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Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011 175 Paixões desnaturadas? Notas para uma ecologia queer 1 Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O presente artigo se propõe a pensar uma perspectiva queer para a ecologia política. Percebendo o heterossexismo como parte da rede opressiva de relações de poder, por meio da qual as relações humanas com a natureza são organizadas, Sandilands preocupa- se em propor um outro modo de vermos as relações entre natureza, seres humanos e sexualidade. O artigo trata dos primórdios dos movimentos ambientais na América do Norte e das diferentes ideologias que ligam, heteronormativamente, espaços naturais à heterossexualidade e homossexualidade a uma degeneração urbana. Para confrontar essa oposição entre natureza e homossexualidade, vai buscar na literatura e na história do movimento LGBTT (Lésbicas, Gays, Bisexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) na América do Norte inspiração para propor uma ecologia queer; com esse propósito, nos apresenta Zita Grover com sua conexão metafórica entre a “AIDS e outros desmatamentos” como uma das grandes inspirações para essa tarefa. Sua perspectiva ambiental, fundada na experiência dolorosa partilhada por uma comunidade que se encontrou de repente fortemente afetada pela AIDS, possibilita a ela um olhar ecologicamente sensível. Palavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: ecologia política queer; ecofeminismo; sexualidade; LGBTT; política sexual. Copyright © 2011 by Revista Estudos Feministas. 1 Este texto foi originalmente apresentado no dia 19 de feve- reiro de 2004, na Marquette University, por ocasião da Starshak Lecture. Catriona Mortimer-Sandilands York University, Canada Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia queer queer queer queer queer : da : da : da : da : da perspectiva ao poder perspectiva ao poder perspectiva ao poder perspectiva ao poder perspectiva ao poder Na abertura de North Enough, sua memória de 1997, Jan Zita Grover descreve sua mudança de São Francisco para as florestas do norte de Minnesota: “eu não me mudei para Minnesota por causa da floresta”, escreve, “Eu só tinha apenas uma ideia vaga do que esse termo significava, quando vi pela primeira vez, no começo da primavera, a bétula, o choupo e o lariço despidos de seus espinhos e folhas. Pensei que elas pareciam doentes”. 2 Sendo uma trabalhadora da linha de frente do combate à AIDS, na década de 1980, em uma cidade dizimada pela doença, não é de se surpreender que Grover visse doença por todos os lados. “Eu me mudei pra cá,” relata, “para tentar deixar para trás – ou ao menos a uma distância remota – a praga 2 GROVER, 1997, p. 3.

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Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011 175

Paixões desnaturadas? Notas parauma ecologia queer11111

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O presente artigo se propõe a pensar uma perspectiva queer para a ecologiapolítica. Percebendo o heterossexismo como parte da rede opressiva de relações de poder,por meio da qual as relações humanas com a natureza são organizadas, Sandilands preocupa-se em propor um outro modo de vermos as relações entre natureza, seres humanos e sexualidade.O artigo trata dos primórdios dos movimentos ambientais na América do Norte e das diferentesideologias que ligam, heteronormativamente, espaços naturais à heterossexualidade ehomossexualidade a uma degeneração urbana. Para confrontar essa oposição entre naturezae homossexualidade, vai buscar na literatura e na história do movimento LGBTT (Lésbicas, Gays,Bisexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) na América do Norte inspiração para proporuma ecologia queer; com esse propósito, nos apresenta Zita Grover com sua conexão metafóricaentre a “AIDS e outros desmatamentos” como uma das grandes inspirações para essa tarefa. Suaperspectiva ambiental, fundada na experiência dolorosa partilhada por uma comunidade quese encontrou de repente fortemente afetada pela AIDS, possibilita a ela um olhar ecologicamentesensível.PPPPPalavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: ecologia política queer; ecofeminismo; sexualidade; LGBTT; política sexual.

Copyright © 2011 by RevistaEstudos Feministas.1 Este texto foi originalmenteapresentado no dia 19 de feve-reiro de 2004, na MarquetteUniversity, por ocasião da StarshakLecture.

Catriona Mortimer-SandilandsYork University, Canada

Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia Introduzindo a ecologia queerqueerqueerqueerqueer : da: da: da: da: daperspectiva ao poderperspectiva ao poderperspectiva ao poderperspectiva ao poderperspectiva ao poder

Na abertura de North Enough, sua memória de 1997,Jan Zita Grover descreve sua mudança de São Franciscopara as florestas do norte de Minnesota: “eu não me mudeipara Minnesota por causa da floresta”, escreve, “Eu só tinhaapenas uma ideia vaga do que esse termo significava,quando vi pela primeira vez, no começo da primavera, abétula, o choupo e o lariço despidos de seus espinhos efolhas. Pensei que elas pareciam doentes”.2 Sendo umatrabalhadora da linha de frente do combate à AIDS, nadécada de 1980, em uma cidade dizimada pela doença,não é de se surpreender que Grover visse doença por todosos lados. “Eu me mudei pra cá,” relata, “para tentar deixarpara trás – ou ao menos a uma distância remota – a praga

2 GROVER, 1997, p. 3.

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que consumiu minha vida pelos últimos seis anos”.3 Evidente-mente, Grover não pode deixar sua praga para trás; elaainda estava “pesada com o luto e carregada de tristeza”.4

Embora ela tenha se mudado para as florestas do norte coma esperança de achar algum tipo de cura na paisagemnatural, uma “cura geográfica” como descreve, logo perce-beu que isso não era possível.

A ideia de que uma pessoa pudesse achar inteirezanatural nessa paisagem dura, boreal, foi estilhaçada tão logoavistou a vastidão desmatada e a estreita faixa5 de árvores,mantida ao longo da via expressa numa tentativa tola deapagar as cicatrizes da paisagem causadas pela indústriade papel. A história pós-contato com as florestas do norterevela uma região repetidamente marcada por erros eganância humanos: o cultivo beirava o impossível no solofino e ácido, e as tentativas, nos anos 20, de drenar o terrenopantanoso resultaram apenas numa dívida incapacitante. Aúnica opção comercial deixada para a região, a extraçãode madeira, procedia praticamente sem restrição: não haviaaqui um paraíso encontrado. Como descreve Grover, “aporção setentrional do meio-oeste [dos Estados Unidos] é ummosaico de uma série de desastres locais, nos quais os siste-mas vivos, um dia intactos, foram pilhados pela ignorância,ganância e esperança ilimitada”.6

Entretanto, foi exatamente em seu definhamentoecológico que essas paisagens machucadas acabarampor ensiná-la. “Em vez de soluções já prontas”, Grover escreveque as florestas do norte

me ofereceram um desafio que não esperava, umadisciplina espiritual: para apreciá-las eu devia aprendercomo ver suas cicatrizes, mutilação e artificialidade,e então aprender a ver além delas, suas forças – suahistoricidade, as belezas difíceis que subjazem a suasdeformidades.7

Nessa paisagem, ela entendeu que seu desafio nãoera deixar a AIDS para trás, mas reconhecer e aceitar oimpacto que ela teve em sua vida; de fato, as ressonânciasduradouras da AIDS lhe permitiram dar resposta ao desafiode amar as florestas do norte, não apesar de, mas por causade suas feridas. “Ao aprender como amar as florestas donorte, não do jeito que são fantasiadas, mas como realmentesão, eu descobri as lições que a AIDS me ensinou e me sentigrata por elas”.8

A conexão metafórica de Grover entre a “AIDS e outrosdesmatamentos” é, ao mesmo tempo, bonita e dolorosa. Eladescreve, por exemplo, o ato de trocar as ataduras doferimento da perna, macerada pelo Sarcoma de Kaposi, deuma amiga moribunda: “Aquilo não se parecia com uma

3 GROVER, 1997, p. 3.

4 GROVER, 1997, p. 5.

5 Nota da tradutora: na Américado Norte, essa faixa pequena deárvores, que é normalmentemantida próxima às rodovias,chama-se “idiot strips”.

