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Maria Lúcia Dal Farra

PPGL - UFSMEditores

2007

A dama, a dona e

uma Outra Sóror

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

REITORClóvis Silva Lima

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAHélio Leaes Hey

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASEdemur Casanova

COORDENADORA DO PROGRAMA DEPÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASSílvia Carneiro Lobato Paraense

EDITORPrograma de Pós-Graduação em Letras

REVISÃOSílvia Carneiro Lobato Paraense

DESIGN GRÁFICOLilian Landvoigt da Rosa

D141d Dal Farra, Maria Lúcia A Dama, a Dona e uma outra Sóror / Maria Lúcia Dal

Farra. – Santa Maria : UFSM, PPGL-Editores, 2007. 39 p. ; 19 cm. – (Série Cogitare ; v. 1)

ISBN 978-85-99527-05-4

1. Literatura 2. Literatura portuguesa – Ensaios I. Título. II. Série.

CDU 869.0-4 Ficha catalográfica elaborada por Alenir I. Goularte CRB-10/990Biblioteca Central/UFSM

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SUMÁRIO

Apresentação.......................................... 07

A Dama, a Dona e uma outra Sóror......... 09

Bibliografia.............................................. 35

Política Editorial....................................... 37

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O PPGL - Editores da Universidade Federal de Santa Maria, inaugura, com A Dama, a Dona e uma outra Sóror, a Série Cogitare, destinada à publicação de palestras, conferências e textos teóricos ou críticos de pesquisadores dos Cursos de Mestrado e Doutorado ou de participantes externos, envolvidos com atividades do Programa.

A nova Série é inaugurada com a colaboração da professora Maria Lúcia Dal Farra, da Universidade Federal de Sergipe, leitora extremamente sensível às requintadas elaborações sonoras e formais da linguagem poética. O texto que aqui vai publicado foi apresentado como Aula Inaugural do PPGL no ano de 2006. Nele a autora articula elementos recorrentes nas maneiras de representar o feminino na Literatura Portuguesa, desde suas origens remotas no período medieval.

Para nós, é uma satisfação contar com o talento de crítica e poetisa de Maria Lúcia Dal Farra na abertura de mais um caminho de divulgação da pesquisa na área de Letras.

Sílvia Paraense & Mirian Rose Brum-de-Paula

APRESENTAÇÃO

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Creio ser possível discernir, na história da cultura portuguesa, pelo menos duas referências fundantes dos valores concernentes ao feminino. As lendas medievais da “Dama Pé-de-Cabra” e da “Dona Marinha”, pertenças do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis1 – parecem configurar, cada qual a seu modo e de maneira quase polar, a mítica da mulher para o imaginário português.

Compiladas por volta de 1340, são elas, como se sabe, ao lado de tantas outras, estórias inaugurais de famílias portuguesas que, através do maravilhoso e do fantástico, justificavam o seu direito de existência no mundo feudal - o seu atestado de origem. O acentuado pendor prático dessas lendas, que reside na fixação da genealogia familiar, no registro dos feitos heróicos, no asseguramento dos direitos de avoenga e padroado, não chega a empanar, no caso de muitas delas, o sabor

A DAMA, A DONA E UMA OUTRA SÓROR*

* Este texto foi motivo da Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, em 14 de março de 2006.1 As duas lendas em pauta são lidas a partir da edição de MATTOSO, José et allii. História e antologia da Literatura Portuguesa séculos XIII e XIV. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

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poético de que se nutrem. Nelas se asilam, de uma maneira geral, o aparato fantasioso característico da Idade Média - as forças sobrenaturais, os elementos mágicos, as potências extraterrenas e demoníacas, os espaços indevassáveis da natureza misteriosa - enfim, tudo aquilo que escapa ao poder e ao controle do homem.

A mistura de cristianismo e paganismo em que se assentam, tão cara a esse tempo, expõe, no caso das duas referidas lendas, lugares antagonistas onde situar a mulher. A “Dama Pé-de-Cabra”, que Herculano, na sua adaptação em Lendas e Narrativas2, alçaria à categoria de alongada e pitoresca novela, conta como Dom Diego Lopez, grande montador, encontrou a mulher com quem se casou. Resumo rapidamente o seu enredo na sua forma original encontrada no Livro de Linhagens.

Numa caçada ao javali, o senhor feudal se sente subitamente desviado dos seus propósitos por um potente canto que vem do alto de uma penha: tratava-se da voz de uma linda mulher, por quem ele se enamora de chofre. Depois disso, tudo se acelera na narrativa: como ela se dissesse de alta linhagem e como ele fosse senhor daquelas terras, Dom Diego a pede em casamento. Ela aceita, mas apenas se preservada uma condição: a de que ele lhe prometa jamais se santificar. Ele lhe outorga o pedido e partem juntos para o paço. A Dama, que era mui formosa, bem feita de corpo e muito bem vestida, tinha, todavia, um pequeno defeito: um pé forcado como o da cabra. Dama e Dom Diego viveram juntos e tiveram dois filhos: um homem, Enheguez Guerra, e uma filha - cujo nome a narrativa suspende.

Num certo dia em que comiam, no átrio do seu paço, um javali caçado por Dom Diego, ele (que sempre se punha ao lado do filho) e a Dama (que se sentava

2 Cf. HERCULANO, Alexandre. “A Dama Pé de Cabra. Rimance de um jogral (século XI)”. Lendas e Narrativas (rev. Vitorino Nemésio, not. António C. Lucas). Lisboa: Livraria Bertrand, 1970, pp.33-76.

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ao lado da filha) jogam um osso aos cachorros que os rodeiam, osso que, de imediato, se torna objeto de litígio entre os cães e que suscita uma contenda entre a podenga e o alão. Como aquela, pequena e desraceada, chega a matar ao outro cão, macho, forte e de raça – o casal se dá conta, estupefato, do prodígio perpetrado diante dos seus olhos! Dom Diego, então, esquecido da promessa feita à mulher, se persigna. No mesmo instante, ela, tomando a filha por uma mão e debalde ao filho por outra, porque o pai o detém, foge do palácio seguindo para as montanhas - onde nunca mais foram vistas.

