xiii reunião de antropologia do mercosul desafios e

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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS) Grupo de Trabalho: GT 02 - A Antropologia e a Alimentação: perspectivas, desafios e propostas para a leitura do mundo Título do Trabalho Ajeum bó: a circulação de axé através do movimento da comida num terreiro de candomblé da Bahia Rafael Camaratta Santos/ UFRJ

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Page 1: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)

Grupo de Trabalho: GT 02 - A Antropologia e a Alimentação: perspectivas,

desafios e propostas para a leitura do mundo

Título do Trabalho Ajeum bó: a circulação de axé através do movimento da

comida num terreiro de candomblé da Bahia

Rafael Camaratta Santos/ UFRJ

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OS MOVIMENTOS DA COMIDA

Prólogo

De acordo com as ebomis do terreiro que foram consultadas para esse

estudo, ninguém acredita que Xangô vem à terra comer o amalá que lhe é

ofertado, mas sim, que a energia de Xangô incorpora a positividade dessa

oferenda. A terra, então, absorve a parte concreta do amalá, enquanto a

energia positiva sobe até Xangô que a devolve em forma de axé sobre a

cabeça de seus filhos.

Quando se afirma no candomblé que os orixás estão comendo, o sentido

vai muito além do material e visível. Conversando com as interlocutoras da

pesquisa busquei saber de quais maneiras os orixás comem, através das

obrigações que lhe são prestadas. Conforme afirmou a ebomi Vanda: “o que se

diz no candomblé é muito metafórico”, o atabaque comeu, o santo está

comendo, Oxalá está de pé, ou Xangô está de pé. “É bem aquela história:

existem mais coisas entre o céu e a terra... que me perdoe o aconchego

shakespeariano, mas a gente vive o indizível e o invisível”. É a partir desse

sentido que elas dão o que seria metafórico que o comer pode ser entendido

Dizem, também, a religião de um modo geral só é religião por conta de

seus mistérios e encantamentos. Uma das explicações sobre como muitas das

coisas que são ditas no candomblé são de ordem metafórica é oferecida pela

ebomi Vanda de Oxum:

Eu estou na roça há mais de trinta e um anos e se você

me pedisse para descrever o que é Oxum eu não conseguiria senão de uma forma metafórica, porque até a forma como eu sinto não dá para descrever, não dá para

concretizar como uma informação. Tem coisa que eu até gostaria de definir para mim mesma e não consigo. Acabo

me representando muito mais como uma cachoeira. Oxum como uma cachoeira eu consigo definir. Mas não como Oxum mesmo, me parece impossível. Ou eu me

descreveria como uma coisa tão superior, mas tão superior que você não iria acreditar, então é melhor não

fazer isso (risos).

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O calendário litúrgico do terreiro tem seu início com o ritual das Águas

de Oxalá, na última semana de setembro, e encerra-se no ano seguinte, com a

última festa do ciclo de Xangô1 em julho. O ritual de purificação das Águas de

Oxalá marca o início do ano litúrgico que, como se observa, é desvinculado do

calendário civil. Os eventos estão inseridos em uma noção de tempo cíclico,

não linear. Segue uma dinâmica diferente do calendário católico oficial

brasileiro. Contudo, esse calendário tem uma relação bastante “tensa” que

envolve rompimento e acomodação com o calendário ocidental (oficial). O

início do ciclo é sem setembro e seu término é em julho do ano seguinte,

havendo uma intensificação nos eventos entre final de setembro e final de

outubro.

Na dinâmica do terreiro em um ciclo (um ano) há vários momentos, as

festas, o período de reclusão que coincide com a quaresma – nesse caso os

calendários do terreiro e o católico oficial coincidem. Oxossi e Xangô possuem

seus próprios ciclos de festas, por motivos diferentes. Odé, ou Oxossi, o orixá

caçador dos iorubas é relacionado com antigo reino de Keto, de onde eram

provenientes as africanas que fundaram o que é conhecido como “proto-

candomblé”, o famoso candomblé da Barroquinha, o qual veio dar origem ao

candomblé da Casa Branca e a Irmandade da Boa Morte em Cachoeira/BA2.

Como já foi visto no capítulo dedicado à história do terreiro, o Opô Afonjá

surgiu do seio da Casa Branca, assim como o terreiro do Gantois, assim estes

três terreiros dedicam homenagens anuais a Oxossi no mesmo período,

sempre no dia de Corpus Cristis.

Oṣosi3 é um dos orixás mais populares na Bahia. Seja pelo fato das

senhoras que fundaram o primeiro candomblé, próximo à capela de Nossa

Senhora da Barroquinha, no centro antigo da cidade do Salvador, terem vindo

do reino Ketu local onde é forte a devoção deste orixá (território que foi cortado

entre Benin e Nigéria). Dentre os primeiro escravos que vieram de Ketu

1 Podem ocorrer alterações no calendário geralmente vinculada a eventos de extrema relevância na

comunidade, como o falecimento de algum membro do terreiro, cujos rituais de despedida demandam

cerimônias não compatíveis com festividades. 2 Para saber detalhes sobre o Candomblé da Barroquinha, consultar: SILVEIRA, Renato, 2006.

3 Grafia em iorubá moderno. Daqui para frente aparecerá em português Oxóssi para maior clareza do

texto.

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estavam membros da família real Arô, que foram capturados em Iwoyê – a qual

foi saqueado pelo Daomé em 1789.

Tudo indica que a primeira das fundadoras do Candomblé

da Barroquinha, Iyá Adetá, veio nessa leva de escravos provenientes de Iwoyê. Após nove anos de cativeiro, Iyá

Adetá teria conquistado a alforria e ido morar na Barroquinha, onde fundou, no finalzinho do século XVIII, um culto doméstico a Oxóssi em sua casa [...] (SILVEIRA,

2006).

Silveira nos lembra de que “as duas principais festas do calendário da Casa

Branca que comemoram sua fundação: a principal, dedicada a Oxóssi, no dia

de Corpus Christi, e a segunda, dedicada a Xangô, no dia de São Pedro”.

(SILVEIRA, 2006). O mesmo repete-se no Gontois e no Ilê Axé Opo Afonjá. E

neste último a Iyalorixá é uma filha de Oxóssi, Odé Kaiodê, Mãe Stella.

As tradições contam que vieram pessoas dos escalões

superiores dos estados iorubás, em missão secreta, para organizar os cultos assentados na Barroquinha e articulá-

los aos egbés baianos. A mais importante delas foi Iyá Nassô, personalidade do primeiro escalão do cerimonial do palácio de Oyó. Essas pessoas criaram uma nova

forma de organização, ao estruturar o grande candomblé de Ketu tal qual é conhecido hoje. (SILVEIRA, 2006).

Verger afirma que “o lugar de origem de Oṣosi é Ikija, perto de Ijebu

Ode” (VERGER, 2012, p.208). E completa dizendo “também é conhecido no

Brasil sob os nomes de Inlẹ ou Ibualama. De acordo com uma lenda que ali se

conta tratava-se de um caçador que foi seduzido por Ọṣun que o atraiu para o

rio onde morava” (VERGER, 2012, p.211).

Xangô possui seu próprio calendário de festas tanto por ser também um

dos orixás principais da Casa Branca – que também dedica festas a Xangô em

junho – onde Mãe Aninha se iniciou, quanto por ser o orixá da fundadora do

terreiro, que era uma filha de Xangô Afonjá.

O calendário do Ilê Axé Opô Afonjá não é divulgado na agenda cultural

do estado da Bahia por orientação do terreiro, uma vez que o público que

concorre para assistir as festas é imenso. Com exceção do ciclo das festas de

Xangô é realizada uma conferência com a agenda da mãe de santo para que,

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na sequência, o calendário seja divulgado no mural que fica na varanda da

casa de Xangô e, recentemente, também na fan-page do terreiro na internet.

Essa conferência do calendário é necessária todos os anos, porque a festa de

Iemanjá não pode, de forma alguma, coincidir com o dia dos finados. E, além

disso, se houver morte de algum membro da egbé4, o calendário é suspenso

afim de que se realize o ritual de axexê como ocorreu em 2012, quando Mestre

Didi faleceu em meio ao ciclo de Oxalá e o calendário foi suspenso para ser

retomado sete dias depois com a festa de Exú.

O Ciclo de Xangô

Segundo Mãe Stella, Xangô é um orixá que se tornou muito popular no

Brasil e em suas histórias aparece frequentemente como um orixá que gosta

de comer muito, de dar comida às pessoas e de festas, razão pela qual, nas

quartas-feiras, dia da semana que lhe é consagrado, oferece-se o amalá – sua

comida predileta à base de quiabos. Conta-se sempre com a participação dos

que lá estão presentes, convidados a compartilhar da comida. É assim que ele

gosta de seu culto: com muita comida e festa. Verger (2012) registrou:

Ṣango é o deus do trovão dos yoruba. É viril e atrevido, violento e justiceiro. Castiga os mentirosos, os ladrões e

os malfeitores. A morte pelo raio é, por esse motivo considerada infamante [...]. Além disso, os sacerdotes de

Ṣango vão dar uma busca no lugar onde caiu o raio, pois querem encontrar as machadinhas ou pedras de raio (ẹdun ara) lançadas por Ṣango e que ficaram na terra,

onde o chão foi tocado pelo raio, nos escombros das casas destruídas ou nos ocos das árvores abatidas pelo

raio. Esses ẹdun ara (pedras neolíticas) são colocados no assentamento de Ṣango, constituído por um pilão de madeira esculpida, alusão à ação das pedras de raio,

brutas e ruidosa, como a mão do pilão quando está em ação (VERGER, 2012, p.307).

