volume 08 - ufsmcoral.ufsm.br/mletras/images/cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’,...

50
volume 08 ISBN 978-85-99527-16-0 ISSN 1981-6987

Upload: vuongkhanh

Post on 08-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

volume 08

ISBN 978-85-99527-16-0ISSN 1981-6987

Page 2: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte
Page 3: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

Ana Zandwais

PPGL - UFSM2009

Perspectivas da Análise do Discurso Fundada por Michel Pêcheux na França:

uma retomada de percurso

Page 4: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

REITORClóvis Silva Lima

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAHélio Leaes Hey

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASEdemur Casanova

COORDENADORA DO PROGRAMA DEPÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASAmanda Eloina Scherer

EDITORPrograma de Pós-Graduação em Letras

DIREÇÃO DA SÉRIE COGITAREMirian Rose Brum-de-PaulaSílvia ParaenseGiovana Ferreira-Gonçalves

REVISÃORejane M. Arce Vargas

PROJETO GRÁFICOBianca Ruviaro Tolfo, Carolina Isabel Gehlen

Z27p Zandwais, Ana Perspectivas da análise do discurso fundada por Michel Pêcheux na França: uma retomada de percurso / Ana Zandwais – Santa Maria: UFSM, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2009. 50 p. ; 30 cm. – (Série Cogitare ; v. 8) ISBN 978-85-99527-16-0 ISSN 1981-6987

1. Lingüística 2. Discurso 3. Análise do discurso 4. Dialética 5. Pêcheux, Michel I. Título. II. Série. CDU 801

Ficha catalográfica elaborada por Josiane S. da Silva CRB-10/1858, Biblioteca Central - UFSM.

Page 5: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

SUMÁRIO

Apresentação ......................................... 07

Perspectivas da Análise do Discurso Fun-dada por Michel Pêcheux na França: Uma Retomada de Percurso ......................... 13

Bibliografia ............................................... 43

Política Editorial ........................................ 47

Volumes Publicados ................................ 49

Page 6: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte
Page 7: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

“... é o campo da prática concreta,da experiência, do vivido, que determina

como o real precisa ser representado e significado como discurso”.

Ana Zandwais

No ano em que o Laboratório Corpus, Laboratório de Fontes de Estudos da Lingua-gem, vinculado do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM, completou 06 anos desde a inauguração de sua sede, em junho de 2008, recebeu como presente a importante preleção de Aula Magna, pela Profª Dr. Ana Zandwais, da UFRGS. Um presente porque o Corpus foi idealizado sob a égide teórica que visa a tratar das materialidades dos discursos, das teorias e

APRESENTAÇÃO

Page 8: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

dos sujeitos dessas e a essas teorias, em uma perspectiva que acolhe as manifestações de lin-guagem situadas na historicidade, na ideologia, no real das práticas linguageiras cotidianas. Por essa razão, a aula-conferência que aqui com-partilhamos trata-se de um percurso teórico que faz jus à vida política e partidária e, sobretudo, teórica daquele que, para nós, é o grande ícone da teoria materialista do discurso, da teoria não separada da práxis, não separada da vida, não distanciada de nós. É com alegria que apresen-tamos o texto de Ana Zandwais sobre a teoria-vida de Michel Pêcheux. Ao retomar o percurso teórico de Michel Pêcheux, a professora Ana Zandwais traz à baila a controversa história do conceito de ideologia e sua difícil definição, seja no interior do materia-lismo histórico, seja na teoria materialista do dis-curso. Gesto importante este, especialmente por nos lembrar que não foi Pêcheux, nem mesmo Althusser, que primeiro teorizaram e problemati-zaram acerca da(s) ideologia(s).

08

Page 9: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

De início, pensado por Destutt de Tracy, depois retomado e transformado radicalmente por Marx, o conceito de ideologia foi abordado e repensado por outros importantes autores mar-xistas antes de ser definido por Althusser como uma forma específica de materialidade. É a partir de uma trajetória téorico-conceitual estabelecida bem antes que Pêcheux irá tomar seu lugar ao articular a materialidade ideológica com a mate-rialidade discursiva. Outra contribuição que a retomada do percurso pecheuxtiano traz, em sua relação com o marxismo-leninismo de Althusser, é o vínculo da Análise de Discurso (AD) com a teoria da prá-tica em geral ou, em outras palavras, a dialética materialista. Embora a categoria da contradição e seus modos de funcionamento se façam pre-sentes nos trabalhos de análise em toda a histó-ria da AD franco-brasileira, a menção à teoria da prática teórica ou materialismo dialético (na defi-nição althusseriana) é irrisória, sobretudo na atu-alidade. Será que persistindo neste esquecimen-to não corremos o risco, por um lado, de apagar

09

Page 10: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

a especificidade crítica da filosofia materialista e, de outro, de não mais distinguirmos materialismo histó-rico (ciência da história) de materialismo dialético (a filosofia materialista enquanto teoria geral daquela ciência)? É claro que tomar uma distância crítica fren-te à dialética materialista e a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Althusser pode ser uma alternativa para a AD hoje, desde que se tenha em conta que conceitos como ‘estrutura com dominan-te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, são tribu-tários da elaboração teórica da dialética materialista. Zandwais também discorre sobre essa tensão entre a vinculação a outrem e a independência teórica da AD. É notável como uma série de movimentos de ajustes e retificações teóricas conferiram maior autonomia para a teoria materialista do discurso de Pêcheux em relação à filosofia de seu mestre, Al-thusser. Sem sombra de dúvida, retificações como a do caráter (dialético!) de reprodução/transformação das formações ideológicas e discursivas assegura-ram um ganho de conhecimento, por via dessa auto-nomia. Com a única ressalva de também não esque-cermos de que nem o próprio Althusser se manteve

10

Page 11: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

inerte em suas primeiras posições (cf. Ce qui ne peut plus durer dans le Parti Communiste, 1978; e A Corrente Subterrânea do Materialis-mo do Encontro, 1982).

