vozes do silêncio1cap

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    VozesdoS

    ilncio

    Adriana Vargas de Aguiar

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    Copyright , 2013 de Adriana Vargas AguiarTtulo: Vozes do SilncioReviso: Adriana VargasBeta Reader: Adriana VargasCapa: Denis LenziProjeto grco/Diagramao: Josi Raquel Echeverria1 edio em 2013

    MODO EditoraRua Guatemala 376, Jacy, Campo Grande - MS

    CNPJ 05.509.429/0001-22s

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    S umrio

    IIIIIIIVV

    VIVIIVIIIIX

    XXIXII

    XIIIXIVXV

    1732537089

    107135152163183192214

    228247265

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    P rlogo

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    Movido por uma ora invisvel, Dom Diego procu-rou a magia cigana para conquistar o poder e implantar a ditadura naEspanha. Houve um pacto, uma troca de avores - deveria encontrar aamlia deste homem e puni-la em troca do poder, porm no o ez; pen-sou apenas em seus prprios interesses, utilizando-se de um dos gitanosque ora incumbido de acompanh-lo e trazer de volta a menina cigana,que nasceu preparada para ser sacricada, libertando este povo, pois todacriana nascia morta, estavam adados extino da raa. Alguns eramlevados a ora para a dizimao. Somente a vida desta menina poderiatrazer esperana e uturo aos ciganos, que teve seus costumes e leis espi-

    rituais violadas.Com a quebra do pacto, a Espanha estava assolada pela guerra

    ria entre a populao estudantil e a ditadura. Motivo as consequnciasda maldio, que tomava conta do poder. Casas pegavam ogo, mesmosem nenhuma causa. Pessoas acordavam mortas em suas camas sem al-gum diagnstico que explicasse tal ato. Jovens se suicidavam, aumen-tando a estatstica a cada ms que se passava. Outros pases ameaavameclodir a terceira guerra mundial, desde que a Espanha echou suas ron-

    teiras e aliou-se a Alemanha Nazista e Itlia Fascista.

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    Ano de 1975

    Sanatrio San Francisco de Assis, Madrid

    Um vento bom tocou seu rosto a ponto de az-la esquecer dospedaos de vida que a atormentava. Sentia-se devorada internamente porum animal eroz insacivel. Havia perdido a noo de quanto tempoestava presa naquele lugar, talvez a cerca de trinta dias, seis meses ou umano... O tempo no importava mais. Ela sabia o que precisava ser eito,apenas esperava pelo momento certo.

    Respirou proundamente a vida como algo necessrio que trou-xesse esperana, mesmo sabendo que o sonho uma longa estrada sem

    garantias de se chegar a algum lugar. Sonhar o maior lenitivo almasedenta de sentimentos e sensaes pensou, enquanto segurava vida,a caixa velha de papelo cheia de envelopes endereados a Vidal de Luc-ca. Assim eram seus dias - escrevia cartas e cartas, na esperana de um diareencontr-lo. Em cada envelope, havia sempre a mesma rase: Estoulhe esperando! Esta era a orma que encontrou para anestesiar sua dor.

    Tirou de dentro da caixa, uma estrela de seis pontas eita de me-tal e a segurou rmemente rente ao peito, lembrando da noite em que oientregue a ela, por mos que sonhava em voltar a tocar.

    As juras de amor tragadas por uma nsia impetuosa, no resisti-ram aos vendavais constantes. Hoje so apenas lembranas que perdura-ram; longos abraos na Praa de Cibele - pensou - entre as dunas de umolhar morto, perdido. Sentia-se viva apenas quando lia e relia as cartasantigas que no entregou ao seu destinatrio.

    Ele estava por perto, ela podia ouvir sua respirao quando ovento, trazido do lado de ora da janela, batia em seu rosto marcado pelaslgrimas que escapuliam.

    Ele jamais a abandonara! Sim, o vento dizia isso... Os pssarosdiziam... As batidas de seu corao gritavam. No havia dvidas ela osentia em todos os lugares!

    Abriu um pouco mais a janela do sanatrio e viu a menina quecorria entre as rvores. Sentia-se livre, brincando com o vento. Ria, en-quanto pulava com o capim enroscando em suas pernas que no estavammais roxas ou judiadas. Nada podia impedi-la de ser eliz. Poderiam dizerque se tratava de delrio ou loucura, mas tinha certeza de que a meninalhe azia companhia em momentos innitamente solitrios e dolorosos.

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    Observou-a atentamente. Queria cham-la pelo seu nome e lheoerecer seu colo ou um chocolate, mas ela s queria brincar. Estava en-tretida conversando baixinho com uma espiga de milho que segurava por

    entre as mos ragilizadas. Passava a mo nos os claros da espiga comose osse o cabelo loiro de uma boneca - seu brinquedo era tudo que im-portava naquele momento.

    De repente, olhou para ela e veio correndo at a janela. Mirourmemente nos olhos de quem a observava, sorriu e disse:

    Por que voc est chorando? seus olhos eram grandes e ver-des.

    Eu no sei... respondeu a moa com uma vontade de gritar.

    Seu pai brigou com voc? No. Voc sente saudades dele? Muitas... Ele cuidava de voc? Sim. Do jeito que conseguiu. Voc ainda tem medo da chuva? Tenho! E voc, ainda gosta de maria-mole? Sim, gosto... sorriu. No tenha medo da chuva, os pas-

    sarinhos cam elizes quando chove. As plantinhas crescem cantando... ela sorriu novamente. Voc quer perder o medo de chuva? disseolhando para o cu que se echava e relampeava.

