yuval noah harari - sapiens uma breve história da humanidade

368

Upload: claudio-gomes

Post on 15-Sep-2015

442 views

Category:

Documents


133 download

DESCRIPTION

História da humanidade

TRANSCRIPT

  • Em memria do meu pai,Shlomo Harari,

    com amor

  • Parte um

    A Revoluo Cognitiva

    1. A marca de uma mo humana de cerca de 30 mil anos atrs, na parede na caverna de Chauvet-Pont-dArc, no sul daFrana. Algum tentou dizer Estive aqui!.

  • 1Um animal insignificante

    H CERCA DE 13,5 BILHES DE ANOS, A MATRIA, A ENERGIA, O TEMPO E O ESPAO surgiram naquilo que conhecidocomo o Big Bang. A histria dessas caractersticas fundamentais do nosso universo denominadafsica.

    Por volta de 300 mil anos aps seu surgimento, a matria e a energia comearam a se aglutinarem estruturas complexas, chamadas tomos, que ento se combinaram em molculas. A histria dostomos, das molculas e de suas interaes denominada qumica.

    H cerca de 3,8 bilhes de anos, em um planeta chamado Terra, certas molculas secombinaram para formar estruturas particularmente grandes e complexas chamadas organismos. Ahistria dos organismos denominada biologia.

    H cerca de 70 mil anos, os organismos pertencentes espcie Homo sapiens comearam aformar estruturas ainda mais elaboradas chamadas culturas. O desenvolvimento subsequente dessasculturas humanas denominado histria.

    Trs importantes revolues definiram o curso da histria. A Revoluo Cognitiva deu incio histria, h cerca de 70 mil anos. A Revoluo Agrcola a acelerou, por volta de 12 mil anos atrs. ARevoluo Cientfica, que comeou h apenas 500 anos, pode muito bem colocar um fim histria edar incio a algo completamente diferente. Este livro conta como essas trs revolues afetaram osseres humanos e os demais organismos.

    Muito antes de haver histria, j havia seres humanos. Animais bastante similares aos humanosmodernos surgiram por volta de 2,5 milhes de anos atrs. Mas, por incontveis geraes, eles nose destacaram da mirade de outros organismos com os quais partilhavam seu habitat.

    Em um passeio pela frica Oriental de 2 milhes de anos atrs, voc poderia muito bemobservar certas caractersticas humanas familiares: mes ansiosas acariciando seus bebs e bandosde crianas despreocupadas brincando na lama; jovens temperamentais rebelando-se contra as regrasda sociedade e idosos cansados que s queriam ficar em paz; machos orgulhosos tentandoimpressionar as beldades locais e velhas matriarcas sbias que j tinham visto de tudo. Esseshumanos arcaicos amavam, brincavam, formavam laos fortes de amizade e competiam por status epoder mas os chimpanzs, os babunos e os elefantes tambm. No havia nada de especial noshumanos. Ningum, muito menos eles prprios, tinha qualquer suspeita de que seus descendentes um

  • dia viajariam Lua, dividiriam o tomo, mapeariam o cdigo gentico e escreveriam livros dehistria. A coisa mais importante a saber acerca dos humanos pr-histricos que eles eram animaisinsignificantes, cujo impacto sobre o ambiente no era maior que o de gorilas, vaga-lumes ou guas-vivas.

    Os bilogos classificam os organismos em espcies. Consideram que os animais pertencem auma mesma espcie se eles tendem a acasalar uns com os outros, gerando descendentes frteis.Cavalos e jumentos tm um ancestral recente em comum e partilham muitos traos fsicos, masdemonstram pouco interesse sexual uns pelos outros. Acasalam entre si se forem induzidos a isso entretanto seus descendentes, chamados mulas, so estreis. Mutaes no DNA dos jumentos podemnunca ter passado para os cavalos, e vice-versa. Os dois tipos de animais so consequentementeconsiderados duas espcies diferentes, trilhando caminhos evolucionrios distintos. J um buldogue eum spaniel podem ser muito diferentes em aparncia, mas so membros da mesma espcie,partilhando a mesma informao de DNA. Acasalam entre si alegremente, e seus filhotes, ao crescer,cruzam com outros cachorros e geram mais filhotes.

    As espcies que evoluram de um mesmo ancestral so agrupadas em um gnero. Lees,tigres, leopardos e jaguares so espcies diferentes do gnero Panthera. Os bilogos nomeiam osorganismos com um nome duplo latino, o gnero seguido da espcie. Os lees, por exemplo, sochamados Panthera leo, a espcie leo do gnero Panthera. Ao que tudo indica, todos os que estolendo este livro so Homo sapiens a espcie sapiens (sbia) do gnero Homo (homem).

    Os gneros, por sua vez, so agrupados em famlias, como a dos feldeos (lees, guepardos,gatos domsticos), a dos candeos (lobos, raposas, chacais) e a dos elefantdeos (elefantes, mamutes,mastodontes). Todos os membros de uma famlia remontam a um mesmo patriarca ou matriarcaoriginal. Todos os gatos, por exemplo, dos menores gatos domsticos ao leo mais feroz, tm emcomum um ancestral feldeo que viveu h cerca de 25 milhes de anos.

    O Homo sapiens tambm pertence a uma famlia. Esse fato banal costumava ser um dossegredos mais bem guardados da histria. Durante muito tempo, o Homo sapiens preferiu conceber asi mesmo como separado dos animais, um rfo destitudo de famlia, carente de primos ou irmos e,o que mais importante, sem pai nem me. Mas isso simplesmente no verdade. Gostemos ou no,somos membros de uma famlia grande e particularmente ruidosa chamada grandes primatas. Nossosparentes vivos mais prximos incluem os chimpanzs, os gorilas e os orangotangos. Os chimpanzsso os mais prximos. H apenas 6 milhes de anos, uma mesma fmea primata teve duas filhas. Umadelas se tornou a ancestral de todos os chimpanzs; a outra nossa av.

  • Esqueleto no armrio

    O Homo sapiens guardou um segredo ainda mais perturbador. No s temos inmeros primos nocivilizados, como um dia tambm tivemos irmos e irms. Costumamos pensar em ns mesmos comoos nicos humanos, pois, nos ltimos 10 mil anos, nossa espcie de fato foi a nica espcie humana aexistir. Porm, o verdadeiro significado da palavra humano animal pertencente ao gnero Homo,e antes havia vrias outras espcies desse gnero alm do Homo sapiens. Alm disso, conformeveremos no ltimo captulo deste livro, num futuro no muito distante possivelmente teremos deenfrentar humanos no sapiens. Para melhor explicar este ponto, usarei o termo sapiens paradesignar membros da espcie Homo sapiens, ao passo que reservarei o termo humano para mereferir a todos os membros do gnero Homo.

    Os humanos surgiram na frica Oriental h cerca de 2,5 milhes de anos, a partir de um gneroanterior de primatas chamado Australopithecus, que significa macaco do Sul. Por volta de 2milhes de anos atrs, alguns desses homens e mulheres arcaicos deixaram sua terra natal para seaventurar e se assentar em vastas reas da frica do Norte, da Europa e da sia. Como asobrevivncia nas florestas nevadas do norte da Europa requeria caractersticas diferentes dasnecessrias sobrevivncia nas florestas midas da Indonsia, as populaes humanas evoluram emdirees diferentes. O resultado foram vrias espcies distintas, a cada uma das quais os cientistasatriburam um nome latino pomposo.

    2. Nossos irmos, de acordo com reconstrues especulativas (da esquerda para a direita): Homo rudolfensis (fricaOriental); Homo erectus (sia Oriental); e Homo neanderthalensis (Europa e sia Ocidental). Todos so humanos.

    Os humanos na Europa e na sia Ocidental deram origem ao Homo neanderthalensis (homemdo vale do Neander), popularmente conhecidos como neandertais. Os neandertais, mais robustose mais musculosos do que ns, sapiens, estavam bem adaptados ao clima frio da Eursia ocidental daera do gelo. As regies mais ocidentais da sia foram povoadas pelo Homo erectus, Homemereto, que sobreviveu na regio por quase 1,5 milho de anos, sendo a espcie humana de maiordurao. Esse recorde dificilmente ser quebrado, mesmo por nossa prpria espcie. questionvel

  • se o Homo sapiens ainda existir daqui a mil anos, de modo que 2 milhes de anos certamente estfora do nosso alcance.

    Na ilha de Java, na Indonsia, viveu o Homo soloensis, homem do vale do Solo, que estavaadaptado para a vida nos trpicos. Em outra ilha indonsia a pequena ilha de Flores , humanosarcaicos passaram por um processo que levou ao nanismo. Os humanos chegaram pela primeira vez ilha de Flores quando o nvel do mar estava excepcionalmente baixo, facilitando o acesso ilha apartir do continente. Quando o nvel do mar voltou a subir, algumas pessoas ficaram presas na ilha,que era pobre em recursos. As pessoas grandes, que necessitavam muita comida, morriam primeiro.Os indivduos menores tinham muito mais chances de sobrevivncia. Com o passar das geraes, aspessoas de Flores se tornaram ans. Essa espcie nica, conhecida pelos cientistas como Homofloresiensis, chegava uma altura mxima de apenas um metro e pesava no mais de 25 quilos. Aindaassim, era capaz de produzir ferramentas de pedra e ocasionalmente conseguia abater alguns doselefantes da ilha embora, a bem da verdade, os elefantes tambm fossem uma espcie diminuta.

    Em 2010, outro irmo perdido foi resgatado do esquecimento, quando cientistas, escavando acaverna de Denisova, na Sibria, descobriram um osso de dedo fossilizado. A anlise genticacomprovou que o dedo pertencia a uma espcie humana at ento desconhecida, que foi denominadaHomo denisova. Sabe-se l quantos de nossos parentes perdidos esto esperando para serdescobertos em outras cavernas, em outras ilhas e em outros climas.

    Enquanto esses humanos evoluam na Europa e na sia, a evoluo na frica Oriental noparou. O bero da humanidade continuou a nutrir numerosas espcies novas, como o Homorudolfensis (homem do lago Rudolf), o Homo ergaster (homem trabalhador) e, finalmente, nossaprpria espcie, que, sem modstia alguma, denominamos Homo sapiens (homem sbio).

    Alguns membros de algumas dessas espcies eram gigantes e outros, diminutos. Alguns eramcaadores destemidos, e outros, dceis coletores de plantas. Alguns viviam em uma nica ilha, aopasso que muitos perambulavam por continentes. Mas todos pertenciam ao gnero Homo. Eram sereshumanos.

    uma falcia comum conceber essas espcies como dispostas em uma linha reta dedescendncia, com os ergaster dando origem aos erectus, os erectus dando origem aos neandertais eos neandertais dando origem a ns. Esse modelo linear d a impresso equivocada de que, emdeterminado momento, apenas um tipo de humano habitou a Terra e de que todas as espciesanteriores foram meros modelos mais antigos de ns mesmos. A verdade que, de aproximadamente2 milhes de anos a 10 mil anos atrs, o mundo foi habitado por vrias espcies humanas ao mesmotempo. E por que no? Hoje h muitas espcies de raposas, ursos e porcos. O mundo de 100 mil anos

  • atrs foi habitado por pelo menos seis espcies humanas diferentes. nossa exclusividade atual, eno a multiplicidade de espcies em nosso passado, que peculiar e, talvez, incriminadora. Comologo veremos, ns, sapiens, temos boas razes para reprimir a lembrana de nossos irmos.