Eis o texto original:

Este dom Diego Lopez era mui bom monteiro, e estando uu dia em sa armada atendendo quando verria o porco, ouvio cantar muita alta voz ua molher em cima de ua penha. E el foi pera la e vio-a seer mui fermosa e mui bem vistida, e namorou-se logo dela mui fortemente, e preguntou-lhe quem era. E ela lhe disse que era ua molher de muito alto linhagem. E el lhe disse que pois era molher d’alto linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca ele era senhor daquela terra toda. E ela lhe disse que o faria se lhe prometesse que nunca se santificasse. E ele lho outorgou, e ela foi-se logo com ele. E esta dona era mui fermosa e mui bem feita em todo seu corpo, salvando que havia uu pee forcado como pee de cabra. E viverom gram tempo, e houverom dous filhos, e uu houve nome Enheguez Guerra e a outra foi molher e houve nome dona -.E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher, asseetava el a par de si o filho, e ela asseetava a par de si a filha da outra parte. E uu dia, foi ele a seu monte e matou uu porco mui grande e trouxe-o pera sa casa e pose-o ante si u siia comendo com sa molher e com seus filhos. E lançarom uu osso da mesa, e veerom a pelejar uu alão e ua podenga sobr’ele em tal maneira que a podenga travou ao alão em a garganta e matou-o. E dom Diego Lopez, quando esto vio, teve-o por milagre, e sinou-se e disse:

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- “Santa Maria val, quem vio nunca tal cousa!”E sa mulher, quando o vio assi sinar, lançou mão na filha e no filho, e dom Diego Lopez travou do filho e nom lho quis leixar filhar. E ela recudio com a filha por ua freesta do paaço, e foi-se pera as montanhas, em guisa que a nom virom mais, nem a filha.

Nesta lenda (que, certamente, se flexiona como uma fábula acerca de um preciso modelo feminino), a mulher formosa, escultural, de voz expressiva e angelical, se apresenta, pois, como senhora de todos os dotes de perfeição física e moral, até prova em contrário. Repare-se que ela é vista, primeiro, no alto do penhasco, que ela canta alto, e que ela pertence a uma mui alta linhagem. Imagem da sedução absoluta, visto que Dom Diego é tomado de súbito apaixonamento, ela exerce sobre ele grande ascendência, já que arranca do cativo amoroso, com naturalidade aparente, uma grave promessa, um pesado juramento: o que consiste na negação de um valor medieval fundamental - a Igreja.

Não se persignar é recusa direta do cristianismo, é neutralização do sacrifício sofrido pelo Cristo, é desprezo da cruz - o que desloca Dom Diego à súbita condição de pagão, e a ela, que o exigiu, a um estado semelhante ao da serpente bíblica, que solicita a Adão, por meio de sua interposta pessoa Eva, o ato insubordinador de desobediência à lei divina.

Ora, esse traço contestador de Deus – e da ordem estabelecida – parece estar catalisado e exposto no único defeito que a formosa Dama carrega: o feitio do seu pé, que contrasta com a harmonia da sua beleza física. E é muito curioso o jogo oculto que a lenda deixa entrever, o jogo contido na geografia do alto e do baixo concernente a essa mulher. Tudo nela pertence à esfera do de cima: ela canta no alto do penhasco, ela é de alta linhagem, ela exerce ascendência sobre o apaixonado; e também pertence à semântica do alto o lugar para onde ela foge com a filha, as montanhas. Só aquilo que nela pisa a terra diz respeito ao que não pertence ao

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céu, e, assim mesmo, trata-se apenas de um dos seus dois pés. O que significa que o disfarce que a torna outra é pouco perceptível, e ela convence, de imediato, porque é quase toda um perfeito engodo. Tão-só após a persignação do marido, é que se reconhece nela a mulher cheia de manhas e de ardis que, até então, haviam toldado o olhar masculino e evitado que se conhecesse o que ela verdadeiramente era, e que ficara silenciado no pé forcado, metonímia da Dama que, modificado em metáfora, compromete, no entanto, todo o gênero feminino do conto – apenas com uma honrosa exceção...

A Dama, a sua filha e a podenga pertencem à mesma casta de malefícios. A filha acompanhará a Dama, seguindo, portanto, a trilha desta, perfazendo o percurso da maldição materna. Seu nome, omitido pelo conto, certamente é o dela, o da mãe - repetição da mesma série de atos, da mesma marginalidade, história de uma geração de mulheres com “pé-de-cabra”. A fuga da mãe levando a filha prova também que a filha se situa no domínio dos sacrílegos, portanto, no rol dos excomungados pela Igreja.

O fato de a Dama ter criado uma filha a ela aliada supõe que a herança materna persistirá por outras gerações, semente de discórdia plantada na Dama, perpetuamente renovada a cada um dos inúmeros nascimentos dessa proliferante e amaldiçoada genealogia feminina: a das mulheres não confiáveis, insubordinadas e insurrectas.

Quanto ao animal responsável pelo acionamento, em Dom Diego Lopes, do sinal da cruz, é preciso sublinhar que também ele pertence ao gênero feminino, como a Dama e sua filha. É da podenga, cadela miúda e sem qualidade – que o espanto emana. O assombroso, o maravilhamento que vem expresso no conto em forma de “milagre” que deixa atônito o senhor feudal, resulta da supremacia desse ínfimo animal feminino diante do poder do enorme cão de

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fila masculino, representado pelo alão. Contra todo o esperado, é ela quem prende a este pela garganta, travando-o e matando-o. Pelos vistos, no paço de Dom Diego Lopez, o território pertence todo às mulheres...

Mas o mais bizarro é que, para pedir a intercessão sobrenatural diante do mistério causado pela fêmea canina, o senhor feudal invoque uma outra mulher, certamente inimiga da Dama, uma vez que a proferição de tal nome é a que persistia, desde as origens, proibida por aquela.

A fórmula pronunciada por Dom Diego Lopes e que, por sua vez, espanta a Dama é: “Santa Maria val, quem vio nunca tal cousa!” Maria, a mãe de Deus, o modelo de todas as virtudes, da virgindade, da humildade, da resignação, da paciência, da conformação – é aquela que possui qualidades que, portanto, se chocam com as da Dama.