6 GROVER, 1997, p. 142.

7 GROVER, 1997, p. 6.

8 GROVER, 1997, p. 6.

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perna. Parecia com um solo recém-revolvido, negro ecindido”.9 Mas Grover encontra, no improvável espaço horrífi-co de sua amiga moribunda, uma apreciação real à plenitu-de de viver. Ela podia ver, numa ferida purulenta, a belezaaterradora da carne tornando-se solo, e podia também ver,num desmatamento, tanto as devastações da extraçãocapitalista quanto a vivacidade dos pinheiros e choupos.....

Em seu reconhecimento das formas com que a AIDSinflu-enciava sua habilidade de apreciar o ambiente naturalao seu redor, Grover demonstra o que eu chamarei de umasensibilidade ‘ecológica queer’. Por esse nome, quero dizerque ela focaliza dimensões de sua experiência, nascidasna história específica de uma comunidade queer, e usa asressonâncias emocionais e as ligações conceituais resul-tantes para viver em natureza, de uma forma que refleteessa experiência queer. Posto de maneira simples: Grover vêa natureza através de olhos queer, e o que ela vê é impor-tante e único. Não estou sugerindo que a AIDS seja umadoença unicamente gay, e nem que a experiência de cuidarde uma pessoa com AIDS automaticamente daria vazão auma ecologia queer. Mas é evidente que a comunidadequeer de São Francisco foi afetada de maneiras particularespela AIDS, e que esse conjunto de experiências cultivou tiposbastante particulares de percepções sobre vida, morte, corpoe natureza.

Com Grover como minha guia, argumento que real-mente existe algo como uma ecologia queer. Essa afirmaçãonão deve parecer uma surpresa para leitoras familiariza-das10 com ecofeminismo ou justiça ambiental. As ecofemi-nistas têm argumentado, por trinta anos, que gênero é umfator significante na moldagem de nossas percepções dosambientes naturais. Por exemplo, em algumas situações,divisões generadas11 de trabalho organizam o trabalho demulheres e homens de forma bastante diferente. Numacomunidade dependente da floresta, na qual companhiasmadeireiras empregam homens, em sua maioria, para dirigiros pesados equipamentos típicos da extração industrial demadeira, e na qual as mulheres podem trabalhar emindústrias de serviço ou em casa, é bem provável que existauma diferença entre homens e mulheres em termos de suaspercepções cotidianas da floresta. De maneira similar, omovimento de justiça ambiental chamou atenção para ofato de que as ideias sobre a natureza são fortementeracializadas. Por exemplo, numa paisagem segregada, afro-descendentes têm um acesso a ‘naturezas’ muito diferentesdo que têm pessoas brancas, e essa experiência influenciaevidentemente os valores ambientais de uma comunidade.

Para as ecofeministas e as ativistas de justiçaambiental, questões de epistemologia estão ligadas

9 GROVER, 1997, p. 23.

10 Nota da tradutora: faço opçãopelo plural no feminino, quebran-do a norma do masculino univer-sal, com o intuito de causar umdesconforto com o gênero linguís-tico que possa refletir num ques-tionamento a respeito da manu-tenção do gênero social.11 Nota da tradutora: paralembrarmos que o que o gêneroé construído, opto por traduzir otermo “gendered” por “genera-das”, seguindo a intuição de queo gênero é um verbo. Sua proximi-dade ao verbo usual em portu-guês ‘degenerar’, que significa,entre outras coisas, perder asqualidades essenciais ou naturais,mas também possui um usobastante conectado a uma moralsexual, imprime outra camada designificação ao termo.

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inerentemente a questões de poder. Elas argumentam queo sexismo e o racismo são formas sistêmicas de opressãoque influenciam negativamente as relações de sereshumanos com o mundo natural, e também que ideias einstituições de natureza são locais importantes nos quais oracismo e o sexismo são organizados. Para exemplificar: omovimento nacional de parques, iniciados no final doséculo XIX, defendia a proteção de áreas de vegetaçãonativa ‘primitiva’ contra os avanços dos assentamentos eda extração de recursos. De fato, nós constantemente vemosativistas dos parques, como John Muir, fundador do ClubeSierra, como progenitores heroicos do movimento ambientalmoderno. Porém, temos que notar que parques como oYelowstone e o Banff são entendidos como o destino deviajantes em recreação, lugares onde a elite pode participarde atividades saudáveis e que levantam o moral, comotrilhas e escaladas. Nessa ligação da preservação com arecreação da elite, nós vemos uma visão de natureza muitoespecífica de classe, raça e gênero sendo imposta àpaisagem. Também é importante apontar para o fato deque tanto o Yellowstone quanto o Baff eram ‘habitados’ quan-do foram criados: para tornarem-se suficientemente primitivospara viajantes em busca de uma paisagem selvagem epitoresca, eles foram esvaziados física e legislativamentede suas populações aborígenes.

É sabido que as primeiras pessoas a trabalharem aterra não faziam parte da ideia de natureza que informavao movimento nacional dos parques, e que a instituição doideal branco de natureza foi uma instância importante daopressão racial. O próprio desejo de parques selvagens,como expressados por Muir, era também racista. O argumentode Muir era de que as cidades do leste, que seindustrializavam rapidamente, estavam literalmentepoluídas pela presença crescente de imigrantes nãoeuropeus, o que criava uma necessidade crescente deespaços ‘limpos’ para pessoas brancas. No final do séculoXIX, essas cidades eram também lugares onde o gêneroestava transformando-se rapidamente, à medida quemulheres entravam na força de trabalho industrial. Mulheresda classe média começavam a fazer incursões emeducação superior e em algumas profissões. Assim, comopercebe o historiador Peter Boag, quando TheodoreRoosevelt foi eleito, havia uma percepção entre homensbrancos norte-americanos de que sua masculinidadeestava em risco nas cidades. “Em resposta aos ideais degênero inconstantes em decorrência das alterações naordem econômica, homens da classe média e alta encon-traram novas formas [...] para definir sua masculinidade”.12

Com Muir e Roosevelt ao leme, tais homens voltaram-se para

12 BOAG, 2003, p. 50.

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recreações agressivas na natureza – caça por esporte,montanhismo – como modo de afirmar sua virilidade; assim,os parques acabaram por encorporar13 um ideal especifica-mente masculino de natureza, um que excluía mulheres, aclasse operária urbana e não europeias/não europeus. Paracitar novamente Boag, “A masculinidade e até mesmo aprópria ‘raça humana’, do jeito que entendiam Roosevelt eoutros americanos de classe média e alta de sua era,dependiam de condições ambientais opostas àquelas quea cidade oferecia”.14 Dessa forma, os parques eram lugaresimportantes para ver as operações entrelaçadas de raça,gênero, classe e natureza, e também estavam implicadosnas relações sociais de sexualidade. Os parques nasceram‘de’ uma visão generada ‘na’ natureza. Por sua vez, os par-ques davam suporte e entendiam ideais de masculinidadeque eram classe e racialmente situados e apagaramliteralmente as populações aborígenes da paisagem, comresultados realmente desastrosos para todas as coisasenvolvidas, incluindo a própria natureza.

