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VIII Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política Gramado, RS, 01 a 04 de agosto de 2012 Área temática: Política, Direito e Judiciário Para um novo mapa judiciário no Brasil 1 Leonardo Avritzer (UFMG) 2 Marjorie Marona (UFMG) 3 Resumo: As transformações pelas quais passaram estado, sociedade civil e mercado induziram a ampliação da litigação em vários domínios. As dificuldades de oferta da prestação jurisdicional, face o novo cenário, suscitaram as questões da eficiência e acessibilidade dos tribunais, que levaram à inclusão do tema das reformas do judiciário nas agendas políticas dos governos. A redefinição dos territórios da justiça e da estrutura da organização judiciária constituem questões centrais. O presente trabalho aponta para a necessidade da construção de um novo mapa do judiciário no Brasil, que espelhe a ruptura com a ilusão de que o estatuto do direito e da justiça dependem apenas de uma política voluntarista dos atores, desvendando as determinantes sociais e políticas da actividade judicial, a partir da ideia de que a questão da justiça comporta desafios de natureza política, institucional e social. Palavras-chave: Acesso à justiça, Direito e Democracia, Organização da Justiça, Administração da Justiça, Reforma do Judiciário 1 Este artigo aproveita, em grande medida, os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Observatório da Justiça Brasileira, com o apoio da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, sob coordenação do Prof. Doutor Leonardo Avritzer, intitulada Por uma nova geografia da justiça brasileira”. A metodologia utilizada pelo Observatório da Justiça Brasileira remete aos trabalhos desenvolvidos pelo CES/Coimbra, sob coordenação do Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, cedidos por meio de um protocolo de cooperação com o CES/América Latina. 2 Doutor pela New Schol for Social Research, Professor Titular do Departamento de Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB). 3 Doutoranda em Ciência Política (UFMG). Bolsista CAPES, Processo BEX 4759/11-7, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais América Latina (CES/AL) e Observatório da Justiça Brasileira (OJB).

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VIII Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política

Gramado, RS, 01 a 04 de agosto de 2012

Área temática: Política, Direito e Judiciário

Para um novo mapa judiciário no Brasil1

Leonardo Avritzer (UFMG)2

Marjorie Marona (UFMG)3

Resumo: As transformações pelas quais passaram estado, sociedade civil e mercado induziram a ampliação

da litigação em vários domínios. As dificuldades de oferta da prestação jurisdicional, face o novo cenário,

suscitaram as questões da eficiência e acessibilidade dos tribunais, que levaram à inclusão do tema das

reformas do judiciário nas agendas políticas dos governos. A redefinição dos territórios da justiça e da

estrutura da organização judiciária constituem questões centrais. O presente trabalho aponta para a

necessidade da construção de um novo mapa do judiciário no Brasil, que espelhe a ruptura com a ilusão de

que o estatuto do direito e da justiça dependem apenas de uma política voluntarista dos atores, desvendando

as determinantes sociais e políticas da actividade judicial, a partir da ideia de que a questão da justiça

comporta desafios de natureza política, institucional e social.

Palavras-chave: Acesso à justiça, Direito e Democracia, Organização da Justiça, Administração da Justiça,

Reforma do Judiciário

1 Este artigo aproveita, em grande medida, os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Observatório da Justiça Brasileira, com o

apoio da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, sob coordenação do Prof. Doutor Leonardo Avritzer,

intitulada “Por uma nova geografia da justiça brasileira”. A metodologia utilizada pelo Observatório da Justiça Brasileira remete

aos trabalhos desenvolvidos pelo CES/Coimbra, sob coordenação do Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, cedidos por meio

de um protocolo de cooperação com o CES/América Latina. 2 Doutor pela New Schol for Social Research, Professor Titular do Departamento de Ciência Política pela Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB). 3 Doutoranda em Ciência Política (UFMG). Bolsista CAPES, Processo BEX 4759/11-7, pesquisadora do Centro de Estudos

Sociais América Latina (CES/AL) e Observatório da Justiça Brasileira (OJB).

2

Introdução

Em nível global, as transformações pelas quais passaram o Estado, a sociedade e o sistema

econômico, no último século induziram, de certa forma, a ampliação da litigação em vários

domínios, o que veio a se traduzir no aumento exponencial da procura judiciária, um pouco por

todo o lado. As dificuldades de oferta da prestação jurisdicional diante do novo contexto social

suscitaram as questões da eficácia, da eficiência e da acessibilidade ao sistema formal de justiça,

de modo que desde finais dos anos 80, em nível global, as reformas do judiciário passaram a

constituir componentes principais das agendas políticas dos diferentes governos.

As respostas, em geral, têm incluído reformas processuais, reaparelhamento dos tribunais, no

que diz respeito aos recursos humanos e de infra-estrutura, indistintamente, criação de tribunais

especializados e informatização e autonomização da justiça, além da aposta em soluções

alternativas ao modelo formal e profissionalizado da justiça, que, visando a atuar sobre a procura

de tutela judicial, desviando-a dos tribunais judiciais, fez proliferar mecanismos alternativos de

resolução de litígios. Mais recentemente as reformas de organização e gestão da administração

da justiça passaram a constituir um “tópico obrigatório” das agendas de reforma em vários países,

inclusive no Brasil. No entanto, a orientação predominantemente hegemônica das reformas

judiciais acaba por comprometer a refundação democrática do judiciário, de modo que a

redefinição dos territórios da justiça é uma das questões centrais do debate sobre as reformas

judiciais, quando tomado em uma perspectiva contra-hegemônica (SANTOS; 2005, 2007).

O presente artigo insere-se nesse debate e aponta para a necessidade de um novo mapa do

judiciário no Brasil. Constitui o primeiro resultado da pesquisa desenvolvida pelo Observatório da

Justiça Brasileira (OJB), na sequência do itinerário traçado, de modo pioneiro, por Cappelletti e

Garth (1978) e aprofundado pelas inúmeras contribuições de estudiosos do campo das ciências

jurídicas e sociais, nas últimas décadas, com destaque para os diversos trabalhos de Boaventura

de Sousa Santos (1980, 1996, 2003, 2012) sobre os desafios do acesso à justiça em sociedades

contemporâneas.

Mas, mesmo que o foco da questão seja aqui o sistema judiciário formal, longe de um modelo de

abordagem institucional de acesso à justiça, toma-se o direito em uma perspectiva ampliada,

como “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, com base nos quais

uma terceira parte previne ou resolve litígios no seio de um grupo social” (SANTOS, 2012:39,40),

produto de uma “negociação e de um juízo político de sujeitos colectivos” (SOUSA JÚNIOR,

2002:43). Nesse contexto, os tribunais devem se articular em uma rede muito mais ampla de

3

administração do consenso e do dissenso, interindividual e coletivo, no interior de um

determinado território, a partir de um conjunto de regras historicamente estabelecidas.

A partir da demonstração de uma série de mapas, evidencia-se a necessidade de superação do

debate acerca do acesso à justiça a partir da verificação da existência (ou não) de normas

jurídicas, garantidoras de direitos, e a insuficiência da abordagem institucional, assente na

redução do direito ao direito estatal, e restrita aos esforços de superação das dificuldades para

transpor os canais formais de resolução de conflitos. Por fim, em conformidade com a natureza

exploratória da pesquisa sobre a qual assenta o presente trabalho, são apresentadas as

conclusões parciais do estudo, um conjunto de propostas para debate e uma agenda de

investigação sociojurídica.

I. Acesso ao direito e à justiça: o que é e para que serve?

Por um lado, os tribunais são, cada vez mais, espaços privilegiados de definição e

aprofundamento dos direitos dos cidadãos, que se concretizam, em maior ou menor escala, pela

prossecução das funções4 atribuídas ao poder judicial em sociedades contemporâneas. Por outro

lado, o acesso à justiça, que no plano normativo constitucional é direito fundamental de todo

cidadão brasileiro, independentemente de sexo, género, cor de pele, raça, etnia, classe social,

grupo de origem, vê sua possibilidade de concretização condicionada à posição do Estado no

sistema mundial, o que se traduz, muitas vezes, no plano individual, em condicionantes de ordem

socioeconómicas ou identitárias, que fundam estruturas de exclusão e desigualdade social.

