vozes do Éden - trecho

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R. M. LAMMING Vozes do Éden Tradução Sibele Menegazzi

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Um livro de frescor e poder surpreendentes, Vozes do Éden, de R.M.Lemming, retrata momentos cruciais de sete fortes personagens bíblicas femininas, do Gênesis, do Êxodo e dos Evangelhos, com clareza e paixão universais.

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Page 1: Vozes do Éden - Trecho

R. M. LAMMING

Vozes do Éden

TraduçãoSibele Menegazzi

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EVA

Fugimos. O verde radiante e tranquilo de Lá, o Rio ondulante ilumi-nado pelo sol, os aromas das frutas, os aromas dos lírios e as sombras suaves e acolhedoras colapsavam à nossa volta. Estavam se reduzindo a Não Luz e a coisas inominadas.

Demoramos para encontrar nomes. Eu usarei os nomes. Vocês, meus filhos, estão acostumados com eles. Então os usarei.

Fugimos do terror e de um grito mudo dentro de nós. Corremos com as costas encurvadas e a cabeça baixa enquanto, sob nossos pés, a grama murchava. Quanto mais rapidamente corríamos, mais de-pressa Lá nos seguia para nos segurar e mais se ampliava ao nosso redor para nos manter Lá, no que era claro e verde e belo; e, no en-tanto, por onde íamos, tudo colapsava, retorcendo-se em emara-nhados e asperezas e nos empurrando...

A primeira vez que escorreguei e baixei a mão para me equilibrar, ela recaiu sobre um arbusto espinhoso. Não gritei, nós já estávamos além de qualquer grito. Recuei diante daquela novidade, aquela dor da carne, mas por dentro também a aceitei. Minha carne aceitou.

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Latejando, ardendo e vertendo sua seiva rubra, ela sabia que o que estava sentindo era parte do que fora feito, e eu também sabia, e con-tinuei correndo. Só mais tarde foi que sentimos espanto, o homem e eu, diante de quanta dor nosso corpo nos proporcionava...

Mas nada disso é estranho para vocês, meus filhos. Vocês co-nhecem a dor...

E, no entanto, acredito que ainda se espantem com ela. Fugimos. Carregamos a dor conosco, procurando uma escapa-

tória, apenas uma escapatória... até que começamos a perceber um novo terror: que escapatória? Que fim existe para nós? Nós vimos do Grande Uno, que não tem fim. Assim como nossa fuga, nosso terror e o verde intenso colapsando...

O pensamento surgiu em nós: seriam eternos. Não haveria fim.Ah, meus filhos.Ah, meus filhos.

Não tenho nomes para as profundezas da Misericórdia. São mais pro-fundas que os céus.

O tempo chegou.Conforme tropeçávamos e nos debatíamos, correndo por toda

parte, a lugar nenhum, um resplendor tomou conta da escuridão atrás de nós: de repente havia um Atrás de nós. Brilhava onde ha- víamos estado e naquela Luz estavam contidos todo o verde e a do-çura de Lá. Diante de nós, estava o inóspito.

Paramos de correr. Aferramo-nos um ao outro e nos encolhemos na poeira. Lá estava às nossas costas. Agora nos agachávamos entre árvores espinhosas e pedras. Com o cheiro da poeira nas narinas e doloridos de tanto tremer...

A seiva vermelha — o sangue — secou na minha mão. O tempo havia chegado, e nada daquilo duraria para sempre. Então nos aferramos um ao outro até ficarmos fracos e cairmos no

primeiro sono de nosso novo entendimento. Foi repleto de quietude e de algo que tenho visto desde então em muitas crianças pequenas.

Foi repleto de permanência.

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Despertamos com frio. Um vento implacável soprava. Estávamos no alto das montanhas. Estávamos sentados juntos numa plataforma rochosa e olhávamos para o deserto, com seus tons de cor-de-rosa e cinza, o sol se elevando, a poeira varrendo, e ainda não havíamos falado. Desde que começáramos a correr, não havíamos falado, mas, quando estávamos ali sentados, o homem agarrou meu braço. Ele não queria olhar para mim. Não dizia nada. Olhava fixamente para a terra deserta, e eu fiquei calada, revirando em minha mente o fato de que fora eu, e não o homem, quem, no centro de Lá, tivera o Pensamento. Fora a mim, e não a ele, que o Pensamento tinha vindo, com a agi-lidade e a fluidez de uma serpente deslizando pelos galhos. Eu havia apanhado um fruto de uma árvore e, ao sugar o doce sumo, tinha entendido que tudo a meu redor, e tudo o que eu era, não precisava ser como era, a não ser que eu assim escolhesse. Eu havia entendido que também existia um Oposto.

