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Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores. E-mail: [email protected] 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores, Departamento de Ciências, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade, Brasil. E-mail: [email protected] VISÕES DE CIÊNCIA DE ALUNOS DE UMA LICENCIATURA EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DIEGO AUGUSTO BESSA DA SILVA 1 LUÍS FERNANDO MARQUES DORVILLÉ 2 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar as visões de Ciência dos alunos de uma licenciatura em Ciências Biológicas, destacando as principais dificuldades envolvidas na adoção de explicações científicas para a elucidação de vários fenômenos e de uma visão crítica da atividade científica. Foi aplicado um questionário com 14 questões a estudantes de seis períodos do curso, divididos em três seções: início (1º e 2º períodos); meio (4º e 5º períodos) e final do curso (7º e 8º períodos), totalizando 147 alunos. A maioria dos licenciandos que participaram dessa pesquisa apresenta visões sobre Ciência que se vinculam a interpretações vagas ou incorretas, concebendo a atividade científica como geradora de comprovações e descobertas que trazem sempre respostas claras. A pesquisa revela claramente a influência do curso sobre o nível de aprofundamento das respostas dos alunos ao longo dos períodos, além de mostrar que os alunos protestantes, principalmente dos períodos iniciais, apresentam o menor percentual de respostas mais elaboradas sobre a natureza da Ciência, porém não enfrentam muitos problemas ao diferenciar a Ciência de outras atividades. O oposto ocorreu com os demais alunos, que mostraram maior dificuldade em definir o que é Ciência do que em distingui-la de outras atividades. Palavras chave: Ensino de Ciências; Formação de Professores; CTS. INTRODUÇÃO Um dos grandes objetivos da educação cientifica é garantir que o aluno tenha condições de acesso a concepções menos ingênuas sobre a produção e aplicação do conhecimento científico (PETRUCCI; DIBAR URE, 2001). Isso significa compreender como a Ciência opera a partir de sua lógica interna e das influências externas que atuam sobre ela em várias instâncias, entendendo os processos envolvidos na construção dos modelos e métodos utilizados para validar o seu conhecimento, bem como reconhecendo criticamente de que maneira e a quem beneficiam muitas de suas descobertas em diferentes contextos. Entender como o conhecimento científico é construído envolve uma discussão histórica e contextualizada que deve contribuir para que o aluno entenda a complexidade dos mecanismos envolvidos na construção dos conteúdos científicos e sua problematização, contribuindo para romper com visões de senso comum e com uma visão de Ciência como verdade absoluta e imutável (SCHEID; FERRARI; DELIZOICOV, 2007).

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores. E-mail:

[email protected] 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores, Departamento de Ciências,

Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade, Brasil. E-mail:

[email protected]

VISÕES DE CIÊNCIA DE ALUNOS DE UMA LICENCIATURA EM CIÊNCIAS

BIOLÓGICAS

DIEGO AUGUSTO BESSA DA SILVA1

LUÍS FERNANDO MARQUES DORVILLÉ2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar as visões de Ciência dos alunos

de uma licenciatura em Ciências Biológicas, destacando as principais dificuldades envolvidas

na adoção de explicações científicas para a elucidação de vários fenômenos e de uma visão

crítica da atividade científica. Foi aplicado um questionário com 14 questões a estudantes de

seis períodos do curso, divididos em três seções: início (1º e 2º períodos); meio (4º e 5º

períodos) e final do curso (7º e 8º períodos), totalizando 147 alunos. A maioria dos

licenciandos que participaram dessa pesquisa apresenta visões sobre Ciência que se vinculam

a interpretações vagas ou incorretas, concebendo a atividade científica como geradora de

comprovações e descobertas que trazem sempre respostas claras. A pesquisa revela

claramente a influência do curso sobre o nível de aprofundamento das respostas dos alunos ao

longo dos períodos, além de mostrar que os alunos protestantes, principalmente dos períodos

iniciais, apresentam o menor percentual de respostas mais elaboradas sobre a natureza da

Ciência, porém não enfrentam muitos problemas ao diferenciar a Ciência de outras atividades.