Sem dúvida, a lenda da “Dama Pé-de-Cabra” trata, sim, da fundação de uma legião de mulheres belíssimas e insinuantes, fadadas ao crime da sedução e da artimanha, de uma linhagem, portanto, matrilinear, que encontra no modelo feminino da “Santa Maria” o seu oposto. Maria, a Mãe de Deus, pisa com o pé a serpente, naquilo que esta comporta de desafio às leis do Senhor, de espaço do tenebroso e do oculto, do desenfreado e do imaginário, daquilo que é propenso à desordem e à ausência de controle. Maria pisa, pois, com o pé - que não é forcado... - a Dama Pé-de-Cabra, esta, a intermediária entre o homem e o demônio, esta que é a portadora do sexo e do pecado – a tentadora.

Nesta lenda, se encontram, pois, em estado latente, dois protótipos que regem a mítica da condição feminina. De um lado, o modelo do “fiat Maria”, representado pela santa, pela mater dei, pela mãe de Deus, a aureolada de luz, aquela que não possui a pecha do pecado original, e que é símbolo de todas as virtudes, mediadora entre terra e céu, cujo domínio é o do alto. De outro lado, e diametralmente oposto, o modelo

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da pecadora, daquela que simboliza o baixo, a responsável pelo pecado original, a portadora do sexo e da tentação, a insurrecta, a rebelde, aquela que é contra a ordem instituída, a que desobedece e subverte, a representante dos valores noturnos, sub-reptícios e indomáveis, mediadora entre a terra e o inferno.

Quero fazer notar que, não por acaso, ambas se encontram in praesentia na tradicional imagem da Santa Maria, em indicial dialética do alto e do baixo. A primeira se acha de pé, soberana, reinando absoluta na pureza da sua virgindade, sobretudo porque calca, sob seu pé, a outra, a sua antagonista, figurada na serpente edênica3. Uma, a mulher superior; outra, a inferior.

Passemos, agora, à outra lenda a que me refiro, a da “Dona Marinha”. Aqui, deixamos os espaços povoados pela Dama Pé-de-Cabra, a paisagem interior do paço, os campos de caça e as montanhas, para nos adentrarmos num outro elemento: a água e seus mistérios.

Conta-se, pois, que Dom Froiam, bom cavaleiro, caçador e monteiro, andando um dia a cavalo por suas terras lá pelos lados do mar, encontrou uma mulher dormindo à margem que, quando o pressentiu e a seus três escudeiros, procurou, debalde, se recolher de volta ao mar. Refém deles, a bela mulher é atada a uma besta e transportada ao paço. Lá, Dom Froiam a faz batizar com o nome que lhe caía melhor, pois que saíra do mar. Assim, Dona Marinha teve filhos com Dom Froiam, sendo que um deles chamou-se Joham Froiaz Marinho.

Porém, Dona Marinha “nom falava nemigalha”, muito embora Dom Froiam tivesse tentado de tudo para obrigá-la a emitir algum som - ele que muito a amava. Passou-se, pois, que, um dia, ele, sagazmente, mandou

3 Para tomar conhecimento das diferentes exegeses e apropriações ideológicas dos textos bíblicos acerca da origem da mulher e dos valores culturais relativos ao feminino, consultar AUBERT, Jean-Marie. La femme. Antiféminisme et Christianisme. Paris: Cerf/Desclée, 1975.

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armar uma grande fogueira e, diante da Dona, que se achava fora de alcance, simulou jogar dentro da fogueira o filho. E ela, que assim de longe nada podia fazer para salvar seu adorado rebento, só encontrou como recurso bradar, e bradou tão fortemente, que acabou deitando pela boca afora uma peça de carne. A partir de então, a Dona passou a falar e Dom Froiam a recebeu, pois, como esposa, casando-se com ela.

Eis o texto original: O primeiro foi uu cavaleiro boo que houve nome dom Froiam, e era caçador e monteiro. E andando uu dia em seu cavalo per riba do mar, a seu monte, achou ua molher marinha jazer dormindo na ribeira. E iam com ele tres escudeiros seus, e ela, quando os sentio, quise-se acolher ao mar, e eles forom tanto empos ela, ataa que a filharom, ante que se acolhesse ao mar. E depois que a filhou aaqueles que a tomarom fe-a poer em ua besta, e levou-a pera sa casa.E ela era mui fermosa, e el fe-a bautizar, que lhe nom caia tanto nome nem uu como Marinha, porque saira do mar; e assi lhe pôs nome, e chamarom-lhe dona Marinha. E houve dela seus filhos, dos quaes houve uu que houve nome Joham Froiaz Marinho. E esta dona Marinha nom falava nemigalha. Dom Froiam amava-a muito e nunca lhe tantas cousas pode fazer que a podesse fazer falar. E um dia mandou fazer mui gram fogueira em seu paaço, e ela viinha de fora, e trazia aquele seu filho consigo, que amava tanto como seu coraçom. E dom Froia foi filhar aquele filho seu e dela, e fez que o queria enviar ao fogo. E ela, com raiva do filho, esforçou de braadar, e com o braado deitou pela boca ua peça de carne, e dali adiante falou. E dom Froia recebeo-a por molher e casou com ela.

Possível incorporação de Melusina, a feiticeira aquática, ou da sereia, a Dona Marinha exemplifica, nesta lenda, o caráter empreendedor de uma família, a dos Marinhos (sobrenome que é apropriação masculina do nome dela), família que é capaz de dominar a natureza

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selvagem pela esperteza. Nesta lenda, a simbólica da água retrocede, portanto, diante da simbólica do fogo –pois que a Dona, em lugar de enfrentá-lo e dominá-lo, ao fogo se rende. Há também, aqui, claramente delineada, uma incompatibilidade entre a natureza desumana e meio animal, representada pela mudez, e o mundo digno e redimido pelo cristianismo, representado pela oralidade - a mesma oposição encontrada na Lenda da Dama-Pé-de-Cabra, visto que é o mundo recuperado pelo cristianismo aquele que passa a vigorar, na sua plenitude, no paço de Dom Diego, depois da fuga da Dama.

Caçada, pois, como um bicho, capturada e escravizada, essa mulher que conserva em si o silêncio e o enigma próprios do elemento do qual emana, é, de início, reconhecida por meio do próprio mistério original de onde provém, graças ao nome que o batismo cristão lhe confere. O que pode ser visto como uma espécie de rendição cristã diante da evidência pagã, pois que o ato do batismo apenas lhe autentica a condição de mulher ancestral: Marinha, a que vem do mar, das águas, do elemento movente e mutável, sem fixação possível – atributos culturais próprios do gênero feminino – estranhos, portanto, à ordem e ao equilíbrio, índices culturais do masculino.

