o materialismo de lukacs e a critica ao determinismo revisão

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IV COLOQUIO INTERNACIONAL “TEORÍA CRÍTICA Y MARXISMO OCCIDENTALEL PENSAMIENTO TARDÍO DE GYÖRGY LUKÁCS O MATERIALISMO DE LUKÁCS E A CRITICA AO DETERMINISMO. Nome: André Guimarães Augusto Instituição: Universidade Federal Fluminense Introdução O marxismo tem sido muitas vezes identificado com teses deterministas, com o determinismo tecnológico e outras variantes do economicismo. Tal determinismo se justificaria como uma consequência do materialismo: as entidades naturais – identificada com a matéria, exclusivamente física e organizada de forma mecanicista – guardariam uma relação de antecedência necessária e exaustiva com as sociais. Assim, o determinismo resultaria do materialismo reducionista/mecanicista. A obra de Lukács nos oferece poderosos argumentos que conformam um materialismo que, preservando o monismo ontológico, rejeita o determinismo. Por um lado, na ontologia do ser social de Lukács pode ser identificados o caráter histórico de toda realidade material, a interação de complexos, uma realidade material estruturada em diferentes níveis de ser, e o fenômeno da emergência que compõe um materialismo dialético incompatível com as teses reducionistas e mecanicistas do determinismo. Além disso, Lukács destaca o caráter ontológico da casualidade que nega a relação exaustiva entre dois estados do mundo, característica do determinismo, sem, no entanto recair no irracionalismo do qual foi forte critico. Nesse artigo pretendo desenvolver e apresentar as teses de Lukács sobre o materialismo dialético como uma forma de rejeição da interpretação determinista do marxismo. De início é definida a tese determinista, apresentada sua ligação com o materialismo e são apresentados alguns autores que interpretam o marxismo de forma determinista. Na segunda seção são apresentados os argumentos de Lukács contra o determinismo, demonstrando que esse não é uma decorrência necessária do materialismo e que, assim, o irracionalismo não é a única alternativa ao determinismo.

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Page 1: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

IV COLOQUIO INTERNACIONAL “T EORÍA CRÍTICA Y MARXISMO OCCIDENTAL ” EL PENSAMIENTO TARDÍO DE GYÖRGY LUKÁCS

O MATERIALISMO DE LUKÁCS E A CRITICA AO DETERMINISMO . Nome: André Guimarães Augusto Instituição: Universidade Federal Fluminense Introdução

O marxismo tem sido muitas vezes identificado com teses deterministas, com o

determinismo tecnológico e outras variantes do economicismo. Tal determinismo se

justificaria como uma consequência do materialismo: as entidades naturais –

identificada com a matéria, exclusivamente física e organizada de forma mecanicista –

guardariam uma relação de antecedência necessária e exaustiva com as sociais. Assim, o

determinismo resultaria do materialismo reducionista/mecanicista.

A obra de Lukács nos oferece poderosos argumentos que conformam um

materialismo que, preservando o monismo ontológico, rejeita o determinismo. Por um

lado, na ontologia do ser social de Lukács pode ser identificados o caráter histórico de

toda realidade material, a interação de complexos, uma realidade material estruturada

em diferentes níveis de ser, e o fenômeno da emergência que compõe um materialismo

dialético incompatível com as teses reducionistas e mecanicistas do determinismo.

Além disso, Lukács destaca o caráter ontológico da casualidade que nega a relação

exaustiva entre dois estados do mundo, característica do determinismo, sem, no entanto

recair no irracionalismo do qual foi forte critico.

Nesse artigo pretendo desenvolver e apresentar as teses de Lukács sobre o

materialismo dialético como uma forma de rejeição da interpretação determinista do

marxismo. De início é definida a tese determinista, apresentada sua ligação com o

materialismo e são apresentados alguns autores que interpretam o marxismo de forma

determinista. Na segunda seção são apresentados os argumentos de Lukács contra o

determinismo, demonstrando que esse não é uma decorrência necessária do

materialismo e que, assim, o irracionalismo não é a única alternativa ao determinismo.

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I. determinismo, materialismo e marxismo.

A primeira grande dificuldade do debate sobre o materialismo histórico e o

determinismo é a definição dos termos. Muitas vezes a caracterização do determinismo

está ausente no debate, ou é feita de forma vaga e imprecisa, com muitos significados. A

discussão filosófica sobre o determinismo foi caracterizada por Earman (1986) como

uma “torre de babel”; diante da imprecisão e amplitude da discussão sobre o tema o

melhor é iniciar por uma caracterização o mais precisa possível da tese do

determinismo.

Dependendo de como se defina o determinismo e as suas implicações, suas

origens são muito remotas e referem-se a um mundo governado pela vontade dos deuses

(Salmon, 1998). O moderno determinismo, no entanto, está fortemente associado a uma

interpretação da física clássica newtoniana, estabelecida por Laplace1. Nessa

interpretação as leis da mecânica determinam completamente o movimento das

partículas materiais; todos os fenômenos naturais podem ser completamente explicados

pelas leis da mecânica e nada é incapaz de explicação dessa forma. (Salmon, 1998,

p.29)

A definição clássica de determinismo é aquela oferecida por

Laplace:

“We ought to regard the present state of the universe as the effect of its antecedent state and the cause of the state that is to follow. An intelligence knowing all the forces acting in nature at a given instatant, as well as the momentary positions of all the things in the universe, would be able to comprehend in one single formula the motions of the largest bodies as well as the lightest atoms in the world, provided that its intellect were sufficiently powerful to subject all to analysis; to it nothing would be uncertain, the future as well as the past would be present to its eyes.”[enfase adicionada](Laplace, apud Earman, 1986, p.7)

A definição de Laplace oferece uma primeira aproximação à tese determinista ao

mostrar a que ela se refere: o determinismo estabelece a existência de um vínculo entre

dois estados do mundo. Nesse sentido deve se assinalar, em primeiro lugar, que o

determinismo é uma tese ontológica, se refere à estrutura do mundo (Earman, 1986,

1 Earman (1986) argumenta que a física newtoniana não é determinista.

Page 3: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

p.7), embora a definição de Laplace inclua um elemento de natureza epistemológica, a

respeito do conhecimento do mundo, que é a previsibilidade.

Laplace estabelece uma relação entre dois estados do mundo que é de causa e

efeito. Nesse sentido o determinismo poderia ser reduzido a uma afirmação sobre o

mundo, a de que tudo tem uma causa. Mas essa afirmação sobre o mundo pode ser

entendida como resultante da razão pura, uma afirmação a priori. Dessa forma o

determinismo seria uma tese lógica, definível a partir da razão e identificado com o

principio da razão suficiente – de que algo não pode acontecer sem que uma causa o

produza – enunciado por Leibniz ou da causação universal, – a de que tudo que

acontece se segue de algo de acordo com uma regra – enunciado por Kant (Salmon,

1998, p.34). Enunciado dessa forma, como verdade racional a priori, o determinismo se

identifica com a própria racionalidade e passa a ser tomado como condição absoluta

para o entendimento racional do mundo, para a ciência. Essa interpretação aparece, por

exemplo, em Nagel, (1960) segundo o qual, (…) to abandon the deterministic principle

itself, is to withdraw from the enterprise of science.”p.317

Mas a formula de Laplace é mais do que uma afirmação puramente lógica sobre

causa e efeito; ela fala de um futuro que pode ser exaustivamente conhecido. Já na

versão logicista do determinismo como causa, o sentido implícito de causa é o da causa

eficiente, excluindo, por exemplo, as causas finais. Isso significa que o moderno

determinismo se identifica com o determinismo mecânico e não com uma outra versão

possível deste, a do determinismo teleológico (Salmon, 1998, p.37) – diferença que será

novamente aludida mais adiante. Além do mais, conforme afirma Earmen (1986, p.6)

para nos aproximarmos do determinismo partindo da existência de causas no mundo, é

necessário acrescentar à formula de que tudo tem uma causa, a de que as mesmas

causas produzem sempre os mesmos efeitos. Assim uma definição meramente lógica

do determinismo como relação aprioristica de causa e efeito, só tem conteúdo e ganha

sentido a partir de afirmações sobre o mundo: a de que existem causas no mundo - o que

é insuficiente para definir o determinismo – a de que cada estado de mundo tem sempre

uma causa, e de que cada causa sempre e inevitavelmente leva ao mesmo efeito.