Nas páginas seguintes, Zandwais nos ensi-na que um percurso teórico é sobretudo a mudança de posição, em contraposição a outras. Em suma, é um movimento dialético.

Maurício Beck e Rejane Arce VargasSetembro de 2008.

11

Page 12: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte
Page 13: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

Perspectivas da Análise do Discurso Fundada por

Michel Pêcheux na França: Uma Retomada de Percurso�

Este estudo parte da proposta de retomar alguns aspectos da trajetória de Michel Pêcheux, desde suas primeiras incursões pelos campos de conhecimentos os quais ele propõe articular para constituir a área de estudos de Análise do Discur-so até seus escritos, digamos, da maturidade de um filósofo marxista.

Comecemos, então, pelo contexto histó-rico no qual Michel Pêcheux se insere quando ini-cia formalmente seus estudos e suas críticas em

1 Conferência proferida em 25 de junho de 2008, no IV Encontro do GEL e II Colóquio do Grupo de Estudos M. Pêcheux, promovido pelo Laboratório Corpus (PPGL/UFSM).

Page 14: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

torno das concepções epistemológicas dominantes no campo das Ciências Sociais e Humanas.

Um dos primeiros escritos de Michel Pêcheux, entre os que passam a ser difundidos no meio acadêmico, é publicado em Les Cahiers

Pour l’Analyse (Ecole Normale Supérieure)�, datado de 1966, cujo título é Reflexões sobre a Situação Teórica das Ciências Sociais e espe-cialmente da Psicologia Social e que circula sob o pseudônimo de Thomas Herbert. Neste artigo, Mi-chel Pêcheux questiona o modo como as Ciências Sociais, que deveriam debruçar-se, de forma per-manente, sobre “questões de fronteira”, dialogando com outras áreas de conhecimento, interagem com a teoria – sobretudo a Filosofia – de modo a legiti-mar uma concepção de ciência neutra (id., p. 142) e, em conseqüência, cega às relações de desigualda-de social que permeiam as condições de produção das práticas teóricas, técnicas, políticas, sociais, ideológicas, etc.

2 Trata-se do volume 2 de uma publicação organizada pelo Círculo de Episte-mologia da Ecole Normale Supérieure, cujo tema é “Qu’est-ce que la psycho-logie?”

14

Page 15: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

15

Ao tratar, desta forma, do fechamento de fronteiras entre a Psicologia, a Sociologia e o próprio campo experimental da sociedade como um lugar de práxis, Thomas Herbert (Michel Pêcheux) já começa a delinear suas primeiras concepções marxistas de ciência, buscando desalojar o campo das Ciências Sociais de um estatuto positivista, em que a ciência se reduz a uma ciência dos fatos tomados fora de qualquer contexto histórico, banindo também de seus do-mínios tanto as relações entre questões ligadas aos estudos da linguagem, e questões sociais interligadas ao campo das práticas, como ques-tões voltadas às formas de subjetivação do su-jeito nas relações de poder, de desigualdade e de confronto entre as classes. É, pois, a partir de Reflexões sobre a Situação Teórica das Ciências Sociais que Pêcheux começa a es-tabelecer alguns alicerces indispensáveis para desalojar as Ciências Sociais de paradigmas positivistas e inscrevê-las, à luz de uma refle-xão marxista, nos domínios do humanismo, onde questões sobre subjetividade, ideologia,

Page 16: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

16

confrontos e lutas de classe ocupam lugares es-senciais.

Cabe ressaltar, por outro lado, que ao estabelecer uma tipologia de práticas (prática técnica, política, científica, etc.), na tentativa de reverter o caráter de abstração das Ciências Sociais, Pêcheux, inicialmente, compartimenta tais práticas e, sobretudo, isola as práticas ideo-lógicas das demais, especificando, inclusive, as primeiras, como se as ideologias não fossem constitutivas do modo de produção de todas as práticas.

Assim, neste processo de busca de um outro paradigma, Michel Pêcheux parece (id., p. 143-4) mostrar-nos estar de alguma forma ainda preso a uma concepção de ideologia que se pre-sentifica em A Ideologia Alemã, concepção idealista de influência hegeliana, que pensa a ideologia em oposição à ordem do real, como uma inversão deste último na consciência hu-mana. É graças à concepção de ideologia apre-sentada em A Ideologia Alemã, portanto, que se pode falar em uma “falsa consciência”, uma

Page 17: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

17

vez que as representações ideológicas são to-madas, desde tal ótica, como falsas em relação à realidade objetiva e é isto, portanto, que pode-ria justificar a apresentação de uma “tipologia de práticas” proposta por Pêcheux.

Pode-se, por outro lado, sublinhar tam-bém que tal concepção de ideologia represen-tou, sem dúvida, um problema, um obstáculo, do qual Pêcheux teria de livrar-se a fim de apro-fundar suas reflexões acerca do próprio estatuto de ciência que estava buscando, já que tomar a ideologia em oposição à ordem do real implicava pensar suas condições de existência, ou aparta-das da ordem da história, ou de uma concepção de ciência, trabalhando, assim, teoricamente, sob o ângulo do positivismo3 que ele buscou, de modo incessante, combater.