Se o fato de silenciar encerra, de um lado, um princípio de subordinação e de inferioridade, ou seja: dificuldade de comunicação, situação sub-humana, defeito, incapacidade - de outro, abastece tal personagem feminina com qualidades poderosas. Ou seja: a Dona se distancia dos outros comuns mortais pelo seu rol de características imponderáveis e, por isso, incontroláveis: a mudez encerra o enigmático, o desconhecido, o intangível e o inominável – enfim, toda a sorte de bens noturnos. E, se ela causa estranheza, causa, portanto, aos outros, temor, visto que, inicialmente, nesse contexto, a mudez é assimilada enquanto insubordinação, marca de diferença.

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Dialética entre silêncio e discurso, a lenda da Dona Marinha se move, fluida, sobre a semântica da preservação do mistério, da impossibilidade de toque, da posse do impronunciável.

Digamos, pois, que a marginalidade onde esse modelo feminino se refugia, logo de início e antes do seu embate com o fogo, o situa em estado de Dama Pé-de-Cabra, de mulher que alberga em si um continente obscuro e estranho, que é domínio das forças ocultas e insondáveis

Se é certo que a passagem da interdição para a voz, do embate da água com o fogo, se dá mediante a exposição de um sentimento humanizado, ou seja, o amor maternal, tal transmutação implica simultaneamente, da parte da Dona, a sua imediata aquiescência aos valores que a rodeiam na nova sociedade em que ingressa. Ou seja: exercendo a fala, a linguagem, a Dona se torna refém, agora, de uma outra ordem que não a sua de origem. Sua existência a partir de então se fará às expensas da sua conversão aos valores vigentes, à língua falada e ao código ideológico flexionado por essa língua no espaço social que ela ocupa.

Podemos afirmar, pois, que é quando, por fim, a Mulher Marinha fala, ou seja, quando ela põe para fora de si o interdito que faz dela uma seqüestrada de potências insondáveis, que ela se desloca da desordem para a ordem, do caos para o mundo organizado e constituído, enfim – para a linguagem. Graças, portanto, ao verbo, a transviada se torna convertida, e seus dotes indomáveis se quedam transformados em outros valores – os mesmos negados pela Dama-Pé-de-Cabra ao proibir a persignação, aqueles que a Dama há de conservar definitivamente como seus, ao fugir para as montanhas com a filha.

Entre uma e outra lenda, a senda do percurso feminino se encontra, pois, invertida. De um lado, temos uma anti-heroína, que resiste e que não se insere na comunidade alheia. De outro lado, temos a heroína

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que cede e que é, por isso, inserida na comunidade adversa. Trata-se, em ambos os casos, do exercício de um mesmo tipo de, digamos, colonização, dominação, de sobreposição de valores – e, por que não dizer, de exercício de poder praticado sobre a mulher. Enquanto a Dama Pé-de-Cabra nunca se permitiu a conversão de um para outro modelo feminino, recusando a sociedade que não a aceita como tal; a Dona Marinha, ao contrário, cai no ardil da cultura forasteira, dá as costas para suas origens, converte-se, integrando-se numa outra sociedade que a tinha como alienígena.

Assim, a crer nos exemplos que estas lendas nos fornecem sobre o olhar medieval acerca do feminino, à mulher que se subtrai do domínio das forças tenebrosas e desconhecidas adotando o império do homem e, por decorrência, o de Deus, transitando definitivamente do paganismo para o cristianismo, é-lhe oferecido o prêmio de tornar-se inserida na sociedade. Este prêmio é simbolizado pelo casamento. Ora, o casamento é um vínculo que, de fato, já existia entre a Dona Marinha e Dom Froiam, visto que a Dona tinha, com ele, filhos, e um deles, o único nomeado, faz transparecer a ascendência que a Dona exercia sobre o seu concubino, visto que no nome desse filho se reconhece o masculino do dela: Marinho.

Todavia, o casamento só se torna legítimo e devidamente sacramentado, apenas depois que ela expulsa do seu organismo aquela “peça de carne”.Ora, essa “peça” é simbolicamente o corpo estranho à ordem vigente – é o continente obscuro, o imaginário, o impoderável, o desconhecido, a desordem, ou seja, numa palavra, o repertório de valores culturais relativos ao feminino, em contraposição aos seus opostos, os valores tidos como culturalmente masculinos. Portanto, na medida em que a Dona se domestica e abdica de seus valores originais - é que Dom Froiam a recebe como sua esposa, casando-se com ela.

E é nesse momento que a Dona perde o interesse

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e que a sua história chega ao fim, na contramão do que ocorre com a Dama Pé-de-Cabra, cujo enigma recobre a interrupção do fluxo narrativo e se adensa justo quando ela foge da sociedade em que vivia para se adentrar definitivamente no seu próprio elemento, no seu próprio mistério – a natureza, as montanhas. Ficcionalmente, o final da lenda da Dama-Pé-de-Cabra não passa de um perpétuo princípio para elocubrações ilimitadas a respeito dela, enquanto que o final da lenda da Dona Marinha a paralisa para sempre, pois que o elemento surpresa, o elemento da ordem do imponderável, fica extinto no ritual de domesticação dela.

Podemos dizer, pois, que, ficcionalmente, a Dama é transitiva, enquanto que a Dona é intransitiva. E tanto é assim que, na continuidade que Alexandre Herculano elabora para essa lenda, é o seu estatuto de foco de mistérios insondáveis que permite à Dama ir em socorro do filho, que vem lhe pedir para livrar o pai do jugo dos árabes. Com seus ardis, magias e encantos, a Dama salvará o ex-marido do cativeiro dos mouros.

Como se vê, a Dama, ao contrário da Dona, conserva, alimenta e adensa, dentro de si, o corpo estranho que não expurgará jamais. Assim, entre uma e outra, vence, na Dona Marinha, o modelo da mulher que vomita o seu feminino de origem para domesticar-se como ser útil e disponível na sociedade medieval. Por seu turno, a Dama Pé-de-Cabra encarna o protótipo da mulher que conserva em si o núcleo inexpurgável - a identidade rebelde e imbatível.