    O custo de pensar

    Apesar de suas muitas diferenas, todas as espcies humanas tm em comum vrias caractersticasque as definem. Mais notadamente, os humanos tm o crebro extraordinariamente grande emcomparao com o de outros animais. Mamferos pesando 60 quilos tm um crebro com tamanhomdio de 200 centmetros cbicos. Os primeiros homens e mulheres, h 2,5 milhes de anos, tinhamcrebros de cerca de 600 centmetros cbicos. Sapiens modernos apresentam um crebro de 1200 a1400 centmetros cbicos. Os crebros dos neandertais eram ainda maiores.

    Que a evoluo devesse selecionar crebros maiores pode nos parecer bvio. Somos toapaixonados por nossa inteligncia superior que presumimos que, em se tratando de capacidadecerebral, mais deve ser melhor. Mas, se fosse assim, a famlia dos feldeos tambm teria produzidogatos capazes de fazer clculos, e porcos teriam a esta altura lanado seus prprios programasespaciais. Por que crebros gigantes so to raros no reino animal?

    O fato que um crebro gigante extremamente custoso para o corpo. No fcil de carregar,sobretudo quando envolvido por um crnio pesado. ainda mais difcil de abastecer. No Homosapiens, o crebro equivale a 2 ou 3% do peso corporal, mas consome 25% da energia do corpoquando este est em repouso. Em comparao, o crebro de outros primatas requer apenas 8% deenergia em repouso. Os humanos arcaicos pagaram por seu crebro grande de duas maneiras. Emprimeiro lugar, passaram mais tempo em busca de comida. Em segundo lugar, seus msculosatrofiaram. Como um governo desviando dinheiro da defesa para a educao, os humanos desviaramenergia do bceps para os neurnios. Dificilmente pensaramos que essa uma boa estratgia para asobrevivncia na savana. Um chimpanz no pode ganhar uma discusso com um Homo sapiens, maspode parti-lo ao meio como uma boneca de pano.

    Hoje, nosso crebro grande uma vantagem, porque podemos produzir carros e armas quepermitem nos locomovermos mais rpido que os chimpanzs e atirar neles de uma distncia seguraem vez de enfrent-los em um combate corpo a corpo. Mas carros e armas so um fenmeno recente.Por mais de 2 milhes de anos, as redes neurais dos humanos continuaram se expandindo, mas, com

  • exceo de algumas facas de slex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram muito pouco proveitodisso. Ento, o que impulsionou a evoluo do enorme crebro humano durante esses 2 milhes deanos? Francamente, ns no sabemos.

    Outro trao humano singular que andamos eretos sobre duas pernas. Ao ficar eretos, maisfcil esquadrinhar a savana procura de animais de caa ou de inimigos, e os braos, desnecessriospara a locomoo, so liberados para outros propsitos, como atirar pedras ou sinalizar. Quantomais coisas essas mos eram capazes de fazer, mais sucesso tinham os indivduos, de modo que apresso evolutiva trouxe uma concentrao cada vez maior de nervos e msculos bem ajustados naspalmas e nos dedos. Em consequncia, os humanos podem realizar tarefas complexas com as mos.Em particular, podem produzir e usar ferramentas sofisticadas. Os primeiros indcios de produo deferramentas datam de aproximadamente 2,5 milhes de anos atrs, e a manufatura e o uso deferramentas so os critrios pelos quais os arquelogos reconhecem humanos antigos.

    Mas caminhar com a coluna ereta tem l suas desvantagens. O esqueleto de nossos ancestraisprimatas se desenvolveu durante milhes de anos para sustentar uma criatura que andava de quatro etinha uma cabea relativamente pequena. Adaptar-se a uma posio ereta foi um grande desafio,sobretudo quando a estrutura precisou sustentar um crnio extragrande. A humanidade pagou por suaviso elevada e suas mos habilidosas com dores nas costas e rigidez no pescoo.

    As mulheres pagaram ainda mais. Um andar ereto exigia quadris mais estreitos, constringindoo canal do parto e isso justamente quando a cabea dos bebs se tornava cada vez maior. A mortedurante o parto se tornou uma grande preocupao para as fmeas humanas. As mulheres que davam luz mais cedo, quando o crebro e a cabea do beb ainda eram relativamente pequenos e maleveis,se saam melhor e sobreviviam para ter mais filhos. Em consequncia, a seleo natural favoreceunascimentos precoces. E, de fato, em comparao com outros animais, os humanos nascemprematuramente, quando muitos de seus sistemas vitais ainda esto subdesenvolvidos. Um potro podetrotar logo aps o nascimento; um gatinho deixa a me para buscar alimento por conta prpria compoucas semanas de vida. Os bebs humanos so indefesos e durante muitos anos dependem dos maisvelhos para sustento, proteo e educao.

    Esse fato contribuiu enormemente para as extraordinrias habilidades sociais da humanidade e,ao mesmo tempo, para seus peculiares problemas sociais. Mes solitrias dificilmente conseguiamobter comida suficiente para sua prole e para si mesmas tendo crianas necessitadas sob seuscuidados. Criar filhos requeria ajuda constante de outros membros da famlia e de vizinhos. necessria uma tribo para criar um ser humano. A evoluo, assim, favoreceu aqueles capazes deformar fortes laos sociais. Alm disso, como os humanos nascem subdesenvolvidos, eles podem ser

  • educados e socializados em medida muito maior do que qualquer outro animal. A maioria dosmamferos sai do tero como cermica vidrada saindo de um forno qualquer tentativa de mold-losnovamente apenas ir rach-los ou quebr-los. Os humanos saem do tero como vidro derretidosaindo de uma fornalha. Podem ser retorcidos, esticados e moldados com surpreendente liberdade. por isso que hoje podemos educar nossos filhos para serem cristos ou budistas, capitalistas ousocialistas, belicosos ou pacifistas.Presumimos que um crebro grande, o uso de ferramentas, uma capacidade superior de aprender eestruturas sociais complexas so vantagens enormes. Parece bvio que esses atributos tornaram ahumanidade o animal mais poderoso da Terra. Mas os humanos desfrutaram de todas essas vantagenspor 2 milhes de anos, durante os quais continuaram sendo criaturas fracas e marginais. Assim,humanos que viveram h 1 milho de anos, apesar de seus crebros grandes e ferramentas de pedraafiadas, viviam com medo constante de predadores, raramente caavam animais grandes e subsistiamprincipalmente coletando plantas, pegando insetos, capturando animais pequenos e comendo acarnia deixada por outros carnvoros mais fortes.

    Um dos usos mais comuns das primeiras ferramentas de pedra foi abrir ossos para chegar at otutano. Alguns pesquisadores acreditam que esse foi nosso nicho original. Assim como os pica-pausse especializam em extrair insetos dos troncos das rvores, os primeiros humanos se especializaramem extrair o tutano dos ossos. Por que o tutano? Bem, suponhamos que voc esteja observando umbando de lees abater e devorar uma girafa. Voc espera pacientemente at eles terminarem. Masainda no a sua vez, porque primeiro as hienas e os chacais e voc no ousa se meter com eles reviram as sobras. S ento voc e seu bando ousam se aproximar da carcaa, olhando com cuidado sua volta, e explorar o nico tecido comestvel que restou.

    Isso essencial para entender nossa histria e nossa psicologia. A posio do gnero Homo nacadeia alimentar era, at muito pouco tempo atrs, solidamente intermediria. Durante milhes deanos, os humanos caaram criaturas menores e coletaram o que podiam, ao passo que eram caadospor predadores maiores. Somente h 400 mil anos que vrias espcies de homem comearam a caaranimais grandes de maneira regular, e s nos ltimos 100 mil anos com a ascenso do Homosapiens esse homem saltou para o topo da cadeia alimentar.

    Esse salto espetacular do meio para o topo teve enormes consequncias. Outros animais notopo da pirmide, como os lees e os tubares, evoluram para essa posio gradualmente, ao longode milhes de anos. Isso permitiu que o ecossistema desenvolvesse formas de compensao eequilbrio que impediam que lees e tubares causassem destruio em excesso. medida que oslees se tornavam mais ferozes, a evoluo fez as gazelas correrem mais rpido, as hienas

  • cooperarem melhor, e os rinocerontes serem mais mal-humorados. Diferentemente, a humanidadeascendeu ao topo to rapidamente que o ecossistema no teve tempo de se ajustar. Alm disso, osprprios humanos no conseguiram se ajustar. A maior parte dos grandes predadores do planeta socriaturas grandiosas. Milhes de anos de supremacia os encheram de confiana em si mesmos. Osapiens, diferentemente, est mais para um ditador de uma repblica de bananas. Tendo sido at topouco tempo atrs um dos oprimidos das savanas, somos tomados por medos e ansiedades quanto nossa posio, o que nos torna duplamente cruis e perigosos. Muitas calamidades histricas, deguerras mortais a catstrofes ecolgicas, resultaram desse salto apressado.

    Uma raa de cozinheiros

    Um passo importante rumo ao topo foi a domesticao do fogo. J h 800 mil anos, algumas espcieshumanas faziam uso espordico do fogo. Por volta de 300 mil anos atrs, os Homo erectus, osneandertais e os antepassados do Homo sapiens usavam o fogo diariamente. Os humanos agoratinham uma fonte confivel de luz e de calor e uma arma letal contra os lees espreita. No muitotempo depois, os humanos podem at mesmo ter comeado a deliberadamente a fazer queimadas emsuas reas. Um fogo cuidadosamente manejado podia transformar bosques cerrados intransponveisem campos cheios de animais de caa. Alm disso, quando o fogo se apagava, os empreendedores daIdade da Pedra podiam caminhar pelos restos fumegantes e coletar animais, nozes e tubrculoscarbonizados. Mas a melhor coisa que o fogo possibilitou foi o hbito de cozinhar.

    Alimentos que os humanos no conseguem digerir em sua forma natural como trigo, arroz ebatata se tornaram itens essenciais da nossa dieta graas ao cozimento. O fogo no s mudava aqumica dos alimentos; mudava tambm sua biologia. Cozinhar matava germes e parasitas queinfestavam os alimentos. Tambm passou a ser muito mais fcil para os humanos mastigar e digerirseus alimentos favoritos, como frutas, nozes, insetos e carnia, se cozidos. Enquanto os chimpanzspassam cinco horas por dia mastigando alimentos crus, uma hora suficiente para as pessoascomerem alimentos cozidos.

    O advento do hbito de cozinhar possibilitou aos humanos comer mais tipos de comida,dedicar menos tempo alimentao e se virar com dentes menores e intestino mais curto. Algunsestudiosos acreditam que existe uma relao direta entre o advento do hbito de cozinhar, oencurtamento do trato intestinal e o crescimento do crebro humano. Considerando que tanto um

  • intestino longo quanto um crebro grande consomem muita energia, difcil ter os dois ao mesmotempo. Ao encurtar o intestino e reduzir seu consumo de energia, o hbito de cozinharinadvertidamente abriu caminho para o crebro enorme dos neandertais e dos sapiens.1

    O fogo tambm abriu a primeira brecha significativa entre o homem e os outros animais. Opoder de quase todos os animais depende de seu corpo: a fora de seus msculos, o tamanho de seusdentes, a envergadura de suas asas. Embora possam fazer uso de ventos e correntes, so incapazes decontrolar essas foras da natureza e esto sempre limitados por sua estrutura fsica. As guias, porexemplo, identificam colunas trmicas emanando do solo, abrem suas asas gigantes e permitem que oar quente as faa alar voo, mas no podem controlar a localizao das colunas trmicas, e suacapacidade mxima de carga estritamente proporcional envergadura de suas asas.

