vôo - 21.10.2001

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Vôo (21/10/2001) Eu estava deitada de costas na relva, sobre uma toalha xadrez, mas na verdade não a via, pois mantinha os olhos bem fechados. Com isso, com um dos sentidos em descanso, podia apurar os outros, principalmente o do olfato, pelo qual me chegavam, com enorme clareza, o cheiro da grama, os odores fortes dos queijos, a acidez do vinho, o aroma do pão. Meus outros sentidos também me passavam mensagens. Através do tato, sentia o calor suave do sol, enquanto a audição me falava de crianças brincando nos jardins e do rio que corria mansamente a poucos metros dali. Decidi abrir os olhos, mover-me, ir até lá – até a margem do rio. Num instante, estava diante dele, sentindo contra o corpo o calor da balaustrada de pedra, que guardava o sol de um dia inteiro. Calores e cheiros me impregnavam, sim, mas agora eu tinha os olhos bem abertos e por eles recebia todo o esplendor daquelas águas. Observava as pequenas ondas, seus reflexos e matizes, transformando-se à medida que os barcos passavam. E também as pedras da margem, as pontes que se sucediam e a ilha ao fundo, com suas construções altivas, os telhados de ardósia cintilando ao sol. Olhei para baixo. E senti vontade de estar ainda mais perto do rio. Comecei a descer os degraus de pedra porosa que levavam à calçada junto à margem, lá embaixo. Nesses degraus, o calor do sol parecia ter permanecido em maior concentração. E com mais intensidade ele emanava do chão, tomando a planta dos meus pés que – só agora eu me dava conta – estavam descalços, deliciosamente descalços. Passo a passo, degrau por degrau, fui descendo em direção ao rio, os olhos fixos nas águas, enquanto meus pés recebiam as ondas de calor em pequenos choques. Chegando lá embaixo, caminhei até a beirada. Ali as pedras, banhadas pelo rio, eram mais limosas e gastas, suas formas arredondadas ganhando contornos femininos, marcados aqui e ali por sulcos, veios, rajas. Emocionei-me ao olhar

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Heloísa Seixas premia o leitor com uma crônica de qualidade - o vôo.

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Page 1: Vôo  -  21.10.2001

Vôo

(21/10/2001)

Eu estava deitada de costas na relva, sobre uma toalha xadrez, mas na verdade não a via, pois mantinha os olhos bem fechados. Com isso, com um dos sentidos em descanso, podia apurar os outros, principalmente o do olfato, pelo qual me chegavam, com enorme clareza, o cheiro da grama, os odores fortes dos queijos, a acidez do vinho, o aroma do pão. Meus outros sentidos também me passavam mensagens. Através do tato, sentia o calor suave do sol, enquanto a audição me falava de crianças brincando nos jardins e do rio que corria mansamente a poucos metros dali.

Decidi abrir os olhos, mover-me, ir até lá – até a margem do rio.

Num instante, estava diante dele, sentindo contra o corpo o calor da balaustrada de pedra, que guardava o sol de um dia inteiro. Calores e cheiros me impregnavam, sim, mas agora eu tinha os olhos bem abertos e por eles recebia todo o esplendor daquelas águas. Observava as pequenas ondas, seus reflexos e matizes, transformando-se à medida que os barcos passavam. E também as pedras da margem, as pontes que se sucediam e a ilha ao fundo, com suas construções altivas, os telhados de ardósia cintilando ao sol.

Olhei para baixo. E senti vontade de estar ainda mais perto do rio. Comecei a descer os degraus de pedra porosa que levavam à calçada junto à margem, lá embaixo. Nesses degraus, o calor do sol parecia ter permanecido em maior concentração. E com mais intensidade ele emanava do chão, tomando a planta dos meus pés que – só agora eu me dava conta – estavam descalços, deliciosamente descalços. Passo a passo, degrau por degrau, fui descendo em direção ao rio, os olhos fixos nas águas, enquanto meus pés recebiam as ondas de calor em pequenos choques.

Chegando lá embaixo, caminhei até a beirada. Ali as pedras, banhadas pelo rio, eram mais limosas e gastas, suas formas arredondadas ganhando contornos femininos, marcados aqui e ali por sulcos, veios, rajas. Emocionei-me ao olhar para aquelas pedras, pois sabia que contavam histórias de muitos séculos. Mas, mais que isso, fui envolvida por uma sensação de euforia, cuja razão localizei de imediato. Fora ali, naquele lugar, que eu vira, num filme de Woody Allen, uma cena de dança em que a mulher se via de repente sem peso, flutuando no ar. E, sorrindo ante a lembrança, tive, eu também, vontade de dançar. Olhando em torno e vendo-me só, arrisquei um pequeno salto para a frente, como num passo de balé, por pura brincadeira. E percebi – com delícia, mas sem qualquer surpresa – que voava.

Sim, voava. E por toda a noite voei, sobre jardins, pedras e águas.

No horror dos tempos, não há melhor escapismo do que um sonho.