Entretanto, é na lenda da Dona Marinha, justo porque a heroína passa de um para outro estágio, de um para outro modelo, que a metáfora da identidade feminina parece se mostrar com maior transparência. Nela, podemos recolher a sugestão do feminino enquanto lugar disponível, enquanto continente capaz de acolher diferentes conteúdos, enquanto espaço passivo, movediço, capaz de asilar tanto uma quanto outra potência, conforme quem seja o vitorioso no litígio

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pela posse desse lugar vacante. No caso da Idade Média em que este modelo se insere, os valores adversários, reféns de potências antagonistas, ansiosos para disputar tal espaço, entram num claro litígio entre cristianismo e paganismo, entre deus e diabo.

Por isso mesmo, a figura da “possuída”, da “possessa”, como sugere Monique Schneider em Le Féminin Expurgé4, é, nesse sentido, muito adequada para a emblemática do feminino. Na história da condição da mulher, o feminino pode ser concebido como um terreiro sem dono, como um território vazio e expugnável, onde forças poderosas e antagonistas travam incessante contenda para dele tomar posse. Nas cartas de Mariana Alcoforado, que tratarei de examinar, a seguir, este espaço, como se verá, vai ser disputado entre deus e o homem.

Mas antes de passarmos a esta Sóror do século XVII, queria comentar um soneto de Florbela Espanca, intitulado “Mais alto”, e situado no póstumo Charneca em flor, que data de 1931. Não esquecer que também esta poetisa devaneou-se enquanto uma Sóror do século XX. Confira-se o seu Livro de Sóror Saudade, editado em 1923. Pois bem. Nesse referido poema intitulado “Mais alto”, a poetisa parece elaborar uma leitura dialética daquilo que a Dama Pé-de-Cabra e a Mulher Marinha inauguram para a cultura portuguesa.

O soneto desenvolve um percurso ascensional de um desejo ardente da emissora, que consiste em alcançar uma altitude impossível, que a desligue de si mesma, a fim de se reconhecer, nesse estágio de suprema altura, como uma autêntica Mulher. Leio o poema:

4 Cf. SCHNEIDER, Monique. De l’éxorcisme à la psychanalyse. Le féminin expurgé. Paris: Retz, 1979.

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Mais alto, sim! Mais alto, mais alémDo sonho, onde morar a dor da vida,Até sair de mim! Ser a Perdida,A que se não encontra! Aquela a quem

O mundo não conhece por Alguém!Ser orgulho, ser águia na subida,Até chegar a ser, entontecida,Aquela que sonhou o meu desdém!

Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!Turris Ebúrnea erguida nos espaços,À rutilante luz dum impossível!

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couberO mal da vida dentro dos meus braços,Dos meus divinos braços de Mulher!5

Nesse devaneio ascendente e, ao mesmo tempo, voluptuoso, em busca da graça, do alcance da espiritualidade e da pureza, Florbela vai tangenciar, como se vê, a condição feminina. Aqui, a altura parece ser almejada como degrau de ultrapassamento das fronteiras do real e da vida, como método de expurgação do próprio eu atormentado, como forma de excedência e de extrapolação da identidade, numa via ascética de quase desencarnação.

Todavia, a dialética do leve e do pesado, aí empregada, faz comparecer, ao lado dos valores de luz, sonho, orgulho, águia, divindade, duas expressões de peso relativas à sua contingência, cuja carga de gravidade puxa para baixo o impulso ascedente: na primeira estrofe, “a dor da vida”; na última estrofe, “o mal da vida”.

É indicial que tais expressões contrastantes com o estado de leveza que se quer alcançar, abram

5 Poemas de Florbela Espanca (edição preparada por Maria Lúcia Dal Farra). São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.240.

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e fechem o poema. Assim, aquilo que diz respeito à condição terrena da emissora, ou seja, os índices da sua vida terrenal, a dor e o mal, funcionam como extremos opostos diante da necessidade de se expandir pelo leve e pelo etéreo, via para a sensação divinal a que se procura chegar.

Se Florbela busca se tornar, pois, a Intangível, a Túrris Ebúrnea erguida no alto, seus anseios se dirigem, sem dúvida, ao encalço de uma imagem feminina que não é outra senão a da mulher santíssima, a da Virgem Maria. Comprovam essa hipótese a presença da “rutilante luz”, pela qual ela se quer envolvida, e o desejo do “impossível”, que se condensam enquanto propriedades dessa Mulher com letra maiúscula, sobre a qual o poema desemboca.

Mas de que espécie é essa Virgem florbeliana? No caso deste soneto, esta Virgem Maria não pisa, como a outra tradicional, o “mal da vida” – a simbólica do pecado original, associada à mítica de Lilith e de Eva. Em vez de Florbela fazer a sua Virgem calcar a emblemática da serpente sob os pés, ela, ao contrário, quer erguê-la de baixo para cima, para suspendê-la e albergá-la no seu regaço, acolhê-la nos seus braços - braços que, só assim, se convertem nos seus “divinos braços de Mulher”.

O que a Virgem florbeliana agasalha junto ao peito é, nada mais nada menos, o paradoxo do bem e do mal concernente à mística feminina. Em Florbela, a Virgem puríssima abraça o impuro, acatando o humano no divino, fundindo um no outro. A meu ver, esse é o seu modo de declarar que a porção maléfica ou demoníaca atribuída à mulher - esse corpo estranho, esse continente negro com seus corolários de valores do noturno e do desenfreado – não pode ser expurgada sequer da imagem mais celestial que erige para si mesma. Para a plenitude da mulher, ambas as naturezas devem coexistir em harmonia.

