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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ____ VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE GUARULHOS/ SP xxxxxxxxxxxxxxxxxxx, camaronês, casado, comerciante, passaporte n.º xxxxxxxxxxxx, residente e domiciliado na Associação Bom Samaritano, que fica situada na Rua xxxxxxxxxxxx, Botucatu/SP, dispensado de apresentar instrumento de mandato, nos termos do art. 128 da LC 80/94, (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública) com alteração da LC 132/09, pela Defensora Pública infra-assinada, vem perante Vossa Excelência propor a presente: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO FUNDADA EM DANOS MORAIS COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA 1

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Page 1:  · Web viewCartagena das Índias, Colômbia, em 9 de dezembro de 1985, e ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989. Ademais, editou a Lei 9455/97, que define os crimes de tortura

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ____ VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE GUARULHOS/ SP

xxxxxxxxxxxxxxxxxxx, camaronês, casado, comerciante, passaporte n.º xxxxxxxxxxxx, residente e domiciliado na Associação Bom Samaritano, que fica situada na Rua xxxxxxxxxxxx, Botucatu/SP, dispensado de apresentar instrumento de mandato, nos termos do art. 128 da LC 80/94, (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública) com alteração da LC 132/09, pela Defensora Pública infra-assinada, vem perante Vossa Excelência propor a presente:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO FUNDADA EM DANOS MORAISCOM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

em face do Estado de São Paulo, pessoa jurídica de direito público interno, representado por seus procuradores na forma da lei (endereço para intimações: Rua Pamplona, n.º 227, São Paulo/SP), e da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - Hospital Geral de Guarulhos "Prof. Dr. Waldemar de Carvalho Pinto Filho", inscrita no CNPJ/MF sob o nº 62.779.145/0010-80, com endereço na

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Alameda dos Lírios, nº 20, Parque Cecap, Guarulhos/SP, CEP 07190-120.pelos motivos de fato e de direito adiante expostos.

1. DOS FATOS:

No dia 30 de maio de 2008, o autor estava no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na fila para o check-in do voo com destino a Dubai, quando foi abordado pelos policiais civis Carlos Alberto Rocha Rodrigues, investigador de polícia, e por Wanderley Conde, Agente de Polícia, os quais, por suspeitarem de que o autor portava substâncias entorpecentes, o levaram até uma sala de controle, onde o revistaram a si e a sua bagagem, sem nada encontrar.

No entanto, suspeitando que o autor trouxesse drogas em seu estômago, o levaram para o Hospital Geral de Guarulhos, para a realização de exame de raio-x.

Consoante descrito pelo requente (Doc. 1 anexo), chegando ao local, ele admitiu para os policiais que realmente havia ingerido cento e dezenove cápsulas de cocaína, tendo solicitado que não fosse submetido à cirurgia, visto que se prontificaria a expelir as drogas por meio de evacuação. Pediu, também, que não fosse feito o raio-x, por problemas de saúde.

Todavia, os policiais gritaram com autor e ordenaram que ele se submetesse ao exame. Ademais, o médico informou que se ele não fizesse a radiografia, poderia ser agredido e morto, uma vez que se encontrava sozinho no Brasil.

Assim, Eyon tirou o raio-x e, em seguida, foi conduzido a uma sala, local onde foi duramente torturado pelo investigador e pelo agente de polícia.

Após, foi submetido ao procedimento cirúrgico para retirada das drogas de seu estômago (laparotomia exploradora), sendo certo que permaneceu internado, em estado grave, por três meses, não tendo recebido, no período pós-operatório, os cuidados que seu estado de saúde exigia. No período, ficou algemado ao leito hospitalar, seja nos membros superiores quanto inferiores, por determinação policial, comprometendo severamente sua recuperação e agravando seu quadro clínico.

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Como resultado das agressões de que foi vítima, bem como da deficiência de cuidados no hospital, Eyon sofreu lesões gravíssimas, quais sejam, fratura bilateral de quadril, com calcificação anormal e perda parcial da mobilidade das articulações dos seus quadris e joelhos, trauma abdominal grave, ferimento aberto supurado, lesões no punho e no tornozelo, encurtamento de 3 cm de uma perna para outra, incapacidade para exercer atividades laborais, debilidade permanente de membros inferiores, deformidade permanente, marcha claudicante definitiva e, por fim, seqüela neurológica.

Como se não bastasse, o autor passou a sentir dor constante nas pernas e nos quadris, tendo ficado com várias cicatrizes pelo corpo.

Acrescente-se, ainda, que o autor foi avaliado pelo médico ortopedista da Igreja Presbiteriana Independente de Botucatu, e, na oportunidade, ficou constatada a irreversibilidade do quadro, uma vez que nem mesmo a realização de cirurgia poderá devolver ao autor a capacidade plena de locomoção, tendo em vista a já mencionada ocorrência de calcificação das cartilagens dos seus quadris e joelhos.

2. DO DIREITO:

2.1. DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO:

O artigo 37, § 6º, da Constituição da República determina que:

“As pessoas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa”.

No mesmo sentido, dispõe o Código Civil, no artigo 43, que “(A)s pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte

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destes, culpa ou dolo.”

Da leitura dos dispositivos legais acima transcritos, depreende-se que o constituinte de 1988 adotou a teoria da responsabilidade objetiva.

Dessa maneira, para que se imponha ao estado a obrigação de indenizar, basta que sejam comprovados a conduta, o nexo causal e o dano.

No caso em tela, tais elementos são facilmente verificáveis, tendo em vista que o autor gozava de perfeita saúde quando foi abordado pelos policiais civis estaduais na fila de check in de voo internacional, sendo que, após o período em que ficou sob a custódia do Estado, passou a apresentar um quadro de saúde bastante debilitado, com severa dificuldade de locomoção e dores constantes, de modo irreversível e causador de intenso e permanente sofrimento.

A condução do autor ao hospital, a realização de exames e cirurgias, assim como a prolongada internação em situação de imobilidade (graças ao contínuo uso de algemas) configuram a conduta realizada pelos agentes do Estado, ou sob sua determinação e aquiescência.