Já em Observações para uma Teoria Geral das Ideologias, publicado em 1967, Tho-

3 É a partir da releitura de Lênin acerca da concepção marxista de ideo-logia presente em A Ideologia Alemã que se pode dizer que esta noção passa a ser ressignificada. Para Lênin (1986), a concepção de ideologia como reflexo inverso da ordem do real não se sustenta. É, pois, a partir de suas redefinições do conceito, que pode ser desfeita a oposição entre ciência e ideologia, o que também aproxima Pêcheux de Lênin e lhe per-mite tratar de uma teoria das ideologias enquanto teoria científica.

Page 18: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

mas Herbert (Michel Pêcheux) propõe a adoção de uma teoria geral das ideologias (id., p. 66), ob-servando que esta torna-se possível e até mes-mo necessária, em função de razões de diversas ordens tais como:

a) a necessidade de investigação dos efeitos do conhecimento de “tipo científico”;

b) a possibilidade de construção de uma ciência das formações sociais, comportando ca-tegorias de base marxista, como o materialismo histórico e o materialismo dialético;

c) uma terceira razão também importan-te, que consiste em reportar a ideologia à leitura do modo de produção das relações sociais de produção, na medida em que ela (a ideologia) inscreve os agentes da produção em seu interior e ao mesmo tempo reconhece seus modos de produção.

Cabe ressaltar, sobre esse artigo, que a relação sujeito versus ideologia, versus sentido é apresentada, digamos, ainda sob uma abordagem “preliminar”, considerando que Thomas Herbert (id., p. 65) (Michel Pêcheux), ao tratar do homem

18

Page 19: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

como animal ideológico, caracteriza também as ideologias como sendo: a) produtos da prática técnica empírica; b) “cimento” da sociedade”, atuando como condições indispensáveis à prática política. No primeiro caso, tratar-se-iam ainda de falsas ideologias (uma ideologia tenta se passar por ciência), visão mais próxima de A Ideologia Alemã (id., p. 65), e no segundo, de ideologias já com caráter orgânico e representativo da ordem do real.

É a partir de tais concepções que Pêcheux também configura as ideologias pautadas em suas dominâncias:

I) a dominância metafórico-semântica, em que o sujeito ao deslocar propriedades dos significantes para significados, isto é, metaforizá-los4, marca sua posição em relação a um sistema de sinais que balizam seu “comportamento”;

II) a dominância sintático-metonímica, em que a ideologia reflete as relações entre os

4 Cabe lembrar, aqui, que para Gramsci (1989) é condição da linguagem funcionar metaforicamente, de modo que a oposição linguagem literal/metafórica somente poderia ser aceita desde uma ótica lingüística de tipo positivista.

19

Page 20: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

20

discursos e as instituições através de operações sintagmáticas, opondo, por fim, o comportamen-to ideológico, presente nas dominâncias metafó-rico-semânticas (corporais, gestuais, de fala), ao discurso ideológico, presente nas dominâncias metonímico-sintáticas.

Conforme se pode observar, ainda que Pêcheux, nestes estudos, confira um estatuto distinto à noção de ideologia já apresentada em 1966, apontando para a necessidade de uma nova trajetória a ser percorrida, permanecem, to-davia, definições que precisam ser reelaboradas, criticadas: a) de um lado, a busca de tipologias capazes de atestar os trabalhos semântico-discur-sivos da linguagem; b) de outro lado, o rigor formal da classificação que mais se aproxima de uma perspectiva descritivista do que de pressupostos da Filosofia da Práxis.

É somente em 1969, portanto, que Pêcheux, ao aproximar-se ainda de Althusser, mas, ao mesmo tempo, demonstrando uma certa independência em relação à influência que so-

Page 21: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

21

fre deste5, no que diz respeito a seu processo de elaboração de uma ‘teoria materialista do discurso’, passa a definir, de forma concreta, os tipos de articulações necessárias para “dar vida” à Análise do Discurso como uma disciplina que deve apresentar uma certa autonomia em rela-ção à Lingüística. No texto intitulado Análise Automática do Discurso, ainda que o título seja bastante polêmico para uma teoria do dis-curso que se pretende não formalista, Pêcheux já estabelece alguns conceitos importantes que visam a afastar as bases epistemológicas que dão sustentação à Lingüística daquelas que dão sustentação à Análise do Discurso.

Ao criticar a concepção estruturalista, presente na teoria saussureana, em que a lín-gua é tomada, de forma abstrata, como conven-ção e como produto da história, o autor trata ao

5 É importante assinalar a forte influência sofrida de Althusser em todo o percurso de Pêcheux, ainda que em determinado período de sua teoria, Pêcheux se afaste de algumas concepções do mestre. É preciso pontuar também que as relações entre materialismo histórico, materialismo dia-lético e o campo da práxis advêm de reflexões althusserianas. Assim, do mesmo modo, as noções de formação ideológica e de interpelação dos indivíduos em sujeito propostas por Pêcheux são inicialmente tomadas de Althusser para, posteriormente, serem reformuladas.

