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Uma proposta de jogo entre cinema e educação a partir de seis Textos fílmicos
Resumo Nesse experimento tento estabelecer possíveis encontros entre cinema e educação tendo por base os conceitos de linha de fuga e escritura em Deleuze e de Texto e fotografia em Barthes. O interesse é suscitar sensações e possibilitar deslocamentos a partir de um jogo envolvendo a escritura de seis Textos sobre três experiências fílmicas. Cada Texto movimenta um conjunto de elementos específicos que pode, para além de estabelecer relação específica com a educação, suscitar novas possibilidades de encontro. Palavras‐chave: cinema; educação; experiência fílmica
Eduardo Silveira
IFSC [email protected]
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Pré‐Texto:
A possibilidade de relação entre cinema e educação é muito ampla e se faz de
diferentes maneiras, como sugere Xavier (2008, p.14): “Desde o período do cinema mudo
fez‐se explícito o interesse pela análise da dimensão educativa do cinema em seus vários
gêneros”. Essa relação abarca desde aquelas mais funcionais que pensam o cinema como
uma ferramenta a ser incorporada dentro do contexto da educação de forma pontual
para “transmitir conteúdos” ou exemplificar algo ensinado, até aquelas que já avançam
nesse sentido e procuram estabelecer relações que vão além da perspectiva funcional,
para trazer reflexões mais amplas:
o cinema que “educa” é o cinema que faz pensar, não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco. Ou seja, a questão não é “passar conteúdos”, mas provocar a reflexão, questionar o que, sendo um constructo que tem história, é tomado como natureza, dado inquestionável (XAVIER, 2008, p.15).
Nessa perspectiva existem diversos trabalhos que discutem a relação fílmica
partindo do enfoque cultural e evidenciando, por exemplo, elementos da educação,
filosofia e religião (SCARELI, 2011a, 2011b). Outros que se situam nas discussões do cinema
no campo das artes (XAVIER, 2003). Outros ainda que estabelecem aproximações entre a
educação ambiental, a filosofia e o cinema (GUIMARÃES 2010; PREVE, 2010), somente
para citar alguns exemplos. Esses trabalhos trazem importantes contribuições às
discussões envolvendo arte, cultura e educação, explorando essa relação em uma
perspectiva contemporânea e que amplia as referidas áreas para além de definições
limitadoras e estáticas.
Aqui se propõe algo parecido, mas que sugere um experimento mais livre,
baseado em pequenas intensidades textuais. São linhas de “encontro” que trazem por
base linhas de “fuga”. Linhas de fuga, pois não se reduzem ao trajeto específico de um
ponto a outro. Elas traçam saltos e caminhos que sugerem outros e novos encontros,
“fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas mesmo que elas retomem
noutra parte, saltando por cima dos cortes significantes...” (DELEUZE; PARNET, 1998,
p.31). A possibilidade de estabelecer, aqui, essas linhas de fuga, torna‐se possível ao passo
que não se propõe uma escrita fechada, mas se escreve uma escritura derivante e,
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“escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é forçado a seguir,
porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos embarca nela” (ibidem, p.51). O que
se estabelece é um jogo de acontecimentos que propõe deslocamentos. Voos. Silêncios...
São, portanto, espaços abertos. Passíveis das mais plurais significações e relações que se
possam estabelecer neles. Esse jogo de escritura se dá através de seis Textos, sobre três
diferentes filmes de diferentes diretores de diferentes épocas e propostas. Refiro‐me a
Texto, em maiúscula, pois pretendo operar essa noção com base na descrição feita por
Roland Barthes (1998, p.74) no texto: “Da obra ao Texto”: “O Texto é plural [...], não é
coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma
interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação. [...] o leitor
do Texto poderia ser comparado a um sujeito desocupado”.
Dessa forma, cada Texto se baseia na experiência desocupada com o filme e no
posterior movimento de escritura baseado em pequenos momentos‐moventes: “Quando
reportamos o movimento a momentos quaisquer, devemos nos tornar capazes de pensar
a produção do novo, isto é, do notável e do singular em qualquer um desses momentos”
(DELEUZE, 1983, p.13). Cada um desses momentos‐moventes sugere‐se como uma
possibilidade ainda não enunciada de encontro com a educação por pequenos detalhes
como: experiência, encontro, delicadeza, perda, busca, afeto, presença, ausência e alguns
outros ainda a serem inventados.
