a ontologia de lukacs: uma introdução - sergio lessa

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(Este é um texto que o leitor deverá ler com muito cuidado. As categorias de Entfremdung e Entäusserrung ainda são traduzidas por estranhamento e alienação, respectivamente, uma opção que abandonei nos últimos anos por estar certo de que não é esta a melhor tradução para estes termos. Uma nova, revista, corrigida e ampliada edição deve sair ainda em 2006 pela Editoria Unijuí) A Ontologia de Lukács uma introdução Create PDF with GO2PDF for free, if you wish to remove this line, click here to buy Virtual PDF Printer

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Livro completo. Na apresentação o autor anuncia que em breve (2006) vai sair uma nova edição.

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Page 1: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

(Este é um texto que o leitor deverá ler commuito cuidado. As categorias de Entfremdung

e Entäusserrung ainda são traduzidas porestranhamento e alienação, respectivamente,uma opção que abandonei nos últimos anospor estar certo de que não é esta a melhor

tradução para estes termos. Uma nova, revista,corrigida e ampliada edição deve sair ainda em

2006 pela Editoria Unijuí)

A Ontologia de Lukács

uma introdução

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Page 2: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

A Ontologia de Lukács8

À Milu.

Aos nossos dias de Campinas.

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Prefácio 9

Sumário

Prefácio 7

Cap I - Problemas Ontológicos Gerais 11I- Um resultado inesperado 11II- As três esferas ontológicas 13III- O momento predominante 18

Cap II - A Categoria do Trabalho 23I- O trabalho 23

1- objetivação e alienação 23II- Teleologia e causalidade 29III- Teleologia e intentio recta 31

Cap III - Teleologia e Intentio Obliqua 39I- A Ideologia 47

Cap IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 59I- Trabalho e gênese do ser social 60II- Complexo de complexos 67III- Novamente o momento predominante 72

1- a fala 752- o direito 81

Cap V - A Categoria da Reprodução Social 89I- Gênero e indivíduo 90II- Sociabilidade e individuaçâo 93

Cap VI - O Estranhamento 105I- O fenômeno do estranhamento 105

1- o estranhamento e a sociabilidade burguesa 106II- Generalidade humana e superação do estranhamento 119

1- generalidade humana e liberdade 1221- ética e generalidade humana para-si 131

Conclusão 137

Bibliografia 143

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A Ontologia de Lukács10

Prefácio

Georg Lukács é uma personalidade singular na filosofiacontemporânea. Ainda muito jovem, com o livro A alma e asformas (1910) obtém lugar de destaque no cenário europeu.Alguns anos após, abandona as influências kantianas desteescrito e adere ao Partido Comunista Húngaro. O primeiromomento da sua trajetória marxista resultou na produção deum dos textos mais significativos e de maior influência desteséculo, História e Consciência de Classe (1923). Na seqüên-cia, uma nova reviravolta intelectual: Lukács critica os traçoshegelianos de História e Consciência de Classe e, tomandocontato com os Manuscritos de 1844 de Marx, inicia sua in-vestigação ontológica, na maior parte das vezes pela media-ção da estética.

No início dos anos sessenta publica a síntese destaspesquisas: sua monumental Estética. Apesar da idade avan-çada, no início dos anos 60 traça um programa de investiga-ção para os próximos dez anos: a redação da Ética. A primeiraetapa deste projeto se constituiria pela busca dos fundamen-tos da ética a partir dos delineamentos ontológicos deixadospor Marx. Esta busca, todavia, se prolongou mais do que opretendido, dando origem a dois volumosos manuscritos, aosquais o autor não conseguiu dar a redação final antes de fale-

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Prefácio 11

cer em 1971, aos 86 anos de idade. Estes manuscritos, publi-cados em tradução italiana sob os títulos Per una Ontologiadell'Essere Sociale (ed. Riuniti, Roma, 1976-81) e Prolegomeniall'Ontologia dell'Essere Sociale - questioni di principio diun'ontologia divenuta possibile (Guerini e Associati, Milão,1990) e em sua versão original, em alemão, Zur Ontologie desgesellschaftlichen Seins (Luchterhand-Verlag, 1984) é o con-junto de escritos que se tornou conhecido como a Ontologiade Lukács.

O que levou Lukács a dedicar os últimos anos de sua vidaa redigir uma Ontologia do Ser Social? Alguns de seus críticosargumentam que não passa de um retrocesso fazer ontologiano século XX após toda crítica da Ilustração ao pensamentomedieval, após o desenvolvimento do racionalismo moderno eda dialética. Para estes, o apego religioso e dogmático do filó-sofo húngaro ao marxismo e ao “socialismo soviético” seriamas causas de, ao final da vida, Lukács ter retornado à metafí-sica para fundamentar a sua “opção existencial” e a sua“crença no comunismo”.

Sem entrarmos diretamente nesta polêmica, pois o examedos seus argumentos ultrapassaria os limites da exploração daOntologia de Lukács a que aqui nos propomos, procuraremosevidenciar ao longo do texto a falsidade desta interpretação.Em não poucos momentos, o leitor perceberá como, ao tra-tarmos da radical historicidade da concepção ontológica deLukács, e de diversos dos seus desdobramentos, procurare-mos salientar a sua novidade se confrontada com a metafísicatradicional.

Todavia, por que uma ontologia no século XX?A resposta, na sua forma mais sintética, pode ser esta:

porque a derrota das tentativas revolucionárias para superar o

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A Ontologia de Lukács12

capital é de tal monta, até o presente momento, que gera ailusão da impossibilidade de os homens construírem conscien-temente a sua história. A derrota revolucionária revitalizou aconcepção liberal segundo a qual a permanência da ordemcapitalista se deve ao fato de ela corresponder a uma pre-tensa “essência” humana. O homem seria, segundo esta con-cepção, de modo essencial e insuperável, um proprietárioprivado que se relaciona com os outros pela mediação dosseus interesses egoístas. Parafraseando Marx, a essência dohomem capitalista foi elevada à essência capitalista do ho-mem.

A contraposição teórica a esta falsa concepção apenas épossível, hoje, através da mais profunda investigação acercado que é o ser humano. Há que se demonstrar que não hánada semelhante a uma natureza humana dada de uma vezpara sempre, a-histórica; é imprescindível argumentar como ohorizonte histórico de possibilidades é limitado única e exclusi-vamente pela reprodução social, isto é, pela síntese dos atoshumanos singulares em formações sociais. Para se contraporà concepção conservadora segundo a qual aos homens cor-responde uma essência a-histórica de proprietários, e que, porisso, não há como ser superada a sociedade capitalista deve-se comprovar que não há limites ao desenvolvimento humano,a não ser aqueles construídos pelos próprios homens. E estademonstração apenas pode se dar de forma cabal no terrenoda ontologia.

Não há que se ter qualquer dúvida a este respeito (e nistoconcordam críticos e admiradores da última obra de Lukács): aontologia lukácsiana tem por objetivo demonstrar a possibili-dade ontológica da emancipação humana, da superação dabarbárie da exploração do homem pelo homem. Independentede se concordar ou não com o filósofo húngaro, o tema sobreo qual se debruçou, e a competência com que o fez, tornam

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Prefácio 13

sua obra um marco para o pensamento contemporâneo.Por fim, um alerta: nossa tentativa de uma exposição,

acessível ao leitor que não tenha tido contato com o filósofohúngaro, das principais categorias da ontologia de Lukács,está muito longe de ser uma exposição exaustiva dessas ca-tegorias. Não apenas cada uma das categorias não foi explo-rada até os seus limites, como também deixamos de lado aexposição da primeira parte de Per una Ontologia dell'EssereSociale, denominada histórica, e privilegiamos a exploração daparte sistemática, onde Lukács discute as categoriais do Tra-balho, Reprodução, Ideologia e Estranhamento. Entre o textode Per una Ontologia... e dos Prolegomeni all'Ontologia...,demos preferência ao primeiro, por conter uma exposição maissistemática das categorias decisivas da ontologia lukácsiana,e apenas marginalmente recorremos ao segundo. As diver-gências entre os dois textos, e a importância dessas diver-gências, é uma problemática que sequer tratamos neste livro.Em suma, longe de abordar o conjunto de questões que en-volve a última obra de Lukács, este livro nada mais almeja doque facilitar o acesso do leitor não especializado a este textodecisivo da filosofia contemporânea.

Para finalizar, um indispensável parágrafo de agradeci-mento ao Prof. Roberto Sarmento, pela cuidadosa revisão dotexto; e também aos alunos e professores da UFAL que o utili-zaram em sala de aula, pelas sugestões e observações quepermitiram torná-lo mais acessível aos não especialistas emLukákcs.

Maceió, março 1996

Para a segunda edição, algumas correções no texto sefizeram imprescindíveis. A bibliografia também foi ampliada.

Junho 1997

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CAPÍTULO I

Problemas OntológicosGerais

I- Um resultado inesperado

Iniciemos pela história de Ikursk.Numa tribo primitiva, antes da descoberta dos metais, vi-

via Ikursk. Ikursk era, acima de tudo, um medroso.Um enorme tigre dente-de-sabre rondava a aldeia por

aquela época, matando as criações e atacando as pessoas.Vários dos mais bravos guerreiros já haviam se proposto amatá-lo, mas os resultados foram sempre trágicos: seus cor-pos foram encontrados devorados pelo felino.

Com o tigre à solta, entrar na selva era um ato de extremacoragem, e nosso heróico Ikursk resolveu se proteger de taleventualidade. Para tanto, quebrou seu machado e passouvários dias construindo um outro, enorme, tão grande e pe-sado que seria impossível carregá-lo por uma distância maiorque umas poucas dezenas de metros. Tal arma, descomunal

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A Ontologia de Lukács12

no peso e no tamanho, seria um forte argumento, esperavaIkursk, para que a tribo não o enviasse à floresta, já que comele nosso herói seria presa fácil frente à agilidade do tigre.

Quando o machado estava tomando a sua forma final etodos na tribo se deram conta de que Ikursk decidira não coo-perar com o esforço coletivo para matar o tigre, o pajé chamouo nosso herói para uma conversa ao pé da fogueira. Contou aIkursk a tradicional lenda de Batolau, o guerreiro que se negoua ir para a guerra junto com sua tribo e, por isso, após a morte,abandonado pelos deuses, ficou vagando entre as estrelas. Opajé disse a Ikursk que seu comportamento desagrava aosdeuses e que ele deveria queimar o machado que estavaconstruindo. Ikursk saiu da tenda do pajé sem nada respondere, para consternação de todos, no dia seguinte continuou atrabalhar no seu machado com o mesmo empenho de antes.

De posse do novo machado, com o passar do tempoIkursk se sentia cada vez mais seguro. Durante meses, na di-visão matinal das tarefas cotidianas, coube a Ikursk acompa-nhar as mulheres aos coqueirais para auxiliar, com seuenorme machado, na quebra dos cocos. Assim, dia após dia, adecisão de Ikursk quebrar seu machado e substituí-lo por umoutro, descomunal, alcançou o resultado almejado: nosso he-rói não foi enviado à selva.

Todavia, algo inesperado aconteceu.Era um belo final de tarde. O sol se punha no horizonte e

uma brisa espantava o calor. Ikursk, já cansado, quebrava osúltimos cocos do dia quando, ao levantar o machado, escutouuma respiração e sentiu no cangote um bafo que não eramhumanos. Seu coração parou, e seu sangue congelou nasveias: era o terrível tigre que o atacava pelas costas. O pavortomou conta do seu ser, o joelho fraquejou, a vista escureceue um urro horrível, um misto de ai! e mãe!, que apenas os co-vardes sabem dar, ecoou pela aldeia.

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Cap I -Problemas Ontológicos Gerais 13

Nesse transe de pavor, sabendo que iria morrer nas gar-ras do tigre, seu corpo se contraiu na antecipação da dor, eIkursk caiu de costas. Sua hora havia chegado.

Contudo, não com o conteúdo mortal que imaginara.Na contração espasmódica que terminou por derrubar

Ikursk, o machado, por mero acaso, descreveu uma trajetóriaque terminou na cabeça do tigre, matando-o.

O nosso covarde herói, com seu descomunal machadoconstruído propositadamente para ser o mais inadequadopossível para lutar contra o tigre, realizara a proeza de quenenhum dos mais valentes e habilidosos guerreiros da tribofora capaz. O felino estava morto e sua ameaça, finda. A flo-resta voltava a ser um espaço pouco ameaçador, a aldeia po-deria viver em paz com as suas criações.

Conseqüências imediatas deste fato:1) Ikursk foi nomeado chefe da tribo, pois ele se revelara,

indiscutivelmente, ser o mais valoroso dos guerreiros;2) O machado foi reconhecido como tendo poderes divi-

nos. Pois apenas um instrumento com poderes divinos poderiatransformar o medroso Ikursk no mais valoroso dos guerreiros;

3) A partir de então, a posse do machado determinariaquem seria o chefe da tribo. Foi assim que Ikursk pôde, aodeixar como herança ao seu filho o machado, tornar o reinadohereditário, inaugurando a famosa dinastia dos Ikursk.

II - As Três Esferas Ontológicas

Se refletirmos sobre a história de Ikursk, perceberemos,sem muitas dificuldades, que ela só poderia ocorrer no mundodos homens.

No reino mineral, na esfera inorgânica, esta história seria

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impossível. O ser inorgânico, acima de tudo, não possui vida.Seu processo de transformação, sua evolução, nada mais ésenão um movimento pelo qual algo se transforma em um ou-tro algo distinto. A pedra se converte em terra, a montanha emvale, a força mecânica em calor, etc. Nenhuma pedra, aolongo de sua história, por mais longe que nos conduza a ima-ginação, poderia dar origem a acontecimentos como aquelesque marcaram a vida de Ikursk.

Na esfera da vida, a biológica, uma seqüência de acon-tecimentos como os que envolveram Ikursk é, também, im-possível.

Pensemos numa goiabeira. Ela produz goiabas, que pro-duzirão sementes as quais, por seu lado, ao produzirem maisgoiabeiras, reporão o mesmo processo de reprodução bioló-gica. A vida se caracteriza pela incessante recolocação domesmo. Toda a história de Ikursk, todavia, se constitui na in-cessante produção de novos fatos, novos acontecimentos,novas situações. Se há algo marcante na história de Ikursk,bem como na de todos os seres humanos, é que nela osacontecimentos nunca se repetem. O mero recolocar domesmo que caracteriza a reprodução biológica, ou o tornar-se-outro da esfera inorgânica, jamais poderiam resultar numahistória como a do nosso herói.1

A vida de Ikursk não poderia se desdobrar no interior dasesferas da natureza (a inorgânica e a biológica) pois a suaprocessualidade requer a presença de um órgão e de um mé-dium apenas existente no ser social: a consciência.2

1Em várias passagens de Per una Ontologia... Lukács compara a reprodu-ção biológica e a social. Conferir, por exemplo, vol II*, p. 145 e ss. Há tradu-ção para o português em Lessa, S.. "Sociabilidade e Individuação - acategoria da reprodução na ontologia de G. Lukács", dissertação de mes-trado, UFMG - Belo Horizonte, 1990, p. XIV e ss. De agora em diante, onúmero em romano na notas de rodapé indicará esta tradução.2Lukács, op. cit., vol II*, p. 183-7/LXIII-LXVII.

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Cap I -Problemas Ontológicos Gerais 15

Isto é fácil de ser percebido. Sem uma avaliação, porIkursk, da situação em que se encontrava e do perigo que cor-ria, seria impossível aquela sua resposta concreta: destruir oseu machado e construir um outro, descomunal. Dessa res-posta, certamente escolhida entre inúmeras outras (porexemplo, para escapar ao tigre, ao invés de construir um ma-chado Ikursk poderia se fingir de doente, ou de louco, etc.),resultou nosso herói ser coroado rei da tribo.

Tanto a análise da situação real feita por Ikursk (o tigre éum perigo), a elevação em pergunta do resultado desta aná-lise (como evitar o tigre?), como a escolha da resposta(construir o machado descomunal), entre as inúmeras alterna-tivas igualmente possíveis (quebrar o pé, fingir-se de louco,etc.), só são possíveis pela mediação da consciência. E estaexiste apenas entre os homens.

Em outras palavras, a peculiaridade da forma de ser davida de Ikursk está no fato de ela requerer, com absoluta ne-cessidade, um processo de acumulação peculiar, exclusivo domundo dos homens. Através dele, toda nova situação con-creta é avaliada através de uma contraposição com todos osconhecimentos e experiências passadas, com elementos dasituação presente e com as perspectivas traçadas por Ikurskcomo antevisão ideal do seu futuro. E então, não apenas asituação concreta, presente, é delimitada no confronto comtodos estes elementos, como também as possíveis alternati-vas de resposta a ela são avaliadas e, dentre elas, uma é aescolhida como a melhor para responder ao problema do qualse trata.

Essa forma peculiar de resposta ao mundo objetivo seráobjeto de nossa análise no próximo capítulo. Por isso, aqui,apenas assinalaremos ser esse processo de acumulação abase ontológica do incessante acréscimo de novos conheci-mentos, ao longo do tempo acerca da natureza e da socie-

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dade. E que, através desse processo de acumulação, oshomens podem se elevar a uma consciência do seu em-si, doque de fato são, o que possibilita algo inédito: um ser que sereconheça na sua própria história. Em outras palavras, um gê-nero que se reconhece enquanto gênero em processo deconstrução.3

Portanto, entre a esfera inorgânica, a esfera biológica e oser social, existe uma distinção ontológica (uma distinção nassua formas concretas de ser): a processualidade social é dis-tinta, no plano ontológico, dos processos naturais. Enquantono ser social a consciência joga um papel fundamental, pos-sibilitando que os homens respondam de maneira semprenova às novas situações postas pela vida, na trajetória da goi-abeira a sua reprodução apenas é possível na absoluta au-sência da consciência. Apenas uma processualidade muda(isto é, incapaz de se elevar à consciência do seu em-si) podese consubstanciar numa incessante reprodução do mesmo.

De modo análogo, entre o ser biológico e o inorgânicotemos, também, uma distinção ontológica: o tornar-se-outro dapedra é uma forma distinta de ser do repor-o-mesmo da goia-beira. A pedra não se reproduz, enquanto que a goiabeira sópode existir enquanto permanente processo de reprodução desi mesma.

Para Lukács, portanto, existem três esferas ontológicasdistintas: a inorgânica, cuja essência é o incessante tornar-seoutro mineral; a esfera biológica, cuja essência é o repor omesmo da reprodução da vida; e o ser social, que se particu-lariza pela incessante produção do novo, através da transfor-mação do mundo que o cerca de maneira conscientementeorientada, teleologicamente posta.

Tais momentos de diferenciação do modo de ser das três

3Lukács, G. Per una Ontologia dell' Essere Sociale, op. cit., vol II*, 148 ess./XVIII e ss.

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Cap I -Problemas Ontológicos Gerais 17

esferas ontológicas não devem velar, contudo, um outro fatofundamental. Apesar de distintas, as três esferas ontológicasestão indissoluvelmente articuladas: sem a esfera inorgânicanão há vida, e sem a vida não há ser social. Isto ocorre porquehá uma processualidade evolutiva que articula as três esferasentre si: do inorgânico surgiu a vida e, desta, o ser social.Essa processualidade evolutiva é responsável pelos traços decontinuidade que articulam as três esferas entre si.

Para a ontologia de Lukács, isso é da maior importância.Significa, acima de tudo, que o ser social pode existir e se re-produzir apenas em uma contínua e ineliminável articulaçãocom a natureza. Acentua Lukács que "O homem, membroativo da sociedade, motor das suas transformações e dosseus avanços, permanece em sentido biológico ineliminavel-mente um ente natural: em sentido biológico, a sua consciên-cia — não obstante todas as mudanças de função maisdecisivas no plano ontológico — está indissociavelmente li-gada ao processo de reprodução biológica do seu corpo; dadoo fato mais geral de tal ligação, a base biológica da vida per-manece intacta também na sociedade."4

Sob esse aspecto, temos alguma proximidade, umaprossecução crítica, para sermos mais exatos, entre o materia-lismo marxiano-lukácsiano e o materialismo ingênuo do Ilumi-nismo. Ambos buscaram levar adiante a idéia genial de queuma ontologia do ser social apenas seria possível tendo porbase uma ontologia do ser natural, de que há uma articulaçãoefetiva, fundamental, entre ser social e natureza. O que osdistingue radicalmente é o fato que "O velho materialismo /.../queria entender os fenômenos mais complexos, a estruturamais elevada, como surgido diretamente dos inferiores, comoseus simples produtos /.../. O novo materialismo fundado por

4Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 104.

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Marx, considera, claro, insuprimível a base material da exis-tência humana, mas isto é, para ele, apenas um motivo a maispara evidenciar a sociabilidade específica daquelas categoriasque surgem do processo de separação ontológica entre natu-reza e sociedade."5

Em poucas palavras, a unidade última do ser não é des-truída pela gênese e pelo desenvolvimento das três esferasontológicas. Pelo contrário, com a gênese e o desenvolvi-mento da vida e do ser social, a unidade é mantida num pata-mar mais elevado, ganha novos matizes e se torna mais rica earticulada. Essa unidade ontológica última se evidencia, porexemplo, tanto no fato de a reprodução social requerer umapermanente troca orgânica com o mundo natural, como pelofato de que, sem natureza, não pode haver ser social.6

III- O momento predominante

A simultânea distinção e articulação entre as três esferasontológicas apenas pode ser corretamente compreendida selevarmos em conta o que Lukács, após Marx, denominou mo-mento predominante. (übergreifendes Moment).7

Segundo Lukács, Hegel argumentou, com acerto, o cará-ter de contraditoriedade presente em todo processo.8 Todavia,

5Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 78. No capítulo da Ontologia dedicado a He-gel, Lukács discute mais longamente esta relação entre o materialismo dia-lético e o materialismo anterior a Marx. Cf. Lukács, G., op. cit., vol I, p. 168e ss.6Lukács, G. op. cit., vol II*, p. 165-8/XXXIX e ss. Cf. também Lessa, S. So-ciabilidade e Individuação, EDUFAL, p. 21 e ss.7Lukács, G. op. cit., vol II*, p. 229 e ss/CXVIII e ss. Cf. tb. Lessa, S. op. cit.p. 57 e ss.8Faz parte de Per una Ontologia dell’Essere Sociale um capítulo dedicado

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Cap I -Problemas Ontológicos Gerais 19

apenas a contradição é insuficiente para resultar num pro-cesso evolutivo. Esse requer que um dos seus elementos seconstitua, dinamicamente, em determinação predominante dosentido e da direção do processo enquanto tal. A cada mo-mento, um dos elementos do complexo deve predominar, demodo a conferir dinamicamente uma direção ao processo.

Em outras palavras as contradições, por si mesmas, resul-tariam em um equilíbrio dinâmico estacionário do processo,inviabilizando toda evolução. "/.../ a simples interação conduza um arranjo estacionário, definitivamente estático; se quere-mos dar uma expressão conceitual à dinâmica viva do ser, aoseu desenvolvimento, devemos elucidar qual seria, na intera-ção da qual se trata, o momento predominante."9

Exemplifiquemos com um tipo de processualidade em quese expressa agudamente o momento predominante, aquelecuja forma genérica Lukács denominou salto ontológico. Aanálise da gênese da vida, da esfera biológica, evidencia queo que distingue a matéria orgânica da matéria inorgânica é ofato de a primeira apenas existir através de um ininterruptoprocesso de reposição do mesmo (a goiabeira repõe goiabei-ras, que repõem goiabeiras, etc.), enquanto a processualidadeinorgânica é marcada por um infindável tornar-se-outro.

Entre a esfera inorgânica e a esfera biológica há, por-tanto, uma ruptura ontológica: são formas distintas de ser. E

inteiramente a Hegel (Cf. nota 1). É um dos únicos trechos desta obra querecebeu sua redação definitiva e, por isso, goza de um acabamento e deuma articulação interna de que a obra, no seu todo, carece. A tese centralde Lukács acerca do filósofo alemão aponta a existência de duas ontologiascuja contraditoriedade e simultânea articulação dariam conta da tensão queperpassa o pensamento hegeliano. A primeira ontologia — denominada porLukács de verdadeira — é aquela que tem a contraditoriedade do real comonódulo central. A segunda ontologia — a falsa — é a que se articula pelaidentidade sujeito-objeto. Sobre a problemática da contradição em Hegel,ver sobretudo a segunda parte deste capítulo, "A ontologia dialética de He-gel e as determinações reflexivas".9Lukács, G., op. cit., Vol II*, p. 229.

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A Ontologia de Lukács20

esta distinção é de tal ordem que uma não pode ser direta-mente derivada da outra. O ser vivo apenas pode se transfor-mar em ser inorgânico pela morte, que é o momento dedestruição da vida. Por sua vez, as substâncias inorgânicasque compõem a matéria orgânica se submetem às leis biológi-cas, isto é, se integram à reprodução biológica. O movimentoobjetivo das substâncias inorgânicas incorporadas aos pro-cessos biológicos resulta em que o mero tornar-se-outro daprocessualidade inorgânica passa a ser predominantementedeterminado pelo repor-o-mesmo da reprodução biológica. Otornar-se outro inorgânico é tão-somente uma parte — nãopredominante — do processo biológico global10. Sublinhemos:entre a esfera inorgânica e a vida há uma ruptura das formasde ser, há uma ruptura ontológica.

Nas palavras de Lukács, "todo salto implica numa mu-dança qualitativa e estrutural do ser, na qual a fase inicialcontém certamente em si determinadas premissas e possibili-dades das fases sucessivas e superiores, mas estas não po-dem se desenvolver daquelas a partir de uma simples eretilínea continuidade. A essência do salto é constituída poressa ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento enão pelo nascimento repentino ou gradual, ao longo do tempo,da nova forma de ser."11 Em outras palavras, o salto corres-ponde ao momento negativo de ruptura, negação, da esferaontológica anterior; é este momento negativo que compõe aessência do salto. Todavia, a explicitação categorial do novoser não se esgota no salto. Requer um longo e contraditórioprocesso de construção das novas categorias, da nova legali-dade e das novas relações que caracterizam a esfera nas-cente. Esse longo processo, cuja positividade (afirmação donovo ser) contrasta com a negatividade do salto, é o processo

10Lukács, G., op. cit., p. 177-9/CIV-VI.11Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 17-8.

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Cap I -Problemas Ontológicos Gerais 21

de desenvolvimento do novo ser.Certamente, entre o salto e o novo ser que se desenvolve

a partir dele há uma relação fundamental: sem o salto o novoser não pode se consubstanciar. Todavia, o salto não esgota,em si próprio, o novo ser; este apenas pode se explicitar atra-vés de uma processualidade evolutiva que, por sua essência,está para além do salto enquanto tal.

A relação entre o mundo inorgânico e a vida desdobracom clareza essa relação salto ontológico/desenvolvimentoprocessual do novo ser. Certamente sem o surgimento da vidanão poderia existir um tigre. Todavia, o tigre não se resume aosalto ontológico para fora do mundo inorgânico. O tigre ape-nas pode existir como resultado de um longo processo evolu-tivo que tem sua base no salto ontológico para fora da esferainorgânica, mas que, de forma alguma, se esgota nele. Porisso, entre o salto ontológico que deu origem à vida, e o tigre,se interpõe um longo e complexo processo de desenvolvi-mento biológico — que também exibe, no seu interior, momen-tos de saltos qualitativos — que, de maneira alguma, pode serreduzido ao salto ontológico originário.

Essas colocações, todavia, não esgotam todos os aspec-tos da questão. Há ainda o problema da determinação daforma concreta que teve este salto ontológico. Como, quandoe onde ele se deu? Tais questões, obviamente, não podemser resolvidas no campo da ontologia. Elas requerem pesqui-sas específicas que pertencem à ciência. O que hoje parececlaro é que um determinado nível de organização das sub-stâncias inorgânicas possibilitou, a partir de um dado momentoda evolução do planeta Terra, que algumas moléculas pas-sassem a reproduzir a si mesmas, dando origem à reproduçãobiológica e ao desenvolvimento da vida.

Em que pese o fato de que novas descobertas nestecampo certamente serão feitas pela ciência, com o que pode

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A Ontologia de Lukács22

se alterar profundamente nossa compreensão do processo depassagem do inorgânico à vida, algo já pode ser afirmado noplano ontológico mais geral: o repor-o-mesmo que caracterizaa esfera biológica tem que ser o momento predominante quedetermina a processualidade concreta mesmo da forma maisprimitiva de vida. Se o momento predominante não for a re-produção do mesmo, não se operará o salto para além do serinorgânico.