Tal conduta (praticada mediante tortura e tratamento desumano e degradante) foi o nexo causal dos danos à saúde sofridos pelo autor, encerrando a tríade necessária para a caracterização do dever de indenizar do Estado.

Vejamos:

Consoante estampado no Auto de Prisão em Flagrante (Doc. 2) consta que, no dia 30/5/2008 o autor foi avistado e abordado pelos dois policiais civis na fila de check-in da companhia aérea Emirates, de modo que ali estava, como qualquer passageiro, aguardando, em pé, o momento de ser chamado pelos atendentes da companhia aérea. Desta forma, está claro que o autor, até então, podia deambular com naturalidade e no gozo de sua plena saúde física.

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Conforme relato dos próprios policiais (Termos de Depoimento – Doc. 2) foi ele então por eles conduzido ao Hospital Geral de Guarulhos, onde, após raio-x indicar que ele continha em seu abdome capsulas ingeridas, decidiram pela realização de laparoscopia exploradora para sua retirada, sem que ele tivesse anuído expressamente com tal procedimento.

Ao assim agirem, os policiais praticaram condutas caracterizadoras de tortura, na medida em que constrangeram o autor à submissão a ato cirúrgico contra a sua vontade, causando-lhe, inicialmente, intenso sofrimento mental, próprio estresse psicológico advindo de violação indesejada de seu corpo, sem qualquer necessidade evidente. Posteriormente, sofreu o autor intenso sofrimento físico, próprio do pós-operatório, agravado pelos eventos que se seguiram, consoante consta no relatório médico anexo (Doc. 3), notadamente a necessidade de que fosse submetido a uma segunda cirurgia, por fístula e deiscência da fissura, passando a ficar internado em UTI, com peritôniostomia, infecção de difícil controle e sem previsão para fechamento da cavidade abdominal, quadro esse que se prolongou por três meses e que gerou seqüelas perenes no autor.

Comprovada a conduta e o nexo causal, os danos estão fartamente documentados, a começar por laudo do Instituto Médico Legal, em que consta que “a vítima sofreu lesões de natureza gravíssima, pela deformidade permanente, marcha claudicante definitiva e seqüela neurológica.”

Além disso, o mesmo laudo comprovou que, em decorrência das referidas agressões e da ausência de cuidados especiais no hospital geral, o autor suportou intenso dano, consistente em lesões corporais gravíssimas, dentre elas, fratura bilateral de quadril, com calcificação anormal e perda parcial da mobilidade das articulações dos seus quadris e joelhos, trauma abdominal grave, ferimento aberto supurado, lesões no punho e no tornozelo, encurtamento de 3 cm de uma perna para outra, incapacidade para exercer atividades laborais, debilidade permanente de membros inferiores, deformidade permanente, marcha claudicante definitiva e, por fim, seqüela neurológica. (Doc. 5)

Ainda, pela tomografia computadorizada de bacia, realizada pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, consta a “presença de extensas ossificações comprometendo as estruturas musculares e capsulo

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ligamentares posteriores de ambos os quadris, envolvendo principalmente as transições miotendineas distais dos glúteos médios e mínimos, bem como os ligamentos ísquio femurais e a porção posterior do obturador interno direito.” (Doc. 6).

As mesmas constatações foram feitas pela Secretaria de Administração Penitenciária quando da entrevista de inclusão do autor.

Por fim, ao ser avaliado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (Doc. 7), consta que o autor “chegou para avaliação e tratamento em março de 2012, na cadeira de rodas, dependente para as atividades de higiene e vestuário e independente para alimentação, com dificuldade nas atividades funcionais tais como rolar na cama, sentar-se e ficar em pé.” Conclui no sentido de que o autor “não será totalmente independente para vestuário ou na higiene em decorrência da consolidação óssea deformada e demora na execução de seu tratamento, portanto, não está apto a desenvolver qualquer tipo de atividade laboral. E terá restrição para morar em locais onde não possui saneamento básico devido às condições da ferida abdominal ou com terrenos irregulares.”

Dúvida não resta, portanto, que a ação dos agentes públicos, diretamente realizada ou por eles determinada e/ou aquiescida, enquanto o autor estava sob a custódia do Estado, foi a causa de todas as dores e sofrimentos físicos e psíquicos por ele sofridos, assim como pelas lesões perenes geradas em seu organismo, incapacitando-o para muitos aspectos da vida comum, como cuidar de suas necessidade higiênicas básicas, deambular normalmente, trabalhar, etc. Em face disso, deve ser ele reparado e indenizado pelo que sofreu e por sua situação atual e futura.

Dessa maneira, comprovado o dano, bem como que ele decorreu da atuação dos policiais civis do DENARC e dos médicos do Hospital Geral de Guarulhos, deverá ser reconhecida a responsabilidade do estado e, consequentemente, a obrigação de pagar ao autor indenização proporcional aos prejuízos sofridos.

Nesse sentido:

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RESPONSABILIDADE CIVIL – AGRESSÃO PRATICADA POR POLICIAIS CIVIS - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO – INDENIZAÇÃO – VALOR COMPATÍVEL COM O DANO CAUSADO.

1. É objetiva a responsabilidade do Estado pela ocorrência da ação delituosa praticada por agentes da Polícia Civil do Distrito Federal, no exercício da função.

2. Observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade em sua fixação, mantém-se o valor da indenização estabelecido na sentença.

3. Recurso do Distrito Federal não provido (3ª Turma Cível, Apelação Cível n.º 20080111187152APC, Distrito Federal, Acórdão n.º 558.854).

2.2.DA OCORRÊNCIA DE TORTURA:

Como se sabe, a prática tortura foi objeto de repúdio explícito pela Constituição da República, a qual determina, em seu artigo 5º, incisos III e XLIII, que a sua prática constitui crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Além disso, a República Federativa do Brasil, por elencar a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, e por reconhecer a obrigação que incumbe aos Estados de promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, tornou-se signatária da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1984, e ratificada pelo Brasil em 28.09.1989.