    No consigo! disse quase chorando. Sim, voc consegue!Voc conseguiu crescer! Agora venha at

    aqui... No posso, estou doente! Voc morrer?

    Um dia irei... Todos iro... assim como voc! Ento aproveite agora... Venha azer tudo que sempre quis! Ah, se pudesse... disse Analy, olhando a chuva chegar e os

    relmpagos estralarem rente dos seus olhos. Seu corao disparava e elarespirava de modo descompassado.

    O vendaval invadiu tudo to repentinamente. Olhou apreensivapela janela tentando no perder a menina de vista. Tornou-se obcecadapor sua alegria, queria proteg-la a qualquer custo.

    Raios e troves traziam um orte vendaval, deixando sombria a

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    paisagem pela janela. Ainda tinha medo de ventanias que uivavam peloar em uma linguagem de dicil compreenso, e mesmo assim, a meninado lado de ora no parava de rir. Cantava e brincava de ciranda embaixo

    da tempestade. Por mais que tentasse avis-la sobre o perigo que estavacorrendo, ela no ouvia. Sua elicidade era incompreensvel.Tentou se arriscar colocando a cabea para ora da janela, num

    grito sbito e corajoso como nunca havia eito antes: Vina! soltouum eco longo e cheio de vida.

    Assutou-se! - Vina era minha irm! Estava morta! Como po-deria estar ali? Como poderia voltar aparncia de quando era criana?Devo estar realmente louca! pensou.

    O tempo passou, mas no levou o seu aspecto juvenil. Analyainda pensava como se tivesse dezesseis anos e, em muitas vezes, como seainda osse como esta mesma menina que v, atravs da janela, sentadano balano da rvore do stio que morava, cantando canes de tantosanos atrs.

    Fechou os olhos, suspirou proundamente e voltou aos seus escri-tos, cheia de esperana. Hoje conseguiu azer o tempo voltar em raode segundos. Faltou coragem para se lembrar de alguns assuntos que amagoaram irremediavelmente.

    Nunca mais tinha abraado algum, por este motivo, a ener-meira da instituio a presenteou com um boneco grande de pano. Eladorme abraada a ele, como se isso osse a nica coisa que tivesse restadoalm da caixa de sapato cheia de cartas.

    O amor a mantm viva, mudando o sentido da morte e o nomede todas as coisas. Sente-se recebendo o amor de quem no est presentesicamente, mas se preciso osse, viveria tudo de novo, apenas para estarao lado de algum inesquecvel e indelegvel - o aria atravs das migalhas

    de oras que tinham restado.

    As letras eram desenhadas no papel com vontade de ser realidade.A cigana surgiu a sua rente com o mesmo ar misterioso de ou-

    trora, depositando a mo em sua cabea com uma pele coberta por umarenda preta.

    Quem voc? perguntou curiosa.A mulher cou indecisa quanto a responder esta questo. Mas

    no ugiria da verdade.

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    Uma mentora espiritual. Mas como tudo que ora dito e vistoaqui, voc se esquecer do que sou e do que ouviu, at o ponto crucialque necessitar de uma escolha. Guarde em seu corao - as escolhas so

    donas de nosso destino.

    Analy echou os olhos quando ela voltou a tocar em sua cabeae deixou-se levar pelo toque que a atormentava, mas no conseguia selivrar, pois nada pior poderia lhe acontecer, desde que ora parar naquelelugar rio. As imagens oram surgindo em sua mente como um lme queela jamais havia visto, mas estava pronta para saber at onde conseguiria

    chegar. Viu as botas de modelo militar pisando rme na terra averme-lhada de um local cheio de tendas coloridas. Era dia, e o sol iluminavaos galhos secos das rvores que ali estavam. O homem ora recebido pordois ciganos que o levaram em silncio para dentro da tenda central doacampamento.

    Dentro da barraca havia uma mulher robusta, sentada em umamesa coberta por cartas. Seus olhos, exageradamente pintados, taram omilitar como se quisessem ver sua alma. O homem se sentou de rente

    para a cigana e no ugiu de seu olhar. O que devo azer? perguntou com a voz embaraada. Se sua pretenso tomar o Pas, deve seguir a risca tudo que

    or proposto. As cartas no mentem, o homem, sim. O que as cartas dizem? ele perguntou em tom seco, mas

    preocupado. Muito sangue ser derramado. A extenso de seu poder no

    governo ser vinda de oras sobrenaturais que atuaro desde o princpio.

    As ronteiras do pas sero echadas, gerando dio, ganncia e cobia. Secaso no cumprir o prometido, a terceira guerra ser eclodida, e a Espa-nha ser invadida por seus uturos inimigos polticos, inspirados pela or-a maligna espiritual. Estamos preparando seu brao direito que seguircontigo. um gitano* de inteligncia incomparvel que tem uma missoa ser cumprida, e voc dever ajud-lo a desempenhar, caso contrrio...

    *Cigano espanhol

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    Caso contrrio? ele perguntou, olhando xamente nos olhosda cigana.

    A ora sobrenatural que reger toda a Espanha, cair contra

    voc, como uma maldio que destruir no somente seu uturo gover-no, mas toda sua amlia; matando-o aos poucos e mngua por doenassem explicaes. Voc alcanar o poder, mas precisar cumprir o queprometeu ao nosso povo e aos nossos deuses.