Em definitivo, não há uma seqüência de passos interme-diários entre o tornar-se-outro da pedra e o repor-o-mesmo dagoiabeira. Não há qualquer mediação possível entre estas es-feras ontológicas, e por isso a passagem de uma a outra as-sume a forma de um salto ontológico. E, nele, a ação domomento predominante é imediatamente visível: se a forma deser da esfera que está surgindo não for o momento predomi-nante desde o primeiro instante, o salto jamais poderia ter lu-gar.

Argumentaremos, ao longo do próximo capítulo, que umsalto análogo — ainda que ontologicamente distinto — ocorreuna passagem da vida ao ser social. Tal como a reprodução domesmo se constitui em momento predominante do salto onto-lógico que deu origem à vida, a reprodução do novo, atravésda transformação conscientemente orientada do real, seconstitui no momento predominante do salto que marca a gê-nese do ser social. Iniciaremos, por isso, com o próximo capí-tulo, o estudo da categoria do trabalho, a qual, segundoLukács, exerce o momento predominante do salto da vida aomundo dos homens.

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CAPÍTULO II

A Categoria do Trabalho

As três esferas ontológicas são essencialmente distintas eessencialmente articuladas. Isso significa, entre outras coisas,que o estudo de cada uma delas deve revelar tanto os mo-mentos de distinção ontológica como, também, os de articula-ção ontológica que permeiam as três esferas do ser. Em setratando do ser social, essa exigência genérica se particularizana necessidade de desvelar de que modo se opera essa si-multânea distinção e articulação do mundo dos homens com oconjunto da natureza. E, para tanto, no contexto da ontologialukácsiana, devemos nos debruçar sobre a processualidadeinterna à categoria do trabalho. Esse será nosso objetivo nosdois próximos capítulos.

I- O Trabalho

1 - objetivação e alienação

Segundo Lukács, a categoria do trabalho é a protoforma(a forma originária, primária) do agir humano.1

Isto não significa, é necessário frisar, que todos os atos

1Lukács, G. op. cit., vol II*, p. 19.

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A Ontologia de Lukács24

humanos sejam redutíveis ao trabalho. Lukács argumentou,em diversas oportunidades, que inúmeros atos humanos nãopodem ser reduzidos a atos de trabalho, em que pese o fatode o trabalho ser a forma originária e o fundamento ontológicodas diferentes formas da praxis social.2 Para o filósofo hún-garo, a reprodução social comporta e, ao mesmo tempo, re-quer outros tipos de ação que não os especificamente detrabalho. Todavia, sem a categoria do trabalho, as inúmeras evariadas formas de atividade humano-social não poderiam se-quer existir.

O que é, exatamente, o trabalho para Lukács?Voltemos à história de Ikursk. Vimos que ele construiu um

enorme e descomunal machado como resposta a uma situa-ção concreta: um perigoso tigre estava à solta, e ele não que-ria de modo algum encontrá-lo.

Detenhamo-nos no primeiro momento deste procedimentode Ikursk. Ao analisar a situação concreta em que se encon-trava, Ikursk planejou uma artimanha: quebrar o seu machadoe construir outro absolutamente inadequado para combater otigre. Esperava, desta forma, que a tribo não o enviasse paraenfrentar o felino.

Esse momento de planejamento que antecede e dirige aação, Lukács denominou prévia-ideação. Pela prévia-ideação,as conseqüências da ação são antevistas na consciência, detal maneira que o resultado é idealizado (ou seja, projetado naconsciência) antes que seja construído na prática.3

O momento da prévia-ideação é abstrato. Mas isto não si-gnifica que não tenha existência real, que não exerça forçamaterial, na determinação dos atos sociais. Vimos como o

2Lukács, op. cit., vol II**, p. 610.3Sobre a estrutura fundamental do trabalho, cf. Lukács, G., op. cit., vol II*, p.264/CLX. Cf. tb. Lessa, S. “A Centralidade do Trabalho na Ontologia deLukács”, tese doutoramento, IFCH-UNICAMP, 1994.

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Cap. II - A Categoria do Trabalho 25

comportamento de Ikursk frente ao perigo foi determinado porsua idéia de fugir ao confronto com o tigre, substituindo seumachado por outro, descomunal. Ao idealizar previamente omachado descomunal, Ikursk anteviu-o idealmente em seusdetalhes: formato e peso da pedra, tamanho do cabo, etc. Emseguida — apenas em seguida — agiu no sentido que lhe in-dicava a prévia-ideação: procurou uma pedra, um cabo, omaterial necessário que se encaixasse no projeto de ma-chado.

O fato de ser abstrata, portanto, não impede a prévia-ide-ação de exercer um papel fundamental na determinação dapraxis social. Pelo contrário, justamente por ser abstrata é quea prévia-ideação pode cumprir uma função tão importante navida dos homens. Só enquanto abstratividade pode ela ser omomento em que os homens confrontam passado, presente efuturo e projetam, idealmente, os resultados de sua praxis.4

Contudo, a prévia-ideação só pode ser prévia-ideação sefor objetivada. Ou seja, se for realizada na prática.

Ao ser levada à prática, a prévia-ideação se materializanum objeto, se objetiva. O processo que articula a conversãodo idealizado em objeto — sempre com a transformação deum setor da realidade — é denominado por Lukács de objeti-vação.5 Pela objetivação "/.../ uma posição teleológica se rea-liza no âmbito do ser material como nascimento de uma novaobjetividade."6

Entre a consciência que operou a prévia-ideação e o obje-to construído se interpõem duas relações fundamentais. Aprimeira delas é que sem a prévia-ideação esse objeto nãopoderia existir. Sem a prévia-ideação de Ikursk (para continuar

4Sobre a realidade do reflexo do existente na consciência, cf. Lukács, op.cit., vol II*, p. 37-8. Cf. tb. Lessa, S. “A centralidade...”, op. cit., capítulo III.5Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 564.6Lukács, op. cit., vol II*, p. 19.

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A Ontologia de Lukács26

com o nosso exemplo), aquele machado descomunal nuncaviria a existir. Nesse sentido, o objeto é a idéia objetivada, aidéia transformada em objeto.7

A segunda relação é dada pelo fato de que, entre aconsciência que operou a prévia-ideação e o objeto, há umaefetiva distinção no plano do ser. Ikursk não é o machado nemo machado é Ikursk (ainda que, é verdade, sem a ação deIkursk não existiria o machado). A história do machado é dis-tinta da história de Ikursk, seu criador. Não raramente, o objetocriado sobrevive ao próprio criador.

Tal distinção entre o sujeito, portador da prévia-ideação, eo objeto criado no processo de objetivação, Lukács denomi-nou alienação (Entäusserung).8

Em Lukács, portanto, a alienação é a distinção concreta,real, ontológica (isto é, no plano do ser) entre o sujeito e oobjeto que vem a ser pela objetivação de uma prévia-ideação.

Isto requer duas observações. A primeira delas, que a re-lação entre o sujeito e o objeto jamais poderá ser, por maisque se potencialize a capacidade humana em conformar omundo segundo finalidades postas socialmente, uma relaçãode identidade. A identidade sujeito-objeto, tão característica douniverso hegeliano, está aqui resolutamente descartada.9 Pormais que o objeto traga em si as marcas do seu criador (um

7A concepção de que o ser social é a subjetividade objetivada é central emLukács. Cf., p. ex., Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 26-8.8Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 36-8. Entre os estudos de Lukács no Brasil,há uma pendência ainda não resolvida acerca da melhor tradução para En-täusserung e Enfremdung. Alguns, como o Prof. Leandro Konder, preferemexteriorização e alienação; outros, como o Prof. Ricardo Antunes, preferemalienação e estranhamento, respectivamente. Ainda que a primeira opçãotalvez seja a mais fácil de ser compreendida para os que estão se iniciandoem Lukács, a segunda alternativa tem a vantagem de ser mais utilizada, epor esta razão a preferiremos neste texto. Contudo, ao entrar em contatocom a literatura nacional e estrangeira sobre Lukács, o leitor deve estaratento às diferentes traduções destes dois conceitos.9Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 564 e ss.

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Cap. II - A Categoria do Trabalho 27

quadro de Picasso, ou uma produção cultural típica de umasociedade como o Coliseu de Roma) objeto e sujeito serãosempre entes ontologicamente distintos.

A segunda observação é que o sujeito se consubstanciaenquanto tal pela objetivação/alienação. Sem objetiva-ção/alienação não há qualquer transformação teleologica-mente posta do real; sem alienação/objetivação não há vidasocial, portanto não há sujeito. Ser humano, para Lukács, si-gnifica uma crescente capacidade de objetivar/alienar — istoé, transformar o mundo segundo finalidades socialmente pos-tas.

Para a compreensão da investigação ontológica do últimoLukács é da máxima importância esse conjunto de questõesde que estamos agora tratando. O filósofo húngaro afirma,após Marx, que o objeto socialmente posto é subjetividadeobjetivada10 (só poderia ser pela objetivação de uma prévia-ideação) e ontologicamente distinto do sujeito (recusando,portanto, toda identidade sujeito-objeto). Ou seja, ele postulaum tertium datur, uma terceira alternativa, entre dois extremosclássicos da filosofia. A identidade entre sujeito e objeto colo-caria Lukács no campo do idealismo hegeliano. Para Hegel,sabemos, o objeto nada mais seria senão o próprio Espíritoalienado. Por outro lado, a separação insuperável, absoluta,entre consciência e objeto, a ponto de a prévia-ideação perdertoda e qualquer importância na constituição do objeto, é apostura típica do que, no prefácio, denominamos materialismoestruturalista. Para este, a consciência é um mero epifenô-meno, um mero resultado passivo, do mundo material.

Diferenciando-se destes dois extremos, Lukács argu-

10Essa expressão não é de Lukács, ele utiliza causalidade posta. Todavia,julgamos ser ela uma forma adequada para exprimir sintética e claramentea essência da substancialidade social em sua ontologia.

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A Ontologia de Lukács28

menta que, via trabalho, a consciência se objetiva e se alienaem objetos que são ontologicamente distintos de si própria.Sem a atuação da consciência, da prévia-ideação, esses obje-tos não existiriam11, o que não significa que haja identidadeentre sujeito e objeto. Ou, o que dá no mesmo, sujeito e objetosão ontologicamente distintos, ainda que o mundo dos ho-mens se constitua em um infindável movimento de objetivaçãode prévias-ideações.

A objetividade primária da realidade, dessa forma, não éde modo algum atenuada por Lukács nem mesmo em se tra-tando daqueles objetos e relações que só existem enquantocriações humanas12. Lukács cita com todas as letras a afirma-ção de Marx, nos Manuscritos de 1844, que "um ente não ob-jetivo é um não-ente [ein Unwesen]".13 O machadodescomunal de Ikursk é, no plano do ser, tão distinto de Ikurskcomo a Lua. A diferença fundamental, e que se evidencia comclareza tanto nas peculiaridades da história do machado comonas da história da Lua, é que o machado foi criado pelos ho-mens, e a Lua não. Todavia, essa diferença essencial entre omachado e a Lua em nada altera o fato de ambos serem, on-tologicamente, entes distintos de Ikursk.

Fixemos os pontos até aqui alcançados para avançarmoscom clareza: a objetivação designa, em Lukács, o processo deconversão da prévia-ideação em objeto concreto, sempre coma transformação de um setor da realidade. A alienação é omomento da objetivação pelo qual se consubstancializa (istoé, torna-se real, efetiva, substancial) a distinção entre um ob-jeto socialmente criado e a consciência que operou a prévia-

11"/.../ com o trabalho a consciência do homem cessa, em sentido ontoló-gico, de ser apenas epifenômeno." Lukács, G. op. cit., vol II*, p. 34-6.12Cf., p. ex., Lukács, G., op. cit., vol I, p. 325-7. Tradução Carlos NelsonCoutinho, "Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx", Livraria Edi-tora Ciências Humanas, São Paulo, 1979, p. 82-4.13Lukács, G., op. cit., vol I, p. 284.

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ideação que está na gênese desse mesmo objeto. O sujeito sealiena em um objeto ontologicamente distinto de si próprio.Reforcemos: apesar de o objeto socialmente criado ser subje-tividade objetivada, não há em Lukács qualquer traço de iden-tidade sujeito-objeto. Sujeito e objeto são, enquanto criador ecriatura, entes ontologicamente distintos.

Isto posto, passemos à essência da categoria trabalhosegundo Lukács, à relação teleologia-causalidade.

II- Teleologia e Causalidade

Voltemos à história de Ikursk. O machado descomunal foipor ele construído como uma resposta a uma situação con-creta: o tigre ameaçava a aldeia, e ele não queria enfrentá-lo.Isto significa que o machado ganhou existência no interior derelações objetivas que já existiam antes de o machado serconstruído. Essas relações englobavam não apenas a relaçãode Ikursk com sua tribo, com os outros indivíduos à sua volta,mas também com a natureza.

Portanto, o machado descomunal de Ikursk ganhou exis-tência dentro de uma malha de relações, de influências recí-procas, de nexos causais que compunham a tribo de Ikursk;no fundo, relações sociais que exprimiam a forma concreta eparticular dos homens da tribo de Ikursk se reproduziram emcontínua troca orgânica com a natureza.

O fato de o machado de Ikursk ter sua existência desdo-brada no interior de determinadas relações objetivas é algoque pode ser generalizado a todo outro ente. Nada existe se-não no interior de relações causais, de determinações reflexi-vas. Entre as relações de uma pedra com o mundo (relaçõespuramente físico-químicas) e as relações de um indivíduo com

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A Ontologia de Lukács30

a humanidade (apenas possível tendo como mediação aconsciência), as diferenças são enormes. Contudo, repetimos,isto não desautoriza aquela afirmação ontológica de carátermais geral: nada existe fora de relações com a totalidade doser. Em poucas palavras, o ser é uma categoria cujo caráterde totalidade é ineliminável e tudo que existe o faz no interior(e em relação, portanto) com esta totalidade.14

Para Lukács, o caráter de totalidade do ser é importanteporque permite divisar com clareza um momento fundamentalda processualidade do trabalho: ao se inserir na malha de re-lações e determinações pré-existentes, o objeto construído aaltera (ainda que minimamente), desencadeando dessa ma-neira nexos causais (ou seja, uma seqüência de causa eefeito) que são, ao mesmo tempo, 1) perpassados por mo-mentos de casualidade e, 2) na sua totalidade imprevisíveispela consciência no momento da prévia-ideação.

Vejamos como isto se deu na história de Ikursk: ao ficarpronto o seu machado, nosso herói foi inserido no grupo demulheres que quebrava coco e foi separado do grupo de guer-reiros que caçava o tigre. Ikursk com o machado, portanto,estabeleceu uma relação com a totalidade de sua tribo (emesmo com o tigre) distinta da relação que ele desenvolviaanteriormente. Sua inserção social foi alterada e, do mesmomodo, foi alterada a possibilidade de um confronto entre ele eo tigre.

No entanto, bem ao contrário do que pretendia Ikursk, pormero acaso, ao fazer o machado, ele dera um passo na dire-ção do seu encontro com o tigre. Por mero acaso, ao fugir dotigre, Ikursk dele se aproximou. Repetimos: por mero acaso,no seu pavor ele matou o tigre e se transformou em chefe vi-talício da tribo.

14Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 137/IV. Também vol II** p. 11.

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Esse exemplo nos permite vislumbrar como, ao se inserirnuma situação pré-existente, os objetos desencadeiam conse-qüências que não podem ser completamente previstas, e nasquais o acaso joga um papel relevante. 15

Ao se alterar o existente, pela objetivação de uma prévia-ideação, advêm conseqüências e resultados inesperados queresultam em novas necessidades e em novas possibilidadespara atender a estas necessidades. Lukács se refere a um"período de conseqüências". Os indivíduos, então, operamnovas prévias-ideações tendo em vista as novas exigências epossibilidades que surgiram, efetuam novas objetivações,dando origem a novos objetos que, por sua vez, desenca-deiam novos nexos causais, etc.16

Essa relação dialética entre teleologia (isto é, projetar deforma ideal e prévia a finalidade de uma ação) e causalidade(os nexos causais do mundo objetivo) corresponde à essênciado trabalho, segundo Lukács.17 O que nos permite compreen-der com clareza que, no contexto da ontologia lukácsiana, ateleologia, longe de ser um epifenômeno da processualidadesocial, se constitui em "categoria ontologicamente objetiva"pertencente à essência do mundo dos homens.18

III- Teleologia e Intentio Recta

15Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 167-8 e 610-1. Também, vol I, p. 357-8.Tradução para o português de Carlos Nelson Coutinho, “Os Princípios Onto-lógicos...”, op. cit., p. 118-9.16Lukács, G., op. cit. vol II*, p. 113. Tb. p. 281 e ss/CLXXIX e ss.17Lukács, G., op. cit., vol I p. 298-9 e vol II*, p. 24 e ss.18Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 20. Mas apenas ao mundo dos homens.Sobre a crítica da Lukács à generalização da teleologia a todo ser, Cf.Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 20-25.

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A Ontologia de Lukács32

O produto do trabalho é, portanto, uma síntese peculiar,que só pode ocorrer no mundo dos homens, entre a prévia-ideação e os nexos causais realmente existentes. Vimos que aobjetivação é o momento concreto de realização desta sín-tese.

Todavia, essa síntese se dá de tal modo que, se é ver-dade que o produto do trabalho, o machado de Ikursk, apenaspoderia existir a partir da objetivação de uma prévia-ideação,não menos verdadeiro é que, no machado, a pedra continuasendo pedra, a madeira, madeira, etc. Ou seja, ainda que omachado não seja pedra e madeira — ele é a pedra e a ma-deira organizadas de uma determinada forma previamenteidealizada e depois objetivada —, a pedra continua portadorade várias determinações naturais que possuía antes de serconvertida em parte de um machado, o mesmo ocorrendo coma madeira.

Isso pode ser percebido com certa facilidade se modifi-carmos a história de Ikursk. Imagine se, ao encontrar o tigre,Ikursk tivesse tido a oportunidade de, conscientemente, daruma machadada no tigre mas, ao fazê-lo, o cabo se que-brasse. E o tigre, então, tivesse devorado o nosso "heróico"guerreiro.

A quebra do cabo, neste caso, ter-se-ia dado porque aconstituição daquele pedaço de machado, sua capacidade deresistência à torção, tração, etc., se mostrou insuficiente parao esforço requerido para aquela ação. E essa constituição foidada pelo processo natural de desenvolvimento da própriamadeira, pela disposição natural de suas fibras, etc. Analoga-mente, mesmo sendo cabo, a madeira continua a ser destruí-da pelo fogo, pode apodrecer com a ação da umidade, etc.,etc. Tanto é assim que, com facilidade, identificamos o cabocomo sendo feito de madeira, um pedaço de natureza.

Para evitar equívocos, sublinhemos que o "cabo" é uma

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construção humano-social. A natureza não constrói machados— e, portanto, nem cabos. Todavia, a madeira da qual o caboé feito é uma parte da natureza e continua sujeita a determi-nações naturais. Ainda que inserida numa relação social queterá alguma influência sobre o seu destino19, a madeira docabo não deixa, por isso, de ser madeira, de ser pedaço danatureza orgânica.

Do ponto de vista ontológico mais geral, estamos aquitratando de uma situação que já discutimos no capítulo ante-rior: o fato de que o ser social apenas pode existir tendo porbase as esferas ontológicas inferiores, naturais. Sem a natu-reza, não há, em definitivo, ser social. Esse fato ontológicomais geral se manifesta na peculiaridade do ente que é o ma-chado de Ikursk no momento em que, se a madeira deixar deser madeira, e a pedra, pedra, o machado de Ikursk não maispoderia existir enquanto aquele machado, não poderia existirenquanto tal.

Já discutimos, também, que, por mais que o homem des-envolva a sua capacidade em transformar a natureza, confor-mando-a segundo seus próprios objetivos, jamais a naturezadeixará de ser natureza — ainda que o mundo em que vive-mos seja portador de determinações sociais cada vez maisintensas, densas. Não há, na ontologia de Lukács, repetimos,qualquer espaço para a identidade sujeito/objeto. Em se tra-tando do machado de Ikursk, por mais que ele altere a ma-deira, molde a sua forma e a sua dureza de modo a ser mais"útil", ela sempre continuará sendo portadora de qualidadesnaturais, de determinações advindas do mundo da natureza.

19Por exemplo: o fato de ter se transformado num machado sagrado podefazer com que este pedaço de madeira que compõe o cabo seja preservadoe mantido, milhares de anos depois, como uma peça de museu. Destinocertamente muito diferente daquele que ocorreu com inúmeras madeirascontemporâneas à construção do machado por Ikursk; todavia, nem porisso, a madeira deixou de ser madeira.

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Não se pode, por exemplo, transformar madeira em ouro, pormais desenvolvido que seja o processo de transformação danatureza pelo homem, porque as determinações naturais domaterial envolvido não permitem que isto ocorra. O fato de umobjeto "receber a qualidade socialmente existente de ser-postopelo trabalho" não significa que ele deixe de ser "em si coisanatural sujeita à causalidade natural"20.

Desse conjunto de problemas, o que nos interessa é umaspecto bastante particular, mas fundamental, para o nossoestudo. Um processo de objetivação, para ter êxito, deve terpor base um efetivo conhecimento do setor da realidade quepretende transformar. Argumenta Lukács que todo ato de tra-balho "deve ser pensado corretamente (deve se apoiar sobreum reflexo correto da realidade), corretamente orientado paraa finalidade, corretamente executado com as mãos, etc. Seisto não se verifica, a causalidade posta cessará a todo ins-tante de operar, e a pedra retornará à sua condição de sim-ples ente natural, sujeito à causalidade natural, que nada temem comum com os objetos e meios do trabalho."21

A necessidade, essencial ao trabalho, de captura do realpela consciência, de modo que possa transformar com su-cesso a realidade segundo uma finalidade previamente ideali-zada, é o fundamento ontológico de um impulso aoconhecimento do real que Lukács, após Hartmann, denominouintentio recta.

Detenhamo-nos a analisar com mais detalhes a intentiorecta.

As finalidades são, sempre, socialmente construídas. Anecessidade de um machado é puramente social o que signi-fica afirmar que nenhuma processualidade natural poderiaproduzir a necessidade de um machado. Todavia, para a obje-

20Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 44.21Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 44.

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tivação dessa finalidade, são necessárias a seleção e a buscados meios materiais mais adequados entre os meios disponí-veis. A relação entre fim e meio que aqui se estabelece fazcom que, em cada ato tomado isoladamente, haja um claropredomínio dos fins sobre os meios. É a finalidade que orientaa busca e a seleção dos meios. Se queremos fazer um ma-chado, procuramos madeiras e pedras, e não água.

Essa relação se altera, contudo, se tomamos não maisum ato isoladamente, mas um período histórico mais amplo.Nessa escala, a acumulação social se faz através do desen-volvimento dos meios. O médium específico a esse processode acumulação é a fixação do conhecimento de como cons-truir ferramentas mais desenvolvidas. A passagem do ma-chado de pedra lascada ao machado de pedra polida, porexemplo, é o veículo social concreto pelo qual se fixou social-mente, e pôde ser transmitido às gerações futuras, a desco-berta de novas técnicas produtivas. Esse processo deacumulação se dá, predominantemente, pela fixação e trans-missão social do desenvolvimento dos meios — e não pelafixação das finalidades que estiveram na origem dessas des-cobertas. Se no ato singular há um nítido predomínio da finali-dade sobre a seleção dos meios, no desenvolvimento históricomais amplo é o desenvolvimento dos meios que fixa social-mente a acumulação realizada.22

Ora, a busca e a seleção do meios impulsionam a consci-ência para além de si própria: impulsionam a consciência parao conhecimento do mundo exterior a ela. Para ser capaz defazer o seu machado, Ikursk tinha que conhecer, ao menosminimamente, a pedra, a madeira e mesmo as leis mais geraisda alavanca. E esse conhecimento, a fim de cumprir sua fun-ção social, necessariamente deve reproduzir na consciência,

22Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 29.

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em alguma medida, a realidade exterior; dever refletir as de-terminações do ser-precisamente-assim existente — não im-porta agora, para o nosso raciocínio, se com maior ou menorfidelidade.

Para esse tipo de conhecimento, sempre segundoLukács, é secundário o que Ikursk sente sobre o fato de a pe-dra ser dura ou cinzenta; é secundário o que Ikursk pensa so-bre a sua vida e a história da sua tribo: os afetos, as emoções,os instintos de Ikursk, sua visão de mundo, etc., jogam aquium papel secundário. O que importa em primeiro lugar é se oconhecimento da pedra que Ikursk possui lhe possibilita, ounão, construir um machado adequado aos seus fins. Todas asvezes em que os afetos, as emoções, os instintos atrapalha-rem a construção de um reflexo correto da realidade, Ikurskdeverá controlá-los, deverá colocá-los sob suspensão.23

Em poucas palavras, o conhecimento requerido para atransformação do real no trabalho deve ser, em algum grau,reflexo do real e não reflexo da subjetividade individual: esseconhecimento poderá cumprir sua função social tanto melhorquanto mais desantropomorfizado for.

O impulso à captura do ser-precisamente-assim existente,ao se desenvolver e generalizar, está na origem da ciência.Nas palavras de Lukács,

"O fato que — em conexão com o trabalho con-creto dado — somente um reflexo efetivamente correto

23"Quem trabalha necessariamente deseja o sucesso de sua atividade. Masele só pode obtê-lo quando, tanto na posição do fim como na escolha dosseus meios, constantemente tende a colher o ser-em-si objetivo de tudoaquilo que tem a ver com o trabalho e a se comportar para com ele, paracom o fim e para com os meios, de maneira adequada ao seu ser-em-si.Aqui temos não apenas a intenção de alcançar a um reflexo objetivo, mastambém a tendência a excluir tudo aquilo que seja meramente instintivo,sentimental, etc. e que poderia dis-turbar a visão objetiva. Nasce exata-mente assim o desenvolvimento do consciente sobre o instintivo, do conhe-cimento sobre tudo aquilo que apenas seja emocional." Lukács, G., op. cit.,vol II*, p. 51.

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Cap. II - A Categoria do Trabalho 37

das relações causais colocadas em questão pelo obje-tivo do trabalho pode fazer com que elas se transfor-mem, como é absolutamente necessário, em relaçõescausais postas, leva não somente a um constante con-trole e aperfeiçoamento dos atos de reflexo, mas tam-bém à sua generalização. À medida que a experiênciade um trabalho concreto é utilizada em outro trabalho, seproduz gradualmente uma sua — relativa — autonomi-zação, o que quer dizer que são generalizadas e fixadasdeterminadas observações que não mais referem demodo exclusivo e direto a um único procedimento, masadquirem, ao invés, um certo caráter de generalidadecomo observações que dizem respeito a eventos da na-tureza em geral. São estas as generalizações que forne-cem os germes das futuras ciências, cujos inícios, comopara a geometria e a aritmética, se perderam ao longodo tempo. Mesmo que não se tenha uma clara consciên-cia, algumas generalizações apenas iniciais contêm jáprincípios decisivos das ciências posteriores realmenteautônomas. Por exemplo, o princípio da desantropomor-fização /../".24

Se essa pulsão, inerente ao trabalho, à captura dos nexosdo real pela subjetividade funda a ciência, não menos corretoé dizer que hoje a ciência não se limita à troca orgânica dohomem com a natureza. O desenvolvimento da sociabilidadepossibilitou e exigiu que a ciência se desenvolvesse em umcomplexo social específico, altamente especializado e sofisti-cado, e que apenas mediadamente se relaciona à transforma-ção da natureza — a qualidade e a quantidade de mediaçõesvariam entre os ramos da ciência e mesmo entre as diferentespesquisas de um mesmo ramo. Ciência e técnica não coinci-dem, ainda que mantenham uma relação bastante íntima.

Mais uma vez se evidencia o quanto, em Lukács, a gê-nese de um dado complexo, categoria ou relação social, nãocoincide com o seu ser explicitado por um desenvolvimentoposterior. Certamente sem a intentio recta não seria possível o

24Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 58-9. Cf. também p. 29 e 31.

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A Ontologia de Lukács38

desenvolvimento da ciência — todavia, alcançaremos os resul-tados os mais absurdos se daqui tentarmos deduzir direta-mente toda a ciência moderna a partir das necessidadespostas pela troca orgânica homem/natureza ou, pior ainda, setentarmos explicar o desenvolvimento da ciência modernaapenas pelo desenvolvimento da capacidade humana emtransformar a natureza.

