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VIOLENTOS OU INDISCIPLINADOS? UM ESTUDO SOBRE O COMPORTAMENTO ADOLESCENTE NA ESCOLA PÚBLICA Luciana Campos Golarte 1 Resumo Coloco em foco os adolescentes de duas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro situadas em bairros pobres e me aproximo deles através de entrevistas, observação- participante, grupo-focais e da escuta sensível (BARBIER, 2004), objetivando descobrir o que pensam sobre a vi- olência e a indisciplina. No decorrer da pesquisa, revelam uma convivência permeada por ameaças, intimidações e destrato da escola e na relação professor-aluno. Assim, umas das possíveis conclusões apontam uma compreensão mediadora entre os termos indisciplina e violência, a fim de diluir discursos que contribuem para ver o adolescente de origem popular como potencialmente criminoso. E, por fim, é preciso reconhecer a existência de diferentes vi- olências no conjunto escolar e, que, portanto, demandam estratégicas específicas e sistemáticas. Palavras-chave: Adolescentes. Violência. Indisciplina. Es- cola pública. Abstract I place in focus the adolescents of two public schools of the State of Rio De Janeiro situated in slum quarters and I come close to them through interviews, comment- participant, group-focal and of sensible listening (BARBIER, 2004) objectifying to discover what they think on the violence and the indiscipline. In elapsing of the research, they disclose a convivência permeada for threats, intimidations and destrato of the school and in the relation professor-pupil. us, ones of the possible 1 Instituição: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. Programa de Pós- graduação em Educação - Mestrado. E-mail: [email protected]

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VIOLENTOS OU INDISCIPLINADOS? UM ESTUDO SOBRE O COMPORTAMENTO ADOLESCENTE NA ESCOLA PÚBLICA

Luciana Campos Golarte1

Resumo Coloco em foco os adolescentes de duas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro situadas em bairros pobres e me aproximo deles através de entrevistas, observação-participante, grupo-focais e da escuta sensível (BARBIER, 2004), objetivando descobrir o que pensam sobre a vi-olência e a indisciplina. No decorrer da pesquisa, revelam uma convivência permeada por ameaças, intimidações e destrato da escola e na relação professor-aluno. Assim, umas das possíveis conclusões apontam uma compreensão mediadora entre os termos indisciplina e violência, a fi m de diluir discursos que contribuem para ver o adolescente de origem popular como potencialmente criminoso. E, por fi m, é preciso reconhecer a existência de diferentes vi-olências no conjunto escolar e, que, portanto, demandam estratégicas específi cas e sistemáticas. Palavras-chave: Adolescentes. Violência. Indisciplina. Es-cola pública.

AbstractI place in focus the adolescents of two public schools of the State of Rio De Janeiro situated in slum quarters and I come close to them through interviews, comment-participant, group-focal and of sensible listening (BARBIER, 2004) objectifying to discover what they think on the violence and the indiscipline. In elapsing of the research, they disclose a convivência permeada for threats, intimidations and destrato of the school and in the relation professor-pupil. Th us, ones of the possible

1 Instituição: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. Programa de Pós-graduação em Educação - Mestrado. E-mail: [email protected]

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conclusions points with respect to the necessity to search a mediating understanding between the terms indiscipline and violence, in order to dilute speeches that contribute to see the adolescent of popular origin as potentially criminal. E fi nally, is necessary to recognize the existence of diff erent violências in pertaining to school set e, carrying, demands strategical specifi c and systematic.Keywords: Adolescents. Violence. Indisciplime. Public School.

INTRODUÇÃO

Desde a década de 1980 podemos assistir no Brasil a uma preocupação com a violência que passa a ocorrer na escola e no seu entorno. São casos envolvendo depredações e roubos, principalmen-te em dias e horários sem aulas. Nessas ocasiões, tanto a vizinhança quanto os alunos e professores se sentiam amedrontados, pois não tinham serviços públicos que garantissem segurança. Essa situação contribuiu para que fossem criados programas governamentais, com o objetivo de ocupar a escola em dias e horários propícios a assaltos e a depredações, tais como os fi nais de semana.

