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ano 11 - número 10 - dezembro de 2017 Violência: uma barreira para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos

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ano 11 - número 10 - dezembro de 2017

Violência: uma barreirapara a saúde e os direitossexuais e reprodutivos

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ano 11 - número 10 - dezembro de 2017

Violência: uma barreira para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos

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Questões de Saúde Reprodutiva

Ano 11 - número 10 - dezembro de 2017

ISSN 1809-9785

Edição em português:

Grupo Curumim Gestação e PartoCoordenação Editorial: Ana Paula Portella e Simone DinizTradução:

Bruno Portella e Camila SarmanhoRevisão: Monica FontanaRevisão técnica: Ana Paula PortellaAdministração: Grupo Curumim Gestação e PartoSecretária: Neide BatistaDiagramação: Isabela Faria, Demóstenes CoelhoWebsite: www.grupocurumim.org.br/site/revista/qsr10.pdf

Grupo Curumim Gestação e Parto

Rua Profa. Maria da Paz Brandão Alves, 63, Casa Forte – Recife - PE - Brasil55-81-3427 [email protected]

©Reproductive Health Matters 2013©Questões de Saúde Reprodutiva 2013Todos os direitos reservados.RHM Escritório EditorialReproductive Health Matters444 Highgate Studios53-79 Highgate RoadLondon NWS 5 1TL, UKTel: (44-20) 7267 6567Fax: (44-20) 7267 2551

RHM is Registred Charity in England and Wales,n° 1040450ISSN 0968-8080

RHM está indexada no:

Medline PubmedCurrent ContendsPoplineEMBRASESocial Sciences Citation Index

Para submissão de artigos:

Shirin Heidari [email protected] diretrizes para submissão estão disponíveisem: http://www.edmgr.com/zrhm/default.aspx

Qualquer outra correspondência:

Pathika [email protected]

RHM é parte de Taylor & Francis online:www.rhmjournal.org

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Colombia, Corcorna, Antioquia.Mulheres do grupo Mujeres de Negro (Women in Black) - um movimento pacifista feminista - em uma

manifestação na área rural. A mensagem diz: "Nós, mulheres, queremos viver sem violência".

PAUL

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8 Apresentação

Artigos: Violência: uma barreira para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos

10 Shirin Heidari, Claudia Garcia Moreno

Violência de Gênero: um obstáculo para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos

14 Jane Freedman Violência sexual e de gênero contra refugiadas: um aspecto ignorado da “crise” de refugiados

23 SHeleen Toquet, Ellen Gorris Saindo da penumbra? A inclusão de meninos e homens na conceituação do estupro de guerra

34 Farah Diaz-Tello Cicatrizes invisíveis: a violência obstétrica nos Estados Unidos

44 Carlos Herrera Vacaflor Violência obstétrica: uma nova abordagem para identificar obstáculos ao acesso à saúde materna na Argentina

53 EMorgan Carpenter Os direitos humanos de pessoas intersexo: práticas danosas e retórica da mudança

64 Michelle Sadler, Mário JDS Santos, Dolores Ruiz-Berdún, Gonzalo Leiva Rojas, Elena Skoko, Patricia Gillen, Jette A Clausen

Para além do desrespeito e do abuso: as dimensões estruturais da violência obstétrica

73 Loveday Penn Kekana, Megan Hall, Silvia Motta, Susan Bewley

Serviços de atenção a vítimas de violência devem ser integrados à assistência ao aborto? Uma análise da situação no Reino Unido

88 Megan Wainwright, Christopher J Colvin, Alison Swartz, Natalie Leon

Auto-gestão do aborto induzido por medicamentos: uma síntese das evidências qualitativas

101 Raquel Irene Drovetta Linha direta: uma estratégia eficaz para ampliar o acesso das mulheres ao aborto seguro na América Latina

112 Susan Wood, Lilián Abracinskas, Sonia Correa, Mario Pecheny

Reforma da lei de aborto no Uruguai: contexto, processo e lições aprendidas

121 Simone G Diniz, Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira, Sonia Lansky

Igualdade e serviços de saúde da mulher para contracepção, aborto e parto no Brasil

Sumário

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130 Alice M. Miller, Eszter Kismödi, Jane Cottingham, Sofia Gruskin

Direitos sexuais como direitos humanos: um guia de princípios e fontes autorizadas para a aplicação dos direitos humanos à sexualidade e saúde sexual

146 Vera Paiva e Valéria Silva Enfrentando reações negativas à educação sexual por meio de um modelo multicultural de direitos humanos

157 Alessandra Sampaio Chacham, Andrea Branco Simão, André Junqueira Caetano

Violência de gênero e saúde sexual e reprodutiva entre jovens de baixa renda de três cidades brasileiras

169 Simone Diniz e Halana F. Andrezzo O vírus da zika - o glamour de uma nova doença, o abandono prático das mães e novas evidências para uma causalidade incerta

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Apresentação

Ana Paula PortellaSocióloga, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco Contato: [email protected]

É com grande satisfação que apresentamos a dé-cima edição da revista Questões de Saúde Repro-dutiva (QSR), reunindo mais uma vez um impor-tante conjunto de artigos sobre temas candentes do campo da saúde e dos direitos sexuais e repro-dutivos. Há dez anos traduzimos para o português artigos originalmente publicados pelo periódico britânico Reproductive Health Matters (RHM), com o objetivo de ampliar o alcance dos debates sobre questões que afetam a saúde e a cidadania das mulheres, especialmente as mais pobres. Esta edi-ção traz artigos selecionados de quatro edições da RHM*. Nosso tema central é a violência de gênero e seus impactos sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos e, como de praxe, selecionamos ar-tigos que ofereçam análises panorâmicas e abor-dem novas questões, dedicando um foco especial a estudos e pesquisas voltados para a América La-tina e para o Brasil.

Nosso primeiro artigo é a apresentação da RHM 47, de autoria de Heidari e Garcia Moreno, voltada para as muitas circunstâncias e formas de violência de gênero que impactam negativamente a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, destacando como o risco desse tipo de violência se acentua em situações de conflito e migração. No artigo seguin-te, Violência sexual e de gênero contra refugiadas: um aspecto ignorado da “crise” de refugiados, Fre-edman demonstra como o atual contexto europeu tem criado inúmeras formas de vulnerabilidade e insegurança para as mulheres refugiadas, incluin-do diversas modalidades de violência sexual e de gênero, sofridas durante a jornada ou no país de destino. Touquet e Gorris desvelam um tema que tem recebido pouca atenção da academia e do ativismo: a violência sexual sofrida por meninos e homens em situações de guerra e conflitos. No ar-tigo Saindo da penumbra? A inclusão de meninos e homens na conceituação do estupro de guerra, as autoras analisam o problema no campo das políti-cas públicas e no direito penal internacional.

* Nº 45, 46, 47 e 48, vol. 23 e 24, 2015 e 2016.

No artigo Cicatrizes invisíveis: a violência obs-tétrica nos Estados Unidos, Diaz-Tello trata da vio-lência cometida nos serviços de saúde, apresen-tando casos reais que demonstram as limitações do sistema de justiça civil na abordagem da vio-lência obstétrica e comparando com alternativas jurídicas implementadas na América Latina. Vaca-flor segue na mesma direção no artigo Violência obstétrica: uma nova abordagem para identificar obstáculos ao acesso à saúde materna na Argenti-na, onde sugere a aplicação do marco legal da vio-lência contra as mulheres para abordar o proble-ma. De forma mais abrangente, Sadler entende a violência obstétrica como consequência da violên-cia estrutural e no artigo Para além do desrespeito e do abuso: as dimensões estruturais da violência obstétrica analisa o modo como este conceito vem sendo utilizado no ativismo latino-americano e em documentos jurídicos. Encerrando o bloco so-bre violência e abusos, Carpenter trata do direito à autonomia corporal e à autodeterminação e do fim da estigmatização de pessoas intersexo, no artigo Os direitos humanos de pessoas intersexo: práticas danosas e retórica da mudança.

No contexto latinoamericano, o debate sobre aborto é essencial para a garantia dos direitos se-xuais e reprodutivos e, por isso, trazemos quatro artigos que tratam do tema. Kekana et al debru-çam-se sobre o desafio dos serviços integrados de saúde, no artigo Serviços de atenção a vítimas de violência devem ser integrados à assistência ao aborto? Uma análise da situação no Reino Uni-do. Seus resultados indicam a importância de se considerar nesses processos o contexto local, a integridade dos formatos assistenciais específicos e a segurança e o agenciamento das mulheres, es-pecialmente quando o direito ao aborto está sob ataque. No artigo Autogestão do aborto induzido por medicamentos: uma síntese das evidências qualitativas, Wainwright et al revisam a literatura acadêmica para subsidiar a ampliação da auto-gestão do aborto induzido por medicamentos,

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A P Portella / Questões de Saúde Reprodutiva 2017; 10: 08-09

reduzindo o envolvimento dos profissionais de saúde. O artigo Linha direta: uma estratégia efi-caz para ampliar o acesso das mulheres ao aborto seguro na América Latina, de Drovetta, descreve a implementação de linhas diretas para o aborto seguro, uma estratégia desenvolvida por coletivos feministas em vários países onde o aborto é le-galmente restrito e inseguro para oferecer às mu-lheres informações sobre a interrupção da gesta-ção com misoprostol. Os dois artigos apresentam evidências com o potencial de reduzir o risco do aborto inseguro em contextos de restrição legal. E mais uma vez, tratamos das mudanças e limites na legislação do aborto no Uruguai, com o artigo Reforma da lei de aborto no Uruguai: contexto, processo e lições aprendidas, de Susan Wood et al. Finalizando o bloco, Diniz et al. examinam as disparidades injustas entre mulheres e homens e entre mulheres de diferentes camadas sociais no contexto brasileiro, com foco sobre os serviços de contracepção, aborto e parto, no artigo Igualdade e serviços de saúde da mulher para contracepção, aborto e parto no Brasil.

O último conjunto de artigos enfatiza aspectos relacionados aos direitos sexuais. Alice Miller et al. oferecem um guia de utilização da normativa dos direitos humanos no campo dos direitos sexuais no artigo Direitos sexuais como direitos humanos: um guia de princípios e fontes autorizadas para a aplicação dos direitos humanos à sexualidade e saúde sexual. Na mesma linha, Paiva e Silva apre-sentam os resultados de uma intervenção de edu-cação sexual baseada nos direitos humanos, no artigo Enfrentando reações negativas à educação sexual por meio de um modelo multicultural de direitos humanos, demonstrando que esta é uma abordagem que possibilita a tradução de valores distintos, tornando difusa a resistência à educa-ção sexual e preservando as noções de igualdade e proteção do direito à educação sexual abrangente. O artigo Violência de gênero e saúde sexual e re-produtiva entre jovens de baixa renda de três ci-dades brasileiras, de Chacham et al. apresenta os

resultados de uma pesquisa realizada em Minas Gerais, que ajudam a entender como a violência e o controle da autonomia de jovens mulheres afetam a saúde sexual e reprodutiva de homens e mulheres e como o processo de empoderamento pode reduzir a susceptibilidade a gestações inde-sejadas, infecção por HIV e outras ISTs.

Finalmente, quase como um bônus, trazemos o artigo de Diniz e Andrezzo sobre o intrigante e muito atual tema da zika e da microcefalia, O vírus da zika - o glamour de uma nova doença, o aban-dono prático das mães e novas evidências para uma causalidade incerta. Para as autoras, a crise do vírus da zika deve ser considerada no contexto da estratificação reprodutiva, das desigualdades de gênero e da justiça social. Independentemente das relações de causalidade entre o vírus da zika e a assim chamada Síndrome Congênita da Zika, lembram as autoras, há uma população afetada pela enfermidade que necessita dramaticamente de respostas adequadas e imediatas.

Desde 2016, a RHM pode ser livremente acessa-da por meio da página https://www.tandfonline.com/toc/zrhm/current, que também hospeda to-das as edições em português. Você também pode acessar a QSR pelo website do Grupo Curumim Gestação e Parto, organização feminista que edi-ta a revista em língua portuguesa (www.grupocu-rumim.org;br/site/revista.php). Para ler a revista e acompanhar notícias e debates sobre direitos reprodutivos e sexuais, feminismo e questões de gênero curta nossa fanpage no Facebook (https://www.facebook.com/questoesaudereprodutiva/) e siga-nos no Twitter (@BrasilQSR).

Boa leitura!

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Violência de Gênero: um Obstáculo para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos

Shirin Heidaria, Claudia García Morenob

a Diretora e Editora, Reproductive Health Matters, Londres, Reino Unido. Contato: [email protected] Especialista em violência contra mulheres, Organização Mundial da Saúde. Genebra, Suíça*.

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.07.001

Em todo o mundo, é alarmante o grau de violência contra mulheres e meninas, que vem sendo cada vez mais reconhecida não só como uma grave vio-lação de direitos humanos, mas também como uma questão de saúde pública que afeta suas vi-das e sua saúde física e mental. A violência contra mulheres e meninas, cujas raízes estão na desi-gualdade de gênero, representa um imenso obs-táculo para a saúde e os direitos sexuais e repro-dutivos das mulheres e meninas por ela atingidas.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CE-DAW, sigla em inglês) adotada em 1979 já foi rati-ficada por 187** países1. A importância de acabar com todas as formas de violência contra mulheres e meninas foi reiterada novamente nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que pela primeira vez considerou que esta é uma questão chave para o alcance do ODS 5 sobre igualdade de gênero e empoderamento feminino, assim como para diversas outras metas dos ODS, inclusive aquelas relacionadas à saúde (ODS 3)2.Apesar des-ses compromissos, a violência contra as mulheres ainda é uma prática difundida, e, de acordo com estimativas globais, 35% das mulheres e meninas no mundo são vítimas de violência física e/ou se-xual cometida por um parceiro íntimo ou de vio-lência sexual cometida por outros agressores ao longo de sua vida3.

A revista Reproductive Health Matters dedica a sua edição 47 à questão da violência buscando aprofundar o conhecimento acerca das diferentes dimensões da violência de gênero e traduzir nos-sas reflexões em respostas eficazes. Esta edição da revista lança luz sobre algumas das muitas cir-cunstâncias e formas de violência de gênero que impactam de maneira negativa a saúde e os di-

reitos sexuais e reprodutivos das pessoas e conta com artigos que destacam como o risco desse tipo de violência se acentua em situações de conflito e migração.

Violência em Situações de Crise e ConflitoAtualmente mais de 65 milhões de pessoas se en-contram em situação de deslocamento forçado e mais da metade delas é composta por mulheres e crianças4. Em situações de guerra e conflito ar-mado, a violência sexual contra mulheres, assim como contra homens, é usada como uma tática de guerra que produz trágicas consequências para a saúde física, mental e sexual e reprodutiva das vítimas. Embora a violência sexual em contextos de conflito tenha recebido um elevado nível de atenção política – como, por exemplo, na Inicia-tiva de Prevenção de Violência Sexual (PSVI, sigla em inglês) - ainda há diversas lacunas em nossa compreensão sobre esse tipo de violência e sobre a magnitude do problema. Intervenções eficazes para tratar a violência sexual em contextos hu-manitários também são bastante limitadas e evi-denciam a necessidade de melhores informações sobre esses contextos5,6.

Um dos artigos desta edição chama a atenção para a violência sexual contra homens em situ-ações de conflito, destacando a necessidade de uma resposta política que inclua vítimas mas-culinas (Touquet e Gorris). O estigma e o silêncio caracterizam a violência sexual e para os homens o estigma e silêncio são agravados ainda pelas crenças sobre a masculinidade difundidas cultu-ralmente e pela percepção da violência sexual como um ato emasculante.

No entanto, mulheres e meninas permanecem como o grupo sob maior risco de violência sexual, incluindo o sexo transacional forçado, estupro e abuso sexual, não apenas em situações de confli-to, mas também durante migrações e na chegada aos países de destino. Vários artigos nesta edi-ção da revista colocam o foco sobre a atual crise de refugiados resultante dos conflitos na Síria.

* As opiniões aqui expressadas são de exclusiva responsabilidade das autoras e não representam a linha política da Organização Mundial de Saúde.

** Os Estados Unidos, Irã, Sudão, Sudão do Sul, Somália e duas pequenas ilhas do Pacífico (Palau e Tonga) não ratificaram a CEDAW.

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S Heidari, CG Moreno. / Questões de Saúde Reprodutiva 2017; 10: 10-13

Um dos artigos (Alsaba e Kapilashrami) oferece uma análise crítica sobre “a natureza mutável, os riscos associados à violência e as experiências de vida de mulheres ao longo do continuum de violência enfrentada em seus países e além das fronteiras nacionais”, a partir da perspectiva da economia política. Em outro artigo, Freedman destaca as múltiplas formas de violência às quais refugiados, inclusive mulheres sírias, são submeti-das durante diferentes fases de suas jornadas, in-cluindo os países de chegada na Europa. Diversos países europeus têm implementado restrições que tornam o controle de fronteiras mais rigoroso e o artigo demonstra como esses esforços terminaram por exacerbar mais ainda a vulnerabilidade des-sas pessoas à violência sexual cometida por con-trabandistas e também por policiais e forças de segurança nas fronteiras e nos países de destino.

Embora a violência sexual em situações de con-flito e pós-conflito venha recebendo cada vez mais atenção, outros tipos de violência sofrida pelas mulheres, como a violência nas relações íntimas, ainda ocorrem com frequência entre populações deslocadas, como demonstram diversos estudos, não devendo ser ignorada7,8. Os novos contextos criados pela migração influenciam, por exemplo, as dinâmicas de gênero e as relações de poder nas famílias, com alguns indicativos de aumen-to na incidência de violência doméstica. Nessas situações, as mulheres enfrentam estigma e bar-reiras idiomáticas e o medo da deportação e das autoridades públicas aumenta sua relutância em denunciar os abusos, impedindo o acesso a servi-ços jurídicos, médicos e psicológicos (Freedman). Outro artigo destaca o aumento na prevalência de violência, incluindo o casamento precoce e o sexo transacional, entre mulheres e meninas refugia-das no Líbano (Yasmine e Moughalian). O artigo desvenda os obstáculos sistêmicos que afetam o poder de decisão e o acesso de refugiadas a ser-viços de saúde sexual e reprodutiva, como os de planejamento familiar, assistência obstétrica de emergência e aborto seguro. O artigo também destaca os maus tratos e abusos sofridos por mu-lheres refugiadas em contextos de assistência à saúde, incluindo a recusa de assistência ao parto e casos de cesáreas forçadas.

Violência e maus tratos na assistência à saúdeO tratamento abusivo, desrespeitoso e negligente durante o parto nos serviços de saúde não ocorre

apenas entre mulheres refugiadas, mas também é uma situação comum em diversos contextos, que são tratados em outros artigos desta edição (Sadler et al, Vacaflor, Diaz-Tello). Cada vez mais, este problema vem sendo considerado uma for-ma de violência, denominada de “violência obs-tétrica” e incluída na legislação de alguns países latino-americanos. O desafio aqui é chegar a uma definição que identifique claramente os atos que constituem abuso e desrespeito e aqueles que se relacionam à baixa qualidade da assistência em sistemas de saúde precários. Como defendido em alguns artigos, tratar esta forma de maus tratos a partir da perspectiva dos direitos humanos e no âmbito da violência contra as mulheres tem o objetivo de destacar sua dimensão estrutural e aumentar a visibilidade do problema, produzin-do ações nos sistemas de saúde que garantem a oferta de serviços de saúde sexual e reprodutiva que respeitem a decisão, a autonomia e os direi-tos das mulheres. Este princípio deve se aplicar a todos os indivíduos, incluindo as pessoas cuja orientação sexual ou identidade de gênero dife-rem da heteronormatividade. Um dos artigos trata especificamente da medicalização de corpos inter-sexuais, demonstrando como a intervenção médi-ca desnecessária em corpos intersexuais saudáveis viola o direito à autonomia e à autodeterminação corporal (Carpenter).

Respostas dos serviços de saúdeOs abusos e maus tratos devem ser enfrentados no conjunto do sistema de saúde, mas os servi-ços de saúde sexual e reprodutiva oferecem uma porta de entrada única para se tratar da violên-cia contra as mulheres. O Plano Global de Ação da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o Fortalecimento dos Sistemas de Saúde no Com-bate à Violência, em particular à violência contra mulheres e meninas, foi aprovado recentemente pela Assembleia Mundial de Saúde e demonstra como profissionais de saúde bem treinados, ca-pazes de identificar e oferecer respostas adequa-das podem fazer uma enorme diferença na vida das mulheres, reduzindo o impacto e, muitas vezes, a reincidência de violência9,10. A maioria das mulheres precisará ser atendida por serviços de saúde em algum momento de sua vida, seja para serviços de planejamento familiar, aborto, assistência pré-natal, parto, para infecções trans-mitidas sexualmente ou para a saúde de suas crianças, o que cria uma janela de oportunidade

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para a prevenção da violência e oferta adequada de assistência e apoio. Mas evidências ainda são necessárias para orientar a integração ideal en-tre os modelos de assistência. O artigo de Penn Kekana et al apresenta opiniões de mulheres e profissionais de saúde do Reino Unido sobre a integração de serviços de assistência ao aborto e à violência cometida por parceiro íntimo, con-cluindo que a integração de dois serviços estig-matizados não é exatamente o ideal. O estudo aponta para a necessidade de produção de infor-mações relevantes sobre os contextos específicos que considerem a aceitabilidade e a viabilidade de novos modelos de assistência.

Violência DomésticaO papel dos serviços de saúde na identificação de vítimas de violência doméstica é novamente des-tacado em um artigo da Índia, que revela como a natureza de gênero das queimaduras passa des-percebida aos olhos dos profissionais de saúde (Bhate-Deosthali e Lingam). O Programa Nacio-nal de Queimaduras da Índia estima que 91.000 mulheres morrem anualmente em decorrência desse tipo de lesão11. Essas mortes são completa-mente evitáveis. Embora boa parte (se não todas) seja resultado de violência doméstica, esses casos são frequentemente categorizados como aciden-tes, suicídio e algumas vezes homicídio, sem que sejam relacionados a esse tipo de violência. Isso ressalta a necessidade de se obter mais dados, de conscientizar os profissionais de saúde sobre os padrões de gênero subjacentes às queimadu-ras e de intervenções precoces para identificar e apoiar as sobreviventes antes que as lesões resul-tem em mortes.

Embora as queimaduras decorrentes da violên-cia passem despercebidas pela mídia, boa parte do discurso público e da atenção política na Índia volta-se para a violência sexual, particularmente para o “estupro cometido por estranhos”, ape-sar da grande incidência de violência doméstica. Em contraste, narrativas de homens e mulheres de classe média de Déli apontam para a grande presença de abusos sexuais e de outros tipos nas relações íntimas e domésticas, como ressalta ou-tro artigo da Índia (Edmunds e Gupta). Na esfera doméstica, as compreensões sobre consenso, se-gurança e prazer sexual são negociadas com fre-quência, mas também são ambíguas, já que o estupro conjugal não é considerado crime na le-gislação indiana.

Muitos estudos indicam que homens cometem atos violentos com mais frequência, mas também se pode afirmar que eles também são vítimas de diferentes formas de violência. Os homens de-sempenham um papel central no enfrentamento da violência contra as mulheres e na eliminação de práticas abusivas. Nesta edição, Brown discor-re sobre homens jovens que se consideram par-ceiros no combate à mutilação genital feminina (MGF) no Quênia, destacando a necessidade de intervenções que aumentem significativamente a participação masculina para a mudança das normas sociais e culturais que fomentam a MGF e normalizam a violência. Essa é uma medida re-levante para todas as formas de violência contra as mulheres, e particularmente para a violência sexual, a violência cometida por parceiro íntimo e a violência no namoro.

Avanços Requerem EvidênciasEsta edição traz contribuições importantes de di-ferentes partes do mundo, que ajudam a ampliar nosso conhecimento, mas também levantam di-ferentes questões, destacando a necessidade de maiores investimentos em pesquisa sobre violên-cia de gênero, tanto em termos dos tipos de vio-lência, como das subpopulações que estão sob maior risco.

A produção de evidências é útil para ampliar a precisão terminológica e, mais especificamen-te, ao modo como nos referimos a diferentes tipos de violência. O termo violência de gêne-ro foi cunhado inicialmente para dar destaque à desigualdade de gênero (isto é, às dinâmicas de poder entre homens e mulheres e ao acesso desigual a recursos por parte das mulheres) que expõe mulheres e meninas a um risco maior de certas formas de violência. Mas o termo tem sido cada vez mais empregado para se referir à vio-lência baseada no sexo, na orientação sexual ou na identidade de gênero das pessoas. Noções de masculinidade e feminilidade sustentam tanto a violência contra mulheres, quanto contra grupos de diversas orientações sexuais e identidades de gênero, ainda que as dinâmicas de gênero e os fatores subjacentes às diferentes formas de vio-lência não sejam necessariamente os mesmos. A violência com base na orientação sexual ou na identidade de gênero deve ser estudada e com-preendida de forma específica. Documentar a magnitude e a natureza da violência sofrida por indivíduos por causa de sua orientação sexual e

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identidade de gênero irá ajudar a desenvolver abordagens mais específicas para lidar com essa violência e para superar obstáculos como o estig-ma e a discriminação, que limitam o acesso de indivíduos a serviços de saúde.

É preciso produzir mais evidências sobre outras formas de violência às quais mulheres e meninas adolescentes estão expostas, como o tráfico hu-mano, o casamento infantil, precoce e/ou forçado, e sobre a violência como questão interseccional, dirigindo a atenção a grupos específicos de mu-lheres, como, por exemplo, mulheres portadoras de deficiências e mulheres indígenas, que sabida-mente são afetadas por altas taxas de violência. Dados adicionais são necessários para se alcançar mais conhecimento sobre as causas mais profun-das da violência, seus determinantes estruturais e respostas eficazes ao problema.

A violência contra mulheres é um acontecimen-to comum: uma a cada três mulheres sofre vio-lência física e/ou sexual por um parceiro íntimo ou violência sexual por um homem ‘não parcei-ro’3. Se a violência sexual fosse considerada uma doença, pesquisadores do mundo inteiro iriam se mobilizar e recursos seriam dedicados à pesquisa para se encontrar uma maneira de prevenir a sua proliferação e para descobrir a cura e o tratamen-

to. Com o crescente reconhecimento da magnitu-de do problema e da sensibilidade política para a eliminação da violência de gênero, a ampliação das pesquisas e a melhoria na coleta de dados são necessárias e urgentes se almejamos superar esse problema nos mais diferentes níveis, atingindo as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sus-tentável (ODS). A realização dos ODSs requer uma agenda abrangente de pesquisa que ande de mãos dadas com o firme compromisso de aumentar o investimento em pesquisa, incluindo a análise de políticas públicas e as pesquisas de implementa-ção e avaliação de programas capazes de produ-zir evidências relevantes e sensíveis aos contextos sobre o que realmente funciona, onde funciona e para quem funciona.

AgradecimentosAs autoras gostariam de agradecer a Avni Amin por sua contribuição valiosa ao editorial e a Pa-thika Martin por sua revisão e edição cuidadosa. Gostariam de agradecer especialmente o apoio e a contribuição do comitê editorial para esta edição, nomeadamente a Avni Amin, Tine Gammeltoft, Ana-Cristina Gonzalez, Barbara Klugman e Heidi Stöckl.

1. United Nations. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women [Internet]. 1979. Available from: http://www.un.org/womenwatch/daw/ cedaw/text/econ-vention htm.

2. United Nations. Sustainable Development Goals [Internet]. 2015. Available from: Sustainable Development Goals.

3. World Health Organization. Global and regional estima-tes of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence. Statew Agric L Use Baseline 2015 [Internet]. 2013. Available from: http://www.who.int/iris/bitstre-am/10665/85239/1/9789241564625_eng.pdf?ua=1.

4. UNHCR. Global Trends, Forced displacment in 2015. 2016. Available from: https://s3.amazonaws.com/unhcrsharedmedia/2016/2016-06-20-global-trends/2016-06-14-Global-Trends-2015.pdf.

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Referências

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14 Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.05.003

Violência sexual e de gênero contra refugiadas: um aspecto ignorado da “crise” de refugiados

Jane FreedmanProfessora, Universidade de Paris 8, França. Contato: [email protected]

Resumo: A atual “crise” de refugiados na Europa tem criado inúmeras formas de vulnerabilidade e insegurança para mulheres refugiadas, incluindo diversas modalidades de violência sexual e de gênero (VSG). Um número crescente de mulheres sozinhas ou acompanhadas de suas famílias tentam alcançar a Europa para se proteger dos conflitos e da violência em seus países de origem, mas essas mulheres são submetidas à violência durante sua jornada e/ou ao alcançar o país de destino. A ausência de acomodações adequadas e de locais de acolhimento para refugiados e imigrantes na Europa, assim como o controle e bloqueios de fronteiras, aumentou a necessidade de atravessadores que auxiliam a chegada à Europa, agravam a violência e a insegurança.

Palavras-chave: violência sexual e violência de gênero, refugiados, asilo, Europa

IntroduçãoAtualmente, a Europa enfrenta uma “crise” de refugiados, uma vez que milhões de pessoas for-çadas a deslocar-se tentam chegar aos países da União Europeia. A maioria dessas pessoas é do sexo masculino, mas um número crescente de mu-lheres se envolve na perigosa jornada a caminho da Europa1. A insegurança da jornada tem sido destacada pela grande mídia através de imagens chocantes de barcos naufragando e refugiados morrendo afogados, mas outras formas de violên-cia e insegurança têm recebido uma atenção mui-to menor, especialmente as várias modalidades da violência de gênero (VG), incluindo a violência sexual sofrida pelas refugiadas.

Em 2015, mais de um milhão de refugiados chegaram à União Europeia de barco e nos dois primeiros meses de 2016 já foram registradas mais de 150.000 novas chegadas2. A maioria desembar-cou na costa da Grécia e da Itália, a caminho de outros destinos dentro da União Europeia. Nos dois primeiros meses de 2016, das chegadas pelo mar, 86% foram provenientes de apenas 10 países, sendo 45% da Síria e 24% do Afeganistão3. A na-tureza arriscada dos meios utilizados para alcan-çar a Europa é evidenciada pelo fato de que pelo menos 3.440 pessoas foram dadas como mortas ou registradas como desaparecidas durante as tra-vessias de 2015 e, apenas nos dois primeiros me-ses de 2016, 464 já foram dadas como mortas ou desaparecidas, mas é provável que esse número seja maior, por conta das mortes não registradas. O perigo não se encerra depois da travessia. Uma

vez que vários países da União Europeia e países vizinhos, como Sérvia e Macedônia, têm fechado suas fronteiras para impedir a passagem ou o flu-xo de refugiados*, a jornada tem se tornado cada vez mais dificultosa e perigosa. Refugiados têm sofrido violência nas mãos de policiais e contro-ladores de fronteiras, além dos atravessadores, que cobram muito caro para facilitar a entrada na União Europeia5.

Até o momento, a maioria dos refugiados é composta por homens, mas o número de mulhe-res e crianças tem crescido. É impossível dar uma estimativa correta do número de mulheres que chegaram na Europa até o momento, devido à ausência de dados desagregados por sexo, porém a ACNUR estima que cerca de 20% daqueles que chegaram na Europa sejam mulheres4. Segundo um representante da ACNUR entrevistado para esta pesquisa, a proporção de mulheres refugia-das tem crescido desde 2015, e uma proporção cada vez maior de mulheres têm viajado sozinhas ou apenas com seus filhos (oficial da ACNUR, en-trevista por telefone em 2015). Esse representante argumentou que em alguns casos essa é uma es-tratégia dos homens, que acreditam que mulheres

* A crise de refugiados está evoluindo rapidamente e as circunstâncias pelas quais estados membros e seus vizinhos concedem a entrada ou passagem de refugiados por seu território muda diariamente. Durante a concepção deste artigo, muitos refugiados se encontravam “presos” na Grécia uma vez que as fronteiras com a Macedônia e Bulgária foram fechadas, e a assinatura de um acordo com a Turquia permitiu refugiados voltarem para o território Turco.

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e crianças sozinhas têm maiores chances de serem aceitas na UE, porque seriam consideradas mais “vulneráveis” e conseguiriam proteção mais facil-mente em algum país da UE. A expectativa é que maridos ou parceiros possam então reencontrar suas famílias através do processo de reunificação familiar. Em outros casos, mulheres estão fazendo a travessia sozinhas por serem solteiras ou terem perdido seus maridos durante a guerra. Em alguns casos, famílias acabam sendo separadas, seja por oficiais ou por atravessadores. Foram registrados alguns casos, por exemplo, de resgates conjun-tos feitos pelas guardas costeiras da Grécia e da Turquia, em que alguns refugiados foram levados para a Grécia e outros para a Turquia.

A resposta da UE para a “crise” de refugiados tem sido amplamente criticada por ativistas dos direitos humanos e outros grupos de apoio a imigrantes por focar na repreensão do tráfico de pessoas e prevenção da imigração ilegal, ao invés de garantir a proteção dos direitos e da vida de imigrantes desesperados para alcançar a Europa6. Embora um acordo inicial tenha sido alcançado em 2015 garantindo o realocamento de 160.000 refugiados localizados na Itália e Grécia para ou-tros países da UE, durante a escrita deste artigo, em março de 2016, menos de 300 refugiados ti-nham sido realocados até o momento7.

Este artigo documenta as diversas formas de violência sexual e de gênero (VSG) sofridas por mu-lheres refugiadas, argumentando que as políticas atuais da UE aumentam a vulnerabilidade e a in-segurança dessas mulheres. Além disso, a resposta da UE para a crise de refugiados falha em promo-ver assistência médica e psicológica adequada para mulheres vítimas de violência em seus países de origem ou durante sua jornada migratória.

MétodosEste artigo se baseia em pesquisa qualitativa con-duzida na Grécia (Kos), Sérvia (Belgrado) e França (Paris e Calais) entre junho de 2015 e janeiro de 2016. Esses locais foram selecionados por repre-sentarem países dentro e fora da UE e países de trânsito e chegada ou estabelecimento de refugia-dos, possibilitando a análise de todos os estágios e experiências da jornada de refugiados após a travessia do mar vindo da Turquia. Em todos os locais de pesquisa, foram conduzidas entrevistas com mulheres e homens refugiados que se encon-travam em algum estágio de sua jornada migra-tória. A fim de conduzir a pesquisa de maneira

ética, os potenciais entrevistados foram primeira-mente informados sobre a natureza e o propósito da pesquisa e sobre o conteúdo da entrevista e o seu consentimento explícito foi obtido antes de se dar início a qualquer tipo de entrevista. Também foram informados que poderiam interromper a entrevista a qualquer momento. Potenciais entre-vistados foram abordados diretamente em diver-sos locais em que viviam e o propósito da pesquisa lhes foi explicado antes de obter o consentimento para participação. Como em muitos casos as pes-soas se encontravam em trânsito e a população desses lugares é altamente móvel e flutuante, não foi possível garantir uma amostragem sistemática e os entrevistados foram selecionadas de acordo com sua disponibilidade e consentimento em par-ticipar, mas tentamos entrevistar pessoas de dife-rentes idades e situação social (solteiros, casados, com ou sem filhos), além de refugiados provenien-tes de diferentes países. Os dados foram registra-dos de forma anônima para garantir a confiden-cialidade e o sigilo das informações. No total, 40 mulheres e 20 homens† foram entrevistados usan-do um roteiro de questões abertas e não diretivas, considerada a técnica mais adequada para captar as narrativas e percepções de refugiados durante o processo migratório. Quando autorizado, as en-trevistas foram gravadas, em outras situações as informações foram registradas em papel. Além disso, foram entrevistados representantes da AC-NUR, de ONGs nacionais e internacionais e de as-sociações locais de solidariedade/apoio a imigran-tes. Estes informantes chaves foram identificados em cada local a partir das organizações interna-cionais e ONGs nacionais e internacionais traba-lhando diretamente com populações de refugia-dos. Finalmente, entrevistas por telefone e email foram conduzidas com representantes regionais da ACNUR, do Parlamento Europeu, Frontex, da Agência Europeia de Apoio ao Asilo e Médicos sem Fronteiras (MSF). A pesquisa de campo foi apoiada pela revisão da literatura relevante sobre a crise de refugiados, incluindo artigos acadêmicos e re-latórios de ONGs internacionais e organizações de direitos humanos.

† Uma vez que a maioria dos refugiados vivendo na Europa são sírios, esse também foi o principal grupo entrevistado. No total, 28 sírios, 14 afegãos, 12 iraquianos e 6 eritreus foram entrevistados. 35 entrevistas foram conduzidas em Kos, 20 em Calais e 5 em Belgrado, Sérvia, onde o acesso a refugiados é mais complicado. As mulheres entrevistadas estavam viajando sozinhas, com seus parceiros ou com suas famílias e os homens entrevistados estavam viajando com mulheres.

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Contexto: A Crise de Refugiados Europeia Pesquisas anteriores apontaram as dificuldades e os obstáculos que impedem as mulheres de mi-grar, entre eles a falta de recursos econômicos, a responsabilidade com os cuidados dos filhos, res-trições culturais quanto a viajarem sozinhas em seus próprios países ou fora deles e o medo de so-frer violência durante a imigração. Esses obstácu-los demonstram que frequentemente as mulheres só migram quando não têm mais nenhuma outra alternativa. Assim, o número crescente de mulhe-res migrantes correndo riscos durante a travessia pelo mediterrâneo para alcançar a Europa pode estar ligado à deterioração das condições na Síria e para refugiados sírios na Turquia, assim como a constatação de que o conflito na Síria não chegará a um fim em futuro próximo, fazendo com que es-sas mulheres recorram a esta última alternativa. Outros refugiados têm vindo do Afeganistão, Ira-que ou Eritreia, que atualmente enfrentam altos níveis de violência e conflito armado. Apesar de haver cada vez mais mulheres fazendo o percur-so para a Europa, ainda são poucas as pesquisas sobre suas experiências específicas. As principais fontes de informação sobre as experiências dessas mulheres são os relatórios de ONGs e organizações de direitos humanos10,11.

Mulheres migrantes e refugiadas são vulnerá-veis à VSG durante suas jornadas e nos países de destino12,13. Muitas podem também estar escapan-do das diferentes formas de VSG em seus países de origem. A prevalência da violência sexual no conflito atual na Síria tem sido amplamente docu-mentada em diversos relatórios de organizações de direitos humanos14,15, é provável, portanto, que um número significativo de mulheres que esca-pam da Síria tenham sido vítimas dessa violência. Mesmo assim, são poucas as medidas implemen-tadas nas rotas migratórias ou na UE para proteger as mulheres ou auxiliar sobreviventes da VSG.

Incidentes de VSG têm sido relatados durante a rota de refugiados. A Human Rights Watch, por exemplo, denunciou casos de VSG contra refugia-das detidas na Macedônia e de sexo transacional, em que se prometeu às mulheres que seus casos receberiam tratamento prioritário e liberdade caso elas concordassem em manter relações se-xuais com guardas. Uma mulher relatou o com-portamento de um dos policiais em um centro de detenção:

“Ele tentou de todas as maneiras conseguir que eu ficasse sozinha com ele em um quarto. Ele se aproximava de mim e sussurrava que eu era muito

bonita e que ele me ajudaria e trataria pessoal-mente do meu caso.”16

A atual crise de refugiados não é a primeira ocasião em que a violência contra as mulheres se evidencia. Teoricamente, a questão da igualdade de gênero foi integrada tanto no Sistema Euro-peu Comum de Asilo (SECA) quanto nas operações Frontex. As diretrizes da SECA, que foram recente-mente reformuladas, obrigam os membros da UE a considerarem as questões de gênero na recepção de pessoas buscando asilo e refugiados e nos pro-cessos de decisão sobre seus status17,18. Na prática, entretanto, essas diretrizes tiveram pouco impacto sobre o acesso de mulheres refugiadas à proteção dentro dos sistemas nacionais de asilo europeu19 e as sobreviventes de VSG ainda enfrentam barrei-ras legais e práticas na busca de serviços, direitos ou proteção20. A Frontex, a agência europeia de fronteiras, também integrou recentemente dire-trizes de gênero ao seu Treinamento sobre Direi-tos Fundamentais21. Um representante oficial da Frontex informou que “com base nesse manual, os guardas nas fronteiras europeias são treinados para entender que o seu trabalho demanda sensi-bilidade em relação a questões de gênero durante todos os estágios de contato com migrantes: inter-ceptação, recepção, assistência, entrevistas e res-trição à liberdade. Exemplos práticos e diretrizes são compartilhados em todos os cursos.” (Repre-sentante oficial da Frontex, entrevista por email, julho de 2015)

O treinamento da Frontex também inclui dire-trizes sobre como tratar mulheres quando suspei-ta-se que elas tenham sido vítimas de violência sexual. Em relação às entrevistas conduzidas por guardas de fronteiras, é indicado que “as mu-lheres não devem ser forçadas a falar sobre pro-blemas relacionados à violência sexual ou a dar qualquer detalhe sobre o motivo de buscarem proteção internacional. Se oficiais de fronteiras suspeitam que uma mulher tenha sido vítima de violência sexual, ou se ela é incapaz ou não está disposta a discutir certos eventos relaciona-dos a tais incidentes, eles devem fazer perguntas discretas e indiretas que permitam identificar quais medidas protetivas apropriadas devem ser tomadas e para quais agências especializadas as vítimas devem ser encaminhadas. É importante assegurar a presença de um guarda do sexo femi-nino no campo durante operações de controle e durante atividades rotineiras de fronteira”22. Em uma entrevista com um representante da Frontex também foi destacado que nos casos em que guar-

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das de fronteiras suspeitam que houve qualquer tipo de violência ou coerção entre membros da mesma família, eles devem entrevistar os envol-vidos separadamente (Representante da Frontex, entrevista por email, julho de 2015). Entretanto, apesar dessas garantias escritas nas diretrizes da SECA e no treinamento de guardas de fronteira, na prática, as questões de gênero ainda não recebem a atenção necessária e os relatórios das organiza-ções de direitos humanos sugerem que em mui-tos casos não apenas guardas de fronteiras não oferecem proteções específicas para mulheres, incluindo para aquelas sobre as quais paira a sus-peita de terem sofrido violência sexual, mas são eles próprios perpetradores de violência e abusos contra os direitos humanos de mulheres imigran-tes23,24. Em diversas entrevistas durante essa pes-quisa, oficiais e representantes de ONGs e ACNUR mencionaram a situação de “crise” e seu impacto sobre a capacidade de implementação efetiva de qualquer das diretrizes existentes. Isso foi ilustra-do pela entrevista com um membro dos MSF da Grécia que explicou que “é um número tão grande de pessoas e elas estão tão desesperadas para ir para o próximo lugar o mais rápido possível que nós realmente não podemos fazer muito por elas” (Membro dos MSF, Kos, julho de 2015).

Resultados da pesquisaA análise das entrevistas com refugiados e com informantes chaves revelam inúmeras formas de violência e insegurança baseadas no gênero. A análise também destaca quais as condições de recepção de refugiados que criam novas formas de violência e exacerbam a violência previamen-te existente, como aquela cometida por parceiros íntimos.

Violência em contexto de guerra As mulheres sírias entrevistadas em Kos haviam sofrido violência na Síria ou tinham algum mem-bro próximo da família que havia sofrido violên-cia. Elas falaram de violência em todos os lados do conflito: oficiais do exército sírio, do estado islâmi-co do Iraque e Síria (ISIS) e das forças rebeldes. O marido de uma delas, por exemplo, foi morto em Alepo, forçando-a a fugir com seus dois filhos de 20 e 12 anos. Ela disse que não se sentia mais se-gura na Síria e que tinha perdido tudo que tinha. Explicou que além dos riscos dos conflitos de guer-ra, ela viveu a insegurança de uma mulher sem marido. Outra mulher, viajando com seu marido e dois filhos pequenos, teve sua casa e todas suas

posses destruídas durante um ataque a bomba, le-vando sua família a partir em busca de segurança. São inúmeras as histórias semelhantes de mulhe-res e famílias que não se sentiam seguras e foram obrigadas a fugir para se proteger, determinadas a alcançar a Europa em busca de um lugar seguro que lhes permitisse reconstruir suas vidas. Muitas tinham pouca esperança de algum dia conseguir voltar para casa. “Eu senti como se tivesse perdido meu lar para sempre” ( mulher síria, Kos, julho 2015), disse uma das entrevistadas, resumindo as-sim o sentimento de muitas outras.

A violência sofrida durante a jornada Muitas das mulheres entrevistadas também sofre-ram violência durante suas jornadas rumo à Eu-ropa. Uma das maiores fontes de violência contra mulheres são atravessadores e traficantes de pes-soas‡, que facilitam a jornada até a Europa. Mu-lheres viajando sozinhas ou só com seus filhos são particularmente vulneráveis a ataques e muitas das entrevistadas declararam ter sido estupradas ou atacadas sexualmente. Uma mulher entre-vistada em Kos estava viajando com uma amiga que havia sido estuprada e ferida gravemente por atravessadores. Outras falaram sobre a violência que sofreram nas mãos de traficantes de pesso-as, incluindo violência sexual e coação para pa-gar a passagem com relações sexuais quando não tinham dinheiro suficiente. A ACNUR também re-conhece o chamado “sexo transacional”, ou seja, mulheres forçadas a realizar atos sexuais em troca de assistência durante a trajetória pela Europa. In-tegrantes de ONGs nos campos de refugiados dos arredores de Calais na França também confirma-ram a existência de demandas sexuais feitas por atravessadores e a existência de uma rede de “pro-fissionais sexuais” dentro dos campos (membro da GSF, Calais, dezembro de 2015; membro dos MSF, Calais, janeiro de 2016).

Alguns líderes políticos europeus foram rápidos em apontar atravessadores e traficantes de pes-soas como os principais responsáveis pela “crise” atual e chegaram até mesmo a propor o bombar-deamento de barcos de atravessadores para re-duzir o número de refugiados tentando chegar à

‡ Mesmo que os termos atravessadores e traficantes de pessoas sejam utilizados como sinônimos pela grande mídia, existe uma diferença entre atravessadores que recebem dinheiro para conduzir migrantes ou refugiados através de rotas ilegais até a Europa (ou outro destino) e traficantes que trazem mulheres e homens a fim de explorá-los como mão de obra nos países de destino.

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Europa25. Mas é provável que a maior dificuldade para alcançar a Europa e o bloqueio crescente das rotas leve ao aumento da demanda por atraves-sadores e, consequentemente, do preço dos seus serviços. Um dos representantes da ACNUR ex-pressou o medo de que o aumento de restrições para a entrada na UE, e a possibilidade de que um número maior de fronteiras sejam fechadas, acabará aumentando a vulnerabilidade das mu-lheres à violência cometida pelos atravessadores e à demanda por sexo para facilitar a travessia. (Representante da ACNUR, entrevista por telefone, novembro de 2015)

Atravessadores não são as únicas fontes de vio-lência identificadas por esta pesquisa. Mulheres entrevistadas em Kos, por exemplo, declararam ter sido vítimas de violência pelas mãos da polícia turca e por membros da guarda costeira durante suas tentativas de cruzar o país a caminho da Gré-cia. Um psicólogo membro dos MSF contou sobre o caso de uma mulher que foi presa por 45 dias pela polícia na Turquia, período em que foi sepa-rada do marido e submetida à violência sexual. Ela mostrava sinais de trauma severo e relutava em falar sobre a violência sofrida. (Psicólogo dos MSF, Kos, junho de 2015)

Ameaças também partem do próprio grupo de refugiados e muitas das entrevistadas declararam se sentirem inseguras viajando em grupos com a presença de muitos homens solteiros. A iminência da VSG fica clara pela entrevista com um repre-sentante da ACNUR que declarou que um de seus colegas na ilha grega de Lesbos teve que intervir para proteger mulheres de três tentativas de es-tupro (Representante da ACNUR, entrevista por telefone, novembro de 2015). Mulheres vivendo em campos de refugiados perto de Calais também declararam sentir medo de outros refugiados dos campos. Uma das mulheres entrevistadas disse que evita ao máximo sair de sua tenda por que “é muito perigoso pra mim lá fora” (Refugiada ira-quiana, Grande-Synthe, janeiro de 2016).

Violência familiar e conjugal Membros dos MSF denunciaram casos de abuso psicológico e físico nas famílias de refugiados du-rante suas jornadas (Representantes oficiais dos MSF, Kos, julho de 2015). Além dos perigos durante o caminho, as mulheres foram submetidas a abu-sos por seus próprios maridos, que não apenas não lhes ofereceram qualquer tipo de proteção, mas fo-ram eles mesmos uma fonte de ameaças. Mulheres nessa situação consideram quase impossível deixar

seus maridos e parceiros devido aos obstáculos que teriam que enfrentar caso decidissem seguir jor-nada sozinhas ou apenas acompanhadas de seus filhos. Então elas se encontram em uma relação violenta sem possibilidade de escapar. Informantes da Sérvia também se referiram a casos em que os maridos eram violentos com suas esposas e em que também sentiram que havia muito pouco a fazer para ajudá-las, uma vez que elas estavam determi-nadas a prosseguirem sua jornada o mais rápido possível. Também houve relatos de mulheres que chegaram a países da UE e receberam pouco apoio ou assistência para escapar de seus maridos ou par-ceiros abusivos. Um dos relatos vindos da Alema-nha, por exemplo, narra a história de uma mulher síria que havia sido espancada e estuprada por seu marido enquanto os dois viviam em um campo de refugiados para recém-chegados. Quando ela ten-tou denunciar à polícia, eles se recusaram a ouvi-la e não lhe foi oferecida nenhum tipo de ajuda con-creta por parte dos assistentes sociais ou dos servi-ços de apoio a refugiados. Um grupo de Berlim que auxilia mulheres refugiadas explicou que:

“Não há segurança para mulheres buscando asilo porque toda vez que elas são atacadas, seja psicologicamente ou fisicamente, ninguém sabe como proceder. Não existe uma política clara”. (26)

Acomodações inadequadas como fonte de insegurançaEm muitos países, a vulnerabilidade de mulheres refugiadas à VSG é especialmente exacerbada pe-las condições precárias de recepção e acomoda-ção. A situação nas ilhas gregas, onde chega um grande número de refugiados, é catastrófica, com escassez de acomodações, obrigando muitos refu-giados a dormir ao ar livre em parques, campos ou até mesmo nas ruas. Em Kos, as autoridades locais ofereceram acomodações para os primeiros refugiados em um hotel abandonado, sem abas-tecimento de água ou eletricidade e com apenas dois banheiros para aproximadamente oitocentas pessoas, na época de realização da pesquisa. Para tomar banho, mulheres e homens foram forçados a compartilhar torneiras do lado de fora do pré-dio e alguns chuveiros portáteis instalados pelos MSF. Essas condições inadequadas acentuam a vulnerabilidade das mulheres à VSG e muitas das entrevistadas relataram ter medo de dividir esses espaços com homens desconhecidos, particular-mente homens solteiros, que são vistos como ame-aça. Não havia setores divididos por gênero dentro do “hotel” e as mulheres encontraram refúgio nos

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andares superiores, enquanto as áreas públicas nos andares inferiores eram lotadas de homens. As entrevistadas contaram que quase nunca saíam de seus quartos e nunca deixavam seus quartos à noite, nem mesmo para usar o banheiro. Uma das mulheres disse “É escuro à noite e sem nenhuma iluminação e com tantos homens no andar de bai-xo, nós não saímos dos quartos, mesmo que seja necessário”. (Mulher afegã, Kos, julho de 2015) O medo de sofrer violência dentro dessa acomoda-ção levou algumas mulheres e famílias a dormir nos campos localizados nos arredores sem qual-quer tipo de infraestrutura ou abrigo. Uma família afegã disse que se sentia mais segura dormindo no meio de um campo do que no hotel abandonado. A família em questão tem três filhas e sentia que elas estavam expostas ao risco de sofrerem abusos e violência sexual se continuassem no hotel. (Famí-lia afegã, Kos, julho de 2015)

O número de acomodações também é insufi-ciente para quem, com sorte, consegue chegar a um dos países da UE. Em outubro de 2015, co-nheci famílias sírias na França que estavam acam-pando em tendas improvisadas nas calçadas e nos arredores de um cruzamento movimentado. Uma mulher estava acampando com seu recém-nasci-do de 21 dias, nascido logo após sua entrada na França. Uma outra mulher mais velha vinda de Homs na Síria com seus três filhos adolescentes também estava desolada com as suas condições de vida, “Meu marido foi morto e eu vim para cá com meus filhos. Levei três meses para chegar aqui e agora estamos vivendo nas ruas, sem ter onde tomar banho ou nos lavar”. Mesmo aqueles vivendo na França há algum tempo ainda sofrem com as condições precárias de alojamento. Uma mulher síria que vive na França há um ano, de-pois de escapar da guerra síria, onde passou um tempo na prisão por se opor ao governo, ainda vive em uma das acomodações provisórias orga-nizadas pelo serviço 115 (um serviço emergencial que disponibiliza acomodações para pessoas em situação de rua). Ela está alojada em um alber-gue, onde divide um quarto com outras três mu-lheres e um banheiro e sanitário com outras doze. O albergue permanece fechado todos os dias das 9 da manhã às 6 da tarde, obrigando-a a vagar pelas ruas para passar o tempo e tentar manter--se aquecida. Ela relatou que se sente vulnerável e já passou por agressões nas ruas e que isso tem agravado seus problemas de saúde, que ainda não foram tratados.

DiscussãoOs resultados iniciais deste estudo qualitativo mostra que mulheres refugiadas que tentam chegar à Europa buscando proteção tornam-se vulneráveis a diversas formas de insegurança e violência e que o modo como a UE tem lidado com a “crise” não reduz essa vulnerabilidade. O fechamento de fronteiras amplia a procura por atravessadores e coloca essas mulheres em risco de sofrer VSG, obrigando-as muitas vezes a paga-rem por sua travessia com sexo. Simultaneamente, a polícia e outros órgãos de segurança nos países da rota de refugiados também cometem VSG e até o presente momento houve poucas iniciativas em nível nacional ou da UE para prevenir ou punir perpetradores.

A ausência de acomodações adequadas para refugiados também cria situações de insegurança para mulheres. Em julho de 2015 em Kos, muitos refugiados encontravam-se dormindo em parques e campos e mesmo com o aumento do fluxo de chegada, não foram providenciadas novas acomo-dações. A situação é similar ou até mesmo pior em outras ilhas gregas, assim como em outros locais da rota migratória. A inadequação das acomoda-ções e das instalações sanitárias produz um gran-de impacto na saúde e bem-estar de mulheres, além de expô-las à violência.

A migração também produz mudanças nas rela-ções de poder e nas relações de gênero no âmbito familiar e entre os casais, levando ao aumento da incidência de violência doméstica ou exacerbando a violência doméstica e intrafamiliar previamente existente.

Uma das principais conclusões desta pesqui-sa é que, em geral, mesmo mulheres que so-brevivem a VSG não têm como fazer denúncias. De acordo com os informantes chaves, uma das maiores barreiras ao desenvolvimento de pro-gramas e políticas efetivas de prevenção da VSG, além de redes de ajuda e apoio às vítimas, é a relutância das refugiadas para compartilhar suas experiências e, mais especificamente, para teste-munhar sobre o que lhes aconteceu. Em qualquer circunstância, testemunhar sobre VSG é uma si-tuação crítica e diversas pesquisas apontam o es-tigma, a vergonha e o medo de repressões como os principais fatores que impedem as mulheres de denunciarem. No caso das refugiadas, existem obstáculos adicionais como a barreira da língua, o desconhecimento dos órgãos competentes para receber a denúncia, o medo de instituições ofi-ciais e da deportação28-30. No contexto da atual

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crise de refugiados, o medo de serem detidas e de não avançarem na sua jornada representa uma outra barreira. Uma das características dessa cri-se é a constante mudança da rota de migração, uma vez que vários países fronteiriços e da UE estão fechando suas fronteiras e obrigando refu-giados a buscarem outras rotas para alcançar seu país de destino. Isso significa que refugiados são colocados em um estado de pânico quando preci-sam avançar o mais rapidamente possível. Assim, mulheres que foram vítimas de VSG relutam em interromper sua jornada para acionar serviços médicos, psicológicos ou legais, mesmo em locais onde existem, por medo de que essa decisão ve-nha a prolongar o seu caminho. A fim de encora-jar essas mulheres a denunciarem essa violência e assegurar que as vítimas recebam a assistência e o apoio necessário, além de punir os perpetradores, faz-se necessário que a UE assegure rotas legais e regulares para aquelas que estão em fuga.

ConclusãoÉ improvável que o fluxo de refugiados em direção à UE diminua significativamente em um futuro próximo. Os conflitos existentes em diversos paí-ses só servirá para aumentar essa corrente. Se a UE está genuinamente empenhada em proteger refu-giados e mulheres contra a violência de gênero, incluindo a violência sexual, os estados membros devem se empenhar em lidar com a vulnerabi-lidade das refugiadas à violência e em assegurar serviços de apoio médico, psicológico e social para aquelas que passaram por esse tipo de violência.

Uma das maneiras de alcançar isso é assegurando rotas legais e seguras para refugiados alcançarem a Europa e assim não serem obrigados a usarem rotas perigosas e recorrerem a atravessadores que podem ser uma causa de violência.

A questão da VSG contra refugiadas também precisa ser tratada com seriedade quando essas mulheres chegam um estado membro da UE. A comissão europeia reformulou as diretrizes para a recepção daqueles que buscam proteção, decla-rando que deve-se garantir condições materiais, médicas e psicológicas para assegurar o “padrão adequado de moradia para a saúde e o bem-estar dos candidatos a asilo e suas famílias”. (19) No mo-mento, esse padrão não é assegurado e as mulhe-res ainda são expostas a vários riscos. Por fim, os estados membros da UE devem levar a sério seu dever de proteger as mulheres vítimas da VSG de acordo com os termos da convenção de refugia-dos de 1951. Embora questões de discriminação e igualdade de gênero não estejam entre as condi-ções que classifiquem um pedido de asilo, outras diretrizes da ACNUR e as Diretrizes Qualificatórias da própria UE especificam que a perseguição ba-seada no gênero deve ser considerada uma cau-sa legítima para a concessão de asilo. Entretanto, como demonstrado por várias pesquisas, essa di-retriz ainda é ignorada em muitos países. Fica cla-ro que os estados membros devem levar a sério as questões de VSG contra mulheres refugiadas e bus-cando asilo, sob pena de fracassar em seu dever de proteger essas mulheres e assegurar a realização de seus direitos humanos.

Ramia Sabbagh, de Aleppo, Syria, na estação de trem de Idomeni, na fronteira da Grécia e Macedônia

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1. 20 per cent of those arriving in the first two months of 2016 were women according to the latest UNHCR data. see. http://data.unhcr.org/mediterranean/regional.php.

2. UNHCR. http://data.unhcr.org/mediterranean/regional.php.3. The very fast changing nature of this “crisis” means that all the

figures were accurate as of the date of writing in March 2016. More updated statistics can be found on the UNHCR website, 2016.

4. UNHCR op cit, 2016.5. Human Rights Watch. Europe’s Refugee Crisis. New York: Human

Rights Watch, November 2015.6. Giuffre C, Costello M. “Tragedy” and Responsibility in the Me-

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8. Freedman J, Jamal B. Violence against migrant women in the Euro-Med Region. Copenhagen: Euromed Human Rights Network, 2009.

9. Freedman J. Gendering the International Asylum and Refugee Debate. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015.

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18. Directive 2013/33/EU of the European Parliament and of the Council of 26 June 2013 laying down standards for the recep-tion of applicants for international protection, 2013

19. Singer D. Falling at each hurdle: assessing the credibility of

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Referências

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RésuméLa « crise » actuelle des réfugiés en Europe a créé de multiples formes de vulnérabilité et d’insécurité pour les réfugiées, notamment plusieurs formes de violence sexuelle et sexiste. Les femmes, seules ou avec leur famille, sont de plus en plus nombreuses à tenter de parvenir en Europe pour y chercher protection, mais elles sont soumises à la violence pendant le voyage et/ou à l’arrivée dans un pays de destination. Le manque de logements adéquats ou d’installations d’accueil pour les réfugiés et les migrants en Europe, ainsi que la fermeture des frontières qui a augmenté la nécessité d’avoir recours à des passeurs pour atteindre l’Europe, exacerbent la violence et l’insécurité.

ResumenLa “crisis” actual de refugiados en Europa ha creado múltiples formas de vulnerabilidad e inseguridad para mujeres refugiadas, incluidas diversas formas de violencia sexual y de género. Crecientes números de mujeres, solas o con familia, están intentando llegar a Europa para buscar protección pero estas mujeres son sujetas a violencia durante su viaje y/o al llegar al país de destino. La violencia e inseguridad son exacerbadas por la falta de instalaciones adecuadas para alojar o recibir a refugiados y migrantes en Europa, así como el cierre de fronteras que ha incrementado la necesidad de las refugiadas de recurrir a contrabandistas para que las ayuden a llegar a Europa.

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23Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.04.007

Saindo da penumbra? A inclusão de meninos e homens na conceituação do estupro de guerra

Heleen Touqueta, Ellen Gorrisb a KU Leuven, Flandres, Bélgica. Contato: [email protected] b Pesquisadora independente, Bélgica

Resumo: No campo da pesquisa, é cada vez maior o reconhecimento de que meninos e homens também são vítimas frequentes de estupros de guerra, assim como as meninas e mulheres, que permanecem sendo o grupo desproporcionalmente mais afetado. Esse reconhecimento tem levado a esforços significativos para a inclusão de meninos e homens na conceituação dos estupros de guerra nas políticas públicas e no direito penal internacional. Este artigo analisa as mudanças ocorridas nos últimos anos nesses dois campos. Argumentamos que, embora tenha havido uma importante mudança para a inclusão de vítimas masculinas nas políticas públicas relacionadas ao estupro de guerra entre 2013-2014, esse avanço ainda precisa ser consolidado em diretrizes e manuais políticos robustos. A vulnerabilidade dos meninos e homens é reconhecida com frequência, mas a maioria dos documentos de políticas públicas não trata o tema da vitimização masculina com profundidade suficiente. A legislação internacional, por sua vez, tem sido pioneira nas definições inclusivas e com neutralidade de gênero. No entanto, a interpretação e a aplicação de uma abordagem inclusiva de gênero dependem da discricionariedade de juízes e promotores que nem sempre são capazes de compreender inteiramente a experiência masculina, o que revela a influência de mitos culturais e estereótipos de gênero. Por isso, é preciso renovar os esforços para integrar a vitimização masculina na conceituação do estupro de guerra presente nas políticas públicas e na legislação.

Palavras-chave: violência sexual, estupros de guerra, violência de gênero, vítimas masculinas, conflito, gênero

Introdução: O reconhecimento crescente das vítimas masculinas do estupro de guerra*Historicamente, as meninas e mulheres têm sido desproporcionalmente afetadas pela violência se-xual em situações de guerra e conflito (assim como em tempos de paz), um fenômeno que se enraíza em estruturas sociais patriarcais e ideologias de gênero nocivas1. Essa questão só foi considerada seriamente por formuladores de políticas públicas e no âmbito do direito internacional após a ação do movimento mundial de mulheres. Um momen-to histórico e decisivo foi o reconhecimento do es-tupro como crime de guerra perante o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (ICTY, sigla em inglês) nos anos 19902. Recentemente, a questão também passou a ser uma prioridade na agenda de políticas públicas internacionais. O termo “violência de gênero” foi cunhado para

* O foco do nosso artigo são as vítimas masculinas do estupro de guerra. Não tratamos explicitamente da confluência problemática entre violência de gênero (VG) e violência sexual (VS) presente em muitos quadros conceituais de políticas públicas, nem tampouco do fato de que, muitas vezes, definições mais amplas de VG também se referem a vítimas femininas.

chamar a atenção para as desigualdades estru-turais de gênero que fundamentam a “violência contra mulheres” e a violência sexual. Uma conse-quência imprevista dessa formulação é que esses termos só foram discutidos em relação às experi-ências das mulheres, sendo a “violência de gêne-ro” usada para descrever a violência sofrida ape-nas por mulheres. Como resultado, os documentos oficiais das políticas internacionais sobre violência em situações de conflito colocavam o foco exclusi-vamente na vitimização de meninas e mulheres3.

Como demonstra um estudo de 2007, a vio-lência sexual contra homens não é um fenôme-no recente. Ela já foi documentada em 25 confli-tos e, quando se inclui a violência sexual contra meninos, esse número sobre para 594. Ao longo das últimas duas décadas um conjunto cada vez maior de evidências aponta para a prevalência do estupro de guerra contra homens, demonstrando que a vitimização masculina é significativamente maior do que se presumia inicialmente5. Em um estudo na República Democrática do Congo, John-son et al revelaram que 64,5% dos participantes do sexo masculino relataram ter sido expostos à

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violência sexual em situações de conflito e 20% foram vítimas de estupro6. De maneira similar, o Projeto Direitos de Pessoas em Situação de Refú-gio, sediado em Uganda, revelou que um em cada três congoleses em situação de refúgio sofreu violência sexual durante sua vida7. No Sudão do Sul e no norte de Uganda, Nagai et al revelaram que 30,4% da população masculina sudanesa em situação de refúgio sofreram ou testemunharam o estupro ou abuso sexual de um homem8. Nos anos 1990, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU) documentou a alta incidência de violência sexual contra homens nos conflitos na antiga Iugoslávia, como estupros, atos sexuais forçados (incluindo aqueles cometidos por membros da família) e castração9.

Pesquisas sobre violência sexual contra homens demonstram que os homens se mostram mais re-lutantes do que as mulheres para revelar e/ou buscar ajuda e, mesmo quando buscam ajuda, muitas vezes se deparam com resistência e hostili-dade por parte dos profissionais dos serviços10. As condições jurídicas são igualmente desanimado-ras: em 79 países a sodomia é um ato criminoso, mas muitas legislações nacionais não incluem ví-timas masculinas nas definições de estupro e vio-lência sexual11. Assim, as vítimas que denunciam à polícia correm o risco de serem presas. Equipes de emergência, como paramédicos e policiais, muitas vezes não reconhecem as vítimas masculinas de violência sexual devido à noção profundamente enraizada de que só mulheres podem ser vítimas enquanto os homens são sempre os autores da violência sexual12. Os estereótipos de gênero tam-bém desempenham uma função na investigação e análise de delitos sexuais. Por vezes entende--se por violência sexual contra homens apenas o estupro anal, desconsiderando-se outras formas, como a castração e atos sexuais forçados, que, por sua vez, são considerados tortura†. Esta questão

† O abuso sexual contra homens não se limita ao estupro, mas inclui também penetração com objetos, castração, esterilização forçada, mutilação genital, estupro forçado de outros (como membros da família), banhos de assento com produtos químicos, casamento forçado, sexo oral forçado em soldados, nudez forçada, masturbação forçada. Pode acontecer em diferentes lugares, como prisões, residência das vítimas ou em áreas públicas. Muitos homens que foram vítimas de violência sexual desenvolvem sérios problemas físicos (como ruptura de ânus, incontinência, impotência, infertilidade, doenças sexualmente transmissíveis). Às vezes, os padrões de violência contra mulheres e contra homens diferem, mas os efeitos psicológicos sobre os indivíduos são similares. Muitas vítimas desenvolvem estresse pós-traumático, são emocionalmente entorpecidas e desconectadas de suas famílias e da comunidade.

é complicada porque frequentemente os homens descrevem os atos como “abuso” ou “tortura”13,14, por considerarem a violência sexual incompatível com os ideais masculinos15. Mitos culturais, este-reótipos de gênero, definições jurídicas restritas e conceituações políticas são fatores que se arti-culam para impedir as vítimas masculinas de de-nunciarem e revelarem os delitos, impedindo-os também de buscar apoio social, psicológico, legal e médico16. Estes desafios refletem de várias ma-neiras os desafios encontrados também em tem-pos de paz para muitos homens vítimas de violên-cia sexual.

As crescentes evidências sobre a vitimização masculina chamam a atenção para a necessidade de uma compreensão mais abrangente da violên-cia sexual, sem que se reduza a importância da vitimização de meninas e mulheres, que ainda são desproporcionalmente afetadas por esse tipo de violência. Assim, qualquer abordagem sobre a questão também precisa tomar meninas e mu-lheres como elemento central. Nas últimas déca-das, medidas significativas foram tomadas para se alcançar entendimentos mais inclusivos sobre a definição das vítimas dos estupros de guerra. O direito internacional tem estado à frente deste processo por meio dos Tribunais Especiais da ONU e do Estatuto de Roma, de 1998, que apresenta a definição de estupro de guerra mais sensível ao gênero. O reconhecimento crescente de vítimas masculinas também foi identificado por políticas públicas internacionais. O Relatório Anual sobre Violência Sexual (2013), do então Secretário-Geral da ONU, Ban ki-Moon, afirma que a vitimização de meninos e homens é uma “preocupação emer-gente”, referindo-se ao Afeganistão, à República Democrática do Congo, ao Sudão e à Síria17. No mesmo ano de 2013, pela primeira vez três docu-mentos oficiais de alto nível sobre violência sexu-al de guerra mencionam vítimas masculinas e o Representante Especial do Secretário-Geral sobre Violência Sexual em Conflitos (RESG-VSC) coorde-nou uma oficina sobre vitimização masculina. O tema das vítimas masculinas também foi discu-tido durante o Encontro Global sobre Violência Sexual, organizado em 2014 pela Iniciativa para a Prevenção da Violência Sexual, do Governo do Reino Unido, em colaboração com o RESG-VSC.

O presente artigo analisa essas mudanças com o intuito de avaliar se foram bem-sucedidas em dar centralidade ao tema nas discussões sobre gênero e se ampliaram o entendimento sobre

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violência sexual. Discutimos em detalhe as mu-danças recentes, com foco sobre dois campos centrais para a consolidação destas mudanças: as políticas públicas internacionais e o direito penal internacional. Essas duas áreas foram escolhidas porque representam diferentes fases do processo: enquanto o direito penal internacional é pioneiro na abordagem sensível a gênero quando se trata de violência sexual, o campo das políticas públicas internacionais só agora começou a dar atenção a vítimas masculinas em seus documentos estraté-gicos de alto nível. Na primeira parte, dedicada às políticas públicas, analisamos essa importan-te mudança na linguagem dos documentos, mas demonstramos que, apesar desse reconhecimen-to, muitas lacunas ainda permanecem no que diz respeito ao reconhecimento pleno de vítimas masculinas. Na segunda parte, uma análise de casos concretos demonstra que, embora o campo jurídico tenha sido pioneiro no uso das definições inclusivas – o que já é, portanto, “um passo à fren-te” -, ainda há desafios para se alcançar a inclusão plena de vítimas masculinas. Embora o direito pe-nal internacional utilize definições sensíveis ao gê-nero, sua aplicação ainda depende da ação de ju-ízes e promotores, na qual vieses e compreensões sexistas de violência sexual podem muitas vezes silenciar o problema da vitimização masculina.

Políticas públicas internacionais: desenvolvimentos recentes para a inclusão de meninos e homens2013: Um ano de mudanças cruciaisFoi o movimento internacional de mulheres que chamou a atenção para a violência sexual em situ-ações de guerra e conflito. Esses esforços levaram à adoção de documentos de políticas públicas in-ternacionais que tratam da violência sexual e de gênero, todos focados em vítimas femininas. O conjunto mais importante de documentos políti-cos estratégicos das Nações Unidas sobre violência sexual de guerra são as Resoluções do Quadro Re-ferencial sobre Mulheres, Paz e Segurança (MPS)18. Esse quadro, produto da Resolução 2000, trata as diferentes dimensões das mulheres em situações de guerra. Entre suas metas estão a proteção de meninas e mulheres como vítimas potenciais e o seu empoderamento como pacificadoras e líderes políticas. O quadro também foi desenvolvido com a intenção de acabar com a violência sexual em conflitos, assunto de grande parte das Resoluções sobre Mulheres, Paz e Segurança (1325, 1820, 1889, 1960, 2106).

Em 2013, houve uma grande mudança em di-reção à linguagem mais inclusiva. Foram adotados três novos documentos de alto nível sobre violên-cia sexual em situações de guerra: uma Declara-ção do G8 (em abril), a Resolução 2106 do CSONU sobre Mulheres, Paz e Segurança (em junho) e a Declaração da Assembleia Geral da ONU (em se-tembro). Todos os documentos foram os primeiros em seus campos a reconhecer de maneira explícita que meninos e homens podem ser vítimas de vio-lência sexual e de gênero em situações de guerra e a adotar amplamente uma linguagem neutra em termos de gênero, fazendo uso dos termos “víti-mas/sobreviventes” ou “indivíduos”. A inclusão de meninos e homens na Resolução 2106 sobre MPS é particularmente significativa neste parágrafo:

“Nota-se com preocupação que a violência sexual em conflitos armados e situações pós-conflitos afeta as meninas e mulheres de maneira desproporcio-nal, assim como grupos vulneráveis ou que podem se tornar alvos específicos, mas também afeta me-ninos e homens e pessoas traumatizadas de forma secundária por testemunharem a violência sexual contra membros de suas famílias.”

É importante destacar que a inclusão de me-ninos e homens nas políticas públicas também produz expectativas programáticas, isto é, de que as vítimas masculinas devam ser reconhecidas e atendidas pelos programas da ONU que comba-tem a violência sexual em conflitos. Além disso, a inclusão de meninos e homens demonstra que a maior abertura e conscientização para a amplia-ção da compreensão do que significa o termo “gê-nero”. Sem dúvidas, o recente espaço e reconhe-cimento é um grande avanço, mas deve-se notar que o restante da Resolução 2106 continua a focar em meninas e mulheres: em todo o documento elas são mencionadas como vítimas, pacificadoras e líderes políticas, enquanto os meninos e homens são mencionados apenas como vítimas e, de forma instrumental, como um grupo cujo engajamento é necessário para se prevenir a violência futura. O foco histórico do Mulheres, Paz e Segurança nas desigualdades de gênero e na discriminação con-tra meninas e mulheres explica esse desequilíbrio, mas a introdução expressa de meninos e homens na Resolução 2106 traz expectativas de que suas especificidades serão discutidas e problematizadas futuramente. É possível que a violência sexual em situações de conflito seja melhor discutida em um modelo separado ou paralelo ao MPS. Isso bene-ficiaria homens e mulheres: a meninos e homens,

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porque a resolução 2106 é um espaço que não se refere completamente a eles e nem os incorpora plenamente; a meninas e mulheres porque a in-clusão da vitimização de meninos e homens pode desviar a atenção das desigualdades de gênero es-pecíficas sofridas por mulheres. Em termos mais gerais, o contínuo e amplo foco do modelo da MPS na vitimização feminina (a maior parte das resolu-ções da MPS volta-se para a violência em situação de conflito) pode desviar a atenção do papel das meninas e mulheres como pacificadoras ou líde-res políticas.

