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1997 Sérgio Gouveia @ 2012 Vitória – A Força de Viver

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1997

Sérgio Gouveia

@ 2012

Vitória – A Força de Viver

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Uma Grande doença

Com um pequeno nome -Anónimo-

A todos os que sofrem desta terrível doença que encontrem o apoio e conforto de que necessitam.

À S., aquela que sempre ocupou um lugar importante na minha vida.

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I PARTE

O meu nome é Carlos. Já à algum tempo que tentava dar forma a uma

promessa que fiz há cerca de dois anos atrás.

O sentido deste livro é exactamente esse, cumprir uma promessa, e não

fazer julgamentos de ninguém.

Antes de iniciar este relato, devo dizer como era, antes de tudo começar. Eu

era um jovem normal, que na força dos 17 acreditava ser capaz de tudo e

que nada me iria segurar. Não pensava muito na morte, pois achava que

tinha muito tempo para viver, aliás, acreditava ser quase imortal.

Participei nas manifestações contra a PGA e contra as propinas, defendia a

causa de Timor Leste. Apesar de tudo isto nunca fui politicamente correcto.

Sem nunca ter tido papas na língua, criticava tudo o que estava mal, fosse

qual fosse a causa.

Como diversões ia duas vezes por semana à discoteca, ia ao cinema quando

estreava um filme razoável, mas o que eu gostava era de ouvir musica,

principalmente Heavy Metal.

Em suma, era membro daquela geração chamada por um director de um

jornal de um jornal, de Geração Rasca.

Porque é que disse isto tudo? Bem depois de ler o resto do livro será notório

que a minha maneira de ser motivou o meu conhecimento.

Já disse que nunca pensava muito na morte, mas passei a pensar nela cada

vez mais. Não sei, há coisas que nos fazem pensar, e na verdade a única

coisa garantida é a morte. Todos nós, ricos ou pobres, brancos ou de cor,

homens ou mulheres, todos nós temos de morrer um dia. O triste é que por

vezes a morte chega cedo demais...

Li um dia que a morte é um passaporte para outro mundo, mundo esse

pintado pela religião como sendo um mundo prefeito, sem males de

nenhuma espécie. Hoje já não sei no que acreditar. Fui educado no

Cristianismo, mas não consigo conceber ou acreditar num Deus que permita

que os seus filhos sofram.

Pego numa folha de jornal e o que é que está lá escrito? Mortes, Guerras,

Ódio, Racismo, Matança de Inocentes... Tantos crimes contra a

Humanidade, cujos culpados escapam impunemente, e os inocentes

terminam numa qualquer vala, solitária ou comum, onde ninguém se

recorda deles.

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Acordo todos os dias, olho á minha volta esperando alguma coisa diferente

e o que vejo é sempre igual. Deito-me e penso: ”Esta talvez seja a minha

última noite!” e tento rezar... Mas já não acredito em nada nem sequer em

Deus.

Posso parecer muito pessimista, mas quando se passa pelo que eu passei é

impossível pensar de outra forma. Habituamo-nos a ver a morte de longe,

mas quando ela nos toca de perto vemos que não há mais nada, que a vida

é o que é, nada mais, e que independentemente das nossas diferenças nós

somos todos iguais, sangramos da mesma forma, choramos quando

estamos tristes, rimos quando estamos contentes. Como podemos pensar

que somos diferentes? Não sei.

***

Tudo começou na passagem de ano de 1991 para 1992... Depois de ter

ultrapassado em muito das minhas medidos, fui parar ao Hospital em coma

alcoólico.

Depois de quatro horas a soro, um pouco cambaleante pus-me a pé,

arranquei as agulhas e comecei a andar pelos corredores. Sem saber muito

bem como, fui parar a uma ala silenciosa ao máximo.

Olhando para dentro dos quartos via quatro, cinco, por vezes seis doentes

deitados em cama e mesmo em macas. Passei por meia dúzia de quartos

sem que nada me chamasse a atenção. Mas ao passar por um deles houve

algo que me chamou a atenção:

Ao contrário dos outros quartos, naquele só estava uma pessoa, uma

rapariga sentada numa cadeira a olhar fixamente para um ramo de rosas

(creio que eram amarelas) já secas pelo tempo. De resto tudo no quarto era

branco: as paredes, os lençóis, os cortinados, a bata que a rapariga usava,

era tudo branco.

Talvez ainda tocado pelo álcool, bati à porta do quarto. Ela olhou para mim

muito admirada, mas deixou-me entrar.

- Feliz Ano Novo! – Disse eu logo que entrei.

Ela respondeu que não sabia porque é que ele haveria de ser feliz e

perguntou-me o que é que eu queria.

Antes de ter tempo para responder, uma enfermeira que passava pelo

corredor, foi-me buscar ao quarto e disse-me secamente que não era

permitido andar pelos corredores e muito menos incomodar os doentes.

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Ao sair do quarto acrescentou que eu devia ser maluco por estar naquele

quarto. Na altura não percebi porquê, mas uns dias depois vim a descobrir.

Entretanto uns amigos meus vieram-me buscar para me levarem para casa.

Durante a viagem, no meio daquelas conversas banais que se têm com os

amigos, dei por mim a pensar naquela rapariga, tentando lembrar-me de

tudo o que pudesse.

Ela era loira, apesar de todo o brilho do seu cabelo já se ter perdido. Parecia

ter o cabelo da cor daquelas rosas. Os olhos eram claros, talvez verdes, e

através deles podia ver-se grandes tristezas. “Devia ter sido muito bonita.”

Tomei a decisão de tentar ir vê-las ao Hospital nos dias seguintes.

***

Dois dias depois faltei às aulas, comprei um grande ramo de rosas amarelas

e fui para o Hospital.

Quando lá cheguei é que percebi que não sabia nada sobre ela, nem o

nome, nem o quarto, nem a ala, nem sequer o que ela tinha. ”Vou parecer

ridículo!” Apesar de tudo dirigi-me à recepção disposto a tentar, pelo menos

tentar.

Tive sorte! A enfermeira que me tinha expulso estava lá a verificar uns

papeis. Esperei cinco minutos, e quando ela se dirigia para o interior do

Hospital, fui falar com ela.