    Ao domesticar o fogo, os humanos ganharam controle de uma fora obediente e potencialmenteilimitada. Ao contrrio das guias, os humanos podiam escolher onde e quando acender uma chama, eforam capazes de explorar o fogo para inmeras tarefas. O que mais importante, o poder do fogono era limitado pela forma, estrutura ou fora do corpo humano. Uma nica mulher com uma pedraou vareta podia produzir fogo para queimar uma floresta inteira em uma questo de horas. Adomesticao do fogo foi um sinal do que estava por vir.

    Mapa 1. O Homo sapiens conquista o globo.

    Os cuidadores de nossos irmos

  • Apesar dos benefcios do fogo, h 150 mil anos os humanos ainda eram criaturas marginais. Agoraeles podiam espantar lees, se aquecer durante noites frias e queimar uma ou outra floresta. Mas,considerando todas as espcies juntas, possivelmente o nmero de humanos vivendo entre oarquiplago indonsio e a Pennsula Ibrica ainda no passava de 1 milho, um mero ponto no radarecolgico.

    Nossa espcie, Homo sapiens, j estava presente no palco do mundo, mas, at ento, estiveraapenas vivendo sua vidinha num canto da frica. No sabemos exatamente onde ou quando animaisque podem ser classificados como Homo sapiens evoluram pela primeira vez a partir algum tipoanterior de humano, mas a maioria dos cientistas concorda que h 150 mil anos a frica Orientalestava povoada por sapiens que se pareciam exatamente como ns. Se um deles aparecesse em umnecrotrio moderno, o patologista local no notaria nada peculiar. Graas s bnos do fogo, elestinham mandbulas e dentes menores que seus ancestrais, ao passo que tinham crebros enormes,iguais aos nossos em tamanho.

    Os cientistas tambm concordam que h cerca de 70 mil anos, sapiens da frica Oriental seespalharam na pennsula Arbica e de l rapidamente tomaram o territrio da Eursia.

    Quando o Homo sapiens chegou Arbia, a maior parte da Eursia j era ocupada por outroshumanos. O que aconteceu com eles? H duas teorias conflitantes. A teoria da miscigenao contauma histria de atrao, sexo e miscigenao. medida que os imigrantes africanos se espalharampelo mundo, eles procriaram com outras populaes humanas, e as pessoas, hoje, so resultado dessamiscigenao.

    Por exemplo, quando os sapiens chegaram ao Oriente Mdio e Europa, encontraram osneandertais. Esses humanos eram mais musculosos que os sapiens, tinham crebro maior e eram maisbem adaptados a climas frios. Usavam ferramentas e fogo, eram caadores exmios e, ao que parece,cuidavam dos doentes e debilitados (arquelogos encontraram ossos de neandertais que viveram pormuitos anos com vrias deficincias fsicas, indcios de que eram cuidados por seus parentes). Osneandertais muitas vezes so retratados em caricaturas como o arquetpico homem das cavernasbruto e estpido, mas indcios recentes mudaram essa imagem.

  • 3. Reconstruo especulativa de uma criana neandertal. As evidncias genticas indicam que pelo menos algunsneandertais podem ter tido pele e cabelo claros.

    De acordo com a teoria da miscigenao, quando o Homo sapiens se espalhou por terrasneandertais, os sapiens procriaram com neandertais at que as duas populaes se fundiram. Se issofor verdade, ento os eurasianos de hoje no so sapiens puros. So uma mistura de sapiens eneandertais. De forma semelhante, quando chegaram sia Oriental, os sapiens se misturaram comos locais Homo erectus, de forma que os chineses e coreanos so uma mistura de sapiens e Homoerectus.

    A viso oposta, chamada de teoria da substituio, conta uma histria muito diferente umahistria de incompatibilidade, repulsa e, talvez, at mesmo genocdio. Sapiens e neandertais tinhamanatomias diferentes, e muito provavelmente hbitos de acasalamento e at mesmo odor corporaldiferentes. Provavelmente tinham pouco interesse sexual uns pelos outros. Mesmo que um Romeuneandertal e uma Julieta sapiens se apaixonassem, no poderiam produzir descendentes frteisporque o abismo gentico separando as duas populaes j era intransponvel. As duas populaesteriam permanecido distintas, e quando os neandertais morreram, ou foram mortos, seus genes teriammorrido com eles. De acordo com essa teoria, sapiens substituram todas as populaes humanasanteriores sem se misturar com nenhuma delas. Nesse caso, a origem de todas as linhagens humanasexistentes pode ser atribuda exclusivamente frica Oriental de 70 mil anos atrs.

    Muita coisa depende desse debate. De uma perspectiva evolutiva, 70 mil anos um intervalorelativamente curto. Se a teoria da substituio estiver correta, todos os humanos existentes tm mais

  • ou menos a mesma bagagem gentica, e as distines raciais entre eles so desprezveis. Mas se ateoria da miscigenao estiver correta, pode muito bem haver entre africanos, europeus e asiticosdiferenas genticas que remontam a centenas de milhares de anos atrs. Trata-se de uma dinamitepoltica que poderia fornecer matria-prima para teorias raciais explosivas.

    Nas ltimas dcadas, a teoria da substituio prevaleceu entre os cientistas. Tinha basesarqueolgicas mais slidas e era politicamente mais correta (os cientistas no tinham desejo algumde abrir a caixa de Pandora do racismo ao afirmar a existncia de uma diversidade genticasignificativa entre as populaes humanas modernas). Mas isso terminou em 2010, quando forampublicados os resultados de um esforo de quatro anos para mapear o genoma dos neandertais.Geneticistas conseguiram coletar DNA intacto de fsseis de neandertais em quantidade suficientepara fazer uma comparao detalhada com o DNA de humanos contemporneos Os resultadosdesconcertaram a comunidade cientfica.

    Revelou-se que de 1% a 4% do DNA das populaes modernas no Oriente Mdio e na Europaso DNA de neandertal. No uma grande quantidade, mas significante. Um segundo choque veiomeses depois, quando foi mapeado o DNA extrado do dedo fossilizado de Denisova. Os resultadoscomprovaram que at 6% do DNA humano dos melansios e dos aborgenes australianos modernosso DNA denisovano!

    Se esses resultados forem vlidos e importante ter em mente que esto sendo realizadasmais pesquisas que podem tanto corroborar quanto modificar essas concluses , os defensores dateoria da miscigenao acertaram em pelo menos alguns aspectos. Mas isso no significa que a teoriada substituio esteja completamente errada. Uma vez que os neandertais e os denisovanoscontriburam apenas com uma pequena proporo de DNA para nosso genoma atual, impossvelfalar de uma fuso entre os sapiens e outras espcies humanas. Embora as diferenas entre elas nofossem grandes o suficiente para evitar completamente a gerao de descendentes frteis, eramsuficientes para fazer que tais contatos fossem muito raros.

    Sendo assim, como devemos entender as relaes biolgicas entre sapiens, neandertais edenisovanos? Claramente, no eram espcies completamente distintas, como so os cavalos e osjumentos. Por outro lado, no eram apenas populaes diferentes da mesma espcie, como osbuldogues e os spaniels. A realidade biolgica no em preto e branco. H tambm reas cinzaimportantes. Quaisquer duas espcies que tenham evoludo de um nico ancestral, como os cavalos eos jumentos, foram, em algum momento, apenas duas populaes da mesma espcie, como osbuldogues e os spaniels. Com o tempo, as diferenas entre elas se acumularam, at que elas seguiramcaminhos evolutivos separados. Deve ter havido um ponto em que as duas populaes j eram bem

  • diferentes uma da outra, mas ainda capazes, em raras ocasies, de ter relaes sexuais e gerardescendentes frteis. Ento houve mutao em mais um ou dois genes, e esse ltimo fio que asconectava se perdeu para sempre.

    Ao que parece, h cerca de 50 mil anos, sapiens, neandertais e denisovanos se encontravamnesse limite. Eram espcies quase separadas, mas no totalmente. Como veremos no prximocaptulo, os sapiens j eram bem diferentes dos neandertais e dos denisovanos no s em seu cdigogentico e em seus traos fsicos, como tambm sua capacidade cognitiva e habilidades sociais. Masainda era igualmente possvel, em raras ocasies, que um sapiens e um neandertal tivessem um filho.Portanto, as populaes no se fundiram mas alguns genes sortudos de neandertais pegaram umacarona no Expresso Sapiens. um tanto perturbador e, talvez, fascinante pensar que ns, sapiens,possamos em algum momento ter tido relaes sexuais com um animal de uma espcie diferente egerado descendentes.

    Mas se neandertais, denisovanos e outras espcies humanas no simplesmente se miscigenaramcom os sapiens, por que desapareceram? Uma possibilidade que o Homo sapiens as levou extino. Imagine um bando de sapiens chegando a um vale nos Blcs onde os neandertais viviam hcentenas de milhares de anos. Os recm-chegados comearam a caar os cervos e a colher as nozes eas bagas que eram tradicionalmente a base alimentar dos neandertais. Os sapiens eram melhorescaadores e coletores graas superioridade de sua tecnologia e de suas habilidades sociais , demodo que se multiplicaram e se espalharam. Os neandertais, menos engenhosos, tinham cada vezmais dificuldade para se alimentar. Sua populao definhou e pouco a pouco desapareceu, exceto,talvez, por um ou dois membros que se uniram a seus vizinhos sapiens.

    Outra possibilidade que a competio por recursos tenha irrompido em violncia egenocdio. A tolerncia no uma marca registrada dos sapiens. Nos tempos modernos, uma pequenadiferena em cor de pele, dialeto ou religio tem sido suficiente para levar um grupo de sapiens atentar exterminar outro grupo. Os sapiens antigos teriam sido mais tolerantes para com uma espciehumana totalmente diferente? bem possvel que, quando os sapiens encontraram os neandertais, oresultado tenha sido a primeira e mais significativa campanha de limpeza tnica na histria.

    O que quer que tenha acontecido, os neandertais (e outras espcies humanas) apresentam umdos grandes e ses da histria. Imagine o que poderia ter acontecido se os neandertais oudenisovanos tivessem sobrevivido ao lado do Homo sapiens. Que tipos de cultura, sociedade eestrutura poltica teriam surgido em um mundo em que vrias espcies humanas diferentescoexistissem? Como, por exemplo, as fs religiosas teriam se desenvolvido? O livro do Gnesisteria declarado que os neandertais descenderam de Ado e Eva, Jesus teria morrido pelos pecados

  • dos denisovanos, e o Coro teria reservado lugares no Paraso para todos os humanos corretos,independentemente da espcie? Os neandertais teriam recebido um lugar no sistema de castas hindu,ou na vasta burocracia da China imperial? A Declarao da Independncia dos Estados Unidos teriaconsiderado como uma verdade evidente que todos os membros do gnero Homo foram criadosiguais? Karl Marx teria instado os trabalhadores de todas as espcies a se unirem?