Promover o acesso ao direito e à justiça, em toda a amplitude da sua acepção, é reconhecer que

a conversão de um determinado ato ilícito, gerador de dano, em litígio, depende de numerosos e

variados factores, sobre os quais se pretende atuar não apenas para permitir que,

verdadeiramente, o ato violador de uma norma e promotor do dano seja convertido num litígio,

mas também que a esse litígio seja dada uma solução justa, eficiente e eficaz (Santos, 1987;

1996; 2007).

Assim é que se atua em múltiplas dimensões que dão conta desse longo e tortuoso trajeto

através de políticas de (a) informação e divulgação jurídica, que permitam a conscientização dos

cidadãos quanto aos seus direitos; (b) de consulta ou aconselhamento jurídico, que possibilite

que o lesado possa avaliar a forma como o dano pode ser ressarcido; (c) de patrocínio judiciário,

4 Assume-se, no marco teórico de Boaventura de Sousa Santos (1996), que os tribunais exercem funções de três ordens: funções

instrumentais, políticas e simbólicas. Pelo exercício de suas funções instrumentais, os tribunais exercem funções políticas e

simbólicas, isto é, proporciona que campos setoriais de atuação social contribuam para o sistema político e informem o conjunto

das orientações sociais com que os diferentes campos de atuação social contribuem para a manutenção/destruição do sistema

social no seu conjunto.

4

que viabilize que, livre de quaisquer constrangimentos económicos ou sociais o lesado se faça

representar em tribunal por um profissional qualificado apto à defesa dos seus interesses; e, por

fim, (e) de direito a um processo equitativo, que garanta um solução justa, eficiente e eficaz diante

do caso concreto que originou a procura judicial.

O debate em torno das várias dimensões do acesso ao direito e à justiça impõem, de imediato, o

enfrentamento de três fundamentais questões: (1) a multiplicidade de bloqueios de diferente

natureza à sua concretização universalizante; (2) a necessidade de compreensão do sistema de

justiça como um sistema global e integrado de diferentes instâncias de resolução de litígios, que

não se circunscreve aos tribunais judiciais; (3) o impacto que reformas sectoriais da política

pública de justiça têm forçosamente na vertente do acesso.

Em diversos países essas questões têm vindo a ser consideradas no desenvolvimento de

políticas públicas e reformas dirigidas à promoção do acesso ao direito e à justiça, entretanto,

esse conjunto de reformas não foi capaz de colmatar todos os bloqueios que pretendiam eliminar.

O seu objectivo último sempre foi o de dotar o acesso ao direito e à justiça de carácter universal,

mas o seu alcance na prática tem sofrido várias limitações, que revelam, de certo modo, a

necessidade de superação da perspectiva mais redutora do direito e consequente de ampliação

do espectro das políticas públicas do direito e da justiça.

Genericamente, as reformas da justiça na atualidade podem dividir-se em dois campos de luta:

por um lado, um campo hegemônico que reclama uma justiça eficiente, previsível e célere, que

confira estabilidade e segurança jurídica aos negócios e às transacções comerciais; por outro, um

campo contra-hegemônico que exige do direito e dos tribunais a assunção de um papel de

transformação social (SANTOS, 2007). A esses dois pólos opostos correspondem duas

orientações fundamentais no âmbito das quais as reformas de justiça vêm oscilando: uma de viés

mais democrático, que busca promover a igualdade no acesso ao direito enquanto ferramenta

para resposta à necessidade dos cidadãos, e outra de viés marcadamente tecnocrático, que

privilegia a otimização de recursos e coloca a tônica na eficiência e eficácia do sistema judicial,

podendo redundar numa progressiva seletividade da prestação serviços públicos de justiça.

Desse modo, qualquer agenda de reforma da justiça pressupõe a concreta definição e

delimitação das funções dos tribunais, pois só dessa maneira poder-se-á concretizar as

demandas constantes do papel atribuído ao judiciário (ZAFFARONI, 1995). A opção pela

continuidade ou pela ruptura com os atuais modelos organizacionais e territoriais depende,

portanto, e desde logo, da resposta política que se der à questão da manutenção da atual matriz

judicial em que a comarca constitui a unidade de referência ou, ao contrário, da busca de outros

5

patamares territoriais, através da reorganização mais eficaz dos meios auxiliares da justiça, da

introdução de novos mecanismos de administração e gestão dos recursos humanos e materiais e

da especialização dos órgãos judiciais de modo a possibilitar um tratamento diferenciado dos

litígios. Depende, ainda, da construção de um novo paradigma de processo, menos complexo e

burocrático, mais adequado às atuais expectativas dos cidadãos e ao seu tempo social, orientado

pela oralidade, consenso, simplificação dos procedimentos, uso de novas tecnologias,

exemplarmente. Por fim, a agenda estratégica de reforma do sistema de justiça precisa incluir, em

suas linhas mestras, a preocupação com a assunção de uma nova cultura judiciária, o que passa,

necessariamente, pelo desenvolvimento de um novo modelo de seleção e formação dos

operadores do direito, em especial, dos magistrados.

Mas depende, antes, da definição de uma política pública de justiça que assente em um sistema

integrado de resolução de litígios, integrando os mecanismos extrajudiciais e judiciais e também

os mecanismos comunitários. Trata-se, em síntese, de romper com a ilusão de que o estatuto do

direito e da justiça obedecem apenas a uma política voluntarista por parte dos atores em causa,

desvendando, antes de tudo, as determinantes sociais e políticas da atividade jurídica e judicial

(Commaille, 2009).

O presente trabalho, por óbvio, não pretende oferecer respostas a todas as complexas e tão

diversas questões que envolvem o tema da universalização e democratização do acesso à justiça

no Brasil, nem mesmo em seu reduzido aspecto institucional. Muito mais modesta, a análise que

aqui se apresenta assenta em um trabalho de pesquisa que consistiu no levantamento de um

conjunto de dados empíricos, em seis estados-membros da federação5, referentes à estrutura

base do sistema formal de justiça, para que esses dados possam orientar a reflexão acerca da

dinâmica de ampliação da participação dos tribunais na conformação da vida política e social

brasileira. Na esteira de Jacques Commaille (2005) assumimos, portanto, que não é

recomendável instituir políticas públicas no âmbito jurídico, sem o auxílio de uma cartografia

detalhada do universo judiciário.

Não basta um estímulo governamental, uma intervenção do Estado e das autoridades públicas,

seguindo o princípio de uma regulação top down, para que seja efetuado o ajustamento com os

objetivos estabelecidos. A questão do direito e da justiça comporta desafios de natureza política,

5 Realizamos este trabalho em seis estados-membros da federação: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pará,

Pernambuco e Rio de Janeiro. Esses seis estados representam bem a diversidade brasileira, na medida em que estão distribuídos

por quatro regiões que expressam as desigualdades, as variações entre atores sociais e também a concentração de atores

econômicos. Apresentaremos, aqui, o resultado da pesquisa para três estados-membros da federação: Minas Gerais, Rio Grande do

Sul e Pernambuco. Para dois estados e uma Comarca apresentaremos, ainda, dados sobre o uso do judiciário feito por macroatores

importantes, em especial atores estatais e macroatores económicos: Rio Grande do Sul, São Paulo e Belo Horizonte.

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institucional, social e cultural que devem ser considerados antes de ser pretender enunciar aquilo

que deve ser (Commaille, 2009).