Voltando abruptamente para o ponto central desteensaio, o ecofeminismo e a justiça ambiental abrem nossosolhos para o fato de que a natureza organiza e é organizadapor relações de poder complexas. O que a ecologia queeradiciona a isso é o fato de que essas relações de poderincluem a sexualidade. Mas o que revela uma análise dequestões ambientais baseada numa perspectiva queer? Oque significa pensar sobre a natureza como o lugar no qualas relações sociais de sexualidade são colocadas em jogo,e vice-versa? Eu me aproximarei dessas questões de trêsmaneiras diferentes, mas relacionadas. Primeiramente, explo-rarei algumas conexões históricas que se desenvolveramentre as instituições da sexualidade e as instituições danatureza. Podemos ver – talvez mais obviamente na classi-ficação de corpos gays, lésbicas, bissexuais, transgênero equeer como, de alguma forma, não naturais – que os enten-dimentos modernos da sexualidade são profundamenteinfluenciados por ideias de natureza historicamenteespecífica. Ligada a essa história conceitual, está asegunda linha de exploração: podemos ver que muitas dasformações modernas do espaço natural – incluindo parquese outros espaços naturais designados – estão organizadaspor pressuposições prevalecentes sobre sexualidade e,especialmente, por um movimento de institucionalizar aheterossexualidade ao ligá-la a uma prática ambientalparticular. Finalmente, eu discutirei como o projeto ecológicoqueer pode proceder desafiando essas ligaçõesproblemáticas entre as relações de poder de sexualidade enatureza. Queers têm, de formas variadas, desafiado oemparelhamento destrutivo de sexualidade e natureza:

13Traduzo o termo embodied peloneologismo encorporado seguin-do Eduardo Viveiros de Castro,visto que nem encarnar nem mes-mo incorporar parecem termosadequados.

14 BOAG, 2003, p. 50-51.

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desenvolvendo um ‘discurso reverso’ orientado para odesafio dos entendimentos dominantes de nossas ‘paixõesdesnaturadas’; tomando emprestado o pensamentoecológico para desenvolver uma política gay e lésbicaradicalmente transformativa; e, como Grover, pegandoelementos da experiência queer para construir umaperspectiva ambiental alternativa.

Histórias de sexualidade e ecologia: des/Histórias de sexualidade e ecologia: des/Histórias de sexualidade e ecologia: des/Histórias de sexualidade e ecologia: des/Histórias de sexualidade e ecologia: des/naturalizando o naturalizando o naturalizando o naturalizando o naturalizando o queerqueerqueerqueerqueer

Talvez o ponto de partida mais importante para estaanálise é o fato de que as categorias, por meio das quaisnós atualmente entendemos a sexualidade e a identidadesexual, não são ‘naturais’. Com isso, eu quero dizer que ascategorias gay, lésbica, bissexual, transgênero e queer nãoestão dadas ‘na natureza’. No entanto, como o biólogo BruceBagemihl demonstrou, a atividade homoerótica floresce, esempre floresceu, numa grande variedade de espécies; aforma que predominantemente entendemos a sexualidade,na virada do século XXI, é um artefato localizado em ideiase instituições bastante específicas.15 Em particular, a noçãode sexualidade, como parte da identidade de uma pessoae como a parte da identidade dessa pessoa que pode seassentar em algum fato da biologia, é um desenvolvimentomuito recente. Como apontou Michel Foucault, entender“homossexual” como uma categoria distinta de pessoas éum produto único da sociedade vitoriana; anteriormente aoséculo XIX, havia uma vasta gama de formas de atividadessexuais, mas esses atos sexuais eram – ao menos entrehomens – entendidos como ocorrendo potencialmente emqualquer lugar e entre quaisquer pessoas.16 Assim, porexemplo, a Marinha britânica tinha uma regra segundo aqual a sodomia era perfeitamente legítima, desde que osmarinheiros estivessem no mar por no mínimo seis meses;aqui a sodomia não era algo que acontecia porque ummarinheiro “era gay”, mas simplesmente uma atividadesexual particular – mesmo que não totalmente respeitável.

O motivo de agora entendermos comumente asexualidade como uma questão de identidade natural temmuito a ver com a confluência do pensamento biomédicocom a regulação social que se desenvolveu durante aúltima metade do século XIX. Ao mesmo tempo em que aciência biológica criava um entendimento das categoriasde espécie baseadas na posse de certos traços, a ciênciamédica estava desenvolvendo uma categorização detraços sexuais com o intuito de explicar o comportamentosexual como parte da vida biológica da espécie humana.O nascer do pensamento evolucionário definiu uma narrativa

15 Bruce BAGEMIL, 1999.

16 FOUCAULT, 1978.

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biológica que teve uma influência grande nas pesquisasmédicas sobre sexualidade; eram particularmente impor-tantes as ideias de seleção sexual e aptidão reprodutiva,nas quais a sobrevivência da espécie era entendida comodependente do encontro entre reprodutores mais fortes emelhores. Nessa narrativa, a heterossexualidade foientendida, pela primeira vez na história, como uma categoriadistinta da prática sexual, a naturalidade solidificada porsua oposição às identidades chamadas de desviantes,aquelas que não se encaixavam numa narrativa evolucio-nária. Para Darwin, somente a corte e o acasalamentoheterossexual poderia ser ‘natural’ porque era a reproduçãoque permitia à espécie continuar; apesar de evidênciasesmagadoras sugerirem que o homoerotismo estava por todolugar na natureza, o pensamento evolucionário acabou pordefini-lo como aberrante.

Na medicina, a homossexualidade era classificadacomo uma ‘doença’ (oposta ao pecado), como umapatologia que se focava no indivíduo sexualizado e não noato sexual. Como nota Foucault, a medicina moderna noslevou das regulações dos atos sexuais para a organizaçãoe o ‘tratamento’ das identidades sexuais; onde poderia terhavido mulheres que faziam sexo com mulheres (apesar deas/os vitorianas/os não reconhecerem isso), agora haviaportadores formais de categorias sexuais – ‘invertidas’,‘tribades’ e ‘lésbicas’ – cujas atividades sexuais com outrasmulheres poderiam ser ligadas a alguma falha biológicabásica. Em resumo, no final do século XIX, a sexualidadetornou-se naturalizada; os desejos sexuais de um indivíduoeram recodificados como expressões de uma condiçãoinerentemente sexual, e essa condição era entendida emtermos fortemente biológicos. Mas existe um paradoxointeressante aqui: a homossexualidade era simultaneamentenaturalizada e considerada ‘desnaturada’, desviante deuma sexualidade primária e normativa.

