yngrid lessa
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Reportagem de Yngrid Lessa para a revista Primeira Impressão.TRANSCRIPT
DEDICAÇÃO
Abrindo histórias Seu Machado já dedicou 62 anos de sua vida à profissão de chaveiro
no centro de Porto Alegre
De segunda a sexta-feira, José Machado, de 78 anos, segue o mesmo ritual.
Acorda às 7h, pega o ônibus do bairro Jardim Leopoldina rumo ao centro de Porto
Alegre. Depois de cerca de 60 minutos é hora de abrir sua casinha de chaveiro.
Subindo a Avenida Borges de Medeiros, no sentido centro-bairro, passando a
esquina democrática, chegando na Rua General Andrade de Neves, logo na esquina
entre essas duas ruas é possível ver a casinha. Na profissão há mais de meio século, Seu
Machado, como é conhecido, trabalha há 35 anos neste mesmo ponto. Entre idas e
vindas, inícios e recomeços, sempre teve seu estabelecimento no centro.
Influenciado pelo irmão mais velho, que já era chaveiro, Seu Machado começou
a aprender o oficio com apenas 14 anos. Desde então, segue na profissão. Com as mãos
ásperas de tanto lidar com as limas (tipo de lixa que era usada para moldar as chaves
antigamente), ele não se entrega fácil. Dono de um sorriso largo, que encanta a todos, o
senhor de cabelos grisalhos e de pele negra se diz feliz com a profissão que escolheu.
Apenas brinca que a única coisa ruim é não poder usar a aliança de casado, pois ela
atrapalha na hora de confeccionar as chaves.
Rodeado por chaves, argolinhas de metal, torno e duas máquinas para a
confecção das peças, Seu Machado tem ainda dois últimos rituais a fazer antes de iniciar
o seu trabalho: acender um incenso e ligar o rádio. Sempre em companhia do seu
radinho de pilha, ele nunca se sente sozinho. Escuta diversas músicas durante o dia,
assim como algumas notícias da cidade e do trânsito.
O trabalho como chaveiro já fez com que ele conseguisse realizar um grande
sonho. Casado há mais de 50 anos com Dona Helena, tem apenas uma filha e um neto.
E orgulha-se ao dizer que a profissão de chaveiro já pagou toda a graduação e a
formatura da filha em pedagogia. Assim como agora paga os estudos do seu neto, de 21
anos, que está cursando Direito.
Atendendo de segunda à sexta-feira, das 9h às 18h, Seu Machado não cansa.
Sempre ativo, conversa com todo mundo que passa e faz amizade fácil. Apesar disso,
Seu Machado não bobeia, trabalha muito. Faz de 80 a 100 cópias de chaves por dia.
Enquanto trabalha, puxa assunto com os clientes. Fala sobre futebol, clima,
imposto de renda, dupla gre-nal entre outros. Colorado de coração, ele conta, todo
faceiro, que já jogou no Cruzeiro, na categoria juvenil, quando era mais novo. Assim
como gostava de praticar ping-pong.
Falando da sua juventude, lembra que serviu no quartel, mas que não gostou de
ser mandado, por isso, quando retornou de lá, voltou à profissão de chaveiro. Nessa
época ficou responsável por um dos pontos que era do seu irmão mais velho. A partir
daí, começou a trabalhar sozinho, por conta própria.
No início, além de fazer chaves na hora, colocar fechaduras, trocar miolos, ele
também atendia em casa. Dessa época Seu Machado tem muitas lembranças engraçadas.
Atualmente, ele não realiza mais este tipo trabalho, preferiu ficar apenas com a
confecção das chaves.
Seu Machado tem memória boa. Lembra com facilidade dos sustos e situações
inusitadas do início de sua carreira. Em um de seus atendimentos externos, foi realizar
apenas a troca de miolo de uma fechadura, coisa simples. Entretanto, levou um baita
susto enquanto fazia o serviço. Diz que, ao chegar na casa, logo percebeu que se tratava
de uma família militar. Nas paredes havia vários quadros, medalhas e objetos
relacionados ao Exército Brasileiro. Achou interessante e continuou com o seu trabalho.
“Afinal, era pra isso que eu estava ali”, relembra. Depois do trabalho pronto, quando iria
receber o dinheiro da senhora que o tinha chamado, percebeu que alguém estava
tentando entrar, mas, como ele tinha trocado o segredo da fechadura, a pessoa do outro
lado da porta não conseguiria abrir. Avisou à cliente sobre a tentativa, e ela abriu a
porta. Ele lembra que se deparou com um coronel, que logo o indagou sobre quem tinha
o mandado fazer a troca. Enquanto o casal discutia, tratou de pegar o seu dinheiro com a
mulher e ir embora. Hoje em dia, ele acha bem engraçado, mas conta que na época ficou
com medo da reação do coronel.
Entre situações engraçadas e alegres, ocorreram também fatos ruins. Certa vez,
Seu Machado foi chamado para abrir a porta de um apartamento, no centro mesmo. A
dona do apartamento em questão era sua cliente, mas quem havia pedido o serviço eram
os outros moradores do edifício, pois a senhora que ali morava não estava atendendo a
porta. Como de costume, Seu Machado realizou o trabalho e abriu a porta. Ao entrar,
percebeu que a cliente, infelizmente, estava morta.
ONTEM E HOJE
“A primeira coisa que aprendi para ser chaveiro foi comprar as matérias-primas
para fazer as chaves”, relembra Seu Machado. Na época em que iniciou na profissão,
em 1951, só existiam dois tipos de chaves, a Doberman e a Yale. Essas peças eram de
ferro, pesadas. Para se fazer as cópias, eram utilizados os três tipos de limas: a chata, a
triangular e a redonda, para dar formato à peça de metal e assim ficar igualzinha a
original. O trabalho demorava, em média, meia hora para ficar pronto. Hoje em dia, em
três minutos já é possível realizar a cópia de uma chave.
Hoje as chaves são de latão com liga de metal, mais fáceis e mais rápidas de se
fazer, porém o serviço ficou mais perigoso. Seu Machado lembra que, quando iniciou,
para ter acesso às ferramentas de trabalho era exigido uma carteirinha expedida pela
polícia. Essa atestava os bons antecedentes do profissional. “Hoje em dia, qualquer um
pode ser chaveiro”, ressalva Seu Machado. A carteirinha em questão era uma segurança
tanto para o cliente quanto para o próprio chaveiro. Afinal, isso atestava a sua boa
conduta.
Atualmente nada disso é pedido. Para ser chaveiro, basta apenas ter dinheiro e
fazer um curso para aprender a profissão. Em média, os cursos que ensinam o ofício
duram apenas seis meses. Antigamente, para se tornar um bom chaveiro era preciso um
ano de estudo. Mesmo assim, Seu Machado continua sentindo orgulho de sua profissã e
todos os dias repete o mesmo ritual para fabricar chaves que farão parte da vida de
centenas de pessoas.