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ISSN 1413-6651 São Paulo - 2012 XXVI

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ISSN 1413-6651São Paulo - 2012

XXVI

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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Douglas Barros, José Luiz Neves, Silvana de Souza Ramos

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

PareceristasPareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Edmilson Menezes, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Isadora Bernardo Prévide, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Patrícia Aranovich, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São PauloReitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas

Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de CruzFFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Diretora: Profa. Dra. Sandra NitriniVice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano

Departamento de FilosofiaChefe: Milton Meira

Vice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoord. do Programa de Pós-Graduação: Alberto Ribeiro de Barros

Endereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

N. XXVI, JAN-JUN 2012 – ISSN 1413-6651

Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2012.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Imagem da Capa:Le Cornet à damierRembrandt1660

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

Neste número, artigos sobre Espinosa, Pascal, Descartes e Santo Tomás, sobre a relação entre Espinosa e Freud, Espinosa e Cervantes, os estóicos e Espinosa; uma preciosa tradução do Proêmio sobre a interpretação da natureza de Francis Bacon; e duas resenhas sobre os livros Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, de Sara Hornäk e A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa, de Chantal Jaquet. E uma novidade: começamos a publicar artigos também em espanhol.

Boa leitura!

Os Editores

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SUMÁRIO

EntrE sErvidão E libErdadEHomero Santiago....................................................................................11

a noÇão dE GraÇa EM blaisE PasCalLuís César Guimarães Oliva....................................................................25

dE la transFiGUraCiÓn dEl MÁXiMo dErECHo a todo: tEMor, EsPEranZa Y CÁlCUlo dE UtilidadVíctor Manuel Pineda.............................................................................47

aPrECiaÇão dUbitativa do rEalisMo E sEU iMPaCto sobrE a CosMoloGia Cristã rEalistaCarlos Eduardo Pereira Oliveira..............................................................81

a étiCa dos EstoiCos antiGos E o EstErEÓtiPoEstoiCo na ModErnidadEDrayfine Teixeira Moura.......................................................................111

o CONATUS EM EsPinosa E a TODESTRIEB dE FrEUd: UMa antinoMia ontolÓGiCa oU PUraMEntE iMaGinativa?Lucas Carpinelli.....................................................................................129

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a MortE CoMo transForMaÇão:UMa aProXiMaÇão EntrE DOm QUIxOTE E a ÉTICA dE EsPinosaGiselle Cristina Gonçalves Migliari........................................................155

PrOêMiO SObrE a inTErPrETaçãO Da naTurEza - FranCiS baCOnTradução de Homero Santiago.............................................................173

rEsEnHa: artE E iManÊnCia: UM boM EnContro EntrE EsPinosa E vErMEErMarcos Ferreira de Paula ......................................................................183

rEsEnHa: A UNIDADE DO CORPO E DA mENTE: AFETOS, AÇÕES E PAIxÕES Em ESPINOSAbruno D’ambros....................................................................................197

nOTíCiaS.....................................................................................................209

instrUÇÕEs Para os aUtorEs...........................................................211

COnTEnTS...................................................................................................213

EntrE sErvidão E libErdadE*

Homero Santiago**

Resumo: Nosso propósito é delimitar um campo problemático que, na falta de melhor designação, pode-se dizer situado entre servidão e liberdade. É nesse terreno que tais categorias, que não devem ser tomadas como absolutas, podem assumir um sentido concreto, vinculado às variadas formas como os homens buscam a sua felicidade, umas vezes com êxito, outras com grande fracasso.Palavras-chave: servidão, liberdade, transição, Espinosa, Pascal.

“É necessário conhecer tanto a potência quanto

a impotência de nossa natureza.”

Espinosa 3, IV, prop. 17, esc.

“É ao nível de cada tentativa que se avaliam

a capacidade de resistência ou, ao contrário, a

submissão a um controle.”

Deleuze 1, p. 218

Entre servidão e liberdade. Todas as nossas questões residem sob essa preposição que delimita um espaço de transição, movimentação entre duas categorias algo dúbias, equívocas, precisamente porque termos extremos de que lançamos mão mais por conveniência que entendimento. A tarefa que nos toca é desvendar um pouco o que acontece, o que se pode e o que não se pode entre os dois.

* Trata-se do prefácio de uma tese de livre-docência, que porta o mesmo título, apresentada ao Departamento de Filosofia da USP e defendida em 2012; daí nos permitirmos aqui e ali a remissão, sem maiores esclarecimentos, a alguns textos de nossa autoria.** Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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Homero Santiago

Postas as coisas assim, a lembrança de Pascal faz-se logo irresistível, pois como ninguém explicitou ele a necessidade de levar a sério o meio, aquilo que um intérprete denominou o “entre-dois”. Com efeito, a crer nas análises de Henri Gouhier (4, p. 60 e seg.) das considerações de suas pesquisas sobre o vácuo até as preocupações apologéticas, Pascal serve-se de um esquema triádico em que o entre-dois é um elemento tão importante quanto os extremos. Modo de pensar, de analisar que surge com inigualáveis clareza e profundidade no célebre pensamento sobre a “desproporção” de um homem situado entre os dois abismos que lhe foram dados pela natureza (cf. Pascal 8, frag. 199). Mas esse esquema de pensamento funciona ainda, e talvez devamos dizer que funciona primordialmente, como um esquema para a ação, preparando o lugar da intervenção apologética. É entre uma coisa e outra que tudo se passa, e dessa perspectiva o meio é não só tão importante quanto os extremos como também se salienta sobre eles. É o reconhecimento das contrariedades, e portanto o reconhecimento do entre-dois como condição humana, que abre a apresentação do projeto apologético em Port-Royal, fornecendo-lhe o ponto de partida (idem, frag. 149); igualmente, é a convicção de que se precisa alcançar o meio que indica o tom apropriado ao discurso, nem muito alto nem muito baixo (idem, frag. 130).

O meio, para Pascal, assume tamanha relevância porque é nele que se dá a verdadeira conversão, a verdadeira transformação, possível exatamente por não estarmos afundados em nenhum dos abismos, convivendo sem trégua com ambos. Estamos entre extremos, é aí que o pensamento tem de se virar para entender o que somos e poder agir sobre o que seremos. Longe de constituir um campo estático, é lugar de passagens e mudanças. O que se revela cabalmente pelo termo que Pascal selecionou para nomear o maço integrado pelo pensamento sobre a desproporção humana: Transição. Palavra a ser frisada, pois que remete ao núcleo de

uma problemática ética da maior importância e que não é exclusividade pascaliana. No essencial, reconhecemo-la também em Espinosa – o que demonstra de uma vez por todas que não é mister esposar o credo do jansenista para reconhecer que ele toca um problema real e de grande profundidade acerca de nossa natureza.

* * *A ideia de transição é fundamental para o projeto ético espinosano

e vincula-se à questão dos variáveis graus de perfeição ou potência de nossa natureza. O verbo transire e o substantivo transitio conhecem um uso frequente nas partes III-V da Ética, em contextos relevantes (cf. Gueret, Robinet, Tombeur 5). Os afetos primordiais de alegria e tristeza são transitiones entre graus diversos de perfeição; e nesse sentido todo afeto é passagem, transição; a inteira vida ganha a forma de incessante trânsito para lá e para cá, a ponto de Espinosa afirmar peremptoriamente que “vivemos em contínua variação” (Espinosa 3, V, prop. 39, esc.). Quer dizer, em nossa vida afetiva tudo é questão de graus, proporções e correlações, aumentos e diminuições; ela desconhece estados, ou não os conhece senão anomalamente, patologicamente. A transição constitui o fundo de nosso ser. Num trecho da Ética em que insiste que alegria e tristeza não são coisas nem entes, nem a própria perfeição nem a própria imperfeição, mas ambas transitiones, Espinosa lança mão de uma fórmula elucidativa: o afeto de tristeza, ele diz, não é senão um ato de passagem, um actus transiendi (idem, III, def. dos afetos, 3). Analogamente, digamos que o nosso ser é um esse transiendi. Invariavelmente posto no meio, sempre entre dois pontos. E não poderia ser diferente, uma vez que se radica todo ele no conatus e em acta transiendi; uma vez que é desejo. Nosso ser, nossa essência é esse complexo que reúne “todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com a sua variável constituição” (idem, III, def. dos afetos, 1).

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Homero Santiago

Desejo é intrinsecamente movimento. É a força motriz que subjaz nossas passagens e inclui ainda a consciência delas. Não por acaso, é nele que os problemas desvelados pelo conceito de superstição, como alhures apresentado (cf. Santiago 12), encontram toda a sua amplitude, sua plena significação, fincados como estão na própria constituição de nosso ser, na própria estrutura do nosso desejo. Tudo se decide aí, mas não de maneira simplória. É necessário conferir o devido peso à brevíssima descrição da condição humana que Espinosa dá no apêndice da Ética I; e sem esquecer que, se lá ela serve de fundamento à dedução da superstição, igualmente poderia servir à dedução da liberdade, pois é a partir da mesma condição que se vai numa ou noutra direção. “Todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e todos têm o apetite de buscar o que lhes é útil, sendo disto cônscios.” Há de origem uma coisa finita, um apetite, um esse transiendi ao qual se ajunta o saber, a apercepção, a consciência de seus movimentos, de suas transições. Somos cônscios disso, portanto desejantes. Todavia, em simultâneo a clausula da ignorância nativa determina que não somos cônscios de algo, das causas das coisas; principalmente, temos de dizer em respeito ao uso do fundamento no apêndice, não somos cônscios das causas de nossos desejos. Junto à consciência, dá-se uma região do não-sabido, da não-consciência ou inconsciência, que põe todo o enigma de nosso ser desejante em face do mundo. Por que quero isso e não aquilo? Porque me surge como útil, decerto. Porém, sabe-se, não desejamos algo porque é útil; pelo contrário, é porque desejamos que algo nos surge como útil. Mas por que primeiramente queremos a coisa que, num segundo momento, aparecerá como útil? Certamente cada um de nossos impulsos tem causa; não obstante, em regra, a ignoramos. Ao querer, uma pessoa normalmente sabe que quer e sabe o que quer, mas quase nunca sabe por que quer o que quer. Trata-se de uma ignorância que, em algum grau, acompanha todo querer e que se explica pelo enraizamento profundo desse

querer no ser mais íntimo de cada um; o qual por seu turno está enraizado num mundo que o ultrapassa infinitamente, sendo imperscrutável em todos os seus meandros.

Somos ignorantes e desejantes. Eis um dado crucial para a complexidade de nosso ser, em sua totalidade. Fossemos só ignorantes, estaríamos próximos da vida animal, quiçá da mineral; pois com certo abuso podemos dizer que um verme bem como uma pedra igualmente ignoram; só que justo por não desejarem não produzem superstição. Fossemos só desejantes, nada ignorássemos, o verdadeiro seria para nós uma sorte de instinto; jamais se desejaria isso ou aquilo, mas só o realmente melhor, com base firme no conhecimento das causas. Nada disso. A humanidade depende inextricavelmente da amarração górdia, no ser do homem, de ignorância e desejo, certa ignorância e certa inconsciência combinadas com certo saber e certa consciência em variada proporção mas sempre indissociáveis. Trata-se de um nexo capital na Ética e ao qual pouco se chama a atenção, talvez devido ao receio, de resto compreensível, do uso da palavra “consciência”. Nesse caso, basta não substancializá-la, não a querer remetendo a uma interioridade. Também a consciência, aquela envolvida no desejo, é um fenômeno do meio, que relata algo de nossas relações com o real e depende igualmente de uma graduação.1

Como ignorância e desejo não se separam, inconsciência e consciência também não. E por isso, ainda, gostaríamos aqui de conceber servidão e liberdade como, em certo sentido, inseparáveis. Sentido que provavelmente não esgota as noções, mas que não deixa de exprimir uma verdade. É preciso desontologizar, desestatificar, por assim dizer, essas categorias; restituir-lhes o significado que pode emergir a partir do entre, isto é, do campo das transições e da perpétua variação. Um mesmo movimento pode assumir direções opostas, um mesmo ser desejante pode mover-se numa ou noutra direção, e com os termos servidão e liberdade

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designamos as correlações dinâmicas desse movimento; jamais coisas ou entes ou estados absolutos. Tomá-los à guisa de absolutos é erro simétrico a crer que as noções que usamos para pensar as coisas possam encontrar seus correspondentes nas próprias coisas. Servidão e liberdade são palavras de que nos servimos para indicar certa predominância na direção assumida por um desejo, portanto certa estruturação momentânea de um ser, conforme prevaleça ou o rebaixamento ou o aumento de sua potência. Entre um e outro há diferença decisiva de grau, proporção, não de natureza. Tanto servidão quanto liberdade radicam-se na mesma busca do útil, na mesma natureza desejante. Ex natura nostra libertas & servitudo: é o que nos obriga a pensar ambas, conjuntamente, como parte de nós e sem exclusivismos fáceis.

* * *

Tudo depende do desejo, da natureza em geral e da nossa natureza em particular. Só que essa certeza não pode fazer as vezes de panaceia. O desejo é um terreno de tensões; campo em que as partidas são jogadas, as apostas são feitas, sem ganhos nem perdas garantidos. Ao contrário do que vez ou outra parece imaginar um correntio para o qual a mera liberação do desejo seria o visto de entrada para a melhor das vidas, Deleuze e Guattari perceberam bem que o compromisso com a imanência não salva ninguém de antemão, não afiança a liberdade mais que a servidão. Os campos de concentração, as piores formas de opressão foram produzidos pelo mesmo desejo que movimentou as revoluções e inventou tenazes formas de resistência. Naturalmente, sempre. E daí declararem ser o problema maior da filosofia política entender por que, como reconhecera Espinosa, “os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação”.2

Na situação torta aí identificada vem uma mostra expressiva de quantas agruras o nosso desejo é capaz de reservar-nos. Pensando em

nossa tese, está aí um efeito maior da superstição. O que é superstição? É a servidão tornada sistema. Não é um preconceito nem um conjunto de preconceitos, não é redutível a crendices ou superstições, não é falsa consciência nem ignorância, não é tristeza nem medo. Superstição é o nome que se pode dar ao que emerge a partir do momento em que tudo isso se sistematiza; ao que resulta da elevação desses elementos a uma forma de sistema que explica, estrutura, organiza o real, incluindo aí nós mesmos, nossos desejos, nossa vida. Superstição é sistema da servidão. O seu segredo é a passagem do ocasional e fortuito ao necessário, sistêmico, estrutural. Transformação qualitativa dos elementos de nossa condição que a superstição consegue precisamente pelo desprezo à variação, pela rareação das transições, pela supressão do meio; no limite, ela acaba com a história para que seu império seja o mais perfeito, o mais perene possível. Sua forma acabada é o fatalismo, a ser compreendido no sentido preciso de mistificação das tensões, enrijecimento do mundo, esgotamento do novo, ontologização da liberdade e felicidade (só no além, o paraíso, o pós-revolução, o pós-reformas), da servidão e infelicidade (tudo neste mundo, nesta condição hodierna), da consciência (um dado substancial), da ignorância (que ou não poderia ser minorada ou, pelo contrário, seria facilmente superável). Gostaríamos de compreender o termo superstição nesse sentido amplo, que permita pensar da “ordem da vida comum” de que fala Espinosa até os campos nazistas, a obediência cega, o ódio ao diferente (cf. Santiago 10 e 13). Mas igualmente pensar os meios para seu enfrentamento. Reconhecido o seu segredo – o amortecimento da variação – e seu efeito maior – o fatalismo –, o primeiro gesto de luta só pode consistir, sem ilusões, no restabelecimento da variação, no retorno ao meio e às tensões, de modo tal que até o reencontro da servidão natural, isto é, restituída a seu lugar no vai e vem de nossa potência, já seja um ganho.

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Ora, os homens lutam por sua servidão como se lutassem por sua liberdade. Mecanismo terrível, sobretudo por sua eficácia. Não se pode negá-lo. Porém, cabe a pergunta: será essa a única dimensão possível para avaliar a situação? A ênfase sobre um aspecto não precisa ser exclusivista a ponto de impossibilitar todas as outras perspectivas. Certo que os homens, no final das contas, combatem pela servidão. Mas só o pior fatalista concebe, geralmente porque lhe interessa, contas findas. Para nós, elas nunca estão terminadas. O que mais interessa é o aventuroso in-fieri do cálculo; e nesse entanto os homens lutam efetivamente pela liberdade, mesmo que não por uma liberdade efetiva. É uma distinção importante, similar àquela que encontramos na Ética entre dizer que todos buscam o útil, efetivamente, e começar a se preocupar a certa altura em indagar o que é “efetivamente útil (revera utile)” (Espinosa 3, IV, prop. 18, esc.). Seja como for, notável é que em nenhum momento Espinosa retire da base da virtude o mesmo esforço pelo útil, quer se movimente através da liberdade, quer descambe pela servidão.

Em suma, queremos aqui frisar que, tão necessário quanto afirmar que os homens em certas circunstâncias produzem servidão como se buscassem a liberdade, é ver que nas mesmas circunstâncias eles buscam sua liberdade mesmo que produzindo a servidão. E nenhuma das pontas pode ser abandonada, ao custo de entrarmos no terreno de uma meia-sabedoria (denunciada por Pascal e de que logo falaremos) que periga acantoar-se numa unilateralidade, numa unidimensionalidade tão perversa quanto a própria superstição ao abraçar, por vias outras, o sentimento da fatalidade, um senso excepcionalmente aguçado para ver tudo de um só ponto de vista.

Nem otimismo nem pessimismo, só pensar sem cessão à unilateralidade, não importa qual. E voltar a acreditar, reencontrar uma fé que a fatalidade, venha de onde vier, tem o dom de roubar-nos.

* * *

O traço mais ousado e fascinante da apologética de Pascal é também o mais problemático. Apologia e jansenismo seriam compatíveis? O empenho, no caso da salvação, serve para algo? Tomemos uma passagem dos Escritos sobre a graça. De um lado, está a “opinião apavorante” dos calvinistas, “injuriosa a Deus e insuportável aos homens”, que estabelece uma vontade divina absoluta que não leva em conta a previsão nem de méritos nem de pecados; de outro está o erro inverso dos molinistas, que excluem a intervenção de qualquer vontade absoluta no que se refere a salvação ou perdição, que ficam portanto na inteira dependência da vontade humana (Pascal 7, pp. 312-313). Entre esses extremos Pascal se equilibra; nem dados lançados de uma vez por todas nem um xadrez em que a vitória só depende do mérito do jogador. E não é nada fácil manter o equilíbrio tendo de permanecer fiel à predestinação do Agostinho lido por Jansênio. Como a corda bamba se resolve teologicamente e quais suas implicações para o jansenismo pascaliano, pouco interessa aqui (para uma discussão do problema, ver Gouhier 4, p. 159 e seg). Importante é que daí resulte a própria possibilidade e pertinência da apologia, isto é, do empenho humano em dar bom rumo a coisas que não estão totalmente em seu poder e tampouco fogem completamente a sua alçada, ainda que por ignorância. Ouçamos a conclusão de Pascal. “Que todos os homens do mundo estejam obrigados, sob pena de danação eterna e pecado contra o Espírito Santo irremissível neste mundo e no outro, a crer que estão nesse pequeno número de Eleitos para a salvação dos quais J.C. morreu e a ter o mesmo pensamento de cada um dos homens que vivem sobre a terra, por mais que alguns sejam maus e ímpios, enquanto lhes restar um momento de vida, deixando o discernimento dos Eleitos e dos reprovados no impenetrável segredo de Deus.” (apud Gouhier 4, p. 161)

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Por isso a apologia tem lugar; mais, por isso ela constitui uma obrigação e uma tarefa. Dificilmente haverá melhor forma de lidar com uma determinação inapreensível, com um mundo que nos ultrapassa, dado antes de chegarmos e que continuará quando partirmos. Estamos obrigados a crer em nós, abraçando o pensamento da terra e deixando o juízo final ao arbítrio do próprio juiz. A apologia precisa restaurar o campo de tensões, repor contrariedades e paradoxos que não podem restar camuflados, resgatar o antagonismo entre altos e baixos, descobrir o terreno certo em que agir. Só assim ela pode ter algum sentido, isto é, alguma eficácia, ainda que não haja garantias de êxito.

Para tanto, muito significativamente, um de seus primeiros gestos é a revisão dos pontos de vista imperantes, lançando em suspeita os inteligentes que caçoam e desacreditam do mundo e dos homens. Ora, sob certa perspectiva, as opiniões do “povo” são “muito sãs”; por exemplo, “ter escolhido o divertimento, e a caça de preferência à presa”. “Os meio-sábios zombam disso e triunfam mostrando a esse respeito a loucura do mundo, mas por uma razão que eles não penetram” (Pascal 8, frag. 101). Raciocínio idêntico ao que encontramos estendido nas conhecidas linhas sobre o divertimento. “Eis tudo que os homens puderam inventar para se tornar felizes, e aqueles que, a respeito disso, bancam os filósofos e acreditam que o mundo é bem pouco razoável se passa o dia a correr atrás de uma lebre que não gostariam de ter comprado, não conhecem nada da nossa natureza. Essa lebre não nos garantiria contra a visão da morte e das misérias que nos desviam dela, mas a caça sim, nos garante.” (idem, frag. 136)

Os meio-sábios, sublinhemos, “não conhecem nada de nossa natureza”. Noutras palavras, a meia-sabedoria é uma ignorância total. Que seja posta de lado a meia-sabedoria, portanto, em benefício de uma sabedoria do meio que pode ao menos, como faz Pascal, discernir um aspecto verdadeiramente imanente do desejo pelo bem, pelo útil; não

tanto nos resultados quanto em sua própria atividade; menos a presa que a perseguição, menos o prêmio que o jogo – pensando na interpretação de Masoch feita por Deleuze (cf. Santiago 9), vem a tentação até de dizer: menos o gozo ou o prazer que o desenvolvimento produtivo de um campo imanente do desejo. Pascal é grande porque a apologia é como sua caçada, a corrida atrás de uma lebre, a graça, que só pertence a Deus. Não obstante, ele nisso se empenha com todas as suas forças. Não apenas sugere a razoabilidade da aposta, como ele mesmo aposta, equilibrando-se, na própria incerteza; à apologética incumbe, em primeiríssimo lugar, fazer como o povo faz todo dia, sanamente: “trabalhar pelo incerto, ir pelo mar, caminhar sobre uma prancha” (Pascal 8, frag. 101).

Dita aposta nos dá um modelo, não único mas excepcional, de uma atitude valente contra o fatalismo e os extremos absolutos. Similar àquela que gostaríamos de discernir ao falar de possível (cf. Santiago 11). Trabalhar pelo incerto, com a certeza de que esse trabalho vale a pena. Um ato de fé? Sim. Por que não? Tem-se fé em tantas coisas, por que não assumir a mais importante? Uma crença no mundo como aquela que Deleuze dizia ser “o que mais nos falta” (Deleuze 1, p. 218), e cuja redescoberta pensamos constituir uma das tarefas mais urgentes da filosofia. Ou ainda, convicção em nossas possibilidades, como recentemente, pouco antes da morte e já certo de sua proximidade, cobrou o historiador Tony Judt: “Não precisamos acreditar que nossos objetivos estão destinados ao êxito. Mas precisamos ser capazes de crer neles” (Judt 6, p. 167).

Esse tipo de aposta, fé, crença, esperança, convicção, seja qual o nome se der a isso, é condição de toda virtude. E só há virtude no meio.

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Homero Santiago

BEtwEEN SErVItUDE AND FrEEDom

Abstract: Our purpose is to define a problematic field that, in absence of a better description, can be situated between servitude and freedom. In this field, these categories should not be taken as absolutes, and they may assume a concrete sense, linked to the varied ways in which men seek happiness, sometimes successfully, sometimes with great failure.Keywords: servitude, freedom, transition, Spinoza, Pascal.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS

1. DELEUZE, G. “Controle e devir”. Entrevista a Toni Negri. In: Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2000.

2. ______; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 2010.

3. ESPINOSA, B. Ethica. In: Opera. Ed. Carl Gebhardt. Heidelberg, Carl Winters Universitætbuchhandlung, 1972, v. 2.

4. GOUHIER, H. Blaise Pascal. Conversão e apologética. Trad. Éricka Marie Itokazu e Homero Santiago. São Paulo, Discurso Editorial & Paulus, 2005.

5. GUERET, M.; ROBINET, A.; TOMBEUR, P. Spinoza. Ethica. Concordances, index, liste de fréquences, tables comparatives. Louvain-la Neuve, CETEDOC, 1979.

6. JUDT, T. O mal ronda a terra. Um tratado sobre as insatisfações do presente. Trad. Celso Nogueira. Rio de Janeiro, Objetiva, 2011.

7. PASCAL, B. Œuvres complètes. Ed. Louis Lafuma. Paris, Seuil, 1963.8. ______. Pensamentos. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo, Martins Fontes, 2001.9. SANTIAGO, H. “Deleuze leitor de Masoch: da sintomatologia à ética”. Comunicação

apresentada no colóquio “Deleuze leitor dos modernos”, Departamento de Filosofia-USP, agosto de 2010. Inédito.

10. ______. “Os excessos da identidade. Bento XVI e a questão da tolerância”. Lua Nova. Revista de cultura e política, São Paulo, no 74, 2008. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/ln/n74/08.pdf

11. ______. “Por uma teoria espinosana do possível”. Revista Conatus, Fortaleza, no 9, 2011. Disponível: http://www.benedictusdespinoza.pro.br/Revista_Conatus_V5N9_Jul_2011_Artigo_Homero_Santiago.pdf

12. ______. “Superstição e ordem moral do mundo”. In: Martins, A. O mais potente dos afetos. Spinoza e Nietzsche. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009.

13. ______. “Tem-se a polícia que se merece”. Cadernos de ética e filosofia política, São Paulo, no 9, 2006. Disponível: http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp9/santiago.pdf

NotAS:

1. Deus, as coisas, nosso próprio ser, não poderiam ser diversos; portanto, o que é crucial mudar em vista da felicidade é a nossa relação com o que existe; se há uma lição a tirar da noção espinosana de emendatio, esta é a principal. Conforme a quinta parte da Ética, é o que faz toda a diferença na determinação da superioridade do sábio perante o ignorante. Este é agitado pelas causas exteriores, desconhece o contentamento e é “quase ínscio de si, de Deus e das coisas”; em troca, aquele conhece o contentamento, pouco se perturba e é “cônscio de si, de Deus e das coisas” (Espinosa 3, V, prop. 42, esc.). Frise-se que a diferença é de grau, não absoluta. Nem o ignorante é completamente inconsciente (Espinosa diz “quase”) nem o sábio é completamente consciente (diz-se que ele é “dificilmente” perturbado, não que nunca o seja). A graduação é ainda mais clara quando o filósofo nos explica que aquele cujo corpo é dependente do exterior, como o de um bebê, tem uma mente que é “quase nada (nihil fere) cônscia nem de si, nem de Deus, nem das coisas”; já quem possui o corpo apto ao múltiplo tem uma mente “muito cônscia de si e de Deus e das coisas” (idem, V, prop. 39).2. Ver Deleuze & Guattari 2, p. 46: “Há tão somente o desejo e o social, e nada mais. Mesmo as mais repressivas e mortíferas formas da reprodução social são produzidas pelo desejo, na organização que dele deriva sob tal ou qual condição (...). Eis por que o problema fundamental da filosofia política é ainda aquele que Espinosa soube levantar (e que Reich redescobriu): ‘Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação?’.”

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a noÇão dE GraÇa EM blaisE PasCal

luís César Guimarães oliva*

resumo: A noção teológica de graça é um elemento fundamental da concepção pascaliana a respeito da natureza humana. Segundo o filósofo, o homem está submetido a uma tendência invencível à concupiscência e ao pecado, o que se explica pela doutrina do pecado original. Como este homem corrompido não tem força própria ou livre-arbítrio para sair sozinho desta condição de miséria, somente pela graça divina há perspectiva de salvação. Deste modo, a graça não deve ser entendida como um auxílio habitual, que todos podem utilizar segundo seu livre-arbítrio, mas como uma operação divina que quebra a tendência ao pecado e impõe outra tendência, igualmente invencível, à justiça.Palavras-chave: Pascal, pecado, graça, natureza humana.

Como é sabido de todos, a filosofia de Pascal é apresentada sobretudo nos Pensamentos, um conjunto de fragmentos preparatórios de uma Apologia da Religião Cristã, a qual ficou inconclusa. Por conseguinte, as reflexões aí apresentadas, independentemente de seu valor propriamente filosófico, estão em diálogo constante e frequentemente direto com a religião cristã e com a maneira peculiar pela qual a entendia o movimento jansenista, do qual Pascal fazia parte. Não é nosso objetivo, neste artigo, apresentar uma “teologia pascaliana”, até porque tal iniciativa, além de grande e pretensiosa demais para um artigo, talvez vá além do que a própria Abadia de Port-Royal (núcleo do movimento) esperava de Pascal. Se estivesse buscando um teólogo, o jansenismo estaria mais bem servido

* Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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com outros nomes, como por exemplo Arnauld. Eram as qualidades de filósofo, cientista, homem do mundo e polemista (além, evidentemente, do fervor de sua fé) que tornavam Pascal o mais indicado para a tarefa apologética, a saber, falar com os não-cristãos sobre a pertinência da religião e a necessidade (e razoabilidade) de buscar a fé. Por isso, nossa proposta não é mais do que decifrar um dos conceitos teológicos que mais mobilizaram o pensamento pascaliano, a graça, e fazê-lo visando à compreensão que Pascal tinha deste conceito, sem nenhum compromisso de adequá-lo à ortodoxia católica, ainda que Pascal, na sua época, pretendesse estar seguindo-a à risca. O que nos interessa, em suma, é explorar filosoficamente esse pressuposto não filosófico do pensamento pascaliano e assim ajudar a compreendê-lo melhor.

o pecado

Não conhecemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas que se passaram no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vão além da nossa capacidade presente (Pascal 7, fr. 560/431, pág. 176). Pascal evita especulações excessivas sobre o paraíso adâmico, ao contrário de Agostinho que discorre longamente sobre o assunto. Entretanto, nos Escritos sobre a graça, o apologista vê-se obrigado a tratar da questão (e para isso apela para a teologia agostiniana) para garantir que a condenação de Adão não foi injusta e que este teve o poder e a liberdade de pecar. Assumindo o pecado original, Pascal pode se calar sobre a questão da transmissão do pecado. Esta obscuridade, porém, não nos impede de ver que o pecado teve alcance infinito e que a culpabilidade foi humana.

O homem quis fazer-se centro de si mesmo. Sua grandeza junto a Deus fê-lo pensar que podia ser grande por si só. O orgulho levou-o,

deste modo, para a miséria. Se não tivesse feito isso, Adão poderia ter uma eternidade de vida e felicidade para si e seus descendentes. Pecando, obteve dor, sofrimento, morte e condenação eterna para toda a humanidade. Após o pecado, o homem tornou-se pequeno e miserável, e por isso nenhuma de suas boas ações pôde compensar o mal criado por Adão. Só ele tinha a grandeza para escolher livremente, sem atrações irresistíveis, entre o mal e o bem eternos, só ele tinha proporção com o infinito. Por esta razão é justo que Deus condene toda a posteridade em nome do pecado de Adão: nenhuma das virtudes humanas pode recuperar tal proporção.

Através de Adão, o homem escravizou-se à concupiscência.Como diz Pascal na Carta sobre a morte de seu pai: Deus criou o Homem com dois amores, um por Deus, outro por si mesmo; mas com esta lei, que o amor por Deus seria infinito, isto é, sem nenhum outro fim além de Deus mesmo, e que o amor por si mesmo seria finito e ligando-se a Deus. (...) O pecado tendo chegado, o homem perdeu o primeiro destes amores; e o amor por si ficou nesta grande alma capaz de um amor infinito; este amor próprio se estendeu e inundou o vazio deixado pelo amor de Deus; e assim ele se amou por si e a todas as coisas por si, isto é, infinitamente. (Pascal 6, pág. 277)

A partir disto, o homem tornou-se um campo de batalha: o corpo luta contra a alma e ambos lutam contra Deus. A carne passou a ser uma inimiga ferrenha da salvação e dominou todo o ser humano. Por isso, nenhuma possibilidade de conversão existe enquanto o homem não odeia a si mesmo e se anula totalmente para se colocar à disposição de Deus. A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se diante desse ser universal que tantas vezes tem sido irritado e que pode perder-vos legitimamente a todo momento. (Pascal 7, fr. 470/378, pág. 153)

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A cura pela graça

O pecado original tem como contraponto indispensável a noção de graça. Sem ela, o homem estaria condenado ao desespero. Corroborada pela Escritura e pela Tradição, a graça é a única alternativa para vencer a miséria.

A noção de graça só pode ser entendida no interior das polêmicas das quais Pascal participava na época. Pascal situava seu grupo (os jansenistas ou “discípulos de Santo Agostinho”) entre dois extremos: calvinistas e molinistas.

Pascal assim apresenta nos Escritos sobre a graça a opinião dos calvinistas: Deus, criando os homens, criou uns para daná-los e outros para serem salvos por uma vontade absoluta e sem previsão de mérito. Que, para executar esta vontade absoluta, Deus fez Adão pecar, e não somente permitiu mas causou sua queda (Pascal 6, pág. 312). Ou seja, a corrupção do homem, após o pecado, torna-se um dado intrínseco da natureza humana mesmo na Criação, quando a noção de penalização não tinha sentido. O homem é incapaz de obras realmente boas. Mesmo que as realize materialmente, estará pecando porque a intenção, em última análise, é carnal. O resultado disto é que: (...)eles não pretendem que a Fé justifique obtendo de Deus uma verdadeira justiça interior, mas somente revestindo-nos da justiça de Jesus Cristo, por uma imputação simples à qual eles atribuem a remissão dos pecados. É isto que eles chamam ser justificado relativamente, e não formalmente ou meritoriamente (Laporte 3, pág. 7)1

A justiça que está em jogo é apenas aquela pela qual Deus é justo. O sacrifício de Cristo, em oposição à doutrina católica, não constitui uma justiça justificadora, que nos santifica, mas apenas uma justiça imputada, que não transforma o homem. A fé justifica o homem não como um princípio de regeneração e de boas ações, mas como um sinal de que a justiça de Cristo lhe é imputada. Esta imputação não apenas independe de mérito, mas

também independe dos pecados do novo homem “justo”. Seus crimes e pecados (inevitáveis) não lhe são mais atribuídos. Ainda que da fé decorram obras materialmente conformes à Lei, não é por essas obras que o homem é justo e sim pela não imputação dos crimes. Vê-se que a graça de Jesus Cristo, neste caso, é um dom salvador que, contudo, permanece exterior ao homem. A denominação de justo não implica um conteúdo determinado. Por isso não se pode falar de mérito, nem mesmo mérito através de Jesus Cristo, já que a exterioridade da justiça é absoluta. Também não se pode falar de luta contra a natureza corrupta ou tentativa de cumprir os mandamentos pois isso é totalmente indiferente para o processo de salvação.

Já os molinistas são apresentados assim: Deus tem uma vontade condicional de salvar em geral todos os homens. Que para isto Jesus Cristo se encarnou de modo a salvá-los todos sem exceção, e que suas graças sendo dadas a todos, depende apenas da vontade deles e não da de Deus usá-las bem ou mal (Pascal 6, pág. 312). Se os protestantes erram ao estender à Criação as características do homem pecador, os molinistas erram ao trazer para o estado corrupto as características da natureza adâmica. A natureza em Adão é forte, capaz por si mesma de se salvar ou se perder. Portanto, a vontade de Deus ao salvar os eleitos é apenas condicional, ou seja, Deus prevê, desde toda a eternidade, quais serão as escolhas do livre arbítrio humano e separa os justos a partir disto. A intervenção de Deus é a mesma de um astrônomo que prevê a passagem de um cometa: há pré-ciência, não determinação.

O papel de Deus é pequeno mas, em contrapartida, a missão do homem também o é. Para os jesuítas, que são os representantes do molinismo a que se refere Pascal, a moral e a justiça consistem na observação da Lei tomada em si mesma, reduzida à Letra, independente do Espírito. Neste sentido compartilham do espírito judaico (tal como o entendia Pascal) que lê a Bíblia atendo-se apenas à Letra. Povo carnal,

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os judeus não podiam chegar à significação espiritual do texto e por isso se restringiam à realização exterior dos mandamentos. Os jesuítas são incapazes de distinguir a justiça judaica (carnal) e a cristã (espiritual). O que eles não enxergam é a essencialidade do primeiro mandamento. O amor a Deus, no sentido católico, é uma disposição interior da vontade para se unir à vontade divina. Os jesuítas, por outro lado, dizem que o amor efetivo é apenas o cumprimento exterior dos outros mandamentos. Isto significa que eles sequer cumprem plenamente a Lei pois burlam o “amar a Deus sobre todas as coisas”.

O que está por trás disso é o princípio enganoso de que não se pode exigir do homem nada que sua natureza não tenha o poder de realizar. Seu raciocínio é basicamente este: a verdadeira justiça depende principalmente do livre arbítrio humano, entendido como liberdade de indiferença; mas há um grande número de coisas em que sinto que minha liberdade de indiferença não cabe, que minha vontade é impotente; portanto estas coisas não fazem parte da justiça. Meu dever se mede por meu poder, apreciado segundo os limites efetivos que a experiência obriga a reconhecer (Laporte 3, pág. 15).

Disto decorre que a moral jesuítica não busca elevar a natureza para que ela possa cumprir a Lei, mas sim adequar a Lei aos defeitos da natureza. A corrupção desta faz que os jesuítas sejam obrigados a inventar inúmeras estratégias para reduzir as exigências da Lei. A casuística, contra a qual Pascal se bateu nas Provinciais, é a prova disto. Os casuístas eram doutores jesuítas que se dedicavam a analisar dilemas morais (casos de consciência). Isto não seria ruim se seu verdadeiro intuito não fosse burlar a Lei. Eles desenvolviam doutrinas como a da Probabilidade, que dizia que o homem podia seguir indiferentemente qualquer conduta que já tivesse sido aprovada por um doutor grave (entenda-se: jesuíta). Só que a diversidade de opiniões era muito grande e o homem podia seguir a que mais lhe conviesse,

mesmo que apenas um único doutor a tivesse defendido. Outra destas doutrinas era a da direção da intenção, onde o homem estava liberado para cometer um pecado desde que visasse a um fim correto. Isto permitia um “conserto” da má ação. Em ambos os casos, os jesuítas diziam que, mesmo pecando materialmente, os homens não pecariam formalmente, já que a boa intenção ou o parecer favorável de um doutor grave justificariam o ato e não permitiriam que o pecado fosse imputado.

A conseqüência que se extrai disto é que os jesuítas não se prendiam ao cumprimento da Lei, mas ao cumprimento do que “cada homem entendia pela Lei”. A inversão de valores que aí ocorre faz que a justiça seja não apenas exterior (no sentido de que se reduz à obediência exterior), mas também meramente humana. Conforme diz o fragmento 907/601 dos Pensamentos: Os casuístas submetem a decisão à razão corrupta e a escolha das decisões à vontade corrupta, a fim de que tudo o que há de corrupto na natureza do homem participe de sua conduta (Pascal 7, pág.273). É surpreendente como, por caminhos opostos, os erros calvinista e molinista se encontram: em ambos a palavra justiça tem a significação diluída.