Em julho de 2013, o RESG-VSC e a missão dos EUA na ONU organizaram uma oficina sobre Violência Sexual contra Meninos e Homens em Situações de Conflito para ativistas e integrantes de diferentes órgãos da ONU(19). Essa oficina de dois dias gerou um relatório abrangente, com 29 recomendações, agrupadas em cinco seções principais2:

A. Determinar a extensão da violência sexual con-tra meninos e homens e promover a sua pro-teção.

B. Desenvolver respostas para meninos e homens sobreviventes de violência.

C. Popularizar compreensões e abordagens da vio-lência de gênero inclusivas e sensíveis às ques-tões masculinas.

D. Produzir entusiasmo sobre o tema no plano in-ternacional.

E. Garantir o acesso de sobreviventes à justiça e fortalecer capacidades nacionais e internacio-nal para responsabilizar agressores.

As recomendações C e E são particularmente relevantes em nossa análise, porque fazem parte do âmbito das políticas públicas e do direito in-ternacional.

Em parte, as mudanças no discurso em 2013 são o resultado de um impulso internacional geral sobre violência sexual em situações de guerra. A Iniciativa de Prevenção à Violência Sexual (IPVS), lançada em 2012, exigiu que fóruns internacio-nais tratassem da questão e, em 2014, organizou o Encontro Global para o Fim da Violência Sexual, que contou com uma sessão sobre vítimas mascu-linas. O ativismo de uma comunidade crescente de sobreviventes do sexo masculino também de-sempenhou função crucial para a mudança. Em 2012, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) divulgou o documento Tra-balhando com Meninos e Homens Sobreviventes de Violência Sexual e de Gênero em Situações de Deslocamento Forçado21, de autoria do diretor do

Projeto de Direitos para Refugiados (PDR), Chris Dolan, que é a única diretriz para profissionais que trabalham com violência de gênero a tratar em profundidade a questão das vítimas mascu-linas. Além disso, três ONGs - Projeto de Direitos para Refugiados, Sobreviventes Masculinos de Abusos Sexuais da Nova Zelândia e Primeiro Passo Camboja - criaram o Instituto Sul-Sul de Violência Sexual contra Meninos e Homens, que realiza uma conferência a cada dois anos e conecta ativistas e sobreviventes de todas as partes do mundo.

Monitorando os avanços recentes por meio da análise documentalPara avaliar o quão abrangente vêm sendo essas mudanças, conduzimos uma análise documental de importantes materiais, para entender como a violência sexual em situações de conflito é con-ceituada e quais concepções de ‘vítimas mas-culinas’ são utilizadas. Analisamos os seguintes documentos:

1) As diretrizes de 2015 do Comitê Permanente In-teragências (IASC, sigla em inglês) sobre respos-tas a VG em situações de emergência22;

2) O sistema de aprendizado eletrônico do FNUAP sobre respostas a VG em situações de emer-gência23;

3) O Manual da Área de VG para a Coordenação de Intervenções contra a Violência de Gênero em Contextos de Ajuda Humanitária24 e

4) O site da ONU StopRapeNow, dedicado a suas iniciativas contra a violência sexual (Stoprape-now.org)

As razões lógicas por trás da seleção desses documentos é que eles compõem, por um lado, as ferramentas centrais de comunicação da ONU sobre violência sexual e, por outro lado, são mate-riais centrais utilizados por profissionais de assis-tência humanitária no campo. Estes documentos foram identificados como centrais e passíveis de revisão pelas recomendações 1, 2 e 4 da Oficina da ONU realizada em 2013 e também por sua in-clusão na caixa de ferramentas do Núcleo de Vio-lência de Gênero (Área de Responsabilidade de Violência de Gênero, ARVG), (1 e 3).

Nas Diretrizes Revisadas do IASC sobre Violên-cia Sexual e de Gênero, publicada em 2015, os homens são consistentemente referidos como “grupo de risco”. As diretrizes também descrevem as vítimas de forma sensível ao gênero e incluem dados sobre violência sexual contra homens: dois grandes avanços desde a versão em 200525.

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Em lugar de postularem uma definição clara de violência sexual ou de gênero, as autoras das di-retrizes de 2015 optaram por uma definição po-liticamente segura que descreve o modo como o termo é utilizado na prática:

“A violência de gênero é mais comumente utiliza-da para demonstrar como a desigualdade sistêmica entre homens e mulheres - presente em todas as so-ciedades do mundo - é a característica unificadora e fundamental da maior parte da violência cometida contra meninas e mulheres. O termo VG também é utilizado com uma frequência cada vez maior por alguns atores para dar destaque à violência contra meninos e homens que também se baseiam no gê-nero - principalmente algumas formas de violência sexual que têm o propósito explícito de reforçar normas desiguais de gênero (como, por exemplo, a violência sexual cometida em conflitos armados com o intuito de emascular ou feminizar o inimigo). Essa violência contra pessoas do sexo masculino é base-ada em ideias socialmente construídas sobre o que significa ser um homem e exercer o poder masculino. Ela é perpetrada por homens (e, em casos raros, por mulheres) para causar malefícios a outros homens.”22

Mas, além desse reconhecimento e inclusão na definição de violência de gênero, não há nessas diretrizes análises em profundidade sobre as ne-cessidades das vítimas do sexo masculino nem um debate sobre a vulnerabilidade de homens a for-mas particulares de violência (sexual). As diretri-zes não detalham as formas que a violência pode assumir ou as necessidades específicas de saúde (mental) dos homens. Nos capítulos seguintes das diretrizes, a violência de gênero contra mulheres é descrita de forma correta e detalhada, incluindo seus efeitos, mas esse grau de sensibilidade e re-flexão não é dedicado a vítimas masculinas.

Pode-se fazer uma avaliação similar sobre a ferramenta eletrônica de aprendizagem do FNU-AP sobre violência de gênero, que ainda não foi revisada. Aqui, há o reconhecimento das vítimas masculinas ao mencionar que “meninos e homens também podem ser vítimas de violência de gênero e especialmente de violência sexual”, acrescentan-do-se que se sabe pouco sobre sua prevalência. A questão dos meninos e homens é discutida com um pouco mais de profundidade no Módulo 3 sobre prevenção, mas apenas na sua dimensão instrumental (isto é, não como vítimas em poten-cial mas como agentes de mudança no que diz respeito à vitimização das mulheres), e no Módulo

4 onde as experiências de um sobrevivente de dis-criminação são mencionadas. Não há estudos de caso nem imagens de vítimas masculinas. É louvá-vel que se tenha incluído vítimas masculinas, mas os documentos não esclarecem como um profis-sional da assistência humanitária no campo deve reconhecer um sobrevivente, como ele deve ser ajudado, o que pode afligi-lo ou como tudo isso afeta a comunidade em geral. Meninos e homens são incluídos como vítimas, mas não há análise aprofundada de sua situação.

A oficina de 2013 também recomendou a in-clusão de meninos e homens nos relatórios e do-cumentos do site da ONU Ação Contra a Violência Sexual em Situações de Conflito. A Ação da ONU, criada em 2007, é uma organização guarda-chuva que coordena as atividades de 13 agências sobre violência sexual, com o intuito de conscientizar e “qualificar a coordenação e a responsabilização (accountability), ampliar os programas e o ativis-mo e apoiar esforços nacionais de prevenção à violência sexual e de respostas efetivas às neces-sidades de sobreviventes”26. O relatório do RESG--VSC de 2015 sobre violência sexual em situações de conflito menciona explicitamente as vítimas masculinas (nos parágrafos 2 e 6), declarando, por exemplo, que “a ameaça ou o uso de violência sexual como forma de maus tratos em contextos de detenção (aos quais meninos e homens são fre-quentemente submetidos) é evidente em muitas situações”27. O relatório também exige “respostas diferenciadas para meninos e homens”, mas não explica quais seriam essas respostas. Mas as víti-mas masculinas permanecem ausentes nos textos e imagens utilizados na apresentação das estraté-gias abrangentes para o combate à violência sexu-al28. Na seção de testemunhos, nenhum dos doze exemplos é masculino. Tampouco se consideram as vítimas masculinas nas estratégias nacionais in-cluídas no site, com exceção da estratégia para a Costa do Marfim, que menciona a necessidade de “estratégias adaptadas para sobreviventes mascu-linos”, mas o assunto não é discutido em maio-res detalhes29. Curiosamente, apesar dos estudos demonstrarem que uma parte significativa de ho-mens no Congo são vítimas de violência sexual em situação de conflito, a estratégia nacional não se dirige a essa população30.

O Manual para a Coordenação de Intervenções de Violência de Gênero em Contextos de Ajuda Humanitária, um dos documentos do conjunto de ferramentas da ARVG, trata as vítimas masculinas

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de forma secundária. Baseando-se nas diretrizes do IASC de 2005, o Manual declara que a VG causa um impacto mais forte em meninas e mulheres. Embora seja verdade que meninas e mulheres são desproporcionalmente afetadas pela violência de gênero e sexual, infelizmente, este tipo de formu-lação parece sugerir que o impacto desse tipo de violência em indivíduos do sexo masculino é me-nos grave. Isso reforça a noção nada convenien-te de que os sofrimentos de mulheres e homens competem entre si. O parágrafo a seguir também faz alusão ao fato de que as vítimas masculinas não devem ser necessariamente incluídas nos pro-gramas porque, para eles, os efeitos da violência são diferentes:

“Tratar da violência contra meninos e homens é importante, mas as causas, os fatores contribuintes e os efeitos dessa violência são diferentes daquela experimentada por meninas e mulheres. Deve-se de-cidir, portanto, se homens sobreviventes de violên-cia sexual devem ser classificados como potenciais beneficiários do planejamento e da coordenação de ações voltadas para a violência de gênero”24.

De forma consistente com os documentos de alto nível discutidos previamente, os materiais analisados nessa seção reconhecem meninos e homens como possíveis vítimas de violência se-xual em situações de conflito, o que é um avan-ço louvável. No entanto, não encontramos um exemplo sequer em que sua vitimização fosse discutida em detalhe. Os homens não são con-siderados vítimas de per si nem nas diretrizes do IASC e nem especificamente no Manual de VG, o que perpetua ainda mais a ideia de que a vio-lência é uma “questão das mulheres”. A ausência das vítimas masculinas indica o baixo grau de consciência e o desconhecimento de como lidar com essa questão. Também implica em uma hie-rarquia de vitimização que desconsidera as ne-cessidades específicas de uma parte significativa das vítimas (um terço do total, de acordo com a pesquisa citada) e os tipos de violência que po-dem vir a sofrer.

O desconhecimento sobre prevalências é, mui-tas vezes, a razão atribuída à falta de análises mais profundas sobre essa violência31. Dados epidemio-lógicos adicionais podem de fato lançar mais luz sobre as prevalências, mas o recente e crescente conjunto de evidências de vitimização de homens

justifica a sua inclusão nas políticas públicas. Além disso, há a questão da acurácia dos dados sobre violência sexual para refletir a realidade de ma-neira precisa, já que muitas vítimas (tanto homens quanto mulheres) não revelam a violência sofri-da32. Também há a preocupação por parte do mo-vimento feminista de que o foco nas vítimas mas-culinas possa reduzir os recursos disponíveis para as mulheres33. Deve-se zelar para que a inclusão dos homens não produza custos para as mulheres e para que os dois grupos não sejam entendidos como opostos. Outros estudiosos defendem que a violência sexual contra homens também é uma questão feminista, adequada à agenda feminista de pesquisa que busca revelar questões marginais dentro das percepções dominantes34,35. De fato, é necessário considerar todos os grupos de vítimas, pois só isso irá qualificar o conhecimento sobre as causas da violência sexual em situações de guerra e sobre as razões pelas quais certos grupos tor-nam-se vítimas. A inclusão de vítimas masculinas, no entanto, não significa que se deve adotar uma abordagem neutra em relação a gênero para tra-tar da violência em situações de guerra. Este tipo de abordagem não capta as dinâmicas sociais de gênero que perpetuam o controle sobre a vida das mulheres. Expandir a compreensão sobre a violên-cia de gênero por essa via também pode minimi-zar as dimensões do poder nas relações de gênero, já que a maioria dos agressores contra mulheres e homens é composta por homens.

Avaliando os avanços no direito penal internacionalO direito internacional sempre foi pioneiro na utilização de definições e conceitos inclusivos no que diz respeito à violência sexual em situações de conflito. Os diferentes tribunais penais inter-nacionais ad hoc (particularmente aqueles for-mados para a antiga Iugoslávia, Ruanda e Serra Leoa ) e o Tribunal Penal Internacional (TPI) são considerados pioneiros na definição e reconceitu-ação dos atos de violência sexual36, acumulando jurisprudência, inclusive sobre violência sexual contra homens38. Talvez isso se explique pelo fato de que promotores e juízes internacionais não po-dem negar a existência de vítimas masculinas de crimes sexuais e de gênero quando os fatos são apresentados em seus tribunais. O direito penal internacional é louvado por suas definições de violência sexual sensíveis a gênero, reconhecidas

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pela ONU como práticas recomendadas. Apenas como ilustração, o Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional (TPI) estipula que o “estupro, a escravidão sexual, a prostituição força-da, a gravidez forçada, ou qualquer outra forma de violência sexual” pode constituir um crime con-tra a humanidade e um crime de guerra, podendo elevar-se a genocídio39. O documento Elementos do Crime (2010), também do TPI, 40 define o estu-pro e a violência sexual de uma forma que consi-dera homens e mulheres, para garantir a inclusão das vítimas masculinas41,42. Nos anos 1990, o reco-nhecimento do estupro como um crime de guerra perante o Tribunal Penal Internacional para a an-tiga Iugoslávia (ICTY, sigla em inglês) é considerado uma virada histórica2.

Apesar disso, embora os tribunais penais inter-nacionais de fato considerem algumas instâncias de violência sexual contra homens42, estes crimes nem sempre foram explicitamente qualificados como crimes de violência sexual. Muitas vezes, a violência sexual contra homens é tratada mais como dano geral ao corpo, julgada como “tortu-ra” ou espancamento43, especialmente nos casos levados ao Tribunal Penal Internacional para a an-tiga Iugoslávia44. Segundo, em alguns casos parece haver um viés para a condenação nos casos de ví-timas femininas, mesmo quando os fatos deixam claro que a violência sexual foi sofrida por mu-lheres, homens, meninos e meninas. Isto ocorreu no caso Sesay et al de 2009, do Tribunal Especial para Serra Leoa, no qual a Câmara de Julgamento incluiu o estupro forçado e mutilações sexuais de vítimas masculinas e femininas – chegando a re-conhecer que a definição de estupro “é ampla o suficiente para ser neutra em relação ao gênero” e que “tanto homens quanto mulheres são víti-mas de estupros” – mas a acusação usou apenas a alegação de violência sexual contra meninas e mulheres e não houve condenação para a violên-cia sexual contra homens45. De maneira similar, no caso Lubanga no TPI, um menino soldado teste-munhou que foi obrigado a estuprar. Esse teste-munho não foi utilizado como prova para iniciar um processo, mas apenas para demonstrar que a admissão do “crime” era um sinal de credibilida-de do depoente46. Além disso, embora fossem co-muns os relatos de violência sexual contra meni-nos soldados neste caso, não houve condenações, uma decisão que foi severamente criticada47. O recente caso Kenyatta no TPI demonstra que a vio-

lência contra mulheres e homens continua sendo tratada de maneira diferente, já que a circuncisão forçada e a amputação peniana, ainda que tra-tadas pelo gabinete do procurador como “outras formas de violência sexual” e parte da acusação de crime contra a humanidade, não foram consi-deradas formas de violência sexual pela Câmara Pré-Julgamento na confirmação das acusações. A Câmara Pré-Julgamento afirmou que o ocorrido não teve “conotação sexual” e deveria ser julga-do como “ato desumano”48. Devido à ausência de processos contra a violência sexual em geral, pode-se afirmar que os homens são duplamente vitimados: por que são discriminados como víti-mas de violência sexual (que em geral já sofrem pela ausência de processos criminais) e também por serem vítimas masculinas de violência sexual (devido aos desafios citados acima).

Ainda que as definições utilizadas pelo direi-to penal sejam neutras em relação a gênero, os desafios identificados podem ser resultado de es-tereótipos sobre (1) quem pode ser vítima de vio-lência sexual e de gênero; (2) quais atos criminais constituem a violência sexual, assim como (3) a resistência das vítimas em denunciar. Em grande medida, portanto, quem determina o reconheci-mento da violência sexual é a promotoria e, em alguns casos, o juiz. É possível que o direito penal internacional seja mais avançado do que as polí-ticas internacionais no que diz respeito a vítimas masculinas, mas essas considerações demonstram a insuficiência das definições sensíveis a questões de gênero. Mudanças significativas e abordagens realmente sensíveis ao gênero são necessárias, es-pecialmente para que se supere a estereotipia e o viés criados pela violência sexual.

Em 2014, a Procuradoria do TPI sobre crimes sexuais e de gênero divulgou um documento po-lítico com recomendações para a superação de alguns dos desafios relacionados à compreensão da violência. O documento trata dos crimes sexu-ais e de gênero de forma abrangente, referindo--se às “vítimas” de maneira neutra. Afirma que a VG se refere a “crimes cometidos contra pessoas, mulheres ou homens, por causa de seu sexo e/ou papéis de gênero socialmente construídos”, e que isso nem sempre se manifesta sob a for-ma de violência sexual, podendo incluir agres-sões não sexuais a mulheres, meninas, meninos e homens por razões de gênero49. A definição é

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ampliada para incluir atos como a nudez força-da. O documento esclarece que o TPI “reconhe-ce a construção social do gênero e dos papéis, comportamentos e atributos que são atribuídos a mulheres e homens, a meninas e meninos”49. De forma promissora, o documento sinaliza para o compromisso da Procuradoria para priorizar as experiências das vítimas, compreendendo e do-cumentando os crimes de maneira abrangente e reconhecendo que as vítimas podem vir a enfren-tar riscos adicionais de discriminação, estigma e exclusão social.

O recente julgamento de Jean-Pierre Bemba, vice-presidente da República Democrática do Congo condenado por crimes contra a humanida-de, é um indício de que a abordagem sensível ao gênero começa a florescer. Em 2016, Jean-Pierre Bemba foi condenado por assassinato, estupro e pilhagem cometidos por sua milícia em 2002-2003. Esse foi o primeiro caso do TPI a processar e condenar explicitamente crimes sexuais em si-tuações de conflito50. Neste julgamento os juízes se referiram a uma série de estupros cometidos pela milícia de Bemba, afirmando que mulheres, meninas e homens foram seus alvos e citando um incidente específico em que um homem foi estu-prado depois de ter protestado contra o estupro de sua mulher51. Outro caso atual do TPI que en-volve vítimas masculinas é o caso Ntaganda, em que há denúncias de prisioneiros sendo forçados a estuprar e de civis que foram submetidos a estu-pros anais por soldados52.

O direito penal internacional pode, portanto, iluminar o caminho da comunidade política in-ternacional. O direito penal internacional utiliza uma abordagem centrada na vítima, demons-trando que uma real representação das vítimas masculinas nas diretrizes de políticas públicas voltadas para a violência de gênero, incluindo as várias formas de violência sexual contra meninos e homens, pode levar à mudança.

ConclusãoMeninas e mulheres continuam sendo despropor-cionalmente afetadas pela violência sexual em situações de conflito, mas os dados indicam que meninos e homens também são vítimas de crimes sexuais. As vítimas do sexo masculino têm perma-necido relativamente invisíveis no discurso sobre

esse tipo de violência, mas esforços significativos têm sido feitos para a conceituação inclusiva nas políticas públicas e na legislação. Nossa análise dos documentos e manuais de capacitação e de casos recentes em tribunais penais internacionais demonstrou que, apesar do progresso significati-vo, ainda há muito a ser feito.

Os esforços para a inclusão de meninos e ho-mens nas ferramentas de alto nível das políticas públicas e em outras iniciativas são louváveis, mas são apenas os primeiros passos. Permanecem válidas, portanto, as recomendações da Oficina da ONU de 2013 sobre Violência Sexual contra Meninos e Homens, particularmente no que diz respeito à popularização das compreensões sen-síveis à vitimização masculina em situações de conflito. Dos quatro documentos para os quais foram recomendadas revisões, apenas um foi de fato revisado. Os documentos e as diretrizes políti-cas não devem apenas reconhecer a existência de vítimas do sexo masculino, mas devem discutir o problema em profundidade, o que inclui os tipos de violência sexual, o impacto da vitimização e o acompanhamento dos casos. Isso não deve se dar, claro, às custas do foco nas vítimas femininas nem deve levar ao abandono da linguagem sensível a gênero em nome de linguagem neutra. Tampou-co deve-se passar a considerar a violência sexual contra homens em oposição à violência sexual contra mulheres.

O direito internacional foi pioneiro nas defi-nições de violência sexual sensíveis ao gênero e por isso é considerado como boa prática, mesmo que vieses e compreensões distorcidas ainda do-minem sua aplicação prática. Mais esforços são necessários para garantir que promotores e juízes mantenham uma perspectiva aberta sobre as ví-timas de violência sexual e sobre o que constitui os crimes sexuais. A reconceituação da violência sexual e de gênero e a continuidade da sensibi-lização sobre vítimas masculinas no documento programático de 2014 da Procuradoria do TPI são muito promissoras.

Os desenvolvimentos recentes em direção a uma linguagem sensível a gênero devem ser re-cebidos de braços abertos, mas os desafios rema-nescentes devem ser identificados. Formuladores de políticas públicas internacionais também po-dem aprender com o direito penal internacional,

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Referências

Poster do filme realizado pelo grupo de apoio de Uganda “Homens de Esperança”, que almeja romper

o silêncio sobre a Violência Sexual contra Homens em Situações de Conflito (Título do filme: Homens

Também Podem Ser Estuprados).

demonstrando que apesar do primeiro passo re-presentado pelas definições sensíveis a gênero, uma abordagem verdadeiramente sensível a gê-nero precisa de medidas adicionais.

AgradecimentosUma versão prévia deste artigo foi apresentada na Conferência de Pós-Graduação sobre Masculinida-des, Violência e (Pós-)Conflito, realizada na Univer-sidade Ulster, em Belfast, entre 14 e 16 de janeiro de 2016. Agradecemos a Koen Slootmaeckers por seus comentários sobre os rascunhos do artigo. A pesquisa de Heleen Touquet é apoiada pelo fi-nanciamento G.0815.13 da Fundação de Pesquisa de Flandres. Ellen Gorris é assistente de políticas públicas sobre direitos das crianças na Comissão Europeia, mas participou como autora autônoma do artigo. As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade das autoras e não refletem ne-cessariamente a posição oficial da União Europeia. Nenhuma instituição ou órgão da União Europeia ou pessoa agindo em sua representação pode ser considerada responsável pelo uso que vier a ser feito das informações contidas neste artigo.

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43. Sivakumaran S. Lost In Translation: UN Responses to Sexual Violence Against Men and Boys in Situations of Armed Conflict. International Review of the Red Cross, 2010;92:259–276. https://www.icrc.org/eng/assets/files/other/irrc-877-sivakumaran.pdf.

44. Oosterveld V. Sexual Violence Directed Against Men and Boys in Armed Conflict or Mass Atrocity: Addressing a Gendered Harm in International Criminal Tribunals. Journal of Interna-tional Law and International Relations, 2014;10: 107–128. http://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/jilwirl10&div=10&id=&page, citing Prosecutor v Simic, Judgment,IT-95-9-T, 17 October 2003, para. 278.

45. Sivakumaran S. Lost In Translation: UN Responses to Sexual Violence Against Men and Boys in Situations of Armed Conflict. International Review of the Red Cross, 2010;92:259–276. ht-tps://www.icrc.org/eng/assets/files/other/irrc-877-sivakumaran.

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H Touquet, E Gorris. / Questões de Saúde Reprodutiva 2017; 10: 23-33

RésuméLes chercheurs sont de plus en plus nombreux à admettre que les hommes et les garçons sont fréquemment victimes de violence sexuelle dans des conflits, aux côtés des femmes et des filles, qui restent le groupe le plus fortement touché. Cette prise de conscience a débouché sur d’importants efforts pour inclure les hommes et les garçons dans les conceptualisations de la violence sexuelle liée aux conflits dans les politiques ainsi que dans le droit pénal international. Cet article analyse les changements qui se sont récemment produits dans ces deux domaines. Nous avançons que si une évolution majeure vers l’inclusion des victimes masculines dans les politiques internationales sur la violence sexuelle en temps de guerre a eu lieu en 2013-2014, cette nouveauté doit encore être consolidée dans les principaux principes directeurs et guides politiques. Si la victimisation potentielle des hommes et des garçons est souvent reconnue, la plupart des documents politiques n’abordent pas cette question en profondeur. D’autre part, le droit pénal international a innové avec des définitions neutres et inclusives. Néanmoins, l’interprétation et l’application de l’approche intégrant les deux sexes sont souvent laissées à la discrétion des juges et de l’accusation qui ne tiennent pas toujours pleinement compte de l’expérience des hommes. Cela révèle l’influence persistante des stéréotypes sexuels et des mythes culturels profondément ancrés. Il est donc conseillé de redoubler d’efforts pour intégrer pleinement les victimes masculines dans les conceptualisations de la violence sexuelle liée aux conflits dans les politiques et le droit.

ResumenCada vez más los investigadores reconocen que los hombres y niños son víctimas frecuentes de violencia sexual en conflictos, junto a mujeres y niñas, que continúan siendo el grupo afectado de manera desproporcionada. Esta creciente conciencia ha contribuido a esfuerzos significativos para incluir a hombres y niños en conceptualizaciones de violencia sexual relacionada con conflictos en las políticas y en el derecho penal internacional. Este artículo analiza los cambios que han ocurrido en estos dos campos en los últimos años. Argumentamos que aunque en 2013-2014 hubo un cambio importante para incluir a víctimas de sexo masculino en las políticasinternacionales sobre violencia sexual en tiempos de guerra, este suceso aún no ha sido consolidado en directrices y manuales de políticas salientes. Aunque la posible victimación de hombres y niños es reconocida con frecuencia, la mayoría de los documentos de políticas no tratan a fondo el tema de victimación de hombres. Por otro lado, el derecho penal internacional ha liderado definiciones inclusivas y neutrales con relación al género. Sin embargo, la interpretación y aplicación del enfoque inclusivo de género a menudo se deja a la discreción de jueces y la fiscalía, quienes a veces no toman en cuenta la experiencia de los hombres, lo cual es indicio de la continua influencia de estereotipos de género y mitos culturales muy arraigados. Por lo tanto, se aconseja emprender un esfuerzo renovado por integrar en las políticas y leyes a las víctimas de sexo masculino en las conceptualizaciones de la violencia sexual relacionada con conflictos.

pdf, citing SCSL, Prosecutor v Sesay et al, Judgment, SCSL-04-15-T, 2 March 2009, paras 146, 1205, 1207, 1208, 1303, 1308.

46. Shepherd L. Gender matters in global politics: a feminist intro-duction to international relations. New York: Routledge, 2015. http://samples.sainsburysebooks.co.uk/9781134752522_sam-ple_645870.pdf, which cites ICC, Prosecutor v Thomas Lubanga Dyilo, Prosecution’s Closing Brief, 1 June 2011, paragraph 479. https://www.icc-cpi.int/iccdocs/doc/doc1123809.pdf.

47. ICC Women. ICC Judges uphold conviction of Lubanga. http://www.iccwomen.org/documents/First-convictionand-sentence--upheld-on-appeal-at-the-ICC-REVISEDApril-2015.pdf. 1 December 2014.

48. Oosterveld V. Sexual Violence Directed Against Men and Boys in Armed Conflict or Mass Atrocity: Addressing a Gendered Harm in International Criminal Tribunals. Journal of Interna-tional Law and International Relations, 2014;10:107–128. http://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/jilwirl10&div=10&id=&page. ICC. Prosecutor v Francis Kirimi Muthuara, Uhuru Muigai Kenyatta and Mohammed Hussein Ali, Decision on the Confirmation of the Charges. 23 January 2012paragraphs 260, 262, 266. https://www.icc-cpi.int/iccdocs/

doc/doc1314543.pdf.49. ICC. the Office of the Prosecutor. Policy Paper on Sexual and

Gender-Based Crimes. https://www.icc-cpi.int/iccdocs/otp/OTP--Policy-Paper-on-Sexual-and-Gender-Based-Crimes–June-2014.pdf. 2014.

50. de Vos D. Historic Day for the ICC. https://me.eui.eu/dieneke-de--vos/blog/historic-day-for-the-icc-firstcommand-responsibility--and-sexual-violence-conviction/. 20 March 2016.

51. Yahoo News. ICC passes judgment ex-Congolese Vice-President Bemba. https://www.yahoo.com/news/iccpass-judgment-ex--congolese-vice-president-bemba-104651936.html?ref=gs. This link was included as the final judgment has not been uploaded yet at the time of writing. The judgment will become available on the ICC website: https://www.icccpi.int/en_menus/icc/situa-tions%20and%20cases/situations/situation%20icc%200105/re-lated%20cases/ icc%200105%200108/Pages/case%20the%20prosecutor%20v%20jean-pierre%20bemba%20gombo.aspx.

52. ICC. The Prosecutor v Bosco Ntaganda, Decision on the Charges. 9 June 2014. paragraphs 49-52. http://www.icccpi.int/iccdocs/doc/doc1783301.pdf.

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34 Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.04.004

Cicatrizes invisíveis: a violência obstétrica nos Estados Unidos

Farah Diaz-TelloAdvogada Senior, National Advocates for Pregnant Women, NY, USA.Correspondência: [email protected]

Resumo: Nos últimos anos, tem-se registrado um crescente interesse coletivo por um problema que muitas instituições e profissionais de saúde negam: a coerção e o assédio infligido por profissionais de saúde a mulheres durante o trabalho de parto, mais conhecidos como violência obstétrica. Este artigo apresenta, por meio de uma série de casos reais, a perspectiva de uma profissional da área jurídica sobre o problema sistêmico da violência de gênero institucionalizada, para a qual apenas indenizações individuais parecem ser a única alternativa compensatória, e mesmo assim ainda fora do alcance de muitas mulheres. O artigo oferece uma visão geral das limitações do sistema de justiça civil para abordar a violência obstétrica, comparando-a com alternativas jurídicas implementadas na América Latina. Além disso, o artigo propõe soluções políticas para os sistemas judiciário e de saúde.

Palavras-chave: violência obstétrica, abuso e desrespeito durante o parto, maus tratos durante o parto, parto humanizado, Estados Unidos

IntroduçãoEm junho de 2014, a Dra. Sarah Digiorgi, obstetra da Flórida, refutou seu entrevistador durante uma entrevista na televisão, afirmando que cesáreas forçadas simplesmente não existem¹. Ao ser ques-tionada sobre um incidente ocorrido em um hos-pital da região, ela respondeu: “Se uma mulher diz ‘Não, eu me recuso a ter meu filho através de um parto cesáreo, então você como médico é proibido de levar essa mulher para a sala de cirurgia.”

Apesar de Digiorgi insistir que tal situação não faz parte da prática médica, Jennifer Goodall, uma mãe de três filhos que, após três cesarianas, espe-rava ter o quarto filho de maneira natural, passou exatamente por essa situação. Ao completar 37 semanas de gravidez, Goodall recebeu uma carta emitida pelo consultório do seu obstetra. A carta, assinada pelo diretor financeiro do hospital, infor-mava que o hospital planejava tomar as seguintes medidas:

“1. Iremos entrar em contato com o Conselho Tu-telar sobre a recusa da paciente em assentir com o parto via cesariana e com outros tratamentos reco-mendados pelo seu médico e sobre os riscos de vida representados por essa recusa não apenas para a sua vida e sua saúde, mas também para a saúde e a vida do nascituro.2. Iniciaremos um processo de solicitação de auto-rização judicial prévia para procedimentos médicos relacionados ao parto de sua criança. 3. Caso a paciente se apresente ao hospital em tra-

balho de parto e o médico em questão considere uma intervenção cirúrgica clinicamente necessária, o parto via cesariana será realizado independente-mente do consentimento da paciente.”

A carta alegava que o comitê de ética do hospi-tal havia autorizado essas ameaças e incluía ainda um bizarro resumo dos direitos de Goodall:

“Reconhecemos que você tem o direito de consentir com o parto cirúrgico, mas a Sra. decidiu recusar esse procedimento apesar das recomendações dos médicos que acompanham seu caso. Essa decisão ameaça a sua vida e a do nascituro, colocando-os em risco de graves complicações. Nós nos reserva-mos o direito de agir levando em consideração a melhor alternativa para proteger os seus interesses, da sua família e da criança a nascer.”

Ao que parece, Goodall tem o direito de con-sentir com o parto cirúrgico, mas não de recusá-lo. Por sua vez, o hospital se reserva o direito de agir para proteger o interesse de Goodall - definido pela própria instituição -, assim como o da sua fa-mília e do feto, desconsiderando as suas objeções. Por fim, após ameaçar envolver o Conselho Tute-lar para retirar a custódia de seus outros filhos, após negar o devido processo legal e ameaçar a sua integridade física, o hospital apela para que ela “acredite que seus médicos e a equipe hospita-lar têm as melhores intenções para com a pacien-te, o nascituro e sua família.”

E quanto à garantia da Dra. Digiorgi de que partos cirúrgicos não são realizados sem o consentimento

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da paciente? Como conciliar essa afirmação com a alegação do hospital de que o parto via cesariana seria realizado independentemente da decisão de Goodall? Na realidade, essas são meias verdades: partos cirúrgicos forçados via cesariana são uma realidade, são ilegais e raramente há algum tipo de reparação judicial para as mulheres. Mais im-portante, cirurgias forçadas são apenas o ápice de um padrão de práticas de desrespeito e abuso a que mulheres grávidas ou em trabalho de parto são submetidas por profissionais de saúde e insti-tuições médicas.

Qualquer tipo de cirurgia forçada é um ato de violência. Entretanto isso se torna muito mais do que agressão se levarmos em consideração que, no caso do parto cirúrgico via cesariana forçada, isso se dá em um contexto em que as mulheres estão em uma posição de menor poder diante dos médicos e em uma sociedade onde a capa-cidade feminina de engravidar continua sendo historicamente usada como justificativa para a negação de direitos. Isso é uma forma de vio-lência de gênero, crescentemente reconhecida como violência obstétrica em todo o mundo. Mais importante, como demonstrado pelos estudos de caso apresentados neste artigo, a violência obstétrica é uma violação dos direitos humanos das mulheres e da garantia de não discrimina-ção, liberdade e segurança, saúde reprodutiva e autonomia e do direito de não ser submetida a tortura nem a punição ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Uma violação dessa magnitude à dignidade humana da mulher re-quer uma resposta do Estado mais firme do que o simples processo civil - uma reparação que por si só ainda é vaga.

Este artigo representa um passo importante para reconhecer que o problema da violência obs-tétrica é uma realidade nos Estados Unidos - uma premissa que, como demonstrada pela afirmação da Dr. Digiorgi, ainda não é completamente legi-timada. Iniciamos apresentando diversos estudos de caso recentes (que são imprescindíveis em um sistema judicial assentado em jurisprudên-cia, como o dos Estados Unidos), que ilustram a natureza do problema. Na sequência, apresenta-mos uma visão geral do reconhecimento jurídico nas cortes estadunidenses, explorando os limites das ações indenizatórias como via principal para abordar um problema sistêmico e apresentando abordagens legais usadas em outros contextos ju-rídicos para fins de comparação. Por fim, também oferecemos recomendações para soluções com

potencial de abordar as raízes da violência obsté-trica de forma mais abrangente.

Estudos de casoOs casos a seguir são apenas uma pequena amos-tra de uma série de ocorrências de violência obsté-trica, que representam diversos níveis de ameaça e violência concreta, que foram documentados e investigados ao longo dos últimos anos pela Asso-ciação Nacional de Advogadas para Mulheres Grá-vidas e outras organizações envolvidas na defesa da saúde materna*. É um desafio tentar entender a magnitude da ocorrência desse problema exclu-sivamente através de estudos de caso. Entretanto, pesquisas recentes nos Estados Unidos sugerem que as mulheres são submetidas a uma pressão significativa e têm sua autonomia reduzida du-rante a assistência à maternidade. Roth e colegas² conduziram uma pesquisa com profissionais de saúde (doulas, monitores de cursos para gestantes e enfermeiros obstétricos), revelando que mais da metade declarou já ter presenciado um médico re-alizar um procedimento contra a vontade da mu-lher, enquanto aproximadamente dois terços dos participantes afirmaram estar presente em situa-ções onde profissionais de saúde “ocasionalmen-te” ou “frequentemente” executaram procedimen-tos sem antes dar a chance ou tempo suficiente para a paciente avaliar o procedimento em ques-tão. A pesquisa “Dando voz às mães III” (Em inglês: Listening to Mothers III), de Declercq e colegas³, chegou à conclusão que pelo menos um quarto das mulheres que tiveram o parto induzido ou passaram por um parto cesáreo se sentiram pres-sionadas a recorrer a esse método, enquanto 63% das mulheres que foram submetidas a uma cesá-rea identificaram seus médicos como os principais agentes dessa decisão†. Durante a campanha nas mídias sociais #BreaktheSilence, promovida pela organização Improving Birth, centenas de mulhe-res publicaram suas experiências de bullying, co-erção e até mesmo de terem sido submetidas a procedimentos não autorizados durante o parto, como exames vaginais e episotomias4.

Diante de aproximadamente 4.000.000 de par-tos realizados anualmente nos Estados Unidos, são poucos os incidentes captados pelos processos judi-ciais e pela mídia, mas é impossível desconsiderar

* Obtivemos autorização para a divulgação dos casos individuais. † Dito isto, 83% das mulheres na mesma pesquisa relataram ter vivido experiências positivas (boa ou excelente) nas maternidades dos EUA.

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sua importância para as pessoas que passaram por essas violações e suas implicações para o siste-ma de saúde, que permitiu que ocorressem. Mas, em um sistema jurídico de “common law”, como o dos Estados Unidos, mesmo um único caso tem potencial para mudar as leis.

Cirurgias realizadas sem consentimentoRinat Dray é uma mulher judia ortodoxa que mora em Crown Heights, uma área do Brooklyn, em Nova Iorque5,6. De acordo com a sua religião, crianças são uma benção e a gravidez é sempre recebida com entusiasmo pelas famílias. Ela deu à luz seus dois primeiros filhos por meio de parto cesáreo. As duas cirurgias foram emocionalmente desgastantes e ela vivenciou meses de dores no pós-operatório. Ela também estava ciente de que outras cirurgias futuras representariam um risco para a sua saúde e fecundidade7. Nesse cenário, durante a sua terceira gravidez, Dray optou por um parto vaginal após cesariana (PVAC).

Em 2010, ao engravidar, ela pesquisou sobre recomendações médicas, incluindo o manual de procedimentos para o parto vaginal após cesárea, da Associação Americana de Obstetras e Ginecolo-gistas8, que trata a PVAC como uma opção viável e segura em alguns casos de mulheres que pas-saram por dois partos cirúrgicos. Dray utilizou os recursos disponíveis em Nova Iorque (consultas a grupos de consumidores e de usuários do sistema de saúde, doulas e o Portal de Transparência sobre Maternidade, que obriga hospitais a divulgarem as taxas de parto cesariano e PVAC) para identifi-car um serviço onde fossem maiores as chances de realizar um PVAC‡. Ela optou por um hospital em Staten Island, o que significaria que, uma vez em trabalho de parto, ela precisaria percorrer um lon-go caminho em uma ponte frequentemente con-gestionada, para chegar a um serviço que apre-senta uma das menores taxas de parto cesáreo e um dos maiores índices de sucesso em parto PVAC, em uma cidade com dezenas de maternidades.

Ao dar entrada no hospital, já em trabalho de parto, o médico de plantão não era o mesmo que havia acompanhado o planejamento do seu PVAC durante a sua gravidez. Este médico sugeriu que ela optasse pelo parto cirúrgico, dizendo-lhe “você já passou por isso duas vezes, porque não repe-tir?”. Conforme passavam as horas e o trabalho de

‡ O acesso a estes recursos, claro, depende da capacidade de compreender a linguagem do campo da saúde e, no caso das doulas, de meios financeiros signifcativos para contratá-las.

parto progredia com lentidão, o médico passou a insistir cada vez mais no parto cirúrgico, mesmo sem oferecer nenhuma justificativa clínica para essa mudança. Ela considerou voltar para casa e esperar até as contrações ficarem mais frequen-tes, mas foi avisada de que se deixasse o hospital, não deveria retornar e que transferi-la para outra clínica estava fora de cogitação, uma vez que “ne-nhuma lhe aceitaria”. Quando ela pediu que espe-rassem a evolução do trabalho de parto, o médico ameaçou requerer uma ordem judicial contra ela para obrigá-la ao parto cirúrgico, dizendo-lhe que a assistência social levaria o seu bebê caso ela não concordasse com a cirurgia. De acordo com os do-cumentos apresentados por Dray, o médico ainda teria dito que “minha licença é mais importante que você”.

O obstetra ainda consultou um especialista em medicina fetal, que também insistiu para que Dray concordasse com a cirurgia, mas nenhum dos dois médicos ofereceu uma justificativa plausível ou foi capaz de explicar porque a sua condição de-mandava esse tipo de intervenção. O que Dray não sabia era que os dois médicos haviam sondado a possibilidade de requerer uma ordem judicial que a obrigasse a concordar com a cirurgia. E, apesar disso ter acontecido ao longo da manhã e da tarde de uma segunda-feira, quando os tribunais estão em pleno funcionamento, nenhuma autorização judicial foi efetivamente solicitada. Por fim, a ci-rurgia foi aprovada pelo conselho do hospital e o relatório médico cita que “a paciente está apta (a tomar decisões médicas por conta própria). Eu de-cidi rejeitar a sua recusa do parto cirúrgico”.

Ao ser levada à sala de cirurgia, Dray implo-rou para não ser operada. O médico respondeu pedindo-lhe que se calasse. Dray sofreu sérias le-sões durante a cirurgia, como uma laceração na bexiga que lhe causam dor e problemas urinários até os dias de hoje. Ela processou os dois médicos e o hospital e seu caso ainda cabe recurso, uma vez que o tribunal rejeitou sua ação e um proce-dimento de amicus curiae, que argumentava que grávidas têm o mesmo direito de outros pacientes para recusar tratamento médico não solicitado6.

Ameaças de prisãoUma semana antes do dia estimado para o parto do seu quinto filho, Lisa Epsteen foi ao ginecolo-gista obstetra para realizar uma ultrassonografia. Depois de ter sido submetida a quatro partos ci-rúrgicos via cesariana, a moradora de Tampa Bay, na Flórida, estava animada por ter encontrado um

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médico que apoiava sua decisão de tentar dar à luz o quinto filho de maneira natural. Entretanto, após a data prevista para o parto passar, Epsteen começou a se preparar para a possibilidade de re-petir o parto cirúrgico, chegando até a agendar a cirurgia devido a fatores de saúde, incluindo a dia-betes gestacional e a posição desfavorável do feto.

Os médicos que a atenderam no dia da ultras-sonografia avaliaram os resultados como preocu-pantes e aconselharam que ela fosse internada para realizar o parto cirúrgico. Mas como Epsteen não encontrou ninguém que pudesse cuidar do seu filho de dois anos e tinha ido para a consulta no único carro da família, ela optou por fazer a cirurgia no dia marcado previamente. Na manhã seguinte, ela recebeu um email do seu obstetra instruindo-a a se apresentar imediatamente para o parto cirúrgico, acrescentando ainda: “Eu odia-ria ter que recorrer para a opção mais extrema que é acionar a polícia para apanhá-la em casa e trazê-la ao hospital, mas sua atitude não nos (os profissionais do hospital) deixa outra escolha.”

Com medo de ser presa, separada dos seus fi-lhos e submetida a uma cirurgia forçada, Epsteen resolveu se esconder. Ela entrou em contato com a Associação Nacional das Mulheres Grávidas, que entrou em contato com os advogados do hospital. O conselho hospitalar finalmente concordou que as ameaças não tinham base jurídica e Epsteen deu à luz uma criança saudável no dia em que havia agendado o parto e sem a necessidade de recorrer a ações judiciais.

Ameaças de retirada da criançaEm junho de 2010, Michelle Mitchell deu entrada em um hospital na Augusta County, Virginia, em trabalho de parto12. Recentemente, Mitchell havia deixado de ser paciente em uma clínica obstétrica por ter se sentido pressionada a concordar com a indução do parto que lhe fora aconselhada devido ao tamanho do seu bebê. Apesar da recomenda-ção da indução ou do parto cirúrgico, ela nunca foi informada que o parto vaginal estaria fora de questão no seu caso. Desejosa de passar por um parto vaginal sem o uso de medicamentos, Mi-tchell frequentou aulas de parto, se juntou a gru-pos de parto natural e contratou uma doula com licença profissional de parteira.

Quando Mitchell chegou ao hospital, o médico de plantão recomendou, com base em seu históri-co médico, que ela optasse por um parto cirúrgico. Mitchell se recusou e assinou um atestado admi-tindo que estava agindo contra recomendações

médicas, resguardando o hospital de qualquer responsabilidade. Entretanto, como mostra a do-cumentação jurídica, o médico se tornou cada vez mais insistente, gritando e ofendendo Mitchell e sua doula e, no final, ameaçou acionar um juiz para emitir uma ordem que a forçasse a aceitar o parto cirúrgico e contactar o conselho tutelar para levar seu bebe13. Confrontada com a ameaça de ser forçada a um parto cirúrgico e de perder sua criança, Mitchell revogou sua recusa e passou por uma cirurgia, mesmo contra sua vontade. Apesar de ela ter concordado com a cirurgia, o hospital entrou em contato com o conselho tutelar, acu-sando Mitchell de ser incapaz de cuidar de uma criança devido ao conflito gerado pela sua insis-tência em prosseguir com o parto natural. Como resultado, o hospital lhe negou o acesso ao recém--nascido e se recusou a entregar a criança. Ela foi submetida a três meses de entrevistas invasivas e a visitas domiciliares até a investigação ser descar-tada por falta de evidências de sua incapacidade.

Posteriormente, Mitchell processou o hospital por lesão corporal, alegando que seu consenti-mento foi obtido sob coerção, sendo, portanto, inválido. Durante quatro anos de litigância, o seu caso passou por diferentes processos. Entretanto, quando finalmente foi julgado, foram necessários apenas vinte minutos para o júri decidir a favor do médico14. Uma das testemunhas, uma enfermeira que trabalhou com o acusado, declarou à impren-sa que acreditava que ele “tomou a decisão mais adequada para (Mitchell) e seu filho”. Mitchell recorreu da decisão, o que - na melhor das hipó-teses – levará a um novo julgamento na mesma jurisdição.

O comentário da enfermeira e o raciocínio do júri são semelhantes e representam um dos maio-res problemas do litígio civil como instrumento para dar fim à violência obstétrica. Apesar dos esforços de advogados e defensores dessa causa, persiste a crença de que os médicos, e não as mu-lheres, detêm a autoridade para tomar decisões e isso justifica as ameaças e a coerção.

Lesões profundas e justiça parceladaTodas as mulheres citadas acima sofreram viola-ções extremas em sua vida pessoal, em sua au-tonomia reprodutiva e na sua sensação de segu-rança. Além do desafio físico requerido pelo parto (vaginal ou cirúrgico), elas sofreram uma experiên-cia de parto marcada pelo medo e pela deslealda-de. Muitas delas vivenciaram traumas que reque-rem terapia ou que mudarão de forma irreversível

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o curso da sua saúde reprodutiva. Essa conclusão é consistente com a pesquisa de Ballard e cole-gas15, que afirmam que mesmo em um contexto com recursos abundantes, o parto pode ser “uma experiência excruciante e terrível.” Beck e outros16 também afirmam que tratamentos degradantes e a perda da dignidade e controle durante o parto podem ser fatores que contribuem para traumas e para a depressão pós-parto.

Entretanto, apesar da gravidade das lesões, a justiça ainda falha com muitas mulheres ameri-canas vítimas da violência obstétrica. Em muitas jurisdições, a jurisprudência civil garante que qualquer pessoa que for tocada sem seu consenti-mento pode abrir um processo por lesão, mesmo nos contextos de assistência médica. Nenhuma lei garante esse direito para mulheres grávidas. Todavia, a existência teórica de um motivo para ação judicial não é justiça, e muitas mulheres que sofreram abusos graves não têm acesso aos tribunais.

O primeiro obstáculo é encontrar um advogado que aceite defender o seu caso. Financiar a defesa também requer uma quantidade absurda de re-cursos e está fora do alcance de muitas mulheres. E, como Abrams18 explica, a ausência de lesões no recém-nascido ou de um dano específico à mãe (além da invasão médica não solicitada ou mesmo não consentida) reduz o valor monetário atribuído à agressão a mulheres durante o parto - ou anula, como no caso de agressões psicológicas -, desesti-mulando os advogados(as) que calculam seus ho-norários proporcionalmente ao valor das indeni-zações. Essa realidade se estende para os casos em que as agressões são claras, como aconteceu com Kimberly Turbin, que filmou uma episiotomia não autorizada na Califórnia, mas teve que consultar cerca de 80 advogados(as) e iniciar uma campa-nha de crowdfunding até finalmente encontrar um advogado que aceitasse representá-la19.

Mesmo mulheres que encontraram represen-tantes legais são invariavelmente surpreendidas pela morosidade do processo ou sujeitas a prazos e limites imprevisíveis. Rinat Dray, por exemplo, lutou para encontrar um advogado(a) que assu-misse o seu caso de cirurgia não consentida - ex-tensivamente documentado -, mas só conseguiu um representante legal depois de decorrido um ano do prazo de prescrição da acusação de lesão corporal. A única opção que lhe restou foi seguir com um processo por negligência médica, mas parte das suas reivindicações foram descartadas pela corte, porque eram mais condizentes com le-

são corporal do que com negligência. Outras mu-lheres escutaram exatamente o oposto - que suas alegações de abuso e intervenções não autoriza-das eram um caso de negligência médica e não de lesão corporal. O único fator previsível é que a causa adequada é exatamente aquela que está prescrita, inviabilizando qualquer tipo de litígio.

Falhas sistêmicas com raízes políticasO aspecto mais perturbador da confiança exclu-siva no sistema de justiça civil para a reparação nos casos de violência obstétrica é que isso reduz o problema a uma queda de braço entre negligência médica ou conflito interpessoal§. A questão é sig-nificativamente mais complicada que isso. Um de seus aspectos é assumir a responsabilidade de co-locar o feto em risco. Essa percepção de risco, fre-quentemente superestimada, leva profissionais a pressionar ou até mesmo coagir mulheres para se livrarem da responsabilidade por qualquer tipo de negligência e leva as instituições a implementa-rem políticas que restringem as escolhas das mu-lheres durante o parto21. Combinado com o baixo valor atribuído às indenizações por lesão corporal ou por intervenções não autorizadas, isso resulta em incentivos perversos. Isso fica evidente no caso de Goodall, em que as ameaças foram autorizadas pelo diretor financeiro do hospital, e no de Dray, em que a cirurgia forçada foi aprovada pela ges-tão do hospital. E essas iniciativas perversas não descrevem toda a situação - violência obstétrica vai além da análise da relação custo-benefício in-dividual. Mais do que isso, o baixo (ou nenhum) valor monetário atribuído à dignidade das mulhe-res durante o parto é um dos sintomas das crenças perniciosas sobre a autonomia de mulheres que tem um efeito direto sobre a interação entre pro-fissionais e pacientes.

Oberman22 argumenta que se sobrepor à von-tade das mulheres durante o parto é uma viola-ção do dever de confiança (dado o desequilíbrio de informação e poder entre médicos e pacien-tes), impulsionado por uma “fragmentação da

§ Há uma exceção conhecida – Catherine Skol abriu um processo judicial por negligência grave e estresse emocional contra um médico que lhe recusou anestesia peridural, deixando-a em uma posição extremamente dolorosa por horas, dizendo-lhe para ‘calar a boca e empurrar’ quando ela protestava. Além disso, usou uma agulha inapropriada e larga para suturar a episiotomia, dizendo-lhe que a ‘dor era a melhor professora’. Tudo isso por que ela não avisou ao médico que estava indo ao hospital. Ela recebeu uma indenização de 1,4 milhão de dólares, o mais alto veredito do Illinois para estresse emocional produzido por má prática e negligência médica intencional20.

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lealdade”, isto é, quando médicos consideram o feto como um “segundo paciente”. Isso é certa-mente real, mas uma pesquisa conduzida por Sa-muels e colegas23 também indica que as crenças sobre a autonomia reprodutiva das mulheres são fatores relevantes para a perpetração da violência obstétrica. Samuels et al entrevistaram médicos e advogados de causas médicas, concluindo que o ‘estatuto de pessoa’ atribuído ao feto (medido através de posições conservadoras ou antiaborto) está fortemente ligado à predisposição de buscar autorização judicial para o parto cirúrgico mes-mo diante da recusa da paciente. Os autores con-cluíram que essa tensão coloca as mulheres “no meio de uma guerra entre aqueles que valorizam a autonomia e os direitos das mulheres e os que acreditam nos direitos do feto”. Nessas circuns-tâncias, o uso de processos judiciais para levar as mulheres a aceitarem as recomendações médicas é uma forma violenta de implementação das nor-mas de gênero.

Os médicos que tentam justificar a violência obstétrica usando como argumento a proteção do feto apropriam-se do papel estatal de prote-ger a vida em um grau que não é previsto pela jurisprudência americana. Os réus no caso de Ri-nat Dray usaram exatamente esse argumento, de-fendendo que seria “estúpido e ingênuo” sugerir que pacientes grávidas possuem o mesmo direito que outros pacientes, “levando-se em considera-ção as especificidades da condição da gravidez”6. Os defensores dos réus sugeriram até mesmo que Dray procurasse uma solução legislativa e não li-tigiosa, argumentando que a gravidez resulta em uma imunidade ipso facto para qualquer decisão que o médico tome para resguardar os interesses do feto. Descrevendo o caso dela como “extrema-mente provocativo” e “controverso”, os acusados alegaram que o médico tem o dever de evocar o interesse do estado em proteger a vida do feto acima das objeções de uma paciente relutante e capaz de tomar decisões. Para tanto, citaram deci-sões favoráveis a mulheres grávidas, como as deci-sões de Nova Iorque que estabeleceram os direitos ao aborto e o dever médico em assistir um feto sobrevivente. Os argumentos utilizados revelam a discriminação baseada em gênero que sustentam a violência obstétrica: mesmo que mulheres go-zem da mesma proteção jurídica, profissionais da saúde, instituições e tribunais, estão inclinados a “interpretar” exceções que não existem, perpetu-ando e atribuindo às mulheres uma posição legal de segunda classe.

Em um artigo controverso, Charles26 argumen-tou que, ao reforçar normas de gênero coerciti-vas e bullying, as intervenções jurídicas estão no mesmo patamar da violência doméstica. A rea-ção pública a esse artigo foi controversa27, mas um dos argumentos contrários frequentemente utilizados é que esse comportamento não pode ser descrito como violência de gênero, porque existe um grande número de obstetras do sexo feminino. Isso não leva em consideração uma im-portante perspectiva: um ato de violência de gê-nero não é considerado como tal apenas levando em consideração o fato do agressor ser homem, mas sim da vítima ser mulher. Essa perspectiva explica porque pesquisas feitas em diferentes contextos chegaram à conclusão de que mulhe-res sofrem abusos durante o parto por parte de profissionais de ambos os sexos28.

É provável que uma parte desse comportamen-to antiético se relacione às falhas da legislação para resolver a controvérsia entre profissionais da saúde sobre a possibilidade de se sobrepor às de-cisões da paciente grávida. O Comitê de Ética dos Ginecologistas e Obstetras é claro e objetivo na sua visão de que não há justificativa ética para cirur-gias forçadas e litígio sobre intervenções médicas. E, apesar de algumas decisões absurdas em tribu-nais de primeira instância, a moderna legislação rejeita constitucionalmente a noção de que mu-lheres grávidas têm menor autonomia sobre seus corpos em comparação com qualquer outra pes-soa30-32. Entretanto, esses direitos não se traduzem automaticamente em soluções: exceções extremas existem na prática e na literatura33.

Não se sabe em que medida essas exceções se materializam em responsabilização dos autores pela violação dos direitos humanos das mulhe-res, mas é provável que seja muito limitada. As diretrizes do Comitê de Ética dos Ginecologistas e Obstetras não são juridicamente vinculantes – e foram mesmo descartadas como evidências no caso de Michelle Mitchell. Uma médica processa-da em New Jersey por ameaçar uma mãe com a perda da guarda da sua filha e por ter usado uma ordem judicial para autorizar o parto cirúrgico e obter o consentimento da paciente, admitiu em seu depoimento que discordava que o médico só pode agir com o consentimento do paciente ou que a mulher grávida seja a responsável exclu-siva pelas decisões relacionadas a sua saúde. De acordo com ela:

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“A paciente pode certamente recusar a cesariana, isso não é um problema. Eu respeito a opinião da paciente. …(Porém) eu tenho dois pacientes. E não apenas uma… e é por isso que eu discordo da dire-triz do Comitê de Ética, ou qualquer outra, de que a vontade da grávida se sobrepõe à vontade do feto. Não concordo com isso. … Eu tenho uma responsa-bilidade para com o bebê. Eu tenho que defendê-lo, porque ele é meu segundo paciente.”34

A discriminação de gênero ligada a essas ameaças e coerções para impor recomendações médicas não é nada sutil. É evidente que uma pessoa em condições de tomar decisões por si própria não pode ser obrigada a aceitar um pro-cedimento médico (como um transplante de rim, por exemplo). Essa lógica se aplica até mesmo a procedimentos que poderiam salvar a vida de terceiros e mesmo que a outra pessoa seja seu filho. Entretanto, é esperado que mulheres grávi-das sacrifiquem sua saúde e dignidade e, ao final, suas próprias vidas com a justificativa de trazer um bebê saudável ao mundo.

Alternativas de outros sistemas de justiçaOs problemas abordados neste artigo não são ex-clusivos dos Estados Unidos. A Organização Mun-dial de Saúde (OMS) 35 divulgou uma declaração sobre a prevenção e eliminação do desrespeito e abuso durante o parto nas instituições de saúde. Após descrever o fenômeno como “uma importan-te questão de saúde pública e direitos humanos”, a OMS apelou para que governos e parceiros de de-senvolvimento conduzam pesquisas, reconheçam e abordem tratamentos abusivos em instituições obstétricas. Além disso, o Relatório Especial das Nações Unidas sobre saúde e o Relatório Especial sobre tratamentos cruéis, desumanos e degradan-tes 37 classificaram o abuso sofrido por mulheres que buscam serviços de saúde reprodutiva como causadores de sofrimentos desnecessários base-ados no gênero. Como apontado por Erdman38, a crescente atenção dada ao parto no âmbito dos direitos da mulher possibilita realçar as injustiças institucionais e as desigualdades sociais, além de alavancar reformas mais amplas.

A América Latina, onde muitos países têm cons-tituições baseadas nos direitos humanos e um conjunto de leis relativamente recente, está na vanguarda na criação de estruturas jurídicas que abordam essa questão. A Venezuela foi uma das primeiras jurisdições a garantir o direito de ações judiciais contra a violência obstétrica39. Especifi-camente, o país reconhece a violência obstétrica

como um tipo de violência de gênero e parte da Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres de Viver Livre de Violência. Essa lei define a violência obs-tétrica como:

“... a apropriação do corpo e dos processos reprodu-tivos de uma mulher por profissionais de saúde, que se manifesta através de tratamentos desumanos, do abuso de medicamentos e transformando proces-sos naturais em patológicos, desencadeando assim a perda da autonomia e da habilidade de decidir livremente sobre sua sexualidade e seus corpos e im-pactando negativamente a vida de mulheres.”

Uma série de ocorrências são citadas, como ig-norar emergências obstétricas, nascimentos na po-sição supino, separar a criança da mãe por razões desnecessárias e a realização de partos e cirurgias cesarianas sem o consentimento da paciente. A pena para a violência obstétrica é uma multa de 250 a 500 unidades fiscais - o equivalente a 5.000 até 10.000 dólares -, além de medidas disciplina-res. A Argentina e dez estados mexicanos também reconhecem a violência obstétrica como uma for-ma de violência contra a mulher. Os estados de Chiapas, Guerrero e Veracruz aplicam penalidades criminais para infratores. Essas leis oferecem uma série de soluções, como denúncias administrativas, tribunais especializados de arbitragem médica e denúncias junto a tribunais federais e comissões de direitos humanos.

A implementação dessas leis tem sido marcada por obstáculos e as mulheres ainda enfrentam bar-reiras no acesso à justiça, sejam elas diretamente provenientes dos agentes da justiça, da ausência de capacitação de profissionais da saúde sobre os direitos de pacientes ou da inaptidão do sistema em abordar suas falhas estruturais40-41. Herrera42, por exemplo, demonstrou que na Argentina, ape-sar da aprovação de um estatuto em 2004 garan-tindo os direitos de mulheres durante o parto e de um outro em 2009 condenando a violência obsté-trica, ainda é comum que as reparações judiciais sejam analisadas mais pela ótica da negligência médica do que considerando as leis do parto hu-manizado e da vida livre de violência. No México, o Grupo de Informação sobre Decisões Reproduti-vas43 concluiu que as autoridades ainda relutam em processar criminalmente os médicos e, por isso, nunca houve no país um processo penal vito-rioso relativo à violência obstétrica. Além disso, as denúncias administrativas e as conciliações enfo-cam apenas a atitude individual do corpo médico, sem analisar a instituição como um todo.

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Ainda assim, a articulação jurídica em torno da violência obstétrica - especificamente no âmbito dos direitos da mulher à saúde, à igualdade e à vida sem violência - aponta para uma compreen-são das causas e consequências dos abusos duran-te o parto muito mais extensa do que a existente na jurisprudência estadunidense. Notadamente, denúncias às comissões de direitos humanos me-xicanas colheram bons resultados, incluindo inde-nizações para as mulheres e acordos governamen-tais para disseminar e aprimorar a infraestrutura de serviços básicos de saúde materna43. O cami-nho para eliminar a violência de gênero durante o parto ainda é longo, entretanto, são bastante promissoras as estruturas jurídicas que acionam a responsabilidade de instituições e do Estado para assegurar o tratamento adequado para as mulhe-res durante o parto.

RecomendaçõesNos Estados Unidos, o processo judicial é o ins-trumento primordial à disposição de pacientes capaz de mudar o contexto do sistema de saúde. Em relação à violência obstétrica, esse mecanis-mo pode ser aperfeiçoado através de mudanças legislativas que delimitem ações e prevejam in-denizações punitivas.

Entretanto, mesmo que todas essas medidas sejam tomadas, levando em consideração as bar-reiras que as mulheres enfrentam em um sistema que não reconhece a violência obstétrica, é pouco provável que tratamentos abusivos e desrespeito-sos durante o parto sejam extintos em um futu-ro próximo exclusivamente através de processos judiciais civis individuais. A violência obstétrica é um problema sistêmico e, como tal, demanda soluções capazes de mudanças sistêmicas. O mo-delo implementado na América Latina, que inclui a violência obstétrica no mesmo marco jurídico que aborda a violência de gênero, tem muito a

nos ensinar. As pesquisas realizadas nessas juris-dições demonstram que a imposição de penas produz mudanças limitadas e falham em propor intervenções preventivas para abordar as atitudes que desencadeiam a violência obstétrica, em pro-por protocolos para tratamento adequado e em acionar a responsabilidade do Estado em prevenir e combater a violência obstétrica.

Apesar da ausência de mecanismos de combate às violações de direitos humanos por atores não governamentais nos Estados Unidos, a política federal em relação à violência de gênero (espe-cificamente a Lei de Violência Contra a Mulher) oferece um bom ponto de partida para abordar as raízes da violência obstétrica. A incorporação da violência obstétrica a esse marco legal oferece um caminho para financiar pesquisas e investigações, além de mecanismos de reparação e o apoio a programas educativos sobre assistência materna e prevenção de abusos durante o parto para pacien-tes e para profissionais de saúde. Um dos modelos existentes para intervenções locais é coordenado pela White Ribbon Alliance (Aliança do Laço Bran-co) e outras similares44,45. Além disso, algumas me-didas de responsabilização governamental podem ser instituídas por meio do desenvolvimento de padrões e referenciais concretos para uma assis-tência respeitosa à saúde materna e que poderiam ser acopladas ao financiamento federal (como, por exemplo, no Fundo para Serviços de Saúde Mater-no-Infantil).

O litígio civil individual é necessário, mas in-suficiente, para eliminar a violência obstétrica. A verdadeira transformação também requer educa-ção uma maior conexão entre os serviços de saú-de e ativistas da sociedade civil para tratar das normas de gênero prejudiciais às mulheres. Mas o primeiro passo é trazer à tona e nomear um pro-blema para o qual a Justiça estadunidense tem se mantido cega.

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RésuméCes dernières années, un problème que beaucoup d’institutions et prestataires de santé des États-Unis réfutent a attiré une attention publique croissante: les actes de maltraitance et coercition des femmes enceintes pendant l’accouchement de la part du personnel sanitaire, connus sous le nom de violence obstétricale. Par une série d’études de cas réels, cet article fournit la perspective d’un juriste sur un problème systémique de violence sexiste institutionnalisée avec pour l’heure uniquement des voies individuelles pour obtenir réparation. Il donne un aperçu des limitations du système de droit civil pour traiter la violence obstétricale et compare les options dans les juridictions latino-américaines. Enfin, l’article propose des solutions pour le système juridique et les systèmes de soins de santé.

ResumenEn los últimos años, el público ha prestado cada vez más atención a un problema negado por muchas instituciones y profesionales de salud en Estados Unidos: el acoso y la coacción de mujeres embarazadas durante el parto por personal de salud, conocido como violencia obstétrica. Por medio de una serie de casos reales, este artículo expone la perspectiva de un abogado respecto al problema sistémico de la violencia de género institucionalizada, con solo vías individuales para rectificación en la actualidad. Ofrece una visión general de las limitaciones del sistema de justicia civil para abordar la violencia obstétrica y compara las alternativas de jurisdicciones latinoamericanas. Por último, el artículo sugiere soluciones para el sistema jurídico y los sistemas de salud.

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Violência obstétrica: uma nova abordagem para identificar obstáculos ao acesso à saúde materna na Argentina

Carlos Herrera VacaflorProfessor visitante, Faculdade de Direito, Universidade de Toronto, Ontário, Canadá. Contato: [email protected]

Resumo: A Argentina reconheceu o direito da mulher não ser submetida à violência obstétrica, de ser poupada da violência cometida por profissionais de saúde ao corpo e ao processo reprodutivo durante a gravidez , de não ser submetida a tratamentos degradantes e medicação abusiva e à não conversão de processos naturais em patológicos. A decisão jurídica da Argentina de enquadrar esse abuso e tratamento degradante na rubrica de violência de gênero permite a identificação de falhas no sistema de saúde e na inclusão social das mulheres. Este artigo analisa como a aplicação do marco legal da Violência Contra as Mulheres para abordar as questões de abuso e tratamento degradantes durante assistência à saúde materna representa uma abordagem efetiva para analisar problemas estruturais enraizados na saúde pública, nos direitos humanos e em algumas perspectivas éticas. O marco legal da Violência Contra a Mulher busca modificar condutas culturais danosas através da proteção da autonomia reprodutiva da mulher e do seu empoderamento para a participação na sociedade.

Palavras-chave: saúde materna, violência, mulheres, gênero, direitos humanos

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.05.001

Introdução Uma mulher, ao experienciar sua primeira gra-videz, é submetida a uma episiotomia não au-torizada durante o parto, que pode resultar na perda de controle dos esfíncteres se ela não re-ceber os cuidados necessários1. Uma mulher com uma gravidez saudável recebeu oxitocina para facilitar o parto durante seis horas, reduzindo a necessidade de um monitoramento mais rigoro-so, o que pode causar danos ao feto2. Uma mu-lher com gravidez resultante de estupro não teve acesso ao aborto por que o médico exigiu uma autorização judicial3. Esses são apenas alguns dos exemplos das experiências das mulheres argenti-nas nos serviços de saúde materna. Eles também representam uma das dimensões dos obstáculos para garantir a segurança e a qualidade da assis-tência à saúde materna.

Essas experiências, mesmo que com algumas variações, foram definidas como abuso e negligên-cia na assistência à saúde das mulheres. Institui-ções internacionais de saúde, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), descrevem esse fenôme-no como “tratamentos desrespeitosos, abusivos e negligentes”, dando especial atenção à assistência ao parto em estabelecimentos de saúde. A OMS, entre outros, considera que “tratamentos desres-peitosos, abusivos e negligentes” incluem violên-cia física, humilhação ou violência verbal, coerção ou tratamentos não consentidos, quebra da confi-

dencialidade ou falha em obter autorização, assim como a recusa em administrar medicação contra dor ou o acesso a estabelecimentos de saúde, en-tre outros4.

Em 2014, a Federação Internacional de Gineco-logistas e Obstetras lançou a “Iniciativa de Serviços Acolhedores para a Mãe e o Bebê”. A Federação tem elaborado diretrizes para identificar condutas que constituem “abuso, coerção e negligência”; como falta de privacidade durante o trabalho de parto e o parto; violência física, verbal, emocional ou financeira, a proibição de certas posições e/ou a ingestão de bebidas ou comida durante o parto5.

Organizações internacionais têm desenvolvido pesquisas sistemáticas e indicadores para compre-ender e medir o abuso e negligência sofridos pelas mulheres em estabelecimentos de saúde durante o parto6. Uma revisão sistemática de pesquisas re-alizadas em 34 países identificou que as mulheres sofrem abuso físico, sexual, verbal, estigma e dis-criminação, constrangimentos e má qualidade da atenção nos serviços de saúde e não alcançam pa-drões profissionais de cuidado que produzam im-pactos positivos em sua saúde7. A revisão concluiu que a melhor terminologia para definir e avaliar os diferentes obstáculos vivenciados por mulheres durante o parto em estabelecimentos de saúde é “maus-tratos às mulheres”.

Simultaneamente aos avanços no contexto in-ternacional e do ativismo em defesa da qualidade

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e segurança nos serviços de saúde materna, a Ar-gentina aprovou em 2009 um estatuto sobre Vio-lência Contra as Mulheres. A lei argentina estabe-leceu o direito das mulheres de serem poupadas da violência obstétrica, definida como,

“Violência exercida por profissionais de saúde ao corpo e aos processos reprodutivos de mulheres grá-vidas, manifestada através de tratamentos desuma-nizantes e medicação abusiva e da patologização de processos naturais…” 8

O estatuto considera que o abuso e maus-tratos vivenciados por mulheres nos serviços de saúde materna (pré-natal, pré-parto, parto, pós-parto e aborto) como parte do quadro de Violência con-tra Mulheres (VCM) e tem como finalidade atrair a atenção para o abuso, maus-tratos e tratamen-to desrespeitoso vivenciados pelas mulheres no sistema de saúde. Além disso, o conceito jurídico de violência obstétrica pretende chamar atenção para a ausência de controle governamental na fis-calização da oferta de serviços de saúde materna no setor público e privado. É digno de nota que o conceito de violência obstétrica definido pela legislação argentina propõe uma definição de abuso, maus-tratos e tratamento desrespeitoso nos estabelecimentos de saúde diferente daquela proposta pela OMS, que é o “tratamento desres-peitoso, abusivo e negligente”, e por Bohren et al, que são os “maus-tratos às mulheres”9.

Este artigo aborda de maneira crítica o concei-to de violência obstétrica como marco legal para identificar condutas no sistema de saúde que constituem abuso e maus-tratos às mulheres. Para isso, analisa diferentes legislações e políticas de saúde voltadas para a saúde materna e o conceito de violência contra a mulher como ferramentas que complementam o alcance e a interpretação da violência obstétrica. Além disso, através de uma perspectiva de saúde pública, ética e dos direitos humanos, pretende demonstrar que o conceito de violência obstétrica pode servir para identificar e abordar condutas sistemáticas que prejudicam as mulheres, colocam suas vidas em risco e enfraque-cem seu poder de decisão no contexto da assistên-cia à saúde materna.

Violência obstétrica no ordenamento jurídico argentino A definição da violência obstétrica no estatuto de Violência Contra Mulheres identifica três vias pelas quais a violência pode ser infligida às mulheres: tratamentos degradantes, medicação abusiva e

patologização de processos naturais. A definição de como essas condutas impactam as mulheres não está presente no estatuto geral da VCM. Entre-tanto, o anterior Estatuto do Parto Humanizado, um decreto executivo regulamentando o estatuto da VCM e as políticas públicas do Ministério da Saúde, pode complementar o alcance ou a defini-ção da violência obstétrica.

O tratamento desumanizador foi defi-nido pelo decreto executivo que regulamenta o estatuto geral da VCM como “tratamento cruel, degradante, depreciador, humilhante ou ameaça-dor promovido por profissionais de saúde”10 e que causam danos físicos ou psicológicos. Entretanto, o decreto executivo não especifica nenhuma prá-tica. O Estatuto geral de Violência contra Mulheres define violência física como cruel ou ameaçadora quando uma mulher vivencia efeitos psicológi-cos como resultado de “restrições, desonestidade e ações que produzem sofrimento emocional ou perda da autoconfiança; ou impedem o desenvol-vimento pessoal; ou buscam degradar ou contro-lar suas ações, comportamentos, crenças ou deci-sões”11. Assim, as definições da violência física e psicológica contribuem para entender como essas condutas obstétricas contribuem para a desuma-nização da assistência às mulheres.