O oposto ocorreu com os demais alunos, que mostraram maior dificuldade em definir o que é

Ciência do que em distingui-la de outras atividades.

Palavras chave: Ensino de Ciências; Formação de Professores; CTS.

INTRODUÇÃO

Um dos grandes objetivos da educação cientifica é garantir que o aluno tenha

condições de acesso a concepções menos ingênuas sobre a produção e aplicação do

conhecimento científico (PETRUCCI; DIBAR URE, 2001). Isso significa compreender como

a Ciência opera a partir de sua lógica interna e das influências externas que atuam sobre ela

em várias instâncias, entendendo os processos envolvidos na construção dos modelos e

métodos utilizados para validar o seu conhecimento, bem como reconhecendo criticamente de

que maneira e a quem beneficiam muitas de suas descobertas em diferentes contextos.

Entender como o conhecimento científico é construído envolve uma discussão histórica e

contextualizada que deve contribuir para que o aluno entenda a complexidade dos

mecanismos envolvidos na construção dos conteúdos científicos e sua problematização,

contribuindo para romper com visões de senso comum e com uma visão de Ciência como

verdade absoluta e imutável (SCHEID; FERRARI; DELIZOICOV, 2007).

2

Lederman (2007) realizou um extenso levantamento bibliográfico sobre as concepções

de Ciência de professores e constatou que a maioria das investigações relatava que os

professores de Ciências apresentavam concepções positivistas, destacando a ausência de

reflexões prévias mais aprofundadas sobre o tema, resultando muitas vezes em

posicionamentos imprecisos e por vezes incoerentes sobre o modo como se produz o

conhecimento científico. Outros estudos realizados por Cachapuz et al. (2005), Fernández et

al. (2002) e Gil-Pérez et al. (2001), mostraram que as visões sobre Ciência a nível global são

ingênuas e que na maioria das vezes são iguais ou próximas daquelas de senso comum.

Esse trabalho tem como objetivo investigar as visões de Ciência dos alunos de uma

licenciatura em Ciências Biológicas, bem como a influência desse curso sobre seus

posicionamentos, identificando as principais disciplinas que tiveram êxito em modificar seus

pontos de vista. Além disso, o distanciamento de visões mais críticas da atividade científica

nem sempre é reflexo apenas de questões curriculares, envolvendo muitos outros aspectos,

tais como a divulgação científica deturpada realizada pela mídia, o senso comum e a presença

de fortes crenças religiosas que são transmitidas através das gerações. Entender como pensam

os alunos que estão se graduando é essencial para evitar eventuais visões distorcidas sobre a

atividade científica além de contribuir para a formação de profissionais capazes de entender

criticamente a natureza da Ciência, suas limitações e potencialidades.

Essa pesquisa foi realizada na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ), situada no município de São Gonçalo, um dos que

compõem a região metropolitana do Rio de Janeiro e que, como todas as periferias das

grandes cidades brasileiras, apresenta forte presença religiosa protestante, especialmente

pentecostal (JACOB et al., 2006). Dedicada à formação de professores, a FFP-UERJ oferece

hoje sete cursos de licenciatura plena, nove cursos de pós-graduação (especialização), seis

mestrados, sendo quatro acadêmicos e dois profissionais e um doutorado. A realização de uma

pesquisa em uma instituição pública que tem como objetivo formar professores ganha

bastante ênfase ao mostrar o que pensam os futuros profissionais da escola básica sobre a

tríade Ciência-Tecnologia-Sociedade, o que certamente exercerá influência sobre o modo

como ensinam diferentes conteúdos de Ciências e Biologia.

METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada no 1º semestre de 2015, na Faculdade de Formação de Professores –

FFP/UERJ, tendo sido dividida em dois momentos. No primeiro foi aplicado um questionário

3

de 7 perguntas a alunos de seis períodos e 11 afirmações, cujas respostas foram reunidas em

três grupos: início do curso (1º período – 36; e 2º período – 22); meio do curso (4º período –

24 e 5º período – 21) e a parte final do curso (7º período – 21 e 8º período – 23), totalizando

147 alunos e no segundo momento foram feitas entrevistas semi-estruturadas com oito alunos.

Esse trabalho aborda apenas os resultados do primeiro momento.

O questionário referente à primeira parte do estudo foi acompanhado de uma carta de

apresentação, na qual foi revelada a natureza do trabalho, deixando claro que o objetivo não

era obter eventuais respostas “corretas” e sim que o questionário procurava verificar as

opiniões dos alunos a respeito das questões propostas. Quatro perguntas iniciais procuraram

traçar um perfil do aluno (nome, data e local de nascimento, período que cursava e se o aluno

possuía alguma religião e com que frequência frequentava o local de culto). As demais

questões que compuseram o questionário propriamente dito foram: 1 - O que é Ciência na sua

opinião?; 2 - O que torna a Ciência diferente de outras atividades?; 3 - Depois que você entrou

na faculdade sua visão de Ciência mudou? Se mudou, de que maneira?; 4 - Alguma disciplina

da faculdade trabalhou o tema do que é a Ciência?; Se a resposta foi sim, qual disciplina? De

que maneira? 5 - A Ciência melhora ou piora a vida das pessoas? 6 - Ciência e Religião: se

contradizem; são independentes; se complementam. Justifique sua escolha; 7 - Qual é a sua

opinião sobre o ensino do criacionismo nas escolas?

A última parte do questionário possuía como título “Afirmações com Escala de Likert”. Nela

foram trabalhadas 11 afirmações, sendo utilizada uma escala de Likert para análise, segundo a

qual o aluno deveria escolher uma entre cada uma das seguintes opções para cada afirmação:

Discordo totalmente; Discordo muito; Discordo pouco; Concordo pouco; Concordo muito ou

Concordo totalmente. As afirmações foram: 1 – As explicações científicas sobre a natureza

são confiáveis; 2 - A Ciência faz parte do cotidiano das pessoas nas grandes cidades; 3 – A

força da Gravidade é um fato, independente de aceitarmos ou não a teoria gravitacional; 4 – A

evolução biológica é um fato, independente de aceitarmos ou não a teoria evolutiva; 5 - A

Bíblia é comprovada cientificamente; 6 - O cientista descobre como as coisas são; 7 -

Qualquer opinião pode ser considerada científica; 8 - Conhecimento científico é

conhecimento provado e absoluto; 9 - A teoria da evolução está de acordo com os princípios

bíblicos e religiosos; 10 - O criacionismo é uma teoria que explica melhor a ideia da origem

das espécies; 11 - A evolução biológica é apenas uma teoria, porque na comunidade cientifica

ainda se discute a validade dela.

4

As respostas às perguntas/afirmações foram organizadas por período do curso (início, meio e

fim) e por pertencimento religioso.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A maior parte dos alunos é religiosa, porém quando categorizamos os dados por religião,

percebemos que o contingente dos sem religião é maior em números gerais (39%), seguido

dos católicos (29%), protestantes (25%), espíritas (5%), umbandistas (1%) e candomblecistas

(1%). O meio do curso (4º e 5º período) conta com o maior número de protestantes (4º

período) e o maior número de católicos (5º período), em comparação aos outros períodos,

possuindo também uma afinidade religiosa maior que os demais períodos. Definimos como

muita afinidade religiosa a frequência a atividades religiosas pelo menos uma vez por semana.

Portanto o meio do curso pode apresentar algumas diferenças associadas ao pertencimento

religioso. Essa intensidade de pertencimento é mais evidente entre os evangélicos, dos quais

80% afirmam ter muita afinidade religiosa, seguidos por 42% dos católicos. Essa maior

afinidade religiosa dos protestantes se refletiu em quase todas as respostas que parecem sofrer

influência do pertencimento religioso dos alunos. O número de alunos que se declararam

espíritas, umbandistas ou candomblecistas foi tão baixo que não permitiu uma comparação

confiável dos seus percentuais com os demais grupos.

