voz e pinho : recursos utilizados por lula galvão em duas

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Voz e pinho: recursos utilizados por Lula Galvão em duas gravações na formação de voz e violão Victor Rocha Polo 1 UNICAMP/PPG Música Mestrado SIMPOM: Música Popular [email protected]@gmail.com Resumo: Este artigo apresenta um recorte da dissertação intitulada O Violão e a Guitarra de Lula Galvão: um estudo sobre sua atuação musical em diferentes formações instrumentais e tem como foco específico a atuação de Lula Galvão enquanto instrumentista acompanhador no contexto de duos de voz e violão. Para tanto, foram analisados os principais recursos técnicos e estilísticos empregados pelo músico em duas faixas: Luas de Subúrbio, de autoria de Guinga e Aldir Blanc e interpretada por Leila Pinheiro no álbum Catavento e Girassol (1996); Folha Morta, composta por Ary Barroso e cantada por Rosa Passos no CD Letra e Música Ary Barroso (1997). A fim de embasar teoricamente as análises e discussões, foram empregados trabalhos de Arnold Schoenberg, Philip Tagg e Sérgio Freitas. Palavras-chave: Música Popular Brasileira; Violão; Voz; Acompanhamento; Lula Galvão. “Voice and Guitar”: Procedures Used by Lula Galvão in Two Recordings Abstract: This article presents an excerpt from the dissertation entitled The Guitar Style of Lula Galvão: a Study on his Musical Performance in Different Instrumentations and focuses specifically on the performance of Lula Galvão as an accompanying instrumentalist in the context of voice and guitar duos. For this purpose, the main technical and stylistic resources employed by the musician were analyzed through two recordings: Luas de Subúrbio, written by Guinga and Aldir Blanc and performed by Leila Pinheiro on the album Catavento e Girassol (1996); Folha Morta, composed by Ary Barroso and sung by Rosa Passos on the CD Letra e Música - Ary Barroso (1997). In order to theoretically support the analyzes and discussions, works by Arnold Schoenberg, Philip Tagg and Sérgio Freitas were used. Keywords: Brazilian Popular Music; Classical Guitar; Voice; Accompaniment; Lula Galvão. 1. Introdução O presente artigo trata da performance do violonista Lula Galvão em dois registros fonográficos: Luas de Subúrbio (LUAS DE SUBÚRBIO, 1996) e Folha Morta (FOLHA MORTA, 1997). O músico se destaca como um arranjador e instrumentista (violão e guitarra) significativo para o campo da música popular brasileira contemporânea, tendo colaborado com artistas renomados: Guinga, Rosa Passos, Jaques Morelenbaum, Joyce, Edu Lobo, entre outros. O objetivo principal foi observar as escolhas instrumentais que Galvão realiza ao atuar na formação de voz e violão. Assim, foram analisados e discutidos recursos técnicos 1 Orientador: Hermilson Garcia do Nascimento. Agência de fomento: CAPES.

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Page 1: Voz e pinho : recursos utilizados por Lula Galvão em duas

“Voz e pinho”: recursos utilizados por Lula Galvão em duas gravações na

formação de voz e violão

Victor Rocha Polo1

UNICAMP/PPG Música

Mestrado

SIMPOM: Música Popular

[email protected]@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta um recorte da dissertação intitulada O Violão e a Guitarra de

Lula Galvão: um estudo sobre sua atuação musical em diferentes formações instrumentais e

tem como foco específico a atuação de Lula Galvão enquanto instrumentista acompanhador no

contexto de duos de voz e violão. Para tanto, foram analisados os principais recursos técnicos

e estilísticos empregados pelo músico em duas faixas: Luas de Subúrbio, de autoria de Guinga

e Aldir Blanc e interpretada por Leila Pinheiro no álbum Catavento e Girassol (1996); Folha

Morta, composta por Ary Barroso e cantada por Rosa Passos no CD Letra e Música – Ary

Barroso (1997). A fim de embasar teoricamente as análises e discussões, foram empregados

trabalhos de Arnold Schoenberg, Philip Tagg e Sérgio Freitas.

Palavras-chave: Música Popular Brasileira; Violão; Voz; Acompanhamento; Lula Galvão.