Ao serem combatidos, os jesuítas acusavam os jansenistas de perturbar a paz da Igreja. Esta acusação mostra mais uma vez que eles tinham referenciais humanos, ao invés de divinos. Por um lado, Pascal exaltava a conquista da paz humana e sabia que este era o principal objetivo da esfera política. A corrupção da natureza foi tão radical que, sem a imposição dos fortes, o mundo estaria condenado ao estado de guerra hobbesiano. Como é dito no fragmento 299/81: (...) Sem dúvida, a igualdade dos bens é justa mas, não se podendo fazer que seja forçoso obedecer à justiça, fez-se que seja justo obedecer à força; não se podendo fortificar a justiça, justificou-se a força, a fim de que o justo e o forte existissem juntos, e que a paz existisse, que é o soberano bem (Pascal 7, pág. 113)2 Contudo, Pascal sabe

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que este é um ideal puramente humano. É o soberano bem apenas em sua ordem. O homem deve visar, sobretudo, ao ideal da ordem da caridade: a justiça divina. A Igreja, como corpo de Cristo, não pode submeter-se aos valores humanos. Deve ter consciência de que participa de outra ordem.

Os jesuítas, entretanto, agem como se a Igreja fosse da ordem material. A paz que dizem defender não é a da Verdadeira Justiça, mas a paz humana, relativa, variável a cada país. Na tentativa de universalizá-la e sem ter a força dos governos, os jesuítas são levados ao relaxamento moral, descaracterizando Justiça e Lei, Espírito e Letra. Além disso, a própria ordem política pode ser prejudicada pelas intervenções dos jesuítas porque as especulações teóricas sobre a possibilidade dos duelos, calúnias, etc podem facilmente ser levadas à prática, desestruturando a sociedade. Pascal tem plena consciência do malefício desta naturalização da paz. Como ele diz no Second écrit des cures de Paris: Mas os verdadeiros filhos da Igreja sabem discernir a verdadeira paz que apenas o Salvador pode dar e que é desconhecida do mundo, separando-a da falsa paz que o mundo pode dar mas que horroriza o Salvador. Eles sabem que a verdadeira paz é aquela que conserva a verdade na crença dos homens, e que a falsa paz é a que conserva o erro na credulidade dos homens. Eles sabem que a verdadeira paz é inseparável da verdade, que ela jamais é interrompida aos olhos de Deus pelas disputas que parecem interrompê-la aos olhos dos homens, quando a ordem de Deus obriga a defender as verdades injustamente atacadas . O que seria uma paz diante dos homens, é uma guerra diante de Deus (Pascal 6, pág. 478).

Dentro deste quadro, o espaço entre corrupção e salvação é tão ínfimo que praticamente não há função para a graça, a qual deveria ser responsável pela travessia de uma grande distância. Deste modo, a noção de natureza termina por abarcar corrupção e salvação. Mas os jesuítas não podem dispensar a noção tradicional de graça e acabam por aceitá-la como

“graça suficiente”. Diz a Segunda Provincial: (...)os jesuítas pretendem que há uma graça dada em geral a todos os homens, submetida de tal modo ao livre arbítrio que este a torna eficaz ou ineficaz segundo sua escolha, sem novo socorro de Deus e sem que nada lhe falte para agir efetivamente; o que faz que eles a denominem suficiente porque basta para agir (Pascal 6, pág. 375).

A graça suficiente, dada a todos, coloca a salvação nas mãos do livre arbítrio. Se isto não ocorresse, dizem os jesuítas, os pecados não poderiam ser atribuídos aos homens. Neste contexto, não há como diferenciar o homem atual de Adão. Deveríamos, portanto, concluir que a graça suficiente é, como no paraíso, um socorro habitual, não especial.

O que se extrai de toda a argumentação jesuítica é que a justificação não decorre de um dom sobrenatural, mas de um processo natural. A pergunta que permanece é: Por que Jesus Cristo se sacrificou em nome de uma justificação meramente humana?

A graça transformadora

A graça de Jesus Cristo, segundo Pascal, não pode ser fraca como nas concepções calvinista e molinista: Em ambos os casos, o que toma o lugar do princípio interior, ativo e vivo da moralidade é a fórmula, o ato superficial sem raízes profundas na vontade. Considera-se este ato justificador, independente de toda conversão efetiva e séria da alma.

Doutrinas cômodas em verdade, pois tornam o ‘ caminho do Céu bem largo e a salvação bem fácil’ , mas por isso mesmo ‘ não podem ser a verdadeira doutrina de Jesus Cristo’ (Laporte 3, pág. 24).

Ambas as escolas ignoram o poder transformador intrínseco da graça. Pascal compartilha a visão dura que o Calvinismo tem da natureza humana, mas exige uma reparação de fato, coisa que ambas as escolas

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não oferecem. O Calvinismo porque rebaixa irreversivelmente o homem, aniquilando a esperança. O Molinismo porque nunca chega a ver o homem efetivamente rebaixado, de modo que não há sentido em recuperá-lo. Pascal precisa abarcar os dois extremos: Se ele se gaba, rebaixo-o; se ele se rebaixa, gabo-o; contradigo-o sempre até que compreenda que é um monstro incompreensível (Pascal 7, fr. 420/130, pág. 135).

Para que se possa falar de recuperação e esperança, é preciso aceitar uma graça transformadora que retire o homem de sua condição miserável, ou melhor, que faça o homem vencer a concupiscência. A possibilidade desta vitória se dá pelo sacrifício de Cristo que, enquanto homem, fez a Deus uma oferta que tinha proporção (porque Cristo também é Deus) com a ofensa do pecado original. Que concluam o que quiserem contra o deísmo, nada concluirão contra a religião cristã, que consiste propriamente no mistério do redentor, o qual, unindo nele as duas naturezas, a divina e a humana, tirou os homens da corrupção do pecado para reconciliá-los com Deus em sua pessoa divina (Pascal 7, fr. 556/449, pág. 173).

Quanto à justificação, Pascal se apóia nas determinações do Concílio de Trento, sessão VI : A esta disposição ou preparação, segue-se a justificação mesma que é não apenas remissão dos pecados (can. 11) , mas também santificação e renovação do homem interior, pela recepção voluntária da graça e dos dons, de onde o homem se converte de injusto em justo e de inimigo em amigo, para ser herdeiro segundo a esperança da vida eterna (Tit. 3,7) (Denzinger 1, pág. 230). A essência da justificação, afirma o decreto, é a Justiça de Deus, não aquela pela qual Deus é justo, mas aquela pela qual Deus nos faz verdadeiramente justos. A Justiça não é meramente imputada, mas recebida por cada homem justo segundo a medida em que o Espírito Santo a reparte. A sobrenaturalidade da Justiça, portanto, se mantém: ela é de cada homem mas não é uma justiça puramente humana.

A justificação, como santificação, tem por causa eficiente (termos do concílio) a graça. Assim podemos ver a magnitude do poder deste dom. Pascal não busca definir o termo “graça”, à maneira escolástica, como um “acidente infuso” ou um “hábito entitativo”. Agostinianamente, Pascal tem sempre em vista a finalidade salvífica do conhecimento. Por isso a caracterização ontológica do termo importa pouco. Ou talvez Pascal esteja apenas aplicando o preceito apresentado em A Arte de Persuadir : “Não definir coisas tão conhecidas por si mesmas que não haja termos mais claros para explicá-las.” Não que a natureza da graça seja conhecida, mas o pensamento se dirige sempre para o mesmo objeto quando se ouve a expressão. De qualquer maneira, o que importa para Pascal são as conseqüências morais da ação da graça pois isto é primordial para nossa salvação.

Do ponto de vista da ação divina, a graça pode ser concebida como (...) a operação onipotente de Deus no mais íntimo da alma, ou talvez como a transfusão - chegando a uma união mais estreita que a da alma e do corpo, e comparável à união das duas naturezas na pessoa do Verbo Encarnado - da vontade divina na vontade humana, como a participação momentânea de certos homens na vida de Deus (Laporte 2, pág. 250). Em outras palavras ( Rom.5,5), é a caridade que se derrama por meio do Espírito Santo nos corações. A caridade é o amor de Deus. O amor, na concepção católica, não é um sentimento passivo e estático, mas um movimento, uma inclinação da vontade do amante para o querer do amado. As vontades humana e divina se unem na caridade e é isso, em última análise, a nossa justiça: querer o que Deus quer. A manutenção desta união até o fim da vida representa nossa salvação.

Do ponto de vista da psicologia humana, a graça aparece como uma deleitação na lei de Deus, ou seja, uma atração para o bem que supera a atração para o mal, inerente à natureza corrupta. Como dizem os Escritos: Para salvar seus eleitos, Deus enviou Jesus Cristo para

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satisfazer sua justiça, e para merecer de sua misericórdia mandou a graça da Redenção, graça medicinal, graça de Jesus Cristo, que nada mais é que uma suavidade e uma deleitação na lei de Deus, derramada no coração pelo Espírito Santo, que não somente igualando, mas superando a concupiscência da carne, enche a vontade de uma maior deleitação no bem do que a concupiscência lhe oferece no mal, e assim o livre arbítrio, seduzido pelas doçuras e prazeres que o Espírito Santo inspira, mais que pelas atrações do pecado, escolhe infalivelmente a lei de Deus pela razão de que ele acha mais satisfação e que ele aí sente sua beatitude e felicidade (Pascal 6, pág. 318).

O termo deleitação é usado comumente para graça e concupiscência de modo a contrapô-las como duas forças que agem em sentidos opostos. A força vencedora arrasta a vontade humana. Não é contudo um termo que tenha conotação estritamente sensível, ou Pascal estaria materializando a graça. A atração carnal é também sensível, mas significa, antes de tudo, a troca dos valores divinos por humanos (sensíveis ou intelectuais). A deleitação da graça, por sua vez, é uma atração espiritual. As Provinciais trazem uma formulação menos passível da crítica de “sensualização”: (...) Deus muda o coração do homem por uma doçura celeste que nele derrama, que superando a deleitação da carne faz que o homem, sentindo de um lado sua mortalidade e seu nada, e descobrindo por outro a grandeza e a eternidade de Deus, concebe um desgosto pelas delícias do pecado, que o separam do bem incorruptível. Achando sua maior alegria no Deus que o encanta, para Ele se conduz por si mesmo, por um movimento livre, voluntário, amoroso; de modo que ser-lhe-ia uma pena e um suplício separar-se d’Ele (Pascal 6, pág. 462).

De qualquer maneira, o que importa para Pascal é a infalibilidade da graça. O autor não pode aceitar uma graça que não seja imediatamente eficaz, sob o risco de recair na heresia jesuítica da graça suficiente. Estes

dois tipos de graça, na opinião de Pascal nos Escritos, não podem coexistir: Como diremos que é apenas a graça que dá a fé à vontade, se certas pessoas, tendo um poder próximo de chegar à fé, obtiverem-na atualizando seu poder e , deste modo, não for verdade para elas que apenas a graça dá a fé?(Pascal 6, pág. 330). É impossível aceitar a graça suficiente sem tornar inócua a graça eficaz e Pascal não pode admitir tal coisa. Como operação divina que é, a graça tem que ser eficaz por si mesma. No paraíso adâmico, a graça era habitual e podia ser entendida de maneira similar à graça suficiente dos jesuítas, mas o pecado acabou com isto. Em nossa condição atual, graça é sinônimo de graça eficaz. Pascal recusa as distinções de graças apresentadas pela Escolástica. A graça é uma só. Mesmo as graças temporárias daqueles que chegam à fé mas a perdem (fato que Pascal reconhece) não são tratadas com relevo e sequer têm denominação específica.

Resta ver como se dá a operação divina da graça.

o coração e a graça

O coração é o órgão dos princípios da Geometria. O coração sente os princípios e só então, a partir deles, o raciocínio deduz as conseqüências necessárias. Mas este sentimento não é somente passivo. O que nem sempre é lembrado pelos comentadores é que o sentimento do coração se move em direção aos princípios corretos e, neste movimento, proporciona a certeza. Estes princípios determinarão todo o movimento do raciocínio. O movimento é muito parecido com o de amor, que inclina a vontade do amante para o querer do amado. Analogamente, na ação da graça há uma deleitação maior da vontade no bem do que havia no mal, o que leva à santificação e às boas obras.

Esta duplicidade do coração é um sinal de que se trata de um órgão mais profundo do que se pensava. Já que o coração nos pareceu aparentar-

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se à inteligência e à vontade, e não se reduzindo a nenhuma delas, não seria o coração menos uma faculdade especial do que o centro de todas as nossas faculdades, a raiz comum do sentir e do conhecer, tomada a esta profundeza íntima em que as duas funções psíquicas não estão ainda diferenciadas (Laporte 3, pág. 111).

A já citada Carta sobre a morte de seu pai denuncia a desordem que o pecado causou no coração. Este texto, fundamental no pensamento pascaliano, mostra como o pecado afastou o amor de Deus (caridade) do coração, tirando-lhe o princípio das boas obras. Restou o amor de si, incapaz de preencher o vazio do amor de Deus e por isso mesmo insaciável.

Pascal é um pensador da ruptura radical. Assim como não há gradação que ligue o finito e o infinito, também não há meio termo entre o amor de si e o amor de Deus. Todos os movimentos da vontade reduzem-se a estes dois amores, que nunca se combinam. Mesmo no paraíso, quando os dois amores coabitavam pacificamente, havia na verdade um domínio do amor de Deus, o qual era o princípio e fim da vontade, enquanto o amor de si era apenas meio de expressão da caridade. Com o pecado, veio o domínio do amor de si e a criatura passou a ser princípio e fim de si mesma. A concupiscência passou a determinar a movimentação da vontade infalivelmente, não só por sua força, mas porque a deleitação oposta deixou de existir. O homem, que sempre busca ser feliz, agora só via a felicidade na criatura. Entretanto, não houve ordenação satisfatória a partir da criatura: a finalidade que se propunha no ser finito era totalmente desproporcional à capacidade infinita do coração, embora a infinitude também fosse desproporcional à situação de fato do coração. O homem viu-se então perdido entre os extremos: incapaz de abandonar o amor de si pois não há mediação que o conduza à caridade; incapaz de superar o vazio de Deus pois o coração é um órgão destinado ao infinito; incapaz de assumir o meio termo pois esta opção, além de impensável, é no limite inexistente.

O coração, para Pascal, designa sempre esta corrente afetiva profunda, subjacente a toda vida psicológica, e que determina sua orientação (Laporte 3, pág. 113). Esta definição de Laporte é bastante adequada e engloba tudo o que dissemos até agora. Porém esta não é a definição definitiva de Laporte em seu livro. Não é a definitva porque, embora não exclua, também não destaca o que há de mais importante no coração: a abertura para o sobrenatural. A desproporção e a conseqüente inquietação do coração com a ordem material apontam para o divino. Só assim haverá satisfação e repouso. Contudo, o coração não é, por si só, sobrenatural. Ele é “sobrenaturalizável” através do fluxo da graça que o faz sentir Deus. A partir deste novo ponto de vista, Laporte dá sua mais completa definição do coração: Eis o que é o coração: essência da vontade, o mais íntimo da alma onde alcançamos simultaneamente o que há de mais essencial na natureza e aquilo por que a natureza se reúne e se abre ao sobrenatural (Laporte 3, pág. 118). O coração congrega o que há de mais essencial na natureza humana: a corrupção que a domina e a capacidade para o infinito que é seu fim. O homem é resultado infalível do coração. Por isso, quando se fala em corrupção da vontade ou da natureza, trata-se, em última análise, de uma inversão de valores no coração. A vontade e o raciocínio, considerados independentemente de seus princípios e finalidades, não são propriamente defeituosos.

Como então se dá a ação da graça? Já dissemos que a graça, do ponto de vista da ação divina, é uma operação onipotente; e do ponto de vista da psicologia humana, é uma deleitação, suavidade ou atração para o bem. Disto podemos deduzir que a graça é um dom de Deus que, transmitido para o mais íntimo do homem (o coração), determina infalivelmente a vontade humana a se unir à divina. Esta determinação se dá pela deleitação que o homem passa a sentir nos princípios e fins que regem as boas obras. Este sentimento é igualmente uma inclinação que move a vontade no bom

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caminho, onde ela encontra felicidade e facilidade. “Meu fardo é leve e meu jugo é suave” diz a Escritura.

A plenitude deste dom aniquila o amor de si, já que o infinito não tem proporção com o finito. A inversão de valores decorrente da presença da graça é descrita detalhadamente em Sur la conversion du pecheur: A primeira coisa que Deus inspira na alma que Ele se digna a tocar verdadeiramente é um conhecimento e uma visão extraordinária pela qual a alma considera as coisas e ela mesma de maneira totalmente nova.

Esta nova luz lhe dá temor e lhe traz um tremor que atravessa o repouso que ela encontra nas coisas que fazem suas delícias.

Ela não pode mais desfrutar com tranqüilidade das coisas que a seduziam. um escrúpulo contínuo a combate neste gozo, e esta visão interior não lhe faz mais encontrar a doçura habitual entre as coisas a que ela se abandonava com plena efusão de seu coração (Pascal 6, pág. 290).

A presença infinita do sobrenatural na alma faz que o homem passe a pensar sobre tudo com um parâmetro infinito. Diante da eternidade, a duração se aniquila e faz o homem ver as coisas perecíveis como já perecidas. Diante do infinito, a extensão finita se reduz ao nada, e etc. Assim o finito se desvanece e a vontade, impulsionada pelo infinito, coloca-se num movimento que só pode dirigir-se para o próprio infinito. Esta elevação é tão eminente e transcendente que ela não pára no céu ( ele não tem como satisfazê-la), nem acima do céu, nem nos anjos, nem nos seres mais perfeitos. Ela atravessa todas as criaturas e só pode parar seu coração diante do trono de Deus, no qual começa a achar seu repouso. Este bem é tal que não há nada de mais amável e que só pode ser retirado mediante seu próprio consentimento (Pascal 6, pág. 291). Esta é a abertura para o infinito, atualização das potencialidades sobrenaturais do coração. É a graça que realiza esta sobrenaturalização do coração, reconduzindo-o a um estatuto semelhante ao da interioridade agostiniana.

Pascal é mais duro que Agostinho com a natureza humana. Se Agostinho via o Verbo Divino no interior de todos os homens, Pascal vê esta presença como mera potencialidade, a não ser que se a entenda como presença ausente. De fato, esta ausência, por seu caráter infinito e divino, tem uma consistência ontológica muito maior que toda a Criação. De qualquer modo, a graça atualiza a capacidade infinita do coração dando ao homem uma participação verdadeira na natureza divina e recuperando a semelhança com Deus perdida no pecado. Diz o fragmento 434/131: (...)que o homem, no estado da criação ou no da graça, é alcançado acima de toda a natureza, tornado como que semelhante a Deus e participante da sua divindade;(...) (Pascal 7, pág. 143). Quando a caridade se derrama no coração, o homem passa a partilhar do princípio das operações divinas e, por conseguinte, da natureza divina.

Diferente da graça de Adão (habitual), a graça de Jesus Cristo é um influxo, como explicita Pascal em carta de 5 de novembro de 1648: Assim a continuação da justiça dos fiéis não é outra coisa senão a continuação da infusão da graça, e não uma só graça que subsiste sempre. Isto nos ensina perfeitamente a dependência perpétua em que estamos da misericórdia divina, já que, se Ele interrompe o curso, a secura vem necessariamente. Nesta necessidade, é fácil ver que é preciso continuamente fazer novos esforços para adquirir esta novidade constante do espírito, já que não podemos conservar a graça antiga senão pela aquisição de uma nova graça(...) (Pascal 6, pág. 488).

O excerto mostra que não se trata de um dom definitivo, utilizável ao bel prazer do homem. A graça é um dom que se renova a cada instante. Aliás, nem poderia ser diferente, visto que :o tempo cura as dores e as querelas, porque mudamos e não somos mais a mesma pessoa. Nem o ofensor nem o ofendido são mais eles próprios. É como um povo que irritássemos e tornássemos a ver duas gerações depois: são ainda os

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franceses, mas não os mesmos (Pascal 7, fr. 122/802, pág. 69). Por isso o convertido vê com medo a passagem do tempo. A cada instante ele pode perder a semelhança divina e, por conseqüência, a si mesmo, pois agora só pode pensar-se como filho de Deus. Com a divisibilidade infinita do tempo e o fluxo inexorável dos instantes, o presente, único tempo realmente nosso, é ínfimo demais para nos dar repouso. Este repouso só virá na glória, depois da morte, onde o homem terá o instante infinito da eternidade. Mas devido à ação sobrenatural da graça, o presente ganha consistência suficiente para que o homem possa orar pela manutenção da fé. Graças à oração, portanto, o convertido pode ver a passagem do tempo não só com medo, mas também com esperança.

Se o homem orar, pedindo pela perseverança, será atendido. Assim dizem as promessas do Evangelho. Mas a perseverança na oração, totalmente incondicionada, pode cessar a qualquer instante. Se o influxo da graça para, o coração esvazia-se de infinito e a concupiscência volta a ser o motor da vontade. Tal como o desejo da graça, o pedido da graça, a recepção e a aceitação da graça são igualmente ações da graça, de modo que o homem não tem como garantir-se por si mesmo entre os santos. O mérito de quem recebe a graça é constituído pela própria graça e este é o sentido da expressão agostiniana “graça sobre graça”. O fato de haver uma causalidade interna ao dom, não altera portanto a incondicionalidade deste dom.

É com esta argumentação que Pascal ataca a noção jesuítica de “poder próximo”. Afirmam os jesuítas que os justos têm sempre o poder próximo de perseverar no instante seguinte. Para Pascal, esta afirmação vem de uma interpretação enganosa de palavras do Concílio de Trento. A justiça não passará do instante presente se Deus cortar o fluxo da graça e por isso o homem não tem poder nenhum que se projete para o futuro. Logo, ninguém pode estar certo, até o último sopro de vida, de que está

entre os salvos. De um lado, um justo pode perder-se antes de morrer e então toda uma vida de boas obras não lhe garantirá a salvação. De outro lado, um bandido pode ser convertido e perdoado antes de morrer, receber a graça da justificação e ser salvo. Esta doutrina da predestinação, que Pascal extrai basicamente de S. Agostinho, pode ser compreendida mais facilmente quando se vê a graça como influxo. Desde toda a eternidade Deus havia escolhido aqueles que receberiam a graça e, dentre estes, aqueles que receberiam o influxo continuamente até a morte, os eleitos.

Conclusão

Operação infalível, deleitação, influxo. Estas três noções, originárias da teologia jansenista, são fundamentais para entender a graça em Pascal. É ponto pacífico que a doutrina pascaliana se harmoniza amplamente com a doutrina agostiniana da graça (ou pelo menos com aquela dos chamados escritos anti-pelagianos de Agostinho, largamente citados por Pascal), de onde vêm seus princípios básicos. O que se critica comumente é a marca jansenista que ela carrega. A leitura de Jean Laporte, contrariando outros intérpretes (como Maurice Blondel), ressalta que esta crítica não tem sentido. Pascal não só foi influenciado pelo Jansenismo, como foi a mais rigorosa expressão da teologia jansenista, talvez até mais que Arnauld ou Nicole. Querer tirar Pascal do contexto da teologia jansenista seria também desqualificar toda sua doutrina da graça.

Mas trata-se de uma doutrina heterodoxa em termos teológicos? A julgar pelas palavras de Pascal, diríamos que não. Senão vejamos a Décima sétima Provincial: É portanto seguro, meu Padre, que a graça eficaz não foi condenada. Ela é tão firmemente sustentada por Santo Agostinho, por São Tomás e sua escola, por tantos papas e concílios e por toda a tradição, que seria uma impiedade tachá-la de heresia. Ora,

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todos os que tratais de heréticos declaram que não encontram outra coisa em Jansénius senão esta doutrina da graça eficaz (Pascal 6, pág. 457). É também nítido o esforço dos Escritos sobre a Graça em mostrar ostensivamente que os principais pontos da teologia jansenista, aí incluída a doutrina da graça, estão perfeitamente de acordo com São Paulo, com o Concílio de Trento e se originam em Santo Agostinho. Ao mesmo tempo, Pascal defende que a teologia deve basear-se apenas na Tradição e na Autoridade. Portanto, não há como negar que Pascal julgava sua doutrina da graça perfeitamente católica, bem como julgava católico o movimento jansenista do qual participava.

Por outro lado, se este julgamento se sustenta ou não, é algo que os historiadores da teologia podem responder, mas isso não nos interessa diretamente. O que nos importa aqui é a compreensão da doutrina da graça, tal como Pascal a concebia, visto que, sem ela, muitos dos seus escritos perdem o sentido.

tHE PASCALIAN NotIoN oF grACE

Abstract: The theological notion of grace is a fundamental element of the pascalian conception of human nature. According to this philosopher, man is under an unbeatable tendency to cupidity and sin, what is explained by the doctrine of original sin. As this corrupted man doesn´t have enough strength neither free will to leave this condition of misery by himself, the only perspective of salvation is through divine grace. So, grace must not be understood as an usual help, that everyone can use according to his own free will, but as a divine operation which brakes the tendency to sin and imposes another tendency, equally unbeatable, to justice.Keywords: Pascal, sin, grace, human nature

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. Denzinger, E. El Magisterio de la Iglesia, Barcelona: Herder, 1963.2. Laporte, J. Pascal et la Doctrine de Port Royal in Vários, Études sur Pascal. Paris:

Armand Colin,1923.

3. Laporte, J. Le Coeur et la Raison selon Pascal. Paris: Elzévir, 1950.4. Laporte, J. La Morale d’ après Arnauld. Paris: Vrin ,1951.5. Oliva, L.C. A questão da graça em Blaise Pascal. Dissertação de Mestrado

apresentada no Departamento de Filosofia da USP em dezembro de 1996.6. Pascal, B. Oeuvres Completes. Paris: Seuil, 1963.7. Pascal, B. . Pensamentos in Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1971.

NotAS:

1. O tom excessivamente jurídico das formulações de Laporte sobre o Calvinismo pode parecer inadequado a temas teológicos, mas o espírito do texto está perfeitamente de acordo com os Escritos: “...Que Jesus merece só, e que, não havendo mérito dos justos, os méritos de Jesus Cristo lhes são meramente imputados, aplicados, e assim eles são salvos.” (Pascal 4, pág. 319). Os grifos são meus.2. Os fragmentos sobre a querela justiça-força estão entre os mais famosos dos Pensamentos e dão um rico esboço das idéias de Pascal sobre o Direito e a Política. Contudo, o tratamento adequado desta temática extrapolaria os objetivos do nosso artigo. Por isso, limito-me aqui a destacar o caráter puramente humano do ideal de paz do fr 299, o que é suficiente para a argumentação em curso, embora não esgote as possibilidades de análise.

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dE la transFiGUraCiÓn dEl MÁXiMo dErECHo a todo: tEMor, EsPEranZa Y

CÁlCUlo dE Utilidad

víctor Manuel Pineda*

resumen: Este ensayo tiene por objeto mostrar las diversas significaciones que tiene el concepto de utilidad en la filosofía de Spinoza. Por un lado se exhibe como una tendencia de la naturaleza humana a buscar a toda costa todo aquello que permita prolongar la vida de los individuos; por otro lado se despliega como aquello que suministra el mayor número de prejuicios de un individuo: esta búsqueda ávida conduce al terreno de la imaginación más delirante. Es aquí donde cobra importancia la transfiguración del máximo derecho a todo y los dos sujetos que lo encarnan: los individuos y la sociedad política. Spinoza intenta resolver la paradoja entre la maximización del poder individual y la maximización del conflicto, proponiendo un nuevo sujeto del máximo derecho, la multitud. Conceptos clave: Utilidad, derecho, temor, esperanza, deseo.

“Para vivir seguros y lo mejor posible, los hombres tuvieron que unir

necesariamente esfuerzos. Hicieron, pues, que el derecho a todas las cosas,

que cada uno tenía por naturaleza, lo poseyeran todos colectivamente y que

en adelante ya no estuviera determinado según la fuerza del apetito de cada

individuo, sino según el poder y la voluntad de todos a la vez”.

Tratado Teológico-Político, Cap. XVI, II.

1. La relevancia antropológica del concepto de utilidad

El tópico surge en un pasaje señaladamente crítico de la filosofía de Spinoza, el Apéndice de la parte 1 de la Ética. Se muestra unido a argumentos que esgrime en contra de las grandes nociones teológico-metafísicas y en torno a declaraciones que reprueban al estupor, la superstición y la vanidad

* Profesor investigador en la Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, Morelia, México.

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humanas; el fragmento presenta también un elogio de las matemáticas, a las que atribuye un poder demoledor en contra de todo tipo de tendencias de la imaginación: “todos los hombres nacen ignorantes de las causas y que todos tienen apetito de buscar su utilidad” (Spinoza 15, Apéndice del Libro 1, c, p. 68). Al mismo tiempo que denuncia las consecuencias de ese eclipse de la razón, se ocupa de exhibir el mecanismo con el que forman prejuicios que orientan a los individuos en las acciones de tipo práctico1. Ese curso expositivo del concepto de utilidad le confiere una razón de ser a la perspectiva con la que Spinoza trata muchas de las cuestiones éticas, formuladas a manera de crítica de las pretensiones del finalismo y como una impugnación de los fundamentos metafísicos de las afecciones.

La búsqueda de utilidad es, de entrada, una ciega inclinación que parte de la dualidad medios-fines, que imagina al hombre al centro de los planes de una divinidad que todo lo hace en función del hombre, pues el conocimiento inadecuado se alimenta de ficciones antropomórficas derivadas de esa dualidad. En esa visión de las cosas y de los acontecimientos, éstos no aparecen como instrumentos de nuestros apetitos sino como fragmentos de realidad que pertenecen a un orden que se llega a explicar como un concierto de causas misteriosas, que están dirigidas por un buen Dios que todo nos concede, o perseguirnos con su no menos insondable ira. El alegato en contra del finalismo no tiene otro propósito que el de discutir las consecuencias que posee en relación a la imagen que el hombre posee de las cosas, pues a esas alturas del libro I de la Ética, Spinoza ya ha dado por refutada cualquier otro tipo de causalidad que no sea la que ha demostrado previamente, es decir, todas las modalidades derivadas del concepto de causa sui (Spinoza 15 E. 1, def. 1 p. 39; axiomas 1-5 p. 40, E. 1, proposiciones. 15-18, pp. 49-55). Subrayamos el hecho de que se trata de una imagen de las cosas y no de causas, pues en esta tendencia a ver cosas y no causas -o causas falsas, como la causa final- es la que vuelve a

un individuo ignorante y supersticioso: la búsqueda de utilidad es planteada como una sujeción frente a las cosas más inmediatas, las que nos empujan a un interés por todo aquello que se nos revela como alimento, que ofrece confianza, poder o que, por lo menos, promete alejar la fuente de nuestros temores. Spinoza no censura esa búsqueda ávida, pues sabe que se trata de una prescripción de la naturaleza humana y se propone comprender cómo opera a nivel subjetivo, el tipo de pasiones que excita y cómo llega a elaborar la imaginación esa búsqueda interesada. Al declarar que una fuente de nuestros prejuicios es el interés inmediato por las cosas, se aleja del tratamiento clásico del interés como una de las formas de saber “menos virtuosas”. Todo es práctico y todo es, en esa misma medida, interesado. Incluso la teoría es una expresión clara del interés, aunque los bienes sobre los cuales versa son clasificados por Spinoza como soberanos y no como contingentes. El llamado de la utilidad, ya por una vinculación a cosas, ya por una vinculación con causas, es una tendencia que está anclada en las entrañas de la naturaleza humana. El colofón de esa explicación sobre la utilidad es presentada con un sabor de sentencia clásica: “Pero, mientras pretendían mostrar que la Naturaleza no hace nada en vano (esto es, que no sea de utilidad para los hombres), no parecen haber mostrado otra cosa sino que la Naturaleza y los dioses deliran lo mismo que los hombres”2. A Spinoza puede atribuírsele explicaciones arduas sobre dos formas en las que se despliega el sentido de utilidad vinculadas a los prejuicios finalistas: el mesianismo y la imaginación apocalíptica nacen de esa inclinación a ver signos de lo mejor y de los peor en el orden natural. Detrás de esas manifestaciones extremas de la imaginación se mueve un cálculo de la naturaleza humana, una manifestación mistificada del temor y la esperanza, el fetichismo nacido del interés y de la tensión frente a la fortuna. La vida se desarrolla en un contexto de múltiples acontecimientos. No se trata, por tanto, de dar respuestas unívocas y dogmáticas a esos trances. La admisión

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de la inclinación a la utilidad como algo constitutivo de la condición natural del hombre y que alude, en más de un sentido a la astucia, al engaño, la argucia, si se trata de conservar a nuestra naturaleza3. Para una moral rígida, los dos ejemplos representarían una apología de la mentira y de las falsas promesas. Sin embargo, Spinoza respondería que en una situación violenta, las argucias son un medio legítimo para liberarse de un acto que amenaza a nuestra naturaleza. Las cosas, que son bienes por los cuales se inclina nuestro sentido de utilidad, no aparecen inicialmente como algo neutral sino como dotadas de un significado inmediato y como portadoras de un peso específico, de mayor o menor densidad afectiva y de un resplandor que inevitablemente despierta al interés. Este temple es el procesamiento que elabora nuestro ser en cada circunstancia en que tiene que enfrentarse a las situaciones vitales, en la medida en que ese procesamiento se somete a la regla básica que nos permite evitar entre las cosas funestas a los males mayores y bienes superiores en lugar de bienes inferiores. Porque están dotadas de significado es que se convierten en bienes que juzgamos a partir de esas dualidades que señala Spinoza en el Apéndice de la primera parte: de esa especie de narcicismo (que en otro tiempo se llamaba “humanismo”) o de esa manía derivan perspectivas de las cosas tal y como nos afectan, no tal y como son en sí mismas4. El impulso de utilidad no es, en primera instancia, fuente de conocimiento sino de impulsos vitales: se vuelve la medida de nuestros prejuicios más que de nuestros juicios. Las cosas son concebidas como medios que sirven para realizar fines, no causas que explican el orden de las cosas, una suerte de tesis del homo mensura que juzga la constitución de lo individual a partir de la satisfacción de expectativas individuales y no a través del conocimiento de lo necesario. Si dejáramos de considerar a la naturaleza de las cosas bajo la óptica finalista fácilmente se comprendería que las cosas no están hechas a nuestra medida y que no somos sino un elemento

más -no el centro- de todo el orden en el que ella está dispuesta. De esa tendencia se deriva el prejuicio según el cual hay un rector personal de la naturaleza, es decir, una providencia que dota e imprime a las cosas el sentido de su uso. Todos sabemos que la obra de Spinoza está avocada a encontrar el principio que explique tanto a los hombres razonables como a los coléricos, a los virtuosos como a los imprudentes, los crédulos y los sutiles. Se trata de una evaluación que determina de manera omnímoda los momentos en que se computan riesgos y beneficios, en todas las situaciones y en todos los gradientes de la condición humana; esta evaluación, que puede inclinarse por un apetito sórdido tanto como una virtud calificada por la más alta potencia de actuar. El carácter comprehensivo de este concepto desvincula a la ética y a la política de Spinoza de una visión pastoral de la naturaleza humana, porque admite la posibilidad de que un individuo pueda ser tan débil como activo, irreflexivo y lúcido, pues el sentido de la utilidad lo mismo crea las más funestas dicotomías de la imaginación que un poder intelectual que los elimina5. Genera juicios y prejuicios, con la misma vivacidad; impulsa a dos tipos de perspectiva causal que Spinoza identifica o bien con la lógica de los prejuicios generados por la ilusión causal de la finalidad, o bien con la perspectiva de la causa eficiente, es decir, con la perspectiva necesaria de las cosas. La tendencia a la utilidad expresa, en suma, lo más noble y lo más bajo, lo absurdo y lo racional, toma el pulso a lo imaginario e impulsa a lo razonable. De esta inclinación nacen las tendencias deformadoras de la superstición, pero también las pautas más virtuosas del espíritu de la geometría. En la doble condición del sentido de utilidad en el hombre se fundamenta una clase de antropología que se explicita en su perspectiva ética y política. Fundamenta una teoría adecuada del error y confiere a la definición del hombre un punto de partida sólido: la inclinación natural por la utilidad nos impulsa tanto al prejuicio como a la virtud. La falsa definición del hombre –la que nace de

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nuestra relación interesada con las cosas y del desconocimiento de las causas- asigna al alma humana estas licencias: libre albedrío, voluntad, bondad. Un conocimiento adecuado, claro y distinto sólo puede proceder por la aprehensión de la esencia de la cosa y no por determinaciones extrínsecas, pues los prejuicios son el verdadero obstáculo para el conocimiento real del hombre. Que el bien y el mal no se den en la naturaleza sino en un pacto político indica que no se puede tomar a éste como punto de partida; para un pensador “esencialista” no puede tomarse como fundamento de la concepción del hombre algo extrínseco y variable. El concepto de utilidad le permite dar un tratamiento de las cuestiones éticas por encima de las perspectivas más tradicionales en las que el sentido del bien o de los bienes son demasiado restrictivas o demasiado amplias: la utilidad no es un Soberano Bien sino solamente lo que nos permite acceder a los bienes y rechazar los males, en la medida en que se trata de un estado afectivo más que de una idea. La tendencia es algo que está inscrito en la naturaleza del hombre y se despliega en cada situación que implique valoración de riesgos y expectativas. La búsqueda de utilidad no aparece como una reivindicación abstracta de la potencia de actuar sino como una acción que juzga sus resultados y es capaz de ponderar los efectos de ésta. Incluso en el debate contemporáneo todavía se encuentra presente esa eficiencia que se realiza en la maximización y limitación de nuestras acciones6.

Un individuo define lo que le es útil antes de tener en cuenta las ordenanzas sociales. Quizá por ello el primer problema de una comunidad política es de corte semántico: se inaugura ávida de seguridad y se abre a la creación de un consenso sobre los bienes que apetece su esperanza y los males que rehúye su temor (Spinoza 15, E. cuarta parte, pr. 37, Esc. 2, p. 210). En el estado de naturaleza nada se da con el nombre de justicia e injusticia, delito o mérito; por tanto, no se puede dar tampoco la idea de

castigo o de recompensa que suponen la trasgresión o el sometimiento a la ley. La idea de justicia, tanto como la de bien y de mal, no son algo que se posee naturalmente, pues ésta es instituida por la razón, pero no por nuestras inclinaciones, pues ellas no contienen de entrada una afección social como es la justicia. ¿Qué implicaciones tiene el concepto de utilidad cuando Spinoza quiere explicar un paso calculado hacia la seguridad individual? El primado del principio de utilidad expresa la entronización de los bienes y los males que nacen de nuestro contacto afectivo, ilusorio y puramente externo con las cosas, pero también contiene la afección de la seguridad que empieza a relativizar el valor absoluto de los deseos. La ruta de la seguridad pasa por el acotamiento de lo ilimitado7. Donde los derechos de los individuos son inconmensurables, los cálculos de la vida son más pródigos, las decisiones son más arriesgadas y la seguridad mínima: tener derechos a tope es también tener menos seguridad. La disposición a ponderar se nos hace presente en todo momento en que precisemos de evaluar los riegos y ventajas de una decisión. La naturaleza humana se despliega en las situaciones en que nos asaltan las circunstancias de una manera apremiante, pues obliga a que los individuos tanteen permanentemente decisiones que maximizan y minimizan los impactos en nuestra vida. La naturaleza humana obra a través de los afectos primarios que computan los bienes y los males implicados en una deliberación comparativa operada por el temor y la esperanza. En efecto, para que los afectos hagan este cálculo, es preciso que los bienes y los males de la situación sean conmensurables y, por tanto, ofrezcan, así sea de manera aparente, un criterio de selección8. La realidad finita es de conmensurables y con mensuradores; en la Ética se yuxtapone el tema de fundamentación del infinito -la noción de causa sui- con la clara intención de contrastarlo con una realidad determinada, dependiente y sometida a la exigencia de contrastar la relación máximo-mínimo. Siendo una determinación de la

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finitud, entiende que esta disposición al cálculo no es una conquista de la civilización sino una herramienta de la naturaleza humana; no es algo que se aprende sino algo con lo que se nace. Un individuo que, por naturaleza, está sujeto a riesgos, necesariamente tantea y estudia la ruta que más le favorece y menos lo expone a encuentros tristes. Cuando Spinoza propone la definición de “cosa finita”9 siempre plantea un criterio matemático para identificarlas, a saber, que siempre son concebibles en función del criterio de “mayor o menor que”: la utilidad, que siempre se despliega en el orden de las cosas finitas, siempre revela esta consistencia que tienen los bienes que se mueven en el orden de las apariencias y de la negatividad. A través de la tristeza descubrimos el dominio de la finitud, la ficción de la libertad bárbara y el derecho absolutos y, desde luego, la violencia que entrañan; a través de la tristeza descubrimos el dominio de la finitud y la esperanzas que se tiene que suministrar un ser que no es causa sui, la disposición a buscar una esfera de bienes más estabilizados y garantizados por el derecho. El estado natural despliega la ilusión de la soberanía absoluta del individuo, tanto como su disposición a la melancolía.