Page 22: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

22

mesmo tempo das noções de base lingüística e processo discursivo, buscando mostrar que lín-gua e discurso têm materialidades distintas e, ao mesmo tempo, intercomplementares, de modo que, enquanto a base lingüística seria tomada como a materialidade necessária para a realiza-ção da ideologia, os processos discursivos reme-teriam para os lugares nos quais as ideologias funcionam e produzem determinados efeitos de sentidos a partir de seus modos de inscrição em determinadas ordens histórico-simbólicas, confi-gurando o modo como as formações imaginárias funcionam nos processos discursivos, não ale-atoriamente, mas a partir de um outro conceito fundamental para a AD: o conceito de condições de produção tomado do materialismo histórico, e que viria a criar as condições para inscrever, de modo concreto, a história na ordem do discurso e o discurso no campo da práxis. É, pois, por este viés inicial que Pêcheux começa a fragilizar as “fronteiras” entre as Ciências Sociais e Huma-nas, e a delinear as bases para a constituição

Page 23: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

de uma disciplina antipositivista e antiformalista de linguagem.

É preciso ressaltar, entretanto, que mes-mo buscando alicerçar-se em fundamentos de base marxista a fim de constituir noções capazes de desalojar determinados procedimentos posi-tivistas, tais como as antinomias, as oposições de valores marcadas no interior do sistema da língua, as relações de segmentação entre os componentes morfológico, sintático e semântico, Pêcheux, neste período de sua produção, ainda está atado tanto a referenciais teóricos funciona-listas e distribucionalistas6 de linguagem, como a procedimentos analíticos descritivistas7 e forma-listas que dominam em suas práticas de análise de discursos, acreditando, quiçá, que pudesse lançar mão de dispositivos mais ou menos “au-

6 Lembramos que as primeiras noções de redes de paráfrases propos-tas por Pêcheux estão muito mais próximas da noção de paráfrase lin-güística do que, propriamente, de uma noção de paráfrase discursiva.

7 Um exemplo ilustrativo da afirmação acima poderia ser referenciado pelo artigo intitulado A Respeito do Movimento Estudantil e das Lutas da Classe Operária: 3 Organizações Estudantis em 1968 produzido por Pêcheux e J. Wesselius, publicado em Histoire et Linguistique. ROBIN, Régine (1973), cuja versão em Língua Portuguesa aparece em 1977.

23

Page 24: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

24

tomáticos” para “conciliar” questões discursivas e estruturais.

Ao articular, por outro lado, três regiões do conhecimento que ele designa como científico, em 1975, ou seja, o materialismo histórico, a Lin-güística e a teoria semântica, Pêcheux começa a configurar as bases de uma disciplina com ali-cerces em uma concepção materialista histórica de Ciências Humanas. Sobre esta determinação, talvez seja interessante salientar que o mate-rialismo histórico, ao ser definido como “teoria das formações sociais e de suas transforma-ções”, compreendendo “a teoria das ideologias”8 passa a operar na teoria pecheuxtiana como um componente global, que irá demandar, a partir desta definição de um campo teórico específico, as múltiplas reflexões que serão feitas posterior-mente, já que ele inicia operando a partir de um processo de “dilatação” das relações que podem ser postuladas, desde uma ótica marxista, entre

8 É preciso rememorar o fato de que as teorias sobre ideologias são inúmeras e bem heterogêneas, remontando a Destutt de Tracy (1801) durante o período napoleônico e, posteriormente, sendo repensadas por Marx, Lênin, Volochinov, Gramsci e Althusser sobretudo.

Page 25: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

25

materialismo histórico, materialismo dialético9 e ideologia, abrigando todas estas questões den-tro da categoria do materialismo histórico.

É na esteira, ainda, desse processo de desconstrução das bases tanto das teorias ob-jetivistas (estruturalistas, formalistas) e subje-tivistas (enunciativas) que Pêcheux, ao tratar a Lingüística como teoria dos mecanismos sintá-ticos e dos processos de enunciação, busca es-tabelecer uma ponte entre ideologia, discurso e subjetividade, de modo a refletir sobre a con-versão do indivíduo em sujeito pela interpelação (captura) deste como sujeito de uma formação social, e que se reconhece como sujeito pelas práticas que o interpelam no interior das forma-ções ideológicas, as quais se referendam através de uma ou outra formação discursiva a que es-tão ligadas. Ao tratar, portanto, do modo como a ideologia “apreende” o sujeito e se corporifica na materialidade discursiva, Pêcheux entende tam-

9 É importante ressaltar que é através da categoria do materialismo dialético, explorando o funcionamento da contradição, que Pêcheux irá aprofundar as noções de heterogeneidade que afetam a formação dis-cursiva e o sujeito.

Page 26: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

26

bém que o componente sintático precisa adquirir um outro estatuto bem diverso do que teria na Lingüística, precisa deixar de ser apenas formal para constituir uma nova materialidade – a base lingüística – que integra os processos discursivos e que se ressemantiza a cada instância de inscri-ção no discurso e na história. Eis que a distância entre o que se pode denominar discurso, como objeto teórico, e discurso como objeto empírico, começa a tornar-se menos visível e a relação entre ambos mais concreta.

Por fim, ao tratar da teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos pro-cessos semânticos, Pêcheux se aparta da óti-ca do historicismo-comparatista, que colocou a história no centro de suas investigações10, para recolocar uma história não linear, não homogê-nea, não contínua no centro dos processos de significação que são produzidos pelos discursos em determinadas condições de produção. Desde

10 Reportamo-nos sobretudo à visão de Michel Bréal (1992) que tra-ta das leis e dos processos de transformação do léxico e da gramática desde uma ótica historicista-comparatista, em que o olhar do filólogo é determinante.

Page 27: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

27

esta ótica, portanto, as relações do sujeito com a história e com os sentidos não podem mais ser tomadas como “representações” subjetivas que os sujeitos constroem sobre o real, mas, ao contrário, é o campo da prática concreta, da ex-periência, do vivido, que determina como o real precisa ser representado e significado como dis-curso.

