wikipedia: iluminismo contemporâneo ou ingenuidade coletiva

8/9/2019 Wikipedia: Iluminismo Contemporneo ou Ingenuidade Coletiva

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10FilosoFiacincia&vida www.portalcienciaevida.com.br

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Por Arthur MeucciSHUTTERSTOCK

internet

OU

INGENUIDADECOLETIVA?

ILUMINISMOCONTEMPORNEO

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A enciclopdia Wikipdia virou um fenmeno e uma ferramenta

utilizada indiscriminadamente como referncia em estudos epesquisas. Mas trata-se de difuso e democracia do conhecimento?Veja o comentrio sobre os cinco pilares da Wikipdia

Arthur Meucci, Graduado e ps-graduando em Filosofa pela USP, membro da AssociaoFilosfca Scientiae Studiae do Grupo de Estudos de Filosofa da Comunicao (ECA/USP).

proessor de Filosofa e consultor do Espao tica. [email protected]

A

nova gerao de filsofos da Ci-ncia anda se debruando sobreos fenmenos de criao e gesto

do conhecimento oferecido pela Internet,em especial os portais colaborativoscomo a Wikipdia.

O discurso da enciclopdia virtualpode ser anlogo ao do filsofo ilumi-nista Denis Diderot (1713 1784), que de-fendia um projeto enciclopdico basea-do na ideia de bem comum, de bemdemocrtico, de progresso do conhe-cimento. Um discurso tpico dos novostempos, globalizado, revolucionrio.S um filsofo impertinente comparariaa proposta desta enciclopdia ao deca-dente projeto Iluminista do sculo XVII,ideais que a juventude de Kant e Hegelaplaudiria ao relacionar o progresso daCincia e do conhecimento com o bemgeral da humanidade. Vitria da Au-

fklrung (Iluminismo) sobre as trevas daReligio e dos tabus sociais.

Quem conhece minimamente a hist-ria da Filosofia sabe como esse projetotermina. Apesar dos inegveis avanoscientficos e tecnolgicos houve inme-ras crticas ao processo de criao e

valorizao do conhecimento gerado. As

certezas cientficas continuamente desa-bavam, muitos preconceitos foram cria-dos, e todas as novas tcnicas e recursostrazidos pelos sacerdotes da Cinciaescravizavam cada vez mais a humani-dade ao invs de ajud-la a se libertar.Triunfo do pessimismo de Rousseau.

Mas, apesar dos exemplos histricosque trazem os livros de Histria e Filoso-fia sobre uma ingenuidade do projeto, osestudantes atuais no aparentam preo-cupao com a utilizao dos recursosda Wikipdia. A maioria dos alunos doensino mdio e universitrios se habitu-aram a utilizar tal ferramenta. Hbeis natcnica de copiar e colar informao,fizeram dessa enciclopdia virtual umaepidemia. Suas informaes esto espa-lhadas em diversos trabalhos escolarese em teses universitrias. cada vezmais comum ver trabalhos acadmicossrios serem ignorados ou contrariadospelo senso comum dominante legitima-do pela Wikipdia. O alcance tama-nho que houve casos em que mdicosexperientes e reconhecidos tiveram seusdiagnsticos e procedimentos deslegiti-mados por informaes inverdicas con-tidas na enciclopdia em questo. E o

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A Wikipdia se propea ser uma enciclopdiamultilngue online livree colaborativa. Emtese, qualquerpessoa podeincluir ou alterarcontedos

wiKipEdia

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[m d par daWkpda] mpv

argumento sempre o mesmo: como ummdico pode saber mais do que umafonte de saber digital editada por mi-lhares de pessoas ao redor do mundo?

Aos olhos de um historiador da Filosofia,essa pergunta soa como umIluminismos avessas.

A importncia da Wikipdia para aFilosofia do conhecimento cada vezmais extensa e relevante. H inmerostemas e perspectivas que abordariammuito bem esse objeto. Por isso, im-portante analisar e discutir a consis-tncia terica apresentada nos CincoPilares1 que regem o conhecimentonesta enciclopdia. Segundo seus ide-alizadores, todo o saber depositadoneste site deve obedecer s diretrizesmetodolgicas e ticas contidas nestasnormas. Mas seriam esses pilares epis-temologicamente vlidos?

