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Alcides Cardoso dos Santos

Santa Maria, 2013.

ISSN 1981-6987

De cegos que vêeme outros paradoxos da visão:

questões acerca danatureza da visibilidade

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REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIAFelipe Martins Müller

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAHélio Leães Hey

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASPedro Brum Santos

COORDENADORA DO PPGLETRASMárcia Cristina Corrêa

EDITORAPrograma de Pós-Graduação em Letras

COMITÊ EDITORIALAmanda Eloina SchererMarcia Cristina CorrêaAndré Soares VieiraGraciela Rabuske HendgesLarissa Montagner CervoEnéias Farias TavaresSara Regina Scotta CabralPedro Brum Santos

PROJETO GRÁFICOLilian Landvoigt da Rosa

EDITOR RESPONSÁVELAndré Soares Vieira

EDITORAÇÃOJoão Moro de Oliveira

PREPARAÇÃO DE ORIGINAISAndré Soares Vieira

REVISÃOEnéias Farias Tavares

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SUMÁRIO

Apresentação .......................................................................09

Introdução ............................................................................12

1. Visibilidade e visão: o que há para se pensar? .............18

2. Fiat lux ..............................................................................25

3. Visível é o que se vê? ......................................................31

4. Ver para crer, ou melhor, crer para ver .......................... 37

5. Uma escrita mais que visível ..........................................46

6. O visível produz cegueira ................................................58

7. Ver é dever (ver) ...............................................................64

8. Próteses oculares ............................................................68

Bibliografia ............................................................................ 74

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A história do ocidente é também a história do repúdio/fascínio do olhar. Literatura, artes visuais, teatro, religião e filosofia, entre outras artes e saberes, tem retornado de forma recorrente a esse problema, um problema de visão física e de introvisão intelectual e espiritual. Como benção ou perversão, como elemento literários ou plástico, em forma textual ou pictórica, o olhar tem sido reinterpretado de modo adverso, com diferentes parâmetros e perspectivas no transcurso da história do Ocidente. É sobre esse problema cultural, filosófico e artístico, que Alcides Cardoso dos San-tos se debruça nas páginas seguintes, estabelecendo conta-tos improváveis, às vezes inusitados, porém inegavelmente estimulantes.

Leitor, espectador e crítico da obra de William Blake e de seus livros iluminados, Santos apresenta uma sensi-bilidade inusitada diante dos desafios que o problema da visibilidade apresenta na história cultural. Ao estabelecer o contato entre cultura judaica e grega, religiosa e laica, entre os territórios da crença e do saber científico, entre os quais comumente se reafirma uma não possibilidade de aproxi-mação, Santos estabelece uma zona de intermediação, na qual processos, saberes, poéticas e obras se entrecruzam, dialogam, se auto-germinam. Neste campo, os problemas da visão e da visibilidade ganham significados simbólicos/alegóricos interessantes: são olhares internos, proféticos, são saberes proibidos, maldições divinas, fascinações esté-

ApReSentAçãO

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ticas que vem à tona no discurso crítico, teórico e, por vezes, filosófico, do pesquisador.

Tais aproximações e afastamentos, num jogo de olha-res e visibilidades nem sempre claras, permitem a Santos diagnosticar a inegável desconfiança cultural, religiosa e também intelectual e artística diante da visibilidade. No con-texto judaico, as imagens – e portanto todo o terreno do visí-vel em uma religião cujo Deus não tem face ou corpo – são condenadas como falsas e traiçoeiras. No contexto filosófico grego – surpreendentemente mais próxima do que distante da religião hebraica neste aspecto –, a imagem da palavra e da pintura é também estranhamente aludida como mera aparência de sabedoria, como cópia da cópia, como proje-ção ilusória e material de um mundo ideal – e irreal – de formas platônicas perfeitas.

Partindo da leitura de Derrida sobre a metáfora so-lar como constitutiva do saber filosófico grego e da crença religiosa cristã, Santos analisa a diferença ontológica que caracteriza o visível. Em ambas as tradições, o visível sensí-vel é criticado, ao passo que o visível inteligível – seja pela ciência seja pela fé – é valorizado. O paradoxo da visibili-dade estão, segundo Santos, estaria no fato da percepção física, no que concerne à visão, ser inversamente propor-cional à percepção intelectual ou espiritual. Nesse sentido, o mundo e suas falsas visões afastariam o homem do seu crescimento interior: Édipo e Sansão que o digam. Tirésias e Tomé que o confirmem. Homero e Saulo de Tarso que o exemplifiquem. Milton e Borges que comprovem. Exemplos, literários ou religiosos, ficcionais ou reais, visíveis ou imagi-náveis, que perpassam a instigante (re)visão da visibilidade na argumentação do autor.

Pesquisando esse “paradigma da visibilidade” em diferentes territórios temporais e culturais, Santos defende uma leitura fluida da história do ocidente, na qual visão e cegueira coabitam como opostos justamente dos seus con-trários: ver é estar de olhos vendados ao passo que aos cegos famosos cabe a translúcida visão interior, seja ela intelectual ou espiritual. Nesse sentido, é justamente nesse

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embaralhamento das compreensões sobre a visão que se encontra a visibilidade e a decorrente paragone entre a lite-ratura e as artes visuais ou suas aproximações via Ut Pictura Poesis e Sister Arts.

Inicialmente, tenderíamos a supor que a primeira seria valorizada por sua capacidade de abstração e conceituação e a segunda evitada por sua ênfase nos sentidos corpóreos, ao reduplicar (ou copiar a cópia d)o mundo material. Toda-via, Santos demonstra que até o texto – em sua capacidade de produzir imagens – também ganha traços de advertên-cia, quer por Platão na República, quer por Paulo em Corín-tios. Em ambos os casos, trata-se de valorizar a cegueira, de repensar o provérbio comum, que de forma inversa, poderia também dar título ao ensaio que segue: “Em terra de cego, quem tem olho é mendigo”.

Trata-se então, no caso do autor, de seguir os passos de Derrida na trilha desconfortável e desconfortante do “en-tre”, desalojando e problematizando as opiniões comuns sobre a filosofia, o cristianismo e a literatura. Santos distin-gue na parte final de seu percurso ensaístico o ver do saber ver, distinção que fundamenta a base dos relatos míticos de cegueira e da seguinte recuperação da visão, relatos que se multiplicam na tradição ocidental, quer cristã quer metafísica.

Neste caso, o olhar do cego vela e revela uma limita-ção física, que em arte simboliza seu oposto: uma amplia-ção mental ou espiritual. Ao adentrar na escuridão da ce-gueira, Édipo, Tirésias e Sansão, acessam outra dimensão da experiência humana. Problema de visão e de visibilidade, de escuridão e de cegueira, de ver mal e de ver bem demais, problema de literatura, que diz sem mostrar, e de pintura, que mostra sem dizer. Complexidades veladas, reveladas, observadas e desfocadas na (re)visão que Alcides Cardoso dos Santos empreende nas páginas seguintes.

Enéias Farias Tavares Universidade Federal de Santa Maria

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O first created Beam, and thou great Word,Let there be light, and light was over all;Why am I thus bereav’d thy prime decree?The Sun to me is darkAnd silent as the Moon,When she deserts the nightHid in her vacant interlunar cave.Since light so necessary is to life, And almost life itself, if it be trueThat light is in the Soul,She all in every part; why was the sightTo such a tender ball as th’ eye confin’d?1

(John Milton, Samson Agonistes)

1 Ó primeira Luz criada, e Vossa magna Palavra, / Seja feita a luz, e sobre tudo havia luz; / Por quê privado sou de vosso ato primeiro? / O sol para mim é negro / E silente como a Lua, / Quando a noite abandona / Por sua vazia cava interlunar. / Se é a luz tão necessária à vida, / A vida mesmo, se verdade for / Que a luz está na Alma, / E esta por toda parte; por que fora a visão / A tão frágil globo como o olho confinada? (tradução minha)

IntROdUçãO

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Em 1671 o poeta inglês John Milton publica um de seus mais importantes poemas, Sansom Agonistes, no qual o herói bíblico Sansão, de força descomunal, é apri-sionado pelos filisteus e tem seus cabelos cortados e seus olhos arrancados, devido à traição de sua esposa Dalila. De acordo com a leitura mais convencional e religiosa do mito, a causa de perdição do herói bíblico está na sua arrogância e, sobretudo, no fato de ter caído em tentação por causa de uma mulher (Dalila). Sua vingança final contra os filisteus – a morte de todos os presentes à celebração, incluindo os governantes e o próprio Sansão, em auto-sacrifício –, se dá por meio da sua fé, que faz com que Deus atenda a seu úl-timo pedido e lhe restaure a força momentaneamente para o sacrifício final. A leitura que John Milton faz do mito bí-blico, como vemos, mantém a idéia cristã do auto-sacríficio do herói para expurgo de seus pecados e libertação de seu povo, recobrindo-a, no entanto, de tonalidades autobiográfi-cas, uma vez que o poeta já estaria totalmente cego antes mesmo de escrever o Paradise Lost (1667), cegueira prova-velmente causada, além das causas fisiológicas, pelo traba-lho árduo e constante em prol da causa republicana junto a Oliver Cromwell.

Ao recriar o mito bíblico, Milton, defensor convicto da república em contraposição à monarquia, parece ter tido em mente não exatamente ou não somente a moral evangélica de que acima de tudo e antes de mais nada é preciso ter fé, mas a lição republicana de que somos responsáveis pelos nossos atos, pois é o reconhecimento feito por Sansão de que sua queda fora causada pelo seu desejo por uma mu-lher de bela aparência (pelos seus olhos e pela sua visão, portanto) que o reconduzirá de volta à sua fé e fará com que derrote os filisteus, derrubando as pilastras que susten-tavam o seu templo e restaurando, com o seu sacrifício, a liberdade do povo de Israel.

Queremos ressaltar, com esta breve recapitulação da poesia de John Milton e do mito bíblico de Sansão, não tanto a luta do poeta pela causa republicana, tema já bastante estudado na fortuna crítica do poeta inglês, mas principal-

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mente um aspecto que, apesar de ser considerado como secundário em relação ao tema central da fé e da razão que perpassa tanto o mito bíblico quanto o poema, nos parece fundamental: a visibilidade e a visão.

Se uma leitura mais convencional do mito assume a perda da fé como causa da perdição de Sansão, a leitura que propomos aponta para uma outra causa que parece também agir nesta perdição. Trata-se da visão, ou melhor, de um erro da visão, pois é a beleza física de Dalila que en-feitiça seus olhos, distanciando seu olhar da espiritualidade, e sua alma, fazendo-o confessar o segredo de sua força. Após ter seu segredo delatado aos filisteus por sua amada e seu cabelo – fonte de sua força – cortado, Sansão tem seus olhos vazados e, ao pedir a Deus a oportunidade de reparação do erro por meio de um último sacrifício, Sansão pede a restauração de sua força e usa, após o mea culpa pelo seu desvio da fé, um argumento final que nos parece decisivo na condescendência divina ao seu apelo, que é o fato de ter tido seus dois olhos vazados. C i t a m o s o texto original: “Senhor DEUS, peço-te que te lembres de mim, e fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes, 16: 28) (minha ênfase).

O tema da visibilidade e da visão, que nos parece ter sido tratado como periférico neste mito bíblico tão difundido na cultura e na literatura ocidentais, aparecerá com mais destaque na recriação do mito que John Milton realiza neste poema: estamos nos referindo ao fato de que Sansão la-menta ter perdido sua visão tanto quanto sua força, como vemos na epígrafe a este trabalho. Citamos outro trecho para enfatizar a importância dada por Milton à perda da vi-são: “O loss of sight, of thee I most complain! / Blind among enemies, O worse then chains, / Dungeon, or beggery, or decrepit age!” (MILTON, 1948, versos 67-69). A luz de que o herói é privado é, para Milton, sem dúvida “the prime work of god” (verso 71), luz que ilumina a razão e a fé e que permite ver e entender o mundo, pois que sem ela os olhos nada podem ver e Sansão ficaria “Shut up from outward light / To

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incorporate with gloomy night; / For inward light alas / Puts forth no visual beam” (versos 160-163).

A releitura de John Milton deste mito bíblico nos inte-ressa principalmente pelo fato de a questão da visibilidade e da visão já estar colocada no poema de forma clara e ar-ticulada, paradigmaticamente, diríamos, facilitando, desta forma, nosso trabalho de reconstrução do que, a partir de agora, chamaremos de questão da visibilidade. Afirmamos que a visibilidade é um paradigma porque en-volve, desde a antiguidade grega até a midiática contempo-raneidade, um conjunto de valores a axiomas que norteiam e fundamentam a cultura ocidental, tanto em seu aspecto científico quanto no senso comum que nutre grande parte da simbologia e dos mitos populares no ocidente.

A partir de sua aparição no mito bíblico e no poema de John Milton, discutiremos como a visibilidade é estruturada pelos seus dois aspectos constituintes, o visível e a visão, aspectos que se farão presentes na histórica do ocidente tanto em suas particularidades quanto no seu entrelaça-mento e mútua implicação axiológica e histórica. Apesar de parecerem ao senso comum como uma única instância na qual os dois termos se definem mutuamente (“o visível é o que se vê”, diria algum filósofo popular encerrando rapida-mente o argumento), o visível e a visão tem caracterísitcas particulares e histórias próprias que ao mesmo tempo em que os aproxima, os distancia e até mesmo os opõe um ao outro.

Nosso ponto de partida é a constatação de que na questão da visibilidade não há somente diferença, mas tam-bém oposição entre o visível e a visão, isto é, o visível e a visão não somente diferem um do outro, mas podem até ser opostos, como veremos adiante, e o nó górdio desta proxi-midade/diferença/oposição pode ser localizado na axiolo-gia e na simbologia que estão na base da fé e da razão. Poderíamos reconstruir este nó górdio central à questão da visibilidade constatando, inicialmente que, na própria formação das duas mais importantes tradições ocidentais de pensamento, o Cristianismo e a Filosofia, fé e razão coin-

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cidem, apesar de suas diferenças históricas (“a fé começa onde termina a razão”), na axiologia e na simbologia relacio-nada ao visível e a visão, isto é, o visível e a visão devem ser pautados pela fé cristã tanto quanto pela razão filosófica.

Se, por um lado, uma apreciação superficial da ques-tão que propomos pode levar a crer que a fé cristã historica-mente difere fundamentalmente do racionalismo filosófico (o cristão vê com os olhos da fé, enquanto o filósofo vê com os olhos da razão) por outro, um exame da questão mostra que fé e razão compartilham a axiologia do visível e da vi-são, isto é, a concepção fundamental de que existem duas formas de visível e de visão que correspondem a dois mun-dos distintos e hierarquizados, de um lado o mundo sensí-vel, composto por tudo o que é tangível aos nossos sentidos e paixões (a terra, o mundo, a physis, a realidade material, a tekhne), por outro, o supra-sensível, composto por tudo que é transcendente e essencial (o céu cristão, o eidos, o ideal, a idéia, o topus uranos platônico). A questão da visibilidade, portanto, só pode ser pensada no âmbito do Cristianismo e da Filosofia ocidental, por meio da constatação do entrela-çamento do visível e da visão aos domínios da fé e à razão.