Cada Texto será apresentado sem que se explicite, a princípio, de qual filme surgiu
(embora, em alguns casos, torne‐se fácil saber) e virá acompanhado de uma imagem‐
instante do filme. Deleuze (1983, p.11) explora bem a relação entre cinema, imagem e
movimento: “O instante qualquer é o instante equidistante de um outro. Definimos assim
o cinema como o sistema que reproduz o movimento reportando‐o ao instante
qualquer”. Imagens quaisquer, de instantes quaisquer, de filmes quaisquer que
conversam com os Textos. Porém, ao se desprenderem dos filmes, essas imagens
quaisquer acabam por tornarem‐se fotogramas e, com isso, fotografias. Elas trazem
pequenas delicadezas, movimentos talvez imperceptíveis, detalhes. É aqui que nos
lembramos do texto de a Câmara Clara, de Barthes, quando ele fala sobre o punctum de
uma fotografia. Os detalhes que as fotografias trazem certamente se expressam em
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potentes punctuns, pois o “[...] punctum é também picada, pequeno buraco, pequena
mancha, pequeno corte ‐ e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso
que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (BARTHES, 1984, p.46). Dessa
forma, as imagens‐instantes selecionadas de cada filme acabam por também
constituírem‐se em Textos, descoladas da escritura textual sobre os filmes. Sendo assim,
as três experiências fílmicas constituem seis Textos: três escrituras Textuais e três
fotografias fílmicas. Cinema‐fotografia‐Texto.
Somente ao final do experimento será explicitado qual filme originou quais
Textos. Essa proposta surge, pois talvez a intenção principal desse experimento, seja
jogar com a perda e com os caminhos que se trilham a partir de linhas de fuga e que
possibilitam novos encontros, sensações e entendimentos. Talvez a leitura que se deseja
para ele não seja aquela já significada, marcada por sentidos definidos e pontuados, mas
sim aquela que se lê levantando os olhos, leitura do prazer como sugeriu Barthes. Que
cada Texto possa movimentar encontros e possibilidades inúmeras.
Texto 1. Apren‐danças
Onde o carteiro, qual o poeta? Quem o mestre, por que o aprendiz? Talvez
educação, seguramente arte. A experiência vivenciada transcende a tela. Plasma‐se no
ambiente em sua melancolia alegre. Significados? Sentidos? Certezas? Poesia... Que
escorre pelas imagens, pelos silêncios, pelas palavras. Medidas, mas certeiras. A poesia
ensina sendo. Ensina à alma. Apresenta a ela que o sentido do educar semeia‐se sem que
se saiba e rega‐se sensivelmente, na relação. Não é uni, muito menos bi, mas
pluridirecional. Funda caminhos. Desbrava espaços. Espaços invisíveis, mas presentes.
Caminhos desconhecidos, mas reais. Quem ensina? Quem aprende? Não se sabe com o
olhar distanciado, é algo que se vive. Para um (uns?) o aprendizado ensina o mundo, des‐
cobre o visto. Para outro (outros?) o ensina‐mento aprende que deve também aprender o
ensino, afinal uma relação se faz com e, há tempos já se disse: “tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas...” (EXUPÉRY, 1994, p.69). Mesmo quando o cativado
não demonstre em momento algum que o cativante seja responsável. Muito pelo
contrário, o cativado sente‐se culpado por algo que não fez. Pesa‐lhe o ter incomodado o
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cativante, a cativá‐lo. E isso porque não vê que também ensinou e cativou, dada a força
daquilo que para ele surgiu do ensino recebido. O máximo que se pode dizer de tal
relação é isso, qualquer reflexão que transpasse este ponto, é pura divagação, o que
também é bom, afinal uma reação di‐vaga, sendo vaga duas vezes, abre espaço para que
muito surja. O que mais se pode dizer é que esta é uma experiência para se ter em con‐
junto. Não há sentido aparente em se ter esta experiência de forma solitária já que a todo
o momento ela clama pelo estar com, pelo ver‐se no outro, pelo ter‐se algo para criar
com. É uma experiência para emocionar‐se com, para ver‐se refletido nas lágrimas que
emanam de outros olhos. Ao final, quando as palavras custam a sair, e se luta ativamente
para poder racionalizar e desligar‐se do emaranhado que gruda e leva para a tela, o que
resta é o silêncio. E é nele que o coletivo, que as lágrimas, que o abraço energético se
fazem. Somente a muito custo algo se torna evidente. Evidência não é o objetivo. Se há
algum, ele é metafórico. Assim como o papel do mestre e do aprendiz, assim como a luta
política, assim como as relações familiares, assim como o amor, a poesia, a morte e o
arrependimento, também, são todos, à sua forma, metafóricos. Cada qual, a seu modo, é
um pouco da alegria melancólica que fica.