Após muita persuasão, consegui que ela levasse as flores à rapariga e lhe

perguntasse se eu poderia ir vê-la.

Atravessou duas enormes portas brancas, e eu fiquei à espera. Deviam ter

passado 15 minutos (os mais longos da minha vida) quando ela voltou.

Disse-me que podia entrar mal fosse à recepção tratar da entrada. Mas

perguntou-me se eu sabia o que estava a fazer. Com a minha resposta

afirmativa e determinada disse-me para ter cuidado.

Após ter tratado de tudo, dirigi-me ao quarto dela. Já sabia que se chamava

Vitória Santos, que estava no quarto 306, mas ainda ninguém me tinha

informado da doença, nem eu me tinha preocupado.

***

Ao chegar à porta, bati ao de leve, e esperei pela permissão para entrar.

- Olá! Lembras-te de mim?

- Sim estiveste aqui na outra noite. O que vieste aqui fazer?

- Estava a dar uma volta e vim parar a este corredor.

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- Porque é que voltaste, se sabias... – Olhou para as flores – São muito

bonitas.

- Gostas? Não sabia quais trazer, mas lembrei-me que eram iguais às que

estavam aqui no outro dia.

- Como é que te chamas?

- Sou Carlos.

- E eu Vitória.

- Sim eu sei, a enfermeira já me tinha dito. Posso saber o que é que tens?

- Ainda não te disseram? Então está explicado porque é que aqui estás!

Sou zero–positiva... Tenho SIDA!

Acho que ela viu o meu ar de assustado. A minha primeira reacção foi sair

dali, mas não me conseguia mexer, foi ela que disse que eu podia ir-me

embora se quisesse. E eu aceitei a sua ideia.

Ainda a ouvi agradecer as flores.

***

Não foi muito nobre a minha reacção, mas eu não estava preparado para

aquilo. Em 1991/92 o SIDA ainda era um tema tabu, embora começassem a

vir a público algumas noticias sobre ele, eu pouco ou nada sabia sobre esta

doença.

A velha ideia que fora lançada em meados da década de 80 que o SIDA era

o castigo de Deus para quem tivesse comportamentos anormais, ainda

estava muito enraizada nas pessoas e, muito embora começassem a

aparecer pessoas famosas com SIDA, o facto é que ninguém sabia muito

bem o que ele era.

Por isso só o referir-se o seu nome levava a que as pessoas se

assustassem, compreendendo-se assim o meu comportamento.

Todas as pessoas, principalmente os jovens, assustam-se com a ideia da

morte, por isso tendem a afastar-se daqueles que estão a morrer. É por

essa razão que colocam os idosos em lares ou abandonam os animais

quando eles chegam a uma certa idade.

A minha primeira reacção foi exactamente essa, afastar-me, fui até à casa

de banho e lavei as mãos e preparei-me para sair dali o mais depressa

possível, sem sequer olhar para trás.

***

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Ao sair dos portões do Hospital, ouvi uma buzina a apitar atrás de mim. Ao

olhar para ver o que era, vi a enfermeira que me tinha ajudado a entrar.

Parou o carro ao meu lado e ofereceu-me boleia.

- Então! Queres falar deste teu encontro? Não? Eu compreendo. Deve ter

sido difícil para ti saberes o que soubeste. Eu tentei avisar-te. Tu

pareces diferente dos outros rapazes. Nunca tinha visto nenhum voltar

ao Hospital para ver uma pessoa internada sem a conhecerem.

- Devia estar bastante mal no ano novo!

- Talvez... Mas acredito que tudo tem uma razão. Os Árabes têm uma

expressão: Maktub, que significa está escrito. Eles acham que tudo na

vida está definido, se vamos a um lugar, com quem falamos, tudo, tudo

tem um sentido.

- Que tristeza de vida deve ser essa, ter de fazer tudo que outra pessoa

definiu para nós.

- Sim tens razão. Mas pensa nisso. Se quiseres falar este é o meu número

de telefone, ou então vai até ao Hospital e pergunta por mim. Sou a Elsa

Castro, está bem?

Passou-me um pequeno cartão, com o seu número de telefone. Logo a

seguir chegamos à estação, onde eu saí para apanhar o comboio. Toda a

viagem até casa eu pensei em tudo o que se passou naquele dia. Ao chegar

a casa fui logo telefonar-lhe, tendo ficado combinado encontrarmo-nos no

dia seguinte no Hospital.

***

O dia seguinte era Sábado, por isso não tinha aulas. Saí cedo de casa para

estar lá na hora marcada. Meia hora depois já estava na porta do Hospital.

Entrei e fui para a sala de espera, onde fiquei até ela terminar o turno.

45 minutos depois, ela apareceu e pediu-me que fosse com ela até à sala

dos enfermeiros para falarmos mais calmamente. Sentámo-nos em duas

cadeiras de ferro das que rodeavam uma mesa também de ferro.

- Pensaste melhor?

- Sim. Foi por isso que vim aqui. Queria saber mais sobre aquela doença.

- Aquela doença? Olha é melhor tratá-la pelo sue nome. Vais ver que será

mais fácil para conviver com ela.

- ...

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- Está bem. A informação sobre o SIDA é bastante reduzida. Sabe-se que

é transmitido através de trocas de fluidos orgânicos, principalmente

pelas relações sexuais ou contacto com o sangue. Neste último caso

apenas se ambos estiverem a sangrar. Pelo simples contacto social não

é transmitido.

- Ontem quando ela me disse o que tinha, só me apeteceu sair e ir lavar

as mãos. Quando cheguei a casa fui logo tomar banho...

- Compreendo o teu receio. Ainda vejo colegas meus que não tocam neles

sem luvas de cirurgia. Já vi médicos a fazerem o mesmo. Mas não

tenhas receio, pois só por tocares neles não apanhas SIDA. Foi por essa

razão que a Vitória estranhou muito o teres voltado lá. Normalmente só

a família é que os visita, e mesmo assim nem sempre.

«O que eles querem é ser tratados como iguais, não imaginas como é triste

passar-se por aquela ala nas horas das visitas... Meia dúzia de pessoas,

uma ou duas em cada quarto, a olharem o vazio, a tentar inventar alguma

coisa para dizer. Finalmente despedem-se e vão-se embora, em silêncio.