Tomamos como ponto de partida o poema de John Milton como paradigmático da questão da visibilidade pelo fato de que o reconhecimento do erro e a sua redenção, que culmina com a auto-imolação do herói bíblico, constituem, para Sansão, um aprendizado da fé. Na leitura que propo-mos, este aprendizado, mais do que fé – ou, talvez, antes de sê-lo –, é um aprendizado da visibilidade2, pois no poema percebe-se que o visível (a beleza de Dalila, o templo dos filisteus, a força descomunal do herói – motivo da vaidade de que o herói posteriormente se arrependerá) se distancia da visão (que permitirá ao herói bíblico, já cego, abandonar sua vaidade e seu desejo e se voltar à fé interior e invisível),

2 Como ensina Merleau-Ponty, o visível é um aprendizado do mundo que coincide com a atividade do pensamento; ver, portanto, não é simplesmente olhar, mas construir o mundo com operações “reflexionantes” que trans-formam a percepção em pensamento e imaginação do real (2000, p. 37 et passim)

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ou seja, o poema de John Milton oferece ao herói Sansão e ao leitor um aprendizado da questão da visibilidade, i.e., de como o visível e a visão historicamente se diferenciaram em uma visibilidade interior (da alma, da consciência e da razão) e uma exterior (do mundo, das coisas e das aparências).

O Sansão de Milton, em sua cegueira, vive uma “living death”, pois está “exiled from light” numa “land of dark-ness”, resultado de seu próprio erro de confiar no visível e na visão externa. Seu cativeiro, uma “Prison within Prison”, o torna, então, duplamente prisioneiro: por um lado prisioneiro no mundo físico, por outro, prisioneiro no mundo visível.

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A questão de que nos ocuparemos ao longo deste texto, a visibilidade/visão, perpassa toda a histórica do oci-dente, dos gregos à atualidade dos mass mídia, e envolve pelo menos três domínios fundamentais da civilização hu-mana: a Religião, a Ciência (sobretudo a Filosofia) e as Artes. O fato de esta questão não ter recebido a atenção devida nos estudos sobre Religião ou nas diversas vertentes da Fi-losofia ocidental (com exceção da “Dióptrica” de Descartes e de algumas reflexões fundamentadas na fenomenologia e na hermenêneutica, como as de Merleau-Ponty, Heidegger, Derrida e Foucault), mas serem fundamentais à Literatura e às Artes (os temas, motivos, e personagens ligados à ques-tão da visibilidade/visão estão presentes em praticamente toda a literatura ocidental) indica uma receptividade maior e uma problematização mais eficiente e produtiva desta questão pela arte. Com o termo problematização estamos tentando nomear o processo histórico pelo qual a Literatura e a Arte são vincadas pela questão da visibilidade/visão, por um lado contribuindo para a perpetuação de um consenso formado sobre a visibilidade/visão formado tanto por cren-ças e valores populares quanto pela axiologia cristã e filosó-fica, por outro, influenciando a própria formação e a trans-formação desse consenso. Em outras palavras a questão da visibilidade/visão é regida por uma conjunto de valores

1. VISIbIlIdAde e VISãO: O qUe hÁpARA Se penSAR?

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aparentemente consensual, seja nas crenças propulares, na axiologia cristã e na filosófica, mas que escamoteia dissi-dências e dissonâncias. É claro que existem graus variados do que chamamos de problematização desse consenso, mas o ponto que nos parece importante é perceber que a Literatura e a Arte são espaços nos quais tanto a Religião quanto a Ciência confluem sob a égide da imaginação e que esta última instruirá os processos de representação/apre-sentação3 do mundo e dará contornos a esta questão que muitas vezes distoarão do consenso.

O que estamos chamando de consenso é o conjunto de valores informados pelo Cristianismo e pela tradição filosó-fica e compartilhados pelo senso comum no que diz respeito à questão da visibilidade/visão, valores que asseveram ter a luz origem no mundo ideal/celestial e serem a visibilidade e a visão apenas os seus reflexos distorcidos que vemos no mundo sensível/material (consenso a que John Milton poeti-camente se refere nos versos 91 a 93, “... if it be true / That light is in the Soul, / She all in every part” e 162-163, “For inward light alas / Puts forth no visual beam”).

Porém, quando nos aprofundamos um pouco mais neste consenso, nos deparamos com dissidências e disso-nâncias em relação à axiologia e à simbologia sobre a visi-bilidade e a visão e chegamos a uma situação de impasse teórico ou aporia que a Literatura e as Artes souberam ex-plorar e problematizar de forma inegavelmente interessante, tocando nos pontos nevrálgicos desta questão de forma imaginativa e com uma forma de pensamento que lhes é própria, a que Benedito Nunes chamaria de “pensamento poético” (1998). Tais dissidências e dissonâncias que a Lite-ratura e as Artes problematizam, longe de serem acidentais, são congênitas e constituintes da questão da visibilidade/

3 A questão da representação/apresentação do real e do mundo que a arte realiza é bastante complexa para que a desenvolvamos aqui. Basta-no, para o momento, pontuar que a questão da Mimesis, já bastante complexa em Platão (cf. DERRIDA, 2005) será tratada na Retórica clássica em termos de adequação (Aedequatio) ou semelhança (Homoiosis), e na Filosofia em termos de representação (Darstellung) e apresentação (Vorstellung).

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visão, pois se, por um lado, há o rebaixamento do visível e da visão física nos discursos do Cristianismo e da Filosofia, por outro a evolução tecnológica da sociedade ocidental, desde os seus primórdios cristão e com maior ênfase nos inícios noventistas da Modernidade européia e americana, coloca a visibilidade e a visão como aspectos centrais da vida, transformando a cultura moderna e contemporânea em uma cultura fundamentalmente visual e midiática.

Esta tensão entre o rebaixamento do visível e da visão física em favor do ideal e da visão intelectual/espiritual e a centralidade da visibilidade e da visão na cultura ocidental (com maior ênfase na Modernidade, como dissemos) ten-siona as axiologias popular (que podemos ver em ditados como “Quem vê cara não vê coração”), a cristã e a filosófica, herdadas do Platonismo e do Cristianismo4, e nos possibi-

4 De uma forma direta ou inversa, as três religiões abrâmicas (o Cristia-nismo, o Judaísmo e o Islamismo) têm relações diferentes e particulares com a questão da visibilidade e da visão. Se, por um lado, o Judaísmo e o Is-lamismo tradicionalmente têm uma posição crítica em relação à visibilidade – como se pode ver na restrição ou até mesmo proibição feita à iconografia dos santos - , tampouco podemos dizer que o Cristianismo simplesmente incorporou a iconografia dos santos ao seu dogma por meio da represen-tação visual de seu filho Jesus. Há, no seio da tradição religiosa cristã, divergências também quanto à representação visual dos santos, como é o caso do Protestantismo e do Calvinismo. Porém, mesmo a iconoclastia das tradições protestante e luterana não desautoriza nosso argumento de que o Cristianismo tem uma relação com a questão da visibilidade e da visão que difere da Judaísmo ou do Islamismo basicamente pelo fato de que no Cristianismo, Deus se mostrou aos homens por meio de seu filho na terra, abrindo espaço, desta forma, para a sua representação e, até mesmo, idolatria. A utilização da tenologia midiática pelas novas igrejas de origem sobretudo protestante, demonstram uma afinidade entre religião e midia que já estaria na origem da religião cristã, no que Jacques Derrida chamou de “mundialatinização” da igreja católica (1997, 46 et passim). Em outro texto mais recente, “Above all no journalists”, Derrida torna este ponto ainda mais claro, dizendo que “Isto, (a teletecnologia do cristianismo), creio eu, mantém, uma certa relação estrutural com aquilo que provavelmente distin-gue a Religião Judaica ou Muçulmana da Cristã, isto é, a encarnação, a me-diação, o hoc est meum corpus, a eucaristia, Deus tornado visível” (2001, p. 58, minha tradução). No judaísmo o Messias ainda está por vir e, portanto, sua revelação aos homens ainda não aconteceu, sendo esta a razão de o Judaísmo ser uma religião da revelação e não uma religião revelada, como é

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lita tratar a visibilidade/visão como uma questão e falar, em consonância com alguns teóricos do século XX (Derrida, Heidegger, Foucault, para citar os nomes mais conhecidos), de um recalque do visível na sociedade ocidental. Pode-mos dizer, então, que entre a axiologia que fundamenta o pensamento – e o rebaixamento – do visível no ocidente e a história da cultura ocidental – orientada na direção do materialismo e da tecnologia – há um descompasso teórico importante que ainda precisa ser pensado.

Nossa reflexão sobre a questão da visibilidade tem a desvantagem que caracteriza temas que demandam grande aprofundamento teórico, que é a de ser bastante abrangente e genérica mas, por outro, tem a vantagem de partir de um consenso, que é a centralidade da questão da visibilidade na cultura ocidental. Em termos um pouco mais concretos, poderíamos dizer que a centralidade da visibilidade na cul-tura ocidental faz com que a visão oscile entre os extremos de constatação visual da realidade (a Homoiosis da retórica ou a Darstellung filosófica) às utopias nas quais outros mun-dos e realidades possíveis são imaginados e visualizados pelo pensamento imaginativo da Literatura e das Artes. En-tre a visão das coisas na forma como elas se dão aos olhos e o trabalho da imaginação redirecionando o olhar para aquilo que não se vê mas que sempre se anuncia, toda uma varie-dade de relações aponta para uma repressão do visível na cultura, pois, em termos freudianos, poderíamos dizer que o desejo que aciona toda forma de visão é reprimido pela or-dem, pelas regras do “que” e do “como” se deve ver. Apenas a título de sugestão, poderíamos polemizar um pouco mais afirmando que a repressão ao visível na cultura ocidental se aproxima bastante da repressão sexual, uma das molas da neurose das sociedades modernas, como Freud explica em “O mal-estar na civilização”. Podemos mesmo dizer que no Ocidente o visível desperta a visão menos para a apre-

o caso do Cristianismo. Já o Islamismo proíbe radicalmente qualquer repre-sentação visual de Alá ou de seu profeta Maomé. Neste trabalho trataremos apenas do Cristianismo e suas relações com o visível e a visão.

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ensão do real do que para o desejo e a imaginação, ambas pautados pela ordem e pela repressão, abrindo espaço para vários tipos de perversão que terão no olhar e na visão seu epicentro.

Quando nos referimos à tradição filosófica, é preciso deixar claro que estamos nos reportando fundamental-mente à axiologia dos diálogos de Platão, pois eles repre-sentam o momento fundador desta tradição de pensamento que tem na idéia e no ideal sua origem, justificativa e obje-tivo. A despeito das diferentes leituras que os seus textos têm recebido ao longo da história, a teoria platônica dos dois mundos estabelece os pilares do conhecimento e da cultura no Ocidente, disseminando a crença em um mundo ideal e perfeito original e anterior ao mundo imperfeito que habitamos e, portanto, visível somente à alma.

N´A República, um dos textos fundadores desta tra-dição de rebaixamento da questão da visibilidade/visão, Platão cria um dos mitos mais eficientes e influentes para explicar a teoria dos dois mundos, o mito (ou alegoria) da caverna, na qual o mundo ideal só pode ser alcançado por meio da rememoração, da lembrança do conhecimento per-feito, ideal, que trazemos em nossa alma. Neste processo de anamnese, o mundo material é como um degrau – senão um empecilho – no caminho do conhecimento e, portanto, tudo o que se relaciona a ele deve ser preterido em relação ao mundo ideal. A percepção que temos do mundo (e a vi-são tem lugar central dentre os instrumentos da percepção, como veremos adiante) ocupa, então, o último lugar na ca-deia de conhecimento que liga os homens à verdade ideal, como diz Sócrates a Gláucon (PLATÃO, 1996, p. 153):

E agora demos aos dois segmentos daquela linha reta, com suas quatro divisões, os nomes que lhes coopertencem: a inteligência ao mais elevado; o pensamento ao segundo; ao terceiro chamemos crença e ao último, percepção das sombras. E po-nhamo-los em ordem, considerando que cada um deles participa tanto mais da clareza quanto mais

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participem da verdade os objetos a que se aplica.

O que o mito da caverna demonstra com clareza é que o mundo real é composto de sombras do mundo ideal, ima-gens bruxuleantes que o verdadeiro filósofo deve rejeitar e das quais o verdadeiro conhecimento deve saber se esqui-var. A realidade, portanto, é formada de restos e rastros do mundo ideal, materializados na forma de imagens, na forma de visibilidade, nos permitindo dizer que a visibilidade é, como veremos mais adiante, um arquivo de ruínas.

Desta forma, entre a condenação na teoria e utilidade na prática, entre a rejeição heurística e o desejo irracio-nal, as imagens condensam, na história e na sua estória, naquilo que chamaremos de narrativa da visibilidade, uma boa parte da história do ocidente, como explica um dos mais importantes teóricos da imagem na contemporaneidade a respeito da paradoxal relação amor-ódio que o ocidente tem com as imagens desde os primórdios gregos (MITCHELL, 1995, p. 15):

Por um lado, parece inapelavelmente óbvio que a era do video e da tecnologia cibernética, a era da reprodução eletrônica, desenvolveu novas formas de ilusionismo e simulação visual com poderes sem precedentes. Por outro, o medo da imagem, a angústia de que os “poderes das imagens” pos-sam finalmente destruir até mesmo seus criadores e manipuladores, é tão antigo quanto a produção mesma das imagens (minha tradução, ênfase minha).

Nesse sentido, podemos dizer que a história do ocidente passa pela história da visibilidade e da visão e que é mesmo possível retomar os fios desta narrativa a partir do trata-mento da visibilidade/visão como questão e da percepção de que os desdobramentos desta questão nos permitem perceber como a história do ocidente e a história da visibili-dade/visão são uma e mesma história.

Antes de seguirmos adiante, gostaríamos de lembrar

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que a escolha do termo visibilidade, e não visível, foi feita para evitar que esta questão seja reduzida à nossa expe-riência sensível do mundo, isto é, ao visível que o senso comum denomina “mundo” ou “realidade” ou à represen-tação deste visível como Homoiosis ou Darstellung. Como esclarece Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2000), o visível é apenas aquela pequena parte do Ser que se nos dá aos sentidos e na qual cremos encontrar o real ou, como dirá poeticamente Wiliam Blake (1988, p. 35), “How do you know but ev´ry Bird that cuts the airy way, / Is an immense world of delight, clos´d by your senses Five?”