Alejado de la esfera económica en la que se planteó por muchos filósofos, el “utilitarismo” de Spinoza no estaba vinculado al “egoísmo posesivo” que soportó a la visión economicista de este principio: el pensamiento spinoziano no problematiza a la angustia por el futuro y la tendencia a atenuarlo con las certezas que da el “derecho a propiedad”. Incluso si se trata de la esperanza como algo unido al futuro, la propiedad no puede considerarse como un sustrato de la fortitudo animi. Por citar un ejemplo, la angustia que Locke descubrió frente al futuro la resolvió con la certeza de los bolsillos rebosantes de dinero y con abundantes títulos de propiedad. Tampoco se trata de la deliberación de un consumidor de productos o de un productor que calcula la relación costo-beneficio, tal y como la economía clásica lo concebía. La escala subjetiva de los gustos no

coincide con la determinación necesaria de las decisiones vitales. En esta escala no se mueve un consumidor de mercancías sino una determinación de la naturaleza, una verdad eterna precede al mercado. Aunque la utilidad es una medida de cálculo, la realidad más primaria de un modo o de un ser finito no se presenta como una mercancía sino como algo que confirma o niega al ser propio. A diferencia de los utilitaristas clásicos, nuestro contacto con los bienes no son en sí mismos un motivo de placer o tristeza: el gozo y la tristeza son indicadores que manifiestan nuestro estado de potencia, el vínculo más directo con nuestro ser. Así como el panóptico es el Cristo pantocrátor de la vigilancia, (o, para decirlo como Foucault, una “tecnología de poder”), los cálculos de placer son para Bentham la expresión de una redención creada por el consumo y su regla universal “el mayor placer para el mayor número”. Para éste, la felicidad es un parámetro, para Spinoza el gozo es un gradiente o un estado de la potencia de actuar10.

2. Las dudas de la acción: simiente política del temor y la esperanza.

“Por consiguiente, todo cuanto un hombre, considerado bajo el

imperio de la naturaleza, estime que le es útil, ya le guíe la razón, ya el

ímpetu de la pasión, tiene el máximo derecho a desearlo y le es lícito

apoderarse de ello de cualquier forma, ya sea por la fuerza, el engaño,

las súplicas o el medio que le resulte más fácil; y puede, por tanto,

tener por enemigos a quien intente impedirle que satisfaga su deseo”.

Tratado Teológico-Político, Cap. XVI, I.

El cálculo de utilidad es un dispositivo que le quita el carácter neutral a los bienes y los convierte en el objeto de un interés desplegado con la eficacia de las afecciones más originales de nuestra naturaleza. Se trata de un movimiento oscilatorio de esas pasiones primitivas del estado natural. En efecto, nuestros cálculos pertenecen al imperio de la fortuna y

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la sede en la que realiza este cómputo también habita la duda, una operación de tipo moral que, para Spinoza, está ligada a las circunstancias, es decir, a todo aquello que no depende de nuestra naturaleza. Éstos calibran y descifran los contextos de acción a través del miedo y la esperanza: el descubrimiento del mundo del entorno no es una experiencia neutral sino un acto que diseña una estrategia defensiva y otra de prospectiva. No hay nada objetivo ni metafísico en el primero y, en el segundo, no se advierte ninguna promesa escatológica: Animi fluctuatio et dubitatio inter se differunt nisi secundum majus et minus (Spinoza 15, Eth. Pars Tertia, p. XVII, Esc.). El reino de la duda es, como el dominio de las cosas finitas, el del más y del menos, la ponderación comparativa. Si el objeto de la duda es, para Descartes, -la fiabilidad de los sentidos, la indistinción entre sueño y vigilia- la única opción para la duda spinoziana radica en la acción misma. ¿Se actúa como se duda y se duda como se actúa? El temor y la esperanza posicionan a la duda antes que la acción, porque, aún eligiendo el mayor de entre dos bienes y el menor de entre dos males, los cálculos operados en esta esfera de incertidumbre se ejercen sobre la apariencia de las cosas. Sólo un juicio en el que se parte del conocimiento de las cosas tal y como son en sí mismas y no un juicio de las cosas tal y como nos afectan, puede controlar los resultados de la acción y, con ello, eliminar toda sombra de duda. El cálculo de utilidad no parte de un conocimiento puntual de los resultados de la acción sino de una impresión ponderativa: la esperanza no garantiza y, por eso, forma parte de las afecciones débiles; el temor puede hacer también un mal cálculo, porque puede sobredimensionar los alcances del objeto temido y, acompañados con esa tristeza, declinar a los temores hasta el terreno de las supersticiones. Por consecuencia, se puede decir que la certidumbre de la acción sólo puede provenir de la virtud misma; porque la virtud no depende de la fortuna, los resultados de la acción siempre se mueven en el orden de la fortitudo animi. Si bien la esperanza puede ser

premiada con la fortuna, el miedo no quiere recompensas del objeto de su temor sino, en todo caso, alejarlo. Por ello, para Spinoza la duda no es el fruto de la acción sino su simiente. Las herramientas que poseen para controlar los efectos de la acción tienen la misma debilidad que sus fuentes: el temor y la esperanza ponderan, pero no determinan. Consternación y admiración satisfacen y castigan esas operaciones desplegadas sobre el horizonte de la duda y el mero contacto ilusorio que tiene el interesse con el orden de las cosas.

Las pasiones instrumentales se distinguen de las virtudes puras en función del origen de ambas: las primeras son efectos de la imaginación y, las segundas, de la determinación de nuestra propia naturaleza, la conquista activa de lo que somos. Spinoza está lejos de colocar a la esperanza en el rango de virtud; la instala en la línea de las primeras, es decir, aquellas que están vocacionalmente determinadas por la causa eficiente y por esas afecciones que sirven a la evaluación de los bienes futuros. Por su parte, el temor es una pasión que resiste a lo peor, se precipita desde los caminos de la tristeza, pero evita el deterioro de un sujeto amenazado por sus enemigos reales y conjeturales11. Se trata de dos polos pasionales que siempre hacen que nuestros actos se inclinen de una determinada manera. Esperanza por un bien mayor y miedo por un mal mayor. Estas dos afecciones humanas están instaladas en el centro de nuestra naturaleza: en cada acto en que las circunstancias nos obligan a ponderar nuestras acciones, el miedo y la esperanza se mueven en el mismo escenario. No dan “infalibilidad” a nuestras acciones, porque no son virtudes, pero, a cambio de eso, confieren a nuestros intereses la flexibilidad necesaria para esquivar, atraer, desviar, acometer, proyectar y sortear. Las dudas generadas por la acción del temor y la esperanza no son resueltas sino por toda la conversión del alma a las cosas eternas, como sugiere la Ética. Mientras tanto, el temor y la esperanza, que se mueven en los registros

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más bajos de la potencia de actuar, tienen que resolver el significado de las cosas antes del advenimiento de la virtud y de la verdadera libertad: estas afecciones constituyen a las dudas de la acción cuando se despliega sub specie durationis. Aquéllas siempre manan de la fuente del tiempo; los vuelcos y oscilaciones de la fortuna no pueden ofrecer constancia.

El temor es una pasión que prevé: es una respuesta de nuestra naturaleza ante la proximidad de lo peor y la necesidad de alejarlo. La imperfección del temor no radica en que prevea sino en que puede asociarse a la imaginación e inventar peligros: la melancolía es una de las formas en que el miedo se apodera del alma y hace que nuestro sentido de utilidad tema catástrofes, es la huella específica de la impotencia, la ausencia de toda comprensión y de la fortaleza de la imaginación (Spinoza 15, Eth. Pars Tertia, p. XXXIX, Esc.)12. Asimismo, el miedo es un cálculo de la ignorancia. Los males que imagina el miedo son inferiores a los que una ocasión real ofrece, surge como respuesta pasiva frente a la adversidad y guía a un sentido de utilidad que no está dotado de suficiente fuerza para la resistencia. La idea de que Dios está constituido por una voluntad absoluta es el fundamento del estupor (Spinoza 15, Eth. Pars Prima, Appendix: Iignorantiae Asylum). Sin embargo, a pesar de que el temor es una pasión, el sentido de utilidad que alberga en su lectura de las circunstancias, puede también fincarse sobre situaciones reales, es decir, sobre peligros inminentes. La pasión específica a la que se adscribe el temor es a la tristeza, pero, paradójicamente, en tanto que instrumento de evaluación de la utilidad quiere evitar a una tristeza mayor. ¿Cuáles serían las tendencias propias de la esperanza en tanto que pasión que está al acecho de los bienes futuros? Es el entusiasmo pasional sobre el porvenir, la promesa de los bienes. El pathos de la esperanza es constitutivo de la naturaleza humana y, en esa medida, nos determina a adoptar la ruta de la afirmación. Estando al margen de una forma activa de virtud, arroja a los individuos a la antesala

del poder individual y social. No habría para Spinoza una docta spes que encamina al hombre a la gloria, a la trascendencia, a la salvación religiosa13. Más ignorante que docta, la esperanza es una afección que acecha lo que no conoce, y, más aún, esa zona que no está iluminada por la razón es pródiga en ilusiones: mientras más se teme, más se espera. El tamaño del cielo de la esperanza es proporcionalmente inverso al infierno que teme. En la medida en que la esperanza spinoziana no es trascendental, ésta no tiene un contenido escatológico. Todo lo contrario, advierte que en toda forma religiosa de la esperanza se traslapa una superstición sobre la perfección humana. En lugar de esa perfección ficticia, postula una perfección que está al alcance del hombre y de su salvación intramundana14. Por tanto, los caminos de la esperanza también se mueven en el horizonte de la naturaleza. Esta expectativa está determinada por nuestra tendencia a la perfección, aunque nazca dubitativa e incierta. Si bien Spinoza rechaza el concepto de duda en el ámbito cognitivo, en relación a la esperanza se introduce como una condición propia de la acción y la incertidumbre sobre nuestra eficiencia15. Incluso nuestras pasiones están determinadas a elegir a favor de todo lo activo y se consuman anulándose en el paso a la perfección virtuosa. La esperanza es el paso decisivo que dan los individuos hacia la constitución de lo social como una conquista de perfección tanto individual como colectiva. ¿Cómo juzga Spinoza, desde la perspectiva de la naturaleza humana, la relación entre los intereses personales y los de los otros? Ningún individuo tiene dudas en su inclinación inmediata por sus propios intereses: el principio de eficacia siempre obliga a la elección de sí mismo. El pensamiento de Spinoza está lejos de considerar al altruismo como una disposición natural; el interesse, una zona en la que se confrontan el pensamiento de Spinoza con el de Lévinas, es, en primer término, una vocación por la continuidad de la vida y, al mismo tiempo, una forma “de ser en el mundo”16.

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Se entiende que el pacto de muchos individuos quiera sustituir a la fuerza que los amenaza por derechos equitativos. Sin embargo, Spinoza no habla de un igualitarismo obtuso, reducido a una homogeneidad originada por el temor y la esperanza: los derechos equitativos solamente tienen sentido si sirven para aumentar los intereses de los individuos. La homogeneidad del temor y la esperanza sería temible si no representa solamente un tránsito hacia algo superior a esas manifestaciones de las fluctuaciones del ánimo. A tal punto lleva ese razonamiento que la conservación y el aumento de los intereses no deja de ser una razón para admitir su necesidad; vista así, la sujeción a los límites de los derechos impuestos por la ciudad son, en realidad, útiles para afianzar los bienes propios:“Pero la naturaleza humana es de tal índole, que cada uno busca con sumo ardor su utilidad personal y estima que los derechos más equitativos son los necesarios para conservar y aumentar sus intereses, mientras que sólo defiende la causa ajena en la medida en que, de esa forma, afianza su propio bien”.(Spinoza 17, TP, Cap. VII, 4, p. 154). Esta transición entre el máximo derecho y los derechos individuales acotados es la que explica la institución de la justicia como una forma oblicua y más eficiente de consagrarse a los intereses individuales. La ciudad no es la suma de las renuncias de los derechos naturales sino una asociación de potencias dirigidas a la construcción de un clima de seguridad y, más tarde, de libertad y solidaridad. A partir de la seguridad, la potencia de actuar de la ciudad se constituye hacia la reforma de sí misma17. La asamblea democrática representa a todos los poderes entendidos como la manifestación de la voluntad de consenso. Antes de ser determinado por la razón el derecho natural está determinado por otra fuerza que es previa a ella; no todos están dotados de razón pero si todos están dotados de derechos naturales: antes de obedecer a la razón, el hombre obedece a sus impulsos.

La naturaleza nada prohíbe en la defensa del deseo, el apetito y en todo aquello que parezca útil a los hombres. La noción de prohibición

no existe donde no hay una asociación. La amplitud de los sujetos de este derecho le permite incluir bajo este concepto no sólo temas de carácter político sino que permite replantear temas de carácter ético, físico y ontológico, pero también sus paradojas y sus límites: aunque los derechos naturales sean absolutos, no son deseables, ni virtuosos ni están fundados en una libertad superior. El derecho natural, derecho sin jueces, tribunales, acusados o acusadores, sin castigos y sin méritos, consiste en una fundamentación de todo aquello hacia lo cual estamos determinados. La determinación comprendida como quae ex sola suae naturae necesitate no consistiría sino en los dictados que siguen todos los seres respecto a su propia naturaleza. En un pensamiento que ha excluido al azar del orden de la naturaleza, un orden causal necesario es sinónimo de racionalidad. Racionalidad sería aquí entendido como “de conformidad con natura”.

La socialización del temor y de la esperanza representa, en realidad, el paso político más fundamental: antes que una deliberación deseable, tenemos una asociación motivada por los idénticos miedos y por esperanzas comunes, es decir, sometemos nuestros cálculos a afecciones comunes. Cuando están en juego los intereses propios y los ajenos todo mundo se inclina sin reticencia alguna por los propios. El concierto de los temores no abandona el culto al interés personal y solamente consistiría en una forma oblicua de egoísmo; la lógica bajo la cual un individuo percibe la necesidad de la ciudad no deja de ser un estricto cálculo individual. Un Hidalgo no puede existir en un lugar dominado por la especulación y el cálculo sobre los mejores rendimientos de la acción: la selva no reconoce títulos nobiliarios pero sí ofrece muchas ilustraciones de cómo procede la naturaleza humana, ahí donde todavía no hay límites. La esfera de la prerracionalidad en la que Spinoza investiga las razón suficiente de la ciudad no podría encontrar a los propietarios deliberando apacible, universal y racionalmente sobre optima politia, tomando el té y hablando caballerosamente sobre las cláusulas de un contrato18. La noción

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de justicia se introduciría necesariamente como posición judicativa, es decir, en ella intervienen opiniones y no la naturaleza. A diferencia del derecho instituido humanamente, no se puede derogar, modificar: es inmutable, eterno y gobierna no sólo los actos de los hombres sino a todas las cosas finitas. La noción spinozista del derecho natural está concebida como una condición previa a la fundación de la ciudad. Es por ello que Spinoza trata de ordenar la investigación acerca de sus fundamentos, antes del nacimiento del consensus comunis, el pudor que inventa un sentido de lo político y la capacidad de hablar uno al otro. Lo que reivindica el derecho natural es la existencia de una fuerza no dirigida específicamente a algún lado. Examinado así, no existe lo moralmente correcto, lo justo y lo bueno. La visión que Spinoza posee de la justicia es sociocéntrica, secular y racionalizante; la de sus antagonistas, señaladamente Leibniz, es teocéntrica, autoritaria y moralizante. La polidikea (la oposición al concepto teodikea), la sociedad inventada por afección a la justicia, es una de las formas de secularización del horizonte valorativo más básico, una de las conquistas del consenso.

3. La deducción del máximo derecho19

“De lo anterior se sigue que el derecho e institución de la naturaleza, bajo el

cual todos nacen y viven la mayor parte de su vida, no prohíbe nada más que

lo que nadie desea y nadie puede; pero no se opone a las riñas, ni a los odios,

ni a la ira, ni al engaño, ni absolutamente a nada que aconseje el apetito. Nada

extraño, ya que la naturaleza no está confinada a leyes de la razón humana, que

tan sólo miran a la verdadera utilidad del hombre y a su conservación, sino que

implica infinitas otras, que abarcan el orden eterno de toda la naturaleza, de la

que el hombre es una partícula, y por cuya necesidad todos los individuos son

determinados a existir y obrar de cierta manera”. TTP, Cap. XVI, I.

En el estado natural, ser un individuo consiste en entrar en choque con fuerzas de individuos y tener fuerza significa medir fuerzas: todo es

oposición y choque. Por tanto, en el estado natural la inclinación por la utilidad no reconoce ningún parámetro de bien y de mal, pues todo lo que satisface a la utilidad nace de la ausencia de todo criterio para calificar a las inclinaciones de un individuo. Spinoza hace de la tendencia hacia la utilidad un reconocimiento explícito de la individualidad que está centrada en satisfacer sus propias expectativas, que la naturaleza misma establece esas leyes que, en primer instancia, son las de la preservación de la propia constitución como el primer bien de los individuos; las múltiples nociones de bien que poseen los individuos son conflictivas. Spinoza se percata que ahí donde hay un máximo de derecho individual también hay un máximo de conflicto; en efecto, si los individuos nacen dotados de un derecho ilimitado, los conflictos con los otros también lo son. Discordia y máximo derecho son correlatos. Sin embargo, Spinoza matizará esta tesis de la siguiente manera: la necesidad de limitar a los máximos derechos tiene por objeto a la seguridad que alcanzarán los individuos en una situación en que todos debilitan a sus derechos. La razón por la cual Spinoza deja intacto al máximo derecho a pensar es porque, justamente, no amenaza a la seguridad de los otros y porque maximiza toda búsqueda de utilidad en un individuo.

La politización del temor y de la esperanza son los sustentos pasivos de la majestad del Estado, es decir, del orden político más elemental. Por tanto, los enemigos de éste son aquellos sujetos que son autónomos en sus temores y sus esperanzas, pues sus objetos pasionales son divergentes como temibles: en el pánico, podría haberlo dicho Elias Canetti, se forma la primera asociación en el terror20. De entrada, la fortaleza de una sociedad está en las pasiones que puede compartir y a partir de las cuales puede calcular el mayor de los bienes y evitar al mayor de los males. Un verdadero estado de hostilidad se reconoce como la ruptura de un orden en que los temores y las esperanzas no suscitan ninguna identificación y ningún compromiso de caridad y justicia. De ahí que la sustitución del derecho civil por el

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derecho de guerra sea también una ruptura de las afecciones sociales más fundamentales: el derecho de guerra se impone como dominado por un retorno a los significados puramente individuales del temor y de la esperanza, su absoluta autonomía. En lo fundamental, Schiller tiene razón: estar suelto no quiere decir estar libre. La república se funda coligando la suerte de los demás a mí propia suerte, estableciendo un entramado de relaciones, palabras y afectos. La libertad es un concierto y un tejido de vínculos.

El estado natural se remite a un momento en que los individuos poseen el máximo derecho a todo. Es esta perspectiva spinoziana del derecho como algo que no tiene ningún límite, salvo los del propio poder de los individuos. Eso indica, por un lado, que éstos pueden aspirar a todo lo que el apetito les insinúe, desear todo lo que la imaginación les ofrezca; el máximo derecho a todo no tiene ni límites morales, religiosos o jurídicos, porque se presenta en el curso de las inclinaciones que no tienen la resistencia esas fuentes de los escrúpulos y emprende su búsqueda de bienes sin ningún obstáculo, salvo el de los otros que pueden apetecer el mismo bien. En el entramado del derecho natural, ser una criatura consiste en desear todo lo que nuestro poder logra realizar. Un individuo finito que hace coincidir derecho y poder a la fuerza: esa conjunción se impone por medio de todos los recursos concebibles de los que puede disponer, al margen de la justicia, la piedad y la conciencia. Spinoza insiste: el límite de nuestro derecho es el límite de nuestro poder y de nuestro deseo. No tenemos, en absoluto, derecho a nada que no hayamos conquistado por vía de nuestra propia potencia. La idea de límite o de contracción prohibitiva del deseo tendría aquí un sentido positivo: aquello que implica nuestra propia negación debe ser limitado, todo lo que signifique expansión y excitación de la potencia debe ser estimulado.

El individuo está privado de todo parámetro externo que le indique que está obrando bien o mal y, en esa medida, el deseo y el poder

se vuelven medida del derecho y de lo útil. Se impone así la perspectiva del deseo y del poder como criterios inmanentes de valoración21; si bien hay una muchedumbre de cosas que rebasan a nuestra potencia de actuar hay también muchos elementos que permiten su conservación, habida cuenta que la naturaleza suministra los elementos que hacen peligrar nuestra existencia pero también los medios para evitarlos: esos elementos de la perseverancia son a los que tiene derecho irrestricto el individuo finito para conservarse. Con todos estos arreos conceptuales, Spinoza renuncia a la fundamentación metafísica de las normas sociales y a las fórmulas platónicas de valoración. El carácter ilimitado de este derecho consiste en no estar sujetos a ninguna determinación sobre el orden de lo justo o de lo injusto, pues no hay ni justicia ni moral donde no se establecen los límites de la acción humana. Tenemos derecho a materializar a todas nuestras inclinaciones de utilidad, aunque nuestra fuerza para consumarlas sea limitada.

Por un lado, Spinoza asume que la instancia fundamental que gobierna a todas nuestras afecciones no es una institución humana. ¿Se trata de un tipo de derecho que está por encima del arbitrio humano y que se presenta como la primera instancia a la que se apela para comprender a nuestros actos? El orden eterno al que sujeta al hombre está por encima de cualquier arbitrariedad y asume un carácter irrevocable, a tal punto que no elegimos ser de esta o aquella manera, sino que estamos compelidos por ella en virtud de su necesidad. Spinoza se desmarca de las concepciones iusnaturalistas clásicas cuando deja de sostener que en la definición de los derechos no está involucrada una acción humana. El orden eterno al que apela permanece intacto por cualquier voluntad humana. La ética fundamentada en los deberes tiene una procedencia trascendental, es decir, responde a principios y no a inclinaciones, como nos lo ha hecho saber Kant22. Una fundamentación inmanentista, por el contrario, está sostenida

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en todos los dispositivos para la acción eficiente y lo que ésta demanda de manera inmediata: la perseverancia en el ser. Lo que sostiene es que los deberes, o todas las formas derivadas de obligación como los pactos, las promesas, los compromisos, si demandan conductas que están por encima de nuestra naturaleza, es legítimo no cumplirlos. El criterio último de decisión siempre está determinado por la naturaleza y a ella se remiten todos los argumentos para mantener o rechazar promesas que atentan contra nuestro propio interés. En ese sentido, la ética de Spinoza no está centrada en la lógica de los deberes “que son amables en sí mismos”; no es que Spinoza sostenga que los deberes son por sí mismos necesarios, sino que hay imperativos más primarios que los que responden a una fuente trascendental de la moral. En la medida en que no hay deberes es que Spinoza concibe a los individuos como exclusivamente dirigidos a cumplir con su interés, sin ninguna consideración acerca de lo bueno y lo malo. La naturaleza no llama a cumplir deberes porque no hay en ella ningún sentido de bien; en términos absolutos o en términos relativos, el bien es un producto de la civilización y, en no menor medida, como lo dijo Rousseau, el mal también lo es. Ni siquiera se puede decir que el estado natural es la perfecta expresión de la ausencia de Dios y de la consiguiente validez de todo. Spinoza concibe que la sociedad política nazca al unísono con las religiones y que todo lo que les precede es una compleja esfera de intereses encontrados, de conflictos entre fuerzas y de inseguridad. La religión es un esfuerzo por disciplinar a través del temor y una promesa ultramundana de la esperanza. Por ello, se constituye como eje de la creación de la noción de bien y de mal. En muchos sentidos, la política es una continuación de la religión; en otros tantos, la política es la suplantación de la misma, la secularización del bien y del mal, la invención de un sentido inmanente de la justicia. Sin ley y sin religión, no hay injuria ni pecado. De ahí que a menudo relacione la “edad profética” con el surgimiento del Estado de

Israel y haga coincidir la ley política con la ley religiosa: política y profecía son dos encarnaciones convergentes y divergentes del temor y la esperanza (Spinoza 16, TTP, Cap. XVI, V, p. 349). En efecto, todo parece indicar que nuestra noción del deber se forma cuando se nos exige lealtad a principios, a nociones de bien, a imperativos éticos y políticos. En el estado natural, Dios es un concepto vacío. Libre de todos esos gravámenes, un individuo se dedica a realizar sus intereses. La “desorientación” propia del estado natural se expresa en el vacío de religión y, por el otro lado, de una libertad con la que todo individuo nace al mundo. Esta situación es la que hace que la naturaleza se entienda como un espacio fértil para la búsqueda de utilidad: la libertad que no reconoce amos y la ausencia de una religión que someta a los individuos a la obediencia.

4. Todo el poder para el deseo

El análisis spinoziano del paso del estado natural al estado social consiste en la acotación del máximo derecho a todo de los individuos. En efecto, ese análisis está orientado por la idea según la cual el hombre actúa siempre bajo la determinación de leyes, ya sean de orden natural o de origen humano. Las leyes naturales no son instrumento para acotar los derechos sino, todo lo contrario, para orientarlo hacia el máximo posible. En efecto, la ley natural les impone a los individuos la irrevocable necesidad de orientar al máximo sus esfuerzos por conquistar todo lo que la naturaleza les ofrece. Las leyes sancionadas humanamente operan al contrario: limitan y obligan. Se trata de un tipo de prescripciones que impone límites a las acciones que pueden ser objeto de una sanción. En la naturaleza no se da ninguna ley que limite el deseo desbordado de la individualidad salvaje: ese contenido sin continente inunda temerariamente todo lo que le rodea y amenaza incluso a su propio autor. El continente y la forma de los deseos

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es, debemos decirlo, una obra de la comunidad política: el estado civil forja un lugar en los que los aloja y les da una orientación en la que terminan de ser una fuente de conflicto con los otros individuos.

Imponer límites no consiste en una abdicación de nuestra naturaleza a favor de la formación de una vida en común; incluso se puede decir que esa renuncia es, de una manera u otra, una afirmación de nuestro ser consistente en el descubrimiento de la esfera social. En este punto se le plantean a Spinoza algunos problemas. ¿Se levanta un imperio dentro de otro imperio cuando el hombre se decide a vivir asociado? ¿Se rompe con la necesidad de la naturaleza cuando el hombre se da leyes producto de su intelecto? ¿La vida política se abre a lo posible, una noción rechazada hacia el final de la primera parte de la Ética, cuando construye instrumentos para su convivencia social? A todo eso, Spinoza responde de la siguiente manera: “que los hombres cedan o se vean forzados a ceder algo de sus derecho, que tienen por naturaleza, y se constriñan a cierto modo de vida, depende del arbitrio humano” (Spinoza 16, TTP, Cap IV, I, p. 136). Sin embargo, no cesa de considerar a la naturaleza como el horizonte del cual dependen las leyes humanas: incluso todo aquello que está concebido ad usum vitae depende de una potencia del hombre, esto es, de una potencia de la naturaleza total. El arbitrio humano sirve a las cosas de la vida y no puede asumirse como una ley superior a la de la naturaleza, pues se trata de un tipo de normas que están destinadas exclusivamente al gobierno de las cosas humanas; sería tan absurdo como decir que una ley humana puede someter a la ley del movimiento y del reposo, una ley que posee carácter absoluto en relación a los cuerpos. ¿Es la duda al estado natural lo que la razón es al estado civil? Difícilmente Spinoza plantearía la cuestión de esa manera, pues la sociedad no puede abolir las contingencias sino sólo identificar los objetos del temor y de la esperanza. En efecto securitas significa el desvanecimiento de las dudas (Spinoza 15, Eth. Pars Tertia,

Affectuum Definitiones, XV), pero también es la imperii virtus (Spinoza 17, Tractatus politicus I, VII). El estado civil no es un régimen epistémico sino un orden fundado en la lealtad de todos hacia todos: la fundación de la virtud del Estado abre un compás de certeza ético-política, no una certeza intelectual; la seguridad es, en cierto sentido, una forma de debilitar el imperio de el temor y la esperanza, la primera sólida conquista del derecho de todos a todo. Pero la seguridad expresa una conquista del cálculo social, no del individual: con la seguridad la acción individual no se vuelve más eficiente, sino que, en todo caso, permite que los individuos avancen hacia la fortaleza del ánimo. En efecto, Spinoza concibe a la asociación como algo determinado a conquistar todo aquello a lo que tenía un individuo derecho de una manera tal que el sujeto del derecho se transforme. Si el sujeto de los máximos derechos es el individuo que vive en estado natural –sin ley y sin Dios- el sujeto del derecho civil será el cuerpo social considerado como un todo; aquí la relación frente al máximo derecho se invierte: todos tienen derecho a todo y los individuos participan en ese todo como miembros de un cuerpo, y no como individuos que no están sujetos a ninguna ley. En efecto, la idea spinoziana de Imperium consiste una sujeción de todos a la voluntad de todos y le confiere al consenso un carácter vinculante e interdependiente.

Con la irrupción de la vida social los apetitos no desaparecen sino que se transfiguran; en efecto, nada que sea natural puede desaparecer en el horizonte del Estado, lo único que aparece son las restricciones en contra de la injuria y la contumacia. Si el estado natural es la ordenanza a la que se ajusta la vida individual, la ley positiva es la consumación de un valor humano. Más aún: el carácter humano de la ley radica en que nos hace descubrir la relatividad social las pasiones a favor de un descubrimiento de los otros individuos, más allá de la amenaza y de la confrontación de fuerzas e intereses: la ley humana revela, pues a la justicia como un estado

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en el que las pretensiones individuales se sujetan a una institución razonable y llama a deponer a la fuerza como medida del derecho máximo. El otro aspecto de la tendencia a la utilidad se remite al ámbito de la ética y llega a comprender a la razón como un poder realizador de la máxima utilidad, es decir, en virtud y en actividad. La prueba de la continuidad entre el estado natural y la sociedad política la exhibe Spinoza en la tendencia a la utilidad que permanece intacta, pero individualmente limitada y socialmente radicalizada; los individuos coligados por la ley son los que apetecen, se inclinan a todo lo por lo que están determinados. El concepto de utilidad juega un papel tanto individual como social y le confiere a los derechos, en uno y otro registro de la vida humana, un carácter ilimitado: una sociedad prudente, es decir, orientada por el temor y la esperanza, procede de igual manera a la que un individuo procede en el estado de naturaleza, calculando sus decisiones, alejando los peligros en contra del Estado y su seguridad y, al mismo tiempo, adoptando para sí los máximos bienes posibles. Todos los atributos que tiene un individuo en el estado de naturaleza adquieren una escala social y, al frente de ellos, está el sentido de utilidad.

***

Hay dos sujetos del “derecho máximo a todo”. Por un lado tenemos a los individuos que en el estado natural, sin arbitraje y sin límite alguno, tienden a buscar todo lo que su particular disposición le dicta como útil. Por otro lado, tenemos la encarnación propiamente colectiva del máximo derecho a todo en la que este derecho se despliega en el ámbito de la vida social. Spinoza sostiene que todas las tendencias de la naturaleza humana son eternas y no pasan por nada que los limite: el nacimiento del consenso no los elimina sino que los transfigura en un objeto de la sociedad que, en su conjunto, adopta el papel que un individuo tenía en el estado natural. Para

Spinoza, la primera figura de racionalidad que se asoma en una multitud, después de fijar los contenidos de lo que se debe temer y esperar, es esta actividad creada por las palabras e ideas intercambiadas con benevolencia. Los estudiosos del pensamiento republicano nos han transmitido la tesis según la cual la república es un paraíso de la virtud y, sin duda Spinoza participa de esta convicción. Sin embargo, su republicanismo no niega los orígenes poco virtuosos de la república: el temor y la esperanza no son la negación absoluta de la virtud sino solamente un pasaje hacia la virtud del imperium. Si bien la manifestación más degenerada del temor es el terror, ese resorte pasional de las tiranías, para Spinoza no es más que un puente hacia la autoconstitución de la multitud.

Por un lado, la Ética analiza las elaboraciones subjetivas que tiene el sentido de utilidad y desemboca en una denuncia de la imaginación que le provee al hombre muchos de sus prejuicios y de sus apetitos; el plano en que analiza la tendencia a la utilidad podría adquirir el título de antropología de las disposiciones del hombre y se dispone a estudiar a nivel tanto individual como colectivo las dicotomías propias de la tendencia de la utilidad. Cuando Spinoza sostiene que la tendencia hacia la utilidad es natural en el hombre, sostiene con ello que nunca se puede eliminar. En efecto, si algo es natural no puede ser borrado, como si el hombre accediera a un espacio trascendental cuando elimina o atenúa sus inclinaciones. Spinoza no quiere trascendencia sino “reformar a la naturaleza humana”, y eso quiere decir que no pretende ir más allá de sus límites. La ciudad, en ese tenor, es una tentativa de reforma, pero con ella no se crea de una zona de trascendencia que sobrevuela a los impulsos y a las pasiones. Retiene, por tanto, todas las inclinaciones que el individuo posee, e incluso las consuma de una manera radical: no es la culminación de esa reforma, pero en ella se definen todos los instrumentos que una multitud posee para empalmar el interés multitudinario con el interés individual.

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Los individuos retienen su naturaleza y se someten al cuidado que les ofrece al renunciar a hacer daño a los demás tanto como a sí mismos. Con esta declinación los lobos se liman las garras y los colmillos, doblegan a sus instintos y les nace el horizonte de una zona ilimitada del derecho natural, la libertas philosophandi. La prueba más fehaciente del culto a la utilidad propia es la acumulación de los años con la determinación de haberse inclinado muchas veces por sí mismo. Aunque los individuos se sometan a la enmienda de su naturaleza formando parte de una ciudad, no entran a ella a formar mutilando su naturaleza sino orientándola hacia un espacio en el que puede saber con certeza lo que puede esperar de sí mismo y de los otros. El “utilitarismo” se desplaza del egoísmo hacia la realización de la virtud, es decir, apunta hacia la ética como superación y consumación de la odisea individual y social. Decir “soberano bien” o concebir cualquier clase de bien, por polémico que éste sea, siempre implica entenderlos como útiles, pero no como conceptos. De ahí que Spinoza nunca llegue a decir que el “mal” o lo “malo” sean definidos por lo útil, sino, todo lo contrario, es lo que carece de utilidad. En un caso, el del ingenio, el “criterio” lo establecen los individuos; en el otro, el criterio de utilidad lo aporta una comunidad política, en este sentido, la utilidad es una de las formas de nombrar al bien común. Uno y otro establecen pautas de poder o de impotencia: sólo el soberano bien, el que puede articular a la diversidad individual, puede generar elementos que le den móviles a una asociación política.

La multitud reina sobre sus derechos y se ocupa en expandirlos, porque si en algo tiene significado la conjunción entre derecho y deseo, es en la expansión de los derechos. La expresión “el deseo al poder” se justificaría en ese orden fundado por la soberanía popular que interviene en el descubrimiento de lo que puede. El deseo como medida del derecho de la multitud expresa, en sí misma, el desplazamiento del absolutismo

y consagra a un nuevo poder constituyente. La asociación no consiste en la eliminación del máximo derecho sino en su apropiación concertada: a partir de ese momento, los desiderata pasan a formar parte de un sujeto que se compone como una agencia desiderativa

oN trANSFIgUrAtIoN oF tHE HIgHESt rIgHt to EVErytHINg: FEAr, HoPE AND CALCULAtIoN oF UtILIty

Abstract: This essay wants to show the different meanings of the concept of utility in the philosophy of Spinoza. On the one hand it shows itself as a tendency of human nature to search at all costs everything that would prolong the lives of individuals. On the other hand it is displayed as that which provides the largest number of prejudices to an individual: this avid pursuit leads to the field of the most delirious imagination. This is where the transfiguration of the highest right to everything and the two subjects that embody it ─ individuals and political society ─ become important. Spinoza intends to resolve the paradox between the maximization of individual power and the maximization of the conflict(,) proposing a new subject of highest right, the multitude.Keywords: utility, law, fear, hope, desire.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. Bartuschat, Wolfgang - Spinozas Theorie des Menschen, Hamburgo: Felix Meiner, 19922. Bennett , Jonathan -“Spinoza and teleology: a reply to Curley” in Spinoza, Issues

and directions, the proceedings of the Chicago Spinoza Conference , Leiden: E. J. Brill, 1990.

3. Canetti, Elias, Masse und Macht, Hamburg: Fischer Taschenbuch Verlag, 1983.4 . Cristofolini, Paolo, Spinoza edonista, Edizioni Ets, Pisa, 2002.5 . Curley , Edwin -“On teleology” in Spinoza, Issues and directions, the proceedings

of the Chicago Spinoza Conference , Leiden: E. J. Brill, 1990.6. Elster, Jon, Tuercas y tornillos, Barcelona: ed. Gedisa, 1996.7. Kant - La crítica del juicio, Madrid: Espasa-Calpe , 1977.8. Levinas - Difficile Liberté, Paris: Éditions Albin Michel, 1976.9________. - De otro modo que ser, o más allá de la esencia, Salamanca: Ediciones

sígueme , 1987.

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10. Macherey, Pierre, Introduction á l´Éthique de Spinoza, PUF, Paris, 199811. Matheron, Alexander, Individu et Comuunnautte. Paris: Les editions de Minuit, 1969.12. _________- « Le problème de l´évolution de Spinoza du Traite Théologique-

politique au Traité Politique », en Spinoza, Issues and directions, E. J. Brill, Leiden, 1990

13. Negri, Antonio, Spinoza subversif, Éditions Kimé, Paris, 1994.14. Schewe, Martin, Rationalität contra Finalität, Spinozas Antropomorphismuskritik

als Element seiner Methodenlehre, Peter Lang Verlag, Frankfurt, 198715. Spinoza – Etica Ed. Trotta, versión de Atilano Domínguez, Madrid, 2000.16._______ Tratado Teológico-Político, Alianza Editorial, versión de Atilano

Domínguez, Madrid, 1986.17.________ Tratado Político, Alianza Editorial, versión de Atilano Domínguez,

Madrid, 1986.

NotAS:

1. Para una exposición detallada de la relación finalismo-antropocentrismo, consúltese a Wolfgang Bartuschat 17, p. 29-36. De acuerdo a Bartuschat, la Ética tiene una perspectiva “fisiocéntrica” (p. 35) que desplaza la imagen del hombre fuera del centro del universo. De ahí la exigencia de desplazarse del orden de las cosas al orden de las causas. Cf. también Schewe 14. La naturaleza del pensamiento antropomórfico genera un tipo de predicados (y dicotomías) que se caracterizan por orientar la acción práctica y por ser demasiado abiertos y generales. También sirven para construir prejuicios generados a partir de los universalia (p. 20). Para este punto, también es importante seguir la discusión entre Edwin Curley y Jonathan Bennett (Curley 5 y Bennett 2). La tesis de Curley es que Spinoza distingue entre teleología cósmica y teleología humana. La primera es rechazada y la segunda es explicada como una tendencia propia de la inclinación de las ficciones derivadas de la búsqueda de utilidad.2. No es Heráclito el autor de la frase. Se trata de Spinoza 15, E. Primera Parte, Apéndice, p. 69. 3. Un ladrón me fuerza a prometerle que le daré mis bienes cuando él quiera…O supongamos que yo he prometido sin fraude a alguien que no tomaría comida ni alimento alguno durante veinte días, y que no puedo guardarla sin gravísimo daño para mí. Dado que estoy obligado, por derecho natural, a elegir de dos males el menor, tengo el máximo derecho a romper mi compromiso y a dar lo dicho por no dicho Spinoza 16, TTP, Cap. XVI, II, p. 339.