“Voice and Guitar”: Procedures Used by Lula Galvão in Two Recordings

Abstract: This article presents an excerpt from the dissertation entitled The Guitar Style of Lula

Galvão: a Study on his Musical Performance in Different Instrumentations and focuses

specifically on the performance of Lula Galvão as an accompanying instrumentalist in the

context of voice and guitar duos. For this purpose, the main technical and stylistic resources

employed by the musician were analyzed through two recordings: Luas de Subúrbio, written

by Guinga and Aldir Blanc and performed by Leila Pinheiro on the album Catavento e Girassol

(1996); Folha Morta, composed by Ary Barroso and sung by Rosa Passos on the CD Letra e

Música - Ary Barroso (1997). In order to theoretically support the analyzes and discussions,

works by Arnold Schoenberg, Philip Tagg and Sérgio Freitas were used.

Keywords: Brazilian Popular Music; Classical Guitar; Voice; Accompaniment; Lula Galvão.

1. Introdução

O presente artigo trata da performance do violonista Lula Galvão em dois registros

fonográficos: Luas de Subúrbio (LUAS DE SUBÚRBIO, 1996) e Folha Morta (FOLHA

MORTA, 1997). O músico se destaca como um arranjador e instrumentista (violão e guitarra)

significativo para o campo da música popular brasileira contemporânea, tendo colaborado com

artistas renomados: Guinga, Rosa Passos, Jaques Morelenbaum, Joyce, Edu Lobo, entre outros.

O objetivo principal foi observar as escolhas instrumentais que Galvão realiza ao

atuar na formação de voz e violão. Assim, foram analisados e discutidos recursos técnicos

1 Orientador: Hermilson Garcia do Nascimento. Agência de fomento: CAPES.

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empregados em seus acompanhamentos e introduções instrumentais. O trabalho é um recorte

da dissertação de mestrado intitulada O Violão e a Guitarra de Lula Galvão: um estudo sobre

sua atuação musical em diferentes formações instrumentais (Polo, 2018). Cabe mencionar que

as práticas musicais do instrumentista já foram assunto de outros trabalhos acadêmicos: Moriya

(2009), Zacharias (2009), Mangueira (2016), Oliveira (2018), Polo (2017, 2019) e Polo;

Nascimento (2017, 2019).

2. Referenciais Teóricos

No intuito de embasar teoricamente as discussões musicais apresentadas, adotamos

alguns autores consagrados, a saber:

• Arnold Schoenberg: utilizamo-lo por apresentar conceitos sobre acompanhamento que

se relacionam aos recursos utilizados por Lula Galvão;

• Philip Tagg: foi adotado, em um momento específico das análises, visando a

correspondência com outro exemplo semelhante, um procedimento analítico de

comparação entre objetos, assemelhado ao uso no modelo proposto por Tagg (2003).2

A escolha por tal referencial justifica-se pela busca por uma análise que almeje

interlocução com exemplos musicais próximos ao objeto de estudo (significativos para

o estudo do caso) e que não seja apenas descritiva em termos técnico-musicais;

• Sérgio Freitas: por se tratar de um dos principais especialistas no estudo de harmonia

na música popular, no Brasil, as análises harmônicas se apoiaram no trabalho deste

autor (2010).

3. Discussão

Para a análise da performance de Lula Galvão na formação de violão e voz, foram

selecionadas duas gravações em que o músico figura como violonista e arranjador

acompanhando cantoras. As faixas analisadas são: i. Luas de Subúrbio, de autoria de Guinga e

Aldir Blanc, gravada no álbum Catavento e Girassol (1996), trabalho de Leila Pinheiro que

conta exclusivamente com canções de Guinga e Blanc; ii. Folha Morta, de Ary Barroso,

presente no álbum Letra e Música – Ary Barroso (1997), CD em parceria de Rosa Passos e Lula

Galvão que apresenta músicas de Ary Barroso. Nesta gravação, embora a formação

2 “O eterno dilema do musicólogo é a necessidade de usar palavras para uma arte não verbal e não denotativa. Essa

dificuldade aparente pode ser transformada em vantagem se, nesse estágio da análise se descarta palavras como

uma metalinguagem para música e as substitui por outra música. (...) Assim, usar CeO (comparação entre

objetos) significa descrever música através de outras músicas (...) num estilo relevante e com funções

semelhantes.” (Idem: 20, 21)

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instrumental seja composta também por bateria e baixo, a primeira exposição da parte A é

realizada apenas pelo violonista e pela cantora. Uma característica comum às duas

interpretações são as introduções instrumentais realizadas em formato de violão solo.