E contara a ele.Agora ele estava sentado e tremia de frio, com os olhos fixos num

deserto.Devo cuidar dele, pensei. E disse a mim mesma: Escute-me, Grande

Uno. Ajude-me.Mas, ainda assim, não falamos. Estávamos gelados até os ossos,

ali naquela saliência de pedra.O tempo passou.Então me levantei. Fui a primeira. Ele não me deteve. Ele se le-

vantou quando eu o fiz e começou a descer para a planície. Eu o segui. Quando chegamos lá, “Água”, disse eu, “comida”. Ele olhou em volta e apontou na direção em que sentia que deveríamos seguir. Deixei que me guiasse. Quem era eu para guiar? Eu havia tido o Pensamento.

Nossos pés sangravam. As pedras eram afiadas. Nunca, desde então, encontrei pedras tão afiadas, ou um frio tão intenso. Adão andava na frente. Nossa perda andava conosco. Tudo era Perda — mas já não corríamos de forma impetuosa; uma calma nos dominava.

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E quando o felino veio, grunhindo e saltando, tive certeza de que tinha vindo por mim. Fiquei imóvel e esperei. Ele saltou na nossa di-reção, vindo de trás e colocando-se ao nosso lado. A criatura tinha os dentes à mostra. Sobre o focinho a pele se enrugava. Era algo novo, parecido e não parecido às criaturas dóceis de Lá, que vinham esfregando o focinho e fungando em nossas mãos onde não mais es-távamos. E eu pensei: Esta fera pode me esmagar como a uma fruta. Então, pensei: Adão só precisa seguir caminhando e deixar que esta fera me despedace. Quando isso acontecer, talvez ele se veja de volta Lá...

Ao mesmo tempo, porém, parei e apanhei uma pedra. Abaixei-me e esperei pelo felino com aquele peso afiado no punho; e Adão se virou. Ele tinha ouvido os grunhidos; havia percebido meu movi-mento. Ele se virou e viu o felino. A princípio, apenas ficou olhando e, então, voltou correndo. Fez como eu havia feito: apanhou uma pedra. Então, passou correndo por mim, na direção do felino, arremessando a pedra e apanhando outra. Quando a fera saltou, Adão caiu sob seu peso, como se estivesse brincando. Nenhum grito de sua parte. Apenas do felino vieram grunhidos e, das pedras, o som que as pedras fazem quando se rola sobre elas e são deslocadas em sua poeira.

Felino e homem lutaram. Vocês entendem isso, meus filhos. Diariamente, vocês tomam a

vida e a jogam nisto: caçador e caça — e qual é qual? Vocês cantam canções e contam histórias sobre isso. Mas, naquela primeira vez, fi-quei observando com descrença. Não podia me mover. Uma náusea me apertava.

Não me deixe aqui, disse silenciosamente a Adão. Não me deixe aqui sozinha.

Eles rolaram na poeira e no sangue. As garras do felino rasgaram as costas de Adão. Vi a mão de Adão, rubra, forçando a cabeça da fera para cima e, então, perdendo o apoio.

Por fim me movi.

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Lembro-me de pouco. Apenas da fúria, da cauda chicoteando, das garras, do fedor da fera e da dor quando suas grandes espáduas rolaram sobre onde eu me agarrava, atacando sua garganta — se eu conseguisse golpear...

Nossa primeira caça. De alguma forma, aconteceu.O felino ficou tremendo sobre as pedras. Sua água fedia. Nós nos

arrastamos para o mais longe possível, caso ele se levantasse. Escon-demo-nos atrás de uma rocha e ali ficamos, tremendo e chorando.

Primeiras lágrimas.Mais tarde, lambi as feridas de Adão e o corte na minha perna.

Esfreguei com as mãos as unhadas em suas costas e segurei sua cabeça sobre meus joelhos enquanto ele gemia de sede, sempre de sede...

Até que um raciocínio surgiu.O felino soubera onde beber água. O caminho de onde ele viera

poderia nos levar ao local onde havia encontrado água.Enunciamos esse raciocínio e eu me levantei, mas Adão apenas

se espichou e ficou olhando. Então, atirei uma pedra que o atingiu na barriga. Ele grunhiu de surpresa. Atirei outra e com isso ele se levantou e saltou sobre mim, levantando o punho, mas, ao ficar ali oscilando, a maior parte de suas forças o abandonou e sua mão caiu pesadamente sobre minhas costas, equilibrando-o.

Meio que carregamos um ao outro. O sol baixou, como um olho vermelho que desliza para dentro da pálpebra, inundando nosso ca-minho com a luz sangrenta que traz em si a escuridão e o temor aos felinos...