No primeiro pilar, que diz A Wikip-dia uma enciclopdia, j poderia serquestionada a afirmao que diz noser um repositrio de informao indis-criminada. O direito entende que in-formao indiscriminada toda infor-mao que deve ser de domnio pblico,sem discriminaes, como o acesso scontas do Governo ou s decises judi-ciais, por exemplo. Logo, para uma enci-clopdia que se define como democr-tica e de livre acesso, discriminar quais

informaes podem ou no ser decarter pblico uma contradio.

Outro ponto grave a afirmaoA Wikipdia no local apropria-do para inserir opinies, teorias ouexperincias pessoais. Ao estipu-lar tal princpio, ela faz crer que osartigos postados na enciclopdiaso ausentes de subjetividade einteresses. O filsofo alemo Im-

manuel Kant (1724-1804), em1781, iniciou a revoluo co-pernicana do conhecimentoao demonstrar que todo o co-nhecimento constitudo deexperincias e estruturas sub-jetivas que se impe ao objetoanalisado e descrito. FriedrichNietzsche (1844-1900) se conso-lidou como terico ao afirmar,entre outras coisas, que todo o

1 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Cinco_pilares(acessado em 25/09/2009)

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Tem se tornado habitualque estudantes usem a

Wikipdia como onte depesquisa sem questionar

a validade dos contedosencontrados em

tais pginas

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conhecimento fruto de uma perspecti-va sobre o mundo ditada por uma von-tade individual. E Karl Marx (1818-1883)constatou que todo o conhecimento legi-timado pelo sistema capitalista era frutode uma ideologia. Logo, qual a base te-rica dessa norma?

A regra que conduz o segundo pilarA Wikipdia rege-se pela imparciali-dade , sem dvida, um dos conceitosmais problemticos desta enciclopdia.Por imparcialidade entende-se no de-fender pontos de vistas e opinies, re-tratando o mundo como ele e de formatransparente. Mas voltemos para a velhadiscusso trazida pela Crtica da RazoPura, de Kant. O conceito de imparcia-lidade foi constantemente questionadona Histria da Cincia e afastado dasdiscusses acadmicas sobre o conhe-cimento. Porm, essa ideia ainda sobre-

vive no senso comum e passou a ser re-produzida novamente pelosite.

Quando os moderadores decidemque o desenho dos Smurfes, que a lis-ta de Presidentes da Repblica ou quea biografia dos principais atores de fil-

mes porns devem constar na enciclo-pdia, j constitui-se uma escolha, umatomada de partido sobre tal contedo.Eles atriburam valor e importncia so-bre estas informaes, opinaram sobrea pertinncia do tema e tomaram partede sua publicao.

Como impossvel para o homemsaber como a realidade , e igualmen-te impossvel descrever o mundo comose apresenta, toda a percepo e pro-duo humana necessariamente par-cial, como nos mostrou Kant, inscrita naspercepes e paixes de cada corpo,por isso, singular, como afirma Nietzs-che e incompartilhada, como bem ob-servou Heidegger. Dois corpos distintosno podem perceber, sentir ou relatar amesma experincia. Por isso, a ideia deque vrias pessoas editando um mesmocontedo possam tornar algo imparcial impossvel. Toda e qualquer produohumana inscrita num contexto scio-histrico e pulsional, compartilha deuma ideologia, de um ponto de vista so-bre o mundo. Portanto, como aHistria da Filosofia nos ensina,

O uso d wikidi n Educo, rincil-mente no ensino undmentl e mdio, nocivoor dois motivos. primeiro, o luno coi e col omteril em seus trblhos sem ler, refetir e tentrentender o que est escrito. Nos velhos temos dEnciclopdia Barsa, o luno tmbm coiv omteril como estv escrito no livro, com todos

os vieses ideolgicos contidos no rtigo. porm,ele tinh que se esforarr ir t bibliotec,lero mteril, e selecionar as informaes que eledeveri usr em seus trblhos e estudos. Ele nocoiv, colv, e deletv o link.

O segundo motivo diz reseito o uso d mdin rendizgem. H dcds o cmo d comu-nico e d Educo tentm, sem sucesso, levro ensino sobre os meio

de comunico r sl de ul. de un-dmentl imortncique os lunos sibmcomo so roduzidos oscontedos televisivos, imressos edigitis que o cercm com inormes. Sber

o que um reunio de ut, quis os critriose vlores utilizdos r selecionr um mtrie descrtr outr, e como s oinies surgemneste mteril.

alm disso, comreender os eeitos que os meiosde comunico rovocm como culturo mi-ditic, esirl do silncio, o agenda setting, einmeros eeitos subjetivos e sociis que com-nhm est nov sociedde d inormo.