Ao longo dos anos, mais especifi camente na década de 1990, a exposição da escola a um tipo de violência externa amplia--se, ganhando novos personagens e revelando se tratar de um fenô-meno para além das depredações e assaltos. Agora, passam a entrar em cena grupos do narcotráfi co que, de diferentes modos, afetam o bem-estar almejado pela instituição escolar.

Sobre esses grupos, Guimarães (1998) desenvolve um em-blemático estudo, no qual, por meio de entrevistas com professores de escolas públicas do Rio de Janeiro, mostra a infl uência exercida pelo narcotráfi co. Ele ressalta a existência de uma infl uência direta dos criminosos quando novos professores são levados pelos diretores aos chamados “donos do morro” para obterem passaporte seguro de trânsito na localidade. Ou quando esses mesmos “donos” mandam fechar as escolas em dias de tiroteios na região.

Ao lado da gravidade trazida através das falas de alguns pro-fessores, a violência na escola acentua-se conforme é submetida ao domínio de grupos juvenis, chamados “galeras”. A galera, denomi-nação oriunda dos bailes funk da cidade do Rio de Janeiro, leva para dentro das escolas a resolução de suas pendências com os grupos rivais, misturando encenação, medo e violência. A agressividade

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desses jovens causa medo em professores e nos demais funcionários e se acentua quando eles fazem ameaças físicas para verem atendidos os seus desejos, seja de aumento de notas nas provas ou para serem liberados mais cedo das aulas.

Ainda na década de 1990, a ONU (Organização das Na-ções Unidas) cria e estimula a criação de programas governamentais com o desejo de favorecer os jovens e adolescentes dos países em desenvolvimento. Focaliza-se os sujeitos que estão em situação de vulnerabilidade social, afastados das oportunidades de mercado e do uso dessas mesmas oportunidades (ABRAMOVAY, 2002).

Além das refl exões suscitadas pela ONU, na mesma década assistimos a ampliação do acesso à escola por parte dos jovens e adolescentes, contudo, desacompanhada de qualidade e condições humanas e materiais de funcionamento. Sendo assim, problemas relacionados a distorção idade-série e abandono escolar continuam a marcar os problemas vividos por muitos jovens do nosso país. Sobre tal aspecto, Sposito (2004), citando Maria Malta Campos mostra-nos que as (...) “reformas educativas dos anos 1990, tratava-se muito mais de um “ mau” uso das verbas do que de sua “ insufi ciência” (SPOSITO, 2004, p.97).

Junto a esses problemas ainda assistimos nos meios de co-municação à notícias sobre jovens e adolescentes em situações de violência na escola e fora dela, atuando como vítimas ou algozes.

Silva e Barbosa (2006, p.62) discorrendo acerca da relação juventude e violência ressaltam:

O número de homicídios dos jovens aumentou 76%. Em 2000, as mortes de cidadãos entre 15 a 24 anos responde-ram por 39% das ocorridas no Brasil. Com isso, como a média global de homicídios atingiu 32%, a taxa de mor-talidade dos jovens foi de 95,6 por 100 mil habitantes, sendo 75% dessas vítimas mortas por armas de fogo.

Esses dados nos deixam frente a um momento delicado e percebemos a urgência de políticas públicas mais contundentes, que favoreçam adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social, principalmente moradores dos morros, favelas e periferias urbanas.

Concomitantemente, somos levados a nos questionar sobre proteção e resguardo desses jovens dentro de uma sociedade que, cotidianamente, vem emboçando o desejo de ampliar as possibilida-des de detenção dos “menores” infratores em prisões comuns.