    Nos ltimos 10 mil anos, o Homo sapiens esteve to acostumado a ser a nica espcie humanaque difcil para ns concebermos qualquer outra possibilidade. A ausncia de irmos ou irmstorna fcil imaginar que somos o eptome da criao e que um cisma nos separa do resto do reinoanimal. Quando Charles Darwin sugeriu que o Homo sapiens era apenas mais uma espcie animal, aspessoas ficaram furiosas. Ainda hoje, muitos se recusam a acreditar nisso. Se os neandertaistivessem sobrevivido, ainda conceberamos a ns mesmos como uma criatura distinta? Talvez tenhasido exatamente por isso que nossos ancestrais eliminaram os neandertais. Eles eram similaresdemais para se ignorar, mas diferentes demais para se tolerar.Se a culpa dos sapiens ou no, o fato que, to logo eles chegavam a um novo local, a populaonativa era extinta. Os ltimos remanescentes do Homo soloensis datam de cerca de 50 mil anos atrs.O Homo denisova desapareceu logo depois. Os neandertais sumiram h cerca de 30 mil anos. Osltimos humanos diminutos desapareceram da ilha de Flores h aproximadamente 12 mil anos.Deixaram para trs alguns ossos, ferramentas de pedra, uns poucos genes em nosso DNA e umaporo de perguntas sem resposta. Tambm deixaram a ns, Homo sapiens, a ltima espcie humana.

    Qual o segredo do sucesso dos sapiens? Como conseguimos nos instalar to rapidamente emtantos habitats distantes e to diversos em termos ecolgicos? Como condenamos todas as outrasespcies humanas ao esquecimento? Por que nem mesmo os neandertais, fortes, de crebro grande eresistentes ao frio, conseguiram sobreviver a nosso ataque violento? O debate continua a se alastrar.A resposta mais provvel propriamente aquilo que torna o debate possvel: o Homo sapiensconquistou o mundo, acima de tudo, graas sua linguagem nica.

  • 2A rvore do conhecimento

    NO CAPTULO ANTERIOR VIMOS QUE EMBORA OS SAPIENS J HABITASSEM A frica Oriental h 150 mil anos, apenaspor volta de 70 mil anos atrs eles comearam a dominar o resto do planeta Terra e levar as demaisespcies humanas extino. Nos milhares de anos desse perodo, embora esses sapiens arcaicos separecessem exatamente conosco e embora seu crebro fosse to grande quanto o nosso, eles nogozavam de qualquer vantagem notvel sobre outras espcies humanas, no produziam ferramentasparticularmente sofisticadas e no realizavam nenhum outro feito especial.

    De fato, no primeiro encontro registrado entre sapiens e neandertais, os neandertais levaram amelhor. Por volta de 100 mil anos atrs, alguns grupos de sapiens migraram para o Levante que eraterritrio neandertal , mas foram incapazes de garantir sua sobrevivncia. Isso pode ter se devido crueldade dos nativos, a um clima inclemente ou presena de parasitas com os quais no estavamfamiliarizados. Qualquer que seja o motivo, os sapiens acabaram por se retirar, deixando osneandertais como senhores do Oriente Mdio.

    Esse registro escasso de conquistas levou especialistas a especularem que a estrutura internado crebro desses sapiens provavelmente era diferente da nossa. Eles se pareciam conosco, mas suascapacidades cognitivas aprendizado, memria, comunicao eram muito mais limitadas. Ensinarportugus a um desses sapiens antigos, persuadi-lo da verdade do dogma cristo ou faz-lo entendera teoria da evoluo provavelmente teriam sido tarefas infrutferas. Por outro lado, teramos muitadificuldade para aprender sua linguagem e compreender seu modo de pensar.

    Mas ento, a partir de 70 mil anos atrs, o Homo sapiens comeou a fazer coisas muitoespeciais. Nessa poca, bandos de sapiens deixaram a frica pela segunda vez. Dessa vez, elesexpulsaram os neandertais e todas as outras espcies humanas no s do Oriente Mdio comotambm da face da Terra. Em um perodo incrivelmente curto, os sapiens chegaram Europa e aoleste da sia. H aproximadamente 45 mil anos, conseguiram atravessar o mar aberto e chegaram Austrlia um continente at ento intocado por humanos. O perodo de 70 mil anos atrs a 30 milanos atrs testemunhou a inveno de barcos, lmpadas a leo, arcos e flechas e agulhas (essenciaispara costurar roupas quentes). Os primeiros objetos que podem ser chamados de arte e joalheriadatam dessa era, assim como os primeiros indcios incontestveis de religio, comrcio eestratificao social.

  • 4. Estatueta em marfim de um homem-leo (ou mulher-leoa) da caverna de Stadel, na Alemanha (c. 32 mil anos atrs).O corpo humano, mas a cabea leonina. Este um dos primeiros exemplos indiscutveis de arte, e provavelmente dereligio e da capacidade da mente humana de imaginar coisas que no existem de fato.

    A maioria dos pesquisadores acredita que essas conquistas sem precedentes foram produto deuma revoluo nas habilidades cognitivas dos sapiens. Eles sustentam que os indivduos que levaramos neandertais extino, que se instalaram na Austrlia e que esculpiram o homem-leo de Stadeleram to inteligentes, criativos e sensveis como ns. Se nos deparssemos com os artistas dacaverna de Stadel, poderamos aprender a lngua deles, e eles, a nossa. Seramos capazes de lhesexplicar tudo que conhecemos das aventuras de Alice no Pas das Maravilhas aos paradoxos dafsica quntica e eles poderiam nos ensinar como seu povo concebia o mundo.

    O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrs a 30 mil anosatrs, constitui a Revoluo Cognitiva. O que a causou? No sabemos ao certo. A teoria mais aceitaafirma que mutaes genticas acidentais mudaram as conexes internas do crebro dos sapiens,possibilitando que pensassem de uma maneira sem precedentes e se comunicassem usando um tipo delinguagem totalmente novo. Poderamos cham-las de mutaes da rvore do conhecimento. Por queocorreram no DNA do sapiens e no no DNA dos neandertais? At onde pudemos verificar, foi umaquesto de puro acaso. Mas mais importante entender as consequncias das mutaes da rvore doconhecimento do que suas causas. O que havia de to especial na nova linguagem dos sapiens quenos permitiu conquistar o mundo?[1]

    Essa no foi a primeira linguagem. Todos os animais tm alguma forma de linguagem. Atmesmo os insetos, como abelhas e formigas, sabem se comunicar de maneiras sofisticadas,informando uns aos outros sobre o paradeiro de alimentos. Tampouco foi a primeira linguagem vocal.

  • Muitos animais, incluindo todas as espcies de macaco, tm uma linguagem vocal. Por exemplo,macacos-verdes usam gritos de vrios tipos para se comunicar. Os zologos identificaram um gritoque significa: Cuidado! Uma guia!. Um grito um pouco diferente alerta: Cuidado! Um leo!.Quando os pesquisadores reproduziram uma gravao do primeiro grito para um grupo de macacos,estes pararam o que estavam fazendo e olharam para cima assustados. Ao ouvir uma gravao dosegundo grito, o aviso do leo, o grupo subiu rapidamente em uma rvore. Os sapiens podemproduzir muitos mais sons do que os macacos-verdes, mas as baleias e os elefantes tm habilidadesigualmente impressionantes. Um papagaio pode dizer qualquer coisa proferida por Albert Einstein,alm de imitar o som de telefones chamando, portas batendo e sirenes tocando. Qualquer que fosse avantagem de Einstein sobre um papagaio, no era vocal. O que, ento, h de to especial em nossalinguagem?

    A resposta mais comum que nossa linguagem incrivelmente verstil. Podemos conectar umasrie limitada de sons e sinais para produzir um nmero infinito de frases, cada uma delas com umsignificado diferente. Podemos, assim, consumir, armazenar e comunicar uma quantidadeextraordinria de informao sobre o mundo nossa volta. Um macaco-verde pode gritar para seuscamaradas: Cuidado! Um leo!, mas um humano moderno pode dizer aos amigos que esta manh,perto da curva do rio, ele viu um leo atrs de um rebanho de bises. Pode ento descrever alocalizao exata, incluindo os diferentes caminhos que levam rea em questo. Com essasinformaes, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir se devem se aproximar do rio,expulsar o leo e caar os bises.

    Uma segunda teoria concorda que nossa linguagem singular evoluiu como um meio de partilharinformaes sobre o mundo. Mas as informaes mais importantes que precisavam ser comunicadaseram sobre humanos, e no sobre lees e bises. Nossa linguagem evoluiu como uma forma defofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens antes de mais nada um animal social. Acooperao social essencial para a sobrevivncia e a reproduo. No suficiente que homens emulheres conheam o paradeiro de lees e bises. muito mais importante para eles saber quem emseu bando odeia quem, quem est dormindo com quem, quem honesto e quem trapaceiro.

    A quantidade de informaes que preciso obter e armazenar a fim de rastrear as relaessempre cambiantes at mesmo de umas poucas dezenas de indivduos assombrosa. (Em um bandode cinquenta indivduos, h 1.225 relaes de um para um, e incontveis combinaes sociais maiscomplexas.) Todos os macacos mostram um vido interesse por tais informaes sociais, mas elestm dificuldade para fofocar de fato. Os neandertais e os Homo sapiens arcaicos provavelmentetambm tiveram dificuldade para falar pelas costas uns dos outros uma habilidade muito difamada

  • que, na verdade, essencial para a cooperao em grande nmero. As novas habilidades lingusticasque os sapiens modernos adquiriram h cerca de 70 milnios permitiram que fofocassem por horas afio. Graas a informaes precisas sobre quem era digno de confiana, pequenos grupos puderam seexpandir para bandos maiores, e os sapiens puderam desenvolver tipos de cooperao mais slidos emais sofisticados.1

    A teoria da fofoca pode parecer uma piada, mas vrios estudos a corroboram. Ainda hoje, amaior parte da comunicao humana seja na forma de e-mails, telefonemas ou colunas nos jornais fofoca. to natural para ns que como se nossa linguagem tivesse evoludo exatamente com essepropsito. Voc acha que quando almoam juntos professores de histria conversam sobre as causasda Primeira Guerra Mundial, ou que fsicos nucleares passam o intervalo do caf em confernciascientficas falando sobre partculas subatmicas? s vezes. Mas com muito mais frequncia elesfofocam sobre a professora que flagrou o marido com outra, ou sobre a briga entre o chefe dodepartamento e o reitor, ou sobre os rumores de que um colega usou sua verba de pesquisa paracomprar um Lexus. A fofoca normalmente gira em torno de comportamentos inadequados. Os quefomentam os rumores so o quarto poder original, jornalistas que informam a sociedade sobretrapaceiros e aproveitadores e, desse modo, a protegem.Muito provavelmente, tanto a teoria da fofoca quanto a teoria do leo perto do rio so vlidas. Mas acaracterstica verdadeiramente nica da nossa linguagem no sua capacidade de transmitirinformaes sobre homens e lees. a capacidade de transmitir informaes sobre coisas que noexistem. At onde sabemos, s os sapiens podem falar sobre tipos e mais tipos de entidades quenunca viram, tocaram ou cheiraram.

    Lendas, mitos, deuses e religies apareceram pela primeira vez com a Revoluo Cognitiva.Antes disso, muitas espcies animais e humanas foram capazes de dizer: Cuidado! Um leo!.Graas Revoluo Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: O leo o espritoguardio da nossa tribo. Essa capacidade de falar sobre fices a caracterstica mais singular dalinguagem dos sapiens.

    relativamente fcil concordar que s o Homo sapiens pode falar sobre coisas que noexistem de fato e acreditar em meia dzia de coisas impossveis antes do caf da manh. Voc nuncaconvencer um macaco a lhe dar uma banana prometendo a ele bananas ilimitadas aps a morte nocu dos macacos. Mas isso to importante? Afinal, a fico pode ser perigosamente enganosa ouconfusa. As pessoas que vo floresta procura de fadas e unicrnios parecem ter uma chancemenor de sobrevivncia do que as que vo procura de cogumelos e cervos. E, se voc passa horasrezando para espritos guardies inexistentes, no est perdendo um tempo precioso, tempo que seria

  • mais bem utilizado procurando comida, guerreando e copulando?Mas a fico nos permitiu no s imaginar coisas como tambm fazer isso coletivamente.