II. Estrutura judiciária e cultura jurídica brasileira: as prestimosas lições da história

A trajetória sociopolítica do sistema judicial em qualquer país depende do seu nível de

desenvolvimento econômico e social, pelo condicionamento que exerce na configuração da

litigiosidade judicial. Parece prudente, portanto, que, no âmbito do debate acerca da

democratização do acesso à justiça, o qual passa pela implementação de reformas institucionais

com vistas à modernização e aperfeiçoamento do sistema integrado de justiça, que se atente às

prestimosas lições da história, considerando, especialmente, a condição de colonizado que

qualifica o nosso país, pelas marcas que a perpetuação do colonialismo, enquanto relação social,

ainda faz sentir (Santos, 2004). Nesse sentido, a análise da evolução da organização judiciária

brasileira pode, pela explicitação de seus fundamentos, auxiliar na identificação de um conjunto

de fatores que tem vindo a influenciar a sua evolução, e na colocação crítica da questão da

necessidade de reformulação do modelo de organização judiciária. O mapa judiciário brasileiro se

organizou, desde suas origens, a partir das fortes relações estabelecidas entre o poder político e

o judiciário. A justiça brasileira foi, durante a fase colonial, a “justiça do rei” e o modelo de

organização jurídica que o Brasil herdou de Portugal traduz o desejo de regulação desde cima,

com predominância do Estado (e, nessa fase, do Executivo), condizente com a ideia de justiça

como um atributo das funções soberanas do Estado (encarnadas na figura do Governante, por

muito tempo).

Esse modelo se fez sentir durante a fase colonial pela confusão entre as funções judiciais,

administrativas e políticas e também pela enorme ingerência do poder administrativo sobre o

poder judicial. No final do período colonial a justiça brasileira possuía juízes e tribunais próprios,

mas as instâncias recursais derradeiras ainda estavam em Portugal, o que só veio a ser alterado

pela vinda da família real ao Brasil.

A semente plantada na fase colonial florescia no Império: o modelo de organização judiciária

brasileira atendia aos argumentos típicos da concentração, em que a justiça aparecia com a

função de exercer o poder soberano do Estado, em uma dimensão simbólica, traduzida na ideia

de justiça como uma “encarnação institucional de uma meta-razão” (Commaille, 1990:94),

assente na unidade da jurisprudência e na qualificação técnica dos operadores do direito. Se bem

que ainda subsistiam, nessa fase, os juízes de paz, legítimos representantes da sociedade, a

presidir alguns mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos, bem como instalava-se um

tribunal especial para julgamento dos crimes em geral, composto por membros da sociedade.

7

É que a determinação da Constituição do Império, promulgada em 1824, no sentido de organizar-

se, o quanto antes, um código civil e um criminal, foi apenas parcialmente cumprida. O código

criminal foi promulgado em 1830, e, no seu rastro, foi criado um Conselho do Júri, ou Juízo de

Jurados, que, inspirado no modelo inglês, julgava os crimes em geral. Os jurados eram eleitos

pela Câmara Municipal (60 nas capitais e 30 nas cidades e vilas). O código civil, entretanto, não

seria promulgado até o final do Império, fazendo-se presente tradição jurídica portuguesa,

corporificada na vigência das Ordenações Filipinas, ainda que “atualizada”6 pela inserção de

novos critérios de integração e interpretação tipicamente jusracionalistas, que timidamente a

tingiu com cores iluministas, adaptando-as, sobretudo, aos interesses econômicos das elites

agrárias brasileiras.

Houve, outrossim, uma série de importantes adventos legislativos ao longo do Império, com

destaque para a promulgação de um código comercial, em 1850, e para a promulgação da Lei de

Terras, do mesmo ano, que, com intento de transformar a propriedade rural em verdadeira

mercadoria de livre circulação no mercado, buscou promover uma até então inédita separação

entre as terras públicas e privadas7. Vê-se que, desde o início do Império, os princípios liberais,

tal qual conformados pelas revoluções oitocentistas, foram sendo incorporados no Brasil, na justa

medida em que se adaptassem aos interesses das elites, não favorecendo, portanto, a ampliação

dos correlatos direitos civis e políticos.

Ao longo dos primeiros anos após a Independência não existia, no Brasil, sequer um ambiente

que pudesse propiciar a formação de uma cultura jurídica8 autóctone, o que se deve não apenas

ao fato de que, nesse momento, utilizava-se o Brasil de todo o arsenal jurídico português9, mas

também ao fato de que as universidades brasileiras só foram permitidas a partir de 1808, quando

6 Editada pelo Marquês do Pombal, a lei de 18 de agosto de 1769, alcunhada Lei da Boa Razão, amplamente ancorada num

ambiente cultural iluminista e jusnaturalista, buscava basicamente impor novos critérios de interpretação e integração das lacunas

na lei 7 FONSECA, Ricardo Marcelo (2005). A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil, in Anuario Mexicano de

Historia del Derecho, Mexico, XVII, Instituto de Investigaciones Jurídicas, pp. 97/112. 8 A expressão cultura jurídica é aqui empregada como um conjunto de significados (standards doutrinários, padrões de

interpretação, marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares de concepções

jusfilosóficas) que efectivamente circulem na produção do direito e sejam genericamente aceitos e reconhecidos. Trata-se do

conjunto de padrões e significados que circulam e prevalecem nas instituições jurídicas, e, como tal, é um fato histórico

antropológico que se dá a partir de elementos (humanos, doutrinais, sociais, econômicos, etc.) presentes em uma determinada

sociedade em uma determinada época, nos limites dos aparatos institucionais localizáveis. No dizer de Foucault (sobretudo em A

Ordem do Discurso, traduzido por Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.) trata-se de uma configuração

discursiva, plena de mecanismos de controle, seleção, organização, procedimentos de interdição e de estabelecimento de

privilégios, que só pode ser compreendida dentro de um tempo-espaço determinado. Ver FONSECA, Ricardo Marcelo. Vias da

Modernização Jurídica Brasileira: a cultura jurídica e o perfil dos juristas brasileiros do século XIX, in Revista Brasileira de

Estudos Políticos, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 98, Julho-Dezembro/2008,

pp. 257-293. 9 Logo após a independência do Brasil, em 1822, o novo governo, fruto de uma composição entre as elites brasileiras, a coroa

portuguesa e a Inglaterra, apressou-se em determinar (Lei de 20 de Outubro de 1823) a manutenção da vigência das Ordenações,

leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgados pelos reis de Portugal, enquanto não se organizassem um novo

código civil ou não fosse essa legislação, por outro modo, especialmente alterada.

8

a família real portuguesa estabeleceu-se no país. Até então os filhos das elites brasileiras

buscavam formação superior no exterior e, no caso da formação jurídica, sobretudo na

Universidade de Coimbra10, razão pela qual a quase totalidade dos quadros burocráticos da

esfera jurídica brasileira de então era formada em Portugal11. Ainda na segunda metade do

século XIX vigoravam concepções jurídicas fundadas em um jusnaturalismo de tipo teológico,

pré-liberal. Somente depois da estabilização do Império, na década de 70 do século XIX, é que

iniciou, propriamente, a “ilustração brasileira”, fundada em um ideário positivista-evolucionista de

base racional (VENANCIO FILHO, 1982:75).

Entretanto, o fato de a cultura jurídica brasileira da primeira metade do século XIX ter sido

fortemente conformada por um pequeno grupo de filhos das elites, com formação na

Universidade de Coimbra e um menos influente contingente de estudantes formados a partir da

década de 30 nos incipientes e pragmáticos cursos de direito do Recife e de São Paulo induziu a

que as decisões e posições teóricas fossem influenciadas muito mais por outra sorte de

conveniências do que por uma espécie de cultura jurídica avassaladora, tal como aquela que

invadiu a Europa continental logo no início do século XIX. Desse modo, os princípios liberais, e,

em particular, o valor do individualismo, que lhes dá sustentação, foram, sistematicamente,

retorcidos, dado o modelo de família patriarcal, como base da organização da sociedade

brasileira e pela presença avassaladora da escravidão dos negros africanos durante um longo

período.

De fato, a mitigação do individualismo, pela superestimação de caracteres pessoais, originou

relações sociais que se estabelecem menos em razão de interesses (relações instrumentais, que

pressupõem o valor da igualdade) e mais em razão de afinidades. O personalismo das relações

sociais induz uma visão hierarquizante da sociedade, fundada no prestígio, na distinção social,

que, definitivamente, não concebe o valor da liberdade/igualdade individual. Nesse sentido,

Sérgio Buarque de Holanda12 observa que:

“(…)desse comportamento social, em que o sistema de relações se edifica essencialmente sobre laços diretos, de pessoa a pessoa, procedem os principais obstáculos que na Espanha e em todos os países hispânicos – Portugal e Brasil inclusive -, se erigem contra a rígida aplicação de normas de justiça e de quaisquer prescrições legais”.