Também assinou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada e aberta à assinatura no XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, em

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Cartagena das Índias, Colômbia, em 9 de dezembro de 1985, e ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989.

Ademais, editou a Lei 9455/97, que define os crimes de tortura e estabelece sanções para aqueles que praticarem as condutas descritas nos tipos penais.

Da análise do contexto acima colocado, depreende-se que o Brasil possui a obrigação de combater a tortura, motivo pelo qual a atuação dos agentes públicos deve sempre se orientar no sentido evitar a prática de tão odiosa conduta.

A esse respeito, nos termos da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU que o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter informações ou confissões, de castigá-la, de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. (grifei)

Como se verá, as condutas que geraram a perene deterioração da saúde do autor se deram de forma a se enquadrarem precisamente na definição de tortura trazida pela Convenção, a qual, vale lembrar, foi recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio e goza de hierarquia normativa supralegal e infraconstitucional, a teor do que decidiu o C. Supremo Tribunal Federal, no bojo de jurisprudência pacífica, de que fazem exemplo os acórdãos proferidos no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 466343 e 349.703 e dos Habeas Corpus nº 87.585 e nº 92.566, (julgados em 3 de dezembro de 2008).

Desta maneira, a definição de tortura contida na Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes é a que prevalece para fins civis, estando hierarquicamente acima de qualquer lei nacional (ordinária ou complementar), ao tempo em que se coaduna, com a norma constitucional prevista no artigo 5º, inciso III (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”).

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Assim, no presente caso (1) houve a realização de atos (agressões, realização de exames e cirurgia sem o consentimento do ora autor); (2) tais atos foram infligidos intencionalmente, pelos policiais e por profissionais da área médica, “por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”; (3) com o fim de obter informações ou confissões, caracterizados pela obtenção das provas do crime de tráfico internacional e da auto-incriminação do autor, ou, ainda, por discriminação contra o estrangeiro, que é negro e proveniente de um país pobre da África.

Vale ressaltar que, Embora o combate ao crime seja de todo desejável, este não pode se dar ao arrepio do Estado de Direito, com a prática de tortura e tendo como resultado a debilitação perene da saúde do incriminado, ainda mais ao se perceber que, no caso presente, tudo poderia ter sido evitado sem que se prejudicasse o resultado das investigações e sem a maculação dos direitos fundamentais de quem quer fosse.

Segundo afirmado pelo ora autor, uma vez levado ao hospital ele confessou o crime e se dispôs a entregar o produto mediante evacuação natural por seu organismo, não concordando em se submeter à intervenção cirúrgica, de todo arriscada e desproposital, devendo ser essa a via seguida, por atingir o resultado pretendido sem a violação da integridade física do autor e sem expô-lo a riscos desnecessários.

Ao decidirem de forma diversa e determinarem que o autor deveria passar pela desnecessária intervenção, os agentes do Estado, responsáveis por sua custódia, assumiram os riscos inerentes a toda intervenção cirúrgica, quais sejam, reação à anestesia, contaminações e infecções, riscos do pós-operatório etc., o que acabou por ocorrer (cf. doc. 3) do que lamentavelmente decorreram as seqüelas permanentes aqui já versadas.

Neste aspecto, as declarações do autor (doc. 1) são claras:

“Falei que não posso tirar Raio X, porque me faz mal de saúde, e que essa problema tenho desde pequeno, mas não adiantou nada, me levaram até o carro deles que era carro normal e me empurraram para dentro, e

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fiquei com muito medo me matar. Quando chegamos no hospital CONFECEI para eles que tenho droga no estomaco e não precisa tirar raio-X, eles pode me deixar no banheiro evacuando normal a droga, mas eles gritaram comigo para tirar o raio-X, ai chegou um médico e me falou se eu não faço o que eles mandarem, eles pode me matar porque estou sozinho aqui. Ai tirei o raio-x, e eles me levaram depois para um quarto e me bateram e me torturaram muito, mesmo com a droga na mia barriga. E não deram tempo suficiente para me tirar a droga através do evacuar. Daí me fizeram a cirurgia no hospital, e até hoje não ando e não movimento o meu corpo de tanta tortura que eu recebi antes da cirurgia.”

A confirmar suas declarações, veja-se o “ Termo Consentimento Informado para Internação e Tratamento” (Doc. 4), assinado pelo Dr. Marcos Hypolito e pela Dra. Cláudia M. Velloso, cujo campo nº 4 do formulário, destinado a colher a manifestação de vontade do paciente quanto a intervenção a ser realizada restou em branco.

Aliás, no rodapé desse mesmo documento, consta a seguinte anotação manuscrita:

“Obs paciente trazido pelos policiais federais1 do aeroporto internacional sem condições de assinar o termo de consentimento. Não tem familiares no Brasil. 31.05.08.”

Resta pacífico, portanto, que o autor não consentiu com a intervenção cirúrgica.

O que teria causado tal impossibilidade? Teria ele sido agredido e ameaçado a ponto de não estar em condições de assinalar o que pretendia? Teriam os policiais e os agentes de saúde sequer aberto essa

1 Escusável o equívoco da profissional da área de saúde, uma vez que o autor foi levado ao hospital por policiais civis e não federais, como por eles mesmos reconhecido.

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possibilidade para o ora autor, realizando a cirurgia sem seu consentimento e “justificado” mediante a citada anotação?

De qualquer forma, o fato é que realizar intervenção cirúrgica em alguém adulto e capaz, sem seu expresso consentimento e sem que se configure situação de emergência e risco de vida é caso evidente de tortura, uma vez que caracteriza a violação da integridade física e moral para além do que o Direito permite, isto é, com violação da dignidade fundamental do ser humano.