Existem muitas coisas importantes a serem ditas sobreesse processo. Em primeiro lugar, não apenas as ideias denatureza eram instrumentais na regulação social dasexualidade, mas a heterossexualidade passou a ser oparadigma sexual para ideias de evolução e ecologia. Areprodução sexual era a única forma de atividade sexualque levava diretamente a continuação da espécie de umageração a outra; assim, logicamente, outras atividadessexuais devem ser ou aberrantes, ou, no máximo,indiretamente parte do processo reprodutivo heterossexual.Rituais de dança17 entre os galos-da-serra eram lidos apenascomo uma competição pela atração feminina e não ‘como’uma atividade homoerótica entre dois machos. Mesmo hoje,algumas/alguns psicólogas/os evolucionárias/os se

17 Nota da tradutora: a autora falade ‘preening ritual’ que, ao pé daletra, é uma atividade de higiene,de limpar as penas com o bico.Mas, devido à complementação,acredito que ela esteja referindo-se ao ritual conhecido como ‘lek’,que são os círculos de dança emque machos de algumas espéciesde pássaros, dentre eles os galos-da-serra, se engajam. O ‘lek’ évulgarmente definido como umaarena ou dança para o acasala-mento, mas a autora sugere queisso seja uma projeção heteros-sexista do olhar da biologia.

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amarram em nós tentando explicar a significação reprodu-tiva da atividade sexual prolífica entre indivíduos do mesmosexo18 que ocorre regulamente entre bonobos fêmeas.19

A ciência da ecologia foi fortemente influenciadapor essa narrativa evolucionária. A lógica é a seguinte: se ahabilidade de uma espécie de sobreviver em seu ambienteé ligada a sua aptidão reprodutiva, então os ambientes‘saudáveis’ são aqueles nos quais tal atividade heteros-sexual floresce. Obviamente, essa linha de pensamento nãoera consenso total, guiada mais por pressupostos heteros-sexistas do que por um entendimento complexo das relaçõessociais diversas que ocorrem em várias espécies animais.Mas teve consequências infelizes. Em um caso, ecologistasbem-intencionadas/os, convencidas/os da patologiaevolucionária do erotismo de mesmo sexo, argumentaramque a presença generalizada de atividade aparentelésbica entre gaivotas num local particular deve ser evidên-cia de uma grande catástrofe ambiental.20 Com certeza nãoera o caso: o mundo está cheio de gaivotas lésbicas. Essetipo de posição ambiental repro-cêntrica permanecedominante; de fato, também foi usada para argumentarque a prevalência contemporânea de indivíduos transgê-neros (humanos ou outros) deve ter por trás um evento ou pro-cesso contaminante. A pressuposição de que a heteros-sexualidade é a única forma natural de sexualidade eviden-temente não é uma referência apropriada para a pesquisaecológica, não importa o quanto se queira levantar indica-dores de poluição baseados no comportamento animal ououtra mudança ambiental. Ainda, mesmo em argumentosambientais sobre a destruição causada pelo crescimentopopulacional humano, o paradigma da heterossexualidade‘natural’ sobrepõe o fato óbvio de que existem várias opçõessexuais não reprodutivas por aí.

Em primeiro lugar, temos uma situação na qual asexualidade é biologizada em categorias normativasnaturalizadas; e o pensamento evolucionário e ecológicoem desenvolvimento está influenciado por um paradigmafortemente heterossexista. Em segundo lugar, não foi apenasa evolução que se codificou heterossexualmente duranteesse período. Enquanto o final do século XIX viu o surgimentotanto dos entendimentos modernos de sexualidade quantodas ideias evolucionárias da saúde da espécie, incluindoa saúde humana, ele também viu os primórdios doambientalismo moderno e, em especial, as políticas depreservação da natureza e enverdecimento urbano.

18 Nota da tradutora: aqui ela usa‘same-gender’.19 Paul VASEY, 2000, p. 35-36.

20 Martin SILVERSTONE, 2000, p. 6.

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Ambientes Ambientes Ambientes Ambientes Ambientes queerqueerqueerqueerqueer: a política sexual de: a política sexual de: a política sexual de: a política sexual de: a política sexual deespaços naturaisespaços naturaisespaços naturaisespaços naturaisespaços naturais

Aqui eu gostaria de voltar nossa atenção para longeda ecologia como ciência, em direção ao ambientalismocomo uma política do espaço natural, na qual a sexualidadetambém teve influências interessantes. De fato, os valoressexuais representados em lutas sobre espaço tiveram umainfluência tão forte sobre o ambientalismo quanto aquelasprofundamente envolvidas na ciência da ecologia. Apesarde haver muitas histórias que eu possa contar, o que eugostaria de falar, brevemente, é sobre o fato que mencioneiem minha discussão dos parques nacionais no início destetexto. Reiterando: nessa primeira encarnação, o ambienta-lismo norte-americano emergiu como uma resposta ao surgi-mento de cidades industriais. Como argumentei, ambientesselvagens e rurais passaram a ser valorizados como lugaresa serem preservados ‘longe’ das influências corruptas damodernidade urbana industrial. Além disso, o cultivo deespaços ‘naturais’ dentro das cidades, incluindo parquesurbanos como o Central Park em Nova Iorque, foi concebidocomo uma forma de trazer saúde e moralidade para as/oshabitantes da cidade. A natureza era, aqui, um espaço deintensiva regulação moral; dada a associação crescenteda sexualidade com imagens de natureza, o sexo tornou-seum elemento-chave na organização da natureza comoespaço regulador.

O Movimento de Parques, como eu mencionei, nas-ceu parcialmente do desejo de facilitar práticas recreativasque restaurassem as virtudes masculinas que se encon-travam ameaçadas. Óbvio que esse desejo também foiimplantado na pressuposição de que as cidades eram luga-res de uma degenerescência moral particular, associada àhomossexualidade. Pensadores médicos do final do séculoXIX chegaram a acreditar que as condições ambientais degrandes centros urbanos realmente cultivavam a homos-sexualidade, particularmente devido a uma ideia de que ahomossexualidade era um tipo de doença. Várias explica-ções eram oferecidas para essa suposta degeneração moralurbana: o pensamento de que o trabalho que os homensfaziam nas cidades não mais os trazia para um contatopróximo e honrado com a natureza; a crença racista de quea homossexualidade estava associada a populações ‘imi-grantes’; e a crescente noção de que a homossexualidadepudesse ter causas ambientais. Para citar Boag, na mentede algumas/alguns médicas/os vitorianas/os “a poluição,alimentos contaminados e até mesmo a natureza rápidada vida urbana induziam” à homossexualidade.21 Emresposta, a criação de remotos espaços selvagens recrea-

21 BOAG, 2003, p. 49.

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tivos e a demarcação de espaços verdes ‘saudáveis’ dentroda cidade eram entendidas parcialmente como umantídoto terapêutico para as devastações sociais dahomossexualidade afeminada.