Texto 21. Afetação.
1 As imagens fílmicas aqui disponibilizadas são fotogramas extraídos dos filmes. Dessa forma são
referenciadas ao final, juntamente com as referências fílmicas.
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Texto 3. Desvios
Um avião que se perde e apaga lentamente em meio a um céu no qual não cabe.
Esta imagem movimenta e significa uma experiência fílmica. Assim como o avião, a
sensação que se desprende da tela e nos inunda constantemente, é esta: perda. Perda de
sentidos, de significados, de relações, de memórias, de objetivos, de intenções, de
caminhos, de sensações, de ‘identidade’, etc. Porém, a sensação também é a da potência
das perdas, sendo ela que guia todas as ações. A perda, na imagem do avião se
transfigura em ondas que perdidamente invadem a areia de forma caótica. Estas, em um
esforço de enquadramento, como num retorno, materializam um indivíduo que não nos
faz sentir bem, ele não nos mostra seu mundo, como o faria um protagonista comum,
pois não conhece seu mundo. Não sabe o que faz, onde está ou quem é. Ele é a perda, a
confusão e o borrar de uma possibilidade de identidade. Ele não existe. Mas nesta
condição, seu desespero é calmo, sutil e aparece em pequenos atos, como ao tirar uma
fotografia. Sua angústia está no ato de focar em algo que não reconhece e onde
tampouco se reconhece. O resultado disso é um estranhamento, que seguirá nossos
momentos com este personagem, su‐jeito, durante a experienciação. As fotografias que
tira são possibilidades de ter uma história, de encontrar‐se por um momento consigo e
com o espaço no qual se encontra, de provar que existe. Porém, rapidamente o conforto
do suposto encontro se perde, pois mesmo sendo uma possibilidade – a sua, e única – as
fotografias partem dele e ao ver também nelas a sua perda, ele falha.
É nesta perda que nos encontramos também, com o desejo de descobrir a que
vem aquele personagem, quem é e o que podemos esperar dele. Mas estas perguntas
não nos são respondida durante um bom tempo. Nem mesmo quando supostamente
chegamos a saber da sua necessidade de escrever uma história (para uma revista, jornal?)
conseguimos nos encontrar, pois ele não permite. Ele nos diz somente que não é ali que
vamos encontrar algo. Assim como também nos diz a música, angustiosa, repetitiva que
em determinados momentos invade a narrativa.
Mas a perda também é potência, como mencionado. E a potência da perda, está nas
possibilidades de encontro que ela suscita. Não encontros deterministas, como aquele
que poderia ter acontecido quando o personagem (que agora sabemos ser uma espécie
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de fotógrafo jornalista) encontra‐se com seu “chefe”. Mas sim nos encontros dignos de
alguém que está – e é – perdido: aqueles encontros aos quais não se espera, não se
entende e não se quer. É este tipo de encontro que movimenta o personagem e nos
movimenta também. Que o possibilita encontrar‐se, não consigo, mas com algo e,
paralelamente, nos faz encontrar nosso espaço na experiência: o de testemunhas de um
encontro inusitado. Este encontro é uma menina. Ela é deixada pela mãe no aeroporto
junto a um bilhete e fica, fantasiosamente, aos cuidados do fotógrafo jornalista, um total
desconhecido. É uma possibilidade tão absurda que nos atesta mais uma vez o fato dele
ser a perda. Somente nesta condição poderia sentir‐se tranquilo nas situações que o
encontro com a menina o faz passar. Ela também, uma menina perdida, mas de forma
diferente, sua perda é exterior: foi deixada pela mãe, mas ela sabe quem é, o que é. Ela
sofre por ficar sem a mãe, ela quer comer, quer beber, quer ouvir histórias, que ficar com
ele (pois sente).