    Podemos tecer mitos partilhados, tais como a histria bblica da criao, os mitos do Tempo doSonho dos aborgenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados modernos. Tais mitos doaos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar de modo verstil em grande nmero.Formigas e abelhas tambm podem trabalhar juntas em grande nmero, mas elas o fazem de maneiraum tanto rgida, e apenas com parentes prximos. Lobos e chimpanzs cooperam de forma muito maisverstil do que formigas, mas s o fazem com um pequeno nmero de outros indivduos que elesconhecem intimamente. Os sapiens podem cooperar de maneiras extremamente flexveis com umnmero incontvel de estranhos. por isso que os sapiens governam o mundo, ao passo que asformigas comem nossos restos e os chimpanzs esto trancados em zoolgicos e laboratrios depesquisa.

    A lenda da Peugeot

    Nossos primos chimpanzs normalmente vivem em pequenos bandos de vrias dezenas deindivduos. Eles formam fortes laos de amizade, caam juntos e lutam lado a lado contra babunos,guepardos e chimpanzs inimigos. Sua estrutura social tende a ser hierrquica. O membro dominante,que quase sempre um macho, denominado macho alfa. Outros machos e fmeas demonstram suasubmisso ao macho alfa curvando-se diante dele enquanto emitem grunhidos, de modo no muitodiferente de sditos humanos se ajoelhando diante de um rei. O macho alfa se esfora para manter aharmonia social em seu bando. Quando dois indivduos brigam, ele intervm e impede a violncia.Em uma atitude menos benevolente, ele pode monopolizar alimentos particularmente cobiados eevitar que machos de postos inferiores na hierarquia acasalem com as fmeas.

    Quando dois machos esto disputando a posio de alfa, eles normalmente fazem issoformando grandes coalizes de apoiadores, tanto machos quanto fmeas, dentro do grupo. Os laosentre os membros da coalizo se baseiam em contato ntimo dirio abraar, tocar, beijar, alisar efazer favores mtuos. Assim como os polticos humanos em campanha eleitoral saem por adistribuindo apertos de mo e beijando bebs, tambm os aspirantes posio superior em um grupode chimpanzs passam muito tempo abraando, dando tapinhas nas costas e beijando filhotes. Omacho alfa normalmente conquista essa posio no porque seja fisicamente mais forte, mas porque

  • lidera uma coalizo grande e estvel. Essas coalizes exercem um papel central no s durante aslutas pela posio de alfa como tambm em quase todas as atividades cotidianas. Membros de umamesma coalizo passam mais tempo juntos, partilham alimentos e ajudam uns aos outros emmomentos de dificuldade.

    H limites claros ao tamanho dos grupos que podem ser formados e mantidos de tal forma.Para funcionar, todos os membros de um grupo devem conhecer uns aos outros intimamente. Doischimpanzs que nunca se encontraram, nunca lutaram e nunca se alisaram mutuamente no sabero sepodem confiar um no outro, se valer a pena ajudar um ao outro nem qual deles superior nahierarquia. Em condies normais, um tpico bando de chimpanzs consiste de 20 a 50 indivduos. medida que o nmero em um bando de chimpanzs aumenta, a ordem social se desestabiliza, levandoenfim ruptura e formao de um novo bando por alguns dos animais. Apenas em alguns casos oszologos observaram grupos maiores que cem. Grupos separados raramente cooperam e tendem acompetir por territrio e por alimentos. Os pesquisadores documentaram guerras prolongadas entregrupos, e at mesmo um caso de atividade genocida em que um bando assassinou sistematicamentea maioria dos membros de um bando vizinho.2

    Padres similares provavelmente dominaram a vida social dos primeiros humanos, incluindo oHomo sapiens arcaico. Os humanos, como os chimpanzs, tm instintos sociais que possibilitaramaos nossos ancestrais construir amizades e hierarquias e caar ou lutar juntos. No entanto, como osinstintos sociais dos chimpanzs, os dos humanos s eram adaptados para pequenos grupos ntimos.Quando o grupo ficava grande demais, sua ordem social se desestabilizava, e o bando se dividia.Mesmo se um vale particularmente frtil pudesse alimentar 500 sapiens arcaicos, no havia jeito detantos estranhos conseguirem viver juntos. Como poderiam concordar sobre quem deveria ser o lder,quem deveria caar onde, ou quem deveria acasalar com quem?

    Aps a Revoluo Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e maisestveis. Mas at mesmo a fofoca tem seus limites. Pesquisas sociolgicas demonstraram que otamanho mximo natural de um grupo unido por fofoca de cerca de 150 indivduos. A maioria daspessoas no consegue nem conhecer intimamente, nem fofocar efetivamente sobre mais de 150 sereshumanos.

    Ainda hoje, um limite crtico nas organizaes humanas fica prximo desse nmero mgico.Abaixo desse limite, comunidades, negcios, redes sociais e unidades militares conseguem se manterprincipalmente com base em relaes ntimas e no fomento de rumores. No h necessidade dehierarquias formais, ttulos e livros de direito para manter a ordem.3 Um peloto de 30 soldados oumesmo uma companhia de cem soldados podem funcionar muito bem com base em relaes ntimas,

  • com um mnimo de disciplina formal. Um sargento respeitado pode se tornar rei da companhia eexercer autoridade at mesmo sobre oficiais de patente. Um pequeno negcio familiar podesobreviver e florescer sem uma diretoria, um CEO ou um departamento de contabilidade.

    Mas, quando o limite de 150 indivduos ultrapassado, as coisas j no podem funcionardessa maneira. No possvel comandar uma diviso com milhares de soldados da mesma forma quese comanda um peloto. Negcios familiares de sucesso normalmente enfrentam uma crise quandocrescem e contratam mais funcionrios. Se no forem capazes de se reinventar, acabam falindo.

    Como o Homo sapiens conseguiu ultrapassar esse limite crtico, fundando cidades comdezenas de milhares de habitantes e imprios que governam centenas de milhes? O segredo foiprovavelmente o surgimento da fico. Um grande nmero de estranhos pode cooperar de maneiraeficaz se acreditar nos mesmos mitos.

    Toda cooperao humana em grande escala seja um Estado moderno, uma igreja medieval,uma cidade antiga ou uma tribo arcaica se baseia em mitos partilhados que s existem naimaginao coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Doiscatlicos que nunca se conheceram podem, no entanto, lutar juntos em uma cruzada ou levantar fundospara construir um hospital porque ambos acreditam que Deus encarnou em um corpo humano e foicrucificado para redimir nossos pecados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados.Dois srvios que nunca se conheceram podem arriscar a vida para salvar um ao outro porque ambosacreditam na existncia da nao srvia, da terra natal srvia e da bandeira srvia. Sistemas judiciaisse baseiam em mitos jurdicos partilhados. Dois advogados que nunca se conheceram podem uniresforos para defender um completo estranho porque acreditam na existncia de leis, justia edireitos humanos e no dinheiro dos honorrios.

    Mas nenhuma dessas coisas existe fora das histrias que as pessoas inventam e contam umas soutras. No h deuses no universo, nem naes, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nemjustia fora da imaginao coletiva dos seres humanos.

    As pessoas entendem facilmente que os primitivos consolidam sua ordem social acreditandoem deuses e espritos e se reunindo a cada lua cheia para danar juntos em volta da fogueira. Masno conseguimos avaliar que nossas instituies modernas funcionam exatamente sobre a mesmabase. Considere, por exemplo, o mundo das corporaes. Os executivos e advogados modernos so,de fato, feiticeiros poderosos. A principal diferena entre eles e os xams tribais que os advogadosmodernos contam histrias muito mais estranhas. A lenda da Peugeot nos fornece um bom exemplo.

  • 5. O leo da Peugeot

    Um cone que lembra um pouco o homem-leo de Stadel aparece hoje em carros, caminhes emotocicletas de Paris a Sydney. o ornamento que adorna o cap dos veculos fabricados pelaPeugeot, uma das maiores e mais antigas fabricantes de carros da Europa. A Peugeot comeou comoum negcio familiar no vilarejo de Valentigney, a apenas 300 quilmetros da caverna de Stadel. Hojea empresa emprega cerca de 200 mil pessoas em todo o mundo, a maioria delas completamenteestranhas umas s outras. Esses estranhos cooperam de maneira to eficaz que em 2008 a Peugeotproduziu mais de 1,5 milho de automveis, gerando uma receita de aproximadamente 55 bilhes deeuros.Em que sentido podemos afirmar que a Peugeot SA (nome oficial da empresa) existe? H muitosveculos da Peugeot, mas estes obviamente no so a empresa. Mesmo que todos os Peugeot nomundo fossem descartados ao mesmo tempo e vendidos para o ferro-velho, a Peugeot SA nodesapareceria. Continuaria a fabricar novos carros e a publicar seu relatrio anual. A empresa temfbricas, maquinrio e showrooms e emprega mecnicos, contadores e secretrias, mas tudo issojunto no constitui a Peugeot. Um desastre poderia matar cada um dos empregados da Peugeot edestruir todas as suas linhas de montagem e todos os seus escritrios executivos. Mesmo assim, aempresa poderia obter emprstimos, contratar novos empregados, construir novas fbricas e comprarnovo maquinrio. A Peugeot tem gestores e acionistas, mas eles tambm no constituem a empresa.Todos os gestores poderiam ser demitidos e todas as suas aes, vendidas; mas a empresapropriamente dita permaneceria intacta.

    Isso no significa que a Peugeot SA seja invulnervel ou imortal. Se um juiz ordenasse adissoluo da empresa, suas fbricas permaneceriam de p e seus trabalhadores, contadores,gestores e acionistas continuariam a viver mas a Peugeot SA desapareceria imediatamente. Emsuma, a Peugeot SA parece no ter conexo alguma com o mundo fsico. Ela existe de fato?

    A Peugeot um produto da nossa imaginao coletiva. Os advogados chamam isso de ficojurdica. No pode ser sinalizada; no um objeto fsico. Mas existe como entidade jurdica. Comovoc ou eu, est submetida s leis dos pases em que opera. Pode abrir uma conta bancria e ter

  • propriedades. Paga impostos e pode ser processada, at mesmo separadamente de qualquer um deseus donos ou das pessoas que trabalham para ela.

    A Peugeot pertence a um gnero particular de fico jurdica chamado empresas deresponsabilidade limitada. A ideia por trs de tais empresas est entre as invenes maisengenhosas da humanidade. O Homo sapiens viveu sem elas por milnios. Durante a maior parte dahistria de que se tem registro, a propriedade s poderia pertencer a seres humanos de carne e osso,do tipo que anda sobre duas pernas e tem crebro grande. Se na Frana do sculo XIII Jean abrisseuma oficina para fabricar vages, ele prprio seria o negcio. Se um vago por ele fabricado parassede funcionar uma semana aps a compra, o comprador insatisfeito processaria Jean pessoalmente. SeJean tomasse emprestadas mil moedas de ouro para abrir sua oficina e o negcio falisse, ele teria depagar o emprstimo vendendo sua propriedade privada sua casa, sua vaca, sua terra. Talvez atprecisasse vender seus filhos como escravos. Se no pudesse honrar a dvida, poderia ser jogado napriso pelo Estado ou ser escravizado por seus credores. Ele era totalmente responsvel, de maneirailimitada, por todas as obrigaes assumidas por sua oficina.