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Junto às inúmeras refl exões suscitadas, podemos dizer que o jovem e adolescente com que lidamos no conjunto escolar, por vezes, apresentam aspectos ligados à ruptura de estigmas, quanto a sua perpetuação. Ou seja, se por um lado conseguem reivindicar coletivamente por direitos, através da criatividade e ousadia, por ou-tro, são capazes também de deixar um rastro de medo que contribui para a criação de percepções negativas sobre eles.

É sobre isso que almejo discorrer neste artigo, trazendo para a discussão a experiência vivida como orientadora educacional e professora em duas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, situadas nos municípios de Duque de Caxias e Niterói. Buscarei, assim, me aproximar dos estudantes, buscando saber o que pensam sobre a violência na escola e fora dela, como lidam com os confl itos e o que esperam para a melhoria das escolas. Com isso, mostrar que apesar dos inúmeros problemas por que passam, eles têm muito a dizer sobre a convivência entre os pares e revelar as diferentes formas de violências presentes na escola.

OS SUJEITOS DA PESQUISA E O DIÁLOGO METODOLÓGICO

Para me aproximar dos estudantes, cujas idades variam de 12 a 16 anos, lanço mão de diversas estratégias metodológicas possí-veis na pesquisa Etnográfi ca (ANDRE, 1995), como: questionário, pesquisa-ação, entrevistas, grupos-focais, escuta-sensível e observa-ção participante. Através dessas estratégias, busco penetrar na vida escolar e entender como os adolescentes dão sentido às interações sociais, como eles constroem concepções de si e o que pensam sobre a escola e a sua organização.

Passo a recortar e a defi nir o que seria o pano de fundo de minhas observações. Volto-me para as práticas docentes para buscar o controle de turma. Observo o modo como os adolescentes reagem a tudo isso, como andam pelos corredores, como falam e se diferen-ciam a todo momento da cultura escolar.

O olhar que estranha é, ao mesmo tempo, aquele que participa da dinâmica escolar, pois, se de um lado é difícil aceitar o autoritarismo de alguns professores, de outro também é com-plicado permitir que os alunos gritem e se agridam nas salas de aulas. Portanto, compreender as ações desses dois sujeitos não

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passa somente pelo crivo da percepção, mas por interpretações constantes, que não deixam de estar próximas da realidade e, portanto, de ser afetadas por ela.

Os adolescentes que participam da pesquisa moram no Morro do Castro, uma comunidade situada entre São Gonçalo e Niterói, que possui bares, um posto de saúde e duas escolas públi-cas. As ruas nem sempre têm pavimento, as casas são construídas em locais nem sempre apropriados, como barrancos e terrenos com pouca vegetação, propícios à deslizamento de terra e de casas. Ain-da, os moradores contam apenas com uma linha de ônibus, 457 (Niterói X Cova da Onça).

Já em Duque de Caxias, converso com os adolescentes do bairro Campos Elíseos, existe desde 1961, a partir da construção da refi naria de Duque de Caxias (REDUC), gerida e organizada pela Petrobrás, que ocupa 13 milhões de metros quadrados. Em-bora seja divulgado que o rendimento anual dessa refi naria seja em torno de US$ 3 bilhões, o bairro convive com muita pobreza. Algumas ruas não têm asfalto e nem saneamento básico e os habi-tantes da região respiram diariamente os gases tóxicos provenien-tes do refi no das substâncias do petróleo.

Assim, tem-se uma imagem com profundas desigualdades e diferenças, juntando no mesmo território grandes empresas e casas simples, cercadas por barro e muita poeira. Na rua da escola, exis-tem pequenos comércios e outras escolas da prefeitura. Poucas em-presas de ônibus, vans e carros particulares se somam ao transporte ferroviário, que faz a ligação entre Saracuruna e a Central do Brasil.

Os dois bairros, embora distantes, compartilham questões comuns ligadas à organização local, distribuição dos serviços públi-cos e a luta por melhores condições de vida dos moradores. Con-vivem também com ameaças provenientes de trafi cantes de drogas, que controlam e limitam os horários de circulação.