É preciso enfatizar, sobre este período, ainda algumas questões que entendemos serem de fundamental importância. Se Pêcheux con-tinua próximo de Althusser, no que diz respeito à sua teoria sobre o processo de interpelação do indivíduo em sujeito, o que o incita a pensar na possibilidade de ter construído uma teoria não-subjetiva da subjetividade11, vai se afastan-do gradualmente deste, na medida em que, ao refletir sobre as condições de significância da

11 Cabe observar que, ao afirmar que trata de uma teoria não-subjetiva do sujeito, ou seja, “de uma análise não-subjetiva dos efeitos de senti-do, que atravessa a ilusão efeito-sujeito” (id., p. 240), sem fazer alusão às teorias subjetivistas não marxistas, onde o sujeito é tomado em sua individualidade, Pêcheux acaba não conseguindo tornar clara sua crí-tica voltada para um distanciamento de uma relação opositiva de tipo estruturalista, entre uma teoria objetiva da subjetividade, por oposição à subjetiva.

Page 28: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

ideologia, isto é, suas materialidades, introduz o conceito de formação discursiva com vistas a conferir à ideologia não somente materialidades em termos de ação, ritos, práticas institucionais, inscritas nas formações ideológicas, mas tam-bém materialidades discursivas, tomadas na base lingüística. Assim, ao estabelecer uma rela-ção de complementaridade entre base lingüística e processo discursivo, Pêcheux (1975, p. 233) concebe o discurso como um dos aspectos ma-teriais da ideologia, aprofundando, portanto, uma questão fundamental – a da linguagem – que não teria sido senão superficialmente pensada por Marx12 ou Althusser, mas já pensada por Volo-chinov/Bakhtin em 192913, na medida em que a relação entre signo e ideologia parece ser cons-titutiva tanto da noção de sentido, já que “o do-

12 É preciso observar que as questões lingüísticas são tratadas de modo muito genérico em Marx, A Ideologia Alemã (1846), e Pêcheux conscien-te dessa lacuna inicia suas discussões em Semântica e Discurso (p. 20), questionando não somente a compreensão de Adam Schaff acerca dos escritos marxistas, mas também os próprios limites dos Manuscritos e A Ideologia Alemã em relação ao tratamento da linguagem.

13 É importante ressaltar que Pêcheux (1980) reflete sobre as contribui-ções de Volochinov, produzidas em 1929, como sendo ímpares, para os estudos lingüísticos de base materialista histórica em Remontemonos de Foucault a Spinoza.

28

Page 29: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

29

mínio do ideológico coincide com o domínio dos signos” (1986, p. 32), como da noção de consci-ência, uma vez que a consciência está sempre “impregnada de signos ideológicos e adquire for-ma e existência nas relações sociais e históricas” (id., p. 35).

A noção de formação discursiva, a partir daí, ganha uma especificidade que lhe é própria e que torna inviável o fato de que esta possa ser confundida com o discurso simplesmente, o qual poderia ser objeto de outras análises de discur-so, tais como a funcionalista, a anglo-saxã, etc.

Ao afirmar que toda formação discursiva depende de condições de produção, Pêcheux (id., p. 234) insere o objeto discursivo, isto é, a materialidade significante do discurso, na mate-rialidade histórica, de tal modo que é pelo viés da inscrição do discurso em uma ordem ao mes-mo tempo simbólica e histórica que a linguagem carrega os “pesos” das diferentes ideologias em seu interior. Neste ponto, podemos afirmar ainda que Pêcheux também se afasta da concepção de formação discursiva foucaultiana (a partir da qual

Page 30: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

30

ele se inspira para delimitar as bases de uma teo-ria materialista histórica), já que para Foucault14 (1987) uma unidade ou formação discursiva, embora possa ser constituída por saberes dis-persos em diferentes épocas, é sempre tomada como objeto de investigação na emergência dos acontecimentos, nas contingências em que pro-duz sistematicidades, efeitos. Para Pêcheux, por outro lado, a formação discursiva não somente está diretamente articulada à formação ideoló-gica, às condições de produção, como também a um determinado tipo de subjetividade tomada da/na história, e sob este aspecto a distância tor-na-se bem marcante entre Foucault e Pêcheux, uma vez que para Foucault (1987, p. 107) o su-jeito é uma posição que pode ser ocupada por qualquer indivíduo, de modo alternado, em uma série de enunciados produzidos em di-ferentes momentos. Assim, se para Pêcheux, no processo de interpelação, o sujeito é “capturado” pelas determinações históricas que “o falam” an-tes que ele fale de si mesmo, torna-se necessário

14 Reportamo-nos às leituras de A Arqueologia do Saber.

Page 31: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

31

convir que os lugares de sujeito a serem “ocu-pados” por determinados indivíduos ao invés de outros, em Pêcheux, não podem ser pensados como lugares de “câmbio acessível”.

Há também uma outra questão que as-sume relevância ímpar nesse período: trata-se da forma como ele reflete acerca do funcionamento dos aparelhos ideológicos, reconfigurando, desta forma, a própria leitura de Althusser15 (1999) so-bre as condições através das quais ocorrem as relações de produção no interior dos aparelhos de Estado.

Parece-nos que é justamente sobre este ponto que começa a delinear-se a apresentação de Pêcheux como um marxista-leninista16, e não simplesmente como um marxista, tendo em vista o modo como ele retoma a noção de formação ideológica althusseriana para recolocá-la tanto

15 Fazemos referência ao texto clássico de Althusser A Propósito da Re-produção das Relações de Produção publicado em Sobre a Reprodução (1999).