O ciclo de Xangô é transcorrido em um período de doze dias – não por

um acaso, o número místico desse orixá – a partir da primeira festa,

obedecendo à seguinte ordenação:

23/06 – Fogueira de Airá (véspera de São João)

4 Comunidade religiosa.

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28/06 – Fogueira de Afonjá (véspera de São Pedro5)

29/06 – 1º dia de Xangô (primeira festa)

02/07 – 3º dia de Xangô (segunda festa)

05/07 – 6º dia de Xangô (terceira festa)

11/07 – 12º dia de Xangô (festa de Yamassê, mãe mítica

de Xangô)

De forma significativa, Nicolau Parés registra que as exibições públicas

dos sacerdotes de Xangô eram espetaculares, em especial “o ritual do ajere,

em que desfilavam pela cidade carregando em suas cabeças vasilhas cheias

de brasas e fogo”. (PARÉS, 1995, p.151). Os sacerdotes de Xangô viajavam

das províncias à metrópole para receber a iniciação final do mógbà, o

sacerdote do santuário real em Koso. “Oyo [que] foi a capital de um império

que dominou grande parte da terra dos iorubás desde o século XVII, até as

primeiras décadas do século XIX” (PARÉS, 1995, p.150). Segundo o autor,

havia diversas divindades do trovão na região iorubá e Xangô era o mais

importante deles. Parés afirma que “a longa hegemonia de Oyo na região

favoreceu a expansão do culto a Xangô, que, como um emblema centralizador

da autoridade real, fundiu-se à administração do império” (PARÉS, 1995,

p.150).

A Feira

A Feira de São Joaquim é a maior feira livre da Cidade de Salvador,

ocupando um espaço de aproximadamente 60.000 m², localizada na região da

Cidade Baixa, entre a Baía de Todos os Santos e Av. Oscar Pontes, no bairro

do Comércio. Ao todo são dez quadras, com cerca de quatro mil boxes

espalhados por vinte e duas ruas. Impressiona pela área ocupada e pela

diversidade de produtos comercializados. Na feira podemos encontrar desde

itens alimentícios tradicionais, até artesanato como peças em cerâmicas,

esteiras e balaios, sendo ainda o principal distribuidor dos artesanatos de

barro, como alguidar, e potes produzidos no recôncavo baiano. Sua principal

característica, entretanto, está ligada à comercialização dos artigos religiosos e

5 Um sincretis mo relativizado por Mãe Stella, como visto na sessão 1.9.1, que demonstram os limites da

ruptura com o sincretis mo no tocante as datas do “calendário católico” estabelecidos pela fundadora do

terreiro, Mãe Aninha.

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venda de produtos para rituais de candomblé, como orobôs, obis, etc. Cumpre

ressaltar a comercialização de animais vivos relacionados aos rituais do

candomblé. Sua importância é vital para o comércio da cidade devido aos bons

preços. Criada na década de 1960, depois da destruição da antiga feira de

Água de Meninos em 1966, consumida por um incêndio.

A feira oficial do terreiro é a feira de São Joaquim, a mesma em que são

levadas as iaôs no final do período de iniciação, como parte integrante do ritual

de apresentação. As iaôs são levadas à feira para que conheçam as barracas

que vendem os produtos necessários para a religião, mas também para serem

apresentadas ao Exu da feira, ou, Olóojà (o dono do mercado), já que os

caminhos e encruzilhadas da feira são domínio de Exu por primazia6.

Durante as reuniões preparatórias são relacionadas e quantificadas toda

a compra de alimentos necessária para a festa. Após esse levantamento, um

dos filhos irá verificar na despensa da Casa de Xangô quais os itens não

perecíveis já constam na casa, e, portanto, serão retirados da relação, gerando

assim uma lista final de compras.

Quando as filhas de santo vão à feira de São Joaquim comprar os

ingredientes para as comidas da festa o fazem porque, diferentemente do

mercado, elas podem ter contato com os ingredientes: “A gente prefere

comprar na feira porque lá você tem escolha, você abre e olha os ingredientes,

no supermercado não. Você pega um pacote e leva, se estiver bom, tá. Se não

estiver... Às vezes, o papel, o plástico engana a gente e podemos levar para

casa qualquer coisa” (ebomi Vanda de Oxum). Além do fato de na feira haver a

possibilidade de pedir desconto no preço dos produtos, provar se o camarão é

realmente de qualidade, conversar com os vendedores, saber a procedência do

azeite de dendê, dentre outras coisas.

6 “Dinheiro e mercadorias; narrativas, informações e cumprimentos tem em comum o fato de serem

coisas trocadas. São regidas pelo princíp io que governa todas as formas de troca. E porque a troca é

movimento e o movimento implica transitividade, todas elas estão subordinadas a Èṣù, o grande princípio

dinâmico na cosmovisão do candomblé” (VOGEL; MELLO; BARROS, 2001, p.7).

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É afirmado que o orixá gosta de comida saborosa, comendo sempre do

melhor. Os ingredientes devem ser de boa qualidade, a comida deve ser muito

bem feita e estar muito bem apresentada. Isso é o básico sobre a comida de

santo para as interlocutoras da pesquisa, para as quais: “o orixá para a gente

é... a gente termina personificando, né. Ele é o amigo, o pai que chegou para

comer da minha comida. Então eu não posso dar uma coisa qualquer” (ebomi

Vanda de Oxum).

Em conversa informal com uma das iaôs do terreiro acabei por entender

porque fui “colocado no bolso” (enganado com elegância) por meus

interlocutores quando pedia para ir à feira acompanhar a compra dos

ingredientes para alguma das festas. Ouvia como resposta: “não se preocupe,

nós vamos” ou “vamos marcar um dia para você ir junto”. Porém o ciclo de

festas e o período de pesquisa de campo chegaram ao fim sem que eu

percebesse que não fui junto com eles à feira. Somente entendi o motivo mais

de um ano depois, quando conversei com essa iaô.

Ela me contou que só recentemente quando já havia completado três

anos de iniciação é que foi convidada, pela primeira vez, pelas ebomis da casa

de Iemanjá para participar da ida à feira. Nessa ocasião pode aprender os

detalhes sobre os vários pratos para agradar às diversas qualidades do orixá,

assim como os ingredientes necessários para tanto. Contou, também, que

convenceu, não sem dificuldade, as suas irmãs e um irmão mais velhos a

comprarem camarão defumado ao invés do camarão seco simples. Segundo a

iaô, o defumado custa um pouco mais caro, porém rende mais e faz resultar

uma comida muito mais saborosa. Contou ainda, que no final da festa todos

vieram elogiar a comida de Iemanjá e ela ficou contente e orgulhosa em dizer

que havia sido sua a ideia da compra de tal ingrediente. Dessa forma, me dei

conta que a ida à feira envolve intimidade entre os participantes dessa tarefa,

no caso irmãos de uma mesma casa de orixá7. Na feira também se desenrolam

aspectos relacionados aos fundamentos da religião, que são segredo (awo)

cujo conhecimento é permitido, em alguma medida, somente aos iniciados. Foi

7 Quando digo da mes ma casa de orixá estou me referindo a pessoas com o mes mo orixá de cabeça.

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por isso que, educadamente, fui sendo dissuadido, sem que percebesse, da

ideia de acompanhá-los às compras.

De acordo com Lima (2015), um grupo de ebomis vai à feira de São

Joaquim ou das Sete Portas levando as listas de compras para a festa, levam

consigo as iaôs mais novas e alguns rapazes para ajudar a carregar as

compras. O povo de santo, enquanto caminha pela feira conversa com os

clientes e vendedores sobre assuntos do candomblé, mas também atualiza as

fofocas e jogam conversa fora.

Ao fim da feira, a turma pausa para o almoço e uma cerveja bem gelada, que ‘ninguém é de ferro’, após andar horas entre os becos e vielas da feira com sacolas, carros

de mão e cestos entupidos das compras, observação feita a mim pela própria Iyalorixá. (LIMA, 2015, p.46)

Em conversa com Deuzimar, ebomi de Oxalá, e um dos filhos de santo

mais antigos feitos por Mãe Stella, ele me contou que, “no tempo antigo havia

um senhor na Feira de São Joaquim chamado Matheus que era um senhor

negro, baixinho, careca que só vendia animais e ficava no atracadouro dos

saveiros e era com ele que se compravam os bichos”. Disse ainda, que:

Atualmente existe o Roque que é filho da finada Zeni que tinha barraca na feira da Sete Portas. Zeni já vendia para

as pessoas do terreiro desde o tempo em que Roque era menino. Depois do falecimento de Zeni, foi ele quem assumiu o comando da barraca. Por ter uma relação de

amizade com os fi lhos de santo do terreiro ele próprio leva os bichos para o axé (terreiro), uma espécie de “delivery”,

vende fiado e entrega tudo certinho (ebomi Deuzimar de Oxalá).

Os animais não devem possuir deformações, devem ser novos e da cor correta

para o orixá que será sacrificado. Xangô por exemplo, recebe carneiro, galo,

pato e cágado, todos machos.

Ir à feira faz parte dos rituais. Fazer a feira é também ir ao mercado ou

na barraquinha do lado do terreiro. A importância da feira de São Joaquim é

porque lá se encontra todas as coisas necessárias para a festa. Lá há tudo

para a comida do Santo e comidas para as pessoas da casa e os visitantes.

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As principais barracas que os fi lhos de santo vão são as barracas de quiabo e

camarão, azeite e cebola. Em seguida compram-se carnes feijão farinha e

rapadura. O que não existe na feira vão buscar no mercado. As conversas são

as mais variadas e engraçadas. Algumas piadas incluindo pessoas do terreiro e

até sobre a vida dos orixás. Acredita-se nos orixás vivendo em nós. Todos riem

muito. Às vezes sai uma cervejinha sim, sem exageros, como me foi informado.

Dividem-se as compras com as pessoas que vão à feira, para poder carregar,

geralmente vai de 3 a 8 pessoas. Também, pode-se colocar tudo em um

carrinho de mão geralmente conduzido por jovens negros pobres ou idosos que

ganham a vida na feira. A lista é elaborada por duas ou mais pessoas.

Compara-se a qualidade e quantidade com o ano anterior para as devidas

correções. O transporte para a feira é sempre o carro de um dos filhos da casa.