A respeito do tema, o renomado Luis Roberto Barroso esclarece que, “na sua expressão mais essencial, a dignidade exige que toda pessoa seja tratada como um fim em si mesma, consoante uma das enunciações do imperativo categórico kantiano. A vida de qualquer ser humano tem valia intrínseca. Ninguém existe no mundo para atender os propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo. Outra expressão da dignidade humana é a responsabilidade de cada um por sua própria vida, pela determinação de seus valores e objetivos. Como regra geral, as decisões cruciais na vida de uma pessoa não devem ser impostas por uma vontade externa a ela. No mundo contemporâneo, a dignidade humana tornou-se o centro axiológico dos sistemas jurídicos, fonte dos direitos materialmente fundamentais.”2

Como se vê, somente o autor poderia decidir sobre as questões essenciais à sua vida, notadamente quando isso envolvia a sua integridade física (como passar por uma cirurgia, p. ex.), o que foi claramente desrespeitado, expondo a riscos desnecessários e que, para sua infelicidade, geraram conseqüências gravíssimas.

Na verdade, o autor foi tratado qual um objeto, não como ser humano. Talvez tenham os policiais e, quiçá, a própria equipe médica, imaginado que, por ser uma chamada “mula” do tráfico internacional de drogas (em geral pessoas pobres, de países miseráveis, que precisam de dinheiro para

2 BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. In Direitos do Paciente, Coord. Álvaro Villaça Azevedo e Wilson Ricardo Ligeira. Saraiva: São Paulo, 2012,pag. 348/349, g.n.

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ajudar a sobrevivência de suas famílias), poderia ser tratado sem o devido respeito à dignidade que todo ser humano possui. Daí a clara ocorrência de tortura.

A única hipótese mediante a qual seria possível a intervenção cirúrgica sem a expressa anuência do autor seria no caso de ele não estar consciente e sua saúde apresentar-se em risco. Porém, em nenhum local do prontuário médico ou da documentação correlata consta que o autor tenha chegado ao hospital em situação de emergência, o que é corroborado pelo auto de prisão em flagrante, que se refere ao fato de o autor ter sido levado ao hospital, onde, inclusive, foi tirado raio-x. Logo, o autor estava no gozo de suas faculdades mentais e podia decidir sobre seu destino, tendo sido gravemente violado em sua dignidade.

E o fato de ser estrangeiro, talvez com dificuldade de entender um formulário escrito em português, não autorizava a que se descartasse sua autonomia da vontade e se lhe violassem os direitos fundamentais, como é de primeira intuição. No mais, tinha ele direito a tradutor, nos termos do que dispões o artigo 8º, inciso 2º, alínea “a”, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 9 de julho de 1992.

Aliás, ao que parece, o fato de ele não falar o português em nada prejudicou a que os policiais com ele se comunicassem para fazer com que fosse a uma sala reservada do aeroporto, para que fosse revistado, para que suas malas fossem abertas, para que fosse questionado se possuía drogas, para que fosse levado a um hospital etc. etc.

Como, então, não se pôde estabelecer a comunicação para verificar se ele concordava que seu corpo fosse violado e sua integridade maculada? Sejamos sinceros: em nenhum momento se teve esse “cuidado”, essa preocupação. Criminoso, no Brasil, muitas vezes não é tido como gente; podendo ser tratado como bicho, como coisa, ainda mais sendo uma “mula” do trafico internacional, e ainda mais negro, pobre e nacional de um país africano, abandonado à sua própria sorte e risco.

Contudo, do ponto de vista legal, a doutrina é assente que os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal aplicam-se não só

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aos brasileiros e residentes no Brasil, mas a todos os que se encontrem sob o poder do Estado Brasileiro.

Além disso, decorre dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil o dever de respeitar os direitos humanos a todas as pessoas sob sua jurisdição, sem discriminação alguma, especialmente no que se refere à raça ou cor da pessoa, ou sua origem nacional, como expresso no artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos3.

Sobre o referido dever de respeitar os direitos humanos, previsto na norma citada, assim esclarece a doutrina:

“Inicialmente, os direitos humanos foram criados para proteger indivíduos contra a arbitrariedade do Estado, contra o abuso do seu monopólio de poder. Por isso, sob uma perspectiva histórica, eles representam os chamados “direitos de defesa”, que conferem aos seus titulares uma pretensão omissiva. Significa que o Estado é obrigado a respeitar a esfera legalmente protegida por um direito humano; ele tem de se abster de ingerências ilegais nela – razão pela qual se fala, em inglês, de uma duty/obligation to respect. Esse dever é também chamado “negativo” ou de “não fazer”, porque exige do Estado passividade, no sentido de não tomar medidas (legislativas, administrativas etc.) incompatíveis com os direitos humanos – daí se tratar de uma obrigação com eficácia imediata.”4

3 ARTIGO 2º - “1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião política ou outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra condição.” incorporado do direito brasileiro por força do DECRETO N° 592, DE 6 DE JULHO DE 1992.4 Manual prático de direitos humanos internacionais / Coordenador: Sven Peterke ; Colaboradores: André de Carvalho Ramos … [et al.] – Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009. pp. 155/6. Disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Manual_Pratico_Direitos_Humanos_Internacioais.pdf. Acesso em 19 de abril de 2013.

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Avançando sobre este tema, a norma do artigo 7º do mesmo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos aplica-se precisamente ao presente caso, ao enquadrar como tortura a prática a que foi submetido o autor:

ARTIGO 7º

Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.

Ora, se o autor não ingressou no hospital em situação de emergência, se podia se manifestar seu consentimento sobre a intervenção cirúrgica, e se essa era evitável, o que se fez com ele foi verdadeira “experiência médica”, ou seja, um procedimento destinado não à preservação de sua saúde, mas sim para satisfazer a uma necessidade policial e/ou para dar vazão ao desejo da equipe médica de fazer uma intervenção desnecessária.

Em ambos os casos, o que se fez é tortura, conforme dispõem os textos legais válidos e eficazes em nosso país.

Mas não é só.