Se a noção de causalidade tout court não é suficiente para definir a tese

determinista que elementos seriam o suficiente para defini-la? A relação entre dois

estados do mundo que define o determinismo foi caracterizada por Nagel (1960; p.294)

como do estado antecedente como condição necessária e suficiente para ocorrência do

estado conseqüente. Já para James (1884), a relação é de que um estado que estabelece

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e decreta de forma absoluta o outro; finalmente em Hoeffer, C. (2010) a relação entre

os dois estados do mundo é entendida como de fixação pelas leis naturais, o que

segundo ele significa que um estado acarreta logicamente o outro, definição está

presente também em Salmon (1998, p.33).

O que sobressai em todas essas definições é que o vinculo entre dois estados do

mundo proclamado pelo determinismo é, em primeiro lugar, necessário. A idéia de

relação necessária é explicita em Nagel e em James e está implícita na relação lógica

suposta por Hoeffer e Salmon; não há condição que intervenha entre um estado do

mundo e outro de forma que a ocorrência de um não leva a de algum outro.

Mas a existência de vinculo necessário entre estados do mundo não é suficiente

para proclamar a tese do determinismo. O determinismo estabelece que o vínculo entre

dois estados do mundo é tal que um “acarreta” ou é “condição” de outro, o que implica

em uma relação de antecedência. Ou seja, a ocorrência de um estado do mundo é

anterior a de outro – seja no sentido temporal ou no sentido meramente lógico. É

importante ressaltar a natureza dessa anterioridade como não sendo exclusivamente

temporal; o determinismo na física, por exemplo, pode prescindir da antecedência no

sentido temporal, uma vez que a própria apreensão do tempo depende da física,

podendo a tese determinista pode ser definida como relação entre mundos possíveis

(Earman, 1986). O que a antecedência em um sentido meramente lógico implica é que

um estado do mundo antecedente acarreta o conseqüente – mesmo que, em termos

temporais, ele paradoxalmente só ocorra depois do conseqüente.

Com isso têm-se os primeiros elementos para definir a tese determinista: essa

postula a existência de uma relação de antecedência necessária entre dois estados do

mundo: a ocorrência de um estado do mundo antecedente acarreta de forma necessária a

de algum estado conseqüente. A característica de relação de antecedência necessária

entre dois estados do mundo, porém, não é suficiente para caracterizar o determinismo.

A tese determinista sustenta que a relação entre dois estados do mundo deve ser única.

Isto é um estado do mundo está associado de forma necessária a somente um outro

estado do mundo. Repare-se aqui que a necessidade implica que um estado do mundo

está vinculado a algum outro; o quesito de unicidade, mais restritivo, implica que um

estado do mundo está vinculado a somente um outro.

Além de necessário e único, a relação entre os dois estados do mundo

proclamada pelo determinismo é exaustiva: um estado do mundo acarreta de forma

completa em outro estado do mundo; ou seja, nenhuma característica de um estado do

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mundo conseqüente pode não estar vinculada a alguma característica do estado de

mundo antecedente.

Deste modo o determinismo é uma tese sobre a estrutura do mundo que afirma a

existência de um vínculo necessário, antecedente, único e exaustivo entre dois estados

do mundo, isto é, de que um único estado do mundo antecedente esta vinculado de

forma necessária a um único estado do mundo conseqüente, no que diz respeito a

todas as suas características. Esse vínculo entre estados do mundo pode ser postulado

como causalidade e ser formulado como leis naturais; mas em si a causalidade e as leis

não são idênticas ao determinismo.

O determinismo como tese ontológica acarreta a inevitabilidade da ocorrência de

determinados estados do mundo; se um estado do mundo antecedente está vinculado de

forma determinista - isso é de forma necessária, única e exaustiva - a outro conseqüente

a ocorrência deste é inevitável, isto é, não há nada que previna a sua ocorrência.

Conforme Earman (1986, p.18), “Laplacian determinism entails one kind of non-trivial

inevitability: given the way things are now, the future can’t be other than it will be

(…)”. Segundo Hoffer (2010) a inevitabilidade não significaria necessariamente o

fatalismo, na medida em que se desvincula a existência de vontade divina das leis

causal-naturais; isto é, a inevitabilidade significaria fatalismo se o vinculo determinista

entre dois estados do mundo incluísse uma finalidade, a intenção de uma consciência.

Se por um lado é verdade que a tese determinista não implica necessariamente a

existência dessa finalidade nos vínculos entre os estados do mundo, também não é com

ela incompatível; em outras palavras o determinismo não elimina a possibilidade da

existência de causas finais. Nesse sentido Salmon (1998, p.37) distingue o

determinismo mecanicista – onde os vínculos entre os diferentes estados do mundo são

entendidos como causa eficiente - do teleológico – onde esses vínculos são entendidos

como causa final.

Uma possível consequência de inevitabilidade – fatalista ou não – é que a ação

humana não pode modificar a ocorrência de determinados estados do mundo; em outras

palavras o determinismo seria incompatível com a livre escolha. Essa é uma questão

intensamente debatida na filosofia não sendo possível aqui esgotar todos os seus

aspectos; no entanto essa questão é inevitável e deve se dar uma primeira aproximação a

ela a partir da definição da tese do determinismo desenvolvida anteriormente. Se o

determinismo estabelece que o vínculo entre dois estados do mundo é exaustivo, e se as

ações do homem fazem parte de um estado do mundo, então as ações do homem estão

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vinculados de forma necessária e única a um estado do mundo antecedente; em outras

palavras, dado determinado estado do mundo antecedente, os homens não poderiam ter

agido de outra forma. Nesse sentido o determinismo é incompatível com a escolha livre

dos homens – entendida, em uma primeira aproximação, como o fato dos homens

poderem agir de formas diferentes nas mesmas circunstancias. O determinismo – e a

conseqüente ausência de livre escolha - não significa, no entanto que as ações humanas

não tenham efeitos; conforme assinala Earman(1986, p.19): .”Fatalism can allow that

our actions have effects. It is rather that the hand of Fate- - as it acts here through the

laws of nature – shapes the course of events so that the effects of our actions bring about

the fated event.”

A tese do determinismo foi apresentada até aqui como uma tese ontológica, que

diz respeito à estrutura do mundo. Como consequência epistemológica, o determinismo

afirma que é possível realizar inferência sobre o futuro, dada a estrutura do mundo; no

entanto, o determinismo da forma como foi definido anteriormente não é suficiente para

implicar a previsibilidade acurada de todos os estados do mundo. À tese do

determinismo é preciso acrescentar como elemento que compõe o estado do mundo a

existência de “An inteligence knowing all the forces acting in nature at a given instatant,

as well as the momentary positions of all the things in the universe,”(Laplace , apud

Earman, 1986, p.7) para que a previsibilidade seja possível. Se tal inteligência - o

“demônio de Laplace” – não existe, isto é, se esta além da capacidade de qualquer

inteligência o poder computacional para prever de forma exaustiva o futuro, o

determinismo não implica necessariamente a previsibilidade em todas as circunstancias.