    Ao ouvir todos os conselhos espirituais que precisaria cumprir,inexplicavelmente, uma jorrada de sangue sara debaixo das cartas e cor-ria para o lado em que estava o militar. Assustado, ele se levantou e saiuda tenda, olhando para a gitana que expressava nos olhos, a seriedade das

    palavras que disse a ele, o militar saiu desamparado, trombando um p.Seguiu rumo ao destino desconhecido, com suas botas grosseiras deixan-do marcas de sangue por onde pisava.

    Analy abriu os olhos assustada. As imagens desapareceram. Noconseguira entender o motivo de ter que assistir tais atos. A cigana ago-ra, se aastou e apenas a observava. Analy ainda no descobriu sua ori-gem, e a razo de sempre estar ao seu lado em momentos inesperados.

    Precisava escrever a ltima carta a Vidal, enquanto reunia as re-

    manescentes esperanas em oras. Sente-se a um passo de abrir a portado passado. O corao dispara insistentemente. Fechou os olhos buscan-do coragem e, antes de adentrar a porta imaginria, olhou pela vidraaembaada. A menina desta vez olha em seus olhos segurando a bonecaimaginria, rente ao peito. Com um sorriso tmido, ela permanece estti-ca esperando pelo reencontro do presente com o passado, e neste instantemarcante, Analy hesita em atravessar a porta.

    Atravesse! gritou a menina ao lado da cigana que um dia en-

    controu na praa. Ela tinha o mesmo olhar insano, que tentava enxergaros pensamentos, enquanto acompanhava os movimentos de Analy at aporta.

    Coragem! pediu a cigana, escondendo o olhar por entre asmangas vermelhas de seu vestido de cetim que brilhava com a luz do dia. Voc voltar ao passado. Reviver e ar tudo novamente, at chegaro momento da escolha. Mas desta vez, escolher a verdade. Perder ab-solutamente a lembrana que h, desta porta para c, quando daqui sair,como se jamais tivesse vivido todos os atos que encontrar. Seja orte!

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    Assim que cumprir a proecia cigana, desazendo a maldio e libertandoa Espanha, eu lhe trarei de volta para o presente. Volte, e conserte seupassado! Somente o amor a libertar, lembre-se desta rase no momento

    propcio.Analy pde ouvir o corao da menina que batia com a mesmaora que bate o seu, dividindo o sentimento. Levantou da cadeira semdesviar seus olhos dos da pequena. Sem acreditar na coragem adquiridade Analy, a menina desprende a mo da espiga de milho que cai ao choenquanto caminha em passos lentos rumo porta metasica, recm ma-terializada. Com medo do tudo e da vida, ela colocou a mo na echadu-ra, este era o momento que a separava do passado.

    Estava prestes a mergulhar nesta viagem que ia sem bagagem; iaapenas com o desejo do reencontro consigo mesma e com as coisas quecaram sem soluo no passado.

    Timidamente, a menina levantou sua mo mida e acenou, de-notando em seus olhos o mesmo medo que expressavam os de Analy queleu em seus lbios a rase que gostaria de ouvi-la dizer: Voc consegui-r!

    Dos olhos brilhantes e grandes, caiu uma lgrima inantil e, emseguida, o esboo de um novo sorriso. Diante disso, Analy encorajou-se

    e abriu a porta. Tudo cou em silncio. Ainda sentia a estrela de metalparecendo pulsar em suas mos.

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    Vozes do Silncio

    Ano de 1952

    Era quase anoitecer no stio Alvorada na cidade de Coslada,municpio de Madrid, Espanha.

    De longe podia-se ouvir o choro de uma criana. O som mistu-rava-se ao zunir matreiro dos bichos silvestres que por ali aziam morada.O choro vinha de uma casinha eita de madeira no meio do mato. Estelar recebia uma menina numa amlia simples que ganhava o po vindodo campo.

    A amlia camponesa deu a ela o nome de Analy. Chorava insis-tentemente. Pedia o seio da me para amamentar; no se sabe o motivo,mas jamais ora amamentada e, para poder dormir, o pai molhava a pon-ta de um tecido que dava a orma de uma chupeta, passava no acare colocava na boca da criana. Aos poucos, ia se acalmando, deixandoapenas o zunido dos insetos imperar na noite perdida no meio do breu.Era uma amlia pequena. A desgraa havia recado sobre esta, quando opatriarca caiu em tentao ao buscar um gado ao lado do acampamentodos ciganos de Madrid. Uma bela gitana tratava dos animais pertencentes

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    Adriana Vargas de Aguiar

    ao bando, quando se abaixou para pegar o galo, e pela resta da blusa, ocampons avistou seus seios. Percebendo a presena dele, ela sorriu, dei-xando a mostra suas belas pernas bem torneadas, que guardavam a barra

    do vestido, deixando a cor da pele morena descoberta.O campons cou esttico diante da cena e aproximou-se docercado.

    Boa tarde! Teria um copo dgua para me oerecer? pergun-tou ele.

    Aproxima-se! disse ela sorrindo com os lbios pintados devermelho.

    Ela passou o copo para as mos dele e o tocou.

    Era s isso moo?O campons a tomou nos braos, hipnotizado por uma ora queno pde deter! Deu-se o incio de uma tragdia que aetar at mesmoquem ainda estar para nascer.

    Analy, desde que voltou ao passado em busca de respostas, nopoderia sequer imaginar o que encontraria ali, em sua antiga casa, onde

    ora criada. Rondou por todo o casebre atrs de lembranas. Absorvia ocheiro do local, como se este zesse parte de si, a ponto de se materializaraos pedaos soltos e quando voltavam a se juntar, ormavam o que ela .