    Se tivesse vivido naquela poca, voc provavelmente pensaria duas vezes antes de abrir umnegcio prprio. E, com efeito, essa situao jurdica desencorajava o empreendedorismo. Aspessoas tinham medo de comear novos negcios e assumir riscos econmicos. Dificilmente pareciavaler a pena correr o risco de sua famlia acabar totalmente destituda.

    Foi por isso que as pessoas comearam a imaginar coletivamente a existncia de empresas deresponsabilidade limitada. Tais empresas eram legalmente independentes das pessoas que asfundavam, ou investiam dinheiro nelas, ou as gerenciavam. Ao longo dos ltimos sculos, essasempresas se tornaram os principais agentes na esfera econmica, e estamos to acostumados a elasque nos esquecemos de que existem apenas na nossa imaginao. Nos Estados Unidos, o termotcnico para uma empresa de responsabilidade limitada corporao, o que irnico, porque otermo deriva de corpus (corpo em latim) exatamente aquilo de que as corporaes carecem.Apesar de no ter um corpo real, o sistema jurdico norte-americano trata as corporaes comopessoas jurdicas, como se fossem seres humanos de carne e osso.

    Tambm foi isso o que fez o sistema jurdico francs em 1896, quando Armand Peugeot, queherdara de seus pais uma oficina de fundio de metal que fabricava molas, serrotes e bicicletas,decidiu entrar no ramo de automveis. Para isso, ele criou uma empresa de responsabilidadelimitada. Batizou a empresa com seu nome, mas ela era independente dele. Se um dos carrosquebrasse, o comprador poderia processar a Peugeot, e no Armand Peugeot. Se a empresa tomasseemprestados milhes de francos e ento falisse, Armand Peugeot no deveria a seus credores um

  • nico franco. O emprstimo, afinal, fora concedido Peugeot, a empresa, e no a Armand Peugeot, oHomo sapiens. Armand Peugeot morreu em 1915. A Peugeot, a empresa, continua firme e forte.

    Como exatamente Armand Peugeot, o homem, criou a Peugeot, a empresa? Praticamente damesma forma como os padres e os feiticeiros criaram deuses e demnios ao longo da histria e comomilhares de padres catlicos franceses continuaram recriando o corpo de Cristo todo domingo nasigrejas da parquia. Tudo se resumia a contar histrias e convencer as pessoas a acreditarem nelas.No caso dos padres franceses, a histria crucial foi a da vida e morte de Cristo tal como contadapela Igreja Catlica. De acordo com essa histria, se um padre catlico usando suas vestes sagradaspronunciasse solenemente as palavras certas no momento certo, o po e o vinho mundano setransformariam na carne e no sangue de Deus. O padre exclamava: Hoc est corpus meum! (Este meu corpo em latim) e abracadabra! o po se transformava no corpo de Cristo. Vendo que o padrehavia observado assiduamente todos os procedimentos, milhes de catlicos franceses devotos secomportavam como se Deus de fato existisse no po e no vinho consagrados.

    No caso da Peugeot SA, a histria crucial foi o cdigo jurdico francs, tal como redigido peloparlamento francs. De acordo com os legisladores franceses, se um advogado certificado seguissetodos os rituais e liturgias adequados, escrevesse todos os discursos e juramentos requeridos em umpedao de papel maravilhosamente decorado e afixasse sua assinatura ornamentada ao p dodocumento, abracadabra! uma nova empresa era incorporada. Quando, em 1896, Armand Peugeotquis criar sua empresa, ele pagou para que um advogado fizesse todos esses procedimentos sagrados.Uma vez que o advogado tivesse desempenhado todos os rituais corretos e pronunciado todos osdiscursos e juramentos necessrios, milhes de cidados franceses honrados se comportaram comose a empresa Peugeot realmente existisse.

    Contar histrias eficazes no fcil. A dificuldade est no em contar a histria, mas emconvencer todos os demais a acreditarem nela. Grande parte da nossa histria gira em torno destaquesto: como convencer milhes de pessoas a acreditarem em histrias especficas sobre deuses, ounaes, ou empresas de responsabilidade limitada? Mas, quando isso funciona, d aos sapiens poderimenso, porque possibilita que milhes de estranhos cooperem para objetivos em comum. Tenteimaginar o quo difcil teria sido criar Estados, ou igrejas, ou sistemas jurdicos se s fssemoscapazes de falar sobre coisas que realmente existem, como rios, rvores e lees.Com o passar dos anos, as pessoas teceram uma rede incrivelmente complexa de histrias. Nessarede, fices como a da Peugeot no s existem como acumulam enorme poder. Tm mais poder doque qualquer leo ou bando de lees.

    Os tipos de coisa que as pessoas criam por meio dessa rede de histrias so conhecidos nos

  • meios acadmicos como fices, construtos sociais ou realidades imaginadas. Uma realidadeimaginada no uma mentira. Eu minto se digo que h um leo perto do rio quando sei perfeitamenteque no h leo algum. No h nada de especial nas mentiras. Macacos-verdes e chimpanzs podemmentir. J se observou, por exemplo, um macaco-verde gritando Cuidado! Um leo! quando nohavia leo algum por perto. Convenientemente, esse alarme falso afastava outro macaco que tinhaacabado de encontrar uma banana, abrindo caminho para que o mentiroso roubasse o prmio para si.

    Ao contrrio da mentira, uma realidade imaginada algo em que todo mundo acredita e,enquanto essa crena partilhada persiste, a realidade imaginada exerce influncia no mundo. Oescultor da caverna de Stadel pode ter acreditado sinceramente na existncia do esprito guardio dohomem-leo. Alguns feiticeiros so charlates, mas a maioria acredita sinceramente na existncia dedeuses e demnios. A maioria dos milionrios acredita sinceramente na existncia do dinheiro e dasempresas de responsabilidade limitada. A maioria dos ativistas dos direitos humanos acreditasinceramente na existncia de direitos humanos. Ningum estava mentindo quando, em 2011, a ONUexigiu que o governo lbio respeitasse os direitos humanos de seus cidados, embora a ONU, a Lbiae os direitos humanos sejam todos produtos de nossa frtil imaginao.

    Desde a Revoluo Cognitiva, os sapiens vivem, portanto, em uma realidade dual. Por umlado, a realidade objetiva dos rios, das rvores e dos lees; por outro, a realidade imaginada dedeuses, naes e corporaes. Com o passar do tempo, a realidade imaginada se tornou ainda maispoderosa, de modo que hoje a prpria sobrevivncia de rios, rvores e lees depende da graa deentidades imaginadas, tais como deuses, naes e corporaes.

    Superando o genoma

    A capacidade de criar uma realidade imaginada com palavras possibilitou que um grande nmero deestranhos coopere de maneira eficaz. Mas tambm fez algo mais. Uma vez que a cooperao humanaem grande escala baseada em mitos, a maneira como as pessoas cooperam pode ser alteradamodificando-se os mitos contando-se histrias diferentes. Nas circunstncias adequadas, os mitospodem mudar muito depressa. Em 1789, a populao francesa, quase da noite para o dia, deixou deacreditar no mito do direito divino dos reis e passou a acreditar no mito da soberania do povo. Emconsequncia, desde a Revoluo Cognitiva o Homo sapiens tem sido capaz de revisar seucomportamento rapidamente de acordo com necessidades em constante transformao. Isso abriu uma

  • via expressa de evoluo cultural, contornando os engarrafamentos da evoluo gentica. Acelerandopor essa via expressa, o Homo sapiens logo ultrapassou todas as outras espcies humanas em suacapacidade de cooperar.

    O comportamento de outros animais sociais determinado em grande medida por seus genes.O DNA no um autocrata. O comportamento animal tambm influenciado por fatores ambientais epor peculiaridades individuais. No entanto, em um ambiente estvel, animais da mesma espcietendem a se comportar de maneira similar. Em geral, mudanas significativas no comportamentosocial no podem ocorrer sem mutaes genticas. Por exemplo, os chimpanzs comuns tm umatendncia gentica a viver em grupos hierrquicos liderados por um macho alfa. Membros de umaespcie de chimpanz muito prxima, os bonobos, normalmente vivem em grupos mais igualitriosdominados por alianas femininas. As fmeas dos chimpanzs comuns no podem aprender com suasparentes bonobos e conduzir uma revoluo feminista. Os chimpanzs machos no podem se reunirem uma assembleia constituinte para abolir o cargo do macho alfa e declarar que de agora em diantetodos os chimpanzs devem ser tratados como iguais. Tais mudanas drsticas de comportamento socorreriam se algo mudasse no DNA dos chimpanzs.

    Por razes similares, os humanos arcaicos no iniciavam revolues. At onde sabemos, asmudanas nos padres sociais, a inveno de novas tecnologias e a consolidao de novos hbitosdecorreram mais de mutaes genticas e presses ambientais do que de iniciativas culturais. porisso que levou centenas de milhares de anos para os humanos darem esses passos. H 2 milhes deanos, mutaes genticas resultaram no surgimento de uma nova espcie humana chamada Homoerectus. Seu surgimento foi acompanhado pelo desenvolvimento de uma nova tecnologia deferramentas de pedra, hoje reconhecida como uma caracterstica decisiva dessa espcie. Enquanto oHomo erectus no passou por novas alteraes genticas, suas ferramentas de pedra continuarammais ou menos as mesmas por quase 2 milhes de anos!

    Por sua vez, desde a Revoluo Cognitiva, os sapiens tm sido capazes de mudar seucomportamento rapidamente, transmitindo novos comportamentos a geraes futuras sem necessidadede qualquer mudana gentica ou ambiental. Por exemplo, considere o advento repetido de elites semfilhos, como a classe sacerdotal catlica, as ordens monsticas budistas e as burocracias eunucaschinesas. A existncia de tais elites vai contra os princpios mais fundamentais da seleo natural, jque esses membros dominantes da sociedade deliberadamente abrem mo da procriao. Enquanto,entre os chimpanzs, os machos alfa usam seu poder para ter relaes sexuais com tantas fmeasquanto possvel e, consequentemente, gerar uma grande proporo dos filhotes do grupo , osmachos alfa catlicos se abstm completamente das relaes sexuais e dos cuidados dos filhos. Essa

  • abstinncia no resulta de condies ambientais singulares, tais como a carncia severa de alimentosou de parceiros em potencial. Tampouco resultado de alguma mutao gentica peculiar. A IgrejaCatlica sobreviveu por sculos no por transmitir um gene do celibato de um papa ao seguinte,mas por transmitir as histrias do Novo Testamento e do direito cannico catlico.

    Em outras palavras, enquanto os padres de comportamento dos humanos arcaicospermaneceram inalterados por dezenas de milhares de anos, os sapiens conseguem transformar suasestruturas sociais, a natureza de suas relaes interpessoais, suas atividades econmicas e uma sriede outros comportamentos no intervalo de uma ou duas dcadas. Considere uma habitante de Berlimnascida em 1900 e vivendo longevos cem anos. Ela passou a infncia no Imprio Hohenzollern deGuilherme II; seus anos adultos na Repblica de Weimar, no Terceiro Reich nazista e na AlemanhaOriental comunista; e morreu cidad de uma Alemanha democrtica reunificada. Conseguiu ser partede cinco sistemas sociopolticos muito diferentes, embora seu DNA tenha permanecido exatamente omesmo.