Retornando da feira – o armazenamento

As compras são realizadas faltando poucos dias para a festa, garantindo

a integridade dos alimentos, de acordo com sua categoria. De volta ao terreiro

os itens serão separados de acordo com sua qualidade: os animais têm duas

destinações, os bichos de pena vão para o galinheiro, que fica próximo ao

barracão de festas, e os bichos de quatro patas ficam amarrados por uma

corda, num local em que podem pastar. Estamos diante aqui de um modo de

classificação nativa – bicho de pena e bicho de quatro patas. Esse ponto é

importante em uma etnografia do sistema culinário, no caso, a atenção às

categorias nativas. Os grãos (feijão fradinho, milho branco, etc.), o camarão

seco e azeite de dendê são armazenados na Casa de Oxalá, cuja cozinha é

utilizada para o preparativo das comidas de santo. Nessa casa existem ainda

duas despensas, uma para os utensílios (panela, travessas, peneiras, etc.) e

outra para os mantimentos. Na ocasião do ciclo de festa de Xangô, a exemplo,

os utensílios próprios desse orixá, como as gamelas em que se ofertam suas

comidas, são deslocados para essa cozinha comunal na casa de Oxalá,

retornando no final do ciclo ritual para a despensa da casa de Xangô. Os

alimentos perecíveis, como cebola e quiabo também são armazenados na

cozinha de Oxalá. A cozinha da casa de Xangô fica restrita a alimentação dos

filhos de santo envolvidos na preparação dessa obrigação.

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Como Xangô é o orixá principal do terreiro, sua casa possui um

destaque, sendo subdividida em antessala com sofás, mesa e cadeiras para

receber os visitantes. O quarto do peji, onde estão os assentamentos desse

orixá e onde são arriadas as oferendas para ele. Sala para refeição com uma

mesa grande de madeira com diversas cadeiras onde são servidos a ialorixá,

filhos de Xangô e outras personalidades de importância para o axé, durante o

ciclo de festa desse orixá; lá também ocorrem algumas reuniões. Uma cozinha

equipada em que se prepara o amalá das quartas-feiras; onde também são

preparadas as refeições para os filhos envolvidos na obrigação. Uma despensa

em que ficam os utensílios utilizados para Xangô, além de alimentos não

perecíveis em estoque. Banheiro e um aposento para descanso da mãe de

santo. Essa casa também serve como a sede do terreiro e todas as qua rtas-

feiras, durante o ritual de oferecimento do amalá de Xangô, a ialorixá faz

consulta de búzios para as pessoas que previamente conseguiram agendar.

Devido à idade avançada da mãe de santo, esta atividade vêm se restringindo

a ocasiões bem raras.

As Festas de Xangô

No dia vinte e três de junho de 2016, uma quinta-feira, foi realizada a

primeira fogueira de Xangô, denominada Fogueira de Airá – uma das

qualidades de Xangô conhecida na Bahia – que abre o ciclo de festas dando

início às homenagens ao orixá também conhecido como “O senhor da casa de

fogo” (LODY, 2010), sendo o deus ioruba do trovão. Esse ritual não envolve a

circulação de alimentos e nem a realização de matança. A fogueira é montada

em frente à casa de Xangô, permanecendo acessa até o final do ciclo, sendo

mantida pelos seus filhos de santo. Nessa ocasião os atabaques são trazidos

para próximo da fogueira e são tocadas algumas cantigas em homenagem ao

orixá. Alguns filhos viram no santo, fazendo chegar à terra Xangô e sua esposa

Iansã.

Na noite do dia 28 de junho de 2016, em volta da fogueira acessa

anteriormente é realizado um ritual conhecido como Fogueira de Afonjá – que é

a qualidade do Xangô da casa, aquele a qual pertencia a sua fundadora –

assim como na fogueira anterior são tocadas cantigas, os orixás chegam.

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No dia vinte e nove de junho de 2016, uma quarta-feira, o terreiro estava

num clima tranquilo, o barracão já estava enfeitado. A decoração contava com

galhos de akoko e birreiro8 nas manilhas que ficam duas à entrada e duas ao

fundo do barracão, além de diversos elementos cênicos vermelhos – cor

atribuída ao orixá – distribuídos pelo espaço e ligados à simbologia de Xangô,

como um oxê, machado de duas lâminas.

Um amigo e eu que estávamos trabalhando no barracão fomos

convidados para almoçar na cozinha da casa de Oxalá9. O prato servido

consistir em feijão (do jeito baiano: feijão mulatinho e o modo de fazer da Bahia

com coentro, hortelã graúda, um pouquinho de cominho e carnes de feijão, ou

seja, carne de sertão10, e carne verde11, além de linguiça calabresa e etc.),

arroz e bife de carne de gado, além de farinha de mandioca há a possibilidade

de se temperar o prato com pimenta, conhecido por molho lambão.

A comida está presente em diversos momentos dos dias de festa, no

café da manhã e também no almoço, além, é claro, da própria comida de santo

servida à noite no intervalo da festa. O cardápio do almoço é, como se pôde

ver no relato, a comida do cotidiano da Bahia, ou como se fala “comida de

branco”. Evita-se o azeite de dendê, uma vez que é uti lizado bastante na

comida de santo, e até mesmo quando é feito peixe, prefere-se escabeche à

moqueca. Sousa Junior (2014) fala brevemente sobre: “a expressão ‘comida de

branco’ é reservada ora aos ‘de comer’ do cotidiano – por exemplo, o

tradicional feijão com arroz –, ora àquelas comidas consideradas sofisticadas”

(SOUSA JUNIOR, 2014, p.132). O autor sugere que a comida de branco não é

novidade, seria do tempo da constituição das religiões de matriz africana, e

intercalam momentos. A literatura desse campo refere-se comumente à fartura

de comida durante os eventos (ver, por exemplo, Machado (2013), Ferretti

(2011) entre outros).

De fato, os cafés dos terreiros são algo que ainda está para ser estudado, o que será apenas possível através de

8 Espécies vegetais facilmente encontrada no terreiro.

9 Essa cozinha é utilizada durante o ciclo de festas para o preparo das comidas votivas e também da

comida comum dos homens e mulheres, como era o caso do almoço de hoje. 10

Charque ou jabá, carne seca. 11

Desde o século XIX vê-se em anúncio de jornal esse termo referindo-se à carne fresca.

Page 13: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

uma etnografia cuidadosa e específica. Não apenas os

cafés que encerram algumas festas, mas aqueles que abrem o dia consagrado a determinado orixá, a exemplo

do café de Oxóssi, do café de Oxalá. [...] O café nos terreiros – iniciado ora após a missa católica, ora após o sacrifício dos animais – é sempre temático: no café de

Oxóssi, por exemplo, há muitas frutas; no de Oxalá, embora não se utilize café, por ser considerado tabu para

este orixá por algumas casas, predominam as comidas brancas; e no de Obaluayê, abundam as deliciosas iguarias enroladas na folha da bananeira (SOUSA

JUNIOR, 2014, p.133).

Depois de almoçar fui à cozinha para lavar os pratos, pois esta era uma

oportunidade de adentrar a cozinha e poder observar as mais diversas

movimentações que se dão ali enquanto trabalhasse. Assim que cheguei à

porta da cozinha e vi ebomi Cida sentada numa cadeira cortando cebola,

tomei-lhe a benção e pedi para lavar aqueles pratos e ajudar no que mais

precisasse. Ela respondeu tranquilamente: “pode entrar meu filho!” Como não

havia ninguém utilizando as pias, pude imediatamente começar a trabalhar.

Estavam na cozinha, além de ebomi Cida, as ebomis Thomázia, Eurídes, Ana

Rita, Jane e a equede Carmem. Houve um momento em que ebomi Thomázia

me pediu ajuda para pegar uma bacia grande com água e despejá-la na pia.

Quando peguei o recipiente para escorrer a água, vi que eram cortes das aves

que haviam sido imoladas.

O clima na cozinha estava bastante descontraído e leve. As filhas de

santo mais velhas ficavam brincando umas com as outras, fazendo chiste, com

brincadeiras que demonstravam uma intimidade e um ambiente descontraído

que se faz perceber com frequência nesses momentos na/da cozinha. Lima

(2015) em um texto que discute a cozinha de um terreiro de candomblé traz

outro componente presente nos dias de obrigação:

O ejó (fofoca) é a ‘crônica da novidade’, um dos ingredientes que nunca falta na cozinha, assim como, o sal no qual todas as pessoas são alvos, estejam

alinhadas ou não nos seus afazeres ou na vida dentro do terreiro, razão pela qual o ejó (a fofoca, fuxico, mexerico)

aparece sempre nesse texto, não como um elemento meramente negativo ao candomblé, mas como um demarcador que aciona a tradição (LIMA, 2015, p.41).

Page 14: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Porém nem tudo no candomblé é fofoca. Há muito chiste e humor na

vida cotidiana de uma comunidade de candomblé. As pessoas fazem troças e

piadas umas com as outras o tempo todo. O tom jocoso se faz bastante

presente nas conversas em momentos descontraídos, assim como uma

diversidade grande de piadas internas e deboches sutis entre os irmãos de

santo. Também é preciso falar das cantigas de sotaque e ao fazer isso é

possível traçar um paralelo entre o chiste e as cantigas de sotaque no

candomblé, a qual é composta de versos que fazem menção direta às coisas

indesejadas que podem ser a presença de uma pessoa ou atitude, gesto ou

comportamento em desacordo com as normas ou expectativa da comunidade

religiosa. É uma cantiga cantada com segunda intenção, com a intenção de

dizer uma indireta a alguém, como demonstrou Landes (2002).

Saber das histórias, causos e crônicas da novidade de uma comunidade

de terreiro também reforça o sentimento de identidade comunitária à

semelhança do que foi observado por Fonseca (2005) em seu trabalho numa

comunidade popular do sul do país. Bater os acaçás, como se diz no

candomblé em relação a fazer uma fofoquinha, é importante na consolidação

do sujeito no grupo comunitário religioso, portanto saber quem é desafeto de

quem, quem foi casado com quem e hoje em dia não se falam mais, comentar

sobre a pessoa que veio à festa muito bem arrumada, ou de quem veio

bagunçado. Imitar os mais velhos quando estão zangados ou dando bronca,

escondido deles. Os apelidos que os jovens dão aos mais velhos e comentam

entre si dando risada. Tudo isso faz parte do processo de pertencimento e

formação da identidade desse grupo.