4. (Spinoza 15, E. Primera Parte, Apéndice, p. 71). “Después de que los hombres se convencieron de que todo cuanto se hace, se hace para ellos mismos, debieron considerar como lo principal en cada cosa aquello que es lo más útil para ellos y estimar como más excelentes aquellas cosas por las que mejor son afectados. Y así debieron formar estas nociones para explicar la naturaleza de las cosas, a saber, bueno, malo, orden, confusión, caliente, frío, hermosura y fealdad; y como se consideran libres, surgieron estas nociones, a saber, alabanza, vituperio, pecado y mérito. Pero éstas las explicaré más abajo…”. Utilitas es, a un tiempo, impulso y, al principio, un velo cognitivo que nos impide ver más allá de las impresiones de nuestra propia constitución afectiva. En esa especie de infancia intelectual que se describe en el Apéndice de la primera parte de la Ética, lo que conviene a nuestra naturaleza no es, por tanto, una fuente de conocimiento sino una fuente de perseverancia. 5. Cf. Matheron 11, p. 249. Quizá como nadie, Alexander Matheron ha insistido en esta doble visión que tiene la antropología spinoziana. Por un lado admite que la sociedad política nace de intereses y no de pactos racionales. Por otro lado, sostiene que el principio de utilidad se llega a transmutar en la filosofía de Spinoza, en un impulso intelectualizado. 6. En el contexto de la exégesis de las obras de Spinoza causa cierto temor el término “eficiencia” y su vínculo con el concepto “razón instrumental”. Pero la noción de potencia de actuar sería abstracta sin esa determinación que le dan el temor y la esperanza: estas afecciones tienen una función claramente instrumental. La especificidad de ese pulso de los resultados de la acción y la recurrencia al modelo iusnaturalista tienen todavía eco el esta tesis de Jon Elster. La raíz spinozista de la tesis de Elster consiste en que también explica la matriz de la acción en los deseos y en que, en todo momento, los resultados de ésta son permanentemente evaluados: “La elección racional es instrumental: está guiada por el resultado de la acción. Las acciones son evaluadas y elegidas no por sí mismas sino como un medio medios más o menos eficiente para otro fin”. Elster 6, p. 31.7. Cf. Macherey 10, p. 258-59. En una interpretación sugerente del Apéndice de la primera parte de la Ética, Macherey sostiene que esta tendencia abusiva que contamina a todos nuestros juicios de valor acaba por imponerse: nos importa más las cosas tal y como nos afectan, no tal y como son en sí. “Queda por comprender por qué el prejuicio finalista ocupa tal lugar en el espíritu de la gente, que acaba por relacionar todas las ideas que se hacen de las cosas. En efecto, a partir de las ocasiones particulares que lo han engendrado, se convierte en el factor de un proceso de contaminación por

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el cual se comunica progresivamente a todas las figuras usuales del pensamiento, que ha inclinado en su sentido. Así son puestas en lugar las estructuras mentales que revelan las diversas formas de evaluación que, incluso sin reflexionar, aplicamos a la realidad relacionándola a nuestra propia medida y procediendo a la identificación abusiva de lo que las cosas son para nosotros…todos nuestros juicios de valor se operan así en perspectiva, relativamente a lo que nosotros estimamos que constituye nuestro interés: eso es lo que consideramos de entrada en las cosas, aquello que son susceptibles de aportarnos o lo que pueden eventualmente generarnos, y no tal y como son en sí mismas”. 8. Para que algo sea útil debe ser conmensurable, de tal manera que el primer instrumento de las decisiones sobre los bienes y los males sea una forma de tasar sus efectos positivos y negativos: “Es una ley universal de la naturaleza humana que nadie desprecia algo que considera bueno, sin no es por la esperanza de un bien mayor o por el miedo de un mal mayor…Es decir, que cada uno elegirá, de dos bienes, el que le parece mayor y, de dos males, el que le parece menor. Digo expresamente aquello que le parece mayor o menor al que elige, no que las cosas sean necesariamente tal como él las juzga. Esta ley está, además, tan firmemente grabada en la naturaleza humana, que hay que situarla entre las verdades eternas” (Spinoza 16, TTP, Cap. XVI, II, p. 338). 9. (Spinoza 15, E, Parte 1 Def. 1 y 2). Para que una cosa sea concebida como finita se necesita comparar con otra de su misma naturaleza y, en función de esta pertenencia, sostiene que un cuerpo sólo es comparable con otro cuerpo y una idea con otra idea. “Mayor” y “menor” no existen, por tanto, en el infinito. 10. ¿A qué cuestiones responde la obra política de Spinoza, particularmente su Tratado Político? A la emergencia del Estado absolutista, que se ha apropiado de la visión contractualista de la política y del individualismo competitivo. (Cf. Negri 10). El filósofo italiano encuentra razones para sostener que, con el triunfo del modelo teórico del derecho natural, se introduce también un individualismo adecuado a las nuevas exigencias de producción. Spinoza presenta así, a los ojos de Negri, una resistencia frente al absolutismo político y el absolutismo del mercado (p. 35). Aunque Negri enfatiza la crítica a la visión trascendental en el anticontractualismo de Spinoza, un filósofo de la inmanencia no puede sino partir de la experiencia y de la naturaleza humana. De ahí que el individualismo de Spinoza no sea una defensa teórica del egoísmo posesivo sino del individualismo libertario. 11. Cristofolini 4: Quizá insistiendo más en el carácter político del temor, y en una lectura en la que está espléndidamente presente la huella de Maquiavelo, Paolo

Cristofolini sostiene que en esta afección se encuentra “el mecanismo psicológico desde el cual se esbozan las instituciones civiles” (4, p. 10). Se entiende que la esperanza no sea enfatizada aquí. En otra parte de ese libro argumenta las razones del maquiavelismo de Spinoza: “un pueblo sin temor al soberano tiende fácilmente a comportamientos feroces” (4, p. 31). 12. Es lo que Spinoza denomina pudor y consternatio.13. ¿Habría en Spinoza una crítica la esperanza religiosa? Toda la crítica a la superstición religiosa supone un desmontaje de la esperanza de la salvación personal. Se trata de la idea según la cual Dios está constituido por una voluntad indiferente (Spinoza 15, E. Primera Parte, p. 33, Esc.). Si Dios no es un juez moral, no hay salvación posible. Sin embargo, esta crítica está remitida a la duda frente a los resultados dudosos de una acción 14. La salvación (común) es una tarea de la ciudad, no de la religión. (Spinoza 16, TTP, Cap XX, IV). El patriotismo como salvación se entiende que es la práctica de la justicia y la caridad.15. Spinoza 15, Eth. Pars Tertia, p. XIX: metus, securitas, desperatio, gaudium, conscientia morsus. La esperanza se relaciona con la incertidumbre de la eficiencia, no con la incertidumbre de las ideas. 16. El Esse est interesse, se forma como una relación inmanente del individuo con el mundo del entorno. Vivir es estar entre entes y esa es una inevitable condición de la finitud. Los “egoísmos alérgicos”, dice el antagonista, se fundan en la inmanencia. Aunque Emmanuel Lévinas sostenga que el racionalismo no es un enemigo de la fe judía, la figura de Spinoza se situaría en las antípodas del pensamiento del filósofo lituano. De ahí que la disputa contra Spinoza esté centrada por Levinas, filósofo de la alteridad, en la tesis del conatus essendi y, por supuesto, en la interpretación bíblica. Cf. Los textos sobre Spinoza en Levinas 8, p. 152-169 y Levinas 9, p. 46 y 47. ¿Spinoza es el Galileo del pueblo judío? Tal parece que la demanda de levantar su excomunión, por parte de Ben Gourion, así lo confirma. Sin embargo, la rehabilitación de Spinoza, en la filosofía de Lévinas, pasa por la reivindicación misma del mundo occidental que, según el filósofo lituano, es la libertad de espíritu. 17. “Los hombres pueden procurarse mucho más fácilmente las cosas que necesitan y que sólo uniendo sus fuerzas pueden evitar los peligros que por todas partes les acechan” (Spinoza 15, E. , Cuarta Parte, pr. 35, Esc., p. 206).18. Alexandre Matheron (12, p.263) enfatiza justamente la ausencia de una acción concertada y racional en la explicación spinoziana de la ciudad.

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19. La proposición 37 de la cuarta parte de la Ética desarrolla lo que promete el Apéndice de la primera parte y que se despliegan en sus Tratado teológico político y el Tratado político. La conexión entre el tema de la tendencia a la utilidad y los tópicos expuestos por esta proposición –la virtud como máxima forma de utilidad, el deseo de vivir bajo la guía de la razón y la definición de lo justo y lo injusto en la sociedad política- son a concebidos con una continuidad temática: “En el Apéndice de la primera parte, prometí explicar qué es la alabanza y el vituperio, el mérito y el pecado, lo justo y lo injusto…pero antes hay que decir algo acerca del estado natural y civil del hombre” (subrayado nuestro). 20. Canetti 3: Es obvio que en Spinoza no aparece la categoría “masa”. Sin embargo, podemos decir que la clasificación que hace Canetti es conceptualmente adecuada a lo que Spinoza llamaría “estado natural”: una masa que está dominada por sus pasiones, todavía no entra en “posesión de su potencia de actuar”, es decir, todavía no deviene multitud. Crecimiento, igualdad, densidad y dirección (p. 26), sostiene Canetti, son los atributos de estos individuos que todavía no tienen soberanía y que, más bien, tienen el temor de “la mano transmutada en garra” (p 9). 21. El criterio de utilidad, dado que no puede haber una definición absoluta de ésta, no puede dársele un carácter objetivo ni uno meramente subjetivo. Spinoza propone justamente la idea de noción común no sólo como una mera categoría de la teoría del conocimiento (Spinoza 15, E. Segunda Parte, pr. 39, Cor., p. 106): “el alma es tanto más apta para percibir adecuadamente más cosas, cuantas más cosas tiene el cuerpo humano comunes con otros cuerpos”. La noción común, desde el punto de vista de la valoración, no los define sino como un encuentro y composición entre ambas entidades: el sujeto deseante y lo deseado.22. En efecto, Kant sostiene que una ética sostenida en inclinaciones es “casi instintiva” y, desde esa perspectiva, no hay manera de justificar a los deberes. Toda forma de acción práctica, en Kant, está arraigada en un orden nouménico desde el cual la razón se propone fines morales y, desde el cual, asimismo, se propone su realización. El deseo, o, como dice Kant, el tiempo de la “impaciente espera” tiene, con su objeto, una relación causal y, al mismo tiempo, se despliega en el vacío: “esa ilusión de los anhelos vacíos, es, pues, tan sólo la consecuencia de una bienhechora organización de nuestra naturaleza”. (Kant 7, p. 77). La filosofía trascendental hace del deseo una representación, mientras que una perspectiva inmanentista hace del deseo un impulso. De ahí que se entienda que en Kant el deseo entrañe la capacidad de entrar en contradicción consigo mismo, mientras que en Spinoza, el deseo sería la

fuente más primaria de entrar en concordancia con uno mismo, una manifestación del sui juris. “La salvación de la trascendencia” sería, para Kant, la condición misma del surgimiento de la cultura; para Levinas, la trascendencia permite acceder al orden de la paz mesiánica, porque está a salvo de la inmanencia del interesse.

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aPrECiaÇão dUbitativa do rEalisMo E sEU iMPaCto sobrE a CosMoloGia Cristã rEalista

Carlos Eduardo Pereira oliveira*

resumo: O presente artigo deseja expor a apreciação dubitativa do realismo na Primeira Meditação, no intuito de mostrar o impacto dessa ação cartesiana sobre a doutrina da creatio ex nihilo, consolidada filosoficamente por Tomás de Aquino como autêntica cosmologia cristã, em substituição à cosmologia pagã erguida sobre o princípio ex nihilo nihil fit. Faremos, primeiramente, uma breve exposição dos fundamentos realistas que embasam as provas da criação elaboradas pelo Aquinate. Em seguida, apresentaremos como a submissão do realismo ao método cartesiano da dúvida acarreta o inevitável desmoronamento do edifício cosmológico cristão. Palavras-chave. Tomás de Aquino. Realismo. Cosmologia. Descartes. Dúvida.

Introdução

Há já algum tempo frequentando as Meditações, fomos persuadidos de que nelas existe uma teoria cartesiana da criação capaz de fundamentar a polêmica teoria da livre criação das verdades eternas, de cuja junção provavelmente resultaria uma cosmologia cartesiana que marca o início da cosmologia moderna.

O presente artigo, no entanto, tem outro propósito que apresentar a teoria cartesiana da criação, qual seja descobrir o que motivou Descartes a elaborar uma teoria da criação, já que ele, assumidamente católico, estaria obrigado pela fé a admitir incontestavelmente o dogma da criação, especialmente depois de Tomás de Aquino haver conseguido concretizar o

* Doutorando do Departamento de Filosofia da USP

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projeto de fundamentação filosófica da creatio ex nihilo, estabelecendo-a como original cosmologia cristã em oposição à cosmologia pagã. O que mais poderia ser a teoria cartesiana senão a ratificação do conteúdo teológico preservado pela ortodoxia cristã? Se a tradição estava correta, isto é, erguida sobre princípios bem fundamentados, não haveria motivo para Descartes retomar o assunto dado por consolidado. Sed contra, Descartes o retomou. Teria ele então notado algo suspeito ou mal fundamentado na cosmologia cristã que serviu como motivo para uma nova teorização da criação?

As investigações que vimos realizando no Doutorado têm encontrado fortes indícios de que as Meditações contêm uma perspectiva cosmológica. Em vista disso, a Primeira Meditação submete à apreciação dubitativa os dois mais importantes sistemas filosóficos existentes à época de Descartes: o realismo e o idealismo. O primeiro fornece as bases para a cosmologia cristã realista; o segundo fundamenta a existência de realidades incriadas e, segundo Descartes, independentes de Deus1.

Dada a extensão do assunto, limitar-nos-emos apenas à apreciação dubitativa do realismo e o impacto que ela exerce sobre a cosmologia cristã realista. A inconsistência do realismo ante os ataques da dúvida acarretará sua ruína e, por conseguinte, o desmoronamento da cosmologia cristã sobre ele alicerçada.

1. os fundamentos realistas da cosmologia tomasiana

A cosmologia teve origem na Grécia, precisamente na investigação racional dos primeiros filósofos em torno da physis, rompendo dessa maneira com as cosmogonias própria das narrativas míticas. Toda a cosmologia pagã2, de Tales a Porfírio, desenvolveu-se no intuito de consolidar o princípio cosmológico ex nihilo nihil fit, ou seja, que nada procede do nada. Em linhas gerais, o princípio sustenta a eternidade da matéria incriada ou da realidade

material existente. Platão e os neoplatônicos acrescentaram as Formas ou Ideias, realidades imateriais, igualmente incriadas. O médio-platonismo, por sua vez, realizou uma operação muito conveniente para o desenvolvimento da filosofia cristã. Ele transformou as Formas ou Ideias platônicas em pensamentos de Deus (Cf. G. Reale e D. Antiseri 6, p. 328-329).

Quando no século II de nossa era aconteceu o encontro do cristianismo com a filosofia, os Padres da Igreja saíram em defesa da fé revelada, afirmando a doutrina da creatio ex nihilo, ou seja, da criação a partir de nada. Afirmada inicialmente como crença identificadora dos cristãos, a creatio ex nihilo foi progressivamente lapidada. Tornou-se doutrina teológica, graças às contribuições patrísticas, especialmente de Agostinho. Mas somente com Tomás de Aquino, no século XIII, a doutrina cristã ganha estatuto filosófico. Fortemente influenciado pelo realismo aristotélico, ele procurará consolidar o projeto de fundamentação filosófica da fé. Ele assegura como racionalmente demonstrável a doutrina teológica da creatio ex nihilo, e declara que “a existência da criação não é algo que se sustenta apenas pela fé, mas que também se demonstra pela razão” (Tomás de Aquino 7, 2sent., d.1, q.1, a.2). Com a demonstração racional da criação, Tomás consolida, em bases realistas, a doutrina teológica como autêntica cosmologia cristã, tendo a creatio ex nihilo como seu princípio cosmológico, em oposição à cosmologia pagã. O legado da Tradição, portanto, compreende duas importantes cosmologias, cada uma com um princípio cosmológico próprio e autêntico: o princípio pagão ex nihilo nihil fit e o cristão creatio ex nihilo.

Seguindo Aristóteles, Tomás admite o princípio de que nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos. Nesse princípio se sustenta a gnosiologia realista, que procura explicar como podemos ter um conhecimento universal a partir das coisas sensíveis individuais. É através de um processo gradual chamado abstração (abstractio) que o conhecimento

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universal é formado. Segundo a teoria da abstração, a realidade material existente, composta de coisas sensíveis, deixa suas impressões em nossos sentidos. A imaginação, por sua vez, age sobre os dados fornecidos pelos sentidos, formando assim as espécies sensíveis, também chamadas imagens ou fantasmas, que são representações imateriais de uma realidade material. O intelecto, por sua vez, atuando sobre essas espécies, abstrai delas a quidditas (quididade), isto é, a essência universal, também chamada espécie inteligível, formando, finalmente, um conhecimento verdadeiro. Dessa breve exposição, é importante destacar o seguinte: a existência da realidade material é algo indubitável e indispensável ao conhecimento universal, pois, segundo o realismo, todo conhecimento tem origem na experiência sensível. Por isso, é na realidade sensível que se fundamenta a demonstração tomasiana da criação. Expliquemos, primeiro, os termos da sentença creatio ex nihilo.

1.1. Explicitação e demonstração tomasiana da creatio ex nihilo

De acordo com Tomás, “creatio é a produção de uma coisa na sua substância total, sem se pressupor nada de incriado ou de criado por outrem” (Tomás de Aquino 11, I, q. 65, a. 3). Trata-se de um ato que procede diretamente de Deus e exclui qualquer possibilidade de uma matéria preexistente incriada ou de algo criado por outro ser que não seja ele próprio. Por sua vez, a expressão ex nihilo equivale a nenhum ente. Nesse sentido, a preposição ex designaria ordem, “como quando se diz que da manhã (ex mane) se faz o meio-dia, isto é, o meio-dia vem depois da manhã” (Tomás de Aquino 11, I, q. 45, a. 1). Assim, quando se diz que as coisas foram feitas do nada, pretende-se indicar a ordem do que é relativamente ao não-ser precedente. A preposição ex pode também designar a negação da causa material e, nesse sentido, equivale a dizer que

“não é feito de alguma coisa” (Idem). Sendo a criação a produção do ser total sem que se possa pressupor algo de criado ou incriado, segue-se que a ação de criar é exclusiva de Deus3. Explicados os termos da sentença, orientemo-nos em direção à demonstração racional da creatio ex nihilo construída sobre bases realistas.

O ponto de partida é a existência da realidade material, da qual Tomás inquire se é causada por princípios inerentes à sua própria natureza ou por algum princípio extrínseco. Segundo ele, as coisas materiais não poderiam ser causadas por princípios inerentes à sua própria natureza, uma vez que sua essência não envolve a existência, ou seja, a existência não é essencial para a compreensão de sua quididade:

“Tudo quanto não é essencial a respeito da compreensão da quididade constitui algo que procede de fora e que introduz a composição com a essência, visto que nenhuma essência se pode compreender sem os elementos que constituem partes da essência. Ora, toda essência ou quididade pode ser entendida sem que se compreenda qualquer coisa acerca do seu ser ou de sua existência. Com efeito, posso compreender o que sejam o homem e a fênix, ignorando se possuem ou não existência real. É evidente, por conseguinte que a existência difere da essência ou quididade” (Tomás de Aquino 8, c. 5, 3).

Se a existência não decorre da compreensão de sua essência, segue-se que o ser de todas elas é acrescentado de fora. Dessa forma, o ser ou a existência das coisas provém de uma causalidade eficiente e extrínseca. Do contrário, seria preciso sustentar que “uma coisa seria a causa de si mesma, e uma coisa se produziria a si mesma, o que é impossível” (Tomás de Aquino 8, c.5, 4). Portanto, em toda coisa na qual o ser difere da essência, sua existência necessariamente lhe advém

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de outra coisa, que é a sua causa. Por conseguinte, a realidade material é efeito. Entendida como efeito, sua existência é condicionada à existência da causa, pois “o efeito não existe se a causa não existir” (Tomás de Aquino 11, I, q. 44, a.1). Ora, não há dúvida de que o mundo existe. Logo, da existência do mundo, entendido como efeito, é necessário concluir a existência da sua causa, ou seja, Deus. A realidade material, portanto, não é causada por princípios inerentes à sua natureza. Ela requer uma causa que a “faça passar da não-existência para a existência. Ora, tal causa lhe é necessariamente anterior” (Tomás de Aquino 9, c. 6, 9).

Poder-se-ia objetar a Tomás que o percurso argumentativo feito até agora não torna evidente a criação, porque parece ser baseado em pressupostos pouco ou nada evidentes tais como o da distinção entre essência e existência, ou o de que o mundo não possa ser causado por princípios inerentes à sua própria natureza. Em razão disso, Tomás apresenta, na Suma Teológica, as famosas Cinco Vias, com o objetivo de demonstrar a existência de Deus. Elas, no entanto, fornecem para nós as provas da criação fundamentadas nas evidências constatadas pela experiência sensível.

Tomás admite duas espécies de demonstração: uma é a que procede da causa – Deus – em direção aos efeitos – as coisas feitas; a outra parte dos efeitos em direção à sua causa. O Doutor Angélico opta pela segunda, pois os efeitos, como são mais conhecidos por nós, permitem-nos chegar com mais segurança à causa primeira criadora, da qual não temos um conhecimento evidente:

“Há duas espécies de demonstração. Uma, pela causa, pelo porquê das coisas, a qual se apoia simplesmente nas causas primeiras. Outra, pelo efeito, que é chamada a posteriori, embora se baseie no que é primeiro para nós; quando um efeito nos é mais manifesto que a sua causa,

por ele chegamos ao conhecimento desta. Ora, podemos demonstrar a existência da causa própria de um efeito, sempre que este nos é mais conhecido que aquela; porque, dependendo os efeitos da causa, a existência deles supõe, necessariamente, a preexistência desta. Por onde, não nos sendo evidente, a existência de Deus é demonstrável pelos efeitos que conhecemos” (Tomás de Aquino 11, I, q. 2, a. 2).

Das Cinco Vias, são as três primeiras que trazem os elementos consideráveis para a demonstração da criação. Analisemos a primeira via que é a do movimento. Os sentidos testemunham e garantem a existência do movimento4. Ao se falar em movimento, primeiramente o concebemos como deslocamento espacial. Todavia, movimento significa precisamente a passagem da potência ao ato. “Mover, afirma Tomás, é levar uma coisa da potência ao ato” (Tomás de Aquino 11, I, q. 2, a. 3). No Compêndio de Teologia, ele havia declarado que tudo o que uma vez pode existir e outra vez deixa de existir traz em si a marca da mutabilidade, necessitando de uma causa necessariamente anterior que o faça passar da não-existência à existência. Se mover é levar uma coisa da potência ao ato, esse movimento pressupõe um ser anterior que opere tal mudança naquele que muda. Com efeito, nada pode passar da potência ao ato, do não-ser ao ser por si mesmo, senão por meio de uma causa extrínseca (Tomás de Aquino 9, c. 6-7). Por outro lado, a coisa em mudança não pode estar em potência e ato sob o mesmo aspecto, pois isso viola o princípio de não-contradição. Destarte, “é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria” (Tomás de Aquino 11, I, q.2. a.3). Considerando, pois, o princípio de que tudo o que se move é movido por outro, é necessário admitir que o que é movido o seja por outro e assim sucessivamente até se chegar ao primeiro motor, pois os motores segundos não se movem senão pela ação do primeiro, impedindo que o movimento prossiga ao infinito. A passagem

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da potência ao ato só se dá mediante a existência de um ser já em ato. O movimento do mundo, portanto, remete a uma causa motora primeira.

A admissão da causa motora primeira não nos autoriza afirmar a criação do mundo, pois, como bem nota o próprio Tomás, a criação não pressupõe o movimento5. Assim sendo, a primeira via nos autoriza apenas a admitir que o mundo não tem em si mesmo a causa do seu movimento e, consequentemente, não existe por si mesmo, já que carece de uma causa motora extrínseca.

Introduzindo a noção de movimento como passagem da potência ao ato, Tomás valeu-se do princípio de que nada passa da potência ao ato por si mesmo, mas somente por meio de uma causa extrínseca. Para tanto, exige-se um agente em ato, capaz de operar a suposta mudança. A necessidade do agente é que nos insere na segunda via. Nela, parte-se da análise da natureza da causa eficiente: aquela que, por sua ação, o efeito é produzido.

De acordo com as observações de Tomás, verifica-se nos seres sensíveis certa ordenação das causas eficientes, isto é, em todas elas “a primeira é causa da média e esta da última, sejam as médias muitas ou uma só” (Tomás de Aquino 11, I, q. 2, a. 3). A ordenação das causas eficientes impossibilita que uma coisa seja causa eficiente de si própria, porque isso equivale a dizer que uma coisa é anterior a si mesma, o que não se pode conceber nem é possível assim ser, pois é impossível uma coisa produzir a si mesma, conforme já se observou acima. Poder-se-ia, em contrapartida, aventar a hipótese de a série causal proceder ao infinito. Mas em contrário, Tomás adverte que, considerando a ordem das causas eficientes – a primeira causa da média e esta da última – e considerando-se que retirando a causa, o efeito não se produz – pois só existe efeito se a causa existir –, “procedendo ao infinito, não haverá primeira causa, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é

falso” (Idem). Donde Tomás conclui a necessária existência de uma causa eficiente absolutamente primeira, que é Deus.

É a introdução da causa eficiente que nos dá uma primeira prova de que o mundo é criado, porque a causalidade eficiente exige a produção de uma coisa por outra anterior. Sendo Deus a causa eficiente primeira é, portanto, a causa produtora do efeito que é o mundo. Portanto, o mundo é criado. A produção do mundo por Deus dispensa a matéria preexistente incriada, conforme já apontamos anteriormente, na explicação dos termos da sentença. Assim, a criação é ex nihilo.

A próxima evidência da criação reside na existência de seres contingentes. A contingência dos seres parece resultar da existência da causa eficiente, que é pressuposta à produção de uma coisa. Como efeito, a contingência é definida por Tomás como poder ser e poder não ser, isto é, como possível, podendo ser gerado e corrompido. Resulta que o contingente não possui em si mesmo a razão de sua existência e, por isso, deve recebê-la de uma causa eficiente anterior. Porque “quod non est, non incipit esse nisi per aliquid quod est”6.

Ora, as coisas sensíveis são testemunhas suficientes da contingência, os sentidos comprovam que coisas nascem e se corrompem, ou seja, vêm a ser e deixam de ser. Se as coisas são possíveis, é impossível terem existido sempre, pois é da natureza do possível não ter sido em algum momento e, portanto, houve algum tempo em que nenhuma delas era, quer dizer, houve um momento em que nada existia. Mas se tudo fosse somente possível, ainda hoje nada existiria, pois algo só passa do não-ser ao ser através de uma causa extrínseca, no caso, um ser em ato, uma coisa já existente7.

Visto não serem todos os seres somente possíveis, é forçoso que dentre eles haja algum ser necessário. Quanto a este, Tomás ensina que ou será necessário por si ou em virtude de outro ser necessário. Como de costume, é descartada a possibilidade de regressar ao infinito na série de seres necessários,

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pois, regressando ao infinito, não haveria nenhum ser necessário. Ademais, rigorosamente falando, necessário é aquilo que existe por si e não em virtude de outro. Donde conclui o Aquinate, dizendo que “É forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa de sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; o que todos chamam Deus” (Idem)8. Com esses argumentos, Tomás de Aquino concretiza o projeto de fundamentação filosófica da doutrina da creatio ex nihilo, consolidando-a como autêntica cosmologia cristã sobre as bases do realismo aristotélico.

2. Descartes e a apreciação dubitativa do realismo

2.1. A motivação cartesiana

Cumpre agora mostrar como Descartes, submetendo o realismo aristotélico-tomista ao método da dúvida, provoca o desmoronamento da cosmologia cristã. O motivo já se apresenta na passagem de abertura da Primeira Meditação:

“Já faz bastante tempo que eu me dei conta de que, desde os meus primeiros anos, eu havia recebido muitas opiniões falsas por verdadeiras, e que o que mais tarde fundei sobre princípios tão mal fundamentados, só poderia ser muito duvidoso e incerto; de modo que era necessário que eu tentasse seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões nas quais até então acreditara, e começar tudo de novo desde os fundamentos, se eu quisesse estabelecer qualquer coisa firme e constante nas ciências” (Descartes 2, AT IX, p. 13).

Para todo ser humano, a infância é aquele período em que tudo o que se pode saber como verdadeiro se recebe diretamente dos pais e mestres, cujas

opiniões, por sua vez, alicerçam-se sobre a autoridade dos ensinamentos recebidos dos Antigos e que constituem as verdadeiras opiniões9. Transmiti-las equivalia a transmitir a verdade, que convenientemente se designa pelo nome de Tradição. Entre os inúmeros ensinamentos recebidos da Tradição, há os da filosofia. “Cultivada pelos mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos, nela não se encontra uma única coisa a respeito da qual não se haja discussão” (Descartes 3, p. 40-41), revelando-se nisto quão pouco firmes eram seus alicerces, de modo que nada sólido poderia ser construído sobre eles (Cf. Idem).

Era de se esperar que Descartes, devido à atitude passiva e infantil frente à Tradição e ao mundo, viesse a fazer o mesmo que fizeram seus pais e mestres, a saber, transmitir a Tradição, fundando sobre os princípios por ela estabelecidos as suas próprias opiniões. Em tempo, porém, percebe haver aceitado como verdadeiras incontáveis opiniões falsas, erguidas sobre princípios mal fundamentados, e “ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo o que era apenas provável” (Descartes 3, p. 41).

Ao atingir a maturidade suficiente e sair da submissão a seus preceptores, Descartes supera definitivamente a passividade infantil e inicia a execução do propósito há muito concebido de, destruindo os alicerces da Tradição, provocar o inevitável desmoronamento de tudo o que estivesse erguido sobre ele10. Começando pelo realismo predominante, Descartes percorre o mesmo caminho da abstractio, cada um dos seus níveis. O menor indício de dúvida encontrado em cada nível constituirá motivo suficiente para o filósofo repelir o realismo, a abstractio e tudo o que sobre ele estiver assentado (Descartes 2, AT IX, 13).

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2.2.Submissão do fundamento realista ao método da dúvida

“Tudo o que eu admiti (admisi) até o presente como o mais verdadeiro e seguro, eu aceitei (accepi) dos sentidos ou através dos sentidos: ora, algumas vezes experimentei que esses sentidos eram enganadores, e a prudência recomenda jamais se fiar inteiramente nos que uma vez nos enganaram” (Descartes 2, AT VII, 18)11.

Nesse trecho, nitidamente Descartes parafraseia o fundamento do realismo aristotélico-tomista – sobre o qual também se erguera o empirismo de sua época – que diz que nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos, para logo em seguida lançar uma ponta de dúvida sobre ele. Segundo o trecho, tudo o que se admite como mais verdadeiro e seguro sempre provém dos sentidos, mas de modo diferente. Pode provir diretamente dos sentidos ou mediado por eles, isto é, transformando-se os sentidos em instrumentos pelos quais se extrai o conhecimento verdadeiro.

A realidade exterior é diretamente captada pelos sentidos. Que os sentidos a percebem é algo de que não se pode sensatamente duvidar, pois sua existência lhes é dada independente da vontade humana; as coisas afetam meus sentidos e isso é suficiente para aceitar como verdadeiro que existe a realidade exterior. O questionamento cartesiano à apreensão direta dos sentidos não representa nenhuma novidade. Este era um ponto comum em toda a tradição filosófica, tanto idealista quanto realista. Os sentidos captam o particular e nesse particular há algo de mutável, de falso. Sendo assim, é incapaz de nos fornecer diretamente um conhecimento verdadeiro e necessário.

Tomás de Aquino, seguindo os passos de Aristóteles, propunha que, para fazer ciência, seria necessário transformar os sentidos em instrumentos. Uma vez que os sentidos não enganam quanto ao perceber a realidade exterior, então não há problema em tomá-los como instrumentos

através do qual seja construído o conhecimento verdadeiro, isto quer dizer que os sentidos são instrumentos através dos quais o intelecto extrairá o universal, num processo conhecido por abstractio.

Esse processo, embora rejeite admitir que o conhecimento provém diretamente dos sentidos, jamais previu eliminá-los. A correção estabeleceu sua instrumentalização, preservando-os, assim, como fonte originária de todo conhecimento, conforme estabelecido pela tese de que nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos. Isso soa como a expressão de uma incondicional confiança neles. Com efeito, a atividade do intelecto consiste apenas em abstrair a espécie inteligível, que lhe é própria, da espécie sensível produzida pelos sentidos sem nada lhe acrescentar ou retirar.

Descartes reconhece ter admitido e aceitado todas essas posições realistas como verdadeiras e seguras. Ora, se tudo o que é verdadeiro provém direta ou mediatamente dos sentidos, então é verdade que os sentidos não enganam. No entanto, se for possível encontrar alguns poucos casos em que eles nos enganem, seguir-se-á que nem tudo o que é verdadeiro provém deles, quer direta quer mediatamente. Ademais, tal descoberta será suficiente para rejeitá-los e jamais voltar a se fiar ingênua e imprudentemente neles. Entretanto, o fato de algumas vezes os sentidos nos enganarem nos autoriza a concluir que nos enganem sempre? Não estaria Descartes cometendo uma generalização indevida?

Há outra coisa a ser observada. Quando se toma os sentidos como instrumento ou meio, quer-se dizer que alguma coisa através deles atinge outra coisa, isto é, que ele é o meio pelo qual o intelecto conhece a realidade sob a forma inteligível. Sendo assim, diretamente ou através dos sentidos, fato é que o fundamento sobre o qual eles se apoiam é a inquestionável existência da realidade sensível exterior, o substrato indispensável do qual a imaginação, por meio deles, retira os elementos que serão trabalhados pelo intelecto. É impossível duvidar da existência da realidade sensível.

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Com efeito, para o realismo, se não existir realidade exterior, não haverá conhecimento proveniente dos sentidos, nem diretamente nem por seu intermédio e, sendo verdade que nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos, não haverá conhecimento de modo algum. Logo, não haverá ciência. A existência da realidade sensível, no entanto, é tão evidente ou tão manifesta assim como pretende o realismo? É o que Descartes cuidará de investigar, seguindo o mesmo caminho traçado na abstractio: a realidade afeta os sentidos, com os quais a imaginação produz as imagens sensíveis, sobre as quais o intelecto agindo produz as espécies inteligíveis.

O fato de os sentidos enganarem algumas vezes não nos autorizaria a rejeitá-los completamente, porque, na maioria das vezes, eles não enganam, como o próprio Descartes observa:

“Se bem que os sentidos às vezes nos enganem no que diz respeito às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode sensatamente duvidar, apesar de as conhecermos por meio deles” (Descartes 2, AT IX, 14).

Ademais, considerando-se as poucas vezes em que enganam, vê-se que há uma explicação plausível para isso. É bem provável que nessas poucas vezes, o engano tenha acontecido devido, primeiro, ao objeto ser pouco sensível e, segundo, à sua distância.

Um objeto pouco sensível é por si só inadequado aos sentidos, pois estes são capazes de captar com segurança as coisas sensíveis, excluindo as pouco sensíveis e as imateriais. Considerando os objetos pouco sensíveis de um lado e os sentidos do outro, o que se pode notar é que os próprios objetos pouco sensíveis estariam enganando os sentidos, porque não possuem sensibilidade suficiente.

Depois, um objeto muito distante comprometeria igualmente a percepção sensível. Com efeito, em razão da distância mesma, a experiência sensível é prejudicada, pois o objeto não fica suficientemente perceptível. A percepção de um objeto pelos sentidos exige dele completa sensibilidade e total proximidade. Satisfeitas essas condições, os sentidos garantem uma percepção inequívoca do seu objeto. Aparentemente de acordo, Descartes enumera algumas coisas tão próximas quanto sensíveis das quais seria insensato duvidar de que são conhecidas através dos sentidos: estar em um lugar físico, cercado de objetos com os quais seu corpo e suas mãos interagem. Em condições tão privilegiadas como estas, só mesmo sob efeito da loucura para se ter uma percepção que não corresponda à realidade12.

Assim como se exige dos objetos satisfazerem as condições de completa sensibilidade e total proximidade, exige-se que o sujeito esteja em condições normais para não comprometer a percepção sensível, ou seja, o sujeito deve estar no mais perfeito funcionamento de sua capacidade mental, isto é, sem o menor defeito no seu bom senso. Existindo tais condições, tanto para o objeto quanto para o sujeito, os sentidos têm, portanto, total autoridade para fornecer do modo mais verdadeiro e seguro o conhecimento verdadeiro através dos sentidos.

2.3.o argumento do sonho e a invalidação dos sentidos

Só então Descartes traz à tona o argumento do sonho, por meio do qual, preservando todas as condições até aqui exigidas, submete-as ao método da dúvida, a fim de verificar até onde os sentidos conseguirão resistir. Antes, porém, Descartes faz algumas observações.

A primeira consiste em considerar o ato de dormir e sonhar como hábitos normais do homem. Tal observação atenta para as condições normais nas quais deve estar o sujeito, ou seja, o sonho, por mais extravagante que seja,

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ao ponto de se assemelhar às coisas representadas pelos dementes despertos, nem por isso significa um mau funcionamento da sensação do sujeito ou defeito no seu bom senso. A extravagância onírica ou sua discrepância com a realidade é indício suficiente de que é sonho e que, portanto, a sensação não me engana. O sonho extravagante, porém, é uma situação atípica13.

Seria possível a sensação perceber nitidamente a distinção entre vigília e sonho? Não seria apenas o hábito aliado a certas condições exteriores percebidas pelos sentidos – como o costume de dormir à noite, quando temos a sensação de sonolência – o princípio da certeza de que se distingue de modo inconfundível a realidade do sonho?14 Para saber se a sensação, no seu perfeito funcionamento é capaz de distinguir a vigília do sono, garantindo assim que aquilo que percebe é efetivamente a realidade e não pura ilusão, Descartes evoca outra situação mais típica e mais provável:

“Afigura-se-me agora que não é com olhos adormecidos que olho para este papel; que esta cabeça que eu movo não se encontra adormecida; que é com intento deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que sucede no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Porém, meditando diligentemente sobre isso, recordo-me de haver sido muitas vezes enganado, quando dormia, por ilusões análogas” (Descartes 2, AT IX, 14-15).

Na presente situação, em que Descartes garante estar completamente

desperto, consciente e atento a todas as suas ações e sensações, decidindo cada uma delas, ele reconhece suceder o mesmo em certos sonhos, nos quais estava tão desperto e consciente de si, de suas ações e sensações quanto agora. As experiências do agora são de tal maneira idênticas àquelas experimentadas no sonho que se torna impossível distinguir claramente se o agora é sonho ou se é realidade.