Dessa forma, ela torna‐se o mote movente para ele, ao ponto de, em alguns
momentos, a menina de nove anos tornar‐se como sua mãe, um homem de trinta e um
anos. É ela que guia, orienta, objetiva, cuida, ensina e cria. Ela, sendo encontro, é a
potência para ele. Ele até tenta fugir de encontrar‐se, cala nas perguntas dela, não se vê
na foto que ela tira dele, mas não consegue. A potência é muita e o engole, gargareja‐o
movimentando seu ser. Sentimos que ele se funde no encontro quando tenta deixá‐la na
delegacia. Naquele momento somos angústia, como poderá ocorrer algo se não
estiverem mais juntos? Pois já nos encontramos no encontro deles. Não há possibilidades,
futuro, vida após a separação. E ele percebe isso no reencontro: eles só têm liberdade
juntos, como na cena final, cabeças ao vento na janela do trem. Estão livres, juntos, no
encontro perdido, pois não existe ele e ela, mas ambos. É no encontro e no manterem‐se
juntos que são.
Não existe local, identidade, consenso, caminho a partir do encontro. E isso fica
claro no momento em que, após não encontrarem a avó da menina, vão nadar,
despropositadamente.
Esta relação de não encontrar‐se em um lugar, em uma cidade, em um corpo, em
uma vida, questão filosófica e psicologicamente complexa, perde totalmente sua
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seriedade no filme. Passa a ser tratada como banal na medida em que, todas estas
dificuldades simplesmente deixam de existir no momento em que uma criança motiva um
encontro e é ela, suas fantasias, seus medos, suas vontades que vão orientar a busca de
um indivíduo que, logicamente seria e estaria aflito pela sua condição.
O filme é uma metáfora. É a vida na busca, é a alegria no desconhecido, é a força
na dificuldade, é a presença na ausência.
Texto 4. A perda.
Texto 5. Encontros
Um filme delicado, com um título delicadamente audacioso quando se questiona o
que pode significar falar em delicadeza em tempos atuais. Na tradução a audácia se torna
ainda maior, pois incorpora na delicadeza, o amor. Poderia ter sucesso um filme que se
pretendesse discutir a delicadeza? Ele tem. Movimenta tantas delicadezas simultâneas e
por vezes em relações paradoxais, que é como uma constante carícia nos sentidos. Pois a
delicadeza não está somente com o amor, mas sim em todas as inúmeras e pequenas
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situações que o filme movimenta. Portanto, delicadezas. E estas são tantas e tão variadas
que se sai da experiência com a sensação de leveza. Não uma leveza qualquer, mas a
leveza que tanto falta em um cotidiano inchado de sensações e percepções duras,
extremas e dissonantes. Leveza do encontro sutil. Leveza do toque carinhoso. Leveza do
afeto respeitoso. Essa estranha e positiva catarse se processa pelas já mencionadas
inúmeras tessituras delicadas que são sugeridas para temas vividos cotidianamente de
forma fria e anestesiada. Tentarei fazer com que algumas dessas delicadezas que me
tocaram, dancem aqui. Certo de que algumas me passaram batido, pois em algumas
medidas a anestesia vai fundo na vida, enrijecendo em absoluto a possibilidade de
perceber sensações mais sutis.
A primeira delicadeza que percebo é, certamente, a do amor. A construção de
narrativas de amor é uma constante no cinema. Talvez esta, construída no filme, seja até
comum, mas movimenta pequenos elementos tão sutis que em poucos minutos se
processa uma catarse e... amamos. O amor que nasce de um encontro casual, movido por
jogos do acaso. Amor adulto processado em um devir‐criança blindado de pureza e
brincadeiras infantis. Amor que se constrói em jogos inocentes e planos conjuntos. Não
precisamos conhecer os protagonistas desse amor para amarmos com eles. São poucos
os minutos de contato, são poucos os elementos disponíveis para construirmos uma
imagem consistente dele e dela, mas amamos. Pelos momentos de encontro. Encontros
alegres e potentes. E esse amor é tão intenso que sustenta toda a continuidade do filme.
Mesmo deixando alguns elementos pouco esclarecidos.
A segunda delicadeza é a do som. A sonoplastia criada para o filme é
extremamente sensível, em constante diálogo com o silêncio que a faz valorizar‐se. São
pequenos eventos sonoros que têm a capacidade de convidar‐nos a penetrar no filme. Os
sutis sons dos passos em um solo de pedras contrastando com o silêncio no restante. O
delicioso som dos talheres tocando os pratos envoltos no silêncio de um mastigar
coletivo. Os sons cintilantes em momentos intensos. A música, escolhida com carinho
para pequenos momentos necessários. É como se cada detalhe ganhasse um som
próprio que nos invade acariciando‐nos delicada e deliciosamente.