A Matança

Quando cheguei para a matança, por volta das 7 horas, o ritual não

havia começado, pois todos aguardavam a chegada de Mãe Stella. Na mureta

em frente à escola estavam o ogã Weligton, que é um dos axoguns12 da casa e

Cátia, equede de Oxossi. Alguns filhos de santo já estavam por ali. Quando me

dirigi à cozinha da casa de Xangô, vi os balaios com as aves dentro, no meio

da sala. Do lado de fora da casa, estavam dois carneiros (àgbó) jovens, já

12

Ogã de faca, responsável pelo ritual de sacrifício.

Page 15: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

devidamente enfeitados com laçarotes. Os galos e os conquéns13 já estavam

com os bicos e patas lavados.

Junto com Mãe Stella chegaram a Obá Terê e a ebomi Cida. Logo em

seguida, os atabaques começaram a tocar. Levantamos e batemos palmas.

Durante todo o ritual fui orientado por um dos irmãos de santo, Bião, a como

proceder. Fiquei prestando atenção nas letras das cantigas, quando num certo

momento percebi que todos balançavam e movimentavam o corpo, ainda

batendo palmas seguindo a música, isso tudo na varanda, sob o alpendre.

Depois os alabês tocaram para as Ayabás – Oxum e Iansã, pois quando se

realiza a obrigação para Xangô, homenageiam-se também suas esposas.

Antes de começar o ritual de matança, do qual não pude participar por

não ser iniciado, observei que todos os filhos de Xangô bateram a testa nas

cabeças dos carneiros, rendendo homenagem. De repente, os dois carneiros já

imolados dentro do quarto do peji de Xangô, sem as cabeças, foram jogados

para a varanda na qual me encontrava. Na mesma varanda havia cinco

grandes balaios enfileirados, que depois entendi estarem ali para receber os

bichos de pena após o sacrifício.

O carneiro, diferentemente das aves que após a matança foram

conduzidas pelas filhas ayabás até a cozinha da casa de Oxalá, é tratado ali

mesmo na varanda. Cortam, tiram o couro e as tripas, separam a carne em

partes e as colocam dentro desse couro, como se fosse uma bolsa, levando em

seguida para ser apresentada a Xangô (os assentamentos desse orixá).

Quanto aos bichos de pena, foram todos depositados nos cinco balaios,

já sem as patas e as cabeças. As iaôs ayabás (de orixás femininos) separaram

os galos num balaio, reservando os outros quatro para os conquéns, para na

sequência serem levados para a cozinha a fim de serem tratados. Não é

permitido carregar aves pelo terreiro fora dos balaios. Por tratar entende-se:

tirar as penas chamuscando-as no fogo, lavar, cortar, limpar, tirar a pele,

escaldar em três águas para aí sim fazer a separação e o preparo. São

separadas, nesse momento, as comidas em duas categorias, as que são axé

13

Galinha de Angola

Page 16: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

(para os orixás) e as que são comida (para os humanos). É importante

ressaltar que axé é um conceito polissêmico recorrente no universo do

candomblé. É utilizado para definir não apenas uma energia vital, mas o que

chamamos de comida dos orixás, os fundamentos de um terreiro também são

denominados de axé. De acordo com Azevedo Santos:

A palavra axé em nossa religião passou a ter vários

significados: o local de culto tem essa denominação (“amanhã vou para o axé”); a resposta recebida quando se deseja algo de bom para o outro, como se fosse “que

assim aconteça”; tornou-se até a representação da música baiana – “Axé Music”. Mas para os iniciados do

Candomblé, Àṣe significa, principalmente, força, poder, energia. (Azevedo Santos, 2010, p. 89)

Assim, também chamam de axé as vísceras e outras partes que são

oferecidas cruas aos orixás, bem como os peitos das aves, patas, cabeças e

sobrecu que são tratados e preparados para também serem oferecidos a eles.

Outros cortes como a carcaça, sobrecoxa e coxa, entre outras são cozidos

separadamente para serem oferecidos aos convidados mais tarde, aquilo que

Bastide (2001) chamou de repasto.

Após a matança e o transporte dos bichos para a cozinha da casa de

Oxalá, como eu já havia carregado o botijão de gás e instalado o fogareiro na

palhoça montada em frente à fonte de Oxum, numa instalação temporária, que

serve tão somente para que a preparação do carneiro seja realizada, Jane (que

é a Otum Dagã14), Vanda e a iaô Ana, todas as três de Oxum, contando ainda

com o auxílio da iaô Augusta de Iemanjá começaram a tratar o carneiro.

Conversando com Vanda sobre essa etapa do preparativo da comida de Xangô

ela me falou que adorava cuidar do carneiro:

Antigamente eram as mais velhas da casa de Oxum... Na verdade, continuam sendo as mais velhas, porque as mais velhas de Oxum hoje sou eu e Jane, e depois

Helena... Mas eram umas oito que sentavam ali e

14

Alguns cargos importantes possuem otum e ossi que poderia ser traduzido como auxiliares da esquerda

e da direita respectivamente. A ebomi Cida que é a Ossi Dagã exp lica a função do cargo: “A dagã é para

organizar tudo, de iaô ao ajeum. Então, quando a dagã não está, tem a otum dela ou tem a ossi. Então vai

estar ela ali dizendo: - você botou muito azeite, muito camarão. Porque tem também o toque, nada é

exagerado, na quantidade. E ela tem essa experiência da quantidade: - não bote mais senão vai ficar mais

vermelho.” (Ebomi Cida de Nana) .

Page 17: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

passavam o dia fazendo. Era um outro ritual, dentro do

ritual. Então era bem marcado. Depois as velhas foram embora, foram ficando doentes, Tia Zezilda, a Kolabá

[Ebomi Aydé, faleceu em 2016 durante o ciclo de Oxossi]. E aí as moças não se interessaram. Agora que Ana de Oxum, a iaô, tá chegando perto da gente. Mas as demais

não chegaram e foi ficando difícil. Teve um dia que eu e Helena tratamos três carneiros, só nós duas.

Interessante notar que quando os animais imolados foram jogados na

varanda, duas ebomis de Ogum saíram do peji, cada uma segurando uma

bacia de ágata com sangue, foram primeiro na porteira do terreiro e

despejaram um pouco no chão, em seguida por dentro e à direita da porteira

mais um pouco além de percorrer outros caminhos no terreiro realizando a

mesma ação. Este é um dos momentos em que o chão do terreiro come,

quando se transmite axé através do sangue do sacrifício para o solo do

terreiro15. Sobre o ritual do sacrifício é importante mencionar alguns detalhes:

ele não é propriamente secreto, de acordo com Roger Bastide (2001, p.31):

Essa parte do ritual não é propriamente secreta; porém,

não se realiza em geral senão diante de um número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da religião.

Teme-se sem dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos correntes sobre a ‘barbárie’ ou o ‘caráter supersticioso’ de religião africana.

Café da Manhã após a matança

Acabada a função da matança, instalam-se mesinhas e cadeiras na

varanda, cobertas com toalha de chita e os filhos e filhas de santo ficam

entrando e saindo da casa de Xangô trazendo seus pratos que já estavam

montados na cozinha e que o pessoal chama de kit. O café e as xícaras

estavam do lado de fora para facilitar, pois esse café da manhã conta com a

participação de muita gente. Há um pequeno alvoroço nesse momento, pois

todos estão com um pouco de fome, uma vez que manda a tradição levantar-se

em jejum por volta das seis horas para a obrigação da matança. Além de ser

um momento de descontração, “comensalidade” e partilha. As pessoas

15

Aqui se poderia pensar com Lévi-Strauss, em algo mais próximo da natureza porque cru (o sangue), ao

mes mo tempo em que mais elaborado e próximo da cultura devido à mediação dos utensílios e da ação

elaborada das ebomis. Essa análise estruturalista da comensalidade merece ser desenvolvida em trabalho

futuro.

Page 18: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

conversam tranquilas e felizes, os irmãos se reveem, já alguns moram longe e

só aparecem em algumas festividades. A comida do café estava bem

saborosa, tinha pão com queijo, empadinha, fatias de bolo além de mungunzá

(de milho branco).

Depois do café segui para a palhoça onde estavam as ebomis de Oxum,

tomei-lhes a benção e me pus à disposição para ajudar a carregar uma panela

ou levantar algo mais pesado necessário para preparo das comidas. Elas

estavam sentadas tratando a cabeça do carneiro, enquanto eu falava com elas

dava para ver o olho do carneiro bem brilhante como se estivesse olhando para

mim. Vanda, docemente, perguntou como eu estava. Ai Jane disse: “você não

acha melhor ir lá embaixo ver se precisam de ajuda porque aqui temos pouca

coisa por enquanto”. E tem a questão do carneiro e a predileção das filhas de

Oxum por tratá-lo e tudo mais.

A equede Carmem já havia me solicitado para ir trocar as folhas que

decoravam do barracão, mas eu estava tentando me desvencilhar dessa tarefa

para poder ficar perto da cozinha. Com essa intenção, falei com ebomi Cida

que devido a minha pesquisa de mestrado estava interessado nos movimentos

da comida e dentre outras razões estava ali para de preferência para fazer

observação do que acontecia na cozinha, por isso a predileção por trabalhar ali

e não no barracão. Ebomi Cida me respondeu: “então, fique ali perto do

barracão que daqui a pouco eu te chamo”, o que reforça a ideia de que quem

faz trabalho de campo no candomblé não escolhem o que observar, além de

demonstrar a hierarquia dessa religião e que aquilo que pode ser lido como

insolência não é tolerável.