10

Entre os anos de 1772 e 1872 passaram pela Universidade de Coimbra 1242 estudantes brasileiros. 11

Os cursos jurídicos foram inaugurados no Brasil em 1827, estabelecendo-se uma Faculdade em Olinda e outra em São Paulo. A

partir daí é que se vai iniciar a lenta e gradual formação de uma cultura jurídica tipicamente brasileira. Entretanto, os cursos

possuíam um viés demasiadamente técnico, pouco teórico, de tal modo que em 1854, quando a Faculdade de Direito de Olinda

transferiu-se para o Recife, uma reforma no ensino tornou obrigatório o ensino do Direito Romano. Ademais, como observou

Clóvis Beviláqua, um dos grandes nomes da chamada Escola do Recife no fim do século XIX e início do século XX, nesses

primeiros anos, os cursos jurídicos de Olinda e São Paulo não passavam de “bisonhos arremedos de Coimbra”, sendo a influência

teórica portuguesa dominante até a metade do século XIX (VENACIO FILHO, 1982:53). 12

HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995) Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 134.

9

A exaltação da personalidade tem fértil ambiente com a generalização da escravidão. Nesse

contexto, a recepção da cultura jurídica moderna europeia, que floresce no norte ainda no século

XVIII, de cunho generalista e formalista, fundada em um tratamento igualitário dar-se-á no Brasil

de modo tardio e mitigado. Paralelamente, e em razão da inexistência de uma relação de

identificação entre as (poucas) garantias judiciais asseguradas pela legislação (estatal) e o

atendimento às necessidades do povo, a maioria dos conflitos não vinha a ser resolvida com base

na legislação oficial do Império, mas ao contrário, sofria forte impacto das presenças

preponderantes da ordem local (familiar, religiosa, moral), dominada pela lógica e interesses dos

proprietários rurais, fortalecidos pela necessidade do governo central de com eles estabelecer

compromissos para fazer alcançar, minimamente, a sua vontade nas províncias e municípios.

A instauração da República, a despeito das descontinuidades que se verificaram, consolidou e

ampliou o modelo concentrado de justiça no Brasil. Durante a República Velha (1889-1929), o

poder judiciário estava à mercê do controle oligárquico: a inexistência de garantias de

vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos juízes estaduais era parte do

compromisso coronelista (LEAL, 1975). A organização do judiciário possibilitava o controle local

das nomeações, facilitando o processo de adequação das instituições políticas importadas às

condições nacionais e impedindo a vigência das liberdades políticas e civis no país (VIANNA,

1967; FAORO, 1987). Os interesses particulares (das oligarquias locais) determinavam, portanto,

a relação dos juízes, promotores, serventuários e delegados “no generalizado sistema de

compromisso do coronelismo” (LEAL, 1975 apud KOERNER, 1994)13.

O processo de formação do estado nacional, a partir de suas raízes coloniais, ao longo do

Império (1882-89) e da chamada República Velha (1889-1930), entretanto, passou pela

racionalização da administração pública que se consolidou e se atualizou, em um movimento que

se deu de forma lenta e superficial nos primeiros cem anos de história do Brasil independente,

mas encontrou seu ponto de inflexão e aceleração na Revolução de 1930 (COSTA, 2008). De

fato, o governo de Getúlio Vargas iniciou uma série de mudanças que tinha na racionalização

burocrática do serviço público - por meio da padronização, normatização e implantação de

mecanismos de controle - uma de suas vertentes principais. No entanto, o conjunto de programas

13

No âmbito da justiça estadual, a divisão social do trabalho jurídico pesava sobre os juízes leigos ou temporários (juízes de paz,

juízes municipais, substitutos e jurados), os quais não tinham formação profissional e nem liberdade individual para exercer as

funções judiciárias; os juízes de direito possuíam melhor formação, pois bacharéis, mas não gozavam de autonomia, sendo

controlados por meio da intimidação e do favorecimento. O poder judiciário federal, por sua vez, teve suas características

institucionais determinadas pelo sistema de compromisso da política dos governadores, estabelecida por Campos Salles, em 1900.

No jogo de troca de apoio entre o governo federal e as oligarquias estaduais - reconhecidas como sujeitos privilegiados para as

alianças de nível federal – manter o controle sobre os cargos de ministros do Supremo Tribunal Federal e dos juízes federais

(seccionais) era muito importante para as oligarquias estaduais, devido as atribuições constitucionais, pois os juízes federais

julgavam os conflitos entre a União e os Estados e os crimes políticos.

10

e ações de modernização da administração pública não ecoaram no âmbito do judiciário

brasileiro.

Não se chega a generalizar o modelo burocrático do juiz funcionário do estado, encarregado da

aplicação da legislação posta pelo Legislativo, induzindo uma organização de forma

hierarquizada, de raiz administrativa, ou de carácter burocrático. De fato, a busca de uma maior

profissionalização do serviço público, a instituir os concursos públicos como principal mecanismo

de seleção no Brasil, exigindo-se a apresentação de conhecimentos técnicos específicos que

deveriam ser aferidos, evitando o alinhamento meramente político dos juízes a determinados

interesses, atingiu somente o acesso aos graus inferiores de jurisdição, no âmbito da justiça nos

estados14.

Foi consagrado, paralelamente, o conjunto de garantias dos magistrados – vitaliciedade,

inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos – e ampliou-se a autonomia administrativas dos

tribunais. Proibiu-se os magistrados de realizarem qualquer atividade político-partidária e de

acumularem funções públicas (exceto o magistério), em um claro movimento de neutralização

política do judiciário. A adoção de um modelo organizacional tipicamente liberal, assente em uma

atuação neutra do ponto de vista político, em um contexto de ausência generalizada de uma

cultura cívica, favoreceu o florescimento de uma prática corporativista e autoritária dos membros

do judiciário brasileiro, a qual, a despeito da inflexão que sofreu com a promulgação da

Constituição da República de 1988 (CRFB/88), e as posteriores reformas institucionais do

judiciário, consolidou-se como a pedra angular da cultura jurídica brasileira.

A CRFB/88 contém uma ampla regulamentação do Poder Judiciário brasileiro, determinando a

estrutura, a organização, os princípios gerais e a fixação de competência para juízes e tribunais15.

A complexa estrutura judiciária brasileira é frequentemente apontada como causa da lentidão e

ineficiência na prestação do serviço jurisdicional. E foi esse o argumento cerne, mobilizado pelo

pelos esforços reformistas que, no Brasil, remontam à década de noventa do século passado.

A reforma, entretanto, assumiu outros contornos, obscurecidos pelo discurso da ineficiência: o do

controle político institucional sobre o judiciário. Constituiu-se em uma reação ao desenho

institucional constitucional inaugurado em 1988, por via do estabelecimento de mecanismos de

14

E mesmo nos estados, o acesso às jurisdições superiores (Cortes de Apelação), as quais possuíam competência normativa,

administrativa e disciplinar, mantinha-se alheio aos perigos que a igualdade de oportunidades, gerada pelo concurso público,

poderia oferecer. A fórmula acomodou as elites locais, permitindo, inclusive, acesso direto aos Tribunais, ainda que em regime de

exceção, por meio do chamado quinto constitucional, resolvendo, ademais, o problema da cobertura integral do território do

estado, por meio do envio de juízes recrutados mediante concurso público para as localidades mais longínquas. 15

O constituinte dedicou 35 artigos (art.92 a 126) ao Capítulo intitulado “Do Poder Judiciário”. Além disso, o Capítulo IV (Das

Funções Essenciais à Justiça) conta com mais oito artigos que tratam do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Advocacia

Privada e da Defensoria Pública.

11

controle compatíveis com o auto grau de independência que a Carta Constitucional havia

proporcionado ao judiciário.