3.1 Apontamentos sobre o caráter dos acompanhamentos

Por se tratar de uma formação camerística e intimista é recorrente a prática de ad

libitum3 em duos, de forma geral. Em um duo (no qual há comumente um solista e um

acompanhador), a aplicação do recurso de ad libitum pode ser facilitada e potencializada, visto

que o músico acompanhador se encontra independente para criar suporte rítmico-harmônico e

seguir o solista de maneira autônoma, despreocupadamente ao que outro possível

acompanhador poderia executar. Dessa forma, o ouvido do harmonizador (em situação de duo)

deve estar atento ao solista e a si próprio tão somente.

No Brasil e na história da música brasileira popular, o violão figura como principal

instrumental acompanhador. Cazes afirma que “…muito antes do choro e da forma chorada de

tocar, o violão já era um instrumento popular que tinha participação fundamental em todo tipo

de música fora das elites.” (CAZES, 1998: 45) Utilizado principalmente como instrumento

de suporte harmônico, acompanhava serenatas, lundus, modinhas, entre outras

manifestações musicais populares (Idem). Nesse sentido, os duos de violão e voz são de grande

tradição: Taborda (2011: 133) aponta que os 100 primeiros registros fonográficos realizados no

Brasil, no início do século XX, contaram com as vozes dos cantores Baiano e Cadete,

acompanhados somente por um violão.

Com o intuito de embasar as discussões recorremos a alguns conceitos apresentados

por Schoenberg sobre acompanhamentos, que se relacionam à maneira como Galvão executou

as linhas de violão em suporte à voz nas faixas analisadas:

Sendo um dispositivo unificador, o acompanhamento deve estar organizado

de maneira similar àquela de um tema, ou seja, utilizar um motivo: o motivo

do acompanhamento. Raramente o motivo do acompanhamento pode ser

trabalhado de maneira análoga ao de uma melodia ou tema, com suas grandes

variedades e desenvolvimentos. Ao contrário, seu tratamento consiste de

simples repetições rítmicas e adaptações à harmonia.

Figuração. Os requisitos do estilo pianístico são melhor preenchidos através

do uso de acordes arpejados (...) um acompanhamento arpejado utilizará uma

3 “Expressão encontrada ocasionalmente nas partituras, serve para instruir o músico que sua interpretação deve ser

livre, ou que o intérprete pode improvisar com liberdade, evitando uma marcação rígida no ritmo e no andamento

da música ou do trecho.” (DOURADO, 2004: 20) Transcrever para a partitura performances executadas dessa

maneira é um grande desafio, visto que uma série de recursos tem de ser adotados para que as notas sejam

adequadas aos tempos dos compassos. Muitas vezes é necessário utilizar diferentes fórmulas de compasso.

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ou mais figuras especiais de maneira sistemática: o motivo do

acompanhamento.

(Baixo dos acordes) Não se pode esquecer que ele tem de ser tratado como

uma melodia secundária, e que deverá, portanto, mover-se no âmbito de uma

tessitura definida (exceto quando há intenções especiais) e possuir um certo

grau de continuidade (…) O ouvido está acostumado a prestar muita atenção

ao baixo, e mesmo uma nota curta é percebida como uma voz “contínua”, até

que a nota seguinte seja executada como uma continuação (melódica).