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Passemos, pois, agora, às Cartas de Mariana Alcoforado.6

Poder-se-ia dizer das cinco cartas desta Sóror do século XVII7, que são uma recolha da simbólica da mulher na cultura portuguesa, porque elas parecem abrigar, para incorporar em si, certos lastros do feminino semeados, desde a Idade Média, pela lírica e pela satírica. Encontram-se atualizadas, nesta obra, as tópicas da vassalagem amorosa das cantigas d’amor (tratadas, todavia, de maneira invertida) bem como as tópicas das cantigas d’amigo, cuja matriz, a da ausência do amado, remete à dor da sepraração, aos tormentos do ciúme e da saudade, partilhados com as amigas pela mulher abandonada. Também as tópicas da soldadeira e da religiosa das cantigas d’escárnio e maldizer encontram

6 Mas, para tal, devo atravessar algumas discussões sobre a viabilidade de existência e de autoria desta freira, bem como a possibilidade de as cinco cartas atribuídas à sua mão terem sido escritas originariamente em português ou em francês. Tais incertezas e oscilações acerca dessa obra permitiram que se adicionasse a ela toda uma fortuna de respostas e de ciclos literários que retomam a sua temática, de modo a transformá-la em perene fonte de produção literária. De maneira que tais dados se agregaram em definitivo à história dessa obra, a ponto de constituírem seus contextos essenciais ou circunstancias, permanecendo contíguos a este objeto ficcional enquanto um bem coletivo que também integra o imaginário feminino português. 7 Adoto a disposição cronológica e os textos de Alcoforado segundo a edição estabelecida por Maria da Graça Freire (Mariana Alcoforado. Cartas. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1962, Coleção Nossos Clássicos). As cartas encerram um amor de dedicação absoluta que abarca por inteiro a sua emissora, amor em que o eu feminino se aniquila, visto que encontra a sua existência apenas no estar-se disponível ao amado. Nelas, a consagração total ao amante é o valor supremo que concentra toda a existência dessa mulher. Escritas a partir de um filtro analítico profundamente observador, as cartas abordam com lucidez implacável a situação de penúria da mulher abandonada, graças a uma proferição não por acaso tortuosa de raciocínios, de ditos sentenciosos, de artifícios de estilo, de preciosismos e de formalismos. Veemência passional, oscilação emocional, instabilidade de pudor que afeta a dignidade feminina, ilusões e desespero, ataques e retrocessos amorosos, verrumação da psicologia da mulher – os limites destas cartas transbordam, pois, para além da escrita.

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nessas cartas a sua reatualização8. Para quem não sabe, esta pequena

epistolografia narra o desenrolar final do romance entre a Sóror Mariana Alcoforado e oficial francês Noël Bouton de Chamilly (que tornar-se-ia Conde de Saint-Léger e, posteriormente, Marechal). A freira o teria conhecido no Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja, no Alentejo Português, onde Mariana vivia desde os 11 anos, depois de ter tomado hábito aos 16 anos de idade, e onde o nobre francês ficara hospedado ao longo de alguns meses durante as campanhas de consolidação da independência portuguesa, no período contido entre 1663 e 1668. Após essa data, Chamilly parte de volta à sua pátria, e as cartas que ela lhe escreve, cinco ao todo, são um belíssimo exercício de autoespelhamento e reflexão, primeiro amorosa, depois, pateticamente racional, através do qual ela vai pouco a pouco se dando conta do estado de abandono em que foi deixada pelo amante9.

Já no século XX, em 1972, as cartas de Mariana foram retomadas por Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno em livro intitulado Novas Cartas Portuguesas, obra que causou

8 A reputação das religiosas é matéria de que também se ocupam as cantigas d’escárnio e maldizer medievais. Reproduzo, como pequena ilustração, uma peça de Pero Garcia de Ambroa (século XIII):

Quand’eu passei por DormãaPreguntei por mia coirmãaA salva e paçãa.Disserom: Nom é aqui essa,Alhur buscade vós essa;Mais é aqui a abadessa.

Preguntei: Por caridade,U é d’aqui salvidade,Que sempr’ amou castidade?Disserom: Nom é aqui essa,Alhur buscade vós essa;Mais é aqui a abadessa.

9 Conferir nota final

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grande embaraço e infindável polêmica durante o último período salazarista. Lembro que esse livro foi recolhido pela censura e que suas autoras foram obrigadas a responder a um processo judicial, em que foram acusadas de falta de decoro, e em que se exigiu, debalde, que cada uma identificasse o trecho da obra que lhes dizia respeito.

O trabalho conjunto destas Marias se propunha a inaugurar uma nova voz feminina por meio de uma percepção diferente de escrita, que estabelece uma relação direta com o corpo, tomando a obra da freira seiscentista como fundamento para uma declaração de direitos da escrita feminina. De maneira que as Novas Cartas se centram num eixo extraído dos textos de Mariana Alcoforado, que se rege pela convicção de que a paixão serve de pretexto, para a mulher, para o alcance de uma aprendizagem sobre si mesma e sobre a vida, que lhe permite ultrapassar a sua condição ancestral de portadora do pecado.

Quanto a esse fato, valeria a pena mencionar, ao menos, que o tratamento feminino no romance de uma destas Marias, precisamente no Maina Mendes10 de Maria Velho da Costa, publicado antes da Novas Cartas, em 1969 - tem raízes fincadas na releitura dessas duas lendas que tenho insistido em analisar. A personagem principal Maina Mendes, “criatura demasiado habitada por heranças outras”(p.13), tal como é identificada pelo narrador, é uma espécie de cadinho onde a Dama Pé-de-Cabra e a Dona Marinha se fundem, com todos os seus corolários de marginalidade, estranhamento, silêncio e oralidade, mudez, inserção no corpo social ou expurgação dele.

A linhagem matrilinear de Maina Mendes tem certamente início com elas. Para referir muito

10 Cf. Maina Mendes, de Maria Velho da Costa. Lisboa: Moraes Editores, 1969, 1ª. edição.

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rapidamente, eu diria que, de um lado, a “qualidade de fero amuo” (p.12), a perseverança na “mudez de corpo”, a sobrevivência cordata entre os humanos, tal qual “a besta fera” (p.70), tornam-na parente próxima da Dona Marinha. De outro, o não buscar “homem mas guarida segura para seguir sendo sem dono” (p.93), o apresentar-se como loba “em lura de cerdo” (p.107), o infestar as carnes e a casa do marido, arredando-o do “trilho firme que singram as nações e as famílias de bem” (p.115) – a tornam descendente direta da Dama Pé-de-Cabra.

Mas não é meu intuito tratar agora deste romance contemporâneo. Regresso ao século XVII para tentar desentranhar dessas cartas de Mariana Alcoforado as imagens femininas que a habitam. A primeira delas é, pois, muito contundente, visto que é aquela que afirma a Sóror como grave pecadora, como aquela que pode ser dita idólatra ou herege - e nisso Mariana se aproxima à Dama Pé-de-Cabra. Vejamos por que.