A construção conjunta de sexo e natureza é bastantecomplexa; apesar de não entrar nisso aqui, está fortementeatada a ideias modernas de nacionalismo, tanto nos EstadosUnidos quanto no Canadá. Mas existem dois conjuntos deideias que eu gostaria de abandonar. Primeiro, existe apressuposição de que a homossexualidade é um produtourbano, e que os espaços rurais e selvagens são, de certaforma, ‘livres’ da ‘mácula’ da atividade homoerótica. Defato, nada poderia estar mais longe da verdade. Ao final doséculo XIX, entrando no século XX, os desertos selvagens dooeste eram um espaço fortemente dominado por comuni-dades de homens. Estes homens – garimpeiros, vaqueiros,rancheiros – como os marinheiros britânicos no mar por maisde seis meses, frequentemente envolviam-se em atividadeshomossexuais. De fato, se a pesquisa do sexólogo AlfredKinsey estiver correta, havia, no século XIX, ‘mais’ atividadesexual de mesmo-sexo na remota natureza selvagem do quenas cidades.

Como sugeri anteriormente, tais homens não eramentendidos como ‘homossexuais’. Para citar Kinsey, “eramhomens que enfrentavam os rigores da natureza numambiente selvagem […] tal pano de fundo alimenta a atitudede que sexo é sexo, independente da natureza da/oparceira/o com quem se tem a relação”.22 Foi apenas apartir do momento em que a homossexualidade passou aser entendida como uma identidade inerente e baseadana biologia que passou a ser entendida como uma doençae localizada na ‘artificialidade’ das cidades. Certamente,,,,,as cidades tornaram mais fácil o contato homoerótico anô-nimo entre homens interessados. Além disso, cidades de portecomo Nova Iorque e São Francisco tornaram-se, eventual-mente, lugares muito importantes para homens homossexuaiscriarem espaço para suas inexperientes comunidadessexuais. Mas eram a crescente ‘visibilidade’ dessas comuni-dades e a crescente associação da homossexualidade coma artificialidade que ligavam o homossexual ao urbano, enão uma presença homoerótica maior. Simplificando, foiapenas quando o homossexual tornou-se urbano que eletornou-se ‘desnaturado’; as crescentes críticas ambientaisda artificialidade das cidades foram instrumentais na molda-gem das ideias a respeito da artificialidade de queers.

A ligação de homossexualidade e cidades era aquium produto evidente da ideologia, mas essa ideologia teveum impacto material enorme tanto em queers quanto nosespaços naturais. A pressuposição prevalecente de que as

22 Citado em BOAG, 2003, p. 52.

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comunidades queer são essencialmente urbanas teve oefeito de apagar a presença atual de gays e lésbicas rurais,cujas vidas podem não parecer tanto com as de ChristopherStreet.23 Esse apagamento contribuiu para a fuga de queersrurais de suas casas para encontrar ‘verdadeiras’ comuni-dades nas cidades, para a formação de guetos da culturaqueer e para a pressuposição bem difundida de queespaços rurais são inerentemente hostis a pessoas queer.Apesar de não podermos esquecer Brandon Teena e MathewShepard,24 é evidente que os espaços urbanos são muitomais perigosos para nós que espaços rurais. Além disso,esses processos espaciais também afetaram nossos espaçosde ‘natureza’. Em um dos extremos do espectro, vemos aconcentração física de gays e lésbicas em vizinhançasurbanas particulares; seus padrões distintos e diversos decomunidade ‘organizam’ a natureza urbana de jeitosparticulares. Menos conhecido, no entanto, é o fato de queo heterossexismo, em paisagens rurais, fisicamente moldoua aparência da natureza rural.

As naturezas recreativa e rural são materiais marcadospelo heterossexismo. Na primeira categoria, espaços comoos parques nacionais claramente portam as marcasdesenvolvimentistas de ideias específicas da naturezagenerada e sexualizada. Para um pequeno exemplo, penseem locais públicos para acampamento. Principalmentedepois dos anos 1950, muitos locais de acampamento foramdesenhados intencionalmente para parecerem cul-de-sacsuburbanos, cada acampamento evidentemente desenha-do para uma família nuclear e todo acampamento ocorren-do em lugares ‘privados’ designados, longe das atividadesrecreativas ‘públicas’ como nadar, fazer trilha e subir monta-nha. As árvores eram cortadas num padrão que escondiaas/os campistas umas/uns das/os outras/os, mas não tiravama visão da pista ou da trilha, para que os patrulheiros ouguardiães ainda pudessem vigiar e se assegurar de quenada ilegal (como a sodomia) estava acontecendo.

Para outro exemplo mais antigo, considere o assen-tamento de boa parte do estado do Oregon. Em meados doséculo XIX, o Ato de Doação de Terras (DLA) encorajava umpadrão de colonização heterossexual devido à forma quea terra era parcelada e distribuída às/aos colonas/os. “Umhomem branco na faixa dos 21 ou mais velho [...] recebiauma parcela de 160 acres e um adicional de 160 acrespara sua mulher.”25 Mulheres solteiras não eram candidatasao loteamento, e isso estava evidente na vantagem que oshomens apresentavam de poder receber as duas parcelas;então “garotas muito jovens de repente se tornavam casáveis,e logo se tornavam esposas”.26 Por causa do tamanho maiordesses loteamentos, comparativamente, e da popularidade

23 Christopher Street é uma ruano West Village, em Manhattan,onde fica o Stonewall Inn, palcoda Revolta de Stonewall, em 1970– grande marco na história domovimento por direitos civis LGBTTnos EUA.24 Mathew Sheppard e BrandonTeena foram duas pessoas vitima-das pela violência homo e trans-fóbica no interior dos EUA. A histó-ria de Brandon Teena foi narradaem alguns filmes, inclusive oholywoodiano “‘Garotos nãoChoram”.

25 BOAG, 2003, p. 47.

26 JOHANSEN apud BOAG, 2003,p. 47.

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do programa, não apenas a DLA encorajou o casamentoheterossexual ao longo do assentamento do oeste, masimpôs na terra uma cultura monolítica de lotes simples dotamanho de uma família heterossexual, com efeitossignificativos na história econômica e ambiental da região,desde padrões de cultivo da terra baseado no modelo defamília nucleares, a inibição do desenvolvimento urbanoaté o aumento da florestação.

Como resultado da associação de queers dege-nerados com as paisagens urbanas, e da vida familiar hete-rossexual com as paisagens rurais e selvagens, desenvolveu-se, no século XIX, a ideia de que a natureza é um lugarprivilegiado para desenvolver-se uma aptidão física e moral.Com o uso hetero-masculino do ambiente selvagem navirada do século – que, incidentalmente, também viu osurgimento de organizações como os Escoteiros – podemosver os antecedentes de como a natureza era usada, durantea Grande Depressão e na II Guerra Mundial, como um lugarpara cultivo de um ideal ‘disciplinar’ rígido do macho-hetero.Nos Estados Unidos, por exemplo, organizações como a Civi-lian Conservation Corps ofereciam a jovens rapazes desem-pregados trabalhos físico e moralmente saudáveis emambientes selvagens. Aparentemente sob risco de degene-rescência nas cidades, tais jovens eram locados em camposdistantes de centros urbanos e, entre 1933 e 1942, de maneiraextenuante, “instalaram 89.000 milhas de linha telefônica,construíram 126.000 milhas de estradas e trilhos, construírammilhões de barragens para controle de erosão, plantaram1,3 bilhão de árvores, erigiram 3.470 torres de água egastaram mais de 6 milhões de horas apagando incêndiosflorestais”.27 Todos esses desenvolvimentos, apesar de seremnecessidades infraestruturais de paisagens particulares,eram marcas de um desejo nacional por um tipo particularde homem.