(SCHOENBERG, 2008: 108 – 112)

Exemplo 1: Luas de Subúrbio (00’:11” – 00’:26”)

No acompanhamento em Luas de Subúrbio há o emprego de motivos rítmicos que

se repetem, tal como mencionado por Schoenberg. Galvão adota (nos três primeiros compassos)

um mesmo padrão rítmico e de digitação da mão direita em arpejos dos acordes, e ao final do

trecho (quarto compasso) também ocorre outro padrão em colcheias: ele realiza uma dobra em

relação à melodia da voz, aplicando a mesma rítmica e sobrepondo terças nas quatro primeiras

colcheias desse compasso. Outro elemento empregado na maior parte da passagem é o “baixo

pedal”4 na sexta corda solta (bordão), algo bastante idiomático do universo violonístico e que

favorece o uso de certas aberturas de acordes, visto que um dedo a mais da mão direita (que

seria utilizado para preencher o baixo) fica disponível para a construção de acordes.5

4 “Som contínuo ou repetido, em geral no registro grave, sobre o qual é construída a estrutura melódica e harmônica

de uma composição.” (DOURADO, 2004: 248) 5 Nessa perspectiva, o violão possui uma grande limitação em relação ao piano, pois ainda que o instrumento de

cordas tenha uma tessitura consideravelmente ampla (três oitavas e meia a quatro oitavas, dependendo do

instrumento), a ampla exploração do tecido sonoro esbarra na limitação inerente aos movimentos de apenas uma

mão (esquerda). Ao piano, o instrumentista conta com as duas mãos para explorar a tessitura, de maneira que cada

uma pode trabalhar em registros opostos (extremo grave e extremo agudo). Ao violão, isso só é possível, em geral,

pelo uso de baixos com cordas soltas.

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Exemplo 2: Folha Morta (00’:16” – 00’:33”)

Neste exemplo, que inclui um trecho do acompanhamento de Galvão na canção

Folha Morta, o violonista toca de maneira mais solta, de forma que não mantém um mesmo

padrão nos arpejos dos acordes. No entanto, em relação aos apontamentos de Schoenberg, Lula

apresenta uma linha de baixo contínua e com notas longas. Essa característica, no tocante às

linhas de baixo, é habitual no trabalho do instrumentista, visto que quando do emprego de

harmonizações em formações de duos ou mesmo em formato solo (violão solo) as vozes

intermediárias dos acordes costumam apresentar mais atividade, em relação aos baixos. Cabe

salientar que em geral o violonista tende a realizar maior movimentação rítmica e harmônica

nos trechos de repouso da melodia, além de tocar em uma dinâmica mais forte. O oposto

também ocorre, de forma que quando há maior atividade melódica é comum que Galvão deixe

as notas do acorde soarem por mais tempo.

Em ambos os trechos expostos a técnica de acompanhamento por arpejos

(figuração) é utilizada. Por se tratar de performances com marcação de tempo livre, tal recurso

representa um modo eficaz de preencher a harmonia e ao mesmo tempo criar atividade rítmica.

No caso de uma música interpretada com pulsação de tempo regular (sobretudo no universo

popular), uma determinada levada pode cumprir esse papel de preenchimento rítmico.

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3.2 Introduções

Um aspecto relevante para observação da atuação musical de Galvão é a maneira

como ele constrói e executa as introduções de músicas em que atua como acompanhador e,

sobretudo, arranjador. Nessa perspectiva, é notória a preocupação do músico em relação à

exploração de procedimentos harmônicos em seu instrumento, especialmente pelo recorrente

uso de blocos de acordes com amplo emprego de tensões. No caso das obras aqui transcritas, o

violonista elaborou as introduções tocando solo e se utilizando da técnica de chord melody.6

Quando perguntado sobre a maneira como elabora as introduções para gravações,

o músico afirmou que: “eu penso nas introduções como pequenas composições, que tenham a

ver com a música, até citando o próprio tema, escolhendo os sons que mais me agradam nas re-

harmonizações, separando a melodia em trechos curtos e experimentando.” (GALVÃO apud

GOMES, 2006: 18)

Exemplo 3: introdução em Luas de Subúrbio (00’:00” – 00’: 11”)

No exemplo 3 o músico toca uma introdução baseada na harmonia da parte A, sendo

esta formada pela seguinte progressão: E7M – A7M/E – E7M – A7M/E – E7M – C/E – E(add9)

– B7(9). Além disso, se utiliza de empréstimos modais para enriquecer a sonoridade harmônica,

através dos acordes C7M(#11) (bVI7M) e B7sus(b9)(V7sus(b9))7. Galvão emprega acordes em

bloco através de diferentes padrões de arpejos de mão direita, algo comum em suas

performances: nota-se que, em geral, o músico executa o baixo e a nota da ponta

simultaneamente para depois preencher o acorde com as vozes intermediárias. Sobre a questão