Frisemos, concluindo o capítulo, que, se o trabalho é acategoria fundante do ser social, para Lukács o ser socialcertamente não é redutível ao trabalho. E isso se manifestaem cada uma das categorias sociais bem como na totalidadesocial.

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Capítulo III

Teleologia e intentio obliqua

As considerações do capítulo anterior acerca da necessi-dade de um conhecimento adequado do real para o êxito dotrabalho poderão ser convertidas em meras caricaturas, emabsurdos, se forem interpretadas de modo a enrijecê-las,ainda que apenas minimamente.

Argumenta Lukács, em primeiro lugar, que, se é verdadeque o trabalho requer um conhecimento mínimo do ser-preci-samente-assim existente, não menos verdadeiro é que o co-nhecimento do real vem freqüentemente associado a umconjunto maior de conhecimentos, concepções, visão demundo, etc. falsos. Pensemos em Ikursk: o conhecimento cor-reto das pedras e das madeiras que lhe permitia construir ummachado estava associado a uma visão de mundo mágica, naqual o machado poderia ser portador de poderes fantásticosque transformavam o seu dono, de mero e desprezível co-varde, no maior herói — e rei — da tribo. Pensemos emquantas descobertas fundamentais foram feitas associadas auma concepção de mundo que hoje sabemos falsa. Para nãoirmos longe, relembremos a descoberta, por Pitágoras,quando buscava determinar a proporção matemática da har-monia universal, da relação geométrica entre os catetos e ahipotenusa de um triângulo retângulo. Ou, então, a descoberta

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A Ontologia de Lukács40

decisiva de que a Terra gira ao redor do Sol no contexto deum cosmos heliocêntrico e com forte acento aristotélico.

Na própria vida cotidiana nos defrontamos com fatos"inevitáveis" que impulsionam no sentido da busca de um des-tino e de uma razão para viver. Não apenas fenômenos imutá-veis como a morte, o nascimento, etc., mas mesmoacontecimentos menos traumáticos do dia-a-dia, jogam umpapel importante na estruturação de teorias que interpretam avida dando-lhe um sentido genérico, universal. No mais dasvezes, estas teorizações assumem a forma da contraposiçãoentre o humano e o divino, entre o corpo e a alma, que carac-teriza as religiões e as suas formas laicizadas (como o pan-teísmo ou mesmo a concepção de uma natureza humana a-histórica, dada de uma vez para sempre, que mantém algumasimilute com a alma cristã).1

O fundamento ontológico desse fenômeno é o fato deque, com o desenvolvimento da sociabilidade, a materialidadesocial, as relações sociais que articulam os homens entre si ecom a natureza assumem uma objetividade própria — com oque, na cotidianidade, elas se relacionam com os atos singula-res, com a teleologia de cada indivíduo em cada momento,com a mesma "dureza" que as relações causais dadas, natu-rais. As leis do mercado, no nível da cotidianidade, são tãoexteriores e independentes do indivíduo como uma montanhade minério de ferro. Elas assumem a aparência de uma"segunda natureza".2

Nessa situação, a vida do indivíduo recebe determinaçõesque, na imediaticidade, lhe parecem absolutamente externas— e que do ponto de vista de sua individualidade, lhe parecemabsolutamente arbitrárias. Que, no bojo de uma crise econô-mica, uma parte dos capitalistas irão à falência, e uma parte

1Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 104 e ss.2Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 121.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 41

dos trabalhadores terão seus filhos mortos pelo desemprego epela fome é algo fácil de ser compreendido (mas, certamente,não de ser aceito). Todavia, que seja o João ou o Antônioquem sofrerá estas conseqüências negativas da crise — aindaque aqui o comportamento concreto dos indivíduos possuaalguma importância — é algo que possui muito de acaso. Aconfrontação com este acaso — por que eu?, por que co-migo? — desperta a necessidade de uma vida "plena de sen-tido". 3

Este é o solo pelo qual, através de inúmeras mediaçõesque correspondem à peculiaridade de cada momento histórico,nasce a idéia de um destino, e de uma consciência toda pode-rosa que conduz esse destino, conferindo um sentido superior,pleno, àquilo que parece carecer de sentido na vida cotidiana.A espontânea teleologia da vida cotidiana, neste sentido,"contribui a edificar sistemas ontológicos nos quais uma vidaindividual sensata4 aparece como parte, como momento deuma obra teleológica de salvação do mundo. /.../ Importante éque a vontade de conservar uma sensata integridade da per-sonalidade — que a partir de um determinado estágio é umproblema notável da vida social — encontra uma base deapoio espiritual em uma ontologia fictícia nascida a partir detais necessidades."5

O fascinante campo de estudo que aqui se abre, nemminimamente poderemos explorar neste livro. Apenas assina-laremos como, nesse contexto, uma interpretação falseada,uma ontologia fictícia, pode jogar um papel fundamental nodesenvolvimento do gênero humano. Normalmente, tal onto-logia fornece uma compreensão provisória do cosmos que si-tua o homem em uma determinada relação com o existente,

3Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 107-8.4Sensata na acepção de portadora de um sentido.5Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 108.

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A Ontologia de Lukács42

influenciando o desenvolvimento de sua visão de mundo e,deste modo, também influenciando, mais ou menos direta-mente, a própria reprodução social.

A própria existência de uma ontologia fictícia, ao colocarem questão o problema de uma vida plena de sentido, é fatorimportante para a tomada de consciência, em escala social,dessa problemática e das suas ressonâncias éticas, morais,etc. A religião pode ser uma forma de tomada de consciência,em escala social, de necessidades e dilemas reais que a hu-manidade enfrenta no seu desenvolvimento e, por isso e nestamedida, jogou em vários momentos uma papel importante nodevir-humano dos homens. A figura do herói clássico, ou acondenação ou salvação no paraíso, ao concederem um sen-tido transcendente à vida terrena, foram mediações importan-tes através das quais os indivíduos puderam referir a sipróprios as demandas e as exigências postas pelo desenvol-vimento do gênero humano enquanto tal.

Lembremos de Ikursk no momento em que o pajé, frenteà sua negativa em participar do esforço coletivo da tribo paramatar o tigre, o ameaçou com a cólera dos deuses — naquelemomento os deuses, a religião, a concepção de mundo subja-cente àquela ameaça foram as mediações historicamenteconcretas pelas quais a mesquinhez da individualidade deIkursk foi confrontada, e valorada negativamente, com as ne-cessidades genéricas, coletivas, da sociedade a qual Ikurskpertencia. Naquele momento, a religião, a ira dos deuses, aconcepção de mundo a tudo isso associada foi a forma soci-almente concreta, objetiva, através da qual a tribo de Ikursktomou consciência de suas necessidades, de que sua repro-dução requeria um esforço coletivo e, portanto, que a vida detodos dependia, também, da responsabilidade de cada umpara com a comunidade. Uma necessidade real (a cooperaçãoentre os indivíduos para a reprodução da tribo) se manifestou

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 43

corretamente (os indivíduos devem atender às necessidadessocialmente concretas) através de uma ontologia fictícia(religião, ira dos deuses, visão antropomórfica de mundo, etc.).

Nesse preciso sentido, concepções ontológicas fictíciaspodem jogar um papel de primeira importância na reproduçãosocial e, por essa mediação, no próprio desenvolvimento dotrabalho. O que devemos precisar, a esta altura, é que a rela-ção com a natureza mediada pelo trabalho é o fundamentoontológico da busca de um vida "plena de sentido". Tambémpor esse aspecto podemos notar como o trabalho impulsiona oser social para além do próprio trabalho, dando origem a ne-cessidades e relações sociais que não mais podem ser redu-zidas ao trabalho enquanto tal. A busca de uma vida plena desentido é um complexo problemático que gera necessidadesque não podem ser atendidas apenas pelo complexo do traba-lho, dando origem a novos complexos sociais (moral, ética,religião, ideologia, filosofia, arte, etc.) que muito mediada-mente se relacionam à troca orgânica do homem com a natu-reza.

Em segundo lugar, é necessário elucidar um fenômenoaparentemente paradoxal. O desenvolvimento do conheci-mento e da capacidade de o homem transformar a naturezanão necessariamente — e certamente não de forma linear —implica a construção de ontologias cada vez menos "fictícias".O desenvolvimento de relações sociais cada vez mais intensasé a base necessária da produção de ontologias mais próximasao real. Mas, se estas relações sociais se desenvolvem nosentido de submeter os homens a uma cotidianidade cada vezmais desumana, onde a exploração do homem pelo homem,por exemplo, surge com um "castigo" inevitável na vida decada um — nessas circunstâncias poderemos ter a gênese e odesenvolvimento de "ontologias fictícias" mesmo ali onde odesenvolvimento das forças produtivas e das ciências é um

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A Ontologia de Lukács44

fato inquestionável.6

Esse impulso à constituição de "ontologias fictícias", e quetem seu fundamento ontológico último no trabalho, Lukács,após Hartmann, denomina intentio obliqua. Fazendo uma con-traposição com a intentio recta, a intentio obliqua se constituienquanto uma interpretação globalizante do existente a partirde uma antropomorfização do ser7. A teleologia, categoria pu-ramente social, é estendida à toda a natureza, convertendo-seem categoria que confere sentido à ordem universal. A teleo-logia, de humana e restrita ao ser social, torna-se divina, uni-versal. Os poderes humanos são potencializados eabsolutizados em poderes divinos, o acaso e o desconhecidosão explicados pela vontade — esta muita vezes inexplicável— dos deuses. O machado de Ikursk se transforma em porta-dor da vontade divina, por mais misteriosas que sejam as ra-zões que levaram os deuses a desejarem que Ikursk, oreconhecido covarde, se transformasse em rei da tribo.

Que as ontologias fictícias, além de jogarem papel impor-tante no desenvolvimento do gênero, podem se transformar —e normalmente se transformam — em enormes obstáculos aodevir-humano dos homens é um fato cuja demonstração nãorequer maior argumentação. Para nos darmos conta de algu-mas das dimensões de obstáculo ao desenvolvimento do gê-nero humano em que pode se converter a intentio obliqua,pensemos, por exemplo, na luta contra o teocentrismo quecaracterizou o Renascimento e o período moderno ou, então,em quão conservadoras são as interpretações místicas e su-persticiosas acerca da vida e da morte que hoje brotam comsurpreendente vitalidade.

Sumariando o que vimos até agora, podemos afirmar —

6Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 107.7Lukács, G., op. cit., vol I. p. 116-8.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 45

sempre segundo Lukács — que se o trabalho dependesse,para o seu sucesso, de um conhecimento absoluto do exis-tente, ele jamais poderia se realizar, nem nos seus momentosprimordiais, nem nos dias de hoje.

O trabalho, pela sua própria essência, remete o homempara além do próprio trabalho — de tal modo que, com o pas-sar do tempo, o trabalho apenas pode se efetivar quandoatende a necessidades sociais que não mais pertencem dire-tamente à troca orgânica entre o homem e a natureza. O tra-balho, portanto, apenas pode se realizar no interior de umconjunto global de relações sociais muito mais ampla que elepróprio: apenas no interior da reprodução sócio-global pode otrabalho se efetivar enquanto tal. "O trabalho, de fato," afirmaLukács, "enquanto categoria desenvolvida do ser social, poderealizar a sua existência verdadeira e adequada apenas emum complexo social que se mova e se reproduza processual-mente."8

Uma das conseqüências dessa situação é que o impulsoao conhecimento do realmente-existente, essencial ao su-cesso do trabalho, está necessariamente articulado à intentioobliqua, que entre o desenvolvimento do conhecimento desan-tromorfizado do real, e a crescente antropomorfização dessemesmo real, se desdobra uma relação contraditória, desigual,pela qual tanto as "ontologias fictícias" como o conhecimentocientífico podem, em momentos historicamente determinados,expressarem necessidades reais postas pelo desenvolvimentodo gênero humano. E, por isso, tanto uma como a outra po-dem se converter em momentos impulsionadores, decisivos,do devir-humano dos homens. A corretude ou falsidade gno-siológica de uma teoria não necessariamente implica que elase converterá em um impulso ou obstáculo à generalidade

8Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 135.

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A Ontologia de Lukács46

humana; isso dependerá de qual função social essa teoria de-sempenhará nos diferentes momentos históricos. Não é raro,na história, teorias que jogaram um papel progressista nummomento, se converterem em entraves ao desenvolvimentohumano em outro, e vice-versa.

Uma outra conseqüência dessa situação é a distânciaentre a correta manipulação do real nas atividades cotidianase o conhecimento científico. A habilidade individual, o conhe-cimento de setores do real, etc., requeridas para uma determi-nada atividade não necessariamente — e nunca diretamente— se relacionam à generalização teórica que caracteriza opensamento científico. Embora a intentio recta seja o funda-mento ontológico da gênese da ciência, não é o processo detrabalho o local de produção por excelência do conhecimentocientífico, principalmente à medida que passamos a socieda-des mais evoluídas. A ciência, para o seu desenvolvimento,requer um tipo de generalização específica, e um tipo de cor-reção das experiências e fenômenos singulares pelas suasdimensões universais, que apenas de forma precária pode sedar no interior do trabalho.

Segundo Lukács, essa é a razão de fundo para que aprática cotidiana, enquanto tal, não possa servir de critério úl-timo e imediato para a teoria. Sem dúvida, não pode ser ver-dadeira uma teoria que cotidianamente se demonstre falsa.Todavia, isso não significa que a compreensão do real possase dar apenas e no interior da restrita esfera que compõe avida cotidiana de cada indivíduo. A teoria científica ou, noplano mais geral, uma ontologia não fictícia requer uma retifi-cação de curso, uma correção generalizadora dos fenômenossingulares que está para além da mera cotidianidade.9

Some-se a tudo isso o fato de que a realidade se encon-

9Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 69-70.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 47

tra em permanente evolução e que, por isso, o conhecimentonão pode jamais esgotar a infinidade intensiva e extensiva desuas determinações10 — para termos, de forma adequada,uma percepção do quanto e em que medida, segundo Lukács,o trabalho, para ter sucesso, não poderia depender de um co-nhecimento absoluto, total e completo do real. Na verdade,todo trabalho contém em si uma ação sobre o conhecido e umsalto para o desconhecido. Todo ato de trabalho se apóia emum conhecimento já obtido do ser-precisamente-assim exis-tente e, ao mesmo tempo, questiona, amplia, este mesmo co-nhecimento. Nesse preciso sentido, para Lukács, o trabalho étambém um permanente salto sobre o desconhecido para in-corporá-lo ao conhecido, um permanente processo de aproxi-mação gnosiológico com o real — e jamais poderia se realizarse exigisse um conhecimento absoluto do existente.

Portanto, qualquer enrijecimento da complexa relaçãoentre consciência e realidade que se desdobra no processo detrabalho implicaria em completa falsificação do pensamentolukácsiano. O fato de o trabalho requerer um conhecimento doser-precisamente-assim existente não significa, em hipótesealguma, que esse conhecimento seja um reflexo mecânico,absoluto, completo, do existente. Entre o conhecido e a totali-dade do ser se interpõe uma distinção ontológica (novamente,não há identidade sujeito-objeto) e um processo de capturadas determinações do ser pela subjetividade que exibe umineliminável caráter de aproximação.

I- A Ideologia

Retomemos o percurso dos dois capítulos anteriores de-

10Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 101-2. Tb. vol I p. 348 e ss. Trad. brasileira"Os Princícpios Ontológicos Fundamentais de Marx", op. cit., p. 108 e ss.

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A Ontologia de Lukács48

dicados à categoria do trabalho. Iniciamos pelo estudo da re-lação entre alienação e objetivação, vimos como ser humanoimplica em constante objetivação de prévias-ideações, e comoesse processo de objetivação significa, com rigorosa necessi-dade, a gênese de novos entes, ontologicamente distintos daconsciência que operou a ideação. O estudo dos complexosproblemas que surgiram nos conduziu a explorar aspectos es-senciais da relação entre teleologia e causalidade, e a analisaros impulsos de captura do real pela consciência que Lukács,após Hartmann, denominou intentio recta e intentio obliqua.

Devemos, agora, nos voltar a um outro aspecto dessecomplexo problemático. Referimo-nos ao fato de algumasidéias jogarem um papel chave na escolha das alternativas aser objetivadas em cada momento histórico. Tais idéias com-põem, sempre, uma visão de mundo, e auxiliam os homens natomada de posição frente aos grandes problemas de cadaépoca, bem como frente aos pequenos e passageiros dilemasda vida cotidiana. Na literatura em geral, e também emLukács, esse conjunto de idéias é denominado ideologia.

Na enorme maioria das vezes, e mesmo no interior de umcampo que poderia ser denominado marxista, ideologia é con-traposta à ciência. Partindo-se quase sempre de algumas cita-ções de A Ideologia Alemã, o fenômeno ideológico écomparado a uma câmara escura que inverte o real, de formaa mascarar as contradições entre os homens e legitimar rela-ções de dominação e exploração. A idéia subjacente é que aideologia criaria uma penumbra no interior da qual seria veladaa nitidez das contradições sociais, permitindo às classes do-minantes a reprodução de sua dominação.

Que a ideologia pode cumprir semelhante papel é óbvio, enão foi negar esse fato a intenção de Lukács ao se contrapora tal interpretação do fenômeno da ideologia. Para o pensadorhúngaro, a problematicidade em se conceber a ideologia como

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 49

inversão falsificadora do real, em contraposição à ciência, querevelaria a realidade tal como ela é, se manifesta de modoimediato na consideração da ciência como uma instância neu-tra em relação aos conflitos e mediações sociais — uma ins-tância que possuiria em si os mecanismos para neutralizar asinfluências sempre negativas dos conflitos sociais sobre a ci-ência. E, nesse aspecto, tal concepção exibe uma inegávelproximidade com o positivismo.

Argumenta Lukács que a concepção da ideologia en-quanto falsa consciência possui, ainda, um outro ponto emcomum com o positivismo: o critério para o julgamento do queseria ideologia e o que seria ciência estaria no conteúdo gno-siológico (um falso, outro verdadeiro). O fundamento da distin-ção entre ciência e ideologia seria procurado na determinaçãodas condições de possibilidade de conhecimento do real. Nãoa função social, o papel efetivo que jogam na processualidadesocial, mas sim o conteúdo mais ou menos verdadeiro dosconhecimentos é que distinguiria ciência de ideologia.

Lukács rompe frontalmente com esta concepção. Partindodo famoso Prefácio de 1857, de Marx, argumenta que a ideo-logia é uma função social. A ontologia do ser social, a suaprocessualidade imanente, as diferentes funções que as idéiasexercem nessa processualidade seriam o campo resolutivo dadistinção ciência/ideologia. Postula que uma conquista daciência, que nada tenha em si de ideológica, pode, em dadascondições, se converter ou não, em seguida, em ideologia damesma forma que uma dada ideologia pode se revelar basede apoio fundamental para o desenvolvimento posterior daciência.

Lembra Lukács que tanto o heliocentrismo de Galileucomo a teoria evolucionista de Darwin eram, originalmente,teorias científicas. Todavia, transformaram-se em ideologia,sem por isso deixar de ser ciência, quando se converteram em

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armas no combate contra as ideologias conservadoras domi-nantes em suas respectivas épocas. Se lembrarmos das dife-renças entre a defesa do heliocentrismo enquanto teoriacientífica por Galileu, e o ataque ideológico à Escolástica porGiordano Bruno apoiando-se na teoria heliocêntrica, talvez oexemplo se torne ainda mais esclarecedor.11

Todavia, qual é, exatamente, a especificidade da funçãosocial que caracteriza uma ideologia? O que, exatamente, fazde uma ideação uma ideologia?

O ponto de partida de Lukács é o fato pelo qual, por maisprimitiva que seja a sociabilidade, o trabalho impulsiona o in-divíduo a desenvolver relações sociais e habilidades que estãopara além do ato de trabalho em si, "/.../ pense-se na coragempessoal, na astúcia, na engenhosidade, no altruísmo em cer-tos trabalhos executados coletivamente, etc.."12

Analogamente, com o desenvolvimento do trabalho e dadivisão do trabalho, ganha em importância um novo tipo deposição teleológica. Essa nova forma de posição teleológica,ao invés de buscar a transformação do real, tem por objetivoinfluenciar na escolha das alternativas a ser adotadas pelosoutros indivíduos, visa a convencer os indivíduos a agir em umdado sentido, e não em outro. Lukács denomina posições te-leológicas primárias aquelas voltadas à transformação da na-tureza, no processo de troca orgânica entre os homens e o sernatural. O segundo tipo de posição teleológica, aquela voltadaà persuasão de outros indivíduos para que ajam de uma de-terminada maneira, é denominada posição teleológica secun-dária.

Novamente nos confrontamos com o fato de que, paraLukács, o desenvolvimento do trabalho, enquanto categoria

11Lukács, op. cit., vol II**, p. 448-9.12Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 465.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 51

fundante do ser social, dá origem a complexos sociais quesão, concomitantemente, fundados pelo trabalho e dele distin-tos. Sem as posições teleológicas primárias, as secundáriasnão poderiam sequer existir. Sem a transformação do real pormeio da objetivação de posições teleológicas, não teria qual-quer sentido tentar convencer outros indivíduos para queexerçam uma dada ação sobre o existente. Apenas no con-texto de uma vida social, genérica, pode ter importância paraum indivíduo quais posições teleológicas, quais valores e al-ternativas, os outros indivíduos objetivam. Nas palavras deLukács, "/.../ o processo de reprodução econômica, a partir deum estágio determinado, não poderia funcionar, nem mesmono plano econômico, se não se formassem campos de ativida-des não econômicas, que tornam possível no plano do ser odesenvolvimento desse processo."13

A diferença qualitativa entre as posições teleológicas vol-tadas à transformação da natureza, e aquelas que buscamprovocar determinados atos em outros indivíduos, está no fatode que as primeiras detonam uma cadeia causal, enquanto assecundárias colocam em movimento uma nova posição teleo-lógica. Isto faz com que o grau de incerteza, o leque de alter-nativas ao desdobramento do processo, seja qualitativamentemaior no caso das posições teleológicas secundárias do queno caso das posições teleológicas primárias. Estas têm a vercom os nexos causais existentes, aquelas concernem à esco-lha entre alternativas pelos indivíduos.14

Por tudo o que dissemos é evidente que, em Lukács, aideologia se relaciona ao complexo problemático das posiçõesteleológicas secundárias. O que particulariza a ideologia, nointerior desse complexo é, segundo Lukács, o fato de que "Aideologia /.../ [ser], acima de tudo, aquela forma de elaboração

13Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 376-7.14Lukács, G., op. cit., vol II** p. 464-5, 490-1. Vol II* p. 55-6, 78 e 91.

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A Ontologia de Lukács52

ideal da realidade que serve para tornar consciente e opera-tiva a praxis social dos homens. /.../ a ideologia é também, in-dissociável do primeiro aspecto, um instrumento da luta socialque caracteriza toda sociedade, ao menos aquelas da 'pré-história' da sociedade."15

Ou seja, para Lukács, a ideologia é uma forma específicade resposta às demandas e aos dilemas colocados pelo de-senvolvimento da sociabilidade. A complexificação das rela-ções sociais, com a correspondente necessidade decomplexificação das posições teleológicas operadas pelos in-divíduos, tem duas conseqüências que são significativas parao estudo da ideologia. Em primeiro lugar, dão origem a com-plexos sociais específicos que têm a função de regular a pra-xis social de modo a tornar possível ("operativa") a reproduçãoda sociedade. Pensemos, como exemplo, no direito. A com-plexificação social e o surgimento das classes com contradi-ções antagônicas termina por dar origem a um complexosocial particular com uma função específica: regular juridica-mente os conflitos sociais. A partir de um determinado estágiode desenvolvimento social, a reprodução social é impossívelsem a regulamentação da praxis coletiva pelo direito.

Na imediaticidade da vida cotidiana, contudo, essa rela-ção entre fundado e fundante aparece invertida. Não é mais odesenvolvimento social que funda o direito, mas é o estabele-cimento de um ordenamento jurídico que fundaria a socie-dade. As leis jurídicas determinariam, segundo estaconcepção típica dos juristas e do senso comum cotidiano, oser dos homens — e não o contrário.

A potencialidade dessa inversão entre fundado e fun-dante para justificação do status quo é facilmente perceptível.Sendo breve, se o homem é o que determina a lei, a lei é

15Lukács, G., op. cit. vol II**, p. 446-7.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 53

sempre justa. E se a lei afirma o direito à propriedade privadacomo garantia jurídica de o "direito" do capital explorar o traba-lho, não há injustiça na exploração do homem pelo homem.Por essa via, o complexo do direito, por milhares de anos, temfornecido elementos importantes à constituição de uma visãode mundo que, nas sociedades de classe, tem auxiliado emtornar "operativa" a praxis cotidiana dos indivíduos. E, nessaexata medida, o direito é uma forma específica de ideologia.

A segunda conseqüência advinda do desenvolvimento dasociabilidade é a crescente necessidade de respostas genéri-cas que permitam ao indivíduo não apenas compreender omundo em que vive, mas também justificar a sua praxis coti-diana, torná-la aceitável, natural, desejável. Essa função defornecer tais respostas genéricas, repetimos, cabe à ideologia.

Tal como todo complexo social, a ideologia também passapor um processo de desenvolvimento. Nesse processo, o sur-gimento das classes sociais é um momento fundamental. Apartir do surgimento da luta de classes, a ideologia deve nãoapenas justificar, tornar razoável, operativa a praxis cotidiana,mas também fazê-lo de modo a atender aos interesses declasse. O ser das classes, e os conflitos entre elas, passam apermear a ideologia; e, ao mesmo tempo, a luta de classestem na ideologia um seu momento fundamental, já que ela édecidida, em última instância, no momento em que uma socie-dade se nega a objetivar determinados valores e ideações emfavor de outros valores e finalidades. Ou seja, segundoLukács, a disputa para que os indivíduos operem determina-das posições teleológicas e não outras, que correspondamaos interesses dos oprimidos ou dos dominadores, se dá nocampo da ideologia.

Com o surgimento das sociedades de classes, portanto, afunção social da ideologia se complexifica e, com isso, o

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A Ontologia de Lukács54

complexo da ideologia também se complexifica. Além de umafunção geral, ampla, cabe à ideologia, agora, uma função maisrestrita, política. É elemento fundamental na disputa pelo po-der entre as classe. A partir desse momento, a ideologia passaa ser também um conjunto de ideações que auxilia os homensa se organizarem para as lutas sociais, para os conflitos declasse. Neste sentido mais estrito, "/.../ os homens, com o au-xílio da ideologia, trazem à consciência seus conflitos sociais e(,)por seu meio(,) combatem conflitos cuja base última é pre-ciso procurar no desenvolvimento econômico."16

Longe sequer de delinear toda a riqueza das formulaçõesde Lukács acerca da ideologia17, o que nos interessa salientaré que, para o filósofo húngaro, a ideologia é uma função so-cial. O que faz de uma ideação uma ideologia é sua capaci-dade em conferir sentido às necessidades colocadas pelasociabilização, em dado momento da vida social, através daconstrução de uma interpretação global da vida, de uma visãode mundo.

Argumenta Lukács que nem"a correção (nem) a falsidade /.../ bastam para fa-

zer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião in-dividual incorreta ou errônea, nem uma hipótese, umateoria, etc. científica correta ou errônea são em si e porsi ideologias: podem somente /.../ se tornar ideologias.Apenas após se tornarem veículos teóricos ou práticospara combater conflitos sociais, quaisquer que sejameles, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos parao destino da sociedade, eles são ideologia."18

O fato de que a ideologia é uma função social e não falsa

16Lukács, G., op. cit., vol II**, p., 452.17Cf., para um estudo mais detalhado desta problemática, Vaisman, Ester."O Problema da Ideologia em G. Lukács". Dissertação de Mestrado, UFPB,1986.18Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 448-9.

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 55

consciência, o fato de Lukács buscar a função social da ideo-logia, e não um critério gnosiológico na sua caracterização,não nos deve levar a crer que a maior ou menor veracidade deuma ideologia seja, aos olhos de Lukács, um dado desprezívelpara a história humana.

Não é certamente um fato desprezível se, numa disputaideológica, vence a ideologia que impulsiona o desenvolvi-mento da generalidade humana, da consciência para-si dahumanidade, ou aquela ideologia que vela o ser-precisamente-assim, constituindo-se num obstáculo ao desenvolvimento dogênero humano. A história está repleta de conflitos desse tipo.E a resolução que eles tiveram, no sentido de favorecer, oufrear, o desenvolvimento da consciência do homem sobre sipróprio, sobre os problemas e dilemas colocados à humani-dade em cada quadra histórica, é parte integrante das deter-minações que moldaram a trajetória concreta do devir-humanodos homens até nossos dias. E continuarão certamente a sê-lo, ainda que sob novas formas e com novos conteúdos àmedida que a humanidade, no dizer de Marx, supere a suapré-história.