De certo modo, os adolescentes residentes nesses espaços estão afastados daquilo que garantiria uma boa qualidade de vida e nos fazem refl etir sobre as violências que sofrem, ora geradas pelo abandono de políticas públicas, ora pelos grupos armados.

Os estudantes trazem às escolas essas vivências e nos mos-tram que é cada vez mais necessário vê-los sob uma ótica diferente e, cabe, agora, deixá-los falar e ouvir-nos o que pensam sobre o lugar em que passam grande parte da vida.

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AFINAL, O QUE DIZEM OS ADOLESCENTES?

Nas escolas, pude constatar que os adolescentes nem sempre querem a desordem e contestar as regras, pelo contrário, alguns emi-tem o desejo de ver todos com uniformes impecáveis, bem limpos e, principalmente, de acordo com a escola, como verifi camos a seguir:

“(...) O problema aqui da escola é que ela é muito de-sorganizada. Eu acho tipo assim, por exemplo: Não pode vir sem tênis. Algumas pessoas entram. Aí tá. A roupa curta. Não sei quem não pode vir. Mas a outra pessoa pode. A pessoa diz que não tem (tênis). Eu acho que todo mundo tem, entendeu? Algumas coisas aqui são muito desiguais!” (A., 14 anos).

A sensação de estar sendo constantemente vigiado e con-trolado se materializa não somente no olhar do professor, mas, também, entre os próprios adolescentes. Eles sabem e legitimam os interesses da escola e validam as punições, principalmente, quando são voltadas para o outro.

Contudo, não podemos acreditar que seja unânime o desejo pela ordem, pois verifi camos alunos que teimam em con-trariar e resistir às normas. Agem como se nada pudesse ocorrer e continuam a ir para a escola sem o uniforme, calças cortadas, bonés ou ouvindo MP10 e celular ao som do funk. Geralmente, provocam os docentes e acabam dirigindo-se à Direção ou a Sala da Orientadora Educacional.

Como professores nos questionamos: por que, afi nal de contas, os adolescentes agem assim? Será que querem sempre afi r-mar a sua identidade contrariando os adultos? Mais uma vez, a res-posta vem deles mesmos. Eles nos dão pistas de que não são corpos dóceis e nunca vão ser; contrariamente, posam de indisciplinados ao mesmo tempo em que reconhecem as normas.

Ouvindo-os através da chamada escuta-sensível (BARBIER, 2004), reconheço que estendem à escola o modo como vivem em seus espaços de origem. É comum para eles ouvir funk, usar boné e outros adereços que mostram o corpo e a mudança por que passam; revelam, pois, o habitus (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2006), do qual partilham nas chamadas comunidades populares. Eles não es-tão alheios à intenção de ver e de ser visto, vivem na escola as experi-

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ências do namoro, do encontro, do corpo que muda e se transforma rumo a adultez. O interesse em se mostrar junta-se a afi rmação de si como diferente do adulto, comum no período da adolescência.

Eles experimentam a lógica disciplinar (FOUCAULT, 2004) da escola, compreendida através do uso dos uniformes, do controle dos tempos, da ordem e das punições, ora legitimando as regras, ora indo contra elas. Não estão alheios ao que se passa, mas são capazes de fazer um uso racional do que é visto como punição.

Em algumas situações, as punições ganham o viés da agres-são física, como pude constatar quando dialogava com um aluno que foi conduzido à sala da Orientação Educacional depois de ter sido visto quebrando a janela da sala de aula. Naquela situação, ele relatou que preferia ser punido pela escola, expondo:

Neguinho começou a guerra de comida ali na semana passada. Aí alguém dedurou. Aí eles disseram que iam pegar lá fora. Mas eles não batem aqui não. Batem lá dentro do morro. Não batem aqui em frente não. Eles esperam lá e quando entramos no morro, eles batem em um lugar quieto. (J., 12 anos)