O Estatuto de 2004 sobre o Parto Humanizado, que reconhece os direitos das mulheres nos ser-viços de saúde materna, caracteriza a medicação abusiva como qualquer procedimento que não leva em consideração a proteção à saúde materna ou não previne a morbimortalidade materna(12). Alguns exemplos são as episiotomias e enemas de rotina e as cesarianas não autorizadas ou injustifi-cáveis. Evidências demonstram claramente que a episiotomia de rotina é desnecessária e pode cau-sar sérios danos13. De maneira similar, enemas, que ainda são condutas rotineiras, causam extre-mo desconforto e não há evidência de que melho-rem condições sanitárias ou reduzam os riscos de infecção14. Como reação à medicação abusiva, o Estatuto do Parto Humanizado define a obrigação dos profissionais de saúde de não prescrever me-dicamentos e evitar condutas invasivas, a menos que sejam necessários para a proteção da saúde da mãe e do feto.

Finalmente, condutas que patologizam pro-cessos naturais de reprodução podem ser iden-tificadas pelas diretrizes médicas do Ministério da Saúde da Argentina, publicadas em 2004, que recomendam condutas de saúde seguras e res-peitosas durante o trabalho de parto e o parto.

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De acordo com essas diretrizes, instruções ou decisões tomadas por profissionais de saúde que restrinjam a ingestão de alimentos ou bebidas durante o parto podem ser interpretadas como patologização de processos naturais, uma vez que não levam a complicações e apenas aumentam a sensação de conforto, funcionando como méto-dos não medicamentosos de alívio da dor15. Essas diretrizes podem contribuir para um melhor en-tendimento do que são boas condutas e reduzir a medicalização.

Além disso, as mulheres podem ser submetidas à violência obstétrica durante diferentes estágios da assistência à saúde materna e não apenas no parto. A declaração da OMS para evitar que as mu-lheres passem por “tratamentos desrespeitosos, abusivos ou negligentes” volta-se principalmente para a assistência ao parto, mas o estatuto da Ar-gentina reconhece que a violência obstétrica tam-bém pode ocorrer durante o pré-natal, o trabalho de parto, o pós-parto e nos serviços de aborto16. Assim, o direito das mulheres de não vivencia-rem violência nos serviços de saúde materna é amplamente garantido. Nesse sentido, o decreto executivo regulamentando o estatuto da VCM con-sidera que a violência obstétrica contra mulheres também pode ser perpetrada no contexto da assis-tência ao aborto ou às complicações pós-aborto, independentemente do seu status legal. Estudos anteriores documentaram a desumanização do tratamento das mulheres que buscam serviços de aborto ou tratamentos pós-aborto17, por exemplo, através de condutas como curetagem sem medi-cação para aliviar a dor ou insultos verbais, jul-gamentos ou comentários depreciativos por parte dos profissionais de plantão18.

Além disso, em relação aos autores das agres-sões obstétricas, a definição do estatuto da VCM menciona explicitamente “profissionais de saú-de”. Entretanto, o decreto executivo especifica que ‘profissionais de saúde’ também se refere a fun-cionários administrativos ou qualquer outro pro-fissional associado ao estabelecimento de saúde, além de médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos e obstetras.

Por fim, negar às mulheres o acesso, por meio de ações ou omissões, a serviços de saúde materna pode ser considerado outra manifestação de vio-lência obstétrica de acordo com a lei argentina19. Essa questão foi abordada de maneira específica em outras jurisdições latino-americanas. O artigo 51 do Estatuto da Violência Contra Mulher de 2007 da Venezuela estabelece que não oferecer trata-

mento de saúde para emergências obstétricas em tempo hábil também é violência obstétrica20. Essa negligência pode ser resultado de discriminação institucional ou de falhas gerais no sistema de saúde, como falta de leitos ou baixa remuneração de profissionais de saúde21. O Supremo Tribunal da Argentina decidiu que negar o acesso a serviços de aborto para mulheres que engravidaram em consequência de estupro pode ser considerado violência obstétrica, destacando que a exigência de autorização judicial é inconstitucional, uma vez que não está prevista na legislação. Finalmente, o Supremo declarou que a continuidade dessa prá-tica torna o Estado suscetível de responsabilização pela violência institucional contra as mulheres22. Esse exemplo demonstra que, apesar do conceito de violência obstétrica ser relativamente limitado, a abordagem ampla da VCM engloba a violência institucional, assegurando a proteção dos direi-tos reprodutivos das mulheres. Ao classificar a violência institucional como uma manifestação da violência obstétrica, o Estado inclui situações em que autoridades, profissionais e agentes pú-blicos impedem, obstruem ou retardam o acesso das mulheres a serviços públicos ou o exercício de seus direitos23.

Essa análise sugere que o direito de viver livre da violência obstétrica tem como objetivo assegu-rar a segurança, o conforto, a dignidade, e a auto-nomia das mulheres nos serviços de saúde mater-na. Além disso, destaca como outras leis e políticas públicas também contribuem para complementar a definição de violência obstétrica, ao identifica-rem as diferentes relações e situações em que os abusos ocorrem.

Violência obstétrica como questão de saúde públicaOs sistemas de saúde em países de média e alta renda oferecem efetivamente a assistência à saú-de materna em serviços voltados para a redução da morbimortalidade materna24. Entretanto, os abusos e maus-tratos sofridos pelas mulheres nos serviços e a não garantia de assistência (por falta de pessoal ou superlotação, por exemplo) foram identificados como fatores de dissuasão das mulheres na busca por cuidados e refletem os poucos avanços na redução da morbimortali-dade materna25.

Como resposta, instituições regionais de saúde, como a Organização de Saúde Pan-Americana, têm destacado a importância de assistência à saúde materna baseada em evidências. Essa abordagem

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prevê que a assistência se baseie na mais confiá-vel evidência científica disponível e nas preferên-cias da paciente, além de respeitar seus direitos e princípios, em lugar de focar apenas na doença ou na necessidade de assistência26. Essa aborda-gem assegura um tratamento seguro, efetivo e in-dividualizado, ao mesmo tempo em que elimina intervenções arriscadas, inapropriadas ou desne-cessárias, que não garantem melhores resultados de saúde.

De acordo com dados de 2001, de 98% a 99% dos partos na Argentina acontecem em unidades hospitalares27. Além disso, entre 78% e 90% das mulheres grávidas passaram por pelo menos um exame pré-natal em um estabelecimento de saú-de28. Entretanto, o sistema de saúde argentino tem enfrentado dificuldades para adotar condutas se-guras e baseadas em evidências29. Comportamen-tos enraizados, como a realização de episiotomia de rotina ou altas taxas de cesarianas desneces-sárias, que colocam as mulheres indevidamente em risco, contribuem para essas dificuldades. A resposta jurídica proposta pela Argentina a esses desafios de saúde pública envolve compelir os mé-dicos a evitarem o abuso de medicamentos e soli-citar que o Ministério da Saúde elabore políticas e protocolos assistenciais para identificar e eliminar condutas enraizadas e consideradas prejudiciais ou desnecessárias.

Para abordar as lacunas de informação que desencadeiam as condutas desnecessárias ou pre-judiciais que afetam as mulheres, o Ministério da Saúde adotou em 2004 diretrizes clínicas gerais baseadas em evidências para a saúde materna se-gura. Essas diretrizes aconselham os profissionais de saúde a evitar restrições indevidas durante o parto (permitindo, por exemplo, que a mulher te-nha um acompanhante de sua escolha para apoio psicológico). Também criticam a episiotomia e o enema de rotina15. Como já mencionado na seção anterior, em 2004, essas recomendações foram traduzidas no dever dos médicos de evitarem prá-ticas invasivas que não produzem resultados mais satisfatórios para as mulheres e impedem que grávidas sejam acompanhadas por uma pessoa de sua confiança durante o procedimento30.

Entretanto, essas diretrizes não levaram a no-vas condutas clínicas31. Um estudo conduzido em hospitais públicos entre 2004 e 2006 identificou, por exemplo, que episiotomias são evitadas em apenas 41,2% dos casos e que apenas 17,9% das mulheres são acompanhadas por uma pessoa de sua escolha32.

As taxas de parto cesariano apontam na mesma direção. A OMS reconhece que taxas de parto cesa-riano acima de 10-15% não apenas não reduzem a mortalidade como, na prática, aumentam os riscos desnecessários a curto e a longo prazo, afetando o parto, a saúde da mulher e as gestações futuras33. Recentemente, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPS) divulgou um alerta contra o número crescente de cesarianas desnecessárias na Argen-tina, que apresentou uma taxa de 30% entre 2012 e 2013. Uma análise de 54.000 partos, realizados em hospitais públicos e privados de 13 diferentes províncias, identificou uma taxa de 75% de cesa-rianas34. A alta taxa de cesarianas na Argentina não representa a redução na taxa de mortalidade materna, uma vez que essa taxa praticamente não se alterou entre 2004 e 2013, passando de 39 para 32 casos a cada 100.000 nascimentos.

O fato da Argentina ter garantido que a maior parte da assistência à saúde materna, especial-mente partos, ocorra nos serviços de saúde não necessariamente se traduziu em menos riscos para a saúde das mulheres. Apesar das políticas de saúde e das diretrizes clínicas do Ministério da Saúde, o corpo das mulheres continua à mercê de condutas invasivas desnecessárias e prejudiciais. Assim, o dever médico de evitar medicação abu-siva, de acordo com o conceito de violência obsté-trica, pode ser interpretado como um mecanismo jurídico para assegurar uma assistência à saúde materna segura e baseada em evidências nos ser-viços públicos e privados de saúde.

Violência obstétrica como violação dos direitos humanosA Argentina reconhece tratados internacionais de direitos humanos como a Convenção para Elimi-nar todas as Formas de Discriminação contra Mu-lheres, assim como a Convenção Interamericana de Prevenção, Repressão e Erradicação da Violên-cia contra Mulher (Convenção de Belém do Pará). De maneira similar, a constituição argentina ga-rante status constitucional para o Pacto Interna-cional Econômico, Social e de Direitos Humanos, assim como para a Convenção Americana de Di-reitos Humanos.

Igualmente relevante é a conceituação de maus-tratos como falha do Estado em garantir o direito das mulheres de acesso a tratamentos livres de crueldade, desumanização ou degrada-ção36. De maneira similar, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW, sigla em inglês), em

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especial a Recomendação Geral No. 19, propõe que qualquer violência baseada no gênero “que li-mite ou elimine o acesso das mulheres aos direitos humanos” seja considerada discriminação e viola-ção do direito a não ser submetida a tratamento cruel, desumano ou degradante37. Em contextos assistenciais, a perpetração de violência obstétri-ca através do tratamento desumano das mulheres deprecia e anula seus direitos humanos sendo, portanto, discriminação e violação do direito de receber tratamentos livres de crueldade, desuma-nos ou degradantes.

Estudos sobre a forma como as mulheres são tratadas nos serviços de saúde ou sobre a com-preensão dos profissionais de saúde sobre certas práticas assistenciais vis a vis as necessidades das mulheres, ajudam a analisar as convenções nor-mativas atuais e servem como evidência para identificar as violações de direitos humanos em estabelecimentos de saúde38.

Um estudo qualitativo com mulheres que re-ceberam assistência à saúde materna revelou que os tratamentos recebidos pelas mulheres pobres podem ser considerados discriminatórios, uma vez que sua incapacidade em arcar com os custos da assistência privada as obriga a parir em hos-pitais públicos, onde muitas vezes são vítimas de humilhações e maus-tratos39. A violência verbal e física é considerada uma violação dos direitos das mulheres à integridade física e psicológica40.

O abuso e desrespeito sofrido pelas mulheres também constitui uma violação do direito à priva-cidade e acesso à informação. Testemunhos indi-viduais revelam que as necessidades e interesses pessoais de mulheres em posição de desvanta-gem social não são levados em consideração e o momento da assistência muitas vezes é utilizado como situação de ensino médico sem o consen-timento da mulher41. Em um caso, uma mulher declarou que durante a consulta obstétrica, seu médico convidou estudantes de medicina sem o seu consentimento, afirmando que “cerca de treze estudantes me tocaram. Eu senti vergonha e raiva e tive que esconder meu rosto com o lençol pra que eles não me vissem.”42. O Comitê da CEDAW destacou a importância do consentimento infor-mado e da observância da perspectiva e das ne-cessidades das mulheres para uma assistência à saúde aceitável e que respeite o direito da mulher à privacidade43.

O abuso e o desrespeito às mulheres nos esta-belecimentos públicos de saúde podem ser enten-didos como uma falha do Estado em garantir ser-

viços de assistência à gravidez, parto e puerpério apropriados e baseados na equidade de gênero.

O Estatuto de Parto Humanizado de 2004 re-conheceu o direito das mulheres de participarem da assistência, não sendo consideradas apenas objetos passivos nesse processo. O estatuto reco-nhece o direito de informação sobre as diferentes possibilidades de intervenções médicas e o direito de escolher livremente entre as alternativas dis-poníveis. O estatuto também estabelece o direito da mulher grávida ao tratamento respeitoso e a receber assistência médica individual e personali-zada que garanta sua privacidade e respeite suas tradições culturais.

O estatuto também encoraja o empoderamen-to das mulheres para que defendam seus direitos e tenham suas vozes ouvidas em tribunais. Apesar do estatuto estar em vigor desde 2009, o núme-ro de queixas relacionadas à violência obstétrica ainda é muito baixo. Em 2013, foram registradas apenas 13 queixas44. Ao admitir que esse número é baixo, a Argentina também reconheceu o direi-to das mulheres de acessar a justiça de maneira efetiva e em tempo hábil, o que estabelece a obri-gação do Estado de criar instrumentos de defesa para proteger as vítimas da violência de gênero e garantir o seu direito à representação legal gra-tuitamente45. Essa é mais uma ferramenta jurídica para o acesso das mulheres à justiça, que reduz as barreiras financeiras e aumenta suas chances de obter reparação.

O estatuto da VCM e do Parto Humanizado incorpora a normativa internacional de direitos humanos e estabelece a obrigação do estado em garantir serviços de saúde materna apropriados para mulheres. Também procura empoderar as mulheres informando-as sobre seus direitos nos serviços de saúde, além de impor obrigações para profissionais de saúde e oferecer recursos jurídi-cos para que as mulheres obtenham reparações ou acesso a órgãos governamentais.

Violência obstétrica como estereótipo de gênero antiético Estudos médicos e sociológicos identificam a exis-tência de uma cultura entre profissionais de saúde que considera as mulheres como recipientes para bebês, apontando para diferentes expressões da violência obstétrica. O estudo de Checa de 1996 sobre a assistência pré-natal em maternidades pú-blicas na cidade de Buenos Aires demonstra como as mulheres grávidas são objetificadas e retratadas apenas a partir de sua capacidade reprodutiva. Os

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resultados de Checa revelam os estereótipos de gênero que fundamentam a assistência pré-natal e impedem o agenciamento das mulheres com re-lação à própria gravidez46.

De acordo com Cook e Cusack, estereóti-pos de gênero se referem à descrição de uma pes-soa ou grupo com base nas “construções sociais e culturais de mulheres e homens, decorrentes de suas diferentes funções físicas, biológicas, sexuais ou sociais.”47. Estereótipos de gênero se tornam problemáticos quando usados para ignorar as preferências ou habilidades de um indivíduo, ne-gando seus direitos humanos ou criando e forta-lecendo hierarquias de gênero48. Os resultados de Checa servem para ilustrar como os estereótipos de gênero produzem impactos desproporcionais sobre as mulheres, ao colocar em xeque sua ca-pacidade de decisão quando confrontadas com o conhecimento médico.

Além disso, para Cook e Cusack, os estereóti-pos de gênero sobre mulheres grávidas reforçam o papel social primário das mulheres como mães e indivíduos vulneráveis ou incapazes de toma-rem decisões49. O fortalecimento desses papéis sociais através dos estereótipos de gênero desti-tui as mulheres de seu poder de decidir, consi-derar e expressar suas opiniões sobre o parto e a maternidade.

Eva Giberti descreveu o efeito pervasivo dos estereótipos de gênero sobre o modo como os médicos respondem às experiências das mulheres durante o parto. Ela descreve uma cultura médica predominantemente masculina que, ao não en-tender os sentimentos subjetivos e os interesses das mulheres durante a assistência, constrói as re-ações das mulheres como doenças que requerem diagnóstico e intervenção médica50. De acordo com esse conceito, as mulheres são permanen-temente consideradas indivíduos vulneráveis ou agentes incapazes de tomar decisões.

Um estudo conduzido em maternidades públi-cas em Buenos Aires identificou que apenas 42% dos profissionais de saúde informam as mulhe-res sobre os procedimentos médicos. Esse estudo também revelou que 30% dos profissionais consi-deram que as mulheres não devem decidir sobre a posição durante o parto, mesmo quando enten-dem que essa decisão é possível e até desejada por elas51. Um estudo qualitativo demonstrou que as mulheres atendidas em uma maternidade públi-ca não estavam cientes de seu direito de decidir sobre a forma de parir; elas acreditavam que essa era uma decisão exclusiva dos médicos52.

Esses estudos indicam que muitos médicos consideram desnecessário informar as mulheres sobre suas escolhas ou levar em consideração suas necessidades ou preferências. A estereotipi-zação de gênero exercida por médicos generaliza e patologiza os sentimentos e as experiências de mulheres, retirando-lhes o poder, a decisão e o controle sobre seus corpos. Ao ignorar a individu-alidade das mulheres e ao padronizar suas neces-sidades e preferências, essa cultura assistencial se conduz de forma antiética, desconsiderando a compreensão e a decisão das mulheres sobre a assistência recebida53.

A fim de alterar esse paradigma, foram reco-mendadas políticas para que os serviços de saúde transformem a cultura de assistência à saúde ma-terna em direção a um modelo capaz de oferecer cuidados individualizados, levando em conside-ração as necessidades psicológicas, emocionais e culturais das mulheres54.

Os estereótipos de gênero acionados pelos pro-fissionais de saúde durante a assistência obstétri-ca produzem impactos desproporcionais sobre as mulheres ao tratá-las como indivíduos vulnerá-veis, incapazes de controlar seus próprios corpos ou entender suas próprias experiências. Conse-quentemente, os médicos acreditam que estão defendendo o interesse das mulheres ao impedir suas escolhas com relação à assistência. As obje-ções éticas fundamentam-se na incapacidade dos médicos respeitarem as mulheres como agentes morais capazes, tratando-as de maneira impessoal por meio de estereótipos infantilizadores.

ConclusãoA Argentina se mantém atenta aos esforços e avanços internacionais para abordar o abuso e os maus-tratos a mulheres nos serviços de assis-tência à saúde materna. O estatuto da Violência contra as Mulheres introduziu o conceito de vio-lência obstétrica na legislação argentina. Entre-tanto, esse conceito ainda apresenta limites, uma vez que não determina quais são as práticas que constituem tratamentos degradantes, medicação abusiva e patologização de processos naturais. Mas consideramos que o decreto que regula o es-tatuto da VCM, o estatuto do Parto Humanizado e as diretrizes para a prática médica podem ajudar a complementar o estatuto original, especificando as condutas de violência obstétrica. Esses instru-mentos também podem auxiliar a identificar a violência obstétrica para além da definição limi-tada do estatuto da VCM, já que reconhecem as si-

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tuações ligadas ao aborto e à recusa da assistência por parte dos serviços. Juízes, advogados e formu-ladores de políticas devem considerar de maneira abrangente todos os aspectos da violência obsté-trica, incluindo saúde pública, direitos humanos e as questões éticas. Quando uma mulher sofre danos físicos ou emocionais irreparáveis como resultado da assistência obstétrica, isso vai além do simples erro médico. Isso representa abuso e negligência em nível sistêmico, implicando em falhas na implementação correta das políticas de saúde materna. Juízes, advogados e formuladores de políticas devem tomar consciência e investigar condutas institucionais prejudiciais (tais como episiotomias e cesarianas desnecessárias), que desafiam a saúde pública, mesmo diante de evi-dências científicas contrárias. Além de violar direi-tos, tais casos também demonstram falhas éticas e revelam uma mentalidade de gênero que torna rotineira a negligência médica com os interesses e necessidades das mulheres durante a assistência. Assim, o conceito jurídico de violência obstétrica é um marco que visibiliza os obstáculos que as mulheres enfrentam no sistema de saúde. Para al-cançar a verdadeira profundidade e amplitude do problema a ser tratado pela consciência pública, deve-se utilizar uma abordagem diversificada que envolva a saúde pública, os direitos humanos e perspectivas éticas que tornem as mulheres cons-cientes de seus direitos e garantam sua autono-mia durante a assistência obstétrica. Parte dessa iniciativa é o fomento a estudos que escutem as

mulheres, incorporando suas experiências, suas dúvidas e prioridades quando da adoção de novas soluções. As reflexões acadêmicas devem ser so-madas à coleta de dados e a estudos qualitativos sobre a implementação de novas leis e diretrizes processuais em todos os níveis. No longo prazo, a dedicação minuciosa a todas as faces desse fe-nômeno perverso pode assegurar melhorias na garantia de segurança e qualidade da assistência à saúde materna, dando às mulheres um papel central nos cuidados de sua saúde e bem-estar.

AgradecimentosEste artigo baseou-se na dissertação de mestrado em Teoria de Direito: Herrera Vacaflor C. Violência Obstétrica na Argentina: um estudo sobre os efei-tos jurídicos de diretrizes médicas e obrigações estatutárias para melhorar a qualidade da saúde materna. Tese LLM, Universidade de Toronto, Fa-culdade de Direito, 2015.

Sou extremamente grato ao apoio financei-ro recebido em 2014-2015 da Fellowship of the Canadian Institute of Health Research Training Program in Health Law, Ethics, and Policy, que ga-rantiu esta pesquisa. Também sou extremamen-te agradecido à Rebecca Cook, Bernard Dickens e Joanna Erdman pelas suas considerações e orien-tações sobre alguns argumentos desenvolvidos na tese que serviram como base para esse artigo, e a dois revisores e editores anônimos, pelos comen-tários e orientações editoriais. Os erros são exclu-sivamente de minha autoria.

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CH Vacaflor. / Questões de Saúde Reprodutiva 2017; 10: 44-52

RésuméL’Argentine a reconnu le droit des femmes à ne pas être soumises à la violence obstétricale, la violence exercée par le personnel de santé sur le corps et les processus génésiques des femmes enceintes, telle qu’exprimée par des traitements déshumanisants, une médicalisation excessive et la transformation de phénomènes naturels de procréation en pathologies. La décision législative de l’Argentine d’encadrer ces abus et cette maltraitance des femmes sous le chapitre de la violence sexiste permet d’identifier les échecs dans le système des soins de santé et dans la participation des femmes à la société. Cet article examine comment l’application du cadre relatif à la violence faite aux femmes pour traiter les questions d’abus et de maltraitance des femmes pendant les soins de santé maternelle procure une approche bénéfique dans les perspectives de la santé publique, des droits de l’homme et de l’éthique pour analyser de tels problèmes structurels, profondément enracinés. Le cadre relatif à la violence faite aux femmes a pour but de transformer ces pratiques culturelles nuisibles, non seulement en protégeant l’autonomie génésique des femmes, mais aussi en renforçant la participation des femmes dans la société.

ResumenArgentina ha reconocido el derecho de las mujeres a no ser sometidas a la violencia obstétrica, es decir, violencia ejercida por el personal de salud en el cuerpo y en los procesos reproductivos de las mujeres embarazadas, que se manifiesta por medio de un trato deshumanizante, abuso de medicalización y la patologización de los procesos reproductivos naturales. La decisión legislativa de Argentina de enmarcar este abuso y maltrato de las mujeres bajo la rúbrica de violencia de género permite la identificación de fallas tanto en el sistema de salud como en la participación de las mujeres en la sociedad. Este artículo examina cómo aplicar el marco de violencia contra las mujeres para abordar asuntos de abuso y maltrato de las mujeres durante la atención materna constituye una estrategia benéfica, desde los puntos de vista de salud pública, derechos humanos y ética, para analizar dichos problemas estructurales. El marco de violencia contra las mujeres busca transformar las prácticas culturales dañinas, no solo protegiendo la autonomía reproductiva de las mujeres sino también empoderándolas para que participen en la sociedad.

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53Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.06.003

Os direitos humanos de pessoas intersexo: práticas danosas e retórica da mudança

Morgan CarpenterFundadora, Projeto Dia do/a Intersexo; Codiretora da Organização Internacional Intersexo Austrália.Contato: [email protected]

Resumo: Pessoas e corpos intersexos são frequentemente considerados incapazes de se integrarem na sociedade. Intervenções médicas sobre corpos que muitas vezes são saudáveis permanecem sendo a norma e respondem a demandas familiares e culturais objetivas, apesar das preocupações sobre necessidade, resultados, comportamento e consentimento. O movimento intersexo global e descentralizado almeja objetivos simples: o direito à autonomia corporal e autodeterminação e o fim da estigmatização. O sistema internacional de direitos humanos tem respondido com um conjunto de novas declarações políticas de direitos humanos e alguns governos nacionais têm reconhecido os direitos de pessoas intersexo. No entanto, há ainda desafios cruciais para a implementação dessas políticas. As violações de direitos humanos de indivíduos intersexo persistem, profundamente encobertas por um histórico de silenciamento. A retórica da mudança das práticas clínicas é pouco substantiva. A disjunção política surge no contexto do intersexo como questão de orientação sexual e identidade de gênero, mais do que como característica sexual inata, o que levou à retórica da inclusão, que não condiz com a realidade. Este artigo oferece uma visão geral das práticas danosas sobre corpos intersexo, sobre os avanços nos direitos humanos e a retórica da mudança e da inclusão.

Palavras-chave: intersexo, direitos humanos, práticas danosas, injustiças hermenêuticas, transtornos de desenvolvimento sexual

IntroduçãoPessoas intersexo nascem com características sexuais que não necessariamente correspondem a normas médicas e sociais associadas a corpos femininos ou masculinos1. Pessoas com variações intersexu-ais são heterogêneas, com variados corpos, sexos e identidades sexual e de gênero. Os atributos in-tersexo abrangem “pelo menos 40 entidades di-ferentes que em sua maioria são determinadas geneticamente”2. De 10% a 80% dos casos não têm um diagnóstico exato no momento em que os mé-dicos revelam a condição da criança2 – isso inclui os próprios registros médicos do autor deste arti-go, que trazem os termos hipogonadismo, gineco-mastia e sexo indeterminado.

Entre 0,5 e 1,7% das pessoas pode ter atributos intersexo1. Os números são vagos, não apenas por causa dos desafios do diagnóstico e o crescente impacto da seleção genética3, mas também por causa do estigma. As consequências de se nascer com características intersexo são profundas. Ta-xados historicamente de hermafroditas, deuses e monstros4, as pessoas intersexo têm sido vítimas de infanticídio ou atrações de freak shows5,6. Dan Ghattas aponta que em todo o mundo pessoas

com corpos intersexo foram julgadas incapazes de se integrar à sociedade7.

Em um padrão histórico recorrente8, os termos mudaram no último século a partir de decisões médicas que determinaram que a linguagem anterior era imprecisa e pejorativa: as pessoas afetadas não são hermafroditas, nem pseudo--hermafroditas, nem intersexo, mas crianças com transtornos cujos corpos necessitam de ‘acaba-mento’9 ou desambiguação10.

As violações de direitos humanos tomam diver-sas formas. Em lugares com baixo acesso a servi-ços de saúde, pode ocorrer abandono, infanticí-dio, mutilação e estigmatização de crianças e suas mães se um atributo intersexo for óbvio11. Recen-temente, houve a mutilação e assassinato de um adolescente no Quênia12 e o abandono de uma criança em Shandong, na China13. Em lugares com sistemas de saúde acessíveis, as violações de di-reitos humanos ocorrem em contextos médicos, com a intenção de fazer com que os corpos inter-sexos se adéquem a normas sociais estreitas para mulheres ou homens7. A ausência de necessida-de, autonomia e consentimento válido demons-tram que as intervenções “normalizantes” violam

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“o direito à saúde, à integridade física, à igualda-de e a uma vida sem discriminação e o direito de não sofrer tortura e maus-tratos”(1,14).

MedicalizaçãoA medicalização do corpo intersexo inicia-se no final do século 19, junto com a medicalização dos corpos de mulheres e da homossexualidade. A partir dos anos 1950 uma nova crença sobre a ma-leabilidade das identidades de gênero das crian-ças produziu um “modelo de gênero ideal”: crian-ças intersexo identificadas durante ou logo após o parto poderiam ser “normalizadas” ao submete-rem à adequação seus corpos, papéis de gênero e sexo de nascimento. As limitações cirúrgicas leva-ram a que a maioria das crianças intersexo fossem definidas como meninas. Eram considerados casos “bem sucedidos” as pessoas heterossexuais identi-ficadas com o gênero que lhes foi atribuído15.

Hoje, a atribuição do sexo de crianças diagnos-ticadas no parto baseia-se geralmente na inspeção visual e no teste genético e hormonal. Embora haja regras comuns, baseadas nos cromossomos e na sensibilidade e exposição a andrógenos16, as atitudes sociais que dão preferência a crianças do sexo masculino podem influenciar a atribuição do sexo em algumas regiões17.

As intervenções de “normalização” sexual, para reforçar a atribuição de sexo, incluem a cirurgia feminizante e masculinizante, intervenções hor-monais e gonadectomias, geralmente durante o período pós-natal, infância e adolescência18, antes que a criança possa dar o seu consentimento e na ausência de evidências sobre a necessidade ou bons resultados da cirurgia. A atribuição inicial de sexo, porém, não precisa ser reforçada, permanen-te ou irreversível.

Em alguns casos, outras intervenções podem ser necessárias para assegurar a saúde física, prin-cipalmente para problemas endócrinos decorren-tes da hiperplasia adrenal congênita19. Interven-ções cirúrgicas podem ser necessárias para evitar o risco elevado de câncer nas gônadas ou proble-mas urinários16,36. Essas intervenções não são exa-tamente controversas, mas não há dados robustos que as justifiquem. Além disso, as decisões clínicas sobre essas intervenções entrelaçam justificativas terapêuticas com justificativas “normalizantes” não terapêuticas32.

As intervenções feminizantes incluem ci-rurgias clitorianas (como a “clitoridectomia”), construção de vagina e outras cirurgias genitais

como, por exemplo, em bebês e crianças com cli-tóris grande ou genitália ambígua. Intervenções masculinizantes incluem cirurgias para hipospa-dia – condição em que a uretra se situa entre a glande e o períneo.

A remoção do clitóris é considerada mutilação genital feminina (MGF), uma prática abominável e danosa20, e uma forma de violência de gênero proibida em muitos países, embora se abra exce-ções para garotas intersexo em alguns casos20,21. Adultos também são vulneráveis: em 2013, uma revista científica médica relatou que quatro mu-lheres, atletas de elite de países de baixa e média renda, foram identificadas com atributos interse-xo durante testes rotineiros de testosterona. Elas foram coagidas a se submeter a “clitoridectomias parciais” e a esterilização para que voltassem a competir22.

A construção vaginal requer a dilatação regu-lar pós-cirúrgica pela inserção de um instrumen-to, o que, em alguns casos, pode ser vivido como um estupro8. Os exames de acompanhamento podem incluir testes de sensibilidade em meno-res de idade17, usando-se, por exemplo, um coto-nete ou um vibrador.

De modo geral, as cirurgias para hipospadia são realizadas na infância, a despeito das evi-dências que afirmam que os resultados são in-determinados até a vida adulta23. A construção e manutenção do tubo urinário pode envolver cirurgias múltiplas com um impacto significativo na sensibilidade, altas taxas de complicações e, especialmente, frágeis resultados no longo prazo e até mesmo a “regeneração” genital8,23. Ainda não há evidências sobre a necessidade de inter-venções precoces24.

Os riscos de câncer nas gônadas foram superes-timados ou pouco embasados, o que resulta em esterilizações32. Em 2013, uma investigação do Se-nado Australiano sobre esterilização involuntária ou sob coação de pessoas intersexo, revelou que a esterilização rotineira de mulheres com síndrome da insensibilidade androgênica completa já não é mais realizada por causa dos riscos superestima-dos. Mas, não houve nenhum esforço de repara-ção dos danos causados a indivíduos que precisam de reposição hormonal pelo resto de suas vidas como consequência dessa intervenção.

Dados sólidos sobre a prevalência de interven-ções “normalizantes” são escassos, mas, apesar da imprensa afirmar o contrário25,26, as intervenções continuam sendo rotina e são centrais no trata-mento de atributos intersexo27. Embora a MGF

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seja proibida no Reino Unido, por exemplo, Crei-ghton et al salientam que é crescente o número de cirurgias clitorianas realizadas em indivíduos menores de 14 anos no Reino Unido: “não se sabe ainda se esse crescimento se deu pela maior inci-dência ou detecção” de atributos intersexo28. De acordo com o Manual Neonatal de 2015 do gover-no de Victoria, na Austrália, o parto de um bebê intersexo ainda é “angustiante” para todos os pre-sentes na sala de parto: “muitas vezes, a cirurgia corretiva é realizada no primeiro ano da vida”18, a despeito desse mesmo governo já ter divulgado diretrizes éticas contrárias à intervenção29.

Justificativas e resultados da intervenção médicaOs protocolos médicos atuais sobre o tratamento pediátrico de atributos intersexo foram definidos nas declarações do “consentimento” de Chicago de 200616. O intersexo foi definido como “transtor-nos do desenvolvimento sexual”, recomendando--se intervenções para “minimizar as preocupações e angústias da família”, facilitar os laços entre os pais e filhos e “mitigar os riscos de estigmatiza-ção”16. A declaração recomendou cautela no tra-tamento cirúrgico, mas, apesar disso, torna essas intervenções mais fáceis. Em 2016, uma declara-ção de acompanhamento do tema fez o mesmo30. A credibilidade e o “consentimento” da declaração de Chicago não reside em sua contribuição clínica abrangente ou na contribuição comunitária signi-ficativa, mas na sua utilidade para justificar toda e qualquer forma de intervenção clínica. As práticas clínicas não foram impactadas pela declaração, elas foram validadas.

Diretrizes éticas locais, como a de Victoria, na Austrália, ampliam esse modelo, sugerindo que as intervenções médicas devem considerar os riscos culturais, como as “oportunidades reduzidas de casamento”29. Uma contribuição médica à inves-tigação do Senado australiano recomendou cirur-gias justificadas como terapêuticas por “motivos funcionais, tais como permitir que o indivíduo masculino urine em pé, e por motivos psicosso-ciais, como permitir que a criança se desenvolva sem o estigma psicossocial ou o estresse associa-do a incongruências genitais com o sexo de nas-cimento”. Essas justificativas expressam normas culturais muito semelhantes às justificativas utili-zadas para a mutilação genital feminina.

Outra contribuição médica à investigação do Senado australiano aponta os seguintes argu-mentos para a esterilização: “sexo de nascimen-

to, capacidade estimada da gônada para produ-zir hormônios de acordo com ou em oposição ao sexo de nascimento e/ou (ao desenvolvimento da) identidade de gênero, probabilidade da disforia de gênero”31. O comitê ficou incomodado por esse emaranhado de justificativas diferentes32.

A investigação do Senado australiano identifi-cou que as justificativas psicossociais e culturais para intervenções cirúrgicas formam um “argu-mento circular que evita as questões centrais”32. Na Suíça, um relatório nacional sobre bioética, de 2012, concluiu que intervenções voltadas para o estigma e integração familiar e social “vão de en-contro ao bem-estar da criança”33.

São poucas as fontes abrangentes de dados quantitativos, em parte devido ao acompanha-mento limitado, à ausência de dados compara-tivos sobre indivíduos que não se submeteram a intervenções precoces e à baixa frequência de muitos atributos intersexo. Isso significa que há pouca evidência para sustentar tanto a interven-ção quanto a não intervenção médica43. Uma dé-cada após a declaração do Consentimento de Chi-cago, não há alternativa clínica credível que evite a intervenção cirúrgica precoce38.

Há mais de duas décadas – pelo menos desde 19953 – identifica-se uma nova retórica baseada na melhoria das técnicas e resultados cirúrgicos sem qualquer evidência científica. Lloyd et al (2005) afirmam que as evidências dos benefícios das intervenções cirúrgicas precoces “notam-se por sua ausência”37. A contribuição do Hospital Infantil de Melbourne à investigação do Senado australiano considerou que os “resultados relacio-nados às práticas (cirúrgicas) atuais ainda devem ser estabelecidos”35. Há, no entanto, evidências sobre os danos causados pelas cirurgias precoces: um inquérito do Grupo Asiático-Australiano de En-docrinologia Pediátrica identificou “preocupações relacionadas especialmente à função e sensação sexual” como consequência de cirurgias36. No Rei-no Unido, Creighton et al salientam que “houve um cisma entre pediatras e médicos de adolescen-tes/adultos” devido à falta de evidências sobre os benefícios da cirurgia precoce28. Alegações clínicas sobre a melhoria das técnicas cirúrgicas são utili-zadas para justificar cirurgias num período ainda mais cedo da vida), mas as melhorias que surgem ao longo do tempo deveriam levar ao adiamento das cirurgias em bebês e crianças, de modo que fossem realizadas apenas em adultos aptos a con-sentir e que iriam se beneficiar dessas melhorias, se assim desejarem.

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Segundo Lloyd et al, a decisão clínica sobre a necessidade de cirurgia genital pode ser “comple-tamente subjetiva”37. A investigação de 2013 do Senado australiano revelou que “não há consenso médico sobre a conduta da cirurgia normalizante” em crianças intersexo. Como afirmam Liao et al, os pais “podem não perceber que estão de fato optando por uma cirurgia experimental em suas crianças” e, por isso, não são capazes de oferecer um consentimento válido: “pode ser alto o arre-pendimento dos pais” por terem permitido inter-venções que pretendem superar questões familia-res e sociais38.

Além dos problemas da sensação e da função sexual e da possibilidade de atribuição incorre-ta de sexo, as cirurgias também podem criar di-ferenças físicas que inibem a intimidade39. Iain Morland, por exemplo, descreve a sua anatomia como “brilhantemente incomum e brutalmente normalizada ao mesmo tempo”40. Um estudo clí-nico realizado na Alemanha entre 2005 e 2007, com 439 adultos, crianças e pais de crianças in-tersexo, revelou que 81% dos adultos e crianças com atributos intersexo se submeteram a cirur-gias por causa desses atributos e dois terços dos adultos revelaram ter problemas sexuais por cau-sa dessas cirurgias41. Uma enquete recente reali-zada na Austrália com 272 adultos que nasceram com características sexuais atípicas revelou que há “fortes evidências” de “constrangimento insti-tucionalizado e tratamento coercivo”42. Na popu-lação do estudo, 60% revelaram ter se submetido a intervenções médicas relacionadas aos atribu-tos intersexo e a maioria sofreu consequências negativas, não apenas médica ou sexual: uma maior taxa de abandono escolar (18% dos entre-vistados contra 2% da média nacional) coincidiu com a puberdade e com intervenções médicas nessa fase da vida.

É comum que boa parte das principais questões éticas e de direitos humanos relacionadas às prá-ticas médicas atuais sejam retratadas como ques-tões ligadas ao momento da cirurgia, ao grau de diferença física com relação às normas sexuais36 e à atribuição sexual18. O movimento intersexo coloca as questões mais fundamentais do consen-timento válido, da autodeterminação e da autono-mia corporal43.

O movimento intersexoDefensores da causa intersexo estão na ativa des-de os anos 1990. A criação dos Grupos de Apoio à Síndrome Androgênica na Austrália e no Reino

Unido foi seguida pela Sociedade Intersexo da América do Norte (ISNA, sigla em inglês), por um consórcio latinoamericano, por grupos nacionais e por redes internacionais.

Em poucos anos, de uma organização que pro-testava do lado de fora de conferências pediátri-cas, como em 1996, a ISNA passou a oferecer uma sessão plenária nesta mesma conferência44. Poste-riormente, a autoridade médica foi reafirmada na declaração de Chicago de 2006: um grupo exclusi-vo de convidados, liderado por médicos estaduni-denses e com o envolvimento periférico da ISNA, mudou a linguagem médica de intersexo para “transtornos de desenvolvimento sexual”(TDS)45. A ISNA esperava que isso abrisse portas para colabo-rações mais próximas com profissionais e para a melhoria das práticas médicas46, mas o que se viu foi o reforço da biomedicalização27.

A mudança para TDS nunca foi amplamente aceita pelas pessoas intersexo nem por ativistas e organizações do campo, que consideram o termo patologizante e difícil de traduzir47. Uma década depois, uma pesquisa feita junto a australianos nascidos com características sexuais atípicas reve-lou uma baixa aceitação do termo. Apenas 3% dos entrevistados usam o termo TDS por opção pró-pria, enquanto 60% usam outros termos, incluin-do a palavra intersexo42. Curiosamente, 21% uti-lizam o termo TDS quando estão nos serviços de saúde, o que indica que percebem a necessidade de usar uma linguagem relacionada a transtornos de saúde para obter assistência adequada.

Na metade dos anos 2000, o movimento inter-sexo se dividiu de forma pouco pacífica entre os que preferiam a liderança médica e aqueles que optaram pela abordagem de direitos humanos. A ISNA se desmobilizou em 200848 e os defensores da liderança médica sentiram-se cooptados(49) e decepcionados50.

O movimento dos direitos humanos de pesso-as intersexo participa ativamente de instituições internacionais e nacionais de ética e direitos hu-manos e de discussões com formuladores de po-líticas, realizam protestos51 e estimulam ações voltadas para o sistema de justiça. Seus objetivos fundamentais nesse campo são simples: o direito à autonomia corporal e à autodeterminação e o fim da estigmatização.

Avanços nos direitos humanosEm alguns países, as práticas médicas têm passado por avaliações. Na Suíça, um inquérito nacional sobre bioética, realizado em 2012, recomendou

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mudanças substanciais na prática clínica para in-terromper a oferta de tratamentos que não são urgentes e reconhecer as normas de direitos hu-manos33, na mesma linha do inquérito do Senado australiano32. Mas nenhuma das recomendações foi implementada. Em 2008, na Alemanha, Chris-tiane Völling venceu um processo judicial por ter sido submetida a um tratamento involuntário aos 18 anos52. Michela Raab também foi vitoriosa em uma ação similar no mesmo país, em 201553. Nos EUA, o caso de uma criança, MC, está em jul-gamento desde 2013, sem conclusão até o mo-mento54. Bauer e Truffer apontam que nenhum processo judicial movido por pessoas intersexo submetidas a intervenções durante a infância foi bem-sucedido, em parte devido às regras de pres-crição penal55, mas também pela força dos con-sensos clínicos.

Alguns países têm implementado medidas le-gislativas sobre discriminação e autonomia corpo-ral. A África do Sul foi o primeiro país a incluir o atributo de “sexo” em suas leis de discriminação, em 2005, graças ao trabalho da ativista interse-xo e antiapartheid Sally Gross56. Os australianos incluíram o “status intersexo” como atributo in-dependente em sua legislação de discriminação de 201357. Em 2015, Malta se tornou o primeiro país a reconhecer legalmente o direito de todos os indivíduos “à integridade corporal e autonomia física”, adicionando o atributo mais abrangente de “características sexuais” à legislação de discri-minação e proibindo intervenções socioculturais e outras intervenções desnecessárias sobre as ca-racterísticas sexuais de crianças e adolescentes58,59.

Entre 2011 e 2013, vários Fóruns Internacionais Intersexo culminaram com a produção de uma declaração de referência60, seguida em 2014 pela apresentação à Organização Mundial de Saúde das preocupações de ativistas dos seis continentes com relação à Classificação Internacional de Do-enças (CID)8.

Os avanços nos fóruns internacionais de direi-tos humanos resultam do ativismo propositivo. Em 2013, o Relatório Especial da ONU sobre tor-tura reconheceu pela primeira vez a existência e as consequências danosas do tratamento mé-dico irreversível e involuntário para “consertar” crianças intersexo61. Em 2015, o Comissário de Direitos Humanos do Conselho da União Europeia reconheceu pela primeira vez o direito de pesso-as intersexo a não se submeter a tratamento de atribuição sexual62. No mesmo ano, o Conselho da União Europeia, a Agência Europeia para os Direi-

tos Fundamentais63 e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos64 exigiram a reavaliação das classificações médicas que patologizam os atribu-tos sexuais.

Os Órgãos de Tratados da ONU começaram ago-ra a reagir a esses progressos. O Comitê contra a Tortura elaborou comentários sobre consentimen-to e impactos de longo prazo das cirurgias preco-ces e irreversíveis para a determinação sexual na Suíça65, na China66 e em Hong Kong67. O Comitê de Direitos das Crianças também produziu comentá-rios sobre não discriminação, direito à identidade e práticas prejudiciais no Chile68, na França69 e Ir-landa70. O Comitê de Direitos de Pessoas com Defi-ciência tratou da proteção da integridade pessoal na Alemanha71. Como consequência dos comentá-rios sobre o Chile, no final de 2015, o Ministério da Saúde chileno divulgou instruções para a suspen-são de intervenções médicas precoces.

Em setembro de 2015, durante a abertura de um encontro de especialistas sobre intersexo, o Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein, declarou que:

“Todos os seres humanos nascem iguais em dignida-de e direitos… independentemente de suas caracte-rísticas sexuais.”

Disjunções políticas Apesar dos avanços no campo dos direitos huma-nos, ainda há muitos desafios pela frente, espe-cialmente no que se refere às reformas para ga-rantir que as práticas clínicas sigam as normas dos direitos humanos. As disjunções são evidentes en-tre as políticas sociais e assistenciais e, nos dois ca-sos, entre a retórica e a realidade, que diferenciam o tratamento médico de “indivíduos com TDSs” e os avanços nas políticas sociais para as comunida-des intersexo e LGBT. Fundamentalmente, tratar separadamente os TDSs e a população intersexo é profundamente errôneo e pode levar as políticas de saúde a ignorar o movimento de direitos hu-manos de pessoas intersexo.

Em 2014, por exemplo, um estado da Austrá-lia introduziu três classificações adicionais para o sexo de nascimento74, que eram parcialmente adequadas para crianças intersexo. Quando con-tactados por nós a respeito dessa política pública e sobre o tratamento médico de crianças, porém, os gestores do território retornaram com respos-tas divergentes e pouco articuladas, elaboradas por diferentes equipes com diferentes metas. O governo não foi capaz de formular uma política

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bem estruturada porque não há uma compre-ensão coerente sobre a população afetada. Uma bifurcação similar entre TDS e intersexo também é evidente nos cursos de medicina dos EUA75. Dis-tinções entre retórica e realidade também são evidentes em Victoria, na Austrália, onde as di-retrizes éticas sobre a assistência a crianças com atributos intersexo29, elaboradas pelo governo, são ignoradas e contrariadas pelo atual manual neonatal sobre genitália ambígua e hipospadia76. As diretrizes são passíveis de revisão e provavel-mente removerão a possibilidade de casamento como justificativa para a intervenção médica, mas, neste momento, as diretrizes éticas têm sido irrelevantes para a prática médica.

As disjunções políticas se estendem ao financia-mento público. Na Austrália, a pesquisa genética sobre atributos intersexo é parcialmente justifica-da pelo “trauma psicológico”77, apesar de nenhum serviço de saúde oferecer apoio psicológico para adultos. Familiares e grupos ativistas apoiam as pessoas intersexo, mas não contam com recursos financeiros suficientes78.

As disjunções também são evidentes na mídia. Os repórteres continuam a contrastar as perspecti-vas intersexo com as perspectivas médicas, muitas vezes de endocrinologistas pediátricos ou gene-ticistas79. Em geral, as reportagens são acríticas e apresentam narrativas não embasadas sobre algu-mas intervenções cirúrgicas e procedimentos mé-dicos26,28,80. Também é frequente que as matérias que apresentam o intersexo nos contextos LGBTs suponham erroneamente42 que todas as pessoas intersexo são gays ou transgêneros81,82.

Na perspectiva intersexo, o movimento LGBT parece se preocupar com as identidades e o re-conhecimento do relacionamento homoafetivo, sem que se reconheça a autonomia corporal e os profundos desafios colocados pelas normas de sexo e gênero. Os debates nos espaços LGBT po-dem sugerir que os grupos intersexo não querem ser incluídos: algumas organizações lideradas por intersexos têm esse objetivo, mas outras simples-mente receiam a sobrecarga e a instrumentaliza-ção. Muitas organizações “LGBTI” tratam a inclu-são intersexo como uma meta inconsequente, e não como um processo estratégico deliberado, e, com isso, a retórica da inclusão não se materiali-za83. Não obstante, a articulação das questões tem avançado, inclusive na saúde84, na política exter-na85 e nos direitos humanos1, 64. Para ser efetiva, a sigla “LGBTI” deve trabalhar para todas as popu-lações que a constituem. Dan Ghattas sugere que

as organizações LGBT que buscam se tornar mais inclusivas devem adotar a declaração do Terceiro Fórum Internacional Intersexo60 como um primei-ro passo para isso86.

Na Austrália, a mudança de LGBT para LGBTI ocorreu cedo, mas pouca atenção foi dada às suas implicações. As poucas instituições que reagiram à lei do “status intersexo” voltaram-se principal-mente para as questões dos títulos, pronomes e uso de banheiros, que são comuns à discrimi-nação baseada na identidade de gênero87. Isso é problemático. Não apenas porque obscurece as questões da medicalização e da autonomia corpo-ral, mas também porque reduz o intersexo a uma mera questão de identidade de gênero.

Na prática, a identidade intersexo é polimór-fica, mas afirma a dignidade de uma corporali-dade estigmatizada. As identidades de gênero de pessoas intersexo podem ou não ser compatíveis com seus sexos atribuídos no nascimento. Como as pessoas transgênero, as pessoas intersexo podem se sentir desconfortáveis com o gênero que lhes foi atribuído, que é uma falha no reconhecimento da validade das identidades de gênero. Especifica-mente, as pessoas intersexo também lidam com falhas no reconhecimento da validade do sexo atribuído no nascimento88,89.

Também é equivocado apresentar o intersexo como o terceiro sexo87. Em 2015, por exemplo, uma agência governamental australiana não viu contradição em propostas que demandavam a classificação do terceiro sexo e os direitos huma-nos intersexo em um pôster que afirmava que “sexo é um espectro”. Em 2016, um grupo LGBT chileno propôs um terceiro sexo para bebês, se-guindo propostas similares de vários países90.

Em geral, as identidades são informadas por características corporais e embora algumas pes-soas intersexo se autodenominem como gênero intersexo ou não-binário, a maioria dos adultos intersexo se identifica como homens ou mulhe-res42. Supor que as características sexuais ditam a identidade de gênero não apenas nega a existên-cia de pessoas trans, mas também nega a agência de pessoas intersexo para determinar seu sexo e gênero de forma autônoma. A classificação do terceiro sexo para bebês coloca dificuldades adi-cionais: os pais podem se sentir pressionados a evitar o estigma, a revelação e a incompreensão social por meio de intervenções corporais que ga-rantam uma atribuição de sexo inequívoca e fami-liar. Como afirma Mauro Cabral, é necessário desa-fiar e expandir não apenas as definições estreitas,

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mas também a redução da questão intersexo à identidade de gênero91.

A declaração do Terceiro Fórum Internacional Intersexo defende a atribuição inicial masculina ou feminina, reconhecendo a integridade físi-ca, com abertura para mudanças nas atribuições sexuais e para opções não-binárias e múltiplas para pessoas capazes de consentir60. A declaração também defende a remoção do sexo e gênero, tal como raça e religião, de documentos oficiais de identificação como meta política mais universal e de longo prazo.

Injustiça hermenêuticaNa base dessas disjunções e equívocos políticos há uma questão mais ampla, descrita pela filósofa Miranda Fricker como “injustiça hermenêutica”: uma forma de injustiça do conhecimento que im-pede uma pessoa de compreender sua própria ex-periência devido a uma lacuna no entendimento social92. Isso se dá devido à “impotência relativa” do grupo social em questão. Para pessoas interse-xo essa injustiça hermenêutica se dá de duas ma-neiras: por meio do sigilo e da terminologia médi-ca e por meio do discurso social sobre identidade.

O sigilo clínico foi aprofundado a partir dos anos 1950: uma cultura deliberada de sigilo ocul-tou diagnósticos para “garantir que a criança ti-vesse um desenvolvimento físico e psicossocial ‘normal’”93. Esse silêncio retirou das pessoas inter-sexo as palavras para descrever suas suturas, cica-trizes e ausência de sensações e as palavras para entender as similaridades na diversidade de suas vidas e suas histórias. Essa cultura mudou com a introdução do TDS, mas a linguagem clínica ainda impede o entendimento positivo e não patologi-zante dos pais sobre a criança e a individualização de cada condição afasta as pessoas das comunida-des intersexo. Morgan Holmes afirma que a mu-dança para a linguagem TDS “reinstitucionaliza o poder clínico de delinear e silenciar todas as pes-soas marcadas pelo diagnóstico; … esse silencia-mento é o ponto central da nova terminologia”94.

A linguagem focada na identidade trata as ques-tões dos direitos humanos das pessoas intersexo como questões de orientação sexual e identidade de gênero. Assim, prioriza-se questões de perfor-matividade e identidade em lugar de questões mais profundas e complexas ligadas à autonomia corporal. Essas questões atuam como barreiras para a compreensão familiar e pessoal e para as conexões sociais que ajudam a superar o estigma.

ConclusõesAs instituições internacionais de direitos humanos começaram a tratar dos direitos humanos das pes-soas intersexo baseando-se em testemunhos de um movimento global crescente e descentraliza-do. Esse avanço é bem-vindo, mas a implementa-ção de políticas eficazes e as mudanças nas prá-ticas médicas continuam sendo uma prioridade. Por um lado, isso significa desafiar a frágil retórica da mudança nas práticas clínicas e, por outro, a retórica inconsequente de inclusão.

A mudança estrutural é necessária para aca-bar com a patologização e a estigmatização de corpos intersexo saudáveis. A atual retórica das práticas médicas transformadas demonstra que o foco está na aparência: demandas por mudan-ças sem fundamento devem ser baseadas em evi-dências. Procedimentos médicos danosos devem ser eliminados; o direito das pessoas intersexo de não se submeterem a intervenções médicas por razões sociais e culturais deve ser reconhecido, garantindo-se também o seu direito de tomar decisões autônomas e informadas sobre trata-mentos irreversíveis. Deve-se priorizar o desen-volvimento de procedimentos clínicos baseados em direitos. Quando os indivíduos não são capa-zes consentir, as questões de saúde física devem ser analisadas e justificadas cautelosamente, de forma a distinguí-las das práticas culturais “nor-malizantes”. Os diagnósticos na Classificação In-ternacional de Doenças devem ser alterados para garantir que os tratamentos atendam às normas dos direitos humanos.

As retóricas da inclusão e o foco na performa-tividade devem ser desafiadas por órgãos e agên-cias financiadoras de direitos humanos. Os mo-delos de financiamento de iniciativas lideradas por intersexo devem ser apoiados e ampliados. A autonomia corporal, a estigmatização e a me-dicalização são questões de direitos humanos. O ativismo intersexo e os grupos de apoio interpa-res devem estar no centro dos esforços para lidar com e resolver tais questões.

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RésuméLes personnes et corps intersexués ont été considérés comme incapables d’intégration dans la société. Les interventions médicales sur des corps souvent sains demeurent la norme. Elles répondent à des besoins familiaux et culturels ressentis, en dépit des inquiétudes quant à la nécessité et aux résultats, à la réalisation et au consentement à ces interventions. Un mouvement intersexué mondial et décentralisé recherche des objectifs de base simples : les droits à l’autonomie et l’autodétermination des corps, et lafin de la stigmatisation. Le système international des droits de l’homme répond avec un éventail de nouvelles déclarations politiques adoptées par les institutions des droits de l’homme et une poignée de gouvernements nationaux qui reconnaissent les droits des personnes intersexuées. Néanmoins, de grands obstacles demeurent à l’application de ces déclarations. Les violations des droits des personnes intersexuées persistent, profondément enracinées dans une histoire délibérée de mise sous silence. La rhétorique des changements de la pratique clinique reste non étayée. Les disjonctions politiques apparaissent dans un cadre de questions intersexuées comme les thèmes de l’orientation sexuelle et de l’identité de genre, plutôt qu’en tant que caractéristiques sexuelles innées ; cela a abouti à une rhétorique d’inclusion qui ne correspond pas à la réalité. Cet article donne un aperçu des pratiques nuisibles sur les corps intersexués, le développement des droits de l’homme et la rhétorique du changement et de l’inclusion.

ResumenLas personas y cuerpos intersexuales han sido considerados incapables de integrarse a la sociedad. Las intervenciones médicas en cuerpos a menudo saludables continúan siendo la norma, abordando exigencias familiares y culturales percibidas, a pesar de las inquietudes sobre la necesidad, los resultados, la conducta y el consentimiento. El movimiento intersexual mundial y descentralizado procura lograr metas fundamentales sencillas: los derechos a la autonomía corporal y la autodeterminación, y el fin de la estigmatización. El sistema internacional de derechos humanos está respondiendo con una variedad de nuevas declaraciones de políticas de instituciones de derechos humanos y un puñado de gobiernos nacionales están reconociendo los derechos de las personas intersexuales. Sin embargo, aún existen retos importantes para poner en práctica esas declaraciones. Persisten las violaciones de derechos humanos de las personas intersexuales, arraigadas en una historia deliberada de silenciamiento. La retórica de cambios a la práctica clínica continúa sin fundamento. Las disyuntivas en políticas surgen al plantear los asuntos intersexuales como cuestiones de orientación sexual e identidad de género, y no como características sexuales innatas; esto ha producido una retórica de inclusión que no coincide con la realidad. Este artículo ofrece una visión general de las prácticas dañinas en cuerpos intersexuales, sucesos relacionados con los derechos humanos y las retóricas de cambio e inclusión.

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64 Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.04.002

Para além do desrespeitos e do abuso: as dimensões estruturais da violência obstétrica

Michelle Sadlera, Mário JDS Santosb, Dolores Ruiz-Berdúnc, Gonzalo Leiva Rojasd, Elena Skokoe, Patricia Gillenf, Jette A Clauseng

a Professora Assistente, Departamento de Antropologia, Universidad de Chile, Santiago, Chile Contato: [email protected] Assistente de Pesquisa, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL, Lisboa, Portugalc Professora Assistente de História da Ciência, Departamento de Cirurgia e Ciências Médicas e Sociais, Universidade de Alcalá,

Alcalá de Henares, Espanhad Professor Assistente, Escuela de Obstetricia y Puericultura, Universidad de Santiago de Chile, Santiago, Chilee Pesquisador Independente, Laboratorio Multimedial e di Comparazione Giuridica, Dipartimento di Scienze Politiche, Università

degli Studi “Roma TRE”, Unità di Ricerca “Diritti Umani nella Maternità e Nascita”, Roma, Itáliaf Diretora de Pesquisa e Desenvolvimento para Enfermeiras, Parteiras e Profissionais de Saúde Aliados, Fiduciária do Sul para a

Assistência Social e Saúde, Belfast, Reino Unido; Docente, Faculdade de Enfermagem, Instituto de Enfermagem e Ciências da Saúde, Universidade de Ulster, Belfast

g Docente Sênior, Universidade Metropolitana, Copenhague, Dinamarca

Resumo: Durante décadas, tem sido relatado o crescente e preocupante excesso de intervenções médicas durante o parto, mesmo em partos fisiológicos e sem complicações, juntamente com um aumento preocupante de práticas abusivas e desrespeitosas contra mulheres durante o parto em todo o mundo. Apesar das pesquisa e das políticas públicas que tratam destes problemas, mudar as práticas do parto provou-se uma tarefa difícil. Defendemos que as taxas excessivas de intervenções médicas e o desrespeito às mulheres durante o parto devem ser analisados como uma consequência da violência estrutural e que o conceito de violência obstétrica, tal como vem sendo utilizado no ativismo latino-americano e em documentos jurídicos, pode ser uma ferramenta útil para lidar com a violência estrutural na assistência à saúde materna, representada pelas altas taxas de intervenção, por tratamentos não consentidos, pelo desrespeito e por outras práticas abusivas.

Palavras-chave: direitos humanos no parto, práticas não baseadas em evidências, medicalização, violência contra as mulheres, violência estrutural.

IntroduçãoDesde 1985, a Organização Mundial de Saúde (OMS) expressa preocupações sobre a medicaliza-ção excessiva do parto, quando recomendou o uso apropriado de tecnologias para o parto, pressio-nando gestores e profissionais de saúde a revisar protocolos e investigar continuamente a relevân-cia de certas práticas, para promover o respeito à autonomia e à perspectiva das mulheres nas suas avaliações1. Mesmo assim, desde então, as taxas de intervenções obstétricas não justificadas me-dicamente aumentaram em países pobres e em desenvolvimento sem que se observasse melho-rias dramáticas na morbimortalidade perinatal e materna. Além do mais, há uma preocupação crescente sobre os efeitos iatrogênicos das inter-venções obstétricas em mulheres que não têm necessidades clínicas, o que coloca fortemente o parto “normal” na agenda do século 212.

Tem sido sugerido que intervenções desneces-sárias podem ser reduzidas por meio de escla-recimento e adesão ao princípio básico legal do consentimento informado3, que inclui o direito de recusar intervenções médicas4. O princípio de con-sentimento informado não é novo, há documentos de tribunais dos Estados Unidos datados do século 19 que defendem o direito de cada pessoa, parti-cularmente as mulheres, de ter sua dignidade res-peitada, e o contato corporal ilegal de uma pessoa estranha deveria ser considerado um ataque ou invasão5. Mais recentemente, a Organização Edu-cacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (UNESCO), por meio de sua Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, reconheceu que “a saúde não depende somente dos desenvolvimen-tos científicos e tecnológicos, mas também de fato-res psicossociais e culturais.” Além disso, também destaca que a autonomia e o direito de se tomar decisões devem ser respeitados3.

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É necessário, no entanto, reconhecer as falhas na premissa de que as mulheres compreendem plenamente suas opções e estão sempre aptas a tomar decisões livres e adequadas sobre a nature-za da assistência à saúde. Esta questão foi levanta-da fortemente em 1993, com o relatório Mudando o Parto, que demandava uma assistência centrada nas mulheres, destacando a importância da deci-são durante o parto6. Outros relatórios continua-ram a destacar que as mulheres deveriam ser o foco da assistência à maternidade, por serem aptas a tomar decisões baseadas nas suas neces-sidades, se discutirem claramente com a equipe profissional sobre as possibilidades assistenciais2. Mas em todo o mundo, as mulheres continuam sendo excluídas da participação no planejamento e avaliação da assistência à saúde. Apesar de se-rem convidadas para desenvolver planos de parto e exercitar a autonomia, o leque de escolhas apre-sentado às mulheres pelos médicos é limitado7,8. Além disso, os serviços de saúde disponíveis nem sempre oferecem assistência apropriada e basea-da em evidências.

Essas limitações parecem particularmente evi-dentes nos países em que a legislação não permite que profissionais de saúde ofereçam serviços de parto domiciliar ou o funcionamento de casas de parto lideradas por parteiras. Mas mesmo nos contextos em que o parto fora do hospital não é ilegal, planejar e realizar um parto pode ser uma tarefa desafiante para as famílias e os profissio-nais. Na prática, as evidências do uso excessivo de intervenções médicas, enquanto intervenções es-truturais e sociais são raramente usadas, têm um impacto limitado9.

Práticas não baseadas em evidência Em muitos países, mesmo nos mais desenvolvi-dos, nem sempre as melhores evidências são uti-lizadas para informar sobre a assistência à saúde materna; a prática é muito mais influenciada por crenças locais sobre o parto e pelas culturas profis-sionais ou organizacionais. Isto é particularmente visível quando se compara as variações nas taxas de intervenção entre países e mesmo entre insti-tuições e profissionais de saúde no mesmo país. Para exemplificar, podemos olhar para as duas intervenções mais comuns no parto, que são ci-rúrgicas e frequentemente usadas em mulheres saudáveis sem nenhuma ou quase nenhuma justi-ficativa: episiotomia e parto cesáreo.

O uso restrito da episiotomia é associado a re-sultados melhores quando comparado ao uso ro-

tineiro.(10) Ainda assim, as taxas de episiotomia variam imensamente nos hospitais europeus, com taxas indo de 70% no Chipre, Polônia e Portugal, a 43-58% na Valônia, em Flandres, na República Tcheca e Espanha, a 16%-36% no País de Gales, Escócia, Finlândia, Estônia, França, Suíça, Alema-nha, Malta, Eslovênia, Luxemburgo, Bruxelas, Le-tônia e Inglaterra11. Em 2010, as taxas mais baixas de episiotomia estavam na Dinamarca (4,9%), Su-écia (6,6%) e Islândia (7,2%)11. No entanto, em al-guns países, as primíparas recebiam episiotomias de rotina11, apesar da ausência de evidências para apoiar esta prática10. Um estudo descritivo anali-sou dados de 122 hospitais em 16 países latino--americanos entre 1995 e 1998 e revelou que 87% dos hospitais apresentavam taxas de episiotomia mais altas que 80% e 66% tinham taxas mais al-tas que 90%12. Um estudo no México realizado em 2005-2006 relatou taxas de episiotomia de 84%13.

O recurso desnecessário ao parto cesáreo tam-bém é bem documentado. A Organização Mundial de Saúde (OMS) confirma que taxas de partos ce-sáreos mais altas que 10% não estão associadas a menos morte materna e neonatal14. Entretanto, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) os países nórdicos (Islândia, Finlândia, Suécia e Noruega), Israel e Holanda tiveram as menores taxas de partos cesáreos em 2013, indo de 15% a 16,5% de todos os nascidos vivos; enquanto a Turquia, o México e o Chile tiveram as mais altas, com ta-xas que iam de 45% a 50%15. A América Latina é a região com a maior concentração das maiores taxas de partos cesáreos, com muitos países com taxas acima de 40%15. O Brasil lidera esta tendên-cia com taxa de 54%16.

Se a grande variação nas taxas de parto cesáreo entre países levanta questões sobre a adequação das intervenções nem sempre clinicamente justi-ficáveis, as diferenças nas taxas regionais e hospi-talares em um mesmo país podem ser ainda mais alarmantes15. No Canadá, Finlândia, Alemanha e Suíça, as taxas de partos cesáreos variam até duas vezes de região para região, mais de três vezes dentro da Espanha e seis vezes em diferentes re-giões da Itália17.

Em todo o mundo, as taxas de parto cesáreo tendem a ser mais altas no setor privado e entre mulheres em melhor situação econômica. No Chi-le, em 2012, as taxas de parto cesáreo foram de 39% na rede pública e de 72% na rede privada, com grandes variações dentro das duas redes18. Mais interessante ainda é que se a mulher contra-

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tar uma equipe de obstetras e parteiras que tam-bém atuam em hospitais públicos para acessar a assistência privada ela irá triplicar sua chance de passar por um parto cesáreo19.

As variações nas taxas de partos cesáreos são ligadas a fatores de oferta e procura17 e, de for-ma mais direta, a fatores econômicos. De acordo com um artigo do The Economist, publicado em 2015, o aumento global de partos cesáreos não é provocado por necessidade médica, mas pelo crescimento da prosperidade e pelos incentivos financeiros perversos recebidos pelos médicos20. A preocupação com indenizações por má condu-ta é um dos principais fatores não médicos que influencia as intervenções excessivas8,15. Mesmo quando as mulheres optam pelo parto cesáreo, deve-se questionar sobre a qualidade da infor-mação que receberam, reconhecendo que, em muitos países, apenas uma minoria das mulheres prefere o parto cesáreo21.

Desrespeito e abuso durante o partoAs preocupações sobre as intervenções não

baseadas em evidência são um dos motivos pelo qual cresce a atenção e o debate internacional so-bre o problema do desrespeito e do abuso durante o parto. Nos últimos anos, houve várias tentativas de estruturar o debate sobre o assunto. Em 2010, Bowser e Hill propuseram sete categorias para agrupar o desrespeito durante o parto: abuso fí-sico, procedimentos não consentidos, assistência não confidencial, assistência indigna, discrimina-ção baseada nos atributos do paciente, abandono da assistência e detenção nas unidades de saúde22. Freedman e colegas argumentam que essas cate-gorias requerem uma melhor definição em termos das características da conduta dos profissionais de saúde, das condições das unidades de saúde e de outros fatores desrespeitosos e abusivos23. Eles propõem um modelo para avaliar as intera-ções em nível individual, estrutural e das políticas voltadas para o problema e definem o desrespeito e abuso no parto como “Interações ou condições das instituições que o consenso local consideram humilhantes ou indignas e aquelas interações ou condições que são vivenciadas ou têm o intuito de serem humilhantes ou indignas”, reconhecendo as articulações com as dinâmicas sociais mais amplas de desigualdade e desequilíbrio de poder entre os grupos23.

Em 2014, como parte desse debate, a Organiza-ção Mundial de Saúde emitiu uma declaração po-derosa sobre Prevenção e Eliminação do Desrespeito

e do Abuso durante o Parto em Unidades de Saúdes, na qual foi destacado o direito à assistência à saú-de respeitosa e digna para todas as mulheres24. A revisão sistemática realizada por Bohren e colegas sobre os maus tratos às mulheres durante o parto apresenta uma nova tipologia organizada em sete temas: abuso físico, abuso sexual, abuso verbal, estigma e discriminação, padrões não profissio-nais de assistência, relação difícil entre mulheres e profissionais e condições e restrições do sistema de saúde25. Os autores discorrem sobre os modos de ocorrência dos maus-tratos no nível das inte-rações entre a mulher e o profissional e por meio das falhas sistêmicas no nível das instituições e do sistema de saúde25.

Jewkes e Penn-Kekana defendem que é possível extrair claros paralelos entre os maus-tratos du-rante o parto e a violência contra mulheres (mais ampla) a partir da revisão de Bohren e colegas, destacando que a “característica essencial da vio-lência contra as mulheres é que ela se origina da desigualdade estrutural de gênero.”26 Um editorial recente da Revista Científica de Ginecologia e Obs-tetrícia, intitulado A agenda inconclusa finalizada da saúde reprodutiva das mulheres27, afirma que:

“Com a melhora dos indicadores clínicos de saúde materna, começamos a focar mais na qualidade da assistência e isso levantou uma questão relaciona-da ao gênero, que é o desrespeito e o abuso que as mulheres em trabalho de parto sofrem nas mãos de profissionais de saúde de ambos os sexos.”

Na verdade, a questão de gênero é central na conceituação da violência obstétrica. Embora o termo tenha sido utilizado como um sinônimo para desrespeito, abuso e maus-tratos durante o parto, nós defendemos que a violência obstétrica tem potencial para lidar com as dimensões estru-turais de violência presentes nas múltiplas formas de desrespeito e abuso.

A violência obstétrica como violência contra as mulheresApesar de mencionada em documentos do sécu-lo 1928, só recentemente o conceito de violência obstétrica ganhou popularidade entre ativistas de movimentos de parto na América Latina. O Bra-sil foi pioneiro nos debates, com a fundação da Rede de Humanização do Nascimento e do Parto (ReHuNa), em 1993, que reconheceu as circuns-tâncias da violência e abuso em que a assistência é realizada29. Um evento que marcou a região foi a I Conferência para a Humanização do Parto, rea-

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lizada no Brasil em 2000, na qual um coeso grupo de ativistas, pesquisadoras e profissionais de saú-de latino-americanas se reuniram em resposta às altas taxas de intervenções no parto e ao reconhe-cimento crescente de abusos contra mulheres em trabalho de parto. A RELACAHUPAN (Rede Latino--Americana e Caribenha pela Humanização do Parto e Nascimento) foi fundada neste encontro, liderando o debate na região sobre os direitos das mulheres durante o parto30.

Em 2007, a Venezuela se tornou o primeiro país a definir formalmente o conceito de violên-cia obstétrica por meio da Lei Orgânica sobre o Di-reito das Mulheres a uma Vida Livre de Violência31, em que a violência obstétrica é codificada como uma das 19 formas puníveis de violência contra as mulheres. No artigo 15, a violência obstétrica é descrita como:

“A apropriação do corpo das mulheres e de seus processos reprodutivos por profissionais de saúde, expressa pelo tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos natu-rais, resultando em perda de autonomia e da ha-bilidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando de maneira negativa sua qualidade de vida.”

Além disso, o artigo 51 especifica os atos que constituem a violência obstétrica: atenção inopor-tuna e ineficaz a emergências obstétricas; forçar a mulher a parir em posição supina quando estão disponíveis os meios para o parto na vertical; im-pedir o contato imediato da criança com a mãe sem justificativa médica; alterar o processo natu-ral de trabalho de parto e o parto de baixo ris-co por meio de técnicas de aceleração e realizar partos cesáreos quando o parto natural é possível, sem obter o consenso voluntário, expresso e infor-mado da mulher31.

O conceito de violência obstétrica foi promovi-do por grupos da sociedade civil em toda a região. A Argentina32 e alguns estados no México33 tam-bém enquadraram a violência obstétrica nas legis-lações mais amplas relacionadas a desigualdades de gênero e violência, destacando a posição desi-gual das mulheres - e das mulheres grávidas em particular - no sistema de saúde e na sociedade. Desde 2014, foram criados Observatórios de Vio-lência Obstétrica liderados por grupos da socieda-de civil no Chile, Espanha, Argentina, Colômbia e França e em março de 2016 foi divulgada uma de-claração comum defendendo que a violência obs-tétrica é uma das formas invisíveis e naturalizadas

de violência contra mulheres e constitui uma gra-ve violação de direitos humanos34. Essa institucio-nalização do conceito é um reconhecimento das críticas à medicalização da assistência ao parto e da violação dos direitos sexuais e reprodutivos35.

A definição da violência obstétrica, apesar do foco no tratamento desumanizado, destaca sua dimensão obstétrica, desde as origens desta espe-cialidade médica até a educação contemporânea e suas estruturas de poder36,37. Ela enquadra a dis-cussão sobre abuso e desrespeito no campo mais amplo das desigualdades estruturais e da violên-cia contra as mulheres.