Esse trecho submete simultaneamente à dúvida as condições exigidas dos objetos e aquelas exigidas do sujeito. A respeito dos objetos, agora como no sonho, eles satisfazem as condições de proximidade e completa sensibilidade. No sonho, os sentidos têm a mesma sensação inequívoca dos objetos. Quanto ao sujeito, sua percepção sensível encontra-se no seu mais perfeito funcionamento, quer dizer que a percepção de estar desperto, consciente e atento a todas as ações e sensações ocorre de modo inconfundível, tanto que Descartes ressalta que estende a mão e que a sente. É necessário que no sonho como agora tais condições sejam preservadas, a fim de que os sentidos, operando perfeitamente, produzam no sujeito um conhecimento verdadeiro.

No entanto, o recurso ao argumento do sonho mostra que o cumprimento dessas exigências não garante o resultado esperado, ou seja, o conhecimento verdadeiro por parte dos sentidos que possa garantir com tamanha clareza e distinção que a percepção das coisas conhecidas através deles seja uma percepção correspondente a coisas realmente existentes e não a ilusões. De fato, os sentidos se mostram incapazes de garantir que aquilo que percebem corresponde ao que existe efetivamente, pois, no sonho, acontece de se ter uma experiência sensível muito real do que não é real15. Descartes, porém, ressalta que no sonho como agora, ninguém pode negar que a percepção existe, quer dizer, que os sentidos percebem a existência de uma realidade exterior que os afeta (Cf. Forlin 4, p. 60-61). E ainda acrescenta:

“É necessário ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que só podem ser formados à semelhança de alguma coisa real e verdadeira; e que, ao menos dessa maneira, essas coisas gerais, isto é, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, e sim verdadeiras e existentes” (Descartes 2, AT IX, 15).

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Quando sonhamos, representamos no mais das vezes as mesmas coisas com as quais lidamos quando despertos. Do mesmo modo, no processo de abstração, a imaginação retém as imagens que são semelhantes àquilo que os sentidos captam. Quer sonhando, quer desperto, toda representação sensível tem um fundamento real, isto é, toda representação é representação de alguma coisa verdadeiramente existente. Agora, Descartes pretende atacar o segundo nível da abstractio, quando a imaginação contém em si as imagens sensíveis dos objetos captados pelos sentidos.

Em linhas gerais, de acordo com o realismo, a imaginação, por meio dos sentidos externos, produz o fantasma, com o qual as coisas sensíveis se assemelham e sobre o qual o intelecto agirá para produzir as espécies inteligíveis, formando os universais. “Seu fundamento real consiste em que sua formação por meio do intelecto dependa, ao menos parcialmente, das coisas sensíveis” Guerrero 5, p. 90). Todavia, se o universal, adquirido a partir das coisas sensíveis, decorre da abstração operada sobre o fantasma, deve-se assumir, a fim de que a relação entre intelecto e fantasma seja suficiente para dar fundamento real ao universal no que concerne à sua origem, que o fantasma é sempre uma semelhança de coisas sensíveis realmente existentes (Cf. Idem, p. 90-91). Ao que Descartes alude, dizendo que são como quadros e pinturas, que só são formados à semelhança de alguma coisa real e verdadeira. Assim, para existir representação é necessário existir alguma coisa real, ou seja, toda representação tem fundamento real, que são as coisas verdadeiras e existentes e não imaginárias. Ora, se nada provém do nada, a representação só poderá provir de coisas reais e não imaginárias, pois a representação pressupõe a coisa verdadeiramente existente que será representada. Com efeito, nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos. Prova disso são os pintores que, mesmo representando quimeras por formas estranhas e excepcionais, são incapazes de lhes conferir formas e naturezas

totalmente novas, antes fazem certa mistura e composição dos membros dos animais já vistos (Cf. Descartes 2, AT IX, 15). Descartes diz mais:

“se por acaso sua imaginação [a dos pintores] for suficientemente extravagante para criar algo tão novo, que nunca tenhamos visto, e que desta forma sua obra nos represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa, com certeza ao menos as cores com que eles a executam devem ser verdadeiras” (Descartes 2, AT IX, 15).

Ora, se toda representação é representação de alguma coisa, nossas representações todas, mesmo as fictícias e falsas pressupõem algo verdadeiro a partir do qual se configure a representação. Como já dissemos, o fundamento de toda representação se encontra nas coisas verdadeiras e existentes, ou seja, toda representação tem fundamento real. Qualquer representação que parta de outra coisa que não sejam essas é por si só fictícia e absolutamente falsa. Se agora parece que Descartes assume essa tese para si, o que ele pretende de fato é submetê-la à dúvida.

Antes, porém, cumpre observarmos que, para a teoria da abstração, a imaginação produz o fantasma ao combinar e unificar as espécies sensíveis. A imagem, por exemplo, de uma cadeira é produzida através da combinação e unificação das espécies sensíveis relativas à grandeza, aspereza, cor, profundidade “de maneira que, nesse fantasma, diversas semelhanças recebidas nos sentidos estarão presentes sob a forma de uma semelhança intrinsecamente individual de algo que pode ser dado aos sentidos” (Guerrero 5, p. 91). Não cabe à imaginação criar as determinações sensíveis que compõem o fantasma; ela apenas utiliza essas determinações dadas nos sentidos. Acontece que a natureza ativa da imaginação é uma atividade interna da alma e, como tal, a imaginação tanto poderá formar imagens semelhantes às coisas sensíveis existentes fora da alma como poderá formar imagens que

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não correspondem a algo realmente existente. Sendo assim, não parece haver garantia de que as espécies inteligíveis produzidas pelo intelecto tenham fundamento real, isto é, que se originem nas coisas sensíveis existentes por serem abstraídas do fantasma e não em ficções. Que fundamento real essas imagens subjetivas, que algumas vezes são formadas de modo totalmente arbitrário pela imaginação, são capazes de dar às espécies inteligíveis que delas são abstraídas? Não há, infelizmente, qualquer garantia de que as espécies inteligíveis se assemelhem efetivamente às naturezas corpóreas existentes na natureza. Desta maneira, as coisas gerais de que fala Descartes podem muito bem ser todas imaginárias.

2.4.Descoberta das coisas simples e universais e rejeição do realismo

O trecho seguinte parece supor e admitir toda essa explanação realista, para logo em seguida fazer uma importante ressalva:

“Mesmo que estas coisas gerais, isto é, olhos, cabeça, mãos e outras análogas, possam ser imaginárias, é necessário confessar que existem outras bem mais simples e universais, que são verdadeiras e existentes, de cuja mistura, nem mais nem menos que da mistura de algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisas que se situam em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer fictícias e fantásticas. Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua extensão; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que se encontram, o tempo que mede sua duração e outras coisas análogas” (Descartes 2, AT IX, 15).

Com a descoberta das coisas simples e universais, Descartes parece chegar ao último nível da abstractio, para rejeitá-la

definitivamente. Tudo o que ele descreve aqui já era observado por Tomás. Vejamos como isso ocorre.

De que as coisas gerais possam ser imaginárias não se segue que tudo seja fictício. Com efeito, além das coisas gerais, há as coisas simples e universais, consideradas verdadeiras e existentes, de cuja mistura, afirma Descartes, são formadas as imagens das coisas que se situam em nosso pensamento, sejam verdadeiras e reais, sejam fictícias e fantásticas.

Assim como os partidários da abstractio, Descartes encontra-se acima da imaginação, a saber, no interior do intelecto onde se encontram, segundo eles, as espécies inteligíveis. A menção cartesiana às “imagens no pensamento” e não mais na imaginação nos leva a crer que se trata das espécies inteligíveis e não das espécies sensíveis, localizadas na imaginação. Assim, as imagens no pensamento podem muito bem corresponder às espécies inteligíveis, à quidditas ou essência universal abstraída pelo intelecto.

Forlin, tratando do debate entre os estudiosos Martial Gueroult e Harry G. Frankfurt em torno das coisas simples e universais, mostra que “consideradas elementos constitutivos do mundo de coisas extensas tanto podem ser consideradas meras condições necessárias de toda representação possível (no caso de não haver mundo material exterior) – tal é interpretação feita por Gueroult – quanto condições necessárias de toda coisa extensa possível (no caso da existência de um mundo material exterior) – que é a interpretação de Frankfurt” (Forlin 4, p. 70)16. Forlin lembra que, como noções da mente, elas são propriedades essenciais das coisas extensas, independente do estatuto do mundo, tenha ele ou não existência exterior à mente. Dessa maneira, o que se deve afirmar “é que as coisas simples e universais são condições necessárias de todas as coisas extensas, sejam elas meras representações minhas ou coisas materiais exteriores a mim” (Idem). À mesma ponderação já chegavam os teóricos da abstractio, mas tomavam-na como um problema.

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Segundo os teóricos da abstração, é certo afirmar que, ao operar sobre os fantasmas, o intelecto produz as espécies inteligíveis. Mas isso não quer dizer que as espécies inteligíveis sejam semelhanças de coisas reais. Conforme explica Guerrero, “a posse de um conceito não implica a instanciação do mesmo, uma vez que a operação de intelecção não visa ao ser das coisas, mas às suas determinações formais” (Guerrero 5, p. 92) e, assim, o fundamento real não consistiria apenas na produção de semelhanças. Quando a imaginação produz o fantasma, ela nada lhe acrescenta que já não estivesse presente, isoladamente, nas espécies sensíveis. Assim, do fato de as espécies inteligíveis serem extraídas dos fantasmas, garante-se que, a princípio, não haverá nada no conteúdo da espécie que não seja uma determinação possível de um objeto sensível. Guerrero conclui, dizendo:

“Ainda que as determinações inteligidas não se encontrem em nenhum objeto real, ao menos seria possível, em princípio, que elas estivessem concretizadas em sujeitos individuais [...] Em outras palavras, o fundamento real do universal, que decorre de o processo abstrativo dar-se por meio de uma certa relação entre intelecto agente e fantasmas, consiste em que o resultado desse processo seja efetivamente a semelhança de uma natureza corpórea, quer ela exista, quer não exista” (Guerrero 5, p. 91).

Ora, atento a essa questão, Tomás, no século XIII, visava justamente encontrar uma solução satisfatória. Sua teoria abstracionista pretendia explicar “como os universais, existindo apenas na alma e sendo produtos de uma atividade sua, poderiam ainda assim ter algum fundamento real, ou seja, por que não se deveria considerá-los meros produtos ou caprichos da alma” (Idem, p. 70).

Sendo assim, Descartes e os partidários da abstractio chegam ao mesmo ponto, isto é, àquelas coisas tomadas como condição necessária

de todas as coisas extensas, quer sejam meras representações, quer sejam coisas materiais exteriores. Os abstracionistas, apesar do caráter duvidoso da teoria, resolvem o problema insistindo no aprimoramento e preservação do fundamento real da abstractio, ou seja, em que as espécies inteligíveis são formadas a partir da realidade exterior mediante os sentidos. Descartes, ao contrário, não pode nem vai permanecer nesse espaço conceitual realista. Para ele, em razão da resistência das coisas simples e universais à dúvida natural, não há nada nelas que nos permita considerá-las duvidosas ou suspeitas de falsidade. Por isso, são verdadeiras e existentes. Duvidoso é o fundamento real da abstractio que a elas conduz, a saber, que elas têm origem numa realidade exterior existente que se dá ao intelecto através dos sentidos.

É precisamente a isso que Descartes se opõe. Com efeito, se o fundamento é duvidoso, se o que os sentidos captam não aparece clara e distintamente como o verdadeiramente existente, torna-se impossível conhecer com verdade as coisas simples e universais a partir deles. Aliás, Descartes assinala que as ciências que dependem das coisas compostas manifestam-se dúbias e incertas17. Coerente com o método adotado e ante os indícios de dúvida encontrados, era necessário rejeitar todo o aparato teórico realista, que, nas palavras de Descartes, assenta-se na tese segundo a qual tudo o que se admite como verdadeiro e certo advém dos sentidos ou através dos sentidos. Como da destruição do fundamento, provoca-se o desmoronamento de todo o edifício erguido sobre ele, há um impacto direto sobre a cosmologia cristã.

3. Impacto sobre a cosmologia cristã

Se agora considerarmos a teoria da criação cristã, cuja forma definitiva e ortodoxa foi dada por Tomás, como uma daquelas antigas opiniões às quais Descartes confessara ter dado crédito, e que a presente

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teoria foi erguida sobre o fundamento do realismo aristotélico-tomista, percebemos que sua exposição ao método da dúvida a revela estabelecida sobre princípios tão mal fundamentados que só pode ser duvidosa e incerta. Não se pretende nem é necessário repetir a argumentação tomasiana, mas somente fazer uma breve recapitulação, para que, à luz da crítica cartesiana, vejamos como ocorre a destruição dos seus argumentos mais fundamentais.

Conforme já relatamos, segundo Tomás, a realidade material existe e é conhecida de maneira evidente. Essa realidade tem origem em uma causa eficiente, a menos que se queira sustentar o absurdo de algo ser capaz de produzir a si mesmo, sendo anterior a si mesmo, contrariando, assim, a própria experiência sensível. Porque causada, a realidade material é efeito. Sendo assim, recebe o seu ser de uma causa externa e, consequentemente, sua essência não envolve a existência. Ora, se é evidente que a realidade existente é efeito de uma causa, Tomás então considera como a melhor maneira de conhecer essa causa partindo do efeito, ou seja, a posteriori, pois o efeito é o que se dá primeiro e é mais manifesto para nós do que a causa, à qual chegamos por seu intermédio. Assim, na análise do efeito, que é a realidade material, encontram-se os elementos necessários à demonstração de sua criação e da existência de Deus. A realidade material, portanto, dá-se diretamente aos sentidos, os quais, querendo ou não, são afetados por ela constantemente, pois ela é o que há de primeiro e mais manifesto. Por meio da abstração, ou seja, através dos sentidos sobre os quais age a imaginação, o intelecto é capaz de produzir um conhecimento verdadeiro acerca da realidade exterior, cuja evidente insuficiência ontológica atestada pelos sentidos leva à demonstração racional de sua criação e do seu Criador.

Entretanto, na Primeira Meditação – até à descoberta das coisas simples e universais –, a execução do método da dúvida destrói o fundamento real da abstractio. A realidade sensível, cuja existência é captada diretamente pelos sentidos – através dos quais é produzido pelo

intelecto um conhecimento sistemático acerca do que é sensível e do que não é sensível – pode ser uma ilusão e não existir, correspondendo a uma ficção produzida pela imaginação. Isto significa que não existe nenhuma prova definitiva da existência da realidade sensível exterior. Sendo assim, como fundamentar a origem das coisas simples e universais nas coisas sensíveis, se não há evidência segura de que estas existam ou que sejam tais como os sentidos as percebem? Em razão disso, a existência de uma realidade sensível exterior evidencia-se, na verdade, como um pressuposto ou postulado.

A descoberta de que os sentidos são falazes impugna qualquer possibilidade de demonstração baseada neles. Logo, se não é possível saber que o mundo existe, menos ainda que ele seja efeito de uma causa divina. Nesse estado de coisas, o mundo pode ser efeito de minha imaginação, ou de um Deus enganador, ou obra do destino, da fatalidade ou do acaso, ou ainda de um gênio maligno (Cf. Descartes 2, AT IX, 16-18).

Todos os elementos demonstrativos da existência de Deus e da criação nos quais se baseiam as Cinco Vias perdem a eficácia, porque partem de uma coisa tomada como existente, mas que pode não existir, ou seja, partem do pressuposto de que a realidade sensível exterior existe, quando, na verdade, mantidos os fundamentos realistas, nada garante a existência da realidade sensível, nem que seja efeito nem que sua causa seja Deus. Todos os fenômenos constatados pelos sentidos e transformados em provas da existência de Deus e da criação podem ser meras conexões arbitrárias da imaginação. Uma vez que não é possível ter certeza da existência da realidade exterior nem de que ela seja tal como a conhecemos, tanto se tornam inválidas as provas da existência de Deus como as da criação.

A cosmologia cristã consolidada por Tomás, portanto, evidencia-se alicerçada sobre um frágil fundamento: o pressuposto da incontestável existência da realidade exterior, o qual, aliás, parece gozar de estatuto

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superior de existência que o próprio Deus, ou seja, a realidade exterior é algo evidente, enquanto a existência de Deus, causa criadora do mundo, carece de evidência. Além disso, a existência de Deus, o supremo fundamento, parece apoiar-se em algo desprovido de fundamento.

Se a existência de Deus necessita de provas, o mundo necessita ainda mais. Assim, os princípios fundamentais da prova tomasiana mostram-se frágeis e suas demonstrações sem efeito. Se não há nenhuma garantia segura quanto à existência do mundo, não se pode proceder causalmente à existência de Deus. Ante a possibilidade de o mundo ser uma ilusão ou ficção da imaginação, nada impede que o Deus postulado causa deste mundo ilusório seja, também ele, uma fábula. Dessa maneira, malgrado todos os esforços empreendidos por Tomás para demonstrar racionalmente a doutrina da creatio ex nihilo, através de que se consolida uma nova cosmologia em lugar da cosmologia pagã, o que se vê de fato com a apreciação dubitativa do realismo aristotélico-tomista é o contrário: não demonstra a existência de Deus nem a da criação. Primeiro, porque pressupõe a existência do mundo como algo evidente. Em segundo lugar, uma vez que a existência do mundo não é evidente, deveria ser feita sua demonstração. E mesmo fazendo a demonstração da existência do mundo, ela não é suficiente para demonstrar a existência de Deus. Tomás, no entanto, acertou quanto ao seguinte: a criação pode ser demonstrada filosoficamente, desafiadora tarefa que o próprio Descartes cuidará de executar, inaugurando assim a cosmologia moderna.

DUBItAtIVE APPrECIAtIoN oF tHE rEALISm AND ItS ImPACt oN tHE rEALIStIC CHrIStIAN CoSmoLogy

Abstract: This article wants to expose the dubitative appreciation of realism in the First Meditation, in order to show the impact of this Cartesian action on the doctrine of creation ex nihilo, philosophically consolidated as authentic Christian cosmology

by Aquinas, in substitution to the pagan cosmology built upon the principle ex nihilo nihil fit. First, we will make a brief statement of the realistic foundations that give support to the proofs of the creation developed by Aquinas. Then we will present how the submission of realism to the Cartesian method of doubt entails the inevitable collapse of the cosmological Christian building.Keywords: Thomas Aquinas. Realism. Cosmology. Descartes. Doubt.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. AUBENQUE, P.; BERNHARDT, J.; CHÂTELET, F. A Filosofia Pagã: do séc. IV a.C ao séc. III d.C. Coleção História da Filosofia, n. 1. Tradução de Maria Helena Couto Lopes e Nina Constante Pereira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983.

2. DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes. Ed. de C. Adam e P. Tannery. 11 vols. Paris: Vrin, 1996.

3._______. Discurso do Método. Tradução de Enrico Corvisieri. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 2004.

4. FORLIN, E. A Teoria Cartesiana da Verdade. São Paulo: Humanitas/Unijuí, 2005.

5. GUERRERO, M. K. O Processo de Abstração e o Fundamento Real dos Universais em Tomás de Aquino. In Revista Indice, vol. 1, n. 1. Rio de Janeiro: 2009.

6. REALE, G. & ANTISERI, D. História da Filosofia I: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990.

7. TOMÁS DE AQUINO. Scriptum super Sententiis.8. _______. De Ente et Essentia.9._______. Compendium Theologiae.10._______. Summa contra Gentiles. (As obras tomasianas compreendidas entre

as referências 7 e 10 foram extraídas da Opera Omnia, d i spon íve l no endereço eletrônico http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html). Acessadas em 30/05/2012.

11._______. Suma Teológica. Tradução coordenada por Carlos- Josaphat de Oliveira. São Paulo: Loyola, 2001.

12. _______. Questões Discutidas sobre a verdade (Questão I). T r a d u ç ã o de Luiz João Baraúna. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

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NotAS:

1. A problemática acerca da existência de realidades incriadas e independentes de Deus é analisada pela teoria cartesiana da livre criação das verdades eternas, desenvolvida por Descartes entre os anos 1630-1649. A passagem a seguir foi extraída da carta de 15 de abril de 1630, e nos dá uma ideia precisa da necessidade da criação das verdades eternas, entre as quais as verdades matemáticas, que são abordadas na Primeira Meditação, quando são introduzidas as coisas simples e universais: “As verdades matemáticas, que vós nomeais eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como o resto das criaturas. É, com efeito, falar de Deus como de um Júpiter ou Saturno, e o sujeitar ao Estíge e aos Destinos, dizer que essas verdades são independentes dele. Não temais, eu vos peço, assegurar e publicar que foi Deus quem estabeleceu essas leis na natureza, tal qual um rei estabelece leis em seu reino” (Descartes 2, AT I, 145.)2. A expressão filosofia Pagã foi utilizada pelos autores P. Aubenque, J. Bernhardt e F. Châtelet, como forma de homenagear Alexandre Kojève. Segundo os autores, a história da filosofia pagã compreende o período que do surgimento da Filosofia com Tales de Mileto até Porfírio, editor de Plotino, cujos textos pertencem ao século III de nossa era. (Cf. AUBENQUE, P.; BERNHARDT, J.; CHÂTELET, F. 1, p. 15).3. “Criar não pode ser ação própria senão de Deus somente. Pois, é necessário que os efeitos mais universais sejam reduzidos a causas mais universais e pri meiras. Ora, dentre todos os efeitos, o mais universal é o ser em si mesmo. Por onde, importa seja ele o efeito próprio da causa primeira e universalíssima que é Deus. E por isso também se diz que nem a inteligência nem a alma nobre dá o ser senão enquanto opera por ope ração divina. Porém, produzir o ser em absoluto, e não enquanto tal ou tal, pertence à noção de criação. Por onde é manifesto que a criação é ação peculiar do próprio Deus” (Tomás de Aquino 11, I, q. 45, a. 5).4. “A primeira via e a mais manifesta é a procedente do movimento; pois é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo” (Tomás de Aquino 11, I, q. 2, a. 3).5. “Embora o universo tenha começado a existir depois de não ter existido, não é necessário que tal tenha ocorrido através de uma mudança, mas sim mediante criação. Esta não constitui mudança no sentido próprio do termo, senão que constitui uma relação da coisa criada, dependente do Criador no seu ser. Para que haja uma verdadeira mudança, é preciso um algo que uma vez é isto e depois passa a ser aquilo. Ora, tal não

ocorre no caso de uma verdadeira criação” (Tomás de Aquino 9, c. 99, 190).6. “o que não é, só pode começar a existir por meio de uma coisa já existente” (Tomás de Aquino 11, I, q. 2, a. 3).7. “Se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria, pois o que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir e, portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso” (Tomás de Aquino 11, I q. 2, a. 3).8. As vias seguintes não trarão nenhuma prova da criação e, por isso, decidimos não nos deter em sua análise. Não obstante, elas dão consideráveis descrições da criação e do seu Criador. A contingência da criação não a torna insignificante. Pelo contrário, nos seres contingentes é possível encontrar a perfeição distribuída em graus, que vão do mínimo aos mais elevados. De fato, há seres mais e menos perfeitos do que outros. Ora, se há a perfeição em seu grau mínimo, deve haver, e há “algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por conseguinte, maximamente ser” (Idem), que é a causa da perfeição encontrada nos demais seres. Se a criação goza gradualmente da perfeição daquele que é maximamente ser e, por isso, perfeitíssimo, então não procede pensar que o universo seja mau, caótico ou proveniente do caos. Como mostrará a quinta via, observando a ordenação dos seres, especialmente naqueles que não possuem conhecimento, pode-se notar que todos concorrem a um fim. Com efeito, “é impossível que coisas contrárias e dissonantes estejam sempre, ou muitas vezes, concordes em uma só ordem, a não ser que estejam também sob o governo de alguém pelo qual é dado a todas e a cada uma dirigirem-se a determinado fim” (Tomás de Aquino 10, I, 13, 27). Assim, a existência da ordenação, de lei ou regularidade encontrada na natureza exige uma intenção, a qual, por conseguinte, pressupõe um ente inteligente. A causa eficiente do mundo, portanto, é um ser perfeito e inteligente e bom. Consequentemente, o efeito, que é a criação, não é mau nem fruto do acaso.9. “Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que, por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las” (Descartes 3, p. 37).10. “E acreditei com firmeza em que, por este meio, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse apenas sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros” (Descartes 3, p. 45).

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11. A apreciação dubitativa do realismo começa nesse trecho citado, quando Descartes parafraseia o princípio realista, e se encerra com a descoberta das coisas simples e universais, a partir da qual tem início a apreciação dubitativa do idealismo, que decidimos não abordar aqui, esperando fazê-lo em outra oportunidade. 12. “Exceto, talvez, que eu me compare a esses dementes, cujo cérebro está de tal maneira perturbado pela e ofuscado pelos negros vapores da bile que amiúde garantem que são reis, enquanto são bastante pobres; que estão trajados de ouro e púrpura, enquanto estão totalmente nus; ou imaginam ser vasos ou possuir um corpo de vidro. São loucos e eu não seria menos excêntrico se me pautasse por seus exemplos” (Descartes 2, AT IX, 14).13. Por exemplo, em alguns sonhos extravagantes, ocorre de a fisionomia de uma pessoa repentinamente assumir a de outra. Ora, como tal coisa é impossível na realidade, logo se percebe muito claramente que se trata de um sonho.14. “Contudo, devo aqui ponderar que sou homem, e, consequentemente, que tenho o hábito de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos prováveis, que esses dementes despertos. Quantas vezes me aconteceu sonhar, durante a noite, que me encontrava neste lugar, vestido e próximo do fogo, apesar de me achar totalmente nu em minha cama?” (Descartes 2, AT IX, 14-15).15. Tomás de Aquino, aliás, já aludia, no século XIII, ao engano dos sentidos. Seguindo Agostinho, ele afirma que o problema dos sentidos é que só percebem o que é mutável e, como a verdade é imutável, não pode ser percebida por eles. Em razão do seu caráter mutável, não existe nenhuma coisa sensível que não encerre algo que se assemelha ao falso, de maneira que não é possível discernir. Diz ele: “Tudo quanto apreendemos através dos sentidos corporais, também quando as coisas não estão presentes aos sentidos, recebemos as imagens dessas coisas como se nos estivessem presentes, tal como acontece também no sono ou em acessos de furor. Ora, a verdade nada encerra em si que se assemelhe ao falso, logo não pode ser apreendida pelos sentidos” (Tomás de Aquino 12, q. I, a. 4). Portanto, Tomás e Descartes concordam que, na atividade onírica, experimentamos os objetos tão presentes, próximos e tão sensíveis que não é possível discernir se eles são ou não reais.16. Para uma análise mais detalhada acerca do debate entre Martial Gueroult e Harry G. Frankfurt em torno das coisas simples e universais, veja-se Forlin, 4, p. 57-81.17. “Talvez seja por isso que nós não concluamos mal se afirmarmos que a física, a astronomia, a medicina e todas as outras ciências dependentes da consideração das coisas compostas são muito dúbias e incertas”. (Descartes 2, AT IX, 16).

a étiCa dos EstoiCos antiGos E o EstErEÓtiPo EstoiCo na ModErnidadE*

Drayfine Teixeira Moura

resumo: Tendo em vista que o estoicismo é a corrente helenística que mais influenciou a Filosofia ocidental, a intenção deste artigo é apresentar e esclarecer alguns dos mais comuns estereótipos que a modernidade cunhou acerca da teoria estoica. Para tanto, fazemos uma apresentação dos principais aspectos da ética estoica e analisamos alguns conceitos que, mais tarde, serão os principais alvos de crítica à escola do pórtico. Acusada de ser uma corrente filosófica que prega o comodismo, a aniquilação dos sentimentos e o domínio absoluto da razão sobre as paixões, o estoicismo é muitas vezes mal interpretado por seus opositores. Comentamos também neste texto a crítica feita por Spinoza no prefácio do quinto livro da Ética, cuja ênfase em conceitos como “experiência” e “vontade” ajuda a esclarecer como o estoicismo é encarado na modernidade. Palavras-chave: Ética, Ética estoica, Estoicismo romano, Estoicismo na Filosofia moderna, Estoicos e Spinoza.

A teoria ética dos primeiros estóicos

O estoicismo é uma escola helenística fundada por Zenão de Cício ao final do séc. II a.C e cuja influência se estende desde a Grécia antiga até filosofias recentes do sec. XIX, como podemos encontrar nos estudos contemporâneos que sondam as influências estoicas em Kant e Freud.1

A escola estoica defendia uma doutrina una e coerente e muitas vezes representavam sua doutrina pela imagem de uma árvore (onde o caule seria a física, os galhos, a lógica; e as folhas seriam a ética, ou moral);

*Artigo produzido durante Iniciação Científica financiada pela bolsa PRP/Santader/FFLCH

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Laércio nos fala dessa divisão,2 e apontando para a discordância entre pensadores estoicos sobre a importância de cada uma das partes sobre as outras, torna ainda mais evidente que este era um recorte epistemológico e que, na prática, a teoria estava interligada.

“Não preferem nenhuma dessas partes à outra, segundo escrevem alguns deles, mas as misturam e as ensinam juntas. Outros põem em primeiro lugar a lógica, em segundo a física e em terceiro a ética. (...) Mas Diógenes Talemaico inicia com a ética; Apolodoro põe-na como segunda; e Panécio, com Posidônio, começa pela física” (LAÉRCIO, 1949, p. 31)

É previsível que, com a filosofia sistematicamente dividida,

não tardou para alguns pensadores privilegiarem e desenvolverem áreas específicas de seu interesse enquanto deixavam de lado aspectos que julgavam suficientemente desenvolvidos ou menos importantes no cenário em que viviam. Sendo assim, veremos que no decorrer dos anos a ética estoica foi ganhando terreno e germinou com toda sua força no princípio da Roma Imperial, transformando os tratados e escritos morais no ponto central da doutrina estoica.3

Nesse texto, portanto, seguiremos o exemplo dos romanos e nos concentraremos na exposição dos conceitos éticos, pois nosso principal objetivo é determinar até que ponto o que chamamos na contemporaneidade e na modernidade de “ética estoica” tem a ver com os fundamentos da escola em sua origem. Longe de querermos traçar uma linha cronológica que investigue todas as alterações sofridas pela doutrina ao curso da história – o que aqui seria inviável – tentaremos somente caracterizar o modo como os estóicos clássicos entendiam sua ética, em oposição a como nós a vemos hoje - depois de tantos séculos de influências e modificações.

Temos com isso a sincera esperança de trazer à luz os equívocos causados por estereótipos comumente associados, na modernidade e nos dias de hoje, ao estoicismo. Se nossa esperança não se concretizar, contentar-nos-emos com o estóico consolo do imperador Aurélio:

Ars vivendi luctatoriae similior, quam saltatoriae, quatenus adversus ea, quae incidunt et improvisa sunt, parata et immota consistit4.

Expor a ética estoica não é uma tarefa fácil; assim como o resto da doutrina, a ética possui uma estrutura fechada em si mesma, constituindo um sistema onde um conceito não pode existir independente dos demais e onde a omissão de algo pode prejudicar o entendimento do todo, como nos testemunha Cícero ao falar da ética através de Catão, em seu diálogo De Finibus5: “Pode você imaginar qualquer outro sistema em que a remoção de uma única letra, como uma peça encaixada, provoque a ruína de todo o edifício?”(apud: SCHOFIELD 12, p. 262)

No entanto, selecionamos para esta exposição apenas os conceitos que nos pareceram relevantes para a compreensão do fundamento da ética estoica, assim como os conceitos que servirão de requisito para delinearmos, ao final deste texto, algumas diferenças existentes entre a doutrina estoica e certos estereótipos modernos e contemporâneos a seu respeito.

O principal conceito da ética estoica – assim como de muitas outras doutrinas – é a virtude; é através dela que o estoico persegue o ideal do Sábio e guia sua conduta ética e moral. Mas o que eles entendem por virtude? Para o estoicismo o fundamento da virtude consiste no movimento natural de todo animal em se auto preservar6 e viver segundo a natureza: “O fim é viver conforme à natureza, quer dizer, viver segundo a virtude, de vez que a natureza nos conduz a ela.”(LAERCIO 3, p.62)

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No entanto, a virtude é um estado propriamente humano e o homem não é um animal como outro qualquer: existe nele uma característica fundamental – que não deixa de ser natural – e que lhe dá a possibilidade de seguir a natureza mais perfeitamente do que qualquer outro ser. Esse privilégio se chama razão.7

A razão (logós) é um atributo natural do homem responsável por conduzi-lo a viver conforme a ordem natural do universo.8 Ou seja, o homem age naturalmente quando segue a razão, e seguindo a razão se torna virtuoso; sendo virtuoso alcança a felicidade; como nos dizem os relatos de Laércio: “A virtude é tal que os que dela participam são virtuosos, sejam os agentes bons, sejam as próprias ações ou operações. Suas consequências ou frutos são o regozijo, a alegria e outros semelhantes”. (1949. p.66)

Entendendo o que é a virtude podemos sem dificuldades entender o que é o vício, que para o estoicismo se baseia na ignorância: uma vez que a razão nos permite compreender as coisas e o ato de compreendê-las desemboca na virtude, o vício, ao contrário, é o resultado da má compreensão9, que nos leva à falsidade e nos impede de agir de acordo com a ordem natural; o que, conseqüentemente, resulta em tristezas. “As consequências ou frutos dos vícios são a tristeza, a aflição e outros semelhantes”. (LAERCIO 3. p.66)

O virtuoso é, portanto, aquele que segue a razão e está sempre em adequação com a natureza, enquanto o vicioso é o que está na ignorância e na falsidade, e por isso é vulnerável às paixões.

As paixões parecem ser o ponto central da ética estoica, são elas que causam os malogros humanos e para modificá-las os estoicos estudaram sua natureza e funcionamento. Diziam eles que as paixões são perversões na mente geradas por coisas falsas, movimentos irracionais da alma, que por serem irracionais são contra a natureza10, como dissemos acima. No entanto a análise parece ir mais além, pois assim como a virtude

existe no homem por meio de sua condição racional, o vício também é uma particularidade humana e deve sua existência às opiniões (doxái)– ou seja, falsos juízos – que nascem da crença em uma falsidade. Tad Brennan corrobora nossa afirmação quando diz que “o que distingue os sentimentos de outros impulsos é que eles incluem uma caracterização de seus objetos como bons ou maus e são constituídos por crenças aquém do conhecimento.”(BRENNAN 2. p. 298)

Exemplos que corroboram essa definição não faltam quando lemos a descrição das paixões fundamentais feita pelo estoicismo:11

Desejo é a opinião de que alguma coisa futura é um bem, de modo que devemos alcançá-la.Medo é a opinião de que alguma coisa futura é um mal, de modo que devemos evitá-la.Prazer é a opinião de que alguma coisa presente é um bem, de modo que devemos exultar perante ela.Dor é a opinião de que alguma coisa presente é um mal, de modo que devemos abater-nos perante ela. (BRENNAN 2. p. 299)

No entanto, para entendermos com clareza porque os estóicos

caracterizavam as paixões como sendo resultado de um juízo de valor sobre algo, temos que expor a existência do que eles nomeavam “indiferentes”.

Os indiferentes são um gênero de coisas que não são boas nem más, e que não influenciam na felicidade ou tristeza dos homens.12 O problema é que os indiferentes somam grande parte das coisas que existem; uma vez que somente a virtude é um bem, e somente o vício é um mal, todo o resto – como saúde, doença, riqueza, miséria, fama, glória, infâmia, etc. – não deve ser valorado. A valoração de um indiferente é própria dos homens cujo entendimento da ordem natural é deficiente e que, por isso, não são capazes de compreender que algo que pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal não pode ser nem uma coisa, nem outra: “As riquezas e

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a saúde não são mais proveitosas que danosas; logo, nem as riquezas nem a saúde são bens. Mais ainda: aquilo que se pode utilizar bem ou mal, não é bom”. (LAERCIO 3. p.71)

Depois de descrevermos o funcionamento da virtude e do vício, passaremos sem mais delongas à explicação do que vem a ser o Sábio – símbolo de virtude e felicidade tão perseguido pelos estoicos e, no entanto, tão difícil de ser alcançado.

O Sábio é aquele que adquiriu imunidade ao erro; ele não tem opiniões e muito menos o que delas decorre: as paixões, uma vez que estas são provenientes de um juízo falso sobre a verdadeira natureza de algo. O Sábio conhece e vive de acordo com a ordem natural, deixando-se guiar pela razão e fugindo, dessa forma, do erro.13 Será então, uma vez que o Sábio não possui paixões, permitido dizer que ele é um sujeito apático, duro e sem movimentos na alma? Mais uma vez, Laércio nos esclarece essa dúvida com muita precisão:

“Dizem que há três afecções boas do espírito: o regozijo, a precaução e a vontade. Que o regozijo é contrário ao deleite, pois é um movimento racional. Que a precaução o é ao medo, sendo uma rejeição racional ao perigo. Assim, o sábio nunca teme, mas se precavém. E que a vontade é contrária à concupiscência, já que aquela é um desejo racional. (...) Dizem que o sábio permanece sem paixões, por achar-se livre de quedas. Que também há outro sem paixões, a saber o mau ou ignorante, que é como dizer duro e imóvel.” (LAERCIO 3. p.81)

Como podemos ver, o Sábio está livre de paixões, mas possui

uma espécie de boa afecção chamada por eles de eupátheiai. Essas boas afecções são a alegria (khará), a vontade (boúlesis) e a cautela (eulábeia); sua principal característica em comum é a de serem

movimentos racionais da alma, ao contrário das paixões, nas quais o movimento é sempre irracional.

Dessa forma entendemos que a principal diferença entre o Sábio e o ignorante é o uso da razão, pois já vimos que o que gera perturbações na alma é apenas a opinião – que consiste justamente em cair na falsidade. O falso, portanto, não está nas coisas em si mesmas, e sim no juízo que fazemos sobre elas, como nos demonstra Cícero na seguinte passagem:

“Além disso, as afecções da mente, que acossam e amarguram a vida dos tolos (...) não se excitam por influência da natureza; são todas elas meras fantasias e opiniões frívolas. O homem sábio, portanto, estará sempre livre delas”. (CICERO 5. p.255)

O Sábio não é, então, um sujeito vazio e apático – isso se encaixaria

mais com a descrição do ignorante14 – ele é alguém com conhecimento sobre a ordem da natureza, que entende que a maldade e a bondade só se encontram no vício e na virtude (e não nas demais coisas do mundo, que são indiferentes) e guia sua vida de acordo com o princípio natural da conservação de si, e para isso se vale da razão, que é sua ferramenta natural para alcançar a vida feliz.

Deduzimos com isso que o Sábio não busca a simples e total erradicação de movimentos na alma, como pode parecer numa leitura mais ingênua, e sim a modificação dos movimentos irracionais (contrários à natureza) em movimentos racionais, que o levem à virtude, à felicidade e à liberdade.15

o estoicismo romano: a semente da ética ocidental

O estoicismo teve grande força na filosofia romana, principalmente no período entre o final da República e os dois primeiros séculos do Império, e apesar de dar continuidade às suas três áreas de investigação,

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a ética e a política foram os campos mais explorados e desenvolvidos. Tomando como base os fundamentos dos primeiros estoicos,16 os romanos constituíram novas formas de fazer filosofia e discutir o estoicismo.

Panécio, o filósofo de Rodes, foi uma das principais influências do estoicismo romano. Frequentador do círculo dos Cipiões, o filósofo tanto influenciou a alta sociedade romana como, em contrapartida, teve sua filosofia influenciada pela opulência daquela pátria que crescia e prosperava. Vendo e vivendo num estado de coisas bem diverso daquele que os seus antecessores estoicos estavam acostumados, Panécio introduziu algumas mudanças no estoicismo clássico – e foi a partir de então que a escola do Pórtico aos poucos foi perdendo o rigor dos primeiros tempos e se tornando cada vez mais adequada ao perfil romano.17

O filósofo de Rodes revisou teses que já haviam sido duramente atacadas pelas escolas cética e epicurista, e colheu, ao seu modo, novas ideias derivadas dos ensinamentos de Platão e Aristóteles. Modificou o foco das ações para os deveres, reinterpretou o conceito de apatia e desenvolveu os conceitos de virtudes práticas, como a justiça, a magnanimidade, e a temperança.18 Esta reformulação do estoicismo permitiu que a parte de interesse mais prático da filosofia – como ética, moral e política – se sobressaíssem, agregando ainda mais valor à doutrina como um todo perante os romanos.