    Em sua mente, a mesma imagem vinha e desaparecia: uma crian-a muito pequena nasceu com um sinal no ombro esquerdo, a imagemde uma estrela de seis pontas, estava recebendo um patu assinalado comuma cruz bordada contendo incenso. Um batismo sendo eito por umapessoa que a benzia com gua, sal e um galho verde. Logo ao amanhecer,

    aos primeiros raios de sol, seria sacricada. Fora planejada para tanto.Mas algum roubara a criana... algum retirou a esperana de libertaoda maldio que recara no bando dos ciganos e em toda a Espanha, acada vez que nascesse uma nova vida.

    Fechou os olhos e se lembrou do barulho de panela batendo umana outra durante a madrugada. Seu pai colocava quase todos os objetosda cozinha em seu bero, e assim, ela brincava at se cansar e dormir.

    O que aconteceu aqui? Como o pr do sol de Coslada desapare-ceu sem que a amlia toda pudesse se despedir das coisas que consegui-

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    Vozes do Silncio

    ram ormar em uma vida toda?Ela encontrou um jardim vazio entre a alameda que consumia as

    bras da madeira que constitua a casa construda pelas mos calejadas de

    seu pai.Quem viveu ali - eram personagens ou sonhadores?Ela eliminou as lgrimas, lembrando-se do cultivo de uma boa

    colheita esperada durante o ano todo, porm, tudo ora destrudo peloogo. Em poucos segundo, ouviu a ltima rase proerida por seu velhopai:

    Meu Deus!E agora tudo parece estranho. Ainda se lembrava do que tinha

    acontecido, mas sabia que logo tudo desapareceria de sua mente como acigana lhe prometera. engraado como um inseto consegue danicar tanto uma se-

    mente. Assim imaginou sua vida consumida por algo desconhecido, aospoucos e continuamente...

    A constituio mental de todo o cenrio antes do incndio, noera to idntica hoje, depois de todos os atos que a levou ser quem ,modicou o gosto da elicidade de estar em sua velha casa de madeirasem as chamas, mas sabendo que um dia, as alamedas chegariam.

    Poucos segundos aps as lembranas, um enmeno sobrenatu-ral tomou posse de sua conscincia. E tudo girava ao seu redor comose estivesse caindo num poo muito undo e escuro. Parou. O silncioimperou. Estava de dia e tinha 15 anos de idade.

    Poucas coisas haviam mudado com o tempo. Ela ainda sentia

    medo de troves e chorava quando estava sozinha.Quando cava triste pelas surras dadas pelo pai, ela o imaginavadentro de um caixo coberto por fores e o sentimento mudava. Sentiamedo de que Deus a castigasse por ser uma lha ingrata. Passaria a vidatoda apanhando do pai, mas preeria assim a perd-lo.

    Enxugou a lgrima e terminou de varrer a rente de sua casa.Galeno, um rude peo que trabalhava com Fernandes na lavoura, a ob-servava de longe, e poderia t-la visto chorando. As pessoas da roa eramcuriosas e mexeriqueiras.

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    Adriana Vargas de Aguiar

    Ao terminar de varrer a rente de sua casa, oi abordada por Ga-leno.

    Voc pode ir at minha casa buscar o prato de sua me? ele

    perguntou, deixando a enxada de lado. Posso sim, senhor. S vou lavar o rosto e j deso.Galeno a olhava enquanto andava de um jeito nojento e mal

    intencionado.Ela lavou o rosto e oi atender ao pedido de Galeno. A casa dele

    era de rente a sua casa, jamais poderia imaginar o que lhe esperava.Bateu na porta que estava echada, esta se abriu sem que pudesse

    ver o rosto de Galeno. De repente um brao sai do interior da casa e a

    puxa com ora. A porta se echou, silenciosamente. Ela arregalou osolhos, tendo em seus lbios, as mos sujas do lavrador que a preveniu: No grite menina! com um gesto de silncio, ele levou o dedo sujo emseus lbios e seus olhos aiscavam coisas imundas. Com medo, sentia-seacuada sem saber o que aconteceria. Permaneceu quieta, enquanto o de-mnio sujo retirava sua cala com a ponta de uma aca, ostentando umleve sorriso nos lbios, enquanto observava o corpo da menina que aca-bava de ormar os seios e alguns pelos pubianos. Dentro de si, guardavaum grito de socorro.

    Com a mesma mo suja que pedia silncio, o manaco passou atoc-la em suas partes intimas e ela apenas permitia que as lgrimas der-ramassem pelo rosto sem poder ter alguma reao. As mos dele aindaestavam sujas, cheias de terra nas unhas. Sua boca emitia balbucios queecoavam pelo velho barraco. Por que estava azendo aquilo? pensavaEle sempre ora to bem tratado por minha amlia que o abrigou nostio, dando-o um lugar para morar e um trabalho para seu sustento.

    Pegou um dinheiro e colocou dentro de sua calinha, e em segui-

    da, numa voz que soava ao ouvido da menina com um misto de asco eterror, sussurrou ele: Esse dinheiro para voc no contar nada...Ela echou seus olhos ortemente. Ouviu ecoar uma voz que a

    encorajava, em meio s tantas lgrimas que rolavam amargamente porsua pele alva. De undo, ouvia-se uma msica tocar, acompanhada porbatidas de palmas, em seguida, a viso mostrava algumas pessoas danan-do com movimentos que envolviam lenos, acas e at mesmo garraasde bebidas nas mos. Droboy tume Romale* diziam as vozes juntas,

    * Cumprimento tradicional, como um ol.