«Já ninguém tem ilusões. Todos sabem que vão morrer. A maioria está já

na fase terminal.

- A Vitória?

- Também. Os médicos não lhe dão mais de seis meses.

Estas últimas palavras assustaram-me. Creio que foi aqui a primeira vez

que me apercebi da minha mortalidade. Aquela rapariga que eu conhecera à

menos de uma semana, que deveria ter mais ou menos a minha idade,

estava a morrer. Não tinha mais de um ano de vida.

Fiquei em silêncio alguns minutos e depois um pouco a medo perguntei se

podia fazer alguma coisa para ajudar.

- Podes ser amigo dela. É isso que ela mais precisa neste momento.

A vida é assim. Feita de decisões repentinas. Em dois dias a minha vida deu

uma volta de 360 graus, ou para ser mais exacto de 90 graus. Mudei o meu

rumo de vida numa direcção totalmente diferente daquela que seguia.

Aquele Carlos que existia à uma semana atrás foi-se apagando lentamente,

de tal forma, que só hoje que olho para o meu passado é que vejo o quão

diferente fiquei; é que vejo as grandes mudanças que se operaram em mim

em tão pouco tempo.

***

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No Domingo voltei ao Hospital, numa das inúmeras visitas que passei a

fazer a partir daí. Pretendia estar lá quando os pais dela chegassem para

falar com eles e pedir-lhes para que me deixassem visitá-la.

Eram 15h30 quando eles chegaram. Eu não os conhecia, mas tinha deixado

uma mensagem na recepção para quando eles chegassem.

Dirigiram-se a mim com um ar surpreso. Expliquei-lhes o que queria. Disse-

lhes tudo o que se passara naqueles dias. Um pouco redundantes,

deixaram-me subir com eles para verem se a Vitória aceitava ou não.

Então foi a vez de ela ficar surpresa. Ao ver-me entrar com os pais ficou a

olhar para mim, com um ar de interrogação. Ao ser colocada a par do que

eu queria, disse que se eu quisesse por ela tudo bem.

Revi naquela visita a descrição que a Enfermeira Elsa tinha feito. Ali

estavam, pais e filha a olharem uns para os outros, sem encontrarem

palavras para trocarem. Às vezes olhavam para mim, como que a

procurarem assunto para falar. Não sei como, comecei a falar do tempo e

isso deu cerca de uma hora de conversa.

Entretanto os pais dela olharam para o relógio e disseram que era hora de

se irem embora. Perguntaram-me se eu queria boleia.

Agradecendo aceitei.

- Se não quiseres vir não te sintas obrigado.- Disse ainda a Vitória.

***

Já no carro o Sr. Santos começou a dizer-me:

- olhe, Carlos, que o que está a fazer é muito difícil. Nós que somos os

pais já o fazemos com tanta dificuldade. Não sei como é que se quer

prender por vontade própria...

“MAKTUB” – Pensei eu.

- Eu só lhe peço uma coisa. Se estiver a pensar afastar-se, por favor não

comece. A minha filha já sofreu de mais.

- Se não fosse indiscrição... poderia dizer-me como é que aconteceu?

- Foi muito triste. Há cinco anos ela teve de ser operada ao apendicite...

Não sabemos como, pois os médicos nunca explicaram completamente,

mas o sangue que ela recebeu estava contaminado... Para lhe tirarem

um mal deram-lhe outro...

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Tornava-se cada vez mais difícil para eles falarem, por isso parei de fazer

perguntas. Deixaram-me à porta de casa e seguiram o seu caminho.

***

Aquelas duas semanas foram as mais difíceis. Era um descobrir de duas

pessoas que nunca se tinham visto antes. Eram as lutas em casa com os

pais que nunca aceitaram completamente a minha decisão. Eram os

problemas na escola, pois não tinha tempo para estudar. Parecia que tudo

tinha caído sobre mim.

Resultado: deixei a escola por um ano, o que ainda aumentou mais os

problemas em casa. Aliás, um mês mais tarde tive mesmo de sair de casa.

Arranjei um emprego nocturno para pagar um quarto numa pensão perdida

numa ruela de Lisboa.

De resto os meus dias podiam-se resumir da seguinte forma:

De manhã – Dormia.

De tarde - Ia ao Hospital

De noite – Ia trabalhar

Do pequeno salário que ganhava, grande parte ia para a renda do quarto, o

que sobrava era para as minhas refeições, e para algumas pequenas

prendas que comprava para a Vitória.

Claro que os meus pais davam-me algum dinheiro, mas a maior parte das

vezes eu preferia que não o fizessem, pois estavam sempre a criticar a

minha decisão de estar com a Vitória.

***

Dessas primeiras semanas não me lembro de quase nada.

Apenas me recordo de algumas conversas, vazias de conteúdo em que

pouco ou nada se dizia.

Porém, no início da quarta semana houve algo que nunca consegui

esquecer.

Quando cheguei ao quarto da Vitória, ela olhou para mim e sorriu. Isto pode

parecer insignificante, mas em quase um mês que a visitava, nunca a tinha

visto sorrir, pelo menos com um sorriso tão verdadeiro como o daquele dia.

Percebi logo que a nossa relação havia mudado. Eu já não era um estranho

que a visitava, mas um amigo – talvez o seu único amigo!

Hoje que penso nisto, vejo que não me devia ter alegrado, mas sim

entristecido com a ideia de ser o único amigo dela. Ela devia ter tido muitos

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outros, mas... Onde é que eles estavam então? Vim a descobri-los mais

tarde, infelizmente...

***

- Boa tarde! Como é que estás desde ontem? – Disse eu ao entrar.

- Boa tarde! Bem obrigada. Com uma pequena dor no peito, mas o médico

disse-me que era normal.

- Olha trouxe-te este livro para leres nos próximos dias, pois não vou

poder vir.

- Não podes?

- Não. Tenho de ir à inspecção da tropa, e por isso não vou poder vir...

Mas vais gostar deste livro, a ao lê-lo vais lembrar-te de mim, vais ver

que vai ser quase como se eu aqui estivesse.

Era um livro de Sonetos de Florbela Espanca.