Da mesma forma que o determinismo não implica a previsibilidade, a ausência de

previsão completa não invalida a tese ontológica do determinismo; conforme afirma

Salmon (1998, p.33)“The fact that we are unable to make perfect predictions in all cases

is, to the determinist, the result of human ignorance and other limitations. It is not

because nature is lacking in precise determination.” .Assim, o determinismo só pode e

deve ser contestado nos seus termos, isto é, em termos ontológicos e não apenas

epistemológicos ou lógicos.

Mas contestar o determinismo em termos ontológicos significa a reformulação

de uma tese, também ontológica, que esteve associada ao moderno determinismo. Trata-

se aqui da associação entre materialismo e determinismo, decorrente de uma

generalização ontológica dos resultados das ciências modernas, especialmente da física

clássica. Ressalte-se mais uma vez que o determinismo não necessariamente está

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vinculado ao materialismo; o já referido determinismo teleológico e o fatalismo estão

associados a uma imagem religiosa do mundo que supõe que os vínculos deterministas

entre os diferentes estados do mundo são resultados de uma consciência transcendental.

Ao contrário do determinismo religioso, o moderno determinismo prescinde da

existência de uma consciência transcendental; isto é, de uma substancia que não seja

material. Dessa forma o moderno determinismo está associado ao materialismo; o

materialismo é uma tese ontológica que afirma a existência de uma única substancia no

mundo – um monismo ontológico – identificada com a matéria. O materialismo é a tese

de que tudo que existe é material (Mouser, P. K. e Trout, J.D., 1995).

O ponto de partida do materialismo é uma compreensão das propriedades que

definem a substancia material, isto é, uma definição do que é a matéria. Em sua forma

clássica o materialismo compreende a matéria como identificada exclusivamente com

corpos – isto é, de acordo com a definição cartesiana, como algo que ocupa lugar no

espaço. A definição da substancia material pela espacialidade implica que esta é sólida –

ocupa um lugar – inerte – ocupa um lugar - impenetrável e se conserva, permanece

(Crane T e Mellor, D. H., 1995, p.69), sendo a única mudança possível da matéria seu

deslocamento no espaço; dessa forma o movimento é algo que acontece a matéria - pela

ação determinista da posição dos corpos uns sobre os outros - mas não a define. Assim a

matéria é identificada com a substancia, “excludente em face do devir”, dotada de uma

“persistência estática e abstrata” (Lukács, 1979a, p.78). Em uma palavra, a

materialidade é identificada com a coisalidade (Lukacs , G. 1979a, p.48)

A dificuldade para o materialismo que adota esse entendimento da substancia

material é de que nem tudo que existe é percebido como coisa que ocupa lugar no

espaço, como coisalidade. A dificuldade já se põe com a vida, uma vez que essa surge –

e desaparece - em alguns corpos e não em outros. Mas mais problemático ainda é o caso

dos atributos psicológicos; esses podem ser concebidos de forma totalmente

independente do espaço e dessa forma atribuídos a um substância não material – como

argumentou Descartes em favor do dualismo ontológico. Da mesma forma, a

identificação do material com a coisalidade, com uma substancia imutável que ocupa

lugar no espaço, não se encaixa nas relações e instituições sociais.

Em resumo, é possível postular entidades – físicas, biológicas, psicológicas e

sociais – que definem domínios teoricamente diferentes. Mas a postulação desses

domínios diferentes é possível a partir da forma que entendemos o mundo e a tese

materialista diz respeito a como se constitui o mundo. Assim, a tese do monismo

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ontológico requer a compatibilidade da diversidade de entidades postuláveis com a

existência de uma única substancia, a matéria.

A solução clássica a esse problema está de certa forma dada, uma vez que a

matéria é identificada com um domínio: o das entidades físicas. O reducionismo é o

modo de vincular as diferentes entidades teoricamente postuláveis (Mouser, P. K. e

Trout, J.D., 1995, p.7). Essa redução pode ser concebida como meramente teórica, uma

operação exclusiva do pensamento – com a tradução de nomes de atributos biológicos,

psicológicos e sociais em atributos físicos, mesmo que por meio de uma longa cadeia

intermediária – significando assim que dessa forma cada entidade postulada pode ser

explicada por um nível cada vez mais fundamental. Essa é a solução do neopositivismo,

que postula o fisicalismo como uma redução linguística/epistemológica de entidades

meramente teóricas, cujo conteúdo ontológico é negado (Lukács, 1976, p.50)

Mas enquanto a solução neopositivista ao problema do monismo ontológico é

evadida por meio de sua negação – isto é, pela recusa de uma ontologia e a conseqüente

transformação do problema em um problema lingüístico/lógico – a solução

ontologicamente materialista, na sua versão clássica, supõe que o vinculo entre os

diferentes domínios das entidades deve refletir uma ligação real entre estas. Bem

entendido esteja: para a solução materialista clássica não se trata de vínculos entre

entidades diferentes, já que só existem entidades físicas; mas as propriedades

percebidas dessas entidades – propriedades que são reais - devem se resolver de forma

causal em propriedades dos entes físicos. É aqui que o materialismo clássico se encontra

com o determinismo: se não existem entidades que não sejam físicas, um determinado

estado dos organismos vivos, ou determinados estados psicológicos ou ainda sociais,

são acarretados por estados físicos antecedentes – lógica e causalmente, além de

historicamente - de forma necessária e, claramente, de forma única e exaustiva. O

reducionismo é uma variante do determinismo requerido pelo materialismo clássico.

O determinismo foi definido como uma tese sobre o vinculo entre diferentes

estados do mundo. Agora é possível especificar pelo menos um dos sentidos - já que é

possível que o determinismo seja definido como uma tese menos abrangente - a que se

refere esse estado do mundo. Apoiado em um materialismo reducionista, o

determinismo se refere a todo o conjunto de eventos, processos e coisas que existem no

mundo, sendo uma tese abrangente, isto é, que se refere ao mundo em seus aspectos

físico, biológico e social. Como uma tese abrangente, o determinismo significa que os

eventos, processos e coisas biológicos e sociais podem ser perfeitamente descritos, sem

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qualquer perda, como eventos, processos e coisas físicos – uma tese epistemológica - e a

relação entre esses é determinista – a tese ontológica do materialismo reducionista;

acrescendo que a relação entre entidades físicas/materiais, compreendidas como

coisalidade, é também determinista – tese mecanicista. Assim, nos termos colocados por

Lukács, “ All’uniforme dominio teoretico di quest’ultima [necessidade] corrispone sul

piano ontológico una radicale omogeneizzazione di tutto l’essere; la quale in genere

compare nel quadro del materialismo mecanicistico(...)” (Lukács, 1976, p.6).

Já no final do século XIX a visão determinista moderna, associada ao

materialismo mecanicista reducionista, era predominante nas ciências: “By the close of

the nineteenth century, determinism seemed well on the way to being a scientifically

well grounded view of the entire universe in all of its aspects – physical, biological,

psychological, and even social” (Salmon, 1998,p.30). É nesse clima que o determinismo

penetra no marxismo. O determinismo no marxismo consiste na interpretação desse

como um economicismo e, mais precisamente, como um determinismo tecnológico.