De fato, o novo quadro normativo constitucional possibilitava que o judiciário brasileiro avançasse

na (re)definição de políticas públicas, rivalizando, muitas vezes, com maiorias Congressuais

duramente negociadas pelo Executivo. A judicialização do conflito social, protagonizada por

movimentos sociais e grupos de interesse, ao eleger, sistemática e estrategicamente, o judiciário,

como o local institucional mais favorável para contestação das políticas públicas, evidenciou-se

durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso.

Os tribunais foram sistematicamente convocados por atores externos para julgar todas as

principais políticas públicas (especialmente as de cariz reformista neoliberal) adotadas pelo

Executivo e seus aliados no Congresso, através do recurso ao questionamento metódico acerca

da constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público. Os tribunais dificultaram a

realização de leilões de privatização e intervieram nas reformas tributária e previdenciária, dentre

outras. Foi nesse contexto, em que o judiciário brasileiro despontava como um ator político novo e

poderoso, desdobrado em comarcas, seções e subseções judiciárias pelo Brasil afora, que se

formou o consenso governativo em torno da necessidade de reforma judicial, a ser realizada em

nome das estratégias do governo para a reforma do Estado.

Desse modo, os debates acerca da reforma do judiciário passaram ao largo de questões

referentes à universalização do acesso ou democratização da justiça. Pior: o discurso acerca da

necessidade de controle público externo sobre a atividade jurisdicional, foi reduzido ao aspecto

político institucional e materializado na criação do Conselho Nacional de Justiça16, sustentado em

uma forte campanha de descrédito das instituições judiciárias, pela exploração midiática de

inúmeras irregularidades e processos de corrupção no interior dos tribunais.

O resultado é que a estrutura rígida e hierárquica do judiciário brasileiro não foi alterada e pouco

se avançou em temas que pudessem induzir o surgimento de uma cultura jurídica crítica, tais

como os modelos de recrutamento e selecção dos magistrados. Ao contrário, reafirmou-se o

modelo concentrado de justiça que alinha às perspectivas hegemônicas de reforma, assente

16

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem, atualmente, competência precípua de governo do judiciário e assume, por vezes, a

condição de órgão propositor e executor de políticas públicas de justiça (SANTOS, 2007). Contudo, dada a autonomia

administrativa e financeira dos tribunais estaduais, cada um deles possui regras próprias de ocupação dos cargos de direção

administrativa, no âmbito dos quais o governo e a gestão do judiciário se realiza autonomamente, em cada estado-membro da

federação.

12

naquele arquétipo judicial da modernidade ocidental, fundado em uma teoria da separação dos

poderes que conformou a organização do poder político de modo a neutralizar o judiciário17.

Também os modelos de governo e gestão instituídos a partir da reforma espelham, em grande

medida, as exigências de neutralidade, tipicamente liberal, como base da legitimidade dos

tribunais. Em contrapartida, as mutações na sociedade, designadamente pela complexificação

das relações sociais, que colocam os tribunais diante de um conjunto novo de desafios,

convocam a necessidade de estarem eles aptos a resolver conflitos que envolvem questões de

princípios, problemas que são, fundamentalmente, políticos.

A busca por novos modelos estruturais, e de governo e gestão dos tribunais é parte integrante de

um desafio mais amplo, qual seja, a construção de um sistema integrado de resolução de litígios

que assente na promoção do acesso ao direito pelos cidadãos e permita vencer as barreiras

sociais, econômicas e culturais que obstem à sua resolução. No interior de um sistema integrado

de resolução de conflitos sociais, construído pelos esforços conjugados de Estado e sociedade

civil, a pluralidade de mecanismos alternativos de resolução de litígios, pode tanto consistir em

alternativas aos tribunais judiciais, resolvendo litígios que os tribunais também dirimem, ou em

seu complemento, para litígios que nunca chegariam aos tribunais, ou, ainda, em seu substituto,

quando se verifica a transferência de competências de resolução de litígios dos tribunais para

estes meios.

O que importa é que a terceira parte escolhida pelo cidadão para resolver o seu litígio não lhe

deve ser imposta pelas estruturas sociais, mas ao contrário, deve corresponder ao meio mais

acessível, próximo, rápido e eficiente de tutela dos seus direitos. Um tal sistema integrado de

resolução de litígios demanda a conformação de uma política pública de justiça que inclui os

tribunais judiciais e o denominado pluralismo jurídico18, isto é, que reconhece também aos meios

não judiciais que o Estado e a sociedade geral, informalmente ou formalmente, legitimidade para

dirimir litígios.

17

Sobre a neutralização política do judiciário no Estado Liberal ver Campilongo, 1994; Ferraz Jr., 1994. 18

Alinhados a Boaventura de Sousa Santos propomos uma concepção de pluralidade de ordens jurídicas que se contrapõe à

tendência romântica de grande parte do pensamento jurídico pluralista para equiparar todas as ordens jurídicas existentes numa

determinada unidade geopolítico e, portanto, negar o primado do direito estatal nas formações sociojurídicas modernas. Entende-

se que a pluralidade de ordens jurídicas em circulação na sociedade hoje é mais complexa do que nunca, considerando que ao lado

das ordens jurídicas locais e nacionais estão a surgir ordens jurídicas supranacionais que interferem de múltiplas formas com as

anteriores. Trata-se de imperativos jurídicos concebidos pelos estados hegemônicos, por agências financeiras multilaterais ou por

poderosos atores transnacionais (empresas multinacionais), sobretudo na área económica, e impostos globalmente, principalmente

a países periféricos e semiperiféricos do sistema mundial. Não pressupõe, ademais, que haja algo de intrinsecamente bom,

democrático e progressista ou emancipatório no pluralismo jurídico. É preciso estar atento para o fato de que há ordens jurídicas

não estatais que são mais despóticas do que a ordem jurídica estatal do país em que operam e que, por isso, a ideia de pluralidade

jurídica não tem um conteúdo fixo. O valor despótico ou democrático de determinada ordem jurídica está relacionado não só com

a posição do país no sistema mundial, mas também com as especificidades históricas da construção ou da transformação do

Estado.

13

Nas palavras de Commaille (2009:97): “A justiça enquanto instituição encontra-se confrontada

com a obrigação de se submeter às contingências e admitir que são os agentes inscritos nos

territórios específicos que determinam uma definição dos problemas e uma nova coordenação

das instituições públicas”. A territorialidade, no seu sentido pleno, diz com a adaptação da

resposta judicial aos lugares e às pessoas, tendo em conta às funções a que os tribunais são

chamados a exercer no interior de um sistema integrado de justiça.

Entretanto, as regras definidoras das jurisdições e repartição das competências são, elas

mesmas, um importante fator de seletividade e conformação da litigância processual. A

modificação dessas regras implica, por vezes, que um número imenso de casos possa ser

transferido de uns tribunais para outros, para mecanismos alternativos de resolução de litígios

judiciais, ou, ainda, para outras vias de resolução dos casos que não o recurso aos tribunais.

Existe, portanto, uma tensão inevitável entre o critério idealizado da seleção e repartição na

entrada dos processos no sistema judicial e as funções que os tribunais são chamados a exercer,

nas sociedades contemporâneas.

III. Geografia da Justiça a partir da análise de mapas: inclusões e exclusões estruturais

A organização interna dos tribunais brasileiros é fixada pelos próprios tribunais, em seus

respectivos Regimentos (art. 96, I, a, da CRFB /88), considerando-se, no caso da justiça estadual,

a estrutura fundamental estabelecida nas respectivas Constituições Estaduais, bem como nos

Códigos de Organização e Divisão Judiciária de cada estado-membro. Isso porque os estados-

membros possuem competência para organizar seu respectivo sistema judiciário (art. 125 da

CRFB/88), observados os princípios comuns inscritos na Constituição da República. O modelo

fornecido pela CRFB/88 compreende a existência de um Tribunal de Justiça em cada estado-

membro, com competência definida na respectiva Constituição estadual, e organização e divisão

judiciária baseada em comarcas, que podem abranger um ou mais municípios19.