No entanto, naquele esconder do sol e no surgir das estrelas, e na escuridão silenciosa que se abria sobre nós, e na lua que brilhava num arco fino, sentimos o doce aroma da água; e logo bebemos.

Adão pensou mais rápido depois disso. Eu teria ficado sentada perto da água, agradecendo ao Grande Uno, mas ele me arrastou dali.

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— Felinos — disse ele.Então nos escondemos entre as rochas. Não dormimos. Eu teria

lambido as feridas de Adão, mas ele me afastou. Seu rosto havia mu-dado. As curvas infantis haviam desaparecido. Não que eu pudesse dar nome a tais coisas. Não na época. Ele vigiou a noite inteira, com seus olhos em movimento. Grande Uno, disse eu, mantenha-nos a salvo. Eu teria adormecido, então, mas Adão estava tenso, com os olhos em mo-vimento, sempre em movimento, vigiando as sombras além de nosso esconderijo; portanto, fiquei desperta e vigiei com ele, e nós tremíamos de frio...

Até que, finalmente, o amanhecer chegou. Nosso segundo na Perda. O primeiro mal havíamos notado, mas esse segundo raiar do dia,

infiltrando-se em vermelho e depois amarelando, aprofundando a ideia de onde estávamos, onde ainda estávamos...

Não era Lá. Ficamos com medo. Nós nos agachamos e gememos. Ocultamos o rosto entre os joe-

lhos. Tentamos escapulir de onde estávamos, voltar por meio de nossa cabeça até Lá, mas insetos estranhos surgiram e correram por nosso corpo, aguilhoando nossos cortes, de forma que, no fim, para nos li-vrarmos deles, arrastamo-nos entre as rochas, levantamo-nos ao sol...

E, naquela segunda manhã, sentimos o calor. Ficamos em pé, re-cebendo-o; o verde intenso de um arbusto que crescia perto de nossas rochas cintilou, e a visão daquilo foi fortalecedora. Então, rastejamos novamente até a água e, não encontrando nenhuma fera, bebemos profunda e rapidamente.

Em seguida, Adão tocou meu braço. Agachado próximo à água, ele apertava os olhos para o céu e apontava para umas formas escuras circulando lá no alto, a certa distância de nós, onde havíamos deixado o felino.

— Eles estão vendo nossa comida — disse ele.

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Portanto, naquele dia, aprendemos a afastar os abutres e comemos da carcaça que eles teriam roubado de nós. Nossa primeira carne.

Conhecemos o fogo depois...Mas, primeiro, conhecemos o fogo de nosso âmago, de forma

que, deitados juntos e nos aproximando cada vez mais, Adão apro-fundou-se em mim, e o esforço se transformou em uma chama que não podíamos nomear.

Vocês têm seus próprios nomes para isso, meus filhos.Para nós, no começo, aquela chama era, e não era, uma busca por

Lá, por um lugar na novidade daquilo que nos havíamos tornado e que era mais do que Aqui, mas que explicava Aqui; uma busca que desper-tava em nós tremores de esquecimento que eram quase lembranças, como se naquela chama nosso corpo houvesse sido roçado pela asa de um pássaro cativo voando entre aquilo que nos havíamos tornado e o que fora perdido.

O que fora perdido nós chamamos de Éden. E uma noite, afastando-se de mim em meio a seu suor e recos-

tando-se na rocha, Adão me perguntou: — O que vai acontecer quando o fruto cair? Quando o jovem chegar? Você ainda ficará comigo?

— Não sei — respondi. Ele pareceu indefeso. Meus seios estavam pesados e doíam. Eu

os segurava sempre que podia. Aquilo me confortava. Eles pareciam entender mais do que eu. Minha barriga estava tão redonda quanto a lua cheia pouco antes de ficar novamente estreita.

— Não sei o que vai acontecer — disse a ele. Ele chorou.

A criança chegou. Para enfrentar sua chegada, havíamos encon-trado uma fenda na base de um penhasco, não tão grande quanto as cavernas que encontramos depois, mas que, a princípio, pareceu su-

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ficiente. Ela nos protegia em três lados de nosso temor aos felinos, de forma que só precisávamos vigiar em uma direção e, com o restante de nossas forças, podíamos lutar contra temores maiores.

Uma noite, Adão sussurrou: — Essa coisa pode te rasgar ao meio e sair daí pisoteando seu sangue. Como podemos saber o que foi criado dentro de você?

— No Éden — disse eu —, quando os jovens se soltavam de suas mães, tudo ficava bem. Você e eu vimos isso.