Tornando visível a violência estruturalÉ de extrema importância analisar a violência obs-tétrica de forma separada de outras formas de vio-lência médica, reconhecendo as diferenças entre os maus-tratos às mulheres no parto e os maus--tratos gerais a pacientes. A violência obstétrica conta com características particulares que exigem uma análise distinta: é uma questão feminista, um caso de violência de gênero; em geral, mulhe-res parindo estão saudáveis e não doentes; o par-to e o nascimento podem ser interpretados como eventos sexuais, com a violência obstétrica sendo frequentemente vivenciada e interpretada como estupro38. A biomedicina é um sistema social e cultural, uma construção histórica complexa com um conjunto consistente de crenças, regras e prá-ticas internas39, que respondem a e reproduzem ideologias de gênero entre profissionais de saúde, o sistema jurídico e o Estado. No entanto, a cultura biomédica tem sido subestimada. O poder da bio-medicina está no cotidiano dos sistemas de saúde, mas não é nomeado e sua hegemonia parece apa-gar a necessidade de relatar sua existência.

Esses mecanismos discretos podem ser analisa-dos como formas de violência estrutural, manifes-tações invisíveis de violência que são inseridas na fábrica da sociedade, produzindo e reproduzin-do desigualdades sociais entre grupos40. De fato, a violência obstétrica foi colocada nas agendas feministas e das política públicas, mas tem sido ignorada por profissionais e pelas instituições29. Mantendo em mente os já mencionados limites do consentimento informado e o fato de que, em geral, as mulheres não têm escolha senão se submeter ao poder dos profissionais7, as formas explícitas e propositais de violência e maus-tra-tos nas maternidades devem ser debatidas em seus contextos. Centrar o debate nas práticas danosas individuais pode gerar uma hostilidade

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improdutiva à discussão sobre o desrespeito e o abuso no parto, especialmente entre profissionais de saúde, e é por essa razão que Jewkes e Penn--Kekana defendem que se deve evitar “culpar os profissionais de saúde como grupo.”26 Um dos mo-tivos pelo qual o termo violência obstétrica não é mais disseminado é porque os profissionais de saúde resistem a utilizar o conceito de violência, que vai de encontro ao seu ethos. Como explica-do por Diniz e colegas, isso levou a ReHuNa, no Brasil, a não debater abertamente sobre a vio-lência durante os anos 1990, preferindo usar ter-mos como “humanização do parto” e “promoção dos direitos humanos das mulheres.” Entretanto, as mesmas autoras reconhecem que ocorreram mudanças significativas depois que o debate foi enquadrado como uma questão de violência e violação de direitos humanos29.

Isso reforça a necessidade de uma análise mais ampla, centrada nas dimensões culturais e sociais do fenômeno da violência obstétrica, que permi-ta a mudança do foco limitado nas vítimas (mu-lheres) e vitimizadores (profissionais de saúde), para o reconhecimento da ubíqua socialização de homens e mulheres em formas de violência e dinâmicas de poder naturalizadas e, portanto, in-visíveis, entre grupos. As estruturas de poder em-butidas e reproduzidas pela biomedicina devem ser visibilizadas. O currículo oculto da formação e da prática de profissionais de saúde, no qual a aceitação de normas, a disciplina corporativa e a punição desempenham um papel central41-43, en-quanto as dimensões emocionais da assistência são ignoradas44, deve ser incluído na agenda inter-nacional sobre violência obstétrica. As condições precárias de trabalho de muitos profissionais de saúde devem ser enquadradas como formas de desrespeito e abuso, assim como as consequên-cias de serem socializados dentro da - e levados a exercitar a - violência. A evidência demonstra que os profissionais de saúde expostos à violência no parto podem sofrer estresse traumático secundá-rio ou fadiga por compaixão, compreendida como uma exposição secundária a fatores traumáticos extremos similares aos vivenciados por pacientes com exposição primária45.

As contribuições das ciências sociaisOs cientistas sociais produziram um corpo de pesquisa considerável sobre a gestão médica do parto como reflexo das assimetrias de gênero e como um processo em que os corpos femininos são objetificados. No nascer da obstetrícia, a pro-

fissão médica masculina considerava a fisionomia e fisiologia masculina como a norma, o que pro-duziu repercussões específicas no estabelecimento desta especialidade médica, na profissionalização de parteiras36,46,47, e na saúde da mulher48, 49. Como consequência, o corpo feminino e seus processos naturais foram - e continuam sendo - retratados como anormalidades, doenças ou desvios. Os dis-cursos profissionais e leigos que se referem ao diagnóstico da gravidez, aos sintomas da gravidez e ao retorno à normalidade da mulher grávida após o parto são algumas das muitas característi-cas discretas da normalização masculina46.

Essas perspectivas filosóficas e sociais posicio-naram o parto medicalizado no escopo da vio-lência objetiva e sistemática. Foucault descreve a emergência do controle do parto por instituições normalizantes, como a igreja, o estado e, depois, a medicina, e como o corpo feminino foi primei-ro objetificado e estudado por suas diferenças e desvios da norma masculina43,50. Hoje, a violência obstétrica pode de fato ser vista como um reflexo de como os corpos femininos no trabalho de par-to são percebidos como potencialmente opostos à feminilidade - a violência é portanto necessá-ria para dominar esses corpos, restabelecendo a sua submissão e passividade feminina “inerente”. Torna-se uma ferramenta para disciplinar o cor-po indisciplinado em trabalho de parto, para que se re-feminize e re-objetifique o corpo38. De fato, apesar das referências comuns à assistência e fe-minilidade, o parto no hospital é frequentemente representado por meio de uma cadeia de forças patriarcais - os participantes tentam assistir e con-trolar as mulheres em trabalho de parto e o hos-pital tenta controlar os dois membros do casal51.

A dominação simbólica masculina e a submis-são simbólica feminina podem ser performadas não apenas por meio da força, mas também, e principalmente, por meio destes mecanismos dis-cretos, completamente naturalizados dentro da ordem normal das coisas52. Embora inseridos na sociedade, eles são reproduzidos laboriosamente na vida diária. Seguindo os argumentos de Bour-dieu, a violência obstétrica deve ser abordada como mais do que um mero ato de maus-tratos - ela é cercada de significados simbólicos social-mente construídos52. Ela pode pressupor o con-senso tanto do dominante quanto do dominado, dentro de uma relação social onde o conhecimen-to compartilhado entre todos os atores permite o enquadramento da violência como se fosse uma parte natural, esperada e aceitável da vida. Neste

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contexto, a violência não é apenas aceitável, mas é também reproduzida e reforçada por todos os ato-res envolvidos: mulheres, famílias, profissionais e gestores. Enquanto tal, a violência obstétrica pode ser impressionantemente funcional, reforçando uma narrativa de gênero enviesada na assistência à saúde sexual e reprodutiva e estruturando a as-sistência à saúde materna.

As pesquisas, as diretrizes e políticas públicas, a educação profissional e acadêmica e os movi-mentos sociais não lidam com as dimensões es-truturais, mas tão somente com os sintomas que se expressam nos níveis micro e meso e não com as causas destas formas de violência40. A violência obstétrica é um conceito útil que pode nos ajudar a compreender melhor as causas no nível macro e tem o potencial de reinterpretar o problema do excesso de intervenções, da assistência não con-sentida e das práticas abusivas e para desencade-ar novas demandas por ação. Como suas origens estão em movimentos de base, o conceito deve estar no centro das discussões porque representa as vozes das mulheres. Há, no entanto, a necessi-dade de desenvolver uma definição mais precisa do conceito para posicionar a adequação do corpo das mulheres e dos processos reprodutivos, como definido na lei venezuelana31, nos sistemas, mais do que nos profissionais de saúde, destacando que este é um fenômeno que é inerente às dimensões estruturais da assistência à saúde.

ConclusãoIr além do foco nas dimensões do desrespeito e do abuso no parto dá espaço para uma perspecti-va integrada sobre esta questão global. O diálogo dinâmico entre a saúde e as ciências sociais, mobi-lizando o conhecimento existente sobre as dimen-sões estruturais da violência obstétrica e reconhe-cendo esse fenômeno como uma forma particular de violência contra as mulheres, naturalizada den-tro dos sistemas de saúde, pode estabelecer as ba-ses para melhorias estruturais na assistência à ma-ternidade. Enquanto tal, o conceito de violência obstétrica pode ser usado como uma ferramenta para reinterpretar a agenda internacional sobre o desrespeito e o abuso no parto e para contribuir para a mudança na assistência à maternidade em todo o mundo.

Recomendações para açãoA violência obstétrica é um fenômeno complexo e multifacetado que requer uma abordagem mul-tidimensional e contribuições de diferentes dis-

ciplinas. Para avançar no debate e provocar mu-dança, é vital que haja iniciativas internacionais e nacionais para lidar com a violência estrutural no parto.

No nível legislativo e econômico cada país pre-cisa desenvolver legislação relevante para levar organizações a tratar da violência obstétrica, in-cluindo a falácia da escolha e do consentimento informado e a assistência não baseada em evi-dência. De forma mais específica, os incentivos financeiros perversos precisam ser combatidos. Os obstáculos legais para o acesso a serviços de assistência à saúde materna, incluindo os servi-ços fora do hospital, devem ser identificados e combatidos. Além disso, deve-se tratar da lacu-na entre barreiras percebidas e barreiras legais. A identificação de iniciativas bem sucedidas que trataram da violência obstétrica e causaram mudanças duradouras pode ajudar a identificar as melhores práticas e nos dar um guia sobre ou-tros serviços de saúde materna e países a serem seguidos.

No nível organizacional sugerimos o envol-vimento obrigatório de grupos de mulheres e membros de movimentos da sociedade civil nas decisões sobre a assistência à maternidade, des-de o desenho e o planejamento até a oferta e a avaliação da assistência. Isso pode ser alcançado por meio da introdução de legislação e monitora-mento similares à Participação Pública e Pessoal (PPP) na Assistência à Saúde, implementada no Reino Unido53 e em outros países da UE. Se os ser-viços de assistência à maternidade estão de fato comprometidos e envolvem as mulheres e suas famílias nos processos de decisão, é importante explorar sua compreensão e experiências de vio-lência obstétrica.

As autoridades de saúde devem garantir que todas as mulheres tenham acesso à informação imparcial e baseada em evidência sobre interven-ções de saúde. Informações orais e publicadas de-vem ser regularmente avaliadas. Sugerimos ainda a implementação de sistemas de denúncias que permitam que mulheres e profissionais de saúde possam denunciar a violência obstétrica e avaliar o leque completo de intervenções médicas duran-te o parto. As maternidades devem ser supervisio-nadas e certificadas quando alcançam os padrões apropriados de assistência, tal como proposto pelas Diretrizes FIGO de 2015 para Maternidades Acolhedoras para a Mãe e o Bebê54.

No nível educacional, os princípios de direitos humanos no parto e o debate sobre violência

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obstétrica e o seu impacto sobre profissionais, mães, bebês e suas famílias devem ser incluídos no currículo em todas as instituições educacio-nais relevantes (jurídicas, médicas, obstétricas, de enfermagem e outras), destacando as dimensões relacionadas a gênero29. Esse é um passo necessá-rio porque muitos aspectos da violência obstétrica não são questionados, são tomados como certos e são naturalizados.

Por fim, no nível da pesquisa identificamos uma necessidade de pesquisas robustas, interdis-ciplinares e multicêntricas, que auxiliem gestores, profissionais de saúde, mulheres e famílias que acessam os serviços a melhor entender, definir e desafiar este fenômeno.

AgradecimentosEste artigo é baseado no trabalho da Ação COST IS1405 NASCIMENTO: “Desenvolvendo Pesquisa In-traparto por meio da Saúde - uma abordagem inter-disciplinar do sistema para entender e contextuali-zar o trabalho de parto fisiológico e o nascimento” (http://www.cost.eu/COST_Actions/isch/IS1405), financiado pela Bolsa COST número CGA-IS1405-3 (Cooperação Europeia em Ciência e Tecnologia). A participação do MS e GLR na AÇÃO COST IS1405 NASCIMENTO foi apoiada pelo FONIS SA13120259 (Fundo Nacional para Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde: Ministério da Saúde e Comissão Nacio-nal para a Pesquisa Científica e Tecnológica, Chile): “Percepções e práticas sobre o parto cesáreo na saú-de privada e pública no Chile.”

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RésuméCes dernières décennies, un excès croissant et préoccupant d’interventions médicales pendant l’accouchement, même dans des naissances physiologiques et sans complications, parallèlement à une multiplication de pratiques violentes et irrespectueuses à l’égard des femmes pendant l’accouchement, a été rapporté de par le monde. En dépit de recherches et de décisions politiques pour corriger ces problèmes, il s’est révélé difficile de changer les pratiques obstétricales. Nous avançons que le taux excessif d’interventions médicales et le manque de respect à l’égard des parturientes devraient être analysés comme conséquence de la violence structurelle et que le concept de violence obstétricale, tel qu’il est utilisé dans l’activisme latino-américain de l’accouchement et dans les documents juridiques, peut être un outil précieux pour s’attaquer à la violence structurelle dans les soins maternels, comme les taux élevés d’intervention, les soins non consentis, le manque de respect et d’autres abus.

ResumenDurante décadas recientes, se ha reportado un creciente y preocupante exceso de intervenciones médicas durante el parto, incluso en partos fisiológicos sin complicaciones, junto con un preocupante aumento de prácticas abusivas e irrespetuosas hacia las mujeres durante el parto en todo el mundo. A pesar de investigaciones y políticas formuladas para tratar estos problemas, ha resultado difícil cambiar las prácticas relacionadas con el parto. Argumentamos que las tasas excesivas de intervenciones médicas y la falta de respeto hacia las mujeres durante el parto deben analizarse como una consecuencia de la violencia estructural, y que el concepto de violencia obstétrica, tal como se utiliza en el activismo relacionado con el parto y en documentos jurídicos en Latinoamérica, podría ser una herramienta útil para abordar la violencia estructural en la atención materna, tales como altas tasas de intervención, cuidados sin consentimiento, falta de respeto y otras prácticas abusivas.

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IntroduçãoEm todo o mundo, a violência e o abuso são recorren-tes na vida de meninas e mulheres, produzindo

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.04.001

Serviços de atenção a vítimas de violência* devem ser integrados à assistência ao aborto? Uma análise da situação no Reino Unido

Loveday Penn Kekanaa, Megan Hallb, Silvia Mottac, Susan Bewleyd a Professora, Faculdade de Epidemiologia e Saúde da População, London School of Hygiene and Tropical Medicine, Londres,

Reino Unidob Médico fundador, c/o Centro Acadêmico de Saúde da Mulher, King’s College London, Londres, Reino Unidoc Parteira, Departamento de Saúde da Mulher, Fundo Fiduciário do NHS Guy’s and St Thomas’, Londres, Reino Unidod Professora de Saúde da Mulher, Centro Acadêmico de Saúde da Mulher, King’s College London, Londres, Reino Unido.

Contato: [email protected]

Resumo: Em todo o mundo, a prevalência de violência contra mulheres levanta a questão da conveniência e viabilidade dos serviços integrados de assistência ao aborto e a vítimas de violência interpessoal (VIP). Ao examinar o contexto dos serviços em um bairro central de Londres, a análise de situação aqui apresentada explora a hipótese de que um serviço integrado de saúde já estabelecido (que inclua conscientização e capacitação da equipe para investigação e referenciamento da VIP para serviços especializados locais) pode ser transferido para os serviços de assistência ao aborto. A análise baseou-se em quatro fontes de dados qualitativos para investigar opiniões sobre os serviços integrados: entrevistas em profundidade com informantes chaves, como profissionais de saúde dos serviços de assistência ao aborto e à VIP, gestores e sobreviventes de VIP com experiência anterior em serviço de assistência ao aborto (três usuárias, 15 profissionais); análise qualitativa das questões abertas de um levantamento sobre usuárias atuais de serviços de assistência ao aborto com ou sem experiência de VIP; registros de uma oficina interativa e de observações de campo. Foi consenso entre todos os informantes que as necessidades das mulheres que enfrentam a VIP e buscam serviços de assistência ao aborto não são identificadas ou tratadas, mas o mesmo não se deu com o tema da organização das intervenções para lidar com essas necessidades, permanecendo em aberto, portanto, questões sobre se, quando e como levantar o tópico de VIP e o que oferecer. Dois grandes receios surgiram: a preocupação prática de interromper os serviços simplificados de aborto, adequados para a maioria da equipe e das pacientes, e uma questão conceitual sobre o risco de estigmatização das mulheres que buscam o aborto como ‘vítimas em crise’. Nossos resultados indicam que: quando se integra a VIP aos serviços de assistência ao aborto, deve-se considerar o contexto local, a integridade dos formatos assistenciais específicos e a segurança e o agenciamento das mulheres, especialmente quando o direito ao aborto está sob ataque. Novas abordagens são necessárias e devem ser pesquisadas.

Palavras-chave: violência contra as mulheres, violência interpessoal, violência doméstica, violência sexual, profissionais de saúde e serviços de assistência ao aborto, questionário, entrevistas, análise de situação, Reino Unido

* Durante este projeto, a linguagem e a terminologia sofreram mudanças nos níveis locais, nacionais e internacional. Visto que o aborto afeta apenas meninas e mulheres, os termos VCMM (violência contra mulheres e meninas), e VG (violência de gênero) foram evitados, preferindo-se o termo mais genérico ‘violência interpessoal (VIP)’, para incluir a violência sexual e doméstica e outras formas de violência que façam intersecção com o aborto (como o tráfico de pessoas ou violência motivada pela ‘honra’). Outros termos são usados tal como definidos por serviços, políticas ou artigos específicos.

impactos sobre a saúde e implicações financeiras e para a justiça1,2,3,4. A violência interpessoal (VIP) é cada vez mais reconhecida como uma causa importante de morbimortalidade evitável.5,6,7,8 No debate internacional, algumas autoridades recomendaram a triagem de todas as mulhe-res em idade reprodutiva para detectar a VIP, já que os serviços de saúde sexual e reprodutiva se constituem em um ambiente oportuno para in-tervenções multissetoriais.9,10,11 Há quem discorde dessa abordagem pela ausência de evidências de benefícios para as mulheres,2,12,13, apesar de se re-comendar a capacitação de profissionais de saúde

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para que fiquem alertas aos sinais,2 para a oferta de ambientes seguros para a revelação e para a articulação a saúde e a assistência social.12 Inter-venções voltadas para a VIP no setor de saúde, portanto, ainda estão engatinhando.14,15

Uma revisão sistemática recente identificou uma alta prevalência de VIP em mulheres que buscam o aborto e uma associação com abortos múltiplos.16 A metanálise identificou em mulheres se submetendo a um aborto taxas mundiais de VIP no ano anterior que iam de 2,5% a 30%. A preva-lência de VIP durante a vida foi de 24,9% (95% CI, 19,9%-30,6%).16 Também é alta a taxa de aborto em decorrência do estupro.17 Há muito já se re-conhece que um dos motivos mais citados para buscar o aborto são os ‘problemas no relaciona-mento’,(18) há muito poucos estudos sobre a rela-ção entre aborto e VIP. Não há artigos publicados sobre programas de assistência à VIP integrados a serviços de assistência ao aborto. Embora não sejam generalizáveis, porque dependem de con-textos específicos, estudos sobre a revelação da VIP ou intervenções articuladas a serviços de assis-tência ao aborto descritos em detalhe na revisão acima mencionada indicam que: pode haver acei-tabilidade dos formulários de VIP nos serviços de assistência ao aborto;19 pode ser que as mulheres que não respondem aos formulários tenham se submetido a mais abortos;20 durante um período de triagem universal apenas metade das mulhe-res foi perguntada sobre VIP;21 algumas mulheres relataram eventos que se encaixavam nas defini-ções de VIP embora não os caracterizassem como VIP;22 muitas mulheres gostariam de falar sobre ações voltadas para a VIP,23 e algumas delas men-cionaram que os médicos são sua principal fonte de informação;24 aparentemente, mulheres em relacionamentos violentos são mais propensas a seguir o acompanhamento nos serviços 23 e a co-nhecer outros recursos existentes na comunida-de.24 Em geral, a análise da situação anterior ao aborto trata mais da oferta de aborto seguro e da qualidade da assistência do que da intersecção com a VIP.25,26,27

Permanece em aberto, portanto, a aceitação da VIP como algo correto para os serviços de assistência ao aborto e o tipo de apoio e capacitação necessá-rios para os profissionais de saúde. No Reino Unido, não há uma política de triagem de VIP. Ainda que os serviços de saúde e de assistência social, assim como as organizações com que trabalham, devam respon-der efetivamente ao problema, não há evidências de acordo quanto aos benefícios da triagem.12

O intuito deste estudo foi explorar a conveniên-cia e a viabilidade de oferecer a atenção à VIP em serviços de assistência ao aborto em dois bairros de Londres. Uma maternidade da vizinhança ofe-recia um serviço integrado de assistência à VIP que envolvia conscientização, capacitação das equipes para investigação de rotina da VIP e encaminha-mento para um serviço comunitário de assistên-cia à VIP na mesma área. Há pôsteres e panfletos disponíveis na unidade. Na primeira consulta do pré-natal, há um momento confidencial com as mulheres grávidas, em que se faz uma pergunta de rotina, que é ‘assinalada’ no prontuário como se tivesse sido perguntada de forma codificada. Também são feitas perguntas que aproveitam as oportunidades colocadas por cada caso e estas geram cerca de metade das revelações. O enca-minhamento é realizado então para um serviço local de assistência à VIP. O serviço de assistência à VIP tem sido avaliado14 e fiscalizado regularmente. Nossa hipótese de estudo foi de que o modelo de um serviço integrado a uma maternidade pode ser transferido para um serviço de assistência ao aborto.

Estrutura do estudoO estudo foi conduzido em 2012 em uma área central, multiétnica e carente de Londres, Reino Unido, onde existe o Serviço Nacional de Saúde (NHS, sigla em inglês), financiado pelos contri-buintes. O aborto é legal na Inglaterra, no País de Gales e na Escócia desde a Lei de Aborto de 1967, emendada pela Lei de Fertilização e Embriologia de 1990. A lei requer que dois médicos reconhe-çam em boa fé a existência de um dos cinco per-missivos legais para garantir que o aborto seja realizado em um local credenciado, a menos que seja uma emergência. Nacionalmente, o aborto é oferecido gratuitamente se a mulher residir no Reino Unido e tiver direito à assistência do NHS. Instituições conveniadas ao NHS oferecem servi-ços complementares junto com o próprio aborto (como, por exemplo, aconselhamento pré-aborto ou contracepção pós-aborto).

Nos dois bairros do estudo, com exceção dos casos clinicamente complicados (doença cardíaca da mulher e diagnóstico tardio de anomalia fetal, por exemplo), o aborto é oferecido por dois servi-ços conveniados, administrados por organizações não governamentais sem fins lucrativos (assim, no total, há três serviços de assistência ao aborto). Os dois serviços são contratados pelo NHS para ofere-cer contracepção e aborto para mulheres de todo o Reino Unido e Irlanda.

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No Reino Unido, os serviços de assistência à VIP consistem em iniciativas de políticas públicas, da justiça criminal, de governos locais e organiza-ções não governamentais. Não há triagem formal de vítimas de VIP nos serviços de saúde, porque não há evidências de seus benefícios, embora se reconheça a necessidade de resposta dos servi-ços de saúde à VIP.12 O treinamento de profis-sionais de saúde para tratar da VIP é limitado e nenhuma clínica de aborto oferece serviços espe-cializados de assistência à VIP. No nível central, há o compromisso de se falar sobre a violência contra meninas e mulheres em todo o país 28,29 e em Londres fala-se muito sobre a necessidade de serviços governamentais multissetoriais e co-laborativos. O governo local, nas áreas do estu-do, assumiu o compromisso de oferecer serviços para mulheres que são sujeitas à violência,31,32 e há iniciativas de assistência a vítimas de VIP nas unidades de saúde locais. Há aconselhamento sobre VIP em lojas de conveniência e nas uni-dades básicas de saúde e em um dos hospitais--escola (na maternidade,14 no departamento de medicina geniturinária e na ala de acidentes e emergências). No outro hospital da região, há um Centro de Referência para Abuso Sexual, codirigi-do pela polícia e pelo sistema de saúde. No nosso estudo sobre mulheres que acessaram os serviços de assistência ao aborto nesses bairros, a preva-lência de VIP no momento da pesquisa (2012) foi de 4%, no ano anterior à pesquisa foi de 11% e ao longo da vida foi de 16%.33

MétodosEste artigo analisa os dados qualitativos de um projeto maior de pesquisa (Aborto em Contexto) que reuniu três estudos principais: uma revisão sistemática e uma metanálise das associações en-tre VIP e aborto;16 uma enquete confidencial para avaliar a prevalência de VIP em uma clínica local de aborto;33 e uma análise de situação.

Foram quatro as fontes de dados qualitativos:1. Entrevistas em profundidade. 18 participantes

(três usuárias, 15 profissionais de saúde) foram entrevistados para avaliar se a violência e o abu-so eram considerados um problema para as usu-árias de serviços de assistência ao aborto, quais os serviços disponíveis na ocasião da pesquisa e como deveria ser a oferta de serviços de assis-tência à VIP nas unidades que disponibilizam o aborto. As entrevistas foram realizadas entre 9 de maio e 21 de setembro de 2012.

As três usuárias haviam realizado abortos en-quanto estavam em um relacionamento violen-to e, desde então, estavam frequentando servi-ços de assistência à VIP. Elas foram recrutadas por meio de um grupo de autoajuda de sobrevi-ventes de VIP. Por razões éticas, as mulheres não foram abordadas diretamente pelos pesquisado-res, para garantir sua participação voluntária em um ambiente acolhedor. Participamos de uma reunião do grupo de sobreviventes de VIP (facili-tado por uma especialista em VIP) para explicar o estudo. Enviamos um e-mail para o grupo de sobreviventes (hoje cancelado e com mensagens apagadas) convidando para a pesquisa as mu-lheres que utilizaram serviços de assistência ao aborto quando estavam em um relacionamento violento. As ativistas pelo fim da violência tam-bém procuraram pessoas com o mesmo perfil, agindo como elo de ligação e passando os dados dos contato para a coordenação da pesquisa. Foi difícil recrutar as usuárias, apenas três mulhe-res do grupo de sobreviventes se voluntariaram a conceder entrevistas. Não foi possível saber quantas acessaram os serviços de assistência ao aborto, mas não prosseguiram com o processo. As três entrevistadas tinham múltiplas experiên-cias em serviços de assistência ao aborto e apre-sentavam necessidades complexas, que podem não ser comuns a outras mulheres.

O critério de elegibilidade para para profissio-nais de saúde foi a vinculação a unidades de saúde relevantes na área. Para isso, utilizou--se a amostragem bola de neve, iniciando-se com uma listagem de profissionais baseada no conhecimento de uma das coordenadoras da pesquisa e, a partir de então, buscando-se ou-tros profissionais sugeridos pelos primeiros, de modo a garantir a diversidade de perspectivas (ver tamanho e tipos de amostras na Figura 1). A maior parte dos profissionais abordados concor-dou em ser entrevistado. Alguns recusaram por entenderem que sua posição não era relevante ou por conhecerem um informante mais ade-quado. Não houve recusa absoluta, apenas um profissional concordou inicialmente, mas depois não respondeu a três contatos da pesquisa.

Todos os entrevistados receberam um convite personalizado (Quadro 1) e, conforme o termo de consentimento, as entrevistas foram gra-vadas, transcritas, numeradas anonimamen-te e guardadas à chave em um armário. Um mesmo roteiro de entrevista semi-estruturada,

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com 16 questões abertas e orientações de con-dução, foi utilizado com profissionais de saúde e com usuárias, incluindo questões sobre a ne-cessidade de serviços de assistência à VIP para usuárias de serviços de assistência ao aborto, dis-ponibilidade de serviços locais nos arredores dos serviços de assistência ao aborto e comentários sobre o modelo de serviços futuros (Quadro 2). (Cf. Roteiro de entrevista com informantes-chave (MOSAiC-VR) - para profissionais de saúde e so-breviventes). Os resultados das entrevistas não foram publicados anteriormente.

2. Análise qualitativa das questões abertas do estudo de prevalência. Para escutar as vozes das mulhe-res que utilizam serviços de assistência ao abor-to, examinamos os comentários das questões abertas feitos pelas entrevistadas de um estudo de prevalência transversal e confidencial(33). Apenas um dos serviços de assistência ao abor-to da região permitiu a realização desse estudo com suas usuárias e os questionários foram apli-cados por sua equipe profissional.

Foi perguntado às pessoas: “Você acha que um serviço de apoio a vítimas de abuso e violência doméstica ou sexual nas clínicas de aborto pode ser útil?” Sim/Não. Por favor, comente em deta-lhes sua opinião”, dando-se espaço para expli-cações. O objetivo aqui foi garantir que as usuá-rias atuais dos serviços de assistência ao aborto fossem ouvidas quanto ao desenho do serviço de assistência à VIP, já que todas as mulheres podem ser por ele impactadas, independente-mente de sofrerem violência. Sessenta e quatro mulheres (das 190 participantes) responderam a questão aberta, das quais nove revelaram estar em situação atual de VIP (as equipes das clínicas não tinham conhecimento dos casos). Um terço de todas as participantes retiraram o cartão com informações sobre a rede de serviços VIP.33 Os resultados desta pesquisa já foram publicados, mas os dados qualitativos estão sendo analisa-dos apenas neste estudo.

3. Informações das oficinas de feedback. Em 28 de setembro de 2012, realizamos uma oficina de fe-edback, para a qual foram convidadas todas as usuárias e profissionais de saúde entrevistados, além de membros de agências locais e nacionais e especialistas externos identificados durante o projeto de pesquisa e por meio de informantes (Figura 1). O propósito da oficina foi apresen-tar a análise preliminar de todos os estudos do

projeto Aborto em Contexto para validação e comentários e para receber um feedback de um grupo mais amplo para que pudéssemos refletir sobre as implicações dos resultados para os ser-viços de saúde e para as pesquisas no Reino Uni-do. Foram realizados grupos focais sob a forma de pequenas mesas redondas autocoordenadas para discutir duas questões abertas sobre pla-nejamento e avaliação de um programa multis-setorial de assistência à VIP em um serviço de assistência ao aborto. As respostas e comentá-rios foram digitalizados e codificados (de forma individual e não identificável). Todos os parti-cipantes das oficinas se engajaram ativamente nas discussões e nos pequenos grupos (Figura 1).

4. Observação participante. Uma das pesquisado-ras realizou anotações de campo detalhadas, reuniu publicações relevantes da mídia, anali-sou websites nacionais e locais de instituições oficiais e de organizações não governamentais que tratam do aborto ou de VIP, visitou institui-ções de aborto e de assistência à VIP durante as entrevistas, analisou políticas públicas relevan-tes ao aborto e à VIP e coletou panfletos sobre os temas. O propósito dessas análises foi contex-tualizar o problema, triangular os resultados das entrevistas, explorar inconsistências e subsidiar a análise reflexiva.

Procedimentos éticosO processo de pesquisa foi orientado pela garan-tia de segurança para os participantes, consisten-tes com as diretrizes das práticas acadêmicas e criminológicas.(34,35) O Serviço Nacional de Éti-ca de Pesquisa (NRES, sigla em inglês, Comitê de Londres-Westminster) aprovou o estudo qualitati-vo (11/LO/1832 6 de dezembro de 2011) e o estudo de prevalência (Ref. 12/LO/0165 31 de janeiro de 2012). Também se obteve aprovação ética relativa aos profissionais de saúde que atuam com o abor-to (Ref.2012/05/SM 9 de maio de 2012).

AnáliseOs dados foram analisados por meio da teoria fun-damentada, um processo indutivo e dedutivo(36) que garante que a análise temática seja orientada pelos dados. Temas preliminares foram extraídos das entrevistas e codificados de forma indepen-dente por duas pesquisadoras. Os comentários dos questionários foram analisados por três pes-quisadoras. A triangulação e a validação foram obtidas nas oficinas de feedback. Os registros das

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Figura 1. Fontes de dados qualitativos da análise de situação

Entrevistas com profissionais de saúde e usuárias

Número de entrevistas realizadas =

18 - de 28 abordagens (64%):

5 profissionais de saúde (NHS e independente)

2 gestores3 especialistas em violência

interpessoal2 conselheiros

3 outros profissionais (clínico geral, saúde sexual

e assistência social)3 usuárias (sobreviventes

de VIP com experiência prévia de serviços de assistência

ao aborto durante um relacionamento violento)

Estudo de prevalência com usuárias de serviços de assistência ao aborto

(cf. Motta et al. 2014)

383 questionários distribuídos*190 questionários completados

(taxa de resposta de 50%)64 participantes responderam

às questões abertas (34%), das quais 9 revelaram

experiência atual de VIP *durante um período em que 828 abortos foram realizados (46% destas mulheres foram contactadas pela pesquisa)

Oficinas de feedback

81 convites42 participantes (52%)

Gestores, profissionais de saúde e usuárias de serviços

de assistência ao aborto e VIP (NHS e conveniados), representantes do

gabinete do prefeito, da polícia metropolitana, do ministério

da saúde e acadêmicos

Teoria fundamentada Análise das respostas às questões abertas

Análise das respostas

Temas derivados

Discussões reflexivas

Temas derivados

Temas derivados

Temas comparados, contrastados e sintetizados Análise de políticas

públicas, websites,visitas a clínicas,

panfletos, anotações de campo

oficinas foram analisados por três pesquisadoras. Reuniões bimensais regulares foram realizadas para garantir a qualidade da pesquisa, debater os novos resultados, as hipóteses, as experiências e as implicações para o desenho de futuros serviços.

ResultadosForam identificados sete temas na análise dos da-dos, como se vê a seguir:

O trajeto fragmentado para os serviços de assistência ao aborto não levam à investigação de VIP O trabalho de campo e as entrevistas revelaram que mulheres chegam aos serviços de assistência ao aborto por meio do encaminhamento de um clínico geral (CG) ou outro profissional de saú-de e das informações obtidas por meio de ma-teriais de divulgação ou dos sites dos serviços.

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Diferentes organizações conveniadas ao NHS ofe-recem ações assistenciais específicas para as mulhe-res que procuram um aborto (como, por exemplo, website informativo, agendamento por telefone, aconselhamento, consultas e procedimentos ini-ciais). Pouquíssimos profissionais de saúde conhe-cem as trajetórias das mulheres com experiência de VIP em busca de um aborto. Não sabem se e como a VIP é investigada e nem que serviços de assistência à VIP estão disponíveis. Não há consis-tência na abordagem à VIP entre as organizações, que trabalham de forma independente umas das outras. Os profissionais de saúde destacaram que há diferentes caminhos para se chegar aos serviços de assistência ao aborto, mas consideram que os clínicos gerais estão em melhor posição para fazer a triagem de VIP. Há, no entanto, uma política local que estimula as mulheres a irem diretamente aos serviços, sem necessidade de encaminhamento por parte do clínico geral, bastando apenas agendar a consulta inicial por meio de uma central telefônica.

“… fica complicado, sim! Porque há dois níveis de contrato, o contrato para o procedimento do serviço <de aborto> e aí, se você quiser, tem o contrato para o agendamento e… a organização do serviço.” (Entrevista com profissional de saúde)

Os serviços de assistência ao aborto estão sob ataqueAs observações do campo registraram que as mu-lheres e a pesquisadora foram abordados por ati-vistas antiaborto que se manifestavam diante das unidades de saúde.(37) A imprensa tem publicado casos de restrições ao aborto,(38) limite gestacio-nal,(39) aconselhamento obrigatório,(40) e ameaças de publicação dos nomes das mulheres após a in-vasão do banco de dados de uma unidade de saúde importante.(41) Neste contexto, alguns profissionais se preocupam com o foco na VIP quando a grande maioria das usuárias dos serviços de assistência ao aborto não está em situação de violência:

“… há um problema real na verdade, um problema político que está acontecendo neste momento… se retrocedermos no direito de decisão da mulher, na qual temos que acreditar, e as pessoas que decidem que não são vítimas.” (Entrevista com gestor)

Profissionais de saúde estão teoricamente comprometidos aos serviços integrados de assistência à VIP e aborto, mas isso não ocorre na prática

As entrevistas com profissionais de saúde e a ob-servação participante revelaram que muitas ini-ciativas tentaram combater a violência contras as mulheres. Os serviços de assistência à VIP são financiados pelo governo local e são articulados a diferentes setores do sistema de saúde (há pro-fissionais da área de VIP atuando em maternida-des, na medicina geniturinária, na assistência a acidentes e emergências e na clínica médica), mas não a serviços de assistência ao aborto. Nas visitas aos serviços de assistência ao abor-to, vimos alguns panfletos e pôsteres sobre VIP. Alguns destes materiais estavam desatualizados. Os únicos dados de contato disponíveis eram para linhas diretas nacionais.

A análise documental de websites revelou que a informação sobre serviços de assistência ao aborto continha pouca ou nenhuma menção sobre violência. Os websites de profissionais de saúde sobre aborto sequer mencionam a violên-cia. O trabalho de campo revelou que os ope-radores de linhas diretas, embora informados sobre os riscos, não perguntavam sobre VIP. Um serviço de assistência ao aborto de abrangência nacional tinha uma política para adultos vulne-ráveis, que orientava para que os casos de vio-lência fossem informados aos gestores e, caso houvesse lesão, a polícia ou uma ambulância de-veriam ser chamadas. Apenas um profissional de serviço de assistência ao aborto introduziu uma questão de triagem no seu aconselhamento pré--aborto - “você se sente segura em casa?” (des-considerando a VIP que não é doméstica/fami-liar) -, incorporando-a à capacitação das equipes para a referência a serviços de assistência à VIP identificados pela internet. Na outra unidade de saúde, não havia capacitação específica para a equipe, que não sabia como proceder nos casos de VIP. Houve uma única oficina junto com a po-lícia. Embora houvesse procedimentos claros de proteção à criança e à confidencialidade, a polí-tica era confusa com relação a maiores de idade que optassem por não responder. Se por acaso a VIP fosse identificada, seria tratada como uma emergência e a polícia seria uma fonte central de ajuda, ainda que não se relatassem boas ex-periências nesse sentido. Em um caso, por exem-plo, um profissional do serviço de assistência ao aborto identificou uma situação de violência para a qual a mulher gostaria de ajuda policial, mas a polícia só chegou seis horas depois de chamada.

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Equívocos e opiniões inadequadas sobre o grau de violência enfrentado pelas mulheres que procuram os serviços de assistência ao abortoA maioria dos entrevistados reconhece que algu-mas usuárias de serviços de assistência ao abor-to enfrentam a VIP. No geral, os profissionais de saúde e os participantes das oficinas de feedba-ck se surpreenderam com as altas taxas de abuso reveladas por mulheres que buscam serviços de assistência ao aborto – identificadas na revisão sistemática,(16) e no estudo de prevalência(33) - e reconheceram que a VIP tem que ser levada mais a sério. Apesar de subestimar a extensão da VIP ou acreditar que ela só acontece raramente, todos os profissionais de saúde lembravam de casos - mui-tas vezes memoráveis e traumáticos - em que as mulheres revelaram experiências de VIP:

“Ela disse apenas que fez um sexo mais selvagem, mas na realidade foi um estupro, e cometido por um homem que ela disse que era um pastor e tudo.” (Entrevista com profissional de saúde de serviço de assistência ao aborto).

Os profissionais de saúde que atuavam nos programas de assistência à VIP falaram sobre os “enormes” níveis de violência e alguns sentiam que o aborto era apenas uma pequena parte das difíceis histórias das mulheres, e relativamente fácil de lidar. Todos os profissionais de saúde do serviço de assistência ao aborto e algumas das sobreviventes recontaram histórias difíceis de aborto. Os profissionais em posição de direção nos serviços de assistência ao aborto reconhecem que os clínicos gerais lidam com os casos, mas os veem como um grande problema:

“Eu acho que <um serviço de assistência à VIP> não seria viável para nós… eu não estou convencido de que há <VIP> suficiente, a partir do que aparece para nós, que justifique o serviço.” (Entrevista com profis-sional de saúde de serviço de assistência ao aborto)

Integrar dois serviços estigmatizados apresenta oportunidades e ameaças

Entrevistados e participantes da oficina se di-vidiram em relação à resposta a VIP dentro dos serviços de assistência ao aborto. Alguns ficaram entusiasmados:

“Se você me perguntasse se eu gostaria que <o serviço de assistência à VIP> estivesse disponível para mim, eu com certeza diria que sim.” (Entrevista com profis-sional de saúde de serviço de assistência ao aborto)

A maioria das 64 usuárias de serviços de assis-tência ao aborto que responderam às questões abertas, tendo ou não passado por situação de VIP, apoiaram a ideia de um serviço de apoio, re-conhecendo que as mulheres podem estar isola-das, precisando e procurando ajuda e proteção:

“Muito provavelmente eu buscaria ajuda justa-mente nessa hora por causa de minha vulnerabili-dade.” (Usuária de serviço de assistência ao abor-to, com experiência prévia de VIP)

Alguns profissionais de saúde reconheceram que o aborto é estigmatizado, mas usuárias e pro-fissionais anteciparam os benefícios da integração dos serviços:

“… quando eu fui <para o programa de assis-tência à VIP de uma unidade de saúde> eu abri o jogo mesmo para eles, eu disse tudo, a verdade sobre tudo…” (Entrevista com sobrevivente de VIP e com experiência anterior de aborto)

Tratar da VIP pode evitar alguns, mas não to-dos os abortos forçados, e isso foi reforçado pela experiência de profissionais dos serviços de assis-tência à VIP e por uma usuária cautelosa:

“Eu estava passando por aconselhamento, mas como eu disse, eu menti. Eu não contei a verdade à conselheira <sobre a violência>, apesar de eu saber que ela teria me ajudado.” (Entrevista com sobrevivente de VIP, aborto prévio)

Retroativamente, ela explicou que não estava pronta para revelar a violência naquele momento.”

Há barreiras práticas para a implementação de serviços integrados que garantam a segurança e o agenciamento das mulheresHouve consenso quanto a preocupações práticas nas entrevistas, no trabalho de campo e nas ofi-cinas de feedback. Financiamento, capacidade e capacitação de equipes, o momento oportuno das ações assistenciais (pré- ou pós-aborto) e a sustentabilidade foram questões identificadas como obstáculos programáticos à integração de serviços de assistência a VIP a um serviço de assistência ao aborto que já é eficiente. A me-lhoria da qualidade não pode colocar em risco ou estigmatizar as mulheres, nem dificultar o acesso.

“Uma maior clareza sobre que as ações a serem desenvolvidas em serviços de ponta … não deve atrapalhar o serviço principal <de aborto>…

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deve ser robusto - a oferta de serviço ad hoc pode por as mulheres em risco…” (Oficina de feedback)

Também foram levantadas questões de plane-jamento. Deve-se propor uma abordagem univer-sal em que todas as mulheres passem por uma triagem de VIP e recebam conselhos de alta quali-dade de maneira igualitária? Como manter os tra-jetos específicos de tal modo que as mulheres não pensem que suas respostas às questões de VIP irão influenciar suas chances de realizar um aborto? É ético oferecer informação apenas depois do abor-to? Depois da alta, por exemplo? Oferecer serviços de assistência à VIP não é uma tarefa fácil. Os pro-cedimentos de aborto podem ser exaustivos física e emocionalmente (dependendo da gestação, do método e das circunstâncias pessoais), questiona-mentos adicionais, portanto, podem não ajudar. Não houve consenso sobre a investigação de VIP (seja como triagem ou caso a caso), o momento oportuno (antes, no dia ou após a própria inter-rupção da gravidez) ou adequação (perguntar ou oferecer uma intervenção universal sem a revela-ção da VIP):

“Sim, esta pode ser a única chance que a pessoa terá de falar sobre a situação. Não, é um longo dia den-tro do serviço, seria demais.” (Questionário de usu-ária de serviço de assistência ao aborto, sem VIP)

Há diferenças ideológicas entre profissionais de saúde e as mulheresEmbora a maioria das mulheres apoie serviços de assistência à VIP nas clínicas de aborto, os pro-fissionais de saúde questionam se esses serviços devem ser baseados na saúde ou na comunida-de. Baseando-se em suas experiências de trabalho com mulheres, alguns consideram que as mulhe-res preferem não retornar à clínica de aborto para consultar especialistas, outros consideram que se as opiniões das mulheres forem respeitadas nos serviços de assistência ao aborto (só informar ao clínico com consentimento explícito) o ambiente pode se tornar seguro e acolhedor. A confidencia-lidade é levada a sério no ambiente privado, aco-lhedor e receptivo às mulheres de uma clínica de aborto. No entanto, há potencial para ideologias conflitantes na interface entre aborto e VIP, já que nem todos os profissionais da área da violência eram completamente favoráveis ao aborto como decisão da mulher:

“Para muitas jovens, elas cresceram sabendo que <o aborto> é uma opção, sabe, quase como uma

forma de contracepção.” (Entrevista de profissio-nal de serviço de assistência à VIP)

Os participantes da oficina acreditam que é urgente aprender com as melhores práticas de outros contextos, como o envolvimento das usu-árias e o monitoramento de impacto. As usuárias têm necessidades diferentes – de acordo com a faixa etária, por exemplo - e devem ser envolvidas no desenho e na pesquisa de inovações. Houve a preocupação de que as mulheres não revelem a violência pelo medo de não conseguir realizar o aborto. Publicizar a triagem de VIP, por sua vez, pode colocar em risco o problemático “aconselha-mento obrigatório” (que é parte da agenda antia-borto) e seria importante para evitar o estigma.

“As mulheres enfrentam, você sabe, o que se chama de crise de gravidez, eu não estou completamente de acordo com este termo, mas uso só por falta de uma definição melhor, hum, e isso é um problema, elas querem resolver este problema e nós oferece-mos uma solução e aí o que elas querem é seguir com suas vidas.” (Entrevista com profissional de saúde de serviço de assistência ao aborto)

DiscussãoEste estudo confirma resultados de estudos ante-riores demonstrando que a VIP permanece como uma questão não tratada nos serviços de assistên-cia ao aborto,(16,33) mas também demonstra a complexidade da integração assistencial. A maio-ria dos profissionais de saúde nos dois tipos de serviço reconhecem que algumas das mulheres que buscam aborto passam por VIP e suas neces-sidades não são identificadas nem tratadas, mas não estão seguros de que os serviços possam, ou devam, ser integrados. O modo de organização das intervenções ainda é controverso: permane-cem questões sobre se, quando e como levantar o tópico e o que oferecer após mencioná-lo. Dois grandes receios surgiram: uma questão prática, em termos de interromper um serviço eficiente que serve à maioria das pacientes e equipes, e uma questão conceitual em termos de estigma-tizar as mulheres que buscam o aborto como ví-timas em crise. Essas considerações fragilizam a nossa hipótese de que seria simples transferir um serviço de assistência VIP próximo, estabelecido, integrado e baseado na saúde para os serviços de assistência ao aborto.

Os pontos fortes deste estudo são o uso de múltiplas fontes de informação, o envolvimento

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de serviços nacionais de assistência ao aborto, entrevistas com usuárias e o leque completo de profissionais de saúdes envolvidos nos percursos das mulheres nos serviços, o que garantiu a abran-gência das informações. A validade foi testada ao se buscar o feedback dos resultados preliminares. As limitações referem-se ao contexto local de alta renda com serviços legais de aborto seguro e a qualidade variável das fontes de dados. Além dis-so, poucas sobreviventes de VIP foram entrevista-das, quando se sabe que elas têm múltiplas expe-riências de aborto. Entrevistados e usuárias eram de diversas origens, mas o estudo não foi concebi-do para incluir variação cultural e étnica, e esteve sujeito ao viés de recrutamento e seleção. Algumas das questões levantadas nas entrevistas não foram exploradas com a profundidade que desejávamos, como as razões e os modos de estigmatização do aborto e os serviços de assistência à VIP.

Nenhum estudo similar examinou a integra-ção dos serviços de assistência ao aborto e VIP, o que não nos surpreende, já que é difícil conduzir pesquisas na interseção de duas áreas de pesquisa de difícil acesso.(42) Este trabalho complementa estudos anteriores que encontraram resistências e vulnerabilidade à estigmatização da força de trabalho que lida com aborto,43 variações na con-fiança dos médicos sobre a investigação de rotina da VIP e a influência do contexto de saúde.44 Uma análise situacional realizada na Índia examinou a interseção entre aborto, violência e direitos huma-nos das mulheres, demonstrando que na falta de condições sociais adequadas e igualdade de gêne-ro, o aborto apenas oferece um alívio temporário para mulheres em situação de opressão.45

Nossos resultados demonstram que os profis-sionais de saúdes precisam de capacitação, pois seu conhecimento é limitado sobre os modos de respostas aos casos de VIP. Os médicos devem ser capazes de informar as usuárias dos serviços de assistência ao aborto sobre a existência da rede de apoio a mulheres em situação de VIP (para reve-lar a VIP ou não, para si próprias ou para outras mulheres). Eles precisam de capacitação para per-guntar de forma competente e responder de ma-neira imparcial. Em alguns casos, foi identificado um conflito entre segurança e agenciamento, nos quais o aborto foi um meio de escapar da violên-cia ou de suas consequências (como o estupro, por exemplo) ou em que mulheres que enfrentavam o controle masculino negaram a VIP para obter o aborto. Os informantes sugeriram diferentes ma-neiras de integração dos serviços para promover

simultaneamente segurança e agenciamento, tais como identificar oportunidades que prescindam das equipes profissionais, indicando outros servi-ços de apoio aos quais as mulheres podem recor-rer diretamente (como websites e cartazes infor-mativos, por exemplo), sem interromper o trajeto para a obtenção do aborto. Mas as informações devem ser atuais e os profissionais de saúde de-vem monitorar as trajetórias das mulheres, mes-mo diante das reduzidas ações multissetoriais. Os serviços de assistência a VIP e os demais serviços também precisam de capacitação sobre assistên-cia ao aborto e sobre a importância da imparciali-dade na assistência.

No nível das políticas públicas, precisa-se de uma liderança clara para proteger o direito ao aborto, alterando a dinâmica da múltipla estig-matização, especialmente porque a VIP pode ser um motivo para se buscar o aborto. As possíveis intervenções de serviços especializados ou inte-grados devem ser repensadas. Pesquisas devem examinar se a triagem de VIP de rotina ou caso a caso afeta a revelação ou o encaminhamento, se influencia o estigma e se melhora ou piora a segurança das mulheres, levando em conta fato-res culturais e étnicos. Intervenções inovadoras podem focar na educação para a saúde pública, na conscientização da comunidade e no acesso di-reto a serviços e informações (autoajuda ou novas tecnologias como informação em vídeo ou online) paralelamente ou em conjunto com a assistência ao aborto. Intervenções lideradas por usuárias e a favor da autonomia das mulheres devem en-volver sobreviventes de VIP em sua formulação, na pesquisa e no trabalho de campo. A avaliação deve examinar os limites do serviço, os impactos da fragmentação no acesso e a identificação, nos dois tipos de serviços, das lacunas assistenciais e danos não intencionais que afetam as mulheres vulneráveis. Deve-se ainda analisar as implicações financeiras e o impacto das diferentes linhas or-çamentárias no NHS (e em outras agências) sobre os serviços. Também deve-se levar em considera-ção que nem todos os profissionais de saúde na assistência à VIP são necessariamente a favor do aborto legal e seguro.

Conclusões A análise de situação aqui apresentada destaca a importância das condições locais e do contexto as-sistencial. Os serviços de assistência ao aborto va-lorizam o agenciamento e o controle das mulheres

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sobre seus corpos como fundamentais para os direitos humanos e para a saúde sexual e repro-dutiva e oferecem ambientes centrados na mu-lher, com garantia de confidencialidade e não estigmatizantes. De maneira geral, nem sempre os serviços de saúde são receptivos às mulheres. Violações de direitos humanos ocorrem dentro e fora das estruturas da assistência à saúde. Ativis-tas e pessoas interessadas na articulação entre os diferentes direitos das mulheres devem considerar o momento específico, o ambiente específico e os recursos disponíveis específicos. Os serviços de as-sistência à VIP também utilizam uma abordagem baseada em direitos, coordenada por mulheres sobreviventes, que reforçam o agenciamento para o fortalecimento da autonomia das mulheres. As ações devem considerar a segurança e o agencia-mento das mulheres, o contexto local e a inte-gridade das trajetórias assistenciais específicas. A inovação é necessária, especialmente para que se identifiquem os danos dos ataques ao aborto le-gal e seguro, já que a pressuposição inicial de que serviços integrados são desejáveis e transferíveis não foi comprovada nesse contexto. Não podemos afirmar aos profissionais de saúde e defensores de direitos das mulheres como se deve organizar ser-viços de assistência à VIP e ao aborto, mas desta-camos questões para a reflexão em seus contextos específicos. E também destacamos a necessidade de realização de mais pesquisas nesta área.

Contribuição das autorasAs autoras se envolveram da seguinte foma: LPK SB: concepção, desenho de pesquisa,

análise, interpretação; LPK MH SM coleta de dados; LPK, SB, MH rascunho do artigo; todas as autoras foram responsáveis pela revisão e aprovação final do manuscrito. KCL avalizou o estudo.

FinanciamentoA instituição filantrópica Friends of Guy’s (núme-ro 264150) financiou o estudo. As autoras tiveram acesso pleno a todos os dados e se responsabili-zam pela integridade das informações e pela pre-cisão da análise.

Inexistência de conflitos de interessesLPK recebeu apoio financeiro da Friends of Guy’s pelo trabalho enviado; SM era mestranda na KCL; SB já pesquisava sobre serviços de violência do-mésticas na assistência à maternidade. Ela pres-tou consultoria obstétrica para a organização Marie Stopes International (2011-12) e é membro da Organização Mundial de Saúde, na área de Di-reitos Humanos e Saúde Sexual e Reprodutiva de mulheres vivendo com HIV. Diretrizes do Grupo de Desenvolvimento (2014-15). Não houve nenhuma outra relação ou atividade financeira com qual-quer outra organização nos últimos três anos nem outra relação ou atividade que pudesse influen-ciar este trabalho.

AgradecimentosAgradecemos a Susan Fairley Murray e Loraine Bacchus pelo incentivo e comentários ao rascunho do artigo, a Friends of Guys pelo financiamento e a todos os participantes que contribuíram para a realização do estudo.

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Quadro 1. Roteiro de entrevista (MOSAiC-VR) - para profissionais de saúde

Por favor, nos conte um pouco sobre o seu trabalho e responsabilidades atuais. <opções de resposta relacionadas a serviços de saúde reprodutiva e outros serviços>

Como você acha que o abuso e a violência impactam a vida das usuárias? <opções de resposta: que mulheres, com que frequência>

Se uma usuária revela que sofre violência (ou suspeita-se que ela está sendo abusada), quais são os procedimentos atuais para lidar com isso? <opções de resposta: quem lida com isso, para onde são encaminhadas, documentação, encaminhamentos, monitoramento?>

Você acha que a forma atual de organização desse serviço atende às necessidades das mulheres?

• Há algum grupo especial de mulheres com necessidades diferentes? <opções de resposta: vulnerável, ‘bandeira vermelha/alerta’>

• Há mulheres não atendidas pelos serviços atuais?

• E quando se trata de jovens mulheres, há alguma diferença? <opções de resposta: <16, <18, jovem > 18>

Quais são as barreiras e as facilidades para se oferecer serviços de boa qualidade? <opções de resposta: fazendo as perguntas, comportamento da equipe, capacitação>

Como melhorar os serviços atuais?

Qual a sua opinião sobre as vantagens e desvantagens da triagem de rotina para violência de gênero para todas as usuárias do seu serviço?

Você acha que há necessidade para novos serviços?

Você está satisfeito com o atual sistema de referência e contrarreferência?

Quais seriam as vantagens e desvantagens de uma articulação com serviços especializados em violência doméstica dentro do seu serviço? <opções de resposta: qualidade, relação com equipe, grupos especiais de mulheres>

Você acha que os serviços deveriam ser diferenciados para adolescentes/jovens mulheres? De que maneira?

Há outros grupos de mulheres que você acha que precisam de serviços de assistência à violência doméstica específicos?

Você gostaria de deixar comentários sobre esta questão?

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Quadro 2. Roteiro de Entrevista (MOSAiC-VR) - para sobreviventes.

Você acha que o abuso e violência são um problema nas vidas de muitas mulheres que utilizam os serviços de assistência ao aborto e/ou ginecologistas?

Você acha que os serviços de saúde têm algo a oferecer para mulheres em relacionamentos violentos? <se não, por quê?>

Se sim, que tipo de ajuda você acha que as mulheres realmente desejam?

Realisticamente, o que você acha que os serviços de saúde podem oferecer para mulheres em relacionamentos violentos? <opções de resposta: prioridades>

E o que você acha que os serviços de saúde não deveriam fazer? <opções de resposta: prática deficiente, inútil, insegura>

Você acha que os serviços de assistência ao aborto são um bom lugar para se tratar da violência doméstica? <opções de resposta: Por quê? Por quê não? Hora certa, trajetória de violência doméstica?>

Você acha que os serviços de ginecologia são um bom lugar para se tratar da violência doméstica? <opções de resposta: Por quê? Por quê não? Hora certa, trajetória de violência doméstica?>

Como você acha que mulheres em relacionamentos violentos iriam se sentir se fossem questionadas rotineiramente sobre a violência doméstica nos serviços de ginecologia e de aborto?

Você acha que seria diferente se isso acontecesse nas maternidades?

Estamos pensando em introduzir um novo programa de atenção à violência doméstica nos serviços de aborto e de ginecologia. Você tem sugestões sobre como este serviço deveria funcionar?

Há algo que deva ser evitado?

Quais seriam as vantagens e desvantagens de se oferecer serviços de assistência à violência doméstica no mesmo local ou num local próximo aos serviços de saúde, articulado às equipes do hospital? <opções de resposta: qualidade, relação com a equipe, grupos especiais de mulheres>

Quais seriam as vantagens e desvantagens de encaminhar mulheres a serviços que não estão articulados ao hospital?

Você acha que há grupos de mulheres com necessidades diferenciadas em termos de serviços de assistência à violência doméstica?

Os serviços deveriam ser diferenciados para adolescentes/ jovens mulheres? Por quê, e de que maneira? <opções de resposta: experiências, necessidades, interações com serviços, <16, <18, jovem >18>

Você gostaria de deixar algum outro comentário sobre algo que não foi mencionado?

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Résumé

La violence contre les femmes est omniprésente dans le monde et l’avortement sécurisé soutient la santé et les droits sexuels et génésiques, ce qui soulève la question de la désirabilité et la faisabilité de l’intégration de services traitant la violence interpersonnelle au sein des services d’avortement. En examinant le contexte et les services actuels dans un quartier de Londres au Royaume-Uni, cette analyse de situation a étudié l’hypothèse selon laquelle un service de santé intégré (comprenant des activités de sensibilisation, la formation du personnel à l’enquête systématique sur la violence interpersonnelle et l’aiguillage vers un service communautaire s’occupant de violence interpersonnelle) pourrait être transféré dans des services d’avortement. Quatre sources de données qualitatives ont été utilisées pour obtenir des avis sur l’intégration des services: des entretiens approfondis avec des acteurs clés, notamment des prestataires d’avortement et de services relatifs à la violence interpersonnelle et des victimes de violence interpersonnelle ayant eu recours à l’avortement (3 utilisatrices, 15 prestataires); une analyse qualitative de la partie à questions ouvertes d’une enquête auprès des utilisatrices des services actuels d’avortement avec ou sans expérience de violence interpersonnelle; des commentaires d’un atelier interactif et des données tirées d’observations sur le terrain. Si tous

Resumen

La violencia contra las mujeres es prevalente en todo el mundo y los servicios de aborto seguro apoyan la salud y los derechos sexuales y reproductivos, lo cual plantea la interrogante acerca de la conveniencia y viabilidad de integrar los servicios de violencia interpersonal (VIP) en los servicios de aborto. Al examinar elcontexto y los servicios actuales en un distrito en el centro de Londres, en el Reino Unido, el análisis situacional exploró la hipótesis de que un servicio de salud establecido e integrado (que comprende concienciación y capacitación del personal en la investigación y referencia rutinaria de VIP a un servicio comunitário de VIP al alcance) sería transferible a los servicios de aborto. Cuatro fuentes de datos cualitativos investigaron los puntos de vista relacionados con la integración de los servicios: entrevistas a profundidad con partes interesadas clave, que incluyeron a prestadores de servicios de aborto y servicios de VIP, así como comisionados y sobrevivientes de VIP que habían usado los servicios de aborto (3 usuarias, 15 prestadores de servicios); análisis cualitativo de la parte abierta de una encuesta sobre usuarias actuales de servicios de aborto con y sin experiencia de VIP; retroalimentación de un taller interactivo y datos de observaciones de campo. Aunque hubo consenso entre todos los informantes de

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les informants étaient d’accord pour affirmer que les femmes connaissant la violence interpersonnelle et voulant avorter avaient des besoins non identifiés et non satisfaits, la manière dont toute intervention peut être organisée pour répondre à ces besoins était contestée; des interrogations demeurent donc sur l’opportunité, le moment et la manière de soulever la question de la violence interpersonnelle et sur ce qu’il faut proposer. Deux inquiétudes majeures sont apparues: une préoccupation pratique face à l’interruption d’un service d’avortement rationalisé qui convient à la majorité du personnel et des patientes, et une préoccupation conceptuelle sur le risque de stigmatisation des femmes souhaitant avorter comme « victimes en crise ». Par conséquent, nous en concluons que lorsqu’on intègre des interventions relatives à la violence interpersonnelle dans des services d’avortement, il faut tenir compte du contexte local, de l’intégrité des voies séparées ainsi que de la sécurité et de l’activité des femmes, spécialement quand le droit à l’avortement est menacé. De nouvelles approches sont requises et devraient faire l’objet de recherches.

que las mujeres que sufren VIP y buscan servicios de aborto tienen necesidades no identificadas y no atendidas, se disputó la manera en que la intervención podría ser organizada para atender estas necesidades. Por lo tanto, aún hay preguntas en cuanto a si se debe mencionar el tema de VIP y, en caso afirmativo, cuándo y como plantearlo y qué ofrecer. Surgieron dos ansiedades principales: una preocupación práctica con relación a interrumpir un servicio de aborto organizado que es adecuado para la mayoría del personal y las pacientes, y una preocupación conceptual sobre el riesgo de estigmatizar a las mujeres que buscan servicios de aborto como ‘víctimas en crisis’. Por lo tanto, nuestros hallazgos indican: al integrar intervenciones de VIP en los servicios de aborto, se debe considerar el contexto local, la integridad de vías individuales y la seguridad y agencia de las mujeres, especialmente cuando los derechos de aborto están bajo ataque. Nuevos enfoques son necesari.

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88 Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.06.008

Autogestão do aborto induzido por medicamentos: uma síntese das evidências qualitativas

Megan Wainwrighta, Christopher J Colvinb, Alison Swartzc, Natalie Leon d

a Pesquisadora Pós-doutoranda, Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais, Faculdade de Saúde Pública e Medicina Familiar da Cidade do Cabo, África do Sul. Contato: [email protected]

b Professor associado, Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais, Faculdade de Saúde Pública e Medicina Familiar, Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul

c Professora, Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais, Faculdade de Saúde Pública e Medicina Familiar, Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul

d Cientista Especialista, Conselho de Pesquisa Médica, África do Sul

Resumo: O aborto induzido por medicamentos é um método de interrupção de gravidez que por sua natureza permite o envolvimento mais ativo das mulheres no processo de conduzir e até mesmo de administrar os medicamentos para o aborto. Esta síntese analisou evidências qualitativas globais sobre as experiências, preferências e preocupações para ampliar a autogestão do aborto induzido por medicamentos com menor envolvimento de profissionais de saúde. O foco foram pesquisas qualitativas a partir das múltiplas perspectivas das experiências de mulheres com a condução do aborto induzido por medicamentos durante o primeiro trimestre (< 12 semanas de gestação). Incluímos pesquisas realizadas em contextos em que o aborto é legal e naqueles onde há restrições, independentemente se o aborto foi acessado por meio de sistemas formais ou informais. Uma equipe de análise composta por quatro pessoas identificou 36 estudos que atendiam os critérios de inclusão, dos quais os dados foram extraídos e sintetizados para a análise. Os resultados foram organizados seguindo os seguintes temas: percepções da condução do processo, preparação para a administração do medicamento, considerações logísticas, questões de escolha e controle, e significado e experiência. Destacamos que a base qualitativa ainda é pequena, mas as evidências disponíveis sugerem que é há uma aceitabilidade generalizada da autoadministração do aborto induzido por medicamentos. Sublinhamos algumas considerações específicas para a oferta das opções de autoadministração e identificamos áreas centrais para pesquisas futuras. É necessário se fazer mais pesquisas qualitativas para que se fortaleça essa importante base de evidências.

Palavras-chave: aborto induzido por medicamentos, autogestão, autoadministração, síntese de evidências qualitativas, revisão sistemática de pesquisa qualitativa

Introdução e históricoO aborto induzido por medicamentos (AIM) é um método de interrupção de gravidez que permite um maior envolvimento ativo das mulheres no seu processo de condução e algumas vezes até da administração do medicamento para o aborto. Definimos a autogestão (self-management) como a condução geral do processo de aborto induzido por medicamentos quando uma ou mais etapas ocorre fora do contexto clínico. Também utiliza-mos o termo autoadministração (self-adminis-tration) para nos referir a um aspecto específico da autogestão, o ato de tomar o medicamento (mifepristona, misoprostol - também conhecido como Cytotec - ou ambos) fora do contexto clíni-co sem supervisão clínica. Permitir às mulheres uma melhor autogestão do aborto é uma forma

de melhorar o acesso ao aborto seguro, ao reduzir a demanda e ao superar obstáculos geográficos e financeiros para o acesso a serviços de saúde. No entanto, ainda permanecem preocupações sobre quais as formas seguras, eficazes, viáveis e acei-táveis de autogestão. Em relação a viabilidade e aceitabilidade, esta síntese de evidências qualita-tivas (também conhecida como revisão sistemáti-ca de pesquisas qualitativas) analisou evidências globais sobre experiências, preferências e preocu-pações sobre a maior autogestão do aborto indu-zido por medicamentos com menor envolvimento de profissionais de saúde. O intuito deste artigo é sintetizar estas evidências.

Os protocolos existentes para o aborto induzido por medicamentos - e as opções para a autogestão - variam amplamente. Na maioria dos contextos

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descritos na literatura analisada, e onde o aborto é oferecido legalmente, a organização da assistên-cia ao aborto induzido por medicamentos apoia--se no modelo medicalizado de três visitas clíni-cas: uma primeira visita para iniciar o processo de aborto, receber aconselhamento e tomar mifepris-tona, uma segunda visita, em geral dois dias de-pois, para tomar ou receber o misoprostol, e uma visita de acompanhamento 1-2 semanas depois para confirmar a conclusão do aborto. Atualmen-te, as diretrizes da OMS para o aborto induzido por medicamentos oferecem orientação para permitir que as mulheres tomem a mifepristona na unida-de de saúde e recebam misoprostol de um pro-fissional de saúde para a autoadministração em casa, pressupondo-se que o aconselhamento ade-quado é oferecido e a assistência de acompanha-mento e de emergência é acessível. No entanto, o modelo de três consultas é o modelo dominante em ambientes altamente medicalizados.1

Nós nos baseamos no marco referencial da “medicalização”2,3 para descrever o espectro de abordagens à gestão do aborto induzido por medicamentos indo do mais ao menos medicali-zado. Mudanças em direção à assistência menos medicalizada podem incluir: a administração de misoprostol na clínica, mas também a opção para mulheres receberem alta para gerir o processo de expulsão em casa;(4,5) a opção de administrar tanto o misoprostol, quanto a mifepristona em casa; e substituir o acompanhamento pelo moni-toramento remoto/autoavaliação da conclusão do aborto, por exemplo, com celulares,(8) ou o uso independente de cartões de autoavaliação e testes de gravidez.(9,10)

A análise focou exclusivamente no aborto indu-zido por medicamentos no primeiro trimestre. A diferenciação entre o aborto induzido por medi-camentos durante o primeiro e segundo trimestres é, de certa maneira, arbitrária, mas é uma distinção política, experimental e medicamente importante. Uma vez que o aborto induzido por medicamen-tos durante o segundo trimestre requer mudanças na rota, no momento e nas doses de medicamen-tos11, havendo um maior risco associado à idade gestacional, as mulheres podem necessitar de mais apoio profissional e aconselhamento.12

Esta síntese foi uma de muitas realizadas para informar as diretrizes de 2015 da Organização Mun-dial de Saúde, intitulada “O Papel dos Profissionais de Saúde na Oferta da Assistência ao Aborto Segu-ro.”12 As diretrizes reconhecem que, “…as mulheres podem cumprir um papel autônomo na gestão de

alguns componentes do processos fora de uma uni-dade de saúde”12, posicionando as mulheres como atores importantes no processo do aborto.

Métodos Estratégia de BuscaPesquisamos as seguintes bases eletrônicas de da-dos: MEDLINE, CINAHL Plus, Biblioteca Global de Saúde da OMS, Saúde Global e Popline. Bibliogra-fias e documentos não acadêmicos também foram incluídos. A busca original para as diretrizes da OMS12 foi até 23 de junho de 2014. Para a publi-cação atualizamos os dados até 27 de outubro de 2015. O fluxograma (Figura 1) representa a busca e inclusão (combinando as buscas originais e atua-lizadas). Foram incluídos estudos em inglês, espa-nhol, português e francês.

Seleção de EstudosO critério primário de inclusão foi que o estudo tratasse das experiências de mulheres autoad-ministrando medicamentos para o aborto ou de perspectivas (atuais ou futuras) sobre a autogestão deste processo. Incluímos estudos que relatavam as perspectivas de mulheres, de seus parceiros, membros da família, profissionais de saúde, ges-tores de programas ou elaboradores de políticas. Como é comum em sínteses de evidências quali-tativas, os critérios de inclusão e exclusão foram revisados à medida em que líamos os resumos dos estudos e chegávamos a um consenso sobre os critérios.13 No início do processo de seleção, os quatro autores avaliaram independentemente os estudos selecionados para inclusão e esclareceram os critérios de inclusão. MW avaliou então todos os resumos e AS e NL avaliaram cada uma me-tade dos resumos, garantindo que todos fossem cobertos por duas avaliadoras. Os artigos comple-tos identificados como “potencialmente relevan-tes” foram recolhidos e avaliados para inclusão. Discordâncias foram resolvidas por meio de con-versas. Os critérios de inclusão foram revisados e esclarecidos nesta fase em resposta ao surgimento das evidências.

Uma decisão central foi a inclusão de dados oriundos de contextos de restrição legal ao aborto, considerados como “indiretamente relevantes”. Se-gundo Lewin et al, “a evidência que apoia um resul-tado de revisão pode ser indiretamente relevante se um dos domínios da análise acima, como a pers-pectiva ou o ambiente, tenha sido substituído por outro”.14 Neste caso, a evidência de ambientes em

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que o aborto é legal foi complementada pela evi-dência de ambientes legalmente restritos. Embora a evidência indiretamente relevante possa repre-sentar uma ameaça à confiabilidade nos achados da revisão (cf. a abordagem de CERQual em Lewin et al), nós decidimos que poderia haver achados importantes sobre a autogestão do aborto na expe-riência de mulheres que vivem em contextos legal-mente restritos. Essa decisão também aumentou a variação geográfica dos estudos incluídos.

Os estudos sobre os contextos do aborto legal tinham que cumprir quatro critérios para inclu-são: metodologia qualitativa, aborto induzido por medicamentos no primeiro trimestre (<12 sema-nas) (mifepristona e misoprostol ou apenas miso-prostol), uma mudança para um processo menos medicalizado, como explicamos na introdução, e dados específicos sobre a autogestão. Incluímos estudos que utilizaram métodos qualitativos para a coleta e análise de dados, assim como estudos com métodos mistos, desde que o componente qualitativo atendesse aos critérios acima.

Os estudos realizados em contextos onde o abor-to é legalmente restrito nem sempre especificavam a fase da gravidez e frequentemente se baseavam em experiências de redes informais de cuidados que poderiam ter ou não incluído profissionais de saúde. A inclusão destes estudos foi, portanto, ba-seada no desenho/método/análise qualitativos e

na presença de dados pertinentes especificamente à experiência de gestão de um aborto em casa e/ou na administração de medicamento sem a pre-sença de um profissional de saúde. Foram exclu-ídos os estudos que tratavam de experiências ge-rais de aborto sem dados sobre alguma dimensão da autogestão.

Colegas especialistas em pesquisas sobre abor-to (vide agradecimentos) analisaram a lista de estudos selecionados para garantir que estudos importantes não fossem excluídos. Um artigo na imprensa foi identificado e incluído. Dos estudos que atenderam aos critérios de inclusão, cinco eram em português e o restante era em inglês.

Extração e gestão dos dadosPara a extração de dados, desenvolvemos um mo-delo inicial organizado em quatro áreas: a) conhe-cimento/comunicação/compreensão técnica, b) motivações/aceitabilidade da utilização domésti-ca (aspectos comportamentais), c) processo/logísti-ca/passos/viabilidade, d) experiência/sentimentos subjetivos, contexto interpessoal (incluindo as opiniões dos profissionais de saúde sobre as expe-riências das mulheres). Todos os autores extraíram dados de cinco estudos, de maneira independen-te. Após a discussão e consenso sobre o modelo e a abordagem de extração de dados, MW extraiu os dados restantes.

Figura 1. Fluxograma do processo de busca e inclusão.

IDEN

TIFI

CAÇÃ

OTR

IAGE

MEL

EGIB

ILID

ADE

INCL

UÍD

OS

Arquivos após remoção de duplicados(n = 1170)

Arquivos examinados (n = 1170)

Arquivos excluídos (n = 1058)

Artigos completos avaliados para elegibilidade

(n = 112)

Estudos incluídos na síntese qualitativa

(n = 36)

Artigos completos excluídos, com motivos

(n = 76)

Arquivos identificados na base de dados

(n = 1197)

Arquivos adicionais identificados por meio de outras fontes

(n = 15)

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Síntese de dados e CERQualOs dados foram sintetizados por meio da análise te-mática, uma de muitas abordagens recomendadas pelo Grupo de Métodos de Análise Qualitativa Co-chrane.15 Após a extração de dados, MW e CC iden-tificaram quatro áreas temáticas centrais e cada um avaliou dados de duas áreas temáticas para produzir o rascunho dos resultados iniciais, que fo-ram debatidos e refinados, de modo a esclarecer os achados, apoiando-os com dados e diferenciando--os entre si. Uma segunda rodada de síntese resul-tou no agrupamento dos achados relacionados às “áreas de escolha e controle” como uma quinta área temática. MW rascunhou uma narrativa que expandiu estes achados centrais e todos os autores revisaram a síntese final.