No geral, aproximadamente a metade das respostas (51%) à pergunta 1 – “O que é Ciência”

foi incorreta ou vaga sobre a natureza da atividade científica, revelando o quanto é difícil

entendê-la de uma maneira mais aprofundada. Além disso, demonstra a existência de uma

grande distância entre o interesse dos alunos por temas ligados direta ou indiretamente a essa

atividade e sua capacidade de entendê-la escapando do senso comum e de visões

simplificadas e mistificadoras. Foram consideradas como explicações vagas respostas que não

apresentaram nenhuma informação conceitual geral sobre a natureza da atividade científica.

As mesmas foram reunidas em quatro categorias: “um tipo de conhecimento, sem maior

especificação do tema” (28%); “estudo dos seres vivos” (8%); “estudo dos fenômenos” (6%);

“estudo dos seres vivos” e não vivos” (3%); “uma tentativa do homem em explicar as coisas

utilizando meios aceitáveis” (3%) e “estudo do planeta de forma geral” (1%). As explicações

ingênuas foram reunidas em três grupos: “Um conhecimento que envolve

comprovação/descobertas/respostas” (10%) e “Visão triunfalista da Ciência” (1%). Foram

consideradas como explicações ingênuas respostas que apresentaram uma informação

conceitual positivista sobre a natureza da atividade científica. Foram consideradas como

5

explicações sofisticadas respostas que apresentaram uma informação conceitual aprofundada

sobre a natureza da atividade científica, sendo reunidas em três grupos: “Uma forma de

conhecimento, por métodos” (16%) e “É refutável, passível de testes” (8%) e “Diz como as

coisas não são” (5%).

As mesmas dificuldades evidenciadas nas respostas à primeira pergunta foram encontradas

em relação à pergunta 2 “O que torna a Ciência diferente de outras atividades?”. Na verdade

essa pergunta está ligada à primeira. Se o licenciando não consegue distinguir a atividade

científica de outras, encontra dificuldade em definir Ciência. A maioria das respostas, no

geral, não consegue distinguir a atividade científica das demais, o faz de modo vago ou

extremamente ingênuo. Entretanto, nessa segunda questão, muito embora tenhamos um

grande número de respostas vagas (22%) e ingênuas (11%), foi observado que o número das

sofisticadas (46%) subiu consideravelmente em relação à primeira questão. Portanto, são 46%

de respostas sofisticadas contra 22% de respostas vagas e 11% de respostas ingênuas. Com

isso, se somarmos o pensamento vago com o ingênuo, o número de respostas ainda é

insuficiente para ultrapassar o percentual de respostas sofisticadas aqui na segunda questão. A

explicação para esse fato pode se encontrar no fato das explicações mais numerosas que

aparecem depois das explicações vagas são, “Sem verdades absolutas” e “Testável/Refutável”

as quais foram reunidas na categoria “explicações sofisticadas”. Para quem possui religião,

seria muito mais conveniente que o entendimento do mundo natural por parte da Ciência fosse

mutável, testável e refutável, e que o entendimento religioso fosse o único detentor da verdade

absoluta. Os protestantes foram o grupo com maiores dificuldades em conceituar Ciência

porém foram os que mais obtiveram respostas sofisticadas na hora de diferenciar Ciência de

outras atividades. Portanto, alunos protestantes podem considerar a atividade científica como

uma atividade passível de refutações por motivos bem diferentes daqueles encontrados em

alunos sem religião.