    Isso foi essencial para o sucesso dos sapiens. Em uma briga de um para um, provavelmente umneandertal teria derrotado um sapiens. Mas em um conflito de centenas, os neandertais no teriamuma chance sequer. Os neandertais podiam partilhar informaes sobre o paradeiro de lees, masprovavelmente no podiam contar e revisar histrias sobre espritos tribais. Sem a capacidade decriar fico, os neandertais no conseguiam cooperar efetivamente em grande nmero nem adaptarseu ambiente social para responder aos desafios em rpida transformao.

    Embora no possamos adentrar a mente de um neandertal para entender como eles pensavam,temos indcios indiretos dos limites de sua capacidade cognitiva em comparao com seus rivaissapiens. Ao escavar stios habitados por sapiens h 30 mil anos no interior do continente europeu, osarquelogos ocasionalmente encontram conchas da costa mediterrnea e da costa atlntica. muitoprovvel que essas conchas tenham chegado ao interior do continente por meio de escambo a longadistncia entre diferentes bandos de sapiens. Os stios de neandertais no tm indcios de talescambo. Cada grupo fabricava suas prprias ferramentas com materiais encontrados no local.4

    Outro exemplo vem do Pacfico Sul. Bandos de sapiens que viveram na ilha de Nova Irlanda,no norte da Nova Guin, usaram um vidro vulcnico chamado obsidiana para manufaturarferramentas particularmente fortes e afiadas. A Nova Irlanda, entretanto, no tem depsitos naturaisde obsidiana. As anlises de laboratrio revelaram que a obsidiana que eles usaram foi trazida dedepsitos na Nova Bretanha, uma ilha a 400 quilmetros de distncia. Alguns dos habitantes dessasilhas devem ter sido navegantes habilidosos que percorriam longas distncias negociando de ilha emilha.5

  • O comrcio pode parecer uma atividade muito pragmtica, que no requer nenhuma basefictcia. Mas o fato que nenhum outro animal alm do sapiens pratica o comrcio, e todas as redesde comrcio dos sapiens sobre as quais temos informaes detalhadas se baseiam em fices. Ocomrcio no pode existir sem confiana, e muito difcil confiar em estranhos. A rede de comrcioglobal de nossos dias se baseia em nossa confiana em entidades fictcias tais como o dlar, oFederal Reserve Bank e as marcas registradas das corporaes. Quando dois estranhos em umasociedade tribal querem fazer comrcio, eles geralmente constroem confiana mtua recorrendo a umdeus, ancestral mtico ou animal totmico em comum.

    Se sapiens arcaicos que acreditavam em tais fices trocaram conchas e obsidianas, razovelpensar que tambm podem ter trocado informaes, criando assim redes de conhecimento muito maisamplas e mais densas do que a que serviu aos neandertais e a outros humanos arcaicos.

    As tcnicas de caa so outro exemplo dessas diferenas. Os neandertais geralmente caavamsozinhos ou em pequenos grupos. Os sapiens, por outro lado, desenvolveram tcnicas que seapoiavam na cooperao entre dezenas de indivduos, e talvez at mesmo entre bandos diferentes.Um mtodo particularmente eficaz era cercar um rebanho inteiro de animais, como cavalosselvagens, e ento acoss-los em um desfiladeiro, onde era fcil abat-los em massa. Se tudo sassede acordo com o plano, os bandos podiam obter toneladas de carne, gordura e pele animal em umanica tarde de esforo coletivo, e consumir essas riquezas numa grande festividade, ou sec-las econgel-las para uso posterior. Os arquelogos descobriram stios em que rebanhos inteiros eramabatidos anualmente dessa maneira. H inclusive stios onde se ergueram cercas e obstculos a fimde criar armadilhas artificiais e abatedouros.

    Podemos presumir que os neandertais no ficaram felizes ao ver seus campos de caatradicionais transformados em abatedouros controlados pelos sapiens. No entanto, se a violnciairrompeu entre as duas espcies, os neandertais no se saram muito melhor do que os cavalosselvagens. Cinquenta neandertais cooperando em padres tradicionais e estticos no eram preopara cinco centenas de sapiens versteis e inovadores. E, mesmo que os sapiens perdessem oprimeiro round, logo eram capazes de inventar novos estratagemas que lhes possibilitariam vencer osegundo.

    O que aconteceu na Revoluo Cognitiva?

  • Histria e biologia

    A imensa diversidade de realidades imaginadas que os sapiens inventaram e a diversidade resultantede padres de comportamento so os principais componentes do que chamamos culturas. Desdeque apareceram, as culturas nunca cessaram de se transformar e se desenvolver, e essas alteraesirrefreveis so o que denominamos histria. A Revoluo Cognitiva , portanto, o ponto em que ahistria declarou independncia da biologia. At a Revoluo Cognitiva, os feitos de todas asespcies humanas pertenciam ao reino da biologia, ou, se quisermos, da pr-histria (eu tendo aevitar o termo pr-histria pois sugere, erroneamente, que at mesmo antes da RevoluoCognitiva os humanos constituam uma categoria prpria). A partir da Revoluo Cognitiva, asnarrativas histricas substituem as narrativas biolgicas como nosso principal meio de explicar odesenvolvimento do Homo sapiens. Para entender a ascenso do cristianismo ou a RevoluoFrancesa, no basta compreender a interao entre genes, hormnios e organismos. necessrio,tambm, levar em considerao a interao entre ideias, imagens e fantasias.

    Isso no significa que o Homo sapiens e a cultura humana tenham se tornado isentos de leisbiolgicas. Ainda somos animais, e nossas capacidades fsicas, emocionais e cognitivas continuamsendo moldadas por nosso DNA. Nossas sociedades so construdas com os mesmos tijolos que as

  • sociedades dos neandertais ou dos chimpanzs, e, quanto mais examinamos esses tijolos sensaes,emoes, laos familiares , menos diferenas encontramos entre ns e outros primatas.

    No entanto, um erro procurar as diferenas no nvel do indivduo ou da famlia. Nascomparaes entre indivduos, ou mesmo entre grupos de dez, somos embaraosamente similares aoschimpanzs. As diferenas significativas s comeam a aparecer quando ultrapassamos o limite de150 indivduos, e, quando chegamos a mil ou 2 mil indivduos, as diferenas so assombrosas. Sevoc tentasse agrupar milhares de chimpanzs na praa Tiananmen, em Wall Street, no estdio doMaracan ou na sede da ONU, o resultado seria um pandemnio. J os sapiens se renemregularmente aos milhares em tais lugares. Juntos, criam padres ordenados tais como redes denegcios, celebraes em massa e instituies polticas que jamais poderiam criar de formaisolada. A diferena real entre ns e os chimpanzs a cola mtica que une grandes quantidades deindivduos, famlias e grupos. Essa cola nos tornou os mestres da criao.

    claro, tambm precisamos de outras coisas, como a capacidade de confeccionar e usarferramentas. Mas a confeco de ferramentas insignificante se no estiver associada com acapacidade de cooperar com muitas outras pessoas. Como possvel que hoje tenhamos msseisintercontinentais com ogivas nucleares se h 30 mil anos tnhamos apenas lanas com pontas deslex? Fisiologicamente, no houve qualquer melhoria significativa em nossa capacidade deconfeccionar ferramentas nos ltimos 30 mil anos. Albert Einstein era muito menos hbil com asmos do que um antigo caador-coletor. No entanto, nossa capacidade de cooperar com um grandenmero de estranhos aumentou consideravelmente. A antiga lana com ponta de slex eramanufaturada em minutos por uma nica pessoa, que confiava no conselho e no auxlio de uns poucosamigos ntimos. A produo de uma ogiva nuclear moderna requer a cooperao de milhes deestranhos em todo o mundo dos trabalhadores que extraem o minrio de urnio das profundezas daterra aos estudiosos da fsica que escrevem longas frmulas matemticas para descrever asinteraes entre partculas subatmicas.Para resumir as relaes entre a biologia e a histria aps a Revoluo Cognitiva:

    a. A biologia estabelece os parmetros bsicos para o comportamento e as capacidades doHomo sapiens. Toda a histria acontece dentro dos limites dessa arena biolgica.

    b. No entanto, essa arena extraordinariamente grande, possibilitando que os sapiens joguemuma incrvel variedade de jogos. Graas sua habilidade de criar fices, os sapiens inventamjogos cada vez mais complexos, que cada gerao desenvolve e elabora ainda mais.

    c. Em consequncia, a fim de entender como os sapiens se comportam, devemos descrever a

  • evoluo histrica de suas aes. Considerar apenas nossos limites biolgicos seria como umlocutor esportivo que, ao transmitir uma partida da Copa do Mundo, oferecesse aos ouvintesuma descrio detalhada do campo, em vez de relatar o que os jogadores esto fazendo.

    Que jogo nossos ancestrais da Idade da Pedra jogaram na arena da histria? At onde sabemos, aspessoas que esculpiram o homem-leo de Stadel h cerca de 30 mil anos tinham as mesmascapacidades fsicas, emocionais e intelectuais que ns temos. O que elas faziam assim queacordavam? O que comiam no caf da manh e no almoo? Como eram suas sociedades? Tinhamrelaes monogmicas e famlias nucleares? Tinham cerimnias, cdigos morais, competiesesportivas e rituais religiosos? Travavam guerras? O prximo captulo espreita detrs da cortina daseras, examinando como era a vida nos milnios que separam a Revoluo Cognitiva da RevoluoAgrcola.

    [1] Aqui e nas pginas que seguem, ao mencionar a linguagem sapiens, refiro-me s habilidades lingusticas bsicas de nossa espcie, eno a um dialeto em especfico. Ingls, hindi e chins so todos variantes de linguagem sapiens. Aparentemente, at mesmo na poca daRevoluo Cognitiva diferentes grupos sapiens falavam dialetos diferentes.

  • 3Um dia na vida de Ado e Eva

    PARA ENTENDER NOSSA NATUREZA, NOSSA HISTRIA E NOSSA PSICOLOGIA, DEVEMOS entrar na cabea dos nossosancestrais caadores-coletores. Durante praticamente toda a histria da nossa espcie, os sapiensviveram como caadores-coletores. Os ltimos 200 anos, durante os quais um nmero cada vezmaior de sapiens ganham o po de cada dia como trabalhadores urbanos e funcionriosadministrativos, e os 10 mil anos precedentes, durante os quais a maioria dos sapiens vivia comoagricultores e pastores, so um piscar de olhos em comparao com as dezenas de milhares de anosdurante os quais nossos ancestrais foram caadores e coletores.

    O campo prspero da psicologia evolutiva afirma que muitas de nossas caractersticaspsicolgicas e sociais do presente foram moldadas durante essa longa era pr-agrcola. Ainda hoje,afirmam especialistas da rea, nosso crebro e nossa mente so adaptados para uma vida de caa ecoleta. Nossos hbitos alimentares, nossos conflitos e nossa sexualidade so todos consequncia domodo como nossa mente de caadores-coletores interage com o ambiente ps-industrial de nossosdias, com megacidades, avies, telefones e computadores. Esse ambiente nos d mais recursosmateriais e vida mais longa do que a desfrutada por qualquer gerao anterior, mas tambm nos fazsentir alienados, deprimidos e pressionados. Para entender por qu, apontam os psiclogosevolutivos, precisamos nos aprofundar no mundo de caadores-coletores que nos moldou, o mundoque, subconscientemente, ainda habitamos.