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    Vozes do Silncio

    como num coro que enlouquecia e vibrava os tmpanos. Sem compreen-der a linguagem, ela apenas sentia que se tratava de um cumprimento,pela orma como aquele grupo de pessoas se curvavam diante da chama

    do ogo que refetia em toda parte, eixes de luz, ormando nuances di-versas pelo ar. Uma nuvem escura invadiu tudo novamente, e as imagensoram se esvaindo uma a uma, at desaparecerem de vez.

    No conseguiu mais suportar quela situao, e decidiu se arris-car, sabendo que poderia ser erida gravemente, mas queria a proteo dequem conava. Juntando todas as suas oras, deu um tapa no rosto deGaleno, e em seguida, conseguiu gritar o nome da me. Ele a soltou e elasaiu correndo, enquanto Adelita vinha ao seu socorro.

    Sem precisar pedir, ele arrumou sua mala velha e deixou a casarapidamente, retirou-se do stio, antes de Fernandes chegar e saber danotcia ruim. Nunca mais se ouviu alar nele. Porm, quando seus olhosacompanhavam o vulto escuro de Galeno, no muito longe dali, viu aimagem de algum, escondido atrs de uma rvore, observando-a, semque ela soubesse de quem se tratava. Ergueu os ombros e entrou para suacasa, mas voltou, assim que percebeu a irm indo correndo em direo aoestranho atrs da rvore. Eles conversaram. Vina tentava pegar nas mosdele, e este recusava o toque. Ela insistiu e o rapaz oi embora. Analy viu

    seu vulto, mas no conseguiu reconhec-lo.Vina entrou chorando para dentro da casa. A irm oi atrs. O que houve? perguntou querendo entender a situao. No de sua conta. V escutar seu radio e me deixe em paz!

    saiu de perto, enurecida e visivelmente magoada.

    No dia seguinte, uma catstroe para a vida que se apresentavacomo uma aceta juvenil. Sentada no vaso sanitrio, sentiu que algo ha-

    via acontecido. Analy cou sem saber se contava irm. Sentia-se estra-nha por dentro, mas olhou-se no espelho por vrias vezes e no vira nadaanormal, apenas uma sensao de que precisava crescer.

    Ningum jamais disse em como proceder quando chegasse a suavez. Como encarar a mudana do corpo? Sexo? Este assunto era somenteimaginvel. Passava horas pensando sobre o motivo que levava os meni-nos a olharem de modo dierente depois que seu corpo se transormou.Vina j havia passado por esta ase e no a tinha precavido das coisas quepoderiam lhe acontecer quando se tornasse adolescente.

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    Adriana Vargas de Aguiar

    Uma coisa a incomodava - sentia vergonha das mudanas queaconteciam em seus seios que se despontavam ora do controle, marcan-do todas as blusas que usava.

    Sentia medo de viver. Por mais que isso parecesse ascinante, cau-sava certa ansiedade que era disarada na negao. Estava entrando navida real; na vida de pessoas que precisavam cuidar de si mesmas. Queriase esconder com o grito de liberdade por dentro, por medo de sabercomo viver o que oi banida de conhecer.

    Ela deixou de acreditar que algum poderia am-la verdadeira-mente, por mais que quisesse viver um momento especial. Sentia repulsadentro do corao ao imaginar se entregando a um homem. Temia que

    se apaixonasse e depois soresse to acilmente como criana que tem seudoce roubado. A impresso era de que havia colocado uma pedra no lu-gar do corao, suocando qualquer sentimento que a ragilizasse diantedas circunstncias. Tinha medo de se doar para pessoas e perd-las nonal.

    Os homens do campo estavam ora de seus planos. Queria en-contrar algum, e quando pensava nisso, apenas se lembrava de Vidalde Lucca, o radialista da capital que apresentava seu programa avorito Borboletas na Primavera. Ele era o dolo dos seus sonhos, e em suas

    antasias de menina, ela o venerava e o imaginava sendo o algum quepudesse retir-la daquele conm e lev-la para conhecer o mundo. Apai-xonara-se pela voz de Vidal, pelas rases que ele dizia, pelos sonhos queele cultivava em sua vida sem prazeres, estremeciam seu corpo. Queriasonhar e acreditar no que sonhava; esperava que algo acontecesse em suavida. Sem querer, a brincadeira alcanava grandes escaladas da realidade- Vidal de Lucca, mesmo sem saber, e atravs das ondas de um rdio,salvava uma vida condenada ao marasmo.

    Esta uma poca dos sonhos e da nostalgia. As meninas apaixona-vam-se por seus dolos. Fariam qualquer coisa para estarem perto deles,mesmo daqueles que jamais tinham visto pessoalmente. A imaginaodava asas para a elicidade. Analy precisava se entregar aos seus devaneiospara se sentir viva entre os sapos, pernilongos e o gado.

    Levantou-se e olhou novamente para dentro do vaso sanitrio,soltando um pequeno som de exclamao ao perceber sangue misturado gua. Fixou seus olhos no lquido avermelhado que aos poucos toma-

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    ram orma de chamas de ogo. Nas alamedas, viu ormando-se um parde olhos amendoados cobertos por uma renda preta. Os olhos a tavamcomo se quisessem lhe dizer algo. Escutou um sussurro em seu ouvido:

    O sangue os unir! O medo tomou posse de todo seu corpo, a pontode az-la tropear na porta, tromando nas paredes at chegar sala. Ocorao pulsava orte e lgrimas caiam. Sentiu o gosto salgado em seuslbios. Fora apenas imaginao! alava para si mesma, ao tempo quesuas pernas tremiam. Essas coisas no existem; no acontecem e noestou louca!