Dentro das cidades, também, a ideia de naturezacomo um espaço para o cultivo disciplinado da virtude teveum componente sexual importante. Para seus criadores, todosde certa forma em débito com Frederick Law Olmsted – oarquiteto do Central Park –, os parques urbanos eramdesenvolvidos dentro das cidades não apenas para dar aoshabitantes urbanos um espaço público verde para recreaçãoe reunião, mas também alguns tipos de atividade eramexplicitamente ‘designadas para’ essas paisagens. Dado oapego da aptidão moral à física, demonstrado pororganizações como a CCC e os Escoteiros, instalaçõesdesportivas, como campos de jogar bola, eram importantesno desenvolvimento de parques urbanos. Além disso, haviaum sentido evidente no projeto de Olmsted de que os parqueseram lugares para ver e ser visto; eles eram lugares para

27 Bryant SIMON, 2003, p. 80-81.

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espetáculo público de um tipo particular, incluindo a notávelmanifestação de respeitabilidade e riqueza da classe média.Os parques eram lugares de cultivo público de cidadãoshonestos; eles eram então reivindicados como lugares decontato sexual regulado, nos quais os casais heterossexuaisem corte podiam ‘se encontrar’ num espaço aberto, que eratanto moralmente orientado e, dada sua visibilidade,altamente disciplinado. Como escreve o geógrafo GordonBrent Ingram,

muitos dos parques centrais de cidades na Américado Norte e Europa foram inicialmente estabelecidosou redesenhados no final do século XIX com a ênfaseno passeio público, no olhar masculino, na supressãodo contato sexual público, nos esportes grupais comomeios de elevar a moralidade da classe operária. Taisparques públicos foram originalmente programadospara ocasionais demonstrações visíveis do desejo,corte e conquista heterossexuais.28

O desenho dos parques urbanos estava explicita-mente organizado em volta da intenção de desencorajaroutras expressões de sexualidade, que não aquelas normal-mente sancionadas na visão pública; moral e psiquicamen-te sancionada, a corte heterossexual era, por sua vez,construída na paisagem com a localização estratégica detais instalações visíveis e apropriadas para pares, comocoretos e bancos para estimular os passeios e encontrosromânticos.

QueerizandoQueerizandoQueerizandoQueerizandoQueerizando uma política ecológica uma política ecológica uma política ecológica uma política ecológica uma política ecológica

A seção final deste artigo dirige nossa atenção paralonge das formas segundo as quais a sexualidade e aecologia têm sido ligadas como relações de poder cominfluência negativa (mesmo que ainda produtiva) tanto paraqueers quanto para a natureza, e em direção às formas nasquais uma perspectiva queer nos oferece um ponto de vistaúnico para ‘resistir’ a essas relações destrutivas. Tendo ditoisso, se eu fosse julgar apenas a partir de shows de televisãocomo Will and Grace, Queer as Folk e Queer Eye for theStraight Guy, dificilmente identificaria queers como osmelhores fiscais da natureza que existem no mundo. Muitopelo contrário. A cultura gay no mainstream – que em todosesses shows aparece representada por homens brancosurbanos e influentes – é extraordinariamente ligada a umestilo de vida de consumismo. Como escreve Andil Gosine,“de acordo com a história, gays compram. Gays urbanosvivem em apartamentos de condomínio chiques, comprammuitos produtos para o cabelo e para o cuidado do corpo,[e] têm ótimo gosto para carros, roupas e design de

28 INGRAM, 1997b, p. 102.

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interiores”.29 Apesar de podermos nos sentir tentados/as acelebrar uma crescente aceitação de queers nesses shows,penso que é apenas uma faixa bem estreita da queeridade– aquela porção ligada à troca fetichista de mercadoriasestéticas – que acaba sendo ‘aceitável’. Queers são ‘ok’não porque são queer, mas porque são consumidores exem-plares numa sociedade que julga a todos por sua habilida-de de consumir. Note-se que pessoas queer da classeoperária, lésbicas de baixa renda ou antiestéticas, e gaysmais velhos, mais doentes ou até mesmo HIV positivo, nãosão os sujeitos ideais de Will and Grace.

Não apenas essa faixa de aceitação norte-ameri-cana da cultura queer é muito estreita, mas também oprocesso político mainstream no qual queers lutam paraserem ‘aceitos’ na sociedade de consumo limita o escopototal de potencial político nas comunidades queers. Porexemplo, nossa busca como queers por uma forma familiar“igual ao casamento heterossexual” parece, para mim,enfraquecer o potencial crítico inerente no fato de queersdesenvolverem formas alternativas de família que não neces-sariamente replicam todos os problemas da heterosse-xualidade legal e nuclear, apesar de que estaria mentindose não dissesse que fiquei tocada pela legalização cana-dense do casamento entre pessoas de mesmo sexo. Paracitar Tony Kushner, “é inteiramente concebível que nós iremos,um dia, viver miseravelmente em um mundo completamentedevastado no qual lésbicas e gays possam casar-se e servirabertamente no exército”.30 Meu argumento é, então, de quedevemos reorientar nossas políticas e começar a lidar como que estou chamando de uma perspectiva ecológicaqueer, para trabalhar em direção a possibilidades maissensivelmente críticas aos tipos de relações complexas depoder que venho delineando. Aqui, defendo uma posiçãonão apenas de queerizar a ecologia, mas de enverdeceras políticas queer.

Apesar de ser verdade que o pareamento hegemô-nico da heterossexualidade e da ecologia teve um impactotanto em queers quanto na natureza, o fato é que queerstambém usaram ideias de natureza e de espaço naturalcomo lugares de resistência. Talvez mais proeminentemente,muitos escritores queer apontaram para o fato de que existeuma longa tradição, desde a Grécia Antiga, de uma liga-ção positiva entre o erotismo de mesmo sexo e ambientesrurais ou selvagens. Fazendo amplamente parte de umatradição literária ‘pastoral’, que data de Teócrito e Virgílio, econtinua através de escritores como Walt Whitman e HenryDavid Thoreau, escritores gays contemporâneos enfatizamque cenários naturais têm sido importantes locais para aexploração da homossexualidade masculina ‘como’ uma

29 GOSINE, 2001, p. 35.

30 Citado em GOSINE, 2001, p.35.

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prática natural. Espaços rurais, em particular, têm servido auma vasta gama de literaturas, como espaço de liberdadepara encontros homoeróticos masculinos. Além disso, porcausa da associação da natureza a ideias de inocência eautenticidade, escritores gays puderam usar as convençõesliterárias pastorais de forma a argumentar pela autentici-dade da homossexualidade. Esse ‘pastoralismo homófilo’,como enfatiza o crítico literário David Shuttleton, não foiapenas usado por escritores como Andre Gide para fazerafirmações políticas para igualdade gay com base nanaturalidade da homossexualidade, mas foi tambémutilizado para desafiar a própria ideia da naturalidade daheterossexualidade.31