Em suma, o fenômeno da ideologia corresponde a umanecessidade social concreta: a cada momento as sociedadesnecessitam ordenar a praxis coletiva dentro de parâmetroscompatíveis com a sua reprodução. Para tanto, é preciso umavisão de mundo que confira sentido à ação de cada indivíduoa todo momento. É pelo fato de corresponder a essa necessi-dade, de cumprir essa função social, que uma ideação setransforma em ideologia. Por isso, todas as formas de idea-ção, toda produção do espírito humano — mesmo a ciência —podem ser utilizadas como ideologia em determinados mo-mentos históricos.

Portanto, e concluindo o capítulo, o trabalho se caracte-

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A Ontologia de Lukács56

riza por ser uma categoria que articula, num processo de sín-tese, a prévia-ideação e a causalidade dada, já existente. Talprocesso de síntese se realiza concretamente pelo momentoda objetivação que sempre implica a gênese de um novo ente.Esse novo ente, por um lado, apenas pode surgir como objeti-vação de uma prévia-ideação; mas, por outro lado, é ontologi-camente distinto da consciência que previamente o idealizou.Essa distinção ontológica entre sujeito e objeto é a alienação.

A articulação entre teleologia e causalidade corresponde,pois, à essência do trabalho, e está na origem dos dois impul-sos distintos que levam à captura, pela subjetividade, do ser-precisamente-assim existente: a intentio recta, quecorresponde à necessidade de um reflexo o mais correto pos-sível do real para o êxito do trabalho, e a intentio obliqua, quecorresponde ao movimento de antropomorfização do real pelasubjetividade, como necessidade de responder à necessidadede uma vida plena de sentido.

Com o desenvolvimento da sociabilidade e a complexifi-cação da praxis social, explicita-se com força crescente a ne-cessidade de um conjunto de idéias, valores, etc. mais geraisacerca do mundo e da vida, que organize e confira uma lógica,uma direção aos atos dos indivíduos no interior de cada socie-dade. As idéias que, a cada momento histórico, cumprem essafunção recebem de Lukács a denominação de ideologia. Como surgimento das classes sociais, a ideologia passa a exercer,também — sem prejuízo da função anterior — uma funçãomais restrita, de instrumento na luta pelo poder entre os dife-rentes grupos sociais. A ideologia, tanto na sua concepçãomais ampla quanto na mais restrita, portanto, é uma funçãosocial específica, e não um conjunto de ideações que se ca-racterizam por ser mais ou menos verdadeiras.

Tais considerações de Lukács nos permitem percebercomo o trabalho impulsiona o homem, da mera percepção-re-

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Cap. III - Teleologia e Intentio Obliqua 57

presentação do setor da realidade imediata envolvida em cadaato de trabalho, até um questionamento muito mais amplo,qualitativamente distinto, acerca do porquê e do como vive-mos, do porquê e do como existimos. A religião, a filosofia, aideologia, a arte, a ética, etc. são complexos sociais que sur-gem e se desenvolvem para atender a essa necessidade es-pecífica posta pelo processo de sociabilização.

Com isso damos por concluído o nosso estudo da relaçãoentre a teleologia e a causalidade segundo Lukács. Falta,contudo, explorar ainda um outro aspecto fundamental: comoo trabalho se constitui na categoria fundante do ser social.Falta elucidar quais as articulações ontológicas inerentes aotrabalho que fazem dele a categoria fundante do mundo doshomens. Enfim, precisamos elucidar por que Lukács pôdeafirmar ser o trabalho a gênese e o fundamento do ser social.

A resposta a essa questão será dada em dois momentos.No primeiro, exploraremos a relação entre o trabalho e a gê-nese do ser social; no segundo, analisaremos a categoria dareprodução social e sua relação com a categoria do trabalho.

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A Ontologia de Lukács58

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Capítulo IV

Trabalho e Gênese do SerSocial

Nos dois capítulos anteriores nos detivemos nos momen-tos mais significativos da análise que Lukács fez dos nexosinternos à categoria do trabalho. Vimos como esses nexos ar-ticulam, dando origem a uma nova esfera do ser, a subjetivi-dade que opera teleologias e as determinações causais doser-precisamente-assim existente.

Contudo, a delimitação da real dimensão da categoria dotrabalho na ontologia de Lukács não pode ser dar apenas peloestudo da interioridade imanente ao trabalho. É necessáriotambém o estudo das complexas articulações entre o trabalhoe a totalidade social. Nosso próximo passo, por isso, seráexaminar como, para Lukács, o trabalho funda o ser social,dando origem a um complexo de complexos cuja essência odistingue dos complexos naturais. Nesse sentido, esse capí-tulo é uma prossecução do anterior. Aqui, também, continua-remos a explorar o trabalho enquanto protoforma da praxissocial, ainda que de um outro ângulo. No capítulo anterior,tratamos dos nexos internos ao trabalho, de sua processuali-dade imanente; agora trataremos das suas conexões com agênese e desenvolvimento do mundo dos homens.

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A Ontologia de Lukács60

I- Trabalho e Gênese do Ser Social

Voltemos à história de Ikursk. Ao previamente idealizarseu machado descomunal, Ikursk concebeu uma projeto abso-lutamente singular: apenas em sua consciência existia aquelaidéia, aquele projeto. Se ele falecesse naquele momento, esteprojeto não teria deixado qualquer traço, qualquer sinal de terexistido. Enquanto prévia-ideação, o machado descomunal erasingular e abstrato.

Todavia, a singularidade do projeto do machado desco-munal já continha elementos universais. O projeto do machadoera uma resposta a uma dada situação concreta: Ikursk queriaevitar o tigre. Essa situação concreta da vida de Ikursk apenaspoderia existir, ou seja, surgir e se desenvolver, enquantomomento da história da tribo. Esta era formada por uma malhade relações sociais que refletia um dado patamar de desen-volvimento da relação homem/natureza. Assim sendo, a situa-ção concreta em que vivia Ikursk, e à qual respondeu com seuprojeto de machado descomunal, era já genérica, pois incorpo-rava, na essência de sua particularidade, determinaçõesoriundas do patamar de desenvolvimento alcançado, atéàquele momento histórico, pela formação social a que perten-cia Ikursk.

Esse exemplo nos permite compreender como toda situa-ção social concreta possui elementos genéricos e, analoga-mente, como toda resposta a situações sociais concretas deveincorporar a dimensão sócio-genérica do real para ser mini-mamente plausível.

No caso de Ikursk, isto se evidencia no momento em queele, levando em consideração as determinações do real(presença do tigre, seu medo, conhecimento já adquirido decomo fazer um machado, divisão do trabalho pela qual os ho-mens caçariam e as mulheres quebrariam cocos, etc.), as in-

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 61

corpora sob a forma daquele machado descomunal.Fixemos este aspecto, pois é fundamental: a singulari-

dade da prévia-ideação (o machado descomunal apenasexiste enquanto uma idéia de uma consciência singular) estápermeada por elementos universais, genéricos. Em outraspalavras, tal singularidade apenas existe enquanto respostasingular a uma situação social genérica, concreta.

Contudo, não apenas na relação entre pergunta/respostase introduzem, na singularidade da prévia-ideação, as dimen-sões genéricas, universais.

Para conceber idealmente o machado, Ikursk confrontou,por meio de sua consciência, a situação presente com situa-ções semelhantes do passado, com conhecimentos já adquiri-dos e, também, com sua perspectiva, com seus desejos, parao futuro. Em poucas palavras, Ikursk colocou idealmente emcontato o presente (a situação concreta) com o passado (osconhecimentos já adquiridos, as situações anteriormente vivi-das, etc.) e o futuro (o que ele almejava para o futuro: acimade tudo não encontrar o tigre). Ou seja, a singularidade daprévia-ideação está também permeada por outros elementosgenéricos: não apenas incorpora o patamar de desenvolvi-mento sócio-genérico já alcançado pela humanidade, comotambém generaliza a situação presente ao confrontá-la com opassado e com o futuro. Para conceber aquele machado,Ikursk necessariamente tinha que ser parte do processo deacumulação, sempre social, genérico, que caracteriza a conti-nuidade da reprodução do mundo dos homens.1 Fora da his-tória, Ikursk e seu machado não poderiam existir.

Portanto, mesmo no seu momento mais singular, a cate-goria do trabalho já opera um processo de generalização.Como vimos, em dois momentos: 1) ao generalizar em per-

1Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 198/LXXX.

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A Ontologia de Lukács62

gunta a situação concreta; 2) ao constituir idealmente umaresposta alternativa com base no confronto entre o passado, opresente e o futuro.

Esse processo de generalização ganha novos contornosno processo de objetivação/alienação.

Toda objetivação, já vimos, implica alguma transformaçãodo ambiente em que se realiza. Por isso, todo objeto que vema ser pela objetivação é imediatamente inserido na malha derelações e conexões existentes e que, de alguma forma, elealterou.

A história do objeto, ao alterar o existente (não importaquão infimamente), ganha uma dimensão genérica, é agoraparte de um todo (uma totalidade) e dele sofre influências,bem como de cada uma de suas partes. Concomitantemente,o novo objeto tem uma influência não menos concreta sobre atotalidade da qual é parte. A história do machado de Ikurskpassa a fazer parte da história da sua tribo e da humanidade,do mesmo modo como a história de sua tribo poderá ter forteinfluência no desdobramento da história do machado. É evi-dente que o machado apenas no interior de determinadas re-lações sociais poderia se transformar em símbolo de poder.Sem essas relações sociais, a história do machado de Ikursksequer poderia existir.

Portanto, não apenas a prévia-ideação, mas também aobjetivação opera um processo de generalização. Enquanto aprévia-ideação generaliza idealmente, a objetivação generalizaobjetivamente. Tal como ocorre com a prévia-ideação, a singu-laridade imediata de cada objetivação (não há duas objetiva-ções exatamente iguais) é permeada, do começo ao fim, porelementos universais, genéricos. De modo análogo à inelimi-nável articulação entre prévia-ideação e objetivação, a gene-ralização operada pela subjetividade é, na suaprocessualidade real, indissociável da generalização operada

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 63

na esfera da objetivação/alienação.Segundo Lukács a categoria do trabalho, por conter esta

dimensão genérica, funda a distinção ontológica entre o sersocial e a natureza.2

Voltemos a Ikursk. A distinção essencial entre a corrida deum cabrito para escapar do tigre, e a decisão de Ikursk cons-truir um machado descomunal está em que, a decisão deIkursk, ao contrário da corrida do cabrito, provocou uma modi-ficação efetiva do real criando algo anteriormente inexistente(o machado descomunal). Ao construir tal machado, Ikurskalterou suas relações com a formação social a que pertencia(por exemplo, começou a trabalhar com as mulheres no co-queiral), introduziu na história da tribo um novo objeto que,como vimos, casualmente se transformou num elemento im-portante na sua evolução (sua posse determinava quem seriao rei, deu origem à monarquia hereditária, etc.). Ao contrárioda fuga do cabrito, que nada altera do real no sentido aquiapontado, o ato de Ikursk (como todo e qualquer ato humano)constrói efetivamente novos objetos e novas relações sociais.3

É essa propriedade essencial ao trabalho — ser um tipode reação ao ambiente que produz algo ontologicamente an-tes inexistente, algo novo — que possibilita ao trabalho desta-car os homens da natureza. Em outras palavras, é acapacidade essencial de, pelo trabalho, os homens construí-rem um ambiente e uma história cada vez mais determinadapelos atos humanos e cada vez menos determinadas pelasleis naturais, que constitui o fundamento ontológico da gênesedo ser social.4 E toda essa processualidade tem, no processode generalização detonado pelo trabalho, seu momento fun-

2Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 183/LXI.3Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 170 e 287 e ss./XLIV e CLXXXVII e ss. res-pectivamente.4Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 180./LVII.

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A Ontologia de Lukács64

dante.

O impulso à generalização inerente ao trabalho (tanto àgeneralização na subjetividade, como à generalização portodo o ser social dos resultados objetivos da praxis) funda otraço mais característico da história humana: o devir-humanodos homens.

Segundo Lukács, a história do ser social consubstanciaum processo pelo qual os pequenos grupos e tribos primitivasvão se articulando em formações sociais cada vez mais com-plexas e abrangentes. Nos dias de hoje, a integração em nívelmundial da humanidade ocorre com tal intensidade e com talfreqüência, que a existência concreta de cada indivíduo (emlarga escala independente de ter ele ou não consciência) estáindissociavelmente associada à trajetória de toda a humani-dade.5

Pensemos esse mesmo processo de uma outra perspec-tiva. Ao surgir na face da Terra, os homens já compunham umgênero. Este gênero humano primitivo não era, na sua imedia-ticidade, muito diferente da comunidade dos chimpanzés quehoje conhecemos. Certamente o gênero humano já era pos-suidor de potencialidades evolutivas ausentes no ser natural.Mas, na sua existência cotidiana, o que diferenciava o gênerohumano dos outros animais era a constituição física dos indi-víduos, a peculiaridade da sua carga genética. Caso a vidahouvesse desaparecido da face da Terra naquele momento,pelos fósseis apenas se poderia dizer que existira uma raçadistinta de primatas, com uma postura erecta e uma caixacraniana mais desenvolvida.

Tal situação se altera profundamente com o passar dotempo. As relações sócio-genéricas aumentam em número e

5Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 183./LXI.

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 65

em intensidade com o surgimento de formações sociais cadavez mais avançadas. Se a tribo de Ikursk já era uma totalidadede relações sociais muito mais que uma totalidade de relaçõesbiológico-naturais, hoje em dia esse caráter puramente socialda vida dos homens é ainda mais evidente.6

Com o desenvolvimento do processo de sociabilização,de modo cada vez mais evidente, o gênero humano passa aexibir determinações que nem na imediaticidade se aproximamdo gênero apenas natural. A vida de cada ser humano é cres-centemente dependente da vida dos outros seres humanos:decisões tomadas em Londres podem determinar a vida ou amorte de milhares de africanos. Nos dias de hoje, o que ocorreem cada parte do mundo diz respeito a todas as pessoas:nossas vidas individuais estão tão articuladas com a do gê-nero humano que a trajetória deste último determina, em largaescala, o destino de cada indivíduo.

Já que a produção e a reprodução dessas relações gené-ricas têm por mediação ineliminável a consciência dos indiví-duos, o desenvolvimento das relações sócio-genéricasdetermina, reflexivamente, o desenvolvimento de consciênciasnão menos genéricas. Tomamos cada vez mais consciênciado que somos, das leis que regem o nosso desenvolvimento,reconhecemo-nos coletivamente na nossa própria história.

Isso significa que o gênero humano, ao se desenvolver,desenvolve também a sua auto-consciência, o seu ser-para-si.Sem a fixação pela consciência dos resultados alcançados acada momento pelo desenvolvimento da humanidade, essedesenvolvimento sequer poderia ser imaginado.7

6Pensemos no mercado. Ele surge, num primeiro momento, em escala em-brionária e local. Depois, passa a articular as atividades produtivas de diver-sos grupos humanos, aumentando sempre a importância da produçãoexcedente. Em seguida, articula toda a economia mundial numa única tota-lidade.7Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 184/LXIII.

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A Ontologia de Lukács66

Portanto, o gênero humano, enquanto universalidade,desdobra um processo de desenvolvimento que é radical-mente diferente do desenvolvimento das universalidades natu-rais. Para não nos alongarmos em demasia, basta lembrar quea universalidade do reino mineral jamais poderá se elevar àcompreensão do que é enquanto reino mineral. Nem, muitomenos, estabelecer relações genérico-sociais entre uma pedrae um oceano, etc.8

Tendo em vista realçar esta diferenciação ontológica en-tre a universalidade social e a universalidade natural, Lukácsdenominou a primeira generalidade humana.9

Generalidade humana, portanto, é a forma concreta, his-toricamente determinada, da universalidade humana. Que estaforma varia enormemente ao longo da história é em si umaevidência. Lukács denominou devir-humano dos homens oprocesso histórico de constituição da generalidade humana.

Em definitivo, para Lukács, nossas vidas são crescente-mente determinadas socialmente. As determinações naturais,os processos naturais não determinam o conteúdo e o sentidoda história humana. O devir-humano dos homens se consubs-tancia na constituição, historicamente determinada, de um gê-nero humano cada vez mais socialmente articulado e portadorde uma consciência crescentemente genérica. E o impulsodetonador desse processo é a tendência à generalização ine-rente ao trabalho: por isso o trabalho é a categoria fundantedo ser social.

Isto posto, podemos dar o passo seguinte. Lukács, emvárias passagens de sua Ontologia, argumenta que o impulsoà generalidade humana detonado pelo trabalho é o funda-

8Sobre esta problemática conferir Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 135-76.Também Lessa, S. Sociabilidade e Individuação, EDUFAL, 1995, p. 21-36.9Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 183/LXI-II.

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 67

mento ontológico da gênese e desenvolvimento do ser socialenquanto um complexo de complexos. A argumentação luká-csiana a esse respeito ocupa um lugar relevante na Ontologiae nos permitirá aprofundar o estudo de duas problemáticasque já foram preliminarmente abordados no Capítulo I: o mo-mento predominante e a unitariedade última do ser.

II- Complexo de complexos

A que Lukács se refere quando afirma ser o mundo doshomens um complexo de complexos?

Já nos referimos ao caráter unitário do ser, segundoLukács. No Capítulo I, vimos como a gênese e o desenvolvi-mento das esferas ontológicas não rompem a unitariedadeoriginária do ser; antes, pelo contrário, a reafirmam de modomais rico e mediado, dotando-a de uma riqueza e articulaçãoinexistentes antes do desenvolvimento das três esferas onto-lógicas. Essa situação ontológica de fundo perpassa todo aargumentação de Lukács acerca do caráter de complexo decomplexos do mundo dos homens.

O ser, segundo Lukács, exibe um caráter de complexo decomplexos. Os distintos processos que caracterizam cada umadas esferas ontológicas (por exemplo, o mero devir-outro inor-gânico, a reprodução do mesmo na vida, e a reprodução socialno mundo dos homens) se articulam enquanto complexosparciais de um complexo maior, o próprio ser em sua máximauniversalidade. A totalidade consubstanciada pelo ser se ma-nifesta, concretamente, pelas inelimináveis articulações dasesferas ontológicas entre si. Já argumentamos que sem o serinorgânico não há vida, e que sem vida não há ser social: ouniverso, que é o ser em sua máxima universalidade, é uma

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A Ontologia de Lukács68

totalidade composta por distintos processos que, de umaforma ou de outra, são articulados entre si.10

A articulação primária, originária, das três esferas ontoló-gicas não significa, no contexto da ontologia lukácsiana, queelas não sejam relativamente autônomas, isto é, que elas nãopossuam uma independência relativa tanto entre si como emrelação ao ser em geral. Que a processualidade inorgânica é,ao mesmo tempo, a base ineliminável da vida, mas que aevolução das processualidades biológicas decorrem predomi-nantemente da própria reprodução da vida muito mais que dascategorias inorgânicas, é algo que já sabemos. Mutatis mu-tandis, o ser social sequer poderia existir sem ter por base anatureza. Todavia, a reprodução social tem por momento pre-dominante uma categoria que nada tem de natural, que é pu-ramente social: a categoria do trabalho.

Portanto, o ser em geral é composto por diferentes com-plexos ontológicos que operam, ao mesmo tempo, de modoarticulado e relativamente autônomo. A evolução biológica nãoé determinada pelo devir-outro do ser inorgânico, embora de-penda dele. A reprodução social não é determinada pela re-produção biológica, embora não possa ocorrer sem ela.

Por sua vez, o desenvolvimento no interior de cada umadas esferas ontológicas termina por ter uma ação de retornosobre o ser em geral. De algum modo — ainda que de umamaneira muito pouco intensa nos padrões atuais —, o surgi-mento da vida e dos homens na Terra modificou a totalidadeque é o universo. O quanto esta modificação foi ou não impor-tante para o destino do universo, apenas o tempo poderá di-zer.

Algo análogo ocorre no interior de cada uma das esferasontológicas. Para não fugir ao nosso tema, nos deteremos

10Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 11.

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 69

apenas na análise do ser social, embora a situação a ser dis-cutida caiba perfeitamente para as outras esferas.

Com o primeiro ato de trabalho, constitui-se o ser social.Já nesse momento ele exibe dois traços ontológicos funda-mentais: é unitário e internamente contraditório. Mesmo na-quele primeiro ato, o mais simples possível, de troca orgânicado homem com a natureza, já está presente a contradição en-tre meio e finalidade posta, entre a consciência e o objeto, en-tre o indivíduo e a totalidade das relações sociais, entre aintentio recta e a intentio obliqua, etc. Todavia, os traços dehomogeneidade eram obviamente predominantes, dado obaixo grau de desenvolvimento da sociabilidade, da divisão dotrabalho, do pouco desenvolvimento das individualidades e dapequena complexidade das relações sociais.

O que agora nos interessa é o processo pelo qual, par-tindo de uma situação primeira onde os traços de homogenei-dade e identidade eram marcantes, o devir-humano doshomens deu origem a formações sociais nas quais as diferen-ças, os momentos de não-identidade, ganham em intensidadesem, com isto, colocar em causa a unitariedade originária domundo dos homens. Não apenas as formações sociais apre-sentam diferenças muito mais acentuadas entre si, não ape-nas os complexos sociais parciais são entre si crescentementeheterogêneos, mas, também, as próprias individualidades sediferenciam cada vez mais fortemente. Ainda mais: esse pro-cesso de diferenciação intensiva e extensiva não é apenas oresultado do processo do devir-humano dos homens, mas éuma necessidade para a sua continuidade.11

Não é difícil perceber que, sem este processo de diferen-ciação, a heterogeneidade das tarefas postas pelas novas ne-cessidades surgidas no desenvolvimento da sociabilidade não

11Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 223 e ss/CXI e ss.

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A Ontologia de Lukács70

poderia ser enfrentada com sucesso. A crescente complexi-dade dos atos sociais, necessária à continuidade da reprodu-ção social, não poderia ser enfrentada sem que a substânciasocial passasse por esse processo de diferenciação.

Lukács salienta fortemente que, nesse processo de dife-renciação, é o desenvolvimento social global o momento pre-dominante. É o processo de sociabilização que coloca asnecessidades, e delineia o horizonte de respostas a elas pos-síveis, que está na base do desenvolvimento de tal diferencia-ção social.12

Pense um pouco: nas sociedades mais primitivas, o pro-cesso de diferenciação ainda estava nos seus estágios inici-ais. Os momentos de identidade eram ainda marcantes. Osindivíduos, assim como suas atividades cotidianas, seus dese-jos e aspirações, seus padrões estéticos, etc. eram muitopouco diferenciados. A partir dessa situação, pela generaliza-ção desencadeada pelo fluxo da praxis social, se originou umanova situação, qualitativamente distinta. O devir-humano doshomens fundou e exigiu uma crescente diferenciação das tare-fas cotidianas e, conseqüentemente (mas nunca mecanica-mente), das individualidades e dos complexos sociais parciais.Mesmo complexos sociais sempre presentes no mundo doshomens (como a fala e o trabalho) passam por um processointrínseco de crescente complexificação e enriquecimento.

Tal como nos primeiros momentos do gênero humano,nas sociedades mais evoluídas o processo de diferenciação éuma resposta aos novos e mais diversificados desafios postospelo processo de reprodução social em cada momento histó-rico. Ou seja, o processo de diferenciação, de desenvolvi-mento dos momentos de não-identidade, tem, comofundamento último, uma necessidade em si unitária: a repro-

12Lukács, G., vol II*, p. 198 e 255/LXXX e CXLIX respectivamente.

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 71

dução da vida humana tornada crescentemente social.Por isso, o desenvolvimento posterior da sociabilidade

não rompe com o caráter unitário das formações sociais, nemcom a unitariedade última da história humana enquanto devir-humano dos homens. A manutenção da unitariedade se ex-pressa no momento em que, quanto mais desenvolvida for asociabilidade, mais numerosas e intensas serão as mediaçõessociais que articulam a vida dos indivíduos, com a trajetóriahumano-genérica.13

Sublinhamos: para Lukács, a unidade original, nitida-mente perceptível nas sociedade primitivas, não é rompidapelo desenvolvimento social.14 Pelo contrário, esta unidade seenriquece e se complexifica, se realiza através de mediaçõessociais cada vez mais numerosas, diversificadas e comple-xas.15 O desenvolvimento do ser social não dá origem a umacrescente fragmentação do gênero, mas sim a um gênerocada vez mais socialmente articulado e, por isso, portador deuma unidade social cada vez mais rica e articulada. Por esseprocesso, o ser social se expressa, enquanto gênero, deforma cada vez mais complexa, rica e mediada — humana,enfim.

A forma genérico-abstrata pela qual a unitariedade do sersocial se desdobra por meio da crescente heterogeneidadedos seus elementos constitutivos, após Hegel e Marx, Lukácsdenominou identidade da identidade e da não-identidade.16

Algo análogo ocorre em se tratando da esfera biológicaou do ser inorgânico. O desenvolvimento no interior de cadauma delas (por exemplo, o surgimento de novas substâncias

13Lukács, G., op. cit., vol I, p. 327-8. Tradução Carlos N. Coutinho, “Os prin-cípios Ontológicos...”, op. cit., p. 84-5.14Lukács, G., op. cit., vol II*, 183/LXII.15Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 26-8.16Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 273-4./CLXXI-II.

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na esfera inorgânica, ou de novas formas de vida no ser bio-lógico) não rompe, apenas torna mais complexa, a unitarie-dade última de cada uma delas. Tal como no mundo doshomens, a identidade da identidade e da não-identidade é,aqui também, a forma genérica do seu desenvolvimento.

Por fim, o mesmo podemos dizer acerca do ser em geral.A explicitação das distintas esferas ontológicas não rompeu,apenas tornou mais mediada e rica, a sua unitariedade última.O ser em geral, portanto, no seu movimento de explicitaçãocategorial, manifesta a mesma forma genérica da identidadeda identidade e da não-identidade.

Em poucas palavras, tanto o ser em geral, como cadauma das distintas esferas ontológicas, são processualidadescujo desenvolvimento exibe a forma de complexo de comple-xos. São complexos globais constituídos por complexos parci-ais que surgem e se desenvolvem no seu interior. A formagenérico-abstrata do desenvolvimento dessa situação ontoló-gica, segundo Lukács, é a identidade da identidade e da não-identidade.

III- Novamente o momento predominante

Se a explicitação categorial do ser, bem como de cadauma das esferas ontológicas, é um processo pelo qual a uni-tariedade originária é reafirmada, de modo cada vez mais ricoe articulado, pelo desenvolvimento de momentos de heteroge-neidade, duas questões merecem ser recolocadas. A primeiradelas: o que determina o desenvolvimento de cada uma dasesferas ontológicas enquanto complexo de complexos? A se-gunda: o que distingue o complexo de complexos que é o sersocial, do complexo de complexos que são as esferas natu-

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rais?Comecemos pela segunda questão, pois ela encaminha a

resolução da primeira. Em Lukács, o que distingue o complexode complexos social da natureza, já vimos, é o fato de ele tercomo elemento primário, fundante, atos teleologicamentepostos, atos de trabalho. Tais atos, por sua essência, remetemo ser social à criação de necessidades e ao desenvolvimentode meios para a satisfação dessas necessidades, que vãopara muito além da esfera de trabalho enquanto tal. Isto, aomesmo tempo, permite e requer que o ser social desenvolvauma consciência de si próprio que, com o desenvolvimento dasociabilidade, exerce um papel cada vez mais notável no seudesenvolvimento. A humanidade se constitui, por essa via, emum complexo de complexos cuja evolução é crescentementedeterminada pela consciência que possui de si própria — semjamais poder prescindir da reprodução biológica que, parasempre, constituirá sua base ineliminável. Em suma, o com-plexo de complexos, que é o ser social, para Lukács, é muitomais que uma mera totalidade: é uma universalidade potenci-almente capaz de conscientemente dirigir sua história. A atua-lização dessa potencialidade, de forma diferente a cadamomento histórico, é o que distingue, para Lukács, o mundodos homens das esferas naturais. A efetiva construção, aolongo do tempo, da generalidade humana em-si e para-si, é aessência do devir-humano dos homens. É isso que, essenci-almente, distingue, aos olhos de Lukács, o complexo de com-plexos, que é o ser social, do conjunto dos complexosnaturais.