Nos casos em que os fatores contextuais locais, como a legalidade do aborto, afetaram as descober-tas, fizemos menção a isto. Quando o contexto local específico não é mencionado no achado, é porque achamos que o resultado é substantivamente simi-lar nos dois contextos.

Aplicamos a GRADE-CERQual (Confiabilidade de Evidências de Revisões de Pesquisas Qualitativas) para avaliar a confiabilidade de cada achado em uma escala de alta, moderada, baixa, ou muito baixa (um resumo dos achados, incluindo as avalia-ções CERQual, pode ser acessado em: http://www.publichealth.uct.ac.za/phfm_publications-sbs). Re-cordamos que a CERQual não é uma abordagem para avaliar a qualidade dos estudos individuais ou a qualidade da síntese geral.14 É um processo para avaliar a confiança em cada achado individual da revisão.

ResultadosNo total, 36 estudos atenderam aos critérios de inclusão (Tabela 1). Dezenove19 estudos foram con-duzidos em contextos onde o aborto é legalizado, 14 em contextos legalmente restritos e três eram estudos multicêntricos internacionais com evidên-cias dos dois tipos de contexto. Nos contextos em que o aborto é legal, encontramos os estudos mais antigos, descrevendo as abordagens mais medi-calizadas que requeriam que as mulheres per-manecessem nas unidades de saúde por quatro horas, nas quatro horas seguintes à administração do misoprostol.16,17 A mudança para os cuidados menos medicalizados nos estudos mais recentes assumiu as seguintes formas: administração do misoprostol na segunda consulta, mandando-as para casa para aguardar o processo, 18-20,4 dando o misoprostol na segunda consulta, mas deixando

que elas autoadministrassem em casa,18,21 dando o misoprostol na primeira consulta para ser auto--administrada em casa,19,22-27 e dando às mulheres tanto a mifepristona, quanto o misoprostol na pri-meira consulta para serem usados em casa.27,28 Os estudos nos contextos legais que registraram abor-tos apenas com misoprostol, também reportaram a autoadministração em casa.29,30 Usamos o termo autoadministração para referir à administração do medicamento em casa sem a supervisão médica direta. Quando o achado não é específico com re-lação à forma de uso do medicamento, mas, sim, sobre outros aspectos ou aspectos mais gerais do processo de aborto, utilizamos o termo autogestão.

Percepções gerais sobre a autogestão do aborto induzido por medicamentosEm geral, os profissionais de saúde aprovam o con-ceito de autogestão, incluindo a autoadministração, se a iniciação do aborto induzido por medicamen-tos for apoiada por profissionais capacitados e se eles acreditarem que pode ser realizado de manei-ra viável, eficaz e segura.16-19,25,27-32 Mesmo em con-textos restritos, alguns ofereceram apoio para que as mulheres autoadministrassem o medicamento, oferecendo aconselhamento clínico e indicando possíveis fontes do medicamento. Os profissionais de saúde não apoiam, no entanto, o acesso a me-dicamentos abortivos sem receita médica.33-36 Nos contextos restritos, a autogestão e a autoadminis-tração permitiram aos profissionais de saúde se distanciar legalmente do aborto.37,38 Nos contextos de legalização, os profissionais de saúde também se distanciavam, mas por motivos morais.17

As mulheres também aprovaram, de maneira geral, o conceito de autogestão. Foi frequente o relato de algum nível de ansiedade no começo do processo, mas, no final, sentiam alívio e uma for-te sensação de satisfação com a escolha pela au-togestão.19,20,22,23,29 Em alguns contextos, o uso de misoprostol em casa para o aborto induzido por medicamentos em uma fase inicial da gestação é compreendido a partir de modelos e práticas in-terpretativas locais, como “regulação menstrual” (Bangladesh) e como um dos muitos tratamentos para doenças locais referentes ao atraso menstru-al (“menstruação atrasada”, no Brasil).32,25,36,39 Onde havia pouca informação pública oficial sobre aborto (tanto em contextos legais, quanto nos restritivos), as mulheres às vezes se sentiam confusas quanto à distinção entre o misoprostol para aborto induzido por medicamentos, contracepção de emergência e contraceptivos orais.36,38

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Tabela 1. Descrição dos estudos incluídos, de acordo com o status jurídico do aborto.

Ref Autor Ano País Participantes

ESTUDOS EM CONTEXTOS EM QUE O ABORTO É LEGAL

4 Lohr et al 2010 Reino Unido 162 usuárias de AIM

16 Ellertson et al 1999 EUA 77 funcionários da clínica

17 Simonds et al 1998 EUA 27 usuárias de AIM, 78 profissionais de saúde

18 Acharya e Kalyanwala

2012 Índia 270 profissionais de saúde

19 Alam et al 2013 Bangladesh 651 usuárias de AIM e 40 provedores de serviços

20 Ganatra et al 2010 Índia 63 usuárias de AIM

21 Elul et al 2000 EUA 22 usuárias de AIM

22 Fielding et al 2002 EUA 43 usuárias de AIM

23 Kero et al 2009 Suécia 100 usuárias de AIM

24 Kero et al 2010 Suécia 23 usuárias de AIM, 23 parceiros

25 Grindlay et al 2013 EUA 25 usuárias de AIM e 15 funcionários da clínica

26 Makenzius et al 2012 Suécia 24 usuárias de AIM, 13 parceiros

27 Petitet et al 2015 Camboja 30 usuárias de AIM, 6 parceiros, 8 provedores, 2 farmacêuticos, 2 vendedores informais

28 Ganatra et al 2005 Índia 12 usuárias potenciais de AIM, 9 provedores, 9 quimistas, 5 grupos focais com homens

29 Mitchell et al 2010 Moçambique 70 usuárias de AIM (8 que recusaram AIM), 11 enfermeiros

30 Nanda et al 2010 Índia 120 usuárias de AIM, 39 provedores, 28 farmacêuticos, 8 armazenistas, 13 principais interessados

39 Grossman et al 2010 EUA 30 usuários potenciais de AIM (que tentaram autoindução)

42 Subha Sri e Sundari Ravindran

2012 Índia Aproximadamente 168 usuárias potenciais de AIM

43 Harvey et al 2002 EUA 73 potenciais usuárias de AIM

(Continua na próxima página)

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Tabela 1. (continuação)

Ref Autor Ano País Participantes

ESTUDOS EM CONTEXTOS EM QUE O ABORTO É LEGALMENTE RESTRITO

33 Cohen et al 2005 País da América Latina sem nome

6 usuárias de AIM, a9 usuárias potenciais, 9 provedores, 9 farmacêuticos, 3 grupos focais com defensores de AIM (setor privado e ONG)

34 Fiol et al 2012 Uruguai 29 usuários potenciais de AIM, 21 provedores, 24 vendedores informais, 46 formuladores de políticas, 3 funcionários administrativos

35 Nations et al 1997 Brasil 66 usuárias de AIM, 25 informantes-chave considerados especialistas “populares”

37 Arilha 2012 Brasil 2 usuárias de AIM e 2 parceiros

38 Bury et al 2012 Bolívia 115 mulheres em consulta para cuidados pós-aborto

40 Drovetta 2015 Argentina, Chile, Equador, Peru, Venezuela

14 usuárias de AIM, 10 profissionais de saúde, 3 organizações

41 Gipson et al 2011 Filipinas 32 usuárias potenciais de AIM, 43 homens

44 Ramos et al 2015 Argentina 45 usuárias de AIM

45, 46

Barbosa e Arilha

1993 Brasil 14 mulheres (não necessariamente usuárias de AIM) 2 grupos focais com ginecologistas

47 Diniz e Madeiro

2012 Brasil 7 usuárias de AIM, 2 parceiros, 5 vendedores informais, 1 elaborador de políticas

48 Silva do Nascimento Souza

et al 2010 Brasil

49 Vallely et al 2015 Papua Nova Guiné 28 usuárias de AIM (e outros abortivos)

50 Grossman 2013 Peru 22 usuárias potenciais de AIM

ESTUDOS MULTICÊNTRICOS INTERNACIONAIS COM EVIDÊNCIAS DOS DOIS TIPOS DE CONTEXTOS JURÍDICOS

31 Espinoza et al 2004 Honduras, México, Nicarágua, Porto Rico

70 médicos

32 Pheterson e Azize

2005 Anguilla, Antígua, São Cristóvão, São Martinho e São Maarten

27 médicos, 30 profissionais de saúde, conselheiros ou funcionários governamentais

36 Sherris et al 2005 Não especificado (2 sul-americanos, 1 africano, 1 do sudeste asiático

18 usuárias de AIM, 91 usuárias potenciais de AIM, 20 médicos, 38 enfermeiros / parteiras / médicos / trabalhadores comunitários de saúde capacitados, 40 farmacêuticos

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A percepção das mulheres sobre a aceitabilidade da autogestão sem contato pessoal com os profis-sionais de saúde dependeu dos seguintes fatores: o padrão de assistência e suas experiências anteriores com aborto induzido por medicamentos, noções locais de hierarquia médica profissional, tabus e estigma sobre o aborto e percepções em torno da potência, perigo e complexidade das drogas.20,32,40,41

A percepção dos profissionais de saúde sobre quais profissionais devem estar aptos a oferecer medicamentos autoadministráveis para o abor-to variou e dependeu dos seguintes fatores: per-cepções sobre a potência dos medicamentos e, portanto, da expertise necessária em anatomia e fisiologia para explicar todos os seus efeitos; capa-citação para o aconselhamento apropriado sobre o aborto; conhecimento de serviços de emergên-cia receptivos ao aborto para encaminhar mulhe-res em caso de complicações; e a experiência da paciente, e portanto sua confiança, de diferentes profissionais de saúde.16,33,42

Preparação para a autogestãoNa fase de preparação, as mulheres relataram receios, incertezas ou ambivalência, que por ve-zes tinham a ver com a decisão de interromper a gravidez, mas muitas vezes tinham a ver com o processo e experiência do aborto induzido por medicamentos.19,20,22,23,29,39,43,44 O aconselhamento eficaz por profissionais capacitados durante esse primeiro passo ofereceu à mulher um senso de confiança, de estar preparada, de ter uma possibi-lidade de escolha e de estar no controle da situa-ção e foi importante para construir a aceitabilida-de da autogestão.17,22-24,44 Mulheres e profissionais sentem que um dos aspectos mais importantes do componente educacional do aconselhamento é a preparação das mulheres para os possíveis efeitos colaterais e complicações. Os componentes psicos-sociais de aconselhamento incluem: a preparação das mulheres para a variação das experiências físi-cas individuais; as dificuldades práticas e físicas da gestão do processo de expulsão em casa; e o fato de que a maioria das mulheres relatou se sentir ansiosa durante o começo do processo, mas alivia-da após sua conclusão.20,22,23,30,33,36 Oferecer o acon-selhamento adequado nas unidades de saúde foi, no entanto, considerado como um elemento que consumia muito tempo dos profissionais de saúde e também se relatou que os materiais impressos para pacientes foram subutilizados.19,22,29,33,34

Também identificamos informações sobre a autoadministração do misoprostol por meio de

redes informais, tanto no contexto do aborto legal quanto nos contextos de restrição legal. As mu-lheres buscam aconselhamento em várias fontes: amigos, família, mulheres mais velhas, websites, linhas diretas, farmacêuticos, vendedores infor-mais e às vezes até de clínicos gerais sem espe-cialidade em aborto. No entanto, a informação que recebem pode ser inconsistente e/ou inade-quada e pode levar a: variabilidade na dosagem, percurso e intervalos; ignorância quanto ao quê esperar; desconfiança quanto à qualidade do medicamento; desconhecimento da duração do processo; medo de morrer; e desconhecimento sobre as situações em que deve buscar ajuda. A ajuda pode ser buscada prematuramente, quando o sangramento começa, por medo de hemorragia, ou pode ser perigosamente tardia, resultando em complicações que requerem assistência terciá-ria.21,27,30,31,36,37,41,44-49 Estudos recentes indicam que, mesmo nos contextos de restrição legal, as mulhe-res podem obter informação confiável e clara em linhas diretas e páginas da internet de boa reputa-ção, quando disponíveis.40,44

Considerações logísticasAs mulheres buscaram a autogestão, incluindo a autoadministração, por diversas razões, como o baixo custo, a facilidade de encontrar tempo para realizar o procedimento, as necessidades reduzidas de transporte, a habilidade de lidar com o estigma e a possibilidade de interromper a gestação mais cedo. Em geral, as mulheres consideram aceitável o uso da internet, das linhas diretas e da telemedi-cina, como um esforço para reduzir as demandas logísticas do aborto induzido por medicamentos, que garante a privacidade e a desestigmatização. Algumas mulheres, no entanto, mencionaram que prefeririam um envolvimento mais direto com profissionais de saúde capacitados no ambiente dos serviços, por motivos similares, de privacida-de, facilidade e segurança.18,20,25,30,37,40,42,44,50

As mulheres que autoadministraram o medica-mento ou que gostariam de ter feito isto, valori-zaram a sensação de controle sobre o processo, a garantia de que os sintomas começariam em casa (em contraste com o receio do processo se iniciar no caminho da clínica para casa), a capacidade de se planejar para lidar com o sangramento durante o trabalho e os cuidados, e a habilidade de maxi-mizar o conforto, conseguir se organizar para ter um/a acompanhante ou, em alguns casos, para fi-car sozinha com apoio por telefone.4,21-23,44 Quando receberam aconselhamento por profissionais de

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saúde capacitados na autoadministração de miso-prostol, os profissionais confiaram na capacidade das mulheres para cumprir com as prescrições de dosagem e horários, as mulheres se sentiram se-guras e, na maior parte das vezes, os abortos acon-teceram sem maiores complicações, e, quando necessário, elas chamaram linhas diretas ou con-sultaram profissionais de saúde.19,21,26,28,32-34,37,44,50

Embora menos comum, preocupações relacio-nadas à prescrição do uso doméstico do misopros-tol envolviam o receio de que as mulheres não mantivessem o misoprostol oral por tempo sufi-ciente na bochecha, o que produz abrasões, os en-jôos produzidos pelo gosto do misoprostol, tomar o medicamento mais cedo do que o indicado, ter dificuldade de se administrar o misoprostol vagi-nalmente e preocupações quanto à forma correta de tomar o medicamento.19,29,44 Também houve re-latos de equívocos e inconsistências relacionadas à prescrição e ao uso de analgésicos como parte do aconselhamento para o uso doméstico, como, por exemplo, a equipe não oferecer analgésico ou as mulheres não fazerem uso dos mesmos por medo de que pudessem interromper o processo de aborto ou por acreditarem que o comprimido de misoprostol já continha analgésico.18,44

Questões de escolha e controleDiversos fatores sociais, econômicos e culturais, como privacidade, custo, conveniência, conforto e percepções de assistência médica, afetaram a preferência das mulheres pela autoadministração de misoprostol. As mulheres desejavam escolher o método de aborto adequado ao seu contexto e circunstâncias.20,29,42,42,44 Ter a opção da autoadmi-nistração doméstica (versus tomá-lo na unidade de saúde) pode ser um elemento importante para a aceitabilidade do aborto induzido por medica-mentos.4,20,23,25,43

Entre mulheres e profissionais de saúde hou-ve preocupações com relação à autonomia das mulheres no processo de decisões sexuais e re-produtivas e sobre potenciais consequências in-desejadas do maior acesso ao aborto induzido por medicamentos por meio da autogestão e da autoadministração. Especificamente, houve preo-cupações de que o maior acesso ao misoprostol, especialmente por meio de farmacêuticos, com ou sem receita, pudesse aumentar o envolvimen-to de homens e mães no controle sobre o aborto - de maneira restritiva ou coerciva - e aumentar o aborto seletivo, por sexo.26,30,33,42,49 Mais uma vez, os profissionais de saúde foram otimistas, porque

a opção da autoadministração doméstica poderia ampliar o acesso ao aborto para mulheres mais jovens, cuja idade muitas vezes representa um obstáculo ao acesso, mas algumas mulheres mais velhas mostraram-se preocupadas com o fato de que um maior acesso pudesse incentivar o uso do aborto como planejamento familiar rotineiro para mulheres mais jovens.22,42

De maneira geral, farmacêuticos se beneficiam das informações sobre interrupção de gravidez, mas no contexto da ilegalidade, temem as reper-cussões jurídicas. Entretanto, alguns se arriscaram e aconselharam mulheres (muitas vezes baseados em capacitações e conhecimento inadequados) sobre o uso do misoprostol, sobre o processo de abortamento e, em alguns casos, até distribuíram o medicamente.28,33,36,47 Mulheres e profissionais de saúde, no entanto, desconfiam da capacidade dos farmacêuticos para aconselhar e administrar adequadamente o aborto induzido por medica-mentos. A desconfiança se baseia na percepção de que os farmacêuticos são comerciantes, não têm conhecimento adequado e são incapazes ou desinteressados na oferta de acompanhamento no caso de complicações. A desconfiança tam-bém surgiu da sensação de que as farmácias e farmacêuticos são pouco reguladas e controladas, o que aumenta o potencial para oferecer opções de tratamento e preços desiguais para a clientela e medicamentos falsificados ou de baixa qualida-de.19,20,28,32,33,36,42,47

O custo foi um fator importante na escolha pela autogestão, na perspectiva das próprias mulheres e também de médicos e farmacêuticos.18,28,30,31 Para economizar, algumas mulheres foram direta-mente ao farmacêutico sem consultar um médico e algumas escolheram usar apenas o misoprostol (ao invés de misoprostol e mifepristona).28,30 Os farmacêuticos também relataram que julgavam o poder de compra das clientes ao recomendar me-dicamentos para a interrupção da gravidez.28

Significado e experiênciaA autogestão fez surgir um novo leque de signi-ficados e experiências de aborto, aumentando a aceitabilidade desse procedimento. Entre estes destaca-se a sensação de ser um método mais “na-tural” (similar à menstruação ou ao aborto espon-tâneo), parece menos com um “assassinato”, é me-nos clínico/medicalizado, permite que a mulher esteja “no controle” e possibilita o luto e outras interpretações morais e experiências emocionais alternativas.17,22-24,35,39,43,44

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A autogestão com autoadministração também aumentou as oportunidades de envolvimento e de apoio dos parceiros às mulheres. Mas homens e mulheres expressaram o desejo de mais aconse-lhamento para os parceiros sobre o processo em si do aborto induzido por medicamentos (por exem-plo, o que esperar no que diz respeito à dor, ao sangramento, aos efeitos colaterais, à duração do processo) e sobre o seu papel no apoio às parcei-ras.24,26,27,40,44

Realizar um aborto em casa também significa um maior contato direto com os produtos da con-cepção, já que eles são expulsos, e as evidências descrevem diferentes níveis de conforto para com isso. Muitas mulheres ficaram curiosas para ver, outras ficaram preocupadas sobre o que elas iriam ver, enquanto outras manipularam os produtos da concepção para os examinar mais de perto. O con-forto ao ver estes produtos variou de acordo com o contexto pessoal e cultural.17,20,23

DiscussãoDe maneira consistente com os resultados quan-titativos, a maioria das mulheres que viveu a ex-periência do aborto induzido por medicamentos nos contextos legais relatou uma forte sensação de satisfação com a escolha de autogestão, mas algumas expressaram o desejo de mais assistên-cia medicalizada. As razões para isso incluíram: insegurança sobre a administração adequada do medicamento, conveniência, capacidade de lidar com complicações, ter apoio durante o processo e manter a privacidade. O conceito de “privacidade” é um bom exemplo das especificidades culturais de alguns destes resultados. De maneira similar, o conceito de “conveniência” depende de como a mulher interpreta as diferenças entre sua casa e a unidade de saúde e de como essas diferenças afetam o que lhes parece confortável. Na Suécia, por exemplo, as mulheres e seus parceiros consi-deraram a escolha de ficar em casa como positiva por causa da privacidade, tranquilidade, seguran-ça e conforto que oferecia.23,24 Mulheres vivendo em áreas rurais na Índia, no entanto, apesar de considerarem que ficar em casa ajudava a manter a privacidade (porque evitaria que os vizinhos vis-sem as idas e vindas ao hospital), se opuseram a tomar o misoprostol em casa porque temiam não ter a assistência necessária, não ter um lugar para repousar e ainda teriam que continuar a realizar suas tarefas domésticas e a servir as outras pessoas da família.42 Onde for possível, as mulheres deve-

riam ter a oportunidade de escolher diferentes op-ções do aborto induzido por medicamentos, com diferentes graus de autogestão1, da maneira mais adequada ao seu contexto e às suas preferências.

Sintetizar as experiências e percepções sobre a autogestão nos dois contextos jurídicos revelou o papel fundamental do aconselhamento infor-mado para a garantia da realização do aborto in-duzido por medicamentos e para a melhoria da confiança das mulheres. Programas de redução de danos demonstraram que é possível oferecer aconselhamento adequado mesmo em contex-tos restritos.34,50 Uma intervenção interessante em um contexto legalmente restrito baseou-se no dever do profissional de saúde de informar às mulheres sobre as opções que elas têm quando lidam com uma gravidez indesejada e uma destas opções é obter o misoprostol no mercado ilegal.34 Essa intervenção envolveu informar as mulheres sobre a disponibilidade do misoprostol no mer-cado ilegal, sobre os cuidados na compra do me-dicamento, modos de uso (se optarem por este caminho), e consultas de acompanhamento. Os programas de aconselhamento nos contextos res-tritivos preparam as mulheres para a autogestão (incluindo a autoadministração e frequentemen-te a autoavaliação) e, por isso, são abordagens importantes para a formulação de programas de redução da medicalização do aborto nos contex-tos em que é legalizado. Com base nas evidências dos dois contextos, recomendamos que o acon-selhamento e o apoio às mulheres para a auto-gestão incluam instruções e informações sobre: 1) distinções entre o aborto induzido por medica-mentos e a contracepção de emergência ou oral, 2) como usar o medicamento, incluindo dosagem, momento e forma correta de administração via vaginal ou oral, 3) efeitos esperados, incluindo a grande variação dos efeitos físicos e os possíveis efeitos psicológicos, 4) possíveis efeitos colaterais e como lidar com eles, 5) como planejar a gestão do processo de expulsão em casa, 6) se e quan-do tomar analgésicos, quais analgésicos tomar e onde podem ser obtidos, e 7) como reconhecer as situações em que se deve buscar ajuda.

Em relação à gestão do processo de expulsão, uma diretriz recomenda que as mulheres recebam orientação sobre o que podem fazer com os pro-dutos da concepção e uma opção é levar o tecido ao centro de saúde para o descarte adequado.51 Lidar com os produtos da concepção é um ele-mento importante da experiência da autogestão

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do aborto induzido por medicamentos e não é suficientemente relatado na literatura qualitativa. Esta pode ser uma área sensível para as mulheres, e os desenhos de pesquisa, portanto, devem de-dicar espaço e tempo para que os pesquisadores desenvolvam empatia e confiança com as mulhe-res de modo que possam explorar esta questão. É importante compreender as práticas e preferên-cias das mulheres no que diz respeito ao material expelido, especialmente porque elas variam de acordo com a cultura, mas também com relação à idade gestacional do feto. Estas diferenças podem facilitar ou dificultar para as mulheres a descrição do surgimento do sangramento e a identificação da passagem do feto, assim como define suas pre-ferências sobre o que fazer com os produtos da concepção.

O aconselhamento, em qualquer contexto, também devem ser oferecido para as pessoas que apoiam a mulher durante o aborto e, em particu-lar, para seus parceiros. Uma importante questão para pesquisas é o modo como as expectativas, os níveis de conforto e de confiança dos parceiros e de outras acompanhantes moldam a experiência das mulheres e o processo de autogestão. Esta questão pode ser especialmente importante nas situações em que o receio dos homens quanto ao nível de dor ou sangramento os leva a insisti-rem para que suas parceiras procurem os serviços de saúde. No entanto, as considerações sobre as necessidades dos parceiros também devem ser ponderadas com a possibilidade de que o envolvi-mento dos homens pode levar a restrições ou co-erção em relação ao aborto. Um estudo brasileiro descreveu um caso criminal em que um homem inseriu o misoprostol na vagina de sua parceira durante o sexo sem que ela soubesse.47 Por outro lado, em contextos restritos, os homens muitas vezes desempenham uma função importante na obtenção do misoprostol na farmácia, já que é menor a chance de que sejam questionados pelos farmacêuticos (já que o medicamento é receitado para úlcera - mais comum entre homens).

Uma vez que a autogestão do misoprostol e da mifepristona52 tem se tornado o padrão assis-tencial, são necessárias mais pesquisas qualitati-vas sobre a experiência com essas formas menos medicalizadas de oferta de assistência. Uma boa contribuição para este corpo de evidências será, por exemplo, o estudo qualitativo sobre inovações que está sendo realizado na Austrália, onde pacotes combinados de mifepristona e misoprostol estão

disponíveis para serem receitados por médicos e distribuídos nas farmácias.27,28 Além disso, em contextos onde mulheres não conhecem o aborto induzido por medicamentos, esta opção pode ser apresentada a depender das opiniões dos profis-sionais a respeito da elegibilidade, conveniência e risco do procedimento. Compreender estes moti-vos implícitos e explícitos para oferecer a algumas mulheres a opção de administrar em casa, e a ou-tras não, é importante porque cada profissional de saúde pode estar interpretando a “elegibilidade” de acordo com seus próprios critérios implícitos, o que, por sua vez, limita as opções de certas mulhe-res (por exemplo, mulheres de áreas rurais).

Limitações da análiseAs principais limitações desta análise foram a variabilidade dos modelos de assistência para o aborto induzido por medicamentos nos contextos estudados. Uma outra limitação foi o fato de que a autogestão raramente foi o tópico principal de interesse dos estudos avaliados e, por isso, os da-dos sobre a autogestão são pouco robustos. Isso pode se dever ao fato das questões relacionadas à autogestão não terem sido exploradas tão extensi-vamente quanto deveriam ou porque não foram abertamente relatadas. Também foi difícil distin-guir na literatura qualitativa se as diferenças nas experiências se relacionavam a diferentes mode-los de autogestão e como o acesso ao aborto por mifepristona-misoprostol vs. o aborto apenas por misoprostol influenciou a experiência.

ConclusãoA aceitabilidade e a viabilidade geral da auto-gestão do aborto induzido por medicamentos é apoiada por evidências qualitativas. No entanto, esta revisão das evidências qualitativas revelou que, a partir de uma perspectiva global, é necessá-rio se conduzir mais pesquisas qualitativas sobre o tema. São necessárias pesquisas sobre todos os aspectos do processo de autogestão (e.g., autoad-ministração, gestão da expulsão, avaliação da in-terrupção, acompanhamento - quando necessário, etc.), já que os serviços tornam-se cada vez menos medicalizados. Nossos resultados destacam as mu-danças em direção ao aborto menos medicalizado e as experiências, preferências e preocupações ad-vindas destas mudanças. Fornece uma base para o argumento de que as evidências provenientes de contextos legais e legalmente restritivos nos ofere-cem conhecimentos relevantes sobre o tema.

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AgradecimentosAgradecemos a Debbie Constant, Jane Harries e Bela Ganatra por revisar e oferecer feedback sobre a lista dos estudos selecionados. Agradecemos a Kim Tapscott por sua ajuda e a Kristen Daskilewicz por seu feedback. Esta análise foi realizada como

parte de uma série de sínteses de evidência para o desenvolvimento de diretrizes sobre “O papel dos pro-fissionais de saúde na oferta de assistência ao aborto seguro” desenvolvido pelo Departamento de Saúde e Pesquisa Reprodutiva da OMS. Também agradece-mos especialmente ao apoio do Departamento.

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RésumeL’avortement médicamenteux est une méthode d’interruption de grossesse qui, par sa nature, permet une participation plus active des femmes à la gestion, et parfois même l’administration des médicaments pour leur propre avortement. Cette synthèse de données qualitatives a examiné les données mondiales sur les expériences, les préférences et les préoccupations relatives à une autogestion croissante de l’avortement médicamenteux, avec une moindre participation des professionnels de santé. Nous nous sommes concentrés sur la recherche qualitative, depuis de multiples perspectives, sur la manière dont les femmes ont vécu l’autogestion d’un avortement médicamenteux du premier trimestre (< 12 semaines) de gestation. Nous avons inclus la

ResumenEl aborto con medicamentos es un método de interrupción del embarazo que por su naturaleza permite una participación más activa de las mujeres en el proceso de manejar, y en algunos casos incluso administrar los medicamentos, para su aborto. Esta síntesis de evidencia cualitativa revisó la evidencia mundial de experiencias, preferencias e inquietudes relacionadas con mayor automanejo del aborto con medicamentos y menos participación de profesionales de la salud. Nos enfocamos en investigaciones cualitativas, desde múltiples puntos de vista sobre las experiencias de las mujeres con el automanejo del aborto con medicamentos en el primer trimestre de embarazos (< 12 semanas) de gestación. Incluimos investigaciones de contextos donde es

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recherche portant sur des environnements légaux et juridiquement restrictifs, que l’avortement médicamenteux ait été obtenu par des systèmes formels ou informels. Une équipe de quatre personnes a sélectionné 36 études réunissant les critères d’inclusion, en a extrait des données et rédigé un projet de synthèse. Les résultats ont été organisés d’après les thèmes suivants : perceptions générales de l’autogestion, préparation à l’autogestion, considérations logistiques, questions de choix et contrôle, et signification et expérience. La synthèse montre que la base de données qualitative est encore mince, mais que ces informations indiquent une acceptabilité globale de l’auto-administration. Nous soulignons des points particuliers à prendre en compte lors de l’application des options d’autogestion, et nous identifions des domaines clés pour de futures recherches. Il faut poursuivre les recherches qualitatives pour étoffer cette base de données importante.

legal y donde es restringido por la ley, ya sea que los servicios de aborto con medicamentos hayan sido accedidos por medio de sistemas formales o informales. Un equipo de revisión integrado por cuatro personas identificó 36 estudios que reunían los criterios de inclusión, extrajó datos de estos estudios y redactó los hallazgos de la revisión sintetizada. Los hallazgos fueron organizados bajo las siguientes temáticas: percepciones generales del automanejo, preparación para el automanejo, consideraciones logísticas, asuntos de elección y control, y significado y experiencia. La síntesis destaca que la base de evidencia cualitativa aún es pequeña, pero que la evidencia existente indica la aceptación general de la autoadministración. Destacamos asuntos específicos que deben ser considerados al aplicar las opciones de automanejo, e identificamos áreas clave para futuras investigaciones. Se necesitan más investigaciones cualitativas para fortalecer esta importante base de evidencia.

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101Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2015.06.004

A demanda pela descriminalização do aborto é cada vez mais uma prioridade na agenda das or-ganizações feministas na América Latina e no Ca-ribe. Como parte desta ação, coletivos feministas de vários países em que o aborto é legalmente restrito e inseguro, começaram a implementar as Linhas diretas para o Aborto Seguro (LIAS). Trata--se de um serviço de informação cujo propósito é promover o acesso a abortos seguros,1 oferecendo às mulheres informações por telefone sobre como interromper a gravidez utilizando o misoprostol, um medicamento de prostaglandina em formato de pílula, que está na Lista de Medicamentos Essen-ciais da Organização Mundial de Saúde. Este artigo descreve e analisa o trabalho e as experiências de linhas diretas em cinco países latino-americanos - Argentina, Chile, Equador, Peru e Venezuela - onde há restrições legais para o acesso a abortos seguros.

MetodologiaO estudo foi qualitativo e consistiu da observação participante de várias atividades organizadas por

três destes grupos e entrevistas em profundidade com dez ativistas mulheres que atuam como vo-luntárias nas linhas diretas, identificadas por meio da amostragem tipo bola de neve. Também en-trevistei 14 mulheres que requisitaram informa-ção de uma das LIAS e que, depois de informadas, realizaram um aborto utilizando o misoprostol. As mulheres que usaram os serviços de linhas diretas deram o consentimento informado para a entre-vista, gravação e publicação dos resultados da pes-quisa. O Comitê de Ética do Hospital Nacional de Córdoba, na Argentina, aprovou a pesquisa com as mulheres que utilizaram o misoprostol. Os resulta-dos também se basearam na análise de materiais dos cinco coletivos de linhas diretas envolvidos: documentos e relatórios, posts de mídias sociais e detalhes de protestos e declarações públicas.

O principal intuito da pesquisa foi descrever o potencial das linhas diretas para a redução dos riscos do aborto inseguro para as mulheres que vivem em contextos de restrição legal ao aborto na América Latina.

Linha direta: uma estratégia eficaz para ampliar o acesso das mulheres ao aborto seguro na América Latina

Raquel Irene DrovettaPesquisadora, Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET); Professora da Universidade Nacional de Villa María e Universidad Siglo 21, Argentina. Contato: [email protected]

Resumo: Este artigo descreve a implementação de cinco Linhas Diretas para o Aborto Seguro (LIAS), uma estratégia desenvolvida por coletivos feministas em vários países onde o aborto é legalmente restrito e inseguro. Essas linhas têm vários objetivos e assumem diferentes formas, mas todas oferecem às mulheres informações por telefone sobre como interromper uma gravidez com misoprostol. Este artigo é baseado em um estudo qualitativo realizado em 2012-2014 sobre a estrutura, objetivos e experiências destas linhas diretas em cinco países latino-americanos: Argentina, Chile, Equador, Peru e Venezuela. A metodologia incluiu a observação participante das atividades das LIAS e entrevistas em profundidade com as ativistas feministas que oferecem estes serviços e com 14 mulheres que utilizaram a informação oferecida pelas linhas diretas para realizar abortos. Os resultados também se basearam na análise de materiais obtidos pelos cinco coletivos que oferecem as linhas diretas: documentos e relatórios, posts em mídias sociais e detalhes de protestos e declarações públicas. As linhas diretas tiveram um impacto positivo no acesso ao aborto seguro para as mulheres que as utilizaram. Oferecer este tipo de serviço requer conhecimento e informação, mas pouca infraestrutura. Eles têm o potencial de reduzir o risco do aborto inseguro para a saúde e a vida das mulheres e devem ser promovidos como parte das políticas públicas de saúde, não apenas na América Latina, mas também em outros países. Além disso, promovem a autonomia de mulheres e o direito de decidir se querem continuar ou interromper uma gestação.

Palavras-chave: aborto, misoprostol, feminismo, linhas diretas para o aborto seguro, direitos sexuais e reprodutivos, América Latina

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O impacto global do aborto inseguroNo mundo em desenvolvimento, 56% dos abor-tos são inseguros. No mundo desenvolvido, ape-nas 6% dos abortos são inseguros.2 Globalmente, 40% das mulheres em idade reprodutiva vivem em países com leis altamente restritivas em que o aborto é completamente proibido ou permitido apenas para salvar a vida da mulher ou proteger sua saúde física ou mental.3 No Chile, El Salvador, Honduras, República Dominicana, Nicarágua e Su-riname, todos os abortos são criminalizados. Por outro lado, na Cidade do México, Uruguai, Cuba, Porto Rico, Guiana e Guiana Francesa, o aborto é legal quando realizado antes da décima segunda ou décima quarta semana de gravidez. No resto dos países da América Latina e do Caribe, aplica-se o “modelo de indicações”, que permite o aborto por certos motivos,4 como o risco de vida ou saúde da mulher, a inviabilidade do feto fora do útero, e/ou quando a gestação é resultado de estupro ou abuso sexual.

O principal problema nos países com leis res-tritivas de aborto é que as mulheres com poucos recursos dependem de profissionais pouco capaci-tados ou realizam elas mesmas o aborto com mé-todos inseguros. Nesses casos, há um grande risco de abortamento incompleto, infecção, perfuração uterina, doença inflamatória pélvica, hemorragia ou lesões a órgãos internos que podem levar a morte, morbidade permanente e/ou infertilidade. Por isso, é importante que as mulheres recebam as-sistência pós-aborto adequada para estas compli-cações, que podem ajudar a reduzir a morbimor-talidade do aborto inseguro, quando está acessível no momento certo.5 Estudos realizados na América Latina6 indicam que o aumento da automedica-mentação com misoprostol está relacionado à re-dução de complicações sérias e da morbimortali-dade materna causada por abortos inseguros com outros métodos. Este artigo demonstra como as Linhas diretas para o Aborto Seguro permitem que as mulheres obtenham informação confiável sobre o aborto induzido por medicamentos.

O aborto induzido por medicamentos em contextos legalmente restritosNa realidade, a penalização e a criminalização do aborto não se associam a menores taxas de aborto.2

Tais medidas não desmotivam as mulheres a procu-rar um aborto, mas aumentam, sim, os riscos à sua saúde e à vida. No contexto da clandestinidade, uma das opções que ganhou força nas últimas décadas

foi o uso de aborto induzido por medicamentos*. O aborto induzido por medicamentos utilizando uma combinação de mifepristona e misoprostol, tal como sugerido pela OMS, tem a segurança e um perfil de eficácia similares ao aborto cirúrgico ou por aspiração, quando realizado no primeiro tri-mestre da gravidez.7 Em países em que o aborto é legalmente restrito, no entanto, a mifepristona não foi aprovada porque a sua única indicação é para induzir o aborto.

Onde a mifepristona não foi aprovada, como na América Latina, o aborto induzido por medica-mentos é realizado com a droga misoprostol, uma prostaglandina E1 análoga que está disponível em farmácias desde o final dos anos 1980, sob o nome comercial Cytotec, como medicamento para tra-tar úlceras gástricas. O misoprostol provoca con-trações uterinas que causam o descolamento do tecido formado durante a gravidez, similar ao que ocorre durante o aborto espontâneo. A expulsão dos conteúdos do útero apenas com o misoprostol ocorre em 80-85% dos casos.8 A forma de uso mais frequente é a inserção das pílulas na vagina, ou pela via oral ou sublingual, utilizando uma dose que seja relacionada ao número de semanas de gravidez, a partir do último período menstrual9†.

Iniciado no final dos anos 1980, o uso do miso-prostol fora da rede de saúde e fora do controle dos profissionais de saúde se espalhou rapidamen-te, com a informação sendo passada de boca em boca entre mulheres que haviam realizado um aborto sem complicações. A partir dos anos 1990, o misoprostol se tornou o abortivo mais utilizado em vários países da América Latina,10 porque per-mite a interrupção segura da gravidez,1 mesmo onde há restrições legais e em contextos com re-cursos limitados de assistência à saúde. Esse me-dicamento permite que as mulheres realizam por si mesmas os passos necessários, e simples, para o procedimento11. A decisão de realizar um aborto com misoprostol pode até mesmo preceder a con-sulta com um médico.12

Na maioria dos países latino-americanos, as mulheres compram o medicamento em farmácias, com ou sem receita médica.10,13 Onde há restri-ções legais para a venda em farmácias, como, por exemplo no Brasil, o acesso se torna mais difícil.

* Também chamado de aborto medicamentoso, principalmente nos EUA.† O protocolo atualizado para o aborto induzido por medicamentos apenas com misoprostol pode ser acessado detalhadamente no Guia de Práticas Clínicas da OMS para o Aborto Seguro de 2014.8

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No mercado negro, há o risco de se comprar um produto mais caro do que nas farmácias e que também pode ter sido adulterado ou é ineficaz.14,15

Com base em pesquisas exaustivas, a OMS in-cluiu o misoprostol na sua Lista de Medicamentos Essenciais para a interrupção precoce da gravidez, tratamento medicamentoso de aborto espontâneo retido e indução do parto.16 Isso significa que os estados membros das Nações Unidas devem incor-porar o misoprostol para o uso obstétrico nos seus sistemas de saúde, devido a sua contribuição para a redução da morbimortalidade materna, diretriz que é apoiada por organizações regionais.17

Na América Latina, estudos demonstram que, na última década, houve relação entre o acesso ao misoprostol e a redução do atendimento hos-pitalar por complicações de aborto inseguro.6 Es-tes estudos atribuem pelo menos uma parte das razões à ampla distribuição e popularidade que o misoprostol ganhou‡, especialmente em popula-ções urbanas.20

Mulheres que apoiam mulheres para realizar o aborto seguroHá precedentes históricos de grupos feministas que ajudam as mulheres a realizar abortos segu-ros, como, por exemplo, durante a segunda onda de feminismo. Uma destas experiências aconteceu em Roma, na Itália, organizada por feministas de esquerda, que formaram o grupo “Soccorso Rosa”. Essa organização criou uma rede de ajuda mútua para a realização de abortos cirúrgicos, facilitados por médicos em locais clandestinos e esta experi-ência foi depois replicada em outras cidades italia-nas.21 Na França, o Mouvement pour la Liberté de l’Avortement et de la Contraception (MLAC), foi com-posto por feministas que, nos anos 1970, criaram redes em todo o país, incluindo médicos compro-metidos que facilitavam a realização de abortos seguros para as mulheres. Elas também aprende-ram a realizar o aborto elas mesmas. A experiência foi retratada no documentário de 1980 chamado “Regarde, elle a les yeux grands ouverts” (Olhe, ela está de olhos bem abertos), que traz uma discus-são importante sobre a necessidade do grupo con-tinuar a funcionar mesmo após a legalização do aborto na França, o que de fato aconteceu§. Nos

‡ Por exemplo, Prada18 revelou que em 2009 metade dos abortos realizados na Colômbia foram feitos com misoprostol. Resultados similares foram observados anteriormente no Brasil por Barbosa e Costa20.§ Acesse: http://www.fondation-copernic.org/spip.php?article75 para ver uma curta história (em francês).

Estados Unidos, mulheres de Chicago organizaram o “Jane Collective” (Coletivo Joana) que atuou de 1969 a 1973 oferecendo abortos, primeiro por mé-dicos de confiança e depois elas mesmas realizan-do abortos. A sua experiência foi extensivamente registrada por membros da Jane em 1997 e em anos posteriores.22,23

Nesse período, em todos os três países descri-tos, em geral o contato era realizado por telefo-ne ou pessoalmente. O processo incluía oferecer informação a mulheres sobre o que elas estavam prestes a enfrentar, assim como o acompanha-mento pessoal e o apoio emocional necessários no momento do aborto. Os métodos de aborto seguro disponíveis eram cirúrgicos e altamente eficazes. Além disso, estes coletivos buscavam responder à falta de recursos econômicos de boa parte das mu-lheres para arcar com os custos de um aborto. His-toricamente, assim como hoje em dia, o dinheiro sempre foi um obstáculo para o acesso a serviços de aborto seguro, inclusive nas situações clandestinas.

O aborto induzido por medicamentos ainda não havia sido desenvolvido, com seu potencial para um aborto autoinduzido, de fácil acesso, au-tônomo e de baixo custo.

Cinco linhas diretas para o aborto seguro na América LatinaAs linhas de telefone que oferecem informação, aconselhamento, avaliação e ajuda, entre outras coisas, são um recurso com precedentes importan-tes. Em países da América Latina, governos e di-ferentes organizações implementaram serviços de aconselhamento pelo telefone para todos os tipos de informação, aconselhamento e consultas: pre-venção ao suicídio, vícios, HIV e AIDS, saúde sexual e reprodutiva, contracepção e gravidez indesejada, violência e violência sexual. Até a igreja tem linhas diretas, por exemplo, para o acompanhamento espiritual para casais em crise, ou para oferecer “apoio espiritual” após um aborto.

De maneira similar, as Linhas diretas para o Aborto Seguro surgiram com o intuito de informar as mulheres via telefone sobre como realizar um aborto usando o misoprostol. Elas trabalham em contextos em que o acesso a serviços de aborto seguro é legalmente restrito e onde o estigma, a violência obstétrica e os grupos de pressão autoin-titulados “pró-vida” também são ativos.24,25,35 Essas linhas diretas são de iniciativa de coletivos de mu-lheres e não fazem parte de nenhuma instituição

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de saúde. Pelo contrário, são espaços indepen-dentes que oferecem informação de saúde e que desafiam as estruturas convencionais biomédicas/clínicas, e os seus serviços não são oferecidos por médicos ou homens. Elas criam um ambiente fa-vorável a melhorias no “itinerário do aborto” das mulheres,10,39 porque o acesso a informação ade-quada e confiável dá às mulheres a possibilidade de ter um aborto seguro para sua saúde e para suas vidas - nesse caso, com misoprostol.

As experiências das Linhas diretas para o Aborto Seguro aqui descritas, foram realizadas no Equa-dor, Venezuela, Peru, Chile e Argentina.

Equador: “Coletivo de Saúde das Mulheres - Tel 0998-301317”Em junho de 2008, a primeira destas cinco ini-ciativas na região foi inaugurada em Quito, no Equador, pela Coordinadora Política Juvenil por la Equidad de Género (CPJ, Coordenação Política Juvenil pela Igualdade de Gênero) como parte do projeto “Linha de informação sobre sexualidade e aborto seguro, Saúde das Mulheres”¶. Esta é uma organização de jovens feministas que trabalham para promover, defender e garantir os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e jovens no Equador.26 Sua linha direta foi a primeira na re-gião, e foi criada com o apoio da organização ho-landesa, Women on Waves (WOW, Mulheres nas Ondas)**.

Um objetivo central desta linha direta é alcan-çar a descriminalização social e legal do aborto. No seu blog (que conta com aproximadamente 2,5 milhões de visitas desde sua criação em 2008) as ativistas oferecem serviços via chat (desde 2013) em dias e horários pré-estabelecidos. Também é possível contactá-las por e-mail e deixar comen-tários em seus posts. De acordo com o relatório, os posts mais consultados são “Como realizar um aborto seguro” e “Questões mais frequentes”. Um dos posts menos consultados é “Métodos de con-trole de natalidade”.26

Em setembro de 2010 a linha direta foi blo-queada por uma ordem judicial, mas uma nova linha foi inaugurada imediatamente e continua a operar até o momento. Nesse contexto, blo-gs e redes sociais são estratégias eficazes para

¶ http://jovenesdespenalizacionaborto.wordpress.com/ ** A organização Mulheres nas Ondas foi fundada com o intuito de prevenir gestações indesejadas e abortos inseguros ao prestar serviços de saúde sexual, incluindo a pílula do aborto, a bordo de um navio holandês fora das águas territoriais dos países onde o aborto é ilegal. http://www.womenonwaves.org/ .

superar obstáculos e as intervenções de grupos conservadores e para que se continue a oferecer informação.

Recentemente, elas abriram um espaço para consultas pessoais chamado Warmikunapa Willa-chik Wasi, ou Casa da Informação da Mulher, que opera na cidade de Quito. Elas defendem a neces-sidade de se desmedicalizar o aborto e promovem o poder de decisão das mulheres sobre seus cor-pos, soberanía sobre nuestros cuerpos (a soberania sobre nossos corpos). Uma característica distinta deste coletivo é que elas se identificam fundamen-talmente com a juventude.

Argentina: “Linha direta de aborto: mais informação, menos riscos - 011-15-66-64-7070”Em Buenos Aires, a Linha de Informação de Aborto Seguro é parte do projeto “Aborto: mais informa-ção, menos riscos” e está operando desde 2009, mantida pelo coletivo Lesbianas y Feministas por la Descriminalización del Aborto (Lésbicas e Fe-ministas pela Descriminalização do Aborto)††. As fundadoras decidiram se distanciar do feminismo da maioria e dos seus slogans na luta pela legali-zação do aborto na Argentina. Elas buscam se dis-tanciar de ideias estabelecidas como do perigo e das mortes associadas ao aborto clandestino, com o objetivo de reduzir o estigma e as dificuldades associadas a esse contexto.

Ao invés disso este grupo conecta a prática do aborto com o “orgulho de abortar”, afirmando que o “aborto lesbianiza” e estabelecendo o que consideram uma relação clara entre a prática do aborto e o desejo de se tornar lésbica. Os seus slo-gans buscam combater o estigma e problematizar uma visão do sexo exclusivamente heterossexista.

Em março de 2010, elas lançaram a primeira edição do manual “Tudo o que você sempre quis saber sobre como abortar com comprimidos”,27 que foi baixado mais de 500.000 vezes e teve 20.000 cópias impressas distribuídas gratuitamente. A segunda edição foi publicada em 2012.

Como resultado da sistematização dos dados coletados anonimamente por meio da linha dire-ta, o grupo apresenta relatórios anuais de ativida-des. A proposta busca trazer o discurso e a prática do aborto para fora da clandestinidade. A linha direta apresentou sete relatórios e o mais recente indica que receberam 5.000 ligações em um ano, das quais 80% foram de mulheres que vivem na região de Buenos Aires.28,29

†† http://www.abortoconpastillas.info/ .

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Atualmente a linha direta oferece serviços de aconselhamento pré- e pós-aborto na província de Buenos Aires, como resultado da cooperação de ativistas, profissionais de saúde e do setor políti-co oficial. Esse aconselhamento ocorre dentro das instituições de saúde pública e nos escritórios do partido político Nuevo Encuentro, aliados do go-verno nacional (Frente para la Victoria). É interes-sante observar como, na prática, suas ações levam a avanços na promoção de abortos seguros, mes-mo quando o governo nacional não tem vontade política para debater leis que legalizem ou descri-minalizem o aborto.

Argentina: “Aborto: mais informação, menos riscos”‡‡

Chile: “Linha direta de Aborto Chile - 8891-8590” e “Linha de aborto livre - 7530-7461”A experiência da “Linea Aborto Libre” (Linha de aborto livre) no Chile começou no Dia de Ação Internacional para a Saúde das Mulheres, 28 de maio de 2009. A linha direta foi criada pelo gru-po Bio Bio Feministas e é mantida atualmente pelo Colectivo Lesbianas y Feministas. A iniciati-va está se multiplicando e sua experiência tem sido compartilhada e desenvolvida em diferen-tes cidades do Chile. Elas operam em Santiago e Iquique (desde 2013) e em Concepción (Linha direta de Aborto Chile, desde 2009), manten-do atividade constante no Facebook e Twitter.

A conexão com a identidade lésbica, “amor en-tre mulheres” e “feminismo lésbico”, caracteriza este coletivo, o que também é o caso de grupos latino-americanos. Seu objetivo político é promo-

‡‡ http://www.despenalizacion.org.ar/pdf/publicaciones/aborto-conpastillas-informe-2010.pdf .

ver o lesbianismo como uma prática sexual não reprodutiva e um método contraceptivo30 e criticar a heteronormatividade, o patriarcado e a materni-dade obrigatória.

É importante apontar que, no Chile, o serviço opera em um contexto em que todos os abortos são ilegais desde 1989, último ano da ditadura Pi-nochet, e inexiste a possibilidade de realização de aborto terapêutico. Em 2016, a presidente Michele Bachelet enviou ao congresso um projeto de lei que iria descriminalizar o aborto sob três circuns-tâncias. Mas as ativistas das linhas diretas não con-sideraram esta lei favorável, já que a maioria dos abortos continuaria criminalizada.

Desde 2009, a linha direta em Concepción aten-deu mais de 20.000 ligações. Os dados indicam que o maior obstáculo é obter o misoprostol, e que 90% das mulheres compra o remédio online no mercado clandestino. Elas publicaram o Línea Aborto Chile: El Manual (Linha Direta de Aborto Chile: o Manual),30 que está à venda em livrarias e pode ser baixado no blog delas§§.

Este grupo realizou muitas intervenções públi-cas para a descriminalização do aborto e outras atividades, como a mobilização nacional sob o slo-gan “Sem médicos ou polícia, nossos abortos são felicidade”, e realizaram oficinas sobre a autoin-dução do aborto em várias cidades no Chile. Tam-bém divulgam informações e dados sobre as linhas diretas em conferências acadêmicas.31 Por meio da criação de uma editora feminista, elas oferecem edições em espanhol de obras clássicas do ativismo feminista e do direito ao aborto. Também têm um centro operando em Santiago e Iquique.

§§ http://infoabortochile.org/ .

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Peru: “Linha de informação confiável de aborto - 945-411-951”Este grupo de Lima, no Peru, também recebeu aju-da inicial do Women on Waves. Suas atividades se iniciaram em maio de 2010, com o projeto “Abor-to: informação confiável”, realizado pela organi-zação feminista Colectiva por la Libre Información para las Mujeres (CLIM, Coletivo para a Informação Livre para Mulheres), composto por mulheres, ho-mens e dissidentes sexuais. Embora tenham um blog¶¶, a informação é oferecida exclusivamente por telefone, apesar de terem interrompido este serviço recentemente***.

Em outubro de 2011, a linha direta publicou seu primeiro relatório anual32 e em 2014 publicaram o manual Hablemos de aborto y misoprostol (Vamos falar sobre aborto e misoprostol).33 Este documen-to, como os documentos de outras linhas diretas, oferecem um protocolo para a utilização de mi-soprostol por meio de informação simples, com ilustrações para facilitar a compreensão. Também contém mensagens políticas sobre o direito de de-cisão das mulheres sobre fazer ou não um aborto.

No Peru, especialmente em Lima, é comum encontrar na rua publicidade de serviços clandes-tinos de aborto, que se oferecem para resolver o problema da “menstruação atrasada”. O projeto que esta linha direta promove vai na contramão dessas ações, oferecendo a opção segura e autô-noma do aborto com misoprostol.

¶¶http://lineabortoinfosegura.blogspot.com.ar/; Twitter: @LineaAbortoPeru. *** http://abortoinfosegura.com/blog/aviso-importante-tele-fono-no-atiende/, 17 de março de 2015.

Venezuela: “Linha Direta de Aborto, Informação Confiável - 0426-1169496”Em Caracas, na Venezuela, esta linha direta opera desde 2011, sustentada pelo coletivo Feministas en Acción Libre y Directa por el Aborto Seguro en Revolución (Feministas em Ação Livre e Direta pelo Aborto Seguro na Revolução). Suas fundadoras se identificam fortemente com o governo socialista de Hugo Chávez e com o presidente atual, Nicolás Maduro. No entanto nenhum destes líderes de-fendeu a descriminalização do aborto. Este é um exemplo das relações complexas entre alguns movi-mentos de mulheres latino-americanos e governos de esquerda ou de centro-esquerda na região. Em consonância com sua adesão ao socialismo, a orga-nização exige o fim do mercado clandestino e que o Estado se responsabilize pela saúde das mulheres.

Este coletivo também promove a descriminali-zação do aborto e o acesso ao misoprostol. Elas são ativas no Facebook e no Twitter e têm um blog†††, oferecendo informações sobre aborto se-guro e desmedicalizado. Desde o início, a organi-zação demonstrou grande preocupação com o uso incorreto do misoprostol pelas mulheres venezue-lanas. Desde 2013 elas atenderam cerca de 450 chamadas por mês.

Similaridades e diferençasTodas as linhas diretas aqui descritas são integrantes da Red de Experiencias Autónomas de Aborto Seguro (REAAS, Rede de Experiências Autônomas de Aborto Seguro). Essa rede possibilita que as organizações troquem experiências sobre sua atuação local.

Há diversos pontos em comum entre as ativi-dades dos grupos. Por exemplo, as linhas diretas que usam blogs e redes sociais para disseminar o protocolo para o uso seguro de misoprostol, como recomendado pela OMS, e as linhas diretas do Chi-le, Argentina e Peru, reproduzem as informações em seus manuais de forma detalhada e acessível à população leiga.

Mas também há diferenças importantes. Um exemplo é que a linha direta do Chile é um pro-jeto político de uma organização feminista que não almeja dialogar com o estado, mas busca, sim, promover a autonomia das mulheres na au-toindução do aborto com misoprostol. Isso signifi-ca que não esperam pelo estado para usufruir de seus “direitos”.30 Essa posição é bastante diferente

††† Conta do Twitter: @FaldasR and Blog http://infoseguraborto.blogspot.nl/ .

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das outras quatro linhas diretas debatidas neste artigo, como, por exemplo, na Venezuela.

Esta pesquisa não foi exaustiva e é possível que trabalhos semelhantes sejam realizados em outros contextos e com outras características. Os exemplos aqui apresentados limitam-se a cinco grupos da América Latina que promoveram as suas atividades online. Há linhas diretas ativas na África subsaariana e na Ásia, por exemplo.

Essas experiências também devem ser diferen-ciadas daquelas que são oferecidos por outros coletivos de mulheres. Enquanto que nas linhas diretas apresentadas aqui o contato é realizado exclusivamente por telefone, há grupos feminis-tas que usam outros métodos, como, por exem-plo, as “Socorristas en Red” (Rede de Mulheres Socorristas) da Argentina, que estão presentes em mais de 16 cidades no país com o serviço “Socorro Rosa”‡‡‡. O grupo usa uma linha de telefone para estabelecer contato com mulheres que querem abortar usando o misoprostol, mas o aconselha-mento e o acompanhamento é oferecido pessoal-mente até o processo se completar.34

Um caso especial é o do Uruguai, onde a legis-lação permite o aborto no primeiro trimestre, mas ainda há pelo menos uma linha direta que oferece informação e é coordenada pelas feministas do co-letivo Mujeres en el Horno (Mulheres na Berlinda)§§§.

O que elas têm em comum é que são iniciati-vas realizadas por coletivos de mulheres que não fazem parte de uma instituição de saúde. Pelo contrário, são espaços que oferecem informações sobre saúde e desafiam as estruturas hierárquicas e patriarcais das organizações biomédicas.

O apoio financeiro para estes serviços é um importante desafio. Algumas vezes, elas recebem apoio financeiro de organizações internacionais, mas é temporário e elas devem produzir seus próprios recursos para seguir funcionando. Um grande número de coletivos ativistas em países onde o aborto é legalmente restrito trabalha des-ta maneira. Há registros de várias estratégias para lidar com esses limites, como, por exemplo, co-brar pelas ligações, vender boletos para rifas ou financiamentos coletivos, entre outras.

Que tipo de informação as Linhas diretas para o Aborto Seguro oferecem?Durante a comunicação por telefone, primeiro as ativistas coletam informações sobre a mulher,

‡‡‡ http://socorristasenred.blogspot.com.ar/. §§§ http://www.mujeresenelhorno.org/.

para determinar se ela está apta a usar o miso-prostol e para descartar contraindicações. A se-guir, oferecem informações sobre dosagem e vias de administração dos comprimidos de misopros-tol¶¶¶, o número de semanas da gravidez em que se recomenda usar, os níveis de eficácia, sintomas esperados, efeitos colaterais e complicações pos-síveis, em que casos se deve procurar ajuda mé-dica e outras informações. Esse é o procedimento básico que todas as linhas diretas oferecem. A in-formação oferecida é baseada em publicações da OMS e é reconhecida por organizações científicas.

Dependendo do contexto, as mulheres também aprendem sobre as estratégias mais comuns para evitar ser denunciada à polícia por médicos, caso precisem ir ao hospital. São informadas sobre per-guntas que poderão ser feitas nos hospitais, caso precisem recorrer a eles por complicações ou para realizar uma ultrassonografia pós-aborto, e sobre como lidar com essas questões e com ameaças de denúncia por parte dos médicos, protegendo e usufruindo de seu direito à assistência médica. A linha direta funciona como uma ferramenta para proteger a saúde das mulheres que não desistem de fazer um aborto, mesmo diante da possibilida-de de penalidades criminais, da clandestinidade e do estigma.

O acesso à internet, quando disponível, é um elemento muito útil para as mulheres, já que possibilita interagir com as Linhas diretas para o Aborto Seguro por meio de seus blogs, chats, Fa-cebook e Twitter. Também facilita o contato com o fornecedor de misoprostol. O status ilegal do aborto criou um mercado clandestino que levou ao aumento de preços, a maiores riscos de altera-ção do medicamento, medicamentos falsificados, e, em alguns casos, há mulheres que não recebem o produto mesmo depois de terem pago por ele.

Em geral, a linha direta é uma ferramenta de fácil acesso, especialmente em contextos urbanos, para qualquer pessoa com uma linha de telefone ou celular. Se uma mulher não pode arcar com os custos da chamada, ela pode pedir para que liguem de volta, deixando o seu número de telefo-ne. Com um telefone, o primeiro contato pode ser feito via mensagem de texto.

Outra vantagem da comunicação por telefone é que ela permite que se mantenha o anonimato diante de um tema sensível. O contato por telefone evita a estigmatização das mulheres que querem

¶¶¶ A mifepristona não é autorizada para a venda nestes países.

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abortar. Para adolescentes, permite a manutenção da privacidade e oferece apoio em um momento em que elas não recebem apoio de ninguém da família ou de outros adultos.

Pode ser difícil, porém, divulgar o serviço para as mulheres que vivem em áreas rurais isoladas onde não há coletivos de mulheres para trans-mitir as informações e, muitas vezes, os profis-sionais de saúde locais não divulgam, por puro desconhecimento.

Atualmente, redes sociais como Facebook e Twitter favorecem a disseminação de informa-ções, basicamente os números de telefone das li-nhas diretas. A publicidade abrangente do núme-ro de telefone da linha direta é um fator crucial para o seu sucesso. No entanto, uma maior visi-bilidade também produz riscos para os coletivos de mulheres. Em todos os países da região, a lei estabelece que oferecer informação não é ilegal, visto que o direito à informação é garantido pelas constituições nacionais e pelos tratados interna-cionais. No entanto, grupos antiaborto protestam contra as Linhas diretas para o Aborto Seguro.35 Li-gações falsas, ocupar a linha desnecessariamente e apresentação de denúncias às autoridades são algumas das ações realizadas por esses grupos, embora com baixo impacto.

Em todos os contextos, as Linhas Diretas para o Aborto Seguro podem ser mais eficazes se su-perarem limitações como a inteligibilidade da informação fornecida na língua local. Mulheres migrantes que ainda não dominam a língua, por exemplo, incluindo as terminologias locais para órgãos sexuais, podem ter dificuldades de com-preensão da informação. Isso pode ser compen-sado pela recomendação de leitura do manual de instruções online, no qual as ilustrações que acompanham o texto facilitam a compreensão.27,30

Em países onde o aborto é legal, os serviços de aborto incluem a assistência e o aconselhamento pré- e pós-aborto, assim como a oferta de métodos contraceptivos.28 A ausência desta assistência ho-lística é uma lacuna que as Linhas diretas para o Aborto Seguro não podem superar, já que resulta da adversidade do contexto em que as mulheres são forçadas a realizar abortos clandestinos. Não há consultas de acompanhamento das mulheres que usaram as linhas diretas. Depois que a mulher foi aconselhada, o sistema não contempla a continua-ção da comunicação nem solicita que as mulheres comuniquem sua decisão de continuar ou inter-romper a gestação, e se ela decidiu interromper a gravidez, como o fez e quais foram os resultados.

Algumas das linhas diretas tentam implemen-tar a avaliação e o monitoramento, mas não há como documentar quantas mulheres estão de fato utilizando a informação ou compartilhando--a com outras. Também é impossível saber se as mulheres utilizam o medicamento de maneira correta ou se foi útil, nem é possível realizar uma autoavaliação do serviço.

Mesmo assim, uma linha direta pode orientar as mulheres a serviços de saúde acolhedores e aces-síveis. Detectar e socializar informações sobre ser-viços de saúde acolhedores na região são ações de alto impacto para mulheres que vivem em contex-tos restritivos. Este tipo de serviço de saúde deveria oferecer consultas com profissionais ou disponibili-dade 24 horas caso a mulher necessite de cuidados, como no caso de um aborto incompleto ou da ne-cessidade de confirmação de que o aborto foi com-pleto, assim como para a escolha de contraceptivo. Se for necessário, é importante que as linhas dire-tas indiquem serviços terapêuticos de assistência pós-aborto, incluindo aqueles que oferecem ultras-sonografias para verificar se tudo está ok.

Várias linhas diretas desenvolveram formas de obtenção e registro de dados não pessoais das mu-lheres durante o telefonema. Estes dados ajudam os coletivos a entender que tipo de informação é a mais requisitada pelas mulheres que telefonam. Tanto quanto os dados sociodemográficos, é im-portante saber, por exemplo, sobre abortos medi-camentosos anteriores, sobre facilidades e dificul-dades para conseguir o misoprostol e onde ele é obtido e se a mulher conhece uma rede de apoio de profissionais de saúde. A análise aprofundada desses dados é importante porque oferece apoio empírico para questões sobre as quais ainda não há evidências (suficientes). Isso também promo-ve a produção de conhecimento a partir de uma perspectiva feminista.

Conclusões Este artigo demonstrou como a Linha de Infor-mação de Aborto Seguro é um serviço importante que permite às mulheres obter informações so-bre como realizar um aborto seguro, mesmo em contextos legalmente restritivos. Se estes serviços fossem disseminados para mais cidades nestes países e em outros lugares, muito mais mulhe-res poderiam obter esta informação em primeiro mão. Nestes serviços, a proximidade aumenta a confiança das mulheres, permitindo a indicação de serviços de saúde acolhedores, para evitar que as mulheres sejam maltratadas36, ou até mesmo

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denunciadas à polícia, caso sofram complicações durante o procedimento.

Enquanto o aborto for ilegal, estes serviços con-tinuarão a se expandir, porque são eficazes e aten-dem às necessidades imediatas das mulheres. Em vários países, mulheres que procuram por abortos são processadas e grupos autointitulados pró-vida são bem organizados. Assim, é preciso construir apoios, compromisso e conexão com outros atores sociais. Alianças com equipes de saúde acolhedo-ras devem ser fortalecidas para que se amplie o acesso à assistência ao aborto seguro.

As Linhas diretas para o Aborto Seguro são mo-delos inovadores desenvolvidos por ativistas fora do sistema de saúde e devem ser entendidas como uma forma feminista e ativista de promoção da saúde. Elas oferecem informações sobre a utiliza-ção de misoprostol para a interrupção segura da gravidez, em consonância com a perspectiva da saúde pública e do ethos da redução de danos.37

Mas as linhas diretas aqui descritas têm o objetivo feminista de promover os direitos das mulheres e os direitos humanos.

A perspectiva dos direitos das mulheres signi-fica reconhecer que as mulheres enfrentam “obs-táculos judiciais, econômicos, sociais ou culturais para ter acesso a serviços de aborto no sistema de saúde, [e que] o uso de misoprostol fora do sistema de saúde é mais seguro do que os méto-dos que elas podem vir a usar”.38 Onde o aborto é penalizado, as Linhas diretas para o Aborto Segu-ro não foram implementadas por instituições de saúde, mas a abordagem da oferta de informa-ção é pertinente aos sistemas de saúde e acredito que devem fazer parte de políticas públicas de saúde. Intervenções de redução de danos para prevenir abortos inseguros salvam vidas e de-vem ser apoiadas - mesmo por governos que não apoiam a legalização ou a descriminalização do aborto.

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ResumenEste artículo describe la aplicación de cinco Líneas de Información sobre Aborto Seguro, una estrategia formulada por colectivos feministas en un creciente número de países donde el aborto es inseguro y restringido por la ley. Estas líneas de atención telefónica tienen una variedad de metas y asumen diferentes formas, pero todas ofrecen información por teléfono a mujeres sobre cómo interrumpir un embarazo utilizando misoprostol. El artículo se basa en un estudio cualitativo llevado a cabo en 2012-2014 sobre la estructura, metas y experiencias de líneas de atención telefónica en cinco países latinoamericanos: Argentina, Chile, Ecuador, Perú y Venezuela. La metodología incluyó la observación participativa de las actividades de las SAIH y entrevistas a profundidad con activistas feministas que ofrecen estos servicios y con 14 mujeres que utilizaron la información proporcionada por estas líneas de atención telefónica para inducir sus abortos. Los hallazgos también se basan en una revisión de materiales

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RésuméCet article décrit la mise en oeuvre de cinq lignes d’information sur l’avortement sûr, une stratégie élaborée par des collectifs féministes dans un nombre croissant de pays où l’avortement est restreint par la loi et à risque. Ces lignes ont un éventail d’objectifs et prennent différentes formes, mais toutes renseignent les femmes par téléphone sur la manière d’interrompre une grossesse avec le misoprostol. L’article est fondé sur une étude qualitative réalisée en 2012-2014 sur la structure, les objectifs et les expériences des centrales d’appel dans cinq pays latino-américains: Argentine, Chili, Équateur, Pérou et Venezuela. La méthodologie incluait l’observation participative des activités des lignes d’informations ainsi que des entretiens approfondis avec des militantes féministes qui offraient ces services et avec 14 femmes qui avaient utilisé les informations fournies par ces lignes pour provoquer leur avortement. Les conclusions sont aussi fondées sur un examen des matériels obtenus des cinq collectifs concernés : documents et

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rapports, messages sur les médias sociaux et détails des manifestations et déclarations publiques. Ces lignes téléphoniques ont un impact positif sur l’accès à un avortement sûr pour les femmes qu’elles aident. Assurer ces services exige des connaissances et des compétences en information, mais peu d’infrastructures. Les lignes ont le potentiel de réduire la menace que l’avortement à risque fait peser sur la santé et la vie des femmes, et devraient être promues dans le cadre de la politique de santé publique, non seulement en Amérique latine, mais aussi dans d’autres pays. De plus, elles favorisent l’autonomie des femmes et leur droit à décider de continuer ou d’interrompre une grossesse.

obtenidos de los cinco colectivos participantes: documentos e informes, comentarios publicados en los medios sociales de comunicación y detalles sobre manifestaciones y declaraciones públicas. Estas líneas de atención telefónica han tenido un impacto positivo en el acceso a los servicios de aborto seguro para las mujeres a quienes ayudan. La prestación de estos servicios requiere conocimientos y habilidades de información, pero poca infraestructura. Tienen el potencial de reducir el riesgo del aborto inseguro para la salud y vida de las mujeres, y deben ser promovidos como parte de la política de salud pública, no sólo en Latinoamérica sino también en otros países. Además, promueven la autonomía de las mujeres y su derecho a decidir si continuar o interrumpir un embarazo.

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112 Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.11.006

Reforma da lei de aborto no Uruguai: contexto, processo e lições aprendidas

Susan Wooda, Lilián Abracinskasb, Sonia Correac, Mario Pechenyd

a Diretora do Programa Aprendizado e Avaliação, Coalizão Internacional de Saúde das Mulheres, Nova York, EUA Contato: [email protected]

b Diretora da Mulher e Saúde Uruguai, Montevidéu, Uruguai c Diretora do Observatório de Sexualidade e Política, Rio de Janeiro, Brasild Professor de Ciência Política, Professor de Sociologia da Saúde, Instituto Gino Germani, Universidade de Buenos Aires

e CONICET, Buenos Aires, Argentina

Resumo: Em outubro de 2012 uma nova lei foi aprovada no Uruguai, permitindo o aborto por demanda da mulher durante as doze primeiras semanas de gestação, 14 semanas em caso de estupro e nos casos em que a saúde da mulher está em risco ou em casos de anomalias fetais não há limite de tempo. Este artigo analisa esta reforma legislativa, baseando-se em 27 entrevistas individuais e de grupo com informantes-chave, em análise documental e revisão da literatura. Entre os fatores que explicam a reforma estão: valores seculares na sociedade, opinião pública favorável, um movimento feminista persistente, a construção eficaz de coalizões, políticas partidárias específicas e um setor de saúde politicamente ativo. O sucesso da nova lei reflete as tensões entre uma perspectiva feminista de direitos das mulheres e os argumentos da saúde pública que não reconhecem plenamente a autonomia das mulheres. A reforma uruguaia demonstra que, mesmo na América Latina, o aborto pode ser tratado politicamente sem custos eleitorais para os partidos. Por outro lado, as justificativas e condicionalidades da saúde pública que predominaram durante o processo de negociação levaram a uma lei que não pode ser interpretada como reconhecimento integral da autonomia das mulheres, mas sim como uma abordagem protecionista que

IntroduçãoEm 22 de outubro de 2012, o presidente José Mu-jica promulgou a lei “Interrupção Voluntária da Gestação”, tornando o Uruguai o primeiro país da América do Sul a reconhecer amplamente o direi-to ao aborto. Essa mudança foi fruto de mais de duas décadas de ativismo liderado por organiza-ções feministas em aliança com sindicatos, grupos estudantis e outros atores, incluindo o setor médi-co e importantes lideranças políticas.

A reforma do aborto no Uruguai tem sido foco de estudos excelentes1,2. Este artigo, baseado em um estudo descritivo do contexto e de processos políticos para reforma da lei do aborto3, almeja identificar as estratégias e os fatores facilitadores que geraram a reforma e as limitações da lei, as-sim como oferecer uma lente política e feminis-ta para analisar o processo, chamando a atenção para as limitações dos seus resultados a partir da perspectiva dos direitos das mulheres. Em nossa interpretação essa lei não significo s ginecologistas alegaram objeção de cons- ciência e, em alguns estados, esse número chega a 80%4 u o reconheci-mento pleno da autonomia das mulheres, mas tão

somente uma mudança em termos da proteção do Estado à saúde das mulheres, que reflete a forte influência das perspectivas biomédica e da saúde pública. O sucesso da reforma legal e a persistên-cia da proteção do Estado são compreendidos por meio da análise dos discursos dos principais atores e pela interpretação das condições sociais, cultu-rais e políticas do contexto uruguaio e do próprio processo de reforma legislativa.

MétodosO estudo é baseado em 27 entrevistas individuais e de grupo, representando uma amostra de con-veniência de informantes-chave: legisladores de diferentes partidos, líderes partidários e sindicais, gestores e profissionais da saúde pública, feminis-tas e outros ativistas sociais e pesquisadores, sele-cionados a partir da diversidade de suas trajetórias e experiências profissionais e políticas, diferentes posições com relação ao aborto e funções exercidas no processo da reforma. As questões de pesquisa exploraram a descrição e a interpretação política do processo. Este artigo coloca o foco sobre a inter-pretação política para demonstrar as particularida-des e complexidades do contexto uruguaio.

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A partir do consentimento oral dos entrevista-dos, gravamos, transcrevemos e analisamos as en-trevistas, utilizando técnicas manuais de pesquisa qualitativa (análise básica de conteúdo). Além disso, examinamos os textos dos projetos de lei propostos e aprovados e as normas de saúde de-les derivadas, as declarações públicas feitas por membros dos sistemas judiciário e legislativo e dados secundários, como estatísticas, pesquisas de opinião pública e estudos científicos. Este corpus foi analisado com o objetivo de reconstruir o pro-cesso político, compreender as dinâmicas de nego-ciação e interrogar as diferentes interpretações do resultado final.