No momento em que estava voltando de trás da casa de Iemanjá, onde

fui jogar as folhas velhas que decoraram o barracão na festa anterior, encontrei

ebomi Thomázia e falei a ela da pesquisa sobre os percursos da comida,

quando ela disse: “olha, chega ali na cozinha e peça para lavar uma louça,

alguma coisa, se plante ali! Fique ali e procure”. Fui e fiquei por ali perto da

cozinha onde havia aquela mesa comprida em que estavam sendo tratados os

conquéns e galos. Tinham diversas pessoas, umas iaôs, algumas ebomis, na

verdade, o pessoal que geralmente trabalha na cozinha, dentre eles Pedro que

Page 19: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

é abiã assentado de Oxalá e Cláudio de Xangô que fará em breve a obrigação

de seis anos16. Cheguei e comecei a conversar com eles, quando chegou uma

iaô de Oxum e disse a Cláudio: “Meu pai, o senhor pode amolar essa faca?” E

ele disse pra mim: “Vá lá, meu irmão”. Ela largou a faca na mureta e eu peguei,

pois no candomblé as pessoas não passam a faca (obé) diretamente um para o

outro – pois se acredita que a faca como instrumento cortante pode influenciar

na continuidade ou interrupção de qualquer forma de relacionamento. Fui,

então, lá nos fundos da casa e amolei a faca. Na sequência Pedro levantou-se

para fazer algo e eu já fiquei pilando o camarão seco e conversando sobre

capoeira, escola, trabalhos acadêmicos, sobre um monte de coisas. Ebomi

Thomásia passou e disse: “Viu como é fácil, que o serviço logo aparece”.

Quando terminamos fui guardar o pilão na palhoça17 nos fundos da casa de

Oxalá. Entrei na cozinha, tomei a benção da ebomi Ana Rita e depois da ebomi

Oyá Toki18 (Tutuca), ambas de Iansã, e falei que estava ali à disposição se

houvesse algo para lavar, escaldar, etc. “Ah então aproveita e lava aquela

panela ali” me disse Oyá Toki, confirmando a máxima de que o serviço aparece

quando você se torna disponível.

Já era quase uma da tarde quando começou a função de convocar os

meninos para tocarem os atabaques convidando para o almoço. Mais cedo,

ebomi Ana Rita estava preparando o almoço na cozinha de Oxalá e separando

os pratos em uma das despensas. O almoço era arroz, feijão tropeiro, coxa e

sobrecoxa de frango. Ebomi Cida me pediu para levar uma panela de frango

para a casa de Xangô, para servir as pessoas que almoçam lá, solicitando que

eu voltasse para almoçar com eles ali na casa de Oxalá. Recomendou que eu

não me esquecesse de trazer os panos de prato de volta.

Na casa de Xangô almoçam a iyalorixá, obás, alguns ogãs e os filhos

desse orixá, além de outras pessoas próximas ou com posto na hierarquia

16

Os filhos de Xangô completam a maioridade religiosa com a obrigação de seis anos (pois 12 é número

desse orixá e seis corresponde à metade desse número), diferente dos demais que é aos sete anos. O

dilogun também possui 12 fios contas, enquanto os demais possuem 16 e o tempo de recolhimento

também é reduzido. 17

Essa é a verdadeira palhoça do terreiro, suas paredes são de alvenaria, mas seu telhado é de palha e o

chão de arreia da praia. Por ocasião das Águas de Oxalá, todos os anos, os assentamentos desse o rixá são

transferidos para lá. 18

Este é o seu orunkó, nome de iniciação. A rigor as pessoas deveriam tratar -se por estes nomes no

terreiro.

Page 20: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

religiosa. Entreguei a panela que carregava na cozinha de Xangô aos cuidados

da equede Carmem que me pediu para levar para Ana Rita um pacote de pés

de moleque para a sobremesa. Cida brincou comigo dizendo que eu era um

bom garoto de recado por ter trazido os panos de volta. Ofereci-me para

distribuir os pratos, à medida que elas serviam eu colocava os garfos e levava

para quem estava no barracão. Geralmente o molho de pimenta e a farinha

ficam a parte. Nesse dia o molho estava bastante forte, de acordo com o alerta

feito pelas ebomis que estavam almoçando ao meu lado.

Os preparos da comida

Na cozinha as cebolas eram batidas no liquidificador para fazer a cocada

que é a base de praticamente todos os pratos. A cocada é a cebola refogada

no azeite de dendê com camarão seco pilado, elas a chamam assim devido à

semelhança visual com a preparação da cocada-puxa19. Ebomi Thomázia,

próxima a mim, colocou a cebola e o camarão por cima dos cortes das aves na

panela que estava no fogo. Em seguida, equede Cátia passou despejando

azeite de dendê nas panelas utilizando uma concha para isso. Ela tirava o

azeite de um balde dos maiores que eu já vi, do tamanho daqueles potes de

margarina para fabricação em padarias. Depois de um tempo, ebomi Thomázia

perguntou: “quem foi que tirou meu conquém do fogo?”. Ebomi Eurídes disse

que tinha sido ela, pois havia colocado algum axé pra cozinhar, o que

justificaria a sua precedência. O axé, nesse caso, é a comida – que também é

uma forma de energia vital, uma forma de mediação entre o mundo dos

humanos e dos orixás – que será oferecida ao orixá em seu peji, ou como se

diz na linguagem habitual do terreiro, será oferecido aos pés do orixá. Também

se explica a pressa em terminar o preparo do axé em detrimento do preparo

das outras comidas que são destinadas aos humanos pelo fato de não se

oferecer a comida quente a determinados orixás. Para alguns orixás a comida

é oferecida quente, a exemplo de Xangô, para outros elas devem estar mornas

ou frias. Contudo, esse conhecimento sobre a temperatura da comida está

relacionado à categoria de fundamento, somente acessível aos iniciados e

conforme o tempo de feitura vá permitindo. A seguir reproduzo trecho sobre a

19

Que é um doce muito comum em Salvador, vendido em alguns tabuleiros das baianas de acarajé.

Page 21: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

reflexão que Rabelo (2015) propõe sobre aprendizagem e fundamento no

candomblé, que é esclarecedora:

Entender o aprendizado no candomblé requer uma

discussão sobre os modos de acesso e circulação do conhecimento religioso. Parte deste é considerado

secreto (fundamento) e mantido fora do alcance não só dos de fora, mas também daqueles, de dentro, que se situam na base da hierarquia religiosa. Mas, conforme já

observei (Rabelo, 2014), tão importante quanto avaliar o papel do conhecimento – na manutenção da autoridade

da casa, na distinção dos mais velhos, etc. – é compreender o lugar que ocupa o não conhecimento na vida do terreiro (REBELO, 2015, p.238).

Algumas observações sobre tratar os bichos e preparar a comida dos

orixás

É importante ressaltar alguns aspectos em relação ao trabalho de tratar

os bichos depois da matança e o posterior preparo da comida para os orixás,

chamado de ajeum. Somente as pessoas iniciadas podem preparar a comida

dos orixás. Os abiãs, aqueles que não são iniciados, podem chegar à cozinha,

mas nunca tocam na comida do orixá, conforme foi afirmado pela ebomi Cida:

“pegam nas panelas pra lavar, catam o camarão, descascam as cebolas, mas

o ajeum mesmo quem prepara somos nós os iniciados”.

Em relação às protagonistas da cozinha do terreiro, a ebomi Cida

informa que no candomblé, de um modo geral, existe um cargo (oiê) chamado

iabassê que é responsável por tudo da cozinha, sendo sempre uma filha de

santo que não se manifesta: “Porque ela vai coordenar a cozinha da manhã até

à noite. Não é ela quem faz tudo, ela é quem coordena” (ebomi Cida de Nanã).

O cargo de iabassê corresponde ao de chefe da cozinha, pois, além de ter a

experiência de saber fazer de tudo relacionado à comida de santo, é ela quem

organiza e escala os grupos de trabalho. Determina o que cada um deve fazer

na cozinha e também, à noite, deve chamar outro grupo para servir os

convidados da festa no barracão. Porém no terreiro o posto de iabassê está

vago e a atribuição correspondente tem sido dividida entre as filhas de santo

mais velhas. Nas palavras da ebomi Cida:

Page 22: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

A nossa iabassê faleceu e como a maioria das filhas de

santo se manifestam, né, a Mãe Stella não achou ainda uma iabassê por isso, porque todo mundo se manifesta.

Imagine você, a iabassê que vai organizar e tá de orixá, e ai? Não pode, né! (ebomi Cida de Nanã)

Algumas ebomis tomam a frente na coordenação da cozinha, a exemplo

da Cida que é a Otum Dagã e Jane que é a Ossi Dagã, segundo Cida:

Aqui no terreiro todo mundo faz. E tem outros postos que

ajudam, a Iaquequerê (mãe pequena da casa) que gosta de ficar também na cozinha, ela tá sempre orientando a

gente. Todo mundo sabe cozinhar, mas imagina uma cozinha com todo mundo mandando. Tem que ter alguma autoridade. (ebomi Cida de Nanã)

Observei que essa autoridade a qual Cida mencionou é exercida por ela e

Jane, mas Ana Rita de Oyá também é bastante presente na cozinha

auxiliando-as nessa tarefa de coordenação. Conforme o orixá que é

homenageado pela festa, surgem novos sujeitos na cozinha. Por exemplo, nas

festas de Xangô, Cesário – que é ebomi de Xangô –, é visto cozinhando. Nas

festas de Oxalá outros ebomis, como Osvaldo de Oxalufã e Thomázia de

Oxaguiã também se mobilizam para a tarefa.

Aqui não tem a iabassê, aí fica a gente, a Dagã e umas

mais velhas que gostam. O posto nem é pra ficar na cozinha, mas por gostar tanto, tem a ogalá20, Tutuca, ela gosta de ficar na cozinha. E a gente adora! Quando é o

Olubajé, mesmo, ela coloca os grãos todos no fogo, enquanto tá tendo o sacrifício. E quando a gente chega na

cozinha, tá tudo já cozido é só pra temperar mais tarde, pra não estragar. O camarão não pode temperar cedo. Então, essa parte aí parece que ela se identificou. E de

noite ela está no barracão cantando, chama os orixás, depois canta pros orixás. A função dela não é iabassê,

mas ela gosta. Às vezes, a gente brinca até (risos) teve uma discussão, sua voz: - não, eu gosto de ficar aqui! Né, quentura com garganta, mas ela gosta, mas ela não é

iabassê (ebomi Cida de Nanã).