Na situação relatada pelo aluno é possível notar que saí-mos da linha da indisciplina e partimos para o campo da violên-cia, que se expressa por meio da sociabilidade violenta (SILVA, 2004), uma convivência pautada pelo uso da força, na qual a vítima obedece com medo de sofrer uma futura retaliação física. O autor considera que:

Embora a sociabilidade violenta seja uma característica ge-ral da confi guração social das cidades brasileiras, ela afeta mais diretamente e profundamente as áreas desfavoreci-das, em especial, as favelas, provavelmente em virtude da forma urbana típica desses locais, em geral muito densos e com traçado viário precário, difi cultando o acesso das pessoas que não estão familiarizadas com eles e, portanto, favorecendo o controle dos agentes que lograrem estabele-cer-se neles. (SILVA, 2004, p. 42).

Para ele, embora os moradores das favelas possuam capa-cidade de luta e reivindicação coletiva, estão mais próximos do pa-drão de convivência pautada na sociabilidade violenta, pois vivem

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sob a lei do silêncio, que não somente afasta os que estão de fora, mas, principalmente, limita a comunicação entre os próprios mo-radores. Desse modo, se mantém e se reforça a convivência desses moradores entre uma ordem instituída e uma vida subalterna, que não lhes “permitem apropriar-se coletivamente da outra parte des-sa mesma normalidade cindida” (SILVA, 2004, p.43). Ou seja, os moradores dos espaços populares fi cam afastados não somente da convivência comunitária, mas também do convívio urbano.

Alguns adolescentes moradores desses locais se apropriam da lógica da sociabilidade violenta e passam a se impor aos demais, intimidando e causando medo, principalmente, quando são mais velhos e pertencentes aos anos de escolaridade mais avançados. Quando brigam buscam demarcar, para os demais alunos, a idéia de quem é que manda, pois são mais velhos e mais fortes.

Esses alunos costumam, também, provocar aqueles jovens mais comportados e que não vivem em grupos, como verifi camos:

P: E aí, como é o seu dia na escola?R: Ué. O meu dia na escola é interessante. Eu venho um pouco alegre e faço o dever. Vou para o recreio e vou embora depois.P: Tem alguma coisa ruim na escola?R: Tem. Aqui alguns garotos mexem comigo.P: Por que mexem com você?R: Porque eu não sou de falar muito, por isso eles me-xem comigo.P: E você não mexe com ninguém?R: Não. Eu não sou de briga, por isso eles mexem comi-go, porque eu não sou de briga. Porque se eu fosse de briga eles não mexeriam comigo.P: Você conhece os garotos que são de briga?R: Muitos. (I. 16 anos)

Diante disso, nos questionamos se seriam os rapazes mais violentos? Como poderíamos compreender os sentidos desse comportamento juvenil?

Tigre (2002), ao tentar explicar e compreender porque os estudantes têm se tornado “menos indisciplinados” e “mais vio-lentos”, diz que eles tendem a ser mais violentos “devido às ca-racterísticas de sua faixa-etária somadas aos estímulos propiciatórios oferecidos pela sociedade” (TIGRE, 2002, p.12).

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Segundo ela, os jovens vivem em um contexto social mar-cado por um caráter frio, racional, egocêntrico e voltado para o transitório e para a busca de prazer imediato. Essas característi-cas vão ao encontro de uma crise que não é mais individual, mas também de governos e instituições sociais, que estão marcadas por uma ruptura paradigmática, pela passagem do paradigma da mo-dernidade para o da pós-modernidade. Diante disso, a escola vem encontrando difi culdade em lidar com essa nova realidade, pois não contribui para que os jovens se sintam seguros. Assim, eles não sabem o que devem fazer e nem como devem fazer.

Ao lado disso, segundo os professores entrevistados pela autora, a própria família vem passando por mudanças signifi ca-tivas. Ela não representa mais a segurança para muitos jovens e também acaba por se mostrar afastada da escola, pois não contri-bui para o reforço de valores éticos e nem mesmo para a constru-ção de perspectivas de futuro.