Lei de aborto no Uruguai e os fatores que moldaram a mudançaO Código Penal do Uruguai criminalizava o aborto desde 1898, exceto por um breve período de tem-po entre 1934 e 1938, quando o aborto foi des-criminalizado devido à indignação pública pela morte de uma mulher por causa de um aborto inseguro4. A lei de 1938 definiu o aborto como cri-me, mas a punição poderia ser mitigada em casa de estupro, “honra familiar” (quando a mulher era “virgem” solteira, não importando se a gestação era resultado de um estupro), carga econômica excessiva ou perigo à vida da mulher. O procedi-mento, realizado por um médico, estava disponí-vel até a terceira semana de gestação, exceto em caso de risco à vida da mulher, para o qual não havia limite.

O Uruguai passou por uma ditadura militar que durou de 1973 a 1985. Quando a democracia foi restabelecida as organizações feministas se mobi-lizaram para defender a legalização do aborto. Nos anos seguintes, foram formulados quatro projetos de lei para descriminalizar o aborto. O primeiro, de 1985, não chegou ao parlamento porque não foi considerado prioridade no contexto de transi-ção democrática e não foi incluído na plataforma dos partidos no poder. Em 2004, outro projeto de lei foi derrotado no Senado por apenas quatro vo-tos. Cada um destes esforços contribuiu para o au-mento da visibilidade da questão do aborto.

Em 2005, a Frente Ampla, uma coalizão de partidos de centro-esquerda, assumiu a presi-dência pela primeira vez. Em 2008, o Parlamento aprovou um abrangente projeto de lei de Saúde Sexual e Reprodutiva, que incluía artigos descri-minalizando o aborto realizado até 12 semanas, sem restrições e sem limite gestacional, no caso

de estupro, grave risco de saúde para a mulher ou de anomalia fetal. O presidente da Frente, Tabaré Vázquez, um doutor em medicina, aprovou a lei, vetando os artigos relacionados ao aborto, apesar da posição favorável de seu partido.

Aprovação da lei em 2012Imediatamente após o veto de 2008, as feministas e seus aliados, incluindo lideranças políticas da Frente Ampla, se mobilizaram para lutar por um novo projeto de lei. Nas eleições de 2009, a Frente elegeu José Mujica como presidente e conseguiu a maioria no parlamento. A partir daí uma janela de oportunidade foi aberta para que a questão do aborto pudesse ser novamente discutida.

No Uruguai, as leis precisam ser aprovadas pe-las duas câmaras do parlamento. Em setembro de 2012, o Senado aprovou uma lei de aborto que incluía artigos similares aos vetados em 2008. Quando o projeto de lei chegou à Câmara dos De-putados, a Frente percebeu que - apesar de consti-tuir a maioria absoluta - eles não iriam conseguir os votos necessários para aprovar a lei por causa da oposição de apenas um membro da coalizão. Durante as negociações o deputado Iván Posada, do pequeno Partido Independente Cristão Demo-crata, deu o voto que precisavam. Em troca do seu voto, no entanto, Posada exigiu que o texto fosse modificado. Essas alterações, que serão discutidas em mais detalhe abaixo, anularam a ênfase inicial nos direitos das mulheres e impuseram diversas restrições no acesso aos serviços de aborto.

A Câmara aprovou a Lei de Interrupção Volun-tária da Gestação em 25 de setembro de 2012, com 50 votos a favor e 49 contra. No dia 17 de outubro o Senado ratificou o projeto de lei, tal como havia sido modificado pela Câmara. O presidente Mujica aprovou a lei cinco dias depois. Certas caracterís-ticas do contexto político e social do Uruguai aju-dam a explicar o processo de reforma legal e a lei dele resultante.

Cultura e contexto políticoDesde o início do século 20 a cultura política uru-guaia é fortemente caracterizada por valores secu-lares, por uma população pequena e majoritaria-mente urbana, com níveis altos de escolaridade. Não há religião oficial. Por muitos anos apenas dois partidos dominaram o cenário político uru-guaio5. Em 1971, foi criada a Frente Ampla, uma aliança de partidos de esquerda, mas apenas dois anos depois foi instaurada uma ditadura militar

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no país. Com a redemocratização, em 1985, os dois partidos tradicionais voltaram a se alternar no poder, até a vitória da Frente, em 2004. Desde então, a Frente se manteve na presidência e obte-ve a maioria no parlamento. A liderança da Frente favoreceu o aborto legal.

Em 2008, ao vetar a descriminalização, Vázquez foi na direção contrária da aliança integrada por seu próprio partido. Apenas três ministros do go-verno aprovaram o veto - uma indicação da exis-tência dos conflitos internos da Frente6. Mesmo o seu próprio partido, o Socialista, repudiou o veto, o que levou Vázquez a sair do partido, embora tenha permanecido na Frente como representante inde-pendente, sendo reeleito nessa condição em 2014.

O veto foi criticado não só por sua negligência quanto aos direitos das mulheres, mas também porque foi considerado autoritário e incomum na cultura política uruguaia, que valoriza o consenso. E o veto criou uma “dívida política” por parte da Frente com os grupos favoráveis à descriminali-zação, que só foi resolvida quando o presidente Mujica tomou posse em 2009.

Estes debates políticos aconteceram em um ambiente de amplo apoio da opinião pública à descriminalização. Na prática a criminalização do aborto raramente foi cumprida4, o que reflete a aceitação social dessa prática. Durante os anos 1990, pesquisas de opinião pública revelaram que o apoio à descriminalização estava em torno de 60%7. Em 2002 duas mortes por aborto inseguro foram registradas e, em um país em que a morta-lidade materna relacionada ao aborto sempre foi relativamente baixa, isso insuflou o debate públi-co8. Em 2003, quando se iniciou o processo legisla-tivo que levou à Lei de Saúde Sexual e Reproduti-va, 63% da população apoiava a descriminalização do aborto9.

Persistência feminista e construção de aliançasNo final do século 19, feministas e mulheres traba-lhadoras se organizaram nos grupos anarquistas e socialistas9, 10. Décadas mais tarde, o papel desem-penhado pelas mulheres nesses movimentos iria influenciar as alianças que apoiaram a reforma do aborto.

Durante os anos 1960 e 1970 muitas mulheres faziam parte dos partidos de esquerda e eram ati-vas na luta contra a ditadura militar. Com o retor-no da democracia em meados dos anos 1980, as feministas entraram na ampla coalizão que pres-

sionou para a transição democrática. Essa coalizão debatia a legalização do aborto, mas não a incluía em sua plataforma, considerando-a uma questão secundária diante da institucionalização de elei-ções, dos debates sobre a justiça transicional e da implementação de reformas econômicas.

Nos anos 1990, o movimento feminista priori-zou o tema do aborto e iniciou a construção de coalizões mais amplas para apoiar a mudança jurídica. A aliança entre organizações feministas e sindicatos impulsionou a descriminalização do aborto, tornando-se um ponto de convergência para o movimento sindical. Em 2001, o Sindicato Central de Trabalhadores adotou uma resolução a favor do aborto legal no seu congresso nacional3. Dado o peso dos sindicatos na Frente e na cultura política uruguaia mais ampla, esse foi um passo crucial para a legitimação do aborto como uma questão de justiça social.

As organizações feministas interagiram de ma-neira bem-sucedida com governos locais, estudan-tes e o meio acadêmico. Desde o início dos anos 1990, as universidades de maior prestígio come-çaram a produzir e disseminar informações sobre aborto e, em 2008, declararam apoio institucional ao aborto legal3.

As feministas também trabalharam com o se-tor médico e com gestores da saúde pública. Em resposta às mortes maternas por aborto inseguro entre 2001 e 2002, por exemplo, o grupo Mulher e Saúde Uruguai (MYSU, sigla em espanhol)* traba-lhou em conjunto com ginecologistas do Hospital Pereira Rossell, o principal centro de saúde mater-na no país, para qualificar os serviços que ofere-cem informação ou assistência pós-aborto para as mulheres8, 11.

Após o veto de 2008 as feministas redobraram seus esforços, trabalhando junto com parlamen-tares e mantendo a visibilidade da questão. Em 2009, um ano eleitoral, a MYSU coordenou um protesto em que mulheres nuas com corpos pinta-dos de maneira reluzente cercaram o Parlamento. Em setembro de 2012, este ato provocativo cha-mado “Corpos Nus” foi repetido durante a votação no Parlamento. Em junho de 2013, elas lideraram uma bem-sucedida campanha chamada “Eu não vou votar. Você vai?” para desestimular o voto

* Em 1996, a Mujer y Salud Uruguay, uma coalizão de organizações de mulheres e pesquisadoras, organizou o Primeiro Encontro Nacional sobre Mulheres e Saúde, no qual o aborto foi uma questão central. A MYSU se registrou como uma organização não governamental em 2005.

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pré-referendo, que poderia ter levado a um refe-rendo para reverter a lei10,12.

Argumentos e atores da saúde públicaNo Uruguai, a saúde pública tem sido um instru-mento estatal de regulação da sociedade, como exemplificado pelo controle do trabalho sexual, que é reconhecido e regulamentado por medidas de saúde pública únicas na América Latina13,14. Este compromisso com a saúde pública reflete-se na resistência à tendência global de privatização para seguir em direção à universalidade da assis-tência, em que o Estado desempenha um papel central no financiamento, regulação e oferta de serviços. Em 2008, uma reforma do setor de saúde estabeleceu dois sistemas articulados: uma rede público-privada e um sistema público. A regulação e o financiamento se aplicam a todos os procedi-mentos assistenciais, incluindo o aborto, tanto em instituições públicas quanto privadas.

No começo dos anos 2000, o setor médico pas-sou a desempenhar um papel mais ativo na de-manda pela reforma legislativa. Em 2002, profis-sionais de saúde, como Leonel Briozzo, que mais tarde seria vice-ministro da Saúde, defendeu que se deveria oferecer às mulheres aconselhamento pré- e pós-aborto para se evitar mortes e lesões resultantes do aborto inseguro3,15,16, uma estraté-gia inspirada pela resposta de redução de danos de drogas injetáveis usadas no contexto do HIV†.

Em agosto de 2004, apenas dois meses depois da derrota sofrida no Parlamento pelo projeto de lei de legalização do aborto, o Ministério da Saúde adotou um protocolo de redução de danos relacio-nados ao aborto inseguro. Essa abordagem repre-sentou o reconhecimento de que, apesar da ilega-lidade, as mulheres interrompem suas gestações e o setor público de saúde deve tomar medidas para reduzir os riscos, o que ajudou a mitigar as consequências negativas do aborto ilegal para a saúde e a reduzir o estigma.

O conteúdo da lei de 2012 reflete uma perspec-tiva similar, considerando o aborto um procedi-mento que deve ser autorizado em certos casos e sob vigilância médica para que se evite danos, mas deixou a dever no que diz respeito ao pleno

† A abordagem de redução de danos defende que embora o uso de drogas seja ilegal e seja até mesmo considerado “maléfico”, não é possível erradicá-lo e, por isso, a resposta de saúde pública deve ser estabelecida para que se reduza a morbimortalidade relacionada à transmissão do HIV pelo consumo de drogas injetáveis.

reconhecimento do direito de decisão da mulher sobre questões reprodutivas. A análise do conteú-do da nova lei, apresentada a seguir, demonstra como isto limita a autonomia das mulheres, res-tringe o leque de opções disponíveis e deixa de fora abortos que ocorrem sob outras circunstân-cias não incluídas na lei.

O conteúdo da leiA nova lei autoriza o aborto sob demanda da mu-lher durante as 12 primeiras semanas de gestação e nas primeiras 14 em caso de estupro; não há li-mite gestacional quando a saúde da mulher está em risco ou em caso de anomalia fetal severa. O procedimento está disponível gratuitamente no sistema público de saúde. O aborto continua cri-minalizado quando realizado fora dos parâmetros preestabelecidos na lei.

Como consequência das negociações parla-mentares, e ao contrário dos artigos vetados em 2008, a lei de 2012 tornou-se mais restritiva. Ela requer que mulheres se consultem com uma equi-pe interdisciplinar composta por três profissionais (ginecologista, assistente social e profissional de saúde mental) para receber informações sobre alternativas e sobre os possíveis riscos envolvidos e depois disso há um período de cinco dias para reflexão antes que o procedimento seja autoriza-do. A lei também dita que apenas ginecologistas podem realizar o procedimento. Uma outra dife-rença notável é que, embora o projeto de lei de 2008 não tenha imposto limite no caso de estupro, a lei de 2012 apenas permite o aborto até a 14ª semana e exige que a mulher tenha realizado a denúncia formal na justiça. A noção de objeção de consciência, que no projeto de lei de 2008 só era prevista para profissionais de saúde, foi estendida para as instituições de saúde como um todo. A lei também requer que a mulher seja residente no Uruguai por pelo menos um ano antes de fazer o aborto legal, enquanto que na lei de 2008 o re-querimento de residência era de 42 semanas.

O texto final da nova lei reduziu a ênfase sobre os direitos das mulheres e incluiu explicitamente a retórica do valor da vida e da maternidade, como no parágrafo introdutório, que declara:

“O Estado garante o direito à procriação consciente e responsável, reconhece o valor social da materni-dade, protege a vida humana e promove o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de toda a população.”

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Acima de tudo, a lei não descriminaliza o abor-to: mulheres que se submeterem a um aborto fora dos parâmetros da lei - como, por exemplo, quando o aborto é realizado fora do sistema de saúde ou além dos limites gestacionais - correm o risco de serem condenadas. Consequentemente, as mulhe-res continuam a correr o risco de serem presas e de sofrerem danos a sua saúde. Aliás, em 2015, três mulheres foram processadas e duas delas fo-ram presas pelo crime de aborto17. Após seis meses na cadeia, essas mulheres tiveram que mudar de cidade por causa do estigma e da discriminação que enfrentaram em suas cidades de origem.

Reação à nova leiAssim que a lei foi aprovada, organizações femi-nistas, como a MYSU, começaram a monitorar a sua implementação e a se preparar para as reações adversas18. Enquanto isso o Ministério da Saúde elaborou rapidamente regulações, com o intuito de mitigar algumas das restrições e requerimentos da lei. Promulgado em novembro de 2012, o De-creto Executivo 375/012 estabeleceu as definições de confidencialidade e consentimento informado. O decreto também especifica o procedimento pa-drão para o aborto: o aborto medicamentoso, uti-lizando uma combinação de misoprostol e mife-pristone, que foi rapidamente incorporado à lista nacional de medicamentos essenciais. O Ministé-rio adquiriu então grandes quantidades dos medi-camentos para facilitar a oferta do procedimento.

Forças antiaborto também se mobilizaram ra-pidamente para reverter a lei e propuseram um referendo para esse fim. No Uruguai um referendo pode ser realizado se mais de 25% dos eleitores registrados votarem a favor da realização do refe-rendo em um pré-referendo. O pré-referendo em questão foi marcado para junho de 2013. As femi-nistas se mobilizaram para convencer as pessoas a não votarem. Elas obtiveram uma vitória retum-bante visto que apenas 8,8% dos eleitores registra-dos participaram, interrompendo os esforços para a criação de um referendo que revertesse a lei.

Com o fracasso da tentativa de realização do referendo, a oposição direcionou seus esforços para os tribunais. Em 2013, um grupo de gineco-logistas levou ao Tribunal Administrativo um caso para ampliar o âmbito da objeção de consciência. Eles ganharam a causa em agosto de 2015, o que resultou na anulação de partes do Decreto que regulava o exercício da objeção de consciência, facilitando assim a recusa dos médicos em prestar o serviço ou participar de qualquer fase do proces-

so, como, por exemplo, na consulta inicial reque-rida pela lei19.

Lições aprendidasA história da mudança legislativa no Uruguai nos oferece lições que podem ser instrutivas também em outros contextos, especialmente em termos de organização política, estabelecimento de alianças, capacidade de mudar os termos do debate e reco-nhecimento de janelas de oportunidade política.

Chave para o sucessoMais do que qualquer outro fator isolado, foram as habilidades, o comprometimento e a persistência do movimento feminista os fatores responsáveis pela mudança no Uruguai. Nas palavras de Juan Castillo, ex-dirigente sindical e funcionário do alto escalão do Ministério do Trabalho em 2015:

“Eu quero que todos saibam que isto não saiu do nada e que também não foi fácil. Ninguém entre-gou nada às mulheres que hoje têm esse direito, às organizações como a MYSU nem a minhas colegas do Departamento de Gênero. Elas conquistaram esse espaço e elas ganharam e hoje desfrutam do respeito de todos.”

As feministas obtiveram êxito porque constru-íram apoio entre diferentes setores. Construíram alianças, especialmente com integrantes do sexo feminino, mas também com homens integrantes de sindicatos, partidos políticos, grupos estudan-tis, estudiosos, organizações comunitárias, assim como com grupos e redes da América Latina e em âmbito global.

Em muitos contextos, um obstáculo para a reforma nas leis do aborto é a crença de que a opinião pública é contra a descriminalização do aborto. Na realidade, a opinião pública é mais fle-xível. As feministas do Uruguai tornaram o aborto uma questão de debate público, demonstrando que a presunção predominante de que o público se opõe à descriminalização é falsa e que a elite política é muito mais conservadora do que a socie-dade em geral. Elas produziram e utilizaram evi-dências, como, por exemplo, pesquisas de opinião pública e pesquisa social e de saúde para acabar com mitos e defender a legalização. A utilização estratégica de slogans e ações públicas em mo-mentos decisivos ajudou a manter a visibilidade e a dinâmica política.

Os setores favoráveis à mudança foram capazes de usar o passado secular uruguaio a seu favor, po-sicionando o aborto como uma questão de direitos

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e saúde e não como questão religiosa. Eles não deixaram que a oposição ditasse os termos do de-bate. Pelo contrário, conseguiram definir o aborto como questão de justiça social. Foram bem-suce-didos ao derrubar a ideia de que abortos devem ser “naturalmente” ilegais, demonstrando que a proibição cria um falso senso de “normalidade” que, na verdade, encobre uma grande injustiça de gênero, porque os danos resultantes do aborto clandestino e inseguro são exclusivamente sofri-dos pelas mulheres.

Outra lição aprendida diz respeito à importân-cia do timing e do entendimento do momento po-lítico. As pessoas a favor da reforma perceberam que a vitória de Mujica em 2009 criou uma janela de oportunidade política. Como candidato, Mujica declarou que não iria vetar a reforma do aborto. A probabilidade de Vázquez retornar ao poder em 2014 demonstrou que essa janela foi bastante es-treita. Essa percepção explica, em parte, a aceita-ção de legisladores e até feministas das restrições impostas numa fase posterior das negociações e que determinaram o conteúdo final da lei.

A cultura política uruguaia, que valoriza o con-senso, foi abalada pelo veto do presidente de um partido que sempre apoiou a reforma da lei do aborto. As feministas utilizaram a dívida políti-ca daí resultante para trabalhar com aliados no parlamento para a aprovação da lei. Em sistemas democráticos, onde os partidos articulam e agre-gam interesses, o trabalho em conjunto com os partidos é essencial, mesmo quando se sabe que eles muitas vezes colocam direitos reprodutivos no segundo plano. A lei de 2012 foi possível por-que a) houve uma coalizão de esquerda a favor da mudança; b) essa coalizão manteve a maioria no parlamento; e c) o poder executivo aprovou essa mudança. O alinhamento destes três elementos fez a diferença entre o resultado negativo de 2008 e o resultado positivo de 2012.

Histórias que podem servir de liçãoA mudança legislativa não necessariamente sig-nifica o pleno reconhecimento dos direitos das mulheres. O processo de reforma no Uruguai foi marcado pela tensão entre a narrativa feminista do aborto como uma questão de direitos das mu-lheres e a visão biomédica do aborto como uma questão de saúde pública. Apesar dessas tensões, no final, os argumentos levantados por esses dois setores - o de direitos das mulheres e de saúde pública - criaram uma massa crítica de apoio ne-cessária para a mudança da lei. O resultado, no

entanto, deixou intacta a arraigada cultura polí-tica de regulação estatal sobre as práticas sociais relacionadas a gênero, sexualidade e saúde.

A exigência de que uma ginecologista deve fa-zer parte da consulta e prescrever o aborto me-dicamentoso limita imensamente o número de profissionais autorizados a oferecer esse tipo de procedimento. Essa limitação é agravada pela in-terpretação ampla da objeção de consciência, ex-tensiva a diferentes tipos de participação na assis-tência e também às instituições. No geral, cerca de 30% dos ginecologistas alegaram objeção de cons-ciência e, em alguns estados, esse número chega a 80%4. Isso indica que o setor médico pode ser mais conservador do que a população geral, mas tam-bém reflete a falta de compromisso com a saúde e os direitos das mulheres. Na realidade, muitos dos objetores são motivados por razões que vão além da religião ou ética pessoal. Muitos evitam, por exemplo, realizar o procedimento por causa do es-tigma ou porque não podem cobrar taxas extras, como no caso das cesáreas4. A lição nesse caso é que quando se inclui a objeção de consciência na lei, se é que deva ser incluída, deve-se regulá-la rigorosamente para que seja realizada apenas sob limites bastante definidos20.

A confiança no aborto medicamentoso, que resultou na regulação do Ministério da Saúde que recomenda fortemente esse método, tem o seu lado obscuro, visto que os serviços de saúde muitas vezes não oferecem métodos alternativos, como o aborto por aspiração, que é preferido por algumas mulheres. Além disso, os profissionais de saúde podem resistir a conduzir um aborto tar-dio que requer intervenção cirúrgica. Isso aponta para a necessidade de oferecer um leque de mé-todos, capacitando os profissionais de saúde para a sua utilização.

A gratuidade do procedimento também pode le-var a outra consequência indesejada, uma vez que pode desestimular aqueles profissionais que consi-deram o procedimento como um mau uso do seu tempo, levando a novos processos de reforma para incluir incentivos econômicos para profissionais de saúde sem repasse dos custos para as mulheres.

As feministas acreditam que essas barreiras le-vam muitas mulheres a procurar o aborto clandes-tino, especialmente fora de Montevidéu. Em 2014, 8.500 mulheres obtiveram o aborto legal, um au-mento de 20% em relação ao ano anterior, quando 7.171 realizaram o procedimento21. Os dados mais recentes disponíveis demonstram que até o final de setembro de 2015, 6.986 mulheres haviam se

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submetido a um aborto legal, o que demonstra um novo aumento22. Apesar disso, antes da apro-vação da lei, o número estimado de abortos ilegais estava entre 16.000 e 33.000 por ano. Assim, uma grande parcela das mulheres continua se subme-tendo a abortos fora do sistema de saúde, o que as deixa sujeitas aos mesmos riscos legais e de saúde aos quais estavam sujeitas antes da mudança na lei4. De fato, em fevereiro de 2016, uma mulher de 21 anos morreu devido a um aborto incompleto e inseguro realizado no segundo trimestre da gesta-ção fora do sistema de saúde23.

ConclusãoA lei de 2012 foi sem dúvida um avanço. O aborto agora é legalmente permitido no Uruguai e sua prática foi normalizada no sistema de saúde. Isso fomenta uma mudança cultural que faz avançar o direito das mulheres decidirem a respeito de sua vida sexual, reprodutiva e familiar. Percebe-se que o aborto legal passa a ser o “novo normal” quando Vázquez, o presidente que vetou os arti-gos que descriminalizavam o aborto em 2008, de-clarou publicamente que não tentaria reverter a

lei quando retornasse à presidência em 2015, por saber que iria enfrentar resistências no partido e entre a população.

Além disso, o setor de saúde é agora obrigado a oferecer gratuitamente serviços de aborto às mu-lheres, o que representa um ganho enorme para os direitos das mulheres e para a justiça social. O fato de que o aborto está dentro da lei e é ofereci-do pelo Estado tirou o aborto das trevas, reduzin-do o estigma. As mulheres agora têm a opção de realizar um aborto legal, desde que cumpram os requisitos, e não precisam recorrer a serviços clan-destinos, evitando a ansiedade e a vergonha que acompanham esse tipo de procedimento.

Entretanto, a lei uruguaia não é a lei que as fe-ministas desejavam. O aborto continua tipificado como crime no Código Penal e as circunstâncias sob as quais ele é permitido são difíceis e potencial-mente humilhantes. A realidade é que para aprovar a lei nesta janela estreita de oportunidade, os seus apoiadores tiveram que permitir a inclusão de con-dições restritivas. O conteúdo e a linguagem da lei também explicitam o poder da perspectiva biomédi-ca sobre a autonomia das mulheres, principalmente

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Ativistas protestando a favor do aborto legal em frente ao parlamento uruguaio em Montevidéu, em 2012.

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Referências

porque a decisão das mulheres não é suficiente para se conseguir acesso ao aborto legal e a intervenção de uma ginecologista é uma condição essencial para que um aborto seja considerado legítimo.

A experiência uruguaia ilumina alguns dos obs-táculos prováveis que podem aparecer depois de uma mudança legislativa. Primeiro, muitas mu-lheres ainda desconhecem que o aborto é legal4. Segundo, o estigma persiste, especialmente em cidades pequenas. Terceiro, a objeção de consci-ência de ginecologistas e instituições criou obstá-culos ao acesso. Quarto, os esforços para reduzir as barreiras ao acesso a serviços – disponibilizando--os exclusivamente na rede pública de saúde, de forma gratuita e por meio do uso de medicamen-tos - podem ter criado novos obstáculos difíceis de prever, como, por exemplo, desmotivar profissio-nais, que podem recusar a assistência por falta de incentivos financeiros. Quinto, há informação so-bre o aborto legal, mas há pouca informação sobre a magnitude e as condições dos abortos realizados fora dos parâmetros da lei, isto é, ilegalmente. Por último, a oposição permanece ativa. Os ataques ao aborto começaram quase que imediatamente

após a aprovação da lei. Os movimentos antiabor-to utilizam novas estratégias, que devem ser com-batidas por contra-estratégias eficazes.

Aprovar uma lei de legalização do aborto nun-ca é o fim, é apenas o começo. O Uruguai se tor-nou um ponto de referência na América Latina. Este caso mostra que a mudança é possível. Mas as feministas não podem se dar ao luxo de descansar, visto que agora têm a difícil tarefa de monitorar a implementação e lutar por uma interpretação da lei atual que garanta que profissionais de saúde respeitem a autonomia das mulheres, ou, como colocado por uma ativista do MYSU:

“Nós iremos comprar a luta por uma lei melhor. Nós merecemos.”

AgradecimentosEste artigo é baseado em um estudo de 2015 sobre o processo da reforma legal conduzido por dois de seus autores, Sonia Correa e Mario Pecheny, fi-nanciado pelo IWHC. Um relatório sobre o estudo completo foi publicado em espanhol em outubro de 2016 pelo MYSU.3

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3. Correa S, Pecheny M. Abortus interruptus: política y reforma legal del aborto en Uruguay. Montevideo: MYSU, 2016.

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15. Briozzo L. Aborto provocado: un problema humano. Perspectivas para su análisis – estrategias para su reducción. Revista Médica del Uruguay [Internet], 2003 Jul; 19(3):188–200. Available from: http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1688-03902003000300002.

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23. Una muerte reaviva la polémica por aborto. El País. Available from: http://www.elpais.com.uy/informacion/muerte-reaviva--polemica-aborto.html. 2016 Feb 24.

RésuméEn octobre 2012, une nouvelle loi a été approuvée en Uruguay qui autorise l’avortement à la demande pendant les 12 premières semaines de grossesse, 14 semaines en cas de viol, et sans limite de temps si la santé de la femme est à risque ou en présence d’anomalies foetales. L’article analyse cette réforme juridique. Il est fondé sur 27 entretiens individuels et en groupe avec des informateurs clés et sur l’analyse de documents primaires et de publications. Les facteurs expliquant la réforme incluent: les valeurs laïques de la société, l’opinion publique favorable, un mouvement féministe persistant, la création efficace de coalitions, les politiques de partis particuliers et un secteur de la santé publique qui fait entendre sa voix. Le contenu de la nouvelle loi reflète les tensions entre une perspective féministe des droits des femmes et des arguments de santé publique qui ne reconnaissent pas pleinement l’autonomie des femmes. La réforme uruguayenne montre que, même en Amérique latine, l’avortement peut être abordé politiquement sans coût électoral pour les partis qui le défendent. D’autre part, les justifications et conditions prédominantes de santé publique incluses dans la loi pendant le processus de négociation ont abouti à ce que la loi soit interprétée non comme une pleine reconnaissance des droits des femmes, mais plutôt comme une approche protectionniste modifiée qui circonscrit l’autonomie des femmes.

ResumenEn octubre de 2012, una nueva ley fue aprobada en Uruguay que permite el aborto a petición durante las primeras 12 semanas del embarazo, 14 semanas en casos de violación y sin límite de tiempo cuando la salud de la mujer está en peligro o en casos de anomalías fetales. Este artículo analiza esta reforma legislativa. Se basa en 27 entrevistas individuales y en grupo con informantes clave, así como en la revisión de documentos principales y la literatura. Entre los factores que explican la reforma figuran: valores seculares en la sociedad, opinión pública favorable, un movimiento feminista persistente, la creación de coaliciones eficaces, política de partidos específicos y un sector salud pública vocal. El contenido de la nueva ley refleja las tensiones entre una perspectiva feminista de los derechos de las mujeres y argumentos de salud pública que no reconocen plenamente la autonomía de las mujeres. La reforma uruguaya muestra que, incluso en Latinoamérica, el tema del aborto puede ser abordado políticamente sin costo electoral para los partidos que lo promueven. Por otro lado, la justificativa predominante de salud pública y las condicionalidades incorporadas en la ley durante el proceso de negociación produjeron una ley que no puede ser interpretada como reconocimiento total de los derechos de las mujeres, sino como un enfoque proteccionista modificado que circunscribe la autonomía de las mujeres.

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121Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(12)40657-7

Equidade e serviços de saúde da mulher para contracepção, aborto e parto no Brasil

Simone G Diniza, Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveirab, Sonia Lanskyc

a Professora Titular, Departamento de Saúde Materna e Infantil, Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, Brasil; e King’s College Londres, Departamento de Saúde da Mulher, Londres, Reino Unido. Contato: [email protected]

b Professora, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasilc Médica Pediatra, Diretora da Comissão Perinatal, Departamento de Saúde do Governo Municipal de Belo Horizonte, Belo

Horizonte, MG, Brasil

Resumo: Este artigo trata da equidade em saúde e na assistência à saúde no Brasil, examinando as disparidades injustas entre mulheres e homens e entre mulheres de diferentes camadas sociais, com o foco nos serviços de contracepção, aborto e parto. Em 2010, a expectativa de vida de mulheres era de 77,6 anos e a de homens, 69,7 anos. As mulheres constituem dois terços das usuárias de hospitais públicos e, em média, têm uma situação de saúde pior do que os homens. Em 2011, a taxa de fecundidade total de 1,8 e a prevalência de contraceptivos é alta entre mulheres de todas os níveis de renda. A proporção de esterilizações diminuiu, mas mulheres de baixa renda realizam esterilizações com mais frequência. A maior parte dos procedimentos de aborto é ilegal; mulheres de maior renda têm maior acesso ao aborto seguro em clínicas privadas. Mulheres mais pobres geralmente realizam elas mesmas os procedimentos de aborto com o misoprostol, buscando tratamento para as complicações nos serviços públicos. A violência institucional por parte de profissionais de saúde é relatada por metade das mulheres que receberam assistência ao aborto e um quarto das mulheres relatam ter sofrido violência durante o parto. A assistência à saúde materna está praticamente universalizada. O setor público realiza menos cesarianas, é menor a proporção de bebês com baixo peso ao nascer e maior a proporção de alojamento conjunto para a mãe e o bebê, mas realiza episiotomias e partos induzidos em excesso. A privacidade, a continuidade da assistência e companhia durante o parto são mais comuns no setor privado. Para que se alcance a equidade, o sistema de saúde deve ir além do acesso universal e do acesso não regulado à tecnologia, para ir em direção à assistência segura, eficaz e transparente.

Palavras-chave: gênero, equidade, uso de contraceptivos, serviços de aborto, assistência materna, políticas e programas de saúde, Brasil

Como definido na Constituição de 1988, a equida-de é um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, juntamente com os princípios da universalidade (a saúde é um direito de todos e um dever do Estado), integralidade (abrangente: a assistência à saúde inclui prevenção, tratamento e reabilitação e as dimensões biopsicossociais) e controle social.1 O conceito de equidade em saúde é baseado na noção ética de justiça distributiva, que reflete os princípios centrais dos direitos hu-manos.2 Para se promover a equidade na saúde de uma população, pessoas com diferentes neces-sidades devem ser tratadas de maneira diferente, com mais investimentos para aqueles que mais necessitam, na prevenção, no tratamento ou na reabilitação.

Alguns autores também utilizam o conceito de disparidades de saúde, que é diferente de inequi-dade. A inequidade é o resultado de disparida-des injustas. Algumas disparidades de saúde são consideradas inevitáveis - por exemplo, pessoas maiores de 65 anos tendem a ter mais doenças crônicas do que jovens adultos.2 A equidade em saúde significa que todas as pessoas devem ter oportunidades justas para alcançar inteiramente o seu potencial de saúde e que ninguém deve fi-car em desvantagem para alcançar este potencial, caso esta desvantagem possa ser evitada. No en-tanto, “o potencial de saúde” ou “as necessidades de saúde” variam de pessoa para pessoa, de região para região e de época para época. O foco de uma política de equidade em saúde não é eliminar to-

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das as diferenças de saúde para que todos tenham o mesmo nível e qualidade de saúde, mas, sim, reduzir ou eliminar as disparidades provenientes de fatores preveníveis e injustos.3

De acordo com a Organização Panamericana de Saúde, a equidade de gênero na saúde inclui a eliminação de diferenças desnecessárias, injustas e evitáveis na situação de saúde e sobrevivência; a distribuição justa e o acesso a recursos (tecnoló-gicos, financeiros e humanos) de acordo com as distintas necessidades das pessoas; a contribuição de mulheres e homens para o financiamento da saúde de acordo com sua capacidade econômica e não de acordo com suas necessidades dos serviços; e uma distribuição social justa das responsabilida-des, poderes e recompensas para as contribuições de mulheres e homens para a produção da saúde (incluindo a consideração do valor das atividades não remuneradas de saúde).4

Dois dos mais importantes fatores preveníveis e injustos são as disparidades no impacto dos de-terminantes sociais de saúde (fatores externos que prejudicam ou fortalecem a saúde de alguém) e as disparidades no acesso de serviços de saúde (a pos-sibilidade de obter assistência adequada, quando necessário). Este artigo tem como objetivo discutir a equidade de gênero na saúde, considerando as disparidades injustas entre mulheres e homens e entre mulheres de diferentes camadas sociais, com ênfase na assistência à contracepção, aborto e par-to. Analisamos os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS 2006),5 do Departamen-to de Informática do Sistema Único de Saúde (DATA-SUS) e pesquisas epidemiológicas e demográficas.

No Brasil, é maior a disponibilidade de dados sobre o sistema público de saúde tanto em pesqui-sas populacionais quanto em pesquisas sobre os serviços. A falta de informação sobre o setor priva-do dificulta a comparabilidade entre as diferentes camadas sociais. Além das estatísticas vitais (par-tos e mortes) e doenças de notificação obrigatória, a informação sobre morbidade e hospitalização no setor privado nem sempre é pública e, em ge-ral, é proveniente apenas de pesquisas domicilia-res populacionais, como as Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde.5 De fato, em muitos países, a qualidade e a disponibilidade de informação comparativa entre os setores público e privado geralmente são precárias, escassas e tendenciosas. Uma metanálise internacional recente sobre 21 estudos concluiu que, “independente dos resulta-dos, a qualidade das evidências é considerada… ou baixa, ou muito baixa”.6

Gênero, indicadores de saúde e saúde das mulheres Nas últimas duas décadas, desde a criação do SUS, o Brasil passou por uma grande expansão nos ser-viços de saúde e embora ainda haja grandes desa-fios pela frente, o crescimento econômico e as po-líticas públicas para a inclusão social resultaram em uma redução da pobreza, da concentração de renda e das disparidades regionais.1

O sistema de saúde brasileiro consiste de uma rede complexa de profissionais e serviços públi-cos e privados. O setor público oferece assistência para 75% da população, enquanto o setor privado (com e sem fins lucrativos) é financiado por recur-sos públicos e privados e pelos seguros privados de saúde. Frequentemente, o que define se uma pessoa será usuária do setor público ou privado é o seu nível de renda e de educação. Na teoria, todas as pessoas podem usar todos os serviços, mas, na prática, isso depende principalmente da capacidade financeira do usuário.1

Em 1983, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), introduzindo a contracepção e a assistência à saúde reprodutiva na rede pública de saúde. Melhorias no nível de escolaridade estão fortemente associadas a me-lhorias na saúde das mulheres e de suas famílias. No Brasil, assim como na maioria dos países, as mulheres alcançaram um enorme progresso social nas décadas recentes, com alta participação na educação e na força de trabalho. Atualmente, as mulheres brasileiras são maioria entre estudantes em todos os grupos etários e níveis educacionais, embora isso não resulte em salários melhores ou mais igualitários no mercado de trabalho.7

As mulheres também são a vasta maioria da for-ça de trabalho na saúde - 71% no nível universitá-rio e 85% no nível técnico -, mas os homens estão concentrados nos níveis mais altos da hierarquia.8 A assistência doméstica informal e não remune-rada para pessoas doentes ou com deficiência é desproporcionalmente realizada pelas mulheres.9 Isso é comum a boa parte dos países: de acordo com uma reportagem investigativa sobre inequi-dades de gênero na saúde, os sistemas de saúde tendem a depender de trabalhadores informais de saúde que são mal pagos ou não remunerados e que em sua maioria são mulheres.10

No SUS, as mulheres respondem por cerca de dois terços das consultas ambulatoriais, incluindo contracepção, pré-natal, assistência ao parto e ao pós-parto, atenção aos sintomas de menopausa,

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envelhecimento e triagem e tratamento para cân-ceres como o cervical e de mama. Esta despropor-ção é similar também no setor privado e aumenta depois da idade reprodutiva.11

Apesar disso, tradicionalmente as mulheres ava-liam suas situações de saúde mais negativamente do que homens da mesma idade. Essas diferenças entre homens e mulheres representam um desafio para a saúde pública e os motivos pelos quais as mulheres usam mais os serviços, implicando que elas enfrentam mais problemas de saúde do que os homens apesar de viverem mais tempo, têm sido extensivamente discutidos.12 A mortalidade masculina também tende a ser mais alta entre todos os grupos etários. Há alguma evidência da vantagem biológica feminina na longevidade, e as mulheres tendem a dar mais atenção a seus sinto-mas, resultando em um comportamento diferen-ciado no que diz respeito à busca por serviços de saúde. Em 2010, no Brasil, a expectativa de vida das mulheres foi de 77,6 anos e a dos homens, de 69,7. É maior a proporção de homens que morrem por todas as causas violentas (dez vezes mais por homicídio) e daqueles que morrem mais cedo por doenças crônicas.13

Equidade, uso de contraceptivos e número ideal de criançasNas duas últimas PNDS, a prevalência de contra-ceptivos aumentou de 78% em 1996 para 81% em 2006 entre mulheres casadas na faixa dos 15 aos 29 anos, o que pode ser atribuído principalmente ao aumento do uso entre mulheres pobres, que passou de 65% para 74% entre as mulheres de ren-da mais baixa e de 66% para 77% entre mulheres com níveis de escolaridade mais baixos.5

Entre mulheres usando contraceptivos, houve uma redução na proporção de esterilizadas, que passou de 40% em 1996 para 29,1% em 2006 (mas ainda é de 39% entre mulheres negras). Isso pode ser atribuído ao aumento da disponibilidade de métodos reversíveis. A esterilização masculina passou de 2,5% para 5,1% (7,5% entre homens brancos) entre 1996 e 2006, mas ainda é baixa e obtida principalmente no setor privado. Em 1996, havia 16 mulheres esterilizadas para cada homem, em 2006 essa proporção foi de 5:1. A esterilização feminina permanece sendo o método mais popu-lar entre mulheres de baixa renda e baixo nível de escolaridade. As mulheres mais pobres, de baixa escolaridade, negras, solteiras, mais velhas e com grande número de filhos também apresentaram uma maior prevalência de partos indesejados.5

O uso de contraceptivos orais aumentou de 20,7% para 24,7% e o uso do preservativo entre mulheres casadas triplicou, passando de 4% para 12%.5 De acordo com a PNDS de 2006, todos os métodos deveriam estar disponíveis no SUS, mas as farmácias continuam a ser a principal fonte de obtenção de preservativos. Os métodos hormonais (pílulas, injetáveis e contracepção de emergência) também são comprados principalmente em farmá-cias, sem prescrição, embora sejam medicamentos tarja vermelha que requerem receita médica.5 Em 2012, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) propôs um controle mais rigoroso para drogas de tarja vermelha, mas enfrentou oposição, porque exigiria visitas médicas adicionais para cer-ca de 30 milhões de usuárias de pílula.

O uso do DIU aumentou de 1% para 2% e os in-jetáveis de 1% para 4%. A contracepção de emer-gência foi utilizada por 23,2% das usuárias de contraceptivos em 2006. Os serviços do SUS são as principais fontes de obtenção de DIUs e da esterili-zação feminina. Não foram identificadas usuárias de diafragma ou de outros métodos de barreira controlados pelas mulheres nesta pesquisa5, devi-do à ausência de capacitação de profissionais para sua indicação. É possível que a transferência dessa atividade para enfermeiras e parteiras viesse a am-pliar o acesso à informação e o apoio às mulheres que desejassem utilizá-los, se eles fossem ofereci-dos no SUS.

Nas últimas duas décadas, o uso de preserva-tivos aumentou acentuadamente entre todos os grupos populacionais, como resultado da forte resposta do Brasil ao HIV e às infecções sexual-mente transmissíveis (ISTs). O uso de preservativos é mais frequente entre pessoas solteiras, e os ho-mens usam o preservativo com mais frequência que mulheres, mas com parceiras casuais. Entre as pessoas com parceiros casuais em 2006, a taxa de uso do preservativo entre homens foi de 81,6% e entre mulheres foi de 66%; a taxa chegou a 92% entre jovens de 16 a 24 anos de idade, mais alta do que qualquer outro grupo etário. No entanto, o uso de preservativo entre homens e mulheres com o nível básico de educação foi significativa-mente baixo (69,9%). Em termos de equidade, os resultados indicam a necessidade de uma atenção maior para ampliar o uso consistente de preserva-tivo entre populações com níveis de escolaridade mais baixos e entre aqueles que são mais vulne-ráveis, como mulheres em relacionamentos está-veis, que apresentam as menores taxas de uso de preservativo.5

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A contracepção hormonal é altamente eficaz; ela pode ter alguns benefícios não contraceptivos e permanece bastante popular, mas frequente-mente provoca efeitos colaterais de curto prazo, como dores de cabeça e náusea, sensibilidade mamária, alterações no humor e na menstruação, redução da libido e retenção de fluídos, o que leva a altas taxas de interrupção.14 Os últimos dados na-cionais sobre interrupção de métodos reversíveis são de 1996 e mostram que há uma taxa de des-continuidade de 12 meses para 42,3% das usuárias de pílulas e 62,9% das que usam injetáveis. Efeitos adversos e preocupações com a saúde foram as principais causas de interrupção.15 Profissionais de saúde e mulheres podem se beneficiar da atualiza-ção dos dados sobre benefícios e efeitos colaterais de métodos contraceptivos e dos esforços para li-dar com a alta taxa de interrupção.

A taxa de fecundidade de 2006 1,8 ficou abaixo do nível de reposição. Entre 2001 e 2006, a taxa de fecundidade foi de 4,0 entre mulheres com bai-xo nível de escolaridade e de 1,0 entre mulheres com mais de 12 anos de formação educacional. A queda na fecundidade foi mais alta entre mulhe-res jovens, negras e com níveis educacionais mais baixos. Para todas as mulheres, o número médio ideal de crianças foi de 2,1 (2,2 no quintil com níveis educacionais mais altos).5 No Brasil, assim como em outros países latino-americanos onde as taxas de fecundidade ainda estão caindo no início do século 21, há uma combinação entre baixa taxa de fecundidade, alto número de gestações não pla-nejadas (e abortos) e um padrão emergente de um número ideal de crianças maior do que o número total real de crianças nascidas. Essa proporção au-menta com o aumento dos níveis de educação da população feminina na região.16

Apesar do alto uso de contraceptivos, nos cin-co anos anteriores à realização da PNDS de 2006, 29,7% dos partos foram considerados inoportunos (mais cedo do que desejado) e 17,8% foram consi-derados indesejados.5 Padrões similares foram ob-servados em outras populações com baixa fecun-didade e altas taxas de uso de contraceptivo, onde a fecundidade indesejada representa uma parcela importante da taxa de fecundidade total.14

Inequidades na assistência ao abortoAs disparidades no acesso ao aborto seguro são um exemplo da extrema inequidade no Brasil, onde o aborto é apenas permitido em casos de risco para a vida da mãe ou estupro, com uma legislação de 1940. Em 2008, foram realizados 3.230 abortos

legais (oferecidos pelo SUS),17 mas estima-se que um milhão de abortos sejam realizados anualmen-te (21 abortos para cada 1.000 mulheres por ano). De acordo com uma pesquisa nacional realizada em áreas urbanas em 2010, 22% das mulheres en-tre 35 e 39 anos passaram por um aborto induzido em suas vidas. A ilegalidade do aborto dificulta a precisão destes dados, é muito provável que este-jam subestimados.18

A ilegalidade no Brasil reduz a segurança da maioria dos abortos, o que é uma grande causa de morbidade e a principal causa de mortalidade em algumas regiões. Abortos seguros só são ofe-recidos no setor privado de maneira ilegal, para as mulheres pobres é proibitivamente caro, mas para mulheres de renda mais alta é de mais fácil acesso.17 Mulheres de renda mais baixa tendem a utilizar métodos mais acessíveis, como o misopros-tol (repetimos, de forma ilegal, obtido no mercado clandestino), e procuram os serviços públicos caso enfrentem complicações. Em 2008, houve 215.000 hospitalizações no SUS devido a complicações por aborto (ou interrupção da gravidez), especialmen-te por hemorragias e infecções.17

Complicações de aborto induzido ou espontâ-neo podem ser prevenidas por meio da assistência correta e no momento adequado. A falta de da-dos sobre a assistência ao aborto entre mulheres de renda alta dificulta muito a comparação entre as diferentes camadas sociais. Um estudo recen-te avaliou a qualidade da assistência ao aborto para mulheres que deram entrada em hospitais públicos de três capitais brasileiras (Salvador, Re-cife e São Luís), reunindo 2.807 casos de mulheres hospitalizadas em 29 hospitais em 2010. Nas três cidades, a assistência oferecida ficou bem abaixo dos padrões impostos pelo governo brasileiro e, na maior parte das vezes, a administração da dor foi feita de maneira inapropriada.19 Como se pode ob-servar em outros países latino-americanos, a dila-tação e curetagem (D&C) foi o método utilizado em quase todos os casos, o que requer anestesia ou sedação profunda, internação hospitalar, esperas mais longas para o tratamento e pernoites de pelo menos 24 horas. Além disso, há um grande risco de complicações.19 O manual da OMS: Aborto Seguro: Diretrizes Técnicas e Políticas para Sistemas de Saú-de, tanto em sua edição de 2003, quanto na edição atualizada e revisada de 2012 (http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/70914/1/9789241548434_eng.pdf), recomenda substituir a D&C pela aspira-ção uterina a vácuo ou pelo aborto induzido por medicamentos, tanto para a assistência ao aborto,

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quanto para a assistência pós-aborto. Manter essa prática ultrapassada viola o princípio da integrida-de e a busca por substituir intervenções menos se-guras por intervenções seguras. O estudo também revelou outras formas de discriminação, como o adiamento da curetagem para os turnos da noite. A continuidade da assistência e a oferta de infor-mações contraceptivas pós-aborto foram pratica-mente inexistentes.19

Desde 2012, no entanto, o Ministério da Saúde vem trabalhando para implementar estratégias de redução de danos na assistência ao aborto, inspi-rado na experiência bem sucedida do Uruguai.20 Espera que isso melhore substancialmente a assis-tência ao aborto nos hospitais do SUS.

Equidade e violência na assistência à saúdeO abuso e desrespeito na assistência à saúde (co-nhecido no Brasil por violência institucional),21 é uma questão de gênero porque reflete os precon-ceitos sexistas contra as mulheres, expressos na forma como a assistência é organizada e ofereci-da.22 É um tema que recebeu muita atenção em 2011, com a publicação do relatório do Instituto Perseu Abramo, que entrevistou 2.365 mulheres e 1.181 homens em áreas urbanas e rurais em to-dos os estados brasileiros. Entre as mulheres que foram hospitalizadas por complicações de aborto, 53 relataram ter sofrido alguma forma de violên-cia por parte de profissionais de saúde (homens e mulheres), incluindo negação de informação, ausência de procedimentos de obtenção de con-sentimento, atraso e negligência na assistência, ameaças de prisão e abuso verbal. Quando ques-tionadas sobre formas de violência durante o par-to, 25% das mulheres relataram ter sofrido alguma forma de violência (27% no setor público e 16% no setor privado), incluindo abuso verbal e outras formas de abuso como a recusa em administrar alívio para a dor e manipulação vaginal dolorosa e repetida. Mulheres no topo da hierarquia social (brancas, casadas, com níveis educacionais mais altos) estavam menos vulneráveis à violência, mas não totalmente livres dela.9 Sabe-se menos sobre a experiência dos homens no que diz respeito à violência institucional na assistência à saúde, mas a resistência a buscar serviços de saúde pode se dever à hostilidade contra homens e por serem colocados em uma posição subordinada, à qual os homens resistem mais do que as mulheres.23

A privacidade é um direito humano básico, um elemento chave na qualidade da assistência e é

altamente valorizada pelas mulheres. Mas, geral-mente, é negligenciada no setor público, onde persiste a cultura pré-SUS de se tratar as pacientes como sobreviventes “indigentes”, mantendo-as, por exemplo, em alas coletivas das maternidades com muitos leitos e nenhuma privacidade.

Ter sua privacidade violada em um momento de intensa vulnerabilidade, seja em relação ao aborto, interrupção da gravidez ou parto, é uma disparidade injusta enfrentada pelas mulheres no SUS.22 Questões relativas à equidade em relação à autonomia e à escolha informada são complica-das pela cultura dos profissionais de saúde, que garante a autonomia de pacientes no setor priva-do, mas entende que, no setor público, cabe ao médico decidir quais pacientes terão sua privaci-dade respeitada.24

O tratamento indiferente e rude é associado a pacientes que não se sentem fortes o suficiente para falar por si próprios, o que tem consequên-cias para a sua segurança.25 A ausência de violên-cia e o tratamento humanizado, incluindo a ofer-ta de conforto e alívio da dor, a continuidade da assistência e a privacidade não deveriam ser con-siderados um privilégio restrito para quem tem acesso ao setor privado, mas deveria ser parte dos padrões mínimos de qualidade e segurança para a assistência à saúde de todas as mulheres.22

Equidade e assistência à maternidadeMulheres que têm filhos experimentam disparida-des injustas, como a subvalorização do seu traba-lho pago por causa de suas responsabilidades fa-miliares, o não reconhecimento dos seus cuidados com outras pessoas da família, a dupla jornada, a ausência da creche.9 Essas desvantagens afetam mais fortemente as mulheres de menor renda e nível educacional, por que elas não têm quase nenhuma - ou mesmo nenhuma - possibilidade de pagar por ajuda, mesmo quando enfrentam morbidade pós-parto, como lesões cirúrgicas pro-venientes de uma episiotomia, trauma perineal ou cesárea.

Estima-se que, em 2007, a taxa de mortalidade materna no Brasil foi de 77 casos a cada 100.000 nascidos vivos, o que torna improvável a possibi-lidade do Brasil alcançar o Objetivo de Desenvol-vimento do Milênio de redução de 75% até 2015.17 Os esforços de redução das mortes maternas esta-bilizaram-se nos últimos 15 anos. A maioria das mortes maternas ocorre desproporcionalmente entre mulheres negras, de baixa renda, solteiras e

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jovens, e é alto o número de casos de quase-perda (near-miss), que podem resultar em morbidade séria e crônica.17 Isso se dá apesar do fato de que a assistência materna brasileira é virtualmente universal durante a gestação (81% das mulheres realizam seis ou mais consultas de pré-natal) e o parto (98,7% realizam o parto em instituições de saúde com profissional capacitado, 88,7% deles com um médico).5

Embora as mulheres mais abastadas tendam a receber uma melhor assistência, estudos indicam que sob algumas circunstâncias, mulheres com ní-veis de educação e renda mais baixos podem ter acesso à assistência à saúde materna mais segura e mais eficaz. Um estudo realizado em São Paulo, em 2005, sobre equidade na assistência à saúde materna, revelou que alguns dos indicadores de qualidade da assistência, como os testes de HIV e ISTs, a qualidade do histórico pré-natal, a taxa de partos normais e o alojamento conjunto com os recém-nascidos, tendem a ocorrer com maior frequência entre pacientes de baixa renda e no se-tor público, embora as mulheres com níveis mais altos de renda façam mais consultas médicas e ini-ciem a assistência pré-natal mais cedo.26

O acesso a intervenções adequadas - seguras e eficazes - na assistência à saúde materna pode salvar vidas e promover a saúde, mas intervenções inadequadas podem levar a resultados adversos para mulheres e recém-nascidos.27 Estudos recen-tes indicam que a tendência histórica de inequida-de - de mulheres mais abastadas obterem melho-res resultados neonatais - vêm sendo revertida. De 1995 a 2007, taxas maiores de crianças com baixo peso ao nascer foram observadas nas regiões mais desenvolvidas do Brasil, quando comparadas às regiões menos desenvolvidas.28 Esta é uma “in-versão das disparidades esperadas”. Resultados piores demandam mais tecnologia para serem compensados. As unidades de tratamento intensi-vo neonatal estão concentradas nas áreas mais ri-cas.29 A estabilização das taxas de mortalidade in-fantil na última década, quando se esperava que caíssem, se deu provavelmente por um excesso de intervenções durante a gravidez e o parto.17,30 O excesso de tratamento no parto está sujeito a pouca regulamentação em ambos os setores e as adversidades não são relatadas ou pesquisadas de forma sistemática.

A proteção da integridade corporal das mulhe-res no parto deve ser um indicador crucial da qua-lidade da assistência, que reflete a mudança no

entendimento do processo do parto trazido pela assistência à saúde baseada em evidências.31 No Brasil há uma negligência considerável desse as-pecto da assistência tanto no setor público, quanto no privado. Os partos cesáreos eletivos, que repre-sentam 84% dos partos no setor privado e 52% do total de partos em 2010, podem trazer algum be-nefício, como a diminuição da incontinência uri-nária depois de três meses e a diminuição da dor perineal, se comparados com os partos normais. Mas também estão associados a um risco maior de mortalidade neonatal e morbidade grave, incluin-do a histerectomia, dores abdominais, morbidade neonatal respiratória, morte fetal, placenta prévia e ruptura uterina em gestações futuras.32

No setor público, as taxas de episiotomia e la-cerações perineais31 também são inaceitavelmen-te altas e deveriam também ser encaradas como uma disparidade injusta, em que mulheres mais pobres (usuárias do SUS) são desproporcionalmen-te afetadas. Dados sobre episiotomia e efeitos perineais não estão disponíveis no sistema de in-formação do SUS (DATASUS), o que reflete a negli-gência quanto à integridade genital das mulheres, e só são documentados pelas PNDS,5 que se reali-zam apenas a cada dez anos.

O parto espontâneo em um ambiente centra-do na mulher é atualmente um raro privilégio das classes mais altas, já que um número pequeno, mas crescente, de mulheres mais abastadas está optando pelo parto caseiro com profissionais do setor privado. Isso pode ser visto como um caso de equidade inversa em que, seguindo a introdução de uma “nova” intervenção (a promoção da ama-mentação, no exemplo clássico, e nesse caso, o parto espontâneo), as inequidades em saúde, me-didas em termos das diferenças relativas nas taxas dos resultados, tenderão inicialmente a aumentar, visto que as populações mais abastadas serão as primeiras a dela se beneficiarem.33

No caso do Brasil, um maior investimento na assistência ao parto seria altamente benéfico.34 Movimentos sociais, como a Rede pela Humani-zação do Parto e do Nascimento (Rehuna) e ou-tras redes, fazem campanhas por uma assistência mais segura e centrada na mulher, para que se previnam os abusos descritos acima e como uma forma direta de controle social dos serviços de saúde - um dos princípios do SUS.35 Esta movimen-tação enfrentou forte resistência e confrontação de parte da classe médica. Em julho de 2012, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro

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aprovou uma resolução que iria proibir o acesso das mulheres a qualquer assistência por parte de parteiras formadas em universidades ou de doulas (que oferecem apoio emocional e prático duran-te e após o parto) em hospitais e maternidades. Aprovou ainda uma segunda resolução que iria proibir qualquer médico de participar de partos fora do hospital ou de oferecer atenção secundá-ria para mulheres transferidas para um hospital vindas de um centro de partos ou após um parto domiciliar. Essas resoluções levaram a processos judiciais e protestos liderados pelos movimentos preocupados com a preservação da legalidade das parteiras, doulas e com os partos domiciliares e com o intuito de proteger os médicos que partici-pam de equipes profissionais que realizam partos fora do hospital.36

A saúde das mulheres e equidade: melhorando os sistemas de informação e os resultadosServiços como a oferta de preservativos, informa-ção e apoio contraceptivo, aspiração uterina a vá-cuo e aborto induzido por medicamentos na assis-tência pós-aborto, triagem para a sífilis pré-natal e outras ISTs/HIV, assistência de parteiras e doulas durante o parto, são seguros e eficazes e tendem a produzir resultados positivos. É desejável que o acesso a esses serviços se amplie para que todas as mulheres se beneficiem deles. O uso de tecnologia ultrapassada como a D&C para qualquer aborto, o alívio inadequado da dor, o parto cesáreo antes de se iniciar o trabalho de parto, a episiotomia de rotina, a indução ou aceleração do parto, o toque uterino e a privação de companhia e da privacida-de durante o parto, tendem a produzir resultados adversos que podem solapar os efeitos positivos de intervenções benéficas. Para a maior parte das intervenções potencialmente danosas, poucos da-dos são coletados rotineiramente pelo sistema de informação do SUS. Assim, é difícil monitorar sua prevalência e tendências, de modo a produzir al-guma mudança.

A inclusão dos seguintes indicadores baseados em direitos:• número de abortos seguros e inseguros;

• complicações de abortos inseguros e tipo de tratamento;

• métodos contraceptivos oferecidos, incluindo o pós-aborto;

• motivos para a interrupção contraceptiva e a substituição de métodos;

• número de mulheres com integridade genital pós-parto;

• número de abortos espontâneos após 39 sema-nas completas de gravidez; e

• satisfação com a assistência à saúdeiriam beneficiar as mulheres pelo menos tanto

quanto os indicadores de processo, como o núme-ro de consultas de pré-natal, acesso a cirurgia, exa-mes e medicamentos. Estes últimos indicadores são úteis para se medir a eficiência do sistema de saúde no que diz respeito à tecnologia, mas não são necessariamente relacionados aos resultados de saúde. Para se avaliar a equidade no acesso à tecnologia adequada e potencialmente danosa, deve-se requerer dados transparentes do setor pri-vado e do setor público para possibilitar a compa-rabilidade.22

Nos três aspectos da assistência à saúde repro-dutiva das mulheres aqui analisados, a disparida-de no uso de contracepção e na cobertura da as-sistência à saúde materna diminuiu, no contexto do mercado desregulado de assistência à saúde. A situação socioeconômica continua a desempenhar um papel importantíssimo no (e na falta de) aces-so ao aborto seguro.

Hoje, no Brasil, a educação em saúde e para a escolha informada relacionada às tecnologias da saúde estão espantosamente ausentes tanto no se-tor público quanto no privado, ainda que os movi-mentos de saúde da mulher tenham desenvolvido um rico acervo de materiais educativos durante os anos 1980 e 90.

Para se alcançar a equidade na saúde das mu-lheres no Brasil, o governo e o sistema de saúde devem ir além do acesso universal e desregulado à tecnologia, devendo trabalhar por uma assis-tência eficaz, segura e transparente, baseada na escolha informada e no respeito aos direitos das mulheres.

AgradecimentosAgradecemos a Jane Sandall pelos comentários construtivos sobre este artigo.

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Referências

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RésuméCet article aborde l’équité dans la santé et les soins au Brésil, en examinant les disparités injustes entre hommes et femmes, et entre femmes de différentes couches sociales, dans les services de contraception, d’avortement et de maternité. En 2010, l’espérance de vie des femmes était de 77,6 ans, celle des hommes de 69,7 ans. Pourtant, les femmes représentent les deux tiers des usagers des services hospitaliers publics et évaluent leur état de santé moins positivement que les hommes. Le taux total de fécondité était de 1,8 en 2011 et la prévalence de la contraception est élevée chez les femmes de tous les niveaux de revenu. La proportion de stérilisations a diminué ; les femmes à faible revenu sont plus fréquemment stérilisées. Les avortements sont le plus souvent illégaux ; les femmes aisées ont davantage accès à des avortements sûrs dans des centres privés. Les femmes pauvres avortent elles-mêmes avec du misoprostol et s’adressent aux dispensaires publics en cas de complications. La moitié des femmes soignées pour un avortement et un quart des accouchées font état de violence institutionnelle des professionnels de santé. Les soins pour maternité sont presque généralisés. Le secteur public enregistre moins de césariennes et de cas d’insuffisance pondérale à la naissance et fait davantage dormir les mères avec leur nourrisson, mais il pratique un nombre excessif d’épisiotomies et de déclenchements du travail. L’intimité, la continuité des soins et l’accompagnement pendant l’accouchement sont plus fréquents dans le secteur privé. Pour parvenir à l’équité, le système de santé doit dépasser l’accès universel et non réglementé à la technologie et aller vers des soins sûrs, efficaces et transparents.

ResumenEn este artículo se trata la equidad en salud y servicios de salud en Brasil y se examinan las disparidades injustas entre mujeres y hombres y entre mujeres de diferentes estratos sociales, con un enfoque en servicios de anticoncepción, aborto y embarazo. En 2010, la esperanza de vida de las mujeres era de 77.6 años; la de los hombres, de 69.7 años. Sin embargo, las mujeres constituyen dos terceras partes de los usuarios de servicios de hospitales públicos y evalúan su estado de salud de manera menos positiva que los hombres. La tasa de fertilidad total fue de 1.8 en 2011 y la prevalencia del uso de anticonceptivos es alta entre mujeres en todos los niveles de ingreso. La proporción de esterilizaciones ha disminuido; la esterilización es más común entre mujeres de ingresos más bajos. El aborto es principalmente ilegal; las mujeres más adineradas tienen mejor acceso a servicios de aborto seguro en clínicas privadas. Las mujeres más pobres generalmente autoinducen el aborto con misoprostol y buscan tratamiento de las complicaciones en clínicas públicas. La mitad de las mujeres que reciben servicios de aborto y una cuarta parte de las mujeres durante el parto informan haber sufrido violencia institucional por parte de profesionales de la salud. Los servicios de maternidad son virtualmente universales. El sector público tiene menos cesáreas, menos bebés con bajo peso al nacer y más internación conjunta madrehijo, pero excesivas episiotomías e inducciones. La privacidad, continuación de los servicios y acompañamiento durante el parto son más comunes en el sector privado. Para lograr equidad, el sistema de salud debe ir trascender el acceso universal no regulado a la tecnología y ofrecer servicios seguros, eficaces y transparentes.

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Direitos sexuais como direitos humanos: um guia de princípios e fontes autorizadas para a aplicação dos direitos humanos à sexualidade e saúde sexual

Alice M. Milleraa, Eszter Kismödibb, Jane Cottinghamc, Sofia Gruskindd

a Codiretora da Parceria de Justiça de Saúde Global da Faculdade de Direito e de Saúde Pública de Yale, Faculdade de Direito de Yale, New Haven, CT, USA. Contato: [email protected]

b Advogada Internacional de Direitos Humanos com especialização em Gênero, Saúde Sexual e Reprodutiva e Direitos Humanos, Genebra, Suíça

c Consultora Independente, Genebra, Suíçad Professora de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Keck; Professora de Direito e Medicina Preventiva, Faculdade de

Direito de Gould, Programa de Saúde Global e Direitos Humanos, Instituto de Saúde Global, Universidade do Sul da Califórnia (USC), Los Angeles, CA, EUA

Resumo: Este guia tem o objetivo de oferecer conhecimento e recursos para atores interessados na defesa de direitos relacionadas à sexualidade e à saúde sexual. Após tratar da controversa questão do alcance dos direitos sexuais, o artigo explora as regras e os princípios que orientam a maneira como as demandas por direitos humanos são desenvolvidas e aplicadas à sexualidade e à saúde sexual e como esse desenvolvimento é conectado à legislação, tornando-se obrigação do Estado. Essa é uma compreensão crucial para a elaboração de políticas e programas de saúde e direitos sexuais, porque se refere a um importante conjunto de direitos humanos, como privacidade, não discriminação, saúde e outros direitos humanos universalmente aceitos, assim como demanda aos Estados o cumprimento de suas obrigações legais internacionais e nacionais para apoiar a saúde sexual.

Palavras-chave: direitos humanos, legislação, direitos sexuais, saúde, sexualidade

IntroduçãoApesar dos intensos debates das últimas décadas, o consenso político sobre o termo “direitos sexuais” nunca foi atingido1. O foco da resistência está em compreensões (e receios) radicalmente diferentes a respeito do que deve ser incluído nos “direitos sexu-ais”, obrigando os Estados nacionais a cumprirem suas obrigações legais. Este Guia foi desenvolvido para ajudar a desfazer essas confusões, para escla-recer como e por quê os direitos sexuais são direitos humanos, para apoiar os avanços políticos no reco-nhecimento dos direitos sexuais e, especialmente, para esclarecer seus fundamentos jurídicos.

Os parâmetros para os direitos sexuais definem--se pelo conjunto dos direitos humanos, aplicados aos aspectos públicos e privados da sexualidade e da saúde sexual. O Guia enfatiza que os “direi-tos sexuais” articulam-se aos direitos reprodutivos (embora sejam distintos) e as diversas formas e sig-nificados da sexualidade, incluindo sua conexão com a reprodução, requerem atenção específica. Demonstra ainda como a legislação dos direitos humanos pode e tem sido utilizadas para apoiar boas práticas de promoção da saúde sexual. Mais

importante, o Guia explica como esses desenvolvi-mentos podem se apoiar nas regras bem difundi-das de aplicação e interpretação legislativa. O Guia é voltado para profissionais e ativistas que atuam no campo das políticas públicas para transformar práticas, eliminar exclusões, melhorar a saúde e os direitos sexuais, ajudando-os a usar o direito internacional como base para suas ações. O Guia está dividido em três partes principais: Seção I – O alcance dos direitos humanos com relação à se-xualidade e à saúde sexual, destacando o papel dos direitos humanos na saúde sexual; Seção II: As fontes legislativas dos direitos humanos, des-crevendo as competências jurídicas legalmente vinculantes nos níveis nacional e internacional; e a Seção III: Nove regras e princípios que orientam o desenvolvimento, a interpretação e a aplicação dos direitos humanos na legislação e nas políticas públicas relativas à sexualidade e à saúde sexual.

O alcance dos direitos humanos com relação à sexualidade e à saúde sexual As últimas duas décadas presenciaram desenvolvi-mentos importantes no campo dos direitos sexuais.

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2015.11.007

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Este Guia se baseia em documentos amplamente utilizados para a elaboração e inovação de políti-cas e programas. Isso inclui: i) a compilação de ca-sos e de leis sobre orientação sexual e identidade de gênero da Comissão Internacional de Juristas (CIJ), que reúne processos sobre direitos sexuais de todo o mundo; 2 ii) a Declaração sobre Direitos Se-xuais da Associação Mundial para a Saúde Sexual (AMS), de 2014, explica a normativa dos direitos sexuais, articulando a sexualidade e a saúde sexu-al aos princípios e padrões de direitos humanos;3 iii) os Princípios de Yogyakarta de 2007, elabora-dos por ONGs e especialistas de direitos humanos como uma declaração normativa para a aplicação progressiva dos princípios e obrigações de direi-tos humanos a demandas específicas de direitos humanos sobre orientação sexual e identidade de gênero;4 iv) O documento Direitos Sexuais: Uma Declaração, da Federação Internacional de Plane-jamento Familiar (FIPF), que é uma compilação dedicada a compreender os atuais princípios de direitos para facilitar sua aplicação à sexualidade, entendida como atributo de todas as pessoas, jo-vens e velhas, independente do seu gênero/identi-dade de gênero e orientação sexual;5 v) e o relató-rio da OMS sobre saúde sexual, direitos humanos e a lei” 85, que articula a normativa dos direitos humanos a dados de saúde pública e processos judiciais para demonstrar como o Estado pode apoiar e, de fato apoia em diferentes partes do mundo, a saúde sexual por meio de mecanismos jurídicos consistentes com os padrões regionais e internacionais e com seus compromissos de direi-tos humanos6.

Além dessas compilações sobre sexualidade e direitos, também chamamos a atenção para as de-finições da OMS sobre direitos sexuais, que são am-plamente citadas como ponto de referência em di-versas publicações. De acordo com essas definições:

“Os Direitos Sexuais abarcam um conjunto de direi-tos humanos já reconhecidos em tratados regionais e internacionais, em documentos de consenso e le-gislações nacionais. Entre estes, os mais fundamen-tais para a realização da saúde sexual são:

O direito à vida, liberdade, autonomia e segurança da pessoa;O direito à igualdade e à não discriminaçãoO direito de não ser torturado ou submetido a trata-mento ou punição cruel, desumana ou degradanteO direito à privacidade

O direito ao maior padrão de saúde possível (incluindo saúde sexual) e seguridade social O direito de casar, formar uma família e iniciar um casamento com o pleno e livre consentimento dos futuros parceiros e o direito à igualdade no casa-mento e em caso de separaçãoO direito a decidir o número de filhos e o intervalo de tempo entre as gestaçõesO direito à informação e educaçãoO direito à liberdade de opinião e de expressãoO direito à reparação eficaz para as violações de direitos fundamentais

A aplicação dos direitos humanos à sexualidade e à saúde sexual constitui os direitos sexuais. Os direi-tos sexuais protegem todos os direitos das pessoas de exercer e expressar sua sexualidade e usufruir de sua saúde sexual, levando em conta os direitos de outras pessoas, nos marcos da proteção contra dis-criminações”7.

Conforme já referido, reprodução e sexualidade estão conectadas e isso se reflete tanto na designa-ção de alguns direitos reprodutivos, que também são definidos como direitos sexuais, quanto na aplicação comum de determinados princípios de direitos humanos a essas questões.

Por exemplo, a decisão de continuar ou inter-romper uma gestação pode ser considerada um aspecto da capacidade de decidir associar ou sepa-rar a atividade sexual da maternidade, acionando os direitos à saúde, privacidade e não discrimina-ção, entre outros. Os meios pelos quais o acesso ao aborto vem se desenvolvendo como um direito humano (de modo consistente com a definição operacional da OMS) são incluídos, portanto, em nossas diretrizes sobre a utilização dos princípios de direitos relacionados à sexualidade.

Há, ainda, a interseção entre os direitos sexu-ais e os direitos relacionados a gênero. Embora a identidade e a expressão de gênero não sejam por si sós determinantes da sexualidade ou da conduta sexual, a maneira como a pessoa expressa o gêne-ro pode formar a base sobre a qual as legislações nacionais regulam com quem as pessoas podem ou não se relacionar sexualmente de maneira le-gítima. Logo, as normas de expressão e identidade de gênero são importantes e podem ser incluídas no âmbito dos direitos sexuais.

Todos os direitos básicos indicados na defini-ção operacional da OMS foram codificados - ou

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transformados em lei - em tratados internacionais e regionais e muitos também foram incorporados a constituições e códigos jurídicos nacionais.

Fontes da legislação de direitos humanosAs demandas de direitos humanos inscritas nos tratados internacionais e nas legislações nacionais têm poder vinculante, ou seja, podem compelir o Estado a agir. Essa seção apresenta uma visão geral das “fontes” de legislação básica de direitos huma-nos que dão base aos direitos sexuais.

Tratados internacionais e regionais e constituições e leis nacionaisAs fontes mais facilmente reconhecidas de legis-lação internacional vinculante de direitos huma-nos são os tratados, também conhecidos como convênios, convenções, estatutos e protocolos*. Existem diversos tratados internacionais, como a Convenção dos Direitos da Criança ou a Conven-ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dis-criminação contra Mulheres†. Leis internacionais são elaboradas por estados nacionais, que têm o direito de participar no processo e de se vincular às obrigações legais internacionais dele resultante por meio da ratificação de tratados. Todos as na-ções do mundo já ratificaram um ou mais trata-dos internacionais. A ampla ratificação de diversos tratados indica que, em geral, as práticas estatais estão de acordo com o tratado. A ampla ratificação de tratados pelas nações também influencia as práticas das nações que ainda não os ratificaram. O amplo comprometimento com as normas con-tidas em qualquer tratado específico pode se tor-nar uma evidência consuetudinária, ou algo que é amplamente aceito como aquilo que deveria ser legislado para todas as nações‡.

Tratados regionais, como a Convenção Euro-peia de Direitos Humanos ou a Carta Africana dos * O Direito Internacional Comum (DIC) também é uma fonte legislativa vinculante para o Estado: é uma das formas mais antigas de direito internacional e se baseia em normas dedutivas baseadas no que os governos efetivamente implementam, associadas às razões publicamente apresentadas para isso. Não exploramos o DIC neste Guia, apesar dos desenvolvimentos promissores da área, especialmente no direito humanitário internacional (basicamente a legislação sobre conflitos armados), que foram utilizadas como base da obrigação de se prevenir o estupro em conflito. Cf.: https://ihl-databases.icrc.org/customary-ihl/eng/docs/v1_rul_rule93 .† Para uma lista completa visite a homepage oficial do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CoreInstruments.aspx .‡ Para uma lista completa visite a homepage oficial do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CoreInstruments.aspx .