Em outro trecho da entrevista Cida traz uma reflexão interessante sobre

o fato da maioria das fi lhas de santo se manifestar:

20

Posto responsável por cantar as cantigas dos orixás nas festas e demais obrigações.

Page 23: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

É. Isso é a leitura porque hoje os orixás tão mais... as

pessoas estão se identificando mais com os orixás. Então, a maioria se manifesta. Mas aqui tem muitas ebomis, até

nossa iaquequerê, por exemplo, raspada e tudo, mas nunca se manifestou, entendeu?! Não tem orixá?! Tem sim. Mas se o orixá não se manifestou. Tem umas

pessoas que são pra rodar, pra dançar. Outras são só pra proteger mesmo, está ali, ela fez tudo que tinha que fazer

como adoxu, mas o orixá não se manifesta (ebomi Cida de Nanã).

É necessário que as pessoas responsáveis pelo preparo das comidas

possuam bastante experiência para identificar os animais quando estes já

estão sem as penas. Para que não se atrapalhem, pois na festa de Xangô não

come somente esse orixá, as iyabás Oxum, Iansã e Yemanjá também comem.

O mesmo ocorre com os outros orixás, como pode ser visto na fala da ebomi

Cida:

Como eu falei no começo, a festa é de Ogum, mas tem as outras iyabás pra comer. Então, é preciso ter cuidado pra

não pegar o galo e colocar no lugar da galinha. Pra quando for oferecer pra Ogum, já pronto, não colocar a galinha no lugar do galo. Oxum e Yemanjá vão receber as

galinhas e o Ogum os galos. Quem corta, depena, quem abre tem que prestar a atenção para não misturar com os galos, e nem os galos com as galinhas. Então, você fica

nessa parte, a galinha é cá. Ou, no mesmo balaio que pegou, coloque, porque os balaios vêm separados, os

galos e as galinhas. Porque bode e cabra dá pra identificar porque sempre fica uma pessoa: - peguei a cabra, vou até o fim, limpa, aferventa, depois lava, depois

tempera e depois põe na bacia de ágata. Dá pra identificar, e o bode não, coloca no alguidar. Ai a gente

sabe que ali na bacia é a cabra e no alguidar é o bode. Agora a galinha você tem que ficar de olho, porque depois que tira o ovinho tudo é uma coisa só.

Certa vez, depois de uma matança e do café da manhã fui tratar os

bichos de pena. Uma ebomi se encarregou de tratar os pombos. Localizei um

lugar para trabalhar nos fundos da cozinha, forrei a bancada com jornal como

estavam fazendo os outros. Escolhi uma galinha no balaio, peguei emprestada

uma bacia de plástico para poder levar o bicho até a parte interna da cozinha,

onde havia uma panela na qual as galinhas deveriam ser mergulhadas de

ponta-cabeça rapidamente. Esse procedimento serve para que se possa

Page 24: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

depená-las. Alguém avisou que a água estava muito quente, então, mergulhei

de forma bem rápida para que a pele não se desmanchasse quando fosse

puxar as penas. Rosa que é equede ficou ao meu lado e conversávamos

enquanto depenávamos. Velhas ebomis estavam sentadas trabalhando e

contavam que antigamente a fonte em que se buscava água para carregar para

Oxalá era bastante longe do terreiro. Não era como agora, que a fonte é dentro

do terreiro. Outra senhora confirmou dizendo que quando era criança ouvia o

barulho da sineta na madrugada e espiava escondida de sua mãe as filhas de

santo subindo a ladeira ao lado do terreiro. Em seguida, um fi lho de Oxaguiã

passou oferecendo batata doce cozida. Naquele momento, Rosa disse-me

baixinho que batata doce era comida de Oxumarê e quem quer agradá-lo

oferece. Interpretei que ao falar baixinho sobre esse detalhe Rosa

provavelmente teve a intenção de evitar que outras pessoas escutassem o que

ela estava me falando, pelo assunto ter proximidade a algo de fundamento e

com o intuito de evitar o ejó (fofoca), sobretudo, pelo fato de eu ser um abiã –

sabidamente não habilitado para esse conhecimento – e pesquisador na roça.

Conforme as pessoas terminavam de depenar as galinhas foram

colocando-as de volta no balaio. Uma iaô de Yemanjá me chamou para

carregar o balaio com ela, perguntei se eu podia carregar, já que meu orixá é

masculino (okurin). Ela não respondeu e fez um gesto para que eu pegasse

logo o balaio. Levamos esse balaio para um pouco distante das pessoas que

trabalhavam, peguei uma grande bacia de alumínio e transferimos para ela os

bichos, em seguida joguei álcool e risquei um fósforo. Uma ebomi com

bastante experiência supervisionou o processo. Esse procedimento serve para

que se consiga retirar completamente os caniços das penas. Enquanto

esperávamos a bacia esfriar, outra ebomi chegou para a iaô de Iemanjá que

estava trabalhando comigo e lhe chamou atenção por não ter me respondido

quando perguntei se poderia carregar o balaio. Passado um tempo ela me

explicou que é somente no momento da matança que as pessoas com orixá

feminino (ayabá) devem alcançar as aves para o axogum, assim como,

carregar o balaio seja para apresentar para o orixá ou para levar até a cozinha.

Page 25: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Consegui uma bacia emprestada – a qual fiquei encarregado de zelar e

devolver ao dono depois – e fiquei ao lado da iaô que foi me ensinando como

cortar a galinha. Fui aprendendo como separar os axés e as carnes que

servirão para os humanos. A primeira coisa que fiz foi separar o pescoço e ela

me alertou que deveria retirar com bastante pele. O pescoço é limpo com

bastante cuidado, removendo-se a pele retirando gorduras e depois colocando

a pele novamente. Depois os pedaços das carnes são lavados por três vezes,

enchendo a bacia com água e limpando as carnes com as mãos. A moela e o

coração são separados por serem axés, as demais vísceras são descartadas.

Terminado esse processo de limpeza das carnes, elas são entregues as

ebomis que as cozinharão.

O preparo da cebola para o ajeum é também de suma importância. Do

lado de fora da casa de Oxalá, me juntei a duas iaôs e começamos a cortar

cebolas. Havia uma saca de cebola para ser cortada. Cada um pegou uma

cadeira e uma bacia e fomos picando as cebolas enquanto conversávamos

descontraidamente. Ebomi Oyá Toki sentou-se próximo a gente para fazer a

mesma tarefa e em seguida uma senhora, ebomi de Ogum, também chegou

começando a trabalhar e conversar. Após retirar a casca da cebola, ela era

cortada segurando-a na mão e cravando-lhe a faca fazendo linhas verticais e

depois um leve corte na horizontal. Essa é uma forma bastante comum de

cortar cebola no cotidiano na Bahia. Cheguei a perguntar a iaô se era preceito

cortar daque la forma. Ela riu e respondeu: “você está na Bahia”. Brinquei

dizendo que se eu tivesse uma tábua cortaria dez vezes mais rápido. Ebomi

Oyá Toki disse que não precisava ser cortado muito miúdo porque seria batido

no liquidificador no dia seguinte. Pedro que é abiã de Oxalá chegou quando já

não restavam muitas cebolas para cortar e perguntou se poderia ajudar. Sua

irmã de santo mais velha – Neide que é iâo de Oxaguiã – pediu para que ele

fosse ajudar a montar o kits para o café da manhã e se ele cortasse cebola

conosco, os pães ficaria com gosto de cebola quando fosse passar manteiga.

Então Pedro ficou somente conversando. Acabado o serviço, as cebolas

picadas foram acondicionadas na geladeira e aproveitei esse momento para

ficar conversando mais um pouco sentado no batente do barracão.

Page 26: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Houve um momento também em que perguntei a ebomi Ana Rita se eu

poderia pegar uma faca e ajudar a equede Vera a descascar os inhames. Ela

disse que sim e me apontou onde estava o obé. Sentei-me próximo de Vera e

comecei a cortar os inhames com ela, que me pediu em seguida que eu

enchesse uma panela com água para que fossemos limpando os pedaços

descascados, deixando-os prontos para serem cozidos. Rapidamente

terminamos essa atividade e lavei os utensílios. Carregamos a panela,

acendemos o fogão e colocamos os inhames para cozinhar. Depois de cozidos,

devem amornar, para depois ser pilados, a partir da massa branca que resulta

desse procedimento é que são feitas as bolinhas de inhame. Ebomi Ana Rita

estava cozinhando o amalá na panela grande (a maior de todas as panelas da

cozinha é sempre usada para cozinhar o prato predileto de Xangô, o dono do

terreiro), e os outros pratos estavam encaminhados: o feijão fradinho estava

escorrido, assim como o milho branco. Passei na palhoça em frente à fonte de

Oxum, Augusta e as ebomis de Oxum cortavam bem miudinho a carne do

carneiro, antes Augusta havia me dito que aferventa a carne uma vez só,

depois é picado para ser cozido. Disse ainda, que a cabeça do carneiro

precisava ser tratada com cautela, pois tem umas glândulas que precisam ser

retiradas, coisa que eu tinha visto fazerem mais cedo.

É necessário tecer alguns comentários sobre o retorno da comida que foi

oferecida ao orixá. No dia seguinte a mãe de santo, ou a mãe pequena

consulta o orixá através dos búzios ou de um obi e pergunta ao orixá se pode

distribuir aquela comida para fi lhos. Às vezes, o orixá consente que se divida

com os filhos. Às vezes ele diz que não consente. E, então, se pergunta o que

é para ser feito e o orixá indica onde colocar. Podendo ser na mata, na água ou

em outro local específico. Um ebomi me contou de uma situação na qual o

orixá determinou que a comida deveria ser colocada no mar e determinou um

local específico na baía de todos os santos onde deveria ser despachada.

Quando é determinado que a oferenda retorne para ser dividida,

geralmente uma ayabá – uma filha de santo de orixá feminino – senta e

começa a fazer uma arrumação, a retirar os ossos, segundo afirmação da

ebomi Vanda:

Page 27: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Quem gosta muito de fazer isso é “Jinuaxê” (ebomi

Helena de Oxum). Então ela senta lá que nem uma rainha e ela começa. Ai as pessoas chegam lá e dizem: Eu

quero aqui, quero tal pedaço. E ela vai repartindo. E as pessoas levam para casa, fazem uma outra comida, alguma outra coisa (ebomi Vanda de Oxum).