    Vina ao v-la, to plida, apressou-se: O que houve?

    Eu... eu... ela pensou antes de dizer; talvez a irm no acre-ditaria em suas palavras e a ridicularizaria pelo resto de sua vida. Sim.Ela o aria. No tinha ningum a quem pudesse conar seus pequenossegredos.

    Diga menina? O que aconteceu, viu algum antasma?No tinha o que dizer, a no ser, o outro motivo de uma chacota,

    talvez menor. Vina, aconteceu a pior coisa do mundo! seu rosto continu-

    ava com uma palidez mrbida distribuda entre seus olhos arregalados.

    Ela no iria contar a verdade... Jamais contaria! Seria um segredo guarda-do a sete chaves.

    Fale logo de uma vez... - Vina j estava afita. Isso! alou mostrando a saia manchada pelo sangue.Vina ria at se curvar em cima da cama. Larga de ser tonta! Isso normal, voc j tem quinze anos, j

    era para ter menstruado. Normal para voc... seus olhos estavam marejados de lgri-

    mas, se ela soubesse realmente o que havia acontecido, no iria acreditar. Ah, que tola! Vina continuava rindo. Tudo continuar amesma coisa.

    No minta para mim! Voc no se importa com o que sinto! disse ela revoltada.

    Por que mentiria, est louca? a irm j estava se irritandocom o jeito de Analy, mas oi inevitvel deixar de rir. At parece queno gosta dessa ideia de agora ter que crescer, namorar, azer sexo e terlhos. soltou novas gargalhadas e Analy saiu correndo em busca de um

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    lugar onde pudesse se esconder do mundo.Sentia-se atormentada pelas vises constantes. Talvez estivesse -

    cando maluca e isso seja um segredo que no deveria revelar nem mesmo

    a av. Aqueles olhos cor de azul anil a perseguia em seus pesadelos e eramvistos quando acordava no meio da madrugada, sem esperar por isso.No sabia de quem se tratava e nem o que queriam, apenas expressavamdor e solido, de algum que a chamava para perto de si. Poderia ser umailuso de tica; um tormento emocional causado pelo medo e excesso deresponsabilidade cobrada pelo pai. Poderia estar impressionada com ospesadelos contnuos que tinha com o ogo e sangue.

    Fernandes tinha o hbito de deixar, logo ao amanhecer do dia,um lato de alumnio prximo venda para o caminho de leite abaste-cer, e mais tarde, buscava o vasilhame na estrada.

    V buscar o lato e v se no demora, estou precisando devoc na roa pediu a Analy.

    Ela olhou para a irm de imediato. Vamos comigo, maninha?

    De jeito nenhum! Por qu? Se voc or, te compro uma maria-mole. Voc acha que me engana? Estou garantindo que compro... Com qual dinheiro? Est guardado mentiu. At parece que voc tem algum dinheiro. Est bem, eu no tenho, mas vou ter um dia.

    Ento tenha primeiro. Credo, Vina, deixe de ser ruim, vamos comigo?Depois de muito insistir, a irm cedeu e seguiram a p em dire-

    o a vendinha que cava no meio da estrada. Fora conversando assuntosjuvenis, hora ou outra, riam por alguma bobagem. Analy sempre ora amais aoita.

    Bom dia senhor, vim buscar o lato de meu pai. Ah sim, pode pegar l.Percebendo o movimento na venda, ela cou olhando para o

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    interior do recinto sabendo que algo acontecia de novidade por ali. Odono da venda j conhecendo a curiosidade da menina, oi logo lhe di-zendo: Matamos um porco, daqui a pouco sai o torresminho...

    Analy olhou para Vina, que em olhar de desaprovao, j imagi-nou o que a irm poderia aprontar. Vocs querem esperar para comer? Mas vai demorar umas

    duas horas.Novamente olhou para Vina que continuou com cara de desa-

    provao e antes que ela dissesse algo, a menina tratou de se adiantar: Claro que queremos, vamos esperar!Vina puxou o seu brao, quase beliscando, e saram da venda

    para esperarem o torresmo car pronto. Analy voc est doida? O pai ir nos matar! disse com medo. Vai nada! Pensaremos em alguma desculpa. Menina, voc conhece muito bem o pai! disse Vina pondo

    a mo na cintura. Conheo sim, a pergunta - voc quer comer torresmo?

    ironizou. Ah, querer eu quero, mas e depois... Ento, depois a gente v como az.

    E neste impasse caram na rente da vendinha por quase duashoras esperando o torresmo.

    Analy, vamos voltar para casa? No! Vamos esperar mais um pouco! Sinta o cheirinho...

    Hum! J deve estar quase pronto. Voc completamente maluca, se eu apanhar, a culpa sua. No vamos apanhar, pare com isso! Como pode ter tanta certeza? J az um tempo que estamos

    aqui, a me deve estar preocupada. Sossegue! Como voc vai ugir de casa um dia, medrosa dojeito que ?

    Quem disse que vou ugir? Meu sonho me casar na igreja,ter minha casa e um monte de lhos. Eu j tenho um pretendente... Ele lindo. mais velho, mas lindo. Vive rondando nosso stio. J nosalamos algumas vezes, mas... eu no o entendo...