Consagrada a Deus, freira de véu preto, Mariana erige, no lugar d’Ele, e como vicário divino, a um homem, entregando-lhe a vida tal qual o fiel religioso o faz a Deus. Essa atitude inclui, também, a da profanadora, porque Mariana comete a falta dentro dos sagrados muros do convento.

Do ponto-de-vista da sociedade de onde provém, Mariana perde duplamente a honra: a familiar, visto ser originária de uma nobre casa portuguesa; a religiosa, visto ser uma freira consagrada a Deus. E, nesse sentido, ela encarna uma das imagens vigentes do feminino no mundo ocidental: a versão da mulher enquanto ser irresponsável e menor-de-idade, enquanto aquela que não sobrevive sem a tutela masculina, encerrada em definitivo na triste trilogia mulher-escravo-criança. À imitação da Dona Marinha, Mariana é uma mulher capturada, encerrada numa prisão - num convento – casada (mas contra a sua vontade) com Deus.

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Entretanto, ao contrário da Dona Marinha que, abandonando o interdito usa a fala para ingressar no silêncio e no código vigente, Mariana busca a sua realização e a sua individuação abandonando a mudez a que foi relegada, para exercer a sua voz na manifestação do interdito, a fim de expor claramente as suas prerrogativas de mulher, que levanta contra a ordem instituída. E ela se mostra ainda mais ousada porque o faz justo através de um instrumento considerado culturalmente masculino: a escrita, de que ela, como mulher, se apropria.

Por meio da redação de suas cartas, a voz de Mariana se faz ouvir, bela, audaciosa, reclamante, irreverente, desafiante, debatendo-se contra a sociedade na qual está inserida por nascimento; voz insurrecta que se rebela contra o que lhe foi imposto e que, não podendo fugir ao estado de cativeiro em que se encontra no claustro, reluta produzindo a sua libertação por meio do engendramento literário da sua dor.

As cartas constituem, pois, a sua maneira de alforria, de recusa dos grilhões, porque lhe permitem agir como amante, como agente, como sujeito de ações. De maneira que a passividade própria que encontramos na condição da freira, da Sóror, se metamorfoseia, em Mariana, em ação vital, em maneira de exorcizar a inércia e a resignação atribuídas à histórica condição feminina. Por isso mesmo, Mariana ascende da morte à vida, e sai da cela para a luz do dia.

A escrita torna-se, pois, o parto que faz nascer Mariana para uma outra vida, para uma existência efetiva, muito embora o que as cartas revelem seja de fato esse debater-se, esse dilaceramento dentro do próprio ato de escritura. Mas o grande mérito dessas cartas será o de ultrapassar esse inicial estágio mundano de urgência de um interlocutor, para desembocar em outro, que prescinde de Chamilly.

Mariana vai encontrar na pura contemplação abstrata do Amor, desse Amor criado pelo seu ato de

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escrita e que transcende, pois, o objeto do desejo, a sua atuação real. De maneira que a devolução final dos presentes de Chamilly lembra as fases de um ritual de despojamento do mundo, de separação dos bens profanos para dedicação a um bem maior. No caso de Mariana, trata-se da profissão de fé a um outro deus: o deus do Amor.

E tudo o que ela oferecera antes ao amante, como vicário de Deus, ela dedica, agora, ao Amor: sua concentração, sua dedicação, enfim, o claustro, que, antes, ela erigira a Chamilly.

E é curioso como este mesmo claustro faz história no Livro de Sóror Saudade de Florbela Espanca. Florbela o concebeu, por sua vez, como um “claustro das quimeras”, o que nos leva a suspeitar da atração hipnótica que a cela mística exerce sobre a escrita feminina em língua portuguesa, como uma espécie de ante-sala da explosão erótica.

De maneira que encerro esta aula, lendo dois quartetos de um soneto de Florbela, que se desenvolve dentro dessa linhagem. Muito embora intitulado “Renúncia”, ele expõe, com muita vivacidade, a promessa erótica que já o seduz na figura da Lua, não por acaso aqui chamada de “Satanás”:

A minha mocidade outrora eu pusNo tranqüilo convento da Tristeza;Lá passa dias, noites, sempre presa,Olhos fechados, magras mãos em cruz...

Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!Desdobra-se em requintes de Beleza...É como um beijo ardente a Natureza...A minha cela é como um rio de luz...11

11 ESPANCA, Florbela. “Renúncia”. Livro de Sóror Saudade. Poemas de Florbela Espanca. Op.Cit. p. 194.

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Em Florbela, é a clausura que a endereça ao renascimento amoroso e sensual presentes no seu seguinte e derradeiro livro de versos, o Charneca em flor. Mas, já aqui, nos adentramos em matéria mais alentada que, em outra ocasião, tratarei de discorrer mais livremente.

Muito obrigada.

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i Não se trata de discutir aqui este rol de informações, que apenas indico em rodapé.

Em 1669, aparece em francês, “chez Claude Barbin”, a primeira edição das Lettres Portugaises traduites en français, com a explicação de que ele teria conseguido “recuperar uma cópia correta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um nobre gentilhomem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os sentimentos do coração humano são unânimes ou em louvá-las ou em procurá-las com tanto empenho, que julguei prestar-lhes um bom serviço imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele a quem foram escritas, bem como daquele que as traduziu; mas parece-me que não cairia no seu desagrado publicando-as.” (Lettres Portugaises traduites en François. Paris: Chez Claude Barbin, 1669). O fato de que o nome da emissora dessas cartas não viesse a lume na ocasião não é de se estranhar, uma vez que, neste severo tempo de Inquisição, nem mesmo outras autorias femininas, como, por exemplo a de Sóror Violante do Céu, vinham estampadas nas suas produções. Ainda em 1669, semanas após a primeira publicação, surge a segunda edição das cartas, conhecida como a Edição de Colônia, muito embora se saiba que tenham sido tais volumes impressos na Holanda. É nesta publicação que já ficam, pois, identificados tanto o destinatário quanto o tradutor das cartas.