Povos e dos Direitos Humanos, são discutidos ape-nas perifericamente no Guia, mas funcionam de modo similar e resultam do trabalho de um grupo de nações que constituem uma determinada re-gião geopolítica das Nações Unidas.

Frequentemente, constituições e legislações nacionais contêm elementos de direitos humanos, como a não discriminação ou o direito ao voto. Os sistemas jurídicos nacionais revelam o grau em que cada nação tem a autoridade, a estrutura e os processos para promover e proteger os direitos hu-manos. Em alguns países, quando se trata da pro-teção a direitos, as constituições e legislações na-cionais são consistentes com, e às vezes até mais fortes, do que a normativa internacional de direi-tos humanos. A Lei Maltesa de Reconhecimento Jurídico de Gênero, por exemplo, adotada em 2015 pelo Parlamento de Malta, conta com padrões ju-rídicos e regulações procedimentais mais progres-sistas do que qualquer lei internacional no que diz respeitos à identidade e expressão de gênero.8 Em outras situações, sobre as quais discutiremos mais detalhadamente a seguir, as leis nacionais podem contrariar os padrões internacionais de direitos humanos como, por exemplo, quando se requer a autorização dos maridos para as mulheres que buscam serviços de contracepção.6

No nível internacional e regional, a aplicação da normativa pelos atores nacionais é supervisio-nada por um conjunto específico de órgãos ofi-ciais, que são constituídos pelos próprios tratados. O Comitê de Direitos Humanos, por exemplo, que será discutido a seguir, monitora a implementa-ção do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Assim, outras fontes de direitos humanos são a jurisprudência das cortes interna-cionais e as decisões tomadas pelas instituições de monitoramento de tratados de direitos huma-nos da ONU.

A seção sobre jurisprudência, discutida a seguir, traz exemplos em que órgãos oficiais internacio-nais, regionais e nacionais interpretaram e aplica-ram padrões de direitos já existentes, baseados em tratados ou em constituições nacionais para que se tornassem uma fonte de proteção para direitos re-lacionados à sexualidade e saúde sexual. É impor-tante lembrar que o direito internacional, definido pelos acordos entre as nações, não é perfeito e nem sempre reflete as práticas mais adequadas. O direi-to internacional foi concebido como um conjunto de práticas e padrões que está sempre em evolução e as normas dos direitos humanos compartilham desta característica. Dois exemplos de normas de

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direitos humanos que não se basearam nem foram estabelecidas por meio de sistemas internacionais ou regionais, são legislações sobre o trabalho se-xual e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que derivaram da aplicação inovadora de padrões de não discriminação, privacidade e saúde.

Declarações PolíticasEmbora não sejam juridicamente vinculantes, as declarações políticas do sistema das Nações Uni-das também contribuem positivamente para a emergência de padrões globais, especialmente quando uma mesma declaração é repetidamente proferida e acompanhada por mudanças legisla-tivas e nas práticas e políticas públicas. No que diz respeito aos direitos sexuais, não há discurso mais importante do aquele articulado na Platafor-ma de Ação de Beijing, em 1994. Como declara o Parágrafo 96, “os direitos humanos das mulheres incluem o direito de se tomar decisões de ma-neira livre e responsável sobre todas as questões relacionadas à sua sexualidade, livres de coerção, discriminação e violência.” Apesar de limitar-se às mulheres e seu alcance e aplicabilidade estarem focados na saúde, essa declaração representa a primeira articulação inter-governamental sobre o que se tornou posteriormente conhecido como di-reitos sexuais. Mais recentemente, a avaliação dos 20 anos de implementação da Conferência Inter-nacional de População e Desenvolvimento (CIPD), pela Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas, concluiu que os países de-vem “promover políticas públicas que permitam o exercício dos direitos sexuais, do direito a uma vida sexual segura e plena e o direito de tomar decisões livres, informadas, voluntárias e respon-sáveis sobre a sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero, sem coerção, discriminação ou violência, garantindo o direito à informação e aos meios necessários para a saúde sexual e saúde reprodutiva.”9

Jurisprudência de tribunais internacionais e regionaisA aplicação internacional e regional dos padrões de direitos humanos à saúde sexual pode ser iden-tificada na jurisprudência de muitos tribunais internacionais, produzidas por tratados com po-der vinculante sobre as partes conflitantes, con-tribuindo assim para padrões internacionais e regionais. Tem poder vinculante o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, assim como os tribunais penais internacionais ad hoc

sobre crimes de guerra e os tribunais regionais que fazem parte dos sistemas de tratados regio-nais de direitos humanos, como o Tribunal Euro-peu de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Até a presente data, não há cortes similares na Ásia e no Pacífico.

Cada uma dessas cortes tomou decisões cons-trutivas sobre direitos em casos importantes rela-cionados à sexualidade e saúde sexual. Entre essas, há decisões que afirmam os direitos relacionados à contracepção, ao aborto, sexualidade, educação, acesso de adolescentes a serviços de saúde sexu-al e reprodutiva e decisões que promovem o di-reito de viver livre de violência sexual. Também trataram da proteção aos direitos de associação, privacidade e não discriminação de populações transgênero, lésbica e gay e do direito à privaci-dade nas relações entre pessoas do mesmo sexo§. A ação desses tribunais e a forma como interpre-tam e aplicam os padrões jurídicos internacionais e regionais a novos fatos e novas realidades são parte do dinamismo e da interpretação contínua dos padrões internacionais de direitos humanos. Um exemplo específico é o entendimento jurídico da agressão sexual e do estupro. Historicamente, a definição penal, baseada em situações de paz, é demasiadamente estreita, pois reconhece o estupro apenas nos casos de relação sexual que envolve a penetração vaginal por um pênis, por um homem com uma mulher que não seja sua esposa, por meio da força e contra a sua vontade. Como resultado dos tribunais ad hoc de Ruanda e da antiga Iugoslávia, em 2010, o Tribunal Penal Internacional reelaborou os elementos do crime de estupro, oferecendo uma definição mais am-pla, cujos elementos podem ser aplicados a situ-ações de conflito e não conflito. De acordo com o Tribunal, o crime de estupro inclui a invasão ou conduta coercitiva resultando em penetração, não importa em que grau, de qualquer parte do corpo da vítima, com algum órgão sexual ou com algum objeto ou qualquer outra parte do corpo. A definição é ampla o suficiente para que se aplique a qualquer pessoa de qualquer sexo ou gênero.10

§ As autoras apoiam os direitos de pessoas LGBTQI, mas, aqui, buscamos especificar precisamente o que cada decisão afirma: se o caso tratou do comportamento sexual de parceiros do mesmo sexo, por exemplo, não se considera que ampliou a aplicação do princípio da não discriminação a pessoas “trans”. Essa prática destaca a natureza parcial do desenvolvimento de alguns direitos sexuais e de gênero, revelando que ainda há muito a ser feito.

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Uma revisão atual das decisões que aplicaram padrões relevantes provenientes de tribunais in-ternacionais e regionais de direitos humanos de-monstrou que essa decisão reconhece que o es-tupro pode ocorrer dentro do casamento e deve ser tratado como um crime. Demonstrou ainda a evolução do entendimento jurídico da função da força, da ausência de consentimento e do dever do Estado de levar a sério as acusações de estu-pro, oferecendo serviços e ações de prevenção.11,12 Essas decisões contribuíram para uma evolução radical da definição jurídica do estupro e, cada vez mais, esses elementos têm sido homologados em legislações nacionais, ampliando a proteção de to-das as pessoas contra a violência sexual.

Padrões dos órgãos de monitoramento dos tratados internacionais de direitos humanos

Os órgãos de monitoramento de tratados de di-reitos humanos das Nações Unidas são formados por especialistas para monitorar a implementação dos tratados internacionais de direitos humanos. Embora todos tenham tratado da sexualidade e da saúde sexual, há alguns, como o Comitê para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, sigla em inglês), o Co-mitê de Direitos da Criança (CRC, em inglês), e o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR, em inglês), que tratam de questões e rei-vindicações de direitos sexuais e saúde sexual com mais frequência.

Além disso, indivíduos ou grupos de indivíduos podem levar suas causas a esses órgãos por meio dos protocolos optativos - que devem ser ratifica-dos separadamente pelos Estados -, que são me-canismos adicionais acoplados a alguns tratados. Decisões tomadas por órgãos de monitoramento são vinculantes para a nação em questão, mas também oferecem diretrizes para outros países sobre o significado das obrigações às quais se sub-meteram ao ratificar o tratado.

Um caso de grande relevância para os direitos sexuais foi a decisão de 1994 sobre Toonen vs. Aus-tralia, do Comitê de Direitos Humanos, o órgão de monitoramento do Tratado Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Neste caso, em que um homem australiano desafiou o poder do Estado da Tasmânia para criminalizar o sexo entre homens, o Comitê concluiu que a proteção contra as inter-ferências discriminatórias na privacidade incluíam a proibição da criminalização da conduta íntima sexual, que seria uma forma de discriminação se-xual.13,14 Após esta decisão, o governo australiano

aprovou o Ato de Direitos Humanos (de Conduta Sexual) (1994), por meio do qual o sexo entre pes-soas do mesmo sexo não é mais criminalizado.15 A decisão judicial marcou uma evolução impor-tante da lei relacionada à conduta sexual entre pessoas do mesmo sexo e, como consequência, à orientação sexual e foi utilizada como base para reformas legislativas de mesmo teor em outras na-ções 16, incluindo Fiji17 e África do Sul.18

Outros casos de saúde sexual e direitos sexu-ais emergiram a partir de outros relacionados ao aborto e à contracepção. Em 2011, por exemplo, o CEDAW tomou uma decisão emblemática no caso L.C. v. Peru, em que uma vítima de estupro de 13 anos de idade tentou o suicídio quando descobriu que estava grávida, jogando-se de um prédio e so-frendo danos na coluna vertebral. O aborto tera-pêutico lhe foi negado e a cirurgia na coluna teve que ser adiada devido à gestação, resultando em uma grave deficiência física. Ao determinar que o Peru violou os direitos de L. C., o CEDAW destacou especificamente o direito à reparação e a discrimi-nação por idade e sexo (desigualdade de gênero) que afetou o acesso aos serviços de saúde.19

Além destas decisões baseadas em casos, os órgãos de monitoramento de tratados também publicam declarações interpretativas, conhecidas como Comentários Gerais ou Recomendações, que oferecem outros meios para que as nações com-preendam o âmbito de suas obrigações sob cada tratado. Comentários Gerais e Recomendações de grande importância para a saúde sexual são a Re-comendação Geral 24 do CEDAW sobre mulheres e saúde,20 o Comentário Geral 14 do CESCR sobre o direito à saúde,21 e o Comentário Geral 15 do CRC sobre o direito da criança de usufruir do mais alto padrão possível de saúde.22 O Comentário Geral 15 do CRC, por exemplo, indica claramente que as nações devem garantir que as meninas possam tomar decisões autônomas e informadas sobre saúde reprodutiva e oferecer educação em sexua-lidade adequada à etapa do desenvolvimento da criança.23 No campo do direito internacional, es-sas interpretações gerais são reconhecidas como um meio pelo qual os tratados podem avançar. Embora não sejam leis per se, à medida que as nações atuam de acordo com essas recomenda-ções, a nova interpretação ganha força como de-claração vinculante do significado do tratado.24 A partir da Recomendação Geral 19 do CEDAW sobre violência contra as mulheres, de 1992,23 por exemplo, os países passaram a relatar as

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alterações realizadas na legislação de enfrenta-mento da violência contra meninas e mulheres, incluindo a violência sexual, e as medidas para garantir que os serviços de saúde lidem com as consequências da violência.

Após a submissão de um relatório nacional ao Comitê, do “diálogo construtivo” com represen-tantes do país e da análise dos relatórios-sombra elaborados pela sociedade civil, o órgão de mo-nitoramento envia as “observações conclusivas” para a nação em questão. Esse processo de relato-ria é parte de um mecanismo importante de pres-tação de contas em direitos humanos para moni-torar a implementação das obrigações de tratados específicos.

Padrões nacionais de direitos humanosNo nível nacional, as constituições, decisões de tribunais constitucionais e de outros tribunais superiores e a legislação nacional (aqui referida como “normativa nacional de direitos humanos”) são relevantes para a saúde e os direitos sexuais. A Constituição Portuguesa, por exemplo, garante especificamente o direito ao planejamento fami-liar,25 e a Lei de Educação Sexual torna a educação sexual obrigatória em escolas públicas e privadas primárias, secundárias e técnicas.26 Outro exem-plo é a recente decisão da Suprema Corte india-na, que rompe com as normas de gênero binárias de masculino e feminino nas práticas judiciais e administrativas, reconhecendo a identidade e os direitos iguais para pessoas transgênero.27 Embo-ra as decisões dos tribunais e as legislações nacio-nais sejam vinculantes basicamente para as pes-soas e entidades que vivem no país, elas oferecem exemplos importantes e argumentos e diretrizes que podem influenciar tribunais e legislaturas de outros países.

Alguns países operam com mais de um siste-ma de aplicação de direitos e responsabilidades legais, como, por exemplo, leis baseadas em doutrinas e princípios religiosos ou costumes e tradições, aos quais as pessoas, às vezes só as mulheres, podem ser assignadas (por motivos religiosos, por exemplo) ou podem escolher qual sistema seguir. Em alguns países, casamento, he-rança e alguns crimes são regulados por diversos sistemas. Um dos princípios mais fundamentais e poderosos do direito internacional, porém, é que as nações devem agir em todos os níveis para cumprir seus compromissos internacionais. A fra-se em latim pacta sunt servanda resume muito bem esta regra: os compromissos devem ser cum-

pridos. Assim, um governo nacional é obrigado a avaliar suas leis à luz dos seus compromissos internacionais. As nações têm uma margem para decidir como lidar com as lacunas ou violações de suas obrigações internacionais por meio de seus sistemas legais paralelos, mas não podem alegar que a legislação nacional não é sujeita ao escru-tínio legal dos direitos humanos internacionais. É importante salientar que em muitos (embora não todos) países com regime jurídico plural, os com-promissos internacionais de direitos humanos e a constituição nacional podem oferecer uma base para avaliar - frequentemente sob leis de discri-minação - quais são as leis de um determinado sistema que não obedecem às garantias de direi-tos humanos.6

Os princípios de direitos humanos e sua aplicação no desenvolvimento de novos padrões relacionados aos direitos sexuais, à sexualidade e à saúde sexualEsta seção destaca nove regras fundamentais para orientar o desenvolvimento e a aplicação dos pa-drões e normas de direitos humanos, que são re-levantes aos direitos sexuais.

Universalidade, inalienabilidade e indivisibili-dade dos direitos humanosOs direitos humanos são universais e inalienáveis, indivisíveis, interdependentes e interrelaciona-dos. São universais porque cada indivíduo nasce com e possui os mesmos direitos, independente de onde vive, de seu gênero ou raça, e de sua for-mação religiosa, cultural ou étnica. São inaliená-veis porque os direitos dos povos não podem ser retirados em nenhuma situação. São indivisíveis e interdependentes porque todos os direitos - po-líticos, civis, sociais, culturais e econômicos - são iguais em importância e nenhum deles pode ser usufruído plenamente sem os outros. Se aplicam a todas as pessoas igualmente. A negação de um direito impede invariavelmente que outros direi-tos sejam usufruídos. Por exemplo, a discrimina-ção contra pessoas vivendo com HIV ou por causa da orientação sexual homoafetiva pode afetar sua carreira, a busca por moradia e educação e o acesso a serviços de saúde. A realização de um direito depende muitas vezes, completa ou par-cialmente, da realização de outros direitos. Por exemplo, a realização do direito à saúde pode de-pender da realização do direito à educação ou à informação.28

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Não discriminação e igualdade: direitos em si e princípios fundamentais de direitos subjacente a todos os outros direitosA não discriminação constitui um princípio orien-tador da aplicação de todos os direitos humanos e uma obrigação específica que orienta a ação do estado para agir sem discriminação e para atuar afirmativamente para alcançar a igualdade para todas as pessoas.29,30

A não discriminação como ferramenta de igualdade e saúde sexualO princípio de não discriminação se associa de múltiplas formas com a sexualidade, a saúde se-xual e os direitos humanos. A desigualdade entre pessoas e grupos é um forte preditor da carga de saúde/doença, incluindo a saúde/doença sexu-al. As desigualdades se manifestam por meio do acesso diferenciado a serviços e recursos, da pos-sibilidade de participação na elaboração de leis e políticas públicas e no acesso à justiça para a repa-ração contra abusos.31 A discriminação opera por meio de processos de desigualdade que raramente estão ligados a apenas uma característica de uma pessoa, mas que são fomentados por múltiplos fa-tores. Na realidade, nos tratados internacionais de direitos humanos a discriminação é compreendi-da como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha como base raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, proprie-dade, status de nascimento ou outros, e que tenha o propósito ou o efeito de anular ou impedir o re-conhecimento, o usufruto ou exercício igualitário para todas as pessoas, de todos os direitos e liber-dades.”32,33 Essa lista, assim como os motivos de proibição, não é exaustiva. O termo “outro status”, portanto, pode ser interpretado para incluir idade, orientação sexual, identidade de gênero, incapaci-dade e status de HIV, condições que podem afetar a saúde sexual.2,30,33-37

As diferentes formas de discriminação podem interagir entre si, tratando-se assim de “discrimi-nação interseccional” ou de “múltipla discrimina-ção”, e, nesse caso, as análises e reparações devem considerar não apenas um eixo de discriminação, como a discriminação por motivos de sexo e gêne-ro, mas também a sua conexão com outros status, como raça, idade e status de nacionalidade, para que se capte todas as dinâmicas e para que as re-parações funcionem de maneira eficaz para alcan-çar uma igualdade significativa.29,30,36

A não discriminação é um aspecto do dever do Estado de agir de modo que não produza ou perpetue barreiras à igualdade e ao usufruto igua-litário de direitos, incluindo o padrão de saúde mais alto alcançável para todas as pessoas.21,22,29,30 As medidas para garantir a não discriminação, in-cluindo a garantia de proteção igualitária da lei, podem exigir programas e políticas públicas mais amplos voltados para a distribuição de recursos entre todos os setores da sociedades e no sistema de saúde. A eliminação da esterilização forçada, de pessoas deficientes, povos indígenas, mino-rias étnicas, pessoas transgênero e intersexo, por exemplo, requer ações jurídicas e no nível de po-líticas públicas de saúde e educação para garantir que a esterilização só seja realizada nos casos em que a pessoa seja plenamente informada e possa tomar a decisão por livre e espontânea vontade.32

A legislação como fonte de discriminaçãoA legislação, as políticas públicas, os programas e práticas, inclusive nas unidades de saúde, tam-bém podem ser fontes de discriminação e outras violações de direitos humanos, com significativos impactos sobre a saúde. Crenças sobre papéis de gênero apropriados a mulheres e homens, por exemplo, que por sua vez ditam a conduta sexu-al esperada, são muitas vezes traduzidas em leis e afetam de maneira negativa a vida e a saúde de mulheres e homens. Muitas leis discriminam pessoas que transgridem regras sociais sobre o comportamento feminino ou masculino e pesso-as cujas condutas sexuais são vistas como inapro-priadas - incluindo o sexo sem fins reprodutivos e o sexo extraconjugal - ou que não se comportam sexualmente de acordo com os papéis de gênero socialmente assignados.

Algumas das manifestações mais draconianas de crenças e estereótipos discriminatórios podem ser observadas na normativa e nas práticas da jus-tiça criminal. Em diversos países, por exemplo, o direito penal é aplicado para proibir o acesso a certos serviços de e informações sobre saúde se-xual e reprodutiva, para punir a transmissão do HIV e uma variada gama de condutas sexuais con-sensuais que ocorrem entre pessoas com plena capacidade de decisão e escolha. A criminalização desses comportamentos e atos produzem diversas consequências para a saúde, incluindo a saúde sexual. Pessoas cujas decisões e práticas sexuais e reprodutivas são consideradas crime sexual po-dem omitir seu comportamento e suas atividades

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a profissionais de saúde, à polícia e a outros pro-fissionais por medo de serem estigmatizadas, pre-sas ou processadas. Muitas vezes também são mal-tratadas por profissionais de saúde, o que reduz a possibilidade de buscarem serviços de saúde. Pessoas que participam de atividades, ou que se imagina que participem, que vão de encontro à lei, são muitas vezes alvos de diferentes tipos de abusos, incluindo a violência (tanto sexual, quan-to não sexual), extorsão, abusos e outras violações cometidas por indivíduos e grupos, e também pela polícia, e que muitas vezes acabam impunes.6

Órgãos internacionais, regionais e nacionais de direitos humanos apontam que o uso do direito penal em relação ao acesso e à oferta de serviços e informações básicas de saúde sexual e reprodutiva e a sua aplicação à conduta sexual consensual vão contra os princípios dos direitos humanos e, por isso, muitos países tiveram que alterar suas leis.6

Muitos países adotaram um amplo conjunto de proteções contra discriminação, incluindo garan-tias constitucionais e leis que oferecem garantias explícitas de não discriminação baseadas em condi-ções específicas, como sexo, gênero, orientação se-xual ou situação de saúde. Alguns países definiram motivos específicos de proteção relevantes para a saúde sexual por meio de jurisprudência nacional. Essas leis e referências constitucionais podem, por sua vez, auxiliar no desenho e avaliação de progra-mas governamentais e não governamentais.6

Ação estatal para acabar com a discriminaçãoA responsabilidade estatal para combater a dis-criminação se estende além do conteúdo da le-gislação nacional e inclui a obrigação de tomar medidas significativas para eliminar a discrimina-ção e estabelecer as condições de igualdade. Esta responsabilidade para agir atinge todas as esferas da vida - pública e privada, econômica, social, cul-tural, política e civil. As medidas devem ser apro-priadas às esferas específicas. Assim, os governos podem regular de maneira diferente o setor públi-co e o privado, estabelecendo, por exemplo, que as escolas públicas devem oferecer educação se-xual abrangente, sem criar mandatos legais para as escolas privadas. Mas, o Estado ainda tem a obrigação de promover educação pública abran-gente e acessível. O alcance dessa obrigação do Estado inclui analisar e avaliar leis e práticas que contenham componentes explicitamente discrimi-natórios, como regulações que ofereçam informa-ções e serviços de contracepção para mulheres e

meninas baseadas na sua situação conjugal e/ou na permissão do marido (discriminação direta) ou leis que são neutras em sua formulação, mas pro-duzem efeitos discriminatórios.30,33 Na verdade, al-gumas leis “neutras” em termos de gênero podem produzir discriminação contra mulheres de todos os tipos, inclusive de mulheres transgênero, por exemplo, quando o governo não oferece serviços exclusivos para mulheres, principalmente de saú-de reprodutiva.20,38

O objetivo da não discriminação não é apenas um objetivo de igualdade formal, em que o Esta-do trata todas as pessoas de maneira igualitária e foca na igualdade de padrões, mas trata de igual-dade substancial, que pode requerer o tratamento diferenciado de determinadas pessoas.35 O teste de igualdade substancial pode ser visto em seus resultados: pessoas em situações diferentes (como pessoas transgênero e pessoas que vivem com de-ficiências) devem ter acesso a recursos, participar da e tomar decisões na vida pública e privada de maneira igualitária e com igual capacidade de in-fluenciar os resultados e usufruir desses direitos na prática. Qualquer medida governamental em direção à igualdade substancial está sujeita à aná-lise de direitos humanos, para garantir que não são arbitrárias ou discriminatórias e são alinhados aos princípios de autonomia, respeito à diversi-dade e liberdade de estereótipos de gênero e de raça. Um exemplo disso seria procurar determinar como, e em que circunstâncias, mulheres grávidas são tratadas de maneira diferente de mulheres não grávidas e de homens.29 Um outro exemplo é a noção de que a incapacidade de prever adap-tações razoáveis a formas reconhecíveis de dife-renças, como as deficiências, são uma forma de discriminação.39

As obrigações dos governos incluem não ape-nas se abster de ações discriminatórias, mas tam-bém realizar ações afirmativas para remover as barreiras e reparar os legados históricos de de-sigualdade. Nessas circunstâncias, permite-se a “discriminação positiva” como medida temporária especial. Medidas reparatórias legislativas ou ad-ministrativas, chamadas de “medidas temporárias especiais”, são permitidas em muitos tratados de direitos humanos e em muitas legislações nacio-nais; elas não apenas são permitidas como parte da igualdade, mas também podem ser requeridas para garantir os direitos iguais, incluindo os direi-tos de saúde sexual, de um grupo historicamente desfavorecido, como mulheres de um certo grupo

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étnico ou mulheres refugiadas. As leis que assegu-ram esse tipo de tratamento não são consideradas discriminatórias, desde que sua relevância seja continuamente avaliada.40

Respeito, proteção, realizaçãoOs padrões de direitos humanos deixam claro

que os países têm três formas de obrigações: res-peitar, proteger e realizar direitos.20, 21, 41 Um exem-plo da obrigação de respeitar direitos no contexto da saúde sexual seria a adoção de leis e outras medidas para garantir que a polícia, como agente do Estado, não abuse de indivíduos que se vistam ou se comportem de modo não conforme a pa-drões de gênero. Outro exemplo seria uma lei que elimine a exigência de que mulheres casadas ob-tenham a autorização de seus maridos para usar serviços de planejamento familiar.

Sob a obrigação de proteger, os governos devem elaborar leis e políticas públicas para proteger ple-namente contra atos ou práticas que tornem algu-mas pessoas menos iguais que outras. Isso inclui, por exemplo, rever leis que não protegem todas as pessoas de abusos sexuais de forma igualitária - como, por exemplo, quando uma lei não inclui mu-lheres casadas ou homens como potenciais vítimas de abuso sexual - ou garantir que as leis não tratem mulheres profissionais do sexo como menos dignas de proteção contra estupro do que outras mulhe-res. Isso também inclui a promulgação de leis que eliminem as barreiras ao acesso a informações pre-cisas e diversas sobre sexualidade na mídia ou de leis que tornem o estupro de homens suscetível a ações judiciais como uma infração grave e garan-tam serviços adequados. Nestes contextos, a lei cri-minal é parte, mas ainda insuficiente, da resposta adequada de promoção de direitos.

Exemplos da realização de direitos no que diz respeito à sexualidade e saúde incluem a aloca-ção de recursos significativos para a melhoria da saúde sexual, por meio do, por exemplo, financia-mento de campanhas públicas de educação que tratem do respeito às diversas orientações sexuais das pessoas e identidades e expressões de gênero, ou da criação de um marco jurídico que permita que a sociedade civil se organize, eduque e pro-teja indivíduos contra o abuso sexual na família.

Dever de diligência (due diligence)O conceito de due diligence, pelo qual o Estado é responsável por respeitar, proteger e realizar di-reitos, funciona como um padrão de avaliação do dever dos estados de garantir direitos de maneira

geral. Como o Estado tem a responsabilidade con-creta de proteger, ele é responsável se não evitar violações de direitos por atores não estatais em condições específicas. No contexto da saúde se-xual isso pode ser de importância fundamental - em que, por exemplo, a discriminação ou vio-lência impede os indivíduos de fazer valer seus direitos de forma igualitária com outras pessoas. De acordo com o princípio do dever de diligên-cia, o Estado deve prevenir, investigar e punir atos que impeçam o usufruto de quaisquer direitos re-conhecidos sob as leis internacionais de direitos humanos. Os governos são obrigados a estabelecer mecanismos nacionais para a aplicação prática e supervisão dessas leis, assim como garantir repa-rações abrangentes para as violações.

O padrão do dever de diligência foi incorpora-do explicitamente à normativa das Nações Uni-das, como na Declaração sobre a Eliminação de Violência Contra Mulheres, que declara que os es-tados devem “exercer o dever de diligência para prevenir, investigar e, de acordo com a legislação nacional, punir atos de violência contra mulheres, independentemente desses atos serem cometidos pelo Estado ou por indivíduos.”24,44

Cada vez mais, os órgãos de direitos humanos utilizam o conceito de dever de diligência como medida de avaliação da inatividade do Estado frente à discriminação, exclusão e violência de indivíduos. Gradualmente, o dever de diligência vem sendo aplicado de forma mais abrangente para a violência sexual e de gênero, violência do-méstica e estupro na comunidade,43-47 incluindo o direito penal e ações afirmativas preventivas, como a eliminação dos estereótipos de gênero, e na oferta de serviços de saúde para populações marginalizadas.

A realização progressiva dos direitosO princípio de realização progressiva reconhece que não há estados aptos a realizar todos os direi-tos de forma imediata e completa. Por exemplo, questões financeiras, técnicas e logísticas necessá-rias para a organização de um sistema de saúde que funcione plenamente e, portanto, cumpra o direito à saúde, estão em constante evolução e sempre podem ser melhoradas. Essa regra ad-mite que providências tomadas para a realização plena dos direitos, incluindo os direitos sexuais, devem ser deliberadas, concretas e descritas da maneira mais clara possível para que se cumpram as obrigações estatais para com os direitos huma-nos, “com o máximo dos recursos disponíveis.”21,48

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Isto requer portanto que todos os países ajam de maneira concreta para realizar plenamente os di-reitos de acordo com os seus recursos e sem retro-cessos propositais. Um princípio complementar ao princípio de realização progressiva é o princípio de “não retrocesso”. O retrocesso, que se define pela reversão de decisões e compromissos previa-mente acordados, não é permitido sob nenhuma circunstância, sejam estas intencionais ou não in-tencionais. O princípio da realização progressiva inclui a adoção de medidas legislativas e a imple-mentação de reparações judiciais, além de medi-das administrativas, financeiras, educacionais e sociais.21,43

Neste contexto, a comunidade internacional distingue entre a incapacidade e a relutância de um estado em cumprir com suas obrigações. Mes-mo quando há incapacidade material ou estrutu-ral, os estados devem fazer esforços contínuos para atingir marcos e metas acordados previamente. No entanto, alguns direitos são de efeito imedia-to, como o direito de garantir adequadamente a não discriminação na legislação. A proteção legal contra a violência ou contra a discriminação, por exemplo, não pode ser negada a ninguém inde-pendentemente de sua situação de cidadania, im-plicando que pessoas em busca de asilo, pessoas em situação de refúgio, trabalhadores imigrantes e outras pessoas, que se encontrem no território sob ou estejam sujeitos à jurisdição do Estado, de-vem ser protegidas. Por outro lado, as obrigações para garantir moradia ou serviços de saúde estão sujeitas à realização progressiva - contanto que o Estado esteja tomando medidas concretas e não discriminatórias para que se alcance todos dentro de seu território.21,30

O padrão dos “recursos disponíveis”, utilizado quando se avalia se um estado cumpriu com o seu dever de realização progressiva, também inclui o que é recebido por meio da assistência e coopera-ção internacional. Portanto, o dever do estado de cumprir os direitos sob o padrão da realização pro-gressiva é avaliado à luz de todas as verbas disponí-veis, sejam estas provenientes de assistência multi ou bilateral, ou de doadores privados, e se aplica também aos países mais ricos com relação à assis-tência que oferecem para além de sua fronteira.21,49

ParticipaçãoDe acordo com a normativa internacional de di-reitos humanos e com diferentes acordos con-sensuais, os governos têm o dever de garantir a

participação ativa e informada das pessoas nos processos de tomadas de decisão que afetam suas vidas, incluindo em questões relacionadas às suas saúdes.21, 50-52 A participação de populações afe-tadas em todas as fases dos processos de toma-da de decisão e de implementação de políticas e programas é considerada uma precondição do de-senvolvimento sustentável,53-55 e também há fortes evidências que demonstram uma associação entre a participação e resultados positivos de saúde.56,57 Quando a população participa do desenvolvimen-to do programa e das políticas públicas, suas ne-cessidades de saúde e seus direitos humanos são melhor atendidos.58

A participação inclui desde reuniões comunitá-rias de planejamento de estratégias para lidar com prioridades locais até a oferta de respostas para a saúde sexual e reprodutiva no nível local, e mes-mo através da pressão de movimentos sociais para mudanças nas políticas nacionais. A participação também inclui o envolvimento ativo de indivídu-os, comunidades ou organizações comunitárias no planejamento, implementação, gestão ou avalia-ção de serviços e sistemas de saúde, inclusive os de saúde sexual e reprodutiva.59 Os diferenciais de poder baseados no nível de alfabetização, língua, situação social ou outros fatores, que podem ex-cluir do processo as pessoas mais afetadas pelas decisões tomadas, como mulheres e meninas, fo-ram muitas vezes superados pelo incentivo à par-ticipação significativa destas populações.

A incapacidade das populações afetadas - como profissionais do sexo e vítimas de violência - de participar na elaboração e avaliação das leis que afetam sua saúde sexual é tanto causa como con-sequência da discriminação e da exposição contí-nua ou crescente à violência e saúde precária. Por exemplo, alguns países restringiram legalmente o registro (em forma de associações) de grupos identificados como transgênero, lésbico, gay ou de profissionais do sexo; outros aprovaram leis que criminalizam seus discursos. Todas essas medidas afetam a capacidade de combater a violência, pre-venir o HIV ou a atuação em outras questões de importantíssimas para a saúde sexual. Tanto no nível internacional, como no nível regional, os tribunais e órgãos de direitos humanos considera-ram esse tipo de lei restritiva como uma violação do direito fundamental à liberdade de expressão, de associação e de proteção de não discriminação; nessas decisões, afirma-se o princípio básico de ga-rantir o direitos de participação em sociedade.60-63

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Por exemplo, quando a Corte Européia de Direitos Humanos declarou que organizações LGBT devem ter o direito de sair nas ruas para protestar, estava defendendo o princípio básico de participação cí-vica para todas as pessoas por meio das garantias da Convenção Europeia sobre assembleia e asso-ciação, tanto quanto a não discriminação.64

Limites permissíveis dos direitosDesde a adoção da Declaração Universal de Direi-tos Humanos, em 1948, se entende que, quando as pessoas exercem seus direitos e liberdades, “elas só devem se submeter às limitações legais com o propósito de garantir o reconhecimento e respei-to aos direitos e liberdades de outras pessoas e de atender aos requisitos da moralidade, ordem pública e do bem-estar geral em uma sociedade democrática”.65 A questão crítica sempre é como avaliar se um estado alcançou o equilíbrio correto entre direitos e interesses quando há regras que limitam alguma ação com o objetivo de proteger os direitos de outros.

Há alguns direitos, como a proteção contra tor-tura, liberdade contra a escravidão, e liberdade contra a privação arbitrária da vida, que não po-dem nunca ser restritos pelo Estado, não importa a justificativa.66

No entanto, alguns tratados de direitos hu-manos contém cláusulas que admitem uma lista bastante restrita de direitos que podem ser tem-porariamente suspensos em casos de emergência que ameacem a vida da nação, mas mesmo a sus-pensão (“derrogação”) desses direitos não pode ser conduzida de maneira discriminatória.66 Além dis-so, há alguns direitos que contêm um limite geral de cláusulas nos textos dos tratados: por exemplo, alguns direitos à associação podem ser suspensos para que se proteja a saúde da população geral, mas a evolução da jurisdição demonstra clara-mente que essa exceção deve ser analisada cui-dadosamente, de tal maneira que se prove que a restrição é baseada em evidências de saúde públi-ca e não discrimina certos grupos populacionais. Um caso importante julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, em que o direito à liberdade de movimento de um homem HIV-Positivo foi res-trito (isolamento forçado), não foi justificado pelas preocupações do Estado com as futuras práticas sexuais do homem.67

É um princípio geral que, em sua maior parte, os direitos só podem ser usufruídos até o ponto em que essa expressão não impede o próximo de usufruir dos direitos dele.68,69 Por exemplo, o di-

reito ao discurso sobre sexo pode estar sujeito a restrições apropriadas de tempo, lugar e formato.70 Razões “morais” e de “saúde” têm sido invocadas por governos para justificar a imposição de leis que limitam indivíduos, com um impacto sério sobre a saúde sexual. Tais leis incluem aquelas que limitam a expressão e associação de certos grupos populacionais como profissionais do sexo ou pessoas transgênero, leis que criminalizam o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo ou outras formas de sexo consensual e leis que banem certos tipos de informação sobre saú-de sexual e reprodutiva. No entanto, há padrões de direitos humanos fundamentais que demonstram que invocar a “moralidade” ou “saúde” para que se limite o exercício dos direitos humanos só deve ocorrer quando estritamente necessário e não pode ser aplicado de maneira arbitrária ou discri-minatória. A decisão Toonen de 1994 mencionada acima destacou que nem uma razão moral nem uma razão de “saúde” (em nome da prevenção do HIV) foram suficientes por si sós para proteger a ação do Estado contra investigações por discrimi-nação no PIDCP. Casos antigos e recentes deixam claro que a rejeição à homossexualidade ou per-cepções de que as informações sobre identidade sexual são “obscenas” não são motivos suficientes para a censura ou negação do direito de expressão e associação.60,71,72

O direito a reparações e compensaçãoDe acordo com a normativa internacional de direi-tos humanos e muitas constituições nacionais, uma obrigação fundamental dos estados é a de oferecer reparação eficaz para as violações de direitos hu-manos, não importando se quem cometeu a viola-ção foi o Estado ou um ator não estatal.73,29 Não há uma maneira clara de se determinar o que é uma reparação eficaz, mas ela deve incluir o devido processo legal e a proporcionalidade, o que signi-fica que a punição e a reparação devem ser com-patíveis, e não superar, à essência e severidade da injúria. Além disso, para que tenha significado, o estado deve demonstrar que tomou medidas para garantir que a mesma violação não aconteça no-vamente. Essa ação, chamada de “garantia de não repetição”, também é uma garantia fundamental para reparações progressistas.65,66,74-80 As garantias devem ser sólidas o suficiente para gerar mudança real nas práticas governamentais, como medidas eficazes para que se previnam violações.

No contexto da sexualidade e da saúde sexual, o direito à reparação eficaz deve responder aos as-

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pectos sexuais e de gênero do dano.42 Por exemplo, uma reparação eficaz à negação do planejamento familiar para mulheres solteiras deve incluir a mu-dança da lei de acesso à informação e a serviços de planejamento familiar independentemente do estado civil.

Direitos distintos para pessoas menores de 18 anosDe acordo com a normativa internacional de direi-tos humanos, pessoas menores de 18 anos estão habilitadas a usufruir de todos os direitos huma-nos, mas as obrigações jurídicas específicas dos go-vernos para com os jovens muda quando atingem a maioridade. Ao completar 18 anos, todos podem exigir os direitos assegurados nos tratados funda-mentais de direitos humanos e nas constituições e códigos jurídicos nacionais. É importante salientar que há diferenças entre o regime jurídico que re-gula os direitos de crianças e adolescentes e as nor-mas programáticas da saúde pública, que incluem adolescentes e jovens entre 15 e 24 anos.

As distinções baseadas na faixa etária não são consideradas discriminatórias e têm como objeti-vo impulsionar os direitos de pessoas menores de idade. Há padrões específicos de direitos humanos que oferecem diretrizes para o acesso e usufruto de pessoas menores de idade aos seus direitos, in-cluindo os comentários do Comitê dos Direitos da Criança em relação à saúde de adolescentes.22,76,81,82 A aplicação dos princípios de direitos humanos à infância e adolescência baseia-se na noção de que a capacidade de pensar e agir por si próprio é um processo gradual: na medida em que as crianças crescem, o seu poder de exercer direitos também aumenta. O sistema de direitos humanos reconhe-ce isto ao equilibrar os poderes dos pais, guardiões ou do Estado sobre os direitos das crianças, am-pliando seu poder quando crescem (as crianças) e reduzindo o poder e responsabilidades do Estado e dos pais ao longo do tempo.22,76,81,82

A linha de ouro dos 18 anos não significa que todas as pessoas menores de idade devem ser tratadas de maneira idêntica. O artigo 5 da Con-venção dos Direitos das Crianças enfatiza que a capacidade de desenvolvimento das crianças deve ser os principal princípio para ajudar as crianças a exercerem seus direitos. Isto significa que ado-lescentes mais velhos devem ter mais autonomia do que crianças mais novas. Este conceito leva em consideração o reconhecimento das crianças como agentes ativos de suas próprias vidas e como de-tentoras de direitos com autonomia gradual, en-

quanto são, simultaneamente, dignas de proteção de acordo com suas vulnerabilidades. No que diz respeito à saúde sexual é essencial que as crianças sejam protegidas da exploração e do abuso sexual, mas menores de idade também têm direitos espe-cíficos de acesso à informação e serviços relaciona-dos à sexualidade e à saúde sexual sem necessitar da autorização de terceiros, assim como o direito à expressão e ação que contribua para o seu desen-volvimento.22

A jurisprudência do Reino Unido ganhou aten-ção e aplicabilidade regional e global nesse sen-tido. O Parlamento estabeleceu que é legal o aconselhamento médico sobre contracepção para menores de idade sem o consentimento dos pais, desde que certos critérios sejam cumpridos.83 Os critérios especificados pelo juiz - conhecido como Diretrizes Fraser - estão sendo usados como pa-drões de diretrizes para a oferta de serviços para adolescentes no Reino Unido e em outros fóruns nacionais, regionais e globais. De acordo com es-sas diretrizes, é legal oferecer contraceptivos e ou-tros tratamentos sem o consentimento dos pais se o profissional de saúde achar que a jovem irá com-preender os seus conselhos, se não for persuadida a informar os pais e que decida livremente se irá ou não solicitar o consentimento dos pais.84

A normativa internacional de direitos humanos também demanda que a lei não crie distinções en-tre meninas e meninos baseadas em estereótipos de gênero ou estereótipos que excluam expressões diversas de gênero ou de orientação sexual pelas pessoas mais jovens. O estereótipo de gênero não pode ser a base para que se determine direitos re-lacionados à sexualidade: a idade de casamento, por exemplo, deve ser igualitária (e 18); e embora a idade do consentimento sexual possa ser menor do que a idade de casamento, ela deve ser igual para meninos e meninas, assim como para rela-ções hetero e homossexuais. A não discriminação relacionada à expressão de gênero, sexo, identida-de de gênero e orientação sexual também é aplicá-vel a pessoas com menos de 18 anos.

ConclusãoA normativa dos direitos humanos não é estática nem tampouco é um vale-tudo: ela evolui con-forme decisões jurídicas muito específicas que guiam o desenvolvimento do direito internacional e não apenas do campo dos direitos humanos. As nove regras de aplicação e interpretação discuti-das acima tem desempenhado um papel funda-mental no desenvolvimento atual da normativa

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Referências

internacional e nacional dos direitos humanos que apoiam a saúde e os direitos sexuais - muito além, pode-se garantir, do que qualquer elabora-dor dos tratados dos anos 1960, 1970 e 1980 pode-ria ter imaginado. E é assim mesmo que deve ser: a imaginação dos formuladores de tratados não deve ser o delimitador final do alcance do direito. A participação de novos sujeitos de direito, novas ideias sobre pessoas, a interação entre os estados nos regimes globais de comércio, conflito, saúde e desenvolvimento criam novos contextos e aliados na evolução dos entendimentos, sejam estes sobre o casamento ou sobre a capacidade dos jovens. É com base nisso que este Guia formula as regras que podem ser utilizadas para incentivar e dar continuidade à evolução do regime internacional de direitos humanos para apoiar a saúde e a di-versidade sexual.

O regime atual não é perfeito - está exatamen-te na encruzilhada do possível com o ideal, com ideias conflitantes sobre o ideal que opera sobre os direitos humanos. Muitos países e atores resistem

à aplicação destes princípios à dinâmica dos di-reitos e defendem que os direitos humanos não são um catálogo pronto de direitos e não podem ser usados para mudar práticas nacionais porque estão ancoradas em tradições antigas ou porque a sexualidade em si é isenta do escrutínio inter-nacional. Como indicado em nosso Comentário (23/46, pp.7-15, RHM 46 2015), os direitos sexuais não estão isentos destas contestações e o proces-so de desenvolvimento dos direitos também não está livre de preconceitos, estereótipos e jogos de poder. Mesmo se aceitarmos os argumentos mais conservadores sobre o desenvolvimento do direi-to, é evidente, no entanto, que o direito se desen-volve e os princípios explorados neste guia fazem parte desse desenvolvimento. Os direitos sexuais, como componentes da evolução dos direitos hu-manos, são uma parte desta evolução global dos direitos: são restritos, mas também são livres para se desenvolver de forma mensurável para assegu-rar e garantir todos os nossos direitos com liberda-de e dignidade.

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ResumenEsta Guía tiene como objetivo brindar conocimientos y recursos a los actores interesados en la formulación de afirmaciones de derechos relacionados con la sexualidad y salud sexual. Después de abordar la controvertida cuestión del alcance de los derechos sexuales, explora las reglas y principios que rigen la manera en que las afirmaciones de derechos humanos son formuladas y aplicadas a la sexualidad y salud sexual, y cómo esa formulación está vinculada con la ley y pasa a ser cuestión de obligación del Estado. Este entendimiento es fundamental para las políticas y

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RésuméCe Guide cherche à transmettre des connaissances et des ressources aux acteurs intéressés par le développement de revendications relatives aux droits autour de la sexualité et la santé sexuelle. Après avoir abordé la question controversée de la portée des droits sexuels, il explore les règles et les principes qui gouvernent la manière dont les revendications fondées sur les droits de l’homme sont développées et appliquées à la sexualité et la santé sexuelle, et comment ce développement est lié à la législation et devient une obligation étatique. Cette compréhension est essentielle pour définir

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les politiques et la programmation en matière de santé et droits sexuels, car elle soutient les actions exigeant de bénéficier de tout l’éventail des droits de l’homme, comme la protection de la vie privée, la non-discrimination, la santé ou d’autres droits fondamentaux acceptés universellement, tout en demandant aux États de prendre des mesures au titre de leurs obligations juridiques nationales et internationale de soutenir la santé sexuelle.

programación en salud y derechos sexuales, ya que apoya hacer un llamado a los diversos derechos humanos pertinentes, tales como privacidad, no discriminación, salud u otros derechos humanos aceptados universalmente, así como exigir que los Estados tomen medidas, de conformidad con sus obligaciones de derecho internacional y nacional, para apoyar la salud sexual.

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Enfrentando reações negativas à educação sexual por meio de um modelo multicultural de direitos humanos

Vera Paivaa, Valéria N. Silvab

a Professora de Psicologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Brasil. Contato: [email protected] Mestre em Medicina Preventiva, Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Brasil

Resumo: A educação sexual, seus protocolos e planejamento são contingentes ao contexto político em constante mudança característico do campo da sexualidade na maioria dos países. No Brasil, as perspectivas dos direitos humanos moldaram a resposta à epidemia de AIDS, influenciando indiretamente a aceitação pública da educação sexual nas escolas. Desde 2011, no entanto, o surgimento de múltiplos movimentos fundamentalistas na região gerou diversas ondas de retrocesso em todas as questões relacionadas à sexualidade, afetando as políticas públicas de saúde e as políticas de educação. Este artigo explora as abordagens dos direitos humanos à saúde, focando em um modelo de direitos multicultural e em abordagens produtivas para ampliar o diálogo sobre o consentimento sustentado para a educação sexual. As abordagens multiculturais de direitos humanos (MDH) são dialógicas em dois campos: no processo comunicativo que garante o consentimento e nos acordos comunitários e nas metodologias psicossociais e educativas construtivistas. Em seu processo contínuo de consentimento, a abordagem MDH possibilitou a tradução de valores distintos e tornou difusa a resistência à educação sexual nas escolas/cidades participantes, mantendo com sucesso as noções de igualdade e proteção do direito à educação sexual abrangente, que não rompe com a solidariedade entre os grupos e garante a aceitação das diferenças.

Palavras-chave: direitos humanos, educação em sexualidade, HIV/AIDS, adolescentes, prevenção

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2015.11.015

IntroduçãoA educação em sexualidade, seus protocolos e seu planejamento são contingentes ao ambiente políti-co em constante mudança que caracteriza o campo da sexualidade na maioria dos países. Na América Latina, as transições dos regimes autoritário para a democracia, ocorridas nos anos 1980/1990, resul-taram em políticas públicas inovadoras baseadas em direitos humanos que disseminaram a noção de que a promoção e a proteção à saúde estão in-dissociavelmente ligadas à promoção e à proteção de direitos. No Brasil, esta perspectiva moldou a resposta ao HIV/AIDS, influenciando diretamente a aceitabilidade pública da educação em sexualidade nas escolas. Desde 2011, no entanto, o surgimento de múltiplos movimentos fundamentalistas na re-gião levou a ondas recorrentes de retrocessos em todas as questões relacionadas à sexualidade, fa-zendo retroceder as políticas de saúde e educação. O conceito de “cidadania” (incluindo a “cidadania sexual”), que foi central para as políticas de saúde das décadas passadas, está agora sujeito a desafios que vieram a caracterizar o ambiente político atual. Ao que parece, e de maneira inesperada, o Brasil é um caso emblemático de retrocesso1,2.

Em 1996, quando o país promoveu a resposta da saúde pública à pandemia de HIV, o Ministério da Saúde, sob o ‘guarda-chuva’ do projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), liderou a imple-mentação da educação sexual como uma questão transversal fundamental no currículo das escolas dos 27 estados da federação (e cerca de 600 cida-des)3. Por quase duas décadas, o SPE disseminou informação preventiva, promoveu o uso de pre-servativos e métodos contraceptivos e combateu o estigma e a discriminação sexual4. A perspectiva do SPE incluía a redução de danos, assim como a promoção de uma “cultura de paz” (a não discri-minação e a não violência) ao não permitir pro-gramas voltados apenas à abstinência em escolas públicas e ao inspirar escolas privadas a lançar iniciativas concentradas no uso do preservativo e, quando aceitável, disponibilizando preservativos nas universidades.

No entanto, o cenário religioso mudou, devi-do a um eleitorado cada vez mais conservador e essencialmente evangélico. Segundo o censo de 1980, 90% dos brasileiros eram católicos e, ao longo do processo de democratização da década que levou à constituição de 1988, o movimento

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católico da teologia da libertação desempenhou um papel definitivo na aliança por políticas públi-cas voltadas para os direitos humanos, que foram apoiadas tanto pelos movimentos de base como pelos bispos. Em 1989, no entanto, o Vaticano co-meçou a substituir os bispos e as “pastorais” por grupos vaticanistas e “canônicos” - um movimento instrumental do Vaticano para desmantelar a te-ologia da libertação e influenciar as políticas da sexualidade como resposta ao HIV/AIDS5. Os anos 1990 vivenciaram um aumento dos movimentos evangélicos, disseminados principalmente por re-des de TV e rádio que se beneficiam de políticas de isenção fiscal. O censo de 2010 mostra que os evangélicos cresceram de 15% em 2000 para 22% em 2010 (os católicos compunham 65%, e os sem religião, 8%)6. Os movimentos evangélicos utilizam métodos de conversão que consideram outras fés como “infiéis” ou “demonizadas” e têm sido uma força significativa em busca do poder político, tal como em outras partes do mundo.

Em junho de 2015, uma ação nacional de polí-ticos conservadores cristãos-católicos (a “coalizão da bíblia”) conseguiu eliminar qualquer menção a “gênero”, “diversidade” e “sexualidade” de di-versos planos educacionais municipais. No nível nacional, a mesma coalizão está propondo redefi-nir a homosexualidade como uma doença, crimi-nalizar a transmissão do HIV e os profissionais de saúde que atendam mulheres sofrendo de com-plicações por abortos inseguros. Neste retrocesso orquestrado - a versão brasileira do que Richard Sennet chama de “políticas da tribo (mais do que da cidade)”7 - mesmo grandes áreas metropolita-nas e capitais foram atingidas fortemente por um movimento político que vai afetar o futuro de vá-rias gerações.

Infelizmente, as consequências de duas déca-das de mobilização política dos cristãos conserva-dores podem ser ainda piores: a educação preven-tiva e o uso de preservativos estão diminuindo e a incidência de HIV entre jovens (de 15 a 24 anos) nascidos nos anos 1990 é 3,2 vezes mais alta do que a mesma coorte de nascidos nos anos 1970; para jovens homens que fazem sexo com homens (HSH) essa taxa é 6,4 vezes maior8. Como em mui-tos países(9), a incidência de HIV no Brasil está crescendo principalmente entre jovens meninas e jovens HSH e estima-se que, desde 2008, 12.000 gestantes se tornaram HIV positivas10, enquanto a transmissão vertical se estabilizou nos 3,5%. Além disso, uma análise recente da implementação do programa SPE revela que, em geral, a maioria das

escolas públicas do país convida “especialistas” (na maioria das vezes profissionais de saúde sem experiência em educação sexual) para apresentar os riscos e perigos do sexo, e não oferece nada so-bre prevenção.

De maneira mais ampla, um foco crescente nos valores cristãos, embora não sejam definidos cla-ramente como tais, pode ser observado em várias instituições que se intitulam laicas – como escolas e serviços de saúde reprodutiva.

As abordagens de direitos humanos em saúde postulam que o aumento das violações ou a ne-gligência com relação aos direitos humanos resul-tará em maior sofrimento psicossocial e maiores taxas de morbimortalidade12. No cenário global, evidências já demonstram o impacto negativo da epidemia de leis ‘más’ que criminalizam se-xualidades, práticas e populações13. Como afirma Sennet, o tribalismo pode ser destrutivo: o desa-fio é de “responder aos outros em seus próprios termos” e ao mesmo tempo construir a coopera-ção entre pessoas que valorizam a diversidade e se diferenciam religiosamente, economicamente, racialmente, etnicamente e pelo modo como con-ceituam gênero e sexo7.

Este artigo foca no modelo multicultural de di-reitos humanos e em abordagens produtivas para ampliar o diálogo sobre o consenso sustentável na educação em sexualidade.

Para expandir e manter o acesso à educação abrangente em sexualidade, precisamos de algu-mas respostas: como dialogar com diferentes con-ceitos de feminilidade, masculinidade e conjuga-lidade em um ambiente escolar - com estudantes, pais, professores e diferentes autoridades educa-cionais? Como promover o direito à prevenção e aos direitos sexuais e reprodutivos de alunos com diferentes filiações religiosas e étnicas? O proces-so contínuo de desenvolvimento da aceitação da prevenção ao HIV e um projeto de promoção da saúde reprodutiva serão apresentados neste arti-go. O consentimento sustentável é um processo fundamental de programas educacionais robustos e de longa duração: o consentimento resultante do envolvimento e da participação comunitária que incentiva a aceitabilidade são dois princípios fundamentais da abordagem baseada em direitos humanos que fomentam este modelo14,15.

O modeloEste modelo foi desenvolvido a partir da perspec-tiva social construtivista sobre a sexualidade, inspi-rada nas teorias de gênero e em experimentações

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da educação popular construtivista na prevenção ao HIV e na educação em sexualidade durante os anos 199016,17. Com o objetivo de reduzir a preva-lência e o estigma relacionado ao HIV, ao melho-rar as percepções da diversidade de gênero, se-xual, étnica e racial e promover um ambiente de aprendizado escolar favorável, o começo dos anos 2000 presenciou o aumento de projetos que in-centivavam o respeito à diversidade nas escolas18. Todos fortemente inspirados pela pedagogia críti-ca e pela tradição latino-americana representada pelo trabalho de Paulo Freire19.

Para responder a algumas de nossas questões críticas, a abordagem dos direitos humanos na saúde20 foi refinada por meio de projetos pilotos de educação em sexualidade14. Ao contrário das metodologias baseadas em resultados (como o uso de preservativos e de métodos contraceptivos), as abordagens construtivistas e de direitos humanos focam nos processos12,14,15.

A abordagem multicultural de direitos humanos (MDH)

O conceito de direitos humanos multiculturais proposto por Santos21 é a base da abordagem MDH à educação em sexualidade: ela lida com o dilema de reconhecer as diferenças e afirmar a igualdade da promoção de direitos, sem perder de vista as dimensões universais e particulares dos direitos humanos.

Para reinventar os direitos humanos em uma linguagem emancipatória, Santos destaca que dife-rentes conceitos de dignidade humana coexistem em diferentes tradições culturais: como a dharma, na tradição hindu ou umma na tradição islâmica. Cada tradição cultural considera os seus próprios valores válidos (e superiores), independente do contexto; dito de outro modo, sob a perspectiva de cada cultura, todas as outras culturas sempre serão incompletas. Além disso, todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos sociais em duas hierarquias principais: a da igualdade entre unidades homogêneas (cidadãos e estrangeiros) e a da diferença que produz uma hierarquia entre diferentes identidades sociais (entre sexos, entre etnicidades, entre religiões).

Assim, reconhecer a incompletude de nossas culturas e tradições é o fundamento necessário da humildade cultural. Vivemos em um processo de globalizações articuladas, interagindo com dife-rentes tradições culturais, todas buscando valida-de universal: “falando a partir de uma perspectiva

autointitulada universal”.22 Para realizar ambições de igualdade, assim como de paz e justiça, sempre dependeremos do diálogo entre diferentes concei-tos de dignidade humana - um diálogo intercul-tural.

As “hermenêuticas diatópicas” de Santos nos dão três princípios para a ação. Primeiro, o diálo-go deve qualificar e tornar mutuamente inteligí-vel (“traduzindo” diferentes posições) os diferentes conceitos de dignidade humana presentes no dis-curso e nas tradições. Segundo, as interpretações devem reconhecer a incompletude de todas as tra-dições culturais (e, portanto, de todos os discursos sobre sexualidade). No processo de diálogo tensões inevitáveis irão surgir visto que a história constrói hegemonias, poderes e desigualdades. Finalmente a abertura para o acordo deve acontecer quando dois imperativos interculturais puderem ser reco-nhecidos:a. Entre as diferentes versões, aquela que for

mais profunda no reconhecimento do outro, que representa o círculo de reciprocidade mais amplo, deve ser escolhida;

b. Defender a igualdade todas as vezes em que a diferença gerar inferioridade e defender a diferença quando a igualdade resultar em des-caracterização.

Ao contrário da reação inicial de profissionais de educação e autoridades escolares que temiam encontrar oposição, essas duas vias, apresentadas e discutidas no continuum do processo de consen-timento, contribuem para um diálogo sólido.

Um outro aspecto da abordagem MDH à edu-cação em sexualidade é o reconhecimento de que somos todos parceiros nos direitos: ao conside-rar uma pessoa como detentora de direitos e um agente ativo de direitos humanos, é necessário que se reconheça simetricamente esses direitos também no outro. De outra maneira, estaríamos descrevendo um privilégio ao invés de um direito23.

Ao incentivar o diálogo baseado nas hermenêu-ticas diatópicas, promovendo a solidariedade e a reciprocidade entre detentores de direitos, os pro-cessos MDH respeitam os quatro momentos, como descrito no Quadro 1.

Em síntese, a abordagem multicultural dos direitos humanos (MDH) para a educação em sexualidade é uma intervenção psicossocial que promove o entendimento das dimensões culturais e sociais da sexualidade, expande o acesso a ferra-mentas de prevenção (incluindo aquelas baseadas em testes, hormônios e antirretrovirais) necessárias

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Quadro 1. Quatro momentos da abordagem multicultural de direitos humanos na educação em sexualidade

1) Definindo a interação como colaboração entre especialistas ao longo de um processo de consentimento sólido. Os profissionais de educação em sexualidade possuem um conhecimento científico-tecnológico que, por definição, é uma especialização temporária. Esta especialização científico-tecnológica deve ser constantemente atualizada e deve interagir com o conhecimento cotidiano e a sabedoria das pessoas a respeito de suas próprias vidas. Então os momentos a seguir são tarefas colaborativas realizadas com os participantes das atividades.

2) Analisando a dinâmica dos direitos da sexualidade para cada grupo e comunidade.2.1 Quais os significados de sexualidade, gênero e práticas sexuais que circulam entre as pessoas e

por meio da mídia eletrônica?2.2 Como os políticos definem as políticas públicas no território?2.3 Quais as leis que afetam a sexualidade?2.4 Como é concebida a educação em sexualidade por gestores e profissionais de saúde e educação?

Quanto maior o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, menor a violência, o abuso, as ges-tações indesejadas e o HIV.

3) Analisando a qualidade dos serviços relacionados à sexualidade em diferentes dimensões.3.1 Há serviços para adolescentes e jovens no município?3.2 Qual o acesso a serviços que devem se tornar acolhedores para jovens, com garantia de acessibi-

lidade e não discriminação?3.3 Qual é a aceitabilidade dos serviços - uma indicação da sua qualidade, ou melhor, uma garantia

de que os valores e tradições culturais das pessoas e das comunidades são respeitadas, assim como a ética profissional da assistência.

3.4 A participação das pessoas e grupos está garantida de tal maneira que elas possam desafiar os responsáveis a promoverem e protegerem seus direitos?

3.5 A disseminação e a educação em direitos humanos está garantida?3.6 O planejamento intersetorial e a integração multissetorial estão abordando as diversas faces da

desigualdade? Profissionais que compartilham as informações integrais e têm consciência dos significados ético-políticos e científico-tecnológicos das práticas recomendadas, que podem ava-liar e reconceber técnicas e práticas, são mais propensos a respeitar os usuários como detentores de direitos humanos.

4) Identificando as desigualdades da vida diária, pelo menos:4.1 Diferenças de poder e hierarquias na escola;4.2 Disputas sobre valores e tradições culturais;4.3 Contexto político e econômico;4.4 Desigualdades raciais, étnicas e de gênero;4.5 Diferenças entre gerações;4.6 Diferenças no acesso a serviços de saúde.

para a prática do autocuidado e do cuidado com os outros, e melhoram a educação sexual por meio do diálogo que reconhece as diferenças sem reforçar desigualdades e violações de direitos, produzin-do assim igualdade e solidariedade. Como uma alternativa às metodologias mais prevalentes baseadas na promoção do uso de preservativos e de métodos contraceptivos ou apenas na absti-

nência, as metodologias MDH são dialógicas em dois domínios: no processo comunicativo que garante o consentimento e nos acordos comuni-tários (por meio da perspectiva MDH sintetizada acima) e nas metodologias educativas psicosso-ciais construtivistas desenvolvidas pelas peda-gogias críticas e emancipatórias desde os anos 199012,14,15,17,18,24.

O ponto de entrada mais interessante para análise da desigualdade é coletar e discutir cenas da vida diária que expressam violações de direitos humanos.

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Os participantes são tratados como cidadãos--sujeitos (detentores de direitos) que participam do diálogo com o conhecimento e a expertise científicos para co-construir o seu próprio bem--estar. Tais diálogos incorporam diversos valores, trajetórias e examinam contextos sociais e pro-gramáticos que possam mitigar a vulnerabilidade dos participantes às consequências indesejadas do comportamento sexual - em um ambiente de mú-tuo respeito, na escola ou nos serviços de saúde.

MetodologiaO foco deste artigo é no processo de obtenção e manutenção do consentimento para um projeto voltado para a gravidez indesejada e prevenção de HIV25 nas escolas públicas, incluindo o consen-timento das autoridades da educação, a comuni-dade adulta escolar (gestores, pais e professores) e estudantes.

O estudo da aceitabilidade do programa, da participação crescente, da sustentabilidade do processo contínuo de consentimento - analisado a partir do modelo MDH, e desenvolvido em pro-jetos anteriores14,26 - foi conduzido e liderado pela pesquisadora principal e primeira autora deste artigo. Os membros da equipe de pesquisa condu-ziram observações rigorosas e registraram o pro-cesso em anotações de campo, filmes e gravações, quando consentido e após a assinatura do termo de consentimento informado.

As reuniões e entrevistas dialógicas com autori-dades da educação iniciaram o projeto. Após ob-termos a aprovação do projeto nos níveis federal e regionais, buscamos a aprovação de diretores de escolas e coordenadores pedagógicos. Por meio de uma apresentação do modelo MDH, a equipe de pesquisa envolveu servidores de todos os níveis e membros de toda a comunidade escolar nos de-bates sobre os princípios fundamentais da auto-nomia e participação comunitária. Essas conversas seguiram a metodologia do projeto, introduzindo a noção de solidariedade de forma subjacente à noção de respeito às diferenças. Um tópico essen-cial introduzido pela equipe de pesquisa foi o se-cularismo constitucional, que requer o respeito a diferentes religiões e valores.

Em 2013 dois encontros do Ministério da Saúde e da Educação produziram um entendimento co-mum sobre como navegar no contexto político atu-al protegendo os projetos SPE. Um primeiro acordo foi proteger a identidade das cidades e escolas pú-blicas participantes, a não ser que a comunidade

escolar decidisse pelo contrário. E o segundo foi re-alizar encontros com servidores da educação e, logo depois, com a comunidade escolar para envolvê-los no processo de construção do consentimento.

Obstáculos e limitesO receio de uma reação negativa por parte dos pais e de representantes da fé evangélica, conhe-cidos como “evangélicos”, foi percebido como um obstáculo em duas cidades. Nessas cidades, os ser-vidores recusaram o projeto sem sequer retornar a carta de consentimento (não assinada) à equipe de pesquisa ou mesmo comunicar uma negativa clara. As conversas informais deixaram implícito que o problema estava ligado às eleições locais e à crescente movimentação política fundamentalista.

Sete escolas públicas concordaram em par-ticipar do projeto, expressando, mas não repre-sentando, a diversidade do país. Essas escolas estavam localizadas em contextos de pobreza, tal como descrito abaixo:

(A) uma cidade litorânea conhecida pelo ecotu-rismo e por um local de peregrinação católica; (B) uma cidade do interior caracterizada pelo agrone-gócio e por ser um polo de transportes na região, com fortes comunidades evangélicas; (C) vilarejos rurais isolados na serra, que se originaram como refúgios de escravos afro-brasileiros, resistentes a políticas públicas e lar de uma crescente comuni-dade evangélica austera; (D, E, F, G) territórios de baixa renda em áreas urbanas.

Em cada contexto, foram realizados de três a cinco encontros com gestores das escolas e pelo menos um encontro com profissionais de saúde e educação. De duas a quatro “rodas de conversas” foram organizadas com pais e professores para se construir consentimento para o projeto e, ao longo do caminho, muitas outras foram realizadas com diretores, professores, pais e estudantes.

O primeiro obstáculo enfrentado pela equipe de pesquisa foi a gestão do tempo, que pode limi-tar a metodologia da MDH. As conversas sobre as experiências cotidianas e hermenêuticas diatópi-cas requerem a disponibilidade de tempo para se contar e escutar histórias. A metodologia é centra-da na participação dos “cidadãos-sujeitos” afeta-dos - ou detentores de direitos no comando de sua sexualidade e do seu autocuidado - que garante todas as outras dimensões da metodologia MDH, especialmente a aceitabilidade das ações propos-tas, que são o foco deste artigo: uma tarefa nada simples em um contexto de retrocessos!

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O segundo obstáculo foi a falta de recursos fi-nanceiros para responder a escolas que queriam expandir o projeto, sob nossa supervisão, após o término do estudo de 18 meses. Conseguimos ex-pandi-lo em duas cidades e escolhemos as cidades B e C, onde os professores incluíram a educação em sexualidade no planejamento do currículo es-colar (2015-2016).

Sustentando o consentimento na comunidade escolarA necessidade de encontros adicionais no início do processo produziu uma resistência mais forte ao consenso. Em alguns casos, no entanto, o interesse crescente no projeto e o envolvimento da comuni-dade levou a um número maior de reuniões.

Em todas as escolas, a primeira abordagem mais produtiva foi contar a história da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Questões como “de onde vêm os direitos humanos, o que eles significam para você?” levaram alguns pais e professores a falar sobre experiências de genocí-dio ou de violência extrema na história de sua pró-pria comunidade. Outros relembraram as primeiras bombas atômicas no Japão, como um “exemplo da capacidade destrutiva de conflitos humanos não mediados” (conclusão de uma reunião de pais--professores-alunos). Em geral, os pais participan-tes possuíam baixa escolaridade. Mas mesmo em vilarejos distantes, isolados, montanhosos, na flo-resta tropical, os pais foram capazes de articular o que eles consideram um direito humano. Este é um sinal de uma mudança cultural positiva no Brasil, que se seguiu à adoção da Constituição de 1988, ba-seada nos direitos humanos, e ao final da ditadura.

Foi muito potente abrir o diálogo com a cons-trução coletiva de uma lista de direitos humanos ou com a leitura da abertura da Declaração: as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que estabelecem liberdade, justiça e paz no mundo.

A coordenação do projeto direcionou o debate para os fatores psicossociais e estruturais que pro-duzem hierarquias de poder (ou a sua ausência), incentivando a conscientização coletiva para se trabalhar com essas questões. O desafio foi tratar da igualdade e do direito à educação abrangente em sexualidade sem quebrar a solidariedade do grupo, assegurando a aceitação de diferentes opi-niões. Os participantes foram convidados a parti-cipar do diálogo como “detentores de direitos” (su-jeito de direitos, agentes), em um ambiente secular.

O “agente” se caracteriza como um indivíduo que está fazendo ou sendo alguma coisa: como agen-tes de direitos, os participantes devem ser guiados pelo princípio da reciprocidade.

De longe, a questão mais útil para superar a resistência dos servidores municipais, diretores de escolas e pais foi: “deve-se negar a todos os estu-dantes o direito à informação sobre prevenção e autocuidado e o direito de informação sobre con-sensos científicos atuais em um processo voluntá-rio de educação em sexualidade apenas porque algumas crianças não têm autorização dos pais para participar do mesmo?” Este foi um excelen-te ponto de entrada para se debater “o direito à saúde” como obrigação do Estado para garantir o acesso à assistência à saúde e à educação, que, no Brasil, é um direito constitucional universal (“gra-tuito e para todos”).

Diversas vezes pudemos observar como a sexu-alidade e a ideia de direitos sexuais é uma das are-nas mais emblemáticas para se disputar noções de igualdade, liberdade e dignidade27. Em geral, os pais defenderam o direito de suas crianças à educação em sexualidade e prevenção nas esco-las - “nós não sabemos fazer!”; “a escola precisa de apoio nessas áreas” – sem expressar oposição ao programa. Aos adultos que ponderaram que a educação em sexualidade poderia levar à ativi-dade sexual foram apresentadas questões como: “é pior do que assistir TV e ficar na internet?” ou “você consegue controlar como eles se comuni-cam nas redes sociais e o que conversam com seus amigos?”.

Alguns adultos expressaram preocupações so-bre como lidar com identidades de gênero não tradicionais ou com orientação sexual não hete-rossexual e a questão mais produtiva do debate foi: “como podemos garantir que jovens que ini-ciarão suas vidas sexuais mais tardiamente (ou que não se interessam por sexo) não serão alvos de bullying, estigmatizados ou discriminados por serem “assexuais”, uma discriminação similar e compartilhada com alunos LGBT, como se observa em todas as escolas? Como tornar a assexualidade assim como a homossexualidade e diversas iden-tidades de gênero e performances de gênero uma parte do diálogo sobre igualdade e prevenção?”.

“É bom saber quem nossos alunos e crianças são e o que eles fazem”O debate sobre a média nacional de idade da inicia-ção sexual, o uso de preservativos, a prevalência de

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HIV e as taxas de fecundidade entre adolescentes, a partir de uma perspectiva de direitos humanos, foi um momento decisivo para o consentimento e para uma participação mais intensa da comuni-dade escolar.

Em todas as reuniões - com servidores muni-cipais, professores, pais e alunos - a equipe de pesquisa destacou que embora os valores e a fé religiosa afetem as opiniões e atitudes sobre a sexualidade, a diversidade de comportamento sexual entre o jovem brasileiro é um fato, como se demonstra em todos os dados de pesquisas na-cionais. As diferentes filiações religiosas de adoles-centes não produzem práticas sexuais diferentes, mesmo quando se investiga a vida cotidiana de jovens que participam de igrejas14.

Em todas as escolas ficou evidente a necessi-dade da educação em sexualidade. Por exemplo, quando indagados sobre o momento de início da educação em sexualidade nas escolas, os alunos não levantaram suas mãos para as idades de 18, 17… 16 anos: a maioria colocou a idade ideal en-tre 12 e 14 anos. A presença de adultos e servido-res de educação e saúde nessa reunião, conhecen-do as opiniões dos alunos, foi instrumental para a obtenção de apoio para o projeto.

Estas reuniões ajudaram a esclarecer que o pâ-nico sobre a AIDS nos anos 1980-90 foi substituído por uma concepção errada de que “a AIDS não é mais um problema, (porque) está controlada”. As reuniões também deixaram claro que a contracep-ção de emergência já foi adotada pelas meninas.

O consenso se tornou mais forte depois dos resultados iniciais do levantamento sobre conhe-cimento, crenças e práticas sobre sexualidade e prevenção que revelou lacunas locais quando comparados aos dados nacionais. O levantamento cumpriu a norma de obter o consentimento infor-mado dos pais e utilizou tablets para coletar dados individuais anônimos. A adesão ao levantamento e às atividades de estudo foi alta e refletiu o perfil das escolas: 42% católicos, 37% evangélicos, 14% declarados não religiosos e 7% filiados a outras re-ligiões. A idade mediana foi de 16,7 anos de idade, 59% meninas e 41% meninos; 34% dos alunos se autodeclararam brancos, e 66% como não brancos (afro-brasileiros, indígenas e mestiços).

De maneira similar aos dados nacionais para jovens de 14 a 19 anos, os resultados nas escolas indicaram: 97% de apoio para a educação em sexualidade e acesso a preservativos; a idade mediana para a iniciação sexual foi de 14,6 anos (15 para meninas, 14,3 para meninos); 69% dos

alunos relataram ter usado o preservativo em sua primeira relação sexual; e de 10% a 17% dos alu-nos relataram ter tido sexo com uma pessoa do mesmo sexo pelo menos uma vez. A maioria dos entrevistados achava que a educação sexual deve-ria começar em torno dos 12 anos; de 20% a 40% não sabe como usar um preservativo ou onde se testar para HIV; e 40% dos alunos declararam “o amor e a confiança nos parceiros” como um mé-todo de autoproteção. As filiações religiosas não fizeram uma diferença significativa em nenhum desses fatores.