    Credo! Vira essa boca para l! Casar?Nunca irei me casar. Ser uma mulher perdida ou uma solteirona? Vina soltou

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    uma gargalhada, achando sua irm mais nova um tanto boba. Que perdida nada, menina! Eu vou conhecer o mundo em

    companhia de Vidal de Luca! Sair desse mato e viver a vida l ora.

    Ahm ? Voc nem o conhece, e se ele or um velho gag, bar-rigudo e careca? Como voc pode ser to ingnua minha irmzinha... Eoutra coisa... como acredita que ugir? Com o pai junto?

    At parece! Como voc boba Vina! Eu tenho certeza de queVidal lindo, jovem e interessante! ela ria alto. O pai jamais irsaber. Quando ele perceber, estarei muito longe.

    De repente, Analy, ouve uma voz muito baixa em seu ouvido,como se algum quisesse dizer algo apenas para ela: No volte para sua

    casa agora! Corra! Ouviu isso? ela perguntou para Vina, assustada. Isso o qu? Uma voz... pedindo para no voltar para casa...Vina deu uma risada alta. Era s o que me altava... agora ouve vozes tambm? No estou brincando... verdade! Eu ouvi! disse com raiva;

    sentiu um arrepio do couro cabeludo descendo at seus braos. Voc est maluca! Aquele moo da rdio est ritando seus

    miolos. Se bem que... eu no queria ter demorado tanto na venda, e des-de que chegamos aqui, estou te chamando para voltarmos para casa.

    Comeram muito. Saborearam o que puderam do petisco oere-cido pelo dono da venda, e na volta para a casa, iam pensando no queinventar para o pai, porm no caminho, avistaram Fernandes paradocom o aoite nas mos.

    Analy, meu Deus do cu, olhe l! O pai... com um cinto... Eu

    te alei! a irm disse chorando.As duas caminhavam devagar, e o pai gritou: Vamos logo! do rosto dele, descia suor de to urioso que estava.

    Nunca mais vou lhe perdoar por esta surra! disse Vinaolhando com raiva para a irm.

    Corra! a voz vinha de algum lugar, atormentando seus pen-samentos.

    Chegando perto do pai, sentiram o aoite nas pernas. Apanha-ram como animais no meio da estrada. Adelita, ouvindo a gritaria, veio

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    correndo ao encontro das lhas e acabou sendo surrada tambm.Sem suportar ouvir os gritos, um vizinho tentou socorr-las.

    Se eu ouvir mais uma vez essas meninas gritarem, irei intervir

    do meu jeito! disse seriamente.Fernandes olhou para ele com muita raiva e disse: No aaisso vizinho, porque te mato! As lhas so minhas e eu educo como que-ro.

    Enquanto era surrada, Analy olhava para o ar, com a viso em-baada, sem conseguir identicar o que tinha a sua rente, pois o medo edesespero tomavam conta de si.

    Um vendaval se ormou repentinamente, abaixo de trovoadas e

    chuva orte. O terror que sentia por temporais, parecia doer mais doque os aoites no corpo. Buscou a me com os olhos e se agarrou a ela,tentando se proteger. No muito longe de onde estava, viu uma mulherestranha, com roupas de cigana, olhando-a xamente. Ela parecia nose incomodar com a chuva, e ningum parecia enxerg-la. Com avideznas mos, acenou seu leno de renda, e inexplicavelmente, desapareceu,assim como havia surgido, enquanto o cheiro de terra molhada invadiatodo o ar, numa tarde que acabara triste, mas no a ponto de az-la de-sistir. O que seria aquela mulher?

    Seu corpo ia tomando orma. Uma moa bonita que carregavauma cabeleira brilhante e ruiva at o meio das costa.

    Ela tentava reprimir sua beleza que era perceptvel mesmo quan-do acabava de acordar ou de apanhar.

    Esperou que as marcas da surra desaparecessem para ir buscar

    livros na casa de um vizinho de sua mesma aixa etria. Descobriu-seapaixonada por romances e imaginava-se dentro das pginas que lia spressas com medo de o pai fagr-la.

    Os romances lhe traziam os sonhos e desejos. Cresceu com asguras dos prncipes em seus sonhos ou o homem quase pereito. Tudopassava a ser possvel quando abria um livro e passava a l-lo. Em instan-tes devorava o que lia, cando sem outros exemplares para continuar asua aventura num mundo que era somente dela, vivendo sensaes que opai no poderia entender.

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    Deste modo se tornaria a protagonista da histria, tendo o maisamvel dos personagens como seu par; um homem bonito, delicado esincero. Dierente do marido que sua me havia escolhido para se casar,

    sem surras e sem ningum para lhe castrar a liberdade.Cansada do tdio e com as marcas menos visveis, decidiu bus-car os livros que tanto sonhava ler. Logo que chegou, j se amiliarizoucom todos na casa do vizinho. A conversa tornara-se to agradvel quenem percebeu o tempo que cou por l. Eram todos muito amveis eo clima da amlia era muito dierente do lar que ora criada. No oidicil conseguir se entrosar. Os meninos eram jovens e alavam a mesmalinguagem, sem dizer que nutriam um sentimento muito aetuoso pela

    leitura, o que ez com que Analy se encantasse pelos assuntos colocadosem questo. Por ser sonhadora, acilmente viajava dentro das palavrasque ouvia, criando as imagens das descries em sua mente e se transpor-tando para um mundo cheio de possibilidades.