A partir do total de 18 questões/afirmações, apenas quatro parecem ter sofrido a influência do

período do curso, independente do pertencimento religioso dos alunos: Q5 “A Ciência

melhora ou piora a vida das pessoas?” (depende, início – 12%, meio –18% e final – 25%)”;

AF6 “Os cientistas descobrem como as coisas são” (discordo totalmente/muito, início – 5%,

meio – 51% e final – 43%); AF 7 “Qualquer opinião pode ser considerada científica”

(discordo totalmente/muito, início – 60%, meio – 73% e final – 86%); AF 11 “A evolução

biológica é apenas uma teoria, porque na comunidade científica ainda se discute a validade

dela” (discordo totalmente/muito, início – 26%, meio – 42%, final – 40%). Em todas elas a

6

passagem dos alunos pelo curso parece contribuir para a elaboração de respostas ou

posicionamentos mais críticos sobre Ciência.

Ao serem perguntados se alguma disciplina na faculdade havia trabalhado sobre o tema “O

que é a Ciência ?” (Q4), os alunos distribuíram suas respostas por 12 disciplinas de diversos

períodos, o que revela a intensidade com que o tema é abordado nessa licenciatura.

Entretanto, apesar dessa diversidade, é notável que a disciplina mais marcante (com 71% das

respostas) parece ser “Introdução ao Pensamento Biológico” (IPB). Trata-se de uma disciplina

oferecida no 1º período que trabalha as questões epistemológicas da Ciência a partir de

exemplos históricos. Em geral poucos cursos de graduação realmente apresentam em sua

grade curricular disciplinas que contemplem a possibilidade de refletir sobre a natureza da

Ciência (CACHAPUZ et al. 2005). Os resultados dessa investigação parecem destacar a sua

importância para a formação dos alunos sobre esse tema.

As disciplinas “Laboratório de Ensino“ de I a IV trabalham temas como educação ambiental,

sexualidade, sistemática filogenética e evolução, o que explica o motivo de também serem

mencionadas, embora com percentuais em torno de 5%. É curioso como a maioria cita IPB,

embora na verdade a maioria das alterações nas visões sobre Ciência pareça ocorrer mais

tarde, a partir do meio do curso, mostrando como essa disciplina parece ser importante,

embora seus efeitos se façam sentir posteriormente. Há uma percepção interessante também

sobre a relevância dos Laboratórios de Ensino como espaços para discussões que se

relacionam, ainda que de modo indireto, com esse tema. Isso pode explicar o motivo das

mudanças acontecerem mais tarde. Talvez o amadurecimento das ideias relacionadas à

Ciência como um todo ocorra ao passar pelas disciplinas de Laboratório de Ensino. Como o

número de disciplinas apontadas como influentes é grande, talvez a contribuição cumulativa

de cada uma delas ao longo do curso se traduza em um efeito mais perceptível a partir do

meio do curso. Além disso, a presença de uma disciplina oferecida pelo Departamento de

Educação (Filosofia da Educação) dentre as listadas (4% das respostas) pelos alunos destaca a

importância do curso não se basear no sistema 3 + 1, sendo oferecidas disciplinas de

Educação desde o início do curso, o que permite contribuições interessantes. Essa questão 4 e

a questão 2 – “A Ciência faz parte do cotidiano das pessoas nas grandes cidades” foram as

únicas que não pareceram exibir qualquer influência do período do curso ou do pertencimento

religioso.

Quatro perguntas/afirmações parecem ter sido influenciadas pelo pertencimento religioso dos

alunos independente do período em que se encontravam. Essas questões são interessantes

7

porque revelam os temas em que o curso parece ter mais dificuldade de exercer sua influência

sobre alguns dos alunos, sendo quase todas relacionadas de maneira mais direta a questões

bíblicas e ao ensino do criacionismo nas escolas. A primeira delas, a questão 7 (“Qual é a sua

opinião sobre o ensino do criacionismo nas escolas?”) é a que apresenta uma interpretação

mais difícil (protestantes a favor, início – 90%, meio – 42% e final – 42%%; protestantes

contra, início – 0%, meio – 42%, final – 23%; católicos a favor, início – 37%, meio – 20%,

final – 61%; católicos contra, início – 2%, meio – 47%, final – 15%). Os dados parecem

apontar que talvez essa opinião sobre o ensino do criacionismo tenha um peso mais pessoal

do que propriamente da natureza do pertencimento religioso e do período em que que o aluno

esteja. Porém, vemos um padrão mais claro nos sem religião, indicando que nessa questão ser

ou não religioso é importante, como seria esperado.