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Para além da construção de uma iconografia ociden-tal, cujo projeto nos faz lembrar as importantes contribui-ções de teóricos como Irwin Panofski, Hans Gombrich e Heinrich Wölflin, tratar a visibilidade como questão implica, primeiramente, em perceber que se trata de um discurso transdisciplinar que parte dos pressupostos axiológicos do Platonismo e do Cristianismo. Em segundo lugar, trata-se de desdobrar e identificar os entrelaçamentos entre o tema da visibilidade e, por um lado, os dois discursos fundadores da cultura ocidental, a Filosofia e o Cristianismo e, por outro, a Literatura e as Artes. A este duplo mister de percepção e identificação da presença da visibilidade nos principais campos do saber da cultura ocidental denominaremos do-ravante a narrativa da visibilidade. Para construirmos esta narrativa da visibilidade, uma rápida digressão no intuito de entendermos mais claramente os contornos desta narrativa.

A visibilidade, na sua história ocidental, está indisso-ciavelmente ligada à luz, pois dela depende, tanto no sen-tido literal – a luz que incide sobre os objetos produz visibi-lidade, tornando-os visíveis – quanto no sentido alegórico ou metafórico – como metáfora do conhecimento e da fé já nos diálogos platônicos e nos textos do antigo testamento. Apesar de já consolidada pela disseminação na cultura po-pular da doutrina platônica dos dois mundos, ainda assim

2. FIAt lUx

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é bom lembrar que a associação da visibilidade com a luz e o conhecimento tem seu momento fundador na associa-ção que Platão faz, n’A República, mais especificamente no mito da caverna (Livro VII), entre o sol sensível e o sol inteligível. A caverna platônica, equivalente ao mundo real, é o lugar do qual só se poder vislumbrar o sol sensível, cuja luz é irreal e ao qual corresponde apenas a ilusão de conhe-cimento. Superior e transcendente à caverna/mundo real, há o mundo das idéias, a que o filósofo deve ascender por meio de seu conhecimento/anamnese, saindo da caverna e vislumbrando o sol ideal, a luz verdadeira e o conhecimento real. Portanto, se seguirmos esta lógica até seu punctum ca-ecum, de maneira esquemática mas instrutiva da hipótese que tentamos demonstrar, veremos que a luz do mundo real é uma forma de escuridão e a visão deste mundo é uma forma de cegueira.

Este desdobramento do mito da caverna fundamenta boa parte da simbologia da visibilidade e da visão que per-passa a cultura, as artes e a literatura ocidental, cujo exem-plo mais eloquente talvez seja o do cego Tirésias, persona-gem central da dramaturgia grega e da literatura ocidental que, após testemunhar em favor de Zeus na querela entre o deus olímpico e sua mulher Hera, fora transformado em mu-lher para, sete anos após, voltar à forma masculina e ficar cego como punição vingativa de Hera. Zeus, não podendo reverter o castigo de outro deus/a, dá a Tiresias, como consolo, o dom da visão suprasensível e do conhecimento transcendente.

Desde os seus primórdios platônico-cristãos a associa-ção visibilidade-luz esteve sempre enredada a dois domínios fundamentais da existência humana, a Ciência e a Religião. Com este termo genérico “Ciência”, diga-se logo, estamos designando fundamentalmente a Filosofia e sobretudo a Fi-losofia ocidental desde seu surgimento, com Parmênides e Heráclito, até a “virada” hermenênutica dos anos 1920 (me refiro basicamente à publicação de Ser e Tempo, de Mar-tin Heidegger), na qual o ser deixa sua estrutura estável e transcendente para se tornar histórico e irremediavelmente

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ancorado na linguagem. O outro termo que usamos, a Religião, tão abrangente

quanto o anterior, será usado como referência ao Cristia-nismo em relação às outras duas religiões abrâmicas, o Judaísmo e o Islamismo. A diferença fundamental que nos interessa ressaltar é o fato de a primeira ser uma religião revelada, isto é, no Cristianismo a concepção que prevalece é a de que Deus teria se mostrado aos homens na forma humana de seu filho Jesus, permitindo, desta forma, a sua representação visual, ao contrário do Judaísmo e do Islamismo, como dissemos anteriormente (c.f. nota 5). Por-tanto, Filosofia e Cristianismo serão termos usados de forma abrangente apenas com o objetivo de discutirmos a questão da visibilidade e da visão.

Embora a Filosofia e o Cristianismo tenham se consti-tuido historicamente no Ocidente como modos diferentes de ser do homem, razão e fé são dois domínios da experiência humana que, apesar de radicalmente díspares em suas his-tórias tanto quanto no senso comum (“a fé começa onde termina a razão”), se aproximam justamente no nó de sua separação, no seu ponto de contato e afastamento, como afirma Derrida (1997). Se, como diz o dito popular, “a fé co-meça onde termina a razão”, no ponto onde uma termina e a outra começa há de haver algum contato, fora de um tempo ou de um espaço, nem um domínio nem outro, mas o “entre” de um contato que não se conforma a uma padrão ou método. É neste contato diáfano que fé e razão compar-tilham os seus pressupostos implícitos, nos permitindo ver que, por um lado, a fé, fundamento histórico de toda forma de religio, é também fundamento do saber, do “fiduciário ou da fiabilidade” que fundamenta o saber, conforme as pala-vras de Derrida (1997, p.10 et passim). É esta inseparabili-dade original entre o saber e a fé que leva Kant, em um texto conhecido sobre a origem do mal, a propor a sua igreja “vi-sível” sobre as bases de uma religiosidade pura ou racional, expurgando o dogma – a religião eclesiástica – e fazendo valer a religião moral como vontade e razão humanas.

Se, como dissemos, a fé está na base do saber, por

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outro lado, também podemos dizer que a razão está na base da fé, que sempre foi pautada pela abstração racional que guia seus dogmas e preceitos. Novamente nos reportamos ao famoso texto de Kant para mostrar que os 4 atributos da verdadeira igreja/fé que o filósofo postula (universalidade, pureza, liberdade e imutabilidade – Parte 5.1.4 p. 118) não são essencialmente diferentes dos atributos da razão postu-lados pelos filósofos iluministas.

Este argumento da inseparabilidade da fé e da ra-zão, desenvolvido de forma minuciosa por Jacques Derrida, Gianni Vattimo e outros no livro A Religião (1997), nos será importante pelo fato de partir da premissa que Heidegger usará para se referir às relações entre poesia e pensa-mento, qual seja, o fato de que a diferença implica neces-sariamente uma comunhão que a pressuponha, ou seja, fé e razão só podem ser pensados em sua diferença a partir do pressuposto – tanto implícito quanto recalcado – de sua comunhão essencial, como dirá Derrida sobre o elo funda-mental entre crença e razão “Está(-o) aí onde o saber e a fé, a tecnociência (“capitalista” e fiduciária) e a crença, o crédito, a fiabilidade, o acto de fé se combinarão, sempre, no seu próprio lugar, no nó de aliança de sua oposição.” (p. 11) [ênfase do autor].

Esta percepção do contato e do contágio entre fé e razão já na pureza de suas origens tem por fundamento um dos conceitos fundamentais da hermenêutica de Mar-tin Heidegger e da desconstrução de Jacques Derrida, que é a diferença (différance), termo pelo qual Derrida reflete sobre aquilo que, sem tempo e nem lugar, dá origem às diferenças, uma origem sem origem, o diferenciar das di-ferenças. O fio condutor do pensamento da desconstrução derridiana é basicamente a idéia de pensar os pressupostos não pensados da tradição ocidental, pressupostos este que, justamente por terem valor heurístico, são dotados do valor de verdades inquestionáveis ou eternas, justiça, verdade, democracia, Deus, ou espírito (em nome dos quais, diga-se de passagem, barbarismos, atrocidades e genocídios foram perpetrados ao longo da história do Ocidente). Desconstruir

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– que de modo algum significa destruir –, portanto, estes valores heurísticos que caracterizam o pensamento oci-dental significa repensar a herança e o futuro do Ocidente, abrindo possibilidades para outras formas mais inclusivas e tolerantes de pensar e viver que possam, algum dia, somar a estes valores heurísticos a hospitalidade e a aceitação das diferenças, tornando melhores as vidas das pessoas e as relações interpessoais bem como as relações no âmbito mundial.

O pensamento da diferença, da forma como pensado por Heidegger e Derrida, nos será fundamental para pen-sarmos a questão da visibilidade, pois a partir das reflexões desses pensadores, principalmente Derrida, fica claro que – e este é o nosso argumento central – a visibilidade só pode ser pensada no contexto da tradição platônico-cristã que lhe dá origem. Em outras palavras queremos dizer que para trabalhar a questão da visibilidade de forma produtiva é necessário retomar os fios que a enredam a outras áreas do saber e da existência humana no que denominamos a narrativa da visibilidade.

Um segundo aspecto da narrativa da visibilidade, tão importante quanto o primeiro e que se entrelaça de forma inextricável ao primeiro, é a constatação da centralidade da escrita na civilização ocidental e a repressão histórica ao seu caráter visível. A cena do seu surgimento na Grécia antiga é a mesma do surgimento das bases filosóficas, epis-temológicas e culturais do ocidente e a questão da visibili-dade que envolve a escrita em diálogos platônicos como o Fedro, Crátilo ou A República será também a questão da visibilidade no ocidente. Esta cena primária do surgimento da escrita é fundamental à questão da visibilidade por ser a escrita um caso bastante particular de visibilidade, pois se por um lado ela se tornou instrumento secular de preserva-ção da verdade, ela o faz justamente por ser um discurso escrito, dotado de inegável caráter material e visível. Além de trazer a marca do visível como seu traço fundamental, a escrita também se presta a outros usos, como o literário, que foi historicamente pensado como alheio à preservação

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da verdade, o que levaria à tão conhecida condenação de Platão aos escritores n’A República (Livro III). Não é por acaso que, neste momento inaugural, Platão compara a escrita, no Fedro, à pintura, dizendo que ambas – escrita e pintura- “têm atitude de pessoas vivas, mas se alguém as in-terrogar, conservar-se-ão gravemente caladas”, pois ambas transmitem “uma aparência de sabedoria, e não a verdade” (1954, p. 256-7). Pela sua força de exemplaridade, pode-se dizer que esta cena do Fedro cria um paradigma no qual a escrita é o centro de forças antagônicas que a louvam pela capacidade de reter e transmitir conhecimento, mas a con-denam por ser letra impressa, visível e passível de leitura e interpretação.

Portanto, o que chamamos da narrativa da visibilidade é uma maneira de pensarmos como a questão da visibili-dade sempre esteve no centro da história da civilização oci-dental por meio tanto da questão da visibilidade quanto do caráter visível da escrita, recalcado nos discursos filosóficos e religiosos cristãos, mas sempre presente na Literatura.

Reconstruir integralmente esta narrativa seria o mesmo que tentar reconstruir a Biblioteca de Babel, de que nos falou Borges, tantos os meandros e bifurcações que encontraríamos. Apenas exporemos brevemente o ponto central desta narrativa, que chamaremos de paradigma da visibilidade, isto é, a assunção transdisciplinar fundamente na cultura ocidental de que visibilidade e invisibilidade têm naturezas distintas e opostas e que a invisibilidade, devido à axiologia platônico-cristã, é superior à primeira por ser a essência dos valores heurísticos mais caros ao ocidente (Deus, razão, fé, espírito).

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Para relembrar, mesmo que muito esquematicamente, a fundamentação platônica do pensamento sobre a visibili-dade, da antiguidade grega aos dias atuais, a Alegoria da caverna, do Livro VII da Republica de Platão será bastante instrutiva:

[Sócrates a Gláucon]: A caverna-prisão é o mundo das coisas visíveis, a luz do fogo que ali existe é o Sol, e não me terás compreendido mal se interpre-tares a subida para o mundo lá de cima e a con-templação das coisas que lá se encontram como a ascensão da alma para a região inteligível; [...] a mim me parece que no mundo inteligível a última coisa que se percebe é a idéia do bem, e isso com grande esforço; mas uma vez percebida, forçoso é concluir que ela é a causa de todas as coisas retas e belas, geradora da luz e do senhor da luz no mundo visível e fonte imediata da verdade e do conhecimento no inteligível... (1996, 155)

A luz, concebida já em Platão e Aristóteles como metáfora do conhecimento e da verdade, liga inegavelmente a ques-tão da visibilidade ao conhecimento (e à fé, como veremos adiante), porém de forma inversa e este, podemos dizer, é o nó górgio de nossa argumentação, isto é, a luz do conhe-

3. VISíVel é O qUe Se Vê?

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cimento e da verdade é diferente da luz natural, pois esta última não produz conhecimento ou verdade, podendo até provocar cegueira e escuridão, como um pharmakon (DER-RIDA, 2005), o que leva à paradoxal conclusão de que em Platão, quanto mais luz (natural), menos conhecimento e menos verdade. O ponto de maior densidade metafórica e conceitual desta ligação luz-conhecimento-verdade se dá fundamentalmente na metáfora conceitual do sol, que per-passa o discurso filosófico de Platão e Aristóteles a Hegel e que denota, em suas várias nuances, a luz essencial que traz a essência, a verdade, o logos, o bem, conhecimento que não se dá aos sentidos humanos – menos ainda à vi-são – mas que se afirma na tradição platônica como a fonte de todo ser, como explica Derrida em comentário à presença do heliotropo na República (DERRIDA, 1991, p. 283):

[O sol] está aí, mas como fonte invisível de luz, numa espécie de eclipse insistente, mais que es-sencial, produzindo a essência – ser e aparecer – do que é. [...] Mantendo-se para além do que é, figura o Bem de que o sol sensível é o filho: fonte de vida e de visibilidade, de profiqüidade e de luz.

Derrida chama a atenção para a distinção ontológica que a metáfora do sol estabelece em sua constituição, a qual terá conseqüências fundamentais para a questão da visibili-dade, qual seja, a distinção hierárquica entre o sol/luz inteli-gível e o sol/luz sensível, sendo o primeiro a “fonte de vida e de visibilidade”, apesar de invisível, aquele que demanda os instrumentos conceituais corretos para se contemplar, for-necidos pelo filósofo. Fonte conceitual e metafórica da luz, do conhecimento e da verdade no paradigma platônico e na axiologia e simbolismo ocidentais, o verdadeiro sol é o sol in-teligível, ideal, origem de todas as idéias e conceitos, do belo e do bom, conceitos que norteiam a humanidade na filosofia platônica. A essência e a verdade que o sol ideal porta, ele as transmitirá, então, de pai para filho, ao sol sensível, ge-rando o simbolismo do pai e do rei presente nas diferentes

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culturas e épocas: o sol é o pai de todos os planetas e o rei dos astros (como se vê na metafórica do Rei Sol, desde do deus egípcio Ra até a Cruz Gamada, presente em várias culturas da antiguidade). A relação do pai com o filho, do sol ideal/pai para o sol sensível/filho é, portanto, uma relação complexa e central no Ocidente – matricial, díriamos, com Derrida e Freud.