    Analy, estamos pensando em uma tarde de leitura na prximasemana, o que acha? perguntou um dos rapazes.

    Nossa! Nunca participei de algo assim! Como unciona? seus olhos brilhavam.

    Faremos uma ciranda e iniciaremos a leitura de um livro es-

    colhido. Depois de lermos juntos alguns captulos do dia, debateremos oque lemos.

    Ela bateu palmas e at saltou de alegria.Ao despertar para a realidade, pegou os livros que emprestou e

    seguiu eliz da vida para a sua casa. No meio do caminho, colocou oslivros enrolados em um jornal dentro de uma sacola, encheu de capimcidreira para poder dar uma desculpa que oi apanh-los na vizinha. Aelicidade era tamanha que nem quis pensar no perigo que corria de levar

    uma surra. Queria apenas ser eliz naquele dia durante o tempo em queesteve longe de sua casa.Ao chegar, completamente radiante de alegria, oi recebida pelo

    o pai que j a esperava com amoso cinto na mo.Ela olhou para os seus olhos de modo dierente. Pela primeira

    vez no sentiu medo ou molhou suas roupas. Sentia-se digna pela alegriaque conseguiu naquele dia to especial. Seria capaz de tudo, para que seubem estar permanecesse sem ser atingido pela rudez de Fernandes.

    Onde estava at essas horas? perguntou o pai gritando.

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    Ele cou mais urioso quando percebeu que Analy estava ausentedo medo sem temer o seu olhar, pelo contrrio, olhou-o diretamente nosolhos e lhe transmitiu o que estava sentindo segurana!

    Fui casa de Pablo buscar uns livros. resolveu contar a ver-dade, tirando os livros do meio da sacola que estava orrada pelo capimcidreira.

    Ele olhava com desprezo para o motivo da alegria que a lhasentia, sem tirar os olhos dos dele.

    Num mpeto de raiva, sentindo-se arontado, deu um murro norosto dela que caiu no cho sobre os livros e continuou olhando para elesem chorar, arontando-o ainda mais.

    Levante! ele disse com raiva.Ela levantou-se com o lbio sangrando e levou um murro dooutro lado do rosto.

    Vendo a lha sangrando, Adelita entrou mais uma vez na surra,gritando: Voc az isso com ela, porque... - e oi bruscamente empur-rada, caindo ao cho impotente e em sorimento.

    No se atreva a dizer uma palavra, mulher! Alm de ter me trado e envergonhado a amlia toda... disse

    Adelita inconsolada.

    Analy olhou para a me em estado de choque, jamais poderiaimaginar que o pai havia trado sua me um dia. Vendo-a chorando coma mo no rosto, um lme passou em sua mente. Fernandes apossou-se docinto e olhou para o lado que cava a vela. Assim que levantou o cintopara acert-la, ela segurou a vela no ar.

    Nunca mais empurre minha me! ela disse enrentando opai. Nunca mais apanharemos de voc! seu rosto era de revolta etranstorno.

    Quem voc pensa que para alar comigo desta maneira? passou a surr-la com o lado do cinto que cava a vela.O sangue corria e sujava o piso da casa. Analy manteve-se valen-

    te. Atrs das costas do pai, novamente viu a cigana, segurando um objetometlico nas mos. A dor passara instantaneamente, enquanto seus olhosxos na imagem tentavam adivinhar o que ela queria e por que estavaali. A cigana a olhava destemidamente como a algum que tivesse alipara proteg-la, mesmo que ningum conseguisse v-la ou sentir a suapresena. No sentiu medo, mas sentiu uma ora descomunal sendo lhe

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    passada de orma inexplicvel e ainda podia ouvir o barulho que o cintoazia em contato com o seu corpo, que ardia.

    O sangue a salvar... a mulher dizia insistentemente, em

    meio aos gemidos que saiam dos lbios da menina, escapulidos na doremocional e revolta, num corpo pequeno e aminto pela raiva. Aproveite bem! Bata bastante! Infel! ela soltou um berro

    ensurdecedor, sabendo que este assunto era proibido de se tocar dentrode sua casa. Se me bater mais uma vez, eu vou embora daqui e nuncamais olho para a sua cara! Nunca mais! empurrou o pai e saiu para oseu quarto, passando pela cigana que a acompanhava com os olhos insa-nos. Seu corao estava em disparada; enxugou as lgrimas e esregou a

    pele marcada pelo cinto. Entrou em seu quarto e sentou-se no cho atrsda porta, colocando a cabea entre as pernas fexionadas. sua rentehavia apenas a escurido. A mulher no voltar, logo agora que estavadestemida e alaria com ela se osse preciso. Gostaria de saber as respostassobre o comportamento de Fernandes. No conseguia entend-lo, pormais que digam sobre a rigidez na educao de um bero espanhol.

    Tentando ugir do plano de morte que aria ao pai, em lamriae mgoa, preeriu se lembrar do carinho que ele tinha ao lev-la para aroa, quando tinha apenas trs anos de idade. Ele a colocava no balaio

    usado para a colheita do algodo, desta orma, ela no machucava seuspezinhos rgeis nos espinhos e pedras que havia antes de chegar lavou-ra.

    Pensou vrias vezes vai passar! Desejava esquecer o que haviaacontecido. Ligou seu rdio a pilha em um volume muito baixo; as lgri-mas pingavam em suas mos. A voz do locutor era reconhecida por ela,entre seus soluos abaados.

    Ningum aasta as pessoas de seu prprio destino...

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