho tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela vem-a-ser maior do que era. Mas por isso mesmo ela também vem-a-ser menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela vem-a-ser um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nós vimos-a-ser maiores do que éramos e que nós vimos-a-ser menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem vir-a-ser menor e inversamente.” (Deleuze, 12, 2003).

Que propriedade seria, então, esta da simultaneidade, senão o furtar-se ao presente? O esfacelamento da univocidade do sentido é o puxar nos dois sentidos, o vir-a-ser maior e o vir-a-ser menor no caso de Alice. No vazio de Althusser, o vazio possui os mesmos atributos do furtar-se ao presente deleuziano. Isso, mesmo porque o vazio de Epicuro invocado no início de A corrente subterrânea do materialismo do encontro apresenta-se como infinito:

“O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade

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infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do suficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito.”(Deleuze, 12, 2003).

A identidade infinita é a condição dos encontros possíveis, o vazio prenhe de possibilidades de encontros. Se nesse momento de furtar-se ao presente o sentido são os dois ao mesmo tempo (no caso de Alice), podemos dizer que a subversão do paradoxo levar-nos-ia à natureza do abismo como furtar-se ao presente numa ex-tensão de todos os sentidos ao mesmo tempo esfacelando-se. As possibilidades são idênticas ao infinito: a multiplicidade possível de encontros, a multiplicidade possível de pegas. Então, o concreto é o vir-a-ser-já-sendo para nós sujeitos: somos postos fora do alea, interditados na questão do referencial que o sujeito põe e que não faz sentido no infinito, só para o sujeito observador.

Epicuro distancia-se dos Eleatas de maneira cabal no que tange ao vazio. O jargão no Poema de Parmênides, “é e não pode não ser”, nega o ser do não-ser, mas Epicuro dá ser ao não-ser, i.e., o vazio, é. Essa articulação permite a Epicuro defender o Universo como constituído de corpos e vazio, ser e não-ser; sendo conditio sine qua non o vazio em sua infinitude para que os átomos movam-se por ele, e, também, os átomos em número infinito para que se encontrem. O movimento dos átomos é desde sempre eterno. Não há, pois, qualquer possibilidade de mensurar o tempo na eternidade, na eternidade não há sucessão temporal cabível de contagem. E nada se aplica à formação de mundo ou dos mundos que seja providencial; os átomos e o vazio são desde-sempre, e é no movimento eterno dos átomos que, quando se encontram, entrelaçam-se uns nos outros, ou não: no primeiro caso tem-se o mundo ou os mundos.

O clinamen é uma categoria ressignificada no Materialismo Aleatório, uma categoria de articulação que permite o indivíduo interpelado

como sujeito “adentrar” no abismo sem precisar de referenciais próprios do encontro pego duradouro em que ele está inserido. Uma categoria de articulação que permeia o sujeito através de uma alucinação, que é um começo ou um não-começo.

Nas Cartas a Franca, especialmente a de 29 de setembro de 1962 e a de 23 de outubro de 1962, Althusser fala sobre seu curso de Maquiavel:

“Le délire de ce cours n’était rien d’autre que mon propre délire; en particulier je me souviens du thème central que j’y ai développé, à savoir que... le problème central de Machiavel au point de vue théorique pouvait se résumer dans la question du commencement à partir de rien d’un Nouvel État absolument indispensable et nécessaire. Je n’invente rien, je ne fabrique pas cette pensée, Franca, mais en développant ce problème théorique et ses implications (en particulier la théorie de la fortune et de la “virtù”) j’avais le sentiment hallucinatoire (d’un force irrésistible) de rien développer d’autre que mon propre délire. (...) Il n’y a pas deux types de rapport avec le réel (rationnel – et affectif) mais un seul, (…) le rapport avec les objets théoriques est aussi commandé par le rapport avec soi”(Althusser, 7, 1998).

Não podemos nos furtar a toda perfusão da teoria da ideologia desenvolvida por Althusser em que o indivíduo é interpelado como sujeito, sendo estabelecida a materialidade da ideologia, neste mesmo processo de interpelação, na vivência do indivíduo (Althusser, 6, 1995). E o que mais nos chama a atenção é que Althusser deixa claro que a ideologia não perece, ela é eterna. Uma eternidade onde há formação social, i.e., homens e relações entre eles. Poderíamos dizer que é inerente à própria constituição do homem – não como essência humana/humanista, porém como pertencente à espécie humana enquanto animal no seio de um processo evolutivo, entendido nos termos de Darwin, na aleatoriedade da

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seleção das espécies – a ideologia enquanto forma, o telos. Malgrado a natureza seja aleatória.