A tortura praticada contra o autor se prolongou durante a internação, uma vez que ficou atado ao leito com o uso de algemas nos membros inferiores e superiores por muitos dias, não só acarretando intenso sofrimento físico e mental, como comprometendo severamente sua recuperação e acarretando as seqüelas já tratadas acima.

Veja-se que na ficha de “Evolução / diagnóstico e Prescrição de Enfermagem – Adulto do dia 02/06/2008 (Doc. anexo) consta a seguinte anotação: “Mantem algemas nos quatro membros por conduta policial”.

Se ele vinha mantendo essas algemas, significa que haviam sido colocadas anteriormente, quando de sua internação, não se sabendo precisar até quando ali ficaram.

O mesmo se repete na planilha de 04/06/2008, na qual consta, ainda, que havia “risco para infecção”, “integridade da pele prejudicada,

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relacionada à ruptura da camada da pele” e “déficit de auto-cuidado, relacionado à sedação e IOT”. Ou seja, embora sedado, era mantido algemado, o que prejudicava a capacidade que o autor tinha de se auto-cuidar e, certamente, comprometia a integridade de sua pele, tornando-o suscetível a infecções.

Neste ponto, não é demais associar a situação degradante a que se submeteu o autor àquela a que se praticava contra os africanos no longo período da escravidão no Brasil e que, a toda prova, deixou como legado práticas desumanas e degradantes, até hoje praticadas em nosso país.

Os escravos eram algemados, amarrados, acorrentados. O mesmo se passou com o autor, também ele negro e miserável. Também a ele trataram como objeto, sem direitos, sem dignidade.

Em suma, as condutas praticadas contra o autor, a partir do momento em que foi submetido a exame de raio-x contra sua vontade, passando por intervenção cirúrgica desnecessária, agravadas pelo fato de ter sido algemado à uma cama de hospital, somado à falta de zelo e cuidados nos três meses em que este internado, tudo caracteriza que Eyon Adam Joseph foi torturado seguida e severamente, gerando sua precária situação atual.

Tal tortura se deu por atos diretos dos agentes do Estado, ou por sua determinação e aquiescência, razão pela qual deve o Estado responder, dado o caráter objetivo de sua responsabilidade.

2.3.DA IMPRESCRITIBILIDADE DA PRETENSÃO ADVINDA DE ATOS DE TORTURA:

Inicialmente, destaca-se que a presente ação de indenização foi proposta também contra o estado, o que significa que o devedor da pretensão é a Fazenda Pública.

Assim, o prazo de prescrição não é o disciplinado pelos artigos 205 e 206 do Código Civil, mas sim aquele constante do Decreto nº. 20.910/32, o qual dispõe que qualquer direito ou ação contra a Fazenda Pública, (federal, estadual ou municipal) prescreve em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

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Contudo, o STJ tem decidido que a pretensão referente à ofensa a direitos fundamentais não se subsume aos prazos estabelecidos no referido Decreto e no Código Civil, sendo, portanto, imprescritível conforme ementas a seguir:

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO.

1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição.

2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva.

3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática.

4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal.

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5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos.

6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano.

7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau. (REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJU 17.2.2003) (grifos nossos)

Dessa maneira, diante da força dos argumentos acima colocados, há que se reconhecer que a pretensão referente à reparação de danos decorrentes do delito de tortura é imprescritível.

2.4 DA CO-RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL GERAL DE GUARULHOS

Embora a presente ação se funde primariamente na responsabilidade objetiva do Estado pela conduta de seus agentes, sendo certo que o autor sofreu as violações que o lesionaram enquanto submetido à custódia do Estado, subsiste a responsabilidade do Hospital Geral de Guarulhos pela prática indevida de seus profissionais, os quais tinham o dever não proceder a

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intervenções indevidas no corpo do autor, assim como o de prestar todos os cuidados necessários à sua recuperação.

Assim é que o Código Civil dispõe, nos artigos 927 e 932, inciso III, sobre a responsabilidade civil, sendo certo que o Hospital Geral de Guarulhos responde pelos atos praticados por seus funcionários no presente caso, especialmente diante da a ocorrência de ato ilícito civil, na acepção do artigo 186 do mesmo diploma legal.

De fato, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência dos funcionários do Hospital Geral de Guarulhos (HGG), ocorreu a violação do direito do ora autor, notadamente o de não ser submetido ao procedimento cirúrgico e de optar por outra forma de extração das cápsulas que trazia em seu corpo. Tal procedimento, assim como o descuidado em seu pós-operatório e nos três meses de internação, deu causa dano ao autor, de ordem física e moral, o que comprova o cometimento de ato ilícito, do qual decorre o dever do hospital de reparar e indenizar.

Soma-se a isso a violação, pelos profissionais do Hospital do Código de Ética Médica, estabelecido pela Resolução CFM Nº 1.931, de 17 de SETEMBRO de 2009 (publicado no Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 2009. Seção I, p.90-92 e Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 13 out. 2009. Seção I, p.173 – RETIFICAÇÃO), o qual está em vigor desde 13 de abril de 2010.

Assim é que, ao dispor sobre os Princípios Fundamentais (Capítulo I), o Código de Ética Médica especifica que:

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

Decorre logicamente que o médico deverá consultar o paciente para dele colher sua opinião sobre os procedimentos a serem efetuados, sem o que não faria sentido dispor que o médico deverá aceitar o que o paciente

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lhe expuser como sua vontade.

Tanto assim é que, no artigo 34 do Código, ao tratar da Responsabilidade Profissional, estabelece como falta “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”

De forma semelhante, dispõe o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 15, que, “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

No caso presente, também o Código Civil foi desrespeitado, não só porque toda cirurgia representa risco à vida do paciente, em maior ou menor grau, mas porque a intervenção realizada, contra a vontade do autor lhe acarretou “risco de vida”, como assinalado pelo Instituto Médico Legal (doc. 5 - ao destacar, na resposta ao quarto quesito, que a ofensa à integridade corpórea do resultou em “perigo de vida, devido à necessidade de cirurgia abdominal”).