Cícero, que era um dos principais nomes da política e da intelectualidade romana ao final da República, escreveu o De Officiis (Do dever), livro homônimo ao que tinha escrito Panécio algumas décadas antes e no qual, ao que tudo indica, o pensador romano realiza uma emulação do livro do estoico de Rodes, valendo-se das novas ideias trazidas por Panécio em relação à virtude, Cícero tornou os ensinamentos estoicos ainda mais afeitos aos interesses de seu Estado:

“Panécio não tematizou a superioridade da virtude prática sobre a teórica, como fará Cícero, aproveitando-se do enfoque paneciano. Todavia, ele valorizou a vida prática, trouxe ao Pórtico um vivo sentido da socialidade e um forte sentido do Estado, que absorveu dos romanos e, assim, de algum modo, enfraquecendo o vago cosmopolitismo dos predecessores.”(Reale 10, 372)

E foi dessa forma, já um tanto diverso do estoicismo clássico e sob influência da Academia e do Liceu, que o estoicismo se introduziu na Roma que transitava da República ao Império.

O enfoque na ética prática,19 que correspondia na maior parte das vezes, a aconselhamentos destinados a pessoas que buscavam a sabedoria, era o principal uso dado à filosofia estoica entre os romanos. Esses aconselhamentos se centravam principalmente “na determinação de que tipo de ações seriam, com efeito, ‘apropriadas’, bem como no estabelecimento, na vida das pessoas, entre obter vantagens ‘preferíveis’ e agir de maneira virtuosa (ou, pelo menos, fazer progressos em direção à virtude.)” (GILL 8, p. 44)

Outro aspecto fundamental da ética estoica romana era a atenção que se destinava ao estudo das paixões, que continuaram sendo encaradas como “distúrbios de nosso estado psicofísico natural” (Id. Ibid.) e, apesar de ainda serem caracterizadas como um erro na razão, passavam agora a serem tratadas como “doenças” que precisavam ser “curadas”; essa cura se dava muitas vezes por meio de fatores externos, como o aconselhamento, e não mais individualmente, através da própria capacidade racional, como indicava o estoicismo grego.

Com o correr dos anos, a ética estoica ganhou terreno e começou a ditar o comportamento de grande parcela dos nobres romanos – que eram os que tinham acesso aos estudos filosóficos – e acabou, por fim, difundindo-se para o restante da população.

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A difusão do estoicismo, misturada à divulgação de muitas outras doutrinas no solo romano, fez com que as ideias – antes específicas de cada escola – se contaminassem mutuamente gerando pensadores ecléticos que colhiam o que lhes apetecia de cada doutrina criando fusões das mais diversas possíveis. Esse é o caso de Díon Cocciano de Prusa – também conhecido como Crisóstomo – em cujo pensamento “predomina um posicionamento cínico-estoico de gênero amplamente similar a Musônio e Epiteto, mas incorporando também algumas ideias platônicas.” (GILL 8, p. 57)

O estoicismo romano a essa altura já havia perdido boa parte de sua unidade e concisão – que faziam dele uma filosofia consistente e sistemática na antigüidade – pois tinha parcialmente abandonado as outras duas áreas de conhecimento da doutrina (física e lógica), concentrando-se na ética e deixando, com isso, alguns conceitos – outrora tão firmemente embasados – sem fundamento. Assim, a ética estoica começou a apoiar-se numa nova lógica e numa nova metafísica, fazendo com que conceitos mais gerais como “virtude” e “razão” fossem reinterpretados:

A partir de Clemente de Alexandria (aproximadamente 200) o platonismo médio passou a exercer forte influência sobre a evolução da doutrina cristã, e foi em seu rastro que os pensadores cristãos absorveram idéias estóicas tais como o papel cósmico do lógos (a razão) e a suficiência da virtude, ainda que compreendida em termos platônicos médios. (GILL 8, p. 60)

Essa redefinição de conceitos foi fatal para o estoicismo, fazendo

com que ele perdesse força e fosse sendo gradualmente substituído pela doutrina cristã; essa mesma doutrina que, superficialmente, conservava vestígios do estoicismo, mas que em seu fundamento construía um sistema significativamente distinto daquele defendido pela filosofia do pórtico, tanto no que diz respeito à sua metafísica, quanto no que tange à sua ética.

A visão moderna e o estereótipo

Como dissemos acima, o estoicismo foi se difundindo e perdendo força com o passar do tempo, e o que vemos durante as Idades Média e Moderna são inúmeras referências ao estoicismo como sendo uma corrente filosófica que prega o comodismo, a aniquilação dos sentimentos e o domínio absoluto da razão sobre as paixões. O que não espanta: depois de sofrer tantas alterações, dificilmente os vestígios do estoicismo espalhados pelas correntes filosóficas assemelhar-se-iam ao estoicismo em sua forma clássica, ou seja, o pensamento que nasceu na Grécia e se desenvolveu até o início da era imperial romana. O nosso objetivo neste texto é justamente determinar até que ponto a classificação da modernidade e, em certa medida, da contemporaneidade, feita sobre o estoicismo condiz com o estoicismo clássico, e até onde ela é apenas a confusão dos vestígios estoicos misturados a outras doutrinas.

Em primeiro lugar, quem acusa o estoicismo de ‘filosofia do comodismo’ demonstra que não compreendeu bem o papel do determinismo estoico em sua ética. Não era o objetivo de nosso trabalho abordar as questões metafísicas, mas podemos contar com o significativo texto de Frede, que dedicou um artigo só para o assunto. Nele, ela se pergunta:

até que ponto se justifica o estereótipo contemporâneo que vê o rigor moral estoico e a supressão de todos os sentimentos como consequência de uma resignação ‘fatídica’? (...) os estoicos não só estavam longe de tal resignação como tinham boas razões para recomendar o envolvimento ativo com as preocupações mundanas. Se tratavam as paixões humanas como impedimento, não era por advogar a aquiescência à ordenação do destino. Eles acreditavam, antes, que as paixões interferem na nossa capacidade de lidar tão razoavelmente quanto possível com as condições

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existentes e seguir nossa concepção sobre qual é o melhor curso a tomar – mesmo que não haja garantia de êxito. O determinismo estoico, portanto, não conduz à resignação, mas ao estudo cuidadoso de nossas aptidões e de nossas limitações. (FREDE 7. p. 227)

Acreditamos ter esclarecido, na segunda parte de nosso texto, que

os estoicos não buscavam a aniquilação dos sentimentos da alma, mas os bons sentimentos (eupátheiai) que se caracterizavam por serem impulsos racionais, e que por isso se encaixariam muito mais no ideal de ataraxia (a imperturbabilidade da alma) do que no de apatia – que ficaria melhor como título do que eles mesmo chamam “ignorância”.

Por último, temos a mais comum das acusações, a saber: que os estoicos buscavam domínio absoluto sobre as paixões. Um exemplo possível dessa acusação é feita pelo pensador moderno Spinoza, que no prefácio ao quinto livro de sua Ética cita nominalmente os estoicos, afirmando que estes defendiam que as paixões dependiam inteiramente de nossa vontade e que podemos comandá-las absolutamente.20 Estaria correto, se Spinoza se referisse aos neo-estoicos de sua época21; no entanto, se seguirmos com a leitura do prefácio veremos o pensador dizer que os estoicos confessaram, não por causa de seus princípios, mas sim pelos protestos da experiência, que se requer prática e esforço para refrear as paixões. Com isso podemos perceber que ele não se refere aos neo-estoicos unicamente, mas também aos estoicos antigos e provavelmente aos estoicos romanos – dos quais sabemos que foi leitor. Mas será que a afirmação de que as paixões dependem absolutamente da nossa vontade é consistente quando aplicada aos filósofos da Antigüidade? Long indica-nos que não: “Spinoza parece confundir a tese estóica de que as paixões são juízos ou funções da mente racional com a liberdade da vontade em relação à causalidade antecedente” (LONG 9. p. 414). Nós já explicamos o

que são os ‘juízos da mente racional’: são valorações das coisas do mundo que, quando falsas, geram paixões. Mas o que vem a ser ‘causalidade antecedente’ na doutrina estoica?

Causalidade antecedente (prokatarktiká) é o conceito estoico usado para se referir às causas externas ao próprio homem. No entanto, para entendermos o porquê de Long se referir a essa tese, temos de lançar luz sobre outra tese estoica – que trata das causas internas – e delimitar uma através da outra. E para isso mais uma vez buscaremos a ajuda de Frede:

(...) os estóicos fiavam-se em uma distinção entre a causa antecedente ou externa e a causa principal ou “interna” com o intuito de explicar como os seres humanos são parte da rede de interconexões causais de modo que haja espaço para a responsabilidade pessoal. A justificativa estóica consiste em fazer das causas internas, embora não das externas, as causas principais das ações humanas. Embora o ambiente aja sobre nós de um modo que não está em nosso poder, nossas reações “estão em nosso poder”, visto que dependem de nosso estado interior. Clemente explica essa interação como segue. A visão da beleza provoca amor em um homem desgovernado (akólastos). A visão da beleza é a causa antecedente. A reação da pessoa está, no entanto, “em seu poder”, visto que sua atitude amorosa com a beleza física é, afinal de contas, parte de sua constituição interna, e não é causada pela impressão externa. (FREDE. 2006, p. 212)

O que Frede nos diz é que as nossas reações (que sabemos

implicitamente serem paixões ou eupathéiai) estão sim em nosso poder, só que indiretamente. Nós temos controle sobre a nossa constituição interna, mas não sobre o efeito que será gerado a partir do contato desta com a causa externa, ou seja, as reações; dessa forma o que nós podemos modificar é somente a causa interna e a partir dela – indiretamente – controlar as reações, uma vez que essas são provenientes da causa principal que nada

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mais é que a causa interna. Mas essa modificação na constituição interna se dá por meio da razão? Mais uma vez a resposta é positiva e mais uma vez o processo se dá indiretamente.

Como acima nos disse Long, o que se liga à tese das causas antecedentes e o que Espinosa parece ter considerado ao criticar os estoicos é a “liberdade da vontade”, e como vimos na segunda parte deste texto, a ‘vontade’ é, no estoicismo, um eupátheia (um bom afeto, ou uma boa paixão). Com isso temos então que o responsável por modificar a causa interna é um afeto; proveniente da razão, mas ainda assim um afeto.

Dessa forma podemos dizer que, sim, os estoicos defendem que temos algum poder sobre as paixões através da razão, mas de forma alguma esse poder é “absoluto”, como afirma Espinosa. A razão está a pelo menos dois graus de distância na rede causal de controle das paixões, e seria muito mais seguro acusar os estoicos de quererem controlar um afeto irracional (paixão) através de um afeto racional (eupátheia) do que de tentar controlar as paixões por meio da razão, como se esta fosse um tirano, e não um instrumento na missão de adequação à natureza.

Por fim, temos mais um agravante nas sutilezas da teoria estoica no que diz respeito ao controle das paixões pela razão. Sêneca, no De ira, nos atesta a dificuldade de delimitar fronteiras entre razão e paixão na teoria estóica: “a paixão e a razão não ocupam lugares particulares e separados, são apenas modificações do espírito, para o bem e para o mal” (SÊNECA, 1977, livro III-8)

Como afirmamos no início do texto, essa nossa exposição teve como objetivo mapear a ética estoica fornecendo ferramentas para melhorar nossa compreensão e nos prevenir contra os estereótipos constantemente associados ao Estoicismo, e que mais informam sobre as correntes que se apossaram de alguns conceitos estoicos, do que sobre a filosofia estóica em sua forma original.

Não podemos negar o legado que a Stoá nos deixou e, por isso, é fundamental que compreendamos esta doutrina. Suas marcas se refletem em nós não só através de conceitos ético-filosóficos eternizados por pensadores de todos os períodos históricos, como também em nossas posturas religiosas, ainda que na maior parte das vezes contaminadas por outras correntes de pensamento. Entretanto, nós, brasileiros, temos na poesia um grande representante que, de forma suave, fiel e magnífica representa toda a aridez dos conceitos estoicos aos quais nos referimos ao longo do texto. Mais uma prova de que o estoicismo está mais presente em nossa cultura do que podemos imaginar:

Ser como o rio que defluisilencioso dentro da noite.Não temer as trevas da noite.Se há estrelas no céu, refleti-las.E se os céus se pejam de nuvens,como o rio as nuvens são água,refleti-las também sem mágoa,nas profundidades tranqüilas.(O Rio, de Manuel Bandeira, 1)

tHE ANCIENt StoIC EtHICS AND tHE StoIC StErEotyPE IN tHE moDErNIty

Abstract: Considering that Stoicism is the most influent Hellenistic stream on Western philosophy, our intention is to present some of the most common stereotypes created by modern philosophy to convey Stoic ethical theory. With this in view, we make a presentation of the most famous aspects of Stoic ethics and analyze the concepts which later will be object of criticism to the school of Stoa. Charged with being a philosophical stream that defends self-indulgence, feeling- annihilation and the absolute domination of reason over passions, stoicism is often misinterpreted by its opponents. We also point here Spinoza’s criticism on fifth Ethics book’s preface, where the emphasis on concepts such as “experience” and “will” helps to clarify the way in which stoicism is seen in modern philosophy.

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Keywords: Ethics, Stoics ethics, Roman stoicism, Stoicism in modern philosophy, Stoics and Spinoza.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1.BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Poesias Reunidas. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

2.BRENNAN, Tad. Psicologia moral estóica. In: INWOOD, Brad (org). Os Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

3.LAERCIO, Diogenes. Vidas de los filosofos mas ilustres. Madrid : Espasa-Calpe, 1949.

4.CICERO, Marco Tulio. Cuestiones Académicas. Mexico : Colegio de Mexico, 1944.

5.CICERO, Marcus Tulius. De finibus bonorum et malorum. Cambrigde: Harvard University Press, 1999.

6.INWOOD, Brad (org). Os Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.7.FREDE, Dorothea. Determinismo estóico. In: INWOOD, Brad (org). Os Estóicos.

São Paulo: Odysseus Editora, 2006.8.GILL, Christopher. A escola no período imperial romano. In: INWOOD, Brad (org).

Os Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.9.LONG, A.A. Estoicismo na tradição filosófica: Spinoza, Lipsius, Bluter. In:

INWOOD, Brad (org). Os Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.10.REALE, Giovanni. História da filosofia antiga / Giovanni Reale - São Paulo:

Loyola, 1994.11.SEDLEY, David. A escola, de Zenon a Ário Didimo. In: INWOOD, Brad (org). Os

Estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.12.SCHOFIELD, Malcolm. Ética estóica. In: INWOOD, Brad (org). Os Estóicos. São

Paulo: Odysseus Editora, 2006.13.SPINOZA, Benedictus de. Ética / Spinoza ; [tradução de Tomás Tadeu]. - Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

NotAS:

1. Long, (9, p. 430) no texto “A complexidade do legado estóico”, traça uma breve linha histórica de influências do Estoicismo, que vai desde o período romano, com Cícero e Marco Aurélio, até a modernidade, apontando as influências estoicas na Filosofia prática de Kant, por exemplo.

2. “Dizem, pois, os estoicos que a filosofia se divide em três partes, a saber: em natural, moral e racional ou lógica..” (LAERCIO 3, p. 30)3. Podemos testemunhar o caso de Sêneca, que nada falava sobre lógica e muito tratava sobre ética, diferentemente de Crisipo, que parece ter dado atenção igualitária a todas as áreas. Seus trabalhos sobre lógica foram fundamentais para o desenvolvimento do pensamento estóico, como afirma David Sedley 11, p.18.4. “a arte de viver é mais semelhante à da luta que à da dança, na medida em que se posiciona, preparada e imóvel, contra o que golpeia e o que é inesperado”5. Demos preferência, sempre que possível, às citações em português.6. “A primeira inclinação de todo animal é sua constituição e seu conhecimento próprio, pois não é verossímil que o animal alienasse esta sua inclinação ou que fizesse de modo que nem a alienasse nem a conservasse” (LAERCIO 3, p.60)7. “Aos [animais] racionais foi dada a razão como principado mais perfeito, a fim de que vivendo de acordo com ela sejam retamente conforme a natureza.” (LAERCIO 3, p.61)8. “Obedecendo às injuções da razão reta, obedecemos à razão divina que preside sobre a administração da realidade. Se obedecermos a elas de modo consistente, alcançaremos a virtude e o “suave fluir da vida”, visto que todas as nossas ações serão então conformes à harmonia entre o divino em nós e a vontade do administrador do todo.” (SCHOFIELD 12, p. 273)9. “O vício é a ignorância de tudo quanto seja virtude saber” (LAERCIO 3, p.66)10. “Das coisas falsas provém perversão na mente, e dela brotam muitas paixões ou perturbações e motivos de inconstância. Segundo Zenão, a perturbação ou paixão é um movimento, na alma, irracional e contra a natureza.” (LAERCIO 3, p. 75)11. Grifo nosso.12. “Só a virtude, juntamente com o que quer que nela participe, é um bem; só o vício, e o que quer que nele participe, é um mal. Tudo o mais é indiferente, o que significa que não é nem benéfico nem nocivo, ou, de modo equivalente, não exerce efeito sobre a felicidade ou a tristeza do indivíduo.” (BRENNAN 2, p. 292)13. “O erro e a temeridade, a ignorância e a opinião, a conjetura e, numa palavra, tudo o que fosse alheio ao assentimento firme e constante, [Zenão] removia da virtude e sabedoria.” (CICERO 4, p. 17)14. Como vimos acima na citação de Diógenes Laércio.15. “Só o sábio é livre, os maus e os ignorantes são escravos” (LAERCIO 3,. p.82)16. “(...) o ensinamento estóicos se baseava em um canôn bem estabelecido de tratados e escritos. Embora Zenon continuasse a desfrutar de um estatuto especial como

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fundador da escola, o corpo substancial de trabalhos oriundos da pena de Crisipo – o grande pensador sistemático do estoicismo – constituía a essência do corpus estóico nesse período.” (GILL 8, p 39)17. “(...), fundamental, sobretudo na revisão da moral estóica, foi o contato de Panécio com a mentalidade romana. Acolhido em Roma no círculo dos Cipiões, frequentando assiduamente os romanos mais poderosos, influentes e esclarecidos do momento, ele compreendeu a grandeza e a novidade da romanidade, foi fascinado e em certa medida, também, positivamente condicionado por ela. Os seus predecessores viram na Grécia, prioritariamente, o que no âmbito do Estado e da política estava se destruindo e se perdendo; Panécio, viu em Romana, ao contrário, o que nesse âmbito se estava construindo e se afirmava sempre mais. E assim ele recuperou o forte sentido político, que já fora o traço distintivo dos gregos da era clássica, embebeu-se do forte sentido prático que constituía a cifra característica da romanidade. Um e outro elemento incidiram fortemente sobre a visão da vida do filósofo.” (REALE 10, 366)18. “Também na determinação das virtudes, Panécio afastou-se em parte do antigo Pórtico. Ele parece retomar a distinção entre virtude teórica e virtude prática.(...) Virtude teórica é o saber, virtudes prática são: a justiça, a magnanimidade, e a temperança. Essas virtudes exertam-se sobre quatro tendências fundamentais do homem: o desejo de puro saber, o desejo de conservar a si e à comunidade, o desejo de não depender de ninguém e de nada, o desejo de moderação. As virtudes são, precisamente, a atuação e a explicitação desses desejos em conformidade com a razão. (Reale 10, 371 -372)19. Como atesta Gill: “uma área em que a filosofia estóica é claramente criativa nesse período é a área de ética prática ou aplicada”.(8, p. 43)

20. “(...) Que não temos, com efeito, um domínio absoluto sobre os afetos foi o que demonstramos anteriormente. Os estóicos, entretanto, acreditavam que os afetos dependem exclusivamente de nossa vontade e que podemos dominá-los inteiramente. Contudo, viram-se obrigados, na verdade, não por causa de seus princípios, mas diante das evidências da experiência, a admitir que não são pequenos o exercício e o esforço necessários para refrear e regular os afetos, conclusão que um deles tentou demonstrar (se bem me recordo) pelo exemplo de dois cães: um, doméstico; de caça, o outro. O resultado foi que, pelo exercício, ele acabou conseguindo que o cão doméstico se acostumasse a caçar e que o de caça, em troca, deixasse de perseguir as lebres.” (SPINOZA 13, p. 213 – Pref. Et. V)21. Long nos indica que Lipsius procedia da mesma maneira. (LONG 9, p. 414)

o CONATUS EM EsPinosa E a TODESTRIEB dE FrEUd: UMa antinoMia ontolÓGiCa oU

PUraMEntE iMaGinativa?

lucas Carpinelli*

resumo: Das muitas aproximações perpetradas nas últimas nove décadas entre Sigmund Freud e Espinosa, talvez nenhuma seja tão problemática quanto o cotejamento entre o conatus – esforço de perseveração no ser que, na Ética de Espinosa, constitui a essência atual das coisas – e aquela força autodestrutiva a que Freud, em Além do Princípio do Prazer, dá o nome de Todestrieb, ou pulsão de morte. De que forma, à luz de uma ontologia absolutamente positiva como a de Espinosa – uma na qual a destruição de uma coisa será sempre extrínseca à mesma –, devemos receber a asserção de Freud de que há algo na constituição do sujeito que o destrói? Partindo desta questão, o intento do presente trabalho é realizar uma apresentação detida dos conceitos, a fim de determinar em que registro se dá a contradição, e até que ponto a mesma nos constrange a suprimir nossa aquiescência a um ou outro dos mesmos.

Palavras-chave: Espinosa, Freud, conatus, pulsão, morte.

Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior. (...)

Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser

Espinosa1

Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o

que vive morrer por razões internas, (...) seremos então compelidos a

dizer que o objetivo de toda vida é a morte... .

Sigmund Freud2

Desde a consolidação da psicanálise nas primeiras décadas do século XX, comparações e aproximações vêm sendo feitas entre as teorias

* Graduando em Filosofia pela FFLCH-USP.

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de seu fundador, Sigmund Freud (1856-1939), e diversa gama de doutrinas e proposições encontradas na obra de Benedictus de Espinosa (1632-1677). Posicionamentos dessa estirpe, entretanto, parecem tacitamente sugerir a possibilidade de harmonização entre dois conceitos que, a uma primeira leitura, parecem-nos perfeitamente incompatíveis: trata-se, por um lado, do conatus, esforço de perseveração no ser que, na Ética de Espinosa, constitui a essência atual das coisas; por outro, referimo-nos à pulsão corpórea em um sujeito que o impele em direção à não-existência, apresentada por Freud (na obra Além do Princípio do Prazer, de 1920) com o nome de Todestrieb, ou pulsão de morte. À luz de uma ontologia como a de Espinosa, na qual a destruição de uma coisa é necessariamente extrínseca à mesma, como devemos receber a asserção de Freud de que há algo na própria constituição do sujeito que o destrói? A partir desta questão, o intento do texto que se segue é realizar uma apresentação do conatus em Espinosa, seguida de uma articulação das considerações clínicas que levam Freud a postular a existência de uma pulsão de morte no interior da vida psíquica. Estabelecida sua gênese, a justaposição dos conceitos talvez nos revele o registro em que se dá a aparente contradição, e até que ponto a mesma faz com que qualquer forma de coexistência entre os mesmos seja um contra-senso.

1. Conatus: a essência atual das coisas enquanto esforço de auto-perseveração

O ponto fundamental de toda a metafísica de Espinosa, do qual se deriva e que a legitima, é o conceito de substância, definida como aquilo que “existe em si, e por si é concebido” (Ética I, def. 3), ou seja, algo “cuja essência envolve a existência” (EI, def. 1), e que é, portanto, causa de sua própria essência e de sua própria existência ou potência (sendo a

essência da substância indistinguível de sua potência para existir e produzir todas as coisas); essa substância, por consistir em infinitos atributos infinitos (EI, def. 6) que exprimem a essência eterna e infinita da mesma, é necessariamente única – do contrário, teríamos de conceber um ser absolutamente infinito coexistente com outro ser absolutamente infinito, seres absolutamente infinitos que, portanto, limitar-se-iam mutuamente, o que, por sua vez, impossibilitaria que fossem absolutamente infinitos de fato; em franca contradição com a forma como definíramos a substância (o termo é importante: lembramos que, em Espinosa, “a verdadeira definição de cada coisa não envolve ou expressa coisa alguma além da natureza da coisa definida,” (EI P8 S2) e “a [verdadeira] definição de uma coisa qualquer afirma a sua essência” (EIII P4 D)), esse resultado nos obriga – a razão nos obriga – a aceitar que, dada a definição de substância com a qual estamos lidando, somente uma poderá existir.

Sem essa substância única – que, precisamente por ser única (ou, o que é dizer exatamente o mesmo, absolutamente infinita) consiste na totalidade do que existe – nada existe ou pode ser concebido: são decorrências de sua autoprodução, de sua potência em existir, todas as infinitas coisas existentes. Configura-se, assim, o plano da imanência, no interior do qual todos os efeitos dessa potência, e que a exprimem, têm seu ser; todas as coisas singulares são, portanto, imanentes à substância (Deus sive Natura – Naturans, em seu aspecto produtivo, e Naturata, em seu aspecto produzido) e decorrência necessária da natureza, isto é, da potência produtiva, da mesma e de seus atributos. Assim, as coisas singulares não se distinguem da substância de forma real, mas tão-somente modal, isto é, são afecções, ou modos, dos infinitos atributos infinitos que exprimem a essência dessa substância.

A natureza das coisas existentes a que nos trouxe o esforço dedutivo de Espinosa (a partir dos axiomas e definições da Parte I da

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Ética) nos permite dizer, então, que a potência da substância é a potência da Natureza como um todo; e, assim, entes singulares finitos como o ser humano – modo de dois dentre os infinitos atributos substanciais, isto é, o pensamento e a extensão – podem ser tidos como aproximações finitas da Natureza, aproximações que, exprimindo Sua capacidade produtiva, são também causas produtoras de efeitos necessários. São, nesse sentido, essencialmente potências, que por sua só natureza buscam excluir de si tudo aquilo que for incompatível com sua persistência no ser (exprimindo, de forma finita, o poder auto-causador da substância da qual são modos); são, portanto, em termos de sua essência, potências de autoperseveração. A esse esforço das coisas por perseverar em seu ser – um esforço que a coisa não empreende transitivamente, mas que a coisa de fato é – Espinosa dá, no Livro III da Ética, o nome tradicional de conatus, sendo este, pelo que dissemos acima, uma conseqüência das próprias condições por meio das quais a coisa tem sua existência. Sustentam nossas conclusões as palavras de Marilena Chauí:

[As] modificações finitas do ser absolutamente infinito são potências de agir ou de produzir efeitos necessários. A essa potência de agir singular e finita Espinosa dá o nome de conatus, esforço de autoperseveração na existência. O ser humano é um conatus, e é pelo conatus que ele é uma parte da Natureza ou uma parte finita da potência absolutamente infinita da substância (Chauí 2, p. 127-8).

O conceito surge, e suas decorrências dedutivas são exploradas, a partir da proposição 4 do livro supracitado: “Nenhuma coisa,” nos diz Espinosa, “pode ser destruída senão por uma causa externa”, asserção que é patente pelo que dissemos acima: a absoluta positividade ontológica de uma metafísica onde as coisas que existem são imanentes a uma substância cuja essência envolve a existência nos proíbe, racionalmente, de

concebermos algo que possa ser, quantum in se est, a causa de sua própria destruição; a essência da coisa a põe, a afirma e define, no sentido forte que Espinosa confere aos termos. Vemos facilmente como isso sustenta as quatro proposições seguintes, de 5 a 8, sendo o conatus explicitamente nomeado nas últimas duas: “As coisas têm natureza contrária, isto é, não podem coexistir no mesmo sujeito, na medida em que podem destruir uma à outra”, nos diz a proposição de número 5 (uma vez que, se pudessem, comporiam um único sujeito que se autodestrói, o que é impossível pelo que foi dito acima); “[toda] coisa se esforça, enquanto é em si, por perseverar em seu ser”, nos diz, em seguida, a sexta proposição, e já o sabíamos, na medida em que sabíamos ser a essência da coisa a afirmação da mesma, exprimindo a potência produtora da substância à qual é imanente; isso nos dá, é claro, o que aparece na sétima proposição: “O conatus pelo qual toda coisa se esforça por perseverar em seu ser não é senão a essência atual da própria coisa”, conatus esse que, enquanto tomado somente em si, não envolve, como nos diz a proposição 8 “tempo finito, mas um tempo indefinido” (já que a coisa não pode, jamais, ser tida como gênese de sua própria destruição e, portanto, é em si mesma imperecível). Repetimos, então, o que já havia sido dito, desta feita com mais propriedade: em Espinosa, a destruição das coisas será invariavelmente advinda de elementos extrínsecos à essência das mesmas.

2. Pulsão de morte: o movimento de Freud para além do princípio do prazer

Aos 64 anos de idade, Sigmund Freud publica o controverso ensaio Além do Princípio de Prazer (Jenseits des Lustprinzips, de 1920); nele, o autor introduz uma modificação significativa naquele que fora, até então, o principal fundamento teórico de sua obra: se, até então, as pulsões

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libidinais, ou Eros, compunham o fulcro explicativo das forças moventes do sujeito, o texto de 1920 apresenta um princípio que as antagoniza, e que consiste na tendência dos seres à sua própria destruição – der Todestrieb, ou a pulsão de morte3. Surge, então, uma nova concepção de ser humano: no lugar de criatura na qual o princípio de prazer é o primeiro e único imperativo, temos um ser em conflito interior permanente, tracionado por pulsões de vetores contrários: se, por um lado, Eros (que, enquanto contraponto da Todestrieb, pode ser dito uma pulsão de vida) leva o indivíduo à criatividade, à harmonia, à conectividade sexual, ao desejo por reprodução e à auto-preservação4, Thanatos, por outro lado, internamente vertido, conduz o indivíduo a repetir compulsivamente instâncias de desprazer, e à destruição.

Que motivos poderiam revelar-se suficientemente prementes para operar tão dramático (e tardio) volte face nos fundamentos mesmos da obra de Freud? A fim de apropriadamente respondermos tal pergunta, dedicaremos o restante desta seção de nosso texto a um sumário dos principais argumentos do ensaio em que se dá a gênese do conceito. Primeiramente, entretanto, gostaríamos de chamar atenção para um problema perene nas traduções das obras de Freud para o português. Trata-se da confluência, nas mesmas, de dois termos que, no texto original alemão, possuem acepções marcadamente distintas: Instinkt (“instinto”) e Trieb (“pulsão”), ambas tendo frequentemente recebido a tradução indiscriminada de “instinto”. Embora muito possa ser dito acerca da diferença profunda existente entre os conceitos, Jonathan Lear sintetiza belamente a questão, dela derivando conclusões interessantes:

Um Instinkt, para Freud, é um padrão comportamental inato e rígido, característico do comportamento animal: e.g., a habilidade inata e o ímpeto de um pássaro para a construção de um ninho... . Uma Trieb, em contraste, possui uma certa

plasticidade: seu propósito e direção são, em certa medida, moldados pela experiência. Conceber..., que os seres humanos são movidos por Triebe, é, ao menos em parte, distinguir a humanidade do resto do reino animal. (Lear 11, pp. 123-4)

Complementaríamos o que foi dito lembrando que por Triebe, Freud compreendia as demandas da corporeidade por sobre a vida psíquica; nesse registro, são tidas como intensificadoras da energia libidinal que move a atividade psíquica do ser como um todo. Assim, diferentemente dos instintos, as pulsões não são essenciais à vida de um organismo, podendo mesmo fazê-lo portar-se de maneiras aparentemente contra-intuitivas, irracionais ou antinaturais. Somos incapazes, adicionalmente, de apreender uma pulsão diretamente: apreendemos tão-somente sua ideia, ou seja, sua representação em nossa mente5. Restauradas aos termos suas acepções devidas, retomamos nosso percurso.

Os primeiros três capítulos de Além do Princípio do Prazer possuem um enfoque fortemente clínico, sendo, portanto, menos controversos; neles, Freud reitera sua premissa fundamental de que o curso dos eventos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio de busca pelo prazer, associado à tendência próxima de evitarmos qualquer espécie de desprazer (Freud 8, p. 275); se a evidência clínica invariavelmente apontara a presença de experiências desagradáveis na vida psíquica, estas jamais haviam parecido suficientemente significativas para limitar o alcance da premissa. Aos poucos, entretanto, Freud sente-se obrigado a reavaliar sua posição, na medida em que determinadas instâncias clínicas revelam comportamentos cuja gênese parece não poder dever-se ao princípio do prazer. As quatro áreas seguintes são vistas como particularmente problemáticas: (a) certas espécies recorrentes de brincadeira infantil de fundo escancaradamente masoquista (cujo exemplo paradigmático é a famosa brincadeira “Fort/Da” desenvolvida pelo neto do próprio Freud, durante a qual a criança

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reencenava, de novo e de novo, o sofrido desaparecimento de sua mãe, de seus brinquedos favoritos, e até mesmo de si próprio6), cujo interesse aumenta dado seu surgimento entre crianças normais sob quaisquer outros aspectos; (b) sonhos de veteranos de guerra, também de recorrência incessante, no decorrer dos quais os indivíduos revivem episódios traumáticos de seu passado militar como dolorosa realidade presente; (c) a tendência, próxima da anterior e apresentada por grande número de analisandos, a um contínuo reencenar de experiências desagradáveis ou debilitantes originárias da infância, sem que da agonia resultante decorra qualquer espécie de resolução permanente das questões; e (d) o padrão comportamental autodestrutivo recorrente na vida de determinadas pessoas que, continuamente sabotando seus próprios esforços, frustram-se em seus desígnios e ambições, cujo desenlace é sempre o mesmo, e sempre amargo. Por não perceberem que são eles próprios a fonte de suas mazelas, passam a acreditar que algo como um “destino maligno” os acompanha vida afora, isto é, que forças exteriores conduzem os fatos de sua vida a fins tão trágicos quanto inescapáveis.

É fácil notar como, em todos os casos, a repetição incessante e auto-imposta de sofrimento é precisamente o que lhes confere seu caráter masoquista; Freud, inclusive, já detectara uma “compulsão à repetição” em seu trabalho clínico anterior, e a tentara compreender como incapacidade do paciente de acessar como memória o todo de seu material reprimido, sendo então compelido a repeti-lo como experiência contemporânea. A questão, entretanto, permanecia sem resolução: como reconciliarmos a compulsão à repetição – em si uma manifestação do poder pulsional do material reprimido, e fonte de enorme desprazer para o ego – e o princípio do prazer? Dada a existência desse padrão em pessoas normais, Freud sente-se justificado em postular a possibilidade de que a compulsão à repetição tenha existência autônoma, distinta do

princípio do prazer, “algo que parece mais primitivo, mais elementar... que o princípio do prazer que sobrepuja” (ibid., p. 294).

As seções ou capítulos seguintes do texto (IV a VII) possuem natureza mais fortemente especulativa, e subseqüentemente mais controversa; nas palavras de Freud, “[o] que se segue é especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção individual” (ibid., p. 295). Nelas, Freud nos diz que os sonhos nos quais o indivíduo revive um trauma constituem exceção à regra que dita serem os sonhos sempre a realização de um desejo libidinal inconsciente, e que se devem, ao invés, à compulsão à repetição (ibid., p. 304). Sendo a principal tarefa da mente a restrição de excitações, com o intuito de prevenir a formação de traumas, Freud vê-se obrigado a reiterar o fato clínico evidente de que a compulsão à repetição em uma pessoa submetida a análise opera à revelia do princípio do prazer (ibid., p. 308); tentando compreender, por meio de analogias (mitológicas, filosóficas e biológicas), a recém-inaugurada centralidade da compulsão à repetição na vida psíquica do sujeito, termina por considerá-la algo como um ímpeto atávico pela restauração de um estado anterior das coisas que, em última analise, seria aquele da condição inorgânica que antecede a vida. Sustentado por tais considerações, Freud passa, então, a reavaliar a tendência à auto-injúria presente no masoquismo que encontrara em sua vasta experiência clínica (perversão até então considerada como patologia secundária derivada de uma introversão do sadismo, este último facilmente explicado por meio do princípio do prazer); talvez, sugere, tais instâncias pudessem ser reavaliadas, e utilizadas como comprovação clínica da existência de tendências autodestrutivas advindas de princípios alheios à libido, isto é, da existência de um masoquismo primário (ibid., p. 328), possibilidade que anteriormente negara.

Considerações de caráter estritamente biológico que, segundo Freud, fundamentariam a Todestrieb, ganham vulto principalmente

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nas seções IV e V do ensaio; as mesmas têm relevância significativa para a presente exposição por embasarem algumas das considerações conclusivas articuladas pelo autor. De forma sintética, podemos dizer que, para Freud, o processo de formação das células vivas aprisiona energia, resultando em uma carga energética excessiva no interior das mesmas que as desequilibra; a pressão subseqüentemente exercida por tais células na tentativa de retornarem a seu estado original faz com que seu funcionamento passe a ser análogo ao de uma bateria que, carregada, tende, em seu retorno a um estado de maior equilíbrio, a doar energia à exaustão. É a essa espécie de “difusão molecular” que Freud atribuirá a existência da pulsão de morte em seu registro puramente biológico: a compulsão da matéria celular ao retorno a um estado difuso e inanimado se estende para o organismo como um todo, sendo, então, a manifestação psíquica do Thanatos tão-somente produto de um processo bioquímico presente na totalidade das células do organismo7.

Com base nesse princípio, surge, então, a passagem da qual retiramos a declaração que serve de epígrafe para o presente texto, e que agora reproduzimos de forma mais completa:

Toda modificação... imposta ao curso da vida do organismo, é aceita pelos instintos orgânicos conservadores e armazenada para ulterior repetição. Esses instintos, portanto, estão fadados a dar uma aparência enganadora de serem forças que tendem à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos. Ademais, é possível especificar esse objetivo final de todo o esforço orgânico. Estaria em contradição à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido. Pelo contrário, ele deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por

retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte‘, e, voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas‘. (Freud 8, p. 311)

Tendo, desta maneira, estabelecido que o objetivo da vida é sua própria destruição, torna-se forçoso que Freud explique a tendência de um organismo para evitar o perigo, isto é, para conservar a si próprio; a maneira como o faz, por sinal, é bastante elegante: o organismo não busca uma morte qualquer, nos diz, mas aquela morte que é sua, isto é, que está perfeitamente de acordo com sua natureza. Se o organismo afasta de si certas coisas que o destruiriam, o faz não por não querer morrer, mas por não aceitar atalhos em sua senda em direção à morte; busca morrer, mas de sua própria maneira.

O fim do percurso nos traz a paragens familiares: duas forças em conflito fundamentam o psiquismo do ser humano: de um lado as pulsões de vida, ou Eros; do outro, as pulsões de morte, ou (como queria Stekel) Thanatos – este talvez o mais controverso dos conceitos de uma carreira onde não faltaram controvérsias, fruto de tardia “estrutura artificial de hipóteses” (como o admite o próprio Freud à página 334 do ensaio) cuja análise chega, aqui, a seu fim. 3. morte em vida: algumas considerações

O homem livre em nada pensa menos que na morte; e a sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida.