Compreendemos, pois, que a instância da Ideologia repousa no inconsciente do indivíduo assujeitado, e isso através de sua vivência, onde se instauram as relações de produção nas quais este sujeito está imerso no seio de uma formação social, fruto de um encontro e de uma pega duradouros, de um concreto.

Ademais, podemos desenvolver os encontros e pegas na própria Teoria da Seleção Natural de Darwin, que também é muito bem amparada na genética contemporânea. A seleção natural começa com a variação – os indivíduos variam –, como também variam seus hábitos, instintos e comportamentos, e essas variações são fruto do acaso. Cabe-nos ressaltar que o processo de seleção é deveras aleatório, ou seja, a causa da variação, para Darwin, era completamente desconhecida na medida em que era irrelevante, pois o que bem importa é a adaptação de determinada espécie ou não num determinado meio ambiente (Darwin, 11, 1966).

Hodiernamente, com os avanços da genética, a causa ao acaso, como na variação de Darwin, permanece nos processos de replicação reducional (meiose) e equacional (mitose). Em determinado momento da replicação do ADN, há o processo de crossing-over, o qual nada mais é que a troca aleatória de genes entre os pares de cromossomos. O ponto crucial em nosso estudo consiste em que não se sabe qual códon (sequência de três bases nitrogenadas que compõem os ácidos nucleicos, ADN e ARN) no processo de crossing-over vai e qual permanece, no entanto é conclusivo que, não importando qual seja a composição da permuta de códons, a célula pode durar ou não. Ela pode conter uma mutação que em sua divisão posterior pode gerar uma gama de células cancerígenas e, por fim, culminar na morte do ser-vivo; ou, pode resultar numa melhoria útil ao ser vivo, tornando-o mais adaptado. Mesmo no caso das células reprodutoras, nos

gametas, aquele material genético escolhido aleatoriamente sofre, além desse acaso primeiro do crossing-over, mais três outros acasos. O primeiro é se o gameta com determinado material genético – pois são muitos gametas e cada qual com material diferente do outro (uma tênue diferença, porém significativa) – conseguirá encontrar o outro gameta: o gameta feminino encontrar o masculino. O segundo é se este encontro dará certo, isto é, se ele pegará. Assim, um gameta masculino qualquer encontra um gameta feminino qualquer, todavia, disso pode resultar um híbrido, no caso de espécies diferentes que copulem, ou mesmo um feto com disformidades que tenderia ao aborto ou, em última instância, à necessária morte no pós-parto. O terceiro acaso é se esse feto, um vir-a-ser-no-mundo, será adaptado ou não às exigências externas, isto é, do ambiente em que nascerá: pode perecer ou não perecer, ser mais adaptado que os outros ou não, ou ser o mesmo que os outros.

Trata-se de encontros e pegas no caso da reprodução na genética e na seleção natural. Morfino elucida a relação entre Althusser e Darwin:

“É extremamente claro o papel que Althusser faz Darwin desempenhar na página: Darwin é jogado contra Hegel e o que está em jogo é, naturalmente, Marx, ou seja, a possibilidade de distinguir uma teoria aleatória e uma teleológica do modo de produção. Papel fundamental porque fornece a Althusser um modelo de aplicação da tese do primado do encontro sobre a forma no estudo do mundo natural. Nenhuma contingência transcendental do mundo, mas a emergência de toda forma natural do complexo de um número extremamente amplo de elementos.” (Morfino, 14, 2005).

O materialismo de encontro está completamente embasado no

núcleo tácito do evolucionismo darwinista e, como apontamos, na genética contemporânea. A aleatoriedade dos processos de seleção natural encerra

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de uma vez por todas a teleologia na natureza, um princípio, uma con-formidade como telos da necessidade.

Morfino finaliza seu texto preconizando a teoria de Darwin como o núcleo invisível do materialismo de encontro, tratando por afastar a teleologia e o primado da forma:

“Longe de ser uma referência marginal da Corrente subterrânea, a teoria de Darwin parece ser, antes, seu centro invisível. Seu núcleo fundamental não é, de fato, a tese da evolução das formas (contra o fixismo), mas, precisamente, o primado do encontro sobre a forma, isto é, a contingência não tanto do mundo (termo que, em Darwin, não teria sentido), mas de toda forma, já que resultado de um complexo entrelaçamento de encontros, cada um dos quais, necessários – embora se trate de uma necessidade, se me é concedido o oxímoro, totalmente aleatória, isto é, privada de um projeto ou de um telos. Neste sentido, os elementos que ‘pegam’ (fanno presa) não estão ali porque a forma exista, mas possuem, cada um, uma história própria, resultado, por sua vez, de um entrelaçamento de encontros que se realizaram, mas que obviamente, também, falharam. (Morfino, 14, 2005).