A oferta da comida Na cozinha, após o ritual do padê, por volta das cinco da

tarde, as comidas destinadas ao público já se encontram prontas e

descansando – ou seja, esfriando – em uma sala junto à cozinha que serve de

apoio. As comidas são levadas para a cozinha do barracão, que é

propriamente um refeitório onde os abiãs repartem as comidas em pratos

descartáveis para serem distribuídas no intervalo da festa. O axé, ou seja, a

comida que será oferecida a Xangô em seu peji deverá ser conduzida para a

casa de Xangô. Nessa ocasião um filho de Xangô que é também ogã de Oxum

carregou sobre a cabeça uma grande bacia de ágata com esse axé destinado

ao orixá. Dirigi-me para lá, entrei e fui salvar Xangô, fiz o dobalê, bati o peito,

prostrei-me ao chão em reverência ao orixá, agradeci, fiz alguns pedidos. E

naquele momento rápido aproveitei para passar os olhos nos pratos que

estavam dispostos no chão. Na bacia grande estavam os peitos das aves

(galos e conquéns) cozidos e refogados no bambá21. Estavam dispostos de

maneira harmônica formando um desenho circular, as cabeças das aves

também compunham o desenho do prato que ainda contava com diversos

acaçás, sem a folha de bananeira que os envolve normalmente, dando um

toque final ao prato. Ao lado direito via-se um alguidar com omolocum22

destinado à Oxum e localizado próximo do seu local, dentro do quarto de

Xangô. Havia ainda diversas gamelas contendo amalá, que possuíam dois

acaçás, sem a folha de bananeira, além de seis bolinhos de inhame dispostos

por cima do amalá. Havia também outros pratos com outros tipos de axés.

Salvei Xangô junto com outro abiã de Xangô. Saí do quarto do santo e

encontrei o ogã Fábio Lima, segurando duas gamelas pequenas de amalá,

uma em cada mão, que me disse: “Venha. Leve lá”. Ele foi até a árvore que

tem em frente à casa de Xangô e disse: “Faça exatamente como eu estou

21

A cocada que já foi mencionada (cebola e camarão seco pilado refogado no azeite) também pode ser

denominada de bambá, podendo ser a própria “cocada” ou ainda o caldo que resulta desse cozime nto. 22

Feijão fradinho, com cebola, camarão seco, azeite de dendê e ovos de galinha cozidos dispostos

inteiros, comida oferecida à Oxum.

Page 28: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

fazendo”. Falou uma saudação, levantou e abaixou três vezes a oferenda e a

depositou aos pés do Iroko23. Pediu para que eu fosse fazer o mesmo

procedimento aos pés do outro Iroko. Assim, fui conduzindo o prato de amalá

que tinha seis quiabos inteiros, seis bolinhas de inhame e dois acaçás por

cima, um em cada extremidade. Levei até o Iroko, passando pelo barracão, em

direção à casa de Ogum.

Em conversa com uma das interlocutoras da pesquisa me foi revelado

que se faz um único prato para ser oferecido aos pés de Xangô, que segundo a

ebomi de Oxum fica muito bonito:

Eu arrumo mais ou menos. Cida já arruma muito bonito.

Ana Rita faz muito bonito também, ela consegue colocar os peitos todos assim... Talvez eu não tivesse treinada paciência e como eu cozinho o dia todo, também no fim

da tarde eu já estou cansada eu termino dizendo... faz você que você faz mais bonito. Às vezes eu acho que já é

o cansaço mesmo que explode. É um único prato. Uma coisa que é importante na comida é a estética. A estética é importante. Quando a gente põe a comida no prato, por

exemplo, não pode oferecer um prato melado de azeite nas bordas. Então quando a gente arruma tudo, ai volta

com um paninho e sai arrumando tudo, limpando, limpando. Então fica parecendo que a comida está desenhada, pintada no prato. A parte estética é

importante. E os acaçás não enfeitam o prato, eles fazem parte do axé. Ele está ali também como axé. (ebomi

Vanda Machado)

A festa do dia Dois de Julho de 2016

O terceiro dia das festividades de Xangô é chamado de itá, que ocorre

justamente em dois de julho, feriado importante no calendário do estado da

Bahia, Dia da Independência do Brasil na Bahia.

Chegando na festa encontrei conhecidos, e juntos entramos no

barracão. Aos poucos as filhas de santo começaram a entrar no barracão,

perfumadas e arrumadas trajando as suas “não sei quantas anáguas” por baixo

das saias rodadas – que como pude conferir mais cedo, dão um “trabalho do

cão”, como se referiu uma filha de santo, para engomar e passar – usam

23

Uma das árvores sagradas cultuadas no terreiro.

Page 29: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

também um camisu24, torço na cabeça e contas no pescoço, mokâ25 e dilogun26

para as iaôs, além de contra-egum27 nos braços. Os abiãs de santo assentado

também uti lizam o mokâ e os contra-eguns. As ebomis utilizam uma bata, pois

já não precisam usar tantas anáguas e após a obrigação de sete anos não

utilizam mais o dilogun, mokâ e contra-egum. Podem usar contas maiores e

passam a poder utilizar sapatos na roda. Antes de alcançar esse estágio, todos

entram na roda para dançar descalços. As filhas de santo rodantes também

trazem o pano da costa amarado no peito quando são iaôs. E quando são

ebomis podem amarrar no peito ou na cintura durante as obrigações.

Os homens utilizam calça branca e camiseta branca. Não utilizam torço,

mas sim um chapeuzinho de pano branco chamado filá. A diferenciação de

senioridade entre os homens rodantes, isso é os que entram na roda para

dançar e viram no santo (adoxu), se dá através da bata. Os mais velhos podem

usar batas compridas que podem possuir bolsos, os mais jovens, não.

As equedes (ajóiés) trajam vestidos mais justos ao corpo, torço e sapato,

utilizam também suas contas. Os vestidos muitas vezes são feitos com tecidos

africanos – isso faz movimentar um mercado transatlântico até os dias de hoje.

Conheci em Salvador, anos atrás um nigeriano de Ifé que mercava produtos

africanos para mães e pais de santo da Bahia e de São Paulo. Panos brancos

sempre acompanham as equedes, com os quais enxugam o suor dos orixás

quando estão manifestados.

Os ogãs usam roupa social comum, tipo calça jeans camisa ou camiseta

polo geralmente. Outros utilizam conjuntos estampados de tecidos africanos, o

que tem estado bastante em alta no momento. Alguns poucos vestem terno ou

paletó, geralmente branco, isso é mais comum entre os obás de Xangô.

Observando fotos dos candomblés das décadas de 1930 e 1950 vemos a

maioria dos homens de terno.

24 Blusa parecida com uma bata. 25

Uma espécie de colar feito de palha que dentre outras coisas representa um sinal diacrít ico utilizado

pelo que tem santo assentado e dispensável para os que já concluíram as obrigações de sete anos. 26

Conjunto feito com 16 fios de conta fininhos, podendo haver variação no número quando relacionado a

alguma divindade específica. 27

Bracelete feito de palha que como o nome diz, tem a função de proteger contra eguns (espíritos do

ancestral).

Page 30: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Quando os alabés começam a tocar os atabaques, é sinal de que a festa

começará em instantes. Os obás, ogãs, equedes, convidados e visitantes

foram chegando e tomando seus assentos. Então vai formando-se uma roda de

filhos da casa para salvar os atabaques, depois de ter salvado a porta do

barracão e posteriormente a mãe de santo ou a iaquequerê (mãe-pequena) no

caso da ausência daquela. O chão e os atabaques são salvos levando a mão

ao chão e em seguida à cabeça. Já a mãe pequena como o dobalê ou iká.

Após isso, os rodantes vão para a roda e os demais retornam para seus

lugares. Ogãs e equedes são dispensados desse momento. A roda é sempre

encabeçada pela tia Obá Terê que é a filha mais velha após a mãe de santo e

segue a ordem hierárquica. Forma-se uma roda interna somente com as

ebomis agbás (aquelas que têm mais de trinta anos de santo) atrás de Obá

Terê e envolta delas num círculo maior os demais filhos. Depois se torna só

uma grande roda para o xirê. A primeira música é para saudar Ogum e segue

uma música para cada orixá. Quando se canta para Xangô que é o patrono do

terreiro, todos descobrem a cabeça, até mesmo a mãe de santo retira seu ojá

da cabeça, depois se recoloca. Para chegar às canções que evocam os santos,

passa-se por canções a Ododua e Orunmilá (que são divindades da

cosmologia iorubá, mas que não chegam na terra, não possuem filhos de santo

feitos).

A essa altura da festa a animação já começa a ficar alta. A música é

puxada pela ogalá28 Oyá Toki ou pelo ogã Welligton de Ogum. Funciona no

esquema de canto e resposta (antífona), como as músicas de barracão são

bastante conhecidas a plateia e a família de santo cantam, os visitantes batem

palmas. Surgem gritos estridentes: Kaô-Kabiesilé29 puxado por alguém e

respondido por muitos. O ritmo dos atabaques aumenta, as palmas também e

conforme começam a ocorrer os primeiros barraventos, quando os filhos e

filhas de santo vão perdendo o domínio completo sobre seus corpos e

começam a rodopiar. E as pessoas bastante alegres gritam a saudação do

orixá que se aproxima. Logo em seguida o filho vira no santo, o orixá chega na

28

Posto responsável por cantar as cantigas sagradas no barracão durante as festas e também em

momentos privados relacionados às questões de fundamento do candomblé. 29

Saudação para Xangô.

Page 31: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

terra, firma-se no chão após o rodopio, solta o seu estrondoso ilá (seu grito

característico) a plateia e a família de santo gritam juntos: Kaô-Kabiesilé! Kaô

Isso leva alguns minutos, outros orixás vão chegando. As equedes

cuidam dos filhos e filhas de santo quando estes viram no santo. Retiram-lhes

os sapatos, óculos e brincos, retiram também a bata e fazem uma amarração

distinta com o ojá com laços atrás quando se trata de uma àyabá, ou seja,

quando o orixá é feminino. Quando o orixá é masculino, okurin, não fazem os

laços, somente amarra-se o ojá na cabeça. No caso dos homens, lhes é

retirada a camiseta ou bata e amarra-se um ojá branco em volta do tórax.