ExcEssodEinformao, inabilidadEnouso\


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H conhecimento de dois tipos: sabemos sobre um assunto, ou sabemos

onde podemos buscar informao sobre ele SAMUEL JOHNSON

A Wikipdiafoi criada em15 de janeirode 2001. Estdisponvel em268 idiomas ou

dialetos e tem14,1 milhesde artigos,sendo mais de3 milhes emingls e cercade 520 milem portugus(dados deoutubro de2009)

2 Provavelmente ele fazia referncia ao artigohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Tapuias (15/01/2009)

Surgio universal rancs, passo essencial parao estabelecimento da democracia. A Wikipdia

se diz democrtica, mas divide os colaboradoresem categorias com mais ou menos poder

o conhecimento nopode ser pensadocomo imparcial.

A afirmao quediz A Wikipdia uma enciclopdiade contedo livre menos grave doque as outras duas,porm, no menosquestionvel. Pelaregra, qualquerum pode fazer umartigo e todos so

livres para serem editados. Mas, ca-sos concretos mostram que esta no uma prtica verdadeira. Em um deles,foi negado o espao a um importantematerial de pesquisa, resultado de umprojeto desenvolvido por antroplogosda USP e tribos de Tupis e Tapuias nacidade de Perube, litoral de So Paulo.Um grupo de estudiosos e indgenas sis-tematizaram informaes sobre a hist-ria das duas tribos, a relao com Josde Anchieta, detalhes sobre a constru-o da primeira igreja do Brasil (Runasdo Abarebeb), e descries sobre osmitos Tupis e Tapuias daquela regio eproduziram artigos e um livro, resultan-te de dcadas de pesquisas, que nos eram de extrema importncia paraas tribos, mas para a histria do litoralpaulista e do Brasil.

Esta equipe desenvolveu e publicouquinze artigos iniciais contendo informa-es com as devidas referncias, masos verbetes foram suspensos 24 horasdepois. A resposta oficial dos modera-dores responsveis foi: Nunca ouvimosfalar sobre isso. Os artigos foram clas-sificados como suspeitos e submetidos

a uma votao, e democraticamentea comunidade de especialistas da Wi-kipdia decidiu retir-los. Um dessesespecialistas afirmou que os Tapuiass existiram em Gois2, sem oferecermaiores explicaes. Um outro justificouda seguinte forma: O que no existe noGoogle no existe no mundo.

O segundo relato o de um professoracadmico conhecido. No final do anopassado ele foi avisado que a editoraonde ele publicou um livro teria criadoum verbete para ele, onde constavam in-formaes incorretas. A tentativa de alte-rar os dados em seu prprio artigo, comoo ano de nascimento, cidade, formaoacadmica e informaes sobre algunslivros publicados foi negada. O mode-rador que desfez a alterao disse queele provavelmente estava equivocadosobre os prprios dados e que, sem ummotivo mais convincente, o artigo nopoderia ser reeditado.

questo filosficAEssas histrias ilustram uma ques-

to filosfica bem perturbadora. Nocaso dos indgenas, a Wikipdia ne-gou a possibilidade deles possuremuma existncia digital. Uma conven-o social questionou a possibilida-de das tribos existirem e terem umaidentidade no mundo. Fantasio o queHeidegger, Hurssel, Winnicott e Sar-tre escreveriam sobre esse fenmeno.No outro caso, o professor foi impos-sibilitado de agir sobre sua prpriadefinio. Passou a existir, no mundo

wikipediano, segundo qua lidades e

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caractersticas estranhas a si mesmo,definidas por outro. A enciclopdialevou a alienao do si mesmo a umnovo patamar.

A ideia do quarto pilar, que diz A Wi-kipdia possui normas de conduta sim-ples e objetiva: respeite os virtuosos edito-res e moderadores da enciclopdia.