A Dialética repousa na posteridade do alea.

Existente a pega num encontro que dure, inicia-se uma circularidade em que o começo é o fim e o fim é o começo, eis que a dialética é impossibilitada em sua tentativa de refundar o princípio, ou desvelar a arké. Todavia, o movimento não é em vão. A dialética, e toda a sua tradição, desvela as formas, ela opera dando ao não-ser seu ser nesse desvelar. Aí podemos dizer que sendo o encontro e a pega a arké, estes são as determinações originárias: “O concreto é concreto por ser

uma concentração (Zusammenfassung = concentração, síntese) de muitas determinações, logo, uma unidade do múltiplo” (Marx, 12, 2010).

A definição é coerente, pois a regionalidade dos encontros pegos gera as formas todas in-sistentes no inconsciente do indivíduo em sua vivência material, portanto o desvelar obedece a dialeticidade em seus limites ao tratar das determinações oriundas dos encontros pegos, das imagens, das formas. Lidamos com a sobredeterminação, que é essencial à dialética. A sobredeterminação em nada se opõe à trajetória clássica da dialética: eikasia, pístis, dianóia e nóesis (Benoit, 10, 2004), pois a imagem, imaginação, já é em si sobredeterminada e, ainda, a crença nos objetos sensíveis é, por sua vez, o contexto, da sobredeterminação, seu tecido, a validade das formas. A localidade das contradições é lapso temporal, é desvelar-se na análise própria à dianóia, quando no domínio do inteligível. Assim, o gigantesco salto da dianóia à nóesis gera o conceito. O princípio a-hipotético almejado é impossível de ser alcançado. Então o retorno. No entanto, basta-nos compreender que não se perde nesse movimento, porque há o desvelar das formas: na história as passagens dos concretos fazem perecer a “naturalidade” das formas que emanam de um concreto dominante. Trata-se da dialética restrita ao desvelar das formas. O alea, com efeito, repousa na arké, na anterioridade próxima do encontro que pega e dura, é ele próprio a identidade da arké nesta anterioridade do topos infinito, na vazio prenhe de possibilidades, nas sucessões de acontecimentos puros. Em que podemos vislumbrar o clinamen como a atenção à Geschichte (Althusser, 2, 1988), à conjuntura, às desestabilizações do concreto, na materialidade dos menores gestos, dos traços. Portanto, o clinamen não é um desvio inspirado pela liberdade, mas o desvio de possibilidades inscrito num concreto através do contingente da Geschichte e, por isso, a possibilidade de uma ação política no acontecimento, na materialidade dos traços e gestos, nas margens, em seu topos, nos interstícios.

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REfERêNCIAS BIBlIoGRáfICAS

1. ALTHUSSER, L.: Pour Marx, Paris: Maspero, 1969.2.________.Filosofía y marxismo: entrevista a Louis Althusser por Fernanda Navarro.

México: Siglo Veintiuno, 1988.3.________..L’avenir dure longtemps (suivi de Les faits). Paris: Stock / IMEC, 19924.________.Écrits philosophiques et politiques 1. Paris: Stock / IMEC, 1994.5.________.Écrits philosophiques et politiques 2. Paris: Stock / IMEC, 1995. 6.________.Sur la reproduction. Paris: PUF, 1995. 7.________.Lettres à Franca (1961-1973). Paris : Stock/IMEC 1998.8.________.Política e História: De Maquiavel a Marx. São Paulo, WMF Martins

Fontes, 2007.9. BENOIT, H. Tese de livre-docência: Tetralogia dramática do pensar. A Odisseia

Dialógica de Platão: As aventuras e desventuras da dialética socrática. Campinas: Unicamp, 2004.

10. DARWIN, C. The Origin of Species. New York: Collier, 1966. 11. DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003.12. MARX, K. O método da economia política. Trad.: Fausto Castilho. Campinas:

Crítica Marxista nº 30, 2010.13. MORFINO, V. O primado do encontro sobre a forma. Campinas: Crítica Marxista

nº 23, 2005.

obRAS DE REFERÊNCIA CoNSULtADAS:

1. Dictionnaire du Darwinisme et de l’evolution. Paris : Puf, 1996.2. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris : Éditions Klincksieck, 1968.3. Oxford Latin Dictionary. Oxford : At The Clarendon Press, 1968.