Brevemente, em sua obra Corydon: quatro diálogossocráticos, Gide nos conta uma história baseada no poemado terceiro século a.C., escrito por Teócrito, Os idílios, no qualos pastores não apenas se envolvem num amor de mesmosexo, mas refletiam juntos sobre mistérios de fazer amor comgarotas. O jovem pastor é uma figura pastoral típica; ele estápróximo à natureza em seu trabalho cotidiano e está quaseque completamente na companhia de outros homens jovens,com quem se envolve não apenas nos prazeres imediatos dacarne, mas também no diálogo reflexivo que está associadoa passagens desses jovens rapazes de um estado deinocência natural e juvenil para a masculinidadesocializada. A questão-chave aqui é que a paixão de mesmosexo está associada a essa inocência natural, e o erotismode sexo oposto é a coisa que precisa ser ‘aprendida’ paraentrar na ordem social adulta. O que temos é um ‘discursoreverso’ que emparelha natureza com o homoerótico eartificialidade com o heteroerótico; contra uma suposiçãoda heterossexualidade natural, Gide efetivamente coloca aheterossexualidade como a prática normativa ‘dentro’ daqual os jovens pastores devem ser disciplinados. Comoescreve Shuttleton, “Gide lança um argumento transgres-sivamente contraintuitivo de que é esta heterossexualidadecompulsória que é construída e inautêntica, uma vez queprecisa ser ensinada e mantida culturalmente”.32

Com base numa tradição similar, os gays nas cidadesmodernas, frequentemente, têm feito uso de espaços verdesurbanos como lugares tanto de contato sexual individualquanto de ativismo orientado para comunidade. Ironica-mente, foi exatamente naqueles parques, usualmentedesenhados para desencorajar atividade homossexual, queos gays acharam e criaram um tipo de comunidade sexualque novamente emparelha natureza e homoerotismo demaneira positiva. Aqui há pelo menos dois elementosimportantes a considerar. Em primeiro lugar, o que é signifi-cativo com respeito ao sexo público em parques é que é ele

31 SHUTTLETON, 2000.

32 SHUTTLETON, 2000, p. 134.

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‘público’, significando que ele abertamente desafia osentendimentos heteronormativos do que é um comporta-mento ‘apropriado’ para espaços públicos, naturais.Devemos lembrar que parques públicos são espaçosdisciplinares, nos quais uma estreita faixa de atividades ésancionada, praticada e experimentada; apenas algunstipos de experiências com a natureza são permitidosoficialmente. Nesse contexto, pode-se considerar sexo gaypúblico como um tipo de democratização do espaço natu-ral, na qual diferentes comunidades podem experimentar oparque em seus próprios modos, e na qual uma vasta gamade experiências naturais passa a ser possível. De acordocom relato de um encontro sexual no Parque Queen (semintenção de fazer piada) por um frequentador de parquespúblicos em Toronto,

Eu ficava ali porque eu amo tempestades, amo ver anatureza em sua violência... nós nos curtimos muito, eóbvio que a chuva varreu tudo e estávamos todosmolhados tendo só aquelas roupas encharcadas paravestir. Mas foi gostoso... eu amo momentos espontâ-neos, selvagens como esse... a gente fica doido e éanimal!33

Evidentemente, sexo selvagem em um parque públi-co debaixo de tempestade está bem distante dos rituais decorte expressados nos passeios formais de Olmsted. Apesarde ser importante apontar que o sexo no parque é em simesmo controverso, parece que a reapropriação por partede gays desses espaços naturais de fato abre uma percep-ção alternativa e crítica da natureza urbana. Tal percepçãoinstigou as comunidades queer a fazer ações ambientais;para dar um exemplo, logo depois das revoltas de Stonewall,em Nova Yorque, 1969, Kew Gardens, uma área de passa-gem popular no Queens, foi bastante destruída pelo corteextensivo de árvores. “Em uma semana... aconteceram açõespúblicas e o primeiro grupo gay ambiental, Trees forQueens,34 foi formado para restaurar o parque”.35

Podem-se ver padrões diferentes, mas relacionados,de resistência ao pareamento entre heterossexualidade enatureza quando nos voltamos para a comunidade lésbi-ca. Como sua contraparte masculina, mas com uma políticade gênero bastante diferente, as autoras lésbicas tambémusaram as tradições literárias pastorais para desenvolverum ‘discurso reverso’ que propõe a naturalidade dasrelações amorosas de mesmo sexo. Essas literaturas pastoraislesbianas têm uma história que se estende para lá do séculoXIX, por exemplo, nos escritos de autoras como Sarah OrneJewett e Willa Carther. No começo do século XX, RadclyffeHall fez largo uso das convenções pastorais em The Well of

33 John GRUBE, 1997.

34 Nota da tradutora: Árvores paraQueens – o nome do grupo jogacom duas referências para apalavra “Queens”: o próprio nomedo bairro onde se localiza o par-que, e uma palavra para se referira homossexuais masculinos.35 INGRAM, 1997a.

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Loneliness para pintar um retrato de sua protagonista degênero invertido, Stepehen Gordon, no qual a identidadede Stephen era bastante natural e moralmente positiva. Oproblema para Stephen não era sua ‘natureza’; era oheterossexismo artificial e a intolerância social que lhecercavam enquanto ela entrava na vida adulta.

Mais recentemente, autoras lésbicas conscientementetomaram a ideia de que mulheres em relações lesbianaspodem experimentar a natureza de forma diferente, e possi-velmente mais positivamente do que é o caso dentro docerco da heterossexualidade compulsória. Mais obviamente,feministas lesbianas conectaram conscientemente umapolítica feminista radical com uma política ecológicaradical. Nos anos 1970 e 1980, por exemplo, escritoras deutopias e ficção científica, como Sally Miller Gearhart,abertamente ligavam a destruição da natureza a instituiçõespatriarcais e heterossexistas. Em seu romance de 1979, TheWanderground, Gearhart imaginou um mundo em quemulheres, livres da influência opressiva dos homens, podiamviver juntas em relações sexuais políginas num mundo ruralativamente e intencionalmente separado das cidadesdestrutivas dominadas por homens. Nesse mundo centradonas mulheres, elas eram mais capazes de encontrar relaçõeseróticas e sociais mais ricas entre si, e relações eróticas esociais mais ricas com seu ambiente natural: tudo aquiloque era ativamente impedido na sociedade heterossexuale patriarcal. Desse modo, tais novelas criticavam ativamentea heteronormatividade, argumentando não apenas que aheterossexualidade não é natural, mas que é destrutiva tantopara mulheres quanto para a natureza; aqui temos umanarrativa que reverte a ideia da homossexualidade comouma doença urbana e, em vez disso, afirma que o heteros-sexismo é a enfermidade urbana à qual lésbicas devemresponder. Em um ambiente mais saudável, organizado deacordo com normas homossociais e homoeróticas, mulherespoderiam criar uma conexão mais profunda entre si e com anatureza. Apesar do que quer que possa ser dito sobre oessencialismo de tais entendimentos de uma conexão‘natural’ entre mulher/natureza, é óbvio que o pareamentotransgressivo entre as políticas ecológicas e lesbo-feministascoloca um desafio significante à pressuposição global deque a hete-rossexualidade não só é natural, mas tambémboa para a natureza.