Portanto, para efeitos da administração da Justiça Comum Estadual20, o território de cada estado-

membro da federação é dividido em Comarcas, as quais estão distribuídas de forma desigual pelo

território. É nas comarcas que se encontram os principais serviços jurisdicionais

institucionalizados e profissionalizados. Os demais distritos, subdistritos e divisões administrativas

criadas em cada estado-membro estarão vinculados a determinada comarca, situada em um

19

No âmbito das Comarcas pode haver apenas uma vara, com competência ampla para todas as matérias, ou várias varas,

especializadas por matéria (Varas Cíveis, Criminais, de Execução Penal, do Tribunal do Júri, de Família, de Sucessões, de

Falências e Concordatas, Agrárias, da Fazenda Pública e os Juizados Especiais, para causas de menor complexidade). 20

A justiça comum estadual é a grande “porta de entrada” do judiciário brasileiro. Embora possua competência residual é na

justiça comum que a maior parte dos conflitos sociais cotidianos, caso juridicizados, vai encontrar acolhida. As justiças

especializadas (Trabalho, Eleitoral e Militar) têm a competência definida em razão da matéria. Já a justiça federal comum, grosso

modo, julga os casos que envolvem os interesses da União Federal.

14

município “sede”. Os municípios, portanto, são considerados “sede de comarca”, para os fins aqui

pretendidos, quando possuem algum serviço jurisdicional institucional profissionalizado.

As leis estaduais de organização e divisão judiciárias determinam os limites geográficos de cada

comarca. Nessas leis são definidos os critérios e requisitos para que os municípios sejam

considerados sede de comarcas. Designadamente, nos estados-membros analisados os

critérios/requisitos são os que seguem.

Quadro 1: Critérios e Requisitos para a criação de comarcas judiciais, por Estado-membro da Federação

Estados

Requisitos para criação de Comarcas

População e

Eleitorado

Movimento Forense

(anual) Receita Tributária Municipal

Minas Gerais 18 mil habitantes;

3 mil eleitores 400 feitos judiciais --

Pernambuco 20 mil habitantes;

6 mil eleitores 300 feitos judiciais

Igual a exigida para a criação

de municípios

Rio Grande do Sul 20 mil habitantes;

5 mil eleitores 300 feitos judiciais

Igual a exigida para a criação

de municípios

Fonte: Código de Organização e Divisão Judiciária de Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul

Não há grande variação. Atende-se ao volume populacional (e amplitude do eleitorado), e ao

volume de processos, a indicar a movimentação forense anual. Em Pernambuco e no Rio Grande

do Sul considera-se, ainda, a receita tributária municipal. Os critérios legais não condizem com

um modelo de justiça de proximidade: não há qualquer indicador que aponte para a idéia de que

a justiça participa da noção de espírito público, o que justificaria a existência de jurisdição (com a

correlata estrutura burocrática) mesmo nas pequenas aglomerações populacionais,

exemplarmente.

Ao contrário, os critérios básicos de organização da justiça estadual nos estados deixam antever

a preocupação com a racionalização econômica do sistema de justiça, otimizando, de um ponto

de vista quantitativo, a atividade das várias jurisdições, para evitar a existência de jurisdições sem

processo. Daí porque a implantação de uma determinada comarca demande um volume mínimo

de feitos judiciais anuais, mas não haja qualquer referência na lei acerca do tipo de feito, da

natureza do litígio. Tampouco há referência legal a existência (ou não) de outras instâncias de

resolução de conflitos (igrejas, associações de bairro, profissionais da área do direito, da saúde,

assistentes sociais). Não há, por fim, referência à necessidade de análises de tipo socio-

econômico antes da instauração de uma comarca judicial ou um tribunal.

15

Considerando o número total de municípios de cada um dos estados-membros e, observando os

critérios legais para implementação de comarcas judiciais, observa-se que em Minas Gerais e no

Rio Grande do Sul menos da metade dos municípios são sede de Comarca. As estruturas

permanentes de prestação jurisdicional estatal, formal, profissionalizada, estão alocadas da

seguinte forma: dos 853 municípios mineiros, apenas 320 são sede de comarca (38% do total); e

dos 496 municípios gaúchos, apenas 164 são sede de comarca (33% do total).

Mapa 1: Organização Judiciária: Minas Gerais Mapa 2: Organização Judiciária: Rio Grande do Sul

Fonte: IBGE e COJE Fonte: IBGE e COJE

Em Pernambuco a realidade é outra: dos 185 municípios pernambucanos, 152 são sede de

comarca, o que equivale a 82% do total.

Mapa 3: Organização Judiciária: Pernambuco

Fonte: IBGE e COJE

A primeira observação que pode ser feita, em um esforço analítico exploratório, com objetivo de

identificar as questões, as tensões e as possíveis soluções acerca da organização judiciária no

Brasil, é que, embora os critérios normativos para instalação das comarcas judiciais não variem

substancialmente de um estado-membro para outro, na prática, o Poder Judiciário não está

16

organizado de forma igual no território, que, por sua vez, também não é estruturado

homogeneamente.

A miopia sócio-econômica que permeia o modelo de organização judiciária no Brasil resulta em

inevitáveis e sistemáticas exclusões de atores e demandas se impõem, de modo que nem todos

os conflitos sociais, econômicos e políticos que têm lugar no território são processados pelo

Poder Judiciário, e tampouco são canalizados pelo Estado para vias alternativas de resolução de

conflitos sociais.

Por outro lado, quando efetuamos o cruzamento de um dos critérios normativos para instalação

de comarcas – densidade populacional – e a distribuição dos municípios sede, observamos que

em aproximadamente 40% dos casos a população do município sede de comarca é atualmente

menor do que a exigida em lei para a referida instalação da comarca.

Em Minas Gerais, 37,5% dos municípios sede de comarca têm, atualmente, população inferior ao

que é exigido por lei para sua instalação, o que corresponde a 120 municípios.

No Rio Grande do Sul, pouco mais de 37% dos municípios sede de comarca têm, atualmente,

população inferior ao exigido por lei para sua instalação, o que corresponde a 61 municípios.

Mapa 4: Sede de Comarca X População (MG) Mapa 5: Sede de Comarca X População (RS)

Fonte: IBGE e COJE

Em Pernambuco a realidade não é muito diferente: 37,5% dos municípios sede de comarca têm,

atualmente, população inferior ao exigido por lei para a sua instalação.

17

Mapa 6: Sede de Comarca X População (PE)

Fonte: IBGE e COJE

Os dados apontam, mais uma vez, para a inadequação dos critérios legais. Em primeiro lugar

porque ainda que se considere acertada a verificação de uma densidade populacional mínima

para a instalação de uma comarca, na linha de um processo de racionalização da prestação

jurisdicional, é preciso ter em conta fenômenos de mobilidade populacional.

Em segundo lugar, assumindo agora pressupostos de uma justiça de proximidade, deve-se

considerar que se a justiça participa da vida social deve haver jurisdição efetiva mesmo nas

pequenas aglomerações populacionais, ainda que ela não seja directamente prestada pelo

Estado, via judiciário.

Por fim, ao relacionar a divisão judiciária com variáveis empíricas que diagnosticam a

desigualdade entre a população, medida pelo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH,

observamos a inadequação flagrante dos critérios legais estabelecidos21.

Quadro 2: Intervalos do Índice de Desenvolvimento Humano por estado-membro

UF/Intervalos

IDH 2000

Intervalo 1

Max.-Min.

(cor azul)

Intervalo 2

Min.

(cor verde)

Intervalo 3

Min.

(cor amarelo)

Intervalo 4

Min.

(cor laranja)

Intervalo 5

Min.

(cor vermelho)

Minas Gerais 0,841-0,77 0,744 0,708 0,668 0,568

Rio Grande do Sul 0,87-0,817 0,798 0,777 0,754 0,666

Pernambuco 0,862-0,669 0,633 0,604 0,581 0,467

Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)

21

O IDH, ainda que não seja o melhor índice possível para determinar a distribuição da desigualdade no território, é o mais

utilizado. Foram utilizados diferentes intervalos de IDH (respeitando as particularidades de cada Estado), os quais foram medidos

a partir de uma distribuição estatística (quintil), que dividiu os municípios em um conjunto ordenado de IDH em cinco partes

iguais. Assim, a distribuição do IDH corresponde à realidade de cada Estado, sendo o primeiro intervalo correspondente aos 20%

de munícipios com IDH mais alto no Estado e o quinto intervalo corresponde aos 20% dos municípios com IDH mais baixo no

Estado.