Contudo, outras explicações para o comportamen-to violento do jovem devem ser destacadas, primeiro porque, não somente os adolescentes, mas os adultos vivem o mesmo conjunto histórico. Além disso, a pós-modernidade também provoca a busca da solidariedade e do agrupamento. A inse-gurança juvenil, nesse sentido, não pode ser vista como única justificativa para se compreender porque alguns jovens estão se mostrando violentos na escola.

Deste modo, acredito que o comportamento violento deve ser investigado, tomando por base o desejo de alguns alunos de manter, entre os pares, as estruturas que demarcam oprimidos versus opressores. Com isso, são violentos e buscam impor e con-trolar o outro, principalmente, através do uso da força, de uma idéia de masculinidade e poder.

Todavia, a posição de mais violento/opressor tem um pre-ço. Ou seja, aqueles mais envolvidos com brigas tornam-se os pri-meiros suspeitos pelas confusões e agressões físicas. São, portanto, responsabilizados pelo próprio estigma que criaram para si mes-mos. Eles tendem a se isolar e fi car dentro, resguardados nos pró-prios grupos, pois ninguém quer arriscar-se a se aproximar deles.

Ainda em relação às brigas entre os pares, podemos dizer que nem sempre ocorrem motivadas pelas disputas e duelos entre fortes e fracos, como vemos na próxima entrevista:

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(...)P: Pra você aqui tem violência? R:Tem....P: Como assim?R:Um bate no outro. Os alunos brigam. Puxam cabelo. Brigam lá fora.P: Quem briga mais, os meninos ou as meninas?R:Os meninos.P: Porque eles brigam?R: Sei lá! Por causa de confusão na sala. Aí vai pra fora e briga. Os meninos fazem brincadeiras e acabam brigando. Os meninos brigam por que fazem brincadeira e brigam depois.(B. 12 anos).

Chegamos em outro nível da violência escolar, sendo aquela conceituada como bullyng, um conjunto de situações onde ocorrem constrangimentos e perseguições. A vítima é geralmente humilhada dentro e fora da escola, através de gravações feitas pelo celular e expostas na internet.

Segundo Salles (2007), essas situações ocorrem porque os adolescentes, na escola, interagem com outros que são diferen-tes deles ou de seu grupo de referência, em função, entre outros aspectos, da cor, da sexualidade, da nacionalidade, do corpo, da classe social. Essa interação se dá geralmente pautada por confl i-tos, confrontos e violência.

Normalmente, o bullyng, se propaga conforme não exis-tam medidas contundentes, tanto da escola quanto dos pais, para resolvê-lo. Isso porque são tidos como “coisas de criança” ou brin-cadeiras. Essa violência velada se insere numa linha muito tênue, marcada pela força e pelo lúdico, no qual é comum vermos lutas e socos, que simulam combates e, assim, escondem confl itos.

As meninas também costumam provocar os rapazes atra-vés de apelidos e insinuações, com o desejo de demonstrar um interesse amoroso. Todavia, quando não conseguem, brigam do lado de fora com aquela vista como rival. Essas agressões físicas são relatadas na entrevista:

“Briga não tem. Violência não tem. As brigas geral-mente... As pessoas de longe ficam provocando, às ve-zes são as meninas. Segunda-feira passada elas bri-

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garam ali fora por causa de namorado. Uma brigou com a outra. Geralmente, tem esses tipos de brigas. Quando um mexe com o outro e esse não gostou da brincadeira” (F. 15 anos).

Elas buscam, assim como os rapazes, se impor aos demais, repetindo a cultura do lugar onde moram, em que as pendências se resolvem não pelo diálogo, mas pela briga e discussões fora da escola. O que fi ca é que, tanto os meninos quanto as meninas, se envolvem em confusões e confl itos, pois têm o interesse de mos-trar e dizer que devem ser respeitados por serem mais fortes.