16 É fundamental salientar que Pêcheux vem a assumir-se, de forma explícita, como marxista-leninista em Les Verités de la Palice - Semânti-ca e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio (1987), texto no qual praticamente todas as suas reflexões remontam aos escritos e à prática política de Lênin.

Page 32: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

de forma articulada à noção de formação discur-siva e, por fim, poder tratar sobre como os apare-lhos ideológicos podem ser vistos no interior de uma sociedade de classes. Em outras palavras, ao tratar da função da formação ideológica que consiste em desempenhar, no seio das forma-ções sociais, papéis desiguais que tanto podem pender para a reprodução como para a transfor-mação (1975, p. 167), e das formações discursi-vas como mutáveis, instáveis, podendo “fornecer elementos que se integram em novas formações discursivas, no interior de novas relações ideoló-gicas” (id., p. 168), Pêcheux começa a configu-rar os Aparelhos de Estado como “palcos” tanto para a perpetuação das relações de produção, como para as relações de transformação das formações ideológicas e das formações discur-sivas, enfim, ele abre um espaço para tratar das relações de ruptura no campo da prática política, adotando, por isso, uma ótica mais crítica do que a de Althusser que limita o alcance da análise das formações ideológicas à prática da reprodução.

32

Page 33: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

É, por esta mudança de postura, por res-significar o pensamento de seu mentor intelectual que Pêcheux avança em relação à leitura de Al-thusser e passa a complexificar, em Semântica e Discurso (1987) não somente sua concepção de transformação, como também suas concep-ções sobre as formas de subjetivação do sujeito, englobando no interior destas, reflexões sobre “o mau sujeito”, a prática política revolucionária, e, ainda, sobre a materialidade dos processos discursivos de ruptura, configurando, desde aí, uma ponte entre o funcionamento da polissemia como processo significante e a prática política da transformação.

É, pois, em Semântica e Discurso que Pêcheux aproxima-se e assume, de modo concreto, sua ótica marxista-leninista. Ao tratar dos aparelhos ideológicos de Estado, ele passa a observar que estes não são “puros instrumentos da classe dominante”, “máquinas ideológicas”, mas que comportam, ao contrário, um conjunto bem complexo de relações de contradição-desi-gualdade-subordinação, de tal modo que as lutas

33

Page 34: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

de classe, a contradição de interesses que se pro-cessam em seu interior, podem contribuir tanto para a reprodução, como para a transformação das práti-cas, dos saberes ideológicos dominantes, servindo a interesses de classe diferentes, e configurando, em síntese, a “cena própria da luta ideológica de clas-ses” (id., p. 146). Desde esta perspectiva, portanto, Pêcheux já sinaliza para uma outra leitura, em que o enfoque para relações de antagonismo (entre as classes, no interior dos aparelhos de Estado) e con-tradição (no interior de uma formação discursiva) lhe permitem voltar-se não somente para a heterogenei-dade das FDs, para o sujeito dividido, mas também para o sujeito que questiona os saberes das FDs com as quais se reconhece, e para os discursos de ruptura produzidos a partir de “perdas de referên-cias” no interior das FDs.

Em relação às modalidades de subjetivação do sujeito, ao tratar da segunda modalidade (id., p. 215) por oposição a da aceitação livremente con-sentida, isto é, do “mau sujeito”, a qual pode ser ca-racterizada como uma “operação de confronto”, em que o sujeito da enunciação se volta contra o sujeito

34

Page 35: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

35

universal, colocando a dúvida, o questionamen-to, a contestação, a revolta contra os saberes próprios da FD, torna-se fundamental enfatizar que é, exatamente, através da reflexão sobre o funcionamento desta modalidade que Pêcheux configura o espaço da contradição no interior da forma-sujeito, correlacionando-a com mo-dalidades de subjetivação que questionam, he-sitam, duvidam da efetividade dos saberes que compõem uma dada FD, explicitando, em última instância, por meio do contra-discurso, o modo orgânico de funcionamento do materialismo dia-lético no interior de uma teoria discursiva.

Ao apontar, por outro lado, para uma terceira modalidade de sujeito, que ele designa de desidentificação, Pêcheux afirma tratar com conhecimentos e com uma prática política que integram dispositivos de experimentação-trans-formação históricos e que vêm a constituir um trabalho de desarranjo-rearranjo da forma-sujei-to, de tal modo que, sob tais condições, a ideolo-gia funciona sobre si e contra-si, exibindo o real como “uma necessidade pensada” para que o

Page 36: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

36

modo de produção das relações de produção possa ser transformado. Trata-se, portanto, aqui, de uma modalidade de subjetivação que rompe com os sa-beres próprios das FDs, estilhaça pré-construídos, substituindo-os por outros, reverte saberes e práti-cas, reconfigurando, assim, tanto a formação ideo-lógica como a formação discursiva que apresentam o indivíduo como sujeito em uma dada conjuntura histórico-social, para que se instaurem novas prá-ticas sociais, capazes de identificar a formação ideológica, novas ideologias e discursos, em que os sentidos apontam para efeitos interditados ou castrados pela instituição, pela lei, pelo Estado, em virtude das desigualdades sociais, ou ainda sentidos impensados em função da cristalização de saberes, da dominância das condições de reprodução sobre as condições de transformação. Trata-se, portanto, aqui, de uma modalidade de subjetivação que confi-gura tanto a identidade do sujeito da prática política revolucionária, como as formas através das quais ele intervém sobre os universos logicamente esta-bilizados.