Porém, e este é um ponto fundamental de nossa ar-gumentação e na de Derrida, alguns pressupostos desta axiologia e simbolismo, de tão auto-evidentes5 que se tor-naram na história ocidental, foram tomados como valores heurísticos, deixando de ser pensados em sua origem ou pressupostos. É o que faz Derrida quando demonstra como no heliotropo platônico, apesar de o sol ideal ser a origem de tudo, é o sol sensível que serve de base para o conceito de sol inteligível/ideal, ou seja, é o filho que possibilita a existência do pai: “Cada vez que uma retórica define a me-táfora, implica não só uma filosofia mas também uma rede conceitual na qual a filosofia se constituiu”, e corre-se o risco “[...] de tomar os efeitos mais derivados pelos traços originais de um subconjunto histórico, de uma configuração precocemente identificada...” (1991, p. 271)

Na ordem espacio-temporal que adviria deste tropo/metáfora fundadora da cultura ocidental, o sol pai – pelo fato de ser a origem – deveria ser anterior ao sol filho, mas o que a leitura de Derrida (1991, 2005) mostra é que a an-terioridade do sol/pai é bastante complicada pelo fato de já pressupor – tanto teórica quanto metaforicamente – a existência do sol/filho. Não se trata de inversão das origens, mas de seguir a lógica desta metáfora conceitual até o ponto em que origem deixe de ser original e primeira, fonte da autoridade e da exclusão e passe a ser uma origem en-

5 A auto-evidência da axiologia e simbolismo do sol exemplifica, de maneira singular, a sua proximidade com outro “auto”, a auto-imunidade, demonstrando o potencial totalitário que torna toda forma de “auto” um risco à democracia ou à aceitação das diferenças (DERRIDA, 1996). Uma ótima discussão sobre os riscos da auto-imunidade da democracia à liberdade pode ser encontrada em NAAS, 2006, p. 22 et passim.

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tre outras, que inclua outras possíveis fontes de luz e de conhecimento.

Podemos dizer, então, que a metáfora do sol é o ponto cego da diferença ontológica que fundamenta o conheci-mento do visível na tradição platonico-cristã, ponto onde os pressupostos não pensados desta tradição parecem saltar aos olhos, pois o heliotropo não é senão a fundamentação de uma metáfora do mundo inteligível (o sol ideal) por uma metonímia do mundo sensível (o sol sensível). Dizemos ponto cego porque o heliotropo, como metáfora e conceito da origem de toda visibilidade, indica já em sua origem o paradoxo central da questão da visibilidade – a que Derrida se refere e a que nos referiremos também como o paradoxo da visibilidade –, que é o fato de que o sol ideal/inteligível, fonte e essência de toda visibilidade e pai do sol sensível/visível, ser em sua essência invisível ou, melhor dito, ter uma essência invisível.

A espeleologia platônica associa diretamente a luz da caverna ao sol sensível, índice da existência real como mí-mese imperfeita do mundo ideal. Se caverna e sol sensível são elementos do mundo real, o mundo ideal terá por índice o sol inteligível, imagem da perfeição, da beleza e da ver-dade que, porém, não se pode contemplar diretamente. Fato interessante, comenta Derrida, é que o sol, conceitualmente considerado a fonte e a essência do ser, já é uma metáfora, ou seja, aquilo mesmo que deveria ser o próprio se mostra metafórico e então, “[C]omo a mimesis, a metáfora retorna à physis, a sua verdade e a sua presença.” (1981, p. 285). Este “retorno” ao mundo real, visível, que a metaforicidade do sol inteligível indica, nos parece deslocar a questão da visibilidade para um lugar central na ontologia e axiologia ocidentais, pois o caráter recalcado da visibilidade do real – da visibilidade visível, em contraposição à visibilidade in-visível do ideal –, é um dos fundamentos do que se tornou conhecido como o platonismo – o conjunto de leituras e interpretações de textos de Platão que lançaram as bases epistemológicas da cultura ocidental – tanto quanto do Cris-tianismo. Esta centralidade que estamos reclamando para

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a questão da visibilidade nos permite perceber que a axio-logia desenvolvida a partir desta tradição platônico-cristã determina que o que é visível aos olhos difere em essência daquilo que é visível à razão e à fé e a visibilidade sensível (a do mundo real) radicalmente diferente da visibilidade in-teligível (a das essências, da razão e da fé).

A metáfora do sol usada n´A República não é, por-tanto, somente uma metáfora entre outras, uma imagem no meio de tantas outras usadas como exemplos nos diálogos do filósofo grego, mas um tropo – imagem, metáfora e con-ceito superpostos – rico o suficiente para povoar o imaginá-rio de todo o mundo ocidental há, pelo menos, 2.000 anos. A axiologia do heliotropo implantou a concepção de que o conhecimento e a verdade advêm da luz que emana do as-tro rei, tornando possível, por meio da diferenciação entre a luz verdadeira do sol ideal e a luz falsa do sol sensível, a conseqüente diferenciação entre o conhecimento verda-deiro e o falso.

Em termos esquemáticos, podemos resumir o para-doxo da visibilidade da seguinte forma: a visibilidade sen-sível é considerada ardilosa, ao passo que a inteligível é fidedigna; a primeira está associada aos vícios mundanos, ao passo que a segunda está relacionada ao bem, valor supremo; a primeira é sensual, enquanto a segunda deve abdicar dos sentidos. Como a ontologia platônica é regulada pela oposição de um mundo sensível/visível, inferior e en-ganoso, a um mundo inteligível/invisível, verdadeiro e bom, podemos dizer que as duas visibilidades acionam, portanto, dois modos de conhecimento que a teoria mimética buscou explicar e regulamentar.

O paradoxo da visibilidade norteou os discursos tanto da Filosofia como das Artes por muitos séculos, permitindo perceber os entornos de uma questão que não nos caberá aqui senão nomear: a filiação dos discursos sobre as rela-ções entre textos e imagens ao platonismo (SANTOS, 2000). O que nos interessa, neste momento, é perceber como a in-vestigação da narrativa da visibilidade revela pontos cruciais em que o paradigma platônico se enreda ao Cristianismo,

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nos permitindo perceber que a colocação da visibilidade como questão mostra o seu recalcamento não somente na tradição filosófica platônica, mas também – e fundamental-mente – no Cristianismo.

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Por acreditarem em um deus único único (Iahweh para os cristãos e judeus e Allah para os muçulmanos), as 3 religiões abrâmicas, Cristianismo, Judaísmo e Islamismo, fundamentam sua exegese e dogma no momento fundador, em que este Deus sinaliza ao patriarca Abraão para que este fosse o “pai de uma multidão de nações” (Gênesis, 17, 5). Sinais ou revelações como a de Abraão constituem o corpo teológico de cada uma dessas religiões e geralmente se manifestam na forma de milagres, aparições, feitos dos pro-fetas e discípulos e, sobretudo, nos livros sagrados (a Bíblia para os cristãos, a Torá para os judeus e o Corão para os muçulmanos), sendo consideradas como sinais diretos de Deus por meio seus homens santos (profetas, anacoretas, místicos, visionários, apóstolos, ascetas). No Cristianismo, que é o que nos interessa neste momento, a revelação é narrada na Bíblia por meio das profecias e das narrativas dos apóstolos, as primeiras anunciando a vinda do Messias e denunciando a corrupção moral dos homens para que pos-sam se preparar para o dia do juízo, as últimas narrando a vinda do filho de Deus à terra e sua vida terrena, enfatizando os feitos do Messias que, ao longo dos séculos, forneceriam as bases do dogma cristão. Assim como a estória de Jesus, também as vidas dos santos e dos mártires constituem im-portante fonte da simbologia cristã, pois a sua canonização

4. VeR pARA cReR, OU MelhOR,cReR pARA VeR

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pela igreja tem o duplo aspecto de reforçar o dogma cris-tão e, ao mesmo tempo, disseminar a fé cristã para uma público maior, principalmente pela canonização de pessoas comuns, demonstrando que a fé pode salvar e santificar, como é o caso de São Francisco de Assis, Santo Antonio, São Pedro e São José (que constituem, conjuntamente, os santos padroeiros, no Brasil das festas juninas), São Sebas-tião e as santas Nossa Senhora da Graça e Nossa Senhora de Fátima, apenas para citar os mais populares no Brasil.

A revelação cristã, em sua variedade de formas e manifestações, parece mostrar que no dogma cristão a vi-sibilidade é tratada como uma questão de fé, isto é, como uma instância individual, interior e particular que permite aos homens ouvir ou perceber o chamado divino, o que ge-ralmente acontece por meio de visões, como as dos profetas Ezequiel, Isaías e dos santos e ascetas Santa Tereza d’ Ávila, Santo Antão do deserto ou São João da Cruz. Estas visões, sendo espirituais, são sempre experiências individuais e in-teriores, não podendo ser compartilhadas, isto é, ouvidas ou vistas por outras pessoas, e sua perpetuação e difusão se deu por meio de seus relatos místicos. Mais importante, estas visões espirituais também mostram que a fé, por ser individual e interior, deve ser invisível, deve ter uma natureza e essência diferente das visões mundanas, isto é, os sinais da revelação são “vistos” por uma visão interior que, como veremos adiante, se separa e muitas vezes antagoniza a visão física que serve de fundamento à ciência. Podemos dizer, provocativamente, que os santos são aqueles videntes que vêem o invisível.

Por ser uma instância individual e invisível, a visibi-lidade acionada pela fé implica em uma relação inversa com a visibilidade da visão natural, de forma que, via de regra, quanto mais visão física tiver o homem, quanto maior a confiança nas imagens do mundo que o cerca, menor a sua fé (a estória bíblica de São Tomé é paradigmática desta inversão, pois antes de adquirir a fé que dispensa a visão natural, Tomé se fia nas imagens do mundo real, duvidando até mesmo da ressurreição de Cristo – João 20: 20-29). O

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oposto exato também demonstra esta relação inversa da visibilidade da fé com a visibilidade natural, isto é, quanto mais fé e confiança na visão interior, menos necessidade da visão física, culminado com as várias estórias bíblicas de cegueira como punição pela falta de fé, tal qual Sansão, e recuperação da visão pela força ou recuperação da fé, tal qual o velho Tobit, no Livro de Tobias (Livro X), curado da cegueira por seu filho Tobias com a ajuda do anjo Rafael (Bíblia de Jerusalém, 2003).

Tal como no paradigma platônico que reconstruímos com a anamnese da alegoria da caverna, a visibilidade no Cristianismo se divide em visibilidade sensível/visível e vi-sibilidade da fé ou invisível, esta última englobando tudo o que não se pode ver com os olhos, mas que justamente por essa razão, requer a crença. A estória de São tomé é para-digmática deste tipo de visibilidade por causa da transfor-mação pela qual o apóstolo passa: de descrente (“ver para crer”) ele passa, por causa da fé, a ser crente (“crer para ver”), passando a ver com os olhos da fé e tornando a visão natural um acessório dispensável.

A constatação da natureza bipartida da visibilidade na tradição cristã tanto quanto na tradição filosófica platônica tem implicações profundas na cultura e no pensamento oci-dentais, muitas delas reverberadas pela tradição popular na forma de ditados e provérbios (“Quem vê cara não vê cora-ção”, “Os olhos são o espelho da alma”, “Quem conhece o seu coração, desconfia dos olhos”, “O que os olhos não vêem, o coração não sente”), demonstrando que, assim como a visibilidade, também a visão é dividida entre a visão natural (física, aquela que é exercida com os olhos) e a visão interior, seja ela a da razão (o eidos platônico, a Imago la-tina) ou a da fé (crença individual cristã). A visão da fé cristã é aquela que, abdicando da visão farisaica, que precisa de provas para crer, mostrará o caminho da visão divina, numa espécie de lex talionis da visão profética, “olho (externo) por olho (interno) e visão (externa) por visão (interna)”. A invi-sibilidade da fé, espiritual e subjetiva, e sua relação com a visão interior somente são possíveis por meio da crença,

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que aciona, desta forma, a dupla injunção da revelação da fé cristã: revelar significa desvelar, mostrar, mas, ao mesmo tempo, re-velar, esconder, tirar da vista, mostrando que o acesso à fé é o acesso à invisibilidade.

Assim como a visibilidade, a visão também tem, na tra-dição platônica/cristã, duas naturezas opostas e hierarqui-zadas, fazendo das muitas estórias bíblicas sobre cegueira estórias de permuta entre os dois tipos de visão, permuta que têm por motivação ou objetivo central a revelação da fé: de um lado, estórias de recuperação da visão física possibi-litada pela fé, pela sua assunção ou pela sua recuperação (no caso dos desenganados e dos descrentes); de outro, as estórias de perda da visão física e consequente aquisição da visão interna e, muitas vezes, profética.

No primeiro caso, há os cegos de nascença que, como os coxos e leprosos da Bíblia, terão a benção da justiça di-vina em compensação pela injustiça dos homens devida à sua particularidade fisiológica ou anatômica, pois, como dis-semos anteriormente, a cegueira constitui, na axiologia oci-dental, um estado de anormalidade ou ab-normalidade, isto é, um estado anterior à normalidade, estado sem regra, sem lei, sem fé ou razão. Sendo vistos como uma violação da natureza, eles são aberrações das quais a civilização desvia o olhar, cabendo a Deus olhar por eles.6 Aos cegos que não possuem fé e, portanto, não possuem visão alguma (a física ou a da fé), só restam as trevas e a esperança de um dia receber a redenção, como atesta o Evangelho de Mateus (15:14) a respeito dos filisteus: “Deixai-os; são condutores cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova” (Bíblia de Jerusalém, 2003).

Esta passagem do texto bíblico, de grande influência

6 A questão da relação dupla de repulsa e atração que as anormalidades ou transgressões (dentre elas a cegueira ocupa lugar de relevo) causam ao olhar na cultura ocidental é um tema demais complexo para tratarmos aqui. Apenas gostaríamos de assinalar que repulsa/atração do olhar para/sobre o diferente é a fonte de reações como o voyerismo, o fetichismo e as diferentes perversões que a Literatura soube explorar tão bem, da Filosofia na alcova, do Marques de Sade, à História do olho, de Goerges Bataille.

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no imaginário e na simbologia popular, literária e artística do ocidente, reforça a distinção e a hierarquia implícita entre os dois tipos de visibilidade e de visão, cuja influência pode ser detectada em artistas tão distantes no tempo quanto o pin-tor flamengo Pieter Brueghel (1525-1569), com seu quadro “Parábola dos cegos”,

Pieter Brueghel, o velho. Parábola dos cegos (1568)Disponível em: < commons.wikimedia.org/wiki/File:Pieter Bruegel the Elder-The Parable of the Blind Leading the Blind >. Acessado

em 25 Setembro 2013.

e o poeta Baudelaire, com seu conhecido soneto “Os cegos”, no qual a reação de horror a estes desviados da ordem na-tural, mesclada a um certo voyeurismo, pode ser lida já na primeira estrofe (1985, 343):

Contemplai-os, ó minha alma; eles são pavorosos!Iguais aos manequins, grotescos, singulares,Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares,Lançando não sei onde os globos tenebrosos.

Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,

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Como se olhassem à distância, estão fincadasNo céu; e não se vê jamais sobre as calçadasSe um deles a sonhar sua cabeça inclina.

Cruzam assim o eterno escuro que os invade,Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu,

Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo,Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?

Realizado no contexto das revoluções que o Renascimento europeu trouxe com filósofos e astrônomos como Copérnico e Galileu, o quadro de Brueghel nos permite detectar os ele-mentos fundamentais da axiologia renascentista a respeito da visibilidade e da visão. Em uma análise ligeira, com o objetivo único de nos ajudar a entender a visibilidade/visão como questão, pode-se ver o contraste entre o primeiro plano – cegos caminhando com a ajuda uns dos outros – e o plano de fundo, no qual vemos uma paisagem campestre.

No primeiro plano, o movimento dos cegos reproduz literalmente a parábola dos cegos da Bíblia (Lucas 4, 39), pois um cego guia o outro numa linha de seis cegos que se-guem segurando bastões de madeira ou tocando no ombro do outro, sendo que o primeiro deles já caiu no barranco e os outros se encaminham para o mesmo destino. O destino que se concretizou para o primeiro, a queda, certamente se fará acontecer aos demais, pois esses são os cegos que não possuem fé e que estão condenados à escuridão dupla do mundo material e do espiritual.

O segundo plano ou plano de fundo faz contraste mar-cante com o primeiro, apresentando uma paisagem cam-pestre com uma igreja e alguns animais domésticos como vacas, galinhas ou patos, em total indiferença à tragédia humana do primeiro plano. Tampouco o homem ao fundo que alimenta os animais tem olhos para a desgraça humana

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dos cegos, confirmando o fato de que na ordem natural das coisas e do mundo não há olhos ou lugar para esta tragé-dia, sendo eles aberrações dos quais a civilização prefere desviar o olhar.

O que mais chama a atenção neste quadro é o olhar dos cegos para cima, como a tentar ver algo que não lhes é dado perceber, justamente o aspecto que Baudelaire enfa-tiza em sua versão poética do quadro. Com seus olhos bem abertos, exibindo seus globos oculares profundos e esbran-quiçados, eles buscam ver a luz que não lhes é dado perce-ber, o que dá a seus rostos uma expressão entre o desam-paro e a bestialidade. Assim como seus bastões, seus olhos não lhes servem para nada e serão apenas testemunhas cegas de um destino escuro, reforçando a nossa tese de que os olhos são dispensáveis à visão e podem, até mesmo, atrapalhá-la.

O poema de Baudelaire traz o quadro de Brueghel para a modernidade do século XIX ao enfatizar a feiúra, a fantasmagoria e o grotesco que o poeta deseja ressaltar como aspectos fundamentais da modernidade européia ur-bana novecentista. É certo que esses aspectos para os quais Baudelaire chama a atenção já estão perpassados pelo seu olhar poético, denunciando uma estetização da urbanidade e de seus aspectos negativos que fez parte do programa mo-dernista em vários países europeus na segunda metade do século XIX. Nosso intuito, ao trazermos o quadro de Brueghel e o soneto de Baudelaire para a discussão da visibilidade e da visão, não é fazermos uma discussão detalhada destes dois artistas nem tampouco elaborarmos a relação entre eles, mas tão somente mostrar, com estes exemplos para-digmáticos, como o tema e as representações da cegueira denotam uma axiologia e uma simbologia solidamente fin-cadas nas tradições do platonismo e do cristianismo, que as lendas e ditados populares repercutem.

O soneto de Baudelaire chama a atenção para alguns lugares comuns a respeito da cegueira que vale a pena des-tacar, sobretudo o fato de que os cegos são, como no quadro de Brueghel, uma anormalidade, indicada pelo uso dos adje-

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tivos “pavorosos”, “tenebrosos”, “grotescos”, “terríveis”. Se algum dia neles “ardeu a luz divina”, agora reina somente “o eterno escuro” pois, sendo um desvio da naturalidade, os cegos não são considerados parte da criação divina, tendo sido excluidos do primeiro fiat lux.

Ainda no primeiro grupo dos cegos de nascença, pode-mos perceber uma diferença que para nós terá fundamental importância na questão da visibilidade e da visão, que é a presença da fé, isto é, da visão divina. Os cegos que têm fé conseqüentemente conseguem ver com os olhos da alma e a eles será dada a possibilidade da recuperação da visão física por milagre divino, como um bônus ou recompensa pela sua crença. Diferentemente dos cegos representados por Brueghel e Baudelaire, a eles é garantido o que pode-ríamos chamar de intercâmbio ótico, como podemos ver nas várias passagens dos evangelhos de Mateus (9:27-31; 20:29-33), Marcos (8:22-26; 10:46-52) e Lucas (18:35-43), nas quais Jesus restabelece a visão aos cegos pelo fato de eles, ao contrário dos fariseus, verem com os olhos da fé, o que os habilita à cura divina apesar de não possuírem a visão física, natural. Deste restabelecimento da visão natu-ral pela fé dá testemunho a narrativa do cego Bartimeu, no Evangelho de Marcos (10:46-52):

Chegaram a Jericó. Ao sair de Jericó com seus dis-cípulos e grande multidão, estava sentado à beira do caminho, mendigando, o cego Bartimeu, filho de Timeu. Quando ouviu que era Jesus, o Nazareno, que passava, começou a gritar: “Filho de David, tem compaixão de mim!” E muitos o repreendiam para que ele se calasse. Ele, porém, gritava mais ainda: “Filho de David, tem compaixão de mim!” Detendo-se, Jesus disse: “Chamai-o!” Chamaram o cego, dizendo-lhe: “Coragem! Ele te chama. Le-vanta-te”. Deixando o manto, deu um pulo e foi até Jesus. Então Jesus lhe disse: “Que queres que te faça?” O cego respondeu: “Rabbuni! Que eu possa ver novamente!” Jesus lhe disse: “Vai, tua fé te sal-vou”. No mesmo instante ele recuperou a vista e o

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seguia no caminho.

Vimos que a questão da visibilidade/visão se fundamenta no paradoxo da visibilidade e que este pressupõe a distin-ção clara e hierarquizada entre dois tipos de visibilidade e de visão. Esta dualidade, característica fundante do pensa-mento ocidental, implica não somente a distinção e a valo-ração de cada lado, mas sobretudo o fato de que deve haver necessariamente uma escolha por um dos lados e esta escolha terá o peso e o valor da verdade. Deve-se, então, saber diferenciar e escolher entre o visível verdadeiro/visão verdadeira e o visível falso/visão falsa, saber reconhecer a essência e não se deixar enganar pelas falsas aparências. O erro na escolha ou a indecisão entre as duas formas de visibilidade/visão podem ter consequências funestas para quem escolhe e para os envolvidos, como foi o caso de Is-sac, que por deficiência de visão – pois seus outros senti-dos funcionavam bem – abençoa a Jacó no lugar de Esaú, fazendo com que este último, mesmo sendo o primogênito, tivesse que servir a seu irmão mais novo. (Gênesis 27).

Em resumo, se o platonismo e a metafísica, por um lado, enfatizam a visibilidade inteligível (a eidos ou forma ideal) e o Cristianismo, por outro, instiga a visão interior da fé invisível, ambos compartilham uma visão de mundo e uma epistemologia que hierarquiza o invisível em detri-mento do sensível e exterior.

John Milton, Breughel e Baudelaire, nos mostram com suas obras literárias e artísticas que a Literatura e a Arte têm tido a árdua tarefa de deslocar a axiologia que rege o olhar sobre a visibilidade e a visão para abrir outros possí-veis caminhos do pensamento sobre este tema. Um primeiro passo neste processo de deslocar o olhar da axiologia dos lugares comuns da visibilidade e da visão se dá justamente pelo fato de a Arte e a Literatura representarem estas ce-nas e imagens de visão e cegueira misturando os opostos e como que anulando os efeitos de sua oposição.

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Em contrapartida à Filosofia e ao Cristianismo, a Li-teratura traz, desde Homero, a visibilidade como um sinal de Caim, como um estigma que a marca indelevelmente, sobretudo pelo fato de esta visibilidade ser dupla: por um lado a Literatura aciona em sua linguagem uma visibilidade que poderíamos chamar de “própria”, que se concretiza nas imagens, símbolos, metáforas, ecfrases, descrições, cenas e personagens que povoam os textos literários; por outro, a Literatura exibe a visibilidade da escrita, fato que a pro-xima tanto quanto a distancia da Filosofia e do Cristianismo, como já dissemos anteriormente.

Um dos mais clássicos exemplos da visibilidade “pró-pria” da linguagem literária é famosa descrição do escudo de Aquiles no Canto XVIII da Ilíada (2009), na qual Homero descreve o trabalho do artesão Vulcano e os elementos vi-suais fundamentais da cosmogonia homérica por ele utiliza-dos para confeccionar o escudo:

- Pôs VulcanoEm vale ameno cândidas ovelhas,E redis e tapigos e tugúrios. Coreia ali gravou, qual na ampla cnossoFez Dédalo à pulcrícoma Ariadna.Moços e virgens palma a palma enlaçam.

5. UMA eScRItA MAIS qUe VISíVel

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A terra pulsam: tênue linha as veste,Veste-os guapo tecido azeitonado;Elas flóreas grinaldas, eles trazemÁureos alfanjes em talins de prata.Com mestra e leve planta, ou já discorremQual do oleiro tocada ao móbil tornoRápida volve a roda, ou já desfilam [...]

Outra forma de manifestação da visibilidade que é peculiar e fundamental à linguagem literária – além da capacidade descritiva a que nos referimos no parágrafo anterior – é a sua capacidade, que as ciências da linguagem, sobretudo a Retórica, classificam como “figuras” (os tropos, tais como metáforas, metonímias, sinédoques, ícones e índices), con-siderando-as, grosso modo, como desvios do uso padrão. Preferimos pensar nesses usos da linguagem como forma-dores e inseparavelmente misturados ao uso padrão, sendo “padrão” um termo que denota muito mais um esforço con-ceitual do que uma realidade evidente.

Diferentemente do caso anterior (a descrição do es-cudo de Aquiles), em que a ecfrase dita o desenvolvimento temporal da linguagem na prosa para possibilitar o efeito visual, as imagens no texto literário se dão por uma espé-cie de suspensão do tempo em favor de uma espacialidade imagética, que direciona a linguagem para as cercanias da poesia ou, pelo menos daquela linguagem fundante que Heidegger chamou de Poesia ou Dichtung. Como exemplo eloquente da imagética que carateriza a linguagem no seu uso literário lembramos os primeiros versos do poema “A lição de poesia”, de João Cabral de Melo Neto, poeta que foi marcadamente influenciado pela pintura, sobretudo a surrealista, e que soube trazer esta influência para o domí-nio da linguagem, explorando a carga visual e simbólica das palavras:

Toda a manhã consumidacomo um sol imóveldiante da folha em branco:

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princípio do mundo, lua nova.Já não podias desenharsequer uma linha;um nome, sequer uma flordesabrochava no verão da mesa:nem no meio-dia iluminado,cada dia comprado,do papel, que pode aceitar,contudo, qualquer mundo.

Um terceiro tipo de manifestação da visibilidade “própria” que a linguagem literária traz como sinal indelével é a repre-sentação do que chamaremos de “cenas de visibilidade”, isto é, imagens, motivos, narrativas, personagens, temas e topoi diretamente relacionadas à questão da visibilidade, tais como a visão e a cegueira, a luz e a escuridão, a escrita e a leitura, os olhos e os livros, apenas para citar as cenas mais conhecidas. Este tipo de visibilidade é tão recorrente na literatura – do personagem Tirésias de Homero e Sófo-cles ao Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago – que poderíamos mesmo dizer que esta visibilidade é constitutiva da linguagem literária, uma visibilidade de que a literatura não pode prescindir.

A visibilidade “própria” da linguagem literária, nas suas diferentes formas de manifestação, embaça e emba-ralha os contornos da separação entre o sentido “próprio” e o figurado da linguagem que, historicamente serviu de base à oposição entre o discurso filosófico (ou, mais generica-mente, científico) e o literário. Aquilo que, a partir da Poética de Aristóteles, se chamou de “próprio”e “figurado”, aquilo que está na base mesma de sua separação não é, ao fim e ao cabo, senão um tropo pelo qual busca-se nomear o original, primeiro e puro, em oposição ao derivado, impuro, como explica Derrida: “A metafísica – mitologia branca que reúne e reflete a cultura do Ocidente: o homem branco toma a sua própria mitologia, indo-européia, o seu logos, isto é o mythos do seu idioma, pela forma universal do que deve ainda querer designar por razão” (Derrida 1991, p. 253).

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Mas além da sua visibilidade “própria”, a Literatura também também exibe uma visibilidade que ela comparti-lha com a Filosofia e com o Cristianismo, a visibilidade da escrita. Na história ocidental, a escrita foi rebaixada em fa-vor da fala, considerada como expressão e presença de um sentido primeiro, imediato, ideal, a partir do qual a escrita se apresenta como secundária, imitativa e infiel, como se pode ler em muitos dos diálogos platônicos. Porém, mais do que rebaixamento, a escrita sofre historicamente um recalque do seu caráter visível, isto é, além de imitativa e secundária em relação à fala, a escrita traz uma face visí-vel que a aproxima das artes visuais, aspecto este bastante explorado pela literatura e pelas artes visuais em diferentes períodos e regiões e que tem, na publicação de Um lance de dados, poema no qual a visualidade da letra é trabalhada por Mallarmé a ponto de produzir sentidos que integram a leitura ao olhar que perscruta, um de seus pontos mais altos. A axiologia que rege a oposição entre fala e escrita e a hierarquização desta oposicão – sistema que Derrida, no esteio de Heidegger e Nietszche, chamou de metafísica ocidental – subordina a escrita à lógica da mimese e pro-voca a divisão entre uma “boa” e uma “má” escrita, isto é, uma “escrita” da alma e outra do mundo, uma invisível, a outra visível (Derrida, 1992b). Porém, como bem aponta Derrida, assim como no heliotropo que fundamenta a metá-fora conceitual do sol a que nos referimos anteriormente, o paradoxo é que é a escrita sensível que serve de base para a inteligível:

O paradoxo a que devemos estar atentos é então o seguinte: a escritura natural e universal, a escri-tura inteligível e intemporal recebe este nome por metáfora. A escritura sensível finita, etc., é desig-nada no sentido próprio; ela é então pensada do lado da cultura, da técnica e do artifício: procedi-mento humano, astúcia de um ser encarnado por acidente ou de uma criatura finita. (1973, p. 18)

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Portanto, a escrita no Ocidente traz o caráter duplo de re-baixamento em relação à fala e de recalque de seu caráter visível, fato que historicamente culminou no rebaixamenteo da Literatura tout court como um tipo de escrita não séria, um faz de conta ou um vale-tudo (Derrida, 1992a).