Nessa interpretação as forças produtivas são reduzidas aos elementos materiais – isto é,

físicos – da produção e estas são colocadas como determinantes das relações de

produção; isto é, um determinado estado das forças produtivas antecede de forma

necessária, única e exaustiva um determinado estado das relações de produção – o

determinismo tecnológico. Por sua vez, a estrutura econômica – formada por essa

combinação de forças produtivas e relações de produção – guarda uma relação também

do tipo determinista com o resto da sociedade, com as formas de representação da

consciência – a superestrutura – configurando assim o economicismo. Assim, o

marxismo é entendido como uma ciência da história (materialismo histórico) no molde

das ciências naturais, entendidas de forma determinista e fundadas em um materialismo

reducionista.

Um exemplo clássico dessa interpretação determinista do marxismo esta

presente no “manual popular de sociologia” de Bukhárin (1925) que foi objeto de critica

por parte de Lukács (1989). De acordo com Bukhárin, as forças produtivas podem ser

reduzidas ao sistema técnico, isto é ao conjunto dos instrumentos de trabalho, das coisas

que são usadas para produzir outras coisas (Bukhárin, 1925, p.115). É o sistema

tecnológico que, de acordo com Bukharin, determina a forma da sociedade: “But the

historic mode of production, i.e., the form of society, is determined by the

development of the productive forces, i.e., the development of technology.[enfase

adicionada]” (Bukhárin, 1925,p.124). Embora Bukhárin rejeite uma redução dos

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determinantes da sociedade a natureza, como no caso de Cunow que coloca as

condições naturais como determinantes da produção e, portanto da sociedade,

permanece em Bukhárin o fato de que o estado da sociedade – com todas as suas

relações e produtos da consciência - é determinado pelo estado de um conjunto de

coisas, sendo assim “uma versão apenas refinada” do naturalismo (Lukács, 1989, p46).

Implícito aí está o materialismo mecanicista e determinista como justificativa para essa

determinação da sociedade pelo estado da tecnologia entendida como conjunto de

coisas.

Essa versão do marxismo como determinismo tecnológico avança e se torna

dogma no oficialismo soviético. Conforme o manual de materialismo histórico da

academia de ciências da URSS, o estado dos instrumentos de produção é entendido

como antecedente – em termos inclusive históricos - em relação às capacidades

produtivas dos homens: “En consonancia con los cambios operados en los instrumentos

de producción cambia también la fuerza de trabajo y cambian los hombres llamados a

poner en acción aquellos instrumentos. (...) Primero, cambian los instrumentos de

producción; después, y a tono con ello, cambian los hombres, los trabajadores que los

ponen en movimiento “ (URSS, 1960 p.37-38) O vinculo entre forças produtivas e

relações de produção por sua vez é entendida de forma determinista: “Las fuerzas en

acción caracterizan el contenido del processo produtivo, y las relaciones de producción

constituyen la forma económica, social, de este proceso. Y el contenido es siempre y

dondequiera el factor determinante con respecto a la forma: lo primeiro que cambia

es el contenido, y a tono con él, cambia luego la forma.[enfase adicionada]” (URSS,

1960, p.37). A despeito da referencia ao conteúdo e forma que dão um colorido

pseudodialético - na verdade antidialético, da forma como é colocado - a essa

afirmação, o que transparece é que nela o material – as forças produtivas,cujo elemento

determinante são os instrumentos de trabalho – determina o social. Assim, o

determinismo aparece associado ao materialismo reducionista na interpretação soviética

do marxismo.

A interpretação determinista do marxismo, no entanto não é privilégio do

oficialismo soviético. De forma inusitada, a busca de reinterpretar o marxismo com base

nos métodos da filosofia analítica se associa ao determinismo em Cohen (1986).Mas é

preciso reconhecer algumas diferenças significativas entre essa interpretação do

marxismo e a interpretação soviética oficial. Em primeiro lugar, partindo da filosofia

analítica, Cohen põe a questão da determinação em termos puramente epistemológicos;

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segundo ele as forças produtivas têm antecedência explanatória em relação às relações

de produção: “La naturaleza de las relaciones de producción de una sociedad se explica

por el nivel de desarrollo de sus fuerzas productivas (tesis de la primacia propiamente

dicha).” (Cohen, 1986,P.149). Mas a natureza da explicação avançada por Cohen é

funcional: “Es este efecto el que explica la naturaleza de las relaciones, por qué son

como son. Las fuerzas non se desarrolariam como lo hacen si las relaciones fueran

diferentes, pero es por esto por lo que las relaciones no son diferentes: porque las

relaciones de ese tipo se adecuan al desarrollo de las fuerzas productivas” (Cohen, 1978,

p.178)

A afirmação da antecedência necessária é em Cohen uma tese epistemológica,

mas carrega consequências ontológicas ao realizar implicitamente afirmações sobre a

existência das relações de produção. Em Cohen as forças produtivas antecedem as

relações de produção na medida em que estas só existem para gerar o desenvolvimento

das forças produtivas. Isso significa uma inversão temporal da relação de antecedência

necessária: o futuro – o desenvolvimento das forças produtivas – determina o passado –

a existência de determinadas relações de produção. A explicação funcional de Cohen se

resolve, assim em um determinismo teleológico o que torna a tese da primazia

dependente da tese do desenvolvimento das forças produtivas.

Diferente do marxismo soviético, Cohen não reduz as forças produtivas aos

instrumentos da produção, incluindo nela mesmo a ciência como seu elemento

fundamental. No entanto as forças produtivas são definidas por Cohen como conteúdo

material distinto da forma social (Cohen, 1986, p.98), da mesma forma que no

marxismo soviético; por sua vez o material é identificado com o natural (Cohen, 1986,

p.102, p.103). Assim as forças produtivas tem para Cohen um caráter natural e a

inclusão da ciência como força produtiva decorre de que esta é resultado de uma

capacidade natural: “La capacidad productiva se desarrola socialmente, pero su carácter

es natural. Incluso el conocimiento cientifico, pese a ser fomentado socialmente, es una

capacidad natural de la especie humana.” (Cohen, 1986, p.108).

Assim, mesmo partindo de uma concepção puramente epistemológica da relação

entre forças produtivas e relações de produção, Cohen interpreta o marxismo a partir da

mesma ontologia do materialismo reducionista e determinista adotada pelo marxismo

soviético. Isso fica ainda mais claro quando chegamos ao ponto central de sua

explicação funcional das relações de produção e do modo de produção: o

desenvolvimento das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas é

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explicado por Cohen a partir da racionalidade dos homens em meio a uma natureza de

escassez e a racionalidade por sua vez é um traço da natureza humana e se a natureza

humana subsiste através da mudança isso é dado por seu elemento biológico: “Pero em

algún lugar alli donde pueda ser necessário um complejo cuadro de capas y estratos

habrá que reconocer la contribuición de la biologia.”(Cohen, 1986,p.168). Assim fecha-

se o circulo que nos leva do “marxismo analítico” de volta ao materialismo mecanicista

do iluminismo pré-marxiano.

Apesar de ter sido a doutrina oficial do marxismo soviético e ressurgir com a

roupagem do marxismo analítico o materialismo mecanicista, reducionista e

determinista foi combatido fortemente no interior do marxismo; já na critica de Lukács

ao manual de Bukharin, mas também na obra de Gramsci. Na seção seguinte serão

desenvolvidos os argumentos de Lukács - em especial na sua obra “A ontologia do Ser

Social” - no sentido de um materialismo realmente dialético, que generaliza em uma

ontologia os resultados mais avançados da ciência, e que se coloca como critica ao

determinismo.