6 Execução simultânea da melodia e harmonia. Nessa técnica, “... o executante concentra ao mesmo tempo as funções de solista e acompanhador, que muitas vezes se confundem, deixando subentendidos alguns movimentos de vozes e harmonias, devido às limitações físicas inerentes ao instrumento.” (Mangueira, 2006: 26) 7 Embora o B7sus esteja dentro do campo harmônico da tonalidade (Mi maior), o acréscimo da nona menor (b9)

se configura como um elemento de empréstimo do campo homônimo menor. Além disso, tal acorde também

poderia ser cifrado como Am/B, ou seja, uma inversão do quarto grau menor, iv, acorde de empréstimo modal.

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dos arpejos de mão direita, é relevante mencionar a importância da tradição do violão erudito

para o desenvolvimento e ensino desse procedimento, uma vez que há um grande número de

Estudos e composições dedicados ao aprimoramento técnico de variados padrões de arpejos.

Nesse sentido, o instrumentista cita a importância de praticar constantemente peças desse

repertório, a exemplo dos estudos nº 1 de Villa-Lobos, nº 1 e 6 de Leo Brouwer e a peça

La Catedral (Augustin Barrios), para “...manter mesmo, um pouco de escala, assim, ligado,

(...) ataques de diferentes dedos, assim, e aquelas coisas da técnica erudita, né, os arpejos.”

(GALVÃO, 2017).

Exemplo 4a: introdução em Folha Morta (00’:00” – 00’:19”)

Na introdução em Folha Morta, Galvão faz uma citação direta da melodia, nos

compassos 5 e 6, nos quais foi incluída a letra da canção referente a seguinte passagem

melódica: Como eu sou infeliz (melodia condizente com a última repetição dessa frase). Há

apenas a alteração de uma nota da melodia original nessa citação: na sílaba in (de infeliz) a

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melodia original corresponde à nota Si natural (13ª do acorde de D7), no entanto, o músico

executa a nota Si bemol, 13ª menor do acorde. Além disso, Lula cria uma sequência de acordes

tonal, que caminha para resolução no acorde de função tônica (I - Sol maior): G7M/B (I7M) –

C7M/E (IV7M) – Ebº (bIIIº [V7 /D7]) – D7sus (V7sus) – Db7alt (subV/IV) – C(add9)(#11)

(IV) – B7 (b9) (V7/VI) – Em7 (VIm7) – A7(#11) (V7/V) – D7sus (V7) – D7alt/F# (V7) – G6(9)

(I6) – F7(13) (subV/VI) – E7(#9)(13) (V7/II) – Ab7 (subV) – G7M (I7M). Nesse mesmo

exemplo 4a, Galvão mescla acordes tocados em arpejo e blocados. A estética harmônica e a

maneira como ele escolhe e executa as aberturas de acordes remete a guitarristas de jazz que

empregam a técnica de chord melody, mas, sobretudo, alude também a forma como Hélio

Delmiro toca:

Exemplo 4b: introdução executada por Hélio Delmiro em Nunca Mais (00’:00” – 00’12”) (NUNCA MAIS,

1993)

O trecho acima trata da introdução (ao violão solo) de Delmiro em Nunca Mais

(Dorival Caymmi), faixa em que acompanha a cantora Angela Ro Ro. A estética e a sonoridade

de Lula são bastante próximas às de Hélio ao se comparar esses dois trechos, notadamente pela

maneira como tocam arpejos, blocos e criam melodias em formato solo. Uma passagem, nos

dois trechos, que deixa nítida essa semelhança entre um músico e outro é o final da introdução

em ambos os exemplos: o modo similar como eles tocam os acordes de Ab7 e G7M, para

finalizar as introduções.