Ao longo de sua extensa obra, Jacques Derrida bus-cou sistematizar o pensamento ocidental sobre a escrita e demonstrar como este pensamento tem suas bases con-ceituais no platonismo e no Cristianismo, bases estas que apontam para a cena primária da “fundação” da escrita na Grécia de Platão e Sócrates e para a forma como a escrita é pensada a partir da teoria platônica dos dois mundos, a que já nos referimos anteriormente ao discutir a questão da visibilidade e sua fundamentação nas tradições de pensa-mento platônica e cristã (cf. Parte III). O que o filósofo de-monstra é que entre a idealidade das idéias e a materiali-dade da escrita sempre houve, apesar da epistemologia que explica e regula a diferença entre elas, sua contaminação e seu contágio já nas origens.

Sua reflexão sobre a escrita propõe um pensamento que desconstrói a oposição entre a idealidade da idéia – em sua manifestação como essencialidade da voz, da presença plena que antecederia toda forma de representação – à materialidade do signo, sua posterioridade e artificalidade, como diz o filósofo em A diferença (1991a, p. 36):

A ordem que resiste a esta oposição, e resiste-lhe porque a sustenta, anuncia-se num movimento de diferança (com um a) entre duas diferenças ou en-tre duas letras, diferança que não pertence nem à voz nem à escrita no sentido corrente e que se mantém [...] entre a palavra e a escrita, mais além também da familiaridade tranquila que nos liga a uma e outra e nos apazigua às vezes na ilusão de que elas são coisas diferentes

(Itálicos do autor)

Ao questionar, em sua obra, a origem mesma da repressão

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da escrita e a autoridade da fala “plena”, Derrida percebe que a teoria mimética platônica fornece o paradigma teó-rico para a separação entre a filosofia, descrita por Sócrates como o modo de conhecimento que “traz o olhar constante-mente posto em coisas fixas e imutáveis que [...] obedecem em tudo a uma ordem racional [...]” (1996, p. 142) e a Arte, definida por Platão como um tipo de mimese que

[...] implanta um regime perverso na alma de cada um, condescendendo com o elemento irracio-nal que nela existe, elemento que não distingue o grande do pequeno, mas encara as mesmas coisas às vezes como grandes e às vezes como pequenas, criando aparências inteiramente desli-gadas da realidade.

Como bem observa Derrida, esta bipartição original da mi-mese, da mesma forma que o heliotropo, de que falamos anteriormente, demonstra já uma complexidade nesta cena de origem da escrita e da visibilidade na cultura ocidental que torna bastante difícil, contrariamente ao que desejava Platão, separar a “boa” da “má” mimese, a “boa” da “má” escrita, assim como a “boa” da “má” visibilidade:

O que importa para os nossos propósitos aqui é esta duplicidade “interna” da mimeisthai que Pla-tão quer dividir para separar a mimesis boa (que reproduz fielmente e verdadeiramente mas que, porém, já é ameaçada pelo simples fato de sua duplicação) da má, que deve ser refreada, como a loucura… e o jogo (danoso). (1992b, p. 134)

O valor, então, da escrita, como de toda forma de duplica-ção mimética, não se encontra nela mesma mas a ela se agrega de acordo com a natureza do seu modelo e a escrita será boa se mimetizar o ideal, mas se reproduzir o mundo (que já é uma duplicação do mundo ideal) será produtora de simulacros ou fantasmas (A República, Livro X, 598 a-e), o

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que demonstra que Platão condena a escrita tanto por sua materialidade/visibilidade quanto pela sua capacidade de produzir visibilidade por meio das metáforas, imagens, tro-pos e topoi. A escrita, portanto, deve ser contida, regulada e, até mesmo, controlada, para que não dissemine simulacros, ameaçando, desta forma, a verdade.

O controle que Platão propõe que seja exercido sobre a escrita fundamenta a tradição ocidental de repressão do visível e de valorização do ideal e do transcendente, tradi-ção esta que fundamenta não somente o discurso filosófico, mas também o dogma do Cristianismo que, de maneira se-melhante, também divide a escrita entre a “boa” – a dos evangelhos, dos santos e dos textos religiosos autorizados pela autoridade, seja ela papal ou das escrituras sagradas – e a “má”, aquela que leva à idolatria e à adoração das coi-sas do mundo, como vemos em Coríntos 2 (3:3-6), quando o apóstolo Paulo explica a natureza da verdadeira aliança com Deus. Não é pouca a semelhança com a escrita da alma platônica:

Evidentemente, sois uma carta de Cristo, entre-gue ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, em nossos corações.

[...]Foi ele [Deus] quem nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova, não da letra, e sim do Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comu-nica a vida. (ênfase minha)

Se a Literatura compartilha com a Filosofia e o Cristianismo o fato de serem experiências do mundo e modos de conhe-cimento fundamentalmente escritos, delas se separa pelo fato de, diferentemente das duas últimas, produzir uma es-crita que não almeja a verdade ideal ou a fé, mas que se rea-liza como uma experiência-limite do mundo, da verdade e da fé, mesclando estas instâncias em uma forma de linguagem

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que concretiza as experiências dos limites na sua própria materialidade/visibilidade. Sendo o espaço onde diversos saberes e experiências do mundo se encontram e onde ver-dade e fé se misturam às imago mundi para formar aquilo que Foucualt, no Prefácio à A arqueologia do saber, chama de heterotopias, discursos que derivam das ordens estabe-lecidas do saber mas fazem com que a ordem mesma, a “própria” ordem – o “próprio” da ordem – funcione na chave do outro, diferentemente do seu funcionamento ortodoxo. Foucault investiga este funcionamento heterodoxo da ordem por meio de um conto de Borges e da “enciclopédia chi-nesa” que o escritor argentino descreve, mostrando como, ao contrário da utopias, que “consolam”, que conduzem a um “espaço maravilhoso e liso”, a “cidades com vastas ave-nidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico”, as heterotopias (1990, p. XII):

[...] inquietam, sem dúvida porque solapam secre-tamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as frases — aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos “ (ao lado e em frente umas das ou-tras) as palavras e as coisas. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamen-tal da fábula; as heterotopias (encontradas tão fre-qüentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; des-fazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases. (1990, p. 7-8)

Como espaço das heterotopias ou de pluralização da ver-dade pela co-habitação de vários discursos e saberes, a Literatura põe em circulação uma consciência de sua du-pla visibilidade como imagética e escrita, trazendo à tona e acenando esta visibilidade reprimida com imagens de

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diferentes tipos que transitam entre os mundos sensível e inteligível, criando uma espectralidade que embaralha as identidades do visível e do invisível, como o faz o espectro do pai de Hamlet ao voltar ao mundo dos vivos sem, no en-tanto, abandonar o mundo das almas. Como o espectro do pai de Hamlet, a Literatura compartilha dos mundos visível e invisível, da letra e do espírito, sem pertencer totalmente a qualquer uma destas ordens, o que faz com que seu acon-tecimento seja sempre um evento imprevisível que põe em cena um outro não classificável, como dirá Derrida em Es-pectros de Marx a respeito desta espectralidade da escrita literária: “O que se passa entre dois, e entre todos os ‘dois’ que se queiram, como entre a vida e a morte, só há-de-valer de algum fantasma. “ (1994, 10-11 – grifos do autor).

Compartilhando da letra e do espírito mas vagando entre estas duas lógicas que norteiam a Filosofia ocidental e o Cristianismo, a escrita literária dá à luz várias anorma-lidades ou monstruosidades, “figuras teo-zoo-antropomór-ficas, transplantes ou enxertos proliferantes e cambiantes, híbridos inclassificáveis dos quais as Górgonas e os Ciclo-pes são apenas os exemplos mais conhecidos (DERRIDA, 1993, p. 56), uma literatologia, para lembrar o Livro dos seres imaginários de Borges, na qual os demônios saem à rua em festa, como na walpurgisnacht goetheana, em que um dos personagens do sabbath, Proctofantasmista, diz em tom jocoso aos seus convivas: “Gente maldita, que ousadia a vossa!/Não se vos provou já que nunca espírito/pode aguentar-se em pé? Sais-me agora/ até dançantes!” (Cena III e seguintes).

Retornando à questão que nos propusemos no início, qual seja, tratar a visibilidade como uma questão e instigar os desdobramentos desta perspectiva, podemos dizer que tal procedimento é uma das linhas mestras do pensamento de Jacques Derrida, um filósofo franco-argelino que escreve a partir da Filosofia sem jamais ter estado fora da Literatura - o dentro e o fora de um texto, não por acaso, é um dos pon-tos fundamentais da desconstrução derridiana. No “entre” Literatura e Filosofia que a reflexão derridiana abre como

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caminho para o pensamento – estratégia bem aprendida com Heidegger (2003, p. 152 at passim) –, Derrida instiga a via dupla deste termo: tanto no voltar-se do pensamento sobre si mesmo quanto na sua exposição na theoria, que entre os gregos antigos tinha o sentido de contemplação e percepção, ou seja, Derrida instiga a reflexão sobre a visibi-lidade reprimida da escrita e da cultura7 por meio de uma prática de escrita – ou escritura, como a denomina o próprio Derrida – que herda e desconstrói, no mesmo gesto textual, a axiologia sobre a visibilidade iniciada com o eidos platô-nico e a imago latina. Trilhar este caminho da reflexão pelo “entre” implica em desalojar as oposições entre a Filosofia, o Cristianismo e a Literatura e retirar o pensamento de seu locus amoenus nas tradições filosófia e judaico-cristã, como explica Heidegger em “A essência da linguagem”, ao dizer que poesia e pensamento – e, acrescentaríamos, fé – se pressupõem e se cruzam, pois (2003, 133):

[...] precisam um do outro ao extremo, precisam de cada um em sua vizinhança. Qual o campo em que essa vizinhança tem seu âmbito próprio, isso a poesia e o pensamento terão de definir cada um a seu modo, não obstante ambos se encontrarem no mesmo âmbito. Como há séculos nos alimentamos do preconceito de que o pensamento é coisa da ratio, ou seja, do cálculo em sentido amplo, falar sobre a vizinhança de pensamento e poesia pa-rece sempre muito suspeito.

A lição do “entre” que Derrida aprende de Heidegger se torna uma linha mestra da desconstrução e é estrategica-mente instigando os desdobramentos deste “entre” (entre

7 Não entraremos aqui no importante debate sobre o caráter eminentemente visual da cultura contemporânea, para o qual sugerimos a leitura do livro Iconology, Image, Text, Ideology, de W. J. T. Mitchell (The University of Chicago Press, 1986). Mesmo quando afirma, alhures (1994) que a nossa época vive o seu “momento pictórico” (“pictorial turn”), toda a sua argumentação reforça a leitura de Derrida do rebaixamento da visibilidade na cultura ocidental.

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Filosofia e Literatura, entre Literatura e Fé, entre Filosofia e Fé, apenas para citar os desdobramentos que nos inte-ressam diretamente neste trabalho) que Derrida conduz o pensamento aos seus momentos aporéticos, aos impasses, tradicionalmente pensados como contradições, mas explo-rados por Derrida como instâncias em que o pensamento precisa se renovar justamente pelo transbordamento de suas margens.

Colocar a visibilidade como questão eminentemente filosófica implica em uma epistemologia que pressuponha a distinção clara entre discurso teórico – sua neutralidade e objetividade – e seu objeto, como o fizeram Descartes e Kant, apenas para citar alguns dos textos/filósofos canô-nicos na questão da visibilidade. Uma primeira dificuldade desta redução da questão da visibilidade a um campo de saber específico, o filosófico, é o fato de que o discurso filo-sófico é, antes de mais nada, um discurso escrito e, portanto portador da visibilidade recalcada da escrita. Uma segunda dificuldade seria o fato de uma outra visibilidade constitutiva da escrita também ser tão recalcada quanto a primeira, qual seja a visualidade da linguagem escrita (metáforas, ícones verbais, índices, exemplos, mitos), impossível de ser contida ou controlada nos discursos de cunho racionalista, como já apontamos a respeito do uso dos mitos nos diálogos platô-nicos (Santos, 2000).

Tratar a visibilidade somente no âmbito da fé cristã, por outro lado, também implicaria em uma redução que, em última instância, levaria às mesmas aporias do discurso filosófico, isto é, chegaríamos à conclusão de que o Cris-tianismo, apesar de invocar sempre a instância pessoal e subjetiva da fé, é uma religião da escrita, dos mandamentos que Moisés recebe de Deus e escreve na pedra. Também não será necessário examinar a Reforma Protestante e a tradição de apego ao Livro Sagrado para perceber o quanto o Cristianismo é uma religião da escrita, bastando para tal atentarmos ao relato contido no Êxodo (34:1) sobre a re-escrita dos mandamentos em pedra, após a quebra das pedras originais: “Então disse o SENHOR a Moisés: Lavra

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duas tábuas de pedra, como as primeiras; e eu escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que tu quebraste”.

Por outro lado, tratar a visibilidade como uma carac-terística exclusiva e particular da Literatura, como foi feito historicamente, implica em aliená-la do conhecimento e da verdade, reiterando o divórcio histórico entre arte e conhe-cimento. De Homero a Kafka, Shakespeare a Beckett, Safo a Eliot, a Literatura tem mostrado seu potencial como forma de conhecimento do mundo que traz a grande vantagem em relação à Filosofia e ao Cristianismo, de ser um conhe-cimento inclusivo, abrangente e democrático, e não foram poucos os filósofos e pensadores que, de Da Vinci a Der-rida e Blanchot, pensaram a Arte e a Literatura como uma forma de conhecimento que, diferentemente da Filosofia ou do Cristianismo, permite imaginar aquilo que é possível, e não somente o que é real, como bem ensinou Aristóteles na Poética ao descrever a verossimilhança.

Em Memoirs of the Blind, The Truth in Painting e outros livros e artigos que envolvem a questão da visibilidade, Der-rida busca criar um caminho possível para um pensamento sobre a visibilidade que inclua as tradições filosófica e Cristã sem se restringir a elas, num gesto que poderíamos chamar de literário, embora seu texto não seja propriamente literá-rio ou filosófico. Com base nesses textos do filósofo franco--argelino, pode-se perceber que se na Filosofia a visibilidade é negada, recalcada em favor do logos abstrato e invisível, e no Cristianismo é recusada como idolatria, na Literatura ela é fundamental e constitui um modo de conhecimento do mundo. Um possível caminho para o pensamento da visibi-lidade que desejamos instigar neste texto sob a inspiração derridiana seria, então, discutir o paradoxo da visibilidade e explorar as consequências desta discussão, tais como as duas formas de visibilidade e visão nas tradições filosófica, cristã e literária.