Durante os dois dias seguintes passei-os a fazer testes e mais testes para

saber se era ou não apto para a tropa. Acabei por ficar livre! Não sei

porquê, creio que foi por ter dito onde passava as tardes. Eu bem vi a

reacção daquele sargento que me questionava...

***

Quando lhe dei aquele livro para ela ler, nunca pensei o que dele resultaria.

Provavelmente se não fosse por ele, este não existiria.

No dia em que voltei ao Hospital. Vi a Vitória bastante nervosa, às voltas

numa mesa, onde havia colocado umas folhas de papel e uma caneta.

- Carlos, acho que já sei porque é que tu entraste aqui naquela noite!

Esta afirmação apanhou-me totalmente desprevenido. Ao ver a minha cara

continuou:

- Eu tenho de fazer saber quem sou às pessoas. Elas têm que saber o que

é o SIDA.

Enlouqueceu, pensei eu.

- Não estás a perceber, eu não posso acabar assim, incógnita, a ser mais

um número para as estatísticas. Acho que tu tens vindo cá exactamente

para me ajudares.

“Maktub” – Pensei eu, e logo começou a fazer sentido o que ela dizia.

Então começamos a combinar como é que faríamos. Tornou-se claro que ela

não queria ser uma heroína, apenas queria ser o que era, uma pessoa

normal.

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Ela iria fazer uma espécie de diário, onde anotaria os seus pensamentos, as

suas ideias. Mais tarde eu tornaria isso tudo no que é este livro.

Assim, a partir deste ponto deixo de ser eu a falar, para ser a Vitória a

contar o que era estar no lugar dela.

II PARTE

Tomei uma decisão muito importante. Vou relatar a minha vida, na

esperança de que as pessoas possam compreender-me melhor. Foi o meu

amigo Carlos que me inspirou este relato.

Eu sempre fui uma rapariga bastante sociável. Sempre tive muitos amigos,

e divertia-me muito com eles.

Saíamos juntos, conversávamos, ríamos, as minhas lembranças destes

tempos são todas alegres.

Conheci o Álvaro nesse grupo. Começamos a namorar com cerca de 17

anos e até à quatro anos atrás tudo corria bem.

Sempre tive boas notas na escola, gostando particularmente do Português.

O meu sonho era ser professora. Teria gostado de ensinar as criancinhas a

ler e a escrever. As minhas notas ter-me-iam dado a entrada directa em

qualquer escola.

Como me lembro dos meus tempos de escola, do meu grupo de amigos, do

meu namorado... Hoje estão todos tão longe. Já nada sei deles...

O meu namorado Álvaro... Parecia um deus grego. Tinha andado quatro

anos na musculação, por isso tinha um corpo firme, duro. Todas as

raparigas da escola me invejaram quando começámos a namorar.

Os meus pais disseram-me que ele tinha começado a namorar com outra.

Chorei todo o dia quando soube.

Ainda não disse porque é que todos me abandonaram. Tenho SIDA.

Apanhei-a numa operação à dois anos atrás...

Mas vamos começar pelo princípio. Eu sou Vitória, tenho 22 anos, tenho

passados os últimos sete meses neste quarto de Hospital. Já disse ter SIDA,

aliás, os médicos dizem que não viverei mais um ano.

Estas linhas que escrevo são apenas algumas memórias minhas. Não têm

nenhuma ordem em particular, apenas escrevo conforme me lembro.

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Foi um amigo recente que me motivou para escrever. Ele tem-me dado

algum alento para a vida. Foi ele que me fez ver que não queria ser mais

um número para as estatísticas.

Apesar de não Ter ordem especial, acho que devo começar pelo antes.

***

As minhas primeiras memórias levam-me à minha infância. A uma praia,

creio que no Algarve. Era Verão. Estávamos de Férias. Eu devia ter oito ou

nove anos...

Estava lá eu com os meus pais e o meu irmão mais velho. Estávamos lá a

brincar à beira mar, na areia. Eu e o meu irmão corríamos para um lado e

para o outro, construíamos castelos na areia. A minha mão chamava por

nós, para pormos um chapéu.

Não sei porque é que comecei por aqui, quando tudo ainda era bonito.

Talvez pela alegria. Talvez pela união. Talvez pela liberdade. Não sei.

Naquele tempo ainda éramos uma família como deve ser. Não tínhamos

medo de estar juntos. Nada faria supor os acontecimentos que se seguiram.

***

O meu irmão... Chamava-se Pedro. Era quatro anos mais velho que eu.

Alegre, vivo, sempre pronto para me ajudar.

Nós éramos muito unidos. Quando tínhamos um problema, um apoiava

sempre o outro.

Já morreu... Tinha quase 18 anos... Tinha ido sair com uns colegas, quando

viu um amigo em apuros. Estavam uns dez a baterem-lhe e o Pedro foi logo

tentar ajuda-lo. Terminou com uma navalha espetada na barriga.

Quando os nossos pais chegaram ao Hospital ele ainda estava vivo. Olhava

fixamente para as luzes, acho que não reconhecia nada nem ninguém.

Antes de morrer pediu desculpa ao pai (nunca se soube se ao nosso pai se a

Deus).

***

Foi uma grande coincidência que eu, quatro anos mais tarde, também com

18 anos tivesse apanhado SIDA.

Os meus pais ainda não recuperaram de ter visto os dois filhos morrerem

com essa idade.

Bem, eu não estou fisicamente morta, mas aquela rapariga que eu era

morreu quando o médico disse o que eu tinha.

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O meu mundo tinha acabado.

O meu pai, ainda branco de susto, perguntou como é que poderia ter

acontecido, pois eu não me drogava nem tinha relações sexuais com

ninguém. Devia haver engano.

O médico olhou-o e disse que aquelas não eram as únicas formas de

apanhar o SIDA. Que tinha havido um erro. Explicou que havia uma grande

falta de sangue e que o que era usado não tinha recebido todos os testes.

Disse que na operação que eu fizera um ano e meio antes esse sangue

tinha sido usado em mim.

***

o meu pai passou de branco de susto para vermelho de raiva. Um ano e

meio antes eu tinha sido operada à apendicite. Tinha acordado uma noite a

sentir-me mal e o meu par aflito levou-me para o Hospital.