Para responder à primeira questão, aquela que se refereà determinação do desenvolvimento de cada complexo decomplexos, iniciaremos pela afirmação de Lukács segundo aqual o que determina o desenvolvimento das esferas ontológi-

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cas é o momento predominante de cada uma delas.17

Todavia, isto apenas anuncia a questão, sem resolvê-la.Permanece em aberto a questão de como, de que forma, pormeio de quais mediações, o momento predominante atua so-bre cada um dos distintos processos, e dos distintos momen-tos, que compõem um complexo de complexos.

A resposta exaustiva a esta questão demandaria, ao me-nos, o estudo de uma variada gama de complexos naturais esociais. Só assim se poderia estabelecer, com maior precisão,como o momento predominante atua sobre a particularidadede cada um dos complexos parciais. Uma pesquisa dessaamplitude, obviamente, não poderia ser realizada por Lukácsno contexto de sua investigação ontológica. O que Lukácsrealizou foi a análise de dois dos complexos sociais mais im-portantes, a fala e o direito, para, de maneira indicativa, de-terminar se há um padrão mais genérico de mediação que seinterponha entre o momento predominante e cada um dosprocessos parciais. O resultado a que chegou assinala que,em que pese a particularidade de cada complexo e, portanto,a forma particular como cada um deles reage às determina-ções do momento predominante, a mediação que se interpõeentre o momento predominante e todos os complexos parciaisé a totalidade social. Dessa forma, a totalidade social seria,para Lukács, a mediação ineliminável entre o momento pre-dominante exercido pela troca orgânica homem/natureza viatrabalho e a história de cada um dos complexos parciais.

Detenhamo-nos nas observações de Lukács acerca dafala e sobre o direito a fim de esclarecermos melhor este con-junto de questões.

17Cf. a seção III - O Momento Predominante, do Capítulo I - Problemas On-tológicos Gerais.

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1- A Fala

Segundo Lukács, a fala é um complexo que surge direta-mente relacionado à intentio recta. A necessidade em seapropriar das determinações do real para poder operar posi-ções teleológicas com cada vez maior probabilidade de su-cesso, aliada à necessidade de generalização subjetiva eobjetiva dos resultados concretos da praxis, está na base dagênese do complexo social da fala.18

Voltemos à história de Ikursk. É evidente que, sem umcomplexo como a fala, aquela seqüência de eventos não po-deria ocorrer. Apenas sendo capaz de dar nomes a uma infini-dade de elementos que compunham a situação concreta,pôde Ikursk sistematizar em pergunta as demandas concretase, em seguida, escolher uma das alternativas possíveis comoresposta. Todo esse processo, seguido da objetivação da al-ternativa de se construir o machado descomunal, apenas po-deria ocorrer, repetimos, tendo como médium a fala. E, com odesenvolvimento da sociabilidade e a crescente diferenciaçãoentre as posições teleológicas primárias (aquelas voltadas di-retamente à transformação da natureza) e as secundárias (asque se destinam a convencer os indivíduos a agir desta oudaquela maneira), a importância deste papel mediador docomplexo da fala não pára de crescer.

Dar nomes é um processo que surge espontaneamenteda praxis social, todavia nada tem de simples. Em primeirolugar, dar nomes implica em universalizar a singularidade no-meada. Denominar caneta esse objeto significa denominartodos os objetos semelhantes de caneta. Significa criar, nasubjetividade, uma categoria universal.

18A análise do complexo da fala é feita por Lukács no capítulo que trata daReprodução. Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 191 e ss./LXXI e ss. Conferir,também, uma passagem importante, no Vol II*, p. 101 e ss.

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Tal categoria universal, todavia, não é o real. Ela é umacategoria teórica, criada pela subjetividade. Ela é, portanto,ontologicamente distinta da realidade. A caneta pensada, semsombra de dúvida, não é a caneta real. Novamente, repetimos,no contexto da ontologia lukácsiana, não há qualquer espaçopara a identidade sujeito/objeto.19

Isto, no entanto, é apenas um aspecto da questão. O ou-tro aspecto é dado pelo fato de a categoria teórica apenas po-der cumprir a sua função social (possibilitar a realização deposições teleológicas cada vez mais eficientes no sentido deatingir as finalidades previamente idealizadas), se refletir, emalguma medida, as determinações do realmente existente.

Dar nomes, desse modo, é uma operação extremamentecomplexa. Desdobra-se no interior da relação teleolo-gia/causalidade, envolve a distância e a articulação entre su-jeito e objeto que se desdobra no processo deobjetivação/alienação, relaciona de modo reflexivamente de-terminante a categoria teórica e as determinações categoriaisdo ser-precisamente-assim existente, conecta dialeticamente auniversalidade do nome e a particularidade do objeto concretonomeado.

Essa complexa operação de dar nomes possui uma ca-racterística bastante peculiar: desdobra-se espontaneamenteno ser social. Cotidianamente, no agir do dia-a-dia, de formaespontânea, imediata, os indivíduos nomeiam aquilo com queentram em contato. Buscam sempre novas expressões lin-

19Tocamos aqui em um ponto da maior importância no contexto da ontologialukácsiana: a problemática do reflexo. O fundamental dos argumentos deLukács acerca desta categoria foram tratados nos Capítulos II e III, e porisso não voltaremos agora a essa questão. Cf., em especial, a tese lukácsi-ana do reflexo enquanto não-ser que, pela mediação da categoria da alter-nativa, se transforma em ser que pode ser encontrada nas p. 36-39 e 57-60do Vol II* da sua Ontologia.

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güísticas, ou novos nomes, para melhor expressar a realidade,sempre em evolução, com que se defrontam. O complexo so-cial da fala, devido a essa espontaneidade que caracteriza seudesenvolvimento, evolui sem requerer a intervenção de umgrupo de especialistas e, mesmo quando especialistas surgem(pensemos na Academia de Letras, por exemplo), já num es-tágio bastante avançado do desenvolvimento da sociedade,seu poder de influência sobre a evolução de uma língua é,normalmente, muito menor que os impulsos que brotam davida cotidiana.

O fato de o desenvolvimento desse complexo social serpredominantemente espontâneo, ocorrer no solo da vida coti-diana, não significa, que os indivíduos não joguem um papeldecisivo no desenvolvimento das línguas.20 Tal como toda es-pontaneidade social, aqui também ela é mediada por atos te-leologicamente postos. O descobrimento de uma palavra, oude uma estrutura lingüística é, normalmente, obra de um indi-víduo. Se a descoberta vai ser incorporada, ou não, ao patri-mônio cultural de uma sociedade, é algo decidido no fluxo dapraxis social de modo bastante espontâneo e casual. Naenorme maioria das vezes, até a autoria das descobertas seperde. Em alguns casos, contudo, a ação de indivíduos é de-cisiva no desenvolvimento de determinadas línguas. Lukácslembra, sempre, de Lutero e da importância da sua traduçãoda Bíblia para o desenvolvimento do alemão.21

Essas observações de Lukács nos permitem compreen-

20Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 200./LXXXII.21 Em 1534, em meio aos conflitos religiosos que marcaram aquele século,Lutero traduziu a Bíblia para o alemão. Esta iniciativa teve enorme impor-tância para a história dessa língua, pois não apenas a desenvolveu com acriação de novos termos e flexões, como ainda serviu de ponto de referênciapara o processo de unificação dos dialetos germânicos em uma língua na-cional alemã. Também por isso, a língua alemã pôde se consolidar en-quanto tal muito antes de existir um Estado nacional alemão.

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der como, para ele, a espontaneidade, o acaso, é momentointegrante do fluxo da praxis social. Espontaneidade (acaso) enecessidade (causalidade) são momentos reflexivamente de-terminantes em toda processualidade social, não havendoqualquer contraposição mecânica, excludente, entre estes doismomentos igualmente reais, ainda que opostos, da proces-sualidade concreta.22

A complexa relação entre acaso e necessidade já foi pornós abordada quando nos detivemos na categoria do traba-lho23. Vimos como, através do processo de objetiva-ção/alienação, são desencadeados nexos causais em cujodesdobramento a casualidade joga um papel decisivo. Causa-lidade e casualidade estão, assim, articuladas já na categoriafundante do ser social. De modo análogo, no desenvolvimentoda fala, bem como em toda processualidade social, a espon-taneidade ocorre no interior de cadeias causais detonadaspelo trabalho. O médium desta síntese entre acaso e necessi-dade, obviamente, é a praxis social cotidiana.

A mesma determinação reflexiva entre espontaneidade enecessidade é o fundamento ontológico para que, mesmotendo o seu desenvolvimento marcado pela espontaneidade, afala exiba uma complexa e articulada legalidade própria. Todalíngua, por mais primitiva, possui regras que determinam suaforma e sinalizam a sua evolução. Certamente tais regras sãofrutos desse mesmo desenvolvimento, de modo que podemser alteradas ou eliminadas a todo momento pela criação denovos padrões evolutivos.

Em outras palavras, o desenvolvimento do complexo dafala parte sempre do estágio de desenvolvimento por ela jáalcançado e, nesse sentido, o conjunto de leis a cada mo-

22Cf. Lessa, S., Sociabilidade e Individuação, EDUFAL, p. 34 e ss.23Cf. Capítulo II - A Categoria do Trabalho, acima.

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mento operante é a base para qualquer desenvolvimentoposterior. Toda vez que a evolução da sociabilidade exigir umcorrespondente desenvolvimento da fala, esta reage atravésde uma resposta específica, cuja forma é determinada, emmaior ou menor medida, pela legalidade já existente.

Isto faz com que, nas respostas aos novos desafios e ne-cessidades postas pela praxis, o complexo da fala reaja demodo a dar prosseguimento às suas conquistas lingüísticasanteriores, levando adiante sua especialização e o desenvol-vimento de suas leis gramaticais. Ou seja, se o desenvolvi-mento da sociabilidade, o devir-humano dos homens, colocaos problemas e desafios que impulsionam o desenvolvimentoda fala, as suas respostas concretas à evolução da sociabili-dade revelam a sua autonomia relativa frente ao movimentohistórico da formação social no seu todo.

Em outras palavras, o desenvolvimento global da forma-ção social sempre coloca novas demandas a todos os com-plexos sociais. Os complexos reagem às demandasdesenvolvendo a si próprios, levando adiante as suas legali-dades específicas. Quanto mais complexa e desenvolvida aformação social, mais complexas são as tarefas e, conseqüen-temente, mais ricos e articulados devem ser os complexos so-ciais parciais.

Temos aqui uma situação que se transforma num para-doxo lógico, se não considerada como fato acima de tudo on-tológico. Quanto mais complexa e desenvolvida for umaformação social, maior será a heterogeneidade das respostassocialmente requeridas e mais diferenciados entre si devemser os complexos sociais parciais. Quanto mais explicitada fora sociabilidade, maior a autonomia relativa aberta ao desen-volvimento de cada complexo social parcial frente à totalidadedo mundo dos homens.

Ao mesmo tempo, e aqui se compõe o paradoxo lógico,

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quanto mais desenvolvido o ser social, mais ele se unifica ob-jetiva e subjetivamente enquanto gênero humano socialmenteconstruído, enquanto generalidade humana. Quanto maiscomplexa a sociabilidade, quanto mais heterogênea for suaconstituição específica, mais extensa e intensivamente suaspartes (complexos sociais e indivíduos) são articuladas à tota-lidade social. O desenvolvimento de um gênero humano cres-centemente unitário tem como mediação ineliminável odesenvolvimento dos momentos de diferenciação e aumentoda autonomia relativa de suas partes constituintes. Isto que,no plano lógico-abstrato, é uma contradição em termos, é noplano ontológico facilmente compreensível.

Portanto, e voltando ao nosso tema, o complexo da falatem por fundamento de sua gênese e desenvolvimento as ne-cessidades que brotam da complexa relação dos homens como mundo em que vivem. Justamente por isso, o momento pre-dominante no desenvolvimento da fala é exercido pelo desen-volvimento social global. Todavia, a resposta específica aestas demandas é dada pela prossecução e pelo desenvolvi-mento, predominantemente espontâneos, do seu patamaranterior. É essa situação que determina a relativa autonomiado desdobramento do complexo da fala frente ao desenvolvi-mento social global.

Relembremos que estamos seguindo as investigações deLukács acerca da fala para determinar qual seria o momentopredominante no desenvolvimento de cada complexo socialparcial. Para investigar, em suma, como, de que modo, pormeio de que mediações, o trabalho, a troca orgânica ho-mem/natureza, sendo o momento predominante no desenvol-vimento da sociabilidade, se faz atuante no desenvolvimentode cada um dos complexos parciais.

A análise que Lukács fez da fala, aqui reproduzida em

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seus momentos mais significativos, é rica em indicações paraa solução deste problema ontológico de fundo. Todavia, a ex-ploração dos momentos ganhará em riqueza e profundidade,ao lado de maior concisão, se for feita conjuntamente com osnovos elementos que serão adquiridos com o estudo do com-plexo do direito. Assim sendo, passaremos diretamente aoestudo do complexo do direito em Lukács para, em seguida,extrair as conseqüências que nos interessam para resolver oproblema da mediação entre o trabalho e os complexos soci-ais parciais.

2- O Direito

Ao contrário da fala, o complexo do direito24 não tem suagênese fundada em uma necessidade universal do gênerohumano, mas sim em necessidades peculiares às sociedadesde classe.

Após Marx e Engels, postula Lukács a tese de que o di-reito se constituiu enquanto complexo social particular no mo-mento em que surgiu a exploração do homem pelo homem,em que surgiram as classes sociais. O surgimento das classesassinalou uma mudança qualitativa na processualidade social:os conflitos se tornaram antagônicos. Por isso, diferentementedas sociedades sem classe, as sociedades mais evoluídasnecessitam de uma regulamentação especificamente jurídicados conflitos sociais para que estes não terminem por implodi-las.

Firmemos este ponto de partida de Lukács, pois é funda-mental: a complexificação e intensificação dos conflitos sociais

24A análise do direito está em Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 205 ess./LXXXIX e ss. O Prof. Csaba Varga, da Hungria, remeteu valioso e ex-tenso material acerca da relaçãoentre direitoe ontologia em Lukács. Cópiasxerografadas podem ser obtidas junto ao Centro de Documentação Lukácsda UFAL (cf. Bibliografia).

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nas sociedades de classe fizeram necessária a constituição deum grupo especial de indivíduos (juízes, carcereiros, polícia,torturadores, etc.) que, na crescente divisão social do trabalho,se especializaram na criação, manutenção e desenvolvimentode um órgão especial de repressão a favor das classes domi-nantes: o direito.

Ao contrário da fala, portanto, o direito nada tem de es-pontâneo no seu desenvolvimento, ele não emerge esponta-neamente na vida cotidiana. Diferentemente da fala, ele não éuniversal. Nos dois sentidos: não é universal no tempo, poisexistiram sociedades sem a esfera peculiar do direito; nem éuniversal por não ser uma exigência ineliminável a todas asatividades sociais.

A afirmação, por Lukács, do caráter limitado, não univer-sal, do complexo do direito não deve nos levar a crer que eledesconheça a necessidade de alguma forma de regulamenta-ção social mesmo nas sociedades sem classes. Argumentanosso filósofo que, na ausência das classes, a regulamenta-ção social é efetivada sem ter como pressuposto a manuten-ção da exploração do homem pelo homem. O complexo dodireito, enquanto instrumento social de manutenção da explo-ração, seria superado por uma regulamentação qualitativa-mente superior dos conflitos sociais. As coisas — e não oshomens — é que seriam administradas.

Aqui, no entanto, cessam as diferenças entre o direito e ocomplexo da fala.

Tal como todo complexo social, o direito também é intrin-secamente contraditório. A sua ineliminável contraditoriedadeespecífica tem por fundamento o fato de que toda regulamen-tação jurídica deve abstratamente generalizar os conflitos so-ciais em leis universais. Todavia, como os conflitos sociaisnunca são iguais, estabelece-se aqui uma ineliminável con-tradição entre a homogênea abstratividade da lei jurídica e a

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infindável diversidade dos conflitos sociais. Em outras pala-vras, o direito apenas pode existir almejando o impossível:construir uma ordem jurídica que torne iguais casos concreta-mente distintos. A universalidade da lei só pode, por isso, serabstrata e estar sempre em contradição com os casos concre-tos, particulares.

Como uma lei jurídica não tem o poder de cancelar as di-versidades do real, a aplicação das leis deve se subordinar acondicionantes que, na prática, eliminam ou restringem forte-mente sua universalidade. Surgem as "circunstâncias atenuan-tes", figura jurídica para o reconhecimento do constrangimentoque a particularidade concreta de cada caso impõe à validadepretensamente universal da lei. Essa, segundo Lukács, é abase ontológica da ineliminável contraditoriedade do direito.

Tal como a fala, o direito também exibe uma autonomiarelativa frente ao desenvolvimento social global. A especifici-dade de sua autonomia se põe à medida que seu desenvolvi-mento apenas pode se dar como desdobramento (comocontinuidade ou ruptura) de um seu estágio anterior. Isto fazcom que as formas concretas de sua continuidade evolutivasejam decorrentes, em alguma medida, de sua própria legali-dade. Ou, melhor, que o desenvolvimento do direito apenaspossa se dar desenvolvendo, ao mesmo tempo, sua legali-dade específica.

Também, de forma análoga à fala, o momento predomi-nante no desenvolvimento do direito é o devir-humano doshomens. É o desenvolvimento do gênero que, ao mesmotempo, funda a necessidade de uma regulamentação socialjurídica e coloca as novas demandas que devem ser atendidasatravés de novos desenvolvimentos desse complexo. Maisuma vez, é o movimento da totalidade social que coloca asquestões e delineia o horizonte de possibilidades para as res-postas. Sendo esse horizonte sempre social, ele pode ser — e

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é — a todo momento alterado pela praxis.Em suma, diferentemente do complexo da fala, o direito

não é um complexo socialmente espontâneo, não goza deuma presença universal na história humana, nem é uma me-diação indispensável a todas as atividades sociais. Tal como afala, contudo, o direito é insuperavelmente contraditório e tem,no devir-humano dos homens, o momento predominante doseu desenvolvimento.

O estudo da fala e do direito permite a Lukács adiantaruma afirmação ontológica global: no ser social, a mediaçãoentre o trabalho, categoria fundante do ser social, e cada umdos complexos sociais que se desenvolvem com a explicitaçãocategorial do mundo dos homens, é a totalidade social. É odevir-humano dos homens, tomado enquanto processualidadeglobal de explicitação da generalidade humana, que coloca osnovos problemas, novos dilemas e desafios, que devem serenfrentados e superados para que a humanidade não pereça.Esses novos problemas, desafios e dilemas, requerem respos-tas que, por sua essência, impulsionam a humanidade a pa-tamares sempre superiores de sociabilidade. Portanto, é omovimento da totalidade social o momento predominante nagênese e desenvolvimento de cada complexo social particular.

Todavia, já vimos que, para Lukács, o trabalho é a cate-goria fundante, o momento predominante, do devir-humanodos homens. Ou seja, se a totalidade é o momento predomi-nante no desenvolvimento dos complexos sociais parciais, otrabalho é o momento predominante da gênese e desenvolvi-mento da generalidade humana, da totalidade social. Em pou-cas palavras, o impulso determinante no desenvolvimento decada complexo particular, e do sentido desse desenvolvi-mento, é a evolução do trabalho, da troca orgânica ho-mem/natureza. Todavia, este impulso não se dá de maneira

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direta, mecânica, mas de forma bastante mediada através datotalidade social. O médium social concreto entre o trabalho etodos os complexos sociais parciais é a vida cotidiana, a qualnada mais é que a forma historicamente determinada, con-creta, que a cada momento assume a totalidade social.

Desse modo, longe de esgotar a forma particular, con-creta, de como o trabalho estabelece relações reflexivamentedeterminantes com cada um dos complexos sociais parciais,Lukács se limita a assinalar um elemento ontológico centralnessa relação. Postula que, entre a categoria do trabalho etodas as manifestações do ser social, entre a troca orgânicaser social/natureza e todas as categorias sociais, se interpõe amediação da totalidade social. A totalidade social, em suma, épara Lukács a forma historicamente concreta através da qual otrabalho, em cada instante, opera enquanto momento predo-minante do desenvolvimento do mundo dos homens.25

Recapitulemos nosso percurso.Pelo estudo da fala e do direito pudemos identificar al-

guns traços, para Lukács universais, dos complexos sociais.Vimos que os complexos são internamente contraditórios; quepossuem legalidades específicas que fazem com que, ao res-ponderem às demandas concretas postas pelo devir-humanodos homens, desdobrem uma relativa autonomia frente à tota-lidade social e que, finalmente, a totalidade social é o mo-mento predominante na evolução de cada complexo, à medidaque é a mediação concreta entre eles e a categoria fundantedo mundo dos homens: o trabalho.

Temos aqui, portanto, dois níveis de determinação. No

25São inúmeras as passagens nas quais Lukács discute a prioridade onto-lógica da categoria da totalidade. Além das considerações encontradas en-tre as p. 191-227 do vol II* da sua Ontologia, onde a relação entre atotalidade e os complexos da fala e do direito são explorados em detalhes,cf. tb. vol II*, p. 57, 138 e 231.

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A Ontologia de Lukács86

primeiro nível, o mais genérico, o trabalho, por ser a categoriafundante do ser social, é o momento predominante daquelaprocessualidade que Lukács denominou devir-humano doshomens.26 No segundo nível, as formas concretas do devir-humano dos homens ao longo da história são predominante-mente determinadas pela totalidade social, à medida que é elaa mediação cotidiana entre o momento predominante exercidopelo trabalho em cada momento histórico e a evolução con-creta das formações sociais.

Vejamos um exemplo. No contexto da ontologia lukácsia-na, é verdade que a categoria do trabalho é o momento pre-dominante da passagem do feudalismo ao capitalismo.Todavia, as formas concretas de transição, por exemplo, naFrança e na Inglaterra, podem ser reduzidas apenas ao de-senvolvimento das atividades de trabalho? Para Lukács, não.De um lado, o desenvolvimento da capacidade humana emtransformar a natureza — a potenciação do trabalho humano— é o momento predominante da passagem do feudalismo aocapitalismo. De outro lado, as formas historicamente concretasdessa passagem sofrem determinações decisivas pelo fato dapotenciação do trabalho ocorrer no interior de totalidades so-ciais distintas, que reagem exercendo uma pressão diversasobre o desenvolvimento do próprio trabalho. Essa situaçãofaz com que o próprio desenvolvimento do trabalho, enquantomomento por último predominante, subsista a variações casoa caso, momento a momento.

Se o trabalho é a categoria fundante do devir-humano doshomens, o desenvolvimento de cada sociedade (a francesa ea inglesa, no exemplo acima) é determinado, também, pelasparticularidades de cada sociedade. Entre o desenvolvimentosocial global e a evolução da categoria do trabalho enquanto

26Cf. Lessa, S., Sociabilidade e Individuação, EDUFAL, p. 87-9.

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Cap. IV - Trabalho e Gênese do Ser Social 87

tal, há um conjunto de mediações que compõe a totalidadesocial concretamente existente a cada momento histórico. Ex-pressão da particularidade dessa totalidade é a forma histori-camente concreta que assume a reprodução social em cadacaso, a cada momento.

Portanto, para Lukács, se o trabalho é a categoria fun-dante da reprodução social, a reprodução é o conjunto demediações que exerce o momento predominante no desen-volvimento historicamente determinado de cada uma das for-mações sociais. Isso nada mais é senão afirmar, com outraspalavras, que o trabalho funda o ser social, mas que a totali-dade social não é redutível ao trabalho.

O que nos cabe fazer, agora, é um estudo da esfera es-pecífica de mediações que é a reprodução social.

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A Ontologia de Lukács88

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Capítulo V

A Categoria da ReproduçãoSocial

Retomemos o raciocínio: segundo Lukács, o que distin-gue ontologicamente a reprodução social da reprodução ape-nas biológica é que, ao contrário da natureza, o ser social, porser síntese de atos teleologicamente postos, tem por médiume órgão da sua continuidade a consciência, podendo por issose reconhecer em sua própria história e se elevar ao seu ser-para-si.1

No contexto da ontologia lukácsiana, é um elemento fun-damental para a evolução concreta da reprodução em cadamomento histórico o fato de o ser social ter ou não consciênciado seu em-si. A presença ou ausência dessa consciência, comtodas as possíveis gradações entre a ausência absoluta e aplena presença, jogam um papel nada desprezível na consti-tuição da própria substancialidade social. Numa hipotética si-tuação dada, as ações humanas serão qualitativamentedistintas se os homens agirem com consciência do que de fatosão ou se, pelo contrário, desconhecerem o seu em-si. Essadiferença qualitativa das ações humanas terminará por conferirà processualidade social uma qualidade distinta em cada

1Lukács, G., op. cit, vol II*, p. 226./CXV.

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A Ontologia de Lukács90

caso, alterando a própria constituição da substancialidade so-cial.2

Novamente se evidencia, de modo a não deixar dúvidas,que a consciência não é, para Lukács, nenhum epifenômenoda processualidade objetiva, mas um componente fundamen-tal na determinação do ser dos homens.3 Ao tratarmos do tra-balho, vimos que a prévia-ideação pertence à essencialidadedo mundo dos homens. Agora, ao estudarmos a reprodução,veremos um outro momento da presença determinante daconsciência na reprodução social: a diferenciação cada vezmais nítida entre os indivíduos e a totalidade social.4

I- Gênero e Indivíduo

Na natureza, o desenvolvimento de formas de vida cadavez mais complexas requer que os animais respondam deforma crescentemente articulada ao ambiente. Entre as rea-ções de uma bactéria e as de um chimpanzé, há uma linha dedesenvolvimento no sentido de uma interação cada vez maiscomplexa entre o animal e o meio ambiente. Todavia, por maiscomplexas que sejam essas relações, elas são sempre biolo-gicamente postas, geneticamente determinadas e, por isso, as

2Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 186/LXV-VI.3"/.../ um dos traços específicos do ser social é precisamente o fato de que aconsciência não é simplesmente a consciência de algo que, no plano onto-lógico, resta inteiramente indiferente o fato de ser conhecido; ao contrário, apresença ou a ausência de consciência, sua justeza ou falsidade, são parteintegrante do novo ser, ou seja a consciência não é aqui — em sentido onto-lógico — um mero epifenômeno, mesmo deixando de lado o fato de que oseu papel concreto em cada caso singular ser relevante ou irrelevante."Lukács, G., op. cit. vol I, p. 222/3. Tradução Carlos Nelson Coutinho, "AFalsa e a Verdadeira ...", op. cit., p. 75-6.4Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 180-2/LVIII-LX.

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Cap. V - A Categoria da Reprodução Social 91

interações entre os animais e o ambiente podem se desenvol-ver apenas dentro de limites muito estreitos.

Com o ser social, temos uma situação ontologicamentedistinta.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento que vai da maissimples às mais complexas formas de sociabilidade tem umamesma base genética. Ao contrário do que ocorre com osanimais, onde novas formas de interação com o ambiente re-querem novas determinações genéticas, no mundo dos ho-mens o desenvolvimento da sociabilidade é independente dabase genética (ainda que esta independência tenha um limitepreciso: sem reprodução da vida não há ser social). ParaLukács, em definitivo, o devir-humano dos homens é pura-mente social.

Em segundo lugar, o processo de sociabilização, ao tor-nar mais complexas as relações sociais, apenas pode prosse-guir em seu desenvolvimento à medida que possibilita aconstituição de individualidades crescentemente articuladas ecapazes de atos sociais cada vez mais complexos, mediados.5

O nexo ontológico entre essas distintas processualidades(a complexificação das relações sociais e a complexificaçãodas individualidades) é a consciência. É ela o órgão e o mé-dium da continuidade do processo de acumulação que consti-tui o devir-humano dos homens. Contudo, em suaimediaticidade, a consciência é sempre aquela de indivíduosconcretos. Ou seja, à medida que a generalidade humana seeleva a patamares crescentes de consciência, a medida que ogênero humano se constrói cada vez mais como genérico esocial, as individualidades necessariamente se complexificam.Elas, também, elevam o seu nível de auto-consciência. Aofazê-lo, lançam as bases para, objetiva e subjetivamente,

5Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 275-6/CLXXIII-IV.

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A Ontologia de Lukács92

construírem uma distinção cada vez mais acentuada entre areprodução do indivíduo e a reprodução do gênero humano.6

Em suma, para Lukács, generalidade humana e individuali-dade, portanto, estão intrinsecamente articuladas; são doispólos de um mesmo processo: a reprodução social.