Parece que uma verso prpria da ti-ca do discurso de Jrgen H abermas (1929- ) foi estipulada como meta nas relaesentre autores e moderadores. Toda institui-o social precisa estabelecer normas deconduta. Sejam elas estipuladas a prioripela instituio ou acertadas em comumacordo. Na produo do conhecimento noseria diferente. A questo que se coloca o fato de uma produo democrtica doconhecimento possuir normas diferentespara categoria de colaboradores diferen-tes. Este pilar enftico ao descrever queos autores comuns devem acatar a interfe-rncia dos moderadores. Indiretamente, foi

estipulado que as normas de conduta sounilaterais e discriminatrias o que cer-tamente confere um colorido diferente aoprojeto democrtico deste site. O consen-so, segundo oprprio site, deve imperar naresoluo dos problemas. Como a possibi-lidade de consenso em assuntos religiosose polticos so impossveis, por exemplo,impera o senso comum dominante da eliteque governa e controla a Wikipdia. Eliteessa que omite seu vis ideolgico se utili-zando do discurso moral da imparcialida-de e da neutralidade.

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A Wikipdia tem comoproposta ser imparcial,

algo que a imprensatambm deseja para

si. Mas diversosflsoos julgam que

esta imparcialidade impossvel

O ltimo pilar afirma A Wikipdiano possui regras fixas. estranhopensar em um projeto de divulgaodo conhecimento sem regras fixas. Oque significaria isso? No ter um estilogrfico imposto? No possuir uma li-nha editorial? Em que medida as nor-mas de conduta impostas pelos mode-radores no se tornam indiretamenteregras inflexveis?

A palavra de ordem deste pilar seja audaz. Em tom imperativo, huma ordem para que os usurios ino-

vem para melhorar continuamente osite.Mas, novamente, no o que se veri ficana prtica. Alguns grupos de usuriostentaram vrias vezes ilustrar os arti-gos, mudar a cor de fundo e das letraspara se adequar ao assunto, como nocaso dos times de futebol, mas sem su-cesso. H vrias tentativas de inovaoesttica que fracassaram.

O filsofo da Cincia, Larry Laudan(1941 - ), ao analisar a escolha de teo-rias e tradies de pesquisa, ressal-ta a importncia que a esttica tem naescolha de um determinado conheci-mento em detrimento de outros. A tese,de que a concepo esttica dos livros

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didticos contribui positivamente noincentivo ao estudo e na assimilaodo contedo comprovada, h dca-das, por pedagogos. Isso no seria o

suficiente para justificaruma flexibilizao dasregras de edio?

O discurso empregadopela Wikipdia tem comofuno reificar o contedonela exposto, fazendo crer

ao leitor que no h lutas pela definiodo que pode ou no ser conhecido.

A enciclopdia ignora o fato de quetodo conhecimento est inscrito numa lutasocial pela sua pertinncia e definio. Es-conde sua utilizao como um tipo de Apa-relho Ideolgico, nos moldes do filsofoLouis Althusser (1918-1990), naturalizandoe harmonizando informaes que levem acrer que o mundo como ele se apresenta ans natural, harmnico, omitindo osconflitos e os mecanismos de dominao.

A anlise da Wikipdia mostra um novofenmeno em comparao ao pensamen-

Ler fornece ao espritomateriais para o conhecimento,mas s o pensar faz nosso oque lemos JOHN LOCKE

A Wikipdia deumaior velocidade epossibilidade de acessoa inormaes. Mas questionvel se podeser considerada a ormaideal de socializao doconhecimento

to de Althusser. Os autores e moderadoresno esto sendo orientados por uma carti-lha burguesa de Estado que determinao certo e o errado. O modus operandi ide-olgico seguido por seus agentes foramincorporados de maneira bem-sucedidadurante suas trajetrias sociais no sistemaescolar e em contato com os outros meiosde comunicao de massa. O sistema noprecisa mais de sensores. Utilizando umaimportante contribuio do socilogo fran-cs Pierre Bourdieu (1930-2002), o habituseducacional, encarnado no processo desocializao, se tornou uma instncia deauto-censura. Este habitus no permite queusurios, autores e moderadores olhem demaneira crtica o processo de construode conhecimento exposto nosite.

Diante disso tudo, podemos reiterara questo do incio do texto: a Wikipdiadeve ser vista como um projeto de iluminis-mo contemporneo ou como um simplesfenmeno da ingenuidade coletiva? E tal-

vez a melhor concluso seja considerar osdois pontos de vista como verdadeiros.

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