Lá o médico que estava nas urgências olhou para mim, tocou-me na

barriga, e disse que não passava de uma dor de barriga, para me darem um

chá que tudo passaria.

Voltámos para casa, tomei o chá e fui-me deitar. Fiquei assim quase dois

dias, mas a dor não passava e o inchaço crescia. O meu pai voltou a levar-

me para o Hospital e, ao chegarmos às urgências, um outro médico olhou

para o inchaço, tocou nele e disse que se eu não fosse operada de imediato

que poderia morrer. Tinha 16 anos.

O meu pai assinou os papéis e eu fui operada de urgência. Enquanto eu

estava na sala de operações tentou em vão saber o nome do médico que

me tinha observado dois dias antes, mas de todo o lado a mesma resposta:

Não pense mais nisso. O que importa é que a sua filha agora está bem. O

Sr. Dr. Devia estar muito cansado e se for fazer queixa dele pode dar-lhe

muitos problemas. Esqueça lá isso!

Aquele médico ainda deve estar a trabalhar num Hospital, sabe-se lá

quantas vidas põe ele em risco.

***

Fui operada. Fiquei uma semana em coma. O meu pai continuava

desesperado a tentar saber o nome do médico. Nunca soube. Nem sequer o

viu mais. A minha mãe ficou o tempo todo a segurar a minha mão. Quando

acordei foi ela a primeira pessoa que vi. Tinha adormecido de cansaço.

Chamei-a baixinho. Ela acordou e abraçou-me.

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Durante o tempo que estive de coma, sonhei com o Pedro. Ele segurava-me

a mão e dizia que tudo ia correr bem. É estranho, mas nunca tinha pensado

neste sonho antes. Mas o facto é que ele se repetiu várias vezes. Talvez

tenha sido uma alucinação.

***

Durante o ano seguinte não aconteceu nada de especial em termos de

saúde. Conheci, porém, o Álvaro. Foi um momento mágico... Ele pertencia à

equipa de Basquete de uma escola que foi jogar contra a da minha escola.

Eu e as minhas colegas fomos apoiar a nossa equipa, quando de repente

aconteceu.

Depois de um salto ele torceu o pé e foi substituído. Os colegas trouxeram-

no para fora, mesmo ao meu lado. Enquanto o treinador via o tornozelo

dele, os nossos olhares cruzaram-se. Adivinhem quem foi buscar o gelo

quando ele o pediu? Fui eu. Ao dá-lo as nossas mãos tocaram-se e toda eu

tremi.

Ele deve ter reparado. Foi para os balneários vestir-se pois não conseguia

jogar mais. Quando saiu, veio ter comigo e convidou-me para sair no

Domingo seguinte. Fiquei sem fala. Foram as minhas amigas que me

convenceram a aceitar.

***

Nesse Domingo fomos ao cinema. Não me recordo do filme. No fim do

filme, fomos até um café onde ficámos quase duas horas a conversar. De

repente olho para o relógio e dou um salto. Tinha de chegar a casa às seis

horas e já eram quase sete. Ele disse que não me preocupasse que ele

explicava aos meus pais. Disse-lhe que não pois eles não sabiam que eu

tinha saído com ele.

Quando chegámos a casa, mal estava a sair da mota do Álvaro, já estava o

meu pai à porta à minha espera. Quando o viu, mandou-me para dentro. O

Álvaro pediu para lhe falar. O meu pai disse que não, que não tinha nada a

falar com ele. Mas ele insistiu tanto que o meu pai lá aceitou.

Não sei o que eles conversaram, mas o meu pai foi ao meu quarto e

perguntou-me se eu gostava do Álvaro. Atrapalhada olhei para o chão e

corei. Depois de um minuto de silêncio, em que eu não sabia o que havia de

esperar, ele saiu para meia hora depois mandar a minha mãe chamar-me.

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Fui até à sala e lá estavam os três, o meu pai, a minha mãe e o Álvaro. O

meu pai tomou a palavra e disse que tinham falado os três, e que se eu

quisesse aceitava que eu e o Álvaro namorássemos, que ele e o Álvaro já

tinham acordado as condições, que tudo dependia de mim.

Corei. Baixinho disse que sim.

Foi assim que começou o nosso namoro. Naquele tempo tudo era

maravilhoso.

***

Mas um dia uma gripe que insistia em não desaparecer, fez com que o meu

médico de família me mandasse fazer umas análises. Quando os resultados

vieram, o médico mandou-me fazer outros testes, e outros, até que, por

insistência do meu pai ele disse o que eu tinha. Já descrevi as reacções do

meu pai.

Apesar de tudo fiquei feliz por o meu pai confiar em mim e no Álvaro,

quando disse que eu ainda não tinha tido relações sexuais. Até porque era

verdade, felizmente. Se não fosse éramos provavelmente dois nesta

situação.

***

Fomos para casa mudos. Era um pronuncio do que estava para vir. A minha

mãe quando soube ficou histérica, teve o meu pai de a agarrar.

Não fui à escola por uns dias. O meu namorado foi visitar-me a casa.

Quando soube o que eu tinha, fez uma cara de nojo e saiu. Nunca mais falei

com ele. Chorei pela primeira vez por ele.

No dia em que voltei à escola, parecia estar tudo mudado. Primeiro pensei

que fosse só impressão minha. Mas depois pequenas coisas fizeram-me ver

que não era isso.

Primeiro foram os meus amigos que faziam que não me conheciam e não

me cumprimentavam; depois eram as minhas colegas que se afastavam

quando eu me aproximava. Nas aulas ninguém queria ficar ao meu lado.

Mas o pior foi na aula de Educação Física que não me deixaram entrar nos

balneários, e quando fui falar com o professor, ele disse-me que era melhor

não fazer nada, tendo em conta a minha situação.

Foi aí que percebi o que se passava. Fui para casa e nunca mais voltei para

a escola. Ainda hoje não sei como é que eles souberam... Acho que foi o

Álvaro que lhes disse, mas não tenho certeza.

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***

Passei dois anos fechada em casa, num estado de quase silêncio. Os meus

pais não sabiam o que dizer e eu sabia que nos seus empregos eles já

tinham problemas por minha causa.

Mas não era só no emprego. Os amigos de família, os vizinhos e até os

nossos familiares já evitavam de falar connosco. O telefone parecia mudo,

raramente tocava, aliás, a maior parte das vezes era engano...