Os problemas vividos pelos jovens e adolescentes também se referem à depredação escolar. Quando indagados sobre possí-veis mudanças nas escolas mostram o interesse de ver janelas no-vas, paredes pintadas, enfi m, uma infra estrutura adequada para estudar, como vemos nas seguintes falas:

“Ah, se eu fosse mudar algo... dá pra mudar tanta coisa! Ai, meu Deus, eu mudaria o banheiro. Ele está muito feio!” (S. 11 anos)

“Se eu fosse mudar, eu ia mudar tudo! Mudava a pin-tura. A única coisa que não gostei foi da janela, porque em dia de frio o vento entra muito na sala e em dia de calor o sol bate muito na cara, não gostei muito daque-la janela não” (H. 11 anos)

“A escola teria que mudar muita coisa. Aqui na escola muita gente estava reclamando muito dos roubos que estavam acontecendo. A primeira coisa que a gente vai mudar é aumentar o muro, colocar mais grades nas ja-nelas e no muro. Uma pintura nova na escola, telhado. A escola está com muito roubo!” (F. 15 anos).

Segundo Charcot (2005), a violência que a escola sofre é cometida não apenas contra o prédio escolar, mas também con-tra os profi ssionais da escola, quando os alunos ou seus familia-res ofendem e agridem professores e demais funcionários. Essas situações nos levam a questionar qual tem sido a imagem que a escola possui para os alunos, bem como para os moradores da vizi-nhança, pois ela acaba sendo um local inseguro, conforme existem

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invasões, bem como um espaço marcado pelo descuido das polí-ticas públicas, que se somam às pichações que os próprios alunos realizam nas paredes das salas de aulas.

Somando-se à violência cometida contra o prédio escolar, alguns alunos relataram também problemas envolvendo a relação com os docentes. As suas falas fazem refl etir sobre outra dimensão da violência na escola, que está permeando o sentimento de indife-rença em relação ao outro e, até mesmo, da ausência de propostas de mediação de confl itos envolvendo alunos, familiares e profes-sores. Sobre isso, gostaria de ilustrar com as seguintes entrevistas:

P: Então, como é o seu dia aqui na escola?R: Até que é bom. A gente zoa, brinca. Engraçado. Tem dia que é horrível. Tem dia que é chato.P: Por quê?R: Porque o professor chega só pra implicar com a gen-te. A “ fulana” é insuportável eu briguei e discuti com ela. A gente fi ca assim: _ Professora, professora. Ela não responde. _ Aí o aluno da frente chama ela vai. Aí eu fi co me estressando com ela e começo a bater boca dentro de sala.(..)P: Já presenciou brigas?R: Já, várias.P: E com o professor. Os alunos brigam com os profes-sores?R: Sim. Discutir então é a coisa que mais tem. Já veio até mãe na escola. A mãe da “ fulana” quase bateu na cara da professora. A professora chamou a mãe do aluno de maluca! De palhaça. Depois que ela chegou perto da coordenadora, disse: _ Eu não falei isso, men-tira! A professora “ fulana” é uma. Eu odeio ela. Ela começou a me empurrar e eu então empurrei ela. Eu falei pra ela: Dá pra senhora parar de me empurrar! (D. 15 anos)(...)P: O que você acha dos professores?R: Tem alguns chatinhos e tem alguns bons. Eu gosto dos professores que conversam com a gente.P: E porque você não gosta de outros professores?R: Porque a professora fulana entra na sala assim ó, virando o olho.P: Como assim?

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R: Ela nem olha pra cara da gente. Um dia fui falar para ela: _ Tia, a minha irmã está internada. Sabe o que ela falou? Ela disse que não queria saber de nada não. Falou assim mesmo! Não vou conversar com você sobre nada. Vou falar sobre o dever!Aí eu falei: Tá bom.Agora o que eu não souber vou pedir explicação para minha irmã ou para minha mãe. Para a professora eu não peço mais. (A. 11 anos).

As falas dos dois alunos nos fazem pensar sobre as tensões que estão permeando a relação professor-aluno como um fator que também pode contribuir para que comportamentos violentos ocorram. Nesse contexto, caberia investigar quais seriam os moti-vos para tais acontecimentos?