Expliquemos melhor: não é um fato desconhecido na na-tureza a distinção entre a história de um animal e a história deseu gênero. Acima de tudo, a morte do animal não implica,necessariamente, o fim do gênero. Ora, se é análogo à natu-reza o fato de a história do indivíduo não ser idêntica à históriado gênero humano, não menos verdadeiro é que, no ser so-cial, o gênero e a individualidade se tornam crescentementeconscientes dessa diferenciação, de modo a adotar alternati-vas práticas que afastam ou aproximam generalidade humanae individualidade.

Para a evolução historicamente concreta de cada época,isso é da maior relevância. Uma parte significativa das rela-ções sociais são determinantemente moldadas, na sua ime-diaticidade, pela relação mais ou menos conscientementeconstruída do indivíduo para com o gênero. As distintas rela-ções entre a totalidade social e os indivíduos, por exemplo, naGrécia clássica, no feudalismo ou no capitalismo, são elemen-tos essenciais à constituição das suas particularidades históri-cas. Em especial, o surgimento e desenvolvimento doindividualismo burguês tem, na reprodução da sociedadecontemporânea, uma importância de primeira ordem.

Em síntese, para Lukács, a distinção entre generalidadehumana e individualidade é ontologicamente distinta da con-tradição exemplar singular/gênero biológico encontrada na

6A discussão, mais acima, sobre a acentuação da autonomia dos complexosparciais frente à totalidade social conforme avança a sociabilidade é, obvi-amente, um outro aspecto dessa mesma problemática.

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Cap. V - A Categoria da Reprodução Social 93

natureza: ela é puramente social.7 Isso posto, devemos escla-recer quais são, para Lukács, os nexos ontológicos que ope-ram na reprodução da individualidade e na reprodução dageneralidade humana.

II- Sociabilidade e Individuação

No estudo do mundo dos homens, Lukács, após Marx,parte do pressuposto de que os homens, para se reproduzi-rem, devem trabalhar. Isto é, devem, com absoluta necessi-dade, modificar o mundo que os cerca através de açõesteleologicamente postas. Ao fazê-lo, ao mesmo tempo, se re-produzem o gênero e as individualidades que o compõem. Istoé apenas uma outra maneira de dizer que a substância socialé síntese dos atos singulares em totalidade social e em indivi-dualidades.8

Se a totalidade social é a síntese dos atos singulares, oproblema chave de Lukács, no estudo da reprodução, é des-velar os nexos que operam no interior dessa síntese.9 Domesmo modo, se a substância de cada individualidade é dadapela direção e pelo tipo das relações que o indivíduo estabe-lece com o mundo10, deve Lukács desvelar os nexos e cone-xões ontológicas que operam no interior da síntese quetransforma, em individualidade, as múltiplas reações do indiví-duo para com o seu mundo.11

Repetimos: se, ao responder aos desafios postos pela

7Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 255/CXLIX.8Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 261-5/CLVI-XI.9Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 287-8/CLXXXVII.10Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 262-5/CLVII-XII11Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 272/CLXX.

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vida com atos teleologicamente postos, os indivíduos se cons-tróem a si próprios enquanto individualidades e, ao mesmotempo, constróem a totalidade social, a questão central naanálise da reprodução social é determinar como ocorrem es-ses dois processos sintéticos reflexivamente determinantes.

Iniciemos pela totalidade social.Segundo Lukács, o fundamento ontológico último da sín-

tese que funda a totalidade social é o processo de generaliza-ção desencadeado pelo trabalho. Como já vimos12, esseprocesso de generalização articula, pelo fluxo da praxis social,cada ato singular com a processualidade social global. Essaarticulação, por sua vez, constitui o ato singular em elementoprimário da totalidade social.13

Portanto, o primeiro momento de síntese da totalidadesocial se radica no nódulo mais essencial do mundo dos ho-mens, o processo de generalização inerente à categoria dotrabalho.

O segundo nexo que opera na síntese da substanciali-dade social enquanto totalidade está intrinsecamente relacio-nado ao anterior: a ineliminável contraditoriedade entre oselementos genéricos e particulares. Já vimos, no estudo dotrabalho, que a contradição entre a singularidade e a universa-lidade pertence à essência da categoria fundante do mundodos homens. Argumentamos, então, como, pelo trabalho, asingularidade da situação concreta se generaliza tanto ao serconfrontada com o passado e o futuro, como também se gene-raliza de forma objetiva por todo o ser social ao ser objetivadaem um produto (sempre singular) do trabalho. No próprio nú-cleo mais essencial do trabalho, portanto, as esferas da uni-

12Cf. Capítulo IV- Trabalho e Complexo de Complexos, especialmente aseção I - Trabalho e Gênese do Ser Social.13Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 261 e ss/CLVI e ss.

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versalidade e da singularidade estão articuladas emdeterminações reflexivas.

Essa situação originária, primária, se desdobra, no fluxoda praxis social mais desenvolvida, em um outro nível de con-traditoriedade entre os momentos singulares e os universais.Referimo-nos ao fato de a processualidade social global, noseu próprio movimento concreto, cotidiano, colocar o gênerohumano frente a alternativas que o forçam a escolher entre asnecessidades, interesses e valores humano-genéricos e asnecessidades, interesses e valores apenas particulares. Nassociedades de classe, normalmente essas opções se colocamsob a forma do predomínio do interesse de uma classe sobreos interesses da totalidade social.

Todo conflito social, por mais simples, exibe uma contradi-toriedade desse tipo no seu nódulo mais essencial. Sem essatensão entre o gênero e o particular não há conflitos sociais,segundo Lukács.

Devemos, todavia, evitar generalizações que terminariampor deformar as formulações lukácsianas. Lukács analisa osproblemas de fundo que daqui emergem no contexto das so-ciedades asiáticas, do escravismo, do feudalismo e do capita-lismo para argumentar que a universalidade da presença datensão genérico/particular na história humana em nada seopõe a que as suas formas concretas, historicamente determi-nadas, variem enormemente. A tal ponto elas variam, que agênese e desenvolvimento da sociedade burguesa possibilitoue exigiu um salto de qualidade na relação entre o genérico e oparticular, entre a totalidade social e os indivíduos. Surgem aesfera do privado, do individualismo burguês, do bourgeois, ea esfera pública, do citoyen.

Essa tensão entre o genérico e o privado que perpassa acotidianidade constrange a decisão coletiva (de forma mais oumenos consciente, mais ou menos espontânea, conforme o

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A Ontologia de Lukács96

caso e o momento histórico) a optar entre alternativas quecontemplam primordialmente as necessidades genéricas ou asnecessidades particulares. Tal é a base social objetiva, o fun-damento ontológico, para que a humanidade, ao longo dahistória, se eleve a patamares superiores de consciência dacontraditoriedade entre os momentos sócio-genéricos da re-produção e aqueles apenas particulares. E, conseqüente-mente, que se eleve também à consciência a contraposiçãoindividualidade/generalidade humana específica ao mundodos homens.14

A enorme variação ao longo da história da forma concretada praxis social é um fato relevante para o desenvolvimentodesse complexo problemático. Todavia, tal diversidade nãoaltera fundamentalmente o que foi afirmado até aqui. Ou seja,a ineliminável presença da tensão entre o gênero e o particularnos conflitos sociais, e o fato de essa tensão se constituir emimpulso à sua elevação à consciência. Em outras palavras,para Lukács, a contraditoriedade entre o genérico e o particu-lar é um elemento fundamental na elevação à consciência, emescala social, do ser genérico dos homens.

Vimos, até aqui, dois dos nexos operantes na síntese dasubstancialidade social enquanto totalidade: 1) a generaliza-ção inerente à categoria do trabalho que torna social (isto é,socialmente genérico) todo ato singular; e, 2) a inelimináveltensão entre os elementos genéricos e os particulares constituia base para a elevação à consciência, em escala social, dapolaridade indivíduo/sociedade. Devemos, agora, adentrar àanálise do último nexo dessa síntese, o qual nos conduzirá aocerne da ética lukácsiana.15

14Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 328/CCXXXVI.15Como se sabe, a ontologia de Lukács foi pensada como uma introdução auma sua obra inteiramente dedicada à Ética. Todavia, a morte do filósofoem 1971 interrompeu a sua elaboração, apenas permanecendo algumasanotações que não foram, até o presente momento, publicadas.

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Cap. V - A Categoria da Reprodução Social 97

Com o desenvolvimento da sociabilidade e a conseqüenteintensificação e extensão, tanto objetiva quanto subjetiva, dosconflitos entre os elementos genéricos e os particulares, surgea necessidade de mediações sociais que explicitem, tão niti-damente quanto possível, as necessidade genéricas que vãogradativamente se desenvolvendo.16 É necessário identificaras necessidades genéricas, plasmá-las em formas sociais quesejam visíveis nas mais diversas situações, para que se tor-nem de fato operantes na cotidianidade. Valores como justiça,igualdade, liberdade, etc., surgem a cada período históricocomo expressões concretas, historicamente determinadas, dasnecessidades genérico-coletivas postas pelo desenvolvimentoda sociabilidade. Certamente, por serem expressões concre-tas, históricas, das necessidades humano-genéricas, o con-teúdo desses valores se altera com o passar do tempo. Taismudanças introduzem novos problemas nesse complexo, masnão alteram o fato de que tais valores são centrais na eleva-ção à consciência, em escala social, da contradição singu-lar/universal, gênero/indivíduo; e que, por sua vez, a elevaçãodo patamar de consciência da contradição indivíduo/gêneroinfluencia decisivamente na identificação mais precisa das ne-cessidades genéricas historicamente surgidas.

A necessidade social de tais mediações, segundo Lukács,é o fundamento ontológico da gênese e desenvolvimento decomplexos como a tradição, a moral, os costumes, o direito e aética. Cada um deles, apesar das enormes diferenças queapresentam se comparados entre si, tem como função socialatuar no espaço aberto pela contraditoriedade entre o gêneroe o particular, de modo a tornar reconhecíveis pelos homens(sempre em escala social) a forma e o conteúdo que, a cada

16As considerações mais significativas acerca da ética são encontradas emLukács, G., op. cit., vol II*, p. 328-9/CCXXXV-VI. Cf. Tb. Lessa, S., Sociabili-dade e Individuação, EDUFAL, p. 93-97.

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A Ontologia de Lukács98

momento, expressam essa contraditoriedade. E, assim o fa-zendo, permitem aos homens optar, de modo cada vez maisconsciente, entre valores que expressam as necessidadeshumano-genéricas e valores que exprimem os interesses ape-nas particulares de indivíduos ou grupos sociais.

Há, segundo Lukács, no entanto, uma diferença funda-mental entre a ética e os outros complexos acima citados. En-quanto a moral, os costumes, a tradição, etc. se caracterizampor atuar no interior da tensão gênero/particular, por ser ins-tâncias mediadoras que atuam no interior dessa contraditorie-dade sem, por isso, encaminhar os conflitos e as alternativasno sentido de sua superação, a ética atua no interior da con-tradição gênero/particular, tendo em vista a superação da re-lação dicotômica entre indivíduos e sociedade.

Expliquemos melhor: a gênese e o desenvolvimento dasociedade burguesa, a primeira puramente social, provocauma mudança qualitativa nesse quadro. Pela primeira vez, oshomens colocam a si próprios a tarefa de, conscientemente,construir a história. Abre-se a era das revoluções. Na socie-dade burguesa, a praxis social requer e possibilita que seeleve à consciência, em escala social, o fato de os homensserem os construtores de sua história, ainda que em circuns-tâncias por eles não escolhidas.17

Ao permitir ao gênero humano se reconhecer como de-miurgo de sua própria história, ao possibilitar a consciência,sempre em escala social, de que indivíduos e sociedade sãopólos de um mesmo ser e que, por isso, compartilham damesma história —, essa nova sociabilidade funda uma novanecessidade. Qual seja, a superação da dicotomia indiví-duo/gênero, a superação da cisão, tipicamente burguesa, doser humano em citoyen e bourgeois. Tal superação requer, por

17Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 304-325/CCVII-CCXXXII. Cf. tb.. Lessa, S.,Sociabilidade e Individuação, EDUFAL, p. 93-100.

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um lado, que a praxis construa complexos sociais mediadoresque permitam a explicitação e o reconhecimento coletivo dasnecessidades postas pelo desenvolvimento humano-genérico.E, por outro lado, que, nos atos teleologicamente postos pelosindivíduos, predominem valores que encarnem as necessida-des do desenvolvimento da generalidade humana. A supera-ção da dicotomia bourgeois/citoyen apenas pode se dar,primeiro, pela compreensão por parte do gênero do seu em-si,do que de fato ele é o que implica necessariamente, também,a compreensão pelas individualidades do que de fato elas são,do seu ineliminável caráter genérico-social. Em segundo lugar,pela objetivação de valores predominantemente genéricos. Ouseja, a superação desta dicotomia apenas é possível com aelevação do gênero e da individualidade ao seu para-si. Se-gundo Lukács, é função social específica da ética conectar asnecessidades postas pela generalidade humana em desen-volvimento, com a superação do antagonismo gê-nero/particular. Ao direito, ao costume, à tradição e à moral,pelo contrário, caberia, mutatis mutandis, atuar no interior dacontradição generalidade humana/particularidade de modo apossibilitar, no cotidiano, que o indivíduo refira a si próprio asnecessidades genéricas postas pelo processo de sociabiliza-ção.

Temos, com isso, os três nexos que, segundo Lukács,operam na síntese peculiar que constitui o gênero enquantototalidade social. Em primeiro lugar, o processo de generaliza-ção inerente ao trabalho que torna social toda ação individual.Em segundo lugar, a ineliminável contradição entre o gênero eo particular em todo conflito social, que requer e possibilita quea contraditoriedade indivíduo/gênero se eleve à consciênciaem escala social. E, em terceiro lugar, a moral, os costumes, odireito e, em especial, a ética, enquanto complexos mediado-res que operam na processualidade de elevação do gênero ao

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seu ser-para-si, à generalidade humana autêntica, no dizer deLukács.

Veremos que esses três nexos estão também presentes,mutatis mutandis, na constituição da individualidade.

Comecemos com o impulso à generalidade humana que éinerente à categoria do trabalho. Como argumentamos, se-gundo Lukács é esse impulso que detona o processo de so-ciabilização.18 O processo de sociabilização, por sua vez, aodar origem a sociedades cada vez mais desenvolvidas, maiscomplexas, ao mesmo tempo requer e possibilita o desenvol-vimento da singularidade humana em individualidade, crescen-temente complexa e articulada.19

Logo de saída, portanto, é necessário fixar de uma vezpor todas esse ponto: o desenvolvimento de formas superioresde sociabilidade é o fundamento ontológico da constituição deindividualidades cada vez mais complexas ao longo da histó-ria.20 Ou, em outras palavras, é o movimento da totalidade doser social o momento predominante na elevação da singulari-dade humana em individualidade autêntica.

O segundo nexo está intrinsecamente articulado ao ante-rior e, tal como na reprodução da sociabilidade como um todo,aqui também é dado pela ineliminável tensão entre os elemen-tos genéricos e os particulares na praxis social. Todavia, numaoutra dimensão. Antes tratava-se da praxis social global, agoranos interessam as conseqüências dessa tensão no interior dosatos concretos dos indivíduos.

Uma enorme quantidade dos atos cotidianos envolve, di-reta ou indiretamente, uma opção do indivíduo por valores queexpressam as necessidades postas pelo desenvolvimento do

18Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 267 e ss/CLXIV e ss.19Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 261/CLVI.20Lukács, G., op. cit., vol II*, p., 274/CLXXII.

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Cap. V - A Categoria da Reprodução Social 101

gênero ou que cristalizam os seus interesses imediatos en-quanto individualidade. A tensão que contrapõe a necessáriaparticularidade de uma existência individual, à não menos ne-cessária universalidade do desenvolvimento do gênero, forçao indivíduo a optar constantemente por um ou por outro valor.Isso possibilita a elevação à consciência, por parte do indiví-duo, da contradição real, posta pelo fluxo da praxis social, en-tre a reprodução da individualidade e a da totalidade social.21

Vale notar, aqui também, que as formas que essa con-traditoriedade assume ao longo da história variam enorme-mente. Lukács se detém, em especial, no estudo dasdiferenças entre a sociedade grega clássica e a sociedadeburguesa. No capítulo dedicado ao estranhamento voltaremosa essa problemática. Aqui tão-somente assinalaremos ser atensão entre particularidade e generalidade humana no interiordas ações cotidianas a base objetiva para que os indivíduos,em escala social, tomem consciência da contradição indiví-duo/gênero. E, ao fazê-lo, impulsionem a si próprios para aconstituição do para-si da sua individualidade.

O terceiro nexo operante na síntese da individualidade écomposto por aqueles complexos sociais que permitem aoindivíduo assumir como suas as necessidades postas pelomovimento sócio-genérico. Aqui, também, a moral, os costu-mes, a tradição e o direito jogam um papel importante. E, tam-bém aqui, cabe à ética o papel mediador fundamental noprocesso de superação da contraposição antinômica gê-nero/individualidade, constituindo a individualidade-para-si aautêntica individualidade social.

Expostas as conexões ontológicas que, segundo Lukács,operam a síntese tanto da totalidade como da individualidade

21Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 276 e ss/CLXXVI e ss.

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A Ontologia de Lukács102

sociais, no fluxo do movimento reprodutivo de cada formaçãosocial concreta, fazem-se necessárias algumas observaçõespara concluir o capítulo.

Em primeiro lugar, convém realçar a intensidade com queo filósofo húngaro afirma ser indissociável a individuação e asociabilidade. Do mesmo modo, como não há ato humano sin-gular senão no interior de uma totalidade social, não há indivi-dualidade fora da totalidade social. É o movimento evolutivodo gênero humano, enquanto totalidade, que se constitui noimpulso fundante e no momento predominante do processo deindividuação.

Todavia, o parágrafo acima se constituiria numa monstru-osa falsificação do pensamento lukácsiano se não fosse com-pletado por uma segunda observação. Para Lukács, oselementos constitutivos da totalidade social são os atos singu-lares de indivíduos concretos em situações sociais concretas.E, de modo análogo, o elemento constitutivo da totalidade so-cial são os indivíduos. Sem individuação, segundo Lukács,não há sociabilidade possível, não há reprodução social. Se asíntese das individualidades não for capaz de, ao longo dotempo, consubstanciar indivíduos cada vez mais capazes deatos crescentemente complexos, como seria sequer possívelimaginar o desenvolvimento de relações humano-genéricascada vez mais complexas?

No contexto da ontologia lukácsiana, os indivíduos, aoresponderem às demandas cotidianas, ao mesmo tempo, sin-teticamente constróem a si próprios enquanto individualidadese constróem a totalidade social. Individuação e sociabilidadeapenas existem enquanto determinações reflexivas, enquantodois pólos de um mesmo processo: a reprodução social.

A terceira observação se refere ao fato de que as trêsmediações fundamentais operantes tanto na individuaçãocomo na sociabilidade (o impulso à generalidade humana de-

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tonado pelo trabalho, a contradição genérico/particular e asmediações como a ética, a religião, etc. que articulam neces-sidades humano-coletivas e processos de individuação) pos-suem uma explícita raiz ontológica na categoria do trabalho.Mais uma vez nos defrontamos com aquela situação ontoló-gica de fundo pela qual do trabalho, uma categoria em-si uni-tária, se originam mediações e categoriais que são, no planode ser, distintas do trabalho enquanto tal. Não apenas o sersocial não é plenamente redutível ao trabalho, como ainda suaforma mais genérica de desenvolvimento é dada pela identi-dade da identidade e da não-identidade.

A quarta e última observação visa chamar a atenção parao papel central que cabe à subjetividade nas teorizações luká-csianas. Longe de considerá-la simples decorrência das rela-ções materiais, Lukács, na esteira de Marx, delineia comprecisão o papel ativo da consciência na construção do mundodos homens. A consciência não é apenas imprescindível aotrabalho enquanto categoria fundante dos homens, mas aindaefetua a mediação entre a individuação e a sociabilidade. Valedizer que, sem a ativa participação da consciência, não"apenas" a prévia-ideação, mas mesmo a reprodução socialnão seriam possíveis. Tanto a individuação como a sociabili-dade, quanto a absolutamente necessária articulação reflexi-vamente determinante entre essas duas processualidades,requerem a ativa participação da subjetividade. Desprezar opapel da individualidade e da consciência na construção domundo dos homens não está, estamos convencidos, entre ospossíveis equívocos de Lukács.

A continuidade da exploração das conexões operantes nareprodução social, aqui delineadas, exige que nos voltemos auma categoria que nelas interfere com intensidade, principal-mente nas formas mais desenvolvidas de sociabilidade. Refe-

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A Ontologia de Lukács104

rimo-nos à categoria do estranhamento, à qual dedicaremos opróximo capítulo.

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Capítulo VI

O Estranhamento

I- O Fenômeno do Estranhamento

Ao tratarmos dos nexos internos à categoria do trabalho,argumentamos que Lukács confere à alienação (Entäus-serung) um conteúdo distinto do encontrado na enormemaioria dos autores contemporâneos.1 Para o pensadorhúngaro, a alienação corresponde ao momento positivo peloqual o homem constrói o ser social. O devir-humano doshomens, segundo ele, corresponde ao desenvolvimento dacapacidade humana em se alienar, isto é, construir um am-biente cada vez mais social. A alienação, nessa acepção, cor-responde precisamente à afirmação prática da crescentecapacidade do homem em modificar o real no processo de suareprodução. Daí o caráter de positividade da alienação emLukács.

Lukács reconhece, contudo, que nem todas as objetiva-

1Cf. Capítulo II- A categoria do trabalho, seção 1- objetivação e alienação.

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A Ontologia de Lukács106

ções/alienações jogam papel positivo no desenvolvimento dageneralidade humana. Algumas das objetivações, em momen-tos historicamente determinados, podem se transformar, deimpulsos, em obstáculos ao desenvolvimento da humanidade.E, nesses momentos, tais objetivações, ao invés de contribuircom o devir-humano dos homens, se transmutam em negaçãoda essência humana, em expressão da desumanidade criadapelo próprio homem. A esses momentos de negatividade, queconstituem obstáculos sócio-genéricos ao devir-humano doshomens, Lukács denomina, após Marx, de estranhamento(Entfremdung).

É preciso, antes de tudo, salientar que essa negação daessência do ser humano, o estranhamento, nada tem de natu-ral, é puramente social. Não implica a negação do ser socialpela afirmação de categorias naturais; não se constitui em umretorno às esferas inferiores do ser. Pelo contrário, é uma ne-gação da essência humana socialmente posta, é uma nega-ção do homem pelo próprio homem. Portanto, em-si, ofenômeno do estranhamento é puramente social, e não devenenhum momento da sua processualidade ao mundo da natu-reza. O estranhamento é, no contexto da ontologia lukácsiana,uma negação socialmente construída do ser humano.2

1- O estranhamento e a sociabilidade burguesa

O estudo da sociabilidade contemporânea se constitui emum momento privilegiado para a compreensão do fenômenodo estranhamento. Isto porque, segundo Lukács, o carátersocial puro da sociabilidade burguesa possibilitou que a exis-tência humana se estranhasse numa intensidade e numaamplitude inéditas na história. Por isso, avançaremos no es-tudo do fenômeno do estranhamento através da análise de

2Lukács, G., op.. cit., vol II**, p. 559/60.

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alguns aspectos da formação social capitalista.Segundo Lukács, o que particulariza a sociedade capita-

lista é o fato de ela ser a primeira formação socialmente pura.Isto deve ser entendido com clareza, pois caso contrário po-deria levar à conclusão equivocada de que, para Lukács, asformações pré-capitalistas seriam de alguma forma naturais,não-sociais. Com a afirmação de que a sociedade burguesa éa primeira socialmente pura, Lukács pretende salientar o fatode que é nela, pela primeira vez na história, que o local ocu-pado pelo indivíduo na ordem social é determinado apenaspela dinâmica econômica. Enquanto no feudalismo, no escra-vismo e nas sociedades asiáticas o nascimento, por exemplo,determinava em larga medida o local social que o indivíduoocuparia na estrutura social, na sociedade burguesa não háqualquer determinação dessa espécie.3

Salientemos que, para Lukács, tal significado social donascimento é socialmente posto. O fato de, ao se nascer umnobre feudal, deve-se morrer nobre feudal, é uma determina-ção socialmente construída, nada tendo de natural. Nenhumalei biológico-natural poderia ser portadora de qualquer deter-minação semelhante. Todavia, na vida cotidiana, ao confron-tar-se o indivíduo com uma situação que, em larga medida,não pode ser alterada por um ato de sua vontade, a realidadeassume, para ele, a aparência de uma "segunda natureza".

"Os processos, as situações sociais. etc.", afirmaLukács, "são certamente, em última análise, produtosdas decisões alternativas dos homens, mas não nos es-queçamos que adquirem relevo social apenas quandocolocam em operação séries causais que se movemmais ou menos independentemente das intenções da-queles que as colocou, segundo legalidades específicasa elas imanente. O homem que age praticamente na so-ciedade, por isso, se encontra frente a uma segunda na-

3Esse aspecto do devir-humano dos homens é discutido por Lukács no VolII*, p. 287 e ss/CXCI e ss. de sua Ontologia.

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tureza para com a qual, se quer geri-la com sucesso,deve se comportar como se comporta em relação à pri-meira, isto é, deve buscar transformar em um fato postopor ele o curso das coisas que é independente da suaconsciência; deve, portanto, ter conhecimento da essên-cia, moldá-la segundo o aquilo que deseja. Isto é oquanto, no mínimo, toda praxis social razoável devemanter da estrutura originária do trabalho."4

No contexto da ontologia de Lukács, portanto, as relaçõessociais assumem uma exterioridade cotidiana no confrontocom as consciências individuais que possuem semelhançaimediata com a exterioridade natural. Novamente, e não háaqui necessidade senão de chamar a atenção a este aspectoda questão, não há em Lukács qualquer espaço para a identi-dade sujeito/objeto.

Para evitar qualquer equívoco, salientemos que isto nãosignifica, em absoluto, que para Lukács haja qualquer atenua-ção da diferença ontológica entre ser social e natureza. Osalto ontológico entre a natureza e o mundo dos homens nãoé, em nada, atenuado por estas colocações de Lukács. Sersocial e natureza são, sempre, ontologicamente distintos.

Aqui, no entanto, examinamos um outro fenômeno. Trata-se do fato pelo qual, uma vez objetivadas, as relações sociaisse alienam, ganham uma vida própria e, a cada momento, exi-bem uma efetiva autonomia relativa frente às vontades indivi-duais. A distância entre a relação social objetivamenteexistente e a subjetividade que está na base dos atos teleolo-gicamente postos que fundam e reproduzem estas mesmasrelações sociais faz com que, na vida cotidiana, as relaçõessócio-genéricas exibam uma dureza semelhante à da natu-reza. Ser nobre feudal, nesse contexto, pode ter a aparência,na consciência cotidiana de milhões de indivíduos, de umaprossecução natural do fato de o nascimento de um pessoa

4Lukács, G., op.. cit., vol II*, p. 125.

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ter ocorrido num castelo ao invés de numa choupana. Dimen-sões puramente sociais da vida adquirem, por essa via, umpeso, uma aparência, "natural": são fatos de tal modo exterio-res às vontades cotidianas, tão pouco permeáveis à influênciadas vontades individuais, que assumem uma aparência deexterioridade natural.

Na sociedade capitalista, pela primeira vez na históriahumana, esse aparente caráter natural das relações sociaistende a desaparecer.5 Nela, o local de cada indivíduo na estru-tura social é relativamente modificável (dentro de limites histo-ricamente dados) pela ação dos indivíduos. Sob esse aspecto,a sociedade capitalista se constrói como uma enorme arena,onde os indivíduos não cessam de lutar entre si por um lugarao sol. Para a consciência cotidiana de milhões de indivíduosque vivem sob o jugo do capital, o fato de João ser operário eTomas um burguês é uma decorrência direta das qualidadesde suas individualidades, da maior ou menor capacidade em"fazer dinheiro". O que, certamente, tem um grau de verdade:os atos de um burguês podem, de fato, destruir sua fortuna,do mesmo modo que os atos de um proletário podem o enri-quecê-lo e transformá-lo em um burguês. Na vida regida pelocapital ocorrências dessa ordem não rompem com a normali-dade cotidiana.

Esse quadro sofre nuances, é flexionado numa ou noutradireção — sem ser, todavia, alterado na sua essência, — pelofato de o confronto com os momentos de acaso, presentes navida de cada indivíduo, poder dar origem a concepções místi-cas e supersticiosas da vida e da morte.6 Todavia, é indiscutí-vel que, para os indivíduos que vivem na sociedade capitalista,a consciência de que seus atos têm importância na determina-

5Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 326 e ss.6Como já vimos no Capítulo II, estes fenômenos são decorrentes daquelecomplexo que Lukács denominou intentio obliqua.