3.3 Alguns Recursos Harmônicos

Intervalos de Quartas Justas em Acordes

Sobre o emprego do intervalo de quarta justa por guitarristas, nota-se que a própria

anatomia do instrumento favorece seu uso, posto que é possível uma execução anatômica da

mão esquerda através do uso de pestanas ou meias pestanas. Há, portanto, um favorecimento

do uso da harmonia (ou melodia) quartal possibilitado pelos aspectos idiomáticos da guitarra

afinada em quartas justas. O emprego das quartas por Galvão, em situações de

acompanhamento, acontece de forma recorrente junto ao recurso de paralelismo.

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A ampla exploração da harmonia quartal (sobretudo com paralelismo) ocorreu no

“impressionismo”8, por compositores como Debussy e Ravel. Entretanto, no campo do jazz,

pianistas como Bill Evans9 e McCoy Tyner também contribuíram para o desenvolvimento e uso

desse tipo de harmonização, de forma que uma das características muito presente no jazz

modal10 é justamente o uso da harmonia quartal.

Exemplo 5: trecho final de Luas de Subúrbio (02’:08” – 02’20”)

No excerto acima, o instrumentista toca aberturas de acordes quartais para finalizar

a canção, de maneira que essa progressão soa como uma cadenza11 final. Galvão faz uso do

modo lídio, pela presença da 4ª aumentada em grande parte das aberturas, e toda sequência de

blocos caminha de modo paralelo. Os acordes empregados são ricos em tensões e cabe destacar

que o último bloco (destacado em azul) possui 4ª aumentada, 6ª maior, 7ª maior e 9ª maior.12 É

um acorde de sonoridade violonística “cheia”, pelo uso das tensões e por ter seis sons. Outro

acorde emblemático contido no trecho (assinalado em vermelho) constitui “... a clássica

abertura por quartas com o intervalo de 3ª nas vozes agudas que se tornaram antológicas em

8 “Termo surgido no século XIX, referia-se inicialmente à pintura de franceses como Renoir e Monet. Chegou a

ser usado na música de forma pejorativa, mas após o Prelúdio à tarde de um fauno, de Debussy, a ideia acabou

associada à obra do compositor, estendendo-se igualmente a alguns de seus contemporâneos, como De Falla, Ravel

e Dukas. Algumas das características do movimento foram o paralelismo, as escalas de tons inteiros, o modalismo,

as dissonâncias e a não-resolução harmônica de sequências de acordes.” (DOURADO, 2004: 165-166) 9 Galvão afirma que “…ouvia muito Bill Evans, acho que foi a pessoa que eu mais ouvi” [no universo do jazz].

(GALVÃO, 2017). 10 O jazz modal foi uma vertente explorada por Miles Davis (principalmente através do álbum Kind of Blue, de

1959), John Coltrane (na década de 1960) entre muitos outros músicos contemporâneos e posteriores aos

mencionados. Nessa estética, é muito comum a presença de acordes (modos) que permanecem estáticos por longos

períodos, em oposição às progressões tonais de acordes que caminham para uma resolução. Dentre os principais

exemplos, pode-se citar os standards So What (Miles Davis) e Impressions (John Coltrane). 11 “Trecho (...) em que o solista exibe sua virtuosidade. Geralmente desacompanhada, a cadenza passou a

relacionar tematicamente com o movimento, desenvolvendo-se na dominante para ao final concluir na tônica.”

(DOURADO, 2004: 63) 12 É nítida a preferência estética de Galvão por modos ricos em tensões, estes que muitas vezes são dissociados de

suas funções harmônicas. A título de exemplo, na passagem 5 ele emprega o modo lídio (fruto do 4ª grau da escala

maior natural) em um acorde de função tônica (I grau, que diatonicamente corresponderia ao modo jônio).

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“So What” (Miles Davis)...” (TINÉ, 2011: 41) Tal acorde, nessa gravação do disco Kind of Blue

(1958), foi tocado por Bill Evans.

Intervalo de Segunda Menor

Entre os recursos harmônicos utilizados por Galvão, o intervalo de segunda menor

aparece com ampla recorrência em aberturas de acordes. Devido à natureza do instrumento, a

segunda menor pode ser de difícil execução quando aplicada apenas em cordas presas, visto

que exige uma abertura ampla da mão esquerda:

Exemplo 6: Folha Morta (00’:54” – 01’:01”)

No exemplo 6, esse intervalo figura em meio a mesma fôrma de mão esquerda nas

duas aberturas destacadas. Para maiores informações quanto ao uso do intervalo de segunda

menor em meio a acordes por Galvão, recomenda-se consultar outro trabalho do autor: Polo;

Nascimento (2019). Neste, foi analisada a maneira como o violonista aplica essa mesma

abertura sobre diferentes tipologias de acordes13 e os desdobramentos técnicos e estéticos de

seu uso.