— Isso foi no Éden. — Ele me olhou com terror no rosto. Pousou as mãos em minha barriga.

— Você deve cuidar dele — disse eu — se ele me destruir. — Se ele te destruir — disse Adão —, esmagarei a cabeça dele

numa pedra.Mas vi que ele não ouviu o que disse e, então, minha dor começou

e eu gritei.Adão uivou e fugiu. Ainda o vejo em minha mente, correndo pela

boca da caverna, em direção à luz da lua. Gritei para chamá-lo, mas apenas uma vez. Era pior chamar e ele não voltar, então meu próprio temor me deteve — temor e espanto, não porque Adão tinha fugido, mas diante dos espasmos e expansões de meu corpo, da agonia da-quilo, do poder de tudo o que ele fazia, quer eu compreendesse, quer não, como se o Grande Uno falasse diretamente a ele, e eu parecia ser levada por aquele poder independentemente de quanto gritasse; e eu gritei, com a água escorrendo por minhas pernas.

Mais tarde, Adão se aproximou da boca da caverna. Ele se aga-chou ali com a lua atrás de si. A criança estava acontecendo. Eu me agachei, apoiando-me contra a rocha, e a sacudi para fora de mim. E Adão se aproximou devagar. Suas mãos a receberam.

Assim nasceu Caim, o filho de nosso medo.

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O tempo passou e depois dele veio outro filho. Abel.Abel nasceu no frescor do pôr do sol, não muito longe da margem

de um rio. Havíamos encontrado um lugar ali entre as pedras, esca-vado na lateral da montanha. Era um lugar mais verde do que onde Caim havia nascido. E, dessa vez, não estávamos com medo. Adão ficou comigo. Entre os apertos do parto, descansei sobre peles de felinos e de cabras que ele havia colocado para mim, e a criança veio com facilidade. Ele chorou nas mãos de Adão tão forte e claramente que Adão sorriu.

— Meu filho — disse ele. Mas nosso filho Caim se agachou em silêncio a meu lado, agar-

rando meus dedos em seu punho fechado, e olhou do sangue que corria de mim à nova vida que Adão carregava, e seu aperto se intensificou.

— Chamaremos essa nova vida de Abel — disse eu a ele —, assim como te chamamos de Caim.

Ele não disse nada.

Conhecemos o fogo depois — o fogo do relâmpago na grama e nos arbustos secos. Aprendemos a tirar um galho das chamas e carregá-lo conosco, e, com ele, alimentar outros galhos, de forma que às vezes nossa noite era quente e livre de medo; e nessas noites, especialmente nessas noites, contávamos a nossos filhos de onde tínhamos vindo. Falávamos do Éden e do Grande Uno. Adão dizia coisas que não po-díamos mencionar à luz do dia, com o rosto brilhando na claridade do fogo, e nossos filhos se agachavam a nosso lado, alimentando as chamas com galhos que havíamos juntado, escutando e trabalhando para aumentar o fogo ao longo da noite.

— Não conhecíamos dor no Éden, nem frio. Os felinos lambiam água de nossas mãos. O Grande Uno caminhava entre as árvores altas. Nós ouvíamos a voz do Grande Uno no âmago do que éramos e estávamos repletos de alegria... até que o Pensamento surgiu.

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Apenas uma vez ele disse: — Até que o Pensamento de sua mãe surgiu — e, então, ele baixou os olhos, rompendo um osso que segu-rava. Era o osso da asa de um pássaro que havíamos comido, e ele olhou para mim por cima do fogo e, então, baixou novamente os olhos.

Caim me golpeou no lado. — O que ele quer dizer? — sibilou. — Foi o seu pensamento? Por que você o teve?

Não respondi.— Eu quero o Éden! — disse Caim, em seguida se levantou e me

chutou. — Eu quero o Éden!Eu não disse nada. Tampouco Adão. Mas, quando vi que Caim

ia me chutar uma segunda vez, virei-me e o golpeei. Então ele cho-ramingou e rastejou para perto e deitou a cabeça em meu colo. Abel ficou quieto. Ele se agachou ao lado do pai e alimentou o fogo, e, assim como acontecia sempre que falávamos do Éden, seus olhos es-tavam brilhantes.

— Conte-nos mais — disse ele, por fim. — Conte-nos mais sobre os felinos e como eles bebiam água de suas mãos.

Nossos filhos cresceram. Abel nos ensinou o riso — nos lembrou do riso. Nós havíamos esquecido. Ele ria do jogo entre a luz e a sombra e das formas na água, ou de um inseto que corria sobre seus dedos, ou do comportamento tímido de muitas criaturas, e da teimosia das coisas: a argila molhada formando bolas que se inflavam e mur-chavam, os tapetes que tecíamos e que se abriam...