Às vezes ia até um café e, à saída, via que deitavam a loiça que eu usava

directamente no lixo. No supermercado, bastava que eu tocasse numa

laranja para ela já não ser vendida.

Cada dia que passava mais eu me fechava em mim. Agora já era eu quem

evitava as outras pessoas. Ia até onde ninguém me conhecia, e passeava

sozinha, à beira mar, descalça. Sentia o mar e a areia nos meus pés. Às

vezes sentava-me nas dunas e via ao longe um par de namorados e

lembrava-me do Álvaro... Logo uma lágrima escorria pelos meus olhos.

Mas depressa voltava para casa e fechava-me no quarto a ouvir musica,

principalmente Tchaikovski, pois gostava da forma como éramos embalados

pela música de fundo ao mesmo tempo que éramos abalados pelo piano.

Isto era para mim a vida, a minha vida... Quando eu estava alegre,

contente, logo surgiu esta doença para me abalar.

***

Há um ano atrás tudo piorou. Comecei a vomitar sangue, não conseguia

comer nada. O médico disse que tinha entrado na fase terminal. Tinha

esperanças que eu demorasse a entrar lá, mas que agora que eu tinha

entrado, não deveria viver mais dois anos. Um ano já passou. Talvez ele se

tenha enganado... Ou talvez não.

III PARTE

Depois de ler estas primeiras páginas dos escritos da Vitória, eu começo a

compreender um pouco as reacções dela quando me conheceu, e

arrependo-me bastante das minhas.

Tentei falar com alguns dos seus amigos... Mas assim que ouviam o nome

dela, diziam que não tinham tempo, que tinham de se ir embora.

O Álvaro, de facto, começou a namorar com outra rapariga. Tentei falar

também com ele, mas a reacção foi a mesma.

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Daquele tempo apenas se mantêm os pais, e mesmo esses cada dia que

passa estão mais afastados. Pelas fotografias que têm em casa têm

envelhecido muito nestes últimos anos.

***

Compreendo agora o valor da AMIZADE, e sei que em quatro anos ninguém

conheceu a Vitória como eu a conheci.

É uma verdadeira honra para mim o facto que ela se tenha aberto para

mim, que ela tenha confiada a mim a sua história e os seus sonhos.

Quatro anos... Eu ainda era um puto de 14 anos, mal sabia o que era a

vida, e ela já com a sombra da morte sobre a cabeça... Ela tinha a idade

que eu tenho agora... Dou comigo diversas vezes a pensar como é que seria

se me acontecesse o que lhe aconteceu.

Olho para os meus pais e penso se eles ficariam do meu lado... Talvez não.

Desde que conheci a Vitória todos me têm deixado de lado, até os meus

pais.

No outro dia os meus pais vieram falar comigo. Pediram-me para ter juízo e

regressar à minha vida. Eu disse-lhes que a minha vida já não era minha,

que muita coisa tinha mudado ara mim, que eu tinha crescido muito

naqueles últimos meses.

Mas eles não compreendem o que sinto, nem querem compreender. Eles

são como aquelas pessoas que a Vitória disse que via quando ia ao café e

ao supermercado.

Felizmente eu tenho resistido e continuo a fazer aquilo que considero certo,

apesar de tudo.

***

Estes últimos dias têm sido terríveis. A Vitória sofre convulsões que a têm

esgotado. A enfermeira disse-me que a sua morte deve estar para breve.

O quarto branco está agora cheio de máquinas com luzes a piscar e a

fazerem barulho constantemente. A Vitória está-me sempre a pedir para as

desligar e eu tenho de estar sempre a dizer que ela precisa delas.

Depois da comunhão que tivemos, já quase que não temos falar.

Compreendemos o olhar um do outro, e basta olharmos para sabermos o

que o outro quer dizer.

***

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mas a cada dia que passa ela está pior... Custa-lhe a respirar, a comer, a

beber. Sempre que tosse, cospe sangue.

Eu tento estar lá do seu lado, para a ajudar, mas cada vez é mais difícil.

Não sei se vou aguentar até ao fim.

Tanto quanto sei, ela não tem escrito mais nada... Não tem forças para

continuar, já não consegue segurar na caneta, mas vejo nos seus olhos que

a sua história ainda não acabou. Ainda tem muito para contar, mas talvez

nunca venha a escrever.

***

Hoje quando fui ao quarto dela, ela não estava lá. Uma enfermeira

guardava as coisas dela num saco

Entrei em choque. A enfermeira largou o saco e veio a correr para mim,

mandou-me sentar e deu-me uns comprimidos, talvez calmantes, para

tomar.

Quando eu me acalmei, disse-me que a Vitória ainda não tinha morrido,

mas que tinha piorado durante a noite, por isso tinha sido transferida para

os cuidados intensivos.

Após uns segundos de silêncio, disse-me que não devia resistir mais de um

mês...

***

Fui até à rua. Dei uma volta pelo parque de estacionamento e encostei-me

a um poste, a chorar.

Depois de quase um ano, a minha vida deu uma volta tremenda. As minhas

ideologias caíram como um castelo de areia, os meus sonhos foram

colocados em segundo plano, tudo em que eu acreditava se alterou. Tudo

por causa de uma rapariga. Uma rapariga que iria morrer no prazo de um

mês.

Foi aí que eu percebi o que era a Amizade. Ela ainda não me tinha deixado

e eu já sentia a falta dela.

***

Voltei para dentro, limpei os olhos e fui até os cuidados intensivos.

Lá estava ela, de olhos no tecto, a olhar o vazio.

Aproximei-me e segurei-lhe a mão. Ela olhou para mim e sorriu.

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Quando eu a conheci, ela já estava mal, uma vaga sombra do que era. Mas

agora era irreconhecível: o cabelo tinha caído quase na totalidade; a pele

apresentava diversas manchas negras; os olhos pareciam de vidro, imóveis.

Tentei sorrir, dizer alguma coisa alegre, mas o que é que se diz a quem vai

morrer e já perdeu a Fé em Deus?

Ficamos assim os dois, imóveis, quais estátuas de bronze, até que uma

enfermeira veio chamar-me pois já passava da hora da visita.