Justamente em face das normas citadas é que o HGG dispõe do citado documento denominado “Termo Consentimento Informado para Internação e Tratamento” (Doc. 4), cujo campo 4, que restou inexplicavelmente em branco, estava assim redigido:

“Em face dos esclarecimentos prestados, após ter lido e compreendido todas as informações deste documento, cientificado(a) do procedimento a ser adotado, assim como suas limitações, informo meu CONSENTIMENTO para sua realização, extensivo à equipe do profissional requerido com os itens acima referidos e que me foi dado a oportunidade (“sic”) para anular quaisquer espaços em branco, parágrafos ou palavras com os quais não concordasse.”

Portanto, a equipe médica do HGG negligenciou seus deveres e não colheu o consentimento do autor, apenas assinalando, na já citada anotação de rodapé, que ele estava “sem condições de assinar o termo de

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consentimento”.

Acresce que, de toda a documentação que acompanha a presente inicial não há um único local em que possa ser encontrada alguma referência quanto ao motivo que justificasse tal anotação, ou seja, nada há no prontuário do então paciente a indicar que ele estivesse porventura desacordado ou fora de suas faculdades mentais, a justificar a realização da laparoscopia sem seu consentimento expresso.

Sobre o tema, é definitiva a vedação estampada no Código de Ética Médica, estabelecida no Capítulo IV - DIREITOS HUMANOS:

É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Contudo, nada há nos autos a indicar que houvesse risco à vida do autor enquanto se encontrava detido. Ao contrário, pelo relato dos policiais envolvidos e pela própria declaração manuscrita do ora autor, ele estava perfeitamente lúcido, mas foi obrigado a se submeter à intervenção cirúrgica sem sequer ser devidamente informado do que se tratava e sem autorizar o procedimento.

Desta forma, o HGG descumpriu todos os preceitos relativos ao dever de obter do paciente expresso consentimento para a realização do ato cirúrgico, disso decorrendo que os funcionários do Hospital assumiram para si a responsabilidade pela realização da intervenção, assumindo, igualmente, os riscos dela decorrentes.

A propósito, o Código Civil é expresso ao dispor sobre a responsabilidade pelo dano causado, independentemente de culpa nos casos em que a prática do causador do dano implicar, por si só, risco para terceiros.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

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Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (grifei)

Ora, a atividade normalmente desenvolvida pelos causadores do dano, notadamente a realização de atos cirúrgicos, implica naturalmente riscos para os direitos de terceiros, do que no caso presente faz triste exemplo, dado o resultado funesto para a saúde do autor aqui fartamente documentado.

Logo, mesmo que o réu comprove que agiu com todas as cautelas necessárias para a realização da cirurgia e posterior tratamento, mesmo assim qualquer violação do corpo do paciente implica a possibilidade de que a saúde reste comprometida, dada a possibilidade de infecção hospitalar, como a que acometeu o autor.

Portanto, por não ter colhido a autorização do autor para a cirurgia, dada a ocorrência de dano, também para o hospital a responsabilidade é objetiva, sendo sua responsabilidade solidária com a do Estado.

E não é só:

Por tudo o que foi dito no capítulo referente à responsabilidade do Estado, também quanto ao Hospital aplicava-se o dever de respeitar a integridade física e moral do autor, assim como sua dignidade fundamental, na medida em que o Código de Ética Médica estabelece ser vedado ao médico:

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para

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limitá-lo.

Art. 27. Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza.

Assim, a equipe médica violou múltiplas vezes o Código de Ética Médica, do que resulta que ocorreu ato ilícito civil, a ser indenizado pelo HGG, responsável pela conduta de seus empregados.

Mesmo a manutenção das algemas no autor, ainda que por “determinação policial”, configura violação imputável ao Hospital, na medida em que a imobilização do autor gerou déficit no auto-cuidado, como registrado no prontuário do autor, causando danos diretos à sua saúde, assim como atentou contra a dignidade do paciente, causando-lhe evidente dano moral.

Por fim, perícia técnica na documentação acostada a essa inicial, assim como nos originais que estão de posse do HGG poderá determinar se houve, por parte da equipe hospitalar qualquer ação ou omissão que tenha gerado a piora no quadro do autor e a ocorrência das citadas seqüelas.

De toda maneira, por ter realizado cirurgias não consentidas, o Hospital Geral de Guarulhos assumiu os riscos a elas inerentes a essas práticas, devendo indenizar o autor por todos os danos e sofrimentos por ele experimentados, além de ser responsabilizado por lhe fornecer o tratamento necessário para seu estado atual, conjuntamente com a Fazenda Pública do Estado de São Paulo.

2.5 DO DANO INDENIZÁVEL:

Conforme acima mencionado, demonstrada a existência da conduta, do dano e do nexo causal, surge, como decorrência lógica, a obrigação do estado e do hospital de repararem indenizarem o autor por todos os prejuízos sofridos (art. 927, CC), sejam eles patrimoniais ou extra-patrimoniais, como no caso em tela, além de providenciarem ou custearem todo o tratamento de que necessita o autor, continuamente.

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É cediço que sagrou vitorioso no direito pátrio o entendimento de que a moral tem a natureza de bem jurídico constitucional e, portanto, torna-se passível de violação e, consequentemente, de indenização (art. 5°, inc. X, CF, art. 186, CC).

Dessa forma, torna-se inquestionável que o autor deverá ser reparado pelo dano moral que sofreu, e que a reparação precisará compatível com a dor psicológica de que foi vítima.

Ressalte-se que a personalidade do ser humano é formada por um conjunto de valores que compõem o seu patrimônio, podendo ela ser objeto de lesões, em decorrência de atos ilícitos.

A constatação da existência de um patrimônio moral e a necessidade de sua reparação, na hipótese de dano, constitui marco importante no processo evolutivo das civilizações.

Existem circunstâncias em que o ato lesivo afeta a personalidade do indivíduo, sua honra, sua integridade física e psíquica, seu bem-estar íntimo e suas virtudes, causando-lhe mal-estar ou uma indisposição de natureza espiritual.