II. Materialismo dialético e a critica de Lukács ao determinismo.

Conforme assinalado anteriormente o determinismo só pode ser refutado e uma

alternativa a ele só pode ser construída no seu próprio terreno, o ontológico. Isso

significa, com relação ao determinismo moderno, uma reformulação do materialismo ao

qual esteve associado e que serviu de suporte. O determinismo se associa ao

materialismo em duas frentes, conforme assinalado anteriormente: por um lado serve,

através do reducionismo de meio de afirmação do monismo ontológico; por outro, como

tese mecanicista sustenta a forma de relação entre as entidades físicas/materiais.

Reformular o materialismo de forma a que esse prescinda do determinismo

implica assim em, por um lado, renunciar a tese mecanicista e por outro, encontrar uma

forma não reducionista de afirmar o monismo ontológico. Tal reformulação só pode ter

como ponto de partida uma reformulação das características ontológicas da substancia

única, a matéria.

A identificação da matéria com o físico pode, a princípio, parecer um

impedimento para apreender a reformulação do materialismo em uma direção não

determinista a partir da obra de Lukács. Isso porque, de forma já explicita no título de

Page 13: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

sua obra, seu objeto é delimitado a ontologia do ser social; desse modo

Lukács não formula uma ontologia da natureza ou da física. Apesar disso, a obra de

Lukács nos fornece indicações preciosas no sentido da reformulação das propriedades

ontológicas que definem o que é a matéria. Já na introdução da “Ontologia do Ser

Social” Lukács alerta para que é possível encontrar analogias entre a cognoscibilidade

na sociedade e na natureza – o que supõe uma identidade ontológica entre essas formas

de ser e, portanto que “L’ontologia dell’essere sociale presuppone quindi una ontologia

generale” (Lukács, 1976, p.4) Dessa forma as categorias pertencentes a todo ser estão

presentes – ainda que de forma modificada – no ser social; além disso essas categorias

mais gerais encontram “seu modo de manifestação mais puro, mais genuíno” nos “fatos

simples da natureza inorgânica”(Lukács, 1979b, p.47). Portanto a ontologia geral, que é

suposta por e está incluída na ontologia do ser social, é a ontologia da natureza

inorgânica como fundamento de todo ser: “L’ontologia generale o detto piú

concretamente, l’ontologia della natura como fondamento di ogni essente, dunque, è

generale perchè non può esserci nessun essente che non sua in qualche modo

ontologicamente fondato nella natura inorgânica”(Lukács, 1976, p.5)]. Assim, é dessas

categorias mais gerais do Ser que Lukács apresenta em sua ontologia do ser social que

se pode inferir as propriedades que definem o que é a matéria.

As características ontológicas da matéria que se podem inferir da ontologia de

Lukács estão fundadas cientificamente. Conforme afirma Lukács, confrontado a

ontologia religiosa, a ontologia deve ser elaborada filosoficamente partindo da

observação cientifica (Lukács, 1979b, p.100); assim uma imagem do mundo se funda

“(...) dalla totalità della scienzi, dalla loro interrelazioni, dal recíproco complemento dei

rispettivi risultatti, dalla generalizzacione filosófica dei metodi e acquisti scientifici (...)”

(Lukács, 1976, p.31).

As questões ontológicas são respondidas pelo avanço e interrelaçao da totalidade

das ciências; isto é válido para as categorias mais gerais do ser e, portanto, na definição

das propriedades da matéria: estas podem ser inferidas ontologicamente dos resultados,

métodos, aquisições e inter-relações entre as diversas ciências antes mesmo que os

resultados da física permitam chegar a elas de modo mais concreto. É assim que a

imagem de mundo vai mudando em direção à processualidade e historicidade a partir

das descobertas da química e da biologia no século XIX, antes que tais atributos

apareçam como resultado da pesquisa na física, conforme assinala Lukács (1976,, p.98).

Da mesma forma, Lukács assinala que a ontologia materialista do ser social de Marx

Page 14: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

supõe uma ontologia da natureza “que compreenda em si a historicidade, a

processualidade, a contraditoriedade dialética, etc. (...)” (Lukács, 1979, p.20)

A possibilidade de inferir ontologicamente o que é a matéria a partir da

generalização de resultados e métodos de outras ciências não significa, no entanto que a

inferência ontológica prescinda necessariamente dos avanços especificamente nas

ciências que tratam dos fatos mais simples da natureza em quê as categorias mais gerais

se manifestam mais puramente, isto é na ciência que trata diretamente da questão do que

é a matéria, a física.

Não se trata de esclarecer aqui como essas características que definem o que é a

matéria podem ser inferidas da física do século XX; apenas deixemos claro que Lukács

indica essa possibilidade ao criticar o tratamento neopositivista da questão. Lukács

assinala que a moderna física parece dar fundamento a exclusão de categorias

ontológicas e, em primeiro lugar, a própria matéria (Lukács, 1976, p.27). No entanto,

assinala Lukács essa opção diante do avanço da ciência da física, se baseia em uma

confusão entre o modo de apreensão da coisa e a coisa em si; assim, se a moderna física

caminha no sentido de destruir a imagem de mundo do materialismo mecânico não se

infere daí a impossibilidade de qualquer imagem de mundo – e, pode se acrescentar da

resposta à questão do que é a matéria – mas sim a necessidade de corrigir a ontologia

antecedente (Lukács, 1976, p.88-89).

Quais serão então as propriedades que caracterizam a matéria? Seguindo a

observação de Marx nos “Manuscritos econômicos filosóficos”, Lukács assinala que “a

objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente” e a objetividade é

entendida no sentido marxiano como o fato de que todo ente tem um objeto em outro e

é ele mesmo objeto de outro, ou, nos termos colocados por Lukács ao criticar o conceito

hegeliano da negação como uma categoria geral do ser, na natureza inorgânica há

“somente uma cadeia de relações nas quais todo elemento tem ao mesmo tempo um ser-

outro e um ser-para-outro.” (Lukács, 1979b, p.47).

Se todo ser é objetivo no sentido acima, então “o ente originário é uma

totalidade”, (Lukács, 1979a, p.36), um complexo. Da mesma forma, para além da

coisalidade, se inclui na materialidade as relações e conexões (Lukács, 1979a, p.48-49).

Se for assim, a matéria é um conjunto de elementos que interagem em um complexo e

não um corpo isolado, sólido e impenetrável como pressuposto na ontologia

mecanicista.

Page 15: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

Além da objetividade e da conseqüente complexidade, a matéria é caracterizada

pela processualidade. O movimento já não é algo que “ocorre” a um corpo inerte que

permanece, mas “matéria e movimento representam dois lados, dois momentos da

mesma relação de substancialidade” (Lukács, 1979a, p.78); e se a matéria está em

constante movimento, ela é caracterizada pela historicidade; “(...) a historicidade como

princípio do próprio ser.” (Lukács, 1979a, p.78). Essa característica fundamental da

substancia material se revela na afirmação de Marx – fundamentada no monismo

ontológico materialista – de que só há uma ciência, a ciência da história, e na

diferenciação que Engels estabelece do materialismo dialético com o velho

materialismo mecanicista que não reconhecia “the universe as a process - as matter

developing in na historical process.” (Engels, 1941, p.27).