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A terceira delicadeza que se segue em relação com a primeira e a segunda, é a
delicadeza da perda. Perda de sentido, perda de capacidade de seguir em frente, perda
da vontade de viver contrastada com a vida exuberante do início. Essas perdas, evocadas
pela morte e, com ela, pela ruptura da história de amor, se processam com muita sutileza.
Paradoxalmente é a partir daí que o filme ganha uma leveza intensa que se segue até o
final. A maneira pela qual o sentimento de perda é construído é de uma intensidade tão
contida e vivaz que a torna delicada. São pequenas ações, gestos, silêncios e planos que
nos levam a superar a primeira história com esforço e com verdade, pois nesses
elementos o tempo se constitui com uma transitoriedade belíssima (muito mais sensível
que cronológico). E a perda vai se constituindo em horizonte. Ela parece impor‐se
avassaladora na sequência do filme. Como superar a perda? Eis uma pergunta existencial.
(Aliás, outro louvor do filme é exatamente esse. O tratar de questões existenciais com um
respeito e veracidade ficcional que movimenta sensações avassaladoras no espectador.).
A proposta para essa superação é a construção de outra delicadeza. A delicadeza
dos encontros. Essa se processa ainda no movimento da perda e vai aos poucos
ganhando espaço em diferentes perspectivas. Primeiro há a amizade. A amizade se
expressa em cenas que pintam uma generosidade tão bonita e verdadeira que emociona.
Um primeiro encontro. Cemitério. Um abraço verdadeiro entre as amigas e o pedido “me
leva pra casa. Eu quero ir embora”. Um segundo encontro entre as amigas no parque. A
notícia de uma gravidez. Um abraço afetuoso. Um terceiro encontro. As duas amigas em
uma boate. Aquela que sofre a perda dança, dança, dança. Depois de anos guardando um
luto silencioso. Dança, dança, dança. Os olhos fechados. A outra apenas a observa,
sentada no bar. Os olhos marejados sentindo o sofrimento da amiga sendo lavado pelo
corpo em movimento. A delicadeza da amizade generosa. Mas ainda outro encontro se
sugere e ganha espaço. Nesse, movimentam‐se diversos elementos interessantes. O
preconceito, a quebra de estereótipos, a diferença e novamente o amor, que se
estabelece na tênue linha entre a maturidade do amor‐erótico, amor‐adulto e a inocência
do amor‐infantil, amor‐gracioso. Esse novo amor se insinua delicadamente de forma
abrupta e vai se constituindo em encontros que trazem a dúvida, a dificuldade de
relacionar‐se e a aproximação da diferença. É ele que sugere outra questão: de que forma
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a atração pelo outro vai se constituindo e sobrepondo‐se à perda, à incapacidade de
deixar o passado e ao isolamento? Reencontrar‐se na imagem própria, refletida pelo
outro. Abraçar o passado que ainda machuca e deixá‐lo ir. Resgatar a vida naquilo que já
nos morre.
No filme, “o reencontro na imagem própria refletida pelo outro” acontece em
pequenas desventuras. Em gestos desconcertantes tentando esconder‐se na vergonha e
na dificuldade em agir, falar e mover‐se que surge quando se sabe que existe algo mais,
ainda confuso, na relação até então despreocupada ou inexistente com esse outro que
me reflete em uma imagem meio ridícula. “O abraçar o passado que ainda machuca e
deixá‐lo ir” acontece na reconciliação com a casa. Espaço da infância, das recordações
doloridas da perda e no encontro com a avó, que conhece as dores e passou – temporal
embora ausente – por toda a história. “O resgatar a vida naquilo que já nos morre” surge
na brincadeira infantil do final. Singela, delicada, fotograficamente bela e na última frase
dita como um sussurro gritado – um dos paradoxos que se distorce por todo filme: “… foi
no coração de todas essas Nathalies que eu resolvi me esconder.”. Mias uma delicadeza:
aquela do amor. Que se vê, ao final, no encontro dos olhos daquele com quem se está, já
que é um filme que ganha potência ao se estar acompanhado, de preferência daquele a
quem se ama.
Texto 6. Delicado gesto.