Page 37: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

37

Neste momento de suas reflexões teóricas totalmente engajadas a uma concepção marxista-le-ninista de prática política revolucionária, mas apro-fundando, revisando o conceito leninista de transfor-mação17, Pêcheux consegue articular suas reflexões em torno do materialismo histórico e do materialismo dialético, considerando as formas através das quais a reprodução e a transformação convivem sob per-manentes relações de tensão.

Ao tratar sobre como as modalidades dos sujeitos da contradição – o sujeito da dúvida, do questionamento – e do sujeito da desidentificação (id., p. 226) operam, o autor reflete, de modo concre-to, em torno do funcionamento do materialismo dia-lético no interior da teoria, bem como sobre o que se pode qualificar como sendo o limite da contradição, traduzindo, assim, a prática revolucionária como um

17 É importante considerar que, em torno da relação teórico-prática de dita-dura do proletariado, emergiram algumas brechas significativas, que suscita-ram em Gramsci (1982), enquanto um pensador de tendência marxista-leni-nista, a necessidade de refletir não somente sobre o estatuto que deveriam ter os intelectuais no seio do mezzogiorno, como também sobre o que deveria significar a noção de hegemonia na prática política revolucionária e ainda sobre como os intelectuais poderiam tornar-se orgânicos no seio dos partidos e da sociedade civil como formadores e transformadores.

Page 38: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

38

processo de ruptura, de desarranjo e rearranjo, em outro sítio ideológico, daquilo que precisa ser desar-ranjado.

Com base nas observações acima feitas, parece-nos, então, que a escrita do texto Dis-course: Structure or Event? apresentado na Conferência “Marxismo e Interpretação da Cultura”, na Universidade de Illinois Urbana-Champaign, em 1983, é que vem responder a algumas necessida-des de reflexão mais crítica, em torno de questões já postas em Les Verités de la Palice (1975).

Ao investigar a modalidade do sujeito do dis-curso de ruptura, do desarranjo-rearranjo, Pêcheux precisa tratar, em conseqüência, de outra questão; isto é, do acontecimento como uma relação de es-paço-tempo e de produção de sentidos que irrompe no discurso, mas não está marcado na base lin-güística, a não ser através de uma relação posta entre a emergência do acontecimento histórico que se discursiviza e uma memória discursiva a que ele remete. Mas não basta a teoria para aprofundar a questão, é preciso questioná-la desde a ordem dos acontecimentos empíricos.

Page 39: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

39

Quando Pêcheux trata, portanto, em Dis-curso: Estrutura ou Acontecimento?, do enunciado “On a gagné”, proferido no dia 10 de maio de 1981, com o fim de comemorar a vitória eleito-ral de François Mitterand na França, o autor remete este enunciado, ao mesmo tempo, às circunstâncias de seu acontecimento, e a uma memória discursi-va que retoma momentos históricos do passado em que comunistas e socialistas foram eleitos pelo povo na França, desde Jaurés até Maurice Thorez e Leon Blum18.

Cabe observar que é a partir deste acon-tecimento, que ilustra de modo concreto como se produz a descontinuidade na ordem da história, na medida em que simboliza o retorno de uma aliança do governo com a esquerda francesa, já sem repre-sentatividade na esfera política do país, que se pode pensar na singularidade de uma relação transversa entre as materialidades discursiva e lingüística.

18 Reportamo-nos à vitória da Frente Popular em 1936, articulada a partir de uma aliança entre o Partido Comunista Francês, representado por Maurice Thorez e o Partido Socialista, representado por Leon Blum.

Page 40: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

40

“On a gagné” é um enunciado, um profe-rimento que pode ser caracterizado como opaco, em termos de sua espessura semântico-lingüística; introduz-se por meio de uma pronominalização dêi-tica (Nós ganhamos) e não tem complementos. Daí porque é preciso remetê-lo para sua materialidade discursiva.

Da perspectiva da materialidade discursiva, é preciso convocar a história e o acontecimento, isto é, a irrupção do descontínuo, do inesperado na ordem da história como um fato que emerge pela desestabilização do que parecia estar estabilizado sob o ponto de vista lógico. Mas não há, por outro lado, como convocar a história e o acontecimento, sem considerar o modo com ele se discursiviza, ou seja, a estrutura, o proferimento que permite ativar a memória da esquerda francesa.

É somente, então, a partir desta relação par-ticular de entrecruzamento, que o enunciado pode ser descrito e interpretado através de uma anáfora

Page 41: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

discursiva19, por remeter a uma anterioridade e a uma exterioridade, no campo da prática política. Isto é, a acontecimentos que já tiveram lugar no cená-rio político e que somente significam se transpostos para o discurso da atualidade. Deste modo, é em Discurso: Estrutura ou Acontecimento? que encontramos o filósofo da maturidade, o Pêcheux que não somente articula o materialismo histórico ao materialismo dialético, mas que também come-ça a responder as suas próprias questões teóricas, tomando o campo da práxis como objeto de questio-namento da própria teoria. “On a gagné”, portanto, pode ser caracterizado como um proferimento per-formativo que evoca as correlações de força entre os liberais e os socialistas, que ecoa nas ruas e é inesperado pelas forças conservadoras da França, constituindo-se em uma notificação da reconquista do poder pelas alianças de esquerda (socialistas, comunistas), enfim, um acontecimento político em um cenário onde comunistas e socialistas já teriam

19 Fazemos menção simultânea aos atos de descrever e interpretar, con-siderando que a materialidade estrutural do pronome (on) é tomada como anáfora, é lingüística e faz parte da descrição semântica, mas aquilo a que ela remete é exterior ao que se enuncia, inscrevendo-se, portanto, no inter-discurso.