***

Quando lá voltei no dia seguinte, a Vitória pediu-me muito a custo que

escrevesse o resto da história dela. Ia tentar ditar-ma, enquanto lhe

restavam algumas forças.

IV PARTE

... O meu irmão... Veio visitar-me na outra noite... Disse que estava à

minha espera... Que tudo iria ser como dantes... Vi a praia, os castelos de

areia que fazíamos... Vamos ser outra vez dois, só os dois.

Ele estava ali, encostado naquela parede... sorria... Dava-me alguma

esperança para o fim... Dizia-me que a morte não seria o fim, que

continuávamos a viver... Só que a vida era diferente da que vivemos agora.

Pedia-me para ter Fé... não deixar de acreditar em Deus. Não sei se ainda

sou capaz. Não depois de tudo o que sofri... mas para estar com ele outra

vez, acho que vou tentar. Tentar a sério!

***

Esta noite sonhei que estava numa sala de aulas. Sonhei que era a

professora. Tinha vinte alunos, meninos e meninas. Estava a ensinar-lhes a

ler e a escrever.

Havia lá um que não estava a compreender muito bem como é que se

faziam as letras e para que é que serviam. Então expliquei-lhe:

- As letras servem para as pessoas falarem umas com as outras, mesmo

que estejam muito longe. As letras juntam-se a outras letras, para

formar as palavras. Estas juntam-se para formar as frases. As frases

juntam-se para formar livros e jornais para que todos saibam o que os

outros pensam.

Então parei de falar. Comecei a pensar em tudo isto que me aconteceu.

Desatei a chorar.

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Quando limpei os meus olhos, estava num caixão de vidro, com os meus

alunos todos à minha volta. Eu batia nas paredes do caixão, gritava que não

estava morta, mas ninguém me via ou ouvia.

Começaram a enterrar-me. Eu via o caixão a descer, descer, até bater no

fundo. Então cada um dos meus alunos pegou num punhado de terra e

deitou-mo para cima.

Acordei sufocada e aos berros. As máquinas à minha volta apitavam como

loucas. Veio uma enfermeira ver o que eu tinha e, ao ver-me tão aflita,

ficou do meu lado até eu voltar a adormecer...

***

Os meus pais vieram ver-me. Ficaram ali, parados, a olhar para mim. Não

conseguiram dizer uma palavra. Eu consegui ver o quanto custava para a

minha mãe estar aqui, o quanto ela lutava para não chorar.

Tentei sorrir. Disse-lhe que não se preocupasse, pois ia ficar bem, que ia ter

com o Pedro. Não devia ter dito isto, porque ela saiu pela porta fora com as

mãos a cobrir-lhe o rosto.

O meu pai ainda ficou alguns minutos... depois deu-me um beijo na testa e

foi-se embora.

***

Há tanto tempo que ninguém me visita. Tirando o Pedro, os meus pais e o

Carlos, ninguém vem até ao meu quarto.

Claro que as enfermeiras vêm às vezes, mas elas têm de o fazer para ver

se eu estou bem. De resto mais ninguém...

Aproveito o tempo que estou sozinha para pensar em tudo o que me

aconteceu nestes últimos anos... Que desilusão! Passei 17 anos a estudar, a

aprender, a decidir o que queria ser. Depois guardei tudo num saco roto.

Hoje, sem ser a morte, já nada espero!

Tive muitos sonhos, quis ser muitas coisas. Hoje sou só um cadáver; o meu

corpo é só ossos e pele.

***

Hoje estou pior... não consigo falar. Apanhei uma gripe. Já está quase a

chegar a hora.

Voltei a ter o sonho da escola. Ultimamente ele tem surgido muitas vezes.

Ainda acordo aos berros e sufocada. Uma enfermeira vem sempre ao pé de

mim, e ali fica até eu voltar a adormecer. Acho que é um aviso.

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Não quero ser enterrada... Mas sei que o irei ser, por isso já me estou a

habituar.

***

(...)

V PARTE

O relato da Vitória acabou aqui. Nos dias seguintes ela foi piorando cada

vez mais. A gripe que tinha apanhado, devida à falta de anticorpos, tornou-

se numa pneumonia.

Ela passava a maior parte do tempo inconsciente devido aos calmantes que

lhe davam para diminuir as dores.

Nestes últimos dias fui lá sempre, todos os dias. Levava-lhe sempre um

ramo de flores. Acho que o quarto dela era o mais florido dos cuidados

intensivos!

***

Uma noite, às quatro da manhã, bateram à porta do meu quarto. Era a

dona da pensão. Disse-me que tinham telefonado do hospital, que eu tinha

de ir lá o mais depressa possível.

Vesti-me. Apanhei um Táxi e, em menos de uma hora já estava no hospital.

À porta do hospital estava aquela enfermeira com quem falei no início,

aquela cujas palavras fizeram que eu desse a volta às minhas ideias; cujas

palavras mudaram a minha vida.

***

- Tem de ser forte. O médico disse que era esta noite...

- Não!!! – olhei para o chão a tentar esconder uma lágrima.

Ela tocou-me no ombro e disse-me para ajudar a Vitória, levando-lhe

alguma esperança e alegria nos últimos momentos da sua vida.

***

Entrei no quarto, com um sorriso triste. A Vitória olhou-me e sorriu

também.

Tentei pensar em alguma coisa para lhe dizer, mas não me veio nenhuma

palavra à mente.

- Abraça-me! – Pediu-me ela... Abracei-a

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Este último abraço durou seis horas. Nessas seis horas eu senti o coração

dela a bater cada vez mais devagar, a sua respiração cada vez mais lenta e

difícil.

Começámos os dois a chorar.

Na última hora ela adormeceu. Os médicos disseram que foi devido ao

cérebro não estar a receber oxigénio suficiente. Foi melhor assim. Pelo

menos não sentiu mais nada.

Às onze horas da manhã as maquinas calaram-se. Ela já não dava sinais de

vida.

***

Deitei-a. Deixei-a como se estivesse a dormir e saí. Fui à casa de banho,

lavei a cara e chorei.

Depois fui ter com os pais dela que também lá estavam. Abraçámo-nos

todos a chorar.

Vieram uns médicos com uns papeis para assinar.