Acredito que os problemas entre alunos e professores impli-cam um questionamento complexo, que possa olhar não somente para o problema em si, mas refl etir sobre as situações que podem contribuir para um sentimento de descaso, descuido e indiferença que os professores nutrem pelos alunos. Dentre esses aspectos, gos-taria de destacar pesquisas realizadas, em 2005, pelo Sindicato dos Profi ssionais de Ensino do Estado do Rio de Janeiro sobre a condi-ção de trabalho nas escolas públicas.

Segundo os dados, os profi ssionais de ensino convivem com um cotidiano de desgaste físico, precisam trabalhar em salas lotadas, que os forçam a falar mais alto, por serem ambientes com muitos ruídos. Os docentes vêm sendo vítimas de doenças profi ssionais como LER (lesões por esforço repetitivo), sofrimentos psíquicos, problemas cardiovasculares, alergias diversas, dentre outras, aumen-tando assim o número de profi ssionais readaptados. Convivem com uma sobrecarga de trabalho, precisam se deslocar entre vários luga-res e vêm perdendo prestígio salarial, licença especial, difi culdade em conseguir a aposentadoria, enfi m, direitos trabalhistas.

Dentro da escola, acaba sobrando pouco tempo para se dedicar aos planejamentos das atividades, e constroem discur-sos que tendem, ao máximo, a não se envolver com as questões da escola. Muitos deles acabam sendo também desrespeitados em sua dignidade, contribuindo para que o círculo da violência tenha continuidade, onde junto com os adolescentes vivam dife-rentes imagens da violência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ouvindo os alunos, verifi camos que a violência se apre-senta de diversas formas. A violência é vista através das paredes pichadas, banheiros quebrados, roubos, janelas sem vidro etc.

A meu ver, o aspecto físico depredado fomenta um am-biente sem motivação, sem alegria e sem sentimento de pertenci-mento. Assim, a estrutura da escola pode ser um fator que contri-bui para o sentimento de distanciamento entre as pessoas, dando espaço para atitudes grosseiras e até mesmo violentas como se fos-sem apropriadas para o ambiente vivido.

Os alunos mostraram que as agressões físicas ocorrem a partir de disputas entre os alunos mais velhos e os mais jovens, onde alguns se impõem através de uma suposta ligação com o trá-fi co de drogas. Com isso, faz parte do ambiente escolar a presença de uma ameaça latente, e os alunos têm medo de também serem agredidos fora dela. Ainda, as ocorrências de brigas se dão porque existem disputas de diferentes ordens, conquistadas, majoritaria-mente, através da força física.

Além dessas violências, verifi camos que há, entre os alu-nos, comportamentos que transitam entre a linha tênue da vio-lência e da ludicidade, mostrando-nos que nem tudo que fazem é violência física, mas velada, através de brincadeiras de mau gosto, como eles mesmos referem.

É urgente relativizar a natureza dos acontecimentos, re-conhecendo o que é indisciplina, violência física e bullyng. Esse último, o tipo de violência que mais apareceu no decorrer das entrevistas e observações em ambas as escolas.

Caso contrário, iremos realizar aquilo que socialmente já vem sendo feito, no que se refere à concepção negativa da esco-la situada em periferia, cujo aluno é das classes populares. Eles, embora convivam com a violência do local, apresentaram viver a violência ligada às provocações e perseguições.

Sendo assim, o desafi o que se coloca para a escola é cons-truir estratégias de diálogo com esse segmento, contribuir para o reforço de projetos positivos e a valorização da potencialidade criativa e participativa da juventude.

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Educ. foco, Juiz de Fora,v. 15, n. 1, p. 13-27, mar 2010/ago 2010

Violentos Ou Indisciplinados? Um Estudo Sobre O Comportamento Adolescente Na Escola Pública

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Data de recebimento: Abril 2010Data de aceite: Maio 2010