Segue-se a sequência das cantigas de invocação quando se chega ao fim a

roda é desfeita e os filhos que não viraram no santo voltam para os seus

lugares, quando são ebomis àgbás sentam-se em cadeiras que ficam ao lado

dos atabaques. As iaôs sentam-se em um canto próximo às ebomis, porém em

um nível mais baixo do que as mais velhas.

Então se começa a tocar uma sequência que pode variar de uma a três

canções para cada orixá presente. Os orixás vão até o centro do barracão e

executam sua coreografia, nas quais estão expressando passagens

mitológicas, quando ocorre aquilo que parece ser o ápice da dança, eles a

realizam bem em frente aos atabaques. Algumas danças são executadas

somente por aqueles orixás que estão sendo homenageados pela música, em

outras são acompanhados por outros orixás. Os orixás andam pelo barracão,

saúdam as pessoas, prostram-se no chão em reverência à ialorixá, iaquequerê,

alguns outros dignitários, o pai ou mãe pequena daquele filho de santo.

Quando acaba a sequência das músicas, os orixás são conduzidos para

os respectivos quartos das malas (homens na esquerda, mulheres à direita do

barracão) onde são vestidos com seus trajes de gala que estão na mala de

cada um, juntamente com suas ferramentas. Enquanto isso se executa outra

sequência em homenagem a outro orixá. Quando o último orixá presente é

homenageado e retira-se para o quarto das malas começa o intervalo. Os

atabaques param e quando é dada a ordem pela mãe de santo se inicia a

distribuição dos pratos.

Page 32: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

O Ato de Comensalidade durante a Festa

No momento em que se começa a tocar as músicas que invocam os

orixás, os abiãs são chamados para montar os pratos, ou seja, repartir a

comida para o ajeum, para o ato de comensalidade em homenagem a Xangô.

Não assisti a essa parte da festa, porque fui requisitado para essa tarefa.

Na cozinha do barracão, junto à parede ficam dispostas as grandes

panelas com a comida. Na ponta perto da porta sempre fica o amalá, seguido

pela panela de arroz, depois o ebô de Yemanjá, o omolocum, o xinxim de ave

(galinha, galo, ou conquém) todas essas panelas ficam dispostas em cima de

um banco comprido, que vai da porta até a pia. Em cima da pia ficam as

bolinhas de inhame e o eran de carneiro e mais à direita ainda o pote de aruá30.

Alguém, geralmente de Xangô, se habilita a servir o amalá, outro alcança a

bandeja com os pratos plásticos para este da ponta que põe o amalá e entrega

para quem está servindo o arroz (este sempre é difícil de servir porque fica

grudado e é complicado tirá-lo da colher). Essa pessoa entrega a bandeja na

mão de quem está pondo o ebô31 e o omolocum. Feito isso se coloca a galinha

e por último a bolinha de inhame. Às vezes, para dar agilidade ao serviço

contamos com uma pessoa para deslizar as bandejas entre as panelas.

Antes mesmo de começar a servir os pratos, alguém se incumbe de

separar a comida dos erês que virão depois do fim da festa. Então se coloca

grandes porções de comida numa bacia de ágata coberta por outra igual.

Geralmente, uma pessoa específica é quem se prontifica para fazer isso, ela é

uma das abiãs mais velhas ali na cozinha do barracão, o que faz com que,

muitas vezes, ela se sinta a coordenadora da equipe, o que causa conflitos,

pois ela fica dando ordens quase que gritando, sendo que ela própria acaba

não fazendo muita coisa além de ditar ordens. Muitas vezes isso estressa os

outros abiãs que acabam por sair da cozinha. Já presenciei mais de uma vez,

cenas de tensão por causa desse tipo de postura dessa pessoa.

30

Beb ida feita a base de rapadura e gengibre. 31

Prato feito de milho branco cozido temperado com cebola, camarão seco e azeite de dendê.

Page 33: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

Durante a festa houve um diálogo com o ogã Fábio Lima bem

interessante, na cozinha do barracão. Enquanto ele comia se dizia

maravi lhado, que adorava aquilo, que adorava azeite e que na África era

igualzinho, comiam tudo com azeite. Então perguntei se usavam camarão seco

também, ele respondeu que não, que camarão era uma coisa da Bahia e que

eles eram muito pobres. Ele se referia à Nigéria, país que visitou há pouco

tempo onde proferiu uma palestra sobre o culto a Xangô na Diáspora32.

A festa da noite de sábado não estava tão cheia como a anterior, pois é

feriado na Bahia. Dois de Julho é o dia da Independência do Brasil na Bahia

que é a data maior do Estado, quando se comemora a expulsão dos

portugueses definitivamente do país, após uma série de batalhas. Todo ano

ocorre um desfile que sai de manhã cedo do bairro da Lapinha em direção ao

Pelourinho. O cortejo é acompanhado por autoridades e muitos políticos. A

imagem da Cabocla percorre as ruas do Centro Histórico de Salvador. Nessa

parada no Pelourinho na hora do almoço serve-se feijoada. À tarde o percurso

recomeça até o Campo Grande. Mas me parece que o que atinge o público que

costuma assistir ao candomblé não é a festa cívica em si – os soteropolitanos

adoram essa festa – mas sim as inúmeras festas de caboclo que ocorrem na

cidade. Lembro-me do tempo em que morei no bairro do Engenho Velho da

Federação e que uma festa ocorria na rua, com mesa gigantesca de frutas e

distribuição de feijoada. Assim, parece que o que concorre mesmo com a festa

de Xangô à noite no terreiro são as festas de caboclo espalhadas pela cidade.

Na maioria das vezes, começo o trabalho servindo os copos de aruá ou

dispondo os pratos nas bandejas. Há um momento em que todas as bandejas

já estão com pratos servidos e com garfos plásticos nas prateleiras da parede e

é necessário retirá-los para montar outros. Neste dia servimos no máximo uns

300 pratos. É preciso servi-los com bastante cuidado para não encostar a

colher de uma panela em outra ou em alguma comida do prato que se esteja

servindo devido às quizilas – são energias que vão de encontro ao orixá da

pessoa. Elas são idiossincráticas, digo isso, pois “saem” (é informado) para a

32

Em 2015 Fáb io Lima lançou o livro “Diáspora e Ancestralidade” em que possui um capítulo sobre essa

conferência chamado “Em torno de duas conferências sobre um rei mít ico para um rei real feita por um

filho do rei Xangô”. (LIMA, 2015)

Page 34: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

pessoa no momento de sua iniciação seja como rodante ou como ogã ou

equede. Há também quizilas que são gerais para todos os filhos do terreiro.

Boa parte das quizi las está relacionada à comida, mas não necessariamente.

Também por causa das quizilas servimos alguns pratos sem amalá,

outros sem galinha e alguns só com as bolinhas de inhame e arroz, no caso,

para quem tem quizila com quiabo, galinha e azeite de dendê (epô). Também

tomamos cuidado para deixar uma boa quantidade de aruá para os erês. No

Opô Afonjá eles só comem comida de santo, não comem doces, balas nem

refrigerantes.

Outra coisa bastante comum é ocorrer possessão entre os abiãs que

estão servindo a comida, quando a música que evoca seus orixás está sendo

tocada no barracão. No período em que realizei o trabalho de campo, uma

moça de Oxum sempre tomava um barravento e virava no santo. Isso também

ocorria com Pedro de Oxalá, mas depois que ele assentou o santo, diminuiu.

Nessas ocasiões é preciso que chamemos uma das equedes para suspender o

santo. Nós, os abiãs que montamos os pratos precisamos comer antes para

que quando a distribuição iniciar não haja intervalos ou interrupções. É,

também, como se houvesse uma compensação pelo trabalho árduo ao longo

do dia.

Quando começa a distribuição da comida, geralmente inicia-se um

pequeno alvoroço, pois enquanto saímos com as bandejas aglomeram-se

muitas pessoas próximo à porta o que obstrui a passagem. Temos que cuidar

para não passar a comida sobre as cabeças (o ori) das pessoas, assim como

pelas costas e ainda para não sujar os irmãos, o que inevitavelmente sempre

ocorre. Ninguém volta para casa com a roupa branquinha como veio.

Nessa noite a distribuição da comida foi tranquila e após o intervalo

pudemos ficar assistindo aos orixás dançarem. Teve um momento em que fui

salvar os Xangôs que estavam sentados enquanto as Ayabás dançavam.

Recebi diversos abraços cheios de axé e aproveitei a ocasião para agradecê-

los pessoalmente e também fazer os meus apelos por mim e pelos meus. A

festa seguiu em tremenda alegria e emoção. Essa é uma festa quente,

Page 35: XIII Reunião de Antropologia do Mercosul desafios e

bastante quente33. Um deus do fogo, do trovão que dança com sua esposa

dona dos raios e dos ventos. Quando a festa acaba, apesar do cansaço, não

se costuma sentir sono.

Após as sequências de músicas para homenagem de cada orixá que se

faz presente na festa chega o momento final em que se forma uma grande roda

no barracão, com os orixás e demais filhos de santo da casa e canta-se uma

música ... Xangô Afonjá areuwá... Xangô Afonjá areuwá... Quando essa música

acaba, a festa acaba também. Os orixás são levados para o quarto das malas.

Os atabaques continuam a tocar por mais um tempo. As pessoas vão deixando

o barracão alguns membros da casa aproveitam para dançarem um pouco em

frente aos atabaques.

***

33

É importante frisar a d istinção entre orixás quente e orixás frios. Xangô, como visto, é um dos orixás

quentes, sua cor é vermelha, sua comida vai azeite de dendê e é oferecida ainda quente. Iansã, sua esposa

também é quente. Já Oxalá, Yemanjá e Oxum podem ser considerados orixás mais frio.