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Pós‐Texto – três movimentos:
Eis que chego ao final. Sem a intenção de um fechamento, mas tentando explorar
algumas possibilidades de encontro entre os Textos. Talvez o primeiro movimento que
aflore seja a sensação de que, embora sem uma relação direta, eles se tecem a partir de
uma série de palavras que se tocam: perda, silêncio, vazio, delicadeza, afetação... São elas
que, ao final, permitem que se estabeleça um rumor entre os Textos:
O rumor é o barulho daquilo que está funcionando bem. Segue‐se o paradoxo: o rumor denota um barulho limite, um barulho impossível, o barulho daquilo que, funcionando com perfeição, não tem barulho; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do barulho: o tênue, o camuflado, o fremente são recebidos como sinais de uma anulação sonora” (BARTHES, 2004, p. 94).
Um segundo movimento possivelmente seja o de perceber a relação entre cinema e
educação, pois agora se pode dizer: cada um dos Textos foi, de alguma forma, escrito no
contexto acadêmico como parte de disciplinas cursadas durante o doutorado em
educação na UFSC. Os dois primeiros, a partir de aulas em que os filmes compuseram a
própria aula sem a necessidade obrigatória de que, a partir da aula, fosse escrito ou
apresentado o Texto. Ou seja, o próprio movimento sugerido pela experiência fílmica
potencializou a escrita dos Textos de forma livre. Os filmes foram utilizados durante as
aulas na intenção justamente de possibilitar o movimento de pensamento. Já o terceiro,
embora fora de um contexto acadêmico, traz na sua escritura diversos elementos
surgidos também em aulas. Mais especificamente na disciplina de Pós‐modernidade e
educação, realizada na UFSC em 2011. Nesse sentido, a proposta de experienciação dos
filmes no contexto acadêmico suscitou experiências formativas potentes.
O terceiro e último movimento seria finalizar o jogo da incógnita, revelando‐se, então,
quais filmes deram origem a cada uma das escrituras acima. Não será incluído nada além
das informações básicas de cada filme, pois a intenção não é – como tampouco foi no
momento de sua escritura – descrevê‐los sinopticamente, mas somente intencionar que o
contrário também possa acontecer, quer seja, a leitura de um Texto feito a partir da
experiência fílmica, potencializar o desejo de busca pela própria experiência fílmica.
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Textos 1 e 2: Filme O carteiro e o poeta. Direção de Michael Radford,1994.
Textos 3 e 4: Filme Alice nas cidades. Direção de Wim Wenders, 1974.
Textos 5 e 6: Filme A delicadeza do amor. Direção de David Foenkinos e Stéphane
Foenkinos, 2011.
Referências:
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ______________. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. DELEUZE, Gilles. Cinema: a imagem‐movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. SAINT‐EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Trad. Dom Marcos Barbosa, 41. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994. GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O que eu poderia ser se fosse para outro lugar?. In: Leandro Belinaso Guimarães; Aline Krelling; Valdo Barcelos. (Org.). Tecendo Educação Ambiental na arena cultural. Petrópolis: DP&Alli, p. 75‐81, 2010. PREVE, Ana Maria Hoepers. Onde sonham as formigas verdes: sonho, silêncio e vazio. In: Leandro Belinaso Guimarães; Aline Gevaerd Krelling; Valdo Barcelos. (Org.). Tecendo Educação Ambiental na arena cultural. Petrópolis: DP et Alii Editora Ltda, p. 63‐74, 2010. SCARELI, Giovana. Cinema e religião em Santo Forte de Eduardo Coutinho. Revista FAEEBA, Salvador, v. 20, p. 41‐53, 2011. ______________. Imagi‐nando multiplicidades entre‐tempos/lugares: um olhar sobre o filme Narradores de Javé. Revista Rua, Campinas v. 1, p. 21‐33, 2011. XAVIER, Ismail Norberto. O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem. Revista Contracampo, Niterói, v. 8, p. 125‐151, 2003.
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Filmes:
IL Postino. Direção: Michael Radford. Roteiro: Furio Scarpelli. Itália: Penta Film, 1994. 1 DVD (108 min), widescreen, color. Produzido por Penta Film. Baseado na Novela "O carteiro e o poeta" de Antonio Skármeta. ALICE in den Städten. Direção Wim Wenders. Roteiro Wim Wenders, Veith von Fürstenberg. Alemanha: Filmverlag der Autoren, 1974. 1 videocassete (110 min), VHS, son., P&B. LA délicatesse. Direção: David Foenkinos, Stéphane Foenkinos. Roteiro: David Foenkinos. França: 2.4.7 Films, 2011. 1 bobina cinematográfica (108 min), son., color., 35mm.