As demais afirmações que parecem ter sido influenciadas pelo pertencimento religioso dos

alunos foram: AF1 “As explicações científicas sobre a natureza são confiáveis” (concordo

totalmente/muito, católicos – 46%, protestantes – 39%, sem religião – 56%); AF5 “A bíblia é

comprovada cientificamente” (discordo totalmente/muito, católicos – 55%, protestantes –

64%, sem religião – 67%) e AF9 “A teoria da evolução está de acordo com os princípios

bíblicos e religiosos” (discordo totalmente/muito, católicos – 51%, protestantes – 44%, sem

religião – 55%). Os protestantes parecem ser o grupo religioso que menos confia nas

explicações científicas sobre a natureza e que apresenta mais dificuldades em realizar

tentativas de síntese ou aproximações entre o pensamento científico e religioso. É interessante

identificar que trata-se de um grupo que rejeita fortemente a visão da bíblia como um livros

comprovado cientificamente, em um percentual muito próximo dos sem religião. Porém,

apesar do padrão observado, ocorre uma grande heterogeneidade de respostas nesse grupo.

A maior parte das questões/afirmações (oito) revelou sofrer uma influência tanto do período

cursado pelos alunos quanto do seu pertencimento religioso. A Questão 1 “O Que é Ciência?”

revela claramente a influência do curso sobre o nível de aprofundamento das respostas sobre a

natureza da atividade científica, evidenciado pela queda no percentual de respostas vagas

(Quadro 1). O percentual de explicações vagas é mais alto nos religiosos do que nos sem

religião, embora sem um padrão claro distribuído entre os grupos religiosos, indicando que

talvez mais importante do que ter ou não uma religião, seria na verdade o tipo de

pertencimento religioso que o aluno possui.

Quadro 1 – Percentual de respostas influenciadas tanto pelo pertencimento religioso

quanto pelo período cursado pelos alunos de Licenciatura em Ciências Biológicas da FFP-

UERJ (CI – católicos no início do curso; CM – católicos no meio do curso; CF – católicos

8

no final do curso; PI – protestantes no início do curso; PM – protestantes no meio do

curso; PF – protestantes no final do curso; SRI – sem religião no início do curso; CM –

sem religião no meio do curso; CF – sem religião no final do curso.

Questão CI CM CF PI PM PF SRI SRM SRF

Q1 – O que é Ciência?

(Respostas vagas) 62% 47% 40% 60% 67% 60% 70% 47% 20%

Q2 – O que torna a Ciência

diferente de outras atividades?

(Respostas sofisticadas)

25% 40% 74% 50% 67% 60% 8% 75% 60%

Q3 – Sua visão de Ciência

mudou ao longo do curso?

(Mudou para crítica)

20% 27% 15% 0% 17% 0% 0% 19% 7%

Q6 – Ciência e Religião se

contradizem/complementam/são

independentes?

CT - Contradizem

CO – Concordam

IN – Independentes

CT

12%

CO

62%

IN

25%

CT

14%

CO

57%%

IN

28%

CT

8%

CO

46%

IN

46%

CT

30%

CO

50%

IN

20%

CT

8%

CO

75%

IN

17%

CT

0%

CO

57%

IN

43%

CT

37%

CO

7%

IN

62%

CT

28%

CO

7%

IN

71%

CT

37%

CO

6%

IN

56%

As três outras perguntas revelam a influência tanto do período que o aluno cursa quanto do

tipo de pertencimento religioso. Em algumas das respostas fica claro que o meio do curso

parece ser um momento chave na mudança das visões dos alunos. Na questão 3 o percentual

de aumento de visão crítica sobre Ciência foi muito elevado entre os protestantes e entre os

sem religião, podendo refletir a mudança de pontos de vistas em relação a posições iniciais

muito discrepantes. Em católicos os padrões foram mais distribuídos. Em relação à questão 6

é importante destacar a acentuada queda ao longo do curso no percentual de protestantes que

consideram que Religião e Ciência se contradizem.