18

Na confecção dos mapas, cada intervalo foi relacionado a uma cor específica, de modo que os

mapas têm uma mesma identidade visual. A distribuição a partir do quintil possibilitou analisar, na

comparação com a divisão judiciária, se há ou não variação na distribuição do IDH.

Ou seja, tendo uma distribuição igual em cinco partes no IDH nos municípios, pode-se observar

se essa distribuição sofre alguma variação quando filtramos pela divisão judiciária (municípios

sede de comarcas e municípios não sede), e com isso verificar se há alguma relação entre a

desigualdade social (medida pelo IDH) e a ausência ou presença de estruturas jurídicas (divisão

judiciária).

Para isso, foram feitos, para cada Estado, dois mapas que correspondem: ao IDH somente das

sedes; e ao IDH somente dos municípios não sede. Do total de municípios sede de comarca, em

Minas Gerais, 62% possuem IDH alto (Mapa 7, à esquerda), enquanto do total de municípios não

sede de comarca , apenas 25% possuem alto IDH (Mapa 7, à direita).

Mapa 7: Minas Gerais - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca

Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)

Do total de municípios sede de comarca, no Rio Grande do Sul 52% possuem IDH alto (Mapa 8, à

esquerda), enquanto do total de municípios não sede de comarca , apenas 29% possuem alto

IDH (Mapa 8, à direita).

19

Mapa 8: Rio Grande do Sul - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca

Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)

Do total de municípios sede de comarca, em Pernambuco, 42% possuem IDH alto (Mapa 9, à

esquerda), enquanto do total de municípios não sede de comarca , apenas 24% possuem alto

IDH (Mapa 9, à direita).

Mapa 9: Pernambuco - Organização Judiciária X Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca

Fonte: PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano, 2000)

O que se observa, ao contrastar a divisão judiciária com o indicador de desigualdade no território

dos estados-membros analisados é que as estruturas permanentes do poder judiciário se

concentram, sobremaneira, nos municípios com melhores índices de desenvolvimento,

reforçando, portanto, o modelo de distribuição desigual de acesso aos bens e serviços públicos,

no interior dos territórios.

20

Por outro lado, ainda que tomemos como dado o modelo concentrado de organização judiciária e

assumamos a impossibilidade de estender a todos os mais longínquos povoados brasileiros a

estrutura física do poder judiciário, lotando, pelo menos, um juiz em cada município, seria

fundamental, mesmo dentro da lógica da delegação, que a Defensoria Pública se fizesse

presente, considerando sua missão institucional de garantir assistência jurídica integral, gratuita,

judicial e extrajudicial, aos mais necessitados, prestando-lhes a orientação e a defesa em todos

os graus e instâncias, de modo coletivo ou individual, priorizando a conciliação e a promoção dos

direitos humanos.

A partir da Emenda Constitucional n° 45, de 2004, as Defensorias Públicas estaduais ganharam

autonomia funcional e administrativa. Cada estado-membro da federação é responsável por lei

que dispõe sobre sua organização, desde que em consonância com a lei complementar n° 80, de

2004, recentemente alterada. Segundo a lei estadual complementar 65/2003, que dispõe sobre a

organização da Defensoria no Estado de Minas Gerais, “é obrigatória a instalação de Defensoria

Pública em todas as comarcas do Estado” (art. 41).

No entanto, podemos observar (Mapas 10 e 11) que ainda é baixa a presença de Defensoria

Pública nos municípios mineiros, e que sua distribuição não atende especificamente à

obrigatoriedade citada. Em Minas Gerais, apenas 399 municípios contam com serviços da

Defensora Pública, o que representa 47% do total dos municípios mineiros (em verde).

Mapa 10: Defensoria Pública em Minas Gerais – distribuição no território

Fonte: IBGE e Legislação Estadual

Ademais, a Defensoria Pública mineira está presente em 195 das 320 comarcas do estado, o que

representa 61% dos municípios sede de comarca (à esquerda, mapa 11). Considerando os

municípios não-sede de comarca o percentual cai para 38%, com apenas 204 municípios que

21

contam com estrutura da defensoria (à direita, mapa 11).

Mapa 11: Defensoria Pública em Minas Gerais X Divisão Judiciária

Municípios Sede de Comarca Municípios Não-Sede de Comarca

Fonte: IBGE e Legislação Estadual

Isso indica, mais uma vez, a inadequação dos parâmetros legais de organização judiciária à

realidade territorial. A situação de Minas Gerais é exemplar. Do total de 853 municípios mineiros:

329 municípios não possuem instalações permanentes do judiciário (fórum) e nem Defensoria Pública, o que representa 38,5% do total de municípios mineiros;

204 municípios não possuem instalações permanentes do judiciário, mas contam com Defensoria Pública, o que representa 23, 9% do total de municípios mineiros;

125 municípios possuem instalações permanentes do judiciário, mas não contam com Defensoria Pública, o que representa 14,6% do total de município mineiros;

195 municípios, apenas, possuem instalações permanentes do judiciário e também contam com a presença da Defensoria Pública em seu território, representando 22,8% do total de municípios mineiros.

Ademais, ao filtrarmos a presença da Defensoria Pública no território de Minas Gerais pelo IDH

dos municípios mineiros, observamos situação muito similar a que já havíamos constatado no

caso da divisão judicial, isto é, existe uma concentração da presença da instituição nos

municípios que apresentam os mais altos níveis de IDH.

Do total de municípios que possuem Defensoria Pública instalada, 45% possuem índices de

desenvolvimento humano elevados para os parâmetros estaduais (nível de IDH no primeiro e

segundo intervalos - cores azul e verde, no Mapa 13).

22

Mapa 13: Defensoria Pública em Minas Gerais X Índice de Desenvolvimento Humano

Fonte: IBGE e PNUD (2000)

Esse mapa se assemelha àquele dos municípios sede de comarcas (Mapa 7), apesar da relação

entre a desigualdade social e presença de Defensoria Pública ser menos intensa do que aquela

encontrada entre a desigualdade social e a divisão judiciária. Essa relação, no entanto, se

intensifica quando dividimos a presença e/ou ausência de Defensoria Pública entre os municípios

sede de comarcas e municípios não sede de comarcas, conforme se observa do Quadro 3.

Quadro 3: Distribuição do IDH entre Sede de Comarcas e Não Sede de Comarcas e existência de Defensoria

Pública

Municípios/IDH Sede de Comarca Não-sede de Comarca

Com Defensoria Sem Defensoria Com Defensoria Sem Defensoria

Intervalo 1 96(49%) 28(22%) 9(4%) 36(11%)

Intervalo 2 40(21%) 36(29%) 35(17%) 56(17%)

Intervalo 3 27(14%) 26(21%) 55(27%) 67(20%)

Intervalo 4 17(4%) 15(12%) 57(28%) 77(23%)

Intervalo 5 15(8%) 20(16%) 48(24%) 93(28%)

Fonte: Munic, IBGE(2009) e Lei de Divisão Judiciária do estado de Minas Gerais

Vê-se que dos 336 municípios concentrados nos intervalos 1 e 2 (altos índices de IDH para os

parâmetros estaduais), apenas 136 possuem tanto estruturas permanentes do judiciário quanto

defensorias públicas (40,5%). Por outro lado, dos 342 municípios concentrados nos intervalos 4 e

5 (baixos índices de IDH para os parâmetros estaduais), apenas 32 possuem instalações

permanentes do judiciário e da defensoria pública (9.35%).

23

Ademais, dentre os municípios com maiores índices de desenvolvimento humano (Intervalos 1 e

2), 92 não possuem nem fóruns nem defensoria pública (27.3%). Ao analisarmos os municípios

concentrados nos intervalos 4 e 5 (baixos índices de IDH para os parâmetros estaduais) esse

número sobe para sobe para 170 municípios (49,7%). Pode-se, portanto, concluir que as

variáveis sede de comarca com Defensoria Pública e não sede de comarca sem Defensoria

Pública reforçam as análises realizadas na relação entre a desigualdade social (medidas pelo

IDH) e a ausência ou presença de estruturas administrativas do sistema de justiça (verificada pela

divisão judiciária).