    Por que, por exemplo, as pessoas se regalam com alimentos altamente calricos que to poucobem fazem a seus corpos? As sociedades afluentes de hoje esto tomadas por uma praga deobesidade, que est rapidamente se alastrando para pases em desenvolvimento. intrigante tentarentender por que nos empanturramos com os alimentos mais doces e mais gordurosos queconseguimos encontrar, at considerarmos os hbitos alimentares dos nossos ancestrais caadores-coletores. Nas savanas e florestas que eles habitavam, alimentos doces e calricos eramextremamente raros, e a comida em geral era escassa. Um caador-coletor tpico de 30 mil anos atrss tinha acesso a um tipo de comida doce: frutas maduras. Se uma mulher da Idade da Pedra sedeparasse com uma rvore repleta de figos, a coisa mais razovel a fazer era ingerir o mximo quepudesse imediatamente, antes que um bando de babunos comesse tudo. Hoje, podemos morar emapartamentos com geladeiras abarrotadas, mas nosso DNA ainda pensa que estamos em uma savana. isso o que nos motiva a comer um pote inteiro de sorvete quando encontramos um no freezer e faz-

  • lo descer com uma Coca-Cola grande.Essa teoria do gene guloso amplamente aceita. Outras teorias so muito mais controversas.

    Por exemplo, alguns psiclogos evolutivos afirmam que bandos antigos de caadores-coletores noeram compostos de famlias nucleares centradas em casais monogmicos. Em vez disso, eles viviamem comunidades onde no havia propriedade privada, relaes monogmicas ou mesmo paternidade.Em um bando como esse, uma mulher podia ter relaes sexuais e formar laos ntimos com vrioshomens (e mulheres) ao mesmo tempo, e todos os adultos do bando cooperavam para cuidar dascrianas. Os homens mostravam igual preocupao por todas as crianas, uma vez que nenhum sabiaao certo quais eram definitivamente filhos seus.

    Tal estrutura social no uma utopia aquariana. bem documentada entre animais,notadamente entre nossos parentes mais prximos, os chimpanzs e os bonobos. H, inclusive, umasrie de culturas humanas nos dias de hoje em que se pratica a paternidade coletiva, como, porexemplo, entre os ndios bars. De acordo com as crenas de tais sociedades, uma criana no nascedo esperma de um nico homem, mas da acumulao de esperma no tero de uma mulher. Uma boame trata de ter relaes sexuais com vrios homens diferentes, sobretudo enquanto est grvida,para que seu filho receba as qualidades (e os cuidados paternos) no s do melhor caador comotambm do melhor contador de histrias, do guerreiro mais forte e do amante mais atencioso. Se issoparece estpido, tenha em mente que antes do desenvolvimento dos estudos embriolgicos modernosas pessoas no tinham provas concretas de que os bebs invariavelmente so concebidos por umnico pai, e no por vrios.

    Os defensores dessa teoria da comunidade antiga afirmam que as infidelidades frequentesque caracterizam os casamentos modernos e o ndice elevado de divrcios, sem falar da profuso decomplexos psicolgicos que acometem crianas e adultos, todos resultam de forar os humanos aviver em famlias nucleares e relaes monogmicas, que so incompatveis com nosso programabiolgico.1

    Muitos acadmicos rejeitam veementemente essa teoria, insistindo que a monogamia e aformao de famlias so comportamentos essencialmente humanos. Esses pesquisadores afirmamque, embora as antigas sociedades caadoras-coletoras tendessem a ser mais comunais e igualitriasdo que as sociedades modernas, eram, no entanto, constitudas de clulas separadas, cada uma delascontendo um casal ciumento e os filhos que eles tinham em comum. por isso que hoje as relaesmonogmicas e as famlias nucleares so a norma na grande maioria das culturas, que homens emulheres tendem a ser muito possessivos com relao a seus parceiros e filhos e que at mesmo emEstados modernos como a Coreia do Norte e a Sria a autoridade poltica passa de pai para filho.

  • A fim de resolver essa controvrsia e entender nossa sexualidade, nossa sociedade e nossapoltica, precisamos saber algumas coisas sobre as condies de vida de nossos ancestrais, a fim deexaminar como viviam os sapiens entre a Revoluo Cognitiva de 70 mil anos atrs e o comeo daRevoluo Agrcola, h cerca de 12 mil anos.

    Infelizmente, h poucas certezas a respeito da vida de nossos ancestrais caadores-coletores. Odebate entre os defensores da comunidade antiga e os da monogamia eterna se baseia emindcios escassos. Obviamente, no temos registros escritos da poca dos caadores-coletores, e asevidncias arqueolgicas consistem basicamente de ossos fossilizados e ferramentas de pedra.Artefatos feitos de materiais mais perecveis como madeira, bambu ou couro s sobrevivem emcondies especiais. A impresso comum de que os humanos pr-agrcolas viveram em uma idade dapedra um conceito equivocado baseado nessa tendncia arqueolgica. Seria mais adequado chamara Idade da Pedra de Idade da Madeira, pois a maioria das ferramentas usadas pelos antigoscaadores-coletores era feita de madeira.

    Toda reconstruo da vida dos antigos caadores-coletores com base nos artefatosremanescentes extremamente problemtica. Uma das diferenas mais gritantes entre eles e seusdescendentes agrcolas e industriais que, para comear, os caadores-coletores tinhampouqussimos artefatos, e estes exerciam um papel comparativamente modesto em suas vidas. Aolongo de sua vida, um tpico membro de uma sociedade moderna afluente possui vrios milhes deartefatos de carros e casas a fraldas descartveis e caixas de leite. Dificilmente h uma atividade,uma crena ou mesmo uma emoo que no seja mediada por objetos concebidos por ns mesmos.Nossos hbitos alimentares so mediados por uma coleo impressionante de tais itens, de colheres ecopos a laboratrios de engenharia gentica e navios transocenicos gigantes. Para brincar, usamosuma srie de brinquedos, de cartas de plstico a estdios com 100 mil lugares. Nossas relaesromnticas e sexuais so equipadas por anis, camas, roupas bonitas, lingeries sensuais, camisinhas,restaurantes da moda, motis baratos, salas de espera de aeroporto, sales de festa e empresas decatering. As religies trazem o sagrado nossa vida com igrejas gticas, mesquitas muulmanas,ashrams hindus, rolos de Tor, rodas de orao tibetanas, batinas eclesisticas, velas, incenso,rvores de natal, lpides e cones.

    Mal percebemos o quanto nossos objetos so onipresentes at precisarmos nos mudar parauma casa nova. Os caadores-coletores se mudavam todo ms, toda semana e, s vezes, todo dia,carregando nas costas o que quer que possussem. No havia empresas de mudana, carroas e nemmesmo animais de carga para dividir o fardo. Consequentemente, eles tinham de se virar apenas com

  • as posses essenciais. razovel presumir, portanto, que a maior parte de sua vida mental, religiosa eemotiva fosse conduzida sem a ajuda de artefatos. Um arquelogo trabalhando daqui a 100 mil anosseria capaz de recompor um cenrio razovel da crena e da prtica muulmana com base nos vriosobjetos encontrados em escavaes nas runas de uma mesquita. Mas, hoje, estamos praticamenteperdidos tentando compreender as crenas e os rituais dos antigos caadores-coletores. , em grandemedida, o mesmo dilema que um futuro historiador enfrentaria se tivesse de retratar o mundo socialdos adolescentes do sculo XXI unicamente com base no que sobrevivesse das cartas trocadas entreeles j que no restariam registros de conversas telefnicas, e-mails, blogs e mensagens de texto.

    A dependncia dos artefatos, portanto, resulta em um relato tendencioso da vida dos antigoscaadores-coletores. Uma maneira de remediar isso observar as sociedades caadoras-coletorasmodernas. Estas podem ser estudadas diretamente, por meio de observao antropolgica. Mas hboas razes para ser cauteloso ao fazer inferncias a partir das sociedades caadoras-coletorasmodernas sobre as antigas.

    Em primeiro lugar, todas as sociedades caadoras-coletoras que sobreviveram at nossos diasforam influenciadas por sociedades agrcolas e industriais adjacentes. Portanto, arriscado presumirque o que verdade sobre elas tambm foi verdade h dezenas de milhares de anos.

    Em segundo lugar, as sociedades caadoras-coletoras modernas sobreviveram principalmenteem reas com condies climticas difceis e terreno inspito, inadequado para a agricultura. Associedades que se adaptaram s condies extremas de lugares como o deserto de Kalahari, no sul dafrica, podem muito bem fornecer um modelo um tanto enganoso para entender sociedades antigasem reas frteis como o vale do rio Yangtz. Em particular, a densidade populacional em uma reacomo o deserto de Kalahari muito mais baixa do que foi na regio do antigo Yangtz, e isso temimplicaes profundas para questes essenciais sobre o tamanho e a estrutura dos bandos humanos ea relao entre eles.

    Em terceiro lugar, a caracterstica mais notvel das sociedades caadoras-coletoras o quantoelas so diferentes umas das outras. Diferem no s de uma parte do mundo a outra como inclusive namesma regio. Um bom exemplo a enorme variedade que os primeiros colonizadores europeusencontraram entre os povos aborgenes da Austrlia. Logo antes da conquista britnica, entre 300 mile 700 mil caadores-coletores viviam no continente distribudos em 200 a 600 tribos, cada umadividida em vrios bandos.2 Cada tribo tinha seu prprio idioma, religio, normas e costumes. Pertodo que hoje Adelaide, no sul da Austrlia, viviam vrios cls patrilineares, que se baseavam nadescendncia por parte de pai. Esses cls se uniam em tribos por razes estritamente territoriais. Porsua vez, algumas tribos no norte da Austrlia davam mais importncia ancestralidade materna de

  • uma pessoa, e sua identidade tribal no se baseava em territrio, e sim em seu totem. razovel pensar que a variedade tnica e cultural entre os antigos caadores-coletores fosse

    igualmente impressionante e que os 5-8 milhes de caadores-coletores que povoaram o mundo vspera da Revoluo Agrcola se dividissem em milhares de tribos com milhares de idiomas eculturas diferentes.3 Esse, afinal, foi um dos principais legados da Revoluo Cognitiva. Graas aosurgimento da fico, at mesmo pessoas com a mesma composio gentica e vivendo em condiesecolgicas similares foram capazes de criar realidades imaginadas muito diferentes, que semanifestavam em diferentes normas e valores.

    Por exemplo, temos todas as razes para acreditar que um bando de caadores-coletores queviveram h 20 mil anos na regio da atual Lisboa teria falado uma lngua diferente daquele que viveuonde hoje se situa a cidade do Porto. Um bando pode ter sido beligerante e o outro, pacfico. Talvezo bando de Lisboa fosse comunal, e o do Porto se baseasse em famlias nucleares. O povo de Lisboatalvez passasse horas esculpindo esttuas de madeira de seus espritos guardies, ao passo que seuscontemporneos do Porto mostravam sua devoo por meio da dana. Os primeiros talvezacreditassem em reencarnao, enquanto os ltimos consideravam isso absurdo. Em uma sociedade,relaes homossexuais podem ter sido aceitas, ao passo que na outra eram um tabu.

    Em outras palavras, embora as observaes antropolgicas dos caadores-coletores modernospossam nos ajudar a entender algumas das possibilidades disponveis para os caadores-coletoresantigos, o horizonte de possibilidades daquela poca era muito mais amplo e, em sua maior parte, desconhecido para ns.[1] Os debates acalorados s