A comunidade escolar adulta considerou que os resultados “requeriam atenção”, expressaram sua “fé na ciência”, entendendo que há “necessi-dade de se fazer algo”. A aceitabilidade foi o pri-meiro resultado do processo nas escolas, no qual a alta participação demonstrou a viabilidade do envolvimento da comunidade.

Em uma cidade, e em oposição ao consenti-mento dos pais, à adesão dos professores aos trei-namentos e ao entusiasmo dos alunos, o diretor da escola tentou limitar a participação de pais e professores colocando obstáculos à implementa-ção do projeto, que acabou perdendo o momento ideal (timing) de implementação.

Riscos à saúde e risco sexual ou direitos sexuais e sujeitos?Por meio da capacitação de professores e do en-volvimento dos alunos como “sujeitos-projeto”, o discurso de saúde pública sobre os riscos e perigos do comportamento sexual e as definições norma-tivas de saúde sexual como (bom) comportamento a ser seguido serviram de base para bons debates com os jovens. Esta é a última fase do consenti-mento no nosso modelo e é um bom indicador da participação e do envolvimento da comunidade.

Como antecipado pelo modelo MDH, cada es-cola adotou atividades diferentes, que pediram colaboração e co-produção com a comunidade escolar. As atividades do SPE e de outros projetos similares foram frequentemente reinventadas, respeitando o contexto local. Uma maior partici-pação da comunidade garantia mais tempo para as atividades e mais atividades poderiam ser inse-ridas no currículo, no consentimento contínuo e no envolvimento da comunidade.

As atividades curriculares principais foram: 1. debates em pequenos grupos utilizando as pró-prias palavras, conhecimento e imaginação dos jovens para descrever seus corpos e sexualidades e discutir com professores e pares sobre como casais

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heterossexuais e homossexuais podem se preve-nir contra o HIV e outras ISTs. 2. Projetos de arte usando barro ou gesso para representar “partes reprodutivas e sexuais do corpo” e conversas so-bre a cultura sexual local e o processamento da atividade ao decodificar os significados e coloca-ções dos alunos. 3. Envolver os participantes na criação de coisas, palavras e cenas ou cenários, concretizadas sob a forma de pequenas estórias sobre amor, encontros e sexo como atividades so-cialmente obrigatórias ou sobre cenários reais ou imaginários que podem levar à infecção do HIV, gravidez indesejada ou violência por parceiro ínti-mo, seguidos por decodificação e processamento. 4. Em sessões com grupos maiores usamos filmes para discutir cenas específicas. 5. Competições de estudantes do tipo “quem enche de ar mais rápido uma camisinha: meninos ou meninas?” para que se demonstre a elasticidade da camisinha e quan-to tempo ela demora para romper.

Os alunos também entrevistaram membros mais velhos de suas famílias sobre suas experiên-cias com educação em sexualidade quando eram

adolescentes, o que possibilitou a construção de uma perspectiva histórica. Em festivais escolares, os estudantes produziram imagens para decorar uma máquina automática de camisinhas, alguns usando imagens religiosas.

As diferenças entre meninos e meninas quanto ao conhecimento sobre prevenção e atitudes dis-criminatórias contra roteiros de vida sexual não normativos, como a gravidez na adolescência, fo-ram a maneira de se debater o poder e as relações de gênero na maioria das escolas. Em duas esco-las, a violência e o abuso sexual foram as questões de gênero que surgiram, enquanto em uma esco-la o processo de sair do armário de uma menina transgênero foi o ponto de entrada nesse debate.

Em territórios metropolitanos, cenas e roteiros sexuais desconhecidos28 nos chamaram particular-mente a atenção. Aprendemos sobre as almônde-gas e a lava-jato. A almôndega se refere a quando várias pessoas efetuam relações sexuais em uma grande multidão enquanto dançam, como carnes puras sendo consumidas sexual e anonimamente. As garotas sem calcinha também são colocadas

“O seu futuro depende das suas escolhas”: uma imagem criada para uma máquina de camisinhas utilizando as

imagens religiosas reproduzidas pelas crianças.

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contra as paredes nos bailes funk (pancadão), que também são populares nas favelas, esperando para que diferentes garotos as lavem por dentro com seus “jatos potentes”, como em lava-jatos. Jovens meninos e meninas que aderem a esses es-tilos de trajetórias frequentam as escolas e pude-mos ouvir suas histórias de uso de contracepção de emergência ou de enfrentar discriminação por engravidar. Uma menina tinha escapado de pais bastante rígidos e evangélicos convertidos recen-temente e estava confrontando sua socialização.

Considerações finaisA história da sexualidade é definitivamente a “his-tória de um sujeito em constante fluxo”29. O fluxo também é um bom termo para descrever o envol-vimento da comunidade na educação em sexua-lidade por meio do consentimento contínuo que constrói a aceitabilidade, aspectos fundamentais da sustentabilidade do projeto.

Na abordagem MDH, a sexualidade e a educa-ção em sexualidade são concebidas como ativi-dades sociais fluidas e dependentes do contexto. No seu processo contínuo de consentimento, essa abordagem admitiu a tradução de valores distin-tos e contornou a resistência à educação em se-xualidade nas escolas e cidades participantes; as famílias e adolescentes que não participaram do processo não se opuseram ao projeto em sua es-cola. Os dados coletados com a participação ativa de professores e estudantes contornou a negação da sexualidade (inaceitável) ativa de adolescentes, um argumento utilizado para suspender a educa-ção em sexualidade e bastante presente em outras partes do mundo13, exceto em países do ocidente europeu30. Os modelos normativos e moralizantes de prevenção de risco dos anos recentes foram desafiados: os modelos sexuais não podem ser os mesmos para todas as pessoas nem para todas as cenas e contextos e perspectivas morais e religio-sas; a cidadania sexual não deve ser reduzida aos “direitos dos consumidores” (o direito a uma sexu-alidade pré-definida, o bom comportamento pré--definido). A educação (assim como a saúde) não deve ser consumida, mas coproduzida19.

A linguagem de direitos humanos mediou o de-bate sobre diferentes definições de autonomia e dignidade e de organização social da sexualidade. A linguagem de direitos mostrou que as definições de “desejável” e “inaceitável” são uma construção discursiva e particular para cada comunidade e momento histórico. O cumprimento de direitos

foi relacionado à frequência e a responsabilidades programáticas dos governos locais, como a ausên-cia de locais de testagem acessíveis e amigáveis para adolescentes.

Especialistas da ONU, assim como o conjunto de evidências, apoiam projetos educacionais so-bre sexualidade baseados em direitos, como o MDH31. Ser reconhecido e reconhecer os outros como detentores de direitos aumentou a partici-pação e garantiu a diversidade de outros projetos, como um projeto norte-americano que respondeu a programas baseados apenas na abstinência32. Mas a história de cada país deve ser levada em consideração, porque faz a diferença no modo como conceituamos e vivenciamos as abordagens de direitos humanos.

A maior limitação para a adoção dessa abor-dagem foi o modo como as pessoas concebem os direitos humanos: os direitos humanos mul-ticulturais (MDH) são produtivos onde a história política dá destaque às noções de dignidade as-sociada com justiça social e define a cidadania em termos de direitos. Mesmo assim, onde as abordagens de direitos humanos não valorizam o princípio de reciprocidade e onde apenas um grupo fala a partir de um lugar que autointitula como universal, declarando a validade exclusiva de seus valores - como fazem as pessoas que ade-rem (ou temem) aos movimentos cristãos funda-mentalistas no contexto brasileiro atual -, os di-reitos daqueles que defendem valores diferentes serão afetados.

Uma vez que não há uma educação em sexuali-dade universal, abordagens diferentes podem ser mais ou menos danosas a alunos e grupos sociais específicos33. Uma aspiração central da educação em sexualidade baseada no MDH é prevenir e re-duzir os danos e sustentar um forte programa par-ticipativo que garanta os direitos de adolescentes a uma educação abrangente em sexualidade.

Neste mundo conectado em rede, a diversi-dade crescente e as sexualidades, identidades e performances de gênero alternativas, que reque-rem reconhecimento dentro da educação em se-xualidade, não irão acabar por força da lei ou da pregação religiosa. Os retrocessos também abrem oportunidades para se desenvolver inovação e resistência produtiva. Temos a esperança de que a abordagem multicultural de direitos humanos possa inspirar outras iniciativas de mesmo cunho: a diferença e a diversidade não devem ser traduzi-das em desigualdade.

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30. The Alan Guttmacher Institute (AGI). Can more progress be made? Teenage sexual and reproductive behavior in developed countries. Executive Summary. New York: AGI, 2001.

AgradecimentosGostaríamos de agradecer a Louisa Allen e aos avalia-dores por seus comentários e apoio gentil e à mentoria de Magaly Marques durante o processo de revisão.

Também gostaríamos de agradecer a nossos colaboradores e à equipe de pesquisa nos locais de estudo: Ximena Pamela Diáz Bermúdez, Edgar Hamman, Maria Cristina Antunes, Ricardo Casco, Grazielle Tagliamento, Mauro Niskier Sanchez, Bárbara Ribeiro de Souza Dias, Laura Malaguti

Modernell, João Paulo Fernandes, Isabelle Picelle e Clelia Prestes.

A pesquisadora principal do projeto de pesquisa “Avaliação da estratégia de prevenção da gravidez não planejada e das DST/AIDS por meio da inclusão de dispensadores de preservativos em escolas de en-sino médio” foi Vera Paiva e o projeto foi financiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). As ver-bas foram recebidas pelo Ministério da Saúde/DN AIDS, UNESCO e UNFPA.

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31. Boonstra HD. Advancing sexuality education in developing countries: evidence and implications. Guttmacher Policy Review, 2011;14(3)(https://www. guttmacher.org/pubs/gpr/14/3/gpr140317.html).

32. Marques M, Ressa N. The Sexuality Education Initiative: a programme involving teenagers, schools, parents and sexual

health services in Los Angeles. Reproductive Health Matters, 2013;21(41):124–135.

33. Jones T. A Sexuality Education Discourses Framework: Conser-vative, Liberal, Critical, and Postmodern. American Journal of Sexuality Education, 2011;6(2):116.

RésuméL’éducation sexuelle, ses protocoles et sa planification sont tributaires d’un environnement politique en continuelle évolution qui caractérise le domaine de la sexualité dans la plupart des pays. Au Brésil, les perspectives des droits de l’homme ont façonnélaréponsedupays àl’épidémie de sida et ont influencé indirectement l’acceptabilité publique de l’éducation sexuelle à l’école. Néanmoins, depuis 2011, avec l’apparition dans la région de multiples mouvements fondamentalistes qui ont abouti à des vagues récurrentesderéactionshostilesdanstoutesles questions relatives à la sexualité, les politiques de santé et d’éducation ont commencé à reculer. Cet article étudie les approches fondées sur les droits de l’homme en matière de santé, en se centrant sur un cadre multiculturel basé sur les droits et des approches productives de l’élargissement du dialogue sur le consentement durable à l’éducation sexuelle. Les approches multiculturelles des droits de l’homme utilisent le dialogue dans deux domaines: le processus de communication qui garantit le consentement et les accords communautaires, et les méthodologies psychosociales-éducatives constructionnistes. Dans son processus de consentement durable, l’approche multiculturelle des droits de l’homme permettait une traduction de valeurs distinctes et atténuait la résistance à l’éducation sexuelle dans les écoles/cités participantes. Elle est ainsi parvenue à faire aboutir des notions d’égalité et de protection du droit à une éducation sexuelle globale qui ne rompt pas la solidarité de groupe et garantit l’acceptabilité des différences.

ResumenLa educación sexual, sus protocolos y planificación dependen de un siempre cambiante ambiente político que caracteriza el campo de la sexualidad en la mayoría de los países. En Brasil, las perspectivas de derechos humanos influyeron en larespuestadel país alaepidemia del SIDA, einfluyeron indirectamente en la aceptación del público de la educación sexual en las escuelas. Sin embargo, a partir del año 2011, a medida que surgieron múltiples movimientos fundamentalistas en la región, que produjeron recurrentes oleadas de respuestas negativas en todo lo relacionado con la sexualidad, tanto las políticas de salud como las educativas han empezado a dar marcha atrás. Este artículo explora los enfoques en la salud basados en los derechos humanos, y se centra en un marco multicultural basado en los derechos y en estrategias productivas para ampliar el diálogo sobre el consentimiento continuado a favor de la educación sexual. Los enfoques multiculturales de derechos humanos (MHR) son dialógicos en dos campos: el proceso de comunicación que garantiza consentimiento y acuerdos comunitarios, y las metodologías construccionistas psicosociales-educativas. En su continuo proceso de consentimiento, el enfoque de MHR permitió una traducción específica de los valores, difundió la resistencia a la educación sexual en las escuelas/ciudades de los participantes y logró sostener las nociones de igualdad y protección del derecho a una educación sexual integral que no rompe los lazos de solidaridad grupal y garantiza la aceptación de diferencias.

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IntroduçãoEste estudo buscou analisar como a violência de gênero (VG) aumenta a susceptibilidade de jovens mulheres e homens a gestações indesejáveis e ao HIV e a outras infecções sexualmente transmissí-veis (ISTs). Já é bastante difundido que a VG afeta a saúde sexual e reprodutiva das mulheres1-3, poden-do ter um efeito ainda mais forte em mulheres mais jovens, especialmente nas que já estão casadas, que podem ter menos autonomia e controle sobre sua sexualidade4. Embora a VG geralmente beneficie os homens ao perpetuar o domínio masculino sobre as mulheres na vida privada e na vida social, eles também podem ser negativamente afetados pela violência visto que o seu comportamento violento e controlador pode os expor a riscos, como o menor uso de camisinha para sua própria proteção.

Para explorar essas questões, analisamos dados do levantamento META, realizado em 2011 em três cidades de médio porte no estados de Minas Gerais. Nesta pesquisa coletamos dados de jovens

heterossexuais para investigar a associação entre a prevalência de VG nos relacionamentos amoro-sos e sexuais e a autonomia e controle de jovens mulheres sobre sua sexualidade e suas decisões reprodutivas. A autonomia foi definida como “o grau de acesso e controle das mulheres sobre re-cursos materiais (incluindo alimentos, renda, terra e outras formas de propriedade) e a recursos so-ciais (incluindo conhecimento, poder e prestígio) na família, na comunidade e na sociedade em geral3”. Na esfera da saúde reprodutiva e sexual, a autonomia significa que uma mulher ou meni-na pode determinar de maneira segura quando e com quem ela tem relações sexuais, podendo regular sua fecundidade e o parto seguro5. Diver-sos indicadores da autonomia das mulheres em diferentes esferas foram explorados nas Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde (PNDS) realiza-das na Ásia e na África6 e em alguns países latino--americanos1,2, mas não foram incluídos de forma sistemática nas pesquisas realizadas no Brasil.

Contents online: www.rhm-elsevier.com Doi: (do artigo original) 10.1016/j.rhm.2016.06.009

Violência de gênero e saúde sexual e reprodutiva entre jovens de baixa renda de três cidades brasileiras

Alessandra Sampaio Chachama, Andrea Branco Simãob, André Junqueira Caetanoc

a Professora Associada, Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Contato: [email protected]

b Professora Associada, Departamento de Serviços Social, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasilc Professor Associado, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil

Resumo: Neste artigo investigamos como a violência de gênero (VG) afeta a saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens pobres. Analisamos dados de uma pesquisa realizada em 2011, com 450 mulheres e 300 homens entre 15 e 29 anos de idade, vivendo em regiões pobres de três cidades de médio porte em Minas Gerais. Utilizamos um questionário fechado para coletar dados de 150 mulheres e 100 homens de cada cidade. O nosso principal objetivo foi explorar a relação entre a VG e a autonomia de jovens mulheres em relação à sua sexualidade, utilizando indicadores apropriados para o Brasil. Nossos resultados revelaram uma redução na prevalência do uso de camisinha na primeira relação sexual e uma prevalência maior de gravidez na adolescência entre jovens mulheres que estavam em uma relação com um parceiro controlador e violento. O uso menos frequente de camisinha foi observado principalmente entre jovens homens que reconheceram ser violentos e controladores com suas parceiras e eles também foram mais propensos a ter engravidado suas parceiras quando eram adolescentes. Concluímos que algumas variáveis utilizadas como indicadores de violência e controle da autonomia de jovens mulheres podem nos ajudar a entender como a VG funciona dentro dos relacionamentos, como afeta a saúde sexual e reprodutiva de jovens homens e mulheres e, ainda, como o processo de empoderamento pode reduzir a susceptibilidade a gestações indesejadas, infecção por HIV e outras ISTs.

Palavras-chave: violência de gênero, jovens, gravidez na adolescência, saúde sexual, saúde reprodutiva, Brasil

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Em nosso trabalho, utilizamos alguns indicado-res de autonomia para examinar se e como um grau reduzido de autonomia em diferentes di-mensões das vidas de jovens mulheres aumenta a susceptibilidade a gestações indesejáveis, ao HIV e a outras ISTs. Ventura defende que adolescentes e mulheres em idade reprodutiva são mais vulne-ráveis a relacionamentos sexuais forçados, agres-são, estupro, prostituição e ataques sexuais7. No entanto, os homens também podem ser afetados pelo comportamento violento de uma parceira, embora em menor proporção. Nosso foco foram as experiências de jovens homens e mulheres de nível socioeconômico mais baixo, uma vez que a gravidez indesejada e o casamento precoce são mais comuns entre os setores mais pobres da população brasileira8,9. Enfrentamos o desafio de construir indicadores de diferentes dimensões da vida das mulheres que fizessem sentido no con-texto social e cultural de jovens de baixa renda vivendo em áreas urbanas do Brasil, um país que apresenta uma fachada de abertura sexual em meio à persistência de valores tradicionais e ao machismo que caracteriza as culturas latino-ame-ricanas10. Os resultados de duas pesquisas anterio-res realizadas com adolescentes e jovens mulheres residentes em Belo Horizonte nos guiaram neste processo11,12.

MétodosMinas Gerais é o segundo estado mais populoso do Brasil, com quase 20 milhões de habitantes em 201013 e está localizado na região mais desenvol-vida do país. No entanto, espelhando as desigual-dades gerais do Brasil, há um enorme contraste entre as regiões mais ricas do sul e as mais pobres do norte do estado. Para refletir essa diversidade, as cidades selecionadas como locais de pesquisa - Teófilo Otoni, Varginha e Betim - estavam locali-zadas em diferentes regiões.

Teófilo Otoni, localizada no norte e com apro-ximadamente 135.000 habitantes em 2010, é um centro de extração e comércio de pedras precio-sas. Varginha, no sul, com uma população de 123.000 habitantes em 2010, conta com indústrias e com vastas plantações de café. Ambas as cida-des são centros regionais importantes que atraem migrantes de áreas vizinhas, mas Varginha é uma cidade muito mais afluente do que Teófilo Otoni. Betim localiza-se no centro do estado e faz parte da região metropolitana de Belo Horizonte. A ci-dade tinha 377.000 habitantes em 2010 e, como

distrito industrial importante, atrai trabalhadores migrantes de todo o estado. Betim é uma cida-de próspera, mas bastante desigual, cercada por grandes favelas13.

Estas três cidades brasileiras foram incluídas como locais de pesquisa no estudo META. No Brasil, os dados de saúde sexual e reprodutiva de adolescentes, especialmente de gravidez indeseja-da, raramente são coletados em cidades menores fora de grandes áreas metropolitanas, onde vive a maioria da população brasileira. O estudo META é um dos poucos estudos que oferece este tipo de informação; o levantamento incluiu dez seções, com informações sobre características sociode-mográficas, sexualidade, normas e valores. Neste estudo, utilizamos os dados das seções relaciona-das à educação, histórico sexual e reprodutivo, violência doméstica e sexual e normas e valores. O estudo META foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais: CAAE-0100.0.213.000-10.

As questões de pesquisa e as hipóteses limita-ram-se à população alvo, isto é, os pobres urba-nos. Definimos como pobres os setores censitários onde a renda média do chefe do lar ficou abaixo do salário mínimo em julho de 2000 (US$ 84,00). O único conjunto completo de setores censitários disponíveis para os procedimentos amostrais em 2011 foram os do Censo de 2000, então a informa-ção está um pouco desatualizada.

De modo a incluir uma maior variedade de lu-gares, selecionamos aleatoriamente dez setores censitários para jovens mulheres e dez para jo-vens homens em cada município. Listamos todos os residentes de cada domicílio nesses setores e entrevistamos uma mulher ou um homem em um dado domicílio. Devido às limitações de tempo e recursos, o objetivo foi de conseguir entrevistar 15 mulheres e 10 homens para cada setor. Estudan-tes universitários de ambos os sexos conduziram as entrevistas entre junho e agosto de 2011, super-visionados pelos pesquisadores.

Foram entrevistadas 450 mulheres (150 em cada cidade) e 300 homens (100 em cada cidade) entre 15 e 29 anos. Em cada cidade, entrevista-mos o mesmo número de respondentes mulheres e homens em cada grupo etário (15-19, 20-24 e 25-29 anos de idade). Os jovens mais velhos (25-29) foram incluídos para que se estudasse o im-pacto longitudinal no comportamento sexual e reprodutivo.

O questionário baseou-se em pesquisas anterio-res sobre autonomia das mulheres no Brasil.11,12,14

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Para examinar a relação entre a prevalência da gestação de adolescentes, o uso de preservativo e a experiência de VG, selecionamos as questões apresentadas no Quadro 1 como indicadores de controle e de VG sofrida ou cometida por parcei-ros, e de autonomia sexual.

As respostas foram codificadas, inseridas em uma base de dados e analisadas com o programa SPSS 16.0. O teste do chi-quadrado foi usado para avaliar a significância estatística para cada associa-

ção bivariada, com valor de p<0,05. O teste V de Cramer foi utilizado como medida de força das as-sociações. A odds ratio (OR)* foi calculada para cada associação bivariada para indicar as chances dife-renciais de se passar por uma gravidez indesejada e de usar preservativo na primeira relação sexual.

* A odds ratio (OR) é o método preferido de quantificação de associações nas ciências sociais. A OR apenas indica a probabilidade de se ter uma condição quando se tem outra, mas ela não estabelece causalidade15.

Quadro 1. Indicadores de controle, violência de gênero e autonomia sexual

Indicadores de controle e violência de gênero (mulheres)Se um parceiro já a proibiu de vestir algum tipo de roupaSe um parceiro já a proibiu de ter contato com amigo(s)Se um parceiro já definiu um limite de horário para que ela chegasse em casaSe ela alguma vez já teve um limite de horário para chegar em casa imposto por um parceiroSe um parceiro já a proibiu de ir a algum lugarSe ela já foi espancada por um parceiroSe ela já sofreu violência sexual de um parceiro

Indicadores de controle e violência de gênero (homens)Se ele já proibiu uma parceira de vestir certos tipos de roupasSe ele já proibiu uma parceira de ter contato com amigo(s)Se ele já impôs um limite de horário para a parceira chegar em casaSe ele já proibiu a parceira de ir a algum lugarSe ele já bateu em alguma parceiraSe ele já forçou alguma parceira a ter relações sexuais com ele contra a vontade delaSe ele já sofreu violência doméstica cometida por uma parceira

Indicadores de autonomia sexual (mulheres)Idade na primeira relação sexualSe ela desejou ter sua primeira relação sexualSe ela conversou com seu parceiro sobre o uso de contracepção antes da primeira relação sexualSe algum parceiro já se recusou a usar camisinhaSe ela se sentiria segura para interromper o sexo se o parceiro não quisesse usar camisinhaSe ela se sentiria segura para interromper o sexo para pedir que usassem camisinhaSe algum parceiro já a forçou a ter sexo contra sua vontade

Indicadores de autonomia sexual (homens)Idade na primeira relação sexualSe ele desejou ter sua primeira relação sexualSe ele conversou com sua parceira sobre o uso de contracepção antes de sua primeira relação sexualSe ele já se recusou a colocar a camisinhaSe ele evitaria o sexo se uma parceira não quisesse usar a camisinhaSe ele aceitaria que uma parceira interrompesse o sexo para pedir que ele colocasse a camisinhaSe ele já foi forçado por uma parceira a ter sexo contra sua vontade

Fonte: “META - Projetos e trajetórias reprodutivas, educacionais e profissionais de jovens entre 15 e 29 anos em Minas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” Brasil, 2011

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Resultados

Comportamento sexual e reprodutivo e determinantes sociais e econômicos

A proporção de respondentes que já fez sexo é pra-ticamente a mesma para mulheres e homens (77% versus 81%). A idade mediana da iniciação sexual foi de 16 anos para mulheres e 15 anos para ho-mens. O sexo antes do casamento foi comum entre homens e mulheres: no entanto, para a maioria das mulheres (74%) a primeira relação sexual ocor-reu no contexto de um relacionamento estável com um namorado ou noivo, enquanto metade dos homens relatou que a sua primeira experi-ência sexual foi com uma amiga ou conhecida.

A prevalência do uso de preservativo na primeira relação sexual foi similar entre homens e mulheres, cerca de 72%. Entre as mulheres, observamos uma redução significativa do uso de camisinha na última relação sexual, apenas 40% relataram ter usado pre-servativo em sua última relação. Entre os homens, essa redução foi bem menor, o que pode ser atribu-ído ao fato de que, de acordo com nossos dados, os jovens estão menos propensos a um relacionamento estável e mais propensos ao sexo casual, resultados que são compatíveis com outros levantamentos10,11. Quase metade (47%) das mulheres engravidou pelo menos uma vez, 25,5% das quais antes dos 19 anos, e 44% teve pelo menos um filho. A prevalência de gravidez na adolescência foi bastante similar entre respondentes em todas as três cidades.

Jovens mulheres (n = 450)

Sim(%)(n=115)

Não (%)(n=335) V de Cramer Sim(%)

(n=20)Não (%)

(n=280) V de Cramer

Jovens Homens (n = 300)

Tabela 1 - Prevalência de gravidez adolescente entre jovens mulheres, de acordocom o sexo dos respondentes e características socioeconômicas selecionadas, Betim,Teófilo Otoni e Varginha - Brasil 2011.

1.60.08.212.528.620.038.722.23

23.5 28.70.175*

40.0 26.40.101

7.040.037.031.91

7.90.039.63.816.720.518.120.04

21.7 27.8 0.286* 25.0 26.9 0.180*3.820.038.533.815.70.09.77.1

2.840.524.937.516.310.03.020.317.020.558.73.11

48.7 19.4 0.382* 0.0 1.8 0.310*7.00.013.03.41.10.08.16.29.310.010.114.4

1.280.531.378.4365.2 26.9

0.347*65.0 17.9

0.289*

7.110.04.313.117.260.0012.446.53

48.6 32.20.143*

0.0 19.00.150*

6.60.02.015.4

Renda mensal familiar<1 salário mínimo1-2 salários mínimos2-3 salários mínimos>3 salários mínimos

Nível educacionalAté a quinta sérieSexta a nona sérieEnsino médio incompletoEnsino médio completoUniversidade

Chefe do domicílioPaiMãeRespondenteMarido/EsposaSogra/SogroPadrastoOutro parenteEstado civilSolteiro/Divorciado/ViúvoCasado/em uma parceria

Trabalho fora de casaNunca trabalhouSimNo momento nãoApenas estudante

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Apenas 22% de todos os respondentes homens declararam nunca ter engravidado uma parceira, e isso foi raro de acontecer durante a adolescência. Apenas 7% relataram ter engravidado uma parcei-ra antes de completar 19 anos.

As características sociais e econômicas dos en-trevistados de ambos os sexos também variaram bastante, mesmo quando viviam nas mesmas áre-as. As mulheres tendiam a viver em domicílios com níveis de renda mais baixos, embora tivessem em média mais anos de educação do que os homens. Essas diferenças foram ainda maiores quando se observa a gravidez na adolescência. Os resultados demonstraram que jovens mulheres que passaram por uma gravidez na adolescência tinham menos anos de escola e um nível de renda menor do que mulheres que não tinham passado pela mesma ex-periência (Tabela 1). A gestação e os cuidados com as crianças foram causas significantes para a in-terrupção dos estudos. Também foi mais raro que elas estivessem trabalhando ou ainda frequentan-

do a escola na época da entrevista, sendo muito mais provável que estivessem casadas ou vivessem em uma união estável quando comparadas com aquelas que não passaram por uma gravidez na adolescência. A renda média das mulheres que en-gravidaram na adolescência é menor do que a das mulheres que não passaram por essa experiência (dados não mostrados), mas uma maior proporção delas relatou ser a principal fonte de renda do do-micílio na época da entrevista.

Por outro lado, não encontramos diferenciais de renda entre os homens que engravidaram uma parceira na adolescência e aqueles que não o fize-ram. Embora os que engravidaram tivessem me-nos anos de escolaridade, sua renda era similar à dos outros homens (dados não mostrados). Tam-bém foi maior a probabilidade de serem a pessoa responsável pelo domicílio, estarem trabalhando e fora da escola na época da entrevista. A neces-sidade de trabalhar foi o principal motivo para o abandono escolar. Como suas homólogas do sexo

Jovens mulheres (n = 450)

Sim(%)(n=115)

Não (%)(n=335) V de Cramer Sim(%)

(n=20)Não (%)

(n=280) V de Cramer

Jovens Homens (n = 300)

Por que deixou a escola?Completou o ensino médioPara trabalharGravidez/CriançaNão gostava da escolaNão podia arcarcom os custos da escolaOutro motivoN

% das despesas domésticas pagas por você:NadaMenos da metadeMetadeMais da metadeTudo

0.432*5.00.5

0.281*

Tabela 1 (continuação)

Fonte: “META - Projetos e trajetórias reprodutivas, educacionais e profissionais de jovens mulheres e homens entre 15 e 29 anos em Minas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” Brasil, 2011* Significância estatística aceita para valor de p ≤ 0.050.

3.613.51.722.629.833.626.234.61

1.225.11 0.293* 10.5 17.4 0.196*1.111.123.83.123.618.639.96.42

1.140.53.649.317.351.68

0.291*95.0 58.9

0.185*

Ainda na escolaSimNão

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feminino, uma proporção muito maior desses ho-mens era casado ou vivia em parceria amorosa e eram as principais fontes de renda do domicílio.

Desigualdade de renda, indicadores de autonomia e comportamento sexual e reprodutivoA análise da relação entre a gravidez adolescente e a exposição à VG revela que as mulheres que en-gravidaram na adolescência relataram taxas mais altas de violência física ou sexual cometidas por um parceiro. Entre elas, 20% relataram ter sofrido violência física e 10% relataram ter sido vítimas de violência sexual por parte de um parceiro, entre as mulheres que não engravidaram essas propor-ções foram de 5% e 3%, respectivamente. Embora não seja possível estimar o grau de subdeclaração da experiência de violência, essa diferença mos-tra uma associação significativa entre a exposição

à VG e gravidez na adolescência, reforçada pelos resultados apresentados na Tabela 2. Como de-monstrado, é maior a proporção de mulheres que engravidaram na adolescência e que relataram já ter tido um parceiro que as proibiu de vestir cer-tas roupas, ter amigos, ir a certos lugares ou lhes impuseram um horário limite para voltar para casa. Essas questões são mais facilmente respon-didas do que as questões sobre violência física, já que o comportamento controlador é muitas vezes romantizado e associado a sentimentos de amor do parceiro. Assim, elas são menos susceptíveis à subdeclaração e fundamentam nosso principal achado: em todas as questões relacionadas à vio-lência e controle masculino, foi maior a probabi-lidade de resposta positiva entre as respondentes que tinham engravidado na adolescência do que entre aquelas que nunca haviam engravidado ou que engravidaram após os 19 anos de idade.

Tabela 2. Probabilidade de gravidez adolescente entre adolescentes e jovens mulheres e homens entrevistados em Betim, Teófilo Otoni e Varginha, conforme indicadores selecionados de violência e controle por parceiro (excluídas aquelas nunca unidas/casadas). Brasil, 2011.

(1) Categoriade referência

Sim (%)(n=115)

Não (%)(n=295)

OddsRatio

Intervalode confiança

Intervalode confiança

Sim (%)(n=20)

Não (%)(n=238)

OddsRatio

O parceiro já controlou suas roupas (mulheres) / já controlou as roupas de sua parceira (homens)2.020.553.222.93

2.265* 1.423-3.605 45.0 79.8 4.863* 1.907-12.401

O parceiro já controlou suas amizades (mulheres) / já controlou a amizade da parceira (homens)9.010.034.622.73

1.629* 1.028-2.580 70.0 89.1 3.511* 1.242-9.928

Tem um horário para chegar em casa imposto pelo parceiro (mulheres) / já impôs um horário de chegar em casapara a parceira (homens)

0.310.021.517.232.706* 1.632-4.487 80.0 87.0 0.377 0.526-5.344

O parceiro controla os lugares para onde ela pode ir (mulheres) / controla os lugares que a parceira pode ir (homens)0.120.034.727.04

1.783* 1.134-2.805 70.0 80.0 1.620 0.592-0.430

Já sofreu violência física cometida por um/a parceiro/a (para mulheres e homens)8.111.244.58.91

4.351* 2.163-8.751 57.9 88.2 5.483 2.020-14.879

Já sofreu violência sexual cometida por um/a parceiro/a (mulheres) / já foi violento fisicamente contra uma parceira(homens)

2.81.129.28.93.676* 1.437-9.400 78.9 91.8 3.022 0.907-10.071

Jovens Mulheres Jovens Homens

Fonte: “META - Projetos e trajetórias reprodutivas, educacionais e profissionais de jovens mulheres e homens entre 15 e 29 anos em Minas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” Brasil, 2011*Significância estatística aceita para valor de p ≤ 0.050.

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Os resultados foram simétricos: os entrevistados que eram adolescentes quando engravidaram suas parceiras relataram ter se comportado violenta-mente e/ou de maneira controladora com mais fre-quência do que aquelas que não passaram por essa experiência. Eles também relataram com maior frequência já ter controlado as roupas de uma parceira, imposto um horário para elas chegarem em casa ou já ter batido em uma parceira. Uma proporção muito maior destes entrevistados (42%) também relatou já ter sofrido violência física por uma parceira quando comparada aos outros res-pondentes, embora nenhum deles tenha relatado necessitar de cuidados médicos ou denunciar suas parceiras por causa dessa agressão.

Os respondentes tenderam a minimizar tanto a violência cometida quanto a sofrida, como se não fossem “grande coisa” e muitos deles, quan-do questionados sobre seu comportamento con-trolador, declararam com orgulho que não pre-cisavam proibir a parceira de nada porque “ela sabe o seu lugar” ou “sabe se comportar bem”. Essas respostas demonstram como os papéis tra-dicionais de gênero são internalizados no Brasil: mesmo entre a geração mais jovem, espera-se das mulheres que elas se comportem de maneira submissa, especialmente no que diz respeito à sexualidade, e os homens acham que têm o di-reito de as controlar.

Idade da iniciação sexualAté os 15 anos de idadeMaior ou com 16 anos de idadeConversou com o parceiro sobre contracepção antes da primeira relação sexualNão (1)Sim

Usou camisinha na primeira relação sexualNão (1) Sim

O parceiro já se recusou a usar a camisinha (mulheres) / já se recusou a usar a camisinha (homens)Não (1)Sim

Se sentiria segura para recusar (mulheres) sexo sem camisinha/ iria aceitar a recusa da parceira (homens)a ter sexo sem camisinhaNão (1)Sim

Já foi forçada ao sexo por um parceiro (mulheres) / já forçou uma parceira ao sexo (homens)Não (1)SimUso de camisinha na última relação sexualNão (1)Sim

Fonte: “META - Projetos e trajetórias reprodutivas, educacionais e profissionais de jovens mulheres e homensentre 15 e 29 anos em Minas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” Brasil, 2011*Significância estatísticas aceita para valor de p ≤ 0.050.

Jovens Mulheres (n=350) Jovens Homens (n=242)

(n=115) (n=235) (n=20) (n=222)

3.250.083.627.665.690* 3.482-9.297 20.0 47.7 3.655* 1.184-11.280

2.435* 1.536-3.860 25.0 29.3 1.242 0.434-3.559

2.691* 1.637-4.422 70.0 73.0 1.157 0.425-3.149

0.462* 0.277-0.770 26.3 11.8 0.375 0.125-1.127

1.850* 1.067-3.206 55.0 75.0 2.440* 0.960-6.198

1.390* 0.775-2.494 5.0 3.3 0.714 0.085-6.012

2.193* 1.354-3.550 35.0 66.7 3.714* 1.422-9.703

Tabela 3. Probabilidade de gravidez na adolescência entre adolescentes e jovens mulheres e homens, Betim, Teófilo Otoni e Varginha, conforme indicadores selecionados de autonomia sexual (excluídas pessoas sem experiência sexual). Brasil, 2011.

(1) Categoriade referência

Sim (%) Não (%) OddsRatio

Intervalode confiança

Intervalode confiança

Sim (%) Não (%) OddsRatio

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Estes resultados também sugerem que a preva-lência de comportamento controlador ou violento por homens jovens pode ser ainda maior, embora a proporção de respostas afirmativas a essas per-guntas seja similar às respostas das mulheres às questões sobre vivenciar o comportamento con-trolador ou violento por seus parceiros.

A associação entre os indicadores de autonomia sexual das mulheres e a prevalência de gravidez na adolescência (Tabela 3) e o uso de camisinha na primeira relação sexual (Tabela 4) apontam na mesma direção.

Como apresentado nas Tabelas 3 e 4, ter menos autonomia e enfrentar o controle e a violência de um parceiro associa-se a uma taxa mais alta de gravidez na adolescência e a uma taxa mais baixa de uso de camisinha na primeira relação sexual. De acordo com os nossos resultados, a maior chan-ce de gravidez na adolescência e a menor chance de uso de camisinha associam-se às respostas afir-

mativas aos seguintes indicadores de autonomia sexual das mulheres jovens: “se ela já foi forçada a fazer sexo por um parceiro”; “se um parceiro já se recusou a usar camisinha”; “se ela não se sente su-ficientemente segura para interromper a relação ou exigir o uso de camisinha”; “se ela não se sente segura para recusar a relação sexual se o parceiro não quiser usar camisinha”. A resposta afirmativa à pergunta “conversou com o parceiro sobre o uso de contraceptivos antes da primeira relação sexu-al”, que dá destaque à autonomia e ao controle das jovens mulheres sobre sua sexualidade, foi associada a maiores chances de uso de camisinha na primeira relação sexual e menores chances de uma gestação na adolescência.

Entre os homens, apenas as variáveis “idade da primeira relação sexual” e “usou camisinha na últi-ma relação sexual” apresentaram correlação signi-ficativa com a experiência de engravidar uma par-ceira quando era adolescente. No entanto, entre

Se a relação foi desejadaNão (1)Sim

Conversou com o parceiro sobre contracepção antes da primeira relaçãoNão (1) Sim

Um parceiro se recusou a usar camisinha (mulheres) / já se recusou a usar camisinha (homens)Não (1)Sim

Se sentiria segura para recusar (mulheres) sexo sem camisinha/ iria aceitar se a parceira recusasse sexo (homens) sem camisinhaNão (1)SimSe sentiria segura para interromper o sexo para pedir (mulheres)… / aceitaria se a parceira pedisse (homens) camisinhaNão (1)SimJá bateu em uma parceira (homens)Não (1)Sim

Fonte: “META - Projetos e trajetórias reprodutivas, educacionais e profissionais de jovens mulheres e homensentre 15 e 29 anos em Minas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” Brasil, 2011*Significância estatística aceita para valor de p ≤ 0.050.

Jovens Mulheres (n=350) Jovens Homens (n=242)

(n=249) (n=101) (n=176) (n=66)

Tabela 4. Probabilidade de uso de camisinha na primeira relação sexual, Betim, Teófilo Otoni e Varginha, de acordo com indicadores selecionados de autonomia sexual (excluídas as pessoas sem experiência sexual). Brasil 2011.

(1) Categoriade referência

Sim (%) Não (%) OddsRatio

Intervalode confiança

Intervalode confiança

Sim (%) Não (%) OddsRatio

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estes respondentes, e também entre os que não usaram camisinha na primeira relação sexual, um maior número declarou que já se recusaram a usar camisinha ou que se recusariam a interrom-per a relação sexual para colocar uma camisinha se a parceira assim desejasse. A variável “se ele conversou sobre o uso de contraceptivos com sua parceira antes da primeira relação sexual” foi as-sociada ao uso de camisinha e “se ele já bateu em uma parceira” foi associada a menor chance de uso de camisinha, tal como esperado (Tabela 4).

Apenas a idade na primeira relação sexual apresentou correlação estatisticamente significa-tiva com a gravidez na adolescência para ambos os sexos. Essa associação não pode ser explicada pelo período mais longo de exposição ao risco de engravidar: as jovens que engravidaram na ado-lescência tiveram sua primeira experiência sexual em média aos 15,2 anos de idade e engravidaram aos 16,6 anos de idade, uma diferença de um pouco mais de um ano. Por outro lado, as jovens que engravidaram após os 19 anos de idade, re-alizaram sua iniciação sexual com 17,5 anos em média e tiveram a primeira gravidez aos 22 anos de idade, quase cinco anos depois. É provável que o sexo no início da adolescência esteja associado a um menor grau de autonomia e controle sobre as circunstâncias da iniciação sexual, a uma maior vulnerabilidade às pressões do parceiro para con-sumar o ato, particularmente para as meninas, e, consequentemente, menor capacidade de exigir o uso de camisinha naquele momento e em relacio-namentos posteriores. Resultados de outros estu-dos fundamentam essas afirmações12,16.

DiscussãoNosso estudo procurou ampliar o conhecimento sobre o comportamento sexual e reprodutivo de adolescentes, mais especificamente sobre a gravi-dez na adolescência e o uso de preservativos na primeira relação sexual, considerando o impac-to das desigualdades e da violência de gênero. A pesquisa baseou-se nos dados disponíveis pelo estudo META sobre adolescentes residentes em ci-dades brasileiras de médio porte. Na maior parte das vezes, as pesquisas sobre essas questões são realizadas em grandes áreas urbanas no Brasil. A Pesquisa GRAVAD†, por exemplo, foi realizada em

† A Pesquisa GRAVAD foi o maior estudo sobre sexualidade e comportamento sexual realizado no Brasil, envolvendo uma amostra de 4.634 homens e mulheres entre 18 e 24 anos de idade vivendo em três grandes áreas metropolitanas no Brasil entre 2001 e 200216.

três capitais. Assim, adolescentes que não vivem em grandes cidades são menos ou quase nunca estudados. Além disso, embora muitos estudos confirmem que a gravidez na adolescência cria dificuldades consideráveis nas vidas das meninas, apenas uma pequena parcela da literatura exami-nou a VG na juventude e praticamente nenhuma pesquisa avaliou o impacto da VG na vida dos me-ninos. Neste sentido, este estudo lança luz sobre importantes aspectos da relação entre comporta-mento sexual e reprodutivo e VG entre adolescen-tes que vivem sob condições sociais diversas.

Muitos dos nossos achados, especialmente aqueles relacionados à idade de iniciação sexual e às taxas de uso de preservativo, confirmam os resultados revelados pela Pesquisa GRAVAD(16) e por outros levantamentos sobre comportamen-to sexual de adolescentes no Brasil. As taxas de gravidez na adolescência também são similares àquelas identificadas para as áreas rurais e peri-ferias pobres de áreas metropolitanas no Brasil e na América Latina10. Em um estudo sobre o perfil sociodemográfico e comportamental de adoles-centes de baixa renda de uma área muito pobre de São Paulo, a maior cidade brasileira, Chalem et al18, revelaram que 27% das 1.000 meninas inclu-ídas no estudo haviam engravidado pelo menos uma vez na vida. A partir dos dados da GRAVAD, Dias e Aquino19 demonstraram que de um total de 4.634 adolescentes com diferentes trajetórias sociais, 18% das meninas e cerca de 6% dos meni-nos foram mães ou pais durante a adolescência. A diferença entre as taxas de gravidez na adoles-cência identificadas pela GRAVAD e por nosso es-tudo pode ser explicada pelo fato de que a taxa de gravidez na adolescência é muito menor para jovens com renda familiar mais alta19 e a renda média de nossos respondentes era mais baixa do que a verificada na GRAVAD16. Neste sentido, nos-sos resultados são consistentes com resultados an-teriores8,17,19,20, que apontam para o impacto das desigualdades de classe na probabilidade de se ser pai ou mãe durante a adolescência.

Nossos resultados também apontam para o desequilíbrio de gênero nas consequências da gravidez na adolescência para meninas quando comparadas aos meninos: mulheres que engravi-daram na adolescência tinham níveis de renda e escolaridade mais baixos e foram mais propensas a deixar a escola quando comparadas às jovens da mesma classe social e residentes na mesma área, mas que não haviam engravidado na adoles-cência. Dito de outra forma, são menores as suas

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chances de acesso e controle de recursos materiais e sociais. Além disso, um resultado particularmen-te relevante em termos do desequilíbrio de gênero é a associação entre gravidez na adolescência e ex-posição ao comportamento controlador e violento de um parceiro.

Jovens que engravidaram na adolescência fo-ram mais propensas a declarar que foram vítimas do comportamento controlador e de violência física do que aquelas que não engravidaram ou que engravidaram após a adolescência, indepen-dentemente do estado civil. No entanto, devemos ser cautelosos e salientar que os dados não podem estabelecer uma relação direta de causa e efeito, porque não se pode presumir que a gravidez na adolescência resulta em uma maior probabilidade de violência. Tampouco se pode demonstrar que a experiência de violência leva à gravidez na ado-lescência, visto que não é possível delinear uma ordem temporal de eventos a partir de nossos dados. Nossos resultados apenas indicam a pre-sença de associações estatisticamente relevantes que já haviam sido identificadas em estudos an-teriores11,12. Dados dos anos 1990 de diferentes países latino-americanos também demonstram que, para muitas mulheres, a violência começa ou aumenta durante a gravidez21.

Entretanto, nossos resultados resultados apon-tam definitivamente para o efeito negativo da VG sobre a vida sexual e reprodutiva de jovens mu-lheres, já que a VG as situa em posições menos favorecidas dentro dos relacionamentos, dificul-tando a negociação sobre o uso de preservativos e os momentos do sexo. A associação positiva entre o desejo de usar preservativo e de conversar sobre contracepção com o parceiro antes da relação se-xual e o uso efetivo desta proteção também des-taca a importância da autonomia feminina e dos relacionamentos mais igualitários, aumentando as chances de relacionamentos mais seguros para ambos os sexos.

Esses resultados refletem e reforçam aqueles encontrados entre os rapazes, apesar da menor proporção de respondentes que engravidou uma parceira quando adolescentes. Há uma associa-ção bastante consistente entre já ter se compor-tado de maneira controladora ou violenta contra uma parceira com o uso de camisinha e com já ter engravidado uma parceira na adolescência. Esses resultados reforçam o impacto negativo da VG sobre a saúde sexual dos rapazes e das jovens, já que a recusa masculina em usar a camisinha também afeta a saúde sexual de suas parceiras.

A assimetria de poder entre homens e mulheres em diferentes áreas da vida social amplia a vul-nerabilidade das mulheres em diferentes níveis, especialmente no campo da sexualidade, mas isso também tem consequências sobre a saúde dos ho-mens. A dupla moral que ainda prevalece em boa parte do Brasil e da América Latina espera que as jovens neguem o sexo e que os homens ajam como machos e predadores sexuais, colocando os homens na posição de não negar e nem aceitar a recusa do sexo, sendo aí que o conflito e a vio-lência podem surgir. Nesse contexto, a capacidade de negociação das jovens quanto ao momento do sexo e o uso de camisinha é bastante limitada, visto que seus parceiros esperam que elas tomem todos os cuidados contraceptivos e não insistam no uso da camisinha. O direito de usar o corpo feminino para o sexo está implícito entre aque-les que acreditam que têm o direito de controlar as roupas, os amigos, os horários e a mobilidade da parceira, podendo até exercer esse “direito” de forma fisicamente violenta.

No geral, nossos resultados fundamentam a demanda por políticas públicas voltadas para as necessidades de adolescentes e jovens pobres como elemento fundamental para aumentar o acesso dessa população a melhores oportunida-des educacionais e econômicas. Em geral, pes-soas mais conservadoras, que se orientam pelas normas e valores tradicionais, têm baixo nível de escolaridade e menos oportunidades econômicas lucrativas. Como se sabe, as pessoas com poder de mudar atitudes têm níveis mais altos de escola-ridade. Além disso, as políticas públicas voltadas para jovens pobres devem desenvolver estratégias para garantir o acesso a serviços de educação em saúde sexual e reprodutiva e serviços para preve-nir a gravidez indesejada, HIV e outras ISTs. Tam-bém é muito importante que os serviços de saúde capacitem profissionais para lidar com as necessi-dades de adolescentes e jovens sem preconceitos ou abordagens conservadoras. Os profissionais de saúde devem, por exemplo, estar aptos a conver-sar abertamente com adolescentes e jovens, in-dependente de gênero, sobre como ter uma vida sexual prazerosa e segura. Estas tarefas não são fáceis; enfrentá-las implica lidar com normas e valores socioculturais profundamente enraizados que reforçam as desigualdades de gênero como ordem natural.

Além disso, as políticas públicas devem consi-derar mais seriamente a implementação de pro-gramas escolares que informem e eduquem sobre

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a extensão da violência de gênero entre famílias e casais, assim como devem desenvolver estraté-gias para controlar essa tendência e combater a impunidade. Estes nos parecem caminhos viáveis, embora nada fáceis, para superar as relações de gênero desiguais e opressivas.

A principal limitação deste estudo, e um proble-ma comum neste tipo de levantamento, é o tama-nho relativamente pequeno da amostra, especial-mente dos homens, que limita a força e o alcance da análise estatística. No entanto, mesmo com estas limitações, nossos resultados revelam indicadores de autonomia feminina em diferentes esferas da vida que podem ser úteis como medida do impac-to da VG e do controle masculino sobre a saúde sexual e reprodutiva de jovens mulheres, mesmo

em países caracterizados por um alto nível de urba-nização e modernização, como é o caso do Brasil.

AgradecimentosA pesquisa “META - Projetos e trajetórias repro-dutivas, educacionais e profissionais de jovens mulheres e homens entre 15 e 29 anos em Mi-nas Gerais: o papel da paternidade-maternidade adolescente.” foi financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico) - Edital CNPq 06/2008. Gostaríamos de agra-decer à grande contribuição de nossos assistentes de pesquisa durante o trabalho de campo. Agrade-cimentos especiais a Ana Laura Lobato, Ana Caro-lina Maciel de Assis Chagas e Leila Regina da Silva.

Referências

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RésuméDans cet article, nous nous demandons comment la violence sexiste influe sur la santé sexuelle et génésique d’adolescents et de jeunes adultes démunis. Nous analysons les données d’une enquête de 2011 auprès de 450 jeunes femmes et 300 jeunes hommes âgés de 15 à 29 ans, vivant dans des quartiers pauvres de trois villes moyennes à Minas Gerais, Brésil. À l’aide d’un questionnaire à questions fermées, nous avons recueilli des informations auprès de 150 femmes et 100 hommes dans chaque ville. Notre principal objectif était d’étudier le lien entre la violence sexiste et l’autonomie des jeunes femmes en rapport avec leur sexualité, en utilisant des indicateurs adaptés au Brésil. Nos résultats ont montré une diminution de l’utilisation du préservatif lors du premier rapport et une prévalence accrue des grossesses chez les adolescentes qui étaient dans une relation avec un partenaire ayant un comportement dominateur et violent. Une moindre utilisation du préservatif a été observée principalement chez les jeunes hommes qui ont reconnu être violents et dominateurs à l’égard de leur partenaire. Ils avaient aussi plus de probabilités d’avoir engrossé une partenaire étant eux-mêmes adolescents. Nous concluons que certaines variables utilisées ici comme indicateurs de la domination et la violence d’un partenaire et de l’autonomie d’une jeune femme peuvent nous aider à comprendre comment la violence sexiste dans les relations influencent la santé sexuelle et génésique des jeunes gens et des jeunes femmes, et comment les responsabiliser peut réduire leur risque d’avoir une grossesse non désirée ou de contracter le VIH et d’autres IST.

ResumenEn este artículo, investigamos cómo la violencia de género afecta la salud sexual y reproductiva de adolescentes y adultos jóvenes empobrecidos. Analizamos datos de una encuesta realizada en 2011 de 450 mujeres jóvenes y 300 hombres jóvenes, entre 15 y 29 años de edad, que vivían en barrios pobres de tres ciudades medianas en Minas Gerais, Brasil. Utilizando un cuestionario cerrado, recolectamos datos de 150 mujeres y 100 hombres en cada ciudad. Nuestro objetivo principal era explorar la relación entre la violencia de género y la autonomía de las jóvenes con relación a su sexualidad, utilizando indicadores adecuados para Brasil. Nuestros resultados mostraron menor prevalencia en el uso de condones la primera vez que tienen coito sexual y mayor prevalencia de embarazos en la adolescencia entre las jóvenes que estaban en una relación con una pareja que mostraba comportamientos controladores y violentos. Se observó menor uso del condón principalmente entre hombres jóvenes que admitieron ser violentos y controladores hacia su pareja; además, resultó más probable que ellos hubieran embarazado a su pareja cuando eran adolescentes. Concluimos que algunas variables utilizadas aquí como indicadores del control y la violenciadeuna pareja ydelaautonomíade las jóvenes nos pueden ayudar a entender cómo la violencia de género en las relaciones afecta la salud sexual y reproductiva de las mujeres jóvenes y hombres jóvenes, y cómo empoderarlos puede reducir su susceptibilidad a embarazos no deseados, VIH y otras ITS.

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Uma nova epidemia no velho contexto das desigualdades estruturaisPara estimar o impacto da epidemia do vírus da zika é preciso compreender os desafios à justiça reprodutiva postos por esta nova doença no con-texto das desigualdades estruturais. Em agosto de 2014, iniciou-se em Natal, uma cidade do Nor-deste brasileiro, um surto de uma doença cujos sintomas eram manchas rosadas na pele, dores nas juntas, olhos avermelhados, febre e dores de cabe-ça. Os exames excluíram a possibilidade de dengue ou de outras possíveis causas. Em março de 2015, a doença havia aparecido em três diferentes esta-dos e em maio de 2015 pesquisadores descobriram que era um surto do vírus da zika, transmitido pelo mesmo mosquito que é o vetor dos vírus da dengue e da chikungunya, o Aedes aegypti1.

A infecção por zika foi inicialmente associada a complicações neurológicas como a síndrome de Guillain-Barré (SGB) em alguns casos, mas até aquele momento pensava-se que fosse uma do-ença relativamente benigna, um tipo de “dengue leve”. Em setembro de 2015, profissionais de saú-de nos estados de Pernambuco e Paraíba relata-ram um crescimento nos casos de microcefalia e calcificações cerebrais. Outras doenças foram des-cartadas e, em meados de novembro, os exames para o vírus zika deram positivo no líquido amnió-tico de mulheres grávidas afetadas2. Nos meses se-guintes, milhares de casos suspeitos de microcefa-lia e outras malformações neurológicas surgiram no Brasil, criando uma preocupação global sobre esta nova ameaça reprodutiva e de saúde pública.

Em fevereiro de 2016, ao observar especifica-mente a forte associação, no tempo e no lugar, entre o aumento da detecção de casos de malfor-mações congênitas, complicações neurológicas e infecção com o vírus da zika, a Organização Mun-dial de Saúde (OMS) considerou que a situação atendia aos critérios para uma Emergência de Saú-de Pública de Interesse Internacional3. O interesse

científico nessa nova emergência de saúde públi-ca levou a uma explosão de publicações sobre os aspectos biológicos, epidemiológicos e clínicos e sobre a relação de causalidade entre o vírus e a síndrome congênita. Em abril de 2016, um relató-rio da OMS destacou que “a microcefalia e outras malformações fetais possivelmente associadas à infecção pelo vírus da zika ou indicativas de infec-ções congênitas” foram relatadas no Brasil (1.046 casos), em Cabo Verde (2 casos), na Colômbia (7 casos), na Polinésia Francesa (8 casos), na Marti-nica (3 casos) e no Panamá (1 caso). Houve dois casos adicionais de pessoas que haviam passado pelo Brasil4. A série de danos neurológicos asso-ciados ao vírus da zika foi chamada de síndrome congênita da zika (SCZ).

Embora o vírus da zika tenha se espalhado pelo Brasil, América Latina e outras regiões, a concen-tração de altas taxas de microcefalia foi relatada apenas no nordeste brasileiro e basicamente em áreas mais pobres. Em meados de 2016, a evidên-cia sugeria que a zika poderia causar microcefalia, mas seu padrão de agregação sinalizava para a pos-sibilidade de que outros fatores ambientais, socioe-conômicos ou biológicos poderiam estar em jogo5.

Os casos estavam concentrados em áreas em que havia pouco ou nenhum saneamento, com esgoto a céu aberto e sem acesso regular à água potável (levando à necessidade de se armazenar água, um potencial criadouro de mosquitos). A exposição ambiental ao Aedes também leva à vulnerabili-dade a agravos reprodutivos, pois as mulheres grávidas estão em contato com a sobreposição de outras infecções (dengue e chikungunya são as mais óbvias), fumigação repetida de inseticidas como o malathion (conhecido por ser neurotóxico e cancerígeno a humanos) e água potável tratada com larvicidas como a piriproxifeno, introduzido na região em 20146. Sabe-se há muitos anos que a exposição frequente a essas substâncias leva ao desenvolvimento de mecanismos de defesa dos

O vírus da zika - o glamour de uma nova doença, o abandono prático das mães e novas evidências para uma causalidade incerta

Simone G Diniza, Halana F Andrezzob

a Professora Associada, Departamento de Saúde Materna e da Criança, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, Brasil. Contato: [email protected]

b Ginecologista e Obstetra, Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

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insetos para a resistência a inseticidas e larvicidas, como ocorre com o A. Aegypti, reduzindo a eficá-cia desses agentes e levando à necessidade de au-mentar suas concentrações, que já são muito mais altas em áreas com baixo ou nenhum saneamento básico onde vive a população mais pobre6.

O efeito destas substâncias na reprodução hu-mana ainda é pouco entendido e sua potencial sinergia biológica não tem sido contemplada de maneira adequada na agenda de pesquisas. Um relatório publicado pela OMS sobre a segurança da água tratada com piriproxifeno, usando ratos e coelhos como cobaias, demonstrou uma frequên-cia maior de variações do esqueleto e anomalias viscerais em algumas das concentrações testadas para o desenvolvimento da toxicidade; nos coe-lhos, os sinais de toxicidade materna incluíram um aumento nos natimortos e uma redução no número de implantações e no número mediano de fetos vivos, abortos e partos prematuros. O re-latório concluiu que o produto era seguro para humanos7. A utilização de piriproxifeno no Brasil não tem precedentes, porque nunca foi aplicado ao fornecimento de água nesta escala. As afirma-ções de que não foi utilizado em Recife, o epicen-tro dos casos de microcefalia, não foi confirmada de maneira adequada8.

Recentemente, surgiram evidências de que outros agentes podem estar envolvidos no desen-volvimento das malformações neurológicas re-lacionadas à zika no Brasil9. No que diz respeito à microcefalia, estudos em andamento apontam para a possibilidade de associação entre o vírus da zika e o vírus da diarréia viral bovina, um pesti-vírus conhecido por produzir problemas neuroló-gicos congênitos em animais de criação, mas que acredita-se ser inócuo em humanos9,10.

Além desses riscos, um número de eventos con-correntes ocorreu no Brasil, cada um deles ofere-cendo uma hipótese alternativa digna de explo-ração para compreender as diferenças geográficas na ocorrência da microcefalia. Algumas das etio-logias suspeitas, baseadas na exposição recente de mulheres grávidas, incluem: efeitos adversos de tecnologias médicas introduzidas em 2014, como a contaminação de pestivírus na vacina de coque-luche; toxicidade de glifosato nos produtos bovi-nos usados na vacina tríplice, que imuniza contra tétano, difteria e coqueluche (via interações com alumínio na vacina); transferência horizontal de transposon piggyBAC liberados por mosquitos geneticamente modificados; toxicidade pré-natal por vitamina de ácido fólico em carreiras de muta-

ção de genes, e interações entre quaisquer fatores mencionados acima11.

A estratégia de saúde pública mais eficaz para lidar com epidemias transmitidas por vetores é o saneamento básico com fornecimento regular de água tratada, que deve ser priorizado diante do controle vetorial baseado em químicos.(6) Isto é particularmente verdade para países como o Bra-sil onde, devido à resistência aos produtos, dife-rentes substâncias são utilizadas em revezamento com doses aumentadas no campo, e a presença de mosquitos continua crescendo independente das mudanças das drogas ou do uso de concentrações mais altas. O efeito de 30 anos de estratégia de controle de vetores baseado em químicos é que a população brasileira está mais vulnerável do que nunca e a expansão territorial da infestação de A. Aegypti só confirma este fracasso6. E as mulheres mais pobres em idade reprodutiva são despropor-cionalmente representadas entre as pessoas que vivem nestas áreas ambientalmente vulneráveis.

A epidemia de zika aumentou a desigualdade e limitação dos direitos e saúde das mulheres em dois aspectos principais: os seus direitos reproduti-vos para regular a fertilidade, e o apoio que elas ne-cessitam para a assistência a uma criança com SCZ.

As mulheres afetadas e o contexto de seus direitos reprodutivosNo Brasil, os direitos reprodutivos são limitados e o aborto é ilegal, exceto no caso de estupro, para salvar a vida da mulher e em alguns casos de anencefalia. Não há políticas de aborto seguro para mulheres afetadas pela zika que optem por interromper a gestação, se não estiverem seguras das possíveis consequências do vírus e não quise-rem correr o risco de ter uma criança severamen-te malformada e nem mesmo para as mulheres que já confirmaram que foram afetadas. Além disso, só é possível diagnosticar os danos para o bebê tardiamente na gestação, o que torna qua-se impossível que se espere pela confirmação da severidade do caso. Isso é particularmente difícil para as mulheres de baixa renda e baixo nível de escolaridade, que já têm acesso limitado à contra-cepção, que apresentam maiores taxas de gravidez indesejada e não podem arcar com os custos de um aborto ilegal seguro, disponível apenas em clí-nicas clandestinas e caras12.

A epidemia de zika exigiu que repensássemos a legislação restritiva brasileira. A Associação Nacio-nal de Defensores Públicos entrou com uma ação

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judicial no Supremo Tribunal Federal, exigindo o direito ao aborto para mulheres grávidas diagnos-ticadas com o vírus da zika, baseado no sofrimen-to mental das mulheres, especialmente porque o diagnóstico de microcefalia é tardio (após a vigé-sima semana). A ação também trata do direito à informação, da garantia à contracepção de longo prazo, proteção social e transporte para as neces-sidades permanentes de diversas formas de as-sistência especial para os bebês afetados. A ação constitucional foi apresentada ao Supremo Tribu-nal, que tem um histórico de crescente reconheci-mento dos direitos reprodutivos das mulheres em casos anteriores.

No entanto, este não é exatamente um bom momento para nenhuma iniciativa de expansão do direito ao aborto, já que o Brasil atual conta com o congresso mais religioso e conservador de sua história, um governo federal com legitimida-de limitada e preso aos setores mais reacionários e misóginos13. No dia 29 de novembro de 2016, o Supremo Tribunal brasileiro se reuniu para de-cidir sobre o caso de prisão preventiva de uma mulher e da equipe de uma clínica de aborto (ilegal) e os ministros compreenderam, de forma unânime, que a prisão não era justificada porque não cumpria os requisitos legais necessários para a detenção pré-julgamento. Além disso, um dos ministros, Luís Roberto Barroso, deu o seu voto considerando que a criminalização do aborto até os três meses de gestação viola o direito à auto-nomia das mulheres, o direito à integridade físi-ca e mental, os direitos sexuais e reprodutivos, a igualdade de gênero, assim como produz discri-minação social e impactos desproporcionais na criminalização das mulheres pobres. Como espe-rado, o congresso reagiu instantaneamente à de-cisão do Supremo Tribunal prometendo reverter o julgamento, para evitar o uso da sentença como jurisprudência14.

O glamour do novo vírus e o abandono prático de mulheresAs mulheres têm vivido o tormento da ausên-cia de apoio para cuidar das crianças afetadas. Como apresentado de forma eloquente no filme de Debora Diniz “Zika, um documentário”15 e no seu livro “ZIKA - Do Sertão Nordestina a Ameaça Global”2, a vida dessas mulheres foi redefinida por este tipo de maternidade: o grande interesse na nova doença e o abandono prático das mães. Foram criados serviços especializados em micro-

cefalia com profissionais bem treinados, mas há muito pouco apoio para que as mães e famílias possam lidar com a criança com deficiências permanentes15.

Elas enfrentam o medo de um diagnóstico in-certo, dos exames de imagem repetidos inúmeras vezes e do desafio diário de cuidar de um bebê com numerosas necessidades especiais em um contexto de grande vulnerabilidade social. As de-sigualdades a que essas mulheres estão sujeitas nos seus contextos de vida exacerbam o seu já precário acesso a serviços de saúde. Há um amplo leque de condições clínicas, indo de casos limite a severas malformações neurológicas nessas crian-ças. Muitas vezes os bebês são bastante irritáveis e muitos choram inconsolavelmente o dia intei-ro e acabam sendo fortemente sedados. Nessas condições, a coabitação é extremamente dolorosa e, não raramente, os maridos deixam as esposas e as famílias após o nascimento dessas crianças. As mães desses bebês que já têm outros filhos di-zem que abandonam as demais crianças, porque precisam se dedicar de maneira integral à criança doente2,15.

A transferência de renda para famílias com membros com necessidades especiais, chamado Programa de Benefício Contínuo, só é acessível para famílias com renda familiar menor do que um quarto do salário mínimo, ou seja, para aque-las que provam que vivem na extrema pobreza, o que impede muitas mulheres pobres de receber este apoio financeiro. De fato, a renda familiar é ainda mais reduzida porque as mulheres precisam abandonar seu trabalho remunerado para se de-votarem exclusivamente à criança afetada2.

O SUS organizou serviços para atender às ne-cessidades das populações afetadas, incluindo serviços de reabilitação que oferecem estimulação precoce aos bebês para compensar os danos neu-rológicos, mas com eficácia variável. Muitas vezes, as mulheres precisam viajar centenas de quilôme-tros com seus bebês para sessões de fisioterapia, dependendo da boa vontade dos serviços munici-pais para o seu transporte2.

Se por um lado as mulheres parecem ser as principais vítimas do vírus da zika, por outro, sur-gem como líderes e empreendedoras de iniciativas de apoio. Elas se encontram nos serviços de saúde, mantêm o contato e se organizam pelas mídias sociais - mesmos as mais pobres têm telefone ce-lular. Criaram a Associação das Mães e Famílias Raras, AMAR, em Pernambuco, e também a União

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de Mães de Anjos (UMA), que já conta com mais de 300 seguidores. Por meio de eventos públicos e redes sociais, o grupo promove ações para com-bater preconceitos, coletar doações e oferecer as-sistência a mães e bebês afetados pela síndrome15. Elas também oferecem um apoio valioso para as mães que passam pelo mesmo problema, para ajudarem umas às outras e pensarem sobre sua si-tuação, já que estão em uma posição privilegiada para imaginar soluções para seus problemas. Esses movimentos aprendem e se juntam ao ativismo já existente das mães de crianças com deficiências, que eram menos visíveis antes do alto interesse gerado pela epidemia de zika16.

Em um momento de grande restrição de políti-cas públicas no Brasil, incluindo o recente conge-lamento dos gastos públicos em saúde e educação por 20 anos, a criação de serviços especializados para bebês, mães e famílias afetadas é extrema-mente necessária e deve ser tratada como priori-dade. Na perspectiva da justiça reprodutiva, deve-mos considerar a crise do vírus da zika no contexto da estratificação reprodutiva, das desigualdades de gênero e da justiça social, de modo a entender as implicações humanas das epidemias17.

Nova evidência: não há associação contínua entre a infecção por zika e a microcefalia?Em abril de 2017, foi publicado um relatório do Ministério da Saúde brasileiro e da Organização Pan-americana de Saúde com notícias surpreen-dentes. No começo de 2016, diante do aparente ressurgimento da infecção por zika e da Síndrome de Guillain-Barré, previu-se um maior crescimen-to no número de casos de microcefalia - mas isso não ocorreu. Os autores levantaram três hipóte-ses para explicar o aparente paradoxo: primeiro, que havia outro arbovírus (vírus da dengue, ví-rus chikungunya ou outro), também transmitido pelo A. Aegypti, que poderia estar associado às malformações; segundo, que a infecção pelo ví-rus da zika era uma condição necessária, mas não suficiente, para as assim chamadas SCZ; e tercei-ro, que houve mais interrupções de gravidez no Brasil.(18) A partir da segunda metade de 2016, observou-se um leve declínio no número de nas-cidos no Brasil, de acordo com o Sistema de Infor-mação de Nascidos Vivos (SINASC), especialmente nos estados mais afetados pela zika, indicando que pelo menos algumas mulheres mudaram seu comportamento reprodutivo durante a epidemia. Parte deste declínio também pode ser atribuído à

crise econômica e política no Brasil.(19) Mas ne-nhum desses fatores explica o declínio significa-tivo e inesperados da microcefalia na epidemia.

O declínio na microcefalia foi realmente uma notícia surpreendente, visto que, desde que a Or-ganização Mundial de Saúde considerou a situa-ção uma Emergência de Saúde Pública de Interes-se Internacional, em fevereiro de 2016, centenas de artigos e iniciativas de pesquisa foram publica-das ou lançadas em resposta à nova relação entre o vírus da zika e a SCZ. Em novembro de 2016, a Organização Mundial de Saúde declarou o fim da emergência global de saúde relacionada à propa-gação do vírus da zika. A OMS destacou que o vírus “permanece como um desafio de saúde pública significativo e duradouro que requer ação inten-sa”. Em maio de 2017, o Ministério da Saúde do Brasil declarou o fim da Emergência Nacional de Saúde Pública (ENSP) da zika.

ConclusãoIndependentemente das relações de causalidade entre o vírus da zika e a assim chamada SCZ, há uma população afetada pela SCZ que necessita dramaticamente de respostas adequadas. Isso é ainda mais necessário em um contexto de incerte-za, que adiciona suspense e precariedade ao con-texto. Junto às necessidades reprodutivas já não atendidas por contracepção, aborto, nascimento e apoio social e seguro para a criação dos filhos, novas doenças e novos desafios exigem aborda-gens inovadoras, da prevenção primária à reabi-litação, que devem priorizar os direitos e o em-poderamento das mulheres. Isso pode acontecer em muitas instâncias, desde a implementação das soluções imperativas de saneamento básico com fornecimento regular de água tratada até o treinamento e empoderamento das mulheres e suas famílias nas áreas remotas para que pos-sam oferecer estimulação para as crianças, com a supervisão técnica dos profissionais (reduzindo a carga de longas viagens para ter acesso a assistên-cia). Outras ações têm oferecido assistência de boa qualidade (incluindo as necessidades reprodutivas das mulheres) e apoio psicossocial e financeiro para as mulheres e famílias afetadas por esse de-sastre reprodutivo e de saúde pública.

Esses são os novos elementos na paisagem já incerta das iniciativas de saúde pública, e políti-cas emergenciais permanentes de apoio a mães e famílias das crianças afetadas são urgentemente necessárias. A justiça reprodutiva deve ser muito

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mais do que o direito de decidir quando ter um fi-lho - e deve incluir o necessário reconhecimento da sobrecarga econômica, social e emocional dos cui-dados com crianças, em geral, e, particularmente, com crianças que requerem atenção especial.

Declaração de divulgaçãoNão houve possíveis conflitos de interesses relata-dos pelas autoras.

Referências

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ano 11 - número 10 - dezembro de 2017

Violência de Gênero: um obstáculo para a saúdee os direitos sexuais e reprodutivosShirin Heidari, Claudia Garcia Moreno

Violência sexual e de gênero contra refugiadas:um aspecto ignorado da “crise” de refugiadosJane Freedman

Saindo da penumbra? A inclusão de meninos e homens na conceituação do estupro de guerraSHeleen Toquet, Ellen Gorris

Cicatrizes invisíveis: a violência obstétricanos Estados UnidosFarah Diaz-Tello

Violência obstétrica: uma nova abordagem para identifi car obstáculos ao acesso à saúde maternana ArgentinaCarlos Herrera Vacafl or

Os direitos humanos de pessoas intersexo:práticas danosas e retórica da mudançaEMorgan Carpenter

Para além do desrespeito e do abuso: as dimensões estruturais da violência obstétricaMichelle Sadler, Mário JDS Santos, Dolores Ruiz-Berdún, Gonzalo Leiva Rojas, Elena Skoko, Patricia Gillen,Jette A Clausen

Serviços de atenção a vítimas de violência devem ser integrados à assistência ao aborto? Uma análise da situação no Reino UnidoLoveday Penn Kekana, Megan Hall, Silvia Motta,Susan Bewley

Auto-gestão do aborto induzido por medicamentos: uma síntese das evidências qualitativasMegan Wainwright, Christopher J Colvin, Alison Swartz, Natalie Leon

Linha direta: uma estratégia efi caz para ampliar o acesso das mulheres ao aborto seguro na América LatinaRaquel Irene Drovetta

Reforma da lei de aborto no Uruguai: contexto, processo e lições aprendidasSusan Wood, Lilián Abracinskas, Sonia Correa,Mario Pecheny

Igualdade e serviços de saúde da mulherpara contracepção, aborto e parto no BrasilSimone G Diniz, Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira,Sonia Lansky

Direitos sexuais como direitos humanos: um guiade princípios e fontes autorizadas para a aplicação dos direitos humanos à sexualidade e saúde sexualAlice M. Miller, Eszter Kismödi, Jane Cottingham,Sofi a Gruskin

Enfrentando reações negativas à educação sexual por meio de um modelo multicultural de direitos humanosVera Paiva e Valéria Silva

Violência de gênero e saúde sexual e reprodutiva entre jovens de baixa renda de três cidades brasileirasAlessandra Sampaio Chacham, Andrea Branco Simão, André Junqueira Caetano

O vírus da zika - o glamour de uma nova doença,o abandono prático das mães e novas evidências para uma causalidade incertaSimone Diniz e Halana F. Andrezzo