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ção dos seus "destinos" é parte integrante da essência do seuser.

A gênese e o desenvolvimento dessa consciência assu-miu a forma historicamente concreta de uma oposição entreindivíduo e sociedade. Corresponde, em larga medida, à gê-nese e ao desenvolvimento do individualismo burguês. Para opensamento moderno, os indivíduos se constróem em perma-nente confronto com a estrutura social global e com os outrosindivíduos, numa dinâmica de disputas pelas quais cada indi-vidualidade, ao se constituir enquanto egoísta e competitiva,constrói também uma sociedade desumana, concorrencial.Nessa forma de sociabilidade cada indivíduo tem na socie-dade e nos outros indivíduos uma oportunidade ou obstáculopara acumular capital, e não uma expressão da generalidadehumana. Temos aqui, em sua essência, o individualismo bur-guês, de um lado, e a sociedade civil burguesa, de outro.

Tomemos cada um desses momentos em separado. Atotalidade social burguesa nada mais é senão a síntese dasrelações sociais movidas pela reprodução do capital. O capital,criação dos homens, passa a dominar a vida dos seus criado-res. As decisões alternativas atendem prioritariamente à re-produção do capital e não às necessidades postas pelareprodução do gênero humano. O capital, e não mais o ho-mem, passa a ser a razão do agir dos indivíduos, passa a sera essência da formação social.

Vale assinalar que Lukács retoma aqui, com todas as le-tras, a tese marxiana segundo a qual o capital é um criaçãohumana que se volta a escravizar os próprios homens. É umaafirmação humana da não-humanidade: um estranhamento.Dada as suas características universais, o capital é um estra-nhamento peculiar. Enquanto outros estranhamentos podemser superados sem uma transformação global do mundo doshomens, o estranhamento produzido pelo capital apenas pode

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ser superado com a superação da ordem social burguesa. E,desnecessário salientar, para Lukács a plena explicitação dageneralidade humana, nos dias em que vivemos, apenas po-derá ocorrer uma vez superada a exploração do homem pelohomem fundada no capital.7

Nesse contexto, o individualismo burguês interfere naconstituição da substância de cada individualidade sob a he-gemonia do capital. Na disputa pela acumulação privada deriqueza, cada indivíduo é o eterno "lobo" a ameaçar os outros.Cada um desdobra a sua existência como uma infinita lutacontra tudo e contra todos para aumentar sua riqueza —quando possui alguma —, ou simplesmente para sobrevivernos níveis mais miseráveis de sociabilidade. Sob o capital, aexistência humana é reduzida à sua faceta menos humana: ouser mero cofre para acumular capital ou, então, ser banido dacivilização humana, se reduzindo à disputa por um pedaço depão.

A desumanidade da existência humana é, na sociedadeburguesa, para Lukács, igualmente real, quer se trate de umaexistência burguesa ou proletária. Nos dois casos, a vida éigualmente carente de sentido, é uma vida medíocre, estra-nhada. Tanto o burguês como o operário são o resultado doprocesso de estranhamento global. O que não deve nos levara crer que Lukács desconsidere a importância, para a vida decada indivíduo, do fato de sua existência se desdobrar sob oconfortável estranhamento da burguesia ou sob o estranha-mento miserável da vida operária. Contudo, para a análiseontológica do estranhamento, essa significativa diferença nãoatenua o fato de tanto o burguês como o operário serem for-mas estranhadas da existência humano-social. A existênciaindividual sob a regência do capital, em Lukács, é sempre es-

7Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 320-1.

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tranhada, ainda que as formas de estranhamento possam serdiversas e, no interior da vida de cada indivíduo, essas dife-renças sejam muito significativas.

Abordemos essa mesma problemática de um outro ân-gulo.

O devir-humano dos homens, o desenvolvimento da ge-neralidade humana, atinge com o capitalismo um momentonodal de sua trajetória. O desenvolvimento das forças produti-vas e o correspondente, contraditório e desigual, desenvolvi-mento das capacidades humanas em geral (da subjetividade,da sensibilidade, da criatividade, do conhecimento científico,da capacidade estética, etc.) atingiu, com a passagem do feu-dalismo ao capitalismo, um patamar de desenvolvimento quepossibilitou aos homens, pela primeira vez, a nítida e clarapercepção de que a história dos homens é o resultado dasações dos próprios homens, que o homem é essencialmentesocial.

Que as potências desencadeadas pelo desenvolvimentodo gênero humano houvessem sido, no passado, inúmerasvezes, transformadas em potências divinas, transcendentes,aos olhos da sociedade burguesa nascente nada mais era quedecorrência de uma sociabilidade pouco desenvolvida quetinha no antropomorfismo a sua forma privilegiada de explicara existência humana. O século XVIII é pródigo em tentativasde derrotar essa forma de conceber o humano, e a grande lutase dá contra a concepção de mundo feudal. Desde Bacon atéo racionalismo francês, esse é o tom dos debates filosóficosmodernos. Essa é a base de ser do movimento que se iniciacom o Renascimento e que culmina na Ilustração e com aafirmação — teórica e prática — que o homem é capaz de fa-zer a sua história porque o homem é uma criação do própriohomem. O universo é regido pela lei newtoniana da gravitação

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universal e não mais pela interferência divina; as relaçõesmatemático-mecânicas deslocam a providência divina na ex-plicação dos fenômenos naturais e, muitas vezes, sociais. Opapel dos homens na história é cada vez mais central: Vicoafirma com todas as letras que a diferença entre a sociedadee a natureza está no fato de que os homens fizeram a primeirae não a segunda.

Apesar das diferenças entre Hobbes, Locke e Rousseau,algo os aproxima: o mundo dos homens é, para os três pen-sadores, resultado concreto das ações humanas, e todos ostrês propõem ações coletivas para ordenar a sociedade se-gundo a natureza humana. Que diferenças as mais significati-vas se interpõem entre o Estado hobbesiano e a soberaniapopular em Rousseau é uma obviedade e não é necessáriomais que apontar esse aspecto.

Ao contrário, da máxima importância para o nosso estudodo estranhamento em Lukács, é que esses pensadores estãoentre os mais representativos do período moderno fundamen-talmente porque — entre outras coisas — foram capazes deexprimir — e, dessa maneira, conferir uma forma socialmenteadequada à nascente consciência do fato de a história seruma história da humanidade; que, no limite, o gênero humanoé o único responsável pelo seu próprio destino.

O fato de as primeiras formas de manifestação da cons-ciência do caráter social — e, não, divino — da história teremse apoiado em uma concepção a-histórica da natureza hu-mana, termina por introduzir importantes nuances nessa pro-cessualidade. Como já nos referimos anteriormente, anatureza humana dos filósofos modernos era pouco mais quea generalização, para toda a história, das características maisessenciais da humanidade estranhada pelo capital. Essa limi-tação, todavia, não impediu que o Iluminismo se convertessena ideologia das revoluções burguesas — revoluções que

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marcam a entrada do devir-humano dos homens num novoperíodo no qual, diferente dos anteriores, conscientemente oshomens se propõem a alterar com seus atos a continuidadehistórica. Ou seja, um novo período no qual uma classe —pelo primeira vez na história — se constitui enquanto classerevolucionária; isto é, uma classe capaz de projetar e construirpraticamente uma nova sociedade cuja gênese apenas podese dar pela destruição da velha sociedade.

É a esse complexo de questões que Lukács se referequando afirma que a sociedade burguesa é a primeira social-mente pura. Ela corresponde ao primeiro momento do devir-humano dos homens no qual a humanidade se propõe aassumir a história em suas próprias mãos, ao invés de recebê-la como fatalística imposição de potências que transcendem oser social. O destino dos homens passa a pertencer aos ho-mens, não mais aos deuses.

O quanto essa evolução é significativa para o desenvol-vimento do gênero humano dificilmente poderia ser exage-rado. Corresponde a um momento decisivo, segundo Lukács,para a constituição de um gênero humano que tenha cons-ciência do fato de ser essencialmente social. Por isso, é umpasso fundamental na elevação da humanidade ao seu ser-para-si.

De modo análogo, o desenvolvimento das relações mer-cantis, ao contrapor cotidianamente a existência individual aogênero humano, ao fazer da acumulação privada de capital oimpulso determinante na vida das pessoas exigiu e, ao mesmotempo, possibilitou o desenvolvimento do individualismo bur-guês.

A substância da individualidade típica que se constituinesse momento histórico é aquela do avaro pequeno-burguês,do Pai Goriot de Balzac. É uma individualidade que se con-

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cebe enquanto mônada qualitativamente distinta e oposta aogênero humano, que tem seus horizontes limitados pelos seusinteresses privados imediatos.8 A literatura está repleta de per-sonagens que retratam esta forma de ser dos indivíduos sob aégide do capital.

Na esfera política, tanto a totalidade social enquanto lo-cus da disputa entre os indivíduos, como esse indivíduo bur-guês são os fundamentos últimos da democracia burguesa.Como o homem é por natureza competitivo, ruim, egoísta,avaro, não restaria à humanidade outro caminho senão reco-nhecer esse fato e buscar uma forma de sociedade onde aluta de todos contra todos não desagregasse a sociedade. Aforma ideal, dessa perspectiva, é aquela da democracia bur-guesa consagrada pelo liberalismo, um espaço estruturadoformalmente para regular, de modo a que não ultrapassem oslimites do capital, os inelimináveis conflitos sociais da socie-dade burguesa. Nesse sentido, mercado e democracia bur-guesa estão indissoluvelmente articulados. O primeiro é oespaço da concorrência econômica; o segundo, o espaço dadisputa política, na concepção liberal burguesa.

Já vimos o quanto a ontologia lukácsiana se opõe a con-cepções de uma natureza humana desse tipo. Acima de tudoporque, no plano diretamente ontológico, tal concepção é aexata antípoda da radical historicidade do mundo dos homenspostulada por Lukács, após Marx. Para estes pensadores, ne-nhuma natureza humana poderia, em nenhuma hipótese, seconstituir em limites a priori para o desenvolvimento do devir-humano dos homens.9

O que nos interessa chamar a atenção do leitor, agora, épara o fato de que, na sociedade burguesa, mesmo ali onde ademocracia liberal tenha se desenvolvido plenamente, a indi-

8Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 257 e ss.9Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 265 e ss.

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vidualidade nunca poderá ir para além da sua fragmentaçãoentre uma dimensão genérica e uma dimensão privada, entrecitoyen e bourgeois. Baseando-se direta e explicitamente nasteorização de Marx na Questão Judaica10, Lukács aponta queo desenvolvimento da individualidade sob o capital se desdo-bra historicamente em duas esferas, uma pública (genérica),na qual o indivíduo se concebe enquanto cidadão e que cor-responde ao momento público da sua existência, e outra pri-vada, na qual o indivíduo submete as suas relações com ogênero aos interesses imediatos da acumulação privada que orealiza enquanto indivíduo burguês.

Argumenta Lukács que essa contraposição entre o pú-blico e o privado, na qual o público e o privado não apenassão distintos, mas opostos à medida que as relações genéri-cas são tomadas enquanto instrumentos e mediações para aacumulação privada de riqueza, constitui o nódulo mais es-sencial da postura tipicamente burguesa para com as leis, amoral, a ética, etc. O típico burguês, íntima e sinceramente,deseja que as leis sociais sejam obedecidas e respeitadas portodos, pois compreende que sem essas leis seu mundo nãopoderia existir. Todavia, ao mesmo tempo, age de forma aprocurar uma maneira de transgredir essas mesmas leis sem-pre que possa obter alguma vantagem pessoal. É a hipocrisiatípica do burguês médio, uma qualidade socialmente produ-zida das individualidades burguesas.11

Que uma individualidade que se constrói nesses parâme-tros é uma individualidade cindida, limitada no seu desenvol-vimento aos horizontes postos pela reprodução do capital e,portanto, uma individualidade que está longe de efetivar todasas fantásticas potencialidades de desenvolvimento abertaspelo atual nível de desenvolvimento das forças produtivas é

10Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 267 e ss.11Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 259.

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algo que não requer uma longa demonstração.12 Pensemos,apenas, em como os indivíduos poderiam se desenvolver emtodos os sentidos (omnilateralidade, no dizer de Marx) se, como fim da exploração do homem pelos homens, a jornada detrabalho fosse significantemente reduzida e a burocracia vies-se a desaparecer. O tempo livre que todos teríamos paraamar, fruir obras de arte, filosofar, etc. lançaria os indivíduosnum processo de auto-desenvolvimento sem paralelo na his-tória humana. O que isso significaria para o livre desenvolvi-mento das forças produtivas humanas do sociedade, e o queisso redundaria em bem-estar material para todo o gênero éalgo que apenas pode ser limitadamente antevisto por maisgenerosa que seja nossa imaginação.

Em suma, o fenômeno do estranhamento corresponde àcriação, pelos próprios homens, no fluxo da praxis social, deobstáculos à plena explicitação do gênero humano (e, por-tanto, das individualidades). Ao contrário da alienação, quecorresponde ao momento de afirmação do humano, o estra-nhamento se constitui num momento socialmente posto denegação do humano, uma negação social do ser humano.

O fato de termos tomado o capital e a sociedade bur-guesa como exemplos para expor a categoria do estranha-mento em Lukács pode induzir o leitor ao erro de identificarcapital e estranhamento. Se o capital é um estranhamento,para Lukács disto não decorre que todo estranhamento tenhasua gênese no capital. Nem mesmo que sociedades pré-capi-talistas deconhecessem fenômenos de estranhamento.13 Con-seqüentemente, a superação dos estranhamentos oriundos dasubmissão dos homens ao capital não significa o fim de todosos estranhamentos. Outros estranhamentos surgirão e se

12Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 562.13Lukács, G., op. cit., vol II**, p. 563-4.

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desenvolverão numa sociedade que tenha superado o capital,os quais, por sua vez, deverão ser também superados. Emoutras palavras, a superação do capital e dos estranhamentosa ele associados não significa o fim da história, mas sim aconstrução de uma formação social qualitativamente nova,onde os estranhamentos serão, também, qualitativamente dis-tintos dos estranhamentos que surgem e se desenvolvem numtecido social que tem a exploração do homem pelo homemcomo seu fundamento mais importante.

Em suma, para as individualidades que se consubstan-ciam sob a égide burguesa, o capital é uma potência estranhae molda o destino de cada uma delas. O capital é uma potên-cia impossível de ser atingida na sua essência pela ação dosindivíduos. Por isso, as necessidades da reprodução do capitalse impõem aos indivíduos, na cotidianidade, com uma apa-rente inexorabilidade. A força desumana que submete os ho-mens ao capital é assumida, na cotidianidade, como umaimposição tão intocável quanto a lei da gravidade, isto é, comouma determinação não-humana. A criação humana se faz es-tranha ao próprio homem, o homem não mais se reconhece noque criou: essa é, para Lukács, a essência do estranhamento.

Sublinhemos que, se para Lukács o capital é a fonte maisnefasta de estranhamentos da sociabilidade contemporânea,devemos evitar qualquer identificação entre o capital e estra-nhamento que implique a afirmação de que o desapareci-mento de um levaria, necessariamente, ao desaparecimentodo outro. Se o capital é uma fonte de estranhamentos, certa-mente há estranhamentos que não se originam do capital.

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II- Generalidade humana e superação dos estranha-mentos

Pelo exposto até aqui, deve estar claro que a construçãode uma generalidade humana autêntica está, nos dias de hoje,aos olhos de Lukács, associada à superação do capital. Plenodesenvolvimento humano-genérico e capital são dois termosabsolutamente excludentes, hoje, para Lukács.

Vimos que nem sempre foi assim. A construção da so-ciabilidade burguesa se constituiu em salto fundamental nodevir-humano dos homens; possibilitou que, em escala social,os indivíduos compreendessem que a história é a história hu-mana e, indo além, que tomassem a tarefa prática de mudar orumo da história no sentido desejado. Nisto se constitui o sig-nificado mais profundo da revolução burguesa: inaugurou umperíodo histórico onde prática e teoricamente os homens to-mam a história em suas mãos. Essa intervenção humana, queafirma prática e teoricamente o fato de os homens serem se-nhores da sua própria história, é o que de mais genial a bur-guesia legou à humanidade.

Percebam que há uma diferença essencial, entre esta"era das revoluções" e, por exemplo, a crise do final do sis-tema escravista e sua transformação (lenta, penosa e con-fusa) em feudalismo.

A crise do escravismo costituiu um "beco sem saída".14 Oescravismo, devido às contradições geradas pelo seu própriodesenvolvimento, simplesmente não conseguia mais se repro-duzir. Ao mesmo tempo, temos a inexistência de uma classerevolucionária que desse um sentido à crise. Crise do velhosem qualquer perspectivação do novo: nisso se constitui o ca-

14Além da discussão do "beco sem saída" no capítulo da Ontologia dedicadoà reprodução (Vol II*, p. 295 e ss.), conferir também Vol I, p. 383-4.

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ráter de "beco sem saída" da derrocada do escravismo.A crise do feudalismo, por sua vez, está intimamente arti-

culada à gênese e desenvolvimento de uma classe social que,ao longo dos séculos XVI ao XVIII, construiu (teoricamente)um projeto próprio de uma nova formação social e constituiu(praticamente) uma nova sociabilidade. O que exigiu, com ab-soluta necessidade, não apenas o abandono, mas a destrui-ção da antiga visão de mundo (Weltanschauung) feudal,teocêntrica.

Que o resultado dessa ação da burguesia não corres-ponda exatamente ao idealizado, é uma verdade indiscutível.Que a sociabilidade que veio a ser com a Revolução Francesanão foi aquela da igualdade, liberdade e fraternidade comosonhada por Marat, Herbert e Robespierre é uma evidênciainquestionável. Todavia, esse fato em nada diminui a impor-tância da ação consciente da burguesia na constituição danova sociabilidade. Entre a prévia-ideação e o ente objetivadose interpõe, já vimos, o momento da alienação. No processode objetivação, ao este intervir nas cadeias causais existentese alterá-las, intervêm determinações que terminam por fazernão apenas o ente, mas até mesmo o processo de objetiva-ção, distinto do previamente idealizado.

Estamos aqui, novamente, nos defrontando com aquelecomplexo de problemas que estudamos anteriormente ao tra-tarmos da relação teleologia/causalidade. Vimos como Ikursk,ao levar à prática a construção do machado, desde o inícioenfrenta resistências tanto da natureza (forma e dureza daspedras disponíveis, da madeira, etc.) como sociais (desprezoda coletividade pela recusa de Ikursk em ajudar o esforço co-letivo de enfrentar o tigre), o que o força a ir modificando seuprojeto de machado original. Ao final do processo de objetiva-ção, o machado é distinto daquele previamente idealizado.

Nas suas linhas mais gerais, esse mesmo fenômeno, em

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escala muito ampliada, se verifica na relação entre o projetode transformação social dos revolucionários e a efetiva so-ciabilidade que resulta dos seus atos. As resistências que arealidade oferece à constituição da nova sociabilidade, resis-tências estas cujo elemento fundamental são sempre reaçõesdos indivíduos às novas condições sociais (tanto às novascondições de possibilidades quanto às novas condições já tor-nadas concretas), são rigorosamente imprevisíveis em suatotalidade. O que coloca problemas de extrema complexidadepara a direção política de qualquer revolução.

Devemos também considerar que, como já vimos, todapraxis social, por mais consciente que ela seja, possui sempreum quantum de casualidade. Num processo revolucionário, oacaso joga um papel muito importante, acima de tudo na de-terminação da forma que assume a ruptura com a velha or-dem. Tanto a Queda da Bastilha, em 1789, quando odesencadeamento da Revolução Russa a partir de uma mani-festação contra a fome, no Dia Internacional da Mulher, pelasmulheres trabalhadoras em fevereiro de 1917 em Petrogrado,são processualidades que exibem inequívocos traços de ca-sualidade.

Tal distância — ineliminável — entre intenção e conse-qüências do gesto é, portanto, um componente central dapraxis social, seja ela tão simples como a construção de ummachado ou tão complexa quanto uma revolução.

Isto posto, retornemos ao nosso raciocínio: afirmávamosque o fato de haver uma real distinção entre o projeto revolu-cionário burguês e a ordem social efetivamente construídapela revoluções burguesas em nada diminui, sempre segundoLukács, a importância ontológica do fato de que, com o capita-lismo, pela primeira vez na história os homens se propõem a,conscientemente, tomar a história em suas mãos.

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1- Generalidade humana e liberdade

Abordemos esse complexo de questões por um outro ân-gulo: a problemática da liberdade.

O ponto de partida da tradição marxiana no estudo da li-berdade está no reconhecimento de que o elemento constitu-tivo do ser social são atos alternativos com caráter deresposta. Como vimos, o horizonte para a resposta é dadopelas determinações objetivas da realidade. Nesse contexto, aliberdade seria a possibilidade de escolher, entre as alternati-vas possíveis inscritas no real, aquela mais apta a atender asnecessidades postas pelo devir-humano dos homens.

Foi precisamente dessa angulação, lembra Lukács, queEngels abordou a problemática da liberdade. "A liberdade",afirmou ele, "não consiste em sonhar a independência das leisda natureza, mas no conhecimento destas leis e na possibili-dade, ligada a este conhecimento, de fazê-las atuar segundoum fim determinado. Isto vale tanto para as leis da naturezaexterna, como para as que regulam a existência física e espiri-tual do próprio homem /.../. Liberdade do querer não significaoutra coisa, portanto, senão capacidade de poder decidir comconhecimento de causa."15

Segundo Lukács, Engels estaria correto, em primeiro lu-gar, ao reconhecer que a liberdade é um fenômeno puramentesocial, que opera apenas na relação entre teleologia e causa-lidade que caracteriza os atos humanos.16

Em segundo lugar, ao reconhecer que a liberdade dizrespeito à relação do homem com o mundo em que vive, quea liberdade tem seu momento fundante na transformação doreal pelo trabalho. É no caráter de alternativa do trabalho "/.../

15Engels, F. Anti-Düring, Progress Publishers, Moscou, 1978, Parte I, Cap.XI, p. 140-141.16Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 112.

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Cap. VI - O Estranhamento 123

que se apresenta pela primeira vez em uma figura claramentedelimitada o fenômeno da liberdade"17. Em poucas palavras,"Em uma aproximação, a liberdade é aquele ato de consciên-cia pelo qual surge, com seu resultado, um novo ser posto porele."18

Num primeiro momento, e acompanhando Engels, paraLukács a liberdade se consubstancia em decisões alternativasque são respostas a situações sociais concretas, no movi-mento de transformação da causalidade dada em causalidadeposta; para ele a liberdade é, "/.../ por sua essência ontoló-gica(,) /.../ concreta: ela representa um determinado campo deação das decisões alternativas no interior de um complexosocial concreto no qual se fazem operantes, simultaneamentea ele, objetividade e forças sejam naturais ou sociais."19 Osestados da consciência que não se relacionam com a trans-formação efetiva do realmente existente não configuram, paraLukács, qualquer instância da liberdade.20

Lukács acompanha Engels, portanto, no reconhecimentode que a liberdade é sempre concreta e está sempre relacio-nada à decisão alternativa que está na base de todo ato detrabalho. Em outras palavras, que as determinações do realestão indissociavelmente articuladas à efetivação da liberdadea cada momento histórico, e que por isso liberdade e necessi-dade não são antinômicas. Apenas no interior de uma malhade determinação causais pode a liberdade se efetivar. Repe-timos: fora do ser social não há liberdade.

O distanciamento de Lukács para com Engels, na análiseda liberdade, se inicia por duas observações. A primeira delasconcerne ao fato de a liberdade, enquanto ação com conhe-

17Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 112.18Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 112.19Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 116.20Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 113-4.

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A Ontologia de Lukács124

cimento de causa, ter plena validade apenas na esfera do tra-balho e, ainda que sirva de referência genérica a todas asmanifestações da liberdade, não esgotar o fenômeno na suatotalidade. Lembra Lukács que a liberdade é um dos fenôme-nos "mais multiformes, variáveis e instáveis" do ser social. "Sepoderia dizer que todo setor singular tornado relativamenteautônomo /.../ produz uma forma própria de liberdade."21 Aliberdade jurídica é distinta da política, etc.

Como já tivemos ocasião de expor, segundo Lukács, aestrutura originária da posição teleológica sofre mudançassignificativas quando passamos dos atos teleológicos primá-rios aos secundários. "Essa mudança assume uma qualidadeainda mais decisiva quando o desenvolvimento faz com que,para o indivíduo, o seu próprio modo de portar-se, a sua pró-pria interioridade, torna-se objeto da posição teleológica." Sempretender senão levantar esse aspecto da questão, deixandosua exploração cabal para a Ética, conclui o pensador hún-garo que "Não se pode /.../ derivar por dedução conceitual asnovas formas [de liberdade] daquela originária, as formascomplexas das formas simples /.../."22

Mais uma vez, e aqui apenas faremos referência ao fato,nos encontramos com a identidade da identidade e da não-identidade como forma genérica do desenvolvimento da so-ciabilidade: um ato em si unitário, a efetivação da liberdade notrabalho, dá origem a fenômenos que são, concomitante-mente, distintos e indissociáveis da processualidade originária.Mais uma vez, também, ao contrário do que afirmam algunscríticos de Lukács23, nos encontramos com a afirmação luká-

21Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 112.22Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 124.23As críticas da chamada Escola de Budapeste se tornaram públicas, pelaprimeira vez, com a publicação pela revista italiana Aut-Aut, em seu número157-8 de janeiro/abril de 1977, das críticas que Ágnes Heller, F. Feher, G.Markus e M. Vadja encaminharam a Lukács após a leitura do primeiro ma-

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Cap. VI - O Estranhamento 125

csiana segundo a qual o ser social não é redutível ao trabalho.O que nos interessa, todavia, desse conjunto de ques-

tões, é que o reconhecimento, por Lukács, de que há formasde liberdade distintas da liberdade que se verifica na transfor-mação direta da natureza pelo trabalho humano abre a pos-sibilidade de desenvolver e sofisticar as consideraçõesengelsianas acerca da liberdade. Não se trata mais apenas daforma originária da liberdade encontrada na esfera do traba-lho, mas também de formas distintas em que se particularizaesse fenômeno à medida que a sociabilização complexifica areprodução do mundo dos homens. O estudo particularizadordas principais formas em que se apresenta a liberdade foiprometido por Lukács para a sua Ética. Como sabemos, elefaleceu antes de escrevê-la. Todavia, há notícias de que eleteria deixado algumas centenas de páginas com notas datilo-grafadas e, a publicação delas, há muito prometida, talvezelucide aspectos fundamentais do que seria essa análise.

No contexto da Ontologia, interessa-nos o fato de o reco-nhecimento dessa enorme variedade nas formas particulares,concretas, da liberdade vir associado à afirmação da insufici-ência (e não falsidade) das considerações de Engels para omundo contemporâneo. Para ele, Engels desconheceu umaproblemática que o desenvolvimento do capitalismo no séculoXX evidenciou com muita força: o desenvolvimento das ciên-cias e das forças produtivas pode, ao invés de fundar umacompreensão do mundo "genuína", dar origem a uma meramanipulação tecnológica do real articulada a uma "ontologiafictícia".24

Ao tratar da intentio recta e intentio obliqua vimos como o

nuscrito da Ontologia. A síntese já amadurecida dessas críticas tomouforma sob a pena de Heller, num artigo intitulado "Paradigma della produzi-one e paradigma del lavoro", in Critica Marxista, Ed. Riuniti, Roma,n.4/1981.24Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 122.

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A Ontologia de Lukács126

desenvolvimento do trabalho impulsionou tanto o desenvolvi-mento científico como as concepções de mundo mágicas,animistas, antropomorfizantes, marcadamente religiosas, etc.Já então se manifestava uma primeira forma de articulaçãocontraditória entre manipulação correta do real e produção deuma concepção de mundo fictícia. 25 Tendo por base o enormedesenvolvimento da ciência no capitalismo moderno, Engelsteria previsto, segundo Lukács, que, ao contrário da sociabili-dade intensamente estranhada e com fortes necessidadesreligiosas dos dias atuais, haveria o predomínio de uma Wel-tanschauung científica que desbancaria em definitivo as onto-logias religiosas.