IN DEfENSE of THE AlEAToRy MATERIAlISM

Abstract : The last stage of the philosopher Louis Althusser awakens a great interest in the resolution of many questions appointed since his first publications in the decade of 60, among which the most relevant of them is the teleology in the historical materialism. However, his publications about the so-called “Aleatory Materialism” just appeared post

mortem and also the fatidic episode of his wife’s murder contributed to the repudiation and the fall into oblivion of the author. The encounter materialism’s is also a realization of a project more ambitious, that is, the establishment of a philosophy for Marxism. In this case, an unsystematic philosophy open to the historical events and also impulse a political project of transition. Philosophy established so as to escape the interpellation of individuals into subjects, a deviance of the dominant ideology. We will thus be discussing the category of clinamen as a deviance of the “subjection” and above all as a category allowing political action. From the analyse done by the intellectual Vittorio Morfino, we will observe the main foundations, as an invisible kernel, of the theorical position of the althusserian aleatory in the chore of Charles Darwin’s materialism. In a conjecture, the question of dialectic and his role reserved to theory, Ideology, social formation and the possibility of a political action inscribed in the clinamen.Keywords: aleatory, dialectic, ideology, materialism, politics

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NOTícIAS

DEfESAS DE DoUToRADo

Djalma MedeirosAristotelismo e mecanicismo na concepção de Leibniz sobre a Matéria Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura Data: 09.08.2011

Resumo: A concepção de matéria que emerge da dinâmica leibniziana é interessante pelo modo em que junta e contrapõe aristotelismo e mecanicismo. Embora Leibniz freqüentemente use um vocabulário aristotélico, às vezes parece reorientá-lo inteiramente para emoldurá-lo aos seus conceitos, enquanto outras o utiliza de maneira a sugerir não somente uma continuidade lexical, mas também conceitual. Leibniz retém do aristotelismo a noção que nos corpos há um princípio ativo e atual, do qual resultam sua substancialidade e potência de produzir efeitos, e, ademais, que há uma causa final atuante na natureza, como os aspectos potencial e teleológico da força viva indicam. E se é verdade que ele rejeita a noção cartesiana que a extensão é a essência dos corpos, entretanto, mantém que magnitude, figura e movimento são necessários para uma descrição dos fenômenos naturais.

Palavras-chave: discurso político, liberdade, política, democracia, república.

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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de 70 toques).

:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone. (E-mail: [email protected]).

:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.

:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição.

:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

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cONTENTS

eschAtoloGy à la cantonade. Althusser BeyonD DerriDAVittorio Morfino.....................................................................................11

Althusser: the Politics in the PhilosoPhyMariana de Gainza.................................................................................31

A MAchiAVelli By Althusser: on the FounDAtion oF conteMPorAry PoliticAl PhilosoPhyDouglas Ferreira Barros..........................................................................47

PoliticAl Action AnD teMPorAlity in conteMPorAry reADinGs oF MAchiAVelli: notes For A DiAloGue Between Althusser, ArenDt AnD MerleAu-PontyMariana larison......................................................................................69

in the eMPtiness oF A DistAnce tAken – Althusser AnD the PrActice oF PhilosoPhyAlexandre Pinto Mendes........................................................................89

A constituição DA suBjetiViDADe e A ilusão Do FinAlisMo: ElEmEntos dE uma tEoria da idEologiaAlexandre Arbex Valadares...................................................................113

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thE main issuEs on thE rEading of marX’s capital: thE althussErian pErspEctivEFernando Bonadia de oliveira..............................................................131

machiavElli or thE longEst dEtour: happEning, mEEting AnD MAteriAlisM in the lAst Althusser’s PhilosoPhyPablo Azevedo......................................................................................145

the two reADinGs oF the cAPitAlisM in MArxrenan Gonçalves rocha ......................................................................167

Pro-to-counter, VAcuuM AnD MAteriAlity oF iDeoloGyessAy on Althusser’s & PAscAl’s FrAGMentsAntônio herci Ferreira júnior................................................................179

in DeFense oF the AleAtory MAteriAlisMDiego ramos lanciote..........................................................................199

noticEs.....................................................................................................215

instructions...........................................................................216

contEnts...................................................................................................217