Reconhecer a historicidade como característica de todo ser, e, portanto da

matéria significa reconhecer a mudança como princípio ontológico:

“(...)a historicidade implica não o simples movimento, mas também e sempre uma determinada direção na mudança , uma direção que se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em-si como em relação com outros complexos.” (Luckas, 1979a, p.79).

Se a matéria é caracterizada pela historicidade – pelo movimento e pela mudança - e

pela interação complexa, então ela tem propriedades evolutivas, é capaz de se organizar

em padrões de complexidade crescente; essa conclusão não se encontra explicitada na

ontologia lukácsiana, mas pode ser inferida das propriedades da matéria - apresentadas

nesta como característica do ser em geral - bem como tal conclusão é compatível com a

relação entre níveis de ser presente na ontologia lukácsiana. É essa definição das

propriedades da matéria que permite avançar em direção a um materialismo não

reducionista e não determinista.

Se as entidades físicas possuem propriedades evolucionárias, se modificam e

interagem em um processo histórico no qual vão se organizando de formas cada vez

mais complexas, surgem a partir desse movimento evolucionário das entidades físicas

novas entidades dotadas de propriedades que não podem ser inferidas ou previstas a

partir das propriedades das entidades físicas. O caráter evolucionário das entidades

físicas implica, portanto na criação de novas propriedades da matéria e o surgimento de

novas entidades materiais. Esse processo de surgimento de novas propriedades e

entidades materiais, não previsíveis e causalmente irredutíveis aos níveis anteriores que

Lukács denomina de “salto ontológico”.

Page 16: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

O salto ontológico significa que existem diversos tipos de matéria, que emergem

a partir das entidades físicas, com graus diferentes de complexidade. Ou seja, a

realidade é uma realidade estruturada, composta de diferentes graus de ser, na qual os

modos de ser superiores emergem dos fundamentais. O materialismo entendido dessa

forma não implica que a única coisa que existe são as entidades físicas, embora

mantenha o monismo ontológico, pois afirma a existência de diferentes modos de ser de

uma mesma substância, a matéria. Dessa forma, do ser inorgânico, físico, surge o ser

orgânico e deste o ser social; “o principio ontológico da diferença qualitativa no interior

da unidade” substitui a “rígida unitariedade dogmática do materialismo mecanicista”

(Lukács, 1979b, p.14).

A relação entre os diferentes tipos de ser é de identidade de identidade e não-

identidade, conforme assina Lukács ao observar a universalidade da dialética (Lukács,

1976, p.81-82). Esses diferentes modos de ser são vinculados de uma forma dialética,

não reducionista. Examinemos alguns aspectos desse modo de relação dialético dos

diferentes níveis de ser.

Em primeiro lugar, é claro que o ser inorgânico é um modo de ser que serve de

fundamento de todos os outros. Se o social surge do natural – mais precisamente do

orgânico e este do inorgânico – ele pressupõe a existência deste e suas leis de

funcionamento. Isso significa em primeiro lugar que a existência do nível superior

supõe a existência do nível inferior; há uma relação de prioridade ontológica do natural

sobre o social, conforme afirma Lukács, “Quando atribuímos prioridade ontológica a

determinada categoria com relação à outra, entendemos simplesmente o seguinte: a

primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível.”

(Lukács, 1979a, p.40).

A prioridade ontológica nos permite entender qual o tipo de vinculo de

antecedência que existe entre dois entes em uma ontologia materialista dialética: uma

antecedência existencial. Ao examinar o problema da relação entre o corpo e a

consciência Lukács assinala: “(...) existe aqui uma irrevocable unidad objetivo-

ontológica, una impossibilidad de que exista um ser de la conciencia sin que esté dado,

al mismo tiempo, un ser del cuerpo. Hay que decir, en términos ontológicos, que una

existência del cuerpo sin la conciencia es posible (...)” (Lukács, 2004, p.159).

É preciso assinalar, no entanto, que essa antecedência não significa que a

existência do corpo por si só – ou de forma geral de qualquer modo antecedente de ser -

acarrete de forma necessária o surgimento da consciência; a antecedência do corpo –

Page 17: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

existencial e historicamente – é condição e implica na possibilidade da existência da

consciência, mas como veremos mais adiante, intervém aqui um fator de casualidade.

Mais adiante me voltarei mais detidamente ao papel da casualidade na ontologia

materialista de Lukács; por enquanto basta assinalar que Lukács critica o viés logicista

da ontologia hegeliana que “ transforma numa necessidade lógica a circunstancia

casual do surgimento da vida e da sociedade sobre a terra, com o que o vinculo legal-

causal adquire um inadmissível acento teleológico.” [ênfase adicionada] (Lukács,

1979b, P.55). Essa observação é suficiente para assinalar que a relação entre modos de

ser não é única: se o surgimento da vida a partir do ser inorgânico na terra é fruto de

uma casualidade, em outras regiões do universo este pode não ter dado origem a

nenhuma outra forma de ser.

Mas o vinculo entre os modos de ser da substancia material não apenas não é

único como também não é exaustivo. Existem características dos modos de ser mais

elevados que não guardam vínculos necessários com características do modo de ser

antecedente; cada modo de ser possui propriedades específicas, com poderes causais,

modos de funcionamento que são qualitativamente distintos dos níveis mais baixos do

qual surge. Lukács assinala que o surgimento do ser social a partir do natural se dá pelo

aparecimento de uma nova propriedade, o por teleológico no trabalho, sem analogia

com a natureza: “Esse desenvolvimento, porém, é um processo dialético, que começa

com um salto, com o por teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia

com a natureza.” (Lukács, 1979a, p.17). Assim, no ser social surgem categorias

puramente sociais, como o valor; ao ressaltar a natureza puramente social do valor,

Marx assinala que “Até hoje nenhum químico descobriu valor de troca em pérolas ou

diamantes.” (Marx, 1987, p.92).

Entende-se assim que o vinculo entre os modos de ser não é o da modalidade

reducionista do determinismo. O “salto” significa exatamente o momento da ruptura na

continuidade do processo evolutivo da substancia material, o surgimento de

propriedades que só se referem a esse modo de ser e cujo surgimento não pode ser

previsto ou explicado pelo nível de ser anterior, a menos da custa de uma distorção

logicista das categorias reais dos diferentes modos de ser, conforme já assinalado na

citação anterior a respeito de Hegel. Claro está que o “salto” ressalta apenas o aspecto

conceitual da ruptura no interior da continuidade evolutiva, processual dos diferentes

modos de ser e não a definição histórica de um surgimento de novos modos de ser em

um momento único, sem vinculo com o processo evolutivo geral da matéria; o

Page 18: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

surgimento de novas propriedades irredutíveis de novos modos de ser da matéria supõe

mudanças cumulativas no modo de ser anterior em um longo processo de transição. O

“salto” refere-se, portanto a um processo de emergência, termo que se origina da

biologia é utilizado contemporaneamente na ciência e na filosofia para designar uma

característica do processo evolutivo da matéria e a forma de relação entre modos de ser.

Interessa notar que, mesmo sem ter ainda o direcionamento à ontologia de sua

obra de maturidade, esse ponto é assinalado por Lukács já em sua critica de 1925 ao

“manual de sociologia popular” de Bukhárin ao assinalar que este se afasta do “caráter

especifico do marxismo: que todos os fenômenos econômicos ou “sociológicos”,

derivam das relações sociais ente os homens.” (Lukács, 1989, p.45).