Em relação às afirmações influenciadas tanto pelo curso quanto pelo pertencimento religioso

(Quadro 2) observa-se entre os alunos protestantes uma tendência maior a rejeitar afirmações

científicas categóricas, mesmo aquelas baseadas em seguidas evidências e estabelecidas como

teorias, bem como uma menor rejeição do criacionismo. Ao longo do curso observa-se uma

tendência à concordância com essas afirmativas bem como um aumento da rejeição do

criacionismo.

Quadro 2 – Percentual de posicionamentos influenciados tanto pelo pertencimento

religioso quanto pelo período cursado pelos alunos de Licenciatura em Ciências Biológicas

da FFP-UERJ. Afirmativas Início Meio Final Católicos Protestantes Sem Rel.

9

AF3 – A força da gravidade é

um fato (concordo

totalmente/muito)

50% 60% 59% 88% 72% 91%

AF4 – A teoria da evolução é

um fato (concordo

totalmente/muito)

74% 75% 82% 77% 55% 84%

AF 8 – O conhecimento

científico é provado (discordo

totalmente/muito)

32% 55% 66% 44% 52% 44%

AF10 – O criacionismo

explica melhor a origem das

spp (discordo

totalmente/muito)

48% 62% 63% 51% 25% 77%

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber nessa pesquisa que a maioria dos licenciandos apresenta explicações

vagas/ingênuas sobre a atividade científica, acreditando na Ciência como verdade absoluta,

que prova e comprova fatos. Oleques et al. (2013), destacam que a visão da Ciência como

envolvendo comprovação e descobertas é uma visão rígida de Ciência (algorítmica, exata,

infalível), em que se sugere um procedimento de regras definidas e mecânicas do método

científico. Segundo Fernández et al. (2002) e Gil Pérez et al.(2001) trata-se de uma visão

inadequada de Ciência, distante do modo como ela de fato ocorre. Porém, nossos dados

também revelam que há um número considerável de alunos que encara a atividade científica

como um processo dinâmico que pode ser testado e falsificado, revelando um efeito positivo

do curso no processo de construção de imagens mais elaboradas de Ciência. Nessa e em

outras questões/afirmações as respostas dos alunos revelam o resultado de um curso que

apresenta uma forte preocupação com essa temática, distribuída por várias disciplinas de

diferentes períodos. Um período chave para a ocorrência das principais transformações

observadas nessa e em outras questões parece ser a metade do curso, apresentando resultados

que se distanciam daqueles do início do curso e mais próximos dos apresentados na fase final.

A relação entre os conhecimentos científicos e religiosos, observamos que os religiosos

defendem em sua maioria que essas atividades “se complementam” ou que “são

independentes”, enquanto os sem religião concentram suas escolhas em “se contradizem” e

“são independentes”. Para Woolnough (1996), uma vez que não há só uma forma de ver o

mundo, torna-se necessário e legítimo interpretá-lo a partir de diferentes perspectivas. Cada

uma dessas perspectivas de ver o mundo se encontra baseada em uma forma particular de

10

entendimento e conhecimento, dentre as muitas produzidas pela espécie humana, a qual

encontraria validação em seu próprio contexto, utilizando seus próprios critérios de verdade e

justificação. Nenhuma das formas de conhecimento seria incompatível com as demais, uma

vez que elas seriam capazes de coexistir ou de serem verdadeiras no mesmo momento,

gerando descrições apropriadas para diferentes contextos (WOOLNOUGH, 1996).

Ciência e Religião, portanto, seriam independentes por ver o mundo cada qual à sua maneira

com caminhos explicativos distintos e procedimentos diversos. É imprescindível o

reconhecimento, por parte de professores e estudantes, de que o pensamento científico não

deve se opor necessariamente ao pensamento religioso, não ocupando o mesmo espaço

explicativo, segundo o conceito de Magistérios Não Interferentes (GOULD, 2002), gerando

discursos produtores de sentido em diferentes escalas, para diferentes pessoas, em diferentes

contextos.