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Gostaríamos, agora, de discutir alguns pontos a res-peito da visibilidade e da visão ou, mais especificamente, das duas formas de visibilidade e visão que Derrida deno-mina as duas lógicas da visibilidade e as duas hipóteses da visão, sugeridos em diferentes textos e mais especifica-mente tratados no livro Memoirs of the Blind: the Self-Por-trait and Other ruins (1993). Porém, uma rápida digressão sobre a história ocidental da visibilidade nas artes visuais e na escrita será de considerável utilidade.

A primeira formulação das relações entre escrita e ar-tes visuais acontece no ut pictura poesis de Simônide Ceos e Horácio, que afirmaram ser a poesia uma pintura em pa-lavras e a pintura uma poesia muda. Leonardo Da Vinci, in-formado pelo humanismo renascimento italiano, transforma o tropo horaciano em paragone entre as artes da pintura e da poesia, decidindo em favor da virtù visiva, pois a pintura tem a vantagem de restituir o objeto diretamente aos olhos, sendo, por esta razão, equiparada a uma ciência, enquanto a linguagem se perde na confusão babélica das diferentes línguas (DA VINCI, 2000, p. 53 et passim).

Já no século XVIII, os iluministas defenderam a supe-rioridade da escrita em razão de sua universalidade e neu-tralidade, que permite aos homens a passagem do mito à razão à medida que as sociedades evoluíam por meio de leis

6. O VISíVel pROdUz cegUeIRA

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e do conhecimento. Um dos defensores mais importantes da superioridade da escrita neste cenário setecentista é o teórico e dramaturgo alemão W. G. Lessing que, em 1766 no seu famoso Laoconte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, defende a poesia pelo fato de esta restituir a imagem não diretamente, mas de forma imaginativa, arte em que não é igualada pela pintura (LESSING, 1998).

Esta reconstrução bastante esquemática da história das relações entre as “artes irmãs” da poesia e da pintura nas formulações de Horácio, Da Vinci e Lessing, teve por ob-jetivo mostrar que não é somente a capacidade da pintura ou da poesia de representar fielmente o real que está em jogo, mas a natureza e o status da representação e suas linguagens. Nos interessa sobremaneira a percepção que podemos extrair desta formulações de que a poesia e a pin-tura ou, em termos que nos interessam mais diretamente, a escrita e a imagem compartilham algo para além de suas di-ferenças formais ou conteudísticas, pois se a poesia é uma pintura em palavras da mesma forma que a pintura é um poema em imagens, não se pode dizer que as duas artes sejam totalmente estranhas uma à outra.

Derrida retoma os fios desta história por meio de uma reflexão sobre a visibilidade no Ocidente, suas origens e des-dobramentos religiosos, filosóficos e literários, mostrando como esta questão se fundamenta em duas lógicas que se implicam mutuamente. A primeira delas, a “lógica da trans-cendência” (1993, 41 et passim), se refere ao fato de que na cultura ocidental a transcendência é pensada como con-dição e fundamento de qualquer forma de existência, como causa primeira, incondicionada e invisível (o Ser, Deus, O Espírito) de todas as coisas e seres. De acordo com esta lógica e retomando o heliotropo platônico, o sol é uma es-sência invisível a partir da qual se forma o conceito de sol que, por sua vez, será a matriz do sol real. A lógica da trans-cendência implica em que para de fato enxergarmos o sol é necessário transcender o sol real e deixar que a essência do sol – o sol inteligível – guie a nossa visão. É esta a lógica que fundamenta a nossa concepção da realidade como per-

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passada por existência superior, transcendental, e faz com que a visão que temos do mundo seja preterida por algo que não vemos mas que acreditamos – com a crença que funda tanto a ciência quanto a fé (DERRIDA, 1996) – estar lá, no fundo e no âmago do real. O mundo e o real são, do ponto de vista da lógica da transcendência, sombras, repetições mal formadas e cópias imperfeitas desta essência.

Assim define Derrida esta lógica da transcendência (1993, p. 41, minha tradução):

A primeira lógica (a lógica da transcendência) seria a condição invisível da possibilidade do desenho8, o desenho mesmo, o desenho do desenho. Ela nunca seria temática. Ela nunca poderia ser pos-tulada ou tomada como objeto representável do desenho.

A segunda lógica da visibilidade, a lógica do sacrifício, é aquela que diz respeito à dimensão fenomênica da visibi-lidade, a forma com que as coisas e os objetos do mundo se dão à representação e ao conhecimento, estes últimos formados a partir da percepção das coisas e da concepção de que a percepção pode nutrir o verdadeiro conhecimento do mundo.

O evento sacrificial, então, é temático, produz as ima-gens e representações de todas as naturezas e torna visí-vel a essência da cada ser, de cada coisa, sua identidade mesma por meio da transcendência do real em direção ao essencial, em direção ao invisível, o que nos permite dizer que as coisas se tornam visíveis somente à medida em que manifestam a sua essência invisível, razão pela qual Derrida diz que a lógica sacrificial reflete a impossibilidade da visi-bilidade. Nas palavras de Derrida (1993, p. 41, et passim),

8 No texto original, Derrida faz referência aos desenhos dos cegos, no duplo sentido de desenhos sobre cegos e do desenho que, como qualquer visível, traz a marca da cegueira como condição fenomenológica e existencial. Este segundo aspecto do desenho é que nos permite trazer a discussão de Derrida para o âmbito da visibilidade tout court.

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[...] o evento sacrificial, aquilo que vem aos olhos ou encontra os olhos, a narrativa, o espetáculo ou representação do cego (que) refletiria, ao se tornar o tema do primeiro, por assim dizer, esta impossi-bilidade. (minha tradução, ênfase do autor)

A lógica do sacrifício, então, é aquela que reflete o paradoxo da lógica da transcendência, fazendo com que toda forma de visibilidade seja uma manifestação da lógica da trans-cendência, desta impossibilidade do visível na sua origem ou, jogando com as palavras de forma provocativa, é a lógica do sacrifício que torna possível a impossibilidade do visível.

As duas lógicas da visibilidade só podem ser pensadas a partir da suposição da separação radical entre o visível (que não pode ser restrito ao material, uma vez que a pró-pria condição da visibilidade, a luz, é invisível, como bem lembra Merleau-Ponty em O olho e o espírito) e o invisível que fundamenta tanto a tradição filosófica quanto a cristã. Porém, se pensadas como questão, as duas lógicas da visi-bilidade conduzem à constatação de que sua separação só é possível pelo de já ter sempre havido entre elas contato e contaminação. Sua implicação mútua nos mostra que terá sempre havido mistura e contato entre as ordens do visível e do invisível, sendo o que chamamos de visível formado por rastros, traços, espectros e toda a sorte de habitantes das regiões intermediárias entre os dois mundos com os quais nem sonha a nossa vã filosofia, a lembrar a conhecida pre-leção de Hamlet.

Pensar a visibilidade como questão, então, significa aprofundar o paradoxo da visibilidade e pensar a origem sem origem e sem lugar do visível, como uma impossibili-dade que se realiza no visível, o que nos leva a pensar no vi-sível como a possibilidade (evento sacrificial) do impossível (a pureza da essência do visível).

Mais do que traços e rastros, podemos dizer que o vi-sível é a ruína de algo que jamais terá sido inteiro, completo ou original, uma ruína que não é produzida a posteriori como

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uma falha ou incompletude do visível, mas “...que perma-nece produzida, já desde a origem, pelo evento e estrutura da obra” (DERRIDA 1993, p. 65). O visível se produz, de acordo com estas duas lógicas, como a manifestação imperfeita e imprópria da sua essência invisível, como uma ruína que é condição de qualquer forma de visibilidade, fazendo com que a relação entre visível e o real seja sempre um retorno fantasmático da imagem sobre a coisa. Qualquer represen-tação verbal ou visual que pretenda realizar adequatio entre o visível e a realidade, terá então um caráter inegável de me-mória ou arquivo desta ruína congênita e será a testemunha de uma impossibilidade, a impossibilidade da visibilidade. Podemos concluir que o visível é a ruína sobre a qual só poderá existir memória, isto é, representações. Ruína e me-mória fazem parte da semântica da visibilidade e nomeiam as experiências da visibilidade e do visível.

A desconstrução do paradoxo da visibilidade acionado pelas suas duas lógicas se fará por meio de uma observa-ção tão simples quanto fecunda: trata-se do fato de que para ser totalmente estranha, estrangeira à visibilidade, a invisibilidade deverá já ter sempre habitado a visibilidade, como afirma Derrida (1993, p. 51):

Para ser absolutamente estrangeira ao visível e até mesmo ao potencialmente visível, à possibili-dade do visível, esta invisibilidade habitará ainda o visível, ou melhor, virá assustar esta visibilidade a ponto de se confundir com ela, para assegurar, a partir do espectro desta impossibilidade mesma, seu mais próprio recurso.

Esta diferença entre o visível e o invisível será pensada por Merleau-Ponty como o domínio histórico nas ciências da razão, levando o filósofo a concluir que a percepção que temos do mundo não coincide com a idéia que dele temos, afirmando, assim como o faz Derrida, a fantasmagoria da representação como desejo de adequação (2000, p. 59):

Se devo existir em ek-stase no mundo e nas coisas,

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é preciso que nada me retenha em mim mesmo longe delas, nenhuma “representação”, nenhum “pensamento”, nenhuma “imagem”, nem mesmo essa qualificação de “sujeito”, de “espírito” ou de “Ego”, pela qual o filósofo me quer distrair absolu-tamente das coisas, mas que no entanto se torna, por sua vez enganadora, já que como toda desig-nação, acaba por cair no positivo, por reintroduzir em mim um fantasma de realidade e por fazer-me crer que sou res cogitans – uma coisa muito par-ticular, inapreensível, invisível mas, ainda assim, coisa.

Assim como Derrida, Merleau-Ponty também vai concluir que a invisibilidade não é estranha ao visível, mas o habita desde sempre como condição de sua existência, embara-lhando, por consequência, as lógicas da visibilidade e da visão (Idem, p. 224):

Quando digo que todo visível é invisível, que a percepção é impercepção, que a consciência tem um “punctum caecum”, que ver é sempre ver mais do que se vê – é preciso não compreender isto no sentido da contradição: - É preciso não imaginar que ajunto ao visível perfeitamente definido como em-Si um não-visível (que seria apenas ausência objetiva), isto é, presença objetiva alhures, num alhures em si – É preciso compreender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não--visibilidade [...]

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7. VeR é deVeR (VeR)

O segundo ponto que gostaríamos de desenvolver, após esta breve apresentação da questão da visibilidade, é o que Derrida chama de as duas hipóteses da visão, que po-demos resumir esquematicamete como 1. a representação do visível em sua origem traz mais débito do que fidelidade e 2. o movimento de saldar o débito com a verdade está na origem de toda representação, do alfabeto escrito à arte pictórica.

O débito na origem do visível está enraizado na tradi-ção judaico-cristã tanto quanto na metafísica e diz respeito à natureza do visível, ou seja, a visibilidade denota uma perda do ideal ou da fé, uma destituição já na origem de todo e qualquer visível, que pode ser pensada por meio do tanto do paradigma cristão da queda bíblica quanto da plasma-ção do mundo pelo demiurgo platônico: em ambos os casos trata-se da perda de luz eterna, que é divindade ou essência ideal.

A queda/perda é sempre uma queda para o visível, para o mundo que se vê, uma vez que o divino e o ideal não podem ser vistos com os olhos mas por meio de uma visão interna (como no caso dos santos, profetas ou exege-tas cristãos). O débito genético da visibilidade em relação ao ideal e à fé nos parece indicar que mais do que uma questão de percepção visual, a visibilidade é a “observação

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da lei além da visão, da organização da verdade junto com o débito, da organização da verdade do débito” (DERRIDA 1993, 29). É com a verdade, então, que a visibilidade e a visão têm o seu débito genético, o qual deve ser saldado se-gundo as leis do conhecimento e da fé, numa ordem que faz do débito e do pagamento uma restituição da verdade a um sujeito primeiro, primordial, um pai simbólico que é a origem fantasmal de toda lei, como observa Freud em Moisés e o monoteísmo.

A economia desta relação que poderíamos chamar de fiduciária na origem do visível e da visibilidade sobrede-termina os discursos da religião, da Filosofia e até mesmo da crítica de arte, como bem demonstra Derrida (1987) a respeito da polêmica Shapiro-Heidegger sobre as pinturas do par de botas do camponês, de Van Gogh. O que Derrida aponta nesta polêmica é que o movimento de restituição se dá primeiramente entre a representação e a coisa, pois é ne-cessário “abandonar um débito mais ou menos fantasmagó-rico [e] restituir as botas, retorná-las a seu dono por direito” (p. 258), isto é, o débito primeiro é da representação com a coisa. Em seguida, a restituição se dá entre a coisa (com a sua representação já idealmente ajustada a si) e um sujeito, movimento que se torna possível por meio da propriedade, pois “[...] a restituição reestabelece (a verdade), por direito ou propriedade, colocando o sujeito novamente em sua ins-tância, em sua instituição” (261) [ênfase do autor, minha tradução], isto é, a restituição é feita a um “sujeito que diz eu” (Idem, Ibidem). Ao substituir o termo mais conhecido, mimesis, por restituição, com suas conotações econômicas, legais, religiosas e simbólicas, Derrida enfatiza o débito que fundamenta a conversão da imagem ideal (eidos) em con-ceito, em realidade e, por fim, em representação, na teoria platônica do conhecimento (Platão, 1996, Livro VII). O último passo desta restituição se dá do sujeito para com a verdade, seja ela adequação ou revelação (DERRIDA, op. cit., p. 318):

Restituir (“returning”) terá maior abrangência [por-tée] nesta discussão...se aqui se trata se saber

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a quem e a que certas botas, e talvez quaisquer botas em geral, retornam. A quem e a que, em consequênia, deve-se restitui-las, devolvê-las, para quitar uma dívida.

[...] Há uma lei aqui [...] no contrato da verdade (“Eu te devo a verdade na pintura”), entre a verdade como adequação (de uma representação, aqui atributiva, da parte de Shapiro) e a verdade da presença desvelada (da parte de Heidegger). (tra-dução minha)

Van Gogh, Par de sapatos (1886)Disponível em: < wikipedia.org/wiki/File:VanGoghShoes1885.jpg>.

Acessado em 25 Setembro 2013.

Dissemos que a visibilidade é o débito originário cujo resgate orienta o conhecimento e a fé, agora é preciso dizer que este resgate da dívida passa necessariamente pela percepção, isto é, pela visão. No modo da “verdade” que orienta tanto a metafísica quanto o Cristianismo é a visão que reconduz as representações do visível à coisa e ao ideal, um retorno fantasmático, espectral, uma vez que a visão busca restituir

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um ideal que, como vimos, nada possui de completude ou pureza original, mas que é composto de rastros e ruínas de uma incompletude da qual a visão é testemunha involuntá-ria, e não mais um instrumento da restituição racional ou religiosa do saber ou da fé.