É importante ressaltar que, para a configuração de dano moral, não se exige a prova do sofrimento em si, de caráter nitidamente subjetivo, mas tão somente da gravidade da ofensa e de sua repercussão sobre a vítima que gere a presunção hominis ou factis de lesão extrapatrimonial (Sérgio Cavalieri, Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros, p. 80).

Nesse sentido:

"O dano simplesmente moral, sem repercussão no patrimônio não há como ser provado. Ele existe tão-somente pela ofensa, e dela é presumido, sendo o bastante para justificar a indenização” (TJPR - 4ª C. - Ap. - Rel. Wilson Reback - j. 12.12.90 - RT 681/163).

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Ora, no presente caso, ficou clara a existência de dano moral, porquanto o autor, em decorrência das agressões que sofreu e em virtude de ter sido submetido a intervenções cirúrgicas sem o devido consentimento, não ter recebido os cuidados necessários no período pós-operatório, tendo ficado algemado ao leito, sendo que foi alvo de lesões gravíssimas que apenas escancararam a violação de sua dignidade e de sua integridade física e psíquica, elementos que, como se sabe, compõem o rol de direitos da personalidade do indivíduo.

Em tais casos, a reparação consiste no pagamento de uma soma pecuniária que possibilite ao lesado a devida satisfação compensatória da sua dor íntima e que mitigue os dissabores sofridos em virtude da ação ilícita do agente que causou a lesão.

Assim é a análise de Caio Mário da Silva Pereira:

"A vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que em certos casos pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes de seu patrimônio, deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva."(Responsabilidade Civil cit., n.49, p.67).

Mas não só. Deve-se, ainda, levar em conta a função punitiva do valor da indenização.

Na função ressarcitória, olha-se para a vítima, para a gravidade objetiva do dano que ela sofreu (Antônio Jeová dos Santos, Dano Moral Indenizável, Lejus Editora, 1.997, p. 62).

Já na função punitiva, ou de desestímulo do dano moral, olha-se para o agente causador da lesão, de tal modo que a indenização

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represente advertência, sinal de que a sociedade não aceita seu comportamento (Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por Danos Morais, ps. 220/222; Sérgio Severo, Os Danos Extrapatrimoniais, ps. 186/190).

Nesse sentido:

"Hoje em dia, a boa doutrina inclina-se no sentido de conferir à indenização do dano moral caráter dúplice, tanto punitivo do agente, quanto compensatório, em relação à vítima (cf. Caio Mário da Silva Pereira, "Responsabilidade Civil", Ed. Forense,1989, p. 67). Assim, a vítima de lesão a direitos de natureza não patrimonial (CR, art. 5º, incs. V e X) deve receber uma soma que lhe compense a dor e a humilhação sofridas, e arbitradas segundo as circunstâncias. Não deve ser fonte de enriquecimento, nem ser inexpressiva" (TJSP - 7ª C. - Ap. - Rel. Campos Mello - j. 30.10.91 - RJTJESP 137/186-187).

Frise-se, nesse contexto, que os artigos 944 e seguintes, especialmente os artigos 949 e 951, estabelecem os parâmetros ou preceituam o modus operandi para que se estabeleça o quantum indenizatório, como facilmente se pode inferir da leitura dos mencionados dispositivos do Código Civil:

"Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicam-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente,

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agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”

Diante de tudo o que foi exposto, é forçoso reconhecer que o valor da indenização, no caso em tela, deverá ser fixado levando-se em conta os inúmeros prejuízos que o autor suportou, a intensidade do sofrimento a que foi submetido e, por fim, a repercussão do ato lesivo em sua vida.

De fato, jamais voltará a trabalhar e será para sempre dependente de outras pessoas para realizar atividades do dia a dia, diante da impossibilidade de realização de cirurgia corretiva.

Assim, já que está incapacitado para o exercício qualquer atividade, só pode contar com caridade de terceiros para receber o mínimo necessário à sua sobrevivência.

Bem por isso, aplica-se ao caso a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, estabelece o dever do Estado reparar e indenizar quem tenha sido torturado, a teor do artigo 14, que reza

Artigo 14 - 1. Cada Estado-parte assegurará em seu sistema jurídico, à vítima de um ato de tortura, o direito à reparação e à indenização justa e adequada, incluídos os meios necessários para a mais completa reabilitação possível. Em caso de morte da vítima como resultado de um ato de tortura, seus dependentes terão direito a indenização.

2. O disposto no presente artigo não afetará qualquer direito a indenização que a vítima ou outra pessoa possam ter em decorrência das leis nacionais. grifei)

Vale lembrar que o autor é estrangeiro e que está em situação de extrema vulnerabilidade, porquanto reside, atualmente, na cidade de Botucatu, mais especificamente em um abrigo que se destina ao acolhimento de idosos (Doc. 9), estando, portanto, afastado de seu país de origem e de seus familiares, com os quais mantém contato apenas por meio de telefone.

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Não é demais lembrar também que as seqüelas deixadas em seu corpo produzem um efeito devastador que vai além da incapacidade física. Elas constituem, literalmente, verdadeiras marcas que jamais permitirão que o evento de que foi vítima seja apagado de sua memória.

3. DA TUTELA ANTECIPADA

No caso presente, dadas as condições atuais do autor, devidos diretamente ao desastre causado pelas intervenções médicas por ele sofridas, necessária a concessão liminar de tutela antecipada, para o fim de que os sofrimentos pelos quais passa não se posterguem ao longo da duração do processo, pedido esse que encontra guarida na doutrina, de que fazem excelente exemplo as palavras de MARINONI e ARENHART:

“Em última análise é correto dizer que a técnica antecipatória visa apenas distribuir o ônus do tempo do processo. É preciso que os operadores do direito compreendam a importância do novo instituto e o usem de forma adequada. Não há motivos para a timidez no seu uso, pois o remédio surgiu para eliminar um mal que já está instalado, uma vez que o tempo do processo sempre prejudicou o autor que tem razão. É necessário que o juiz compreenda que não pode haver efetividade sem riscos. A tutela antecipatória permite perceber que não só a ação (o agir, a antecipação) que pode causar prejuízo, mas também a omissão. O juiz que se omite é tão nocivo quanto o juiz que julga mal.”5 (destaquei)

Neste sentido, demonstra-se a presença dos requisitos para a antecipação da tutela ao final pretendida, no tocante ao fornecimento de

5 MARINONI, Luiz Guilherme & ARENHART, Sérgio Cruz, Manual do processo de conhecimento. 3. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2004. p. 234.