***

Enquanto os pais dela assinavam os papeis, eu fui até à capela, onde, pela

primeira vez em muitos anos, ajoelhei-me e comecei a rezar.

- Pai Nosso que estais no céu, Santificado seja o Vosso Reino, Seja feita a

Vossa vontade, Assim no céu como na Terra. O pão nosso de cada dia

nos daí hoje. Perdoai as nossas ofensas, Como nós perdoamos a quem

nos tem ofendido. Não nos deixeis cair em tentação, Mas livrai-nos do

mal. Amen.

«Meu Deus, eu sei que já à muito tempo que não Te ligo, mas só Te queria

pedir um favor. Recebe em Ti a Vitória. Eu sei que ela Já não acreditava

muito no Teu Reino, mas tenta compreender que ela tinha sofrido muito

nestes últimos anos.

«Por favor! Se ela morreu com algum pecado que lhe impeça a Tua

companhia, passa-os para mim, que eu os aceito como meus, mas aceita-a

Tu como uma ovelha perdida, que Te encontrou nos últimos dias.

«Nada mais Te peço, apenas isto.»

***

Quando finalmente tive coragem para voltar ao quarto dela, olhei à minha

volta. O quarto estava na mesma. As mesmas máquinas, a mesma cama,

os mesmos lençóis brancos...

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O corpo dela já havia sido levado para a morgue.

Na mesa ao lado da cama estava um maço de papeis. Eu já sabia o que eles

eram, mas nunca tinha lido nenhuma folha.

Os pais dela pegaram nele, leram a primeira folha, e disseram que a Vitória

quereria que eu ficasse com eles. Que eu sabia o que devia ser feito.

Eu segurei neles, folheei-os e comecei a chorar.

***

Saí do hospital e fui procurar um telefone. Deviam ser já 13 horas. Com

alguma hesitação telefonei para os meus pais. Pedi para me virem buscar

ao hospital.

No caminho para casa passámos pelo quarto que tinha arrendado, para ir

buscar as minhas coisas.

Chegámos a casa e fui directo para o meu quarto.

Durante o trajecto nenhuma palavra sobre a Vitória.

Finalmente, no dia seguinte, o meu pai disse-me que compreendia que eu

tivesse agido daquela forma, mas que ainda bem que tudo tinha acabado.

Ainda bem? Como pode ser ainda bem? Ela morreu. Como posso ficar em

sossego?

VI PARTE

O dia estava chuvoso. Cerca de cem pessoas estavam naquela igreja a

chorarem pela Vitória.

A pedido dos pais fui falar sobre ela.

Após alguns minutos de silêncio só consegui perguntar onde é que todas

aquelas pessoas estavam durante o tempo que a Vitória mais precisou

delas.

Que agora era fácil dizer que se sente a sua falta, mas durante dois anos

ninguém viu essa amizade.

Que era fácil chorar agora, mas que ninguém lhe tinha amparado a cabeça

quando ela precisava de chorar.

***

Comecei a sentir que a sala se revolvia. Que as pessoas não estavam a

gostar do que ouviam quando decidi ler-lhes uma carta que a Vitória tinha

escrito e que estava no maço de papeis que os pais me tinham entregue no

hospital.

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Caros amigos:

Eu já não sei quem vocês são. Há dois anos que não falo com nenhum, nem

nenhum me vem visitar.

Recordo-me daqueles dias em que, juntos, nos divertíamos. Íamos à praia,

à discoteca, ou simplesmente passear juntos.

Recordo-me das nossas conversas, dos sonhos que partilhávamos...

Recordo-me de ti, Álvaro, de como dizias que nunca, nada nos separaria...

Recordo-me de muita coisa.

Mas destes meus amigos tudo o que tenho são lembranças de um tempo

passado.

No presente só tenho um amigo. Alguém que apareceu no meu quarto do

hospital, sem saber quem eu era, e que, quando soube, não se importou.

Deste amigo o que posso dizer é que a sua preocupação era fazer-me feliz.

Vinha conversar comigo todos os dias e deu-me algum conforto nos últimos

dias da minha vida.

Pena tive que tivesse de ser um estranho a fazer isso, quando tantos

amigos meus tinham prometido ficar do meu lado... Antes de tudo

acontecer.

Mas não tenham receio. Eu aprendi a perdoar tudo, mesmo o abandono.

Quando morrer levarei comigo não a solidão do hospital, mas a alegria que

tinha antes de apanhar esta doença.

Quanto aos meus pais, que me desculpem se os fiz sofrer, mas eles sabem

que eu não o fiz por querer.

Eu gosto muito de vocês.

Não chorem por mim, por favor.

Da vossa filha e amiga

Vitória

***

Reparei que durante i tempo que li esta carta, muitas foram as pessoas que

cobriram o rosto, talvez para esconder a vergonha que sentiam por se

verem ali tão expostos.

Não posso porém culpá-los. Eu sei que também agiria da mesma forma. Eu

não era diferente de nenhum deles.

Só posso agradecer a todos os que me ajudaram o terem feito.

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***

A Vitória foi enterrada, num cemitério, em campa rasa. Diversas foram as

pessoas que insistiram levar o seu caixão.

De entre essas pessoas reconheci o Álvaro, que chorava.

No fim do enterro, veio ter comigo, agradecer-me por ter estado com a

Vitória até ao fim.

Fim

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Notas

Apesar deste livro ser em grande parte ficção, à alguns factos que são

verdadeiros, ainda que à entrada do século XXI fossem consideradas

irrealistas.

Um desses factos é o da ida ao hospital por parte da Vitória, sendo

mandada para casa por ter uma dor de barriga, quando o que tinha era um

apendicite.

Isto aconteceu a uma amiga minha à uns anos atrás no Hospital Distrital de

Viana do Castelo. O médico responsável ainda está a desempenhar as

funções...

Quanto ao facto de a Vitória ter apanhado SIDA numa operação,

infelizmente aconteceu por diversas pessoas, principalmente a hemofílicos

que precisavam do sangue para viver.

Um outro facto lamentável é o de que os médicos e enfermeiros usem luvas

de cirurgia quando tratam dos doentes com SIDA, bem como o abandono

que estes doentes sentem devido ao afastamento dos amigos e da própria

família.