Porém, essa distinção entre os campos de atuação, discursos e procedimentos do pensamento

científico e das visões de mundo religiosas não se traduz em uma existência imune a conflitos,

especialmente quando uma dessas explicações procura elaborar interpretações que invadem a

área de atuação da outra. Trata-se do caso do criacionismo, que recebe um apoio maior dos

alunos religiosos e uma forte rejeição por parte dos alunos sem religião. Nesse e em outros

temas relacionados a conflitos com as ideias religiosas, as posições mais conservadoras são

encontradas entre os alunos protestantes, o que não significa dizer que exista uma

homogeneidade de posicionamentos em suas respostas. Na verdade, para várias das questões

investigadas, esse grupo religioso apresentou as respostas mais divididas entre seus membros,

apontando assim possibilidades de intervenção dialógica. Qualquer interpretação da atividade

científica como um processo absoluto ou de algumas de suas descobertas como afirmações

categóricas amplamente testadas e não refutadas encontra a maior oposição por parte dos

protestantes. Portadores de uma visão de mundo que envolve em algum nível um

posicionamento absoluto, tais alunos rejeitam fortemente qualquer outra explicação que

pareça ocupar o espaço de certezas preenchido pelo pensamento religioso. Qualquer

possibilidade de influência por parte das diferentes concepções de Ciência sobre a visão de

mundo desses alunos só épossível a partir de interações dialógicas que não partam de posições

ontológicas privilegiadas mas que não renunciem à importância das explicações científicas

para a descrição dos fenômenos naturais.

Além das questões religiosas, outras dificuldades observadas para a construção de concepções

de Ciência menos elaboradas envolveram a adoção de ideias próximas do senso comum sobre

11

essa atividade, bem como sua redução a interpretações reducionistas que a igualavam a

simples aplicação de determinadas técnicas. Todas elas manifestam um profundo

descompasso entre o interesse dos alunos por atividades científicas e suas profundas

dificuldade de defini-las ou entender seu mecanismo de funcionamento, revelando uma

postura de mistificação diante da Ciência.

Embora o curso apresente disciplinas ao longo dos períodos que abordam de forma indireta as

características da atividade científica, a disciplina de IPB apresenta uma discussão mais

intensa e direta sobre esse tema. Sua implantação no primeiro período do curso de

Licenciatura em Ciências Biológicas da FFP-UERJ parece apresentar resultados muito

positivos para a construção de interpretações científicas mais críticas e elaboradas entre os

alunos. A importância da discussão da natureza da Ciência parece ser uma preocupação de

vários docentes do curso, distribuindo essa discussão por diferentes disciplinas de vários

períodos, o que representa outro ganho. Por fim, a presença de quatro disciplinas de

Laboratório de Ensino, abordando temas como como educação ambiental, sexualidade, saúde,

sistemática filogenética e evolução, constituem espaços reflexivos para discussões críticas e

não baseadas apenas nos conteúdos disciplinares propostos, oferecendo assim possibilidades

de recapitulação e sedimentação de discussões sobre a natureza da Ciência aplicadas a novas

situações e contextos, potencializando as discussões sobre o fazer científico.

Um dado curioso se refere aos alunos do 4º e 5º períodos, que frequentam as aulas de

Zoologia III, Laboratório de Ensino IV e Biologia e Evolução, disciplinas que a todo tempo

discutem sobre o conhecimento científico e evolução. Deste modo, obviamente a influência

do professor e as discussões frequentes em sala sobre o tema, na nossa opinião, podem

influenciar o percentual de respostas desse período em em comparação com os demais. Tais

influências, por serem mais recentes, podem se manifestar em maior intensidade nas respostas

dos alunos do meio do período, mantendo-se ou caindo no final do curso, mas nunca

retornando aos patamares iniciais.

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