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tratamento e amparo por parte dos réus em favor do autor, nos termos do que autoriza o artigo 273, inciso I, do Código de Processo Civil.

A respeito da verossimilhança da alegação, ou seja, de que o autor sofreu os danos causados pelas intervenções cirúrgicas desnecessárias e arriscadas às quais foi obrigado a se submeter, diversos laudos médicos apontam nessa direção, como já aqui destacado, como o laudo do Instituto Médico Legal (Doc. 5), tomografia computadorizada de bacia (Doc. 6) e o relatório de atendimentos do Hospital das Clínicas de Botucatu (Doc. 7).

Já em relação ao fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, os documentos juntados aos autos (Doc. 8), notadamente aqueles produzidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado indicam que ele necessita de contínuo tratamento médico, com profissionais das áreas de fisiatria, psiquiatria e ortopedia. Ademais, O laudo do IML indica, ainda, seqüela neurológica. E, ainda, o laudo do Hospital de Clínicas de Botucatu (Doc. 7) faz referência ao fato de o autor necessitar da ajuda de terceiros para a realização de atividades diárias, já que possui dificuldade para caminhar e flexionar os membros inferiores.

Atualmente o autor encontra-se residindo caritativamente na Associação Bom Samaritano de Botucatu (Doc. 9), o que corrobora a fragilidade de seu estado de saúde atual e a necessidade de acompanhamento médico constante, a justificar a antecipação da tutela pretendida.

Dos documentos acostados aos autos há algumas indicações para que o autor fosse novamente submetido a procedimento cirúrgico, o que precisa ser imediatamente verificado, de modo a que, se possível e necessário, ele seja desde logo atendido, sem que se espere pela duração do processo para tanto, quando já poderá ser tarde demais.

Por fim, tendo restado comprovado pelos diversos laudos médicos citados que o autor não possui condições físicas de realizar atividades laborais para o custeio de sua sobrevivência, mostra-se necessária a fixação de valor mensal a ser suportado pelos réus, a título alimentar, sem o que o

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autor continuará a depender da benemerência de terceiros, sendo certo que sua invalidez é de responsabilidade dos réus.

4. DOS PEDIDOS

Diante de todo o exposto, requer o autor:

A-) Os benefícios da justiça gratuita por ser o autor hipossuficiente na acepção jurídica do termo;

B-) A citação dos réus, por Oficial de Justiça, para que, querendo, apresentem resposta no prazo legal, sob pena dos efeitos da revelia (endereço para intimações: Rua Pamplona, n.º 227, São Paulo/SP e Alameda dos Lírios, nº 20, Parque Cecap, Guarulhos/SP);

C-) A concessão da tutela antecipada para determinar aos réus que providenciem de imediato, ou arquem com os respectivos custos, de todo o atendimento médico e de tratamentos de saúde complementar de que o autor necessita, especialmente sessões de fisioterapia, além de lhe proporcionar cuidadores em tempo integral, dada sua incapacidade para o autocuidado. Além disso, que seja determinada a imediata realização de exames e consultas para avaliar se há como realizar nova intervenção cirúrgica para melhorar o estado atual do autor. Por fim, seja determinado aos réus que depositem o valor equivalente a 03 (três) salários mínimos mensais em favor do autor, a título alimentar, tendo em vista que ele não possui meios de desenvolver ocupação laboral. Caso os réus descumpram tais determinações, que seja fixada multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), em favor do autor.

D-) A procedência do pedido inicial, a fim de que se condene os réus ao pagamento de indenização por danos morais ao autor, no valor de 800 (oitocentos) salários mínimos6, além de que se condene os réus a 6 Cf. a seguinte decisão do STF: “2. Em regra, não é cabível, nesta via especial, o exame da justiça do valor reparatório, porquanto tal providência depende da reavaliação de fatos e provas. O Superior Tribunal de Justiça, por essa razão, consolidou entendimento no sentido de que a revisão do valor da indenização somente é possível quando exorbitante ou insignificante a importância arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Essa excepcionalidade, contudo, não se aplica à hipótese dos autos, na medida em que o valor da indenização por danos morais, fixado em duzentos (200) salários mínimos, não é exorbitante nem desproporcional aos danos sofridos pelos recorridos”. (AgRg no REsp 1085654 / SP, Primeira turma, Rel. Min. DENISE ARRUDA, j. 02/04/2009, DJe 04/05/2009)

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providenciar e/ou custear todos os tratamentos que se mostrarem aptos a amenizar as seqüelas deixadas no autor, nos termos do pedido retro (item “C”);

E-) A condenação do réu ao pagamento de custas e honorários sucumbenciais arbitrados em 20% sobre o valor da condenação, em favor do Fundo Especial de Despesa da Escola da Defensoria Pública do Estado - FUNDEPE, nos termos do artigo 3º, inciso II, da LEI nº 12.793, de 4 de janeiro de 2008.

Protesta provar o alegado utilizando-se de todos os meios de prova permitidos pelo ordenamento jurídico, especialmente documental, testemunhal e pericial, além do depoimento pessoal do autor.

Atribui-se à presente causa o valor de 800 salários mínimos, ou seja, R$ 542.400,00 (quinhentos e quarenta e dois mil e quatrocentos reais).

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo poderá ser intimada na pessoa dos Defensores Públicos da Unidade de Guarulhos, sita à Rua Sete de Setembro, nº 30.

São Paulo, 11 de setembro de 2023.

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