Do ponto de vista da problemática da liberdade, a nãorealização dessa expectativa de Engels e, pelo contrário, ofato de o desenvolvimento da ciência no século XX ter-seconstituído, também, em um dos fundamentos do desenvolvi-mento de uma Weltanschauung de tipo místico, religioso, noscoloca, nas palavras de Lukács, numa "situação paradoxal:enquanto nos estágios primitivos era o atraso do trabalho e dosaber que impedia uma genuína investigação ontológica sobreo ser, hoje é exatamente o fato de o domínio sobre a naturezase dilatar ao infinito que cria obstáculos ao aprofundamento ea generalizações ontológicas do saber, de modo que este úl-timo deve lutar não contra as fantasias, mas contra a sua pró-pria redução a fundamento da sua universalidade prática."26

Em outras palavras, segundo Lukács, a manipulação dos co-nhecimentos científicos, de forma a reduzi-los tão-somente auma dimensão prática de transformação do real, evitando aspotencialidades das quais são portadores para a construçãode uma Weltanschauung não fictícia, "encontra suas raízesmateriais no desenvolvimento das forças produtivas e as suas

25Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 122.26Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 123.

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Cap. VI - O Estranhamento 127

raízes ideais nas novas formas da necessidade religiosas quenão se limitam simplesmente a refutar uma ontologia real, masna prática age contra o desenvolvimento científico."27

Essa situação, segundo Lukács, torna"extremamente problemática a caracterização en-

gelsiana da liberdade como 'a capacidade de poder de-cidir com conhecimento de causa'. De fato, não se podedizer que a manipulação da consciência — em contra-posição às magias, etc. — careça de conhecimento decausa. O problema concreto é, acima de tudo, saberqual a orientação de tal conhecimento de causa; é esseobjetivo da intenção e não apenas o conhecimento decausa que fornece o critério real, do mesmo modo como,também nesse caso, o critério deve ser buscado na rela-ção com a própria realidade. A orientação para uma prá-tica imediata, por mais que essa via seja fundada emtermos lógicos, do ponto de vista ontológico conduz aum beco sem saída."28

As indicações deixadas por Lukács em sua Ontologia nospermitem antever alguns elementos da análise que pretendiadesenvolver acerca da liberdade em sua Ética. Argumenta eleque essa nova situação que vem a ser com o desenvolvimentodo capitalismo no século XX introduz modificações importan-tes na relação entre fim e meio. "/.../ é qualitativamente dife-rente que a alternativa tenha como seu conteúdo somente umjuízo de corretude ou erroneidade determináveis em termospuramente gnosiológicos ou, mesmo, que a própria posição dofim seja o resultado de alternativas cuja origem é humano-so-cial."29

Ou seja, "/.../ a posição do fim não pode ser medida comos critérios do trabalho simples".30 Deve ter por referencial ehorizonte o devir-humano dos homens, o processo de sociabi-

27Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 124.28Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 124.29Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 127.30Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 127.

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A Ontologia de Lukács128

lização. Para ser breve, o critério de valoração da posição dofim deve ser fundado pelo processo de construção da genera-lidade humana-para-si; deve ter na ética seu campo resolu-tivo.31

A insuficiência dessas colocações de Lukács para acompleta resolução dessa problemática da liberdade é umaevidência que não desejamos esconder. Nem, tampouco, odesejava Lukács, que não poucas vezes remeteu a investiga-ção cabal dessas questões para a Ética que pretendia escre-ver. Contudo, nos parece não menos evidente a riqueza dascolocações de Lukács acerca da liberdade. Fundamental-mente, ao superar tanto o beco sem saída da irresolúvel anti-nomia tipicamente idealista entre necessidade (determinismo)e liberdade, como também ao não ser colhido pelos limites aoestudo do fenômeno da liberdade inerentes à postura engelsi-ana.

Uma vez mais, a ontologia lukácsiana se apresenta comoum tertium datur. Em se tratando da liberdade, recusa tanto aantinomia absoluta entre necessidade e liberdade, como tam-bém a redução do fenômeno à sua forma primeira, originária.

Esse tertium datur lukácsiano acerca da liberdade está in-timamente articulado, numa relação de complementaridade,com o reconhecimento de que, com a sociabilidade burguesa,se eleva à consciência, em escala social, de modo inédito, queos homens são os demiurgos de sua própria história. O fato dea humanidade alcançar uma consciência de que seu destino ésocialmente traçado — e não determinado por potências divi-nas, mágicas, etc. — não poderia deixar de ter enormes con-seqüências no desenvolvimento do fenômeno da liberdade.Em linhas gerais, essa nova forma de sociabilidade abre no-vos horizontes para a efetivação da liberdade, potencializa a

31Sobre o caráter específico da ética em Lukács, veremos logo a seguirainda neste capítulo.

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capacidade de liberdade dos homens.Detenhamo-nos sobre esse aspecto.A nova qualidade da sociabilidade contemporânea, o eu

caráter social puro, promove algumas alterações na relaçãoentre os momentos da prévia-ideação e aqueles de objetiva-ção/alienação na constituição da generalidade humana para-si.

Voltemos à história de Ikursk. Para ele, a utilidade do ma-chado, sua maior ou menor adequação aos objetivos previa-mente idealizados, independia de modo quase absoluto dofato de o machado vir a ser, ou não, um momento impulsiona-dor do devir-humano dos homens.

No contexto em que vivia Ikursk, o fato de o processo deobjetivação ser mais ou menos humano, de incorporar deforma mais ou menos intensa as necessidades sócio-coletivaspostas pelo desenvolvimento do gênero, era de pouca impor-tância para o sucesso de sua ação. A utilidade do machadodependia, fundamentalmente, das qualidades do próprio ma-chado (a dureza da pedra, a resistência da madeira, a locali-zação do centro de gravidade dinâmico do conjunto, etc.) enão, por exemplo, da forma mais ou menos estranhada doente objetivado.

Esse estado de coisas se altera radicalmente quando setrata da objetivação do ser-para-si da generalidade humana.Contemporaneamente, o próprio processo de objetivação éportador da crescente necessidade em gerar um ser socialque supere concretamente os estranhamentos predominantesna sociabilidade contemporânea. A objetivação, portanto, devecorresponder ao fato de ser ela a objetivação de uma genera-lidade humana (e de uma individualidade a ela reflexivamentearticulada) que requer a consubstanciação do para-si do sersocial.

Ora, um tal movimento superador dos estranhamentos

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A Ontologia de Lukács130

contemporâneos requer a opção, em escala social, por valoresque expressem o predomínio do humano, das verdadeiras ne-cessidades sócio-genéricas, no processo de objetiva-ção/alienação. O devir-humano dos homens pode se elevar aum patamar de desenvolvimento no qual, ao contrário dos diasatuais, as necessidades humano-genéricas predominem sobreas desumanidades socialmente postas.32 O que agora nosinteressa, para a exposição da relação entre liberdade e su-peração dos estranhamentos contemporâneos, é que, com aobjetivação da generalidade humana para-si, não se trata maisde objetivar um objeto não-humano como um machado33, masda constituição de uma substancialidade humana — isto é, deum gênero e de individualidades — que supere o atual pata-mar estranhado de sociabilidade.

Segundo Lukács, os valores que devem operar na sínteseda generalidade humana para-si são aqueles que superam aforma cindida de ser do mundo sob o capital, apontando paraa constituição de um ser social no qual a crescente afirmaçãodo gênero, em patamares socialmente cada vez mais eleva-dos, requer a plena explicitação das particularidades e dascapacidades individuais. Particularidades, agora, que sãocompreendidas e se constituem enquanto aquilo que de fatosão: particularidades de um gênero cujo modo de ser apenaspode se desenvolver dando espaço para o desenvolvimentode sua heterogeneidade interna.

32Para que essa passagem se efetive se faz necessária a atuação de umvasto campo de mediações que Lukács explora, principalmente, no capítulodedicado à ideologia. Seguir os passos dessa investigação lukácsiana, to-davia, cairia para fora dos limites do nosso estudo. Cf. Lukács, G., op. cit.,vol II**, Capítulo III - “Il momento ideale e l'ideologia”.33Que o machado seja um objeto social, depois do que dissemos não podemais restar dúvidas. Com não-humano queremos apenas assinalar que nãose trata, diretamente, da construção de seres humanos enquanto tais, masde objetos que, pela sua essência, são distintos dos indivíduos, ainda quesociais.

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A efetivação prática, material, de relações entre os ho-mens que possibilitem esse pleno desenvolvimento do pro-cesso de devir-humano dos homens é o que Lukács, apósMarx, denominou de comunismo. E os valores que devem cor-responder a prévias-ideações que superam o capital são osvalores éticos.34

Essas palavras nos remetem, diretamente, ao estudo doque seria o nódulo da ética lukácsiana, a partir das indicaçõesdeixadas em sua Ontologia.

2- Ética e generalidade humana-para-si

Ao tratar da reprodução social, vimos como a sua conti-nuidade requer mediações que tornem socialmente reconhecí-veis as necessidades sócio-genéricas postas pelo devir-humano dos homens, com isso possibilitando a sua elevaçãoà consciência em escala social. Argumentamos que, segundoLukács, esta é a base ontológica para a gênese e desenvolvi-mento de complexos sociais como a moral, o direito, os cos-tumes, a tradição, etc. Também argumentamos que entre aética e os outros complexos que atuam nessa esfera, há umadiferença fundamental: apenas a ética faz a mediação da su-peração da dualidade dicotômica entre indivíduo e sociedade.Naquele momento essas considerações foram suficientes. To-davia, agora se faz necessário retomar a discussão lukácsianaacerca da ética, para poder avançar na exploração da cone-xão entre liberdade e construção da generalidade humanapara-si.

Como já afirmamos seguidamente, a Ontologia foi pen-sada como obra preliminar à Ética que Lukács não chegou aescrever. Por isso, na Ontologia, Lukács não foi para além deum breve esboço da "simples, elementar constituição ontoló-

34Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 328-331.

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A Ontologia de Lukács132

gica" da ética35. Ele assinala tão-somente que "o costume, atradição, mas de maneira mais explícita, o direito e a moral"têm a função de afirmar, frente às aspirações particulares dosindivíduos, a sua sociabilidade, seu pertencer ao gênero hu-mano que vai surgindo no curso do desenvolvimento social36.Portanto, a base de ser dos costumes, da tradição, do direito eda moral é a contradição existente entre o escopo da particu-laridade das decisões alternativas e as necessárias conexõesontológicas desses mesmos atos com a generalidade humana.

Todavia, o fundamento ontológico da ética não pode serencontrado nessa dualidade. "Apenas na ética", afirmaLukács, "é eliminado /.../ (esse) dualismo", nela "a superaçãoda particularidade do singular alcança uma tendência unitária:a exigência ética se apodera do centro da individualidade dohomem agente"37. O que distingue, portanto, a ética do cos-tume, da tradição, da moral e do direito é, segundo Lukács, asuperação da individualidade que entende sua particularidadecomo antinômica à existência genérica. Ao se apoderar daindividualidade, a "exigência ética" eleva à generalidade o ho-rizonte das finalidades operantes nas decisões alternativas decada indivíduo; isto é, faz do indivíduo uma individualidadeautêntica, genérica; torna-o consciente de ser membro do gê-nero humano. Dessa forma, eleva qualitativamente os valoresoperantes em cada decisão alternativa, conduzindo de umaescala parametrada pelos interesses mais imediatos e particu-lares a uma escala genérica, que tem como horizonte a eleva-ção do patamar de generalidade humana já efetivado peloshomens. Nas palavras de Lukács, "é uma escolha-decisão di-tada pelo preceito interior de reconhecer como dever próprio oquanto se conforme à própria personalidade, é isto que ata os

35Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 328/CCXXXV.36Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 327-328/CCXXXV.37Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 328/CCXXXV.

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fios entre o gênero humano e o indivíduo que supera a própriaparticularidade"38.

Em outras palavras, a exigência ética, ao ser investidacomo centro da individualidade, conduz o dever individual aser reconhecido como uma exigência da própria personalidadeem cada situação concreta; ser indivíduo e ser membro dogênero humano não formam mais dois pólos antinômicos, masdois momentos de um mesmo ser: a individualidade enquantopartícipe de um gênero elevado ao seu ser-para-si.

Certamente, a unicidade biológica e a particularidade decada indivíduo são dados ontológicos inelimináveis. Contudo,como já vimos, em Lukács, a individualidade só pode vir a serem contexto social, isto é, se suas decisões alternativas singu-lares adentram pelo processo de generalização em escala so-cial. A individualidade é, segundo o filósofo húngaro, umacategoria social e, por isso, sua explicitação não se contrapõeantinomicamente à sociabilidade, antes exige uma interaçãocada vez mais intensa entre a totalidade social e o indivíduosingular concreto. A figura dessa exigência no seu patamarmais elevado é, segundo Lukács, a ética; é esta que "ata osfios entre o gênero humano e o indivíduo que supera sua pró-pria particularidade"39.

A "extrema" diferença entre os valores que "impelem" asdecisões alternativas à mera particularidade e, de outra parte,à autêntica generalidade humana, é um indício seguro decomo, para Lukács, "neste desenvolvimento do homem osvalores têm um peso ontológico notável"40.

Ou seja, uma vez que o desenvolvimento sócio-global te-nha construído a possibilidade objetiva de elevação do gêneroao seu para-si, a atualização dessa possibilidade depende de

38Idem, ibidem.39Idem, ibidem.40Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 329/CCXXXVI.

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decisões alternativas que, pela sua qualidade e pela sua ex-tensão, recebem impulsos decisivos dos valores genéricos. Senos lembrarmos que, para Lukács, a adoção ou rejeição decertos valores pode romper, em alguns momentos cruciais, amalha de determinações legais de uma dada formação social;se nos lembramos, também, que a freqüência histórica dessesmomentos cruciais e o peso ontológico dessas decisões valo-rativas aumentam conforme se intensifica o processo de so-ciabilização, torna-se evidente como, para nosso autor, osvalores têm, na superação da particularidade estranhada, "umpeso ontológico notável".

É fundamental, para a correta compreensão do pensa-mento de Lukács, que não percamos jamais de vista que apossibilidade objetiva de que o gênero humano "configure umser social é criada pelo desenvolvimento social no seu desdo-bramento real"41. Os valores e processos valorativos só podemser ativos no plano do ser desde que o "desenvolvimento so-cial no seu desdobramento real" crie a "possibilidade objetiva"de isto vir a ocorrer. No entanto, a possibilidade objetiva deelevação à generalidade humana não é sua objetivação real— entre uma e outra medeia a decisão alternativa concreta deindivíduos concretos em circunstâncias concretas, ou seja,medeia o ato teleológico. Se, em Lukács, o campo real depossibilidades aberto às decisões alternativas é definido pelapergunta, pelas circunstâncias, isto em nada diminui o papeldos valores no encaminhamento de uma alternativa dentre asdiversas igualmente possíveis.

Portanto, para Lukács, o poder normatizador da ética nãopode ser fundado por nenhuma dedução lógica ou gnosioló-gica, não há força que consiga operar o milagre de conferirpeso ontológico a construtos valorativos não fundados no ser.

41Lukács, G., op. cit., vol II*, p. 328/CCXXXV.

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No entanto, uma vez síntese das possibilidades e necessida-des objetivas do ser humano num momento histórico determi-nado, os valores podem ter peso considerável — às vezesdeterminantes — no desdobramento real de uma dada situa-ção. E, em alguns casos, mesmo que tenham sido deduzidoslógica ou gnosiologicamente. Mas, então, os valores influen-ciam o desenvolvimento social pelo fato de corresponderem àsnecessidades objetivas de uma dada situação e não por teremsido — ou melhor, apesar de terem sido — fundados em ter-reno ontologicamente falso. Em tais circunstâncias, a aplica-ção prática dos preceitos valorativos produzem efeitos que,normalmente, negam frontalmente seus pressupostos lógico-abstratos.

Em suma, para Lukács, o desenvolvimento da sociabili-dade atingiu, com o capitalismo, um patamar de potencialida-des para a realização da liberdade qualitativamente distintadas formações sociais anteriores. Na sociedade contemporâ-nea, a consciência socialmente disseminada de que o homemé o único senhor do seu destino abre possibilidades inéditas àobjetivação do devir-humano dos homens.

Todavia, a plena realização dessas potencialidades re-quer a superação dos estranhamentos que predominam nasociabilidade contemporânea, os quais têm no processo deacumulação de capital o seu fundamento ontológico último.Com o capitalismo, a não-humanidade socialmente construídapassa a ser o momento predominante da reprodução social.

Como essa superação requer a objetivação da generali-dade humana para-si e não a mera transformação da natu-reza, ela apresenta peculiaridades frente a outrasobjetivações. Acima de tudo, desdobra uma relação entremeio e fim qualitativamente nova se comparada com a relaçãotípica dos atos de trabalho. Nessa nova relação, os critérios de

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julgamento do êxito ou fracasso, os critérios de valoração dosresultados da praxis, emanam diretamente do complexo pro-cesso de constituição e reprodução da generalidade humanapara-si. Nessa nova relação entre meio fim, os valores jogamum "peso ontológico notável" — e é tarefa específica da éticaplasmar em valores que sejam socialmente reconhecíveis, eque exprimam o para-si da generalidade humana e da indivi-dualidade, as necessidades humano-genéricas que vêm a serpelo devir-humano dos homens.

Com o comunismo, por um lado, e com a ética, por outro,chegamos ao limite que Lukács se propôs à sua ontologia. Opasso seguinte seria desvelar, em sua processualidade maisíntima, o complexo social formado pela ética, e sua relaçãocom a vida cotidiana, na consubstanciação da generalidadehumana-para-si. O fato de a morte ter impedido Lukács deconcretizar esse programa de pesquisa confere enorme impor-tância às indicações acerca da ética por ele deixadas, deforma esparsa, ao longo da Ontologia, mas estão muitoaquém da resolução cabal dos problemas que aqui se apre-sentam. Resta aos lukácsianos, por isso, entre as inúmerasoutras tarefas que a história propõe, avançar a partir dos indí-cios deixados pelo pensador húngaro. Que estas páginas sir-vam de desafio e estímulo ao desenvolvimento dainvestigação deixada incompleta por Lukács.

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Page 135: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

CONCLUSÃO

A trajetória do marxismo, neste século, se inicia tendocomo problema central, imediato, a transição revolucionáriapara uma sociabilidade socialista. A problemática continui-dade/ruptura entre o velho e o novo, entre o capitalismo e osocialismo, é a pedra de toque do debate político, cultural efilosófico.

A vitória do capital sobre as tentativas de sua superação,vitória esta que na década de 1930 (hoje podemos dizer commais certeza do que então) já estava em fase de consolidaçãolevou o marxismo "oficial" a uma paralisia teórica fundada nobeco sem saída de tomar como tarefa teórica central provar terum caráter socialista formas de sociabilidade (a URSS e osPCs) que nunca foram para além do capital1. Fortalecem-se asconcepções de cunho feuerbachiano no interior do marxismoda III Internacional e, por outro lado, numa reação a isto, con-solida-se a trajetória peculiar da Escola de Frankfurt. No seuocaso, pontuado pelo último Habermas, a tradição crítica ter-

1A esse respeito, dois textos são insubstituíveis. O primeiro, de FernandoClaudin, La Crisis del Movimiento Comunista, Ruedo Ibérico, 1970, e deCarlos Forcadell, Parlamentarismo y bolchevización - el movimiento obreroespañol 1914-18, Ed. Critica, Barcelona, 1978.

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A Ontologia de Lukács138

minou por se encaminhar para o neo-kantismo, dela não maissurgirão soluções para os graves problemas teóricos não re-solvidos pela tradição marxista.

O marxismo estruturalista que, como argumentaThompson em A Miséria da Teoria, é a expressão acadêmicado stalinismo, terminou por se esgotar num estéril debate con-ceitual que tem no real uma referência cada vez menos signifi-cativa. Não apenas para Althusser e Bourdieu/Passeron, mastambém para Gabriel Cohen, o fundador do auto-denominadomarxismo analítico, o real não é mais a instância resolutiva doteórico.

O marxismo ontológico, cujos teóricos mais expressivossão Lukács e Gramsci, ao mesmo tempo em que reafirma ocaráter comunista da obra marxiana, volta-se a demonstrarque o seu caráter revolucionário também está em conceber omundo dos homens enquanto uma nova forma de ser, umanova materialidade, que se consubstanciaria pela construçãoteleologicamente posta de uma nova objetividade. A dialetici-dade e o materialismo da obra marxiana seriam assim comple-tamente reafirmados através da postulação da absoluta (poisontológica) sociabilidade e historicidade da substância social.2

Desses pressupostos ontológicos mais gerais, Lukácsdesenvolve considerações que são valiosas para as discus-sões que se travam no interior do marxismo hoje. Demonstraque a especificidade ontológica do mundo dos homens frenteà natureza é que, no ser social, a substancialidade é o subje-tivo objetivado, a causalidade posta. Uma cadeira não é omaterial (ferro, madeira, etc.) de que é feita, mas sim estematerial organizado segundo uma lógica-ontológica que ape-

2Para uma discussão mais detalhada do marxismo estruturalista, da Escolade Frankfurt e do marxismo ontológico, cf. Lessa, S. «Lukács e o marxismocontemporâneo». Rev. Temáticas, ano 1, nº ½ , 2º sem 1993,IFCH/UNICAMP.

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Page 137: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

Conclusão 139

nas pode ser posta através de uma ação teleologicamenteorientada, ou seja, através de um ato de trabalho humano.

A teleologia, portanto, na esfera social (e apenas nela), éuma força objetiva, existe como instância capaz de ordenar oreal de modo a criar entes e relações anteriormente inexisten-tes, ontologicamente novos. Esses novos entes e relaçõesnão poderiam vir a ser senão pela modificação teleologica-mente orientada da materialidade anteriormente existente.

Todavia, não menos verdadeiro, segundo Lukács, é queessa nova materialidade, essa nova esfera ontológica — omundo dos homens — é um mundo objetivo, distinto da subje-tividade que operou a teleologia inerente a toda transformaçãodo existente pelos homens. A cadeira tem efetivamente umahistória distinta da história do seu criador, e esta autonomia dahistória do objetivado em relação à consciência que o criou éum elemento ontologicamente ineliminável na relação entre ohomem e o mundo dos homens, entre a prévia-ideação e oobjeto posto pelo ato de objetivação que é o trabalho.

As relações sociais e os objetos assim criados, por seremobjetivos, têm uma ação de retorno sobre a história da huma-nidade que não pode ser desprezada nem absolutizada. Elesconstituem o horizonte que delineia os problemas e as solu-ções possíveis em cada momento histórico. Esses horizontes,sempre, são sociais e históricos; ou seja, por serem construtossócio-históricos podem ser — e são —a todo momento modifi-cados pelas ações humanas.

A concepção da substancialidade humana enquanto cau-salidade posta representa uma ruptura radical com as duasoutras principais vertentes do marxismo neste século.

Rompe com o marxismo estruturalista ao integrar a subje-tividade humana enquanto elemento ontologicamente funda-mental ao mundo dos homens. A teleologia do trabalho é umaforça objetiva na consubstanciação desta nova forma de ser;

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A Ontologia de Lukács140

as categorias sociais apenas podem surgir (e se desenvolver)no interior de processualidades historicamente concretas, emdeterminação reflexiva com a objetivação de novas posiçõesteleológicas. Toda a busca de determinações conceituais dascategorias sociais (como forças produtivas e relações de pro-dução), de modo a evitar contradições lógicas (tal como sepropõe o marxismo estruturalista), pode agora ser posta emum novo campo de possibilidades resolutivas. Mas, com essa"transferência" de campos de resolução, a própria questão sealtera em profundidade. Analogamente, concepções como aoposição material/social proposta por Cohen, que analisamosno Prefácio, podem ser substituídas por uma concepção uni-tário-dialética capaz de explicar o mundo dos homens com suadinâmica específica.

Rompe com certa tradição frankfurtiana ao manter a de-terminação da consciência pelo ser e ao reafirmar a predomi-nância da esfera econômica sobre a totalidade social. Noentanto, concebe essas relações como relações de determi-nação reflexiva; ou seja, o predomínio ontológico da esferaprodutiva sobre a totalidade social apenas pode se dar concre-tamente por meio da objetivação cotidiana de infinitos atosconcretos teleologicamente postos. Esses atos, por sua vez,frente às pressões e demandas postas pela dinâmica reprodu-tiva da formação social em que estão inseridos, têm sempreum caráter de alternativa, de escolha. De modo que a predo-minância da esfera econômica sobre a totalidade social temcomo mediação ineliminável a cotidianidade com suas múlti-plas e variáveis determinações, o que faz com que essa pre-dominância possa ser tudo menos mecânica, imediata.

Ou, em outras palavras, essa situação faz com que nãose possa determinar, a priori, uma forma genérica abstrata elogicamente fixa do predomínio do econômico sobre a totali-dade social. A cada momento essa predominância se afirma

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Conclusão 141

de maneira distinta, o que pode incluir, momentaneamente,até mesmo a sua aparente negação: uma radical alteração daesfera econômica pela ação da totalidade social, como ocorrenos momentos revolucionários.

Metodologicamente, as possibilidades resolutivas abertaspela ontologia lukácsiana são enormes, pois rompe com a re-lação de exterioridade entre o sujeito e o objeto sem cair naidentidade absoluta de um com o outro. Nem Feuerbach nemHegel: temos aqui um legítimo tertium datur. O objeto é porta-dor de suas determinações ontológicas específicas, e é eleque comporá o campo resolutivo do grau de veracidade deuma teoria. Todavia, esse objeto nem é estático nem deixa deser, em algum grau, subjetividade objetivada. Portanto, é ocampo da objetividade que coloca as demandas metodológi-cas necessárias à sua apreensão pela subjetividade, não exis-tindo por isso nenhuma questão metodológica que possa tersua resolução a priori no campo mais abstrato da lógica e dorigor meramente formal. Essa postura se distingue radical-mente do empirismo e do positivismo ao considerar o objetocomo histórico. Mesmo a natureza mais pura, nesse sentido,se constitui enquanto objeto ao longo da história, sem que issoem nada diminua sua objetividade ontológica primária.

As investigações lukácsianas parecem apontar que nem omaterialismo (a determinação da consciência pelo ser) nem adialética (movimento do real enquanto complexo de comple-xos) estão esgotados. A investigação sistemática da ontologialukácsiana, ainda no seu início, tem revelado potencialidadessupreendentes para a compreensão do mundo em que vive-mos. Isto, todavia, não significa desconhecer que graves pro-blemas não tiveram sua resolução delineada, nem sequer nostermos mais gerais, pelo filósofo húngaro. Um dos problemasmais evidentes se relaciona ao elevado preço pessoal e teó-

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A Ontologia de Lukács142

rico que pagou à tragédia deste século: até sua morte, Lukácsconsiderou a URSS como socialista — ainda que com defor-mações —, e a defendeu enquanto tal. As conseqüênciasdesta posição transpassaram para a sua investigação ontoló-gica ao tratar da política enquanto complexo social. As suasanálises acerca do Estado e do Direito também refletem, aindaque de modo mais mediado, essa sua posição política.

Apesar dos problemas e das debilidades pontuais que aOntologia de Lukács apresenta, para nós, marxistas deste fi-nal de século, há nela um enorme manancial a ser exploradotendo em vista nossa sobrevivência enquanto corrente intelec-tual e política. Para os não marxistas, os escritos do últimoLukács se constituem numa interlocução indispensável, dadaa originalidade, profundidade e abrangência do campo de in-vestigações ontológicas que descortina.

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Bibliografia

A bibliografia sobre Lukács é muito vasta e rica. Não ape-nas no exterior, mas também em nosso país, há uma contínuae diversificada investigação, tanto do ponto de vista dos obje-tos, quanto também das perspectivas, tendo por alvo a obrado filósofo húngaro. Aqui procuraremos apenas listar os textosque nos parecem os mais adequados ao iniciante; para umabibliografia mais completa contatar o Centro de Documen-tação Lukács, na Biblioteca Central da Universidade Federalde Alagoas, que possui um levantamento bibliográficobastante atualizado.

Antunes, R. e Rego, W. (orgs) Lukács: um Galileu no século XX. Ed.Boitempo, SãoPaulo, 2ª edição, 1996.

Chasin, J. «Lukács: vivência e reflexão da particularidade». RevistaEnsaio nº9, Ed. Ensaio, São Paulo, 1981.

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Page 142: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

A Ontologia de Lukács144

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Page 143: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

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Page 144: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

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Page 145: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

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Page 146: A Ontologia de Lukacs: uma introdução - Sergio Lessa

Este livro foi composto comtipo Arial, 11/13 criado em1763 por Hans Jungen Feherpara faciliar a leitura de seu fi-lho John, deficiente visual.Impresso na Gráfica da UFALem julho de 1997.

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