A lei que estabelece o débito original da visibilidade e a visão em relação ao real, ao conhecimento/fé e a um pai simbólico, débito que deve ser saldado com a verdade, estabelece, como vimos, a linhagem paterna que regula e regulamenta a visibilidade, de Isaac a Tirésias e Sansão, de Homero a Joyce, passando por todos os casos de perda e recuperação da visão no Velho e Novo Testamento. O débito na origem do visível e seu pagamento a um sujeito estabe-lece a visibilidade como um contrato entre sujeitos capazes de verdade (conhecimento e fé), cuja cláusula principal esta-belece que ver é saber ver e ver com fé, que estabelece que o débito na origem da visibilidade e da visão é com o pai. As tradições filosófica e cristã são as instâncias da cultura ocidental onde os pais reclamam, em nome da verdade, a dívida do visível. É assim que nos relatos bíblicos a recupe-ração da visão se dá pelo filho, luz real que reconduzirá à luz ideal do pai, como o filho Tobias em relação ao seu pai, Tobit, ou como Jesus, o filho de Deus, reconduzindo os cegos à luz do pai por meio da fé, como nos relatos bíblicos de cura na estrada de Jericó. O filho é a continuidade da ordem da luz, da visibilidade e da visão.

A lei que rege a visibilidade e a visão estabelece que, em primeiro lugar, devemos ver, devemos entrar na ordem da visibilidade e da visão, nos constituindo como sujeitos ca-pazes de verdade, como cidadãos ou cristãos. Em segundo lugar, devemos saber ver, isto é, para entrar na ordem da visibilidade e da visão devemos conhecer suas leis e prati-car o seu contrato, vendo o que todos vêm na mesma crença que fundamenta o saber e a fé.

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8. pRóteSeS OcUlAReS

Aprofundando ainda mais as duas lógicas da visão e sua inserção na ordem e na lei que regem a questão da visibilidade, chegamos à uma constatação central à esta questão: assim como a visibilidade, a visão também é di-vidida em interna e externa e, portanto, visão e olhos não são necessariamente a mesma coisa, eles se diferenciam radicalmente. Os olhos, testemunhas oculares da ruína na origem do visível, são o instrumento da visão externa, aquela da qual se deve desconfiar, aquela cuja finalidade primeira e única na axiologia filosófica e cristã é servir de instrumento para o pagamento da dívida do visível com o ideal e a fé. Os olhos devem ser neutros e cumprir seu de-sígnio de possibilitar o trânsito do humano com o ideal e a fé e os desvios desta função dão origem, como já dissemos, à teratologia que povoa a literatura e o imaginário ocidental desde os tempos de Parmênides.

Sendo instrumentos não essenciais à visão do ideal e da fé, os olhos também podem (se) desviar da ordem e da lei, induzindo ao erro e à perdição e podemos dizer que, as-sim como as lentes e outros instrumentos oculares, eles são próteses, acessórios cuja necessidade é, digamos, um mal necessário. A proliferação ocular (monóculos, binóculos, te-lescópio, microscópio, caleidoscópio, etc) que encontramos na cultura ocidental, do mesmo modo que as próteses subs-titutivas dos olhos para os cegos (as bengalas e as pontas dos dedos) atestam a dissociabilidade entre visão e olhos,

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reiterando a distinção que fizemos anteriormente entre a visão divina/intelectual e a física/natural.

Uma das representações mais inequívocas da dis-sociabilidade entre visão e olhos, que não deixa dúvidas quanto ao caráter protético dos olhos, são os cegos, como podemos ver nestes poucos exemplos da literatura clássica grega: Édipo, que fura os olhos para ver com os olhos da razão; Tirésias que, perdendo a visão por castigo de Hera adquire o dom da profecia pela piedade de Zeus; a Medusa, cujos olhos, carregados para longe de seu corpo por Perseu, ainda mantêm o poder de transformar em pedra quem para eles olhar, ou ainda Demócrito, que arranca os olhos para melhor pensar, como nos lembra o belo poema “Elogio da sombra”, de Jorge Luis Borges.

Disseminadas na Literaturam bem como na cultura popular, as estórias de cegueira e visão mostram que, tendo olhos mas não podendo enxergar e se valendo de próteses substitutivas dos olhos e da visão, os cegos constituem, na tradição ocidental filosófica e cristã, um estado de anorma-lidade, de violação da lei natural que faz deles testemunhos e produtos da queda bíblica. Avatares da queda original, só se recuperarão dela os cegos que forem tocados pela visão intelectual ou ungidos pela dádiva da profecia ou vi-são divina, casos em que logram saldar uma dívida genética na origem da visibilidade e da visão. A hipótese abocular (possibilidade de intercâmbio da visão física pela intelectual ou divina – que não é restrita aos cegos, mas que neles se faz mais evidente pela sua condição), iguala os olhos e os instrumentos de visão complementares (óculos) ou substitu-tivos (as bengalas e as pontas dos dedos) pelo seu caráter protético, permitindo concluir que a visão física ou externa pode ser considerada como um desvio da ordem natural da qual toda visibilidade física deriva (a visão interna – inte-lectual ou divina). Esta ordem natural e ideal estabelece a premissa de que a natureza invisível do conhecimento e da fé prescinde dos olhos, fazendo com que o débito na origem do visível seja pago em uma moeda diferente da material e a transação ocular se dê na dimensão filosófica/espiritual.

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Como próteses, os olhos perfazem uma transgres-são da normalidade que dá lugar a todo tipo de perversão, monstruosidade ou fetiche, como é o caso dos Ciclopes, das Górgonas (das quais já citamos a Medusa), do voyeurismo sadiano e da história do olho que a narrativa de Bataille ilustra tão bem9. O poema “Os cegos”, de Baudelaire, tam-bém delata a monstruosidade destes seres no paradigma metafísico, lembrando a obviedade de que eles não podem ver coisa alguma e, consequentemente, não podem se ver, o que nos leva à questionar se, não podendo ver ou se ver, os cegos podem se encaixar na filiação paterna que governa a lei da visibilidade. A resposta a este questionamento só pode ser negativa: não vendo ou não se vendo os cegos (so-bretudo os cegos de nascença, testemunhos da origem do visível) não têm noção da vergonha e do pecado que sua condição encerra, pois a cegueira, no paradigma metafísico--cristão, é uma violação da ordem natural passível de puni-ção, o que os torna seres diferentes e diferenciados. Sendo literalmente coetâneos da origem da própria visibilidade, sua existência denota uma falha original na naturalidade do modelo de visão, da legalidade da lei/ordem da visibilidade e da própria origem do visível.

O olhar que vê jamais alcançará o mistério original que a cegueira carrega, fazendo desta uma transgressão e um estado de anormalidade, uma monstruosidade da qual a ci-vilização desvia o olhar pois este – o olhar do cego, temido e odiado – espelha a cegueira daquele que vê, no abismo sem fundo da visão física, que jamais encontrará o fundo, a essência daquilo que crê enxergar. Desdobrando a hipótese abocular um pouco mais, diríamos que um cego não se vê, na dupla injunção desta construção pronominal: um cego não pode se ver, assim como também não se pode ver o mistério que um cego encerra em si.

Testemunho da ruína e memória da visibilidade, o cego transporta aquele que vê de volta à sua condição cega com seu olhar medusino que cega a quem o olha nos olhos;

9 Bataille, George. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003

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no conluio das próteses oculares, só o que se produz, então, é cegueira: é o preço que se paga para ver a luz da razão ou do espírito. Restituir a visão, realizar a transação ocular de troca da visão física pela intelectual ou divina, é saldar a dí-vida, restaurar a verdade na ordem da philia, da genealogia paterna, de devolver a verdade ao pai do logos e da fé.

Como vimos no poema de John Milton que serviu de mote a esta análise, os exemplos da hipótese abocular são abundantes tanto na Literatura quanto nas Artes visuais, de Homero a Saramago, de Brueghel a Magritte, demonstrando um olhar diferenciado sobre a questão da visibilidade e da visão e dando testemunho de uma compreensão particular desta questão. Porém, mais que a pintura – e não entra-remos na complexa questão das relações entre as artes visuais e verbais neste momento –, a Literatura tem uma relação mais profunda, genética, diríamos com a questão da visibilidade e da visão, como vimos anteriormente, tanto pela abundância das representações de cenas, temas, motivos, personagens e símbolos relacionados este tema, quanto pelo seu caráter escrito e pela abundância de cenas de escrita e leitura, como vemos exemplarmente na estória bíblica de Sansão (Juízes 13-16), nazireu que, depois de ser traído e perder a força descomunal, pede a Deus que lhe restitua a sua força uma última vez para se vingar dos filisteus. Embora a vingança contra os filisteus seja desígnio divino e Sansão um instrumento do Senhor, o herói bíblico se vinga pelos seus olhos, arrancados em Gaza pelos seus algozes: “Senhor Deus, peço-te que te lembres de mim, e fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos.” (Juízes 16, 29) [minha ênfase].

A fascinação pelo olhar da Literatura se revela na du-pla injunção desta construção sintática: na fascinação da Literatura pelo tema do olhar e na fascinação que o olhar da Literatura sobre o mundo provoca. O ensimesmamento da Literatura, seu olhar cego e obstinado sobre si e sobre o mundo produz e espalha a cegueira como doença da visão, como glaucoma ou como os olhos da Medusa que, mesmo

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arrancados de sua cabeça ainda cegam a quem os olha. Na axiologia metafísica e cristã a cegueira advém

como punição, como castigo por um erro sendo, portanto, uma forma de fazer justiça. Sendo cega, a justiça não vê, não corre o risco de “cair em tentação” ou de se deixar enganar pelas aparências, isto é, por ser cega a justiça é concebida como verdadeira e justa. Exibindo esta cegueira em relação ao visível, a justiça também exibe a cegueira sobre si mesma pelo fato de, assim como outros conceitos fundamentais do ocidente, como democracia e igualdade, se fundamentar na axiologia platônica e cristã que, como vimos, informa e regulamenta a questão da visibilidade, ou seja, a justiça, como valor supremo possibilitado pela abs-tração racionalista que o Iluminismo instaurou na sociedade ocidental, ignora os particulares em nome da universalidade (ADORNO & HORKHEIMER, 1999) que, como todas as abs-trações, é cega aos particulares tanto quanto à sua própria cegueira nesta dupla cegueira civilizatória, nesta dupla in-junção da cegueira.

Prescindível e até mesmo prejudicial à visão intelec-tual ou divina, o olho é uma prótese ou suplemento da visão cujo destino não é a propriamente a visão, seu mister não diz respeito à fé ou ao conhecimento e sua verdade não está, portanto, na visão, faculdade que o olho humano com-partilha os outros animais; sua alethéia vai além do ver e do saber e reside no fato de que somente o homem pode chorar, afirma Derrida (1993, 126) relendo o poema de Andrew Marvell “Eyes and Tears”. O luto, a paixão (pathos), a tristeza, a alegria, aí está a verdade que o olhar re-vela, no duplo movimento que Heidegger dá ao acontecimento da verdade, ou seja, o olhar desvela o fundo humano do homem apenas para velá-lo novamente na mais profunda treva, levando este olho-verdade a um mergulho no desam-paro abissal da visão. A essência do olho não parece entrar na ordem das essências e não pode ser localizada na visão do conhecimento ou da fé, pois o olho não está ontologica-mente qualificado para ter acesso à transcendência.

Diferentemente da visão, a essência do olho, o ser-

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-olho do olho, como diria Heidegger, não está, então, na vi-são cega que orienta a percepção do real, nem tampouco na transcendência da visão do conhecimento ou da fé. Só pode estar naquilo que escapa à lógica da visibilidade e da visão, naquela atividade involuntária que dissocia radicalmente o olho da visão, que é o pranto, momento em que pode-se perceber a verdade do olho. A verdade ou essência lacrimal dos olhos não será revelada pela cegueira produzida pela visibilidade ou pela visão intelectual ou divina, mas por um tipo de cegueira produzida pelos olhos mesmos, a cegueira revelatória ou apocalíptica:

A cegueira que abre os olhos não é a que escurece a visão. A cegueira revelatória ou apocalíptica, a cegueira que revela a verdade mesma dos olhos, seria o olhar velado pelas lágrimas. Não é cego e nem vidente: é indiferente à sua visão embaçada. Ele implora: em primeiro lugar para saber de onde estas lágrimas fluem e de quais olhos elas escor-rem. De onde ou de quem este luto ou estas lágri-mas de felicidade? (DERRIDA 1993, p. 127, minha tradução)

Humano e inumano, o olho será a benção e a maledicên-cia da visão; por um lado, é ele que chora e não o sujeito, na independência muscular desta prótese que obedece ao impulso fisiológico; por outro, é justamente por ser um en-trave à visão que ele possibilita a cegueira revelatória, fonte do pathos que acompanha o olho. O mistério que o olho guarda para si também é o mistério que ele guarda de si, como um segredo cuja revelabilidade jamais pudesse ser revelada mas que é sempre instigado pelo olho do outro, no qual o mistério da autonomia desta prótese se prolifera e dissemina, provocando a fantasmagoria que ronda o olho, o visível e a visão. Os olhos não vêem e não se vêem, mesmo quando me olho no espelho, pois até mesmo aí – ou, talvez, justamente aí – é um outro olho que me olha, um olho radi-calmente outro que me perscruta de dentro de sua revelabi-lidade e de seu segredo.

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pOlítIcA edItORIAl

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham participado de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam à produção de textos teóricos ou críticos produzidos por professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL - UFSM.

Esses trabalhos devem ser resultado de projetos vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós- Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.

A publicação de traduções deverá complementar os textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar prefácio que justifique a importância do texto e sua vin-culação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo tradutor.

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VOlUMeS pUblIcAdOS

Volume 1A Dama, a Dona e uma outra SórorMaria Lúcia Dal Farra

Volume 2Sartoris:A História na Voz de quem Conta a HistóriaVera Lucia Lenz Vianna

Volume 3A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os DomíniosEliana Rosa Sturza

Volume 4O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible (Edição Bilingüe)Mirian Rose Brum-de-Paula

Volume 5Pero Sigo Siendo el Rey: Referente e Forma de RepresentaçãoFernando Villarraga Eslava

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Volume 6Aquisição, Representação e AtividadeMarcos Gustavo Richter

Volume 7Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na Materia-lidade Digital Cristiane Dias

Volume 8Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por Michel Pêcheux na França: Uma Retomada de PercursoAna Zandwais

Volume 9Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Algunas Ur-bes LiterariasPablo Molina

Volume 10Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a CríticaAndré Soares Vieira

Volume 11Manuscritos de linguistas e genética textual : quais os de-safios para as ciências da linguagem? : exemplo através dos “papiers” de BenvenisteIrène Fenoglio

Volume 12Mário de Andrade: escritor difícil?Sonia Inez Gonçalves Fernandez

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIAPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

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