Um dia, ele trouxe algumas criaturas para nossa caverna. Elas o seguiram até lá, três ovelhas de olhos arregalados, que Adão e Caim teriam matado, mas Abel passou as mãos pela lã nas costas de uma delas e disse ao pai: — Deixe-as viver por enquanto. Nós po-demos beber o leite da fêmea e, quando elas tiverem feito outra mais jovem, podemos matar uma das velhas, se precisarmos, quando não tivermos mais nada para comer, e ainda teremos a mesma quanti-dade que temos agora.

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Adão ficou satisfeito. Assim, depois disso, Abel procurou por mais ovelhas.

Caim também nos ensinou. Ele fez armas e outros objetos afiados. Apanhou gravetos, afiou-os e os enterrou no chão na entrada das ca-vernas onde vivíamos. Então, chegou um dia em que ele disse a Adão: — Se você abandonar este lugar por achar que não há mais comida, não irei junto.

— Então você ficará faminto e fraco, e depois morrerá — disse Adão. — Eu vejo isso quando caço. O que está fraco logo morre.

Mas Caim disse: — Obrigarei esta terra a me alimentar. Você vai ver.

E nós o observamos, arrastando a ponta dos gravetos pela terra e espalhando grãos e sementes de grama que havia juntado.

— De que adiantará fazer isso? — perguntei-lhe.— Você vai ver — disse ele. — Se ficar aqui.Ele cercou seu trabalho e o vigiou. Atirou pedras nos pássaros

que vieram com o bico afiado pilhar as sementes de seus esconde-rijos. Arrastou água desde o rio em odres e potes. Matou um felino. E, uma vez, golpeou com um porrete duas das ovelhas de Abel e que-brou-lhes a espinha em sua ira porque elas haviam descoberto uma forma de entrar nesses terrenos que ele havia feito e tinham comido os brotos verdes.

Abel esfolou os animais em silêncio. Havia aprendido a fazer fogo com madeira e capim sem a necessidade de relâmpagos do céu. Fora um aprendizado com o qual deparara durante uma brinca-deira — com Abel era assim — e ele adorava seu fogo, nós todos adorávamos, mas sobretudo Abel, porque com frequência, à luz do fogo, havíamos falado sobre o Éden.

Abel queimou no fogo uma das ovelhas que Caim havia matado. Adão e eu vimos a fumaça e o encontramos queimando-a. Ele o fez em um local secreto.

— Que vá para o Grande Uno — disse-nos ele.

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A visão de tanta comida empalidecendo em cinzas enfureceu Adão. Ele golpeou Abel no peito e berrou com ele, e pensei que meu filho o golpearia de volta; então, eu disse: — Melhor morrer de fome do que privar o Grande Uno daquilo que Abel quer dar.

Diante disso Adão pareceu atemorizado e, agachando-se, pegou um punhado de cinzas e espalhou sobre sua cabeça.

Nós nos empanturramos com a outra ovelha. Estava doce e nutri-tiva. Nossa barriga se inchou com tanta carne e, enquanto descansá-vamos na sombra, depois, Adão sorriu para Abel.

— Meu filho — disse ele —, você fez bem. Você fez bem.Abel sorriu de volta. Mas Caim apenas olhou para longe.

Abel cantava. Os sons saíam de sua garganta, e seu pai e eu os enten-díamos. Não havia palavras, apenas sons, e, às vezes, enquanto eu trançava o junco ou esfolava a caça, tentava deixar aqueles sons saírem da minha própria garganta, mas eles não vinham. Só vinham lágrimas. Às vezes, em volta do fogo à noite, Adão e eu cantávamos com Abel. Podia ser feito, então, e havia uma força nos sons que pro-duzíamos que nos fazia levantar, batendo os pés e erguendo as mãos para as estrelas; mas Caim não cantava. Ele apanhava sua lança.

— Os felinos pegarão as ovelhas — dizia ele —, mas não cabe a mim pensar nisso. Eu tenho os campos para cuidar. — E nos deixava.

Fui atrás dele uma vez, através das sombras que fediam a fe-lino. Segui-o com o medo palpitando no peito, até que se virou e me encarou.

— O que você quer? — perguntou. — Vou com você — respondi.— Volte — disse ele, virando-se novamente; mas o segui mesmo

assim, até os campos. Vigiei com Caim durante a noite inteira. Ele fez uma fogueira pequena. Ela fumegou. Ele não entendia o fogo como Abel. Nós nos acocoramos ao lado da fogueira e não conversamos.

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