Espinosa8

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A Morte é o triunfo da Vida! Pela Morte vivemos, porque só somos hoje porque morremos para ontem. Pela Morte esperamos, porque só podemos crer em amanhã pela confiança na morte de hoje. Pela Morte vivemos quando sonhamos, porque sonhar é negar a vida. Pela Morte morremos quando vivemos, porque viver é negar a eternidade! A Morte nos guia, a Morte nos busca, a Morte nos acompanha. Tudo o que temos é Morte, tudo o que queremos é Morte, é Morte tudo o que desejamos querer.

Fernando Pessoa9

Talvez o mais integralmente racional dentre os ditos racionalistas continentais, Espinosa dedicou sua breve vida à articulação exaustiva de um sistema filosófico cuja estrutura geométrico-sintética nos dá a impressão de querer reproduzir – tanto quanto o poderia um modo finito – as relações de razão existentes entre os objetos componentes de nossa (literalmente) inimaginável realidade; durante tão titânico processo, termina por descortinar – o obriga a tanto a inexorabilidade de sua razão – um esforço de autoperseveração e aumento de potência na própria essência dos seres humanos que é, em si mesmo, infinito. Somos – Espinosa o demonstra – algo que teima em viver; ou, ainda mais, somos, essencialmente, fundamentalmente, vida: vida vivente e em expansão. Que pode ser a morte, então, imanente a essa plena positividade ontológica, senão a própria vida, diferenciada em alteridades, mas ainda vida, continuamente descaracterizando a si mesma, e por si mesma sendo descaracterizada? Sim, pois sempre haverá – Espinosa o demonstra, a razão o compele – infinitos seres viventes, cujo conatus é mais forte que o conatus que somos, cuja autoperseveração expansiva nos destrói, isto é, nos descaracteriza até que deixemos de ser nós mesmos: morremos. Morremos, e a morte nos vem sempre de fora.

O método de Freud é bastante diverso: médico, pragmático, empirista, chafurda até as lentes dos óculos no irracional10 da alma humana – sonhos, fantasias recorrentes, comportamento compulsivo, atos falhos

– e tenta enxergar a normalidade a partir da patologia, o comum a partir da idiossincrasia subjetiva, confiando que as origens orgânicas que atribui ao binômio consciência/inconsciente lhe permitirão traçar analogias de complexidade crescente entre a psicologia e as (respeitáveis, racionais) ciências biomédicas. Inicialmente convicto da primazia da busca pelo prazer em todo comportamento humano, é subseqüentemente confrontado com reiterações contínuas de ações cujo resultado é a destruição de qualquer forma de prazer, ou mesmo a geração de profundo desprazer; gradativamente, é levado à conclusão – titubeante, a princípio, mas mais e mais definitiva com o passar dos anos – de que o alcance de nossos impulsos atávicos mais profundos é maior do que pensávamos, nos conduzindo por todo o caminho de volta àquele silêncio e penumbra inorgânicos, anteriores ao surgimento da vida: em nosso íntimo, sempre presente, antagonizando nossos esforços de autoperseveração e expansão, atua a pulsão de morte.

Podemos, é claro, encontrar semelhanças no interior desse campo de disparidades; certos procedimentos de reforma racional promovidos pelos autores, por exemplo, parecem ter muito em comum: se Espinosa quer que nos movamos em direção à adequação, isto é, tornemo-nos mais ativos e menos passivos, aumentando assim nossa perfeição, esse caminho somente se-nos descortina quando submetemos nossas idéias inadequadas à razão (nesse caso, a razão ontológica em operação na Ética). O interesse de Freud, por sua vez, é que tragamos os materiais inconscientes ao nível da consciência, a fim de também os sujeitarmos à consideração da razão (aqui, a razão técnica freudiana). Se distintos, os procedimentos têm em comum nos permitirem maior maestria sobre as forças que nos movem à revelia de nossa verdadeira essência, isto é, aumentar nossa potência para existirmos segundo os ditames de nossa só natureza.

Certamente não queremos dizer com isso que as forças libidinais ocultas do inconsciente freudiano possuam equivalência com aquilo que

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Espinosa chama de idéias confusas. Em Espinosa, não somos sequer capazes de estabelecer um inconsciente, já que, somadas a proposição 12 do Livro II (“Tudo o que acontece no objeto da idéia que constitui a alma humana deve ser percebido pela alma humana”) e a demonstração da proposição 9 do Livro III (“[A] alma... tem necessariamente consciência de si mesma.”) da Ética, vemos que toda a atividade do corpo está necessariamente presente na mente, que é necessariamente consciente de si mesma. Ademais, à luz do caráter fundamental da antinomia que acreditamos ter encontrado no cotejamento entre os autores, considerações como as anteriores parecem se tornar problemas menores; o que queremos dizer é que, se ambos são por demais significativos em suas respectivas áreas e por demais rigorosos em seu pensar para que não levemos a sério aquilo que nos dizem, ainda assim temos, pelos motivos que vimos no decorrer do presente trabalho, enorme dificuldade em reconciliar suas posições. Se a metafísica espinosana, racionalmente deduzida, corresponde à realidade, não seria de se esperar que, fossem quais fossem os comportamentos humanos empiricamente apreendidos pela clínica psicoterapêutica, impulsos autodestrutivos não se encontrariam entre eles, por não existirem? Ou, se apreendidos, que estaríamos desautorizados a tomá-los como constituindo a essência de um sujeito, por serem tão-somente fruto de idéias inadequadas? Conversamente, se procedimentos psicanalíticos nos compelissem a tomar tais impulsos como a expressão empírica de uma realidade ontológica na qual a essência de um ser é capaz de autodestruição, não seríamos simultaneamente forçados a reinterpretar o significado ou o alcance da metafísica espinosana? Ou, por outro lado, obrigados a questionar o rigor científico de tais procedimentos, seu emprego de um processo indutivo que, confrontado com umas poucas afecções empiricamente apreendidas, as extrapola em teorias de alcance universal?

Muitos comentadores de ambos os autores seguiram precisamente esse viés crítico; abundam na literatura secundária detratores do conceito

espinosano de conatus, levantando objeções que, com freqüência, revelam falta de familiaridade com a Ética. À guisa de exemplo, sugerimos o caminho trilhado por Michael Della Rocca em seu ensaio “Spinoza’s Metaphysical Psychology”11: perplexo diante de supostos contrafatuais do conatus como uma vela acesa ou um indivíduo que se suicida – para o comentador, suficientes para demonstrar a insuficiência do conceito – Della Rocca sugere uma leitura analítica da sexta proposição do terceiro livro da Ética (“Toda coisa se esforça, enquanto é em si, por perseverar em seu ser”) onde, tendo sido estabelecida equivalência entre as sentenças “x, quantum in se est, realiza F” e “x se esforça por realizar F” (por meio de uma analogia entre o conatus em Espinosa e o conatus cartesiano, onde os diferentes esforços empreendidos pela coisa são uma função do estado dessa mesma coisa), tomaríamos EIII P6, curiosamente rearticulada como (a) “para cada coisa x, o estado de x é tal que, exceto quando impedido por causas externas, x se esforça por perseverar em seu ser”, e, realizando substituição duvidosa em uma das clausulas da sentença, chegaríamos a (b) “para cada coisa x, o estado de x é tal que, exceto quando impedido por causas externas, o estado de x será tal que, exceto quando impedido por causas externas, x irá perseverar em seu ser”, interpretação da qual o comentador depreende a seguinte leitura: cada coisa é tal que irá se esforçar por perseverar em seu ser a não ser que causas externas a impeçam de se esforçar (p. 198). Note-se a não-tão-sutil torção que a leitura do comentador empresta ao texto da Ética: ao invés das causas externas impedirem que a coisa persevere, elas passam a impedir que a coisa se esforce por perseverar. Para Della Rocca, isso nos autorizaria a pensar determinados estados da coisa nos quais a coisa não tem mais ação conativa – o que é o mesmo que dizer que é possível concebermos separadamente a coisa e seu conatus, conatus esse que Espinosa tem tanto cuidado em demonstrar ser a essência da coisa. Felizmente, o comentador rapidamente se retrata de tal leitura

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apontando evidência textual na Ética que a invalida, o que nos impressiona bem pouco: logo na proposição seguinte (“O conatus pelo qual toda coisa se esforça por perseverar em seu ser não é senão a essência atual da própria coisa”) temos sua completa derrocada. Infelizmente, Della Rocca toma tal invalidação como evidência do fracasso da metafísica espinosana, ao invés de tomá-la como evidência da inadequação de sua leitura.

Quanto aos famosos contra-exemplos apresentados pelo comentador (entre tantos outros) como sendo provas auto-evidentes da falácia do conatus espinosano, entrevemos com facilidade como o problema da vela acesa – supostamente, coisa que consome e destrói a si própria quando, por definição, deveria empreender esforço de autoperseveração – advém de um desconhecimento do próprio conceito de coisa singular que aparece na Definição 7 do Livro III da Ética:

Se acontece que vários indivíduos concorrem para uma mesma ação, de tal modo que todos em conjunto sejam a causa de um mesmo efeito, considero-os, então, todos juntos como constituindo uma mesma coisa singular.

Ora, na medida em que a chama de uma vela a destrói, estamos impedidos, por definição, de considerá-la como sendo parte integrante das proporções de movimento e repouso a que chamáramos vela em primeiro lugar. A chama possui conatus próprio, antagônico ao conatus em que a vela consiste; daí seu embate, que pode tanto resultar na destruição da vela quanto na extinção da chama, ou ambas.12

Quanto ao indivíduo que tira sua própria vida, julgamos impossível que comentadores de Espinosa de qualquer estirpe possam ignorar a existência do escólio à proposição 20 do Livro IV da Ética, no qual Espinosa trata da questão; somos forçados, portanto, a presumir que o mesmo simplesmente não os tenha convencido, o que é compreensível:

a passagem é sucinta e um tanto obscura. Não acreditamos, ainda assim, que a dificuldade que nos apresenta baste para contradizer todo o edifício racional que nos levou ao conceito de conatus em primeiro lugar; ademais, se uma análise profunda da passagem excede nossa proposta original, basta, para o presente texto, que articulemos como se dá nossa compreensão da mesma, para que eventuais leitores nos adotem ou corrijam: Espinosa nos diz que “alguém se suicida... porque causas exteriores... dispõem sua imaginação e afetam seu corpo de tal maneira que este se reveste de outra natureza, contrária à primeira, cuja idéia não pode existir na alma”; se isto quer de fato dizer o que compreendemos, isto é, que o corpo de tal forma se reveste imaginativamente que idéias antagônicas, incompatíveis e mutuamente destrutivas passam a compor um mesmo sujeito, sendo a primeira idéia a idéia do corpo de fato, enquanto a outra é idéia inadequada referente a um corpo que não existe senão na imaginação, podemos conceber determinadas instâncias de destruição desse corpo que possuirão a peculiar característica de dever-se a causas externas enquanto aparentam ter sido causadas pelo próprio indivíduo; isso, é claro, ocorrerá tão-somente caso a idéia inadequada originária das paixões do indivíduo seja de tal maneira potencializada por afecções exteriores que passe a ser mais potente que a idéia factual desse corpo, e o destrua. Uma vez mais, entretanto, a morte terá vindo de fora, e o conceito de conatus não terá sido contradito.

Tomemos, a exemplo do que dissemos, um indivíduo que, chafurdando em idéias inadequadas resultantes de sua passividade, aceita como fato a asserção imaginativa de dualismo substancial que existe no interior do dogma religioso, e a qualificação que esse dogma faz de seu corpo (e das afecções do mesmo) como fonte de vício e malignidade, sendo sua alma exaltada como verdadeira realidade egóica (em oposição ao corpo do qual, diria Espinosa, é idéia) supostamente passível de corrupção pelo corpo que a aprisiona, corpo esse que o indivíduo deve, portanto, negar e

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mortificar em nome daquilo que é imaginativamente tido por virtude, a fim de garantir que esta alma venha a ter, liberta do corpo, bem-aventurança imorredoura após a morte.

O indivíduo, revestindo-se plenamente de tais construtos imaginativos, continuamente alimentados e reforçados por seu meio sócio-cultural, ataca e enfraquece aquele que é seu corpo de fato, mas que percebe como outro, inimigo de sua ambicionada bem-aventurança: jejua ou pratica o autoflagelo, alegrando-se em meio à tristeza advinda de sua dor e privação por estar agindo em benefício daquilo que acredita ser a perseveração eterna de seu verdadeiro ser e, se termina por morrer como conseqüência do enfraquecimento corpóreo resultante, não percebe que, ao esforçar-se por perseverar em seu ser, mata a si mesmo, destrói aquilo que verdadeiramente é.

Acreditamos que leituras dessa espécie – aqui, meramente esboçadas – possam permitir reconciliação entre o conatus e instâncias empiricamente apreendidas onde há aparente movimento autodestrutivo (que argumentamos, portanto, ser meramente imaginativo, ou, sob a ótica da epistemologia espinosana, conhecimento de primeiro gênero, mutilado e incompleto até que o submetamos à razão e conheçamos sua gênese); parecem, inclusive, permitir que enquadremos as apreensões da clínica psicoterapêutica, cuja natureza empírico-experimental é somada a procedimentos indutivos na formulação das teorias do funcionamento psíquico, como sendo também conhecimento de primeiro gênero: a cognição de umas poucas afecções, subseqüentemente extrapoladas em teorias de alcance universal, por si só não bastaria para fundamentar uma ontologia pulsional. Não sendo a pulsão de morte constituinte ontológico do indivíduo, dissolver-se-ia, então, o problema.

Esse é o caminho que seguem muitos críticos da Todestrieb – o conceito em particular foi notório por sua não-aceitação no meio

psicanalítico – e o próprio Freud parece permitir que adotemos esse tipo de perspectiva: como já vimos, ao adentrar o segmento de Além do Princípio do Prazer que se inicia a partir do quarto capítulo do texto, seu autor nos alerta de que “[o] que se segue é especulação, amiúde especulação forçada”; mais à frente, admite: “[minhas afirmações] carecem de uma tradução direta da observação para a teoria. (…) Podemos ter, por sorte, acertado, ou podemos ter-nos desviado vergonhosamente do caminho correto.”13 O problema é antigo: a inadequação da indução como fundamento para edificações metafísicas é amplamente articulada já no século XVIII por David Hume, e importantes figuras da filosofia da ciência (como, entre outros, Karl Popper14) apontaram como, na psicanálise, a falta de rigor experimental e de condições para falseabilidade termina por legitimar posicionamentos quando muito pseudocientíficos.

Poderíamos, então, responder à questão que dá ao presente texto seu título, dizendo tratar-se a antinomia em questão de problema puramente imaginativo, cuja origem se deve a idéias inadequadas, isto é, idéias mutiladas e parciais cuja gênese aquele que as concebe ignora; seríamos omissos, entretanto, se aceitássemos essa formulação como o fim do problema. Isso porque, independentemente de qual tenha sido o grau de comprometimento de Freud quanto ao estatuto ontológico de suas pulsões de vida e morte, o fato é que muito da teoria que orienta a prática psicanalítica contemporânea (em particular a lacaniana) as toma como ontologicamente positivas; forçados, portanto, a reconhecer incompatibilidade entre os conceitos, parecemos ter retornado ao início de nossas considerações sem ganho significativo. Ainda assim, não gostaríamos de abandonar a questão sem desenvolvermos um derradeiro gesto em direção a uma reconciliação possível. Para tanto, citamos o que apreendemos como uma aparente contradição no texto da Ética que pode, salvo engano, ser explorada nesse sentido. Na proposição 39 do Livro IV dessa obra, assim como no escólio

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que a acompanha, Espinosa nos apresenta sua tanatologia (por questões de clareza, removemos da citação a seguir as remissões àquelas passagens anteriores que a sustentam logicamente):

[Aquilo] que faz que as partes do corpo humano tomem uma outra relação de movimento e de repouso, isso mesmo faz que o corpo humano tome uma outra forma, isto é, faz que o corpo humano seja destruído... . (...) [Entendo] que o corpo morre quando as suas partes se dispõem de tal maneira que tomam entre si uma relação diferente de movimento e de repouso. Com efeito, não ouso negar que o corpo humano, conservando a circulação do sangue e as outras coisas, por causa das quais se julga que o corpo vive, possa, não obstante, mudar-se numa outra natureza inteiramente diferente da sua. É que nenhuma razão me obriga a admitir que o corpo não morre, a não ser quando se muda em cadáver; (...) [ocorre], de fato, às vezes, que o homem sofre mudanças tais que eu não diria facilmente que ele é o mesmo.

Em suporte da última asserção, Espinosa nos relata a história de um poeta espanhol que, tendo caído doente, perdeu a memória de maneira tão significativa que não mais reconhecia como sua a obra poética a que tantos anos dedicara. Para Espinosa, a conclusão é incontroversa: morrera o poeta espanhol, sendo aquele que passa a portar seu nome e feições um indivíduo distinto. Em seguida, nos apresenta aquela que é uma das mais curiosas passagens dessa que já é obra bastante peculiar. Citamos:

[Que] dizer das crianças? Um homem de idade avançada crê que a natureza destas é tão diferente da sua que não o poderiam persuadir de que algum dia foi criança, a não ser que julgasse de si mesmo por analogia com outros. (EIV P9 S)

Nosso entendimento da passagem nos obriga a tomá-la como análoga ao caso do poeta espanhol: a criança que amadurece sofre

modificação tão radical em suas proporções de movimento e repouso que devemos considerar o advento do indivíduo adulto como o óbito da criança que ele um dia foi, mesmo que ambos partilhem o mesmo nome e endereço. A concepção não é tão incomum: a epígrafe de Fernando Pessoa que abre este trecho de nossos esforços dissertativos exprime idéia bastante similar, a da morte como mudança. O que é curioso a respeito da passagem é o fato de, da mesma, podermos depreender decorrências no mínimo desconcertantes. Afinal, não decorrem o desenvolvimento e a expansão de uma criança de seus esforços de autoperseveração? E, se o fazem, não a levam inexoravelmente a toda uma série de mudanças biológicas que a descaracterizam, isto é, a destroem? Interpretada de tal maneira, a passagem contradiz diretamente o que lemos a respeito da natureza do conatus no escólio da proposição 20 do Livro IV da Ética (nosso o grifo):

[Que] o homem se esforce, por necessidade da sua natureza, por não existir ou por se mudar em outra forma, é tão impossível como que alguma coisa seja produzida do nada.

Afinal, concebêssemos uma criança que, tomada em si mesma, se esforçasse por obter alimento e todas as demais coisas que permitem a perseveração de seu ser, e que, perfeitamente protegida de agentes externos destrutivos, ainda assim crescesse e se desenvolvesse de maneira a ter pouco ou nada em comum com o ser que outrora foi, não tratar-se-ia, em última instância, de um ser dotado de esforço intrínseco de auto-perseveração que termina por descaracterizá-lo? Essa leitura nos permite encontrar determinada propriedade no conatus que, até aqui, não suspeitáramos existir: em seu registro como esforço de aumento de potência, o mesmo pode trazer, a um ser em desenvolvimento, mudanças suficientemente significativas para que as caracterizássemos (plenamente autorizados para tanto, como já vimos, por Espinosa) como formas de destruição. Nesse

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sentido, talvez seja possível encontrarmos um campo de intersecção entre os elementos da antinomia que tanto nos ocupou: falaríamos, então, não de uma pulsão de morte em contínuo antagonismo com pulsões de vida, irreconciliável com um conatus no qual a manutenção estática de proporções de movimento e repouso almeja frustrar alterações de qualquer espécie, mas de um esforço que expressa o ímpeto de auto-perseveração da vida por meio da modificação/destruição parcial da mesma; teríamos, então, uma pulsão de mudança, isto é, aquele esforço natural da coisa por aumentar sua potência que termina por matar aquilo que a coisa precisa, pelo contínuo desabrochar de sua própria natureza, necessariamente deixar de ser, sempre a fim de tornar-se aquilo que, por essa mesma natureza, tem absoluta necessidade de passar a ser.

SPINoZA’S CONATUS AND FrEUD’S TODESTRIEB: AN oNtoLogICAL ANtINomy, or A PUrELy ImAgINAtIVE oNE?

Abstract: Of the many attempts perpetrated within the past nine decades at approximations between Sigmund Freud and Benedictus Spinoza, perhaps none elicits as many problems as a comparison of the concept of conatus – that striving towards self-preservation which, in Spinoza’s Ethics, constitutes the very essence of things – with that impulse towards self-destruction which Freud, in his essay Beyond the Pleasure Principle, calls Todestrieb, or “death drive”. Given an exhaustively positive ontology such as Spinoza’s, in which a thing’s destruction is invariably extrinsic to its constitution, what should one make of Freud’s assertion that a constitutive aspect of a being strives towards that being’s demise? With this question as its starting point, the present paper aims to articulate and contrast the rationale given for both concepts, the better to determine how deep the apparent contradiction runs, and to what extent coexistence between the two positions is untenable.Keywords: Spinoza, Freud, conatus, drive, death.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa, uma filosofia da liberdade. São Paulo: Ed. Moderna, 2005.

2. ______. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

3. DELLA ROCCA, Michael. “Spinoza’s Metaphysical Psychology”. In: The Cambridge Companion to Spinoza, pp. 192-266. Don Garrett, editor. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2006.

4. DEUGD, Cornelis de. “Spinoza and Freud.” In: Ethica IV: Spinoza on Reason and The “Free Man”. Y. Yovel e G. Segal, eds. Nova Iorque: Little Room Press, 2004.

5. ESPINOSA, B. de. Ética. In: Os Pensadores: Espinosa. São Paulo, Ed. Abril, 1979.

6. ______. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.7. FREUD, Sigmund. “Beyond the Pleasure Principle”. In: Volume XVIII (1920-

1922) of The Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud, James Strachey trad. Londres: The Hogarth Press, 1986.

8. ______. “Além do Princípio de Prazer”. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standard Brasileira, Livro XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

9. LEAR, Jonathan. Love and Its Place in Nature. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 1990.

10. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego, Vol. II. Teresa Sobral Cunha, organização e fixação de inéditos. Coimbra: Ed. Presença, 1990.

11. POPPER, K. R. “Science: Conjectures and Refutations”. In: Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge. Routledge, 2003.

12. ROAZEN, Paul. Freud and His Followers. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1975.13. RYCROFT, Charles. A Critical Dictionary of Psychoanalysis. Londres: Penguin,

1995.

NotAS:

1. Proposições 4 e 6 do Livro III da Ética, aqui em tradução de Tomaz Tadeu (2006); ocasionalmente, no presente trabalho, optamos também por empregar a tradução de Joaquim de Carvalho (1979), ambas, portanto, presentes em nossa bibliografia.2. De Além do Princípio do Prazer, capítulo V, §7.

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3. Como nos alerta Paul Roazen (1975, p. 218), o conceito de pulsão de morte com freqüência aparece, no pensamento pós-freudiano com o nome de Thanatos; o termo, entretanto, não aparece na obra de Freud, tendo sido introduzido pelo freudiano ortodoxo Wilhelm Stekel como contraparte simétrica de Eros. No texto que se segue, empregamos liberalmente Todestrieb e Thanatos como possuindo sentido idêntico.4. Talvez ficássemos tentados, aqui, a perpetrar uma aproximação entre os conceitos erótico-libidinais de Freud e o conatus, não nos desautorizasse a tanto a ênfase dada pelo mesmo ao caráter majoritariamente empírico de seu trabalho; nas palavras do autor, “[não] nos interessa investigar até que ponto, estabelecendo o princípio do prazer, nos aproximamos de um sistema filosófico particular... . Chegamos a tais especulações na tentativa de descrever e lidar com os fatos que... observamos cotidianamente.” (Freud 12, cap. I, §2)5. O fato de operarmos, no presente trabalho, com momentos históricos bastante distintos talvez requeira que façamos pequena distinção no que compete ao uso do termo ideia. Passamos a palavra à especialista: “A imagem é um acontecimento subjetivo causado pelo objeto externo que afeta nossos órgãos dos sentidos e nosso cérebro. Por isso indica o que se passa em nós e não a verdadeira natureza da coisa externa. A ideia, ao contrário, é um ato de nosso intelecto que apreende a natureza íntima ou essência de um ser porque conhece sua causa e os nexos que a ligam necessariamente a outras ideias.” (Chauí 1, p. 35) Vemos, portanto, que aquilo a que, em Freud, nos referimos como ideia, aparece em Espinosa como imagem; a ideia espinosana é conceito inteiramente distinto, e sem cognato em Freud.6. O relato se dá entre os parágrafos 4 e 10 do capítulo II da obra analisada.7. A idéia, é claro, foi prontamente atacada e rejeitada como anti-científica; citamos a página 31 de A Critical Dictionary of Psychoanalysis (1995), que exprime bem o consenso a esse respeito: “Nenhuma observação biológica pôde ser encontrada que sustentasse a idéia de um instinto de morte, idéia essa que contradiz todos os princípios da biologia.”8. Ética IV, proposição 67, em tradução de Joaquim de Carvalho (Os Pensadores, Ed. Abril, 1979).9. Fernando Pessoa (como Bernardo Soares), do poema “Marcha Fúnebre para o Rei Luís Segundo da Baviera”, no Livro do Desassossego.10. Compreendemos, aqui, o irracional não como o irracionável, isto é, aquilo que escapa inteiramente à razão e constitui seu contrário, mas como o irracionado, ou seja, como aquele material que pode e deve ser submetido à razão, embora ainda não

o tenha sido. Nesse sentido, vemos como algumas aproximações poderiam ser feitas entre o irracional freudiano e as idéias inadequadas de Espinosa, ambos consistindo em conteúdo psíquico passível de reforma racional que, por meio desta, perde sua capacidade de nos mover à revelia de nossa natureza essencial. Não são conceitos intercambiáveis, entretanto, pelos motivos que julgamos pertinente articular mais abaixo, no corpo do texto.11. Della Rocca, 2006, pp. 192-266.12. Como exemplo mais problemático desse tipo de objeção, sugeriríamos a degradação de certos materiais radioativos; embora não haja espaço no presente trabalho para sua elaboração, nada no problema parece apontar para a necessidade de solução de outra espécie: como no caso da vela, a questão parece depender de a quais elementos damos o nome de “coisa”. Já questões como a existência de doenças auto-imunes, assim como de estruturas auto-limitantes (como os telômeros) na constituição biológica dos seres, parecem mais profundas e complexas, e escapar ainda mais fortemente às limitações do presente texto; abandonamos temporariamente, portanto, a questão, com a intenção de a retomarmos em momento oportuno.13. Freud, 1961, IV, pp. 295 e 333.14. Popper, 2003, §4-11.

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a MortE CoMo transForMaÇão:UMa aProXiMaÇão EntrE DOm QUIxOTE E a

ÉTICA dE EsPinosa

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resumo: Miguel de Cervantes (1547-1616), no último capítulo de sua obra O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, retrata o falecimento de seu protagonista, decorrente de uma profunda tristeza. O cavaleiro, depois de vencido, sente-se obrigado a retornar ao seu povoado e a renunciar à cavalaria andante, o que lhe causa a transformação de sua realidade e de seu estado mental - da loucura à cordura -, além do seu direcionamento à morte. Assim como faz Cervantes no início do século XVII, Espinosa (1632-1677), ao final do mesmo século, também parece estabelecer analogias entre as ideias de transformação e morte, ao apontar, em sua Ética, a relação entre a natureza do ser e sua proporção de movimento e repouso, responsável pelas inconstâncias humanas. A partir de tais considerações, este trabalho pretende aproximar o último capítulo da obra Dom Quixote à proposição 39 da Quarta Parte da Ética espinosana, de forma a ressaltar as devidas semelhanças entre o conceito de morte como transformação, retratado tanto pelo escritor espanhol quanto pelo filósofo holandês, uma vez que a morte, para ambos, demonstra estar vinculada à mesma ideia.Palavras-chave: Miguel de Cervantes; Espinosa; Dom Quixote; Morte; Transformação.

“Como las cosas humanas no sean eternas, yendo siempre en declinación de sus principios hasta llegar a su último fin” (Cervantes 5, p.1099), Miguel de Cervantes (1547-1616), no último capítulo de Dom Quixote, retrata a morte de seu protagonista. A personagem cervantina, após ser derrotada pelo Cavaleiro da Branca Lua no capítulo LXIV da obra de 1615, opta por cumprir, honradamente, com a exigência imposta pelo

* Graduanda do Departamento de Filosofia da USP.

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vencedor: voltar ao seu povoado de La Mancha e renunciar à cavalaria andante. Seu retorno, no entanto, não o transforma somente em um jubilado paladino, mas lhe proporciona a negação de uma personalidade cavaleiresca, o auto-reconhecimento de si como o fidalgo Alonso Quijano e o recobramento de sua cordura. Não obstante, este conjunto metamorfósico, aparentemente singular à personagem, parece ser a causa de seu falecimento no final da narrativa.

A filosofia do século XVII, mais precisamente a obra de Baruch de Espinosa (1632-1677), parece desenredar a suposta contradição presente na narrativa de Cervantes, estabelecendo analogias entre as ideias de transformação e morte. Em sua obra intitulada Ética, Espinosa trabalha os conceitos de bondade e maldade, perfeito e imperfeito - “tesis de la metafísica de las costumbres” (Bennet 3, p.13) -, e demonstra como tais temas não possuem relação inerente com o mundo. Além disso, explica questões como a existência de Deus, a natureza e a potência da mente humana e dos afetos. Em meio a estes conceitos, o filósofo também estabelece relação entre a natureza do ser e sua proporção de movimento e repouso, responsável por possíveis transformações humanas, corporais e essenciais. A partir de tais considerações, o presente trabalho objetiva aproximar o último capítulo da obra Dom Quixote de La Mancha à proposição 39 da Quarta Parte da Ética espinosana, de modo a sobrelevar as devidas similitudes entre o conceito de morte como transformação, retratado tanto pelo escritor espanhol, Miguel de Cervantes, no início do século XVII, como pelo filósofo holandês, Baruch de Espinosa, no final do mesmo século.

o porvir do engenhoso Dom Quixote de La mancha

Considerado o primeiro romance moderno1 e dividido em duas partes - a primeira, publicada em 1605, e a segunda, em 1615 -, Dom Quixote

narra a história do fidalgo manchego Alonso Quijano, um aficionado das obras de cavalarias. Segundo a voz do narrador, em consequência “del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro [ao fidalgo] de manera que vino a perder el juicio” (Cervantes 5, p.29-30). Imerso em uma suposta insanidade, devido às inúmeras leituras de entretenimento vinculadas ao deleite e desprovidas de valor didático,2 Alonso Quijano imagina-se um valoroso cavaleiro, capaz de “enderezar tuertos” e “deshacer agravios”, de forma similar ao que ocorria nas páginas de Amadís de Gaula, Don Belianís de Grécia ou em Palmerín de Inglaterra.3

En efeto, rematado ya su juicio, vino a dar en el más estraño pensamiento que jamás dio loco en el mundo, y fue que le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante y irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído que los caballeros andantes se ejercitaban, deshaciendo todo género de agravio y poniéndose en ocasiones y peligros donde, acabándolos, cobrase eterno nombre y fama. Imaginábase el pobre ya coronado por el valor de su brazo, por lo menos del imperio de Trapisonda; y así, con estos tan agradables pensamientos, llevado del estraño gusto que en ellos sentía, se dio priesa a poner en efeto lo que deseaba. (Cervantes 5, p.30-31)

Cervantes desenreda o porvir de seu protagonista, anunciado desde o prólogo da Segunda parte da obra, nos capítulos finais da publicação de 1615. Antes, porém, descreve inúmeras batalhas e aventuras desafortunadas do cavaleiro de La Mancha, engendradas, em grande parte, pela própria imaginação de Dom Quixote. Este, no desenlace da obra, converte-se em perdedor da forjada luta em Barcelona contra o Cavaleiro da Branca Lua, ou o “bachiller” Sansón Carrasco, que se traveste de cavaleiro andante na tentativa

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de promover a retirada do fidalgo por um ano das atividades cavaleirescas e seu retorno à casa. Sobre isso, Eduardo Castillo comenta que:

La vuelta de don Quijote a la razón [...] empezó en Barcelona, en el instante en que fue vencido – él, el invicto – por el contrahecho Caballero de la Blanca Luna, y con la imposibilidad de tomar armas en un año, que resultara de ese vencimiento. Cuán triste es el retorno del hidalgo a su aldea, esa aldea gris y tediosa que Cervantes se abstuvo de nombrar en su libro para no inmortalizarla. Maltraído, mohino y con el alma llena de inifito desánimo, va el caballero al lento paso de su rocín, tan viejo y cansado como su dueño. (Castillo 4, p.1243)

Dom Quixote, a partir de sua derrota, desfalece-se, sofrendo de calenturas que o deixam seis dias acamado, “ya fuese de la melancolía que le causaba el verse vencido o ya por la disposición del cielo, que así lo ordenaba” (Cervantes 5, p.1099). Diante de seu estado, o médico orienta o cuidado com a alma do enfermo, uma vez que seu corpo já se mostra irreversivelmente comprometido. Enfermo, acamado e vivenciando seus últimos momentos de vida, o vencido cavaleiro manifesta-se, anunciando uma sensatez, em detrimento da até então loucura que o atingia:

—¡Bendito sea el poderoso Dios, que tanto bien me ha hecho! En fin, sus misericordias no tienen límite, ni las abrevian ni impiden los pecados de los hombres. [...] Yo tengo juicio ya libre y claro, sin las sombras caliginosas de la ignorancia que sobre él me pusieron mi amarga y continua leyenda de los detestables libros de las caballerías. Ya conozco sus disparates y sus embelecos, y no me pesa sino que este desengaño ha llegado tan tarde, que no me deja tiempo para hacer alguna recompensa leyendo otros que sean luz del alma. Yo me siento, sobrina, a punto de

muerte: querría hacerla de tal modo, que diese a entender que no había sido mi vida tan mala, que dejase renombre de loco; que, puesto que lo he sido, no querría confirmar esta verdad en mi muerte. [...] Dadme albricias, buenos señores, de que ya yo no soy don Quijote de la Mancha, sino Alonso Quijano, a quien mis costumbres me dieron renombre de “bueno”. Ya soy enemigo de Amadís de Gaula y de toda la infinita caterva de su linaje; ya me son odiosas todas las historias profanas de la andante caballería; ya conozco mi necedad y el peligro en que me pusieron haberlas leído; ya, por misericordia de Dios escarmentando en cabeza propia, las abomino. (Cervantes 5, 1100-1101)

O Cavaleiro da Triste Figura, ou dos Leões - epítetos quixotescos

que surgem no decorrer da obra – declara, ao final de sua história, a reconquista da consciência. Sentindo-se com o juízo “libre y claro” e a poucos passos da morte, considera seus anteriormente estimados livros de cavalarias leituras desprezíveis. Ressente-se, além disso, pela imagem de louco que alimentou até aquele momento e assume abominar as histórias de Amadís e de outros similares. Segundo as palavras do eclesiástico, seu amigo, “verdaderamente se muere y verdaderamente está cuerdo Alonso Quijano el Bueno” (Cervantes 5, p.1100-1101), ideia que parece unificar a transformação da personagem em um homem lúcido à sua morte.

Ética espinosana e narrativa cervantina: relação entre transformação e morte

De acordo com a Ética de Espinosa, o corpo e a mente podem ser afetados de várias maneiras, o que lhes propicia um aumento ou uma diminuição da potência de agir e pensar: “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou

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diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente”(Spinoza 11, p.106). No caso da personagem de Cervantes, a sua mente mostra-se afetada por histórias de cavalarias, responsáveis por lhe proporcionar uma maior potência de agir e pensar e por converter Alonso Quijano em um cavaleiro andante. Os livros de cavalarias demonstram oferecer à mente do fidalgo a possibilidade de imaginar os elementos cavaleirescos que figuram em suas páginas e de substituir a realidade pela fantasia. Espinosa complementa que “a mente esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir do corpo” (Spinoza 11, p.108), sendo estas, relacionadas à leitura de entretenimento, o que mais incentiva a potência de atuação de Dom Quixote.

Durante todo o tempo em que o corpo humano estiver afetado de uma maneira que envolva a natureza de algum corpo exterior, a mente humana considerará esse corpo como presente e, consequentemente, durante todo o tempo em que a mente humana considerar um corpo exterior como presente, isto é, durante o tempo em que o imaginar, o corpo humano estará afetado de uma maneira que envolve a natureza desse corpo exterior. E, portanto, durante todo o tempo em que a mente imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir de nosso corpo, o corpo estará afetado de maneiras que aumentam ou estimulam sua potência de agir e, consequentemente, durante esse tempo, a potência de pensar da mente é aumentada ou estimulada. Logo, a mente esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar essas coisas. (Spinoza 11, p.108)

A identidade do cavaleiro de La Mancha parece contribuir para a alegria da personagem Alonso Quijano. Segundo o filósofo seiscentista, a alegria, “uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior” (Spinoza 11, p.108), compõe o grupo dos afetos primitivos, juntamente com a tristeza e o desejo. É esta “passagem do homem de uma perfeição

menor para uma maior” (Spinoza 11, p.141) que responde pelo aumento da potência do conatus da personagem; em outras palavras, pelo incremento do desejo de preservação do cavaleiro.4 Dom Quixote não faz uso de sua razão para se transformar em um cavaleiro; se assim fosse, não escolheria sê-lo, já que não existem cavaleiros andantes em seu entorno. Não é a racionalidade (afeto ativo) que empurra Dom Quixote em direção ao mundo cavaleiresco, mas sua imaginação (afeto passivo).5 Esta não responde por qualquer alteração na coerência de seu pensamento; para o “louco lúcido” (Vieira 12), a imaginação parece reforçar suas ideias, tidas como adequadas, pelo protagonista cervantino, e como inadequadas, por aqueles que o circundam.6

A personagem de Cervantes passa por uma primeira transformação: converte-se de Alonso Quijano em Dom Quixote no início da narrativa. Esta metamorfose inicial pode ser, em certo sentido, interpretada como a primeira morte do protagonista: Alonso Quijano morre, deixando, em seu lugar, Dom Quixote. No entanto, a passagem da vida para a morte, aqui ressaltada, parece assegurar alegria ao Cavaleiro da Triste Figura, aumentando, com isso, sua potência de agir. E, por proporcionar alegria e ampliar sua potência, a primeira transformação da personagem poderia se conectar muito mais ao nascer do que, propriamente, ao morrer:

Eso es nacer. Nazco cuando una infinidad de partes extensivas están determinadas desde afuera para el encuentro con otras partes que entraron en una relación que es la mía, que me caracteriza. En ese momento, tengo una relación con un cierto tiempo y un cierto lugar”. (Deleuze 8, p.139)

Contudo, o afeto da alegria passa a ser substituído, ao final da narrativa, pelo da tristeza, devido ao fracasso ou à impotência7 de Dom Quixote e à obrigação moral que sente o paladino em ter que abandonar

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a cavalaria andante. Definida como “a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor” (Spinoza 11, p.134), a tristeza acomete o protagonista quando este percebe que aquilo que mais ama – atuar como um cavaleiro andante, desfazendo “tuertos” e injustiças – é desfeito, uma vez que, explica Espinosa, “quem imagina que aquilo que ama é destruído se entristecerá...”(Spinoza 11, p.134).

A mente se esforça, tanto quanto pode, por imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir do corpo, isto é, aquelas coisas que ama. Ora, a imaginação é estimulada por aquilo que põe a existência da coisa e, inversamente, é refreada por aquilo que a exclui. Portanto, as imagens das coisas que põem a existência da coisa amada estimulam o esforço pelo qual a mente se esforça por imaginá-la, isto é, afetam a mente de alegria. E, inversamente, as coisas que excluem a existência da coisa amada refreiam esse esforço da mente, isto é, afetam a mente de tristeza.(Spinoza 11, p.113)

O filósofo explica que a tristeza contribui para a diminuição da potência de agir do homem, ou seja, do “esforço pelo qual o homem se esforça por preservar em seu ser. Portanto, ela é contrária a esse esforço; e tudo pelo qual se esforça o homem afetado de tristeza é por afastá-la” (Spinoza 11, p.123). No caso de Dom Quixote, a derrota sofrida na batalha contra o Cavaleiro da Branca Lua obriga-o a se distanciar da cavalaria andante por, no mínimo, um ano. Não há como lutar contra esta determinação, uma vez que a honra cavaleiresca, o principal valor de um cavaleiro, está em jogo. O que resta, para Dom Quixote, é escolher entre a antiga vida de Alonso Quijano, “un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor” (Cervantes 5, p.27), ou abdicar desta.