A referida edição tem por título Lettres d’amour d’une religieuse écrites au Chevalier de C., Officier François en Portugal, e é editada “Chez Pierre Marteau”. O destinatário das cartas fica esclarecido como sendo o Cavaleiro de Chamilly, e o tradutor das cartas (do português para o francês) é reconhecido como sendo o Conde Guilleragues. Este, que era amigo de Racine, seria considerado, por algum tempo, também como o autor destas cartas que, só em 1669, obtiveram três edições e que, entre o século XVII e o XIX alcançaram, em diversas línguas,

NOTA

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um montante de cerca de 90 diferentes edições. Apenas em 1810, no Journal de l’Empire, se identifica a produtora das cartas como sendo Mariana Alcoforado, freira do Convento de Beja (Alentejo, Portugal). É Boissonade quem fornece tais dados; teria ele obtido tais especificações por meio de anotações contidas numa edição das cartas datada de 1669, por ele localizada. Todavia, a primeira publicação portuguesa só ocorreria depois de cem anos da sua publicação em francês e, a partir de então, começa a crescer o interesse em se especular sobre os dados biográficos de Mariana Alcoforado. Diversos escritores portugueses se põem em campo para delucidar a vida dessa mulher que, para Alexandre Herculano, teria escrito diretamente em francês. Camilo Castelo Branco conclui, por fim, que fora ela, de fato, freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja, informação que, investigada por Luciano Cordeiro em 1888, se transforma na primeira publicação sobre o assunto.

Assim, segundo Cordeiro, Mariana teria nascido em Beja, no ano da libertação de Portugal do domínio espanhol, ou seja, a 22 de abril de 1640, e teria falecido em 28 de julho de 1723, com 83 anos de idade. A lei dos vínculos, que procurava impedir o desmembramento das grandes casas através da partilha dos bens, levava à imolação das filhas e dos filhos mais jovens. De maneira que os conventos se enchiam de rapazes e moças sem nenhuma vocação religiosa, postos à margem pelos próprios pais. É por essa razão que Mariana teria entrado no Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja, ainda com 11 anos de idade, para ser freira de véu preto, tendo professado em 1656, com 16 anos. Cordeiro também encontra registros de Dona Bristes, nomeada nas cartas, que desempenhou o papel de protetora desse Convento durante a época em que ali teria vivido Mariana. O destinatário das cartas parece ter sido, pois, Noël Bouton de Chamilly, que nasceu em 1636 e morreu em 1715 com 79 anos, tendo estado em Portugal por ocasião das lutas de consolidação da recém-restaurada independência portuguesa, ou seja, das campanhas de reconstituição do trono de D. Afonso VI, no período de 1663 a 1668. Um irmão de Mariana, Balthasar, teria combatido ao lado de Chamilly. Este recebera o título de Conde de Saint-Léger, tendo sido promovido a marechal em 1703, após a campanha de Candie. Saint-Simon, em suas Mémoires, refere Chamilly como um bravo homem, porém gordo e deveras idiota. Saint-Simon e Laclos atestam ser ele o destinatário das cartas, fato que não foi, aliás, contestado pelo próprio.

Num pequeno romance publicado em 1772, intitulado Médaille curieuse où sont gravez les principaux écueils de tous les jeunes coeurs, de L.C.d.V., conta-se que, estando este autor num navio que conduzia as tropas de Toulon a Candie, viu um eclesiástico, o Padre Chavigny, juntando uns papéis que tinham sido jogados ao mar. Tais papéis seriam as cartas de uma religiosa portuguesa para alguém que as mostrava aos companheiros quando, em seguida, resolveu arremessá-las ao mar. E que Monsieur de Chamilly, vendo-as afundarem-se pouco a pouco, oferecera muito dinheiro a quem as pudesse trazer de volta.

As cartas foram muito apreciadas por escritores de diferentes línguas: Madame Lafayette e Racine se confessam

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influenciados por elas; Samuel Richardson assegura que sua Clarissa é uma réplica a tais cartas. Para Rilke, tradutor alemão das cartas, e que a elas se refere nos seus Cadernos de Malte Laurids Brigge (1943), elas testemunham a perfeição no amor, um amor que excede a dor imensa e acaba por ser um absoluto, independente do ser amado. E ele cita a frase de Mariana: “o meu amor já não depende do que fizeres”, onde, segundo crê, o amor teria atingido o ponto extremo, que é quando o sentimento liberta-se e ultrapassa o objeto. Quanto às discussões acerca da autenticidade das cartas são elas controvertidas. Segundo Guéret, em Promenade de Saint-Cloud (1669), as cartas não passariam de um artifício literário utilizado pelo editor que, sofrendo dificuldades monetárias, teria se apropriado de tal estratégia com fito unicamente comercial. Em 1926, F.C.Green encontra na Bibliothèque Nationale de Paris a cópia do privilégio real para a sua impressão, conferido a Guilleragues, mas, é de se convir, trata-se apenas de uma reserva de direito autoral e não de uma garantia de autenticidade.

São a favor da tese de existência de Mariana: La Bruyère, Laclos, Stendhal, Sainte-Beuve, Rilke, Camilo Castelo Branco, Jaime Cortesão, entre outros. Contra ela: Barbey d’Aurevilly e Rousseau, por exemplo. Hernâni Cidade e Le Gentil aceitam a autoria portuguesa; Conde de Sabugosa aceita a autoria francesa. Contra a autoria portuguesa se alinham: F.C. Green (1926), Gonçalves Rodrigues (1935), Sptizer (1953), Deloffre e Rougeot (1962). Hernâni Cidade considera que pertençam a Mariana Alcoforado a substância das cartas, a emoção, a realidade moral, o vigor comunicativo; mas que sejam do tradutor francês os pormenores da forma, da análise psicológica bem como o tom romanesco.

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POLÍTICA EDITORIAL

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham participado de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam a produção de textos teóricos ou críticos produzidos por professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL - UFSM.

Esses trabalhos devem ser resultado de projetos vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.

A publicação de traduções deverá complementar os textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar prefácio que justifique a importância do texto e sua vinculação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo tradutor.

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Page 39: volume 01 - coral.ufsm.brcoral.ufsm.br/mletras/images/cogitare01.pdf · Este dom Diego Lopez era mui bom monteiro, e estando uu dia em sa armada atendendo quando verria o porco, ouvio