4. Considerações Finais

Dentre os principais procedimentos adotados por Lula Galvão, destaca-se a escolha

por diferentes padrões de arpejos para preencher o acompanhamento, algo que se adequa ao

caráter de andamento livre (ad libitum) para criar atividade rítmica. Nesse sentido, cabe retomar

a importância, para Galvão, do estudo de obras do universo erudito para enriquecimento do

vocabulário técnico de arpejos. A propósito, a incorporação de elementos técnicos consagrados

do repertório violonístico clássico por violonistas brasileiros é marcante: uma ampla parcela de

relevantes instrumentistas brasileiros “…desse campo estudou, em alguma medida, métodos ou

13 O termo se refere à natureza dos acordes, à sua característica estrutural. Nesse sentido, a grosso modo, as

tipologias são: X7M, Xm, X7, Xm7(b5) ou Xø e Xº.

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repertórios associados à tradição erudita, de maneira que transportaram elementos técnicos e

estéticos dessa tradição para a o âmbito da música popular brasileira.” (POLO, 2018: 25).

Nessas duas gravações, o músico opta por utilizar, em geral, a região médio-grave do

instrumento, certamente para realizar um preenchimento mais adequado da tessitura, já que não

há outros instrumentos acompanhadores. Além disso, é nítida a preocupação do músico para

com o destaque, em primeiro plano, da melodia, visto que geralmente realiza maior atividade

instrumental (rítmica e harmônica) em momentos de repouso da melodia e toca menos quando

há maior atividade melódica.

As introduções que Galvão elaborou possuem direta relação com algum elemento

da composição: em Luas de Subúrbio, o violonista cria uma progressão harmônica muito

próxima à parte A do tema; em Folha Morta, ele elabora uma sequência de acordes que caminha

para a resolução no acorde de função tônica (I) da tonalidade e também cita um trecho da

melodia da canção. No que tange a essa introdução (Folha Morta), é evidente a semelhança

entre a sua performance e a de Hélio Delmiro, nos quesitos técnico e estético. A pesquisa

realizada pelo autor demonstrou, através de depoimentos e análises, que Delmiro foi um

personagem importante e um modelo estético para Galvão (Polo, 2018: 44-49). Nesse sentido,

o uso da ferramenta de “comparação entre objetos”, em modelo próximo ao proposto por Philip

Tagg, pôde ser significativo para encontrar correspondências entre exemplos musicais que têm

proximidade com o objeto musical estudado, como neste caso. Por fim, salienta-se que Lula

Galvão é um músico de referência no que tange a exploração de recursos harmônicos em seu

instrumento, tal como exemplificado pela uso dos intervalos de quarta justa e segunda menor

em acordes de sonoridade dissonante. Dessa forma, o violonista busca “…encontrar soluções

mais raras, rumo a uma ‘modernidade’ harmônica ainda mais contundente ao instrumento, um

passo adiante da sonoridade harmônica já consagrada do violão de João Gilberto e seus

seguidores.” (POLO; NASCIMENTO: 2019), algo próximo ao que Guinga e Toninho Horta

também realizam.

Referências

CAZES, Henrique. Choro: Do Quintal Ao Municipal. São Paulo: Ed. 34, 1998. 2ª ed.

DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de Termos e Expressões da Música. São Paulo: Ed.

34, 2004.

FOLHA MORTA: Ary Barroso (compositor). Rosa Passos (intérprete, voz); Lula Galvão

(intérprete, violão). Letra e Música – Ary Barroso. Lumiar Discos, 1997.

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que Acorde Ponho Aqui? Harmonia, Práticas Teóricas e

o Estudo de Planos Tonais em Música Popular. 817p. Tese (Doutorado em Música). Instituto

de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2010.

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ANAIS DO VI SIMPOM 2020 - SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA

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