Influenciadas por essas correntes literárias, algumasmulheres começaram, nos anos 1970, a desenvolvercomunidades baseadas na combinação de políticasecológicas e de separatismo lesbiano. Comunidades comoo Womanshare Collective no sul do Oregon foram fundadasde acordo com a ideia de que a natureza rural era um

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conjunto privilegiado de espaços no qual mulheres podiamachar “na beleza curadora da natureza [...] um espaço seguropara viver, trabalhar, para ajudar a criar a cultura das mulheresque [elas] sonharam”.36 Essas “terras de mulheres” tinhamobjetivos ecológicos complexos, variando desde o objetivode abrir as paisagens rurais para mulheres ao transformar asrelações heterossexuais de propriedade, passando peloobjetivo de retirar a terra da produção e reprodução patriarcal-capitalista, até o de reinscrever simbolicamente a terra coma presença erótica lesbiana. Se muitas dessas comunidadesdesapareceram, algumas ainda estão aí, como exemplosvivos de como é viver intencionalmente a vida como umaecologista lesbiana. Para citar uma moradora: “A terra dasmulheres, terra lésbica... [é] a terra que as mulheres comprarame estão vivendo nela [como lésbicas]. Destina-se a servir àslésbicas, não apenas àquelas que vivem aqui, destina-se aser cada vez mais a terra das lésbicas [...] mudar-se para ointerior amplia o que é ser lésbica.”37

Tenho que apontar para uma deliciosa ironia: o Estadodo Oregon contém uma concentração particularmente altade terras separatistas de mulheres. Como descrevi ante-riormente, este Estado, no século XIX, era organizado demaneira particularmente heterossexual por causa do privilégioque a DLA dava a famílias heterossexuais em suas práticasde loteamento. E porque essa estratégia de loteamento teve,entre outras cosias, o efeito em longo prazo de desencorajaro desenvolvimento de cidades, no final do século XX, vemos,mesmo no corredor interestadual, assentamentos muitoesparsos e um preço relativamente baixo da terra. Ambos osfatores ajudaram a criar um ambiente ideal para as comuni-dades lesbianas. Dessa forma, é especialmente necessáriodizer que as separatistas lesbianas do Oregon retiraram suasterras de formas heterossexuais de habitação, e criaram nelasum espaço que pode ser libertador tanto para límbicasquanto para outras espécies.

ConclusõesConclusõesConclusõesConclusõesConclusões

Essas histórias certamente não ilustram a vasta gamadas políticas ecológicas queer, passadas ou presentes. Nãodiscuti as conversas entre ecologia queer e ecofeminismoque Greta Gaard começou em seu artigo de 1994 “Towarda Queer Ecofeminism”;38 não discuti o fato de que a libera-ção, o erotismo e o desejo físico têm desempenhado umforte papel em muitos movimentos ambientais históricos econtemporâneos;39 nem mesmo comecei a considerar asformas pelas quais as experiências de indivíduos transgê-neros colocam em questão as inter-relações entre sexualida-des, naturezas, identidades de gênero e corpos. Posso até

36 SANDILANDS, 2002.

37 SANDILANDS, 2002, p. 142.

38 GAARD, 1997.

39 Veja SANDILANDS, 2001.

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ter dado a impressão de que as políticas ecológicas degays são sobre sexo na natureza, e ecologias lésbicas sobrelibertação da natureza, ao apontar para culturas lésbicasde sexo público e para comunidades gays de “radicalfaerie”;40 posso assegurar que este não é o caso.

O que espero ter feito é ilustrar que não apenas oheterossexismo é parte da rede opressiva de relações depoder, através da qual as relações humanas com a naturezasão organizadas, mas também que queers fizerammanobras ecológicas interessantes para desafiar algumasdessas relações. Nem todas nós estamos contentes empraticar nossa política sexual em círculos estreitos oferecidosa nós pelo consumismo e outras agendas mainstream;algumas de nós gostam de pensar que queers podem terum conjunto diverso e interessante de experiências a partirdo qual se pode desenvolver uma política mais crítica emais ecológica. Assim, neste fechamento, volto-me a ZitaGrover. A obra de Grover está longe de ser uma visão utópicaseparatista lesbiana, mas é, para mim, uma ecologia queerparticularmente inspiradora. Para ela, uma perspectivaambiental fundada na experiência dolorosa de umacomunidade gay lhe permite ver e achar beleza numapaisagem natural devastada nas visões dos outros, paraquem sua beleza é apenas uma questão de extrair recursos.Ela está bastante atenta para as devastações tanto da AIDSquanto do desmatamento; de fato, sua experiência decuidado com uma pessoa com AIDS lhe permitiu uma visãoespecialmente íntima da similaridade entre as duas. Masseu ponto de vista não apenas deu-lhe a habilidademetafórica de ver, na perna doente e na madeira queimada,a mesma possibilidade de vida e beleza a continuarem.Ele também lhe ensinou responsabilidade: na comunidadegay de São Francisco, eram frequentemente lésbicas eoutros membros da comunidade ‘escolhidos’, e não a famíliabiológica, que assumiam a difícil tarefa de cuidar daspessoas à beira da morte. Assim, a ecologia queer de Groveré sobre ver a beleza nas feridas do mundo e também sobreresponsabilizar-se por cuidar do mundo como ele está. Deixoa ela as últimas palavras: “Nós assumimos responsabilidadepor um lugar quando podemos olhar tanto para trás, para ofardo de sua história, quanto para frente, para nossaresponsabilidade e a parte que desempenha em seu futuroque jaz sobre o controle humano.”41

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BAGEMIL, Bruce. Biological Exhuberance: Animal Homo-sexuality and Natural Diversity. New York: St. Martin’s Press,1999.

40 Radical Faeries é o nome dadoa uma rede de pessoas que bus-cam redefinir seu gênero e sexua-lidade para além dos ideais hete-ronormativos (e da mímese daperformance hetero por pessoashomossexuais) através de umaconexão erótica e espiritual coma natureza. Disponível em: http://www.radfae.org/.

41 GROVER, 1997, p. 164.

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Tradução: Alice Gabriel

Page 21: York University, Canada Paixões desnaturadas? Notas … · por ensiná-la. “Em vez de soluções já prontas”, Grover escreve que as florestas do norte ... Roosevelt foi eleito,

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 175-195, janeiro-abril/2011 195

PAIXÕES DESNATURADAS? NOTAS PARA UMA ECOLOGIA QUEER

[Recebido em agosto de 2010 e aceito parapublicação em dezembro de 2010]

Unnatural Unnatural Unnatural Unnatural Unnatural PPPPPassions: assions: assions: assions: assions: NNNNNotes for a otes for a otes for a otes for a otes for a QQQQQueer ueer ueer ueer ueer EEEEEcologycologycologycologycologyAbstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This paper advocates for a queer perspective in political ecology. Understandingheterossexism as part of the oppressive network of relations that organizes the human-natureconnections, Sandilands proposes another way to view nature-human-sexuality relations. Shetells us about the beginning of the environmental movement in North America and the differentheteronormative ideologies that connect natural spaces to heterossexuality while seeinghomosexuality as related to an urban degenerescence. She seeks inspiration in LGBT literatureand history to confront this opposition of nature and homossexuality to propose a queer ecology.The most inspirational words come from Zita Grover, whose perspective in ecology marked bythe painful experience of being affected by AIDS is very sensitive, being able to draw metaphoricalconnections between AIDS and other ecological concepts.Key Key Key Key Key WWWWWords:ords:ords:ords:ords: Queer Political Ecology; Ecofeminism; Sexuality; LGBT; Sexual Politics.