Essa irredutibilidade de propriedades dos modos de ser superiores e o elemento

de casualidade em sua origem não significa que não há vínculos entre os diferentes

modos de ser. Já foi assinalado o vinculo existencial, de prioridade ontológica; além

disso, o modo de ser superior não pode violar as leis de funcionamento dos modos de

ser inferiores e se encontra constrangido por elas no seu modo de funcionamento e nesse

sentido constitui uma base ineliminável do modo de ser superior (Lukács, 1979a, p.19).

Assim a realização da propriedade especifica do ser social, a ação teleológica, só se

torna efetiva diante do reconhecimento dessa base: “Tão-só sobre a base de um

conhecimento pelo menos imediatamente correto das propriedades reais das coisas e

processos é que a posição teleológica do trabalho pode cumprir sua função

transformadora.” (Lukács, 1979a, p.19); do mesmo modo, a relação consciência e

corpo, o funcionamento da primeira requer o processo de reprodução biológica do

segundo:

”(...) el hombre, el miembro activo de la sociedad, el motor de las transformaciones y avances de esta, sigue siendo ineludiblemente, em um sentido biológico, um ser natural; em um sentido biológico, su conciencia – a pesar de todos los câmbios de función ontologicamente decisivos – sigue estando ligada indisolublemente al proceso de reproduccion biológica de su cuerpo (...)”(Lukács, 2004, p.157)

Mas essa existência de uma base ineliminável não implica em que se possa falar

de uma antecedência causal dos modos de ser fundamentais sobre os superiores. Se por

um lado, os modos de ser fundamentais sejam inelimináveis como condições de

existência dos modos de ser superiores e suas leis não possam ser violadas pelo modo

de ser superior, este tem efeitos causais sobre o modo de ser fundamental. Isso é

explicado em parte, pelo caráter inclusivo dos diferentes modos de ser: a sociedade é

Page 19: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

formada por homens que permanecem existindo como seres biológicos e físicos. Assim

ao se referir ao processo biológico de reprodução, Lukács afirma que este “contém as

leis físico e químicas enquanto dialeticamente superadas, isto é, subordinadas as leis

biológicas de reprodução” (Lukács, 1979b, p.48).Da mesma forma, ao se referir ao lento

processo de desenvolvimento da criança e sua remissão às exigências crescentes da

socialidade, Lukács afirma: “Mas, embora esse ser orgânico seja ineliminável, o ser

biológico do homem tem um caráter que, predominante e crescentemente, é

determinado pela sociedade.” (Lukács, 1979a, p.94).

Dessa forma, não há uma relação de antecedência necessária, única e exaustiva

entre as diversas formas de ser, uma relação reducionista entre as diversas formas de

ser. Isso não implica, porém em recair em alguma forma de dualismo ou rejeitar o

monismo ontológico materialista, uma vez que esses modos de ser são modos de ser de

uma mesma substância, a matéria dotada de propriedades evolutivas. Assim como

afirma Lukács,

“Infatti (...) solo se diviene possibile affermare che l’essere inorganico è il fondamento di ogni altro essere, senza con ciò distruggerre nel pensiero la specifica constituzione dell’essere nella vita e nella società, solo se la diversità dei modi d’essere viene intesa nel loro inscindibile collegamento e nelle loro differenze qualitative, può sorgere uma scienza intimamente unitária” (Lukács, 1976, p.48)

Os argumentos de Lukács demonstram que o materialismo dialético rompe com

a associação entre o materialismo e o determinismo pela via reducionista. Mas isso só

refuta a tese do determinismo abrangente; é possível, mesmo afirmando a

irredutibilidade das formas de ser manter a tese determinista no interior de cada forma

de ser. Esse é o caso, por exemplo, da interpretação economicista do marxismo:

independente da redução dos elementos sociais aos naturais/físicos, o economicismo

estabelece uma relação de antecedência necessária, única e exaustiva entre a economia e

os outros elementos da sociedade. Trata-se aqui da variante mecanicista do

determinismo, a tese de que os estados do mundo – físicos, biológicos ou sociais – se

relacionam de forma determinística; assim, cada estado do mundo, mesmo que referido

de forma restrita a um modo de ser, é completamente determinado pelo antecedente.

Uma alternativa se impõe ao determinismo mecanicista. Como definido

anteriormente uma condição necessária, mas não suficiente, da tese determinista é a

existência de vínculos necessários entre dois estados do mundo. Uma forma de negar o

determinismo mecanicista é assim, negar a existência de qualquer conexão necessária

Page 20: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

entre estados do mundo; trata-se aqui de uma imagem do mundo marcada por uma

acidentalidade pervasiva. Se no determinismo a conexão necessária é também única e

exaustiva, ela exclui a existência de qualquer casualidade e, entendida como verdade a

priori, de forma logicista, se identifica com a própria racionalidade. Assim, a negação

do determinismo por meio da postulação de uma casualidade absoluta e pervasiva

implica o irracioinalismo; de acordo com Lukács “En el segundo caso, se pone en

entredicho, con la duda sobre la determinación causal o con su negación, toda conexión

racional entre las cosas: las puertas del pensamiento quedan abiertas al irracionalismo.”

(Lukács, 1966, P.447)

Tal imagem irracionalista de mundo não é aceita por Lukács como uma

alternativa ontologicamente fundada ao determinismo mecanicista. Ao contrário Lukács

assinala, primeiramente, que essa imagem de mundo é um pólo na verdade

complementar ao determinismo mecanicista; tal proximidade se evidencia em

Wittgenstein no qual o logicismo exacerbado se justifica de forma “absurda”, com uma

imagem de mundo irracionalista (Lukács, 1976, p.58). Além do mais, a despeito de ser

possível chegar ao irracionalismo como resultado de uma extrapolação do fetichismo

empirista (Lukács, 1979a, p.112), sua base não é de forma alguma objetiva, mas se

encontra na projeção do sentimento subjetivo de espanto diante de uma questão

insolúvel para o sujeito (Lukács, 1979a, p.170).

Mas a rejeição veemente da ausência de qualquer conexão necessária no mundo

e do conseqüente irracionalismo não significa a rejeição determinista – oposta e

complementar – da existência de casualidades no mundo. Ao contrário conforme já

assinalado, Lukács ressalta, por exemplo, que o surgimento da vida e da sociedade na

terra é uma casualidade (Lukács, 1979b, p.55). Na biologia, Lukács assinala o

organismo como um “campo de ação de casualidades imprevisíveis.”

(Lukács,1979b,p.106). Mais evidente ainda é a presença da casualidade no trabalho; o

valor de uso de uma matéria natural é meramente casual com relação as propriedades

dessa matéria:

“(...) nenhum objeto natural contém em si , enquanto prosseguimento de suas propriedades, de suas leis naturais, a propensão a ser utilizável (ou não utilizável) por finalidades humanas enquanto meio de trabalho, matéria prima, etc” (Lukács,1979a,p.101)

.Ademais a realidade da escolha, especifica do ser social e presente já no trabalho,

introduz uma casualidade ineliminável no ser social: “Deve-se ter presente, além do

Page 21: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

mais, que a alternativa – característica de todo ato de trabalho – contém igualmente um

momento de casualidade.” (Lukács,1979a, p.102)

A casualidade, no entanto deve ser compreendida em seu devido estatuto

ontológico, de forma que não se caia na oposição logicista entre necessidade e acaso; é

apenas do ponto de vista lógico que o acaso se apresenta como oposição à necessidade.

(Lukács, 1979a, p.101). Do ponto de vista ontológico, no entanto, o acaso existe no

interior da necessidade; esta “no excluye el azar, sino que lo incorpora a su

reino”(Lukács, 1966, p.457), a necessidade se afirma em meio a casualidade. Essa

relação dialética entre necessidade e acaso se compreende a partir das características da

realidade que produzem a casualidade e das formas em que essa se determina

ontologicamente.