Diante da impossibilidade de viver como um cavaleiro andante, Dom Quixote adoece, melancólico; recobra sua sanidade mental e, concomitantemente, opta pela retomada de sua antiga identidade fidalga. Ambos estados mostram-se vinculados: saúde, loucura e fantasia; doença, sensatez e realidade. Não é apenas a tristeza que acomete a personagem, mas a tristeza integral ou a melancolia: “Fue el parecer del médico que melancolías y desabrimientos le acababan”(Cervantes 5, p.1099). Trata-se de uma nova transformação, de Dom Quixote em Alonso Quijano e, paralelamente, uma mudança da loucura e vida para a cordura e morte:

—¡Ay! — respondió Sancho llorando —. No se muera vuestra merced, señor mío, sino tome mi consejo y viva muchos años, porque la mayor locura que puede hacer un hombre en esta vida es dejarse morir sin más ni más, sin que nadie le mate ni otras manos le acaben que las de la melancolía.

Em sua Ética, Espinosa concebe a ideia, ilustrada anos antes nas páginas cervantinas, de transformação como morte. Na Parte IV de sua obra,8 mais precisamente no escólio relacionado à proposição 39, o filósofo aponta:

[...] deve-se observar, entretanto, que compreendo que a morte do corpo sobrevém quando suas partes se dispõem de uma maneira tal que adquirem, entre si, outra proporção entre movimento e repouso. Pois não ouso negar que o corpo humano, ainda que mantenha a circulação sanguínea e outras coisas, em função das quais se julga que ele ainda vive, pode, não obstante, ter sua natureza transformada em outra inteiramente diferente da sua. Com efeito, nenhuma razão me obriga a afirmar que o corpo não morre a não ser quando se transforma em cadáver. Na verdade, a própria experiência parece sugerir o contrário. Pois ocorre que um homem passa, às vezes, por transformações tais que não seria fácil dizer que ele é o mesmo. (Spinoza 11, p.184)

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Se pensarmos nas diversas partes que compõem um corpo, é possível conceber a ideia de sobrevivência conectada ao movimento e ao repouso como algo mais fisiológico e anatômico; é preciso que haja esta harmonia proporcional entre o movimento e o repouso das partes para garantir a organização e o funcionamento do corpo. Não obstante, faz-se possível transladar o mesmo conceito de funcionamento do corpo para a personagem de Cervantes. As partes do corpo em perfeita harmonia, no que se refere à proporção de movimento e repouso, vinculam-se à personagem Dom Quixote de La Mancha. Já o desequilíbrio fisiológico é simbolizado por Alonso Quijano. A atuação como um cavaleiro andante, aparentemente demente, é o que garante a harmonia corporal necessária e a ação de Dom Quixote. O contrário, entretanto, desestabiliza esta relação e o transfigura. Não por acaso o título do livro de Cervantes traz El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha, com o intuito de demonstrar a essência do protagonista: “ingenium”, em um sentido de “temperamento o el ‘natural’ de un individuo”, “las cualidades del espíritu por oposición a las del cuerpo”, “ el genio”, “las capacidades creadores que desbordan al entendimiento solo” etc.9 A natureza de tal ser parece estar conectada à sua versão quixotesca, e não “alonsoquijanesca”.10 E a transformação que ocorre a Dom Quixote, essas transformações pelas quais o homem, segundo Espinosa, às vezes passa e que o obriga a abandonar sua natureza, não se diferencia de sua própria morte.

Isto é o que parece ocorrer ao protagonista cervantino. Dom Quixote morre no momento em que deixa de atuar como um cavaleiro andante, na praia, em Barcelona. Deixa de viver no instante em que se vê obrigado a abnegar o que acredita ser um princípio de vida, que consiste em lutar pelos necessitados e pela justiça sob os valores da cavalaria andante. Morre quando perde a loucura que lhe assegura agir como cavaleiro e quando adquire a sanidade, que lhe empurra a uma realidade que não lhe condiz:

aquela que existe fora dos livros, da imaginação e, consequentemente, que não representa a sua natureza. Gilles Deleuze explica o significado de morte para Espinosa: “quiere decir que las partes que me pertenecen bajo tal o cual relación están determinadas desde afuera a entrar bajo otra relación que no me caracteriza, sino que caracteriza a otra cosa” (Deleuze 8, p.134). Voltar a atuar como o fidalgo Quijano, distante do modelo cavaleiresco de vida descrito nos livros de Amadís, não parece caracterizar o Cavaleiro de La Mancha. Tal atuação altera a proporção entre movimento e repouso – “esas alteraciones en el espacio que pueden conceptualizarse, un nivel más arriba, como movimiento de las cosas en el espacio” -,11 modificando o corpo a ponto de amortecê-lo. De acordo com Espinosa,

[...] aquilo que faz com que as partes do corpo humano adquiram, entre si, outra proporção entre movimento e repouso, também faz com que esse corpo assuma outra forma; isto é, faz com que o corpo humano seja destruído e, consequentemente, que se torne inteiramente incapaz de poder ser afetado de muitas maneiras; e é, portanto, mau. (Spinoza 11, p.183)

Dessa forma, o filósofo admite não ser necessário diagnosticar a morte, considerando os sinais vitais do corpo, para reconhecê-la. Esta se revela no momento em que há uma transformação, em que existe uma mudança proporcional relacionada ao movimento e ao repouso do corpo, adulterando, assim, sua natureza. Para Pierre-François Moreau, “cada individuo está determinado por una cierta proporción de movimiento y reposo. Esta proporción podría ser entendida por un entendimiento infinito, que dominase el sistema de todas las leyes por las que un individuo complejo está constituido”. Em outras palavras, trata-se dos “rasgos del espíritu” do ser.12 Cervantes opta por ilustrar a transformação da personagem, ou a

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alteração dos traços de seu espírito, que ocorre desde o fim da batalha em Barcelona, com o falecimento de Alonso Quijano. Alonso não é o mesmo depois da luta contra o Cavaleiro da Branca Lua e do compromisso que aceita de abandonar a cavalaria andante. “Tal como ouvi contarem de um poeta espanhol, que fora atingido por uma doença e que, embora dela tenha se curado, esquece-se, entretanto, de tal forma da sua vida passada que acreditava que não eram suas as comédias e tragédias que havia escrito” (Spinoza 11, p.184), exemplifica Espinosa, a partir de um comentário que apresenta identificações com Cervantes e com suas criações.

Considerações finais

A morte, tanto para o escritor espanhol, quanto para o filósofo, está vinculada à ideia de transformação. Para Cervantes, a transformação de Dom Quixote em Alonso Quijano é o que impede a personagem de continuar viva, já que modifica sua natureza e extingue sua vontade de existir. Dom Quixote, afetado passivamente pelas histórias de cavalarias, perde sua potência ao apresentar sua natureza cavaleiresca modificada à de fidalgo.13 Como afirma Iris Zavala, “a Don Quijote lo mueve el deseo, es el deseo en acto; y no cede... el ceder lleva al melancólico Caballero a la muerte” (Zavala 13, p.8). Para Espinosa, neste mesmo sentido, a mente é refreada no momento em que perde aquilo que ama e, conseguintemente, é afetada por tristeza (Spinoza 11, p112). Tal afeto é capaz de reprimir a potência de existir do ser (conatus) (Spinoza 11, p.123) e, “quando a mente imagina sua impotência, ela se entristece” (Spinoza 11, p.134). De maneira similar ao que ocorre na obra cervantina, a metamorfose concebida por Espinosa representa o próprio exício, pois a essência do ser - “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por preservar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” (Spinoza 11, p.105) - altera-se, de modo a impedir que

o indivíduo anterior à transformação e posterior a ela sejam identificados como o mesmo. Cervantes e Espinosa, assim, parecem compartilhar de um pensamento similar, seguramente propício em sua época e contextos. Neste sentido, entende-se que não somente a filosofia se apresenta à ficção, mas que literatura, a partir de um poder influenciador e determinante que transpassa os limites livrescos atua, em certa medida, para a constituição do pensamento filosófico. Pelo caminho da transformação e morte, chega-se ao fim a história do engenhoso fidalgo Dom Quixote, que falece por não conseguir “afirmar sus propios ideales, el propio proyecto, frente a la realidad”.14 E, chega-se ao fim, aqui, este trabalho.

En fin, llegó el último de don Quijote, después de recebidos todos los sacramentos y después de haber abominado con muchas y eficaces razones de los libros de caballerías. Hallóse el escribano presente y dijo que nunca había leído en ningún libro de caballerías que algún caballero andante hubiese muerto en su lecho tan sosegadamente y tan cristiano como don Quijote; el cual, entre compasiones y lágrimas de los que allí se hallaron, dio su espíritu, quiero decir que se murió.Viendo lo cual el cura, pidió al escribano le diese por testimonio como Alonso Quijano el Bueno, llamado comúnmente “don Quijote de la Mancha”, había pasado desta presente vida y muerto naturalmente; y que el tal testimonio pedía para quitar la ocasión de que algún otro autor que Cide Hamete Benengeli le resucitase falsamente y hiciese inacabables historias de sus hazañas. (Cervantes 5, p.1104)

DEAtH AS A trANSFormAtIoN: AN APProACH BEtwEEN DON QUIxOTE AND SPINoZA’S EThICS

Abstract: Miguel de Cervantes (1547-1616), in the last chapter of his book Don Quixote, describes the death of his protagonist caused by the character’s profound sadness. The knight, after being defeated, feels obliged to return to their village and renounce

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chivalry. The regression for him causes a deep transformation of his reality and his mental state - the sanity of madness – beyond his approximation to his own eternal rest. As Cervantes, the same turning point is seen in Spinoza (1632-1677) at the end of the century. By analogies with transformation and death, the philosopher emphasizes in his Ethics the relationship between the nature of being and its proportion of motion and rest, responsible for human metamorphoses. Based on these considerations, this paper intends to point out the last chapter of the work Don Quixote in connection with the 39th proposition, Part IV of the Ethics written by Spinoza. Similarities involving the concept of death as transformation have been highlighted in both the Spanish writer and the Dutch thinker, since death for both is intimately related.Keywords: Miguel de Cervantes; Spinoza; Don Quixote; Death; Transformation.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. ALADRO, J. La muerte de Alonso Quijano, un adiós literario. Anales cervantinos. Vol. XXXVII. CSIC, 2005, pp. 179-190. Disponível em: http://analescervantinos.revistas.csic.es/index.php/analescervantinos/issue/view/5. Acesso em: 05/07/2012.

2. BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

3. BENNETT, J. Un estudio de la Ética de Spinoza. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.

4. CASTILLO, E. La muerte de Don Quijote. Senderos. Revista de la Biblioteca Nacional de Colombia. Volume 9. Número 33. Biblioteca Nacional de Colombia, 1998, pp. 1240-1243. Disponível em: http://www.bibliotecanacional.gov.co/revistas/index.php/senderos/article/view/496 Acesso em: 02/07/2012.

5. CERVANTES, M. Don Quijote de La Mancha. Edición del IV Centenario. Real Academia Española. São Paulo: Prol Gráfica, 2004.

6. CERVANTES, M. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. Barcelona: Instituto Cervantes / Crítica, 1998. Disponível em: http://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte2/cap74/nota_cap_74.htm. Acesso em: 02/07/2012.

7. CHAUÍ, M. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

8. DELEUZE, D. En medio de Spinoza. Buenos Aires: Cactus, 2006.

9. DOMÍNGUEZ, A. Spinoza y España: actas del Congreso Internacional sobre “Relaciones entre Spinoza y España”. Cuenca: Universidad Castilla-La Mancha, 1994.

10. RAMOS-ALARCÓN MARCÍN, L. El concepto de ingenium en la obra de Spinoza: análisis ontológico, epistemológico, ético y político. Tese de doutorado. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2008.

11. SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

12. VIEIRA, M. A. da C. Louco lúcido: Dom Quixote e o Cavaleiro do Verde Gabão. Revista USP. Número 67. São Paulo: USP, 2005, pp.282-293.

13. ZAVALA, I. M. Don Quijote y el deseo: Cervantes y Espinoza. Disponível em: http://www.letraypixel.com/blog/author/iris-m-zavala. Acesso em: 05/07/2012.

NotAS:

1. Walter Benjamin comenta, em “O Narrador”, que “se o modelo perfeito mais remoto do romance é o Dom Quixote, talvez o mais recente seja Education Sentimentale”. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. 2, p. 68.2. A literatura considerada superior, no século XVII, respeitava o preceito horaciano de deleitar e ensinar, conjuntamente. No caso dos livros de cavalarias, eram obras vistas como inferiores, inverossímeis e, por isso, consideradas vulgares. Cervantes demonstra a escassez artística da obra pela loucura de um assíduo leitor deste gênero literário. 3. De acordo com, Bruce W. Wardropper “al comienzo de la novela, Alonso Quijano, de cuyo nombre no querían acordarse sus vecinos, enloqueció; la historia de DQ es la de un loco; es preciso, pues, que termine con la recuperación de su juicio y... de la identidad subsumida en el nombre Alonso Quijano el Bueno.”. In: CERVANTES 6. 4. Marilena Chauí explica que “conatus é o esforço que uma coisa singular realiza para permanecer no seu ser (no corpo, são os movimentos ou afecções internos e externos; na mente, o esforço para conhecer; os dois esforços são inseparáveis e constituem a essência atual de um ser humano)”. In: CHAUÍ 7, p. 340. 5. De certa forma, trata-se de uma personagem impotente para regular seus afetos; são eles, ao contrário, que o determinam. Espinosa denomina tal situação como “servidão”, já que “o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que

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perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior”. In: SPINOZA 11, p. 155.6. “Por ideia adequada compreendo uma ideia que, enquanto considerada em si mesma, sem relação com o objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira” (SPINOZA 11, p. 51). Marilena Chauí explica que “uma ideia inadequada é uma imagem que a mente forma sobre seu corpo e sobre os corpos exteriores interpretando as afecções corporais. Isso significa que a mente conhece seu corpo através das imagens da ação de outros corpos sobre ele e conhece estes últimos pelas imagens das ações de seu corpo sobre eles; portanto, não conhece verdadeiramente as causas dessas ações nem conhece a essência de seu corpo próprio e as dos corpos exteriores, nem a sua própria essência. Uma ideia adequada é um conceito que, a partir de si mesma e de sua força inata para pensar, a mente forma de seu corpo e de corpos exteriores, bem como de si mesma conhecendo a causa ou razão necessária da essência e existência dele e de si mesma, e as causas necessárias das essências e existências dos corpos exteriores, bem como as causas das relações e conexões necessárias entre seu corpo e os corpos exteriores e entre estes últimos na ordem necessária da Natureza”. (CHAUÍ 7, p. 340-341).7. “Quando a mente imagina sua impotência, por isso mesmo, ela se entristece”. (SPINOZA 11, p. 134).8. Marilena Chauí aponta que, na Parte IV da Ética, “há um vaivém incessante entre paixão e ação, imaginação e razão, ação e paixão, razão e imaginação”, informação que se relaciona à personagem cervantina e seu estado entre razão e imaginação. (CHAUÍ 7, p. 202).9. MOREAU, P. F. Spinoza y Huarte de San Juan. In DOMÍNGUEZ 9, p. 157. De acordo com Luis Ramos-Alarcón Marcín, “Autores como Huarte de San Juan16, Vives, Gracián y Cervantes lo utilizan como «[…] asidero de su reflexión sobre la diferencia individual»17, en donde expresa la capacidad productiva y creativa innata del ser humano que le permite tener una segunda naturaleza, es decir, transformar lo dado y superarlo. Como veremos a continuación, el concepto spinoziano aprovecha este sentido pero, en lugar de que el origen identificado por el ingenio esté en la naturaleza, estará en la costumbre con la que ha sido afectado un cuerpo humano en particular.” (RAMOS-ALARCÓN MARCÍN 10, p. 68). 10. “Spinoza está incontestablemente más próximo a la tradición de Huarte [de San Juan]. En éste, la noción de ingenio interviene para explicar por qué, siendo así que todas las almas son iguales, los individuos y las naciones tienen capacidades tan diversas, tanto para el saber como para las actividades práticas. La diversidad

de los ingenios se asienta, a su vez, en la de las disposiciones del cuerpo – es decir, de las maneras irreducibles en que la Naturaleza ha aplicado sus propias leyes en cada individuo singular. Lo que en Huarte remite a la mezcla de los cuatro humores, supone, en Spinoza, una ecuación en términos de reposo y movimiento”. (MOREAU, P. F. Op. cit., In DOMINGUEZ 9, p. 158). 11. Segundo Jonathan Bennett, a frase de Espinosa “la misma proporción de movimiento y reposo” é abstrata e pouco determinada: “él sostiene que los conceptos de movimiento y de reposo generan toda la diversidad en el mundo extenso. Conforme a determinada interpretación, esto puede ser correcto; conforme a otra, puede no serlo”. (BENNETT 3, p. 112-114).12. MOREAU, P. F. Spinoza y Huarte de San Juan. In DOMÍNGUEZ 9, p. 158.13. Como afirma Deleuze, “siendo que usted ha tenido en la mayoría de su existencia ideias inadecuadas y afectos pasivos, lo que muere cuando usted muere es, relativamente, la mayor parte de usted mismo; proporcionalmente, muere su parte más grande”. (DELEUZE 8, p. 145). “Una vez más, ¿qué es la muerte? Es el hecho que Spinoza llamará necesario en el sentido inevitable de que las partes que me pertenecem bajo una de mis relaciones características dejen de pertenecerme y entren bajo otra relación que caracteriza a otros cuerpos. Es inevitable en virtud de la ley de la existencia misma. Una esencia encontrará siempre, bajo las condiciones de existencia, otra más fuerte que destruye la pertenencia de las partes extensivas a la primera esencia.”. (Ibidem, p. 141).14. RODRÍGUEZ PANIAGUA, J. M. Spinoza y las “Meditaciones del Quijote” de Ortega y Gasset. In DOMÍNGUEZ 9, p. 283.

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ProêMio sobrE a intErPrEtaÇão da natUrEZa - FranCis baCon*

O Proêmio sobre a interpretação da natureza é uma das muitas apresentações de seu grandioso projeto de renovação dos saberes que Francis Bacon preparou ao longo da vida e cuja versão mais elaborada, embora inconclusa, surgiu em 1620 no volume da Grande instauração. Um entre vários, esse esboço porta contudo uma singularidade notável. Como observa Sppeding ao prefaciar o texto na grande edição dos trabalhos de Bacon, trata-se da “única peça de autobiografia” redigida pelo filósofo; preocupação que não o ocupará em 1620, quando um discreto “de nós mesmos silenciamos” toma o lugar da apresentação da própria vida. Não se sabe ao certo a data do escrito, mas se costuma datá-lo de 1603, por uma série de razões e conjecturas que o leitor encontrará indicadas no mencionado prefácio de Sppeding.

A tradução que se segue tomou por base o texto latino (aqui retomado) fornecido em The Works of Francis Bacon, ed. de James Spedding, Robert Leslie Ellis e Douglas Denon Heath, Stuttgart, Friedrich Frommann, 1966, vol. III, pp. 518-520. Foi-nos extremamente útil, para confronto e o estabelecimento de parágrafos inexistentes no original, a tradução de Paolo Rossi em Bacon, Scritti filosofici, Turim, UTET, 2009.

* Tradução de Homero Santiago

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DE INtErPrEtAtIoNE NAtUrÆ ProŒmIUm

ProêmIo SoBrE AINtErPrEtAção DA NAtUrEZA

Ego cum me ad utilitates humanas natum existimarem, et curam reipublicæ inter ea esse quæ publici sunt juris et velut undam aut auram omnibus patere interpretarer; et quid hominibus maxime conducere posset quæsivi, et ad quid ipse a natura optime factus essem deliberavi. Inveni autem nil tanti esse erga genus humanum meriti, quam novarum rerum et artium, quibus hominum vita excolatur, inventionem et auctoramentum. Nam et priscis temporibus, apud homines rudes, rudium rerum inventores et monstratores consecratos fuisse, et in deorum numerum optatos, animadverti; et acta heroum, qui vel urbes condiderunt, vel legumlatores extiterunt, vel justa imperia exercuerunt, vel injustas dominationes debellarunt, locorum et temporum angustiis circumscripta esse notavi: rerum autem inventionem, licet minoris pompæ sit res, ad universalitatis et æternitatis rationem magis accomodatam esse censui. Ante omnia vero, si quis non particulare aliquod inventum, licet magnæ utilitatis, eruat, sed in natura lumen accendat, quod ortu ipso oras rerum quæ res jam inventas contingunt illustret, dein paulo post elevatum abstrusissima quæque patefaciat et in conspectum det, is mihi humani in universum imperii propagator, libertatis vindex, necessitatum expugnator visus est.

Eu, estimando-me nascido para a utilidade humana e interpretando o cuidado do bem público estar entre as ocupações que são de domínio público e abertas a todos, como a água e o ar, indaguei o que poderia mais convir aos homens e também deliberei sobre a que eu próprio tinha sido por natureza feito.

Descobri então que, no concernente ao gênero humano, nada é de tanto mérito quanto a descoberta1 e o aperfeiçoamento de novas coisas e artes, pelas quais a vida dos homens é aprimorada. Pois reparei que nos tempos primitivos, entre homens rudes, descobridores e inventores de coisas rudes eram consagrados e incluídos entre os deuses; notei também que os atos dos heróis, os que ou fundaram cidades, ou foram legisladores, ou exerceram o poder com justiça, ou debelaram dominações injustas, estavam circunscritos em estreitos limites de lugares e de tempos; por outro lado, avaliei que a descoberta das coisas, embora algo de menor pompa, era mais apropriada à universalidade e eternidade. E principalmente, no caso caso alguém, em vez de estabelecer uma descoberta particular, ainda que de grande utilidade, acender na natureza uma luz que pelo próprio surgir ilumine as regiões das coisas que são contíguas às coisas já descobertas e que em seguida, pouco depois de elevada, igualmente torne patentes as coisas mais remotas e as dê à vista, este me parecerá o propagador do domínio humano sobre o universo, o defensor da liberdade, o expugnador das necessidades.

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Me ipsum autem ad veritatis contemplationes, quam ad alia, magis fabrefactum deprehendi; ut qui mentem et ad rerum similitudinem (quod maximum est) agnoscendam satis mobilem, et ad differentiarum subtilitates observandas satis fixam et intentam haberem; qui et quærendi desiderium, et dubitandi patientiam, et meditandi voluptatem, et asserendi cunctationem, et resipiscendi facilitatem, et disponendi sollicitudinem tenerem; quique nec novitatem affectarem, nec antiquitatem admirarer, et omnem imposturam odissem. Quare naturam meam cum veritate quandam familiaritatem et cognationem habere judicavi. Attamen cum genere et educatione rebus civilibus imbutus essem, et opinionibus aliquando, utpote adolescens, labefactarer, et patriæ me aliquid peculiare, quod non ad omnes alias partes ex æquo pertineat, debere putarem, speraremque me, si gradum aliquem honestum in republica obtinerem, majore ingenii et industriæ subsidio quæ destinaveram perfecturum; et artes civiles didici, et qua debui modestia amicis meis, qui aliquid possent, salva ingenuitate me commendavi. Accessit et illud, quod ista, qualiacunque sint, non ultra hujusce mortalis vitæ conditionem et culturam penetrant; subiit vero spes me natum religionis statu haud admodum prospero, posse, si civilia munia obirem, et aliquid ad animarum salutem boni procurare. Sed cum studium meum ambitioni deputaretur, et ætas jam consisteret, ac valetudo affecta et malæ tarditatis meæ me admoneret, et subinde reputarem me officio meo nullo modo satisfacere, cum ea per quæ ipse hominibus per me prodesse possem omitterem, et ad ea quæ ex alieno arbitrio penderent me applicarem; ab illis cogitationibus me prorsus alienavi, et in hoc opus ex priore decreto me totum recepi.

Quanto a mim mesmo, depreendi-me produzido mais para a contemplação da verdade que para outras ocupações; pois que tinha mente assaz ágil para reconhecer a semelhança das coisas (o que é o capital) e assaz firme e atenta para observar as sutilezas das diferenças; possuía desejo de indagar, paciência de duvidar, volúpia em meditar, receio em asserir, facilidade em reconsiderar, solicitude em ordenar; além do que nem me afeiçoasse à novidade nem admirasse a antiguidade, e odiasse toda impostura. Por isso julguei que minha natureza tinha certa familiaridade e consonância com a verdade.

No entanto, como por nascimento e educação fora imbuído nos assuntos civis e vez por outra (como é natural a um jovem) fosse abalado pelas opiniões, e pensasse dever à pátria algo particular, que de direito não concernia a quaisquer outros países, além do que tinha eu esperança de, se obtivesse um posto honesto no Estado, realizar com a ajuda de maior engenho e indústria aquilo que destinara; estudei as artes civis, recomendei-me, com a devida modéstia e preservada a honra, àqueles dentre meus amigos que pudessem algo. Somava-se ainda o fato de isso, seja como for, não ultrapassar a condição e a cultura desta vida mortal; veio decerto a esperança (tendo eu nascido em período não muito próspero para a religião) de também poder oferecer algo de bom para a salvação das almas, caso alcançasse um cargo público.

Porém, como meu zelo se visse desbastado por ambição, a idade já avançasse, a saúde enfraquecida me advertisse de minha má protelação, e de repente me desse conta de que eu de modo algum satisfaria ao meu dever negligenciando as ocupações pelas quais eu próprio pudesse favorecer os homens por mim mesmo e aplicando-me àquelas que dependem do arbítrio alheio, afastei-me inteiramente daqueles pensamentos e reconduzi-me todo a esta obra, conforme minha primeira decisão.

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Nec mihi animum minuit, quod ejus quæ nunc in usu est doctrinæ et eruditionis, declinationem quandam et ruinam in temporum statu prospicio. Tametsi enim barbarorum incursiones non metuam (nisi forte imperium Hispanum se corroboraverit, et alios armis, se onere, oppresserit et debilitarit), tamen ex bellis civilibus (quæ mihi videntur propter mores quosdam non ita pridem introductos multas regiones peragratura), et ex sectarum malignitate, et ex compendiariis istis artificiis et cautelis quæ in eruditionis locum surrepserunt, non minor in literas et scientias procella videbatur impendere. Nec typographorum officiona his malis sufficere queat. Atque ista quidem imbellis doctrina, quæ otio alitur, præmio et laude efflorescit, quæ vehementiam opinionis non sustinet, et artificiis et imposturis eluditur, iis quæ dixi impedimentis obruitur. Longe alia ratio est scientiæ, cujus dignitas utilitatibus et operibus munitur. Ac de temporum injuriis fere securus sum, de hominum vero injuriis non laboro. Si quis enim me nimis altum sapere dicat, respondeo simpliciter, in civilibus rebus esse modestiæ locum, in contemplationibus veritati. Si quis vero opera statim exigat, aio sine omni impostura, me hominem non senem valetudinarium, civilibus studiis implicatum, rem omnium obscurissimam sine duce ac luce aggressum, satis profecisse si machinam ipsam ac fabricam exstruxerim, licet eam non exercuerim aut moverim. Ac eodem candore profiteor, interpretationem naturæ legitimam, in primo adscensu antequam ad gradum certum generalium perventum sit, ab omni applicatione ad opera puram ac sejunctum servari debere. Quin et eos omnes qui experientiæ se undis aliqua ex parte dediderunt, cum animo parum firmi aut ostentationis

Nem me diminuiu o ânimo o fato de que, no tocante à doutrina e ao saber ora em uso, enxergue nestes tempos certo declínio e ruína. Com efeito, ainda que eu não tema incursões bárbaras (a menos que o império espanhol porventura se reforce e venha a oprimir e debilitar aos outros pelas armas e a si pelo fardo2), parecia-me contudo ser iminente nas letras e nas ciências uma tempestade não menor, em virtude das guerras civis (que a meu ver percorrerão muitas regiões devido a certos costumes introduzidos não faz muito tempo), da malignidade das seitas e desses artifícios e precauções compendiosos que roubaram o lugar do saber. E nem a oficina dos tipógrafos será suficiente para tais males. Certo é que essa imbele doutrina que se nutre do ócio, floresce com prêmios e louvores, que não sustenta a veemência da opinião e se faz zombar pelos artifícios e imposturas, é esmagada por aqueles impedimentos de que falei. Bem diferente é o procedimento da ciência, cuja dignidade é protegida pelas utilidades e obras.

Ademais, quase não me inquieto com as injúrias do tempo e verdadeiramente não me preocupo com as injúrias dos homens. Com efeito, se alguém disser que eu penso alto demais, respondo simplesmente que o lugar da modéstia é nos assuntos públicos, a contemplação é o da verdade. Se alguém exigir obras imediatas, digo sem nenhuma impostura que eu, um homem que não é velho, de pouca saúde, implicado nos negócios públicos, eu que enfrentei sem guia nem luz o mais obscuro de todos os assuntos, terei já conseguido o suficiente se chegar a construir a própria máquina e a fábrica, mesmo sem tê-la operado ou posto em funcionamento. E com o mesmo candor declaro que a legítima interpretação da natureza, na primeira ascensão, antes de ter chegado a um grau seguro de generalidades, deve conservar-se pura e afastada de toda aplicação às obras. Mais ainda, todos aqueles que deram algo de si às vagas da experiência, como fossem de ânimo

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Tradução: Proêmio sobre a Interpretação da natureza

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cupidi essent, in introitu operum pignora intempestive investigasse, et inde exturbatos et naufragos fuisse scio. Si quis autem pollicitationes saltem particulares requirat, is noverit homines per eam quæ nunc in usu est scientiam ne satis doctos ad optandum quidem esse. Quod autem minoris momenti res est, si quis ex politicis judicium suum in istiusmodi re inserere præsumat, quibus moris est ex personæ calculis singula æstimare vel ex similis conatus exemplis conjecturam facere, illi dictum volo et illud vetus, claudum in via cursorem extra viam antevertere, et de exemplis non cogitandum, rem enim sine exemplo esse. Publicandi autem ista ratio ea est, ut quæ ad ingeniorum correspondentias captandas et mentium areas purgandas pertinent, edantur in vulgus et per ora volitent; reliqua per manus tradantur cum electione et judicio. Nec me latet usitatum et tritum esse impostorum artificum, ut quædam a vulgo secernant, nihilo iis ineptiis quas vulgo propinant meliora. Sed ego sine omni impostura ex providentia sana prospicio, ipsam interpretationis formulam et inventa per eandem, intra legitima et optata ingenia clausa, vegetiora et munitiora futura. Ipse vero alieno periculo ista molior. Mihi enim nil eorum quæ ab externis pendent cordi est. Neque enim famæ auceps sum, nec hæresiarcharum more sectam condere gratum habeo, et privatum aliquod emolumentum ex tanta molitione captare ridiculum et turpe duco. Mihi sufficit meriti conscientia, et ipsa illa rerum effectio, cui ne fortuna ipsa intercedere possit.

pouco firme ou desejosos de ostentação, logo de início procuraram intempestivamente as garantias das obras e com isso, sei, destruíram-se e naufragaram. Já se alguém requerer ao menos promessas particulares, virá a saber que os homens, por esta ciência que ora está em uso, não são sequer doutos o suficiente para desejá-lo. Pois bem, é algo de menor importância se alguém pretender dar seu juízo em questões desse tipo segundo os assuntos políticos, em que é costume estimar cada coisa por cálculos pessoais ou fazer conjectura a partir dos exemplos de tentativas semelhantes; a esse quero recordar aquele velho dito: um coxo no caminho chega antes que um corredor fora do caminho, e não vem ao caso pensar em exemplos, pois é coisa sem exemplo.

E esta é a razão de publicar: que se difunda entre o vulgo e corra de boca em boca tudo que leve a estabelecer relações entre os engenhos e a purgar as mentes3; o restante será transmitido de mão em mão com discernimento e juízo. E não me é segredo o usitado e batido artifício dos impostores, que escondem do vulgo certas coisas em nada melhores do que as tolices que ao vulgo ofertam. Mas eu, sem nenhuma impostura e com sensata previdência, antevejo que a própria fórmula da interpretação e as coisas através dela descobertas serão mais profícuas e seguras se reservadas a engenhos legítimos e seletos. Em verdade, eu próprio movimento o que outros experimentarão4. Com efeito, não estimo de coração nada daquilo que depende das coisas exteriores. Não sou um caçador de fama nem tenho a intenção de fundar uma seita, à maneira dos heréticos, e reputo ridículo e torpe tirar vantagem privada de tanta movimentação. Para mim é suficiente a consciência do mérito e a própria realização dessas coisas em que nem a própria fortuna possa interferir.

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NotAS:

1. No original, inventio. A tradução dos termos latinos invenire e inventio é particularmente complicada nos textos baconianos, tanto por sua polissemia quanto pela importância que assumem (o Novo órganon é uma logica inveniendi, há o constante louvor das inventiones, etc.). Na língua clássica, o verbo invenire possuía o sentido prioritário de “encontrar”, e foi dessa forma que inventio passou a designar na retórica a arte de encontrar lugares comuns para a formulação de argumentos. No latim tardio, contudo, o mesmo verbo já possuía também o sentido de “descobrir” e às vezes mesmo de “inventar”, como no seu correlato português. Assim, há uma primeira distinção a fazer, a qual é claramente formulada por Bacon: “A inventio dos argumentos não é propriamente uma inventio. Com efeito, invenire é encontrar algo desconhecido, não retomar ou lembrar algo já conhecido” (De augmentis scientiarum, V, 2). Haverá, porém, uma segunda distinção: aquela entre invenire algo já existente antes mesmo da inventio (por ex., India occidentales... nobis inventa) e invenire algo que só passa a existir com a inventio (por ex., inventio operum, inventio scientiarum). Enfim, optamos por verter invenire, inventio por “descobrir”, “descoberta”. Estes termos portugueses nos parecem, por um lado, afastar o sentido retórico descartado por Bacon; por outro, são tão ambíguos quanto os originais latinos: descobre-se um continente já existente bem como se descobre uma técnica até então inexistente.2. Esclarecedora nota de Paolo Rossi: “Depois da tentativa de ataque às costas britânicas efetuada pela frota espanhola em 1588, que resultara num desastre para Felipe II, a iniciativa passara às forças inglesas, que em 1595 haviam atacado e saqueado o porto de Cádiz. O grande império espanhol, sob a aparência de uma extraordinária potência, trazia já em si os germes da dissolução: a própria amplitude dos seus domínios acaba por exaurir toda energia produtiva; o usufruto das colônias, realizado com base numa política ávida e atrasada, é para a Espanha fonte de decadência: eis o sentido da expressão baconiana.”3. No original, ad mentium areas purgandas. Literalmente: limpar as superfícies, as arenas das mentes.4. No original, Ipse vero alieno periculo ista molior. Esta frase, devido à sua concisão, presta-se a várias interpretações; seguimos a sugestão de Paolo Rossi, que em particular lê periculum no sentido de “experimento”.

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rEsEnHa: artE E iManênCia: UM boM EnContro EntrE EsPinosa E vErMEEr

Marcos Ferreira de Paula*

Resumo: Resenha do livro Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, de Sara Hornäk, publicado no Brasil, em 2010, pela editora Paulus.Palavras-chave: arte, imanência, imaginação, eternidade.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade

* Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político:

[...] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos).

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou cometadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata-se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo,

e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética. Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão

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da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott. Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas

considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada. A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá-se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331),

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o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio: caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço.

A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas. A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética

é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

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Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro. Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro. Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade1. A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura

“piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular

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do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira: “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando-se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência,

para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

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Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser [...] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente. “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do

necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

* * *

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós.

rEVIEw: Art AND ImmANENCE: A gooD ENCoUNtEr BEtwEEN SPINoZA AND VErmEEr

Abstract: Review of the book Vermeer and Spinoza: Immanence in philosophy and painting, Sarah Hornak, published in Brazil in 2010 by publisher Paulus.Keywords: art, immanence, imagination, eternity.

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rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e Liberdade na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.

2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

NotAS:

1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior.

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rEsEnHa: A UNIDADE DO CORPO E DA mENTE: AFETOS, AÇÕES E PAIxÕES Em ESPINOSA

bruno d’ambros**

resumo: Resenha do livro A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa, de Chantal Jaquet, publicado no Brasil em 2011 pela editora Autêntica.Palavras-chave: Espinosa, unidade, monismo, afetos.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

* Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina

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“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética: em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas,

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como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677). No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos.

Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

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“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi: os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

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O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos

mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo.” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183).

Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

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“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189).

Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma

identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

rEVIEw: ThE UNITy Of BODy AND SOUl: AffECTS, ACTIONS AND PASSIONS IN SPINOzA

Abstract: Review of the book The unity of body and soul: affects, actions and passions in Spinoza, Chantal Jaquet, published in Brazil, 2011 by Autêntica Editora.Keywords: Spinoza, unity, monism, affects.

rEFErêNCIAS BIBLIográFICAS:

1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 205 pgs.

2. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004. 352 pgs.

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notÍCias

DEFESAS DE mEStrADo

Anderson Augusto dos Anjos Divertimento pascaliano: a agitada busca pelo repousoData: 02/03/2012 Orientador: Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva

resumo: O objetivo da presente dissertação é compreender a concepção de divertimento nos escritos de Blaise Pascal, tanto em sentido, por assim dizer, antropológico, quanto moral. A partir da noção de conhecimento de si, refletiremos sobre os principais conceitos pascalianos que se relacionam com o que ele chamava de estudo do homem. Palavras-chave: Blaise Pascal, Divertimento, conhecimento de si, moral.

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instrUÇÕEs Para os aUtorEs

:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de 70 toques).

:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone. (E-mail: [email protected]).

:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.

:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição.

:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

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ContEnts

bEtwEEn sErvitUdE and FrEEdoMHomero Santiago....................................................................................11

tHE PasCalian notion oF GraCELuís César Guimarães Oliva....................................................................25

on transFiGUration oF tHE HiGHEst riGHt to EvErYtHinG: FEar, HoPE and CalCUlation oF UtilitYVíctor Manuel Pineda.............................................................................47

dUbitativE aPPrECiation oF tHE rEalisM and its iMPaCt on tHE rEalistiC CHristian CosMoloGYCarlos Eduardo Pereira Oliveira..............................................................81

tHE anCiEnt stoiC EtHiCs and tHE stoiC stErEotYPE in tHE ModErnitYDrayfine Teixeira Moura.......................................................................111

sPinoZa’s CONATUS and FrEUd’s TODESTRIEB: an ontoloGiCal antinoMY, or a PUrElY iMaGinativE onE?Lucas Carpinelli.....................................................................................129

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dEatH as a transForMation: an aPProaCH bEtwEEn DON QUIxOTE and sPinoZa’s EThICSGiselle Cristina Gonçalves Migliari........................................................155

tradUCtion: DE INTERPRETATIONE NATURÆ PROŒmIUm - FranCiS baCOnHomero Santiago...................................................................................173

rEviEw: art and iMManEnCE: a Good EnCoUntEr bEtwEEn sPinoZa and vErMEErMarcos Ferreira de Paula ......................................................................183

rEviEw: ThE UNITy OF BODy AND SOUl: AFFECTS, ACTIONS AND PASSIONS IN SPINOzAbruno D’ambros....................................................................................197

nOTiCES.....................................................................................................209

inSTruCTiOnS............................................................................................211

COnTEnTS...................................................................................................213