41

Page 42: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

42

perdido o espaço e a representatividade há muito tempo.

Por fim, pode-se dizer que ao se considerar que a estrutura do enunciado nada diz de si mesma, não definindo quem são os destinatários, os interlocutores que compõem, juntamente com os locutores, o “nós” (ganhamos), Pêcheux acaba por demonstrar a impossibilidade de se pensar no funcionamento do discurso de ruptura sem que haja uma relação transversa entre a estrutura, a base lingüística, o acontecimento, e os processos históricos através dos quais os acontecimentos se discursivizam.

Page 43: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

BIBLIOGRAFIA

43

ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1999.

______. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 2000.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Ed. Hucitec, 1986.

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica. Campinas, Ed. Pontes, 1992.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Ed. Forense-Universitária, 1987.

GADET, Françoise; HAK, Tony (Orgs). Por uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas, Ed. da Unicamp, 1990.

Page 44: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1982.

______. Concepção Dialética de História. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1989.

GREESPAN, Jorge. A Dialética do Avesso. In: Crítica Marxista. São Paulo, Boitempo Ed, 2002.

INDURSKY, Freda. Da Anáfora Textual à Anáfora Discursiva. In: Anais do 1º Encontro do Celsul. Florianópolis, 1997, p.713-22.

LENINE, Vladimir Ilitch. Obras Escolhidas. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1986.

______. O Estado e a Revolução. São Paulo, Ed. Centauro, 2007.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’ideologie Allemande. Paris, Ed. Sociales, 1953.

______. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Ed. Cortez, 1998.

______. A Sagrada Família. São Paulo, Ed. Boitempo, 2003.

44

Page 45: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

PÊCHEUX, Michel (Thomas Herbert). Reflexions sur la Situation Theorique des Sciences Sociales et, specialment, de la Psychologie Sociale. In: Les Cahiers pour l’Analyse. Paris, Cercle d’Epistémologie de l’ Ecole Normale Supérieure, 1966.

______ (1967). Observações para uma Teoria Geral das Ideologias. Trad. de Eni Orlandi. In: Revista Rua. n. 1. São Paulo, Campinas : Unicamp, 1995. p. 63-89.

PÊCHEUX, Michel. Hacia el Análisis Automatica del Discurso. Madrid, Ed. Gredos, 1975.

______. Remontemonos de Foucault a Spinoza. In MONFORTE, Mário (Org.) El Discurso Político. México: UNAM/Editorial Nueva Imagem, 1980, p.181-197.

______. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. de Eni Orlandi et alii.Campinas, Ed. da Unicamp, 1988.

______. Discurso: Estrutura ou Acontecimento? Trad. de Eni Orlandi. Campinas, Ed. Pontes, 1990.

______ ; WESSELIUS, J. A respeito do Movimento Estudantil e das Lutas da Classe Operária: 3 Organizações Estudantis em 1968. In: ROBIN, Régine. História e Lingüística. São Paulo, Ed. Cultrix, 1977, p. 265-282.

45

Page 46: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

TCHOUGOUNNIKOV, Serguei. O Círculo de Bakhtin e o Marxismo Soviético: Uma Aliança Ambivalente. Trad. de Ana Zandwais. Conexão Letras. n. 3. Porto Alegre, 2008 (no prelo).

ZANDWAIS, Ana. A Forma-sujeito e suas Modalidades de Subjetivação: Um Contraponto entre Saberes e Práticas. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina L. (Orgs). Michel Pêcheux e a Análise do Discurso: Uma Relação de nunca Acabar. São Carlos, Ed. Claraluz, 2006, p.143-156.

46

Page 47: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham participado de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam à produção de textos teóricos ou críticos produzidos por professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL - UFSM.

Esses trabalhos devem ser resultado de projetos vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.

A publicação de traduções deverá comple-mentar os textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar prefácio que justifique a importância do texto e sua vinculação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo tradutor.

POLÍTICA EDITORIAL

Page 48: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte
Page 49: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

Volume 01 A Dama, a Dona e uma Outra Sóror (Maria Lúcia Dal Farra)

Volume 02 Sartoris: A História na Voz de Quem conta a História (Vera Lucia Lenz Vianna)

Volume 03 A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os Domínios (Eliana Rosa Sturza)

Volume 04 O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible (Edição Bilingüe) (Mirian Rose Brum-de-Paula)

Volume 05 Pero Sigo Siendo El Rey: Referente e Forma de Representação (Fernando Villarraga Eslava)

Volume 06 Aquisição, Representação e Atividade (Marcos Gustavo Richter)

Volume 07 Da Corpografia: Ensaio sobre a Língua/Escrita na Materialidade Digital (Cristiane Dias)

VOLUMES PUBLICADOS

Page 50: volume 08 - UFSMcoral.ufsm.br/mletras/images/Cogitare08.pdf · te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, ... cermos de que nem o próprio Althusser se manteve 10. inerte

PPGL Universidade Federal de Santa MariaCentro de Educação, Letras e Biologia

Prédio 16, Sala 3222 – Bloco A2Programa de Pós-Graduação em Letras

Campus Universitário – Camobi97105-900 – Santa Maria, RS – Brasil

Fone: 0xx 55 32208025http://www.ufsm.br/ppgletras

e-mail: [email protected]

Gráfica Universitária

2009