Já foi assinalado anteriormente que a complexidade é uma característica

primária da matéria e, portanto, de todo ser. Mas esse caráter de complexo da realidade

significa que a natureza dos diversos elementos que o compõe é diversa, que a realidade

é de caráter heterogêneo. É dessa heterogeneidade da realidade que se deriva o acaso:

“(...)a estrutura heterogênea da realidade, da qual deriva não apenas a ineliminabilidade

única do acaso nas inter-relações entre os momentos de um complexo e entre

complexos” (Lukács, 1979a, p.105.).

A heterogeneidade do real significa que cada estado do mundo, considerado

concretamente, é uma síntese de muitas determinações que se definem como universais,

particulares e singulares. A casualidade deve ser compreendida no interior da dialética

do singular, particular e universal. De acordo com Lênin, citado com aprovação por

Lukács (1970, p.100), “O universal só existe no singular, através do singular.”; a

universalidade – e também a particularidade - estão “em si contidas no dado

imediatamente sensível do singular.” Lukács (1970, p.98). Mas o universal é apenas

“partícula ou aspecto” (Lênin apud Lukács, 1970,p.100) do singular; a identidade do

universal no singular é uma identidade de identidade e não identidade pois a

singularidade “(...) non trapassa mai del tutto e senza residui nella particolarità o nella

universalità(...)” (Lukács, 1976, p.92).

A casualidade consiste no resíduo irredutível da singularidade. Mas a existência

desse resíduo como casualidade não significa que não há vinculo necessário entre

estados do mundo singulares - uma vez que estes são prenhes de determinações

universais - como requer o irracionalismo: este último anula a universalidade e se atém

a pura singularidade. Por outro lado, ao contrário do que requer o determinismo

Page 22: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

mecanicista, esse vínculo necessário nunca é único e exaustivo; o determinismo

mecanicista colapsa a singularidade na universalidade e ao fazê-lo destrói a relação

objetiva entre a casualidade e a necessidade (Lukács, 1966, p.450).

Se existem vínculos necessários, embora não únicos e exaustivos, entre

diferentes estados do mundo a singularidade é determinável – ainda que sua ocorrência

não possa ser dedutível ou previsível a partir de estados do mundo prévios. A existência

de vinculo necessário significa que um estado do mundo é seguido por algum outro e

que, portanto esse é um outro possível – a dialética do necessário e do casual é também

uma dialética do necessário e do possível.

Assim, cada singularidade existe como caso típico ou excepcional ou ainda, em

termos quantitativos, como média ou desvio de uma distribuição probabilística (Lukács,

1976, p.92). Desta forma, ”todo azar esta causalmente condicionado”(Lukács, 1966,

p.447), pois devidamente compreendido no interior da dialética do universal e do

singular, todo “azar” é um caso provável, mesmo que seja de uma probabilidade

infinitamente pequena. Assim a singularidade é determinável – ao contrário do que

inferia o irracionalismo – ainda que não “in sensa “meccanicisticamente assoluto” al

modo di Laplace” (Lukács, 1976, p.92).

Essa forma de existência da necessidade em meio da casualidade e da

determinabilidade da singularidade aportam uma série de consequências para a forma de

conhecimento do mundo. As leis, para capturarem o modo de existência real das

conexões necessárias, são formuladas como leis estatísticas ou como tendencialidade

(Lukács, 1979a, p.96), como leis que se afirmam em meio a “infinitas acidentalidades”

(Lukács, 1979a, p.108-109). Da mesma forma, todo conhecimento é um conhecimento

aproximado em lugar da previsibilidade absoluta – que conforme foi assinalado

anteriormente é tida como possibilidade ontológica no determinismo mecanicista, ainda

que não identificada com este.

Mas, mais do que isso, esse modo de existência da necessidade significa que

existe uma racionalidade real – ao contrário do que supunha o irracionalismo – mas que

essa não é a do racionalismo absoluto do determinismo mecanicista. Existe a

possibilidade de se entender cientificamente um caso singular mesmo que este não

possa ser completamente deduzido da lei geral, uma vez que a necessidade ontológica

não é igual à derivação lógica (Lukács, 1979a, p.117). Dessa forma os eventos só

podem ser compreendidos racionalmente de modo post festum; só após a ocorrência

deste é que é possível lhes capturar o sentido como média, dispersão, caso típico ou

Page 23: o materialismo de Lukacs e a critica ao determinismo revisão

excepcional; só depois da sua afirmação em múltiplas formas em diferentes estados do

mundo concretos que é possível compreender racionalmente a necessidade (Lukács,

1979a, p.117).

Lukács aponta que esse é o método espontâneo da historiografia (Lukács, 1979a,

p.107), mas é possível tomar aqui um outro exemplo, que Lukács define como uma

“circunstância casual”, o surgimento da vida na terra. Basta que este evento tenha

ocorrido uma única vez - como pura casualidade, portanto - para que surja um novo

modo de ser da matéria, dotado de propriedades irredutíveis ao modo inorgânico do

qual evoluiu. Esse evento, no entanto, não se apresenta como absolutamente

incompreensível; é possível entendê-lo como um caso muito pouco provável que exigiu

a existência de inúmeros ambientes físicos até que o ambiente terreno em condições

determinadas tenha surgindo; assim o que é mera casualidade pode ser racionalmente

compreendido como ocorrência de um caso possível, ainda que pouco provável, de

acordo com a lei dos grandes números. A racionalidade desse evento é post festum: que

o caso do surgimento da vida – e ainda, extensível para a existência do homem como

ser consciente – é um caso provável é afirmável pela existência do homem na terra, o

argumento antrópico. Dessa forma, ao contrário do que afirmava Nagel (1960, p.317) é

possível abandonar o determinismo sem renunciar a ciência.

Considerações finais

A associação do marxismo ao determinismo deixou um rastro de criticas fora do

campo marxista e contra este, ficticiamente “libertárias” – como na “Sociedade aberta”

de Popper – e que, em última análise, renunciam ao conhecimento genuinamente

cientifico do mundo. Nesse trabalho procurou-se demonstrar que a ontologia

Lukácsiana oferece elementos de uma profunda reformulação do materialismo em um

sentido dialético, iniciada já na obra de Marx, rejeitando criticamente o reducionismo, o

mecanicismo e o irracionalismo. Tal reformulação traz sérias conseqüências para a

apreensão cientifica do mundo e, mais do que isso, para transformá-lo na direção de um

projeto de emancipação humana, conseqüências não exploradas nesse trabalho mas que

merecem atenção.

A exata dimensão do materialismo dialético de Marx, sistematizado na ontologia

lukácsiana, nos permite por um lado, retomar o projeto da ciência ontologicamente

orientada, produzindo uma explicação do mundo e guiada pelo valor da verdade. Mas o

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materialismo dialético em sua rejeição ao determinismo na suas dimensões reducionista

e mecanicista, nos permite resgatar o materialismo marxiano do nefasto oficialismo

soviético e retomar nos termos marxianos – e de Lukács – um projeto socialista de

emancipação humana, fornecendo a verdadeira dimensão da exploração pela ação

humana das possibilidades inscritas na estrutura do mundo, em lugar do fatalismo

determinístico do sovietismo e do irracionalismo acientifico neoliberal – travestido de

racionalismo critico e de defesa da “sociedade aberta”.

Bibliografia

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