Designadamente, no caso das Defensorias Públicas, pode-se mesmo afirmar que quanto maior o

IDH, maior a presença de Defensorias Públicas e quanto menor o IDH menor a presença de

Defensorias Públicas. Além disso, a associação entre a presença de Defensorias Públicas e

municípios sede de comarcas faz intensificar a relação entre altos índices de desenvolvimento

econômico e a presença de estruturas administrativas do sistema de justiça.

Reflexões Finais

As transformações pelas quais passaram Estado, sociedade e o sistema económico induziram

uma explosão de litigiosidade que evidenciou as dificuldades de oferta da prestação jurisdicional

diante desse novo contexto social e suscitou debates em torno das questões da eficácia,

eficiência e acessibilidade do sistema de justiça.

As respostas, que em geral têm incluído reformas processuais, reaparelhamento dos tribunais, no

que diz respeito aos recursos humanos e de infra-estrutura, indistintamente, criação de tribunais

especializados e informatização e autonomização da justiça, além da aposta em soluções

alternativas ao modelo formal e profissionalizado da justiça, e reformas de organização e gestão

da administração da justiça, passaram a constituir uma das principais apostas das agendas de

reforma em vários países, inclusive no Brasil.

No âmbito destas medidas de caráter organizacional, a redefinição dos territórios da justiça e da

estrutura da organização judiciária constituem questões centrais do debate sobre o sistema de

administração da justiça, induzidas pelo descompasso entre o processo de desenvolvimento

sócio-econômico e de mutação do território que provocam profundas assimetrias na busca pela

prestação jurisdicional. No entanto, tais questões parecem ter passado ao largo do debate que

culminou com a reforma do judiciário no Brasil, que teu seu marco institucional na Emenda

Constitucional 45/2004.

24

Em verdade, a opção pela continuidade ou ruptura com os atuais modelos organizacionais e

territoriais da justiça depende, desde logo, da resposta política que se der à pergunta sobre se

quer-se manter ou não a atual matriz judicial em que a comarca constitui a unidade de referência

ou, ao contrário, se quer-se procurar outros patamares territoriais, através da reorganização mais

eficaz dos meios auxiliares da justiça, da introdução de novos mecanismos de administração e

gestão dos recursos humanos e materiais e da especialização dos órgãos judiciais de modo a

possibilitar um tratamento diferenciado dos litígios.

Mais: é preciso definir uma política pública de justiça que não dependa tanto dos tribunais, mas,

ao contrário, assente em um sistema integrado de resolução de litígios, ampliando os

mecanismos extrajudiciais. A agenda estratégica de reforma do sistema de justiça precisa incluir,

em suas linhas mestras, a criação de uma nova cultura judiciária, o que passa, necessariamente,

pelo desenvolvimento de um novo modelo de seleção e formação dos operadores do direito, em

especial, dos magistrados.

Trata-se, em síntese, de romper com a ilusão de que o estatuto do direito e da justiça dependem

apenas de uma política voluntarista por parte dos atores em causa, desvendando, antes de tudo,

as determinantes sociais e políticas da atividade jurídica e judicial (Commaille, 2009). Assumir um

modelo de justiça de proximidade significa, justamente, adaptar a resposta judicial aos lugares e

às pessoas, e demanda, antes de tudo, uma articulação entre os Estados e a sociedade civil, que

passa pela redefinição das funções daquele que assume, pelo incentivo às ações públicas de

justiça, a posição de parceiro da comunidade na consagração dos ideais de justiça social.

Uma justiça de proximidade abrange, pelo menos, dois movimentos fundamentais, dos conjuntos

de práticas: um referente à problemática da delinquência e da insegurança, e, outro, que põe

acento no tratamento dos pequenos litígios entre os particulares. As exigidas proximidades,

capazes de atenuar o cenário de desterritorialização da justiça, implicam em mudanças

institucionais, designadamente pela revisão dos critérios para implementação das comarcas e

outros serviços administrativos de justiça (desde delegacias, até postos da defensoria pública e

ministério público, além dos juizados especiais). Mas não é só.

O Estado deve encarar a si próprio como um componente do sistema integrado de resolução de

litígios, reconhecendo legitimidade e incentivando a preservação e proliferação dos mecanismos

não judiciais de resolução de conflitos sociais. Reconhecida pelo Estado uma política pública de

justiça que inclui os tribunais e o denominado pluralismo judicial, deve-se promover, antes de

tudo, uma proximidade geográfica, fazendo com que a divisão judiciária melhor acompanhe a

evolução sócio-demográfica da população. É preciso, ainda, promover uma proximidade humana,

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que coloca em primeiro lugar a escuta, a preocupação em compreender, em restabelecer uma

relação não somente entre a justiça e os cidadãos, mas também entre o agressor e sua vítima.

No âmbito penal, a pequena infração é convertida em conflito e, regulado por um terceiro neutro

disposto mais a (re)aproximar as partes do que aplicar a sansão. A mediação penal ou

comunitária pode ser um instrumento eficaz e a presença de um árbitro com habilidade para

escuta e conciliação, mais do que dotado de grande conhecimento técnico-jurídico, é

fundamental. Na seara cível, destaca-se a preocupação em oferecer um tratamento judicial

renovado aos litígios da vida cotidiana, incrementando a conciliação e, assim, a escuta dos

jurisdicionados. Aí a proximidade humana é, sobretudo, uma proximidade processual, pois,

obedecendo a regras processuais simples e propiciando a conciliação e escuta das partes, a

jurisdição de proximidade concorre para dissolver a imagem, por vezes disseminada entre os

jurisdicionados, de uma justiça opaca e complexa.

Por fim, é fundamental a concretização de uma proximidade temporal, isto é, é preciso responder

ao crescimento da pequena delinquência não apenas diferentemente, mas também rapidamente,

lutando contra o sentimento de impunidade dos infratores e de abandono das vítimas. No âmbito

cível, trata-se, antes de tudo, de arejar os órgãos de primeira instância, sobrecarregados, em

particular pelos contenciosos civis de massa, podendo haver recurso à transferência de

contenciosos a juízes não profissionais ou cidadãos legitimados pela comunidade, buscando

oferecer um tratamento judicial renovado aos litígios da vida cotidiana.

No Brasil, inúmeros mecanismos de proximidade são previstos pela legislação e outros tantos

órgãos da administração pública possuem funções essencialmente jurisdicionais, de modo que,

em boa medida, democratizar o acesso à justiça é revestir de eficácia esses mecanismos e fazer

atuar esses órgãos. Designadamente a Defensoria Pública, o Ministério Público, os Juizados

Especiais, as Varas Especializadas nos Tribunais, os Tribunais de Arbitragens e ainda, os

projetos e programas de Conciliação, Mediação e Arbitragem, que são reeditados

sistematicamente pelos tribunais, os multirões em matéria penal, a justiça itinerante, dentre tantos

outros.

Por outro lado, a utilização e funcionamento eficaz desses mecanismos e órgãos públicos

dependem, sobretudo, da prévia ruptura com a ideia de que o direito e a justiça dependem

apenas de uma política voluntarista por parte dos atores em causa, e subsequente assunção de

que essa é uma questão que resulta de uma abordagem que deve levar em conta, quer as ações

das instituições públicas, quer as de múltiplos agentes, públicos ou privados, tanto da sociedade

civil como da esfera governamental, atuando conjuntamente, em múltiplas interdependências, par

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produzir formas de regulação das atividades coletivas. É, portanto, considerando que toda

sociedade minimamente complexa possui à disposição dos litigantes um conjunto mais ou menos

numeroso de mecanismos de resolução de litígios, dentre os quais os tribunais ocupam um lugar

cada vez mais central, é que se constitui o nosso sentimento no sentido de que é preciso rever os

critérios fundamentais de organização do judiciário brasileiro, adequando-os aos fatores sociais,

econômicos, políticos e jurídico-institucionais.

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